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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
A MATERNIDADE SIMBÓLICA NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA: aspectos
socioculturais da mãe-de-santo na Umbanda em Fortaleza-Ceará
MARIA ZELMA DE ARAÚJO MADEIRA CANTUÁRIO
Orientador: Prof. Dr. Ismael de Andrade Pordeus Júnior
FORTALEZA
2009
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2
MARIA ZELMA DE ARAÚJO MADEIRA CANTUÁRIO
A MATERNIDADE SIMBÓLICA NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA:
aspectos socioculturais da mãe-de-santo na Umbanda em Fortaleza-Ceará
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, da Universidade Federal do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em
Sociologia.
Área de Concentração: Sociologia
Linha de Pesquisa: Pensamento Social, Imaginário e
Religião.
Orientador: Prof. Dr: Ismael de Andrade Pordeus Júnior
FORTALEZA
2009
3
C233 CANTUÁRIO, Maria Zelma de Araújo Madeira
A maternidade simbólica na religião afro-brasileira [manuscrito]: aspectos
socioculturais da mãe-de-santo na Umbanda em Fortaleza-Ceará / por
Maria Zelma de Araújo Madeira Cantuário – 2009.
250 f.: il.; 30 cm.
Cópia de computador (printout(s)).
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Ceará, Centro de
Humanidades, Programa de s-Graduação em Sociologia, Fortaleza (CE),
2009.
Orientação: Prof. Dr. Ismael de Andrade Pordeus Junior.
Inclui bibliografia.
1- UMBANDA. 2- CULTOS AFRO-BRASILEIROS. 3- SIMBOLISMO. I – Pordeus
Júnior, Ismael de Andrade, orientador. II - Universidade Federal do Ceará. Centro de
Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Sociologia. III – Título.
CDD(21.ed.) 299.6
4
MARIA ZELMA DE ARAÚJO MADEIRA CANTUÁRIO
A maternidade simbólica na religião afro-brasileira:
aspectos socioculturais da mãe-de-santo na Umbanda em Fortaleza-Ceará
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal do Ceará para
obtenção do título de Doutor em Sociologia.
Banca Examinadora
Aprovado em: 27/2/2009
__________________________________
Prof. Dr. Ismael de Andrade Pordeus Júnior (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
__________________________________
Prof. Dra. Maria Lina Leão Teixeira (Membro)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
____________________________________
Prof. Dra. Carmen Luisa Chaves Cavalcante (Membro)
Universidade de Fortaleza (UNIFOR)
____________________________________
Prof. Dr. Antônio Wellington de Oliveira Júnior (Membro)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
____________________________________
Prof. Dr. Alexandre Fleming Câmara Vale (Membro)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
FORTALEZA
2009
5
A Letícia, minha filha, pelas alegrias e aprendizado que
temos vivido juntas, ao longo de sua existência.
A Rosária, minha mãe, por ter provocado em mim o
desejo de adentrar os mistérios da maternidade.
6
Meus sinceros agradecimentos
A Gilberto Alberto Madeira, meu pai (in memoriam), pelo despertar do valor da
cultura popular e da tradição presentes na minha trajetória de vida.
A minha família, que ocupa um lugar especial em minha vida: Zélia Madeira e Acilino
Madeira Neto, meus irmãos; aos sobrinhos Carolina Madeira, Camila Madeira e Gilberto
Madeira Neto; a minha irmã outra, Graça da Silva; a minha cunhada Rosilene Costa.
Ao Professor Orientador Dr. Ismael Pordeus Júnior, por compartilhar comigo seu tema
de pesquisa – as religiões de possessão no Ceará –, por ser um interlocutor disposto a oferecer
estímulos durante o processo de produção deste trabalho e pela compreensão nos momentos
difíceis pelos quais passei, provocando muitas reflexões.
Aos interlocutores da pesquisa, em particular às mães-de-santo que gentilmente me
receberam e muito contribuíram com meus achados, tornando-se, portanto, co-autoras deste
trabalho.
Ao amigo Lincoly de Xangô, pela disposição que sempre demonstrou em me
apresentar ao povo-de-santo, mostrando-me o “mundo” dos terreiros das religiões afro-
brasileira em Fortaleza e Região Metropolitana.
À Profª. Drª. Maria Lina Leão Teixeira, pelas excelentes observações, críticas e
contribuições oferecidas não por ocasião do exame de qualificação da tese, pois
continuamos o diálogo –, mesmo se algumas delas não pude (ou não soube) aproveitar
devidamente.
Ao Prof. Dr. Alexandre Fleming Câmara Vale, meu colega de Mestrado, pela sua
gentil solidariedade em ter aceitado o convite para participar da banca.
Aos professores da Banca Carmen Luisa Chaves Cavalcante e Antônio Wellington de
Oliveira Júnior, por gentilmente aceitar meu convite.
Às grandes mulheres que deixaram em mim referências ambíguas, contraditórias e
complementares do feminino e da maternidade: Rosária Firmino de Araújo, Ana Pereira de
Melo, Iracema Vieira, Janete Viana e Lina Pereira dos Santos.
Às minhas amigas da UECE, da UFC, do Projeto “PAIR”, do Projeto “Escola que
Protege”, do INEGRA, pelos ensinamentos, vivências e subjetividades do ser mulher e mãe.
A Sandra Mara Dourado, pelas valiosas pontuações feitas no meu processo de
autoconhecimento.
7
Às minhas amigas Caroline Bueno e Renata Cavalcante, pela preciosa ajuda na
formatação do texto.
Sou grata à dedicada revisora Lucíola Limaverde.
Ao grande poeta Oliveira Silveira, que recentemente partiu, foi juntar-se aos
ancestrais, pela presença, incentivo e apoio que me deu na construção deste trabalho.
8
Vovó veio do cativeiro
pra fazer caridade
Mas não quer filho da terra
Abusando da sua bondade
Ela é de Bahia, ela é feiticeira
Ela vence a demanda
Respeitada na mesa de umbanda
E em todo lugar
(Trecho da música
Rabo de Saia
Monarco/Betinho da Balança).
9
CANTUÁRIO, Maria Zelma de Araújo Madeira. A maternidade simbólica na religião afro-
brasileira: aspectos socioculturais da mãe-de-santo na Umbanda em Fortaleza-Ceará.
Tese (Sociologia), 250 p. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal
do Ceará, Fortaleza, 2009.
RESUMO
Esta tese trata da maternidade simbólica exercida pelas mães-de-santo na Umbanda em
Fortaleza e Região Metropolitana. Tem como objetivos construir a memória histórica do
Espiritismo de Umbanda no Ceará por intermédio da narrativa dos seus adeptos, considerando
o contexto e as transformações por que essa religião passou e o entrecruzamento com os
projetos religiosos das mães-de-santo; interpretar as teias de significado que as sacerdotisas
atribuem à maternidade espiritual perpassada de simbolismos, na busca de saber o que é ser
mãe-de-santo em seus aspectos socioculturais. A pesquisa é de cunho qualitativo, mediante o
uso do método da história oral, tendo como instrumentos de coleta de dados a entrevista e a
observação participante. Foram colhidos depoimentos orais na comunidade de terreiros entre
os anos de 2004 e 2009, junto a mães, pais e filhos e filhas-de-santo. O estudo apresenta as
mães-de-santo como guardiãs de uma tradição que se renova na dinâmica contemporânea. No
campo religioso, o feminino e a maternidade das sacerdotisas se constituem a partir das
referências simbólicas dos orixás e das entidades espirituais que lhes guiam. Por meio deste
simbolismo, constroem-se novos espaços de luta contra a opressão feminina, transgressão aos
poderes e discursos oficiais que circunscrevem os domínios da mulher. A maternidade está
envolta por uma teia de complexidade tecida pelo imaginário social presente na nossa cultura,
cujos símbolos trazem a representação da bondade, do cuidado e da proteção. As práticas
religiosas dessas mães-de-santo revelam contradições, conflitos e ambigüidades que
demarcam relações de poder. Possuem uma visão de mundo mítica, apresentam soluções e
explicações do universo tico e têm soluções e explicações no mundo “real” ao justificar
suas condutas. A dimensão sociocultural na maternidade simbólica das mães-de-santo não
pode ser reduzida às formulações racionais, acreditando que elas protegem e cuidam. Mas
vão além, convivem com o incerto, o que provoca nelas o poder de criar e reinventar suas
práticas na vida cotidiana.
Palavras chave: Religiões Afro-Brasileiras, Umbanda, Maternidade, Simbolismo e
Imaginário Social.
10
CANTUÁRIO, Maria Zelma de Araújo Madeira. The symbolic motherhood in afro-brazilian
religion: socio-cultural aspects of the "mãe- de-Santo" at Umbanda in Fortaleza-Ceará. Thesis
(Sociology), 250p. Post-Graduate Program in Sociology, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2009.
ABSTRACT
This research talks about symbolic maternity in the religious practice observed envolving the
sorceress work in metropolitan region in Fortaleza. It intends to understand the construction
of the symbolic maternity. This way it also reconstruct the historic memory of Spiritism of
Umbanda in Ceará. The research is based on their follower narratives. It considers the context
and the religious changes and the relations to the religious projects of the sorceresses. It
aproaches the spiritual maternity sense of the female priests in order to understand the social
cultural aspects of the sorceress definition. It is a qualitative research based on a oral history
method. The collection technique is interviews and field research observations. It were
collected oral declarations in Umbanda universe from 2004 to 2009. The study presents the
tradition renovation realized by the sorceresses in the modern society. In the religious field the
female conception is based on the symbolic references of their entities ordenation. By this
symbolism is observed the oposition against the oficial female domination. It is observed a
complex meaning net whose symbols call atentions to the protection, goodness and cares
meanings. The religious practices project the power relations. They present the mystic world
view. Their behavior justifies solutions and explanations of the reality. It is not possible to
reduce the sociocultural dimension of the symbolic maternity to the racional formulations of
the sorceressses. It is not possible to believe that they just protect and care their sons. Besides
they believe they can create and reinvent the daily practices.
Key words: African-Brasilian religion, Umbanda, Maternity, Symbolism and Social
Imaginary.
11
CANTUÁRIO, Maria Zelma de Araújo Madeira. La Maternité Symbolique dans la
Religion Afro-Brésilienne: Aspects sócio-culturels de la Mère de saint dans la Umbanda
à Fortaleza-Ceará. Thèse (Sociologie), 250p. Programme de Post-Graduation en Sociologie,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009.
RÉSUMÉ
Cette thèse traite de la maternité symbolique exercée par les mères de saint dans la Umbanda,
à Fortaleza et en Région Métropolitaine. Elle a comme objectifs de construire la mémoire
historique du Spiritisme de l’«Umbanda » au Ceará à travers la narrative de ses adeptes
considérant le contexte et les transformations que cette religion a subies, et l’entrecroisement
avec les projets religieux des mères de saint ; interpréter les trames de signification que les
prêtresses attribuent à la maternité spirituelle teintée de symbolismes, dans la recherche de
savoir ce que c’est que d’être mère de saint dans ses aspects socio-culturels. La recherche est
empreinte de qualité, moyennant l’utilisation de la méthode de l’histoire orale, ayant comme
instruments la cueillette des données, l’entretien et l’observation participante. Des
témoignages oraux ont été cueillis dans la communauté des terreiros pendant les années 2004
à 2009, auprès des mères, pères et fils et filles de saint. L’étude s’attarde sur ceux les
mères de saint sont des gardiennes d’une tradition qui se renouvelle dans la dynamique
contemporaine. Dans le camp religieux, le féminin et la maternité des prêtresses sont
constitués à partir des références symboliques des orixás et des entités spirituelles qui les
guident. Par le moyen de ce symbolisme, d’autres nouveaux espaces de lutte sont construits
contre l’oppression féminine, la transgression aux pouvoirs et les discours officiels qui
circonscrivent les domaines de la femme. La maternité se trouve enveloppée d’une toile de
complexité, toile tissée par l’imaginaire social présent dans notre culture dont les symboles
apportent la représentation de la bonté, du soin et de la protection. Les pratiques religieuses de
ces mères de saint dévoilent des contradictions, des conflits et des ambiguïtés qui démarquent
les relations de pouvoir. Elles possèdent une vision du monde mythique, présentent des
solutions et explications de l’univers mythique et ont des solutions et explications dans le
monde «réel» quand elles justifient leurs conduites. La dimension socio-culturelle de la
maternité symbolique des mères de saint ne peut être réduite à leur formulation rationnelle,
croyant seulement qu’elles protègent et soignent, car elles vont au-delà en cohabitant avec
l’incertain ce qui provoque chez elles le pouvoir de créer et réinventer leurs pratiques dans la
vie quotidienne.
Mots-clé: Religions Afro-brésiliennes, Umbanda, Maternité, Symbolisme et Imaginaire
Social.
12
CANTUÁRIO, Maria Zelma de Araújo Madeira. La Maternidad Simbólica en la Religión
Afrobrasileña: Aspectos socioculturales de la Mãe-de-santo en la Umbanda en Fortaleza
Ceará. Tesis (Sociología), 250 p. Programa de Pós-Graduação en Sociologia, Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2009
.
RESUMEN
Esta tesis trata de la maternidad simbólica ejercida por las mães-de-santo en la Umbanda en
Fortaleza y Región Metropolitana. Tuvo como objetivos construir la memoria histórica del
Espiritismo de Umbanda en Ceará por medio de la narrativa de sus adeptos – para eso
considera el contexto y las transformaciones por las que esa religión pasó y el entrecruce
con los proyectos religiosos de las mães-de-santo; interpretar las redes de significado que las
sacerdotisas atribuyen a la maternidad espiritual atravesada por simbolismos, con el reto de
saber lo que es ser mãe-de-santo en sus aspectos socioculturales. La investigación fue de
carácter cualitativo y se hizo mediante el uso del método de la historia oral. La recolección de
datos se llevó a cabo a través de la entrevista y de la observación participante. Se colectaron
declaraciones orales en la comunidad de terreiros durante los años de 2004 a 2009, junto a
mães (madres), pais (padres), filhos (hijos) y filhas (hijas) de santo. El estudio presenta que
las mães-de-santo son guardianas de una tradición que se renueva en la dinámica
contemporánea. En el campo religioso, el femenino y la maternidad de las sacerdotisas se
constituyen a partir de las referencias simbólicas de los orixás y de las entidades espirituales
que les guían. Por medio de este simbolismo se construyen nuevos espacios de lucha contra la
opresión femenina, la transgresión a los poderes y los discursos oficiales que controlan los
dominios de la mujer. La maternidad está envuelta por una tela de complejidad, tejida por el
imaginario social presente en nuestra cultura, cuyos símbolos traen la representación de la
bondad, del cuidado y de la protección. Las prácticas religiosas de estas mães-de-santo
revelan contradicciones, conflictos y ambigüedades que deslindan relaciones de poder. Poseen
una visión de mundo tica y presentan soluciones y explicaciones del universo mítico y
tienen soluciones y explicaciones en el mundo “real” cuando justifican sus conductas. La
dimensión sociocultural en la maternidad simbólica de las mães-de-santo no se puede reducir
a sus formulaciones racionales y tampoco se puede creer que ellas sólo protegen y cuidan.
Van más allá, conviven con el incierto, lo que les provoca el poder de crear y reinventar sus
prácticas en la vida cotidiana.
Descriptores: Religiones Afro-brasileñas, Umbanda, Maternidad, Simbolismo y Imaginario
Social.
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................15
CAPÍTULO 1 – CONVIVÊNCIA NOS TERREIROS.......................................................25
1.1 O ato de pesquisar.....................................................................................................26
1.2 Espaço da Umbanda e do Candomblé em Fortaleza.................................................35
1.3 Aspecto metodológico da pesquisa...........................................................................46
1.4 Perfil biográfico das interlocutoras da pesquisa.......................................................56
CAPÍTULO 2 – AS RELIGIÕES LUSO-AFRO-BRASILEIRAS NO CEARÁ..............62
2.1 As religiões de matriz africana no Brasil...................................................................63
2.2 Memória histórica da Umbanda no Ceará.................................................................76
2.3 Dimensão ritual e iniciática na Umbanda em Fortaleza e Região Metropolitana......91
2.4 A Festa de Iemanjá na Praia do Futuro em Fortaleza-CE.........................................102
CAPÍTULO 3 – MATERNIDADE SIMBÓLICA DA MÃE-DE-SANTO NAS
COMUNIDADES DE TERREIRO DE UMBANDA DE FORTALEZA E REGIÃO
METROPOLITANA............................................................................................................113
3.1 Maternidade na sociedade ocidental: a construção o mito do amor materno como
inato...............................................................................................................................115
3.2 Maternidade simbólica: imaginário social e simbolismo na Umbanda...................127
3.3 O Feminino e a maternidade nas religiões afro-brasileiras.....................................140
3.4 Maternidade espiritual: a construção de um sacerdócio..........................................162
3.4 Proteção e relações de poder no cotidiano das mães-de-santo................................181
CAPÍTULO 4 – MÃE JÚLIA: a mãe primeira da Umbanda no Ceará.........................196
4.1 Lembrança de Mãe Júlia..........................................................................................197
4.2 Júlia Condante: Mãe primeira do Espiritismo de Umbanda no Ceará.....................205
4.2.1 A “desenvolvência” de mãe Júlia.........................................................................210
4.2.2 Construção do terreiro de Ogum: Ogunhê...........................................................213
4.3 Morte da mãe Júlia e a passagem da função sacerdotal para Mãe Stela..................223
14
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................227
REFERÊNCIAS...................................................................................................................233
ANEXO.................................................................................................................................245
APÊNDICE...........................................................................................................................247
15
INTRODUÇÃO
16
O tema da maternidade tem despertado meu interesse certo tempo. Trabalhei no
mestrado em Sociologia a temática que culminou na elaboração da dissertação intitulada
Maternidade e conjugalidade: múltiplos discursos na construção de um devir mulher
(CANTUÁRIO, 1998). Naquele momento, em 1998, pareceu-me satisfatório realizar uma
análise sobre como as mulheres moradoras do Residencial Guadalajara, situado no bairro
Parque Albano em Caucaia, Ceará, desempenhavam os papéis de esposa e mãe.
Empreendi uma pesquisa um busca de compreender as possíveis ambigüidades entre o
dizer, o sentir e o fazer presentes na fala dessas mulheres acerca da maternidade e do
casamento. Constatei que nem toda mulher tem necessariamente uma pulsão irresistível a ser
mãe, de ocupar seu tempo com os filhos. Nesse sentido, foi relevante o estudo de Badinter
(1985) sobre a maternidade – o amor materno na sociedade francesa durante os séculos XVI e
XVII. A autora encontra testemunhos que contrariam o discurso do amor materno como
sentimento inato, justificado por algumas hipóteses da Biologia e da Religião. Ela defende
que esse sentimento é social e culturalmente construído. A minha pesquisa evidencia que
esposas e mães querem, cada vez mais, viver livremente, instruir-se e administrar suas vidas.
Não negam as funções de esposa e mãe, mas querem vivê-las em liberdade, assumindo-as por
amor e não por imposição.
Passado algum tempo, notei certa incompletude naquele trabalho. Falei das mulheres
de modo geral, tive a preocupação com o recorte de classe eram todas pertencentes às
camadas populares –, mas não priorizei outros aspectos da dimensão étnico-racial. O
despertar para esse âmbito veio inicialmente da minha vinculação com os movimentos sociais
em Fortaleza, em particular com o movimento negro e com o de mulheres. Acreditei que
valeria à pena pensar a maternidade nas mulheres negras, pois ao longo da História elas
assumem especificidades que as colocam num lugar determinado.
No trabalho referido, reportei-me à maternidade no período colonial e ao projeto de
higienização da medicina social
1
do século XIX mediante normatizações dos comportamentos
de homens e mulheres. Essa literatura realçava a situação das mulheres brancas
predominantemente de elite. E, através dessas leituras, verifiquei que a mulher negra, ao
1
Segundo Jurandir Freire Costa (1989), na obra intitulada Ordem médica e norma familiar no Brasil, a família
oitocentista de elite foi submetida às normatizações da medicina social no século XIX, através da política
higienista que reduziu a família a um estado de dependência, dos agentes educativo-terapêuticos, em nome de
resguardar cada membro da família e definir os papéis de pai, mãe e filhos. Acreditava-se que, por meio dessa
disciplinarização, a família iria ter capacidade de proteger a vida de crianças e adultos, transformando os
costumes familiares.
17
assumir a maternidade, o faz com grande influência da cultura e de religião de base afro-
brasileira. Esse fato me chamou atenção para as possibilidades de uma análise mais fecunda
sobre a maternidade simbólica das mães-de-santo dentro da Umbanda. Pretendi destacar o
papel da mãe-de-santo na reprodução das práticas socioculturais em sacerdócio, considerando
as ressignificações e as conexões culturais do tempo presente.
As principais matrizes formadoras do processo histórico do desenvolvimento das
religiões afro-brasileiras são: o catolicismo português, os ritos indígenas e as religiões
africanas. Entre as religiões consideradas de matriz africana, estão a Pajelança, a Jurema, o
Catimbó, o Candomblé e a Umbanda. Nesta pesquisa, a referência sea Umbanda na cidade
de Fortaleza e Área Metropolitana. Para compreender a memória histórica da Umbanda no
Ceará apoiei-me nas investigações do pesquisador Ismael Pordeus sobre o processo de
mutação da Macumba para a Umbanda nos anos 1950.
Para Ortiz (1999), a Umbanda é uma religião brasileira que tem origem na região
Sudeste. Foi obrigada a integrar sua cosmologia às contradições de classe, marcadas pela
urbanização e pela industrialização do País. Essa religião é, sem dúvida, dentre as afro-
brasileiras, a mais praticada em todo o Brasil, possuindo um rico panteão e uma visão de
mundo fortemente marginalizada. As práticas afro-brasileiras irão, pela Umbanda, se integrar
à sociedade nascente. A África deixa de ser a forte inspiração sagrada, a terra-mãe, uma
aposta na brasilidade, na nacionalidade. Essa religião congrega uma síntese das outras
diversas, como Espiritismo, Catolicismo, religiões africanas e indígenas.
Tratarei da herança de ordem religiosa, feita através da transmissão cultural, desta
maternidade simbólica presente nas famílias-de-santo
2
, entendendo que, nesse imaginário
religioso, a mãe-de-santo conta com o elemento de poder associado ao lugar da maternidade,
poder muito forte, agregador, estruturador da cultura, que pode dar condições de rearticular os
papéis sociais dos praticantes dessas religiões.
Parto do pressuposto de que a religião se define a partir das relações tecidas na
comunidade, da ação comunitária no sentido atribuído por Max Weber, como um tipo
particular de ação social. Como toda ação social, a religiosa pode ser alcançada a partir de
vivências, representações e fins subjetivos dos indivíduos, ou seja, da interpretação do sentido
(WEBER, 1991).
2
A expressão familia-de-santo, bem como povo-de-santo, faz parte do linguajar especifico dos terreiros de
Candomblé. È uma abstração que serve para designar os que crêem e praticam uma das modalidades das
religiões afro-brasileiras. Significa uma rede humana que funciona em forma de família com o objetivo de
afirmar um espaço de referência espiritual e social nestas religiões (TEIXEIRA, 2000).
18
Religião é uma categoria que se interessa por questões de significação fundamental,
como o sentido da vida, do sofrimento e da morte, e os meios adequados para se manter a
esperança em um futuro melhor. Essa dimensão da vida adota formas amplamente diversas
em diferentes culturas e está sujeita às diferentes sensibilidades e interpretações dos
indivíduos (HOLLIS, 1996).
A religião tem um sentido social, uma vez que tem a função de reestruturar a vida do
grupo social através de uma (re)aproximação ritual com o tempo mítico de origem. A
experiência religiosa refere-se à experiência mais íntima do ser humano, expressa
simbolicamente e carregada de sentidos. A religião subentende a partilha de bens simbólicos e
o cumprimento de rituais coletivos e individuais. No campo religioso, prevalece o pensamento
simbólico com a preponderância dos mitos, dos discursos de uma história sagrada.
As religiões afro-brasileiras estão presentes e contribuem para a constituição da identidade
3
do Brasil. São religiões que têm capacidade própria e distinta de elaborar a idéia de sociedade
e de indivíduo e com diferentes modos de ver a vida, de interpretar o mundo. A compreensão
do conceito de identidade aqui utilizado não se aproxima do entendimento dela como algo
fixo, estático. Alguns autores ajudam a ampliar essa compreensão: Pollak (1992) compreende
por identidade um fenômeno que se reproduz em referência aos outros. Assim, ninguém pode
construir uma auto-imagem isenta de mudanças, de negociação e de transformação em função
dos outros. Para ele, a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e
intergrupais. A identidade é vista como investimentos que um grupo deve fazer ao longo do
tempo, com todo o trabalho necessário para dar a cada membro do grupo o sentimento de
unidade, de continuidade e de coerência (POLLAK, 1992, p. 7).
3
Para Bezerra de Meneses (2000), nos últimos 15 anos se tornou modismo o uso do conceito de identidade nas
Ciências Sociais. Para ele, esse conceito é aceito no campo da lógica e da matemática para implicar mesmice,
idêntico, o mesmo, o que o torna totalmente inadequado e problemático quando tratamos dos processos culturais
mergulhados na incessante transformação histórica. Para Durkheim, o ser humano não produz isoladamente os
seus pensamentos , mas opera seguindo crenças, valores e sobretudo categorias que se formam historicamente na
vida social, por meio das representações sociais. A identidade numa concepção de invariabilidade de fixidez
compreende cultura como sistema harmonioso e contínuo, não considera os conflitos, as contradições, os
antagonismos, mas parte de uma igualdade autoritária, da mesmice. Enquanto isso, a identificação, o perfil
identitário leva em conta a multiplicidade, a mudança, os processos de identificação, introduzidos dentro do
processo histórico, tendo um papel fundante a cultura. Nas realidades socioculturais devemos considerar os
processo de construção e reconstrução na história, de rearticulação e ressemantização. Assim, a identificação
remete a processos, pois incrementa e constrói uma tipologia das diferenças. Dessa forma, a categoria identidade
trabalha com caráter, índole, perfil peculiar, singularidade que é historicamente construída e mutável. Vale então
reconhecer a existência de numerosos tipos humanos dentro de um quadro de caracteres comuns; aqui, a mãe-de-
santo boa, e a mãe boa e santa na sociedade ocidental cristã. Interessei-me por compreender a forma como
recriam os valores concernentes ao fenômeno da maternidade no campo religioso afro-brasileiro.
19
As religiões afro-brasileiras têm um universo plural. O panteão de origem africana é
formado pelos orixás iorubanos, voduns, jejes, inquices (bantos) e outras entidades espirituais,
demarcando um complexo quadro de diversidades culturais no Brasil. Para Prandi (2004),
essas religiões se movimentam e se metamorfoseiam num universo de constantes mudanças e
permanente expansão, conformando uma realidade místico-religiosa formada de múltiplas
vertentes.
Foi nesse terreno que tentei interpretar as transformações pelas quais essas religiões
passaram no contexto de Fortaleza e Região Metropolitana, num esforço de ler as teias de
significados que as mães-de-santo atribuem à maternidade simbólica. O que é ser e para
essas sacerdotisas? – foi esse o eixo estruturador desta pesquisa.
É de suma importância perceber o lugar que as mulheres ocupam como mães na
cultura e na religiosidade afro-brasileira. Ao tratar as relações de gênero, devo evitar
confundir a dimensão da ordem da natureza com a grandeza histórico-cultural, entrando no
mundo dos significados, dos valores morais e éticos e da cultura, pois os papéis de mulher e
de homem não são apenas determinados biologicamente. Como construto social, o mundo dos
significados inclui fatores de ordem cultural e simbólica na constituição dos sujeitos homens e
mulheres. A construção dos gêneros masculino e feminino é gerada pela socialização e
garantida pela individualização, situando-se entre a constituição individual e social, atributo
que assinala uma pertença a grupos ou categorias sociais.
No Brasil, sociedade marcada pela diversidade cultural e religiosa, foi considerável a
presença das mulheres de origem indígena, européia e africana. A mulher tem assumido um
papel preponderante na preservação do patrimônio cultural e religioso no nosso País, pois até
hoje educam, socializam e propagam os valores humanos fundamentais. As mulheres
conseguiram revalorizar em muito as religiões afro-brasileiras, resistindo e preservando
cosmogonias, ritos e símbolos de grande valor. No entanto, essa participação das mulheres
não se deu no campo religioso sem influência dos parâmetros patriarcais e autoritários da
nossa cultura.
As religiões de matriz africana, como o Candomblé, contaram com a participação
efetiva das mulheres, em especial das mulheres negras, baseando-se em sua ancestralidade, na
espiritualidade religiosa, lutando contra o jugo colonial, a escravidão e o racismo por meio de
mitos, símbolos e rituais. Retiraram da religião estratégias diversas de insubordinação
simbólica ou real, o que lhes oferecia a possibilidade de criar mecanismos de defesa para
sobrevivência e conservação de seus traços culturais de origem. São exemplos de lideranças
20
religiosas as ialorixás (mães-de-santo): Yya Nassô (século XIX), Tia Ciata (1854-1924), Mãe
Aninha (1869-1938), Mãe Senhora (1900-1967) e Mãe Menininha do Gantois (1894-1986),
dentre outras (CARNEIRO, 2007).
A religião tinha os propósitos de reorganizar a família negra, perpetuar a memória
cultural e garantir a sobrevivência do grupo, numa forma alternativa e justaposta à sociedade
mais abrangente.
A organização social do Candomblé (...) permitiu que os terreiros’ se
tornassem territórios de organização comunitária, de cura aos destituídos do
direito a saúde, de resistência cultural e de negociação com a sociedade
abrangente e excludente (...) (CARNEIRO, 2007, p.18).
Diante do processo de escravização, restava criar formas de sobrevivência, nos quais
homens e mulheres buscavam adaptar-se aos esquemas postos. Nesse sentido, foi relevante o
papel das mães-de-santo no campo religioso.
A mãe-de-santo é a autoridade máxima do terreiro, é a mãe da família espiritual. Tem
no sacerdócio a função de “organizar” a descida ou vinda das divindades do Orun (Céu) para
o Aíye (Terra), pois, neste retorno à Terra, elas precisam tomar o corpo material de seus
devotos. Embora o grupo se estruture em hierarquias e cargos que dependem do tempo de
iniciação, ela designa os filhos para postos de prestígio e se encarrega da nomeação para
funções rituais. Exerce a disciplina sobre seus iniciados pelo aconselhamento, pela orientação
e pelo desenvolvimento mediúnico. No processo de gestação simbólica”, faz com que seus
filhos nasçam para uma nova vida religiosa.
Berniste (2002) assinala que a maternidade é um constante treino que intensifica a
relação entre mãe e filho. Cabe à mãe ensinar a criança a observar seu meio, conhecer plantas,
árvores, animais, pássaros. Nas culturas africanas, essa maternidade é extensiva a toda a
sociedade; cabe a todas as mulheres ensinar. A sociedade inteira funciona como escola: daí
porque vale o ensinamento, mas também a vivência, a demonstração. Essa educação teórica e
prática é introduzida através de uma combinação de preceitos com literatura oral, representada
por textos, provérbios, poemas, mitos e canções tradicionais.
Ao trabalhar com o termo mãe-de-santo, preciso ter claro que ele sofre alterações
cujas implicações vão além da mera terminologia. No Candomblé, o termo equivalente é
21
ialorixá
4
, sacerdotisa que age na intermediação entre os orixás e os humanos. No entanto,
com a perseguição ao Candomblé e o controle social e político da Igreja Católica, algumas
formas de expressão do Candomblé precisaram mudar. Os praticantes dessa religião passaram
a denominar os orixás de santos e as sacerdotisas de mães-de-santo.
A mãe-de-santo tem a função de ensinar seu povo a confiar nos santos, nos orixás e
nas entidades, a obedecer aos preceitos. No Candomblé e na Umbanda, orixás e entidades
baixam na Terra, e sua força criadora consiste em dar às pessoas coragem e confiança, tendo a
solução dos problemas nesta existência, e não no outro mundo. Ser mãe-de-santo é ser uma
autoridade revestida de poder, pois elas possuem uma identidade sociorreligiosa legitimada no
terreiro, são respeitadas e temidas.
Ruth Landes (1967), ao pesquisar o Candomblé na Bahia no final da década de 1930,
entrevê que as mulheres praticantes do Candomblé em Salvador podem ser solteiras,
separadas, viúvas ou casadas, porém o marido geralmente tem força de impor que ela se
distancie de suas funções sacerdotais. Demonstram independência, dedicando-se
exclusivamente aos deuses. Nessa compreensão, a autora fala de uma personagem muito
reconhecida na Bahia, a Mãe Menininha:
Menininha não se casou legalmente com ele (Dr. Álvaro) pelas mesmas
razões por que outras mães e sacerdotisas o se casavam. Teriam perdido
muito. De acordo com as leis daquele país católico e latino, a esposa deve
submeter-se inteiramente à autoridade do marido. Quão incompatível é isto
com as crenças e a organização do Candomblé! Quão inconcebível para a
dominadora autoridade feminina! E tão poderosa é a tendência matriarcal,
em que as mulheres se submetem apenas aos deuses, que os homens, como
Amor e Martiniano e o consorte de Menininha, o Dr. Álvaro, nada podem
fazer além de enfurecer-se, censurar e brigar com as sacerdotisas que amam
(LANDES, 1967, p.164).
As análises de Lina Teixeira (2000) sobre as relações entre identidades sexuais,
divisão de trabalho e poder representam um convite para um posicionamento mais crítico
sobre o que a maioria dos estudiosos, literatos e público em geral como Nina Rodrigues,
Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide, Pierre Verger, Jorge Amada até outros mais
4
Sacerdotisa, zeladora ou iniciadora dos demais praticantes na religião, é responsável por formar as famílias-de-
santo e garantir a permanência da tradição, da ramificação à qual pertence. Nessas religiões de base afro-
brasileira ninguém nasce feito nem se faz sozinho; a pessoa precisa nascer e, para tanto, precisa transpor os
portais da iniciação (feitura), sendo levada pelas mãos de uma ialorixá como mãe espiritual para fazer parte
integrante da organização religiosa.
22
recentes afirmam sobre o lugar da mulher nas comunidades de terreiros, desses espaços serem
prioritariamente femininos, verdadeiras cidades das mulheres.
As identidades e os papéis sexuais estão, portanto, inscritos no domínio do
social e do cultural. No que concerne aos terreiros de Candomblé, é
necessário admitir que os valores específicos do “povo-de-santo” somam-se
ou fundem-se às idéias dominantes na sociedade mais ampla. Não se pode
falar de um sistema simbólico independente, mas sim da reprodução, parcial
ou integral, do discurso hegemônico sobre a questão da sexualidade e de seu
exercício, presente na sociedade brasileira abrangente (...) (TEIXEIRA,
2000, p.198)
Para a autora, a sexualidade e suas representações são vistas como mecanismos ou
estratégias de poder – daí porque considerar a presença masculina nesses territórios das
religiões afro-brasileiras. Isso me levou a relativizar o olhar na análise sobre a construção do
sacerdócio e a forma com que as mães-de-santo realizam suas práticas no cotidiano de uma
sociedade mais ampla.
Coube interpretar, nas comunidades de terreiros e nas famílias-de-santo, como se dão
os conflitos e os antagonismos nessa religião, mas também a forma como ocorrem a
aprendizagem e a transmissão da cultura e da tradição aos adeptos na superação das
dificuldades presentes no curso de suas vidas. Ao longo da investigação, o foco foi
compreender a forma como se constitui essa função sociocultural da mãe-de-santo.
Tornou-se relevante interpretar como as entidades espirituais e os orixás representam
as características ligadas ao feminino e à maternidade. Foi importante perceber como os
conteúdos são transmitidos, os mitos em torno de entidades e orixás como Iemanjá, Oxum,
Iansã, Nana, Pretas-Velhas e Titias e outras que simbolizam a mulher e a mãe.
Os questionamentos que deram base a esta tese têm por mote os aspectos
socioculturais expressos nas práticas cotidianas das mães-de-santo da Umbanda. Como o
simbolismo presente nos orixás e nas entidades espirituais fornece elementos para elas
explicarem o feminino e a maternidade na religião? Qual a compreensão da mãe-de-santo
como educadora e socializadora dos filhos-de-santo? Que concepções elas têm sobre
maternidade? De que forma essas representações influenciam no desempenho do seu
sacerdócio? Como a maternidade é representada por entidades e orixás femininos?
Este estudo se divide em quatro partes. No primeiro capítulo, intitulado Convivência
nos terreiros, explicito os aspectos metodológicos da pesquisa empreendida, apresentando o
tipo de pesquisa qualitativa, a delimitação do campo de pesquisa terreiros de Candomblé e
23
Umbanda de Fortaleza e Região Metropolitana –, o método da história oral e a utilização da
técnica de coleta de depoimentos orais, entrevistas e observação dos rituais nas festas e giras,
além do perfil biográfico das mães-de-santo interlocutoras da pesquisa.
No capítulo dois, As religiões luso-afro-brasileiras no Ceará, trato da matriz africana
presente no campo religioso, como a memória brasileira sobre a África. O enfoque recai nos
dois modelos mais conhecidos, ou seja, o Candomblé e a Umbanda. Mediante os depoimentos
de mães, pais, filhas e filhos-de-santo, apresentei a memória histórica da Umbanda no Ceará
como matriz do Espiritismo de Umbanda, num processo de mutação da Macumba ao
Espiritismo de Umbanda. Ressalto o que mudou e o que permanece na Umbanda como
religião tradicional e sua relação com o Candomblé na realidade cearense a partir da década
de 1970. Coube a explicitação da dimensão ritual e iniciática na Umbanda em Fortaleza e
Região Metropolitana, com a etnografia da Festa de Iemanjá na Praia do Futuro, com a festa
atribuindo sentido à religião.
No capítulo três, cujo título é Maternidade simbólica da mãe-de-santo nas
comunidades de terreiro de Umbanda de Fortaleza e Região Metropolitana, analiso os
múltiplos significados de ser mãe-de-santo. Antes de adentrar a maternidade como fenômeno
na religião de matriz africana, apresento um preâmbulo sobre a maternidade na sociedade
ocidental, discutindo a construção histórica da maternidade na sociedade brasileira e o peso
considerável das influências da Igreja Católica e dos discursos médico e jurídico de
disciplinamento da mulher no papel de boa e santa mãezinha. Procuro estabelecer uma relação
entre os mitos referentes à maternidade e ao feminino dos orixás e entidades na Umbanda e os
discursos legitimadores da maternidade na sociedade abrangente. O propósito é discutir as
práticas das mães-de-santo na relação com seus filhos-de-santo no cotidiano do terreiro.
Analiso o imaginário social brasileiro de ser mulher e mãe a partir do campo religioso afro-
brasileiro, particularmente da Umbanda. O fundamental é compreender o significado
conferido pelas mães-de-santo a essas experiências de sacerdócio e às práticas do feminino
(sentido vivido) como experiência socioculturais. Trato dos múltiplos modelos de
maternidade a partir dos imaginários sociais em que se apóiam para ser mães. Sobressaem-se
representações da maternidade brasileira, resultantes também de processos de transformação,
mistura e combinações de diferentes elementos que nos impossibilitam absolutizar um tipo
único de ser mãe-de-santo. Por meio das histórias dessas mães espirituais, no detalhamento de
suas vidas cotidianas e do exercício de seus sacerdócios, é evidenciado o universo mítico
religioso com suas reelaborações.
24
Por último, no quarto capítulo
Mãe Júlia: a mãe primeira da Umbanda no Ceará
,
apresento um levantamento biográfico dessa mãe-de-santo a partir dos depoimentos de sua
filha e hoje liderança do terreiro, Mãe Stela. O objetivo é conhecer os contornos que tomou o
seu sacerdócio – não em Fortaleza, mas em todo o Ceará
de compromisso com a
codificação da Umbanda. Essa é a principal dimensão do seu projeto religioso, e se faz
relevante o detalhamento de sua preocupação com o desenvolvimento e legitimação dessa
religião ao criar a Federação Espírita de Umbanda em 1954.
25
CAPÍTULO 1
CONVIVÊNCIA NOS TERREIROS
26
1.1 O ato de pesquisar
A pesquisa que deu base a este trabalho teve como propósito interpretar a Umbanda
como religião de possessão afro-brasileira, caracterizada por ser iniciática e requeredora de
um período de desenvolvimento mediúnico dos participantes. Busca-se compreender o sentido
das representações de maternidade espiritual desempenhada pelas mães-de-santo em Fortaleza
e Região Metropolitana.
Para apreender esse objeto de pesquisa, tornou-se oportuno trabalhar com a História
Oral, apoiada na memória dos informantes adeptos dessa religião. Este capítulo versa sobre o
método utilizado, a delimitação de campo os terreiros de Umbanda e Candomblé –, os
caminhos percorridos na consolidação da metodologia da pesquisa, além da apresentação do
perfil dos interlocutores da investigação.
Para conseguir meu propósito, fiz uso da pesquisa de cunho qualitativo que buscou
estudar a cidade de Fortaleza e região metropolitana
, seus grupos, seus bairros, seus habitantes e
seus estilos de vida, relacionados a vivência na religião Umbanda.
A pesquisa teve como objetivo encontrar o significado da ação dos sujeitos
pesquisados. Compreende a observação direta e por um período de tempo considerável,
interpretando as formas costumeiras de viver de um grupo determinado de pessoas. Em
particular, o grupo estudado foi de praticantes de dois modelos mais conhecidos da religião
afro-brasileira em Fortaleza e Área Metropolitana a Umbanda e o Candomblé. Contudo,
pesquisei os terreiros de Candomblé apenas para efeitos comparativos. Dei ênfase aos
terreiros cuja liderança fosse exercida por mulheres, as mães-de-santo ou ialorixás, posto que
meu interesse foi saber como as mães-de-santo têm exercido seu sacerdócio e explicitar a
dimensão simbólica dessa maternidade, os códigos comuns que partilham no âmbito religioso
e os sistemas simbólicos construídos através de práticas carregadas de teias de significações.
A compreensão de uma religião exige pensar a complexidade que circunda tal
conceito, pois as religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilidades próprias. Do
ponto de vista de um indivíduo religioso, a religião caracteriza-se como a afirmação subjetiva
de que existe algo transcendental, algo maior, mais fundamental do que a esfera
imediatamente acessível. As religiões se compõem de várias dimensões; particularmente,
temos de pensar nas seguintes: a da fé, a institucional, a ritualista, a da experiência religiosa e
da ética.
27
As religiões cumprem funções individuais e sociais. Elas integram socialmente, uma
vez que membros de uma comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, seguindo
valores comuns e praticando sua em grupos, em congregação, desenvolvendo uma rede de
sociabilidades, analisando aqui em particular nas religiões afro-brasileiras Umbanda e
Candomblé.
A religião como sistema cultural encontra eco na teoria geral da Cultura. Esses
sistemas de símbolos articulam e veiculam uma rede de significados: por meio deles,
podemos interpretar a realidade. A Cultura é entendida como algo que:
(...) denota um padrão de significados transmitidos historicamente,
incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas
em formas simbólicas por meio dos quais os homens comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação
à vida (GEERTZ, 1989, p.66).
Para Geertz, a religião articula, opera a fusão de duas dimensões presentes nos grupos
humanos e de acordo com as particularidades de sua cultura. De um lado, está a visão de
mundo, que remete à metafísica, à cosmologia e à ontologia, ou seja, envolve as idéias de
ordem. De outro, está o ethos, que evoca valores, estilo de vida e disposições morais e
estéticas. Assim, religião pode ser entendida como:
Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e
duradouras disposições nos homens através da formulação de conceitos de
uma ordem de existência geral e vestindo essa concepção com tal aura de
factualidade que as disposições e motivações parecem singularmente
realistas (GEERTZ, 1989, p.67).
Tratar do significado da maternidade para as mães-de-santo me fez trilhar o mundo
do simbolismo, que essas mulheres estão amarradas às teias de significados da cultura. A
compreensão da antropologia interpretativa para Geertz (1989) ajuda no meu propósito de
explicar os modelos de representações culturais, em particular as funções exercidas pela mãe-
de-santo na Umbanda em Fortaleza e Região Metropolitana. Assim, a cultura designa formas
apreendidas e padronizadas de comportamento, universalmente reconhecidas como humanas.
É como um texto, uma tessitura de significados elaborados socialmente pelos sujeitos sociais.
Esses sujeitos expressam várias vozes que modelam o texto etnográfico, denunciando as
condições sociais, políticas e de dominação a marcar visões de mundo.
28
Os interlocutores da pesquisa são sujeitos com capacidade de simbolizar, seres de
linguagem, signos, símbolos e de relações culturais. Por isso, desenvolvem e aperfeiçoam
continuamente suas potencialidades de raciocínio, pensamento, argumentação, abstração e
representação do mundo e das coisas postas nele.
A mãe-de-santo na Umbanda tem uma expressiva significação no que concerne à
herança de ordem religiosa, realizada através da transmissão oral. No imaginário religioso, a
mãe-de-santo realiza essa maternidade simbólica, estruturada e estruturadora de uma cultura,
dando condições de rearticular os papéis sociais dos praticantes dessas religiões por receber e
transmitir o simbólico e o imaginário, recompondo um sistema pela oralidade. Nesse sentido,
os processos educacionais e socioculturais da Umbanda reforçam que “os ensinamentos do
culto não são apreendidos nos livros e sim de pé-de-ouvido, de olhar, observar e ter intuição
(...)” (SANTOS, 2005, p.96).
Essas religiões são da oralidade: vale a aprendizagem pela observação, nas conversas,
vendo como fazer. Isso também lugar às diferenciações de certas práticas, a depender da
pessoa que acumulou mais saberes e reconhecimento e da forma particular de socializar tais
conhecimentos para os praticantes de religião. Bom enfatizar que a transmissão tem se dado
também através da publicação de livros.
Assim, tentei, a partir dos diversos discursos que pontuam as narrativas das mães-de-
santo, relacionar a maternidade espiritual com a maternidade biológica, apontando a dimensão
simbólica presente nelas. Cabe salientar que, na sociedade abrangente, proliferam discursos
legitimadores do ser mãe no Brasil, desde os tempos coloniais, função parental e/ou religiosa
perpassada de simbolismos.
A história oral reaparece entre as técnicas de coleta de material nas pesquisas
qualitativas de valorização das subjetividades, crenças, valores, emoções a possibilitar a
vivacidade dos detalhes, ampliação da realidade social.
Para Isaura Queiroz, História Oral é:
(...) termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos
não registrados por outro tipo de documentação se quer complementar,
colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a experiência
de um indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade.
(...) pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas também recolhe
destas tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças existentes no grupo
(...). Na verdade tudo quanto se narra oralmente é história, seja a história de
alguém, seja a história de um grupo, seja a história real, seja ela mítica
(1988, p.19).
29
O papel do cientista social é compreender a história como invenção, tratar dos
conteúdos subjetivos, das ideologias próprias, dos pontos de vista, dos sentidos atribuídos
pelos sujeitos, abrindo espaço para a reconstrução do passado a partir dos rastros deixados por
ele. A memória vive a tensão entre presença e ausência, e nisto reside sua riqueza. A partir
dessa compreensão, tento demonstrar as rotas específicas que trilhou a Umbanda em Fortaleza
e nas regiões próximas à Capital. Considerei cabível utilizar as lentes da história oral por ser
essa perspectiva adequada quando se intenciona interpretar a perspectiva dos adeptos da
Umbanda. Desse modo, procederam-se idéias próprias a partir de sobrevivências e mutações
das práticas culturais presentes e passadas da vida cotidiana dos adeptos, que podem ser
apreensíveis no campo religioso e que devem ser interpretadas.
Essa forma de fazer história foi tratada por Richard M. Morse como aquela que tem
maiores possibilidades de integrar consciência, saber e tradição num discurso “fixo” e
universal. O autor esclarece que, desse modo, a religião, a literatura e a arte adquirem novo
valor epistemológico. Não se trata de eliminar os conceitos clássicos das ciências sociais e
substituí-los por rudimentos religiosos, literários ou artísticos, mas ao contrário, de “banhar”
os primeiros com as águas dos segundos (TENÓRIO, 1989, p.8-9).
Não cabe ao historiador alcançar a verdade indiscutível e exaustiva por
procedimentos científicos, de uma descrição positiva. A história é ao mesmo tempo narrativa
e processo real. Devemos considerar o agir e o falar humano, em particular a criatividade
narrativa e a inventividade prática (GAGNEBIN, 1998).
Trabalhei com a memória coletiva, a memória social. Para tanto, ancorei-me na obra
de Halbwachs, que enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que estruturam nossa
memória e que a inserem na memória da coletividade a que pertencemos, como monumentos,
lugares, patrimônio arquitetônico, paisagens, datas, personagens históricas, tradição,
costumes, folclore, musicas, dentre outros.
Maurice Halbwachs (1990) trabalha a memória de forma sociológica, estruturada pela
linguagem. Demonstra a importância de alguns fatores para a conservação da memória, como
o espaço. A memória é muito fluida: modifica-se e desfaz-se no tempo. Dentro do espectro da
memória, incluem-se as tradições e os costumes. Parte-se de uma perspectiva da
fenomenologia ao considerar o ser humano caracterizado essencialmente por seu grau de
interação no tecido das relações sociais. O centro do seu pensamento são as relações da
memória e da sociedade.
30
(...) é impossível conceber o problema da evocação e da localização das
lembranças se não tomarmos para ponto de aplicação os quadros sociais
reais que servem de pontos de referências nesta reconstrução que chamamos
memória (HALBWACHS, 1990, p.10).
Halbwachs segue a tradição metodológica durkheimiana de tratar os fatos como
coisas. Toma uma memória estruturada com suas hierarquias e classificações, uma memória
também que, ao definir o que é comum a um grupo e o que é diferente dos outros, fundamenta
e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais. A ênfase recai na
força quase institucional dessa memória coletiva, destacando a duração, a continuidade, a
estabilidade, isso é, o que é mesmo comum. Acentua o caráter destruidor, uniformizador e
opressor da memória coletiva.
A memória é seletiva: não se arquiva tudo, somente aquilo que interessa. E essa
recordação não está separada da convivência em um contexto sociocultural, tendo muito a ver
com as experiências coletivas históricas.
Comumente a palavra memória nos remete à idéia de lembrança. Esse ato de lembrar,
de memorar, é uma atividade puramente individual. Entretanto, nossa memória é construída a
partir de nossas experiências pessoais, subsidiadas pela memória social. O sujeito inserido na
sociedade faz parte de diferentes grupos sociais e constrói a partir deles e das experiências
vivenciadas neles uma existência social. Quando evocamos essas experiências, vividas em
espaço e tempo únicos, elas surgem em forma de lembranças ou memórias e poderão ser
compreendidas se pensadas e analisadas em relação ao contexto do cotidiano (VAINI, 2006,
p.18).
Para a transmissão da memória, é necessária a concordância entre o “eu” e o “nós”,
possibilitando assim uma lembrança calcada sobre fundamentos comuns. A memória social
carece ser retroalimentada pelo grupo, contribuindo para a constituição de uma identidade
específica no seio da sociedade (TEIXEIRA, 1994).
Quanto à memória coletiva, a referência ao passado serve para manter a coesão dos
grupos presentes na sociedade, para definir seu lugar respectivo. Trata-se de manter a coesão
interna e defender o que é comum no grupo. O que está em jogo na memória é o sentido da
identidade individual e do grupo (POLLAK, 1989).
Outra perspectiva que contribui ao tratar da história oral contida nas narrativas dos
interlocutores da pesquisa foi a de Pollak, que visualiza nessa memória coletiva uma
imposição, uma forma específica de dominação ou uma violência simbólica; os conflitos, a
competição e as disputas também estariam presentes.
31
Enquanto Halbwachs acentua as funções positivas desempenhadas pela memória
comum, como reforçar a coesão social não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo.
Insinuam a existência de processo de “negociação” para conciliar memória coletiva e
memórias individuais, validando as lembranças com base comum, os pontos de contato, de
consenso, de concordância.
A perspectiva de Pollak é construtivista, pois afirma o viés de analise de como os fatos
sociais se tornam coisas, como e por que eles são solidificados e dotados de duração e
estabilidade. Interessa-se por processos e atores que intervêm no trabalho de construção e
formalização de memórias, ressaltando a importância da memória subterrânea, como parte
integrante das culturas minoritárias e dominadas, opondo-se à “memória oficial”.
Ao tratar da memória das mulheres mães dentro universo religioso, é visível a
maternidade típica da sociedade abrangente ocidental cristã da busca pelo perfil identitário da
mãe boa, que acolhe e protege – mas neste mesmo lugar encontramos outras memórias
subterrâneas da mãe feiticeira, da mulher macumbeira, por isso dotada de poderes a partir da
maternidade. Essa compreensão ajuda na interpretação dos discursos oficiais preponderantes
na sociedade abrangente, que são apropriados pelas mulheres mães-de-santo a partir de suas
memórias, de suas lembranças, que certamente denunciaram os contextos sociais dos quais
fazem parte e o perfil identitário naquele espaço religioso. Neste aspecto, optei por dar voz a
essas mulheres.
As memórias subterrâneas realizam um trabalho de subversão no silêncio e de maneira
quase imperceptível afloram em momento de crise, em sobressaltos bruscos e exacerbados.
Assim, temos a base comum das memórias endereçadas sempre à figura da boa mãe, das
mães-de-santo que exercem poder, ao proteger e cuidar.
Verifiquei que algumas mães-de-santo da Umbanda silenciaram quanto a sua pertença
simultânea ao Candomblé. Acredito que o silencio de Mãe Stela sobre ser também do
Candomblé pode estar relacionado ao fato de que, no primeiro momento em que a procurei,
fui motivada a construir, através das lembranças dela, a biografia de sua mãe-de-santo, a Mãe
Júlia Condante, da Umbanda. Ela me percebeu como pesquisadora dessa religião. Hoje é
sabido que a memória majoritária, quando se trata de religiões de matriz africana, é mesmo o
Candomblé, por apresentar entre os adeptos maior fundamento religioso e seguir outra estética
enquanto vão se posicionar como memória subterrânea porque irão aparecer pelo não dito,
pelo indizível, a Umbanda, que, segundo alguns, não dispõem da pureza presente nas religiões
nagôs.
32
Existem nas lembranças zonas de sombras, de silêncios, de não-ditos. A ancoragem de
Mãe Stela, quando eu já sabia de sua inserção no Candomblé, era recorrer à ajuda de uma neta
dela, pois não se lembrava dos eventos relacionados ao Candomblé, fazendo supor o seu
medo de ser punida por aquilo que diz, ou se expor a mal entendidos.
A fronteira entre o dizível e o indizível separa, em nossos exemplos, uma
memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos
específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que
uma sociedade majoritária ou Estado desejam passar e impor (POLLAK,
1989, p.8
)
Para Pollak, a memória oficial, para ter credibilidade e aceitação, depende de sua
organização, é montada de acordo com o que ele denomina enquadramento de memória, por
querer reforçar os sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais. Para manter tais
fronteiras e manter a coesão interna daquilo que o grupo tem em comum, fornece então um
quadro referencial e pontos de referências, como “o Candomblé tem mais fundamento”, ou
“ser mãe-de-santo é ter força, cuidar e proteger”. O que está em jogo na memória é o sentido
de configuração identitária dos sujeitos e do grupo.
Utilizei a memória como fonte de informação. Foi relevante o ato de lembrar dos
informantes, como chama atenção Pordeus Júnior:
Para que as lembranças permaneçam, é necessário que façam parte do
pensamento de um grupo. No entanto, é necessário que essa memória seja
articulada entre os membros desse grupo. Isso vale para a sociedade mais
ampla. A memória possui características que se manifestam em seus
aspectos afetivos e sociais (PORDEUS JÚNIOR, 2002, p.7).
Foi importante para este trabalho fazer as fontes lembrarem o passado referente à
Umbanda, comparando-o com o presente. O fio condutor da rememoração se deu em torno de
uma das mais antigas es-de-santo do Ceará Júlia Condante e sobre sua relevância para
a legitimação, ou, de acordo com alguns depoimentos, a “libertação” da Umbanda no Ceará.
Esse é um conhecimento elaborado socialmente e partilhado no grupo, definindo as
permanências nos locais e nas coisas.
A história oral como método apóia-se na memória, que é capaz de produzir
representações. Trabalhei com a memória, tendo como marco a atuação de Júlia Condante,
mãe-de-santo que fundou a Federação Espírita de Umbanda, em 1953, na busca de garantir a
33
sistematização do Espiritismo de Umbanda, representando um aspecto salutar na liberdade
dessa religião no Ceará. Esse marco é relativamente invariável: encontrei alto grau de
identificação entre os discursos das fontes. Eles guardavam em comum a relação direta ou
indireta com Mãe Júlia Condante, pois todas as informantes foram suas filhas ou netas-de-
santo.
As análises e os trabalhos de Pordeus Júnior (2000a; 2002) foram salutares neste
estudo por terem sido realizadas trinta anos junto às mães-de-santo. Ele entrevistou Júlia
Condante em 1978 e 1979, tratando da memória histórica da Umbanda. Hoje, meu intuito foi
analisar o que mudou e o que permanece na Umbanda, com foco na forma com que as mães-
de-santo têm exercido a maternidade espiritual, expressa em suas narrativas.
Os depoimentos recolhidos das fontes da pesquisa podem ser considerados
instrumentos de reconstrução da identidade, não apenas relatos factuais. Na ocasião, as
entrevistadas ordenaram os acontecimentos que balizam toda uma existência e narraram sobre
sua inserção na religião, o processo do desenvolvimento mediúnico e o exercício do seu
sacerdócio como mãe-de-santo. Tudo isso entrelaçado com episódios como casamento,
trabalho, família, maternidade biológica, cuidado com os filhos, relações e conflitos
familiares. A memória individual está enraizada nos quadros sociais diversos da sociedade
abrangente.
Os elementos constitutivos da memória individual ou coletiva são: os acontecimentos
vividos pessoalmente; os acontecimentos “vividos por tabela” aqueles dos quais a pessoa
nem sempre participou, mas que, no imaginário, é quase impossível saber se participou ou
não; as pessoas, personagens, e finalmente os lugares, estes particularmente ligados a uma
lembrança. Esses três critérios, conhecidos direta ou indiretamente, podem dizer respeito a
acontecimentos, personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos,
mas podem também se tratar de projeções e transferências de outros eventos. A memória é
seletiva, nem tudo fica gravado e registrado.(POLLAK;1989)
Ao contar aspectos de suas vidas, as interlocutoras da pesquisa estabeleceram certa
coerência por meio de laços lógicos entre os acontecimentos-chave e por meio de uma
continuidade resultante da ordenação cronológica. O caminho de rememoração percorrido
pelas informantes define seus lugares sociais e suas relações com os adeptos dentro do
universo religioso e também na sociedade mais ampla, pois o trabalho da memória é
indissociável da organização social da vida em que elas estão inseridas.
34
As memórias individuais das mães-de-santo se entrecruzam com a memória histórica
da Umbanda no Ceará.
A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente
íntimo, próprio da pessoa. Mas, Maurice Halbwachs, nos anos 20-30,
havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo,
com um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído
coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças
constantes (POLLAK, 1992, p.2).
Durante as entrevistas, solicitei que as informantes falassem de suas histórias de vida
e de alguns pontos para mim relevantes, como a situação atual da Umbanda no Ceará, o
significado da maternidade espiritual como sacerdócio e a representação das entidades e
orixás ligados ao feminino e à maternidade.
As entrevistas foram previamente marcadas, todas realizadas na residência dos
informantes, local em que majoritariamente estava instalado o terreiro. Notei que, para
algumas informantes, foi salutar o trabalho de recordar, embora em alguns momentos
contassem com a ajuda de um familiar ou filho-de-santo para auxiliar na rememoração de
datas, fatos, nomes, entre outros.
Três questionamentos formaram a trama deste trabalho: como os adeptos percebem a
Umbanda hoje no Ceará? Qual o significado atribuído à maternidade espiritual pelas mães-de-
santo? Qual o simbolismo presente nas entidades espirituais e orixás que representam o
feminino e a maternidade na Umbanda?
Tentei compreender a memória histórica da Umbanda no Ceará a partir do jeito
singular das mães-de-santo de desempenhar a maternidade simbólica, numa relação entre
elementos da maternidade biológica e da espiritual. O propósito foi interpretar através da
memória viva e lacunar a força operatória dos símbolos ligados à maternidade, partindo da
escuta e da observação dos interlocutores nos terreiros de Umbanda e de Candomblé.
35
1.2 Espaço da Umbanda e do Candomblé em Fortaleza
Os terreiros das religiões afro-brasileiras Umbanda e Candomblé na cidade de
Fortaleza e municípios da Região Metropolitana cujas dirigentes são mulheres as mães-de-
santo – configuram-se como campo estratégico desta pesquisa.
Terreiro é o lugar onde se cultuam os orixás
5
, as entidades espirituais
6
e os
encantados
7
. Nesses espaços os adeptos se reúnem para dançar, realizar os rituais, as
consultas, as “giras”.
O terreiro pode ser entendido como campus de fortalecimento da identidade cultural,
lugar de prática de saúde, de sociabilidade, de solidariedade e de constituição da identidade
dos participantes. A busca por bem-estar espiritual, felicidade e acolhimento se nos
espaços do terreiro. Ali o espírito religioso se revela como sentimento de conexão ordenada
com as coisas que o cercam: os seres, a vida e o cosmo.
Os terreiros são autônomos: cada pai ou mãe-de-santo é a autoridade máxima e define
as orientações que nortearão seu grupo embora guardem afirmativas, noções e perspectivas
religiosas comuns. Essa autonomia não é total, mas relativa, pois sacerdotes e sacerdotisas
não podem se afastar muito das regras precisas da legitimação do grupo.
A Umbanda, como religião tradicional, depara-se com a Modernidade, na qual são
valorizadas a ordem, a calculabilidade, a celebração do novo, a fé no progresso. Nesse
contexto, cabe refletir o papel dessas sacerdotisas guardiãs da memória. O sacerdócio delas
volta-se para a manutenção da tradição, muito embora criem, reinventem a religião. A
Umbanda em Fortaleza e na Região Metropolitana não tem unidade, não conta com uma
uniformização, cada terreiro assume uma perspectiva. Porém, é evidente que existem
orientações no que tange aos rituais, às normas, aos fundamentos necessários para que
obtenham reconhecimento e legitimação do grupo dos adeptos. Essas orientações emanam das
5
Orixá é o nome genérico das divindades, que são intermediárias entre os mortais e Olorum, o deus supremo
(BASTIDE, 2001).
6
Entidades espirituais ou entidades sobrenaturais, na Umbanda, não são deuses distantes e inacessíveis, mas sim
tipos populares, espíritos do homem comum, numa variedade que expressa a própria diversidade cultural do
País. Eles representam alguns tipos sociais regionais importantes, como índios destemidos, sábios e pacientes,
escravizados, caboclos, sertanejos, mestiços valentes, marinheiros, dentre outros (PRANDI, 1991).
7
Encantados são espíritos cultuados, personagens lendários que um dia teriam vivido na Terra, mas que, por
alguma razão, não conheceram a morte, tendo passado da vida terrena ao plano espiritual por meio de algum
encantamento. Os encantados podem ter várias origens: índios, africanos, mestiços, portugueses, turcos, ciganos
etc. (FERRETTI, 2001).
36
mães e dos pais-de-santo. Assim, muitas das orientações existentes em um determinado
terreiro têm a ver com a história de vida do seu líder.
As mães-de-santo assumem uma liderança carismática. Como líderes, elas exercem a
dominação carismática, uma espécie de dominação que se legitima a partir de uma devoção
afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente, a
faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória (WEBER, 1999,
p.134-135).
Nesse tipo de dominação, o dominado é incapaz de fazer a distinção entre seus
interesses e os interesses de seu líder ou representante. Weber compreende dominação como a
probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo. O dominador é
aquele que possui legitimidade de comando, que é, evidentemente, aceito pelo dominado.
A dominação carismática tem fundamento ou legitimidade nos poderes sobrenaturais
ou extracotidiano do líder. A mãe-de-santo adquire carisma quando é capaz de demonstrar
dons racionalmente inexplicáveis daí a importância da cura, dos trabalhos de magia, e a
força da mãe-de-santo no exercício da liderança no terreiro.
Verifiquei que em Fortaleza e na Área Metropolitana, em municípios como Caucaia,
Maracanaú, Maranguape, uma diversidade na tipificação dos terreiros, desde os que são
apenas a residência do pai ou da mãe-de-santo até outros com instalações maiores,
congregando vários devotos. Essa diversificação depende das condições financeiras de quem
os integra.
Nos terreiros se organiza um mundo sagrado, e é lá onde se realizam os rituais.
Deveria mesmo ser lugar da solidariedade entre seus membros, mas verificamos que a religião
como instituição social também sofre impactos das transformações e alterações sociais,
econômicas, políticas e culturais de uma sociedade capitalista marcada pela lógica
mercadológica, de consumo. As intrigas e a comercialização do sagrado são fatos presentes
nos terreiros. O sagrado continua se apresentando como elemento estruturante e estruturador
da sociedade. Assim, esse território aparece como um espaço de representação e apropriação
simbólica, sendo sua materialidade o próprio território institucionalizado com os elementos
nele construídos.
A convivência nos terreiros em Fortaleza permitiu compreender uma particularidade
dessas religiões na Capital. Uma parte considerável dos seguidores das religiões afro-
brasileiras nasceu católica e adotou em idade adulta a religião que hoje professa. Muitos dos
adeptos do Candomblé pertenceram antes a grupos de Umbanda, tendo sido iniciados no
37
Candomblé posteriormente daí o porquê de eu ter encontrado em praticamente todos os
terreiros um espaço reservado para o culto das entidades da Umbanda. Pais e mães-de-santo
justificam dizendo que seus filhos-de-santo pertenciam à Umbanda antes da iniciação no
Candomblé, e por isso suas entidades espirituais precisariam ser zeladas e cuidadas. Percebi
que o Candomblé é visto dentro do próprio segmento de fiéis como fonte de maior poder
mágico que a Umbanda, o que atrai para o seio do Candomblé muitos umbandistas.
A Umbanda e o Candomblé em Fortaleza caracterizam-se por ser religiões de família.
É freqüente encontrar terreiros em que a família biológica passa a ser também a família-de-
santo, convivendo no mesmo espaço: o terreiro é a residência. aquelas famílias nas quais
os membros não são todos adeptos e têm uma participação indireta ao freqüentar as
cerimônias públicas, ao solicitar trabalhos etc.
Como cidade nordestina, Fortaleza é marcada por relações sociais muito díspares,
configurando-se como cidade de migrantes, com muitas famílias vindas do meio rural em
busca de melhores condições de vida e que terminaram por construir muitos bairros de
periferia de Fortaleza. A comunidade de terreiro reflete essa realidade (ARAÚJO;
CARLEAL, 2003).
O espaço urbano ocupado pela Umbanda e pelo Candomblé , na maioria, são os
bairros mais afastados e pobres, na periferia da cidade. As razões podem estar ligadas à
natureza e à essência do culto, mas também têm uma força considerável a idéia de não
atrapalhar o “acontecer” da metrópole, de não incomodar com o som dos seus atabaques,
cantos e rituais. Religiões como essas foram por muito tempo perseguidas, consideradas
heresia e charlatanismo, sofreram intolerância expressa da elite, do Estado, em especial da
Polícia, de autoridades que sempre se colocaram contra crenças e rituais presentes nas
religiões constituídas de elementos indígenas e negros. A saída foi afastá-los de modo a não
perturbar a “ordem”. Os adeptos careciam encontrar condições propícias à realização do culto,
que foi levado a lugares distantes do Centro de Fortaleza. ainda o fato de essas religiões
precisarem de um contato maior com a natureza, tornando-se relevante que o local de prática
se situasse próximo a matas, cachoeiras, pedreiras, rios, com espaço livre para a realização
das oferendas, dos rituais e das festas.
Vale verificar a presença das religiões afro-brasileiras em Fortaleza. Segundo dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), a população residente em
Fortaleza é de 2.141.402. No que concerne à religião, encontra-se assim distribuída:
1.682.225 são católicos, 269.469 são evangélicos, 17.780 espíritas e 4.236 se declaram
38
praticantes da Umbanda ou do Candomblé. A religião judaica soma 193 praticantes; outras
religiões orientais totalizam 2.349; ainda outras religiosidades, 31.507; os que declaram não
ter religião formam um grupo de 128.190, e, por fim, 2.196 não determinam o tipo de religião
que seguem.
Os dados do IBGE (2000) indicam que a população praticante do Candomblé e da
Umbanda em Fortaleza é diminuta: apenas 4.236 declaram praticar essas religiões. Esse dado,
porém, torna-se questionável quando comparamos a quantidade de terreiros existentes na
Capital e o número de entidades registradas nas federações específicas. Podemos verificar que
aspectos com necessidade de uma análise mais detida quanto à afirmação da população
fortalezense em pertencer ou não às religiões afro-brasileiras.
Em Fortaleza, segundo a presidenta da União Espírita de Umbanda, Suzana de
Oliveira, conhecida como Mãe Suzana, torna-se difícil dizer esse número exato. Ela se queixa
de que esses dados estão contidos no computador da União, que estaria com problemas no
conserto.
Minha filha, pra mim te dizer assim é difícil, porque o nosso computador
teve um defeito e foi para o conserto. Se ele tivesse aqui, seria mais fácil.
Mas aqui dentro de Fortaleza nós temos uma média de cinco mil associados,
aqui dentro, umbandista. Você sabe que cada terreiro tem vinte, trinta,
quarenta (...) filhos-de-santo do terreiro, quer dizer que nós não podemos
contar um (...). Então, nós temos o interior todo, todo o interior, cada
cidadezinha a gente tem três, quatro, cinco, seis. Cada interior tem tudo, todo
o interior em peso tem. O que tem mais terreiro assim, que eu demoro mais,
passo de semana é Sobral. Sobral, nós temos uns 600 terreiros em Sobral,
(...) e também Crateús, Ipu, tem muitos terreiros em cima daquelas serras. Eu
ando aquilo tudo. (MÃE SUZANA, agosto de 2008)
Diante da proliferação dos terreiros das religiões afro-brasileiras, em específico os de
Umbanda, podemos assinalar que esses números estão subestimados. Quanto à quantidade de
terreiros de Umbanda, a presidenta da União faz uma projeção de haver cerca de cinco mil
terreiros em Fortaleza e Área Metropolitana.
Alguns praticantes ocultam a pertença às religiões afro-brasileiras, o que encontra eco
no temor de parte considerável dos seguidores em se declarar pertencente a uma religião que
por muito tempo foi considerada atrasada, herege, charlatã. Não valendo a pena sofrer o peso
da marginalização, preferem, portanto, fazê-la na informalidade ou praticá-la numa
justaposição a outras religiões mais aceitáveis por uma sociedade intolerante com as religiões
afro-brasileiras.
39
O fato de a União não ter o número exato de terreiros a ela ligados pode encontrar
razão no baixo índice de filiação entre os terreiros. Essa inscrição nas instituições
representativas dos umbandistas foi necessária e de muita valia na década de 1940 até a de
1970 por causa do controle policial. Os praticantes também buscavam uma codificação da
religião que garantisse unidade nos aspectos rituais e legitimidade numa sociedade marcada
pela racionalidade moderna. Atualmente não maistantas exigências, e a União não se faria
mais tão necessária.
Em entrevista com a representante da União, ela relatou a natureza do trabalho hoje
desenvolvido pela instituição:
E todo o ano em janeiro tem que ter os carimbos de 2009, que a Polícia
persegue muito isso. Quer saber. E diz: “Seu carimbo aqui atrasado, você
num foi à Federação”. Entendeu? Aí eles não vão, coitados, se deslocar de lá
pra cá, e eu vou ter que ir. (...). É, eles pagam sempre por ano, ou meio ano,
é dez reais. Aqui e também no interior é dez. Eu num cobro despesas de
passagens nem nada, é dez reais que eu cobro. É pouco, pouquíssimo.
(MÃE SUZANA, agosto de 2008)
Mãe Suzana afirma que a União enfrenta muitas dificuldades para funcionar,
enumerando problemas como os poucos recursos financeiros para realização das grandes
festas da Umbanda e a dificuldade em custear a manutenção da sede (aluguel, água, energia e
telefone), o atraso por parte dos associados no pagamento das anuidades, o diminuto apoio
institucional por parte dos órgãos governamentais da área cultural, da promoção da igualdade
racial, do desenvolvimento social, dentre outros.
Uma razão apontada por Mãe Suzana que motivaria a baixa procura pela entidade por
parte dos umbandistas é principalmente a diminuição da perseguição policial:
Porque quando era de primeiro, que a Polícia entrava a cavalo, entrava a
cavalo nos terreiros deles, Ave Maria, vinham ligeiro organizar suas coisas.
Precisava de advogado. Diziam: Mãe, quero um advogado pra ir ao
tribunal, que o terreiro ficou desmoralizado, que a Polícia entrou a cavalo e
tal, olha aí”. se ia com o advogado. Agora eles não vão mais, que têm
medo. Vai não (...). Diminuiu demais, minha filha, diminuiu sim. Você
que os próprios policiais estão protegendo os pais-de-santo. Ora, os que
botavam pra correr, num é isso? Pelo amor de Deus, agora nós temos a
maior cobertura dos bombeiros durante a festa de Iemanjá, vão salvar vidas,
temos aqueles banheiros químicos. (MÃE SUZANA, agosto de 2008)
Outra ordem de problemas enfrentada pela associação, na atualidade, diz respeito à
presença de outras instituições concorrentes, que tendem a questionar a idoneidade, a missão e
40
a legitimidade da União, prometendo uma entidade mais representativa dos direitos dos
umbandistas:
Tem outra perseguição também: são as pessoas que num entende nem da
religião, mas ambição, não sei se eles pensam que a gente ganha muito
dinheiro, colocam uma associação e fica perseguindo os terreiros, tirar daqui
para levar pra outro, diz: A minha é melhor, é Federal também”, fica
nesse negócio, nesse jogo de cintura, prejudica muito a União. Esse Chico
Monte que surgiu agora, novo, é um fotógrafo. Ele anda filmando os
terreiros. Ele é o pior, que fica andando de terreiro em terreiro, dizendo que
ele é melhor que a União, que a dele é Federal. E isso tá me prejudicando
muito, isso (...). Não tem muitas, essa surgiu agora, essa é nova, do Chico
Monte, é pra se afiliar a ele, agora num sei, num tem direito a nada. Você
sabe que agora qual é o Presidente que vai assinar Umbanda de utilidade
pública? Nenhum, só a União. (MÃE SUZANA, agosto de 2008).
Esses desentendimentos são algo constante entre as associações representativas dos
umbandistas, dificultando uma união nos propósitos e ensejando uma concorrência que mais
atrapalha do que contribui em momentos como a organização das festas religiosas, a busca de
parcerias institucionais governamentais e o reconhecimento da religião na realidade cearense.
É interessante tratar da territorialização dos templos do Candomblé e da Umbanda na
cidade, pois ela passa a ser construída a partir de diferenças, divergências, embates existentes
entre os grupos e também da heterogeneidade cultural e religiosa que compõe toda a
sociedade brasileira.
Essas religiões, por muitos anos, sofreram a discriminação social somada à violência
policial, tendo seus terreiros invadidos e seus membros presos. Diante da proibição e da
repressão, esses locais funcionavam na clandestinidade. Contudo, hoje conquistou mais
espaço na dia, perceptível, por exemplo, nos classificados de jornais de grande circulação,
que contêm anúncios de serviços religiosos.
A Festa de Iemanjá na Praia do Futuro representa a apropriação simbólica dos espaços
públicos urbanos de Fortaleza pela Umbanda e demais religiões afro-brasileiras. São espaços
como a praia, abertos a outras religiões, num contexto pouco propício ao desenvolvimento
de uma religião da possessão. O culto às divindades ancestrais e entidades espirituais é
discriminado na realidade cearense de maioria católica, que tem voltado sua atenção a dois
grandes pólos religiosos: Canindé (São Francisco) e Juazeiro (Padre Cícero Romão Batista).
Na cidade de Fortaleza e em sua Região Metropolitana, espalham-se muitos terreiros
de Umbanda e de Candomblé. O espaço físico e os objetos têm poder religioso para os
adeptos, são locus de axé, de força vital, que devem ser conservados e cuidados. Durante a
pesquisa, encontrei terreiros em diferentes habitações, desde aquelas em amplas e excelentes
41
instalações até aqueles funcionando em condições precárias ou em espaço físico diminuto, em
cujos poucos metros quadrados ocorrem os rituais e se alojam as representações materiais das
divindades no altar sagrado ou dispostos em toda extensão do terreiro.
As políticas públicas não suprem a imensa demanda por moradias. Na ausência de
alternativa habitacional regular, a população apela para seus próprios recursos e produz a
moradia como pode. Entrevi, durante as visitas, que alguns terreiros de Umbanda se instalam
nesses pequenos espaços urbanos em condições adversas, com pouco espaço, sem infra-
estrutura adequada. Assim, muitos, para ter o espaço sagrado garantido, sacrificam o espaço
residencial para realizar as giras, as festas, as cerimônias e os rituais da religião.
Esses terreiros, em sua maioria, funcionam na residência da mãe-de-santo, localizam-
se nos fundos da casa, em chão acimentado – local onde são realizadas as giras. Ao lado, a
camarinha (quarto iniciático) e a cozinha. Os membros estão diante da dinâmica do sistema
simbólico e de adaptabilidade ritual do terreiro às contingências espaciais da cidade. (SILVA,
1996).
Passei a freqüentar as roças de Candomblé e os terreiros de Umbanda em Fortaleza e
Região Metropolitana, o que me oportunizou uma melhor compreensão em torno da
diversidade desses templos, uns mais próximos ao Centro de Fortaleza, outros mais distantes.
Todos funcionam como sede da força sagrada onde foram plantados os fundamentos das
divindades e seus altares, cada um com sua história particular de edificação.
Nesse sentido, são salutares as palavras de Vagner Silva ao tratar do Candomblé e do
uso religioso da cidade:
Vê-se, assim, que os endereços e as instalações de um terreiro, mais do que
localizar e abrigar deuses e homens em suas atividades rituais, expressam a
maneira particularizada como eles vivem e interpretam valores e crenças
associadas à sua identidade religiosa e ao mundo exterior no qual ela se
insere e atua a sociedade urbana. (SILVA, 1996, p.102).
A roça de Candomblé Ile Axé Adjebowaba de Mãe Lúcia de Iansã está instalada em
amplas dependências no bairro São João, afastada do Centro da cidade e próxima a outras
roças de Candomblé, fazendo limite com os municípios de Maracanaú e Maranguape. Depois
de iniciada no Candomblé, resolveu mudar de residência, sair do bairro Serrinha e morar mais
próximo de sua mãe-de-santo, devotar-se mais à vida religiosa ao abrir sua casa. O imóvel foi
por ela comprado com o dinheiro de sua aposentadoria como enfermeira e com a finalidade de
satisfazer todas as necessidades do culto. Conta com os quartos-de-santo, nos quais ficam os
assentamentos dos orixás separados para cada deus, o roncó ou quarto de feitura, o poço, as
42
árvores sagradas, o barracão para as festas e toques públicos, que ocupa uma vasta área, os
assentamentos em recinto abertos ao ar livre, como o de Exu, no portão principal da casa. A
ialorixá tem a preocupação de homenagear cada divindade em seus domínios de energia.
O Terreiro de Umbanda Senhores Oguns, de Mãe Zimá, fica no bairro São Vicente,
próximo ao bairro São João. O terreno foi comprado treze anos graças à ajuda de uma
cliente que havia sido curada de um câncer pela mãe-de-santo. Na época, a localização do
imóvel naquela região não era valorizada, e assim ela conseguiu comprá-lo por baixo valor.
Trata-se de um lugar mais afastado, com acesso facilitado à paisagem natural, espaço para
realizações dos rituais, dos “trabalhos”, das giras, das festas. Nesse terreiro, conseguiu instalar
as dependências que sempre desejou e até então não pudera construir. Mãe Zimá possui outro
terreiro menor situado na avenida Domingos Olímpio, no Centro da cidade. Por ser mais
antigo, preserva-o para fazer os atendimentos religiosos durante a semana.
Em visita aos terreiros de Umbanda, os altares coletivos são algo que chama a atenção
pela pluralidade de representações religiosas neles contidas. Em geral, os altares são
compostos na parte central dele, encontram-se as imagens dos santos católicos, de entidades
como índios, pretos e pretas-velhas, objetos sagrados, velas de cores variadas, perfumes,
bebidas, flores de plástico, incensos, relógio de parede, fotografia de artistas, fotografias dos
adeptos em transe ou das conceituadas sacerdotisas que foram as primeiras donas do terreiro.
Tudo isso em um colorido estonteante fazendo o olhar se perder nos detalhes
como num altar barroco onde temas se enlaçam parecendo sobrepor-se, uns
aos outros, elementos estranhos entre si, mas que encontram unidade na
contradição (...) (PORDEUS JÚNIOR, 2000b, p. 92).
Os terreiros de Umbanda estão situados em bairros de Fortaleza como Bom Jardim,
Granja Portugal, Parque Santa Rosa, Bom Sucesso, Álvaro Weyne, Messejana, Pirambu,
Parangaba, entre outros. Encontrei terreiros de Umbanda em bairros mais centrais e de
população com poder aquisitivo médio, como o terreiro de Mãe Anita, localizado no Montese.
Ela esclarece que faz mais de 50 anos desde que conseguiu comprar o terreno; até hoje ela o
conserva como residência e terreiro.
Essa barraquinha que eu comprei pra viver e minha vizinha num pôde
comprar (...). que quando eu comprei essa casa era um chalezinho, sabe?
Depois eu ajeitei mais um pouquinho, Deus me deu essa oportunidade.
Era aqui, tá vendo esse supermercado nessa rua? Era tudo aqui perto. (...) Eu
tou aqui com cinqüenta e quatro anos que moro aqui (...). Nessa época, eu
tinha uns vinte e oito anos (...), era casada, tinha filhos (...), ia era fazer
43
trinta e nove, não, vinte e nove anos. Trinta anos eu fiz tava dentro da
Umbanda, né? (...) fiz santo. (MÃE ANITA, julho de 2008)
Na época em que fiz as primeiras entrevistas com a líder do terreiro Stela Pontes, em
2005, um dos terreiros era localizado no bairro Benfica. Situava-se na região central da
cidade, próximo à Reitoria da Universidade Federal do Ceará. Uma área com boa infra-
estrutura, contando com centros comerciais, como o Shopping Benfica, grandes
estabelecimentos bancários e educacionais. Esse terreiro pertenceu à sua mãe-de-santo, Júlia
Condante, que tinha outro espaço localizado no Centro da cidade, na travessa Leandro
Monteiro, próximo à rua Senador Pompeu. , ela atendia sua clientela, fazia seus trabalhos.
O do Benfica servia como sede da Federação Espírita de Umbanda. Em 1978, Mãe Júlia
cedeu um espaço no terreno para que Mãe Stela construísse uma casa para viver com seus
filhos. Na ocasião, ela passava por dificuldades financeiras por conta de separação conjugal, e
estava sem lugar para morar. Em 1984, Mãe Stela herdou o terreiro de Ogum, tornando-se
líder do local após a morte de Mãe Júlia.
Ela foi na minha casa, que eu morava no Damas, ela disse: “Você vai
morar na Federação, porque você vai tomar de conta”. Porque aqui era a
Federação Espírita de Umbanda, ela fundou isso aqui em 48, (...) foi um dia
de Ogum, mas não me lembro o dia (...). Ogum a gente sabe que é dia 23 de
abril (...). Ela disse: “E você é quem vai tomar de conta, a casa de Ogum é
tua casa”. Era mato e um caminhozinho ali, aqui era um quartinho que
tinha, aí ela morava lá. Eu vim. (MÃE STELA, maio de 2005)
Contudo, diante de alguns conflitos familiares, Mãe Stela decidiu, no ano de 2008,
vender o terreno com a casa e o terreiro e comprar outro em um bairro distante do Centro, no
limite com o município de Maracanaú, bairro Presidente Vargas.
Porque eu vendi lá e é uma história tão comprida que depois eu te conto. Foi
assim, uns atritos com minha nora. Chegava uma pessoa, me procurava, ela
dizia que não me conhecia. E ela morava comigo, eu dei uma casa pra ela
dentro. Chegava uma pessoa eles diziam: “Eu não conheço”. E isso me
chateava tanto, chateava. (...) Olhe eu fiquei com tanta raiva, Eu só num fiz
foi chorar, mas me doeu dentro. (...) Eu disse: “Eu ainda saio dessa vida,
eu ainda saio daqui”. vendi por pouca coisa. Pedi permissão a Ogum, ele
permitiu. Eu procurei sete cabeças para pedir para ver se um dava fora, mas
ninguém deu fora, pode fazer. Porque eu mudei o canto, mas eles são os
mesmos. Eu não desprezei nenhum, trouxe todos, ele permitiu, eu me
sinto bem aqui, eu gosto muito. (MÃE STELA, 2008)
Quanto aos terreiros de Candomblé em Fortaleza e Região Metropolitana, podemos
mapear conforme o Quadro 01, verificando que estão espalhados por toda a rede urbana. É
44
possível observar que, nas regiões de concentração populacional das camadas populares, eles
são mais freqüentes.
Quadro 01 – Terreiros de Candomblé de Fortaleza e Área Metropolitana
No. Ialorixá ou babalorixá responsável pela Casa Bairro
1 Pai Agedeí de Oxalá Canindezinho
2 Pai Aluízio de Xangô Modubim
3 Pai Cacá do Oxossi Maracanaú
4 Pai Chéu de Obaluaê Itaperi
5 Pai Francisco de Iansã Bom Jardim
6 Pai Guaraci de Logun Edé Canindezinho
7 Mãe Ilza de Oxum Canindezinho
8 Mãe Leda de Iansã Álvaro Weyne
9 Mãe Leila de Iansã Maranguape
10 Pai Lindolfo do Oxossi Jardim Iracema
11 Mãe Lúcia de Iansã Jardim Jatobá
12 Pai Marcos de Xangô Bela Vista
13 Mãe Mayra de Ewá Maracanaú
14 Mãe Neguinha de Obaluaê Bom Jardim
15 Pai Roberto de Ossãn Euzébio
16 Pai Sílvio de Iemanjá Maranguape
17 Mãe Valéria de Logun Edé Messejana
18 Pai Valdo de Iansã Bom Jardim
19 Pai Zezim do Oxossi Jardim Iracema
Fonte: Pesquisa direta com informação de adeptos/ 2005
O Candomblé começou a se difundir em Fortaleza a partir dos anos 1970, com o
aumento de interação com sacerdotes e sacerdotisas de outros locais, principalmente de
Salvador e do Rio de Janeiro. A partir dos anos 1980, percebe-se uma migração de alguns
adeptos da Umbanda para o Candomblé, motivados por vários fatores, dentre os quais a
compreensão deste último como mais organizado e garantidor de status.
Embora eu tenha priorizado como objeto de estudo a Umbanda em Fortaleza e Área
Metropolitana em particular a análise das relações entre as práticas sociais e o exercício de
maternidade espiritual –, isso não impediu o diálogo com alguns informantes do Candomblé,
que essas duas religiões em muito se entrecruzam, a ponto de sobressair o que alguns
chamam de Umbandomblé (PRANDI, 1996). Nesse aspecto, é visível o quanto a Umbanda
sobrevive em justaposição ao que é denominado Candomblé. Isso é ratificado pelos
entrevistados desta pesquisa e por outras fontes, que confirmam o desencadeamento de um
45
Umbandomblé, ou seja, a mistura dessas religiões, uma bricolagem advinda das mudanças
nos contextos socioculturais no tempo presente.
Entrevi que, da mesma forma que em outras regiões do Brasil, em Fortaleza e Região
Metropolitana o entrelaçamento da Umbanda com o Candomblé. Isso foi demonstrado
também no caso de uma das entrevistadas, mãe-de-santo da Umbanda, que durante a
entrevista não teceu nenhum comentário sobre sua iniciação também no Candomblé. Fui
surpreendida ao participar de uma festa de obrigação de alguns filhos e filhas-de-santo num
terreiro de Candomblé, onde essa mãe estava dando sua obrigação de sete anos como filha do
orixá Iansã, enquanto na Umbanda falara ser filha de Ogum. Ela continua sendo a liderança
do terreiro de Umbanda, como santo Iansã com Ogum.
Vale a pena pensar o porquê do silêncio durante as primeiras entrevistas e a relação
que guarda com os contextos que se situam as memórias. Ao colher depoimentos orais das
mães-de-santo, compreendi essas mulheres como instrumentos de reconstrução da
configuração identitária de um grupo e não apenas como relatos factuais. Ali elas balizaram
sua existência, estabelecendo certas coerências por meio de laços lógicos entre
acontecimentos-chave e de uma continuidade resultante da ordenação cronológica. Através
deste trabalho de reconstrução de si mesma (recordando a infância, o despertar para a
religiosidade, eventos como o casamento, experiência da maternidade biológica, aceitação da
função sacerdotal, abertura do terreiro, relação com os filhos e filhas-de-santo etc), essas
mulheres tendem a definir seus lugares sociais e suas relações com os outros.
No caso do silêncio de Mãe Stela quanto a ser adepta também do Candomblé, é valido
pensar que:
Assim, as dificuldades e bloqueios que eventualmente surgiram ao longo de
uma entrevista raramente resultam de brancos da memória ou de
esquecimentos, mas de uma reflexão sobre a própria utilidade de falar e
transmitir seu passado. Na ausência de toda possibilidade de se fazer
compreender, o silêncio sobre si próprio diferente do esquecimento – pode
mesmo ser condição necessária (presumida ou real) para a manutenção da
comunicação com o meio ambiente (...) (POLLAK, 1998, p.13)
Para Pollak, a memória é seletiva, nem tudo fica gravado, sofre flutuação em função
do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do
momento constituem um elemento da estruturação da memória.
A organização da memória se dá em função das preocupações pessoais e/ ou políticas
do momento, pois a memória é um fenômeno construído, de modo consciente ou
46
inconsciente. O que a memória grava, recalca, exclui ou relembra é evidentemente o resultado
de um verdadeiro trabalho de organização (POLLAK, 1992)
Isso ficou visível no silêncio de Mãe Stela quanto à sua entrada na outra religião e à
permanência na Umbanda, e também na memória subterrânea de Mãe Zimá de contrariar o
discurso oficial de que uma mãe-de-santo só deve trabalhar para o bem ou em mesa branca.
Mãe Zimá, quando afirmou ser feiticeira, catimbozeira, macumbeira, disse não gostar
de trabalhar com mesa branca, porque gosta e sabe fazer magia, os trabalhos. Ela deixa
evidente sua insistência e convicção que não se deixará levar por memórias majoritárias de
condenar ou comparar o espaço umbanda/quimbanda por algo mais brando como o
Kardecismo ou o Espiritismo de Umbanda, que se recusa a trabalhar com a magia negra,
contraria o que os enquadradores da memória coletiva da Umbanda no Ceará em nível mais
geral se esforçam para minimizar ou até mesmo eliminar.
Pelos depoimentos das mães-de-santo em que elas organizam a memória, verifico que
temos um elemento constituinte do perfil identitário, que denunciam quem são elas, de
onde e de qual lugar estão falando, tanto individual como coletivamente, na medida em que
elas são também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de
coerência de uma pessoa ou de um grupo em reconstrução de si.
Essas particularidades exigiram de mim contatos prolongados e relacionamentos
dinâmicos com o grupo de adeptos freqüentadores dos terreiros pesquisados, na tentativa de
uma metodologia de entrada e permanência no campo, possibilitadora da coleta de dados.
1.3 Aspecto metodológico da pesquisa
A metodologia adotada levou em conta a fala dos interlocutores da pesquisa, através
das entrevistas com as mães, pais, filhas e filhos-de-santo, bem como as anotações dos ditos
cotidianos em diário de campo. Considerei que o agir referente aos atos das mães e de seus
filhos e filhas-de-santo em vivências rituais como festas públicas, giras, oferendas, cerimônias
de iniciação, de obrigação e reuniões deveria ser observado, pois expressam as formas e as
práticas das mães-de-santo em relação à proteção, ao cuidado junto aos filhos e filhas-de-
santo, aos orixás e entidades espirituais. Grande parte da memória religiosa é não verbal,
mas também gestual e corporal. A memória permanece pelos rituais, é o local de conservação
e reatualização da memória social. Daí reside a importância da observação dos gestos dos
47
informantes nos terreiros para ampliar a compreensão do que eles dizem, a fim de alcançar
outras dimensões não captadas nos discursos (CONNERTON, 1993).
Teixeira (1994), ao tentar compreender a (lou)cura e seu diagnóstico e práticas
terapêuticas no âmbito dos terreiros de Candomblé, fez uso de uma abordagem que deu voz
aos adeptos e de uma análise interpretativa de seus discursos e procedimentos rituais. A
autora os relaciona ao painel das relações sociais, hierarquizadas e hierarquizantes, de uma
sociedade plural como a brasileira. O interesse era de que o universo pesquisado aparecesse
por si e não apenas através do pesquisador.
Os relatos constituem o elo entre a vivência e o pensamento, facilitando a
interpretação antropológica, pois a história de vida, longe de ser um conjunto
de elementos ilustrativos do que é conhecido, adiciona elementos
qualitativos ao que tem sido elaborado de outras formas. Neste sentido,
através das trajetórias individuais daqueles que fazem parte do povo-de-
santo, pode-se estabelecer correlações com a política de saúde mental e o
exercício da cidadania, entre esses aspectos e os preconceitos raciais e
religiosos, que incidem e/ou são introjetados pelos adeptos. (TEIXEIRA,
1994, p.14).
Na compreensão da maternidade, privilegiei o sistema de crença. Essa escolha
metodológica confere importância ao imaginário social e ao universo simbólico como
construções historicamente determinadas para a delimitação do jeito de ser mãe em nível
individual e coletivo assim como das representações que as sacerdotisas e os adeptos fazem
de si mesmos e dos outros acerca da maternidade.
A perspectiva teórico-metodológica que segui foi a da história oral: através dos
depoimentos orais, busquei compreender a memória, as lembranças das mães-de-santo a partir
do universo simbólico, do imaginário social.
Dei ênfase à dimensão do imaginário social. Para Cassirer, o ser humano não pode
fugir da própria consecução. Não vive num universo puramente físico, mas num universo
simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo. São os vários
fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. Buscamos no
mundo das imagens e dos símbolos um significado situado no plano racional. Essas relações
que estabelecemos são o centro da nossa vida imaginária.
Tratei do universo imaginário das mães-de-santo como constituintes de crenças, mitos,
sonhos, discursos legitimadores, valores, aspirações que carregam nas relações que
estabelecem.
48
A contribuição de Castoriadis se pela forma de olhar o sujeito, a instituição como
imaginária dentro da situação social-histórica. Aposta no poder de criar e recriar num
processo de autonomia, o reconhecimento que o indivíduo mantém acerca de sua capacidade
de refletir sobre si mesmo e deliberar, tudo é instituído social e historicamente. A criação tem
como base a imaginação radical.
Assim, imaginação e autonomia são conceitos principais na luta da sociedade contra
todas as formas instituídas que excluem a participação dos sujeitos nas instâncias de decisão.
A subjetividade se enforma através da socialização, a sociedade é auto-instituição, auto-
criação e imaginário é contrário ao empirismo, não segue a via de um racionalismo
positivista.
Tratei da relação entre memória e imaginário social, mais especificamente no âmbito
da história oral mediante as entrevistas de depoimentos orais. Meu objetivo foi estabelecer
conexões entre o imaginário social e a memória, tentei compreender a produção de sentido
acerca da maternidade para as mães-de-santo da Umbanda em Fortaleza e Região
Metropolitana.
O imaginário social é composto por um conjunto de relações imagéticas que atuam
como memória afetivo-social de uma cultura. Por meio do imaginário as sociedades, os
grupos esboçam suas identificações, suas configurações e perfis de personalidade.
O imaginário social se expressa por símbolos, rituais e mitos no campo religioso. Tais
elementos plasmam visões de mundo e modelam condutas e estilo de vida, em movimentos
contínuos e descontínuos de preservação da ordem vigente ou introdução de mudanças.
As mães-de-santo, embora tomem o universo mítico-religioso e se guiem pelos
arquétipos dos orixás e das entidades espirituais, não se fixam; elas transitam entre essas
divindades que representam a maternidade e o feminino, chegando a extrapolar o universo
religioso afro-brasileiro, ancorando-se também nas imagens do feminino em especial da
Virgem Maria do catolicismo popular, em meio a diferentes contextos em que elas possa
estar inseridas, de modo que este imaginário as ajuda a enfrentar situações adversas. As mães-
de-santo obedecem a um fluxo incessante que me impossibilita fechá-las, enquadrá-las num
só arquétipo: há muitas variações possíveis.
Trabalhei o imaginário na perspectiva de Cornelius Castoriadis, que afirma que o
imaginário deve utilizar o simbólico não somente para se exprimir, mas para existir e,
inversamente, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária: ver numa coisa o que ela não é,
ver outra que ela não é.
49
O imaginário é obra de uma imaginação radical, não é imagem de, ele é criação
incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/ formas/
imagens a partir das quais somente pode ser questão de qualquer coisa. Castoriadis não
dicotomiza em pólos extremos o real e o imaginário, pois para ele o que nós chamamos
“realidade” e “racionalidade” são obra do imaginário. Este imaginário é ao mesmo tempo
duplo e irresolvível. È finalmente a capacidade elementar e irredutível de evocar uma
imagem, a faculdade originária de afirmar ou se dar, sob a forma de representação, uma coisa
e uma relação que não existe. Assim, o real e o imaginário não são incompatíveis.
Priorizei a observação participante no ambiente cotidiano dos terreiros de Umbanda e
Candomblé, sempre relacionada às práticas que direta ou indiretamente permitissem um olhar
voltado à forma com que as mães-de-santo desempenham a maternidade no relacionamento
com as filhas e filhos-de-santo, com os clientes, com os freqüentadores daquele espaço. Além
disso, fiz o registro de depoimentos orais de agentes envolvidos que compõe a família-de-
santo (mães, pais e filhos–de-santo).
Priorizei como técnica de pesquisa a observação, aqui entendida como a convivência
mais direta com a comunidade de terreiro mediante uma relação prolongada com minhas
fontes (mãe, pais, filhos e filhas-de-santo). Observei o cotidiano da casa através dos rituais e
das festas do terreiro para interpretar os significados das atividades. Outra técnica foi a
entrevista para coleta de depoimentos pessoais, utilizando o gravador de som e a máquina
fotográfica para registrar falas, imagens, situações e eventos, ampliando assim a interpretação
daquela realidade.
Para iniciar o trabalho de campo, em 2004, foram importantes os contatos do meu
professor orientador Ismael Pordeus. Ele me apresentou à mãe-de-santo Neide Pomba-Gira,
solícita em me receber. Por intermédio dele consegui também contatos de outros terreiros cuja
liderança fosse de uma mãe-de-santo. Passei a freqüentar algumas festas, como a que
homenageia, no mês de maio, a preta-velha Mãe Maria; na ocasião, são batizadas algumas
crianças, filhas de praticantes da Umbanda. Pude, em setembro de 2004, entrevistar a mãe-de-
santo responsável pela festa. Inicialmente de modo mais amplo, centrei-me em aspectos
históricos e estruturais do seu terreiro e adentrei um pouco na significação do seu sacerdócio
como mãe-de-santo.
Realizei alguns contatos com outro terreiro de Umbanda, o que me possibilitou fazer
entrevistas para um levantamento da biografia de uma mãe-de-santo de grande importância
para a memória histórica da Umbanda na cidade de Fortaleza e do Ceará: Júlia Condante. Para
50
tanto, visitei, em 2005, o terreiro de Ogum localizado no bairro Benfica para entrevistar Mãe
Stela, filha da Mãe Júlia e hoje responsável pelo terreiro. Ao chegar, fui bem recebida e obtive
muitas informações tanto sobre Mãe Júlia quanto sobre Mãe Stela Pontes.
Pude contar também com o apoio de um amigo iniciado no Candomblé: Linconly de
Jesus Pereira, que tinha conhecimento sobre os terreiros de Candomblé existentes em
Fortaleza e na Região Metropolitana. Um dos terreiros que me foi apresentado por Linconly
era liderado por Mãe Lúcia de Iansã e, na época, freqüentado por ele. Através desse amigo,
consegui fazer um mapeamento desses terreiros e participar de algumas festas, o que me
propiciou o contato com outros pais e mães-de-santo. Ao saber do meu propósito com a
pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras, eles facilitaram alguns contatos, de modo a
agendar visitas aos terreiros. Durante um tempo considerável de mais de quatro (2004 a
2008), realizei visitas freqüentes aos terreiros e consegui entrevistar mães, pais, filhas e
filhos-de-santo, num esforço para compreender e interpretar os códigos partilhados pelo
grupo.
A partir deste olhar inicial, verifiquei a existência de disputas por prestígio entre os
líderes e adeptos dos terreiros de Umbanda e Candomblé, bem como entre os adeptos da
mesma religião. Entrevi que esses espaços eram um campo minado de conflitos, divergências,
intrigas, o que exigiria de mim cuidado metodológico, um jeito atento e minucioso de lidar
com as abordagens e com as informações adquiridas através de minha fontes sobre suas
práticas e seus discursos – sempre respeitando os códigos compartilhados.
Percebi o quanto é importante ser aceita no grupo e manter uma relação de
cordialidade, amizade e confiança com toda a família-de-santo. Consegui transitar nos
terreiros desde o momento da pesquisa exploratória, para assim conhecer meu objeto de
pesquisa. Acredito que um dos motivos da minha aceitação pelo grupo passa pelo fato de a
pesquisa ser acadêmica, o que pode ter gerado uma expectativa deles em relação ao
reconhecimento dessas religiões afro-brasileiras, historicamente negadas e perseguidas no
Ceará.
Não é fácil encontrar mãe-de-santo disposta a abrir seu terreiro de Umbanda ou de
Candomblé para um pesquisador. Ela precisa ter a paciência de conceder várias entrevistas e
de compartilhar o cotidiano da casa com uma pessoa não-praticante da religião, que vai
inquirir e observar bastante. Isso exige firmar uma relação de empatia. O conjunto de tudo
isso me ajudou a deixar de ser uma estranha para esse grupo e passar a obter dele confiança,
estreitando as possíveis distâncias e ampliando o crédito deles em minhas intenções.
51
Priorizei os depoimentos das mães-de-santo, mas também dos pais e das filhas e
filhos-de-santo a fim de apreender o que de especifico nessa maternidade. Considerei
relevante interpretar o vivido, os aspectos simbólicos presentes em sua vida material e
espiritual, da dimensão pessoal e social, elucidando as possíveis contradições e ambigüidades
dos discursos. Mães e filhos não são sujeitos coletivos indefinidos, eles têm sua significação,
assumem e ocupam posições na estrutura social. A entrada no campo representou uma
oportunidade de colocar minhas desconfianças quanto ao meu objeto, analisar aspectos de
uma cultura e de uma religião imersos em uma teia complexa de significados quanto ao
sacerdócio da mãe-de-santo, em meio a conflitos, contradições e ambigüidades que o olhar
desde dentro pode revelar.
Nesse aspecto são salutares as palavras de Capone:
Parece-me, portanto, que os sistemas religiosos devem ser analisados como
códigos de estruturação do mundo e da sociedade que estão ativos na mente
de seus adeptos, isto é, como sistemas de significação. Assim, a estrutura
mítico-ritual fala das relações que ligam os adeptos ao sistema social, por
intermédio de uma complexa rede de mediações e soluções simbólicas das
contradições sociais. Dessa maneira, cada elemento não tem valor autônomo,
absoluto, pois sua significação muda conforme a posição que ocupa no
contexto. Os elementos de proveniência heterogênea participam de um vasto
processo de “bricolage” simbólico, cujas origens contam menos que as
significações atualmente atribuídas pelos crentes (CAPONE, 2004, p.31).
Observei, desde a primeira fase da pesquisa, em 2004, que, dentre as religiões afro-
brasileiras, em Fortaleza a Umbanda toma maior dimensão pelo fato de ser mais presente,
com numerosos terreiros de pai, e, filhos e filhas-de-santo. Conforme informações da
União Espírita Cearense de Umbanda, o número de terreiros registrados em Fortaleza e
Região Metropolitana ultrapassa os cinco mil. Sobre a presença dessas religiões e sua relação
com a Umbanda tratarei no capítulo seguinte.
Minha convivência nos terreiros de Candomblé e da Umbanda foi muito rica – embora
não tenha sentido o desejo de me iniciar nessas religiões. Despertou-me, entretanto, um
enorme respeito pela diversidade religiosa e pela pluralidade de modelos que nós, pessoas
humanas, temos buscado para construir nossa identidade.
Os muitos estudiosos das religiões de matriz africana não encontram consenso quanto
às conseqüências positivas ou negativas do pesquisador ser ou não adepto dessas religiões.
Alguns consideram a filiação uma condição necessária, insistindo num engajamento direto
que amplia as possibilidades do estudo, haja vista o pesquisador ter uma efetiva participação
52
em muito rituais restritos aos iniciados. Já outros estudiosos compartilham a opinião de que o
pesquisador pode ser ou não filiado. O fato de o ser filiado lhe abre a possibilidade de não
interferir nos assuntos esotéricos e de não ter de ocupar seu tempo em cumprir os rituais,
devendo obediência ao pai ou mãe-de-santo que lidera o terreiro.
Encontrei também reticências e reclamações de algumas mães-de-santo visitadas por
acadêmicos que colhiam impressões, mas na elaboração do trabalho não explicitavam a fonte.
Esse fato foi por mim visto como um alerta quanto à fidelidade da fonte das informações
recolhidas. Outro fato diz respeito à rivalidade existente entre os terreiros no que concerne ao
ideal de pureza, de continuidade de tradição, de legitimação dos fundamentos da religião.
Notei o interesse pela exclusividade, expresso no ato de uma mãe-de-santo ter se recusado a
ser por mim entrevistada, posto que soube da minha visita ao terreiro de uma filha-de-santo
sua, com a qual mantém rivalidade. Nessas situações, considerei prudente não insistir. Entendi
que, ao adentrar o campo de pesquisa, iria me deparar com dificuldades para obter
informações e deveria criar estratégias para ter acesso a algumas mães-de-santo.
Silva chama atenção para esse aspecto:
A suposição de que o antropólogo, durante a observação participante, pode
se manter neutro ou, então, “paira” como uma “entidade” acima da vida dos
seus observados e nela não interferir é, sem dúvida, uma visão pouco
condizente com a realidade do trabalho de campo. O antropólogo que
pesquisa as religiões afro-brasileiras dificilmente realiza sua observação
participante sem causar ou ser envolvido nos conflitos e rivalidades que
caracterizam a vida cotidiana dos terreiros (SILVA, 2000, p.37-38).
A tentativa de evitar rupturas e afastamentos bruscos fez com que eu enfrentasse essas
dificuldades de modo adequado para não interferir na relação de proximidade com o campo
de pesquisa, o terreiro. Tentei manter contato mesmo depois de concluída a pesquisa,
continuei participando de cerimônias públicas, aceitando convite para as festas, giras, fazendo
telefonemas, mantendo-as informadas sobre o andamento da tese.
Em alguns terreiros, cheguei a marcar consulta com o pai ou a e-de-santo para
jogos de búzios e de cartas, norteada para garantir maior proximidade com os sacerdotes e as
sacerdotisas afinal, como líderes dos terreiros, eles poderiam contribuir muito no repasse de
informações. Foi um momento de aprendizagem sobre aspectos da religião e sobre a partilha
do cotidiano do terreiro. De modo análogo, foi uma oportunidade de saber qual o orixá e
entidades que regiam minha vida, o que me reservaria o futuro. E, através dessas consultas,
53
legitimou-se uma relação positiva entre pesquisadora e pesquisados. Era uma forma de eles
me conhecerem, saberem dos meus reais propósitos ao visitar freqüentemente seu templo
sagrado, e de avaliar se realmente eu era merecedora das informações que andava a procurar.
Entendi o quanto devia tomar cuidado com o que falava, com minhas atitudes e práticas para
não ser interpretada negativamente por meus interlocutores da pesquisa.
A convivência nos terreiros possibilitou momentos importantes, como convites
constantes para participar das festas de iniciação, das obrigações, das giras. Nesse sentido,
aprecio muito as palavras de Juana Elbein dos Santos (1977), quando ela fala das vivências e
dos fenômenos dentro do Candomblé. Ela explicita que não sabe se acredita numa sobrevida,
mas algo seria muito evidente para ela: a função que cumpre o inconsciente coletivo nessa
religião. Ela destaca o quão fantástica é a maneira rica e bela com que o grupo (membros e
adeptos) elabora suas necessidades inconscientes.
Nesse intervalo, entre 2004 a 2008, no desenvolvimento do trabalho de campo, fui
acolhida gentilmente por todos. Pais e mães-de-santo, tanto da Umbanda quanto do
Candomblé, recebiam-me sem pressa e conversavam longamente. Em alguns terreiros, eu
passava muitas horas observando o movimento de entrada e saída de pessoas, o fazer
cotidiano das mães-de-santo. Antes de eles fornecerem seus depoimentos, eu explicava o
propósito da pesquisa, dizia tratar-se de uma pesquisa acadêmica do meu Doutorado, sendo
essa justificativa compreendida como um motivo justo e de valia para as religiões afro-
brasileiras. Para alguns adeptos, sacerdotes e sacerdotisas, estudos como o meu são
importantes, pois, segundo eles, podem explicar melhor o que é a religião. Por tratar-se de
uma pesquisa científica, ajudará no reconhecimento e na legitimação tanto da religião quanto
do sacerdócio da mãe e pai-de-santo.
Com o passar do tempo, comecei a ser conhecida nas festas, que eram também ponto
de encontro e oportunidade de rever as pessoas entrevistadas e de receber novas indicações
de mães-de-santo dispostas a conversar comigo.
A representação que o grupo pesquisado passou a ter de mim foi a de pesquisadora
interessada em saber sobre maternidade espiritual das mães-de-santo e que posteriormente
poderia escrever um livro. Uma preocupação em mim se fez presente: a de garantir a
continuidade da relação de respeito.
Nas entrevistas, as informantes evocavam sua entrada na religião e os problemas que
as acometiam; teciam os detalhes do fundamento da religião, descreviam as entidades e os
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orixás que recebiam em possessão. Confesso que, no início, cheguei a ficar confusa e
temerosa de não conseguir apreender alguns aspectos do ritual, de não compreender alguns
mitos, de não definir bem as linhas da Umbanda. Era uma profusão de elementos novos para
mim, sendo necessário registrar por escrito o que observava nos encontros, nas visitas, nas
festas, nas giras.
A memória depende da vida social e é por ela alimentada, daí sua relação com o
contexto sócio-histórico em que seo as experiências individuais. Considerei que, pela
história oral, utilizando a técnica dos depoimentos pessoais das mães-de-santo de Umbanda,
poderia captar a maneira particular desse grupo, experimentar as permanências e as mudanças
que ocorrem nessa religião, bem como saber quais valores têm norteado o desenvolvimento
da prática de mãe-de-santo.
Dentro do quadro amplo da história oral, encontraremos diferentes formas de captar o
conteúdo da oralidade, como: história de vida, autobiografias, biografias, entre outros. Colhi
os depoimentos pessoais das mães-de-santo de Umbanda de Fortaleza e Região
Metropolitana:
Ao colher um depoimento, o colóquio é dirigido diretamente pelo pólo
pesquisador; pode fazê-lo com maior ou menor sutileza, mas na verdade tem
nas mãos o fio da meada e conduz a entrevista. Da “vida” de seu informante
lhe interessam os acontecimentos que venham se inserir diretamente no
trabalho, e a escolha é unicamente efetuada com este critério. Se o narrador
se afasta em digressões, o pesquisador corta-as para trazê-lo de novo ao
assunto. (QUEIROZ, 1988, p.21).
Outro material relevante para a perspectiva dialógica e comparativa do estudo da
maternidade das mães-de-santo foi a autobiografia de uma mãe-de-santo de Portugal
Virgínia Albuquerque contida no livro de Pordeus Junior (2000a), Uma casa luso-afro-
brasileira com certeza: emigrações e metamorfoses da Umbanda em Portugal. O autor
apresenta a forma com que a Umbanda se instala em Portugal pela narrativa de uma das
primeiras mães-de-santo a abrir um terreiro em Lisboa. O material utilizado é a autobiografia
dela, em que é narrada sua própria existência. Ali, ela fixa suas recordações, desde a infância,
além de aspectos e eventos como relações familiares e de trabalho, casamento, experiências
de maternidade biológica, inserção na Umbanda, desenvolvimento espiritual e o exercício do
seu sacerdócio. Essa narrativa foi utilizada como material de análise pela riqueza de dados.
Na autobiografia não existe, ou se reduz ao mínimo, a intermediação de um
pesquisador; o narrador se dirige diretamente ao público e a única
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intermediação está no registro escrito, quer se destine ou não o texto à
publicação (QUEIROZ, 1988, p.23).
Para Mãe Virgínia, dentre as atividades regulares do terreiro, a escrita e as publicações
assumem lugar privilegiado. Hoje ela tem mais de oitenta títulos utilizados pelos filhos-de-
santo e pela clientela, versando sobre religião, ritos, mitos, espaços e tempos rituais, cantos,
orações. A efetivação desse projeto religioso implica um exercício mneumônico intenso de
transmissão oral da memória, acompanhada da preocupação com o caráter sacramental, de
modo a evitar qualquer sacrilégio.
Penso ser importante ressaltar que tanto o Brasil como Portugal convivem
com dois tempos diferentes o tempo histórico e linear que atravessa o
tempo tradicional que é de festas, de repetições rituais, um tempo circular. A
fricção e o conflito desses dois tempos, no meu entender, é o que geraria os
“relâmpagos imaginários” do cotidiano que se manifesta, entre outros, nas
praticas religiosas (PORDEUS JÚNIOR, 2000a p.249).
Foi também propósito desse trabalho a constituição da biografia de Júlia Condante a
mãe-de-santo da Umbanda que teve seu sacerdócio voltado à tentativa de codificar essa
religião no Ceará, sendo uma das primeiras a registrar seu terreiro nos órgãos de competência
e a fundadora da Federação Cearense Espírita de Umbanda na década de 1950. Para construir
o perfil biográfico de Mãe Júlia, utilizei como material duas entrevistas realizadas por Ismael
Pordeus (2002), contidas no livro Umbanda: Ceará em transe e nas entrevistas por mim
realizadas junto à sua filha-de-santo Stela Pontes. Nesse sentido, Isaura Queiroz esclarece:
A biografia, por sua vez, é a história de um indivíduo redigida por outro.
Existe aqui a dupla intermediação que a aproxima da história de vida,
consubstanciada na presença do pesquisador e no relato escrito que sucede
as entrevistas. O objetivo do pesquisador é desvendar a vida particular
daquele que está entrevistando ou cujos documentos está estudando, mesmo
que neste estudo atinja a sociedade que vive o biografado, o intuito é,
através dela, explicar os comportamentos e as fases de existência individual
(1988, p.23).
Ao traçar o perfil biográfico de Mãe Júlia, pude compreender a coletividade da qual
ela fez parte a Umbanda no Ceará. Através dessa personagem, revelam-se os traços do
grupo religioso e do contexto social de que ela fez parte, na tentativa de encontrar a
coletividade a partir do indivíduo. Tentei explorar o contexto histórico e social e explicitar a
singularidade de sua trajetória pessoal. As histórias individuais estão arraigadas em um
contexto, em particular o momento de legitimação do Espiritismo de Umbanda.
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Essa técnica é adequada quando se pretende realizar uma análise antropológica de um
determinado grupo de adeptos das religiões. Os depoimentos pessoais estão, em todos os
aspectos, marcados por influências exteriores do meio que integram e pelo qual foram
moldados. Os aspectos do meio sociocultural relevantes no estudo dizem respeito à Umbanda
como religião tradicional e ao tornar-se mulher, ao significado de ser e tanto na
maternidade biológica como na espiritual. Coube interpretar de que forma a sociedade se
organiza e quais valores atribui ao tratar desses temas, captando o que sucede da encruzilhada
da vida individual com a social no âmbito das representações simbólicas comuns a todos os
indivíduos.
Este trabalho tem o propósito de recuperar a memória histórica que dialoga com as
contribuições reflexivas da Antropologia e da Sociologia, contando basicamente com a
história oral como fonte primordial de informação e culminando na compreensão acerca do
exercício da maternidade espiritual exercida pelas mães-de-santo.
A análise acerca da maternidade simbólica, trazida pelos significados simbólicos
acumulados através dos tempos, está presente nas narrativas principalmente das mães-de-
santo, interlocuras-chave desta pesquisa.
1.4 Perfil biográfico das interlocutoras da pesquisa
Considerei importante entrevistar não só as mães-de-santo da Umbanda, mas também
outros sujeitos que pudessem também contribuir para melhor elucidar as questões centrais da
investigação. Tornou-se imprescindível entrevistar, além de pais-de-santo, filhas e filhos-de-
santo, na tentativa de perceber como se estabelecem as relações dentro da família-de-santo e
como os pais vêem o exercício da maternidade espiritual junto a seus filhos-de-santo,
fazendo-os renascer para a religião e acompanhando, orientando seu desenvolvimento
espiritual. Valeria a pena conhecer o relacionamento no interior da constelação familiar de
santo, possível através das narrativas de pais e filhos que com as mães-de-santo convivessem,
mantivessem contato, assim como no grupo dos adeptos das duas religiões afro-brasileiras de
maior incidência em Fortaleza: Umbanda e Candomblé.
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Durante entrevistas e conversas informais, percebi que um número significativo das
mães-de-santo da Umbanda havia, nos últimos anos, se iniciado no Candomblé. Surgiu a
necessidade de investigar seus motivos. Incluí também os depoimentos de mães e pais-de-
santo do Candomblé, com a finalidade de eles comentarem como analisam a Umbanda hoje e
a forma como percebem os orixás e as entidades que representam o feminino e a maternidade.
Incluí ainda, como interlocutores, os filhos e filhas-de-santo, para que eles pontuassem o
modo com que visualizam a Umbanda em Fortaleza e Área Metropolitana, o significado da
maternidade espiritual e a interpretação que dão acerca da dimensão simbólica dos orixás e
das entidades ligadas ao feminino e à maternidade, como Nanã, Iansã, Iemanjá, Oxum,
Pomba-Gira e as Pretas-Velhas, entre outras.
Uma série de depoimentos orais compõe o universo pesquisado e compreende os
relatos das mães-de-santo, pai-de-santo e filhos e filhas-de-santo. Construi sete perfis que
considerei fundamentais: trata-se da vida das mães-de-santo, textos construídos a partir das
leituras de suas biografias, das entrevistas realizadas e das conversas informais com outros
adeptos da Umbanda e do Candomblé de Fortaleza e Região Metropolitana. Vale dizer que a
preocupação-guia deste trabalho diz respeito às formas com que essas sacerdotisas têm
assumido a maternidade espiritual. E tratar da maternidade de uma e-de-santo nos leva a
considerar os relatos das filhas e filhos-de-santo, que poderiam complementar o não-dito pelas
mães-de-santo.
Nesse sentido, cabe destaque às palavras de Teixeira:
O conjunto dos discursos possibilitou a visão de pontos de vista
diferenciados, conduzindo a contornos dos retratos em preto e branco não
imaginado. Nos relatos de iniciantes e clientes, além da introjeção incipiente
da visão religiosa de mundo, foram captadas informações que constavam do
discurso dos sacerdotes (TEIXEIRA, 1994, p.74).
Colhi sete depoimentos orais de mães-de-santo (ver Quadro 2, p.61). Desse total,
apenas uma é do Candomblé e as demais são adeptas da Umbanda. Acrescentei relatos de
outros agentes a fim de captar diversas representações. Foi ouvida a presidenta da União
Espírita Cearense de Umbanda, Mãe Suzana, por ter considerado que, nessa entidade, eu
poderia obter o número exato de terreiros existentes em Fortaleza e Região Metropolitana e
conhecer o trabalho desenvolvido pela instituição, de cunho sistematizador da Umbanda no
Ceará. Vale dizer que a União foi fundada em outubro de 1967 por um membro dissidente da
58
Federação Espírita de Umbanda, esta última criada por Mãe Júlia Condante. Conversei
também com um pai-de-santo do Candomblé, Pai Aluízio de Xangô. Entrevistei um filho-de-
santo do Candomblé, Linconly de Xangô, um professor universitário hoje aposentado o Prof.
Francisco Alencar, simpatizante da Umbanda e freqüentador do terreiro de Mãe Júlia nos anos
de 1960. Acresce muitos outros contatos informais ao longo de cinco anos de andanças pelos
terreiros de Umbanda e de Candomblé. De modo direto ou indireto, a visita a esses locais
ajudou no entendimento do que me propus a investigar: a maternidade espiritual interligada ao
imaginário social e ao universo simbólico.
Cabe destacar as interlocutoras-chave da pesquisa:
Neide Pomba-Gira Antônia de Brito Falcão. É natural de Exu, Pernambuco. Sua família
mudou-se para Juazeiro do Norte, no Ceará, e em seguida veio para Fortaleza, onde se
converteu à Umbanda ainda nos anos 1960. Depois, foi para o Rio de Janeiro, desenvolvendo-
se lá na Umbanda de Omolocô. Neide, como mãe-de-santo, marcou por mais de quarenta anos
a Umbanda, tendo um papel importantíssimo em suas performances de fazer lembrar,
rememorar e reconstruir a memória dos subalternos, transmitindo tudo isso aos mais de cem
filhos que iniciou. (PORDEUS JÚNIOR, 2006). Mulher separada, criou seus filhos com
independência e autonomia, assumindo a liderança do terreiro e da família biológica. Seus
filhos biológicos também passaram a congregar na religião. Carregou no nome a mulher que
representava, manteve o interesse e a atenção das mulheres que a procuravam. Durante as
festas por ela organizadas, recebia entidades como Exu, pretas-velhas e Pomba-Gira, entre
outras. Tinha dois terreiros: um funcionava em sua casa, no bairro Vila Peri, e o outro no
bairro Bom Jardim. Faleceu em junho de 2006.
Mãe Stela Pontes Filha de Ogum com Iansã, pertenceu ao terreiro de Mãe Júlia Condante.
Mulher separada, mãe de quatro filhos biológicos, contou-me de sua vida marcada por
dificuldades e sofrimento até encontrar a mãe-de-santo que lhe foi atenciosa, cuidadosa e
carinhosa. Manteve com ela uma boa relação, e foi convidada para construir uma casa no
terreiro de Ogum. Com a morte de Mãe Júlia Condante, herdou a função de liderar o terreiro
que era, até fevereiro de 2008, situado no bairro Benfica. Depois de pedir permissão a Ogum,
obteve aprovação para mudar-se para o bairro Presidente Vargas, onde assentou todas as
entidades que sempre acompanharam o terreiro. Considera-se mãe-de-santo da Umbanda, mas
59
por motivo de doença entrou para o Candomblé. Em março de 2007, deu sua obrigação de
sete anos.
Mãe Lúcia – Hoje tem 69 anos. Desde dezembro de 1994 é ialorixá do terreiro de Candomblé
Ile Axé Adjebowaba (a casa que veio para ficar e ser herdada por muitas gerações), situado no
bairro Parque São João, em Fortaleza. Filha de Iansã, foi iniciada no Candomblé da nação
Nagô-Vodum em 1979 por Mãe Ilza de Oxum. É hoje uma enfermeira de nível superior
aposentada. Solteira, não se casou e não tem filhos biológicos, apenas filhas e filhos-de-santo,
e considera seus sobrinhos como filhos. Mora no próprio terreiro, numa grande área, com
alguns filhos e filhas-de-santo ou simpatizantes da religião que, por necessidade financeira,
precisam de moradia. Passou um tempo separada de sua mãe-de-santo, com quem sempre
manteve uma relação conflituosa.
Mãe Constância Constância de Sousa Araújo é natural de Fortaleza e hoje tem 61 anos.
Entrou na Umbanda aos 18 anos na tentativa de curar uma doença que a acometia desde sua
infância a asma. Foi filha-de-santo de Mãe Júlia Condante, sendo Ogum o dono de sua
cabeça. Liderou o terreiro
Centro Espírita de Umbanda União e Caridade
no bairro Montese por
mais de 30 anos. Mudou-se para o município de Caucaia, no bairro Guajiru. Não tem mais
terreiro, mas fez algumas adaptações no espaço da casa, que recebe o nome de
Casa de
Umbanda Rancho de Trindade
, para conservar o lugar dos Exus, de Pilintra, do Ogum da
Porteira que fica na parte da frente e outras entidades que são guardadas em um quarto
destinado a elas. Diz que construir um terreiro exige muito empenho e trabalho, e por isso
continuará somente realizando atendimentos na frente de sua casa ou num espaço da varanda,
pois hoje está cansada. Considera-se mãe-de-santo da Umbanda, tendo se iniciado também no
Candomblé por influência de seu último pai-de-santo. Resolveu voltar a estudar e se
matricular para fazer revisão do e graus. Gosta de inventar, de aprender e trabalhar com
outras energias: fez diversos cursos como de massoterapia, Reiki, entre outros.
Mãe Anita Francisca Ourives da Silva tem hoje 75 anos, é viúva, mãe de quatro filhos e
reside no bairro Montese, onde funciona também o seu terreiro. É neta-de-santo de Mãe Júlia
Condante e filha-de-santo da Mãe Stela Pontes. É filha de Oxóssi com Iansã. Entrou na
Umbanda aos 22 anos por sofrer de uma grave doença que paralisava seus membros, tendo os
60
médicos desconhecido as causas e o tratamento. Mãe-de-santo da Umbanda mais de 35
anos, é muito grata a essa religião, da qual fala com muito amor. Adora em especial a sua
primeira mãe-de-santo Maria do Espírito Santo Martim, pertencente à Umbanda Espírita, a
quem ela chamava “Madrinha”.
Mãe Mona de Oiá Ângela Maria Valente do Carmo tem 53 anos e casou-se aos quinze. É
viúva e mãe de duas filhas. Reside no bairro Planalto Pici, onde funciona também seu terreiro.
Sua família paterna foi espírita, tendo sua avó participado da Mocidade Espírita Paraense.
Natural de Belém do Pará, reside em Fortaleza 23 anos. É filha de Iansã, por isso adotou o
nome “Mona de Oiá”, que significa “mulher de Iansã”. Desde os três anos de idade recebe
caboclo, e aos sete fez santo na Umbanda. A primeira entidade que recebeu foi uma princesa
chamada Thoya Jarina Maria de Jesus, da linhagem Mina Nagô. Depois de ter passado por
todos os preceitos de Mina e pela iniciação, fez-se dentro da Pajelança do Pará. Considera-se
uma “mãe de pena e maracá”. No espaço de seu terreiro concentra-se o Centro Espírita
Caminhos para Aruanda e a Tenda de Umbanda Thoya Jarina.
Mãe Zimá Zimá Ferreira da Silva é natural de Fortaleza e nasceu em 1947. Sua família tem
origem na cidade de Pacatuba. É filha de Iansã com Ogum. Casou-se aos dezenove anos; hoje
é viúva e têm três filhos biológicos, todos iniciados no Candomblé. Dedica-se à Umbanda há
47 anos. Seu terreiro chama-se Terreiro dos Senhores Oguns e está localizado no bairro São
Vicente, em Fortaleza. Sua aproximação com a religião se deu por intermédio de seu avô,
Gastão, que era espírita, praticava caridade e dava assistência espiritual àqueles que vinham à
sua procura, por intermédio de passes, preces e orações. Durante a infância já recebia caboclo,
e aos treze passou a freqüentar o Terreiro de Umbanda do Cangaço. Após a morte do seu
avô biológico, contou com a ajuda do pai-de-santo Alberto. Para ela, ser mãe-de-santo é
ser zeladora de orixá, é cuidar, zelar, alimentar seu santo. Viaja por muitas cidades do Brasil e
do Exterior não a passeio, mas com o objetivo de levar a religião aonde possa encontrar
interessados. Ministra palestras, faz trabalhos e jogos adivinhatórios, de modo a também
adquirir mais conhecimentos.
61
Quadro 2 – Perfil das informantes segundo sua inserção na sociedade abrangente
FONTE /
Mãe-de-
santo
IDADE NATURAL ESTADO
CÍVIL
ATIVIDADE
PROFISSIONAL
TERREIRO ORIXÁ
PRINCIPAL
Nº DE FILHOS
BIOLÓGICOS
Neide
Pomba-Gira
75
(1931-
2006)
Exú - PE Separada Aposentada
Aldeia da Cabocla Jurema-
Vila Peri – Fortaleza
Terreiro Caboclo Lage
Grande-Bom Jardim
Fortaleza
Iansã 5
Mãe Lúcia de
Iansã
69
(1936)
Fortaleza-
CE
Solteira Aposentada
Roça de candomblé Ile Axé
Adjebowaba
Iansã -
Mãe
Constância
61
(1947)
Fortaleza-
CE
Divorciada Aposentada
Centro Espírita de
Umbanda União e
Caridade Montese,
Fortaleza
Casa de Umbanda Rancho
de Trindade Guajiru,
Caucaia
Oxossi 4
Mãe Stela 75
(1930)
Fortaleza-
CE
Separada Aposentada
Terreiro de Ogum Martim
Guerreiro Presidente
Vargas em Fortaleza
Iansã e Ogum 4
Mãe Anita 75
(1933)
Canindé-CE Viúva Aposentada
Terreiro de Òxossi
Caboclo Capitão das Matas
Oxossi e Iansã 4
Mãe Mona
Oiá
53
(1955)
Fortaleza-
CE
Viúva Pensionista
Centro Espírita para
Araunda e Tenda de
Umbanda Tora Jarina
Iansã 2
Mãe Zimá 61
(1947)
Fortaleza-
CE
Viúva Aposentada
Terreiro Senhores Oguns
Iansã 3
Fonte: Pesquisa Direta, 2008.
CAPÍTULO 2
AS RELIGIÕES LUSO-AFRO-BRASILEIRAS NO CEARÁ
63
2.1 As religiões de matriz africana no Brasil
Tornou-se hegemônico entre os povos ocidentais o pensamento que veicula a suposta
superioridade da religião cristã sobre todas as outras. Então, aqueles que postulam outras
práticas religiosas são vistos como bárbaros e não-civilizados.
No campo religioso, é possível falar em memória brasileira sobre a África. Os
africanos que viveram no Brasil na condição de escravizados por mais de três séculos
trouxeram consigo suas tradições, suas religiões. Num contexto de escravidão, contudo,
tornou-se difícil dar continuidade a tais culturas e religiões, pois grande parte foi dilacerada,
perdida, reinventada. Esse legado não se manteve em conserva de uma herança africana tal
qual chegou ao Brasil. A cultura se reformula, se modifica, transmite, significa. Com o fim da
escravidão, foi possível alargar os espaços para a retomada das tradições, intensivamente
influenciados por outros elementos católicos, indígenas e espíritas.
Durante os séculos XVI e XIX, mais de cinco milhões de africanos foram trazidos
para o Brasil na condição de escravizados. Esses povos e seus descendentes sustentaram
economicamente o país com sua mão-de-obra escrava, nas atividades agrícolas (cana-de-
açúcar, café, fumo, cacau) e na mineração. Vieram das mais diferentes partes do continente
africano; sobreviveu uma diversidade de etnias, nações, línguas, culturas no Brasil. Os povos
da África negra foram classificados em dois grandes grupos lingüísticos - sudaneses e bantos.
Com a vinda das populações africanas, ocorreram a inter-relação e a integração étnica
entre alguns grupos. Os bantos, os fons e os iorubás, porém, conservaram parte da memória
mítica de seus povos pela transmissão oral, dando continuidade e reproduzindo seus saberes e
ritos de geração a geração.
Para Silva (2005), a origem das religiões afro-brasileiras tem sentido no encontro dos
três tipos de religiosidade que se imbricam desde o início da colonização portuguesa, isto é, a
crença dos grupos indígenas nativos, o catolicismo português e as religiões das diversas etnias
africanas.
São consideradas religiões de matriz africana no Brasil: Calundu, Catimbó,
Candomblé, Candomblé de Caboclo e de Angola, Umbanda, Batuque, Xangô, Tambor de
Mina, Cabula, dentre outras.
Silva (2005) apresenta uma visão histórica das religiões de matriz africana no Brasil,
enfocando seus dois modelos mais conhecidos, ou seja, o Candomblé e a Umbanda. Essas
64
religiões têm um campo muito vasto e diversificado. São originários de segmentos
marginalizados na sociedade brasileira: as populações negra e indígena e os estratos pobres.
Foram, ao longo dos séculos, perseguidas pela Igreja Católica (Tribunal do Santo Oficio da
Inquisição), pela Polícia, pela Justiça e por viajantes estrangeiros, sob a alegação de
praticarem bruxaria, curandeirismo, feitiçaria, luxúria etc. A conseqüência disso hoje é a
escassez de documentação ou registros sobre elas.
Para Prandi (1996), no Brasil, a única instituição cultural africana que logrou
sobreviver foi a religião. Por meio das religiões afro-brasileiras, criou-se o que talvez seja a
reconstituição cultural mais bem acabada da população negra. Essas religiões “reproduziram”
a religião africana no Território Nacional: na Bahia (Candomblé), em Pernambuco e Alagoas
(Xangô), no Maranhão (Tambor de Mina), Rio Grande do Sul (Batuque ou Nação) e Rio de
Janeiro (Macumba), além da Encantaria e outras modalidades religiosas, com o propósito de
refazer no plano religioso a comunidade africana perdida, configurando simbolicamente a
“família-de-santo”.
Nesse sentido, Reginaldo Prandi considera diversificado o quadro das religiões afro-
brasileiras:
Em seu conjunto, até os anos 30 deste século, as religiões negras poderiam
ser incluídas na categoria das religiões étnicas ou de preservação de
patrimônios culturais dos antigos escravos negros e seus descendentes,
enfim, religiões que mantinham vivas tradições de origem africana.
Formaram-se em diferentes áreas do Brasil, com diferentes ritos e nomes
locais derivados de tradições africanas diversas: candomblé na Bahia, xangô
em Pernambuco e Alagoas, tambor de mina na Maranhão e Pará, batuque no
Rio Grande do Sul, macumba no Rio de Janeiro (PRANDI, 1996, p.65).
A população negra foi marcada, sem dúvida nenhuma, pela vulnerabilidade.
Sobressaíram, porém, forças, resistências. Negros e negras não ficaram numa única e
exclusiva posição de ser “coisificados” em suas subjetividades, desprovidos do direito à
História. Tinham suas vontades e esquemas de pensamento, interpretações diferentes do grupo
considerado dominante.
Os negros iorubás, chamados também de nagôs, cultuaram deuses chamados de orixás.
A religião desse povo sobreviveu, mesmo com as perseguições, às acusações de culto
demoníaco, atrasado, bárbaro, irracional. Foi às vezes encoberta e dissimulada. Outras vezes,
mascarada como dança para garantir sua autonomização, extrapolando o campo da
65
formalidade religiosa, passando eles a se comprometer como católicos. Como forma de
resistência, os praticantes ressignificaram a religião para melhor sobreviver. As diversas
manifestações religiosas sincréticas aparecem como processo de subjetivação, de busca de
autonomia, de identificação, de sentimento de pertença, fazendo o cotidiano suportável de
viver.
Denominamos “força” e “resistência” o sentimento que fez manter vivos os valores,
hábitos e culturas negras configuradas como nosso patrimônio. Elas buscavam espaços dentro
dos limites do sistema escravocrata em nome de sua autonomia e efetivação dos direitos, na
família e no lazer, na linguagem, na música e na religião, preservando sua cultura e sua
história.
As religiões guardam articulação direta com relações sociais, culturais e históricas de
uma sociedade determinada. Assim, as religiões que me propus a interpretar - Umbanda e
Candomblé - levam a refletir sobre o contexto em que os povos formadores delas se inseriram
perpassados de perseguições, exploração e opressão, reinvenção e (re)significação. Nesse
sentido, são elucidativas as palavras de Vagner Silva:
(...) cabe ressaltar que as religiões, ainda que sejam sistemas de práticas
simbólicas e de crenças relativas ao mundo invisível dos seres sobrenaturais,
não se constituem senão como formas de expressão profundamente
relacionadas a experiência social dos grupos que as praticam. Assim, a
história das religiões afro-brasileiras inclui, necessariamente, o contexto das
relações sociais, políticas e econômicas estabelecidas entre seus principais
grupos formadores: negros, brancos e índios (2005, p.14-15).
As populações indígenas e negras, mesmo diante da conversão forçada à religião dos
colonizadores, não abandonaram totalmente as crenças e tradições que estruturam suas vidas e
garantem sua sobrevivência no mundo. Cultuavam seus antepassados, os espíritos. Houve
uma justaposição das crenças deles com as católicas, sobressaindo as práticas do sincretismo.
Esses povos não assistiram ao processo de colonização e exploração de modo passivo,
trataram de (re)inventar formas de melhor sobreviver em meio a tanto sofrimento, sendo o
campo de destaque o religioso.
As populações “dominadas” encontraram brechas para agir e se contrapor às práticas e
valores hegemônicos. No âmbito religioso, as irmandades religiosas da Igreja Católica foram
para a população negra núcleos de manutenção cultural, bem como de um tipo de
sociabilidade diferenciada das impostas pelo pensamento dominante.
66
As irmandades religiosas foram focos da resistência, manutenção e adaptação das
diferentes tradições africanas no Brasil. Foram instituídas pela Igreja Católica, oficialmente
liberadas e estimuladas entre a população negra. Nesses espaços, foi marcante a presença das
mulheres, que puderam ocupar importantes posições hierárquicas. Assim, participar e
congregar essas irmandades significou uma das formas de incorporação e integração da
população negra ao universo católico, garantindo sua inserção na sociedade brasileira –
porém, não sem tensão e contradições. Os primeiros registros de irmandades de negros no
Brasil datam de 1586, sendo disseminadas pelos jesuítas entre a população escravizada dos
engenhos. Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro abrigaram as mais expressivas
congregações (SCHUMAHER, 2007).
Uma de suas características principais era a autonomia; havia uma mesa administrativa
que decidia sobre seus rumos, geria seus negócios. As irmandades que mais se destacaram no
Brasil foram: Nossa Senhora do Rosário, da Boa Morte, São Bento, Nossa Senhora dos
Remédios, Senhor Jesus dos Martírios, Santo Antônio da Catagerôna, São Benedito, entre
outras.
Cabia às irmandades religiosas realizar atividades como procissões, festas, coroação
de reis e rainhas, casamentos e atividades sociais como ajuda aos necessitados, assistência aos
doentes, visitas aos prisioneiros, concessão de dotes, proteção contra maus-tratos dos
escravocratas, auxílio para a compra de cartas de alforrias e garantia de enterro para os
escravizados. Enfim, propiciavam à população negra momentos de lazer, diversão e convívio
social.
Assim como a população negra, os indígenas tinham sua religião, embora possuísse
características condenadas pelos “dominantes”, como a ligação com a natureza. Acreditavam
no poder mágico do pajé, no culto aos ancestrais donos da terra (acesso ao mundo dos
mortos), nos rituais de cura e na força de expulsar os maus espíritos que se alojavam nos
corpos das pessoas.
Empreender um estudo sobre as religiões afro-brasileiras, na tentativa de conhecer
suas particularidades, e, em especial, compreender os esquemas de significação da
maternidade exercida pela mãe-de-santo, situa-se como eixo estruturador desta pesquisa.
Pressupomos que as religiões afro-brasileiras possuem dinâmicas próprias, estando em
permanentes inter-relações com outros aspectos da cultura. As tradições religiosas não se
encontram mais como nas origens, tendo recebido influências que impactaram suas práticas,
bem como a vida dos seus adeptos. Cabe então investigar como as mães-de-santo e seus filhos
67
e filhas estruturam suas vidas, vivem e sobrevivem, considerando as representações sociais
sobre maternidade na Umbanda de Fortaleza e Região Metropolitana.
Na diversidade de religiões afro-brasileiras, imprimi ênfase aqui às modalidades mais
conhecidas na realidade brasileira: o Candomblé e a Umbanda. Com este propósito,
estabelecemos diálogos com Roger Bastide (1971), cuja contribuição contrapõe as análises
que situavam essas religiões como inferiores, percebendo-as como formas de sobrevivências,
de concepções ricas e complexas da filosofia da população negra e do seu universo mítico.
Assim, distancia-se das análises de Nina Rodrigues (1935), que propôs o caráter primitivo dos
cultos vindos da África. Bastide procura descrever o mundo religioso nagô, concebendo o
Candomblé como um sistema harmonioso de participações, um conjunto de elementos de
origens diversas, mas que formam uma realidade autônoma e coerente.
Bastide (1971) trata do sincretismo religioso. Para ele, esse elemento aparece como
característica dos países que conheceram a escravidão e que experimentaram a mistura de
raças e de povos na convivência com a diversidade étnica em um mesmo lugar, criando uma
“solidariedade de cor”. O autor assevera que cada elemento da religião tem lugar determinado
e que o conjunto desses elementos abre possibilidades para novas interações com outros.
Chama a atenção para a fusão entre as diversas etnias africanas que chegaram ao Brasil (nagô,
jeje e bantu), dando origem a diferentes combinações afro-católicas, fomentando por sua vez
outro sincretismo, ou seja, o das próprias religiões africanas que aqui se encontravam. Seria o
sincretismo regional na África em razão de guerras e migrações, acrescido do sincretismo
nacional que se estabeleceu entre as diversas etnias negras no Brasil, e o sincretismo entre
as religiões africanas, indígenas, católicas e espíritas.
Conto também com a contribuição de autores como Pierre Verger (1999) e Renato
Ortiz (1978). O primeiro, com suas análises sobre o Candomblé na Bahia em meados da
década de 1940, que, por meio da pesquisa etnográfica, coleta lendas sobre os orixás contadas
na África e no Brasil. Renato Ortiz, em seu livro A morte branca do feiticeiro negro, trata
da fratura do universo religioso da população negra escravizada e assimilação de seus
elementos pela tradição cristã, num contexto de urbanização e industrialização da sociedade
brasileira, analisando a relação entre cultura e as classes sociais, as particularidades da
religião nascente – a Umbanda.
Outros pesquisadores realizam importantes contribuições sobre as religiões afro-
brasileiras, mais recentemente. Cabe citar os estudos de Sérgio Ferretti (1996) e Mundicarmo
Ferretti (2001) na região Nordeste, especificamente no Maranhão. Consideram que a religião
68
afro-brasileira em suas diversas denominações é bastante ligada ao Catolicismo. Além dos
terreiros realizarem festas e rituais do catolicismo popular, como a Festa do Espírito Santo,
Queimação de Palhinhas do Presépio, Batismo (na igreja ou no terreiro, com água benta),
alguns ritos católicos são indispensáveis nas festas de vodus e encantados, como missa,
procissão e ladainha.
No que se refere à dimensão das religiões afro-brasileiras, em particular a Umbanda no
Ceará, utilizei as valiosas análises de Ismael Pordeus Junior.
Conforme assinalado pouco, inicio pela descrição do Candomblé como religião
afro-brasileira. Tem seus símbolos fortemente ligados à natureza água, tempestade, terra,
fogo, ar, plantas etc. A realização dos rituais, oferendas e trabalhos deve estar em harmonia
com o ambiente natural; religiões do transe, de sacrifícios de animais e cuja cosmovisão não
se baseia na dicotomia do bem e do mal adotada pelas religiões cristãs. Cultuam os orixás e,
para os praticantes, eles são divindades criadas por Olorun (Deus Único), que o auxiliaram na
criação do universo e de todos os seus componentes. Eles têm a função de intermediários
entre o criador e a criatura. O orixá da pessoa é único e intransferível assentado na iniciação.
São dezesseis os orixás mais cultuados no Brasil.
No Candomblé, o período de iniciação é o principal fator de conhecimento e poder do
iniciado. Pressupõe-se que os filhos-de-santo mais velhos tenham mais conhecimento e
saibam dos mitos, itans, orações, rituais. A essência da religião vai sendo conhecida por
aqueles que possuem mais vivência. A legitimação tem como elemento fundamental a origem
iniciática do religioso (quem inicia quem) e a valorização dos anos de feitura (que pressupõe
maior conhecimento dos mistérios e fórmulas rituais). A noção básica do Candomblé é a de
que cada indivíduo vem de um orixá específico e que é possível cultuá-lo; a iniciação no
Candomblé é demorada, o iniciante deve se adequar a seu ritmo de acesso aos mistérios
religiosos, cumprindo etapas iniciáticas (PRANDI, 1991).
O Candomblé se configura como religião da oralidade. Não uma sistematização
numa fonte bibliográfica sagrada que contenha todos os fundamentos e ensinamentos: tudo se
fez historicamente pela via dos mitos, rituais e tradições.
O Candomblé tem na família-de-santo sua organização, como forma de estruturação
do terreiro. O adepto, ao fazer o processo iniciático, passa a fazer parte da família-de-santo,
integra o terreiro na categoria de mais um filho ou filha-de-santo, tendo compromisso com seu
deus pessoal e com seu pai ou mãe-de-santo. Congregam com irmãos e irmãs, tios e tias, avó
69
e avô-de-santo, através de vínculos sagrados. A organização social dos terreiros se estrutura a
partir de uma hierarquia de cargos e funções. Os terreiros se dividem por nação. Os dois
modelos de culto mais praticados são o rito Jeje-Nagô e o Angola.
No candomblé, a forma de cultuar os deuses (seus nomes, cores, preferências
alimentares, louvação, cantos, danças e músicas) foi distinguida pelos
negros, segundo modelos de rito chamados de nação, numa alusão
significativa de que os terreiros, além de tentarem reproduzir os padrões
africanos de culto, possuíam uma identidade grupal (étnica) como nos reinos
da África (SILVA, 2005, p.65).
A Bahia foi onde o Candomblé mais conservou seu caráter africano como religião.
Somente nas últimas décadas do século XX o Candomblé passa se instalar nas grandes
metrópoles do Brasil. No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, ele toma corpo em São
Paulo, num momento marcado por efervescências no plano da cultura e das mentalidades,
pois profundas mudanças sucederam em relação ao modo de vida e aos códigos intelectuais
na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil: o denominado movimento de contracultura tinha
por características a valorização do exótico, do diferente, da busca pelo original, da volta às
raízes, da recuperação das origens. Nesse contexto, aufere visão pública e popularidade o
Candomblé, por meio da música popular, do cinema, da literatura popular e das artes cênicas
(PRANDI, 1991).
É nesse momento econômico, social e cultural que ocorre a abertura de muitos
terreiros de Candomblé nas metrópoles brasileiras, refazendo a religião antes existente na
Bahia.
A Umbanda como religião organizada acontece por volta das décadas de 1920 e 1930,
num cenário marcado pela urbanização e industrialização do Brasil: os kardecistas de classe
média no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul passam a mesclar com suas práticas
elementos das tradições religiosas afro-brasileiras, professar e defender publicamente essa
mistura, com o objetivo de torná-la legitimamente aceita como uma nova religião. Pais e mãe-
de-santo vão sistematizar a Macumba, dando a ela o nome de Umbanda, ressemantizando,
organizando racionalmente, criando religião, ciência e filosofia.
No século XX, nasce a Umbanda como religião brasileira, resultante do encontro das
tradições africanas, indígena (culto aos caboclos), espíritas e católicas. Como universal, surge
dirigida a todos; porém, traz a tendência a apagar o legado como matriz negra, principalmente
no que se refere aos modelos de comportamento e mentalidade que denotem a origem tribal e
70
depois escrava. Conserva, porém, no seu panteão a incorporação de caboclos e pretos-velhos
durante as cerimônias de transe. Os orixás se encontram sincretizados com os santos do
catolicismo popular. Da tradição espírita (Kardecismo francês), a contribuição se relaciona às
virtudes da caridade, do altruísmo, da evolução espiritual e à comunicação com os espíritos
dos mortos pelo transe. A Umbanda, por sua herança kardecista, preserva a noção do bem e
do mal como dois campos legítimos de atuação, mas trata de separá-los em departamentos
estanques, uma linha considerada de direita – a mesa branca – e a de esquerda – a Quimbanda
(PRANDI, 1996).
O Espiritismo influenciou a Umbanda com a crença na reencarnação. Acredita-se que
os espíritos passam por sucessivas encarnações, sempre dotados de livre-arbítrio; com a lei do
carma, a cada encarnação na terra os espíritos colhem os frutos das boas ou más ações
praticadas no passado. Legitimadora de uma atitude racional e cientifica, passam a valorizar a
escrita e a leitura no contexto religioso. É imposto um plano organizacional de atuação em
federação, confederação e centros espíritas de Umbanda. Diversos grupos que compõem a
Umbanda buscam filiações a diferentes federações (ORTIZ, 1999).
A Umbanda como religião teve seus primeiros centros no Rio de Janeiro e em São
Paulo. O primeiro Centro de Umbanda do Rio de Janeiro teria nascido como dissidência de
um Kardecismo que rejeitava a presença de guias negros e caboclos, considerados espíritos
inferiores pelos espíritas. Logo se seguiu a formação de muitos outros centros desse
Espiritismo de Umbanda:
Ainda que as federações que reúnem os terreiros tenham tentado, no curso
dos últimos quarenta anos, desde os primeiros congressos umbandistas, essa
codificação continua difícil perceber as diferenças Macumba e Umbanda e
considerá-las dois blocos opostos (PORDEUS JÚNIOR, 2002, p.14-15).
Roger Bastide (1971), ao escrever As religiões africanas no Brasil, deixa evidente seu
descontentamento e suas críticas à falta de unidade da Umbanda, considerando-a de pouca
sistematização, marcada por heterogeneidade das práticas, individualismo dos chefes, falta de
preparo suficiente dos praticantes, ignorância lingüística, tendência a uma mistura disparatada
entre os elementos da Macumba e do Espiritismo. Para ele, a Umbamda deveria descobrir sua
forma, e um dos caminhos dava-se pela busca de uma codificação na filiação dos templos a
uma federação que atribua um mínimo de ordenação e de coerência. Considera equívoco,
porém, concebê-la como conjunto de crenças originárias de povos inferiores e incultos.
71
Na década de 1940, a Umbanda assume caráter de movimento religioso; isso guarda
relações com o I Congresso de Umbanda, em 1941, cujo propósito foi estudar a religião e
codificar os ritos de modo a garantir uma sistematização no âmbito da organização, expressa
através de canais oficiais, veiculadas pela editoração de livros – forma preferida para divulgar
a religião. Assim, a Umbanda se preocupou com a escrita e hoje conta com vasta bibliografia
sobre a identidade de suas entidades, descrição do seu panteão, seus preceitos rituais, suas
características e pontos – cantados.
Helena Concone (1987) estabelece algumas conexões entre o desenvolvimento da
Umbanda e os aspectos mais sociais na realidade brasileira. A década de 1930, quando
aparecem os primeiros registros dessa religião, é um período de grande repressão aos cultos
afro-brasileiros. Data dessa época a criação da Inspetoria de Entorpecente e Mistificação do
Estado Novo, que privilegiou o Espiritismo, fato que levaria muitos praticantes da Umbanda a
adotar designações dúbias na nomeação de suas práticas e de seus terreiros (Espiritismo de
Umbanda). No período posterior a 1945, a redemocratização do País leva a uma relativa
distensão nas relações entre a política populista e a Umbanda emergente.
A Umbanda, nos anos 30 e 40 do século XX, demonstrava uma preocupação com
posicionamentos éticos para se atingir a evolução, o progresso, o desenvolvimento pessoal e
social. Num Brasil que se urbanizava e industrializava, os segmentos populares careciam
integrar-se à sociedade de classe, buscando meios de garantir ascensão social. Foram buscar,
no entanto, os fundamentos no campo religioso na doutrina de Allan Kardec, que aceita os
espíritos supostamente primitivos das tradições afro-brasileiras e indígenas. No entanto,
insistem em alguns princípios, como a aposta na necessidade da evolução espiritual das
entidades, que deveriam evitar o fumo, a dança - podendo cantar, mas sem acompanhamento
de tambores, atabaques e outros instrumentos considerados “primitivos”.
Esse tipo descrito da forte influência do Kardecismo base ao Espiritismo de
Umbanda; porém, uma diversidade de tipificações da Umbanda, dentre elas a Umbanda de
Omolocô, resultado das sínteses do Candomblé e da Umbanda.
Caio de Omulu (2002), em seu livro Umbanda Omolocô, aponta que, num passado
longínquo, os povos bantos, em especial os angolanos, cultuavam o Candomblé de Caboclo-
Angola, que matizará a Umbanda. Para ele, a Umbanda tem diversas raízes e aposta no
resgate de uma tradição um tanto esquecida a Umbanda Omolocô. Reafirma, ainda, que ela
tem origem, história, visão teológica, fundamento e propriedade, possuindo aspectos que em
72
muito se aproximam do Candomblé de Caboclo e de Angola, principalmente no que concerne
aos ritos e às liturgias.
A Umbanda, alijada do status de Espiritismo, buscou adotar a racionalidade, no
sentido de garantir uma organização burocrática da religião inspirada no Kardecismo,
afastando a Umbanda de qualquer correlação com suas raízes africanas. A Umbanda Omolocô
procurou maior aproximação com as raízes africanas. Consiste numa síntese do Candomblé,
em relação ao culto aos orixás e seus fundamentos, com a Umbanda, no que se refere ao
trabalho com as entidades espirituais (caboclos, pretos-velhos, crianças e outros) (OMOLU,
2002).
A Umbanda Omolocô no Brasil, na atualidade, perde unidade, fazendo com que
coexistam vários “omolocôs” espalhados pelo País e fora dele, como mostra Pordeus Júnior
(2000a) em sua obra Uma casa luso-afro-brasileira com certeza: emigrações e metamorfoses
da Umbanda em Portugal. O autor reflete sobre a transculturação da Umbanda Omolocô
mediante a descrição da trajetória da instalação do terreiro Ogum Mege de Mãe Virginia
Albuquerque, em Lisboa, na década de 1970. Por meio da produção editorial, reinventa as
tradições, demonstrando um cuidado na difusão dos ensinamentos, rituais iniciáticos junto aos
filhos-de-santo e aos freqüentadores do seu terreiro.
Para Pordeus Júnior (2000a), a Umbanda de Omolocó se instalou em Portugal por
diversos fatores. O cenário de liberação política, as migrações nos anos 40 do século XX, as
práticas tradicionais do Catolicismo relativas à solução dos estados de aflição favoreceram a
reprodução, a manutenção e a inovação da memória da Umbanda em Portugal. As práticas
religiosas portuguesas denominadas populares mostram a capacidade de (re)criação no campo
religioso. A transculturação em momentos de mudanças social permitiu processos de
adaptações, redefinição de identidades e relação com os outros.
A Umbanda de Omolocô teatraliza na possessão de Orixás, Caboclos, Pretos
Velhos e Exus, a síntese oposta pretendida pela tão propalada “Umbanda
branca” em sua tentativa de ruptura com as tradições das religiões afro-
brasileiras. Essa outra síntese, Omolocô, põe lado a lado, em seu panteão e
seus rituais, o Candomblé e a Umbanda. Sendo Omolocô o que se instala em
Portugal. Posso então dizer que, ao textualizar o Omolocô, Mãe Virginia
assumiria o paradigma de um ideário português perdido nas brumas do
tempo, em termos do imaginário e suas concretizações, um Portugal-Africa-
Brasil em uma única unidade simbólica. (PORDEUS JÚNIOR, 2000a, p.
148-149).
73
A Umbanda de Omolocô relativiza os extremos complementares cultuando os orixás
com todos os ritos e as personagens da Umbanda e suas dramatizações. Pordeus Júnior
identifica a Umbanda em Portugal da Linha de Omolocô, que se africanizou, e valoriza o
Candomblé, que incorpora representações rituais “africanas” em princípio recusadas, quando
se tentou sistematizar a Umbanda como magia negra.
A Umbanda, em suas diversas tipificações, caracteriza-se pelas cerimônias como
“giras”, em que as entidades se apresentam através da incorporação dos médiuns. Dentre essas
entidades, tem-se caboclos, pretos e pretas-velhas, ciganos e ciganas, príncipes e princesas,
marinheiros, guias de luz, espíritos das trevas, encantados, orixás.
Depois de descrever sucintamente alguns aspectos das duas religiões, é correto
assinalar que o Candomblé e a Umbanda são práticas religiosas que sempre travaram
constante diálogo com outras matrizes formadoras da identidade brasileira, como a indígena, a
africana e a européia. Inserem-se fortemente na cultura brasileira, embora tenham sido
perseguidas até pelo menos a década de 70 do século XX. Essas religiões foram
historicamente reprimidas pelo peso do preconceito, da intolerância e da desinformação. São
acrescidas à perseguição algumas características próprias dessas religiões. Uma delas diz
respeito aos princípios e às práticas doutrinárias estabelecidas e transmitidas pela oralidade.
Mesmo considerando as publicações da Umbanda, não uma uniformização de suas
práticas. Assim, segundo Vagner Silva (2000), conhecer a história do Candomblé e da
Umbanda é conhecer o Brasil e os caminhos através dos quais a devoção brasileira fez
peregrinação.
No que concerne à perseguição, é possível enfatizar que os atos de intolerância
religiosa no Brasil datam do período da colonização, em 1526, quando desembarcaram no
Brasil as Ordenações Manuelinas e Filipinas, que praticaram a intolerância religiosa.
Consideravam a feitiçaria um crime, de modo a formatar para sua defesa todo um arcabouço
jurídico, legitimando a execução pública de várias pessoas, que, segundo eles, negavam Deus
(morte por enforcamento, pena de galé, dentre outras). Essas ordenações criaram um conjunto
de regras destinadas a reprimir a cultura e a religiosidade de matriz africana.
O Código Penal da República de 1890 criminalizava a capoeira porque estava
associada ou era uma derivação da religiosidade de matriz africana. Havia, até pouco
tempo, as chamadas delegacias de costumes, cuja função era a de reprimir a prostituição e
rejeitar e perseguir as religiosidades de base africana. São inúmeros os exemplos de leis que
obrigavam sacerdotes e sacerdotisas a pagar taxas de cadastros na Delegacia de Polícia,
74
submeter-se a exame de sanidade mental para obter laudo psiquiátrico produzido pelo
Instituto Médico Legal, dentre outras.
A organização das religiões de matriz africana no Brasil ocorreu com maior
intensidade com o fim da escravidão. Com mais liberdade, as populações afrodescendentes,
no contexto de industrialização e urbanização do País, encontraram condições sócio-históricas
propulsoras de maior contato, visibilidade e mobilidade, o que resultou na ampliação desses
grupos religiosos.
O aparato jurídico do escravismo se deu através das Ordenações do Reino – as
Afonsinas (1446-1521), as Manselinas (1521-1603) e as Filipinas (1603-1830). Por mais de
trezentos e trinta anos, elas combateram o crime e o criminoso através das leis de Portugal.
Puniam celebrações, propaganda ou culto que não fossem os oficiais: entre eles, enquadram-
se os de matriz africana, alvos primordiais durante o período colonial, imperial e republicano,
submetidos a sistemáticas perseguições pela força da Lei, do Direito Penal e das próprias
constituições (SILVA JÚNIOR, 2008, p.175). Os ataques na contemporaneidade continuam
sob novos contornos, com a alegação de poluição sonora e de crime de perturbação do
sossego, a acusação de praticar rituais macabros.
Pesquisando julgamentos de charlatanismo e curandeirismo no Brasil, desde
o início do século passado, Ana cia Pastore Schirtzmeyr (1997) observa a
freqüente associação entre tais delitos e práticas religiosas de origem
africana, vistas como bárbaras e primitivas. Devemos assinalar, ainda, no
campo do direito estadual, que no estado da Bahia a Lei 3.097, de 29 de
dezembro de 1972, obrigou, até o ano de 1976, as sociedades de culto afro-
brasileiro a se registrarem na Delegacia de Polícia da circunscrição. No
estado da Paraíba, a Lei 3.443, de 6 de novembro de 1966, subordinava o
funcionamento dos “cultos africanos” à autorização concedida pela
Secretaria de Segurança Pública, bem como à apresentação de prova de
sanidade mental do responsável pelo culto, mediante realização de exame
psiquiátrico (SILVA JÚNIOR, 2008, p.175).
A luta contra a perseguição às religiões afro-brasileiras obteve ao longo dos anos
resultados consideráveis, pois, na sociedade moderna, é idealmente inconcebível a
intolerância religiosa. Assim, essas religiões foram conquistando maior liberdade para realizar
suas práticas; no entanto, ainda hoje as perseguições sobrevivem. Em entrevista com a
representante de uma das entidades representativa da Umbanda em Fortaleza – União Espírita
Cearense de Umbanda – fica claro que a perseguição adquiriu novas roupagens. Como
exemplo, tem-se a exigência no cumprimento da Lei do Silêncio, de número 13.711/06, que
dispõe sobre a proteção contra a poluição sonora, proibindo a utilização de carros de som e
75
música em alto volume em bares e restaurantes. Pela Lei, qualquer cidadão que se sinta
incomodado pelo som alto pode ligar para a Polícia e pedir providências. O valor da multa
para quem descumprir essa lei é de 100 UFRIRs (pouco mais de R$ 100,00). Assim, alguns
terreiros são notificados, e são cobradas de pais e mães-de-santo multas de elevado valor. Na
condição de associados, eles recorrem à União para resolver o problema. A tendência é de os
chefes dos terreiros fecharem o terreiro ou continuar a vida religiosa na ilegalidade. Muitos
põem em xeque a legitimidade da União:
E as multas vêm pra cá. (...) eu tou com uma multa de uma mãe-de-santo
do Jardim Oliveiras de 3.400,00 (três mil e quatrocentos) reais, no
Fórum. Vem pra mim resolver. Se você é sócia daqui, você tem como se
diz? o alvará, que é o registro de funcionamento, tem o Diário Oficial de
Brasília, tem certificado de cartório. Você tem o registro daqui, então quem é
responsável? É a Presidente (...). E quando chega aqui, tem deles que diz:
“Oh, Mãe Suzana, de que serve essa merda?”, na minha cara. “De que serve,
a polícia foi em casa essa noite e acabou com minha festa, quebrou o bolo
do seu Zé Pilintra” e tal. Vem pra cima de mim, minha filha. È um sacrifício
de vida. É perseguição religiosa, porque no Jardim das Oliveiras o que é que
tem um tambor passar de dez horas da noite, distante, num perturbando a
ninguém. Pois é, eu tou com esse problema, eu tou com uma advogada com
essa mãe-de-santo, ela resolvendo, eu não sei como é que vai ficar ainda,
mas acredito que ninguém vai pagar, porque eu num tenho condições de
pagar. (MÃE SUZANA, agosto de 2008)
Casos de perseguições ainda chegam à União com sérios desdobramentos. Elas
advêm, além da polícia, dos evangélicos, principalmente pentecostais e neopentecostais.
Diante das contradições de um Estado laico, da luta pelo respeito à diversidade
religiosa, essas religiões vivem e sobrevivem porque respondem às demandas das pessoas,
não daquelas que congregam, mas de todas que buscam respostas para seus problemas. As
demandas são inúmeras: de ordem financeira, ante o desemprego; a busca por saúde, paz
familiar, acertos conjugais, amor; proteção do corpo contra a inveja, a maldade e a
perseguição dos inimigos, dentre outras. O Candomblé e a Umbanda, como práticas rituais,
não pressupõem a conversão de quem os procura para responder às suas necessidades.
Após a explicitação dos aspectos estruturais e históricos do Candomblé e da Umbanda
na sociedade brasileira, tratarei, no item seguinte, da memória histórica da Umbanda na
realidade cearense, de modo a perceber a especificidade que essa religião considerada afro-
brasileira assume num contexto de um Estado de maioria católica e no qual historicamente
ocorreu a negação das tradições indígenas e negras.
76
2.2 Memória histórica da Umbanda no Ceará
A Umbanda, considerada uma religião brasileira e já mais integrada à sociedade
envolvida, tem sido muito estudada nos últimos anos. Em particular, meu interesse foi o
estudo da Umbanda em Fortaleza e Área Metropolitana.
Trabalhos como o de Ismael Pordeus Júnior (2002) subsidiam minha pesquisa aqui, na
realidade cearense, por tratar da memória e da identidade na Umbanda cearense e suas
mutações, da representação como conhecimento socialmente elaborado e socializado num
determinado conjunto social. Para o autor, o patrimônio cultural está vivo nas pessoas e, para
que as lembranças permaneçam, é necessário que essa memória seja articulada. Apresenta a
memória histórica das possíveis matrizes do Espiritismo de Umbanda, com as especificidades
do Ceará como religião brasileira marcada por contradições, incompletudes, parcialidades na
codificação de seu repertório conceitual, de seus sincretismos.
Roger Bastide (1971), tratando da geografia das religiões africanas no Brasil,
considera que todo o Norte e Nordeste foi domínio do índio, com exceção do Maranhão, por
conta da forte influência daomeana
1
. Nesse sentido, cabe o reconhecimento do índio na
religião popular dessas regiões, como a Pajelança no Pará e na Amazônia, Encantamento no
Piauí, Catimbó nas demais áreas. Para o propósito deste trabalho, torna-se relevante, no
campo religioso, a forte influência que o Ceará recebeu do Catimbó, este proveniente do Piauí
e do Maranhão.
Para descrever a memória histórica da Umbanda no Ceará, faz-se necessário tratar um
pouco do Catim como religião também afro-brasileira. O primeiro esboço do Catimbó
durante as origens da colonização foi a Santidade, culto que tinha o cerimonial marcado pelo
sincretismo de elementos cristãos (como a Igreja, a adoração a um ídolo, o rosário, as cruzes,
a procissão, dentre outros) e elementos indígenas (culto aos caboclos).
Roger Bastide (1971) considera que a aceitação dos africanos e de seus descendentes
do Norte e parte do Nordeste brasileiro no Catimbó decorre do fato de eles terem
experiência com o culto aos ancestrais em Angola. Essa religião começa a existir após a
desagregação da festa da tribo penetrada por elementos católicos, como a Jurema primeira
coletividade, quando nada mais subsistirá da antiga solidariedade tribal e os mestiços estarão
1
Os daomeanos (beninenses atuais) aqui chegaram nos séculos XVIII e XIX, e foram chamados no Brasil de
jeje. Os cultos religiosos de influência daomeana referem-se aos vodus, considerados discretos e perigosos.
(BASTIDE, 1971).
77
dispersos ou urbanizados, presos nas malhas da nova estrutura social. O universo cosmológico
dos bantos pautava-se em uma mentalidade animista, continha elementos que, se não eram
suficientes para se fundir ao Catimbó, podiam ao menos justapor-se a ele, como a crença nos
espíritos, seres espirituais ligados à floresta, aos rios, às montanhas, aos pântanos e às grutas.
Os africanos, aqui chegando, passaram a cultuar os deuses locais. O Catimbó, com essa
justaposição, passa a criar, como a linha indígena, a linha africana de caboclos e encantados.
O Catimbó chegava a funcionar na residência do catimbozeiro, utilizando-se da
mobília da casa para montagem do altar, contando com o uso de aguardente, charutos,
pequenos arcos, perfumes, imagens de santos ou crucifixos. O instrumento musical era o
maracá. As cerimônias serviam para atender demandas individuais nos diversos campos:
amor, cura, fortuna, combate ao inimigo, abertura de caminhos etc. O Catimbó é uma das
religiões afro-brasileiras mais antigas na região Nordeste. É uma religião de possessão por
espírito, principalmente de mestre e caboclos, que tem como principal atividade propiciar a
consulta e a cura.
Assim, a Umbanda no Ceará guarda relações fortes com o Catimbó, que descende da
pajelança dos índios. A ele se associam os elementos do costume negro. Quanto às religiões
afro-brasileiras aqui no Ceará, antes do que se denominou Espiritismo de Umbanda, segundo
informações dos adeptos, havia as práticas denominadas Catimbó, que recebem depois a
denominação de Macumba.
O interesse de Pordeus Júnior está no momento de ruptura do Espiritismo de Umbanda
com as práticas que lhe deram origem – a Macumba – guiada pelo propósito de verificar quais
modificações foram necessárias no campo das representações, das crenças expressas por via
dos mitos e dos ritos apropriados como quadro de referência e ao nível dos agentes, que
produzem, difundem e manipulam tais representações (2000a, p.42).
Com a secularização, houve o “retraimento” do sagrado diante do predomínio da
razão, das explicações científicas do mundo e não-religiosas na Modernidade. Para alguns
estudiosos do fenômeno religioso, no entanto, no último quartel do século XX, as religiões
têm se revitalizado, expandindo e multiplicando consideravelmente o fenômeno da
dessecularização ou seja, com a capacidade da religião de resistir ao ataque cerrado da
Modernidade, tem-se seu retorno revigorado, o que traz novas demandas para o campo da
Sociologia da Religião.
É interessante analisar o papel da religião no mundo contemporâneo. o se trata de
seu desaparecimento em meio ao processo de secularização, diferentemente do que se previa.
78
Houve um crescimento religioso, com transformação do estatuto do sagrado. Assim,
assistimos à proliferação das opções religiosas, liberação da sociedade do controle
institucional da religião.
A Umbanda surge nesse contexto, procurando determinar suas leis, com poder de se
organizar dentro de certas condições e limites que a possam legitimar como religião, tendo
autonomia a respeito da interpretação religiosa do mundo, sem controle institucional.
A religião não termina com a secularização, pois adquire novos contornos e formas,
numa dinâmica na qual, ao mesmo tempo em que se esgota, se dilui, renasce, ressurge e se
diferencia. A Umbanda representou um sinal dessa nova recomposição sob novas formas do
campo religioso. Agora não mais se trata de grandes sistemas religiosos que abarcavam o todo
social, num contexto de industrialização e urbanização do Brasil.
Os adeptos da Umbanda buscam compor para si um mundo com sentido marcado pela
ressignificação, numa bricolagem, sem marcos totalizantes. A religião não se perde na
sociedade moderna marcada pela racionalidade, mas é objeto de uma metamorfose.
O propósito de Pordeus Júnior (2002) é mostrar como ocorreu a mutação da Macumba
ao Espiritismo de Umbanda, tendo como substrato a memória e a história oral dos
umbandistas. Dentre seus interlocutores da pesquisa encontra-se Mãe Júlia Condante, uma das
mais antigas mãe-de-santo do Ceará a se preocupar com a codificação da Umbanda. As duas
entrevistas são dos anos 1978 e 1979. Esse material foi de suma importância para meu
propósito de, passados trinta anos, compreender e analisar o significado da maternidade
espiritual das mães-de-santo da Umbanda. Abre a possibilidade de refletir sobre a trajetória da
Umbanda no Ceará à luz de um jeito singular de Mãe Júlia Condante exercer o sacerdócio.
Na Macumba, é perceptível a incidência de uma influência africana; no entanto, o
processo mutante em direção à Umbanda. O primeiro passo da mutação em direção à
Umbanda ocorreu em 1954, quando da criação da Federação Cearense de Umbanda por e
Júlia. Sobre esse aspecto, tratarei mais detalhadamente no capítulo de biografia de Mãe Júlia
Condante.
De 1950 em diante, pode-se constatar que o mero dessas federações se multiplica
nos planos municipal, estadual e nacional. No que concerne ao Ceará, foi com Mãe Júlia que
se abriu essa preocupação com a codificação da Umbanda, do Espiritismo de Umbanda. A
Macumba utiliza o nome da Umbanda para se legitimar, do mesmo modo que a Umbanda
emprega a designação de espírita, com objetivos similares, em relação ao Espiritismo
kardecista (PORDEUS JÚNIOR, 2002).
79
O Espiritismo de Umbanda predominou essencialmente nas periferias dos grandes
centros urbanos, tendo como adeptos as populações pobres. Absorveu no seu panteão práticas
religiosas da Macumba
2
, embora tenha tentado uma ruptura com as práticas que lhe deram
origem ao apostar em modificações no terreno das representações e crenças.
O Espiritismo de Umbanda integra sua ideologia e seus rituais às práticas de tradição
afro-brasileira e indígena, sendo maior a aproximação aos princípios doutrinários do
Espiritismo de Allan Kardec. Como religião de possessão dos médiuns pelos espíritos
desencarnados, legitima o pensamento do Kardecismo quanto às idéias de evolução dos
espíritos e de suas sucessivas encarnações até tornarem-se espíritos evoluídos ou “de luz”.
Buscavam legitimação como religião ética, voltada para o bem, para a caridade e para a
verdade, ligada à linha branca da Umbanda, e negando o seu contrário – a Quimbanda.
Rechaçava os espíritos obsessores, típicos das práticas afro-brasileiras, como os exus que
integram a Macumba.
O depoimento seguinte ilustra bem essa perspectiva na posição de Mãe Júlia Condante
e de outras mães-de-santo, nos anos de 1950, de aversão a trabalhar com Exu.
Quando eu comecei a andar por terreiro porque na minha mãe-de-santo
não tinha tambor – não tinha maracá, quando baixava um preto-velho dela, o
Pai Gemirim, (...) e o seu Sete que era, como se diz, era o anjo da casa, era
bem baixinho. (MÃE ANITA, julho de 2008)
Essa realidade de negar a matriz negra e indígena modifica-se ao longo dos anos;
porém, quando nos referimos às religiões de base afro-brasileira no Ceará, nos deparamos de
forma direta com um discurso legitimador de que neste Estado foi parca a influência dos
africanos e de seus descendentes. Pordeus Júnior assinala que:
Outro dado importante na compreensão da não permanência da memória
africana, no Ceará, seria encontrado provavelmente nas explicações do papel
exercido pela Igreja Católica, em terras cearenses, se tornando visível
principalmente nos dois grandes centros de romaria: o de Padim Cícero, em
Juazeiro do Norte e o de São Francisco de Canindé (2002, p.12).
Sobressai na realidade cearense uma sociedade em que a população negra e indígena
sofre o processo de invisibilidade. A Umbanda, como uma religião afro-brasileira, não se
2
O termo Macumba, tendo indicado anteriormente um instrumento musical de origem africana utilizado nos
terreiros afro-brasileiros, tomou o sentido genérico para designar algumas religiões principalmente àquelas de
tradição banto, modificadas pela influência angola-congo (PORDEUS JÚNIOR, 2000a, p.41).
80
destacou na preservação das marcas africanas; contudo, essas dimensões esquecidas vão
aparecer de formas diversas, que merecem ser analisadas. No Ceará, a população negra foi e é
presente. Entretanto, ações e construções ideológicas foram postas em prática, afirmando que,
com o fim da escravidão, as tradições e a cultura não tiveram tanta preponderância na
formação sócio-histórica cearense. Nesse aspecto, vale interpretar como as etnias
discriminadas – não só do indígena, mas também do negro – utilizaram o espaço ritual
religioso aqui no Ceará, especificamente, na Umbanda.
Poderíamos levantar, para o negro, a mesma hipótese em relação ao índio,
que utilizaria o espaço ritual da Umbanda para pôr em performance sua
etnicidade situacional recusada. Mesmo com o movimento de “reetinização”
porque passam esses grupos, todo o Nordeste, e, particularmente no Ceará,
esse espaço caboclo/índio permanece na Umbanda (PORDEUS JÚNIOR,
2002, p.71).
No Ceará, a Umbanda durante muitos anos tentou apagar, esquecer as contribuições de
negros e índios, rejeitando entidades como os exus, embora hoje inclua todos em seu panteão.
Os adeptos constroem formas subterrâneas de conviver com formas de legitimação da
Umbanda, instituindo “lugar de poder”.
As invenções cotidianas representam as diferentes formas de os adeptos da Umbanda
se ajustarem aos discursos legitimadores de uma ordem. Nos anos 1950, na busca de
codificação da Umbanda, eram postas formas de reorganização que valorizam o Espiritismo e
rejeitam as origens indígena e negra. Atualmente, outras invenções se fazem presentes quando
se trata de legitimar a religião. Em meio ao que muda e ao que permanece, são criadas outras
práticas e saberes na concretude da vida cotidiana desses grupos.
Isso leva a pensar a forma como se afirmam a tradição e a mudança de atitudes, de
crenças e de comportamentos. As transformações na ordem social, econômica e política
incidem na nossa cultura, repercutindo em conflitos, contradições, adaptações, recriações e
permanências.
No estudo sobre as religiões afro-brasileiras, em particular na análise acerca da forma
como é desenvolvido o sacerdócio das mães-de-santo na Umbanda, vem à tona a discussão
sobre o tradicional e o moderno. Nesse aspecto, torna-se adequado trabalhar com a história
oral, pois, através dos depoimentos falados, pude verificar a forma com que garantem o
moderno como desejável, atingível, benéfico, superior cultural, político e socialmente, ou
como o negam. Numa perspectiva da Nova História, o tradicional tem possibilidade de
81
encontrar uma direção própria, revelando suas singularidades. Para tanto, carece reconsiderar
o tradicional.
Compreender a Umbanda hoje em Fortaleza e Região Metropolitana faz pensá-la em
movimento, que não está condenado a ser eternamente o mesmo, pois abre margem para as
mudanças. Significa atribuir um sentido de História, pois ela se move em diferentes direções.
Cabe apreender a Umbanda considerando a dinâmica em seus próprios termos, o que muda e
o que permanece em sua singularidade. Na esteira desse entendimento, são elucidativos os
depoimentos dos interlocutores da pesquisa, quando solicitados a dizer como percebem a
Umbanda hoje.
Mãe Anita considera que a Umbanda passou por muitas mudanças. Para ela, parte
dessas modificações pode prejudicar a legitimidade da religião, como a utilização de
palavrões por parte dos agentes em possessão e a demora em efetivar-se a cura:
Mudou demais. Ela mudou em vários sentidos. Hoje eu ignoro muito
aparelho trabalhando, coisa que não possa ser não é do nosso ritual. Não é,
(...) o caboco vem de qualquer falange, seja pra lhe dar um conselho, pra lhe
orientar, não é como eu vejo hoje, palavrão, sai palavrão. Não me
acostumo, não. Não faz parte da minha Umbanda que eu conheci. (...). Outra
coisa, quando eu comecei na madrinha, Espírito Santo é o que via nela,
quando ela estava curando, ela era curandeira de criança, começava três
horas e terminava sete horas da noite, era assim, a melhor curandeira era ela
e a Dona Maria Gadelha. Era aquela coisa, chegasse uma criança: “Minha
filha, eu vou rezar, porque é minha obrigação”. O caboco dizia: “Minha
filha, eu vou rezar neste curumim porque é minha obrigação, mas ele tem
pouco tempo na Terra, ele num vai ficar na Terra, é daqui a três tempo,
terminou o tempo dele na Terra”. E a gente via acontecer. Eu cansei de ver
na minha mãe-de-santo, chegava uma criança cansada, caboco dizia: “Minha
filha, me pegue um pedaço de casca da fruta do Oxossi”, que é a laranja e
media daqui pra (...) e mandava torrar, “torre, pile e faça o chá com areia
doce”, que areia doce é o açúcar, e seu filho, num mais nada, retire
todos os remédios do homem do anel”. É o que eu num vejo mais. É a cura
hoje, agora eu me queixo, quer dizer, eu ainda vejo muitas curas ser feita,
não rápida, demorada, eu acho que seja assim maldade de alguém,
pensamento que num deixa entrar energia sagrada. (MÃE ANITA, julho de
2008)
É notável no discurso de Mãe Anita seu desejo de chamar a Umbanda para cumprir
sua missão como religião ética, voltada para fazer o bem, assimilar a dimensão inclinada para
a caridade e a verdade. Faz questão de distingui-la do lado das vibrações negativas, do
trabalho para o mal, para a destruição, numa rejeição às práticas condenáveis. Reivindica o
poder gico, a magia como trabalho numa dimensão do sagrado, quando considera que,
82
embora haja a cura, ela mudou bastante, e tem solicitado muito tempo para resolver
determinadas demandas.
Outro aspecto ressaltado quanto ao que muda e ao que permanece na Umbanda, foi
apontado por Mãe Constância. Para ela, com o passar dos anos, a Umbanda perdeu e ganhou
alguns pontos. Considera positiva a maior liberdade que adquiriu por meio de luta dos
umbandistas. Por outro lado, tem se tornado complicado o que os umbandistas fazem com
essa liberdade, podendo inclusive comprometer a legitimidade da religião no cenário
contemporâneo.
Aí, a Umbanda no Ceará eu acho que é uma Umbanda muito difícil. E hoje,
digamos assim, a história da Umbanda foi assim muito sofrida aqui. A gente
sabe, acho que lhe falaram sobre isso. Mãe Júlia quem abriu as portas
aqui pra Umbanda no Ceará, foi com muito sofrimento, daquela época havia
muita perseguição e tudo mais. E mas hoje em dia existe a liberdade de
culto. (...) Naquela época a preocupação era com a perseguição. E hoje a
preocupação é com a liberdade (risos) A liberdade virou... Ficou muito
grande hoje em dia. (...) A Umbanda hoje em dia muito sem crédito,
pessoas que usam da Umbanda para fazer gatos e sapatos. Enxovalharam a
Umbanda. Eu acho que enxovalharam a Umbanda. (MÃE CONSTÂNCIA,
julho de 2008)
Parte considerável dos colaboradores da pesquisa ressalta como mudança o
entrelaçamento da Umbanda com o Candomblé.
(...) havendo essa união, quer dizer, hoje em dia as pessoas nem sabe mais
se são de Umbanda ou se são de Candomblé. É, porque de repente ele se
sente envolvido nos dois. Um dia desses, a gente tava conversando numa
reunião, e eu tava dizendo que eu tou achando que aquela Umbanda de
cinqüenta anos atrás, aquela Umbanda que a Mãe Júlia praticava, ela não
está sendo mais praticada. Não es mais. alguém disse assim: “Tem
como modificar?” Não. Ninguém anda de costa. A coisa além. um
lado bom e um lado ruim. O lado bom é porque mais abertura, mais
inteligência, mais perspectiva de trabalho. Mais esclarecimento, não é isso?
E o lado ruim é que há menos espiritualidade. (MÃE CONSTÂNCIA, julho
de 2008).
Da Umbanda saem os adeptos que se inscrevem ou se iniciam no Candomblé em
Fortaleza. Segundo informações de alguns babalorixás
3
, ialorixás
4
e iniciados, não havia
Candomblé no Ceará, como grupo constituído, até 1962.
3
Sacerdote chefe do terreiro de Candomblé.
4
Sacerdotisa encarregada da direção de um Candomblé (em português e resultante do sincretismo, corresponde a
mãe-de-santo).
83
O Candomblé é até uma religião recente no Ceará. Na minha época de jovem
não existia Candomblé, a gente ouvia falar em Candomblé na Bahia,
Salvador, Mãe Menininha era a referência. Aqui existia Umbanda. Então, eu
sempre freqüentei terreiro de Umbanda, eu achava bonito, ficava olhando.
Eu tinha medo de incorporar alguma coisa porque a incorporação na
Umbanda é bem diferente do Candomblé. (MÃE LÚCIA, agosto de 2005)
É interessante ressaltar o momento histórico da chegada do Candomblé no Ceará e a
forma como ocorreu a relação com a Umbanda. Como resultado do movimento da
contracultura, abriu-se a possibilidade de ampliar os conhecimentos religiosos sobre a visão
de mundo africana, mediante o culto aos orixás, num ritual mais complexo.
Não é difícil encontrar, em muitos dos terreiros de Candomblé da Capital e Área
Metropolitana, um espaço para as entidades cultuadas na Umbanda. Os ialorixás e
babalorixás explicam que deixam aquele espaço reservado, pois que muitos dos seus filhos e
filhas-de-santo são de Umbanda e recebem suas entidades.
Para alguns adeptos do Candomblé, essa religião chega ao Ceará na década de 1970 e
início dos anos 1980. Surge como possibilidade de maior abertura no exercício das funções
religiosas, do contato direto com a natureza, estimulando a preservação do meio ambiente,
numa vida ecologicamente correta e sustentável para os humanos e para o Planeta, com mais
mistério e magia.
Ser iniciado do Candomblé significa uma possibilidade de não sofrer o preconceito e a
discriminação tão comuns na Umbanda. O depoimento seguinte expressa a forma como uma
mãe-de-santo da Umbanda tenta evitar problemas futuros para suas filhas e netas biológicas:
Essa minha filha (...) é feita no Ketu, ela é filha de Oxalá, essa neta é feita no
Ketu, com cinco anos é filha de Nanã. E assim, fiz no Ketu pra elas não
terem os problemas que eu enfrentei de preconceito. Então, como o Ketu é
uma nação que vai crescer a cada dia, eu prefiro que eles sejam do Ketu do
que sejam da minha nação. Porque é muito complicado. (MÃE MONA DE
OIÁ, janeiro de 2009)
É interessante notar quais fatores levam as mães e pais-de-santo a se iniciar no
Candomblé. Certamente é algo ligado à busca de legitimação. As religiões mantêm a tradição;
contudo, inovam, reinventam, por questão de sobrevivência, haja vista o ser a cultura algo
estático, havendo uma dinâmica que é contextual.
84
Nesse sentido, é ilustrativo o seguinte depoimento de mães-de-santo sobre a
aproximação ou a iniciação no Candomblé:
Houve porque meu filho morreu, eu fiquei... Eu me arrasei, fiquei sem
ânimo. Eu num cantava nenhum ponto de caboclo ali dentro. Cantava não,
eu começava a chorar. a Claudete vivia na casa do Olegário, que era pai-
de-santo. E dizia: “Mãe, chame o Pai para vim dar uma obrigação para
senhora”. Eu digo: “Não, quero não”. Ele é uma pessoa ótima, pessoa muito
boa. Ele chegou e disse: Véia, uma obrigação, que eu acho que você sai
desta”. “Eu saio não, Olegário” (...). Era uma tristeza, minha vontade era só
de chorar, e comer nada. Ele pelejou, pelejou, pelejou, então eu fui. Dei
obrigação com o Olegário, dei obrigação. Ele me deu minha obrigação muito
bem dada, pois eu sai daquela, agradeço isso a ele. (MÃE STELA, julho de
2008).
Adeptos de Umbanda e pais e mães-de-santo recorrem à nova religião
o Candomblé
como algo a ser acrescentado, para uns, ou como mudança de religião, para outros.
Relacionam muito a casos de doenças ou a convites de seus pais e es-de-santo que os
iniciaram no Candomblé.
É, eu não misturo. Tenho respeito, amo, gosto da religião, por ela eu faço
tudo. Eu tive em roda de santo, passei bem uns seis anos, porque quem me
eborizou era do santo. E eu tinha todos os meses de estar na roda de santo, é
uma religião que eu adoro, amo, acho bonito, o ritual maravilhoso, que o
santo num canta, (...) nós é quem canta e dança pra ele, mas eu vi que eu não
ia chegar até lá, não ia agüentar o ritual. Porque no preceito de santo de
Candomblé, na roda de santo de Candomblé você cansa, porque o santo
dança e todo mudo se abaixa, outro toque todo mundo se levanta. Eu via que
num ia chegar até lá, tambémo era obrigada, era obrigada assim quem me
eborizou era de santo, então ele fazia de mês em mês, mas foi o tempo que
ele passou (...). Aí pronto, eu fiquei só na minha Umbanda, ele era da
Umbanda. A Umbanda dele batia duas vezes na semana e o santo uma vez
no mês, enquanto eu estava no poder dele, eu ia, ficava, tinha de ficar
com ele. (MÃE ANITA, julho de 2008)
Ou ainda:
Dei continuidade com a Mãe Júlia, até quando a Mãe Júlia morreu, aí foi que
eu passei pro Candomblé. Um senhor que era filho-de-santo de Mãe Júlia na
Umbanda, ele era militar e foi para o Rio de Janeiro, ele ingressou no
Candomblé. ele deu as obrigações dele no Candomblé. Quando ele
voltou a Fortaleza, ele passou a voltar o relacionamento dele com a e
Júlia e tudo mais. Ele já pai-de-santo de Candomblé, a história já se inverteu,
ele tava fazendo as coisas para a Mãe Júlia. A Mãe Júlia estava
exatamente com uns problemas de saúde, ele fez uma coisa pra ele. E aí Mãe
Júlia morreu e ele tomou de conta da parte espiritual e dos rituais que era
necessário fazer e tudo, e depois ele fez uma reunião e disse os filhos-de-
santo que quisessem acompanhar ele, ele estava pronto para abraçar. Mas
não fizemos obrigações de mãe-de-santo e nem de pai-de-santo de
85
Candomblé, fizemos apenas obrigações para dar continuidade à nossa
história de vida. Aí depois a Stela foi para o Olegário e eu fui para o Torodé.
(MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008).
Entrevi que Mãe Stela e Mãe Anita são mães-de-santo que foram para o Candomblé,
mas se consideram mãe-de-santo da Umbanda. Dizem que respeitam, mas entendem que o
culto, o ritual no Candomblé, é diferente e exige grandes esforços físicos, algo que elas não
têm mais como praticar. Ao mesmo tempo, expressam o fato de que conseguem passar horas
e horas na giras de Umbanda sem cansar tanto. A burla dessas mães-de-santo reside no ponto
em que vão para o Candomblé por ser exigência do pai ou mãe-de-santo delas, mas preferem
a Umbanda e nela permanecem.
Denomino “burla” as microrresistências, quando justificam a não-inserção total no
Candomblé no decorrer da velhice, das dores físicas, do cansaço que invadem as mães-de-
santo de participar mais das “rodas de santo”. São adeptas não-passivas diante do discurso
presente nas religiões, de que, para ganhar legitimidade, o fiel deve iniciar-se no Candomblé.
Diante desta imposição, percebo que criação, desvio, invenção cotidiana de práticas no
campo religioso, em que cada um procura sobreviver do melhor modo possível à ordem
imposta (CERTEAU, 1994).
Durante as primeiras entrevistas, Mãe Stela não expressou nada referente à sua
inserção no Candomblé, pois tinha, na ocasião, o objetivo de elaborar da biografia de Mãe
Júlia. Senti que precisava refletir sobre esse silêncio. No momento posterior da pesquisa,
quando solicitei que falasse daquele assunto, ela contou os motivos que a levaram a dar
obrigação no Candomblé.
Eu raspei
5
Iansã com o Olegário. Mas no Aluízio eu não raspei, dei
obrigação porque não pode mais tirar ele do posto que ele pra butar para
trás. ficou, eu dei a obrigação, passei os sete dias na esteira e usei dois
quelês, um pra Ogun e outro pra ela. E tudo quanto for fazer pra ela, eu
tenho de fazer pra ele. Se eu butar uma vela pra ela, tem que butar pra ele.
Pra ele num me cortar mais tarde. Eu num posso ficar em e nem pra
mim dançar, não. Agora, engraçado que eu na Macumba danço e faço e
aconteço, mas no Candomblé não dá. (MÃE STELA, julho de 2008)
5
Raspar o santo é termo um próprio das religiões afro-brasileiras, principalmente no Candomblé. Diz respeito a
cerimônia de feitura no santo, “fazer a cabeça”, pois na cabeça se concentra a energia mediúnica do iniciado.
Representa um novo estado evolutivo espiritual do filho ou filha-de-santo (VOGEL; MELLO; BARROS, 1998).
86
Trabalhar com a memória individual e perceber quais contextos sociais a formam me
fez ressaltar a função do não-dito; o lugar do silêncio que não significa esquecimento, mas o
trabalho seletivo da memória. Percebi, durante as entrevistas orais, que havia zonas não-ditas
de sombra e silêncio quanto à inserção dos adeptos da Umbanda no Candomblé. Essa
tipologia de discursos, silêncios, alusões e metáforas é moldada pela angústia de não
encontrar uma escuta, de ser punida por aquilo que diz; de modo geral, demonstra cautela para
não ser mal-entendida.
No caso de Mãe Stela, durante as entrevistas cujo objetivo central era construir a
biografia de Júlia Condante
sua mãe-de-santo da Umbanda
percebi que ela não considerou
adequado falar da sua entrada no Candomblé, lembrando somente as minúcias da vida na
Umbanda. Relatou o significado e a importância de sua mãe espiritual em sua vida, bem como
se lembrou da forma como a herança fora transmitida, de como se tornou líder do terreiro de
Ogum, ou seja, sua narrativa assinalava o comprometimento e envolvimento com a Umbanda.
Ela pode ter considerado que afirmar ter sido “oborizada” no Candomblé era algo que
não deveria ser posto naquele momento, não era material importante a me despertar interesse
na pesquisa. Para ela, eu, na condição de pesquisadora, estava interessada em saber da
Umbanda; valeria então narrar algo de afirmação desta religião, não algo que pudesse ser
entendido como elemento de fragilidade, podendo, inclusive, ser interpretado como religião
de menor legitimação. Assim, naquela circunstância, ocorreu a emergência de certas
lembranças, cuja ênfase voltou-se para tratar do aspecto dela como adepta da Umbanda.
A pesquisa revelou que, no momento atual, a Umbanda no Ceará, em específico em
Fortaleza e Região Metropolitana, está cada vez mais se transformando em Umbandomblé”.
Este fenômeno não é característico do Ceará, mas também o encontramos em São Paulo e
Rio de Janeiro, onde um número considerável de pais e mães-de-santo da Umbanda busca se
iniciar também no Candomblé. Denomina-se Umbandomblé aqueles terreiros que
“trabalham” com as entidades da Umbanda e com os orixás do Candomblé, mas que têm por
modelo ritual o Candomblé. Os sacerdotes e as sacerdotisas garantem que guardam os espaços
para tais entidades na lateralidade de seu terreiro, pelo o terreiro ser de Candomblé.
Muito dos adeptos passam a freqüentar as duas religiões. Alguns sacerdotes e
sacerdotisas mantêm entre si relações de troca e interação quanto aos filhos que fazem a
iniciação, aos orixás e entidades “donos da cabeça” do futuro iniciado.entre eles uma rede
de interação na qual sacerdotes e sacerdotisas conversam, socializam informações e dúvidas
87
quantos aos rituais, práticas dos filhos-de-santo, características e fundamentos para fazer
nascer ou se desenvolver as entidades e orixás dos seus filhos e filhas-de-santo:
Até porque tem mãe-de-santo aqui, dona Anita, que é de Xangô, uma mãe-
de-santo muito antiga, que eu tenho um respeito muito grande a ela. Ela é tão
sábia ao ponto de saber que determinados filhos-de-santo que estejam na
casa dela e que precisem fazer Orixá, ela encaminha para uma casa de
Candomblé, pois ela não mexe em raspar santo de ninguém, porque ela é de
Umbanda. Ela fala, aconselha que eles vão. (PAI ALUÍZIO DE XANGÔ,
julho de 2008)
No depoimento pai-de-santo do Candomblé, Pai Aluízio é evidente seu apelo para que
os sacerdotes e sacerdotisas da Umbanda não atrapalhem o desenvolvimento espiritual de
quem por eles procure, tendo consciência de alguns limites que possam ter quanto à feitura da
entidade ou orixá “dono da cabeça” do adepto. Chama atenção dos umbandistas também para
a valorização da sua religião, evitando um envolvimento maior, via “propaganda” apenas do
aspecto externo do Candomblé.
(...) que também haja essa consciência dentro dos pais-de-santo de
Umbanda, quando você achar que é um orixá que não tem dentro do seu
culto, existem várias vibrações de orixás como Ewa, Ossaim, Obá, Logun
Edé. Também não empate o caminho de vida do orixá de seu filho,
aconselhe eles irem ao Candomblé que eles não vão perder um filho não,
eles vão ganhar um orixá para ajudá-los. Eu gostaria de deixar bem claro
para todos os umbandistas (...), para pai e mãe-de-santo de Umbanda, que é
um ritual muito bonito, com essência, que nunca eles se deixem ceder e nem
se sentirem ameaçados achando que o culto do Candomblé supera a
Umbanda, ou ele é mais propagado do que a Umbanda. (PAI ALUÍZIO DE
XANGÔ, julho de 2008).
Fica evidente no depoimento desse pai-de-santo um discurso que apresenta o
Candomblé como uma religião possuidora de mais fundamentos, marcada por uma
complexidade, pela maior aproximação com a África, pelos aspectos externos de vestimentas,
diferença no ritual, ao mesmo tempo em que faz o apelo para que haja também o
reconhecimento da Umbanda, quando cita exemplo de sacerdotes, conhecidos nacional e
internacionalmente.
(...) a família-de-santo os umbandistas como uma coisa muito parada,
como uma coisa não em evolução. Quando na verdade, na própria África
sabe-se da grande existência da Umbanda que tem aqui em o Luís, no
88
Maranhão, representado pelo pai-de-santo chamado seu Euclides. Então, seu
Euclides tem um intercâmbio muito grande, encomendas com pessoas no
Senegal, que sabem e respeitam que ele faz louvação a eles, que troca
presentes, correspondências. E que outras pessoas seguissem este exemplo
tendo-o como referência, assim como Bita do Codó, Bita do Barão do Codó,
entende? Não pelo sentido de grandeza que eles têm, dos clientes que eles
têm, da quantidade de filhos que eles tiveram de elevando a Umbanda e
não deixando abater por grandes pais-de-santo renomados do Candomblé.
Pois são cultos distintos, com formas diferentes, mas com sentido único
orixá. Então, não é porque o seu Euclides, o Bita de Barão é grandioso, cheio
de filhos, pai-de-santo de pessoas ilustres, e que você com sua Umbanda são
humilde, você não tenha o mesmo teor, a mesma energia de lutando por
aquilo que acredita. Você nem tem que passar por Candomblé. Você deva
cada vez se unir e dar prosseguimento a este culto, porque ele também é um
culto e de larga escala, que traz beneficio à sociedade, que é a fé das pessoas
até numa linguagem muito mais acessível, pois no Candomblé requer um
pouco mais de estudo para você, tem que aprender o iorubá para invocar o
orixá. (PAI ALUÍZIO DE XANGÔ, julho de 2008)
Na aproximação e entrecruzamento da Umbanda com o Candomblé, tem ressaltado
diferentes posturas dos pais e mães-de-santo, no sentido de atrair adeptos, sem respeitar o fato
de as duas religiões terem seu significado, sentido, valor e legitimação para seus praticantes.
O depoimento que se segue elucida a idéia de que os adeptos devem ter a liberdade de escolha
entre as duas, sem ser pressionados por seus pais e mães-de-santo.
E que as casas de santo de Candomblé saibam viver pacificamente
respeitando e deixando cada filho-de-santo da Umbanda dentro da Umbanda.
Porque a partir do momento em que o filho-de-santo da Umbanda é tragado
para uma casa de Candomblé, é menos um dentro da Umbanda. se isso
for uma determinação dele, mas que um pai-de-santo seja muito ético e que
em nenhum momento ele aconselhe ou diga, concorde que realmente ele
deva vim para fazer santo, pois lá não tem fundamento. Não, se seu orixá, se
seu caminho é dentro do Candomblé, converse com sua zeladora de santo,
com sua mãe-de-santo a sua necessidade de vir para o Candomblé, pois
tem um ritual que o seu orixá tá pedindo, mas se o seu orixá não está
pedindo, permaneça, não se deixe influenciar pela parte da vestimenta, pela
parte folclórica, pela parte do cerimonial no barracão em si, pois isso vai
enfraquecer. (PAI ALUÍZIO DE XANGÔ, julho de 2008)
Quanto à comparação entre Umbanda e Candomblé, os depoimentos seguintes
explicitam:
Ultimamente, temos discutido muito essa história, dessa diferença de
Umbanda e Candomblé. Já houve uma época em que a gente dizia que tinha
diferença, hoje em dia a gente colocando essa vida, se tem diferença
ou se não tem. Mas em que ponto é a diferença da Umbanda e do
Candomblé? o ritual. No ritual. Porque o que é que acontece: nós
89
cultuamos é os antepassados, os nossos antepassados, não quer dizer que seja
meu pai, minha mãe, nem avó, minha avó. Não, nossos antepassados. Porque
o negro, o índio... que num sei quanto eras atrás eles também cultuavam
os deles. A diferença, fez que, o Candomblé, ele se coloca em uma posição
de dizer que cultua o orixá, e que a Umbanda cultua o Ogum, mas que
continua sendo os nossos antepassados. É. Quando chega neste ponto aí, a
gente iguala. Aí, por exemplo assim: trinta anos, digamos assim, numa
casa de Candomblé não andava caboclo. Pomba-Gira, não andavam, eles não
aceitavam. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008).
Vale, então, mostrar o sentido constituído por Mãe Constância, mãe-de-santo da
Umbanda, quanto à proximidade entre Umbanda e Candomblé, com suporte na explicação
dada por uma entidade – seu Légua Bogi:
Eu acho que foi uma própria necessidade espiritual. Eu acho que sim,
exatamente há trinta anos, houve uma observação lá na minha casa, tem uma
entidade chamada Legua Boji, que eu trabalho com ele, que é herança da
minha primeira mãe-de-santo, era o caboclo dela, da dona Maria Marinheira.
(...) Então o caboclo, que gosta de sentar e conversar horas e horas. Nessa
época, tava surgindo o Candomblé aqui. E havia uma grande preocupação
por parte de determinados filhos-de-santo a respeito do Candomblé, porque
o Candomblé estava trazendo as histórias do Candomblé, aquelas histórias
de matanças, que na Umbanda não se usava isso (...). E fizeram uma
pergunta para esse caboclo. Seu Légua Boji, o que ele achava dessa história
de Candomblé. E ele disse que não tinha por que se preocupar, porque mais
dias, menos dias, Umbanda e Candomblé iam ser um só ritual. Ele disse isso
faz mais de trinta anos. eu fico me lembrando: rapaz, esse caboclo é
muito interessante. E existe uma previsão da união das religiões, num existe?
(MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008).
É interessante o fato de que Mãe Constância legitima a imbricação das duas religiões
como um caminho linear. Essa explicação pode encontrar sentido na sua posição hoje, pois,
tendo sido liderança de um terreiro de Umbanda por mais de trinta e cinco anos, decidiu
uns cinco anos mudar para Caucaia, na Área Metropolitana de Fortaleza, e não mais ter um
terreiro
embora reserve espaço na sua casa para as entidades. Foi iniciada também no
Candomblé e atualmente não o congrega de forma intensiva, pois vai a algumas cerimônias,
em especial as festas de Candomblé nos terreiros de alguns pais e mães-de-santo amigos
particulares, e na Umbanda continua realizando as festas para algumas entidades na sua casa.
Visualizei posição contrária em Mãe Zimá ao considerar que essas religiões não
devem se imbricar, pois têm suas especificidades. Nesse sentido, ela afirma:
Não existe tipos de Umbanda. Eu não acredito. Eu morro dizendo por onde
eu passeio: aonde desce um orixá num desce caboclo. Por que num desce em
90
mim? Se eu tenho uma mediunidade altamente aberta? Por que eu não chego
nas casas de Candomblé, que meus três netos são raspados no santo, e eu
nunca recebi um orixá dentro? Então eu acho que não existe, pra mim não
existe. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
É perceptível que a dinâmica da mistura de elementos diversos reformulará o espaço
religioso tradicional da Umbanda, reelaborando-o e dando origem a um processo de criação
de práticas na Umbanda. No que se refere à tradição e à Modernidade, para Georges Balandier
(1969) a ordem e a desordem são categorias reguladoras da vida humana. Desse modo, é
preciso repensar o conceito de tradição como sendo dotado de movimento, e não da maneira
que muitos apregoam ser: culturas tradicionais e a Umbanda como religião tradicional
estagnadas no tempo. Elas estão imersas em outros ritmos temporais, mesmo no encontro ou
confronto com a Modernidade. O binômio tradição-mudança é fundamental em toda a
sociedade.
A tradição aparece como varrida pela Modernidade, muitas vezes entendida como algo
antigo, velho, ultrapassado, aquilo que ficou para trás. É relevante repensar a Umbanda nos
limiares da contemporaneidade no Ceará, haja vista os modernos partilharem das idéias que
estão caminhando rumo ao progresso, ao avanço, negando o passado. Vale questionar a
tradição dessa religião: qual é, então, o lugar que ela ocupa, quais reminiscências se mantêm
no tempo, quais permanecem, quais mudanças aconteceram?
Será a Umbanda, em relação ao Candomblé, vítima de estereótipos e discriminação,
como se estivesse parada no tempo, numa condição de religião inferior, e o Candomblé como
parte do tempo moderno, avançado, representando o progresso e o movimento? Tradição com
a significação do atraso e modernidade com a do avanço?
Para Balandier (1969), as sociedades tradicionais são históricas, comandadas pelo
ritmo contínuo e incessante da mudança. Verifiquei que alguns praticantes do Candomblé se
referem à Umbanda como religião atrasada, enquanto os adeptos da Umbanda percebem que
mudanças. Como religião histórica, a Umbanda muda. A mudança não está avessa à
história, daí a mudança e a tradição serem dialeticamente complementares, configuradoras da
vida humana em qualquer tempo e espaço – na tradição e na Modernidade. Atua numa relação
de ambivalência e simultaneidade, tanto nas configurações passadas quanto nas presentes.
Os motivos com que os adeptos justificam a superioridade do Candomblé em relação à
Umbanda são: o aumento do poder religioso, o nível mais elevado de conhecimento religioso
integrar-se a ele significa ficar mais forte
–,
partilhar da idéia de que, como pai, mãe, filha
91
ou filho-de-santo, é preciso ir mais fundo no religioso, garantindo uma vida melhor, e o
argumento do maior prestígio do Candomblé, reconhecido como possuidor de um maior grau
de legitimidade. Assim, a Umbanda passa a ser considerada por alguns como “mais fraca”, no
sentido de fonte de poder sagrado.
Isso não significa, no entanto, que todos os umbandistas tendam a abandonar sua
religião. Não significa que a Umbanda se esvazia de atrativo e de gratificação religiosa.
Mãe Zimá afirma ser mãe-de-santo da Umbanda e respeitar o Candomblé. Entretanto,
por mais que receba convite para ser iniciada e tenha seus filhos biológicos adeptos no
Candomblé, não tem interesse deixar sua religião:
Eu, na verdade, não entendo de Candomblé. Vou para as festas de
Candomblé, eu não entendo, fico ouvindo. Acho bonito os santos dançar.
Mas eu não entendo (...). Quem me perguntar, eu num sei. Muitos pais e
mães-de-santo me chamaram, “Zimá, vem aprender”. Eu digo: “Não, o que
eu sei é suficiente”. Eu não quero aprender. Você não pode misturar o açúcar
com a farinha, porque não nada. Você tem que jogar fora depois. Já
pelejaram pra me raspar. Por quê? Porque eu carrego do meu avô um Exu, e
todo mundo quer esse Exu na mão. Inclusive na casa de Valeria de Logun,
que tenho muito respeito por ela, ela já pelejou pra mim raspar e eu disse que
não. Eu sou uma mãe-de-santo da Umbanda. Eu tenho quarenta e sete anos
de Umbanda. Tem todos os cruzos, tenho todas as forças espiritual. Eu tenho
cruzo na mata, eu tenho cruzo na praia, eu tenho cruzo do cemitério, eu
tenho cruzo das cachoeiras, eu tenho cruzo nos igarapés, em Tabatinga no
Pará, de minha mãe-de-santo. (...) Eu vivo mais de vinte, trinta anos, uns
trinta e três anos que vivo exclusivamente para minha religião. (MÃE ZIMÁ,
janeiro de 2009).
Depois de explicitado o entrelaçamento da Umbanda com o Candomblé, de registrar
as mudanças ocorridas segundo a perspectiva dos praticantes entrevistados, após a discussão
da memória histórica da Umbanda na realidade cearense
em particular de Fortaleza e
Região Metropolitana, tratarei da dimensão ritual da Umbanda com base nos depoimentos das
mães-de-santo entrevistadas.
2.3 Dimensão ritual e iniciática na Umbanda em Fortaleza e Região Metropolitana
Na Umbanda, pela utilização do transe, é permitida a interação do mundo espiritual
com o mundo físico. Por intermédio da mediunidade, as entidades se apresentam nos terreiros
para transmitir ensinamentos, dar conselhos e orientações, recomendações no sentido de
promover a cura, solucionar problemas.
92
A Umbanda conta com a existência de um sistema cosmogônico de localização das
entidades do bem e as do mal. Essa religião vive entre pólos: um, de forte influência
kardecista, geralmente exige maiores preocupações com os ideais ético-religiosos pautados
num maior grau de racionalização e moralização de suas práticas, a caridade cristã como meio
para atingir a evolução espiritual; no outro pólo, têm-se a forte influência do Candomblé e do
catolicismo popular, cujo foco se centra nos despachos e nas demandas de combate aos
inimigos.
Assinalarei os elementos que integram o ritual com base nos dados fornecidos pelos
informantes da pesquisa. Certamente as características aqui apresentadas não coincidem com
o existente em outros terreiros, em outros contextos. Decerto não cabem generalizações no
sentido de ver nos terreiros uma unidade conseguida mediante a codificação. Há, sim, uma
autonomia relativa, na qual alguns pais e mães-de-santo sabem que no campo religioso é
requerida a legitimação do grupo social.
A Umbanda, como religião afro-brasileira, apresenta uma visão de mundo em que há
grande influência do morto na vida das pessoas. Os elementos recalcados pela cultura
européia (mulher, índios e negros) aparecem nos rituais de forma divinizada, detentores de
poder para grande parcela da população.
Portanto, apresento alguns elementos básicos da organização da Umbanda em
Fortaleza e Região Metropolitana, dentre os quais as linhas ou falanges constitutivas das
divisões que agrupam as entidades espirituais de acordo com afinidades fases de evolução
espiritual.
As linhas nos terreiros por nós pesquisados totalizam sete. Algumas diferenças são
freqüentes nas denominações, mas, de modo geral, são essas: Linha dos Povos das Águas,
Linha das Crianças, Linha dos Exus, Linhas dos Pretos-Velhos, Linha dos Povos das Matas
(caboclos, índios), e a Linha dos Orixás (Xangô, Ogum etc.), Linha do Povo do Astral. Não
foi possível, com suporte nos depoimentos dos entrevistados, elencar todas as entidades nas
sete linhas, cada linha traz outras, numa infinidade. É importante observar os depoimentos a
seguir:
As linhas são assim, ó: Oxossi é Linha de Mata (...). A Linha de Ogun:
Linha dos Guerreiros, que trabalha na estrada que abre os caminho, dos
campo do Maitá (...), que é como aqueles homens de antigamente, que tem
as guerras. Hoje as guerras é completamente diferente. É bomba, essas
coisas assim, nessa época o era, era de espada, de lança, dessas coisas. O
cavaleiro Ogum, ele traz sua lança, sua espada, ele traz seu escudo, que é a
93
sua defesa. Então o Ogum é aquele cavaleiro antigo. É tanto que ele é
representado por São Jorge na Igreja Católica. vem a Linha de Xangô,
que é o povo com as Pedreiras. Vem a Linha das Almas, Linha das Almas,
que é do casarão. Casarão, que quer dizer o cemitério. (...) Vem a Linha
do amor, chefiada por Iemanjá. Vem a Linha das Crianças, Linha das
Crianças, chefiadas por São Cosme e São Damião. (MÃE NEIDE POMBA-
GIRA, setembro de 2004)
Ou ainda:
na minha mãe também chamava todas as linhas das crianças, dos pretos-
velhos, do Xangô, povos das águas. Minha mãe trazia todas as nações para
desenvolver. A gente sabe que é aquele que pega mais barra vento, aquele
que mais a corrente pertence. A gente se aprofunda mais, a desenvolver.
Você tem um do mar, uma criança, um Oxossi, um Xangô, pode trazer
também, passa um Exu, completa as sete linhas. Como, bem, eu trabalho
com Xangô, trabalho com Oxossi, trabalho com Ogum... Agora, que na
passagem do Ogum entra, vamos dizer, uma princesa. (...) porque tem
princesa de Ogum, de Xangô, tem as princesas das matas, (...) das águas,
ela vai sabendo o que fez, quando completa, você com seu povo todo.
Completa (...). E entra a obrigação de mãe-de-santo, que é a de sete anos.
(MÂE ANITA, julho de 2008)
Vale então descrever algumas dessas linhas. No que concerne à Linha de Pretos e
Pretas-Velhas descrita pelas informantes, são espíritos de antigos escravos representando a
humildade, a sabedoria, a simplicidade e a indulgência da velhice. Quando incorporam, o
corpo do médium se curva sob o peso da idade, dança ou anda mancando e fala suavemente.
Trata de pedir logo um banco para se sentar e se queixa de cansaço. Pede o cachimbo, do qual
tira grandes baforadas. São chamados de pais ou avôs e avós, mães e tias. A imagem
predominante é a de negro bom e fiel ou da mãe-preta, tal como descrito por Gilberto Freyre
(PORDEUS JÚNIOR, 2002).
Participamos de uma festa para pretos-velhos no terreiro de Neide Pomba-Gira. Todos
esperavam a chegada da entidade Mãe Maria. Os pontos cantados faziam referência à
maternidade. Na ocasião, aconteceu o batismo de duas crianças, filhas de uma das adeptas do
terreiro. Mãe Maria se apresentou com voz forte, própria de uma pessoa idosa, muito
exigente. Simbolizava a bondade, trazia a esperança de que tudo poderia se resolver.
Sobressaiu uma mãe que dá limite, fala firme e, quando necessário, repreende todos os
presentes, na condição de filhos. Pedia silêncio, pois, segundo ela, não gosta de fole, de
zoeira. Deu conselhos aos presentes, depois solicitou que todos rezassem e se concentrassem
em pensamentos positivos, pois assim conseguiriam resolver todos os problemas. Em fila
todos foram até ela, pedir a benção.
94
O depoimento que se segue retrata as características dos pretos e pretas-velhas:
Quando eu passei a me desenvolver lá, eu recebi muito preto-velho. (...)
porque eu tenho uma corrente de preto-velho muito profunda, assim, eu
recebi a Mãe Maria, eu recebia a Preta Manginga, eu recebo a Mãe Maroca,
a Mãe Cassiana, preta-velha curandeira. Eu tenho assim uma fartura de
preto-velho (...). Foram os primeiros. (...). Os pretos-velhos, quando eles
chegam, são acolhidos logo no banquim dele. (...) tem uns deles que gostam
de café, que eles chamam nangô, outros gostam do vinho, mas o cachimbo é
sagrado. Elas, quando vêm em terra, é, vamu dizer, é pra toda cura. É cura
pra afastar coisas negativas, é cura pra dor de cabeça, pra dor de dente, é
cura pra dor no corpo (...). Passou pra cura é com os pretos-velhos. (...) vêm
fazer aquela cura, pra curar muito com a folha. A principal com erva,
também tem cura na pipoca, cura na cachaça e elas também faz a limpeza.
São limpezas fortes, que botam com arruda, bota com alecrim, bota aquelas
coisas e faz aquela garrafa para descarrego. (MÃE ANITA, julho de 2008)
A Linha de Oxossi diz respeito à linha de caboclos. No Ceará, o caboclo e o índio se
tornam sinônimos e podem se agrupar nessas categorias: Linha de Oxossi, Linha de Mina
Maranhão, Linha de Boiadeiro, Linha do Cangaço, numa referência à personagem de
Lampião, e Linha Cruzada de Caboclo.
Palavra de muitos significados, “caboclo” também designa pessoa do interior. Usado
de forma pejorativa, remete à idéia de homem rude, não-civilizado. No contexto da
religiosidade popular, “caboclo” nomeia um tipo de entidade espiritual muito comum no
panteão umbandista. Nesse universo, os caboclos são valorizados e associados aos índios:
fortes, sábios e os verdadeiros donos da terra. O depoimento seguinte elucida essa idéia:
E depois já entrou a nação de Oxossi, a entrar Oxossi de mulher, entrou a
Índia Julinha, que é uma índia da mata, e já entrou um Oxossi, os cavaleiros,
porque o capitão das matas é um, né? Capitão é capitão, e aí já têm os outros
que acompanham porque com nossa mata. Nós temos é muito Oxossi pra
trabalhar. (MÃE ANITA, julho de 2008)
Mãe Zimá fala de sua preferência em trabalhar com caboclo:
Quando meu avô morreu, eu era que trabalhava na mesa branca. Mas na
realidade eu prefiro trabalhar dez vezes com caboclo que numa mesa branca.
Eu prefiro, porque são outras energias. Energia do caboclo é diferente das
energias de um egum. Eu digo sempre: pode ser o espírito do papa, atrapalha
a vida da gente, é energia negativa, morreu, acabou, vive vagando por aí. Eu
gosto de trabalhar com caboclo. E a melhor coisa do mundo é você fazer
aquilo que você gosta. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
95
Quanto à categoria caboclo, na década de 1980, no Nordeste, ressurge a questão da
etnicidade, quando grupos indígenas considerados extintos voltam a falar, a se organizar em
busca dos seus direitos. A religião umbandista é o espaço situacional onde ocorre a
(re)aproximação social, a reconquista do poder de (re)construir a identidade indígena a ser
(re)conhecida pela representação do imaginário da categoria cabocla (PORDEUS JÚNIOR,
2002).
Quanto à Linha dos Exus, é possível afirmar que as características de Exu são
ambíguas. Soares (2005), ao se referir às vinte e uma faces de Exu, acentua que ele tem
diversas maneiras de se apresentar, são rios exus: mensageiro, guardião da porta, senhor
dos caminhos; age por oportunismo, é responsável pela comunicação entre os orixás e os
homens, é o próprio movimento em busca de solução dos problemas, tem ludicidade e
malandragem.
Exu é um orixá de múltiplos e contraditórios aspectos. Gosta de provocar briga,
acidentes. É astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente, comparado ao diabo pelos missionários
católicos. Contudo, quando tratado com respeito e consideração reage favoravelmente, sendo
prestativo como guardião dos tempos, das casas, das cidades e das pessoas. Antes de qualquer
outro orixá, devem ser feitas inicialmente suas oferendas, a fim de evitar mal-entendidos.
Quando tratado convenientemente, ele trabalha para o bem, sendo nas encruzilhadas o lugar
de se depositar suas oferendas. (VERGER, 2002).
Os filhos de Exu apresentam caráter ambíguo em suas personalidades. Ao mesmo
tempo, trazem características boas e más, com tendência à maldade, à desaprovação, à
corrupção e à obscenidade. São pessoas marcadas pela inteligência, com grande poder de
compreensão dos problemas dos outros e de apontar conselhos. Mãe Constância se refere a
um exu – Zé Pilintra:
Seu Pilintra foi um camarada, fazer que nem o outro, que correu aqui
pelo sertão e foi morrer no Rio de Janeiro. Ele nasceu em Pernambuco, saiu
batendo pelo sertão das Alagoas e num sei o quê, e correu por num sei
quantos lugares, ele tem as cantigas dele, que ele conta as histórias dele. Aí
foi morrer no morro de Santa Teresa no Rio de Janeiro. Quando ele chegou
lá, ele trabalha em todas as linhas de Umbanda. (MÃE CONSTÂNCIA,
julho de 2008)
Na Linha de Exu, tem-se a Pomba-Gira, que recupera o lugar da mulher forte, bonita,
sedutora, firme com suas gargalhadas. Transgride o discurso de dominação masculina,
contrariando o repertório hegemônico masculino, típico das sociedades patriarcais. Nesse
96
sentido, é notável a força que tem entre os adeptos. Considerada como tendo muito axé,
trabalha na rua, nas encruzilhadas. São os trabalhos da Quimbanda para abrir os caminhos,
facilitar enlaces amorosos. Elas conseguem voz de enunciação pelo corpo dos médiuns, pelo
rito de possessão aos segmentos sociais marginalizados e destituídos de status e poder. Seus
pontos cantados fazem referência a essas dimensões:
Lá vem ela
A bela das encruza
Ela é Pomba-Gira ... Gi
Ela é Pomba-Gira ... Gi
É Maria da Praia
Formosa Rainha
Desse conga
Pordeus Júnior (2000b), em seu livro Magia e trabalho: a representação do trabalho
na macumba discorre sobre a categoria “trabalho” como esforço físico ou mental, necessário à
realização de uma produção cultural entre as sociedades ditas primitivas e arcaicas. E, na
Umbanda, são os exus que descem para o trabalho, para fazer a magia como trabalho.
Ê Pomba-Gira
Eu tou te chamando
Ê Pomba-Gira
Eu tou te implorando
Firma ponto na bananeira
Pomba-Gira vem trabalhar
Firma ponto na bananeira
Pomba-Gira vem girar
O propósito de Pordeus Júnior é contextualizar o trabalho na formação brasileira,
marcada por espoliação, opressão, exploração e violência. Analisa o Espiritismo de Umbanda
como espaço que constitui uma reação ao trabalho, que passa a ser apropriado com base
noutros referenciais – e com a recuperação da magia como seu complemento. Embora o
Espiritismo de Umbanda tenha desejado apagar a memória coletiva afro-brasileira pela
racionalização do Kardecismo, não pode prescindir dessa personagem prometéica e é, por esta
razão, que tenta acorrentá-lo e reduzir ao modelo cultural tradicional do trabalho, à escravidão.
(PORDEUS JÚNIOR, 2002).
Da Umbanda, chama-se de Umbanda Cruzada, nós na precisão recebe (...)
naquela hora que precisando dele. Bem, chegar um que precisa de uma
cura, tem o preto-velho, chega um que precisa de uma consulta, vem
97
o Pilintra, o seu Gesso, o feiticeiro, o seu Martim Guerreiro, que são
chefes de consulta (...). (MÃE ANITA, agosto de 2008)
Ou ainda:
É seu Zé, (...) ele diz que é quem manda no terreiro (risos). E eu digo que ele
é meu tudo, é quem me sustenta, quem me de comer, é quem traz o
cliente, é quem traz o dinheiro. É ele que faz os trabalhos, (...) que faz tudo é
ele. (...) Desde que comecei a trabalhar com ele, desde o princípio da minha
midiunidade, eu comecei a trabalhar com ele, e no princípio, na época de
Mãe Júlia, ele era muito discriminado. Mãe Júlia não aceitava esse tipo de
entidade e trabalhando, se fosse uma coisa necessária, uma vez. E ela
fazia muita discriminação, por exemplo, na casa dela Exu baixava uma
vez por ano. Ela fazia uma festa para Exu. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de
2008)
Quanto à Linha das Crianças, na Umbanda está simbolizada em São Cosme e São
Damião, os santos gêmeos. Dizem respeito ao universo infantil, crianças, curumins. De
acordo com as fontes, quando “baixam”, trazem a esperança de uma vida melhor. Apreciam
bolos, doces, refrigerantes, frutas e outras guloseimas; denotam infantilidade, gostam de
brincadeiras, são travessos e adoram uma bagunça. A Linha dos Orixás representa as forças
da natureza, como raios, trovões, a pedreira, o rio, a cachoeira, o mar, além de valores
humanos, como coragem, justiça, determinação, comunicação. Na Linha dos Povos das Águas
está Iemanjá que, representando um símbolo do mar, é considerada um orixá importante, a
mãe de todos, de outras entidades espirituais. Em particular em Fortaleza, comemora-se o dia
de Iemanjá em 15 de agosto, na Praia do Futuro. Retornarei essa festa mais adiante.
O depoimento de Mãe Virgínia sobre seus guias ajuda a ilustrar as várias entidades
que se manifestam no adepto da Umbanda, compondo as linhas ou falanges. Filha de Omolu –
o Velho Azoane, tem Ogum Beira-Mar que quer sua cabeça, e Nanã como sua mãe. Omolu
deu passagem à sua Pomba-Gira, tem um Erê chamado Emerenciano, que era trabalhador do
seu Boiadeiro, o preto-velho Rei Congo. Exu Tata Caveira vem quando quer ajudar em
alguns trabalhos.
Algumas pessoas dirão: “Ela tem tantos guias, isso é normal? Tem preto-
velho, tem exu, tem caboclo, mais as crianças, e ainda recebe as vibrações
dos orixás”. Na realidade, não sei se é ou não normal. Devo dizer que,
conforme fiz as minhas obrigações de Santo, os meus guias foram
“descendo” e aqui ficaram. Meu Exu Caveira é o Tata e, como já falei, foi
com ele que aprendi muito, foi e continua a ser um Mestre para mim. Vem
na Linha de Omulu, sempre que se faz necessário a sua presença, seja em
trabalho ou consultas, o que é muito raro. Tenho Tranca Ruas das Sete
98
Encruzilhadas que vem na Linha de Ogum, dono de minha coroa. Esse Exu
nunca consultas, vem no dia da sua festa para receber homenagens.
Tranca Ruas das Almas é que vem para trabalhos ou consultas, no caso de
necessidade. (...) Os orixás, naturalmente, que vêm em dias de festas, não
dão consultas e o único que se dirige ao público é Ogum Beira-Mar. Ele fala,
a nção e recebe homenagens de todos os presentes. No nosso culto,
Orixá Maior não fala, abençoa. Ogum e Oxóssi são considerados Orixás
Maiores, mas sendo mais ligado à terra, falam, se for preciso falar, Oxóssi
geralmente é representado pelo Caboclo recebendo estes as homenagens de
Oxóssi (MÃE VIRGÍNIA in PORDEUS JUNIOR, 2000a, p.91e 92).
E a e Constância esclarece como se compõe as falanges no seu desenvolvimento
mediúnico:
O orixá Ogum, ele foi acrescentado já depois que o Ogum caboclo da
Umbanda era batizado pela Mãe Júlia. Então é o Ogum Ricardino, na
Umbanda. O Ogum Ricardino e a moça, a gente na Umbanda sempre faz os
casais, os pares, é a Princesa Flora, e que é exatamente ela responde pela
Oxum, no Candomblé. O segundo santo é Oxum. As minhas histórias foi
sempre bem arrumadinha, eu acho (risos). Eles fizeram tudo arrumadinho. E
agora o caboclo de Oxossi é seu Rei dos Índios. (...). Aí pronto. E daí a gente
vai para o Exu. Tem o Seu Tranca Ruas, a dona Pomba-Gira Rainha e tem
uma cigana à parte (risos), a cigana do Egito. Tem um casal de pretos-velhos
também, o Pai Luiz e a Mãe Maria, a Maria Conga. E tem a criança também,
a Esmeraldina. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008)
Depois da tentativa de esclarecer as linhas e falanges que constituem a Umbanda,
considero importante abordar os motivos que levaram as mães-de-santo a entrar nas religiões
Umbanda e Candomblé. Todas as entrevistadas fizeram referências a um momento de
passagem, de escolha, revelador; na sua maioria, casos de doenças graves as levaram a se
tornar adeptas, marcando sua entrada no ritual.
Os fatores que conduziram as mães-de-santo fontes da pesquisa a procurar a religião
da Umbanda ou o Candomblé são, principalmente, a busca de solucionar graves doenças,
feitiçaria, problemas familiares e sentimentais. Entre as doenças, destacam-se problemas
respiratórios (como a asma), dores nas pernas, levando à paralisação dos membros, dores de
cabeça, depressão e alucinações.
Eu entrei nesta religião, aliás, esta religião, eu nunca discriminei nenhuma e
nem discrimino, principalmente a minha Umbanda sagrada de Deus. Que eu
agradeço a Deus primeiramente, hoje, a minha vida, que eu era paralítica.
Fiquei, eu não era, mas fiquei, por meio de um trabalho feito de magia, por
causa de besteira, dessa barraquinha que eu comprei pra viver e minha
vizinha num pôde comprar, ela adora essas coisas, mas ela era uma boa
vizinha. Eu (...) nunca acreditei, acreditei quando entrei na Umbanda, depois
99
de muito tempo para eu poder acreditar que ela tivesse essa capacidade.
Outra coisa, eu (...) entrei chorando, porque eu achava que não tinha mais
jeito, porque era as mãos assim, os pés pra trás, o médico tinha ficado
de estudar o meu problema (...). Paralisei, o médico ficou de estudar, porque
nem eles encontraram. O que aconteceu, fui na Umbanda de uma senhora,
chamava-se Maria do Espírito Santo. Ela era uma Umbandista Espírita, que
assim, sentia, via, né? levaram meu nome e na hora de oração ela disse:
“Olha, traga ela, o problema dela é muitas preces, mas ela tem um trabalho
feito em magia”. Dentro da magia, porque dentro da nossa Umbanda existe a
magia, mas nós não somos obrigados a fazer (...) se nós queremos se
alevantar, nós não pudemos derrubar, que a mão que cura não mata. (MÃE
ANITA, julho de 2008)
Ou ainda:
Não, o que significa a Umbanda pra mim é minha própria vida, né? A
Umbanda me deu a vida, então por isso eu digo que ela é minha própria vida.
Quando eu fui para a Umbanda, eu estava desenganada pelos médicos, não
havia mais condições de cura para mim, eu tinha dezoito anos. (...) Muito
doente, eu tive toda uma infância e uma adolescência com problemas de
saúde, mas quando chegou aos dezoito anos ficou muito sério, sem mais
solução. Então foi quando fui levada para a Umbanda. Desde criança a
mamãe me levava para curadores, e eles diziam que quando chegasse a
época eu ia ingressar. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008)
A iniciação de Mãe Lúcia no Candomblé se deu da seguinte forma:
Em 1978, tive um problema de saúde muito sério; em 1979 conheci uma
pessoa de Candomblé, que a veio ser minha irmã-de-santo. Até então era a
Umbanda que eu freqüentava. Eu olhava o futuro e queria saber das coisas.
Nessa época, minha irmã carnal, biológica, estava com um problema muito
grande com o marido. falei com ela. Disse: “Dona Ilza, eu queria que a
senhora botasse um jogo de búzio para minha irmã”. Ela marcou o jogo e eu
disse, “mas ela não gosta, eu posso vir no lugar dela?” Ela disse: “Pode”. Ela
marcou o jogo para minha irmã. No jogo, ela jogando para mim, ela disse:
“Menina, tu vai ser de santo. Você é de Iánsã com Ogum. Não... Você é de
Iansã com Oxossi. E você vai fazer santo”. Então, isso foi numa segunda-
feira (no sábado). Ela estava com um barco recolhido, ela disse: “Estou com
uma pessoa recolhida”. me deu aquele negócio sabe? Eu não sabia o que
era fazer o santo e nem nada. Por entusiasmo, “peguei corda”, como diz o
outro, né. E neste barco eu já entrei. Eu fui botar esse jogo na segunda feira e
no sábado eu estava no roncó. Eu entrei assim no Candomblé. (MÃE
LÚCIA, agosto de 2005)
É perceptível o quão complexa foi sua entrada no Candomblé, dito por ela mesma,
pois que se deu sem muito preparo sobre a religião, seus princípios e fundamentos. E que,
com sua mãe-de-santo, as relações e os ensinamentos não se deram de forma tranqüila. Parece
100
sobressair uma insegurança dela como mãe-sacerdotisa e uma indefinição ou não-separação
madura de sua mãe por todo o tempo de preparação para assumir o sacerdócio.
Mãe Virgínia afirma que, desde bem cedo, na infância, tinha pressentimentos,
premonições, visões, desmaios, principalmente como estudante de escola católica, durante a
comunhão, ao tomar a stia. Ela dizia o que via. Contudo, sua aproximação com a Umbanda
vai acontecer depois de casada, por motivos de ordem financeira, desentendimentos, como
brigas constantes provocadas por ciúmes da parte do seu esposo, doenças. O marido tomou a
iniciativa de procurar um terreiro.
Meu marido ia aos terreiros de Umbanda procurar ajuda. Eu às vezes ficava
com vontade de rir e, algumas vezes, vinha para fora para não chamar
atenção. Nada resolvia, ele passou a ir sozinho porque eu não tinha fé.
Gostava dos cânticos e das danças, mas não aceitava os trabalhos que via
fazer (MÃE VIRGÍNIA in PORDEUS JÚNIOR, 2000a, p.61-62).
Depois, ficou sabendo por uma mãe-de-santo que havia sido feita uma macumba para
ela e que, para desfazer, carecia de um trabalho. Foi anunciado a ela que deveria ser iniciada
na religião e assumir missões de trabalhar e fazer a caridade, ou seja, deveria desenvolver seu
sacerdócio como mãe-de-santo.
Eu pedi ajuda D. Maria, ela levou-me ao Centro que freqüentava e a senhora
mãe-de-santo disse que eu tinha um Santo muito caprichoso e que, enquanto
não tratasse como devia, teria miséria. (...) Eu passei a ir essas reuniões e
lá senti-me bem. Antônio era aconselhado sobre os negócios, mas tudo
continuava mal, até que um amigo do meu marido o levou a um terreiro em
Jacarepaguá e, ao ser consultado, foi-lhe dito que a culpa de tanta
infelicidade era eu que tinha que trabalhar para o Santo, fazer meu Santo e
prestar muita caridade. (MÃE VIRGÍNIA in PORDEUS JÚNIOR, 2000a,
p.63).
As mães-de-santo interlocutoras desta pesquisa encontraram motivos reveladores de
predestinação que deviam se iniciar na Umbanda:
Com sete anos, Oiá se apresentou e eu tive que raspar Oiá. Mona de Oiá,
mulher de Iansã. (...) Eu tinha sete anos. Então, minha vida toda foi nessa
coisa de Mina, Angola e Umbanda, não esquecendo que eu sou também
kardecista, tanto que na minha casa existe um Centro Espírita Caminhos para
Aruanda. (MÃE MONA DE OIÁ, janeiro de 2009)
Ou ainda:
101
Eu sou de Fortaleza, mas tenho raízes indígenas. E, nessas minhas andanças,
eu fui criada mais com meus avós maternos do que com minha própria mãe.
Minha mãe tinha doze filhas, eu, como era a segunda filha, e a minha
primeira irmã era muito doente... A mamãe, eu vivia muito na casa do meu
avô, que nós morávamos em frente. O meu avô era espírita, o senhor Gastão.
Ele fazia as mesas brancas e eu sempre participava. Participava como? Eu ia
olhar, mas sempre eu tinha aquela minha mediunidade. Aos sete anos eu
recebi o meu primeiro caboclo, foi assim um dilúvio na vida. Porque
ninguém aceitava, porque eu era muito nova. Minha mãe e meus avós me
levaram a muitos terreiros. Afastaram um pouco as correntes, mas eu sentia
muitas dores de cabeça. Aos quatorze comecei a trabalhar e hoje estou com
sessenta e um anos, e nunca mais deixei. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
Mãe Zimá considera que nasceu feita, buscou um pai-de-santo para complementar seu
desenvolvimento espiritual.
Nunca fui pra casa de pai-de-santo nenhum. Eu já nasci feita (...). Eu,
quando fui pra casa do finado Zé Alberto, foi por uma questão d’eu dizer que
tinha um pai-de-santo. Meu avô morreu e eu fiquei sem ninguém. Era quem
orientava, me ajudava. No próprio instante que ele partiu, a minha mãe me
levou pra casa do finado Alberto e foi onde eu recebi muito mais,
talvez o que eu queria. Porque o Zé Alberto era era não, é conhecido no
mundo todo. Aqui em Fortaleza ele tinha o terreiro da Maria Mulambo no
Maranguape e outro no Parque Araxá. Eu sou do terreiro Rei do Cangaço do
Parque Araxá e até hoje eu acendo as velas lá, ajudo a casa. Eu acho que ele
morreu, mas as entidades ficaram. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
E Mãe Mona de Oiá fala da forma como descobriu que seria uma mãe-de-santo:
Os próprios santos falam. Eu tinha três anos, eu sou uma coisa atípica.
Porque eu nasci dizendo (...). Você nasce, você sabe, você sente quando
vai ser mãe(-de-santo). Existem pessoas que querem, que tentam, que fazem
tudo e não conseguem ser. Na minha terra nós falamos assim: nasceu sem
pé, não tem na senzala. Não nasceu, não tem pele, não tem na raiz, não
veio com ancestralidade, até recebe o caboclo, mas não tem aquela firmeza,
não tem aquela determinação, liderança de ser pai e de ser mãe. Faz tudo,
mas não consegue. (MÃE MONA DE OIÁ, janeiro de 2009)
É bom ter claro que a Umbanda e o Candomblé não definem que os simpatizantes ou
aqueles que os procurem para resolver algum problema passam a ser adeptos. A marca
principal dessas religiões é o ritual. E a festa é um ritual. Assim, descrevo no item seguinte a
Festa de Iemanjá como festa religiosa popular dos praticantes das religiões afro-brasileira da
cidade de Fortaleza e outros municípios do Ceará, de simpatizantes e devotos.
102
2.4 A Festa de Iemanjá na Praia do Futuro em Fortaleza-Ceará
Figura 1 – Imagem de Iemanjá na Praia do Futuro, em Fortaleza (CE), 2008.
A festa na Umbanda atribui sentido à religião. Faz parte dos fundamentos dela a
congregação dos adeptos com suas entidades divinizadas. A música e a dança o linguagens
privilegiadas, ocasião em que as entidades vêm à terra para dançar, festejar, evocadas pelos
sons dos atabaques e dos pontos cantados.
As festas estão presentes nas religiões afro-brasileiras. Tem-se festas públicas de
iniciação ou saída de Iaô, confirmação de Ogã, entrega de Decá, de Senhoridade de sete anos,
confirmação de cargos hierárquicos, obrigações de um, três, cinco anos, festas consagrada às
entidades etc.
A festa é possibilitadora de unidade, de aproximação com o divino, do reencontro do
humano com o sagrado. Na união com o sacro, garante-se mais harmonia à vida humana.
Como momento de unidade, a festa traz o convívio comunitário: os líderes dos terreiros se
reencontram, devendo todos ter o mesmo objetivo naquele instante.
Na descrição da festa, considerei relevante a explicação dada pelos informantes, desde
os representantes da União Espírita Cearense de Umbanda, organizadores, o lado oficial da
festa de Iemanjá, até as fontes de financiamento e organização de espaço, palco, segurança.
também os depoimentos de mães, pais e filhos-de-santo favoráveis e contrários à forma
como a festa se sucede nos dias atuais. Para tanto, observei a festa como cerimônia, como
ritual e ocasião singular de publicização da Umbanda em todo o Ceará, tendo o sentido do
103
simbolismo contextualizado e relacionado ao complexo religioso de Iemanjá, o orixá
homenageado pelo povo-de-santo.
A Umbanda em Fortaleza e Região Metropolitana, segundo depoimento de Mãe
Suzana, presidenta da União Espírita Cearense de Umbanda, realiza grandes festas,
organizadas pela União:
Grande, aqui, eu faço. Começa, vamos dizer, em janeiro, é de Oxossi, dia 20
de janeiro, que é São Sebastião. Depois vem São Jorge Guerreiro, dia 23 de
abril essa é uma grande festa que tem aquela feijoada, que é a feijoada de
Ogum. E depois vem 13 de maio, que é uma festa grande, com muita bebida e
comida, muito vinho, muito vatapá, muita coisa, vem tudo, batata-doce, é
tudo. Venha de onde vier, tem que ter. (...) Agora, na festa de Iemanjá eu
pedi a minha Mãe Iemanjá (...) pra me ajudar. (...) Em setembro, São Cosme e
Damião, dia 27 de setembro. E tem a de Rei Salomão dia 12 de outubro, que é
no Dia das Crianças, dia de Rei Salomão, aqui ele é o patrono. Aí, em
dezembro, nós fazemos um amigo secreto, uma festinha de fim de ano. Todo o
ano é desse jeito. (MÃE SUZANA, agosto de 2008).
As festas-ritual representam, para as religiões afro-brasileiras, encontros periódicos
entre seus adeptos. Em Fortaleza, a comemoração de Iemanjá todo dia 15 de agosto, na
Praia do Futuro, assumindo caráter de festa pública. Nessa data, é feriado na cidade não por
ocasião da Festa de Iemanjá, mas por ser o dia de Nossa Senhora de Assunção, padroeira de
Fortaleza.
Iemanjá, orixá feminino muito divulgado no Brasil por meio de comemorações anuais
em várias cidades, sempre movimenta o grande número de pessoas adeptas das religiões afro-
brasileiras e os simpatizantes. também uma analogia entre Iemanjá e Nossa Senhora da
religião católica, pois ela é identificada com Maria, mãe de Jesus. Representa a Grande Mãe,
deusa das águas, rainha do mar. Veja a forma como a mãe-de-santo define essa mãe.
Iemanjá como mãe, pra mim, é tudo. A mãe de todas as cabeças, minha filha.
Ela é a grande mãe, ela é o seio que todos mamam. Ela quem toma conta de
nossas cabeças, apesar de termos os nossos orixás. Mas, ela é a mãe que
toma conta, até mesmo porque é a mãe de todos. (MÃE MONA DE OIÁ,
janeiro de 2009).
Essa idéia está também presente na fala de outra mãe-de-santo, a Mãe Zimá: Iemanjá
é a mãe de todos. É a mãe das mães, é pura energia, verdadeira força do ventre, do vento, das
águas (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009).
104
O nome de Iemanjá significa “mãe cujos filhos são peixes”. Em Fortaleza, no Ceará,
os fiéis dessa divindade vêm louvá-la todos os anos, entregam suas oferendas para a mãe das
mães, para a mãe de todos, mbolo de maternidade fecunda e nutritiva, um dos orixás mais
populares na sociedade brasileira. Iemanjá, como mãe das águas, é representada por sereias,
aquela que é a rainha do mar.
Na Umbanda, é cultuada como uma das sete linhas originais (Povo da Água).
Representa o princípio gerador receptivo, matriz dos poderes da água. É a padroeira da
fecundidade, protetora e nutridora, que sustenta, acalenta e mitiga o sofrimento dos seus
filhos. Torna comum o ato de entregar no mar as oferendas, renovar a legitimidade da religião
pelo ritual, partilhando a música, a dança, as indumentárias nos tons claros do branco e do
azul.
Assisti, a cada ano, desde 2004, a Festa de Iemanjá como evento público com o
significado sagrado de uma experiência religiosa. Trata-se de uma festa celebrada não no
terreiro, mas na praia, onde ganha a grande audiência. Tornou-se parte da cultura do povo de
Fortaleza e de outros municípios, que saem em caravana de ônibus para a Praia do Futuro.
Em 2005, quando se comemorava a 37ª Festa de Iemanjá, houve, pela primeira vez,
um evento de abertura, quatro dias antes, na Praça do Ferreira, Centro de Fortaleza,
organizada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza e pela Câmara dos Vereadores. Foi
montado um palco num trilho elétrico, de onde falavam representantes políticos intercalados
com alguns representantes das instituições dos umbandistas. Em frente e abaixo do palco, pais
e mães-de-santo realizavam as giras em meio a pouco espaço.
No final desse evento, considerado um ato público, o pai-de-santo Raimundinho Dente
de Ouro manifestou seu descontentamento com o desrespeito para com a seriedade da
Umbanda. Naquele espaço, segundo ele, priorizou-se a propaganda política e o favoritismo de
vereadores e outros representantes políticos da cidade de Fortaleza, utilizando de forma
equivocada os rituais (giras) e o trabalho dos umbandistas. Ele afirmou que, se soubesse da
verdadeira intenção do ato, não teria de deslocado com todos os seus filhos-de-santo para
presenciar tamanho equívoco.
Nas festas dos anos seguintes, a Prefeitura não mais realizou esse tipo de evento. A
abertura e atividades outras de preparo da festa ocorrem na própria Praia do Futuro, na tarde e
na noite do dia 15 de agosto.
Vale dizer que a festa, apesar de ser uma das poucas ou ainda a única ocasião de
publicização da Umbanda no Ceará, gera divergência de posição entre as mães-de-santo. É
105
notável uma heterogeneidade de pontos de vista quanto ao significado e às repercussões da
festa. Muitos pais e mães-de-santo da Umbanda expressam descontentamento quanto à forma
de organização desse evento. O seguinte depoimento da mãe-de-santo Mona de Oiá expressa
essa ausência de unanimidade:
Posso ser sincera? Sou polêmica. Eu o aceito. Como folclore, sim,
religiosidade, não. Eu acho muita bagunça, deturparam, na minha
concepção. Eu nunca tive a maior aproximação. na Bahia é diferente,
todo mundo respeita, existe uma religiosidade. Aqui existe uma brincadeira,
um lazer. As pessoas entram de maiô, as pessoas entram com bebidas. Eu
acho que isso é uma falta de respeito (MÃE MONA DE OIÁ, janeiro de
2009).
Ou ainda:
Quando o finado Alberto era vivo, existia festa de Iemanjá. Hoje não
existe festa de Iemanjá, porque você anda em cada terreiro daquele, setenta
por cento deles não recebe caboclo, é tudo bêbado, é seminu. É muito difícil
a gente julgar, mas eu acho aquilo uma palhaçada. (...) que o povo me
desculpe, mas é uma realidade. Eu num acho que aquilo que deveria ser. Eu
pelo menos num vou trabalhar, eu vou, eu entrego as oferendas a Iemanjá.
Faço o arroz doce, com bastante cravo, muito leite moça, compro uma rosa,
um perfume, arreio uma cesta, pedindo a Iemanjá a ela que leve todos os
maus, e que traga quando voltar tudo de bom para o povo da terra. Não é pra
mim, é pra todos. Mas eu particularmente não gosto, eu acho aquilo uma
tremenda palhaçada. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
O depoimento explicita a preocupação da mãe-de-santo com a dimensão sagrada da
festa, algo primordial aos religiosos. Isso tem posto em questão o valor que a festa representa:
Seria se houvesse respeito, pra que nós somos tão (...), o estigma é tão
grande, se houvesse cordões de isolamento onde o neófito não pudesse
adentrar, só fosse os praticantes, os adeptos mesmos, onde não levasse
bebidas, mas levassem as flores, as bancas e tudo. E todos se unissem se
abraçassem, se respeitassem. Não querendo dizer que “o meu terreiro levou
cem garrafas de champagne”, “o meu levou num sei quanto de vinho”,
“porque eu bebi”. Eu acho horrível, nós já temos um estigma tão horrível,
somos tão apedrejados. Pra que mostrar isso? (MÃE MONA DE OIÁ,
janeiro de 2009)
A Mãe Mona de Oiá questiona até que ponto a festa contribui para a divulgação da
Umbanda. Religião historicamente discriminada na realidade brasileira, a mãe-de-santo reflete
sobre como esse cenário poderia mudar no Ceará. O uso abusivo da bebida alcoólica, segundo
ela, acaba por comprometer a dimensão sagrada da festa.
106
E fazer uma festa pra ela desse jeito... Então, tudo que eu faço pra ela é num
dia que num ninguém, eu contrato uma jangada, vou até a risca do mar,
deixo pra ela. Mas isso aí é minha concepção, não falo de ninguém, cada um
que faça de sua maneira. (MÃE MONA DE OIÁ, janeiro de 2009)
Segundo pude perceber, diferentes posicionamentos acerca do evento,
principalmente quando algumas mães-de-santo da Umbanda apontam ali aspectos
considerados profanos, que fogem à dimensão religiosa. Por outro lado, podemos supor
também uma relativa autonomia de muitos terreiros e adeptos que fazem a “sua festa” para
Iemanjá, guardando distância do lado oficial organizado pela União Espírita Cearense de
Umbanda ou da forma que alguns sacerdotes e sacerdotisas desejam. Com suas próprias
manifestações, realizam a festa da forma como a entendem.
A festa oficial é organizada pela União com o apoio da Prefeitura de Fortaleza.
Entretanto, existe o lado que demarca o contexto de exaltação de alegria daquelas pessoas
reunidas, invadindo a comemoração original. Visualizo na festa uma pluralidade de
manifestações com vida própria e significado peculiar. Percebemos a festa oficial, o caráter
religioso dos adeptos, o lado lúdico, lazer, mas também o conflito e a violência.
Durante a festa, ocorrem também casos de crimes, como ataques de gangues, roubos.
brigas, confusão por parte dos participantes não-adeptos que se aproveitam da ocasião de
multidão para furtar celulares e bolsas, principalmente das mulheres. Isso provoca tumulto e
correria por causa da ação dos grupos e da intervenção da Polícia.
Em meio a divergentes posições, a festa acontece. Na praia, logo pela manhã, chegam
adeptos das religiões afro-brasileiras e muitos simpatizantes. Comunidades de terreiro
instalam suas tendas, outras se voltam ao mar para presentear a divindade com suas oferendas.
A praia fica repleta de flores, objetos como batom, perfumes e rosas que serão ofertados a
Iemanjá: são pessoas que vêm mostrar sua fé e devoção.
Muitos altares (gongares) são montados. Neles se encontram as imagens das
divindades e crianças e adolescentes representando sereias do mar, numa referência a
Iemanjá, rainha do mar. Por toda extensão da Praia do Futuro encontramos as tendas dos
diversos terreiros de Umbanda e demais religiões que cultuam Iemanjá como a Grande Mãe.
Entre os presentes, aqueles que vão assistir, os adeptos que serão possuídos pelas
divindades e há outros que vão entregar oferendas e fazer pedidos a Iemanjá.
107
Os participantes pertencem aos diversos estratos sociais, numa interação dos diferentes
segmentos – embora seja notável a freqüência das camadas populares. Encontra-se com
facilidade fiéis da Umbanda e do Candomblé, católicos, devotos, pessoas simpatizantes,
vendedores ambulantes, além dos vândalos. São categorias de representação religiosa e
profana que se interpenetram, atestando uma pluralidade de sentidos. Presenciamos maneiras
específicas de usar a festa, espaço de diversão e lazer, de fé, diferentes perspectivas coexistem
e convivem durante a festa.
Muitos terreiros se fazem presentes, organizados em tendas. Espalham-se por toda a
praia faixas contendo o nome de terreiros, como Grupo de Tauá, Terreiro São Jorge
Guerreiro, Unidos do Vale das Cachoeiras dos Inhamuns. Ao longo da praia tendas de
diferentes formatos, desde as mais simples até as mais pomposas, nos quais os seus membros
se vestem com muito brilho. Os adeptos se dispõem na praia com suas vestimentas em
tonalidades azul, branco e prata
as cores de Iemanjá
–,
para se encontrar com o divino que
os habita, não havendo espaço para separações entre o fiel a entidade: o orixá que se celebra
presentifica-se pela possessão no ápice de proximidade entre o umbandista como humano e
Iemanjá, rainha do mar, a sereia, protetora dos pescadores, e dos orixás e das demais
entidades. Assim, na festa, recompõe-se a situação original dos tempos, quando não havia
separação entre os humanos e as divindades.
Segundo os interlocutores da pesquisa, essa festa teve início em 1968, sendo em 2008
seu aniversário de 40 anos. O evento se inicia pela manhã, com o cortejo partindo da sede da
União Espírita Cearense de Umbanda, no Centro da cidade, em direção à Praia do Futuro,
seguido de fiéis das religiões afro-brasileiras, a maioria umbandistas. A festa dura até a noite e
atrai fiéis não de Fortaleza e Região Metropolitana, mas de outros municípios do Estado
como Sobral, Quixadá, Itapipoca, Juazeiro do Norte.
O evento conta com os seguintes momentos: inicia-se com a procissão que parte do
Centro da cidade e então dirigem-se à Praia do Futuro, onde está armado um palanque para
receber as autoridades e representantes da religião, em particular da Umbanda. Segue-se com
as giras e a entrega das oferendas, e depois faz-se o encerramento da festa. Destacam-se fatos
outros, não desprovidos de sentido, que merecem interpretação. Em meio a tudo, gritos,
louvores a Iemanjá: a multidão manifesta entusiasmo com saudações e súplicas de felicidades
e prosperidade naquilo que desejam.
Preparar a festa de Iemanjá, segundo a presidenta da União, implica investimento de
tempo, trabalho e dinheiro. O recurso financeiro, em sua maior parte, advém da Prefeitura
108
Municipal de Fortaleza, que disponibiliza alguma quantia todos os anos. O repasse dos
recursos é moroso e pede muitos requisitos a cada ano. Em 2008, exigiu-se a abertura de
conta em outro estabelecimento bancário, havendo demora em fazer o depósito da verba.
Aqui é uma dificuldade muito grande, eu, nessa festa agora, eu não tenho
vergonha de lhe dizer, eu num tenho um centavo. Hoje é 5 de agosto e eu não
nada ainda, tou pedindo. Foi projeto até pro Lula, pra Brasília, pro Gilberto
Gil, pra tudo. (...) Todos os anos ela deposita. Ou três, ou quatro, ou dez, todos
os anos ela dá. É pra mim e pra outra Federação, eu recebo e repasso a metade
para a outra, que é o Neto, é outra associação que tem creche, tem tudo. É a
associação São Miguel, eu dou a metade pra São Miguel (...). (MÃE
SUZANA, agosto de 2008).
Mãe Suzana conta também com a colaboração financeira e o apoio de alguns
religiosos ou simpatizantes da Umbanda. Alguns desses colaboradores são candidatos a
vereador da cidade de Fortaleza e de outros municípios, outros são pais e mães-de-santo que
contribuem aleatoriamente. A União não cobra aos associados nenhuma taxa extra além da
anuidade – para organizar a festa.
Muitas são as ações que envolvem o preparo da festa: instalação do palco no dia
anterior para garantir boa iluminação e som, convites aos sacerdotes e sacerdotisas ilustres do
Ceará e de outros Estados, pedido de segurança pública à Polícia Militar e à Guarda
Municipal, providência de alimentação para os policiais que farão a cobertura da festa, que
é corriqueiro haver registros de assalto e outras violências.
confirmado, aqui chegando fax, aqui vai mais de duzentos, só
municipal tem cento e vinte e seis, fora a confirmação dos outros. Nós tamo
pensando assim que vai ser numa faixa de quatrocentos policiais (...) (MÃE
SUZANA, agosto de 2008).
Quanto à estrutura da festa, tomando-se como exemplo a ocorrida em 2008, a praia
ficou repleta de tendas dos terreiros, havendo um palco principal onde ficam alguns
sacerdotes e sacerdotisas da Umbanda e a Presidenta da União, Mãe Suzana. Fizeram seus
pronunciamentos quanto à importância da festa, ao significado dela para os umbandistas,
entoaram o hino da Umbanda e anunciaram a programação da festa, informando acerca da
abertura e do fechamento. Abaixo do palco foram fixadas três bandeiras: a do Brasil, na ponta
esquerda, a de Iemanjá, ao centro, com o nome da União Espírita Cearense, e, na outra
extremidade, a bandeira da União Espírita Cearense de Umbanda, com o símbolo da
instituição.
109
Em frente ao palco situava-se a tenda principal. Neste ano de 2008, a abertura ficou
por conta do pai-de-santo Raimundinho-Dente-de-Ouro, que formou uma roda diante das duas
imagens de Iemanjá: uma da União e outra pertencente ao seu terreiro, localizado no bairro
Jardim Guanabara. Aparecem três jovens vestidas de sereia com cauda cor de prata e com
buquês de flores brancas artificiais nas mãos. Chamava a atenção a concentração das jovens,
que ficaram imóveis e eretas mesmo com as pernas atadas por conta da cauda de sereia. De
vez em quando, uma mulher vinha cuidar delas, evitando que elas perdessem a concentação e
a postura. A tenda recebeu uma decoração de tecido azul, numa composição com o prateado
das meninas vestidas como sereias do mar.
Figura 2 – Festa de Iemanjá na Praia do Futuro, em Fortaleza, 2008.
O pai-de-santo Raimundinho Dente de Ouro segue os seguintes rituais preparatórios:
defumação do espaço nos quatro cantos da tenda; saudação do altar com as imagens de
Iemanjá, aos atabaques, às autoridades religiosas presentes; palavras iniciais de saudação a
Iemanjá e cumprimentos aos pais e mães-de-santo presentes. Saúda ao senhor Manoel
Oliveira, ex-presidente da União, como fundador da festa – e não à mãe-de-santo Júlia
Condante, conhecida por ter fundado a Fundação Espírita de Umbanda e por ter sido a
responsável pelo começo dessa comemoração.
Segundo Mãe Júlia Condante, depois de diminuída a perseguição aos terreiros de
Umbanda no Ceará, ela pôde fazer as festas de São Jorge (Caboclos) e de Iemanjá na Praia do
110
Futuro. Vale ressaltar parte de uma entrevista com Mãe Júlia a respeito do começo da Festa,
conversa dirigida por Pordeus Júnior em 1979:
IP – Quem começou a fazer isso lá foi a senhora?
MJ- Foi, levando chuva. Já era pra ter estátua de Iemanna praia. Já era pra
ter (PORDEUS JÚNIOR, 2002, p.114).
Quando a praia era esburacada, sem urbanização, com difícil acesso aos adeptos, ela
levava seus filhos-de-santo num ônibus alugado e realizava uma grande festa. Com o passar
dos anos, reclamava a “anarquia” de algumas pessoas que não respeitam o sentido da festa.
Nesse sentido, são elucidativas as palavras de Mãe Stela:
Todo ano ela ia com todo mundo, saía daqui muito ônibus, porque ela exigia
que os filhos dela viessem para a festa de Iemanjá, era o carro de bombeiro
na frente o carro dela, o carro dela e os outros iam atrás. Ela fazia as
coisas dela tudo assim, legalizada. (MÃE STELA, maio de 2005)
Na continuação da festa, após os pronunciamentos, iniciam-se os pontos cantados;
sacerdotes e sacerdotisas, bem como os filhos-de-santo com taças ou copos de bebidas,
cachimbos ou cigarros, dançam, incorporam suas entidades espirituais. As entidades
conversam baixinho com aqueles que estão mais próximos, talvez aconselhando, consultando-
os. O público estava separado da roda por algumas cordas que reservavam o espaço para os
adeptos dançarem, cumprimentarem e abençoarem a todos num privilegiado momento de
contato com o divino.
Essa festa se faz acompanhada de rituais como as giras e as oferendas dos adeptos e
dos simpatizantes. Formaram uma roda e iniciaram a gira ao som dos atabaques e da
incorporação de alguns dos adeptos, entoando pontos cantados de Iemanjá. As oferendas
costumam ser objetos ligados à feminilidade e à beleza, como espelhos, perfumes, batons,
flores levadas ao mar. Esses presentes têm implícito o desejo de em troca alcançar graças e
realizar os pedidos. Todos esperam que suas oferendas sejam aceitas como prenúncio de
sucesso, aceitação das súplicas.
Mãe d’água mandou avisar
Que hoje não pode pescar
Que hoje tem festa no mar
Ieeeemanja
Ela é Rainha do mar
Traz pente traz espelho ôôô
111
Traz flores traz perfume
Retira a jangada do Mar
Mãe a’àgua mandou avisar
Que hoje não pode pescar
Que hoje tem festa no mar
Para a rainha do mar
A festa é momento de encontro e confrontação social. Não promove somente a
celebração religiosa, mas também o encontro de aspectos diversos da vida, como religião,
economia, política, prazer, lazer. A festa representa algo mais do que um acontecimento
social, ritual, comunitário, cíclico; tem uma função organizativa para a comunidade dos
adeptos.
Tomamos como referência o ano de 2008, quando pudemos observar diversos aspectos
a marcar a festa, como a propaganda de candidatos de vários partidos políticos que concorrem
às eleições municipais, a presença de organizações governamentais e não governamentais da
área de Saúde distribuindo panfletos da campanha contra a dengue e de preservativos,
vendedores ambulante, banhistas. Havia até um grupo de afoxé, o Acabaca, animando o
público que esperava a chegada da imagem de Iemanjá da União Espírita Cearense de
Umbanda.
Por seguida horas, a cerimônia acontece embalada pelos sons dos atabaques e da voz
dos adeptos, puxando os pontos cantados, homenageando a rainha do mar e as outras
entidades da linha das águas, como a cabocla Jandira:
Salve a Caboca Jandira
Salve a Sereia do Mar
Jandira ô
Jandira ô
Levanta teus filhos no mar
No espaço da festa, notamos que alguns sacerdotes e sacerdotisas aproveitavam para
explicitar o significado do evento em sua dimensão de cerimônia e festividade. Para eles,
deveria receber um tratamento diferenciado por parte das instâncias governamentais ligadas à
cultura, à educação, à segurança pública, por ser uma festa religiosa popular. Nesse sentido,
Mãe Conceição reclama dos governos Federal, Estadual e Municipal, que não apoiaram e não
respeitaram as diversidades das religiões afro-brasileirras e suas manifestações na sociedade
cearense, de maneira a deixar muito claro que a festa de Iemanjá não assume lugar de
prioridade na cidade.
112
Através da festa de Iemanjá, o grupo de umbandistas se organiza e ganha espaço para
publicizar essa religião, reafirmando valores do povo brasileiro e garantindo um vínculo
coletivo, um ato de produção da vida.
um investimento na construção de uma identidade religiosa associada aos
umbandistas e a sua inserção na sociedade cearense, expressão de alegria e indignações. A
festa permite reviver tradições, o mito de Iemanjá, criar novas formas de expressão, afirmar
identidades, preencher o espaço vazio dos umbandistas: é um momento de afirmação popular.
Visualizo a Festa de Iemanjá na Praia do Futuro como ato coletivo, representando uma
diversidade na comunhão dos grupos de religiosos que os afasta do terror da contigência e do
isolamento. Pela festa, os umbandistas podem se estruturar ou ressignificar sua religião. É
uma maneira de estar no mundo encontrando novas formas de reinventar ou reavivar os laços
sociais dentro da religião.
113
CAPÍTULO 3
MATERNIDADE SIMBÓLICA DA MÃE-DE-SANTO NOS TERREIROS
DE UMBANDA DE FORTALEZA E REGIÃO METROPOLITANA
114
O objetivo deste capítulo é descrever aspectos da maternidade exercida pelas mães-de-
santo da Umbanda de Fortaleza e Região Metropolitana. Parto do pressuposto inicial de que
as interlocutoras da pesquisa explicitam, por meio do exercício de seu sacerdócio, múltiplos
modelos de maternidade. Elas partem das referências nas quais elas se apoiaram como mães
dentro de uma ordem social, exercendo fortes poderes como mães, guiadas por mitos mais
tradicionais que habitam as práticas religiosas afro-brasileiras.
Sobressaem as representações da maternidade brasileira, resultantes também de
processos de transformação, mistura e combinações de diferentes elementos, o que nos
impossibilita absolutizar um tipo único de ser mãe-de-santo. Enquanto algumas mães-de-
santo valorizam a tradição na religião, tentando manter a complexidade deste sacerdócio,
outras promovem modelos não diretamente preocupados com a revalorização de uma cultura,
apostando em aspectos ligados a uma lógica de esvaziamento da solidariedade, da pertença e
dos laços coletivos. São lógicas financeiras marcadas pelo excesso de rituais vazios de
profundidade e de significados, sem compromisso com os fundamentos religiosos.
Trato das dimensões que envolvem o sacerdócio, a magia como atividade profissional
dessas mães, percebendo o relacionamento delas dentro dos terreiros e da sociedade
abrangente, com o propósito de saber o que é “ser mãee quais dificuldades e/ou facilidades
são encontradas no exercício dessa maternidade simbólica.
Nesta pesquisa, parti da perspectiva de ler o passado perpassado por resistência na
formação da família-de-santo. Hoje, ela certamente se apresenta marcada por mudanças
significativas provocadas pelas transformações na ordem econômica, social, política e
cultural, compreendendo que a tradição muda. Interessou-me fazer uma análise sobre quais
representações estão presentes, na contemporaneidade, no exercício da maternidade das mães-
de-santo por mim entrevistadas.
A ênfase recai nas histórias das mães-de-santo, no detalhamento de sua vida cotidiana
e do exercício de seu sacerdócio no universo mítico religioso com suas reelaborações, tendo
como foco particular a Umbanda.
115
3.1 - Maternidade na sociedade ocidental: a construção o mito do amor materno como
inato
Antes de adentrar a maternidade no universo mítico das religiões afro-brasileiras, é
salutar descrever a forma como se estruturou o sentido de maternidade na sociedade ocidental
e suas repercussões na sociedade abrangente brasileira, haja vista as interlocutoras da pesquisa
que deu base a este doutoramento terem partilhado dos códigos destas construções sociais e
históricas.
Empreendi uma pesquisa de mestrado durante os anos de 1995 a 1998 sobre o
fenômeno da maternidade, intitulada “Maternidade e Conjugalidade: múltiplos discursos na
construção de um devir mulher”, cujo objetivo foi conhecer e compreender a forma como as
mulheres, esposas e mães do Residencial Guadalajara, no bairro Parque Albano, cidade de
Caucaia, constroem as representações sociais sobre o casamento e a maternidade, tendo como
referência seus próprios discursos (CANTUÀRIO, 1998).
Diretamente me interessava não saber como se articulam as significações de
maternidade para esse grupo de mulheres, frente a hegemonia de modelos fabricados de
mãe, mas também perceber as possíveis formas encontradas de driblar as estruturas
instituídas, ou seja, os mecanismos que utilizavam para tornar a vida digna de se viver.
Entrevi que as mulheres, estando no mundo, fabricam as representações para que
assim possam se ajustar, conduzir-se, dominá-lo, identificar-se, enfim, resolver seus
problemas. As idéias que temos criam nosso universo simbólico, e através dele construímos e
sustentamos identidades grupais e institucionalizamos as práticas sociais. As representações
sociais criam, estruturam e institucionalizam práticas sociais. Nesse sentido, Jodelet (1991) a
define como uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um
objetivo prático e concorrendo à construção de uma realidade comum a um conjunto social.
As mulheres têm sofrido o peso das representações contidas no interior dos discursos
que historicamente a subestimaram, atribuindo a elas a inferioridade. Cabe uma análise
fecunda sobre os fatores que tornaram eficientes e eficazes os discursos sobre a maternidade
presentes na vida cotidiana delas. No que concerne a maternidade, posso afirmar que as
sociedades tem valorizado e institucionalizado diferentes tipos, e as mulheres procuram se
adaptar a eles para que, dessa forma, obtenham reconhecimento social de seu papel de mãe.
Trilhei os caminhos da subjetividade, o que me possibilitou compreender melhor a
relação entre a biografia individual das mulheres entrevistadas e os padrões históricos e
116
sociais que a explicam. Na verdade, as informações subjetivas são expressões da realidade
social, nas trajetórias de vida entrecruzam a subjetividade e a objetividade.
Apesar de toda complexidade existente ao tratar da maternidade, a percebo dentro dos
domínios socioculturais, isto é, inseridos nas dimensões da sociedade e da história. Fatores de
ordem social e psicológica são predominantes. A categoria esposa-mãe é entendida como
construção social e o algo do plano divino ou do biológico. Nesse sentido são elucidativas
as palavras de Aragão:
Em outras palavras, trata-se de problematizar o conteúdo relacional da
categoria esposa-mãe, em termos de categoria representativa de um feixe de
relações socialmente determinado e marcado por representações valoradas,
ou por emoções culturalmente construídas. Ou ainda consideremos a
categoria esposa-mãe como significativa de uma posição (logo estrutural) à
qual se aloca um valor (logo cultural) sacralizado. se situaria, de forma
eminente em nosso entender, o fulcro de alguns princípios relacionais
próprios à nossa sociedade (1993, 114).
A mulher-esposa-mãe, convivendo em sociedade, interagindo historicamente, está
imersa no mundo simbólico, universo assujeitado pela linguagem, o que necessariamente
exige ser feito fora da ordem da natureza.
A maternidade tem circunscrita a ela o amor materno, um tema carregado de
especificidade justamente por ser ainda hoje um tema sagrado. Questionamentos sérios foram
despertados na humanidade ao longo dos tempos a respeito da ordem da natureza. Com
certeza Margarete Hildeferding canalizava nosso objeto de estudo numa conferência em 11
de janeiro de 1911, quando discutia a “natureza instintiva” do amor materno, trabalho este
considerado o primeiro a ser realizado por uma mulher na psicanálise.
Margarete Hildeferding propõe pensar o amor materno não dentro de uma ordem pré-
estabelecida e pré-determinada de algo natural ou inato. Parte do pressuposto de que a mulher,
como ser histórico e com faculdade de simbolizar, de falar, portadora de desejos, é um ser
particular que vive imerso no universo simbólico. Dessa forma, o amor materno faz parte do
mundo dos sonhos, da linguagem.
Trabalho também de grande importância tem sido a pesquisa realizada por Badinter ao
estudar a maternidade o amor materno na sociedade francesa durante os séculos XVI e
XVII. Ela encontra testemunhos que contrariam o discurso do amor materno como sentimento
inato, justificado pela hipótese da biologia ou da religião, uma explicação mítica. A autora
assinala:
117
Não poderíamos pensar que, se tivesse havido algum amor materno por
ocasião do nascimento, ele se teria estiolado à falta de cuidado? Será absurdo
dizer que, à falta de ocasiões propícias ao apego, o sentimento simplesmente
não poderia nascer? Responder-me-ão que levanto por minha vez a hipótese
discutível de que o amor materno não é inato. É exato: acredito que ele é
adquirido ao longo dos dias passados ao lado do filho, e por ocasião dos
cuidados que lhe dispensamos. É possível que à ausência do ser amado
estimule nossos sentimentos, mas ainda assim é necessário que estes tenham
previamente, e que a separação não se prolongue demasiado. Todos sabem
que o amor não se exprime a todo o momento, e que pode perdurar em
estado latente. Mas se não se cuida dele, ele pode se debilitar ao ponto de
desaparecer. Se faltarem oportunidades para se exprimir o próprio amor, se
as manifestações do interesse que se tem por outrem são demasiado raras,
então se corre o risco de vê-lo morrer. (1985, 14-15).
Como assinala Badinter, comportamentos diferentes em relação a criança
predominaram na França no século XVI e no século XVII, marcados por um verdadeiro
desinteresse ou abandono à criança fatos que nos causam espanto hoje, quando a criança
torna-se o centro da família moderna.
Nessa época, na França, as mães não se importavam tanto com o cuidado com seus
filhos. Não havia uma valorização do sentimento de maternidade não que não existisse o
amor materno, mas sua presença não era intensa, era quase extinto. A maternidade não
causava atrativo algum, tanto para as mulheres abastadas quanto nas pobres, pertencentes a
pequenas ou grandes cidades. As primeiras porque estavam engajadas em compromissos
sociais; para elas, gastariam seu tempo em coisas melhores, realizando seus desejos e
ambições, estavam voltadas para a vida mundana, enquanto as segundas viviam trabalhando
arduamente na cidade. Assim, elas encontravam-se nessa impossibilidade, pois não queriam
maternar os bebês, terminavam entregando-os as amas-de-leite camponesas.
No século XVII, essa prática de enviar o filho para a casa de uma ama-de-leite se
generalizou entre as famílias urbanas francesas, tornando-se uma prática popular. Com a falta
de higiene, de saneamento básico, de meios de transportes e comunicações eficazes, muitas
vezes transcorriam longas separações entre pais e filhos (três a quatro anos) sem que as
verdadeiras mães tivessem noticias de seus filhos, ou quando recebiam algumas tratavam de
sua morte. Para algumas mães, esse fato era tratado sem alarde, com naturalidade, ficando por
isso mesmo, pois as mães geralmente não se ligavam nessa perda. Para esses pais era sem
sentido saber as causas, pois a sociedade da época não compreendia o lamento em se perder
uma criança, ser este tão imperfeito e inacabado.
Com a finalidade de solucionar esse problema de alta taxa de mortalidade infantil,
diminuição da densidade populacional, novos argumentos vieram à tona, edificaram “novos
118
conhecimentos” pautados no dever e obrigação, ou na lei da natureza, com o intuito de
provocar na mãe a vontade de retornar a sua atividade “instintiva” de ser mãe, pois isso
significaria retornar à boa natureza”. Promessas e ou ameaças foram desencadeadas sobre as
mulheres.
Estavam contidas no interior desses discursos recomendações impondo à mulher a
obrigação de ser mãe – e acima de tudo uma boa mãe, capaz de transmitir valores, saberes aos
filhos, devendo dispensar a eles um amor natural e instintivo: o amor materno.
Pautados nos argumentos da ordem da natureza, nesses discursos representados pelo
saber higiênico de moralistas políticos incentivava-se insistentemente ao apelo a natureza,
revalorizando o papel da mãe através do aleitamento. As mães eram conclamadas a realizar tal
tarefa carregada de empenho, pois somente as mães, com suas vontades, garantiriam forças às
grandes nações.
Passou-se à caracterização da mulher-ideal aproximando-a da noção de fêmea, boas
reprodutoras, sem curiosidades ou ambição, adormecida, privada de própria liberdade em
nome do filho. Estudiosos formularam a teoria da maternagem, em que a mãe deveria
permanecer em casa para que fosse possível cuidar e prestar atenção aos filhos. De acordo
com essa, caberia a cada mulher retornar às atividades esquecidas da maternidade.
De um lado, promessas se fizeram presentes como atrativo à maternidade e outras
ameaças tornaram-se constantes com o propósito de, por meio do medo e da culpa, fazer com
que as mulheres incorporassem sem reclamos a função natural da mãe.
As ameaças não eram amenas, pois se todas as razões não fossem suficientes para que as
mulheres aderissem à esse novo papel, necessário seria combatê-las através das ameaças, tais
como: se não fossem mães, estariam mais aptas a contrair doenças como o câncer, ou mesmo
estariam cometendo um pecado. Assim, tudo se somava a ponto de fazer com que elas
internalizassem a culpa por não serem boas mães.
Badinter trabalha com uma multiplicidade de imagens de maternidade; imagem de boa
mãe, de mãe cruel, mãe malvada e tantas outras presentes na história circunscrita de acordo
com os determinantes sociais ou culturais de cada mulher. As mães, de modo geral, são as
vítimas mais diretas desse discurso.
No século XIX, experimentam sentimentos ambíguos e até mesmo contraditórios em
relação a maternidade, pois angustiavam-lhes o encargo de cuidar dos filhos para muitas ele
continua sendo semelhante ao que presenciou-se no século XVI e século XVII, ou seja, um
fardo pesado de que tem desejo de se livrar.
119
Historicamente o modelo de maternidade que predominou na realidade brasileira foi
definido conforme suas necessidades, principalmente de ordem econômica e sociocultural,
fomentado então pelo discurso da Igreja Católica, Estado e pelo discurso médico da “santa
mãezinha”. As palavras de Isolda Castelo Branco ajudam a melhor compreender:
No Brasil colônia, a maternidade tinha objetivos definidos: as mulheres
deviam integrar o projeto colonial de povoamento e o projeto normatizador
da Igreja; essa, atendendo às prescrições do Concilio de Trento, procurava
adestrá-las para que se submetessem ao modelo da boa-e-santa,
concretizando dessa forma o projeto de mãe-ideal. (1996, p.2)
No Brasil, constata-se que no século XIX um novo valor se delineia na sociedade,
fomentado tanto pelo discurso da medicina social como dos moralistas e administradores o
amor materno.
As bases do amor materno e as representações sociais em torno desse sentimento
deveriam ser experimentadas por toda mulher. Os discursos caracterizam esse sentimento
com: inato, inerente à condição feminina, abnegado, universal e necessário, equitativo,
intenso e imutável. As mulheres normais com certeza confirmariam tais características de
modo a estar de acordo com a natureza.
O amor materno como inato determinaria o tipo ideal de mãe, aquela portadora de
paciência, inteireza, generosidade, bondade eterna, inabalável e ilimitada. Essa mulher deveria
encarar o modelo da Virgem Maria. A ela cabe o papel de parir, amamentar e educar com
sucesso os filhos, responsável pelos desígnios do lar e de toda a família. A casa será espaço
sacralizado da mulher-mãe.
Hoje, apesar de todas as mudanças ocorridas na vida das mulheres advindas quer do
movimento feminista quer das transformações nas estruturas sociais, econômicas ou políticas,
as representações sociais que fomentaram os discursos tradicionais sobre a maternidade
continuam vivas entre nós, impregnando nossa mente.
A maternidade na sociedade ocidental está carregada de ambigüidades; nela se
entrelaçam desencontros, conflitos, a ponto de se dar o distanciamento ou cisão com o modelo
posto da boa mãe. No entanto, para efeitos de compreensão, considerei necessário estabelecer
um encadeamento para as diferentes fases dos discursos das mulheres pesquisadas, suas falas
apresentaram diferentes marcas na subjetividade.
A primeira fase denominei de palavra inaugural. As mulheres quando inquiridas sobre
as funções de esposa e mãe se (re)apresentavam munidas do perfil identitário por todos
requeridos da boa e santa mãezinha. Há uma identificação do que ela relatava com o tipo ideal
120
caricaturado no espaço sociocultural, no qual estão inseridas. A subjetividade recorre à
imagem tida como ideal, fazem uso das opiniões prontas.
As mães usam o modelo identitário e representacional ao incorporar a imagem de
santa e boa mãezinha, abnegada, cuidadosa dos filhos e responsável. Esse amor e essa
dedicação se fazem dentro da ordem da “natureza”.
Interessante e ao mesmo tempo difícil é indagar quais as representações sociais que
alicerçam as idéias de maternidade como sentimento inato, pois sabemos a marca e a
vitalidade que teve e continua tendo tais idéias nas relações entre homens e mulheres na
sociedade brasileira.
Durante a pesquisa de mestrado, quando as interlocutoras eram interrogadas sobre o
que é ser mãe, ao responder diretamente, percebi o quanto tem legitimidade o discurso do tipo
ideal de mãe, do que se generaliza no senso comum como normal, expressas por intermédio
das seguintes frases:
É a realização de toda mulher, é só quando ela se realiza;
Coisa boa, tem um ser que você passa a dividir carinho, ser mãe é tudo,
significa que ganhou mais alguma coisa;
É tudo pra mim, minhas duas filhas, elas fazem a vida, é um sentimento que
não acaba;
É uma benção de Deus;
É uma descoberta, eu gosto, sou mais mãe que mulher, fico mais para o lado
dos filhos, já do lado do marido, não;
É tanta coisa! É ser tudo, não tem nem como explicar. È padecer no paraíso,
é muito bom. (CANTUÀRIO, 1998)
O discurso da tradição cristã esteve presente nas falas das entrevistadas, leva a mãe a
retirar-se completamente do modelo de Eva (pecadora, rebelde, responsável pelo “supremo”
crime) para encarar o modelo de Maria, marcada pela bondade, santidade, dedicação e
devotamento aos filhos. Uma das entrevistadas, ao ser interrogada a respeito do que é ser mãe
e da multiplicidade de papéis que a mulher assume na sociedade, afirmou viver hoje muito
mais o papel de mãe e de profissional (professora) do que outros papéis (esposa e amiga).
Há, na verdade, uma contradição entre as imagens de Eva e Maria. A primeira é
perigosa, vulnerável às tentações da carne, vaidosa; atributos como malignidade e
imperfeições são suas marcas. A esse respeito, assinala Zaíra Ary:
(...) tal como Eva, seriam igualmente seres “sexualmente perigosos” e
prejudiciais aos homens, na medida em que seriam capazes de desviá-los do
seu destino da perfeição espiritual compreendida, aquilo que chamam de
perfeição racional. No arcabouço religioso mais geral, esta concepção
121
católica sobre as mulheres se enquadra funcionalmente em relativa sintonia e
coerência com as concepções mais evidentes de condenação do corpo e da
sexualidade, e com a valorização da virgindade e do celibato. Estas
concepções, historicamente cristalizadas e codificadas em um sistema
complexo de normatividade, vigentes no mundo cristão, vêm regulando as
relações afetivas e sexuais entre homens e mulheres, ocasionando
freqüentemente muitos equívocos, muitas dores e incontáveis desencontros
irreversíveis (1997, p.6)
A segunda, Maria, mulher assexuada (despojada de sexualidade), santa, modesta,
doce, resignada, silenciosa, humilde e acima de tudo obediente. A Virgem Maria conseguiu
alcançar o estágio superior de perfeição moral e espiritual na qualidade de mãe. Para Zaíra
Ary, as mulheres seguidoras de Maria são:
(...) semi-divinizada, tomada como modela de submissão, de pureza e de
sofrimento, o aparentemente revalorizadas, e tidas simbolicamente como
“salvadoras” da sociedade, em função de seu papel maternal idealizado, no
quadro da família sacramentada, quer dizer, do casamento visto como mal
necessário (...). Supondo também que tal idealização, inerente à modalidade
esposa-mãe submissa e sacrificada muito propagada pela ideologia
tradicional, reaparece atualmente de certa forma camuflada na modalidade
mulher-esposa-mãe-corajosa, Maria do Magnificatt-modalidade esta
valorizada pela Teologia da Libertação (...) (1997, p.7)
A teologia cristã, embora fomentando os princípios do amor e igualdade entre os
humanos, deixou seqüelas irreversíveis na vida de mulheres quando conseguiu, com êxito,
reforçar e justificar a autoridade do homem sobre a mulher mas também mistificou a idéia
do eterno feminino, cristalizado na mente de toda humanidade judaico-cristã a dupla imagem
contraditório de Maria e Eva.
A tradição cristã associou à imagem da mulher a noção de pecadora, aquela que
transgride: Eva cometeu o pecado original, ousou contra Deus, é marcada pela audácia,
ousadia, curiosidade e vontade de poder. Agindo como agiu, recaiu sobre ela o castigo e as
maldições.
A maternidade passa a ser exaltada, se converte na atividade mais invejável e doce que
uma mulher pode realizar. O amor materno é a origem e o ponto fundamental da criação do
espaço sentimentalizado do lar, em cujo interior a família vem se refugiar.
A partir dessa nova importância atribuída à maternidade, uma nova percepção acerca
da criança também se delineia: ela passa a ser o bem mais precioso para a mulher. Contudo,
precisa ser bem cuidado, controlado, vigiado e educado. Tem-se ampliado as
responsabilidades da mãe.
122
Visando assegurar sua permanência no espaço privado do lar, foram demarcadas para
as mulheres, as novas es, certas características consideradas eminentemente femininas, tais
como: sensibilidade e dedicação no estabelecimento de uma relação natural com a criança,
atribuindo ao sentimento materno um instinto natural e, portanto, experimentado num mesmo
grau de intensidade por todas as mulheres.
A maternidade passa a fazer parte da natureza feminina. É natural esse devotamento
exacerbado de toda mãe aos seus filhos. As responsabilidades da mãe consistem em sentir,
cuidar fisicamente dos filhos, bem como educá-lo, direcioná-los corretamente na vida,
prepará-los para futura vida adulta.
Para Badinter, as primeiras mães que aceitaram a maternidade como uma função
desejável e gratificante foram as burguesas, por perceberem que teriam oportunidade de
promoção e de emancipação. Como mães, exerceriam poder sobre a família, em especial
poderiam contar com a submissão dos filhos. Dona de casa, “rainha do lar”, com poder de
mando e desmando, justificada por ser a autoridade máxima no território doméstico, a mulher-
esposa-mãe passa a se impor mais ao marido, tendo certo reconhecimento de que, na
realidade, detém poderes.
O discurso de incentivo à maternidade provocou a ampliação do controle da mãe sobre
os filhos. Na verdade, as mães passaram a deter poderes especiais. A mulher tem
desempenhado um tipo de controle sutil dentro de casa, quando toma para si exclusivamente
as atividades domésticas, a educação dos filhos, não divide as tarefas do espaço privado. Para
garantir esse poder, acaba sobrecarregando-se de atividades, deixando ao seu companheiro
pouco a fazer, a cumprir.
A ideologia burguesa reafirmou a inferioridade feminina através de teorias
pseudocientíficas baseadas sobretudo nas particularidades do corpo biológico da mulher. A
medicina social do século XIX passou a impor ticas médico-higiênicas à família, normas e
regulamentos de saúde que redefiniram novos papéis sociais do homem e da mulher no
casamento, e que até hoje impregnam suas vidas. A educação conduzida pela higienização
confinou as condutas sexuais masculina e feminina às funções sentimentais de pai e mãe. O
verdadeiro homem era aquele capaz de ser o pai provedor, e a mulher deveria realizar-se
como mãe responsável.
O saber higienista incentivou a noção preconceituosa da submissão da mulher e da
superioridade masculina, ao estabelecer os novos papéis de homem e de mulher na sociedade.
Consideravam que ao homem cabia exercer profissões intelectuais, marcado por qualidades
másculas do vigor, da força e da firmeza, todas justificadas como impulso natural. E a mulher,
123
dada as suas supostas fragilidades e incapacidades, deveria exercer tão-somente as atividades
domésticas, sendo ela a responsável pela harmonia na família.
Para os higienistas, só como pais e mães os homens e as mulheres conseguiriam
conviver e superar suas diferenças sentimentais. A higienização exaltava a sexualidade
conjugal, mas passou a regulamentar o papel do homem e da mulher na sociedade,
incentivando a diferença entre eles. Dessa forma, fomentou o machismo, o sexismo,
aumentando as responsabilidades das mulheres para com seus filhos, impondo como natural e
instintivo o amor materno, exaltando a figura da mãe dedicada e carinhosa, regulando ainda
mais a vida da mulher.
Torna-se evidente, a partir disso, a busca de uma explicação para a sujeição da mulher
em sua capacidade procriativa, no exercício da maternidade, como também na maior força
física e intelectual do homem, de forma a ficar claro que ela não se encontrava em condições
de igualdade para medir forças ou comparar-se a ele. A independência da mulher não era de
forma alguma cogitada, com a intenção de ela não extrapolar as fronteiras da casa, da vida
doméstica, lugar tido por excelência da mulher-mãe.
Quanto à maternidade, as sociedades têm valorizado e institucionalizado diferentes
tipos, e as mulheres procuram se adaptar a eles para que, dessa forma, obtenham
reconhecimento social de seu papel de mães. Ser mãe, de acordo com o discurso ordinário que
impregnou a sociedade brasileira, significa adentrar no aspecto biológico e natural.
A segunda fase dos discursos das mulheres foi marcada pela culpa, que denominei de
fase da inculpação, pois, quando inicialmente notei que elas faziam uso do modelo identitário
e representacional da boa e santa mãe, verifiquei que expressavam uma sensação de culpa,
demonstrando um mal-estar generalizado, denunciando insatisfação, medo e culpa ao assumir
o papel de mãe.
As mulheres experimentam o processo de desestabilização de forma a denunciar a
busca do tempo perdido depois da experiência de maternidade. A respeito dessa experiência
de desestabilização, Suely Rolnik nos diz:
Essa experiência tende a ser vivida como fragilidade. O medo não é
mais o de não conseguir configurar-se segundo um certo mapa, pois
múltiplos são os mapas possíveis. O medo agora é não conseguir
reconfigurar-se de todo, de forma minimamente eficaz. (1996, p.2).
Nesta fase delineiam-se questionamentos, embora não muito conscientes, sobre as
expressões identitárias de santa e boa mãe, expressavam vivamente a culpa. Não se trata de
124
passividade ou conformação com o modelo representacional, de realizar a contento as
agradáveis funções de mãe as mulheres expressam bem mais que isso, a busca do tempo
perdido. Elas apresentam como marca a auto-culpabilização, forçadas a exercer um
autocontrole sobre si mesmo no desempenho de suas funções.
A dificuldade em realizar-se como mãe tem suas razões vale acrescentar que é uma
consciência imputada pelo outro do que é valorizado como bom e correto, com o poder de
julgar e de cobrar o não-cumprimento do modelo de referência válido para todas nós.
Internalizam a culpa por não terem maternado seus filhos, por terem agido diferente ao padrão
de mãe apontado e cobrado pela sociedade. A culpa propõe sempre uma imagem de referência
do sistema de disciplinarização, requerendo saber: quem é você? Culpada a mãe, em muitos
casos, não tem nada a fazer a não ser calar e interiorizar os valores dominantes, ou por força
do sofrimento potencializar a transgressão à moral vigente.
A incompatibilidade entre o olhar dos outros e o seu próprio olhar traz sérias
conseqüências no sentido de restringir sua ação. Desse modo, ela se encontra paralisada e
enfraquecida. As mulheres perturbadas pelo processo identitário de mãe experimentam os
sentimento de culpa, e por meio desses sentimentos provam a compaixão por si mesma e o
desejo de melhorar.
As mulheres assumem a identidade representacional do outro. Contudo, elas, ao se
apropriarem dessa representação identitária, expressam um misto de sensações (medo, culpa,
fragilidade) e, a partir dessa apropriação, podem ascender, ir muito além. Fazer um bom uso
das identidades majoritárias rumo à construção de um território particular são as
características da terceira fase que denomino a da construção de um devir mulher por
possibilitar a construção de processos de autonomização.
As mulheres nessa fase elucidam um processo de individualização/singularização, em
que elas reivindicam as subjetividades singulares. Para Rolnik, esse processo exige o seguinte
das mulheres:
(...) deslocar-se radicalmente de um modelo identitário e representacional,
que busca o equilíbrio e que despreza as singularidades. Trata-se de
apreender a subjetividade em sua dupla face: por um lado, a sedimentação
estrutural e, por outro, a agitação caótica propulsora de devires, através dos
quais outras e estranhos eus se perfilam com outros contornos, outras
estruturas, outros territórios. (1996, p.5)
Parto do pressuposto de que os inconscientes protestam. A sociedade produz a mulher-
mãe; ela, por sua vez, produz a sociedade, num esquema lógico de causa e efeito, de ação e
125
reação, de construção e desconstrução. Tratar da mulher-mãe como sujeito implica operar
com a noção de autonomia, pois não existe sujeito sozinho ou pré-existente: todo sujeito é
social e político.
Algumas das mulheres conseguem construir, em certos momentos, subjetividades
dissidentes, de modo que resistiram e protestaram direta ou indiretamente contra as
referências identitárias de mãe. A produção de outra subjetividade se expressa como recusa e
consumo dos kits de perfis-padrão que controlam a ordem social. O processo de constituição
de subjetividade singular surge em confronto à subjetividade serializada produzida em escala
planetária (ROLNIK, 1996)
Quando me refiro a processo de autonomização, tomo Guatarri (1996) como
referência, ao compreender a subjetividade como essencialmente social. Assim, as mulheres
vivem essa subjetividade cotidianamente de dois modos: primeiro, numa relação de
alienação/opressão, submetendo-se à subjetividade tal como a recebe; depois, numa relação de
expressão/criação em que se reapropriam dos componentes dessa subjetividade, produzindo o
complexo processo de autonomização, ou seja, possibilidade de expressar desejo e resistência.
Dessa forma, essas mulheres mães têm encontrado novas maneiras de viver, mesmo correndo
o risco de submergir.
A gravidez, o parto, o cuidado com os filhos magnificam a mulher, e por meio da
imagem da mãe ideal, as mulheres utilizam seu poder, legitimado no interior do lar para fazer
parte do processo de normatização da sociedade. As mulheres tentam redimensionar a
maternidade, e a luta agora se inscreve, consciente ou inconscientemente, rumo à diferença,
querendo obter um lugar reconhecido, de construção do devir mulher.
Questionar os padrões e as exigências que a maternidade carrega e demonstrar
diferença ou rejeição da mãe ao filho não foi fato típico apenas dos séculos XVI e XVII,
como assinalara a pesquisa de Badinter (1985). Em alguns casos, o filho é um fardo, do
qual deseja se livrar o mais cedo possível. Contudo, expressar tal sentimento pode custar
muito caro à mãe, com certeza engrossará a fileira das mães más, “anormais” e desviantes.
Estereótipos que as fazem cair na categoria de diferentes e no alvo da exclusão.
Essas mulheres reivindicam o direito de exercer de modo particular a maternidade.
Explícita ou implicitamente, querem mudar ou alterar as regras do jogo para poder viver
melhor.
Desencadeia-se a vontade de recusar o sacrifício de ser e, com todas as
prerrogativas inseridas, ou seja: dedicada em excesso, assexuada, abnegada, de acordo com
a ordem divina. A mãe, ao sair do imaginário enganador de boa e santa mãe, adentra na ordem
126
humana social expressa, pela luta contra a repressão dos sentidos e das emoções puramente
humanos.
A autonomização é um processo de recusa, reapropriação e resistência à subjetividade
serializada. Guatarri explica:
(...) apostar na produção de um novo tipo de subjetividade, libertando-
se do sistema opressivo de que são objetos a muito e muito tempo,
querem se livrar dos sistemas padronizados em seu campo, devendo
criar seus próprios modos de referência, sua próprias cartografias,
devem inventar sua práxis de modo a fazer brechas no sistema de
subjetividade dominante. (1996, p. 49)
Garantir um modo particular de ser mãe, reafirmação de uma posição singular que
ocupam, faz com que as mulheres vivam e resistam aos empreendimentos de nivelamento da
subjetividade, rumo à lógica discursiva representacional de santa, boa refiro-me ao devir
singular, como maneira de existir autêntica.
A mulher vai compensar sua fraqueza a ser mãe, pois pode reconstruir sua
subjetividade como estratégia para poder viver. A partir das representações sociais, elas
podem utilizar as identidades-prótese, fazendo dessa representação um perfil identitário.
Considero, portanto, que suas narrativas, em que comumente denunciam o interminável
trabalho e o espaço desmesurado que tornam a vida da mulher-mãe muito difícil como uma
estratégia de ascender, de ir além.
Ser mãe tem suas vantagens. Essas mulheres farão uso do corpo sacralizado, sagrado
de boa e santa mãe, para criar o diverso. Visualizo que a criatividade dessas mulheres
caracteriza-se por ser oculta num emaranhado de astúcias sutis e por vezes eficazes. Diria que
as mães inventam uma maneira própria de caminhar pela subjetividade imposta.
Torna-se importante salientar que, ao falar de resistência da mulher-mãe, o faço no
sentido não de uma oposição radical ao modelo estabelecido pela ordem social, mas sim me
voltando para o lado da sombra, tomando a vida do aqui e agora, minimamente digna de
viver, uma sorte melhor ou seja, as mulheres-mãe demonstram um entusiasmo pela vida.
Falar dessa alegria de viver leva a considerar as palavras de Vernant ao reinterpretar o
dionisismo:
Nem no ritual, nem nas imagens, nem nas Bacantes, percebe-se a sombra de
uma preocupação de salvação ou imortalidade. Aqui, tudo se representa na
existência presente. O desejo incontestável de uma liberação, de uma evasão
para um Além, não se exprime sob a forma de uma esperança de uma outra
127
vida, mais feliz, depois da morte, mas na experiência, no seio da vida, de
outra dimensão, de uma abertura da condição humana para uma bem
aventurada alteridade. (1991, p. 253)
As mães não deixam este mundo. Fazem uso das representações sociais, e por meio
delas tornam-se outras, pela força que as habita. Por um momento são outras, não no absoluto,
mas em relação aos modelos normais e valores próprios à sua cultura. As mulheres
conscientes da brevidade da vida preferem não correr atrás do inacessível de uma organização
em nível macro-estrutural, mas consagram sua vida à felicidade. Dentro e a partir das
condições de existência postas, tentam encontrar sua felicidade, recolhendo as representações
majoritárias colocadas a seu alcance.
As mulheres aceitam seu destino, pois sabem que não são nada diante das forças que
transbordam de todas as partes, cobranças, imposições ao modelo identitário, temerosas à
marginalização. Elas se submeterem, mas sutilmente fazem emergir dentro delas as múltiplas
subjetivações de não ser o mesmo, mas o fundador do outro.
A autonomização depende do mundo exterior: nesse sentido, as mulheres tanto usam
os modelos produzidos pela subjetividade maquínica como são capazes de produzir fora da
estrutura geral, fora da organização global, e com poder de revolucionar. Por meio de linhas
de fugas emergem as singularizações, a partir da estrutura existente dão evasão às emoções,
aos desejos.
Contudo, entrevi que nem toda mulher tem necessariamente uma pulsão irresistível a
ser mãe, de ocupar seu tempo com o filho. A multiplicidade de discursos mostra que a
mulher-mãe quer cada vez mais viver livremente, instruir-se e administrar sua vida. Seu
desejo parece ser o de provocar o aniquilamento dos saberes que lhe aprisionam. Em
momento algum ela nega a função de mãe; quer, pois, vivê-la em liberdade, assumindo-a por
amor e não por imposição.
3.2 Maternidade simbólica: imaginário social e simbolismo na Umbanda
Ao tratar da maternidade simbólica das mães-de-santo, é preciso ter claro que, no
âmbito das religiões afro-brasileiras, a forma como exercem a maternidade não está desligada
de um sistema simbólico, das representações sociais construídas histórica e culturalmente e
128
que edificam discursos hegemônicos sobre a maternidade. As práticas de maternidade
brasileira, desde os tempos coloniais, retraduziu o imaginário em torno da “boa e santa mãe”
(DEL PRIORI, 1993) como também da mãe disciplinada pela medicina social através do
Projeto de Higiene que acabou por definir o que é ser mãe e ser pai, a partir do século XIX
(COSTA, 1998).
Esses modelos perduraram desde o escravismo, ressaltando sempre a figura da mulher
subordinada à autoridade do pai, dedicada abnegadamente aos cuidados da família, do marido
e dos filhos. Outros modelos de maternidade foram experimentados por famílias indígenas,
negras, pobres, embora o modelo hegemônico fosse o da família de elite. É natural que eles
tenham coexistido num país como o Brasil, de grande extensão territorial, marcado pela
diversidade étnico-racial e regional; homens, mulheres, negros e brancos constituíram formas
diversas de viver e sobreviver nos papéis de pai, mãe e filho.
O conjunto desses elementos influenciou as práticas das mães-de-santo dentro das
família-de-santo. Outras construções e imbricamentos em torno da maternidade tomaram
corpo, como as grandes mães ancestrais africanas e seus descendentes, mulheres-mães
orientadas pelos arquétipos das divindades de seu panteão religioso, representantes da
maternidade de diferentes e complementares formas. Esses modelos de maternidade não
alcançaram o mesmo nível de legitimação entre os discursos oficiais voltados para o
adestramento da família como responsável pela consolidação do Brasil como nação.
Portanto, quando intencionamos localizar de onde vêm as primeiras marcas das
práticas sacerdotais das mães-de-santo, carecemos recuar um pouco na nossa história e ver a
forma como a população escravizada buscou resistir, mediada pela formação da família-de-
santo como prática religiosa, ao brutal processo de fragmentação de sua cultura. Nesse
contexto, a população negra não renunciou a seus valores, mas procurou formas variadas de
resistência o que nem sempre se fez de modo direto, bem como não absorveu totalmente o
que lhes era imposto pelo sistema dominante. De modo geral, foi reelaborada uma cultura
compatível com suas origens e tradição, buscando formas de justapor seu patrimônio cultural
e religioso ao modelo oficial determinado e estruturado sob pressão de moldes eurocêntricos,
católicos, brancos e de elite.
Dei ênfase à questão da resistência no campo religioso. As religiões são sistemas de
símbolos compartilhados por grupos de pessoas que traduzem o seu ethos. Com seu modus
vivendi, sintetizam as concepções de mundo, os padrões morais e estéticos do grupo social, de
aparelhos de produção simbólica institucionalizados.
129
Com a secularização, afirmou-se haver um retraimento do sagrado diante do
predomínio da razão, das explicações cientificas e não-religiosas na modernidade sobre o
mundo. No entanto, para alguns estudiosos do fenômeno religioso, no último quartel do
século XX as religiões têm se revitalizado, expandido e multiplicado consideravelmente, ou
seja, o fenômeno da dessecularização, a capacidade de a religião resistir ao ataque cerrado
da modernidade, num retorno revigorado desta.
Coexistem na nossa sociedade mecanismos plurais de construção da subjetividade
humana. A religião, mesmo diante do processo de secularização, ainda é centro organizador
das relações, exerce influência significativa nas pessoas através das funções de produção e
reprodução de sistemas simbólicos, que têm influência direta sobre as representações sociais
acerca do “ser mãe” na construção sociocultural de homens e mulheres.
Bastide (2006) considera que, na contemporaneidade, o sagrado explode os limites das
instituições religiosas e pode ser localizado na contemplação mística da natureza e do belo, no
universo onírico, nos movimentos revolucionários e nas mitologias modernas. É aquele que
escapa a controles e formas de domesticação.
A crise das instituições religiosas, o desenvolvimento técnico, os processos
modernizadores e as revoluções políticas, longe de banirem o sagrado da vida contemporânea,
levaram ao seu redimensionamento. Na contemporaneidade, encontramos a necessidade
humana do divino. A vida assume, portanto, outros contornos, experiências mesmo que
“desajeitadas” – com o retorno do sagrado. Tem-se a religião instituída, mas também o
sagrado “selvagem” na dimensão instituinte.
A compreensão da religião exige de nossa parte a reflexão sobre a complexidade que
circunda tal conceito, pois as religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilidades
próprias. Do ponto de vista de um indivíduo religioso, a religião caracteriza-se como a
afirmação subjetiva de que existe algo transcendental, maior, mais fundamental do que a
esfera imediatamente acessível. As religiões se compõem de várias dimensões: de fé,
institucional, ritualista, de experiência religiosa e a dimensão ética. Podemos dizer que as
religiões cumprem funções individuais e sociais.
A religião como instituição social preenche funções vitais da dimensão sagrada
dimensão esta que se interessa por questões de significação fundamental, como o sentido da
vida, do sofrimento e da morte, e os meios adequados para se manter a esperança em um
130
futuro melhor. Essa outra dimensão adota formas amplamente diferentes em diversas culturas
e está sujeita às múltiplas sensibilidades e interpretações dos indivíduos (HOLLIS, 1996).
A religião é um tipo de ação social cuja compreensão só pode ser alcançada a partir de
vivências, representações e fins subjetivos dos indivíduos, ou seja, do sentido (PANIKAR,
1993).
Roger Bastide (1971) acredita que a presença das forças religiosas não é sempre a
presença do medo, mas também da força, da paz ou da alegria. Assim, as religiões guardam
relação com as estruturas sociais, inclusive com suas condições econômicas. Os valores
religiosos não estão desconectados da forma como a sociedade se mantém e se reproduz.
A religião dá sentido à vida, alimenta esperanças para o futuro próximo ou remoto,
com potencialidade de compensar sofrimentos. Além disso, as religiões integram socialmente,
uma vez que membros de uma comunidade religiosa compartilham da mesma cosmovisão,
seguem valores comuns e praticam sua fé em grupos. Tratarei das formas de sociabilidade nas
religiões afro-brasileira com destaque para as famílias-de-santo, haja vista esta ser
responsável pela rede de relacionamentos e pelos referenciais sociais, a inserção dos adeptos
na comunidade de terreiro (TEIXEIRA, 2000).
Entrevi, por meio da pesquisa, que algumas mães-de-santo nos seus terreiros insistem
na permanência e na valorização da tradição na religião, tentando manter a complexidade
desse sacerdócio enquanto outras promovem práticas individualistas como o consumo e a
venda de bens sagrados, na qual alguns pais e mães-de-santo deturpam a religião,
aproveitando-se financeiramente dela. Isso tudo tem provocado desdobramentos internos e
externos na Umbanda.
A Umbanda é uma religião que reúne, estabelecendo uma nova ordem mítica em que
índios, negros, pobres, mulheres prostitutas e malandros podem retornar como espíritos, seja
como heróis que souberam superar as privações e opressões que sofridas em vida, seja como
categoria que, através da evolução espiritual, mantém viva a esperança de ocupar espaços de
prestígio que a ordem social lhe negou. (PRANDI, 1996)
Na Umbanda, as divindades são ordenadas em linhas, legado da teoria de evolução
espiritual do Kardecismo. Elas se agrupam segundo o grau de desenvolvimento espiritual,
tendo no topo o panteão do catolicismo popular, abaixo os orixás, pretos-velhos e caboclos, e
na base os exus feminino e masculino. A dimensão ritual da Umbanda foi tratada no capitulo
anterior.
131
Como religião que celebra a vida, a Umbanda tem nas mães-de-santo uma das
responsáveis pelos cuidados, orientações, obrigações religiosas na busca de um bem-estar
físico, psíquico e social na lida com o sobrenatural, com as energias, com o cumprimento das
regras, dos preceitos e dos fundamentos. De maneira geral, cabe às mães-de-santo fortalecer o
grupo, a família-de-santo, mediante os laços de inter-relacionamentos entre os adeptos.
Assim, a maternidade das mães-de-santo como sacerdócio não está desligada de um
sistema simbólico. Muitos autores vêm tentando contribuir e enriquecer os estudos acerca do
simbolismo e do imaginário considerados polêmicos por romper com as análises que contêm
postulados deterministas e racionalizadores e que descartam o papel desempenhado pelo
simbólico nas relações sociais em particular no campo religioso. Dentre o universo de
autores, considerei relevante a análise de Cornelius Castoriadis (1982), por compreender o
simbólico como um aspecto essencial na constituição da sociabilidade. O autor procura
enfatizar basicamente a eficácia e o funcionamento dos símbolos, que têm força decisiva e
efetiva na trama social.
O imaginário institui e mantém unida a sociedade. Para o autor, a sociedade é
resultado de uma criação imaginária, pois é genericamente imaginária; o fundamental seria a
capacidade imaginativa do ser humano, não a racionalidade.
O imaginário manifesta-se como elemento constitutivo e instaurativo de
comportamentos específicos do sujeito humano, servindo como atividade que transforma o
mundo, como imaginação criadora (DURAND, 2002).
O imaginário social tem funções múltiplas e complexas na vida cotidiana das pessoas.
A maternidade como fenômeno humano, resultado de construções sócio-históricas de uma
determinada sociedade, envolve relações de poder, está rodeada de representações coletivas.
Considerando esses aspectos, cabe investigar o domínio do imaginário e do simbólico como
importante lugar ocupado por essas mulheres-mães.
Homens e mulheres, como animais imaginários, constroem o mundo, o modo de viver
e a cultura dentro da estrutura racional, acreditando que a história é criação imaginária. O ser
humano inventa continuamente seu processo histórico e o faz dentro de certas circunstâncias
concretas que não delimitam o âmbito de criação, não definem o que vai ser criado. O destino
humano não é posto; o que vai fundamentar esse sujeito é a liberdade, é a autonomia.
Na esteira dessa compreensão, situo as mães-de-santo que reinventam suas práticas
cotidianas como sacerdotisas, num contexto concreto de definição dos discursos edificadores
132
da maternidade espiritual e da experimentada na sociedade mais ampla; elas justificam suas
práticas, comportamento e condutas e se (re)fazem, sobrevivendo no mundo.
Castoriadis (1982) se opõe à idéia de que o mundo é ordenado, composto por leis que
a mente humana vai descobrir através da ciência e encontrar a ordem dos fenômenos numa
lógica da racionalidade científica. Para ele, o mundo não é cosmos, é caos também que
significa desordem, abismo “sem fundo”. O cosmos se manifesta pela razão e o caos pela
desmesura, ou seja, aquilo que sai da medida, pelas paixões, pelas emoções que estão
presentes nos sujeitos sociais no âmbito da imaginação. Os sujeitos humanos têm uma
autonomia relativa, porque são atravessados pelo social.
O imaginário social da religião produz sentido através da criatividade dos mitos e ritos
em comunhão, no encontro entre as pessoas e entre os grupos. Os praticantes das religiões
afro-brasileiras partilham o imaginário social e histórico no espaço das festas, giras
cerimônias e rituais. Esse imaginário não se constitui abstratamente: é indissociável das
estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais da realidade brasileira.
Castoriadis não se refere ao imaginário como ficção ou reflexo. Para ele:
O imaginário que falo não é imagem de. É criação incessante e
essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de
figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de
“alguma coisa”. Aquilo que denominamos “realidade” e “racionalmente” são
seus produtos (CASTORIADIS, 1982, p.13).
O comportamento dos sujeitos não é jamais o resultado de um racionalismo fixado ou
de uma apreciação consciente; surge, freqüentemente, da representação imaginativa do dado
mundano. Ele é norteado pela força das crenças que enquadram os fins da ão. Os
indivíduos, ao se colocar no mundo, veiculam uma espécie de imagem dessa sociedade.
Portanto, refletir sobre a maternidade exercida pelas mães-de-santo nos faz examinar
as mentalidades e linguagens tecidas na sociedade sobre o ser mãe, o cuidado materno, bem
como pensar os fatores responsáveis pela aceitação, pela difusão e pela rejeição de certas
idéias por parte dos grupos da sociedade. De outro lado, é preciso analisar os motivos que
levam o grupo em estudo mães-de-santo da Umbanda e do Candomblé a substituir e a
estender essas linguagens a uma escala mais ampla.
133
Cornelius Castoriadis situa a linguagem como o primeiro momento do simbólico
embora afirme também que o simbólico está presente em toda sociedade. Assim, ele observa
o seguinte:
Tudo o que nos apresenta no mundo social-histórico está indissociavelmente
entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais,
individuais ou coletivos o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a
natalidade os imemoráveis produtos materiais sem os quais nenhuma
sociedade poderá viver um momento, não são (nem sempre, não
diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede
simbólica (CASTORIADIS, 1982, p.142).
A maternidade espiritual tem sua linguagem específica, não está dada de forma
imediata, clara e absoluta. A mãe-de-santo se esforça para buscar o sagrado, e nele estão
presentes símbolos que devem ser interpretados e compreendidos na linguagem religiosa.
Esse sistema simbólico possibilita, favorece a comunicação dentro do grupo religioso,
realiza-se na prática religiosa. A comunicação se por atividades como giras, ritos, mitos,
pois elas constituem uma linguagem e assim o grupo expressa seus interesses. um
consenso do que sejam os símbolos, nos quais o sagrado está representado.
De uma maneira geral, os mitos têm excedente de significado, enquanto o ritual é
sempre o mesmo. No mito de origem presente sobre a separação das águas nas religiões afro-
brasileiras, Iemanjá é mãe das águas salgadas, e a Oxum pertenceriam as águas doces. Esse
mito abre margem para uma infinidade de interpretações acerca das significações do ser
mulher, mãe legítima e mãe criadeira.
O depoimento que se segue é outro exemplo da dimensão dos mitos como norteadores
das práticas religiosas e seus múltiplos significados. Trata-se do mito contado sobre a força de
Iansã.
(...) a sua mãe lhe deu dentro de uma alquimia a força do búfalo, uma pele
do qual um encantamento a envolveu e, quando ela usava essa pele e
invocava através de sons batendo um chifre no outro, ela se transformava em
um búfalo. Se para muitos é uma lenda, para nós é um itan; se ela se
transformou em um animal, essa metamorfose toda eu não posso comprovar,
mas ela adquiriu a força. A força do simbolismo, eu vejo mais por esse lado.
Então ela tinha aquela força, aquela garra de uma mulher indomável
representando o búfalo. E assim, quando do transe, do ritual, era escondido
dentro de um formigueiro para que ninguém pudesse encontrar. Então ela
escondia os chifres e a pele dentro do formigueiro. que certa vez o Orixá
Odé, Ogun viu todo aquele ritual e, quando ela se dirigiu ao mercado, ele foi
e pegou este chifre e essa pele e levou para sua moradia e escondeu num
134
celeiro de milho. Terminando toda a parte lá do comércio, ela regressou e foi
no formigueiro e não encontrou seus pertences, e a figura do Ogum a
chamou atenção. Ela voltou e não tinha mais ninguém, ele. E em uma
conversa ela ficou a saber que ele estava sabendo, e ele propôs que só
entregaria se ela casasse com ele, se ele a desposasse. E ela aceitou assim, só
que ela fez uma exigência para ele que nunca, que ninguém a chamasse de
animal, e que nunca ninguém rolasse um pilão, deixasse rolar um pilão sobre
a sala, que seria um desafeto a Xangô, que já era seu esposo. Mas ela foi
morar com Ogum, exatamente por isso não houve uma traição, ela foi, foi
tipo uma chantagem, foi uma imposição que teve, para não descobrir o
segredo. (PAI ALUIZIO DE XANGÔ, julho de 2008).
Na análise, consideramos o plano das idéias, mas também o das práticas, das imagens,
das crenças, dos mitos, pois tudo isso faz a história. Atos e imagens são guiados por
representações. Na condição de saber prático e coletivo, o mito permite estruturar e dar
sentido ao universo sensível; é a expressão da busca difícil do segredo da origem, da primeira
ordenação do mundo das coisas e dos homens (CASSIRER, 1992). Produto da imaginação
humana, ele não pressupõe autor, criador e fronteiras, mas tão-somente narradores e
recitadores. O mito é irredutível e resultado de ações e interpretações inesgotáveis. Esse vigor
atualiza e revitaliza as narrativas míticas oralmente transmitidas.
Para Cassirer (1992), o ser humano é um animal simbólico, uma vez que todas as suas
atividades podem ser definidas como criações de mbolos. Mito, linguagem, arte e história
são modalidades de simbolização; mediante as diversas formas de simbolizar, ele constrói sua
cultura. Os símbolos constituem a trama na qual a realidade pode ser articulada.
Mediante o mito, o sujeito passa a aprender uma nova arte de exprimir, e isso significa
organizar os seus instintos, suas esperanças e seus temores. Por isso, o pensamento mítico não
deve ser confundido com mera ilusão, com mentira, mas deve ser visto como uma forma de
objetivação da realidade primária e de caráter particular.
O ritual é o momento de transmissão da memória social e, nesse sentido, são
importantes a performance e o corpo. Na Umbanda de Fortaleza, temos a realização da festa
de Iemanjá na Praia do Futuro; nesse ritual, a tendência é a de preservar a permanência desse
orixá considerado Mãe de todos a rainha do mar. Na performance ritual, as entidades são
lembradas através das vestimentas, da organização do espaço e do tempo na praia, das cores
azul e prata que predominam, os toques, os pontos cantados, a linguagem, a dança dos
adeptos. Assim sendo, muitos dos aspectos desse ritual não podem ser alterados, considerando
135
que mais de quarenta anos essa festa se realiza, preservando o que está estabelecido a
tradição.
Os processos rituais das religiões de matrizes africanas, seja no Brasil, Cuba,
Haiti, nos países da região do rio da Prata e em Portugal, implicam na voz,
na música, na dança e na possessão, podendo assim ser designados de
performativos. Pois nessas religiões encontram-se particularmente atos
designados de ilocucionários como ordenar, interrogar, aconselhar, exprimir
um desejo, sugerir, advertir, agradecer, criticar, acusar, afirmar, parabenizar,
suplicar, ameaçar, prometer, insultar, desculpar-se, levantar hipóteses,
desafiar, jurar, autorizar, declarar, entre outros. Austin destacou nas
realizações institucionais os papéis locucionários, para mostrar que a
linguagem é uma espécie de vasta instituição, comportando uma pluralidade
de papéis convencionais correspondentes a uma gama de atos de discursos
reconhecidos socialmente (PORDEUS JÚNIOR, 2000a, p.13).
A dança de Iansã é apontada pelo pai-de-santo Aluízio como ritual em que
permanecem as formas, o movimento do corpo com sua representação do feminino.
Observando a forma como Iansã dança, percebemos os movimentos rápidos que simbolizam o
vento, afastam e chamam os espíritos, dançam com os mortos – egunguns.
Muito bem, assim sendo Iansã também existe o momento dela de leveza, de
suavidade. É exatamente o que ela mostra o balé das asas de uma
borboleta. Quando ela gesticula suavemente uma borboleta pousando, é o
abano. Ela trazendo nas brisas os ventos calmos e tranqüilos. Naquela dança
frenética que ela dança com a cauda do cavalo ou do búfalo, é espantando
todas as negatividades. Em determinadas rezas ela vem pousando, bailando
como uma borboleta, num movimento com os dois abanos trazendo as brisas
para refrescar os ventos brandos. Então ela é uma lady, que as pessoas vêem
muito Iansã como uma mulher grosseira, rude, aquela energia bem assim,
Joana d’Arc guerreira. Sim, ela é guerreira, mas ela é feminina e demonstra
isso quando levanta a saia e fica chamando os orixás masculinos para dançar
com ela e distribui no barracão a fertilidade, a procriação, a união do casal.
Aquela dança dela também tem a hora dela ser feminina, dela agradecer a
presença do homem ali, é o que ela faz chamando para dançar com ela. (PAI
ALUIZIO DE XANGÔ, julho de 2008)
Para Marcel Mauss (1974), a dimensão simbólica é um dos traços distintivos do fato
social. No campo religioso, os mitos e as crenças exteriorizam o domínio dos mbolos. O
simbólico serve de expressão total das coisas, e corresponde aos humanos que os assimilaram
e a ele aderem.
Para Mauss (1974), o rito é a manifestação, a prática das representações, daí a
importância de perceber a atuação das mães-de-santo no ritual, prestando atenção em como
136
dançam, como agem, pois ali expressam o feminino, as características da entidade, do orixá
dono de sua cabeça. Subjacente a todos os atos religiosos há uma representação religiosa. Mas
na medida em que todos os fatos da consciência ou seja, as ações propriamente ditas são
também as representações, a ritualização toca os aspectos profanos da vida social. O
simbolismo é manipulado, principalmente pelos rituais, visando manter e estabilizar a ligação
com o todo, reconectando os adeptos à religião.
Os símbolos criam realidades, naturalizam imagens em determinados momentos
históricos, utilizando a memória social coletiva e as tradições. O imaginário dissemina,
revitaliza e ressemantiza imagens, criando paradigmas e normas que se fortalecem na
repetição ritual.
Nessa perspectiva, o simbólico está presente nos mitos e nos ritos, nas práticas
religiosas que institucionalizam o modo de viver do grupo. Os adeptos da Umbanda e do
Candomblé, mediante os símbolos e as representações presentes nos mitos e nos rituais,
constroem a cultura, a religião, atribuindo-lhes peculiaridades em relação a outras e
propiciando a comunicação entre os sujeitos que a formam.
Faz-se necessário explicitar que o simbólico não pode ser entendido como pura
fantasia arbitrária produzida por alguns sujeitos. A escolha dos símbolos não se de forma
aleatória. Logo, é impossível descrever com precisão as fronteiras do símbolo ou construir
uma escala hierárquica:
(...) nada permite determinar a priori o lugar por onde passa a fronteira do
simbólico, o ponto a partir do qual o simbólico invade o funcional. Não
podemos fixar nem o grau geral de simbolização se exerça com uma
intensidade particular sobre tal aspecto da vida da sociedade considerada
(CASTORIADIS, 1982, p.144).
As representações simbólicas participam da forma efetiva de instituição do social;
nesse sentido, o social se serve do simbolismo para justificar como necessária a existência de
suas instituições. A partir dessa compreensão, entende-se ser minha função, como
pesquisadora, explicitar o conteúdo presente às representações simbólicas do feminino e da
maternidade dentro da religião, na perspectiva dos adeptos.
O simbólico não está desvinculado do sistema da dominação; é evidente que certa
relação de poder. Não faz sentido, portanto, visualizá-lo como neutro. Desse modo,
Castoriadis ressalta que:
137
A idéia de que o simbolismo é perfeitamente neutro ou então o que vem a
ser o mesmo totalmente adequado ao funcionamento dos processos reais é
inaceitável e sem sentido. O simbolismo não pode ser neutro, nem
totalmente adequado, (...) porque não pode tomar seus signos em qualquer
lugar, nem pode tomar quaisquer signos (...) (CASTORIADIS, 1982, p.146).
Vale situar as mães-de-santo dentro de uma ordem social que dissemina a dominação
masculina e na qual se proliferam dispositivos fomentadores da crença da suposta
superioridade masculina e inferioridade feminina. Exercer o sacerdócio pode ser tido como
uma forma de exercer poder como mulher e se erguer a partir do exercício da maternidade,
carregada de mito não só na vida religiosa.
Os símbolos têm a ver com os códigos culturais, refletem a estrutura social em que o
indivíduo está inserido. Como transmissor de cultura, são agentes socializantes. Na nossa
sociedade, os sistemas simbólicos transmitem e perpetuam nas gerações seus conhecimentos e
sua visão em relação à vida, ao mundo. Os símbolos religiosos em especial os rituais
manipulados pelas mães-de-santo – fazem com que o social e a cultura se tornem apreensíveis
pelas pessoas como algo real dentro de seu próprio sistema simbólico.
Podemos apontar como símbolo da maternidade no campo afro-religioso o cuidado, a
proteção e saber/poder. O imaginário social partilhado será o de uma mãe zeladora de
entidades, santos, orixás, de divindades, com competência e carga afetiva de fazer o iniciado e
garantir-lhe o desenvolvimento mediúnico, conquistando a obediência e o respeito dos filhos-
de-santo. Nesse sentido, é correto afirmar que o imaginário social veiculado pelo mito
assegura a coesão social ao legitimar essa hierarquia definida.
Os símbolos da maternidade inscritos na nossa cultura são o da bondade, do cuidado e
da proteção. Em torno desses mbolos, tem-se o imaginário da mãe como boa pessoa. As
mães-de-santo, por intermédio desse imaginário, conseguem exercer relações de poder com os
adeptos, com seus filhos e filhas-de-santo. Quanto ao simbolismo religioso, podemos dizer
que os símbolos servem para concretizar, tornar visuais e palpáveis realidades abstratas,
mentais ou morais da sociedade.
A maternidade foi considerada ao longo do tempo sob diferentes formas nas
sociedades. É permeada de um mito entre o sagrado e o assustador. Sobressai o arquétipo da
“mãe bondosa”, no lado positivo, e, no negativo, a “mãe terrível”. A maternidade foi
historicamente utilizada para defender os interesses de uma sociedade do patriarcado,
138
reforçando, desde os tempos coloniais, o sexismo, o machismo, mediante o símbolo de
infinito amor e dedicação, a santa mãezinha assexuada que tudo suporta.
A mulher tem sido a primeira a estabelecer o contato inicial dos seres humanos com a
humanidade e a natureza. Por isso, a mãe é investida de um poder quase absoluto, tornando-se
uma entidade poderosa capaz de proporcionar infinitos prazeres ao fornecer alimento, carinho,
conforto; no entanto, a mãe pode também provocar rancor, trauma e inúmeras dores ao privar
os filhos desses prazeres. Daí a idéia de a mãe ter poder de vida e de morte.
O simbolismo não se ergue do nada, mas se edifica a partir dos símbolos já existentes,
utilizando seus materiais. Ele se encontra enraizado na história, exprimindo a vida social. Os
sujeitos, através dos símbolos, respondem racionalmente às questões que se colocam no dia-a-
dia, o que viabiliza a ordem. Todo símbolo tem um componente imaginário:
O imaginário deve utilizar o símbolo não somente para exprimir-se, o que é,
mas para existir, para passar o ritual a qualquer coisa a mais. O delírio mais
elaborado como a fantasia mais secreta e mais vaga são feitos de imagens,
mas estas imagens estão como representando outra coisa; possuem,
portanto, uma função simbólica. Mas também inversamente, o simbolismo
pressupõe a capacidade imaginária. Pois pressupõe a capacidade de ver em
uma coisa o que ela não é, de vê-la diferente do que é (CASTORIADIS,
1982, p.154).
O estudo do imaginário social e das representações simbólicas é fundamental para a
compreensão da vida em sociedade, visto que esta constitui produção coletiva dos sujeitos
sociais a partir das relações que eles travam entre si, com a natureza e com as instituições. É
também mediante essas representações (simbólicas, imaginárias) que interpretam o mundo e
justificam o existente.
O simbolismo religioso tem a finalidade de ligar os sujeitos a uma ordem sobrenatural
sem deixar de ser profundamente social. A maternidade simbólica das mães-de-santo se
alimenta do contexto social, que exprime realidades sociais com alcance e conseqüências
também sociais. Assim, serve para distinguir os fiéis dos não-fiéis, a maternidade mítica
(espiritual) da maternidade biológica, aquela prescrita e experimentada pela sociedade
abrangente.
A maternidade espiritual se reveste de simbolismo para se exteriorizar e se
desenvolver. Apelam para rituais, cerimônias, práticas simbólicas dentro de um universo
invisível, inacessível diretamente. O simbolismo propicia, em sua multiformidade, a
139
comunicação entre os adeptos. Os símbolos servem para ligar os sujeitos sociais entre si,
recriar a participação e a identificação das pessoas e dos grupos às coletividades e estabelecer
as solidariedades necessárias à vida social.
Ao exercer a maternidade espiritual, tais mulheres se revestem de máscaras,
roupagens, sonhos e representações – o que não é um real deformado, pois o imaginário social
se dissocia de significados como quimérico ou ilusório. A maternidade simbólica se reforça e
se efetiva pela apropriação dos símbolos, e assim garante poder à mãe-de-santo.
Do mesmo modo, os guardiões do imaginário social são, simultaneamente,
os guardiões do sagrado. A margem de liberdade e inovação na produção de
todas as representações coletivas, em especial na dos imaginários sociais, é
particularmente restrita. O simbolismo da ordem social, da dominação e
submissão, das hierarquias e privilégios, etc. é quantitativamente limitado,
ao mesmo tempo que se caracteriza por uma fixidez notável. Por fim,
também as técnicas de manejo desses símbolos se confundem com a prática
de rito que reproduzem o fundo mítico, tratando-se tanto de técnicas
corporais como da arte e da língua (...) (BACZKO, 1985, p.300).
O conteúdo de crenças e ethos vivos do grupo religioso têm guiado o exercício da
maternidade espiritual dessas mães-de-santo, que de maneira alguma se encontra
desconectada da relação entre os fatores ideais e reais e seus correlatos subjetivos nos seres
humanos.
O imaginário estende sua influência sobre a vida social. É antes “um sistema de
montagens simbólicas” que engloba a atividade do espírito, as técnicas do corpo e as
propriedades impessoais de onde provêm todos os tipos de autoridade (LEGROS, 2007).
O imaginário social articula, dialeticamente, a realidade material, objetiva e a
produção cultural que transforma a aparência das coisas. A religião é o motor da dinâmica, ela
se impõe como uma força de agregação e de comunhão, expressão em ato do sagrado, é
operativa por dominar os fatores de dispersão social e tornar indissolúvel a coletividade.
Castoriadis (1982) define a imaginação como a capacidade de fazer surgir o que não é
"real". Denomina “imaginação radical” o tipo de imaginação oposta àquela somente
reprodutiva e/ou combinatória, anterior à distinção entre o "real" e o "imaginário" ou
"fictício". Em outras palavras, esta realidade existe para nós porque imaginação radical e
imaginário instituinte.
140
Castoriadis (1982) aposta na necessidade de uma nova criação imaginária que poria no
centro da vida humana outras significações além da expansão da produção e do consumo.
Essas significações deveriam ser reconhecidas pelas pessoas como valorosas. Certamente isso
demandaria uma reorganização das instituições sociais, das relações de trabalho, das relações
econômicas, políticas e culturais. Ele nos convida a pensar um novo projeto de autonomia e
de auto-instituição, uma criação imaginária.
Detalharei no item seguinte o simbolismo em torno do feminino e da maternidade
presentes na Umbanda e no Candomblé, determinado nos mitos e nos rituais que definem o
“ser mulher” e “ser mãe”. A narrativa tica estabelece uma comunicação entre os adeptos
através das práticas rituais como as festas, as giras, os “trabalhos”.
3.3 O Feminino e a maternidade nas religiões afro-brasileiras
uma ligação entre o feminino e a maternidade, entre o ser mulher e a procriação,
entre o sexo e o gênero. Esse fato tece uma imbricada e complexa teia de significados, uma
ordem simbólica.
As mulheres surgem como detentoras do poder religioso, passando a ocupar a
hierarquia religiosa. No Brasil, inicialmente, isso se deu com as mulheres negras e seu poder
de organização nas irmandades religiosas e no Candomblé. Neste último, passavam a ser
sacerdotisas-chefe graças à densidade do sentimento materno vindo desde a África, guardando
relação com a noção de Terra-Mãe.
Analisei os mitos das religiões afro-brasileiras Candomblé e Umbanda referentes a
mulheres: Iemanjá, Oxum, Iansã, Nanã, Pomba-Gira e Pretas-velhas, Ciganas e Caboclas
observando a questão do feminino e da maternidade. Os mitos veiculados contribuem na
compreensão do universo e na explicação do sentido da vida, e certamente norteiam as
práticas das es-de-santo. Nas religiões afro-brasileiras, faz-se necessário interpretar o
universo de significação dos modelos sobressalentes de feminilidade e maternidade ao longo
de nossa história e legitimados como discursos que impregnaram as práticas religiosas.
Interessa saber o significado da maternidade espiritual e a interpretação dada pelas
mães-de-santo acerca da dimensão simbólica de orixás e entidades que representam o
feminino e a maternidade presentes em seu panteão, compreendendo que “(...) os mitos
141
transmitem um modo de pensar, um modo de ver o mundo. Essa visão de mundo é sempre
coletiva e deve-se conservá-la, no sentido de haver um acordo do grupo em relação a ela (...)”
(BERNARDO, 2003, p.17).
Quando nos referimos à dimensão de gênero e religião, notadamente se sobressai o
papel das mulheres na sociedade brasileira, que contribuem com a formação e a educação,
através de suas práticas religiosas com a identidade nacional. São preservadoras da tradição,
das práticas socioculturais (AMARAL, 2007).
Mauss, ao tratar dos elementos da magia e das qualidades do mágico, coloca entre eles
as mulheres. É possível pensar nas particularidades das mães-de-santo, às quais são atribuídas
virtudes mágicas na religião. O autor considera:
(...) o que lhes virtudes mágicas não são tanto as suas características
individuais quanto a atitude que a sociedade adota em relação a todo o seu
gênero. (...) o mesmo se com as mulheres. É menos suas características
físicas do que aos sentimentos sociais que são objetos, suas qualidades, que
se deve ao fato de serem consideradas em toda parte como mais apta do que
os homens à magia. Os períodos críticos de sua vida provocam espanto e
apreensões que lhes conferem uma posição especial. Ora, é precisamente na
altura da nubilidade, durante as regras, quando da gestação e do parto, após a
menopausa, que as virtudes mágicas das mulheres atingem a maior
intensidade (...) (MAUSS, 1974, p.58).
Desse modo, as mulheres velhas estariam mais afeitas à magia: são as feiticeiras. O
sangue menstrual, o fato de elas serem alvo de superstições e de estarem sujeitas a crises de
histeria são atributos que lhes dão um tipo de autoridade. O depoimento de Mãe Virginia
ilustra a mensagem dita pela entidade Pomba-Gira quanto às conquistas que alcançaria no seu
sacerdócio, quando parasse de menstruar.
Pomba-Gira disse-me em concentração que eu teria casa quando minha
menstruação faltasse. Eu era certinha, nunca na minha vida tinha tido uma
falta (a não ser quando grávida) e, rindo, disse que se isso tinha de acontecer
que fosse amanhã.(...) Comecei a procurar, nos jornais, casa para alugar e, no
mês de setembro, faltou-me, pela primeira vez na vida, a menstruação, sem
estar grávida, no novembro de 1986, aluguei a casa do Benfica. Entretanto,
eu e meu marido andávamos a procurar o terreno porque, se fosse possível,
comprávamos o terreno para construir o Terreiro. Não havia dinheiro
nenhum em caixa porque o que tínhamos tinha sido para alugar a casa, mas,
no mês de fevereiro de 1989, eu comprei o terreno (MÃE VIRGÍNIA in
PORDEUS JÚNIOR, 2000a, p.85).
142
Contudo, devemos ter claro que as mulheres foram, ao longo dos séculos, oprimidas e
consideradas inferiores na nossa sociedade. A mulher encontra no poder mágico tanto formas
de ser ainda mais acusada, perseguida, discriminada e associada à maldade, quanto
possibilidades de exercer resistência diante da exclusão numa sociedade machista e sexista.
Acredito que uma dessas formas é o exercício do sacerdócio como mãe-de-santo, passando
como autoridade do terreiro, a receber o respeito, a admiração da comunidade de terreiro por
parte daqueles que lhes procuram para atender demandas.
Quanto ao poder mágico, são elucidativas as palavras da e-de-santo da Umbanda
Mãe Zimá. Ela se considera uma feiticeira, e utiliza esse poder todas as vezes em que é
provocada, insultada ou solicitada. No depoimento seguinte, ela faz uso da magia para
proteger um filho-de-santo que foi maltratado, humilhado:
Eu disse: “Num se preocupe não, meu filho, que o dele vem depois”. Com
pouco tempo eu soube que ele tinha tido um infarto e vivia bêbado até hoje
nas calçadas. E todo mundo sabe que fui eu. (MÃE ZIMÁ, janeiro de
2009)
Ou ainda:
Mas eu gosto de fazer o mal, minha filha, só a quem faz a mim e aos os
meus. Eu costumo dizer: não gosto de fazer o mal pros outros, mas se você
mexe no meu calo seco, eu vou saber como você fez. Agora, se você fizer de
besta e mexer com um dos meus filhos, eu meto a chibata em você. eu
vou ver se você tem força igual à minha ou mais do que eu. (MÃE ZIMÁ,
janeiro de 2009)
Mãe Zimá expressa nessa fala o poder feminino, seu grande poder mítico como
feiticeira, bruxa, como mandingueira de aspecto perigoso e destrutivo. Seu poder se
transforma em uma munição para guerra de uma mãe em cólera.
É inegável que os primeiros candomblés da Bahia foram fundados por mulheres e que
estas continuam exercendo liderança e influência nas religiões afro-brasileiras A mulher é
sacerdotisa central dos primeiros terreiros de que se tem noticia. As mães-de-santo
consideradas verdadeiras feiticeiras que desenvolveram seus poderes ocultos para
defenderem, protegerem seus filhos, desenvolvendo, por assim dizer, o profundo sentimento
materno (BERNARDO, 2003).
As mulheres assumiram posição de pioneiras no Candomblé, segundo Terezinha
Bernardo:
143
Neste sentido parece-nos que o saber das mulheres envolvidas no
Candomblé foi forjado historicamente, muito embora estivesse mascarado, e
passa a ser percebido novamente através de instrumentos propostos por
um tipo de conhecimento que possui condições de desmistificar certos fatos.
Nesta perspectiva, retoma-se as situações socioculturais africanas, a história
do negro no Brasil, a alforria, a abolição, a marginalização do homem negro
do mercado de trabalho como acontecimentos que fizeram de alguma forma
com que as mulheres se tornassem aptas a tomar decisões na família e na
própria comunidade do Candomblé. Elas controlam a economia e a
manutenção da ‘roça’, as atividades religiosas, o lazer, a educação dos filhos,
enfim todos os aspectos relacionados à vida em comunidade (
SCHETTINI
,
1988, p.79).
Os primeiros candomblés baianos foram fundados por mulheres, e até hoje estão sob
direção feminina. Religiões como Candomblé e Tambor-de-Mina têm suas origens ligadas ao
feminino. Foi a mulher quem primeiro organizou essas religiões e o fez pautada num intenso
sentimento materno de proteção aos filhos e zelo e cuidado com os deuses.As mães-de-santo
são protetoras de axé
6
, como força vital, energia, força sagrada.
Interessa apreender, ao tratar dos orixás femininos – as Iabás e as entidades que
representam o feminino na Umbanda –, como elas têm sido mulheres, mães, esposa e
amantes. Os orixás são referenciais básicos para a organização das relações sociais, uma vez
que são operadores classificatórios (...) e ordenadores de um sistema expresso nas atividades
religiosas e cotidianas dos participantes dos terreiros” (BARROS; TEIXEIRA, 2000, p.111).
Acredita-se que os arquétipos são herdados pelos filhos e filhas-de-santo, ou seja, os duplos
dos orixás no mundo terreno. Cada orixá apresenta vantagens e desvantagens, virtudes e
defeitos, e cada um deles exibe um tipo de talento específico que lhe permite exercer um
estilo próprio de liderança.
Os orixás femininos cultuados nas religiões afro-brasileiras particularizam o poder
eterno das grandes mães, as iabas, descritas como mães, mas também como esposas e
amantes. Vale lembrar que esses orixás femininos não têm necessariamente de incorporar
6
Axé é um conceito fundamental da religião dos orixás e pode ser definido como força invisível, mágica e
sagrada de toda divindade, de todo ser e de todas as coisas ou como energia vital de todas as coisas e seres
(VERGER, 1968). Barros (1983) mostra que a importância das cantigas (korin ewe) e dos encantamentos (ofo)
se deve ao seu papel de agilizadores do potencial vital – a– de seres humanos e espécies vegetais. (BARROS;
TEIXEIRA, 2008, p.203)
144
características exclusivas de mãe, esposa e amante, mas convivem numa multiplicidade de
tipologias.
Interessante a forma como as mães-de-santo entendem o destino das pessoas no
mundo e a importância que têm os guias espirituais para lhes ajudar neste percurso.
Acreditamos que trazemos nosso destino marcado quando ocorre o nosso
nascimento e, embora o nosso caminho seja difícil de percorrer, temos de o
percorrer na íntegra. Para amenizar o nosso Karma existem as divindades
menores, mas de grande iluminação espiritual, que se manifestam em nós ou
em nosso redor. Essas divindades o consideradas Guias, entidades que
assumem graus de parentesco conosco para melhor assimilação (MÃE
VIRGÍNIA in PORDEUS JÚNIOR, 2000, p 115).
Ou ainda:
Cada pessoa ela traz isso aí, ela não adquire depois o. Ela já traz de
nascimento as características do dono de sua cabeça. Você traz, você já traz
de nascimento. Tanto é que tem pessoas que têm uma visão maior e olha
para você e diz pelo seu semblante, diz de qual santo você é. aquelas
características como olhos rasgados, olhos redondos, nariz assim, formato do
rosto, um defeito, qualquer uma coisa, cabelos, os traços, eles têm. (MÃE
CONSTÂNCIA, julho de 2008).
Busquei as similaridades entre as mães-de-santo e o orixá do panteão dono de suas
cabeças, relacionando aos aspectos que se caracterizam e que acabam por atribuir
especificidade no exercício da maternidade, no seu sacerdócio, na maneira de agir, de tomar
decisões no terreiro, na relação com os filhos-de-santo. Mãe Anita apresenta algumas
características das Iabás mais cultuadas na Umbanda.
Nanã é a mãe de todos os orixás porque ela é a mãe criadeira e é a mais
velha que nós temos. É aquela que louvamos no dia dela também, porque
tem o dia dela. Só que ela num é como a Iansã, que vem dançando, a Iansã é
a dona da tempestade, do vento, é como se diz, da tempestade. Iansã é assim,
é deste estilo. Nanã não, é uma santa, é uma criadeira, ela vem mais
lenta, é, vamos dizer, ela chega, senta, ela dança muito pouco, vai pra o
trono dela. Iemanjá é uma Iabá, muito bonita, é elegante, ela vem
dançando com o vestido dela, com o espelho, leque, dependendo do que ela
usa. Ela usa muito leque, muito espelho (...). Porque elas o vaidosas,
dança com o espelho, com o pente, ou o leque (...). Ela é, como se diz, uma
Iabá, dona da prata, a Iansã é do ouro (...). Já Oxum, outra santa também que
dança com os espelhos, seu leque (...). Porque aí, como se diz, é o médio que
favorece essas coisas pra quando ela vir, ela ter seu espelho. Mas cada uma
tem o seu ritual. (MÃE ANITA, julho de 2008).
145
Tratarei de cada uma em particular, destacando o arquétipo em relação ao feminino e à
maternidade compreendido como o conjunto de caracteres psíquicos que define a
personalidade e sua ação concreta sobre o real. Os orixás e as entidades espirituais nas
religiões afro-brasileiras se assemelham aos seres humanos, tanto fisicamente quanto no que
se refere aos traços de personalidade, caráter e conduta. São os traços comuns no biótipo e nas
características psicológicas que anima os adeptos. Não são gidos e uniformes, abrem
margem para nuances provenientes da diversidade de qualidade atribuída a cada orixá
(VERGER, 2002, p.33).
Iniciarei por Nanã. É uma mulher velha, muito temida, parece ter mantido a imagem
mais ligada às antigas Iyá mi, tem o poder da vida e também da morte. Nesse sentido, ocupa
lugar específico como mãe de Omolu e Oxumarê. No Brasil o sincretismo de Nanã é com
Santana.
A avó dos orixás, também chamada Nana Burucu, ela é a deusa da lama, da
terra úmida e dos cadáveres em seu movimento de decomposição e
reintegração à terra. Segundo os preceitos da Nação Nagô, nenhum filho de
santo pode ser possuído por Nana, pois a descida dela num corpo humano
seria a manifestação da própria Morte (Iku, personificação da morte, seria
um dos atributos de Nana). Um dos seus símbolos principais é o pote de
barro com água, daí as imagens do rio e da água nos textos dos cantos e ela
dedicados (...) (CARVALHO, 1993, p.85).
As características definem Nanã como Grande Mãe, aquela que antecede as outras
mães. Na citação que se segue a mãe-de-santo destaca as características de Nanã e de seus
filhos Omolu e Oxunmaré.
Nanã não gosta de homens e é praticamente assexuada. Ela foi rejeitada por
Oxalá por gerar seres “anormais”: Omolu, que carrega todas as doenças
epidérmicas e contagiosas; Oxunmaré, um belo príncipe que se transmuta na
serpente mítica do arco-íris, símbolo de ligação entre o céu e a terra e da
continuidade das coisas. Deusa das águas paradas, lagoa onde está todo o
profundo mistério do mundo, Nanã é o orixá feminino mais velho e a
divindade mais antiga das águas, por isso é tratada carinhosamente de avó,
sendo a ela atribuídos a sabedoria, a paciência e o conhecimento do tempo
necessário para o amadurecimento de todas as coisas. Nanã é o mistério da
vida e da morte, por isso protege os órgãos reprodutores da mulher
(CARNEIRO; CURY, 2008, p.129-130).
146
A maternidade nesse orixá independe do pai, porque se trata de uma mulher
assexuada, responsável pela criação primeira. Como orixá mais velho, ela vem antes da
separação da águas salgadas, as águas dos mares (Iemanjá) das águas doces, dos rios (Oxum).
E existem mulheres (...) geralmente as mulheres de Nanã que nasceram
para ser avós, tanto que elas não são mães-de-santo, elas são as vovós, elas
têm toda uma hierarquia, são respeitadas. Mas por elas não poderem pegar
na navalha porque elas não são mães, geralmente as filhas são estéril. (MÃE
MONA DE OIÁ, janeiro de 2009)
Outro orixá feminino é Iansã ou Oiá uma das três esposas de Xangô que o acompanha
nas aventuras, nas guerras. É versátil e tem a capacidade de se metamorfosear, transformar-se
com facilidade. Assume diferentes formas e papéis, numa multiplicidade de funções para
sobreviver.
Ela é denominada a dona das tempestades, do relâmpago. Essa força toda
existente da natureza é manifestada através desta grande mulher. Eu
considero Iansã uma verdadeira feminista (...); a sua mãe a deu, dentro de
uma alquimia, a força do búfalo, uma pele do qual um encantamento a
envolveu e, quando ela usava essa pele e invocava através de sons batendo
um chifre no outro, ela se transformava em um búfalo. (PAI ALUIZIO DE
XANGÔ, agosto de 2008)
Este orixá representa a tempestade, o vento forte, assume características de
temperamento quente, é voluntariosa, lutadora e agressiva o vento como comunicador
cósmico. Iansã tem controle sobre a tempestade, sobre os ventos; tem o controle sobre si. É
provavelmente isso que a torna grande guerreira. Na guerra, além do controle sobre o outro, é
fundamental o domínio sobre si (BERNARDO, 2003, p.73).No depoimento que se segue a
mãe-de-santo explica as características de Iansã:
Iansã é a que defende a todos, é guerreira. Ela gosta de viver, de viver muito,
gosta de viver hoje. Contudo, não tem sorte no amor, tem todos e não tem
nenhum. Todos lhe querem, mas nenhum fica com ela. Ninguém de Iansã
agüenta abusos de homem, porque gostam de liberdade. Quer ser sempre ser
a primeira da fila, é orgulhosa, é a gostosa da gafieira. Meu pai dizia que eu
só deveria abrir minha casa quando eu aprendesse a ser humilde. Eu
aprendi. Aqui eu ajudo o próximo, todos me respeitam, todos me conhecem.
(MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009).
147
Iansã é um orixá feminino ambivalente, exprime uma compreensão profunda da
própria sexualidade humana, expressa uma sensualidade desenfreada. Como filha em Iansã,
Mãe Zimá afirma ser temida e respeitada. É uma mulher guerreira, voluntariosa e de
sensualidade agressiva. Revela o lado de uma mulher de temperamento forte, que não foge à
luta. Iansã batalha ao lado do seu marido Xangô, embora haja mitos que tratem de outras
relações dela com orixás masculinos como Ogum e Oxossi.
Iansã é sincretizada com Santa Bárbara. As filhas de Iansã são audaciosas, poderosas e
autoritárias. Detestam ser contrariadas e demonstram extrema cólera. As mulheres de Iansã
são sensuais e voluptuosas, dadas às aventuras amorosas extraconjugais. Mesmo assim, são
muita cimentas e não suportam a infidelidade do outro (VERGER, 2002).
Para muitos, é mãe, mas de um jeito singular, diferente: não permanece junto aos
filhos, porém, está atenta aos seus chamados e solicitações, ajudando-os e protegendo-os
quando necessário. O homem teria retirado seu poder de rainha e fundadora da sociedade
secreta dos egunguns na terra, feiticeira porque cheia de magia.
As pessoas muitas vezes dizem assim, que as mulheres de Iansã não são
maternas, elas são muitos secas. Talvez elas até sejam, mas elas são mães ao
modo delas de acudir os filhos, em todas as circunstâncias, mesmo eles
distantes. Ela pode não ser aquela mãe carinhosa, maternal, presente no
sentido de aconchego, de carinho ao ponto dela, da força do animal, ela é
superprotetora, é uma leoa. Iansã é uma das mães mais presentes, ao modo
dela. (PAI ALUIZIO DE XANGÔ, agosto de 2008).
Iansã, de acordo com alguns mitos, é uma mulher estéril e, como mulher
masculinizada, não é mãe. Para o universo místico, ela lamentava muito não ter filhos. Essa
situação decorreria de sua ignorância quanto às proibições alimentares. Ao invés de comer
carne de cabra, comia a de carneiro. Depois de consultar um babalaô, ficou sabendo do
equívoco que cometera e das oferendas que deveria fazer para tornar-se mãe. Após cumprir a
obrigação, foi mãe de nove crianças.
Em outras versões, devorou seus filhos. O depoimento de Mãe Mona de Oiá confirma
a impossibilidade de Iansã ser mãe cuja origem poderia ser de sua própria vontade ou de algo
involuntário. Contudo, ela exerce a maternidade de uma forma singular, sem perder, no
entanto, a sensualidade e a sexualidade como mulher.
148
Porque assim, Oiá, ela se fez mãe. Ela não nasceu pra ser. Não, ela se fez. Eu
não sei te explicar. Mas dizem que ela não nasceu, porque ela é guerreira.
Ela se tornou mãe quando Ogum que são as lendas –, Ogum Megê cortou
em nove, e ela se fez a mãe dos nove mundos. Então ela se tornou mãe para
mostrar pra ele que ela podia. E ela se tornou mãe. Tanto que quando (...),
devido a ela querer estar na guerra, ela agoniada – porque ela é muito
agoniada, ela é vento, ela é impulsiva ela engoliu os filhos (...). Essa é a
lenda. Ela engoliu para num darem trabalho, mas, no que ela engoliu, ela não
pôde com a barriga. Ela vomitou tudinho de novo e deu pra eles chifre e
disse: “Aonde vocês estiverem que precisarem de mim, soprem no chifre que
eu estarei junto de vocês a qualquer momento”. Ela mostrou que tinha
vencido. Que ela não baixou pra ele. E pariu os filhos dele. Ela num fica
perto dos filhos, ela vai para a guerra. Ela é uma mulher do homem dela.
(MÃE MONA DE OIÁ, janeiro de 2009).
As filhas de Iansã não gostam de se fixar em um lugar, são puro movimento,
mudam de endereço, de cidade, apreciam viagens. São as filhas do vento, no dizer de Mãe
Lúcia, Mãe Stela (Ogum com Iansã) e Mãe Anita (Oxossi com Iansã). Interessante verificar
como as mães-de-santo apresentam as características deste orixá principal que rege suas
cabeças.
Sou completamente, inteiramente filha de Iansã. Olha, à medida que a gente
vai ficando mais velha, lógico, a gente vai perdendo um pouco. Mas na
minha idade, eu jovem mais jovem, que eu nem sabia que era de Iansã –,
hoje quando eu sei o estereotipo da pessoa de Iansã é que eu vejo como eu
era exatamente. Eu era mesmo de Iansã, eu tinha mesmo de ser de Iansã.
Hoje é que eu reconheço estas características. As pessoas de Iansã são
temperamentais, são voluntariosas, são guerreiras, abrem caminhos, não têm
medo de nada, vai em frente, guerreiras mesmo, lutadoras. Brigam pelo que
quer, não têm medo de nada, não tem obstáculo. Ela vai lá, se deu certo deu,
se não deu não deu, ela pára um pouco, se tiver de recomeçar, ela começa
tudo de novo. E também são pessoas que, no amor, não são tão muito felizes.
As pessoas de Iansã não são assim de casar, de casar mesmo, de ter filhos,
morar juntos. Não é que não sejam casados, é que não são muitos. Eu acho
que, pela mamãe, nós ficávamos mesmo era solteira, fica solteira mesmo.
Agora, amores o muitos na vida das pessoas de Iansã. Elas podem não ser
exatamente verdadeiro padrões de beleza, mas na época da juventude, na
época que Iansã tá mesmo com a pessoa, são pessoas que têm aquela luz que
os homens vêem, conquistam. Agora, são ciumentas, têm um negócio de
ciúmes, mas são fiéis (...). Mesmo que tivesse sido eu de terminar uma
relação, porque era assim, nunca gostei de ser a segunda na vida de ninguém.
por isso nunca gostei de homem casado, este negócio de pessoa à parte. Ah,
não pode ir para rua, o pode ir pro clube, não pode ir à Beira-Mar, tem
medo de ser visto, este negócio não é comigo. Vamos sair juntos, vamos pra
todo lugar (MÃE LÚCIA, agosto de 2005).
149
Mãe Lúcia de Iansã encontra semelhanças em seu modo de ver o mundo, em sua
conduta na vida diária com Iansã. Ressalta a mulher guerreira, corajosa, enérgica e
determinada, objetiva, que não teme desafio. Como mulher é sedutora, fiel e sincera.
Não se conforma a dominação masculina, o se circunscreve na submissão e
inferioridade femininas, típicas da sociedade de predomínio do patriarcado e opressora das
mulheres. A interlocutora denuncia, pela narrativa, o lugar que ocupa na sociedade
abrangente, a de uma mulher que estudou, se graduou em Enfermagem, conseguiu sua
independência financeira como profissional na área de Saúde, fez a escolha por não casar e
não ter filhos carnais. Optou pela vida de mulher solteira, pela autonomia e liberdade. Não foi
mãe biológica e tem se dedicado há quase três décadas ao sacerdócio de iyalorixá no
Candomblé.
É a principal esposa de Xangô, por isso não tolera ser a outra, tem personalidade
fogosa e dada a vinganças terríveis. Entrevi no depoimento que essa mãe-de-santo contraria a
expectativa de um feminino suave, frágil, da mulher que se realiza no casamento e na
maternidade. Como Iansã atrai vários amores e não é dada ao casamento, mulher não casada
que não suporta traição, tampouco quer ser a outra, posto que reclama exclusividade nos
relacionamentos amorosos.
No que se refere aos relacionamentos amorosos, as filhas de Iansã exigem
cumplicidade, fidelidade e exclusividade. Mãe Zimá conta que namorou um rapaz durante um
longo período, e que dia precisou fazer uma viagem. Ao retornar, ele havia casado com outra
mulher. A traição lhe trouxe grande sofrimento, com o agravante de sofrer acusações e
humilhações da então esposa de seu ex-namorado. Entendia que ele tinha a liberdade de fazer
sua escolha, mas não admitia a forma como tudo se deu, desonestamente. Magoada, recorreu
aos seus guias espirituais para se vingar dos dois, e conseguiu que o ex-namorado voltasse a
morar com ela, causando também muitas doenças na esposa.
Ele passou dentro da minha casa cinco anos, lhe juro por Ogum. Nunca
deixei ele passar o dedo no meu braço, que dirá no meu corpo. Com cinco
anos eu mandei ele ir embora, disse: “Eu num gosto mais de você”, e ele
vive até hoje. E ela bêbeda pelas calçadas. Então, foi ela quem procurou.
(MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009).
Essa deusa dos ventos e das tempestades, de temperamento ardente e impetuoso,
carrega traços de uma mulher que desobedece às ordens do esposo. Aprecia e busca o poder,
150
deseja fazer o mesmo que o homem e alimenta a divergências com ele na verdade, duela
contra eles.
Outro orixá feminino é Oxum, cujo poder se relaciona com a fecundação, a
fertilidade. Representa o poder feminino. Oxum domina os rios, representa as águas doces,
águas claras, os riachos. Filha de Iemanjá, guarda com ela uma relação de proximidade de
filha e mãe.
Oxum representa a beleza própria da juventude, mas é mais do que isso, pois
ela significa, também, o processo de rejuvenescimento feminino. Neste
sentido, propõe que a beleza feminina pode renovar-se sempre, à medida que
a vaidade da mulher é um elemento propulsor deste processo (...)
(BERNARDO, 2003, p.68).
Oxum representa astúcia, esperteza, dissimulação ao planejar algo para atingir seu
objetivo, utiliza como arma a sedução.
Oxum é um orixá que ficou responsável, por determinação de Obatala e
Odumare, para ser a mãe. Das águas, pois a vida nasce através das águas, até
todos nós, no ventre da mãe, é o líquido amniótico, a gente nasce dentro da
água. Então Oxum é denominada como mãe-ventre, é tudo quanto multiplica
nas nossas vidas, o é fertilidade do ser humano, mas a fertilidade do
trabalho, a riqueza do saber, da sabedoria, a riqueza da generosidade. Então
tudo quanto multiplica em nossas mãos, feitas do nosso trabalho, Oxum é
responsável por isso (PAI ALUIZIO DE XANGÔ, agosto, 2008).
Deusa das águas doces, Oxum é a divindade do ouro e dos metais amarelos que
brilham. Encarna a vaidade e a sedução feminina. Apesar de apresentar aspectos semelhantes
aos de Iemanjá, diferencia-se desta pela astúcia, pela dissimulação, pois ela sabe o que quer
atingir. O depoimento seguinte expressa a forma como um filho-de-santo percebe a
maternidade numa mãe-de-santo que tem como orixá principal Oxum:
Ela é de Oxum. É aquela mãe-de-santo que briga, que dá um escândalo com
você, cinco minutos depois ela vem e lhe um cheiro. Ela pode morrer de
brigar com o filho-de-santo dela, mas ela num quer que ninguém fale, ou
ninguém diga nada para um filho dela. Ela é mãe. Sabe cuidar, amparar,
acalentar, está presente independente da condição financeira ou não. Eu via
isso nela, ela cuidava de trinta, quarenta pessoa por dia ali, as pessoas ao
redor dela. Ser mãe-de-santo é ensinar o que é certo o que é errado. Foi ela
que me ensinou a parte negativa e positiva de um orixá. Ela dominava tudo,
ela quer saber de tudo, tudo que acontece, tudo que é feito. Agora, toda
pessoa, ela tem defeito, ela é muito sentida, magoada, muito idosa também
151
(...), valoriza a questão financeira, pois tem uma família-de-santo grande
para manter (LINCONLY DE XANGÔ, junho de 2007).
Em conversa com Mãe Constância, a mãe-de-santo afirmou que tem um Oxum, e que
este orixá é quem esfria a cabeça dela, pelo grau de serenidade, por ser extremamente
maternal, carinhosa, nutriz, procriadora e amante da beleza. Oxum seria o lado doce, quem
amansa o Ogum, que o acalma.
Oxum é um orixá feminino, segunda esposa de Xangô. Controla a feminilidade.
Rainha dos rios, exerce seu poder sobre a água doce. Oxum valoriza a sensualidade e a
vaidade, chegando a limpar suas jóias antes de limpar seus filhos.
É sincretizada com nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora dos Prazeres.
Apaixonada por jóias, perfumes e vestimentas caras, é charmosa e bela, de comportamento
mais reservado. Esconde, em meio a uma aparência graciosa, uma mulher forte e ambiciosa,
desejosa de ascensão social (VERGER, 2002).
A cultura ocidental propõe à mulher um estereótipo calcado na docilidade e na
submissão, por meio de Oxum, a mais bela iyabá. Nas religiões afro-brasileiras, esse orixá
oferece uma visão mais complexa do modelo de ser mulher. Oxum é sensível e ao mesmo
tempo astuta, esperta e traiçoeira, utilizando-se deste poder para seduzir e submeter os
homens, fazendo suas vontades sem promover uma disputa direta pelo poder. À mulher
ocidental não é permitida a violação dessa moralidade sem cair em desgraça, apresentando-se
dois modelos de ser mulher: a puta e a santa e, sendo santa, deve abdicar da sexualidade.
Oxum permanece bela, meiga e sensual. (CARNEIRO; CURY, 2008)
Tratarei de outro orixá feminino que representa a maternidade, muito cultuada no
Brasil Iemanjá. Nas religiões afro-brasileiras, é identificado como mãe venerável, embora
apresente também qualidades negativas, por vezes ocultas ao grande público. Representa o
ideal da maternidade, sem que seja percebido seu poder de grande mãe ameaçadora.
Podemos encontrar diferentes mitos sobre tais divindades. Como se vê, as Grandes
Mães não ficaram morando na África. Vieram para para proteger seus filhos e participar
da fundação dos grandes templos (AUGRAS, 2000). As Grandes Mães ancestrais
presentificam a sexualidade feminina como totalidade de fazer, gerar, fecundar e desposar os
filhos, ser mãe, esposa e amante.
152
Iemanjá é cultuada na Umbanda como uma das sete vibrações originais, o princípio
gerador receptivo, a matriz dos poderes da água, a representação do “eterno e sagrado
feminino”. Padroeira da fecundidade e da gestação, protetora e nutridora que sustenta,
acalenta e mitiga o sofrimento de seus filhos.
Iemanjá, como representante da maternidade na Umbanda, assume contornos de uma
boa e santa mãe, sincretizada em Nossa Senhora, mãe de Deus. Essa figura se moraliza e
retraduz o ideal de toda mãe, boa e santa. Retirou-lhe a condição humana, repondo-a na
posição de assexuada, numa pura sublimação da sexualidade desta mulher-mãe.
Foi Batisde que me chamou a atenção sobre a “moralização” acentuada a
que vinha submetida à figura de Iemanjá (...). O Candomblé tradicional
mantém bem vivas as características das mães Ancestrais, e parece que tal
“moralização”, ou seja, o despojamento dos aspectos mais explicitamente
sexuais tem sido nitidamente, obra da Umbanda (AUGRAS, 2000, p.28).
Dentro do contexto da moralização da Iemanjá na Umbanda, percebemos a força de
outras religiões que contribuíram na formação da Umbanda no Brasil, diretamente o
catolicismo popular. Nesse aspecto, Iemanjá tem sua figura atribuída ao sincretismo com a
Imaculada Conceição.
A representação de Iemanjá que vem se difundido superou em muito a
imagem antiga da sereia ou da grande mãe cujos seios descem até o chão. É
uma moça branca, linda, de cabelos compridos, com vestido azulado que sai
do mar, cheia de luz. Essa imagem impôs-se como única representação de
Iemanjá a ponto de moldara a expressão corporal de suas sacerdotisas (...)
(AUGRAS, 2000, p.29).
Recolhendo informações sobre os arquétipos ou modelos de mãe que as mães-de-santo
adotam, é visível na Umbanda de Fortaleza, especialmente na festa de oferenda a Iemanjá que
ocorre todo dia 15 de agosto na Praia do Futuro, a forte influência do catolicismo. A festa do
orixá corresponde ao dia de Nossa Senhora de Assunção. Sobressai Iemanjá como boa e santa
mãe, espiritualizada como a vibração do mar.
Na sociedade brasileira, tomou forma um modelo de maternidade da boa e santa
mãezinha desde o período colonial. As mulheres deveriam constituir sua identidade como
mães, como a Virgem Maria, abnegada, paciente, que tudo suporta, mágica, sofredora em
nome do filho, santa, assexuada, de modo que assim encontrariam a redenção dos seus
153
pecados. Esse modelo ganhará mais força com o projeto de Higiene da Medicina Social no
século XIX (CANTUÁRIO, 1998).
Nos rituais que celebram Iemanjá, quase sempre a grande deusa é presenteada com
objetos de beleza, como sabonete, pente, pó-de-arroz, talco, perfume, laços de fitas,
ramalhetes. Tais presentes indicam que quem os recebe, além de feminina, é vaidosa
(BERNARDO, 2003, p.55).
Iemanjá como sereia: metade peixe, metade mulher, linda e de cabelos longos; bela
mulher, mãe inacessível, transmutada em mãe protetora. Traz também a contradição de mãe,
esposa calma e furiosa, que infunde terror. Iemanjá é mãe e esposa. Ela ama os homens do
mar e os protege. Mas quando os deseja, ela os mata e os torna seus esposos no fundo do mar
(BERNARDO, 2003, p.56).
Para Bernardo, Iemanjá, ao longo de um período de 1934 a 2001 –, recebeu
inúmeros nomes e significados, analisados por estudiosos de diferentes áreas. Contudo, a
autora consegue retirar uma síntese dessas diferentes interpretações: “(...) surge Iemanjá como
mulher fatal, mãe protetora, matricida, mãe dos peixes, mãe dos orixás, mulher vaidosa, linda,
de cabelos longos, mulher gorda de seios fartos, mãe injusta, mãe nutriente, mulher generosa,
mulher vingativa” (BERNARDO, 2003, p.61).
Essas representações fazem ver que Iemanjá e outras deusas africanas trazem consigo
o jeito de ser mãe, ligadas diretamente à família e aos filhos com o poder maternal de cuidar.
Ela representa uma mãe que quer os filhos sempre perto de si, aquela que aconselha e provoca
alívio às dores deste mundo. Porém, mesmo em meio à escravidão, sobressaíram também na
nossa sociedade resquícios de um modelo de maternidade das mulheres africanas, as grandes
mães, poderosas, sexuadas, dedicadas e amantes.
A maternidade de Iemanjá traz dimensões como falsidade, infidelidade, há um conflito
entre o que os mitos pressupõem e a moral católica da boa e santa mãe. A simbologia deste
orixá traz polêmica, contestações e densas possibilidades no exercício da maternidade.A
posição de Iemanjá na família mítica , é de uma formalidade como mãe, orixá de maior status
que exibe o legalismo formal e vazio como mãe , desempenha uma autoridade convencional,
privilegia um filho em detrimento de outros, encobre privilégios.
Nesse sentido, são elucidativas as narrativas dos interlocutores da pesquisa de Rita
Laura Segato no Xangô de Recife quanto à personalidade de Iemanjá. Todos os orixás são
obrigados a render homenagem a Iemanjá mesmo que não gostem dela, porque ela é um santo
154
poderoso. Ela é mãe e, portanto, tem influência e autoridade. Embora não tenha feito nada
para merecer, é dona e protege as cabeças, dá o autocontrole das pessoas. Mas como mãe é
hipócrita, usufrui dos privilégios conferidos da maternidade, exercendo de maneira formal.
Tem a qualidade do mar, mostra uma aparência e no fundo tem outra, surpreende ao fazer
escolhas abstratas, dissimula, parece tranqüila e de forma brusca se manifesta como as águas
do mar (SEGATO, 1990).
Yemanjá (...) é descrita como uma mãe fria, hierárquica, distante e
indiferente. Sua maternidade é convencional. Embora meiga em aparência,
as pessoas dizem que sua meiguice é mais conseqüência do seu autocontrole
e boas maneiras que a um coração compassivo e terno - em oposição o
carinho verdadeiro de Oxum, a “mãe de criação” (SEGATO, 2006, p.7).
Essa dicotomia e ambigüidades do ser mãe foram percebidas durante a pesquisa.
Encontrei uma multiplicidade de formas de ser mãe-de-santo. Esse fato encontra sentido
quando compreendemos que a função materna no Brasil se distribui entre uma multiplicidade
de mães. A presença das criadeiras, a metade do século XIX, definiu a prática da
maternidade transferida que provocou impacto na psiquê nacional. Essas mães substitutas
persistem até hoje são as babás, costumeiramente um emprego doméstico infantil, meninas
negras herdeiras das antigas amas-de-leite.
Percebi que a maternidade exercida pelas mães-de-santo processa outros recursos de
simbolização, articula-se com o universo mitológico. Mitos e arquétipos são lembrados para
explicar comportamentos, condutas, atitudes das mães-de-santo e de seus filhos-de-santo, bem
como nas referências sexuais diferentes do requerido pelos padrões dominantes na cultura
brasileira. Tomando como referência o mito da criação no aspecto da separação das águas,
Iemanjá tem mais status porque representa as águas salgadas – diferente de Oxum, que
representa a água doce. Iemanjá, para os adeptos das religiões afro-brasileiras, é considerada a
“mãe legitima” dos orixás, fazendo-a coincidir com o aspecto da mãe biológica; Oxum seria a
“mãe de criação”. Em síntese, evidencia-se a diferença entre criar filhos e pari-los (SEGATO,
2006).
Podemos também acrescentar outras entidades que incorporam os princípios da
maternidade voltados à orientação e à direção dos filhos, como as pretas-velhas e as “Titias”.
Outras se apresentam como figuras ambivalentes entre a mãe-amante. , em outro pólo, a
muito poderosa Pomba-Gira. Esse Exu feminino seria o espírito de uma mulher que em vida
155
foi uma prostituta ou cortesã, capaz de dominar os homens por suas proezas sexuais, amante
do luxo, do dinheiro e de toda sorte de prazeres (PRANDI, 1996).
No panteão da Umbanda, encontramos o oposto da mulher como mãe, entidade
sexualizada Pomba-Gira. Figura sensual e agressiva comprometida, segundo algumas
vertentes, com o mais “baixo espiritismo”, ou com magia negra, a Quimbanda. O feminino na
Umbanda se apresenta na Pomba-Gira mediante uma personagem de duvidosa moralidade.
Como entidade sobrenatural, é considerada Exu feminino. Na Umbanda, costuma ser
invocada ou procurada para “trabalhar” em demandas ligadas a enlace amoroso, sexualidade.
Para muitos autores, Pomba-Gira é conhecida na Umbanda como mulher de sete Exus,
que se entrega à fornicação, seja em vida ou depois da morte, possui poder por si só. Para
outros, seu poder emana dos seus sete maridos, ou seja, emana do poder masculino
(AUGRAS, 2000). É perigosa, e tal perigo relaciona-se com a sexualidade (vibrações do sexo,
luxúria, desejos carnais, lascívia). De vida sexual desregrada, situa-se no plano da desordem
e, portanto, não é confiável.
Augras (2000) chama atenção para as entidades Pomba-Gira cuja morada é o
cemitério. Como rainha da morte, detém e exerce o poder como Maria Padilha, rainha das
encruzilhadas, conhecida como Exu-Egum, que de alguma maneira vem resgatar o antigo
poder terrível das Iyá mi, maltratando os maridos faltosos, mandando os eguns, espíritos de
mortos, para assustá-los. Expressa o verdadeiro poder da mulher, aquela que mata e castra os
homens.
Nessa pura criação do imaginário popular, a figura da mãe prostituta
somente pode ser resgatada pelo sacrifício do poder masculino. Assim como
para as ‘Iabás de espada’ matam-se bichos castrados, Pomba-Gira teve de
castrar e matar para libertar a mãe. Mas, no mundo patriarcal, não é
permitida a livre expressão do poder feminino e, em conseqüência, ela
acabou tornando-se prostituta. (...) A figura da Pomba-Gira, ao mesmo
tempo em que afirma a realidade da sexualidade feminina, devolve-a ao
império da marginalidade (AUGRAS, 2000, p.40).
Para Pomba-Gira, qualquer desejo pode ser atendido daí a duvidosa moralidade por
não enquadrar-se nos valores da tradição ocidental cristã. “Ela trabalha para o bem, também
trabalha para o mal; amor de Pomba-Gira ela e tira”; não há limite para a fantasia humana.
Os pontos cantados identificam as entidades. Vejamos o que cantam quando a Pomba-Gira
chega:
156
ÔÔÔ
Rainha de Nagô
Chegou
Ela é moça bonita
Ela traz o seu axé
Vem salvando na Umbanda
Maria da Praia é moça da fé
Estrela linda vem descendo de Aruanda
É a estrela de Pomba-Gira
A rainha da Quimbanda
Estrela linda no salão iluminou
É a estrela de Pomba-Gira
A rainha de Nagô
Cada Exu tem características próprias, cantigas e pontos riscados, tem seus elementos
simbólicos. Cada um cuida de determinadas áreas. Pomba-Gira é Exu – mulher que tem como
campo de atuação os casos de amor, protege as mulheres que a procuram, é capaz de propiciar
qualquer tipo de união amorosa e sexual (PRANDI, 1996, p.148).
Pomba-Gira é singular, mas também é plural. Elas são muitas, cada qual tem um
nome, aparência, preferências, símbolos e cantigas particulares. Dentre elas, as mais
conhecidas são: Pomba-Gira Rainha, Maria Padilha, Sete-Saias, Maria Molambo dentre
outras.
Pomba-Gira aprecia uma boa conversa, é vaidosa, sedutora, bebe cerveja, champanhe.
Segundo ela conta, foi jogada na porta de um cabaré e depois se tornou a dona do
estabelecimento. Tem sete maridos e cuida deles.
Ela é Pomba-Gira Rainha, é uma verdadeira rainha (risos). Ela foi mulher de
cabaré. Naquela época, acho que num chamavam de cabaré. Nem gosta que
lhe chamem de mãe, não. Porque num tem gente que fala: “Mãe Pomba-
Gira”. Ela diz: “Nunca pari” (...) (risos). Ela diz logo. (MÂE
CONSTÂNCIA, agosto de 2008)
A mitologia umbandista acaba por incorporar discursos construídos acerca do
feminino na cultura brasileira, que remontam o século XIX, a mulher da vida, aquela que
contrariou o discurso religioso e médico-higienista da mulher/esposa fiel e mãe dedicada.
Pomba-Gira é a mulher-puta que fez uso de sua sexualidade fora do casamento, a prostituta.
Nos terreiros de Umbanda e nos candomblés que cultuam as formas
umbandizadas de Exu, a concepção mais generalizada de Pomba-Gira é de
que se trata de uma entidade muito parecida com os seres humanos. Ela teria
157
tido uma vida passada que espelha certamente uma das mais difíceis
condições humanas: a prostituição. Mas é justamente essa condição que lhe
permitiu total conhecimento e domínio de uma das mais difíceis áreas da
vida das pessoas comuns, que é a vida sexual e o relacionamento humano
fora dos padrões sociais de comportamento aceitos e recomendados. Assim,
acredita-se que Pomba-Gira é dotada de uma experiência de vida real muito
rica, que a maioria dos mortais jamais conheceu, e por isso seus conselhos e
socorros vêm de alguém que é capaz, antes de mais nada, de compreender os
desejos, fantasias, angústias e desesperos alheios (PRANDI, 1996, p.158-
159).
No que se refere às características de Pomba-Gira, vale a pena comparar com o
depoimento de Mãe Virginia Albuquerque em Portugal quando ela destaca a sensualidade
dessa entidade.
Minha Pomba Gira, quando era preciso, ela vinha dar consultas, mas muito
poucas vezes. Já nessa altura, ela dizia: “deixa crescer os cabelos e as unhas,
porque aí terás tudo o que quiseres”. Não sei ao que ela se referia eu ter tudo
o que quisesse, porque ela nunca disse a ninguém o que era tudo e eu nunca
deixei o cabelo crescer por motivos de higiene, eu não tenho tempo para
cabeleireiros, e quanto às unhas, são tão frágeis que sempre se quebram com
facilidade. Quem sabe, agora que estou velha, tenha tempo para ir ao
cabeleireiro e tratar o cabelo e, quem sabe, deixar de lavar panelas. Talvez as
minhas unhas cresçam e eu possa ter tudo que quero (MÃE VIRGÍNIA in
PORDEUS JÚNIOR, 2000a, p.77-78).
O depoimento revela as características de Pomba-Gira da vaidade, à sedução, a
capacidade de conquistar e realizar os desejos da mulher. Esse tudo tem a ver com a
feminilidade, de uma mulher da vida, que conquista os homens.
Percebi o quanto é forte o imaginário de que ser mulher é ser mãe, boa e santa. Mas
ser mulher é mais do que ser mãe ou não ser . Saber o que é ser mulher é compreender o
feminino, este universo pontuado de enigmas, de teias de significados plurais. Entender o que
é ser mulher é ter de trilhar pela subjetividade, processos de subjetivação, é trazer à tona o
mundo da sexualidade, da sua relação com o homem e com outras mulheres, é compreender
os seus desejos como mulher. E, nas religiões de matriz africana, essas representações de
bondade e maldade vão habitar as mulheres es-de-santo, abrindo-lhes a possibilidade de
aproximar essas polaridades da condição humana e encontrar formas de viver no mundo.
Assumem importância valiosa na Umbanda as Pretas-velhas, com a maternidade bem
sucedida, portadoras de sentimentos positivos na criação dos filhos.
158
É, realmente, as pretas-velhas eu não posso nem lhe falar porque quase todas
as pretas-velhas eu acho que foram mãe. É hora, porque dentro da nossa
Umbanda eu conheço a Juliana, que chamam ela de moça velha... É moça
velha, mas o restante, não. Então, eu acho que elas foram mãe; agora, a
Juliana é moça velha. (MÃE ANITA, agosto de 2008).
As pretas-velhas são sábias, pacientes, tolerantes e carinhosas. Consolam e sugerem,
contemplam, refletem e recolhem-se na imobilidade de sua velhice e de seu passado de
trabalho escravo. O ponto cantado de Mãe Maria de Conga exprime o seguinte:
Estava nos porão do mar
Reis Congo mandou me chamar
Estava nos porão do mar
Reis Congo mandou me chamar
Acorda Maria Conga, é hora de trabalhar
Oi! Na Bahia estão me chamando pra comer acarajé (acaré) e também
vatapá
Piquí, óleo de dendê, ô meu Pai, é o tempero que a velha dá
Piquí, óleo de dendê, ô meu Pai, é o tempero que a velha dá
Oi, vamos todos, sarava, preta-velha
É a Maria de Conga, é no terreiro que a velha está
E é de Conga
E é de Conga, chegou Maria Conga
E é de Conga, chegou Maria Conga
Protege os filhos no terreiro
Maria Conga quando vem de Aruanda ela me diz: Oi! Vim vencer demanda
Ela me diz: Oi! Vim vencer
E é de Conga, e é de Conga, chega, Maria
Mãe Constância comenta a entidade que recebe, a preta-velha Mãe Maria Conga:
Uma preta-velha, uma escrava. Que sofreu muito, ela foi até queimada. Ela
conta que a senhora certa vez queimou as pernas dela. A senhora, ou os
senhores, eu num sei bem, porque ela tentou fugir, ela tentou fugir mais de
uma vez daquele sofrimento e chegaram a queimar as pernas dela com uma
coisa de fogo pra ela num fugir mais. Ela foi, como se diz assim, uma mãe-
de-santo que num se chamava assim. Da África que veio e que ficou aqui no
tempo da escravidão. hoje em dia ela baixando, fazendo cura com
muita sabedoria. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008)
As características temperamentais e emocionais dos orixás conformam arquétipos que
alargam e complexificam a compreensão do feminino e do exercício da maternidade. Busquei
saber de que forma se dão as práticas como mães-de-santo, como se relacionam com seus
filhos e filhas-de-santo, e como as interlocutoras desta pesquisa ilustram as características
desse sacerdócio. Interessa saber que tipo de mãe surge e se revela nessa rede de
159
complexidade, haja vista que cada orixá e entidade personifica uma linha de força da
natureza, comportamentos com elenco de aspectos que podem lhe atribuir singularidades no
ser mulher e mãe-de-santo.
Verifiquei que algumas das mães pesquisadas têm como dono de sua cabeça orixás ou
entidades masculinas, ou ainda guias muito presentes como Oxossi (Mãe Anita), Ogum (Mãe
Júlia, Mãe Stela, Mãe Constância, Mãe Zimá).
Entrevistei mães-de-santo majoritariamente da Umbanda, e quase todas eram filhas de
Iansã orixá classificado entre os deuses femininos ambivalentes por ser tida como uma
mulher masculinizada e de orixás masculinos como Ogum, Oxossi, Obaluaiê. Para mim, isso
não se trata de mera coincidência, mas guarda relação com o fato de essas mães-de-santo
reluzirem no meio da comunidade de terreiro de Fortaleza e Região Metropolitana. Têm seu
sacerdócio mais público, são logo indicadas como mães-de-santo experientes, com disposição
e conhecimento a ser socializados. Na verdade, elas têm se destacado em meio a tantas outras
sacerdotisas, são protagonistas nas comunidades de terreiros.
Vale então apresentar o arquétipo desses orixás masculinos, iniciando por Ogum. É o
deus do ferro, respeitado e terrível. Era um guerreiro que brigava incessantemente contra os
reinos vizinhos. Orixá de pouca paciência que se enfurece com facilidade, é extremamente
violento. É sincretizado com Santo Antônio de Pádua, São João Batista, São Pedro, mas
popularmente associado a São Jorge, o valente guerreiro vestido com sua armadura, montado
no cavalo de lança na mão, pronto para guerrear (VERGER, 2002).
Os traços marcantes daqueles que são consagrados a Ogum são próprios de pessoas
violentas, impulsivas, vingativas, impetuosas e arrogantes, determinadas quando querem
alcançar um objetivo. Não temem os desafios, enfrentam-nos com coragem, agem com
franqueza e sinceridade. Mãe Zimá sente muito a presença dele:
Sou filha de Iansã com Ogum, trago um carrego de Obaluaiê. Nem sei
perdoar, não gosto de trair ninguém. Porque muitas vezes as pessoas não
gostam de mim por eu ser rígida comigo mesma. (...) Ogum é assim,
antigamente a gente dizia assim, São Jorge Guerreiro, que é Ogum, que é o
cavaleiro Ogum, é um santo de muita força, de muita luz, é uma santo de
batalha, é um santo guerreiro. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009).
Ogum é o deus da guerra, do ferro e da metalurgia, um caçador que se refugia nos
matos para descansar das lutas e conquistas. Gosta da floresta, da natureza. Simboliza todo o
princípio da vida, a conquista da civilização:
160
Ogum está associado ao reino mineral, mas principalmente ao ferro, portanto
suas representações materiais são as diferentes ferramentas utilizadas na
agricultura e na arte bélica. Em função disso, todas as conquistas técnicas lhe
são conferidas, sendo ele considerado também vanguarda da civilização o
primeiro e o primogênito. O sistema expande-se por analogia e, da
associação do orixá com elementos naturais, decorre uma divisão social e
sexual do trabalho. Nessa medida, Ogum aparece em vários mitos como o
ferreiro ou guerreiro; é símbolo por excelência da masculinidade e virilidade.
Igualmente, em função dessa condição, será atribuída a cada orixá uma
caracterização de ordem psíquica e comportamental, delineando arquétipos
humanos. Assim, Ogum é basicamente de temperamento duro, inflexível
(como o ferro), agressivo e violento. (CARNEIRO; CURY, 2008, p.103)
Mãe Constância identifica a presença das características deste orixá:
Eu me acho parecida com Ogum. Eu me identifico com ele. Os filhos de
Ogum normalmente têm essa tendência a ser andarilho, de viajar, de correr
estrada. De trabalhos manuais... É como você falou, artesão, esse tipo, essa
coisa assim identifica-se muito com o filho de Ogum. E aquela outra parte de
ser lutador, esbravejador, desbravador, ficar parado jamais. (MÃE
CONSTÂNCIA, julho de 2008)
E Oxóssi é o orixá deus dos caçadores. Tem como mbolo o arco e a flecha em ferro.
É sincretizado com São Jorge e com São Sebastião, tendo sua festa celebrada no dia 20 de
janeiro. Vive nas florestas. Os filhos de Oxóssi são pessoas espertas, rápidas, dinâmicas. São
de muita iniciativa, impulsionadas a nova descobertas, extremamente responsáveis e voltados
para os cuidados com a família, generosas, apreciadoras da ordem, da harmonia e da calma
(VERGER, 2002).
Oxóssi é um valente caçador, guerreiro que conduz seu povo a uma vida melhor, de
caça mais abundante. Representa a natureza. Na Umbanda, Oxóssi se associa aos caboclos
cujo domínio é a mata, as florestas.
A incorporação dessas entidades espirituais e orixás femininos, masculinos e
ambivalentes abre um leque de vivências e manipulação de recursos interiores do indivíduo.
São experiências que outros códigos dificilmente propiciariam; funcionando como escudo,
essas pessoas vivenciam papéis tradicionalmente a elas negados.
Verifiquei casos em que a mãe-de-santo embora seja mulher, filha de Iansã, filha de
orixá feminino e lute com dificuldade para prover a família e criar seus filhos biológicos –,
diante de situações extremadas transmuta-se em Ogum, representação xima de virilidade,
coragem, combatividade e masculinidade.
161
Carneiro e Cury, em suas pesquisas sobre o poder feminino no Candomblé, chegam à
seguinte conclusão:
Que se pode depreender é que o contato imediato com as entidades
proporciona uma mudança significativa na vivência dessas mulheres. As
pessoas que vivenciam o transe, a inter-relação pessoa-entidade, adquirem
nova postura diante do mundo. Em todos os casos, elas demonstram uma
sensação de segurança e maior força para se defrontar com os problemas da
sociedade (...).
(CARNEIRO; CURY, 2008, p.133)
São mulheres que se identificam como guerreiras, corajosas, destacam-se na criação
de seus filhos biológicos. São ousadas e destemidas ao se constituir como lideranças
religiosas, tendo de vencer vários obstáculos na condição de mulher e de adeptas de uma
religião “bárbara” e “primitiva” numa sociedade machista, racista, sexista e intolerante com
algumas práticas religiosas. Careciam mesmo da força dos ventos e das tempestades para sair
vitoriosas em condições tão adversas quanto as da sociedade brasileira. Como religiosas,
como mães-de-santo, enfrentam as estratégias de desmobilização e fragmentação mediante o
uso da violência, numa luta incessante para manter viva a tradição religiosa.
São mulheres que, pelas suas histórias, lutaram muito e sentiram dificuldade para
consolidar seus projetos de vida, tanto na sociedade abrangente na condição de mulheres-
mães separadas. Passaram por condições financeiras precárias, desentendimentos conjugais,
no caso das que tinham marido, e, no âmbito da vida religiosa, sofreram por professar uma
religião tida como charlatã, herege, pagã, a condenação da possessão como algo demoníaco.
Sofreram perseguições de intolerância religiosa, tanto no Brasil como em Portugal. Careciam
mesmo desse deus da guerra e do ferro, que fornece a ferramenta para o trabalho, soldado que
luta obstinado e com disciplina pelo que quer.
É notável a pouca ou nenhuma participação do homem na vida delas, principalmente
como esposo, por diversos motivos, como a morte, a separação conjugal, ou por ter uma vida
marcada pelo ciúme. Isso contribuiu para o espaço delas dentro da família biológica e de
santo: elas lideram encarnando o princípio masculino. Verifiquei, no entanto, que o lugar do
homem pode ser ocupado pelos seus filhos carnais e de santo, quando estes ajudam no
cotidiano e nos rituais da casa. Não poderia ser diferente numa sociedade que valoriza o
masculino, machista e sexista, isto é, patriarcal e autoritária.
É uma cultura que produz modelos legitimadores da necessidade de controle e
silenciamentos das mulheres. Não é diferente dentro das religiões afro-brasileiras, quando a
162
natureza da mulher é definida como “selvagem”, marcada pela voracidade e pelo excesso.
Vale dizer que o equilíbrio de forças entre os sexos está sempre presente nos mitos. Para
Carneiro e Cury:
Do ponto de vista masculino, neles o reconhecimento da necessidade de
controlar a mulher, mas não porque ela seja inferior, um subproduto dele, e
sim porque ela tem potencialidades e características capazes de submetê-lo.
Para cada atributo masculino encontramos um equivalente feminino e, ainda,
nos mitos, homens e mulheres participam das qualidades inerentes à
“natureza humana”, homens e mulheres se equivalem sica e
psicologicamente. (CARNEIRO; CURY, 2008, p.120)
De maneira geral, esses orixás femininos contrariam, em suas particularidades, os
discursos e as práticas de uma sociedade patriarcal que não tolera a insubordinação feminina.
Essas divindades não aceitam a superioridade e a dominação masculina, aflorando os conflitos
entre os sexos e as estruturas sociais de discriminação contra as mulheres.
Os orixás e as entidades espirituais nas religiões afro-brasileiras legitimam
transgressões que a moral judaico-cristã institucionalizada considera erradas; possibilita ainda
a compreensão e o reequacionamento de uma gama de conflitos oriundos da visão
maniqueísta que essa modalidade gera, possibilitando outras formas de viver (CARNEIRO;
CURY, 2008).
Entrevi, por esta pesquisa, que a mulher mãe-de-santo estabelece relações com o
universo mítico fundamentador de seu sacerdócio como prática religiosa, com a comunidade
de terreiro a qual pertence e com o mundo exterior. Denomino “universo mítico” o repertório
de histórias míticas que contam ou descrevem passagens da vida dos orixás e entidades
espirituais, descrição de suas personalidades e das relações que mantêm entre si. Minha
preocupação foi interpretar a forma com que a mãe-de-santo compreende e equaciona sua
atuação na Umbanda com a realidade concreta no que concerne ao exercício da maternidade
espiritual, suas contradições sociais e sexuais.
Compreendi que as divindades são modelos de identificação. Como não poderia deixar
de ser, as mães-de-santo agenciam e incorporam certas características de suas entidades
protetoras, tornando-as parte de si. No item seguinte, verso sobre a complexidade que essas
mulheres encontram para construir o sacerdócio de mãe-de-santo.
163
3.4 Maternidade espiritual: a construção de um sacerdócio
Analisar a maternidade simbólica exercida pelas mães-de-santo certamente exige que
se faça antecipadamente uma reflexão sobre o exercício da maternidade em nossa sociedade.
A maternidade é um fenômeno moderno consolidado no decorrer do século XX, com o
avanço da industrialização e da urbanização. Atualmente, tem passado por mudanças nos
padrões e nas experiências de ser mãe.
A pesquisa demonstrou que o exercício da maternidade simbólica das mães-de-santo
não está isento de influência do mundo e das socializações primárias, pois essa mulher mãe-
de-santo passou nas instâncias sociais e culturais de que partilhou. As impressões do que é ser
mãe inscrita numa cultura certamente se faz presente, comparece no momento em que essa
pessoa assume o sacerdócio. Acrescente-se a esse legado toda a tradição, fundamento da
ordem religiosa como uma mãe-de-santo.
Nesse aspecto, vale à pena investigar que discursos edificaram o ser mãe na realidade
brasileira e o que se coloca como fundamentos de uma mãe-de-santo no campo religioso.
Essas duas ordens vão se presentificar no exercício desta maternidade simbólica: o ideal da
boa e santa mãe, as vivências e subjetividades de mães más, as especificidades e
particularidades dessas mulheres em relação também aos arquétipos dos orixás e outras
entidades espirituais que representam o feminino, a maternidade.
Entendo a maternidade como um fenômeno social inscrito numa cultura que tem a
questão de gênero como subjacente a mulher-mãe. A sociedade desenha modelos. Antes do
século XVIII, o significado da maternidade não era preponderante na sociedade. A
experiência da maternidade tinha outro valor, o infanticídio era tolerado, havia uma
desvalorização da maternidade.
A “invenção da maternidade” ocorre no final do século XVIII, com o surgimento da
idéia do amor romântico, a criação do lar, do mito do amor materno, que imodificar a
relação entre pais e filhos. A mulher assume maior controle na criação e socialização dos
filhos, havendo uma forte associação da maternidade com a feminilidade. A identidade
feminina se constituiria quando a mulher é mãe.
Os motivos da escolha da maternidade podem estar ligados a inúmeras
causas que, isoladas ou conjuntas, se explicariam no ponto de interseção do
biológico, do subjetivo e do social: o desejo atávico pela reprodução da
espécie, ou pela continuidade da própria existência; a busca de um sentido
164
para a vida; a necessidade de uma valorização e de um reconhecimento
social (como no caso de algumas mães adolescentes, ansiosas por ocupar um
espaço de maior respeitabilidade na sociedade); o amor pelas crianças; a
reprodução tradicional do modelo da família de origem, entre outros
(SCAVONE, 2001, p.50).
A exaltação do amor materno foi descrito como “instintivo” e “natural” em um mito
construído pelos discursos filosóficos, médicos e políticos, a partir do século XVIII
(BADINTER, 1985).
No depoimento que se segue, a mãe-de-santo Mona de Oiá afirma entender que a
maternidade pode ser exercida por quem não pariu, aproximando essa maternidade da
espiritual:
Apesar de eu ter uma visão que, por mais que você não tenha tido filho, uma
mulher não possa ter filhos seus e apareça um filho pra ela criar, ela tenha
certeza que aquele filho dela é espiritual. Se ela nasceu pra ser mãe, ela vai
ser mãe, independentemente de nascer do útero. (MÃE MONA DE OIÁ,
janeiro de 2009)
A maternidade é uma experiência complexa que gera sentimentos contraditórios.
Como sentimento humano, é social e culturalmente construído e, como não poderia deixar de
ser, é incerto, frágil e imperfeito. Pode existir ou não existir, ser duradouro ou desaparecer,
mostrar-se forte ou frágil, exclusivo de um filho ou igualmente repartido entre todos. Na
relação mãe e filhos, outros sentimentos além do amor podem surgir: ódio, raiva, inveja,
rancor, indiferença, desprezo, ciúmes (BADINTER, 1985).
Assim, Mãe Mona de Oiá elenca tipologias de filhos-de-santo e as diferentes formas
de interação com a mãe-de-santo que em muito se assemelham à família biológica:
Todos o diferentes, você tem que entender a todos. Tem filhos carmicos,
tem filhos que você tem certeza que são seus, que vem com você anos e
anos, e espiritualmente são seus. E tem uns que você olha assim e diz: “Meu
Deus, esse com certeza eu abortei. É o que mais me dá trabalho, é o que mais
eu amo, é o que me bofetada, mas eu vim pra ele”. È uma família eterna,
porque nós somos eternos, nós não vamos nos desfazer nunca. A nossa
família espiritual é mais importante que a consangüínea. Ela não se desfaz.
Ela é eterna. (MÃE MONA DE OIÁ, janeiro de 2009)
A ordem familiar econômico-burguesa, a partir do século XIX, tem como um dos seus
fundamentos a subordinação da mulher:
165
Mas, ao se outorgar à mãe e à maternidade um lugar considerável,
proporciona-se meios de controlar aquilo que, no imaginário da sociedade,
corre o risco de desembocar em uma perigosa irrupção do feminino, isto é,
na força de uma sexualidade julgada tanto mais selvagem ou devastadora na
medida em que não estaria mais colada à função materna. A mulher deve
acima de tudo ser mãe, a fim de que o corpo social esteja em condições de
resistir à tirania de um gozo feminino capaz, pensa-se, de eliminar a
diferença dos sexos (ROUDINESCO, 2003, p.38).
A teoria feminista contribuiu para verbalizar a tomada de consciência das mulheres a
respeito das implicações sociais e políticas da maternidade: implicações negativas de
maternidade, opressão. Para a corrente de inspiração na psicanálise, a maternidade é um poder
insubstituível que só as mulheres possuem, faz parte da história e identidade femininas;
portanto, valida a divisão eqüitativa das responsabilidades entre mães e pais
(SCAVONE,
2001).
Com a decadência do poder absoluto do Pai, as mulheres-mães e depois as crianças
abriram caminho para a emancipação – isso ao longo do século XIX e do século XX (declínio
da autoridade paterna) – e para a escalada em intensidade do poder das mulheres.
A família é o palco dos fatos mais marcantes de nossas vidas. É a partir da família que
nos instituímos como grupo social e ocupamos lugar na sociedade. Daí a relevância de
distinguirmos a família de linhagem biológica e a de linhagem de santo.
Consideramos família um grupo de pessoas diretamente unidas por conexões
parentais, cujos membros adultos assumem a responsabilidade pelo cuidado das crianças.
Laços de parentesco são conexões entre indivíduos, estabelecidos tanto por casamento como
por linhas de descendência, conectando parentes consangüíneos (mães, pais, irmãos, prole,
etc). Na família-de-santo, contam os laços religiosos, são conexões entre indivíduos adeptos
das religiões Umbanda e Candomblé que, por meio do processo iniciativo, congregam
numa família-de-santo, estabelecida pelo ritual religioso que liga os iniciados.
A constituição de algumas famílias sob a experiência da escravidão fez a população
descendente de africanos desenhar outros modelos familiares fora dos padrões ocidentais da
família nuclear. A figura materna é trazida como orientadora e referencial em sua função e
vale dizer que nem sempre se restringe a uma só pessoa o desempenho deste papel.
Pude visualizar, por meio da pesquisa, essas formas familiares ainda presentes na
família de sangue da e-de-santo, tomando por exemplo o momento em que, para criar seus
166
filhos, Mãe Zimá contou com a ajuda de outras mulheres da família assumindo a função
materna:
Eu sou separada 34 anos. Meu marido saiu para comprar uma carteira de
cigarro e até hoje. Que ele seja feliz. Eu fiquei com meus filhos Luis Leno e
o Roney, com um ano e meio e outro com oito meses. Foi uma luta pela
sobrevivência, para poder criar eles. Tem uma irmã minha que o Luis Leno
chama ela de mãe, que me ajudou a criar eles, foi ela quem criou o Luis
Leno, por bem dizer criou, pois eu saí para estudar, para trabalhar, e ele tinha
de ficar com ela, que ensinava à noite. Eu ia buscar o Luis Leno à noite
para casa e o Roney passava o dia com minha outra irmã. Eu voltei a viver
com minha mãe por conta disso. (MÃE ZIMÀ, janeiro de 2009)
Coube à figura materna fortalecer os laços de pertença entre os membros das famílias,
evitando que eles se afrouxassem, formando um grande círculo de modo a cuidar e proteger a
todos como uma Grande Mãe.
A figura materna se reduplica, migrando para várias mulheres e de forma
concomitante. Há sempre a presença de uma irmã mais velha, tia, madrinha
ou mesmo vizinha, e, quando possível, de uma avó a desempenhar este
papel. (Isso não significa que o homem esteja aí excluído ou desrespeitado; o
que acontece é que sua figura paterna não assume as proporções encontradas
na família nuclear) (...) (NASCIMENTO, 2008, p.54)
Mudaram os padrões familiares. A família na contemporaneidade vem sendo marcada
pela ausência do pai e pela autoridade e poder ilimitados do materno. Convivemos com
grande diversidade de forma de famílias: monoparentais, chefiada por um pai ou por uma
mãe, recomposta, unipessoal, desconstruída, clonada, gerada artificialmente. a diminuição
no número de casamentos, as pessoas estão casando mais tarde, o aumento da taxa de
divórcios, a coabitação antes do casamento.
Nas sociedades contemporâneas, a tendência de diminuição no número de filhos. A
mulher-mãe adentrou o mercado de trabalho e acaba defrontando-se com outros projetos, não
apenas a função de reprodução. Apesar das mudanças, as mulheres continuam tendo uma
relação mais comprometida com os filhos, sendo ainda elas que assumem a maioria das
responsabilidades parentais. As tendências atuais são proles reduzidas e maior refletividade
em relação a maternidade. A escolha de maternidade varia de acordo com as condições
socioeconômicas e culturais de cada mulher.
167
Os cuidados maternos ou as práticas da maternagem são constituídos na cultura das
diversas sociedades que estabelecem convenções. Na atualidade, denota um contexto de
modificações socioculturais que alteram o papel materno pela modificação do próprio papel
da mulher e da família nas últimas décadas do século XX. Sobressaem novos modelos de
maternidade, alternativos ao modelo vigente, que acabou por aprisionar a mulher num papel
exclusivo de mãe.
A maternidade biológica hoje passa por redefinições, dada a crise pela qual passa a
família biológica. Vivemos na dissolução dos antigos valores, as redefinições da mulher-mãe
como boa, presente, acolhedora.
As transformações pelas quais os padrões de maternidade vêm passando estão
articuladas com as transformações societárias dos últimos trinta anos, de ordem econômica,
política, social e cultural. Elas são responsáveis pela difusão de novos padrões de consumo e
de comportamento, como o uso crescente das tecnologias reprodutivas (contraceptivas e
conceptivas) que possibilitam à mulher escolher com maior segurança a realização ou não da
maternidade. mudanças na vida privada e nas relações de gênero, com a emergência de
novos modelos de sexualidade, parentalidade, novas configurações familiares e de amor
(SCAVONE, 2001).
Em uma ordem sociocultural que se edifica, há um imaginário social do que é ser mãe.
Entendemos por cultura a organização da experiência e da ação humanas por meio
simbólicos; diz respeito à capacidade singular de homens e mulheres recriarem seu próprio
mundo a partir de práticas, hábitos e modo de vida (MATOS, 2000). Coube investigar as
particularidades de uma maternidade espiritual, de modo a compreender por que essas
mulheres resolveram ser mãe-de-santo. Trata-se de uma escolha, de uma obrigação ou de
desígnios? E na esteira dessa compreensão, coube detalhar como exercem esse sacerdócio.
Não tive aqui a preocupação de demarcar a boa ou a má mãe-de-santo, mas sim do que
ela se apropria e se reveste para exercer esta maternidade. Quais lógicas as têm guiado de
modo a ficar evidente o significado da maternidade? Nesse sentido, coube interpretar uma
multiplicidade de aspectos que se revelam nos seus discursos como mãe-de-santo, aquela que
tem o dom de cuidar e proteger desde o momento de fazer o filho até as formas de preservar
ou não os aspectos culturais e religiosos.
O simbolismo está presente nas duas maternidades, biológica e espiritual, como
conjuntos de significado que se expressam nas práticas sociais revelando todo um conteúdo
168
das vivências de um grupo. No caso da maternidade biológica, as práticas são disciplinadas
por discursos da ordem médica e jurídica das instituições que disciplinam a vida de homens e
mulheres e da família como um todo. Ser mãe biológica é assumir papéis determinados,
construídos nas práticas sociais, no contexto cultural de sociedade brasileira.
A mãe-de-santo circula dentro de um universo simbólico concebido como a matriz de
todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. Os universos simbólicos
são tecidos e produzidos numa história, estruturam-se como unidade coerente e fixam um
quadro de referência comum para a projeção das ações dos indivíduos. Dentro do Candomblé
e da Umbanda, esse quadro de referência é posto, inscrito no panteão, é a cosmologia que
atribui sentido aos indivíduos, apegam-se ao transcendente para poder viver.
A maternidade deve ser vista como prática social perpassada de simbolismo. As
mulheres exercem o poder na sociedade mediante o ser mãe. A maternidade tem significado
social. Por muito tempo, ela foi considerada somente em sua dimensão biológica, fato que
determina uma posição de opressão, de domínio. A maternidade como prática social é
perpassada por contradições, mudanças e permanências.
A maternidade biológica envolve a relação sanguínea da mãe com o filho ou filha, é da
ordem do parentesco, mãe-de-sangue. Já a maternidade espiritual envolve o trabalho de
cuidar, ensinar, maternar os santos e as entidades para saber quem são, o que querem, como
podem ajudar, qual linha ou falange pertencem. Devem ensinar os adeptos a viver e a
conviver na religião.
No imaginário social, a mãe biológica é uma figura de grande importância no sentido
de encarregar-se do desenvolvimento dos filhos e de sua formação como pessoa humana.
Histórica e culturalmente, na realidade brasileira, a mãe apresenta-se como perfeita, generosa,
boa, tolerante e resignada. É portadora de um amor incondicional, porque nasceu para cuidar
dos filhos, em dedicação absoluta. É imagem mitificada, comparada à Virgem Maria. Para
muitos, a mãe biológica tem o amor instintivo como guia, aparece como alguém
insubstituível, tipo ideal. Na realidade, deparamo-nos com outras vivências, como casos de
mãe que agridem, maltratam e violentam seus filhos, quando deveriam protegê-los.
Para Elizabeth Roudinesco (2003), uma nova família começou a se configurar a partir
da década de 1970, uma família na qual a questão da hierarquia não se coloca, uma vez que o
poder encontra-se descentralizado. Esse fato modifica o sentido atribuído a “mãe”, o
significado de maternidade. Instauram-se ambigüidades, falta de estabilidade, incertezas
169
quanto ao desempenho dos papéis dos membros da família. Os filhos acham-se afetivamente
desamparados, sem uma figura de pai forte, respeitável, que proteja, e sem a sustentação de
uma mãe terna, tolerante. O enfraquecimento das referências parentais gerou, mais que uma
sensação de liberdade, um profundo sentimento de desamparo.
Ser mãe biológica na sociedade contemporânea é assumir parte de uma carga
disciplinadora dos discursos oficiais de ser a socializadora dos filhos, cuidadosa, dedicada,
mas em meio a cenários de mudança na vida da mulher graças a grandes transformações. Nas
famílias monoparentais lideradas por es, uma parte considerável de mulheres atribui
importância dada a outros projetos de vida na concomitância de criar os filhos. São novas
mentalidades de que a mulher não nasce só para gerar e ser boa mãe. Ela hoje avista
contradições, dificuldades e limites no exercício de maternar os filhos e filhas, e daí decorre
diferentes desdobramentos, desde optar por não ser mãe a ser mãe dentro das condições e
contextos reais, afastando-se de uma condição de mulher mágica boa e santa.
Nas comunidades de terreiros de Fortaleza e Região Metropolitana liderados pelas
mães-de-santo, não constituição de laços de parentesco por determinação biológica,
embora algumas das família-de-santo tenham em seu interior uma forte presença dos parentes
do pai ou mãe-de-santo. A maternidade é de sangue, mas também de santo. Nessas família-de-
santo conta-se também com a adoção, os “filhos de criação”, ou seja, algo além dos laços de
parentesco.
As mães-de-santo são depositárias da cultura de seus antepassados. E a decisão de
assumir esse sacerdócio pode encontrar sentido ainda na família de origem, biológica, de
haver observado as ações de avós, tios, familiares em contato com a mata, com entidades,
com trabalhos de magia, espiritismo. Mãe Anita conta de suas primeiras aproximações com a
Umbanda por intermédio de sua avó:
(...) a minha avó, isso logo quando eu era menina, sempre ela botava assim,
sempre ela falava coisas sobre o que ela via, se é lenda, mas não era lenda,
agora que eu entendi. Ela contava: Minha filha, você nunca entre na mata
pra não levar um pedacinho de fumo, aí você rasga e pras caiporas”. Ela
sempre dizia isso, e hoje eu, depois de muitos anos, eu fico me lembrando
dessa arrumação. Ela dizia: “Olhe, você nunca entre uma mata que você vá à
procura de tirar uma folha daquela mata que você num leve um dinheirinho e
deixe lá, porque você precisa daquela erva, e aquela erva tem dono, e aquela
mata tem um dono”. Essas coisas que ela ensinava a gente. Sempre ela
conversava, mas eu nunca perguntei por que ela dizia aquilo. (MÃE ANITA,
julho de 2008)
170
A família-de-santo não tem coincidido com a biológica, exceto mãe Neide Pomba-
Gira, cujos filhos-de-santo são os biológicos. Na maioria das entrevistadas, a família biológica
respeita sua opção religiosa, prestigia com a presença em festas e giras, recorre às prestações
de serviços religiosos, mas não é adepta.
Não, eles são apenas simpatizantes. Eles não são, assim, por exemplo, a
mais velha, a Flora, que ela que deu obrigação, mas assim mesmo ela não
recebe. E os outros são simpatizantes de vir, de falar, de pedir. De fazer
alguma coisa, um banho, uma limpeza, um num sei o quê, eles querem.
(MÃE CONSTÂNCIA, agosto de 2008).
Ou ainda
Minha família não é de Candomblé, mas toda ela me apóia muito. Não
querem entrar porque não querem passar pelo sacrifício, mas vêm fazer
trabalho. Dizem que as coisas estão difíceis, querem fazer uma limpeza, eles
vêm às festas, colabora, toda minha família. (MÃE LÚCIA, agosto de 2005).
Mãe Anita teve quatro filhos carnais, mas eles não são adeptos da Umbanda. Enquanto
os netos têm participado e ocupado cargo no seu terreiro.
Tenho, são dois casal. Duas mulheres e dois homens. Neto, eu tenho oito.
Agora, os netos, quer dizer, todos estão ao meu redor, mas dentro mesmo eu
tenho mesmo o Ogum, que é filho e neto. Porque deram ele pra mim. É o
Ogum da casa e o filho dela, que é o primeiro, meu filho que é pai pequeno
de casa, que é filho da minha filha mais velha. tem esses dois. Mas os
outros, ninguém é contra não, estão comigo na hora da minha religião, nas
festas eles vão. (MÃE ANITA, julho de 2008)
Mãe Mona de Oiá e Mãe Zimá têm em suas famílias de origem adeptos do Espiritismo
kardecista, e seus filhos, filhas, netos e netas são iniciados no Candomblé. Eles participam das
festas, e demais cerimônias, respeitam a Umbanda e, quando precisam, solicitam os cuidados
delas como mães biológicas.
Quanto à família de linhagem de santo, a hierarquia, as normas, as punições, as
premiações são mais gidas e definidas. Como religião de tradição, percebemos claras
mudanças, mas não tantas a ponto de se distanciar por demais dos elementos rituais,
fundamentos que a legitimam como religião. Não deixa de ser atravessada pelas contradições
e mudanças da sociedade mais abrangente, onde se revelaram as mudanças ou alterações nos
papéis de gênero, nas funções parentais de pai, mãe, filhas e filhos. Muitas das tradições ainda
se mantêm, apesar de se apresentarem de forma menos rígida.
171
Em relação à maternidade biológica e à espiritual, Mãe Zimá considera haver algumas
diferenças que não se pode confundir. As dimensões, para ela, são distintas, principalmente no
que concerne à possessão. Na visão da mãe-de-santo, a entidade recebida não vai tratá-lo
diferentemente por ser seu filho carnal, explicitando neste depoimento:
Existe. Um dia o Roney me pediu pra ser a mãe-de-santo dele. Ele é filho de
Xangô com o Obaluaiê, eu comecei a cantar o ponto de Xangô e ele sentiu
uma virada, uma mudança. Ele me pediu pra eu ser a sua mãe-de-santo. Eu
disse: “Não. Ninguém mistura as coisas. Você é meu filho, quando eu disser
uma coisa você me responde. Tudo bem. É filho, mas se você me responde
na hora que estou virada no santo, meu próprio santo mete a chibata em
você. E num dá certo”. Não quis. Mas como o pai dele está em São Paulo eu
dou os banhos dele, eu descarrego e cuido dele espiritualmente. (MÃE
ZIMÁ, janeiro de 2009)
Dentro da família-de-santo, a maternidade espiritual toma uma dimensão coletiva,
passa a ser mais que um vínculo biológico exclusivo; encontra-se no âmbito da religião, está
além do determinismo biológico.
Cabe à mãe-de-santo a socialização, em termos religiosos, de suas filhas e filhos-de-
santo, de modo a proporcionar ou requerer que estes encontrem bem-estar material e afetivo.
Terezinha Bernardo Shettini (1988), na pesquisa realizada em São Paulo e Salvador entre
1983 e 1985, demonstra que a e-de-santo no Candomblé inicia a educação dos filhos e
termina com o fim de suas vidas. Mesmo depois de determinado período, quando a filha-de-
santo tornou-se mãe, abrindo inclusive o seu próprio terreiro, a preocupação da mulher que a
iniciou continua.
Na esteira dessa compreensão Mãe Mona de Oiá assinala seu entendimento sobre o
que é ser mãe-de-santo:
Olha, eu não num sou mãe-de-santo de nada. Porque eu não posso dizer que
sou mãe de Iansã. Iansã é que é minha mãe. Eu acho interessante certas
pessoas se outorgarem direitos como se fossem rei e rainha da humildade. E
a humildade? Apenas nós assim parimos os nossos filhos espirituais. Como a
gente pare qualquer filho. A dor é igual, é isso que eu sinto, não tem
diferença de qualquer filho que eu pari. Eles são meus. Porque em outras
vidas, com certeza, foram, eu apenas vim resgatar. É um resgate. Ser mãe é
muito difícil mesmo que seja mãe normal. Cem filhos pode ser (...), uma
mãe pode ser pra cem filhos, mas cem filhos num é pra uma mãe. Todoso
diferentes, você tem que entender a todos. (MÃE MONA DE OIÁ, janeiro
de 2009)
172
A mãe-de-santo é uma mediadora que deve organizar uma hierarquia bem definida, o
exercício do poder é diferenciado dentro do terreiro. Assim, são reconhecidas como mães
maiores, sábias, profetisas, guias, orientadoras espirituais, guardiãs de uma tradição que se
renova, que muda com o passar dos tempos na dinâmica da sociedade contemporânea.
O depoimento de Mãe Lúcia trata de como sua avó-de-santo lhe conduzia, os
ensinamentos que muito lhe serviram na construção do seu sacerdócio.
Então, minha finada avó dizia que “um dia você vai ser mãe-de-santo, o seu
talento, a sua aptidão vai ser mais para cura, as suas mãos vão ter poder de
curar as pessoas”. Ela falava coisas assim muito bonitas para mim, a mãe
Amália. me dava muitos conselhos como “nunca faça o mal” (...). Dizia:
“Entre fazer um trabalho e vencer, tem uma distância”. A pessoa que fez tem
que ter axé, tem que ter merecimento; a pessoa que está mandando fazer tem
que merecer, não é chegar perto de você e dizer que quer isso, e você
prometer. Então, tive aulas assim bonitas em relação ao futuro. Ela já se
dirigia a mim assim como se tivesse me preparando para ser mãe-de-santo.
Vai ser assim, assim, você vai lidar com cabeças diferentes, com
mentalidades diferentes. Isso eu nova de santo. (MÃE LÚCIA, agosto de
2005)
O papel da mãe passa a ser identificado como facilitadora da revalorização de uma
cultura, da tradição religiosa, constituindo uma cosmologia que orienta os praticantes a estar
no mundo. Tem o poder de dar vida, fazer o santo, permitindo a comunicação dos adeptos
com o mundo dos orixás e das entidades espirituais. Cabem-lhe os adjetivos de provedora,
acolhedora, educadora não sem considerarmos as contradições e ambigüidades que parte
significativa de mães encontra nas suas práticas cotidianas para cumprir o propósito maior de
fornecer aconchego a todas as pessoas que direta ou indiretamente recorrem ou congregam no
terreiro (JOAQUIM, 2001).
Na Umbanda e no Candomblé, a mãe-de-santo é uma liderança mediadora entre as
divindades, orixás e entidades e os membros da comunidade religiosa. É devido a tal função
que filhas e filhos-de-santo e simpatizantes devem a ela obediência, pela responsabilidade que
assumem no terreiro, tanto nos ensinamentos dos procedimentos próprios da religião quanto à
demonstração de como são os orixás e as entidades cultuadas. Daí os aspectos educacionais e
culturais que praticam no desempenho do sacerdócio.
Como sacerdotisas, elas exercem a maternidade simbólica a partir de um conjunto de
qualidades diversas, como bondade, abnegação, autoritarismo, dedicação, sensibilidade,
viabilização da relação com todos os adeptos. Desse conjunto de qualidades especiais, pode
173
ou não aderir à base da legitimidade e reconhecimento de muitas sacerdotisas pelo consenso
dos praticantes da Umbanda e do Candomblé.
Para se confiar no poder daquelas sacerdotisas, é preciso que elas tenham
conhecimento, poder de curar e de resolver os problemas de existência material e espiritual
dos indivíduos. O poder da mãe-de-santo reside no conhecimento dos mistérios do culto, de
sua magia. Vale o conhecimento sobre as ervas, as forças da natureza. E a legitimação do
grupo religioso na qual faz parte, a família-de-santo e os clientes que nela acreditam e
depositam sua fé. A sacerdotisa com esse poder e saber consegue respeito e vitória nas
dificuldades.
Querem ter um status maior e não sabem fazer nada. Eu digo é a elas. Porque
quem sabe fazer as coisas é macumbeira, é a Umbanda. Ali a gente é
catimbozeiro. Eu aprendi muita coisa com meu pai-de-santo, não que ele me
ensinava, mas que eu ficava junto dele pra ver o que ele fazia. (MÃE ZIMÁ,
janeiro de 2009)
A mãe-de-santo reclama que muitas sacerdotisas ficam envaidecidas em ser mãe-de-
santo, mas na verdade não teriam conhecimento e seriam destituídas do poder de cura, o que
tem grande relevância no sacerdócio.
Na interlocução com os sujeitos de minha pesquisa sobre a forma de assumir a
maternidade de santo, verifiquei a existência de uma mãe detentora de poder, bem como a
maternidade de santo estar ligada ao requerido pela sociedade mais ampla, patriarcal e
católica. O modelo descrito de exercício do sacerdócio de mãe-de-santo denuncia uma
multiplicidade de formas, e estas não estão desconectados dos discursos edificados e
constituídos de ser mulher-mãe em nossa cultura.
mães-de-santo que nunca foram mães biológicas; outras têm essa experiência e a
forma como interpretam essa maternidade influencia diretamente em seu sacerdócio. Os
preconceitos, as predileções de um filho em relação a outros e o nível de relacionamento
levam ao campo de fluidez e particularidades no exercício da maternidade.
Cabe relacionar a maternidade presente na sociedade abrangente com a espiritual,
saber qual enredo é dado, posto que traz uma rede de sociabilidade dividida para essa mãe-de-
santo, num trânsito permanente entre o ordinário (cotidiano) e o extraordinário (religioso).
Acredito que encontrei esse material nos depoimentos, perpassado de contradição.
174
Eu acho que ser mãe-de-santo é a gente se encontrar nesta maternidade
espiritual. Principalmente para quem não tem filhos. E eu costumo dizer que
filho não é o do ventre, é o do coração também (...). E eu acho que ser
mãe-de-santo é a glória, é a glória d’eu poder ser, vamos dizer, d’eu ser sua
mãe, sem que você tenha saído da minha barriga. Então, veja bem, se eu
tenho um filho que ele sai do meu ventre, eu sou obrigada a ser a mãe dele,
eu pari, eu gestei. É diferente d’eu ser sua mãe sem que você tenha passado
nove meses dentro de mim. Então eu acho que é a glória, é o máximo que a
mulher muito mais que o pai-de-santo –, a mulher, ela pode alcançar,
atingir na vida, se sentir mãe de quem ela o pariu e sentir que aquele filho
se sente seu filho (...). É uma coisa tão profunda, é uma ligação tão especial,
é uma situação tão especial na vida da gente. (MÃE LÚCIA, agosto de
2005).
Mãe Lúcia explicita que ela encontrou na religião a possibilidade de ser mãe, o que
não fez na vida ordinária. E valoriza a relação mãe e filho-de-santo como algo possível de ser
construído e não dado como inato, como se poderia pensar na maternidade biológica.
Ser mãe-de-santo é identificado como a responsabilidade de cuidar, de maternar os
filhos na vida, de aprender os fundamentos religiosos e saber lidar com as energias das
entidades e guias espirituais – o que se aprende com a mãe ou pai-de-santo e com as
divindades –, ajudar no desenvolvimento espiritual do noviço. No entanto, no depoimento fica
explícito que esse sacerdócio tem seus dissabores, os limites, as incompreensões:
Ser mãe-de-santo é ser a zeladora. É aquela que cuida. E aquela que cria. É
aquela que amamenta. Eu usei a palavra amamenta, mas nem é amamenta, é
alimenta. É o próprio desenrolar da vida, você vai aprendendo a lidar, a
história do desenvolvimento mediúnico, que é exatamente aquele
aprendizado de manusear as energias. Uma parte que você com elas e
uma parte que você aprende com a própria entidade. Já dizem que ser mãe é
padecer no paraíso. Eu acho que a relação é muito grande de respeito.
muitos dissabores, muitas ingratidões, mas eu acho que se a gente for
pesar também muitos prazeres e ingratidão também (...), com certeza.
(MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008)
Ser mãe-de-santo é cumprir com uma responsabilidade na religião. Vejamos a forma
como a mãe-de-santo Neide Pomba-Gira fala:
Não é uma atividade, é uma responsabilidade religiosa. A mãe e o pai-de-
santo, nós somos religiosos da religião Umbanda. Como o padre é, a freira é,
o pastor é na igreja dele. Nós somos religiosos da Umbanda, não vejo
diferença, o trabalho é que é diferente. É uma hierarquia que eles não
consideram. Passamos por um processo muito grande de perseguição (...)
(NEIDE POMBA-GIRA, setembro de 2004)
175
A mãe-de-santo menciona a perseguição sofrida pelas religiões afro-brasileiras, em
particular a referente à Umbanda, em que sacerdotes e sacerdotisas foram considerados
charlatões. Portanto, ela elucida uma preocupação das es-de-santo em legitimar o
sacerdócio, e isso se faz com a formação, o preparo, o desenvolvimento para ser mãe-de-
santo. Elas têm de receber os fundamentos, saber lidar com as entidades espirituais, aprender
rezas, conhecer as ervas, e transmitir os conhecimentos aos filhos-de-santo.
Antes de entrar para a religião, Mãe Lúcia conta que se divertiu muito e que sempre
resistiu à idéia de ser mãe biológica por ter consciência de que algumas tarefas do ser mãe,
como os cuidados diretos, não lhe agradavam. Ela temia que o casamento e a maternidade
retirassem dela o que ela primava: a liberdade.
Mas antes disso, brinquei muito. Nessa época é que eu namorava, eu saía,
me divertia, eu não pensava em casar, sempre gostei de criança e eu sempre
tive caseiro com crianças. Tem que ter uma criança perto de mim. Mas na
época eu gostava assim de uma criança linda, ajeitadinha, enfeitadinha, eu
brincava ali, para eu brincar, beijar, abraçar, arrumar, para eu morder, mas
fez cocô e xixi, toma, toma. Começou a chorar, eu devolvia para a mãe.
Então eu pensava se me casasse, eu tivesse filho, eu já tinha que me
apartar das minhas viagens, da minha vida noturna. (MÃE LÚCIA, agosto
de 2005)
Sobressai no depoimento a força dos discursos da maternidade como projeto único e
exclusivo da mulher, retirando as oportunidades ou possibilidades de empreender outros
compromissos, outros projetos de vida. Ela funcionaria como verdadeiro elemento
enclausurador da vida das mulheres e repercutiria diretamente na vida das que aspiravam a
um desenvolvimento profissional, a autonomia, como essa mãe formada em Enfermagem.
Mãe Lúcia nunca casou. Quando jovem, temia perder diversões, viagens, não valendo
a pena comprometê-las pela maternidade biológica. Era uma moça que gostava de se divertir,
magra, preocupada com a estética, muito vaidosa. Repare que vai perder a vaidade com seu
corpo ao entrar no Candomblé, identificando-se com o que se espera de uma mãe sem
vaidade, assexuada.
A mãe-de-santo fala do momento em que sentiu necessidade de entrar no Candomblé,
momento de reflexão, voltando-se para a dimensão mítica, do que teve de abdicar segundo
ela, no momento oportuno, pois vivera o prazer, a alegria de uma juventude. Estando nos
quarenta anos, poderia se entregar de forma inteira à religião e posteriormente ao sacerdócio.
176
Eu não sei; quando entrei no Candomblé, vinha de uma fase difícil de
doença. Então, eu estava a fim de me recolher um pouco, de refletir mais,
de um momento de muita reflexão na minha vida. Então abracei a religião,
que preencheu todo meu espaço interior. Me afastei por completo para
mergulhar na religião. Mas não me arrependo, porque vamos dizer que
quase nos meus quase quarenta anos eu vivi bem, eu passeei, tive tudo que
tinha direito, tive as pessoas que amei, amei muito, também fui muito
amada, É um passado glorioso, eu fui feliz. que minha felicidade hoje é
outra. Hoje a minha felicidade se resume, consiste no fato d’eu aqui, d’eu
ter meus filhos-de-santo. (MÃE LÚCIA, agosto de 2005).
Ou ainda:
Então, tudo que eu tinha de fazer eu fiz. Fui diretora de escola de samba,
dancei muito, brinquei muito, namorei; como mulher de Iansã, fiz tudo que
eu tinha direito. Depois, eu disse: “Agora eu vou viver para o meu santo,
para minhas coisas religiosas, para minha religiosidade. Eu vou viver pra
tudo aquilo que eu pedi pra Deus” (...). Eu não tenho mais o que pedir, eu só
tenho que agradecer. (MÃE MONA DE OIÁ, janeiro de 2009)
Nesses depoimentos, as mães-de-santo falam da entrega que se deve fazer ao entrar na
religião do Candomblé e da Umbanda, da dedicação da mudança em relação à vida na
sociedade para uma vida mítica.
Bem, voltei a Fortaleza, dei minha obrigação de um ano e, a partir de cinco
anos de santo, mais ou menos, realmente aí começa a chegar aquelas pessoas
perto de você. Eu vivenciei muito a minha religião. Também, eu não fiz
santo para ficar indo na roça uma vez por semana, uma vez por mês. Não, eu
mergulhei de cabeça. Eu passei a viver mais na casa de Candomblé. Eu fui
feita aqui no Bom Sucesso em fevereiro, mas em junho nós passamos para
cá. Até hoje a casa de minha mãe-de-santo é bem aí, numa rua bem aí. Então
eu praticamente mudei para cá, eu deixei meu apartamento lá, minha casa lá
na Serrinha (...) (MÃE LÚCIA, agosto de 2005).
Para muitos, é esperado que a e-de-santo desempenhe seu sacerdócio com
dignidade, honradez e se faça respeitar. Conta-se também a forma amorosa, afetiva e
atenciosa que dispensa aos filhos e filhas-de-santo e aos que a procuram com demandas.
Mãe Anita estabelece a diferença entre a maternidade espiritual e maternidade
biológica. Para ela, a espiritual significa maternar o santo, as entidades dos filhos-de-santo e
cuidar dos filhos mas também ser cuidada, querida, valorizar a troca de afetos. Ajudar e
ensinar a desenvolver a espiritualidade: a preparação de um filho requer tempo, dedicação e
aprendizagem.
177
É. Tem muita diferença. Tem diferença, porque eles são tão amável com a
gente, aquele cuidado com a gente, de eu trabalhando, corre um, enxuga o
suor, o outro (...) traz a água, “mãe, o que a senhora quer?”. “Mãe, a senhora
bem?”. Vem o ventilador e me abana, são essas coisas que faz a gente
ficar assim amando eles, nós não recebe dos filhos, recebe deles. Aquele
cuidado que eles têm com a gente na hora que o caboco vai embora, você vai
se desprender, quer dizer, eles ficam ao meu redor, qualquer coisa eles
podem me segurar. Todos eles na minha casa o desse jeito. Aquilo ali, se
eu precisar fazer uma coisa lá dentro, “mãe, eu posso fazer assim, assim, vou
limpar lá dentro”. “Vá, meu filho”. Uma coisa que eu num dei ordem: “Mãe,
e aqui, eu posso mexer, posso fazer?”. Tudo eles fazem por mim, é comigo.
(MÃE ANITA, agosto de 2008)
O depoimento ilustra que a diferença consiste exclusivamente na dimensão sanguínea:
é o que o filho carnal tem a mais em relação ao filho-de-santo. A maternidade espiritual
envolve vínculos da ordem religiosa. Essa mãe é mãe espiritual dos filhos biológicos, ela
cuidou da vida material dos filhos e da vida espiritual. Embora eles não tenham vínculos
diretos com a Umbanda, indiretamente eles têm participado.
Há uma diferença, porque o filho biológico, ele já tem a ligação sanguínea. E
o espiritual o tem. A diferença é essa, o sangue que corre nas veias, é.
A diferença é d’eu saber de minha ligação, assim, da minha ligação
espiritual com aquela pessoa. Ela não tem o meu sangue, não é meu filho
biológico, mas ele tem uma ligação espiritual comigo. O filho biológico, ele
além da ligação espiritual que a gente tem, né? tem também a ligação
sanguínea, biológica. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008)
A maternidade espiritual envolve a dimensão de cuidado com o filho-de-santo:
O cuidado com ele, porque na hora que dizem: “Mãe, eu não estou me
sentindo bem, eu vou atrás de (...)”. Se eu num puder resolver sem caboco,
eu vou trazer o caboco, pra ver o que o caboco diz sobre ele, e o que tenho
de fazer. Porque, às vezes, a gente pensa que é uma coisa e é outra,
acontece de trabalhar pra ele. Filho, eu trazer um Preto, pra ver se ele vem,
porque eu não posso dizer que eu vou trazer um Preto, eu vou trazer o
caboco, não, é o que vier, porque se a gente soubesse era bom demais (risos).
iria chamar o que a gente quer. Não é assim, às vezes tem coisa que a
gente pode resolver. As vezes eu faço um sacudido de ervas, um sacudido na
pipoca, dou assim, passo um feijão preto nele, dependendo de quem é o
Santo dele, dou um sacudido (...), faço aquela limpeza nele, com a folha dou
o banho, aí contanto que a gente resolve. (MÃE ANITA, julho de 2008)
178
A mãe-de-santo fala da maternagem como proteção ao filho-de-santo e, para tanto,
recorre aos Guias Espirituais para saber do que se trata e como deve proceder.
Porém, faz-se necessário também maternar as entidades dos filhos-de-santo de modo a
compreender o que querem e saber lidar com essas forças e energias espirituais.
Ela é assim, ela passava a cantar pra Oxossi, aí, se tivesse algum filho de
Oxossi, entrava, entrava assim, começava a pegar as correntes, da barra
vento até passar suas obrigações – quando são médios, porque tem os médios
para receber, tem o médio intuitivo, tem o médio que vê, tem o médio que
sente. Tem o médio que trabalha, tem de vários tipos. ela era assim,
chamava linha por linha pra saber. Pois bem, ela cantava pra Oxossi, pra
Ogum, pra Xangô, ela louvava pra Exu, ela louvava para toda a Nação, mas
aqui você se ligar mais, pois ela sabia que aquela lhe pertencia (...). Ela já
ia, como se diz, chamar pela corrente, como bem, se eu me incorporasse
eu não falava, aí ela já ia ensinar o caboco, puxar por ele, pra ele dizer quem
era ele, pra ele dar assim um começozim da reza dela, que é pra ela puder a
ajudar, é como ensinar uma pessoa a ler. Ela ia chamando ele. Ela, mãe-de-
santo, ia educando, chamando, sabe quem é, “como é seu nome, quem é
você, é pra isso” (...). Ela vai zelando por ele até chegar o ponto, daí ela
vai tratar da erva, que pertence, já vai entrar no amanci. Amanci é pegar toda
erva e passar na mão e tirar só o sumo pra lavar a cabeça, pra tomar o banho,
chama-se o amanci do caboco, do santo, a gente vai a obrigação da
esteira, quando passa a receber, vai, como se diz, dar uma obrigação de
cruzo. Aí a gente vai caminhando. Aí, vamu dizer, um preto-velho já traz um
Oxossi, um Oxossi, dá um Xangô e vai puxando, eles mesmos se encarregam
de aparecer (...). Ela vai se comunicando com ele e ali vai notando quantos já
vieram, quantos Pretos, quantos Oxossi, quantos Xangô. (MÃE ANITA,
julho, 2008).
A mãe-de-santo pelos rituais vai maternar as entidades, a música, o toque, o
movimentar das energias são indicadores para se garantir a maternidade espiritual adequada
para os orixás ou entidades espirituais.
Assim, a maternidade espiritual exercida pelas mães-de-santo reside num apoio
espiritual, cumprindo muitas vezes um papel reorganizador psicológico para os adeptos e para
os não iniciados na religião. O papel maternal é percebido numa conversa, na realização de
um trabalho de magia, nos cuidados espirituais como banhos, remédios de ervas, apoio de
alimentações, na forma afetuosa ou não com que se dirige, o companheirismo e a
solidariedade para com a aflição de quem a procura. Nessa maternidade, as normas e os
valores são regulados pelos poderes sobrenaturais dos orixás e entidades. Cabe à e-de-
santo pôr o filho na corrente, ou seja, colocá-lo no plano espiritual e ajudá-lo nas aflições da
vida material também.
179
A missão da mãe-de-santo é iniciar os adeptos. São as mediadoras e intérpretes entre
os fiéis e as entidades, as divindades, os orixás. Cabe a elas cuidar, proteger e defender
aqueles que solicitaram seu amparo. Conservam os conhecimentos, sabem e participam de
todos os rituais, aprendem pela observação e pela oralidade daqueles mais velhos ou mais
experientes no Santo.
Eu tenho aproximadamente uns setenta filhos-de-santo espalhados pelo
mundo todo. Mas eu digo sempre: tanto faz ser a juíza como o neguim que
limpa minhas coisas, que me ajuda, quem primeiro come é o negro. É quem
me serve mais. Eu o tenho distinção de cor nem de qualidade. Quando
entra no meu terreiro, todos são filhos. É igual a todo mundo. Todos me têm
uma atenção muito grande, um amor grande e um respeito (...). Porque a
mãe-de-santo é uma zeladora de orixá. As pessoas pensam que a mãe-de-
santo é a deusa. Não, nós somos a zeladora de orixá. É como se você fosse
minha filha-de-santo e eu zeladora pelo seu santo. Se eu zelo pelo seu santo,
eu zelo por você. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
Sabe-se que, nas religiões afro-brasileiras como Candomblé e Umbanda, o prestígio da
mãe-de-santo se mede pelo número de filhos que fez. Vale saber quantos Santos foram feitos,
o número de pessoas que iniciou e a freqüência com que ocorreu, em sua casa, os rituais e as
festas.
Sabe que eu nunca parei pra contar? (risos). Nunca parei pra contar. Teve
uma época (...) que tinha uma média de sessenta pessoas freqüentando
assiduamente. Porque a gente num conta com aqueles que freqüentam
esporadicamente. E tinha uma média de sessenta filhos-de-santo, onde nessa
época fazíamos um trabalho filantrópico muito grande, tinha o grupo de
jovem, o grupo de idosos, e era um movimento muito forte. Eu tenho filhos-
de-santo espalhados por todo canto. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008)
E, nesse sentido, Mãe Anita traz uma particularidade, pois prima pelo
acompanhamento sistemático. A importância não consiste em iniciá-los na religião, mas em
cuidar do seu desenvolvimento mediúnico, numa relação de troca afetiva, proteção e cuidado
entre a mãe e seus filhos-de-santo. Assim, são elucidativas as palavras de Mãe Anita quando
se refere ao número de filhos por ela iniciados:
Não. Não... Não... que teve comigo chega mais disso, mas pra sair pronta,
não. Não. Porque hoje eu faço dentro deste processo todo no meu tempo.
Hoje em dia, quando eles recebem cinco, seis orixá que passam a trabalhar,
já são tudo dono do seu nariz, cada um quer abrir sua casa. É, aí eles
mesmos se faz por conta própria. É. Não... não, pois é, são muitos os que
passam pela casa da gente, mas nem todos ficam, fica assim uma amizade,
180
mas assim que eu fiz, não. E muitos que passaram pela minha casa, devido
minha casa num ter muita reserva pra passar muito tempo porque num dá,
aqui é pequeno – eu mandava pra minha mãe, Mãe Stela. Porque minha mãe
é tudo, eu boto na casa de minha mãe. (MÃE ANITA, julho de 2008).
Na esteira dessa compreensão, Mãe Anita afirma que não contabiliza os adeptos que
entraram no seu terreiro e não tiveram um desenvolvimento completo. Considera que, dos
seus filhos e filhas-de-santo, não ultrapassam cinqüenta os feitos e desenvolvidos dentro do
terreiro ou em parceria com sua atual mãe-de-santo, a Mãe Stela.
Mãe Mona de Oiá não apresenta preocupação em iniciar na religião muitos filhos-de-
santo: prefere investir na qualidade de valorização da religião, estabelecendo um contato
maior com os membros do terreiro.
A minha casa é uma casa muito restrita, o entra todo mundo, não é uma
casa aberta ao público, até porque ninguém entende. Eu não faço questão de
quantidade, eu faço questão de qualidade, de quem entende o que eu digo.
Eu sou meio complicada. Faço o que eu acredito e cumpro. Dentro do que eu
aprendi, eu cumpro religiosamente. E geralmente meus filhos de santo não
são cearenses, são paulistas, paraenses. Tenho poucos filhos, uns dezenove.
Porque como minha casa não tem bebida, não tenho mesmo, as
injunções da minha casa são muito grandes, eu não tiro santo pra ir pra
praça (...). Eu não faço questão de publicidade, eu vivo muito feliz
dentro do que eu aprendi, dentro do que eu ponho em prática. Então,
não adianta chamar A, B ou C porque não vai entender, e a opinião de
ninguém me interessa, interessa a minha.
(MÃE MONA DE OIÁ,
janeiro de 2009)
A pesquisa evidenciou uma pluralidade de modos de ser mãe-de-santo. Algumas se
dedicam ao sacerdócio de orientar e zelar pelos orixás, entidades dos filhos e filhas-de-santo.
Contudo, muitos conflitos se fazem presentes na prática cotidiana nos terreiros: desavenças
quanto às obrigações, ao cumprimento das normas, quanto aos fundamentos, aos segredos
partilhados. Filhos e filhas-de-santo sentem-se preferidos e também preteridos da mãe-de-
santo, ocasionando discórdia e até afastamento do terreiro.
Os aspectos políticos, culturais e econômicos têm incidido diretamente sobre o
exercício da maternidade das mães-de-santo no desempenho de seu papel como zeladora dos
orixás e de outras entidades, bem como de fazedora, mantenedora dessas religiões. Apreendi
que coexiste uma diversidade de modelos de maternidade e de família-de-santo. Encontrei
desde as mais comprometidas com a realização do sacerdócio no que concerne à
conservação dos princípios e fundamentos como solidariedade e preservação do patrimônio
181
cultural imaterial até aquelas interessadas na comercialização dos bens, visando garantir
benefícios financeiros.
Espera-se de uma mãe que ela consiga desempenhar a contento as suas funções,
permitindo ao filho que integre e fortaleça o próprio ego, conquiste autonomia e torne-se
sujeito de sua própria história. Pretende-se que a mãe-de-santo contribua positivamente com o
desenvolvimento espiritual dos seus filhos-de-santo e que esteja presente orientando,
ensinando seus iniciados quanto aos fundamentos da religião. Ela deveria, então, deixá-los
“prontos” para a convivência com seus guias espirituais e inteirados, especialmente através da
oralidade, sobre os princípios religiosos como rezas, curas.
3.4 Proteção e relações de poder no cotidiano das mães-de-santo
O cotidiano não é lugar de alienação: encontramos nele também táticas de
resistência. Os sujeitos, por meio das práticas cotidianas, driblam o sistema de forma criativa.
Pela reinvenção, inscrevem-se em uma cultura de resistência e redefinem-se dentro da cultura
hegemônica.
O cotidiano é território do contraditório, do relativo e do confuso. Aquilo que nos
parece “normal” somente assim se afirma porque decidimos claramente sobre o que não o é.
Os nossos códigos da vida diária estabelecem simultaneamente aquilo que pode e o que não
pode, o que devemos e o que não devemos; a cultura em que vivemos surge assim complexa e
variável. É lugar onde se o processo de socialização e interação do indivíduo e dos grupos,
nele se põem personalidades, capacidades e comportamentos. Os discursos formadores das
marcas identitárias de ser mulher e mãe e das ações das mães-de-santo se dão no cotidiano,
são gestadas e postas em funcionamento. O território do cotidiano é multiforme e dinâmico,
contém o erro, o contraditório, a falha, conflitos e incertezas.
As identidades são realizadas simbolicamente no cotidiano e produzem noções de
pertencimento. Tais representações identitárias, por serem entendidas como “uma construção
simbólica de sentidos”, integram o imaginário social, produzem práticas sociais e valores que
permitem o reconhecimento do outro ou formas de exclusão. Interpretei o cotidiano das mães-
de-santo de modo a identificar as lógicas das quais elas se apropriam para exercer a
maternidade espiritual.
182
O cotidiano também é território de se construir imaginário radical (CASTORADIS,
1982). No cotidiano, possibilidade de crítica aos modelos opressores instituídos, espaço
para criação e reinvenção. Ele não é apenas banalidade e mera repetição é marcado pelo
conflito na busca de produzir outros e novos sentidos, em contínua transformação.
Pelas histórias de vidas das mães-de-santo, foi possível entrecruzar a trajetória das
religiões Umbanda e Candomblé em Fortaleza e Região Metropolitana, assim como
compreender o surgimento da Umbanda de Omolocô em Lisboa na década de 1970. A história
individual dessas mulheres ajuda a compreender e a ilustrar a forma como a religião foi se
instalando nesses contextos.
Essas mães-de-santo, no Ceará, em grande maioria da Umbanda, ajudaram, através
dos depoimentos, na compreensão da memória histórica dessa religião, que estiveram à
frente dela por mais de trinta anos. Pela memória, narraram o momento da sistematização do
Espiritismo de Umbanda no Estado em meados da década de 1950, quando vivenciaram o
contexto histórico da chegada do Candomblé em Fortaleza e Região Metropolitana. Algumas
se iniciaram na “nova” religião, mas nenhuma abandonou a Umbanda.
A Umbanda nasce da manifestação brasileira popular. Nasce da voz dos excluídos e do
anseio de se pluralizar a fé e o conhecimento a partir de uma linguagem popular e da
adaptação de rituais e conhecimentos e de saberes tradicionais.
A Umbanda possui uma série de ramificações ou denominações, como
mística, esotérica, branca, lisa, quimbanda, cabalística, popular, iniciática,
filosófica, kardecista, cruzada (...) que agregam indivíduos com a mesma
perspectiva identitária. Apesar desta diversidade há uma série de elementos
significativos que normatizam a religião, como seu panteão, o transe, a
iniciação, a hierarquia, a música e as danças rituais (VAINI, 2006, p.18).
As interlocutoras da pesquisa têm hoje entre 60 e 75 anos. A maioria teve experiência
de maternidade biológicacerca de trinta ou quarenta anos, num contexto em que ainda não
eram tão divulgadas as tecnologias reprodutivas, principalmente as contraceptivas. Tiveram
em torno de três a cinco filhos exceto Mãe Lúcia, que escolheu não ser mãe biológica,
preferindo apostar na profissão, não interromper suas atividades. Aquelas que são mães têm
seus filhos carnais hoje na fase adulta, casados, alguns são adeptos da religião, outros
participam de modo indireto de algumas cerimônias públicas ou vêm ao terreiro conversar
com uma entidade, com demandas para os trabalhos de magia. Atualmente elas estão
aposentadas, destinam seu tempo ao sacerdócio.
183
Mãe Stela Pontes, e Constância e Mãe Anita vieram do Espiritismo de Umbanda;
depois dos anos 1980, iniciaram-se no Candomblé, mas hoje permanecem na Umbanda.
Todas guardam parentesco de santo com Mãe Júlia Condante, mãe-de-santo a ter um dos
primeiros terreiros de Fortaleza registrados em cartório, tendo depois, em 1953, por meio da
Federação Espírita de Umbanda, registrado um número expressivo de terreiros de Umbanda
não em Fortaleza, mas no interior do Estado. Mãe Júlia Condante faleceu em 1984, tendo
Mãe Stela herdado seu terreiro. Mãe Neide Pomba-Gira, mulher separada, criou seus filhos
com independência e autonomia e assumiu a liderança de um terreiro. Sua família e seus
filhos também passaram a congregar na religião. Os filhos cresceram dentro do seu terreiro,
de modo a coincidir a maternidade biológica com a de santo, a espiritual. Os filhos foram
assumindo as funções dentro da religião. Com sua morte, em 2006, um dos terreiros
localizados na Vila Peri foi fechado e um de seus filhos carnais cuida de outro, no bairro Bom
Jardim.
Mãe Lúcia é Ialorixá de Candomblé em Fortaleza. Priorizei o depoimento de uma
Ialorixá do Candomblé por ela ter se iniciado nessa religião, o que ajuda em meu propósito de
contribuir numa análise comparativa quanto ao sacerdócio delas nas duas religiões
Umbanda e Candomblé. Mãe Lúcia descende de uma das primeiras casas de Candomblé
instaladas em Fortaleza. Foi iniciada no Candomblé em 1979 por Mãe Ilza de Oxum. Ela
evidencia que os parentes religiosos e o local de onde ela veio são de suma importância para a
valorização da origem iniciática, isso lhe atribui poder. Não é raro o iniciado recorrer a uma
origem diferente da primeira, dar obrigação com outra mãe ou pai-de-santo, ter uma nova
filiação religiosa. Foi o que aconteceu com Mãe Lúcia, que teve muitos desentendimentos
com sua mãe-de-santo de origem o que a levou a dar obrigação com outros sacerdotes, no
mesmo axé no Candomblé.
Trato aqui da forma como essas mães-de-santo exerceram a maternidade espiritual e
apresento o projeto religioso de cada uma, evidenciando uma diversidade de perspectivas.
Projeto religioso em busca do tradicional, na busca da paz, de atender demandas e propiciar o
bem-estar daqueles que demandam seus trabalhos de magia, compromisso com o
desenvolvimento mediúnico ou gestação espiritual dos filhos-de-santo.
A mãe-de-santo dirige as ações que ocorrem no terreiro, atividades da casa como
giras, cerimônias e processos rituais de iniciação (feitura no santo), as festas dos orixás e
entidades, as obrigações dos filhos-de-santo, os trabalhos de magia, de cura, de caridade, as
184
consultas, os jogos adivinhatórios. Volta-se para disciplina dos filhos, presta assistência
espiritual a quem procura.
Ao realizar e liderar essas atividades no terreiro as mães-de-santo as faz dentro de uma
dimensão ritual - verbal, musical, estética, lúdica e performática. O transe, a possessão,
fortalece a identidade do grupo. A participação nos rituais é fundamental numa religião
performática. Observar o que elas falam, a forma como puxam os pontos cantados, a estética
que se apresentam trejeitos, modos, formas de dança, de se movimentar, informam os
elementos que estruturante da religião, bem como a singularidade com que exercem o
sacerdócio. O conjunto de tudo isso significa o exercício da maternidade espiritual, o que tem
garantido poder a estas mulheres.
Mãe Stela descende da família-de-santo de Mãe Júlia Condante. Mulher separada que
criou os filhos em cenário de pobreza, contou muito com o apoio e a força da sua mãe-de-
santo. Com a morte de sua mãe espiritual, tornou-se herdeira do terreiro de Ogum. Por muito
tempo esse terreiro funcionou no bairro Benfica, no centro de Fortaleza. No entanto, por
desentendimento com a sua família biológica, resolveu vender o terreno e adquiriu outro num
bairro afastado, na periferia da cidade.
As pessoas de lá não vêm não, muito trabalho para chegar aqui. Para sair do
trabalho cinco horas, que horas vai chegar aqui? se for um dia de festa,
que faça num dia de bado, porque no domingo você num vai trabalhar.
se for assim pra eles vim, mas se o for não pra vim. procurando,
vou arrumar outros filhos, outras pessoas. Aqui é bom! É bom. Esse vizinho
aqui é ótimo, esse aqui é ótimo (...), até os crentes vem pra minha casa.
(MÃE STELA, julho de 2008)
Mãe Stela ireconstruir o terreiro, adquirir novos adeptos nesse bairro em que agora
se instalou. Segundo ela, deverá fazer, nesse novo local, novos filhos-de-santo, haja vista que
a distância torna difícil a vinda de muitos para as giras ou mesmo para as festas.
Mãe Constância foi filha de Mãe Júlia Condante. Iniciou-se na Umbanda na juventude
e, antes de Mãe Júlia, houve outra mãe-de-santo com a qual mantinha bom relacionamento:
pronto, foi que eu procurei Mãe Júlia e fiquei com Mãe Júlia. Conclui
as minhas obrigações, abri meu terreiro, tudo já no poder de Mãe Júlia. Eu já
tinha a Flora, e a Ângela e o João quando eu abri o terreiro e veio. Eu era
mãe-de-santo, mas eu não tinha minha casa. Minha casa eu abri, eu tinha 26
anos. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008).
185
Ela detalha a relação que teve com as suas duas mães-de-santo:
Foi muito boa, todas as duas mães-de-santo, a minha relação com elas foi
sempre muito boa. A Mãe Maria Marinheiro, ela era uma pessoa simples,
não sabia ler e nem escrever, pobre, mas uma pessoa muito boa, muito
caridosa. Assim, ela praticava a Umbanda por amor. E, como ela fez comigo,
ela fez com muitos. Ela teve muitos filhos-de-santo, muitos, porque ela era
uma pessoa muito boa. Quando eu fui pra casa dela, ela era uma pessoa
nova, ela tinha, eu acho que ela tinha mais ou menos a mesma idade que eu
quando eu fui, quando eu botei terreiro. Ela era nova, nem casada ela num
era, depois que ela casou, quando a gente tava lá. E a Mãe Júlia, a diferença
é que eu num fui muito próxima da Mãe Júlia como eu da Maria Marinheiro.
Da Maria Marinheiro fui mais próxima, o nosso relacionamento era bem
mais próximo, d’eu ir pra casa dela e ficava, por exemplo, quando eu fui ter
meu primeiro filho, ela veio para minha casa, ficou cinco dias na minha casa,
quando ela foi embora, eu fui com ela passar o resguardo todinho lá, eu
num queria ficar em casa. Qualquer problema que tinha, eu ia pra casa dela e
passava de semana. E com a Mãe Júlia não teve isso. Ela num tinha essa
amizade muito aconchegante comigo não, ela teve com a Stela e com outros
mais que morava na casa dela. Eu não, eu só ia naqueles dias de trabalho, de
festa, aquela coisa toda. Mas ela era uma pessoa muito sábia, a Mãe Júlia, e
também era analfabeta. Acho que, por ser do Ogum, era batalhadora. (MÃE
CONSTÂNCIA, julho de 2008).
Mãe Constância considera a maternidade espiritual uma oportunidade de fazer o bem,
é carregada de ambigüidades, de dificuldades, mas ela sente prazer quando consegue resolver
positivamente um problema, uma demanda de quem lhe procura.
Na realidade, eu me sinto uma pessoa que procura fazer o melhor. Digo
assim, eu sou uma mãe-de-santo, dizer assim, sabida, como se diz, sabida.
Não, não me sinto assim. Não, não, eu me sinto uma pessoa que tou sempre
procurando melhorar, sempre querendo o melhor, me sinto bem quando eu
consigo fazer alguma coisa de bom por alguém. Inda nessa semana eu tava
conversando com um pai-de-santo amigo meu, ele tava falando a respeito
das pessoas que têm aquela parte negativa de dizer assim: eu acabei com a
vida dele, fiz e aconteci. Meu Deus, como é que uma pessoa tem prazer de se
gloriar que acabou com a vida de uma pessoa? Não entendo, não consigo
entender isso, porque eu me sinto bem em saber assim, aquela pessoa veio
pra minha casa com um problema e eu consegui ajudar a resolver aquele
problema dele. Aquela pessoa tava desempregado, veio falar com meu
caboclo, caboclo fez aquilo e aquilo outro, e hoje tá empregado, trabalhando,
bem. Eu fico satisfeita com isso. Então, eu sou uma pessoa assim, eu
gosto, me sinto bem em fazer o bem. (MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008)
Hoje ela não tem mais terreiro, como trinta anos o Centro Espírita de Umbanda
União e Caridade no bairro Montese em Fortaleza. Atualmente, ela congrega na Umbanda de
modo diferente, após mudar-se de Fortaleza para Caucaia, município da Área Metropolitana
186
de Fortaleza, no bairro Guajiru. No espaço de sua casa, fez algumas adaptações para garantir
o espaço de entidades por ela cultuadas bastante tempo, e pretende ampliá-la
posteriormente. Recebe o nome de Casa de Umbanda Rancho de Trindade. Faz algumas festas
para suas entidades principais, atende as pessoas por intermédio de consultas e do jogo
adivinhatório do Ifá.
Vou sempre atrás de fazer outra coisa, outro trabalho. Ah, fiz também um
curso de Reiki, (...) é fazendo outras coisas, ficar fazendo macumba não.
Se a coisa caminhando, a gente tem que acompanhar. Tem que
acompanhar. Vamos agora mudar (...), trabalhar com outras energias
também, o importante é você ter condição de fazer alguma coisa e butar pra
frente. Os filhos-de-santo cuido (...). Eles vêm pra cá. E ainda atendo
particular. Faço atendimento particular também (...). Faço jogo, o jogo de
búzio (...). Eu me formei em Ifá no Rio de Janeiro com o Torodé (risos).
(MÃE CONSTÂNCIA, julho de 2008).
A Mãe Anita continua liderando seu terreiro na busca da valorização da Umbanda, e
de cumprir verdadeiramente seu sacerdócio de garantir o desenvolvimento mediúnico dos
seus filhos-de-santo.
Eu me sinto feliz agora, graças a Deus. É um carma que nós traz muito
pesado, porque lutar com muita gente, cada um tem um ritual, cada um tem
um dom de ter uma cabeça diferente, cada um jeito diferente, então a gente
tem de ter muita paciência e saber amar a todos. E a gente passa assim a
amar eles. E ganha grande amizade deles, dependendo de saber levar eles.
Sobre a minha Umbanda, eu não sou, eu me considero muito feliz com meu
povo, com minhas afilhadas que nunca me abandonaram, quem eu fui ser
madrinha, meus afilhados todo, o meu povo são muito bom. (MÃE ANITA,
julho de 2008).
Para ela, o sacerdócio consiste na tarefa de orientar, de mostrar os caminhos. Nesse
contexto, é interessante que essa responsabilidade venha com afeto, dedicação e carinho, mas
nem sempre isso acontece. A dedicação em conhecer cada entidade e orixá que desce no
iniciante, saber o que eles querem, seus desejos, suas formas de proceder, poderá garantir um
desenvolvimento positivo, em que, ao final do processo, o filho ou filha-de-santo deverá
conhecer bem suas entidades principais e saber os fundamentos, mitos, ritos e mistério desse
universo religioso.
Ser mãe-de-santo, segundo as interlocutoras desta pesquisa, é ensinar aos filhos e
filhas-de-santo o que aprendeu com sua mãe ou pai-de-santo e com as entidades espirituais,
numa difícil tarefa de garantir o desenvolvimento mediúnico, missão complexa e demorada
que requer aprendizado e paciência para que cada filho ganhando forma, moldando-se. E,
187
nesse processo, as sacerdotisas se deparam com filhos indomáveis, aqueles que pensam que já
sabem tudo e que por isso podem se tornar independentes da mãe-de-santo. Outros, vaidosos e
apressados, acabam não sabendo lidar com os seus guias espirituais.
Terezinha Bernardo (1988) verifica também momentos de conflitos entre a mãe e seus
filhos de santo, vendo relações perpassadas de poder e saber. Os fundamentos e segredos de
religião são saberes que a sacerdotisa não passará para qualquer um. No Candomblé,
relação de poder que está vinculada diretamente à existência de um saber veiculado pelo ritual
e pelo discurso religioso e, para determinados segmentos sociais, se constitui em verdade.
Vale ressaltar que, no exercício da maternidade simbólica dentro das religiões afro-
brasileiras, entrevi que sobressai uma gama diferenciada de posturas da mãe, desde a mãe
bondosa, preocupada e zeladora dos orixás, entidades e divindades dos filhos, até a mãe má,
com suas vivências e subjetividades guiadas para perseguição, intrigas, despeito e muita
divergência dentro do templo religioso. Evidenciando as disputas no exercício dessa
maternidade, relações de poder, inveja, perseguições, dominação, autoritarismo, apoio,
amparo.
As mães-de-santo seguem tendências dominadoras nas relações na família-de-santo,
como mães autoritárias. Além dessas características que enfatizam aspectos da
individualidade e do caráter pessoal de cada mãe-de-santo, devemos considerar o contexto em
que se dá o sacerdócio no Candomblé e na Umbanda. Há o processo de secularização,
presença marcante em uma sociedade que legitima a racionalidade e a objetividade na
explicação dos fenômenos, a predominância da razão moderna, das explicações científicas, do
efeito desintegrador, da perda da tradição, das conseqüências das transformações societárias
que assumem formas da mudança no mundo do trabalho. Isso reflete na precarização das
relações de trabalho, no subemprego e no desemprego, acrescentando o agravamento das
desigualdades sociais.
Mas a ausência de sentido e da impossibilidade de estabelecer a identidade induz os
indivíduos a se integrar em grupos religiosos na busca de um pertencimento, passando a
congregar a família-de-santo sob orientação de um sacerdote pai ou mãe-de-santo. Vale dizer
que grande parte dessa população tem seu cotidiano marcado por carências em termos de
saúde, educação, habitação, emprego, o mínimo que lhe garanta vida humana de qualidade.
Entrevi que muitas mães-de-santo estão mais preocupadas com a ordem do consumo,
da mercantilização do sagrado, com a possibilidade de bens, dinheiro e poder do que de
188
fortalecer uma cultura, revalorizar um estilo de ser de um povo ou mesmo o zelo espiritual
daqueles que se encontra com determinadas demandas – de ordem material, financeira,
amorosa, de saúde, dentre tantas outras.
Para as mães-de-santo, o exercício desse sacerdócio não se faz sem problemas e
incompreensões por parte dos filhos e filhas-de-santo.
Nas conversas que estabeleci com Mãe Lúcia, notei que eram recorrentes os
comentários acerca da rivalidade que teve e tem com sua mãe-de-santo. Segundo ela, sua
mãe-de-santo de origem é vingativa, gosta de ser bem tratada por seus filhos e filhas-de-santo
e faz algo que lhe fere profundamente costuma retirar de sua roça de Candomblé seus
melhores filhos-de-santo.
Verifiquei a forte relação marcada pela dominação, autoritarismo, ciúmes, vingança,
perseguição. Mãe Lúcia contou com contrariedade dos filhos que fez, mas que acabou
perdendo por desavenças, falta de compreensão e diálogo: eles acabaram migrando para a
roça de sua mãe-de-santo. Como filha de Iansã, é respeitada pelos outros orixás,
principalmente por Xangô. Por rivalidade, perdeu umas de suas primeiras filhas-de-santo de
Xangô, o que muito lhe entristece.
Iansã é a mulher que Xangô namorou. Xangô, que nasceu na minha mãe. E o
Xangô dela não me conhece. A matéria me respeita, Xangô não. A energia,
orixá não me conhece. (...) Agora estou chorando, saiu porque o senhor
(Xangô) quis, chorei de paixão e saudade. (MÃE LÚCIA, setembro de 2005)
Mãe Lúcia diz de suas angústias e preocupações quanto ao exercício do seu sacerdócio
no momento em que decidiu abrir sua casa de Candomblé e da força que recebeu de sua mãe-
de-santo para concretizar este passo. No entanto, percebemos uma espécie de medo em ter de
enfrentar os desdobramentos de ser a Ialorixá de uma roça de Candomblé.
A mãe-de-santo ilustra o cotidiano da casa marcado pela entrada e saída de filhos e
filhas-de-santo e de sua contrariedade nos momentos em que errou, quando se precipitou e
acabou perdendo-os:
Bom, hoje, porque na casa, porque tem gente que sai. Hoje tenho dezesseis,
mais ou menos. Agora, feito aqui dentro do funcionamento, só tem dois, três
funcionando mesmo aqui dentro. E tem dois que tá ali com ela (grifo meu),
tem um que com o Roberto. Este que foi uma perda que eu não perdôo,
porque este eu perdi, foi erro meu, foi, eu não sei (...). Quando eu penso nele
eu sofro muito, porque era um filho que eu não queria ter perdido. Porque
189
este menino passou dez anos esperando que eu abrisse a casa para ele fazer
santo. Ele dizia: “Se a senhora nunca abrir casa, eu nunca faço santo”. Ele
passou dez anos esperando que eu abrisse casa, veio morar na roça comigo,
era meus pés e minhas mãos. Ele é do Oxossi, era tudo. Eu raspei e mal
completou um ano de santo ele saiu das minhas mãos, eu perdi, tá com outra
pessoa, com outro pai-de-santo. E eu sei que, nessa perda, a culpada foi eu.
Reconheço, foi eu que errei. E Oxossi não quis me perdoar, não quis me
devolver. Eu pedi muito a Oxossi para trazer meu filho de volta. Mas assim,
é um sofrimento assim que eu tenho. Mas agora tenho que me conformar. Eu
tenho outro do Oxossi também, tem gente do Oxossi também na casa, para
fazer. Mas este que eu perdi tá perdido. (MÃE LÚCIA, agosto de 2005)
Importante buscar compreender quais fatores influenciaram essa atitude e esse jeito de
ser mãe dos filhos dos outros. Esse fato se repete tanto em famílias de sangue, quando as
mulheres preferem ser mães” apenas dos sobrinhos, quanto dentro da família-de-santo, ao
preferir não raspar ou não fazer muitos filhos – e ainda perdem os poucos que fazem. Perdem
para outros pais e mães-de-santo, e perdem até para sua mãe-de-santo.
Quanto a perder seus filhos, segundo ela, isso é algo que a intranqüiliza e a faz sofrer,
porque reconhece que foi precipitada, culpada ao deixar de ter os filhos que demonstraram
amor, respeito e afeto. Ela aparece como mãe culpada ao agir com ingratidão ou com não-
reconhecimento deste afeto.
uma diferença entre criar filhos e pari-los; aqui, Mãe Lúcia afirma preferir não
raspar o santo, não fazê-los.
Não, ela sempre me deu força. É tanto que me ajudou a construir minha casa.
Foi ela que plantou fundamento, plantou o chão. Meus primeiros barcos, ela
esteve presente. Ela me ajudou, puxou o Candomblé. Tem tudo, gravei tudo,
tem tudo guardadinho. Este ano tirei um barco, eu não sou muito de estar
raspando iaô. Eu sou mais de agregar, de colocar dentro de casa, de ensinar.
Mas agora a casa está aberta, então o Santo tem que ser feito. A gente faz.
Por exemplo, este ano tem umas quatro pessoas para ser feitas, mas vão
esperar porque estou nessa construção disto aqui (do barracão). (MÃE
LÚCIA, agosto de 2005)
Durante a pesquisa, Mãe Lúcia revelou problemas e dificuldades no exercício da
maternidade espiritual. quem diga ser ela uma mãe que não gosta de parir, de gestar.
Durante mais de 27 anos de feita no Santo e sete de casa de Candomblé aberta, não fez mais
de dezesseis de filhos. Isso confirma a narrativa de um seu ex-filho-de-santo.
Pra começo de história, eu acho que todo orixá, se ele abre uma casa, ele tem
por obrigação parir (...), ter filhos, e é o contrário, a obrigação é não ter,
porque sai um barco por ano. Ela não gosta. Ela quer ter status, mas ela
não quer exercer a profissão. Acho que, pela questão da vaidade, do cansaço,
190
que ela diz muito assim eu tenho meu salário, num preciso disso. Porque
queira ou não queira, as pessoas fazem disso um comércio. Ela não tem essa
preocupação. Ela tem a preocupação de fazer as festas dela para mostrar para
a sociedade. Não se interessa, se for por afeição que ela faz um jogo, se
ela for com sua cara. (...) Eu acho que é a falta de conhecimento, porque
fazer orixá é ter responsabilidade pela vida daquela pessoa, a partir daquele
momento de construção daquela pessoa. Então, tem que ter muito bem
fundamentado. Ela não recebeu da mãe dela. Uma pessoa que tem vinte e
oito anos de santo e não tem experiência de orixá, é porque ela não foi de
ronco. Ela era boneca de barracão, ou seja, uma madame no Candomblé, que
ia para as festas. (LINCONLY DE XANGÔ, junho de 2007)
Cabe aqui uma discussão acerca dos arquétipos que guiam essa mãe-de-santo
entrevistada: um elemento marcante é seu orixá, as características dele ou do segundo santo
que lhe rege. Será verdadeiro dizer que Mãe Lúcia não é uma boa mãe ou será mais prudente
dizer que ela tem um jeito singular, particular de exercer essa maternidade simbólica dentro
do campo religioso? Esse modo contraria o discurso oficial da boa e santa mãe presente na
sociedade abrangente, uma mãe que se identifica com o campo religioso afro-brasileiro. Essas
religiões abrem a possibilidade de os adeptos viverem ambigüidades, contradições na vida
cotidiana ao desempenhar o papel de mulher e de mãe-de-santo, sem definições fechadas do
bem e do mal, da boa e da má mãe, mas das complementaridades, dos jogos de poder, das
imbricações.
Essa mãe não se identifica por completo com uma mãe parideira. Aprecia sua casa
cheia de gente, mas não necessariamente tais participantes devam ser seus filhos e filhas-de-
santo podem ser convidados, simpatizantes, pessoas próximas às quais ela distribua cargos
sociais e não religiosos. Cabe inquirir e ver os motivos que sustentam essa escolha. Para uns,
trata-se de falta de conhecimento dos fundamentos da religião. Seriam resquícios e
conseqüência de sua feitura e de relação conflituosa com sua mãe-de-santo ou influência da
sociedade abrangente, na qual não foi mãe nem considerou importante certas funções ao
exercer a maternidade, o cuidado na presença na dificuldade. Ela apreciava os momentos de
prazer que uma criança possivelmente lhe proporcionasse, mas, na hora do trabalho, contava
com uma mãe legítima na qual pudessem devolver tal criança.
Devemos ressaltar que nem sempre a conduta de uma mãe-de-santo é irreprovável,
nem todas agem positivamente na sua missão. Vejamos o que nos diz um filho-de-santo sobre
os pais e mães-de-santo que teve ao longo de sua vida religiosa no Candomblé:
Fiz santo no primeiro pai-de-santo, passei um ano e meio; depois, pelos
problemas da casa, fui para a casa do meu segundo pai-de-santo, e passei
uma média de quatro anos (...). depois, sempre por essas histórias de
191
incompatibilidade de pensamentos e de atitude, fui para a mãe-de-santo,
onde eu pensava que tudo ia ser diferente e, muito pelo contrário, foi tudo a
mesma coisa e mais um pouco, porque foi onde a minha desestruturação
foi maior. Passei um ano sem dar obrigação nenhuma e depois fui para a
casa do último pai-de-santo, onde agora dei minha obrigação de Ebomi.
(LINCONLY DE XANGÔ, junho de 2007)
Verificamos os conflitos e as disputas pelo poder nas relações cotidianas, nos rituais
religiosos:
Meu segundo pai-de-santo, ele não se negou a dar minha obrigação, mas ele
disse que não abriria minha casa, porque ele disse que não via cargo em
mim. Foi uma história contraditória, que ele disse no começo que via, mas
depois num via mais. Porque ele tinha medo que se soubesse, quer dizer, se
eu fosse abrir minha casa, ele ia ver minha superação em relação a ele. Era
notória a superação em relação a conhecimento, em relação a amizade, em
relação de crescimento. (LINCONLY DE XANGÔ, junho de 2007)
Nas religiões afro-brasileiras visualizei, nas práticas da maternidade, uma justaposição
de componentes ambivalentes, pois os sistemas de representação oferecem vivências para a
vida numa sociedade consumista, excludente, machista e racista. Esses componentes estão
presentes nas comunidades de terreiro dessas religiões.
Compreendo que as práticas das mães-de-santo dentro dos terreiros não se apresentam
diferentes ou inversas, mas significam uma reinterpretação e uma reprodução parcial do
modelo oficial, classificatório e vigente na sociedade mais ampla do ideal da boa e santa-
mãe num misto com a mãe dominadora, possessiva. Esse modelo supõe uma mãe que não
pode ser questionada, é autoritária e centralizadora, que protege, mas certamente cobra e
exige dos filhos, numa relação de poder, dominação ou subordinação entre mães e filhos-de-
santo.
Aqui na casa, o homossexual não bate no atabaque nem vai para o corte.
Tenho este cuidado porque Fortaleza é uma cidade relativamente pequena e
temos de dar satisfação aos outros (...). Quanto aos cargos da casa, Fortaleza
agora que estão distribuindo os cargos, coisa de um ano pra cá. Hoje, aqui,
as casas têm pai pequeno. Com sete anos, tem a maioridade do santo na casa,
e recebe o cargo para casa dos orixás (...). O axé da casa é o sobrenome, é o
que dá legitimidade à casa (MÃE LÚCIA, setembro de 2005).
No depoimento, a mãe-de-santo conta sua vida quando jovem na sociedade abrangente
e o que ela considera problemas, como uso abusivo de drogas e as práticas da
homossexualidade. E essa forma de perceber o mundo incidirá nas suas condutas dentro do
terreiro, no trato com seus filhos e filhas-de-santo.
192
Vale ressaltar que, no exercício da maternidade simbólica dentro dessas religiões,
sobressai uma gama diferenciada de postura da mãe-de-santo, desde a mãe bondosa,
preocupada e zeladora dos orixás, entidades e divindades dos filhos, até a mãe má, com suas
vivências e subjetividades guiadas para a perseguição, intrigas, despeitos e divergência dentro
dos templos religiosos. Para ilustrar essa afirmação, o depoimento que se segue diz respeito à
dificuldade que um filho-de-santo teve para conseguir dar sua obrigação de sete anos e tornar-
se Ebomi.
Na casa da minha mãe-de-santo, no começo, quando eu cheguei lá, ela
queria dar minha obrigação e queria abrir minha casa. Quando ela descobriu
a questão (...). Não, aí depois ela disse que como não tinha herdeiro na casa
dela, eu poderia ser esse possível herdeiro. E quando ela ficou sabendo da
questão da soropositividade, eu falei pra ela (...). Eu sempre fui consciente
em relação a isso aí, porque é uma questão da espiritualidade ajudar e não
atrapalhar. ela disse que eu não seria mais herdeiro e disse que eu nunca
mais eu poderia abrir uma casa por conta da minha promiscuidade. A
questão da promiscuidade, segundo ela, é que me levou a ser soropositivo,
que o meu santo num tinha nada a ver com isso, e que a culpa era minha.
Então eu num seria pai-de-santo pelas mãos dela nunca. Isso me
desestruturou totalmente. Então me distanciei do Candomblé, levei meus
santos para casa de minha família, para a casa de minha mãe (biológica)
(LINCONLY DE XANGÔ, junho de 2007).
Embora se propague que as religiões afro-brasileiras estão entre as religiões que não
discriminam seus adeptos pela orientação sexual e contam com a forte presença de lésbicas e
gays, vale afastar a idéia de esses terreiros funcionarem como “paraíso”, pois ainda
permanecem preconceitos e atitudes discriminatórias. O depoimento mostrou a forma como
um filho-de-santo se sentiu após receber a informação da sua mãe-de-santo dos limites que se
depararia dentro da religião em termos de receber cargo, de dar obrigação, do seu lugar no
terreiro.
É comum entre as mães-de-santo a menção aos arquétipos dos orixás e demais
entidades espirituais para explicar ou justificar suas decisões, escolhas. Nesse sentido, temos
posturas de mães de Iansã de forte temperamento que tratam de forma grosseira seus filhos e
acabam falando o que não deveriam; mesmo com um posterior arrependimento, agem como a
tempestade e os ventos.
Depois, quando ela soube que eu iria dar obrigação com o outro pai-de-
santo, ela mandou me chamar e disse que noutra vez iria pensar mais um
pouco sobre a questão. Pai e mãe-de-santo pensam que são donos da razão,
em relação a qualquer coisa. A partir do momento em que você é filho-de-
santo dele, você é um escravo. Ele pensa isso aí e eu num concordo com isso
de jeito nenhum. (LINCONLY DE XANGÔ, junho de 2007).
193
Entendo que o tema da maternidade é perpassado de contradições, que vão da tentativa
de expressar o ideal da boa-mãe até a multiplicidade de papéis e características que assume
esta mãe. Essa capacidade de gerar e de criar vidas atribui valor a elas.
A pesquisa demonstra que o exercício da maternidade simbólica das mães-de-santo
não está isento de influência das socializações primárias pela qual passou essa mulher, das
instâncias sociais e culturais de que partilhou. As impressões do que é ser mãe inscrita numa
cultura certamente se faz presente, comparece no momento que esta assume o sacerdócio.
Eu fui, desde nova, muito vaidosa, muito namoradeira também. Passeei
muito, viajei muito. Eu gastava minhas férias, eu não passava aqui. Então eu
vivi tudo que eu tive direito. À minha época havia mais coisas saudáveis.
Não que não existisse drogas, não que não existisse homossexualismo.
Existia. Mas eu costumo dizer para meus filhos que no Candomblé a gente
tem uma população assim, gay, acentuada. Eu costumo dizer: na minha
época, homem gostava de mulher e mulher gostava de homem. Era essa que
era verdade. Não tinha muito essa de namorar homem casado, de drogas.
Existia a bebida e o cigarro, sempre existiu. Então, eu não me arrependo de
ter entrando para o Candomblé. Não é que o Candomblé exija que a pessoa
se case, se policie, que não possa namorar. Não. Pode. Todo mundo sabe que
têm muitos pais-de-santo gays assumidos, outros héteros, casados. (MÃE
LÚCIA, agosto de 2005).
Ao ser perguntada sobre o que lhe prazer em ser mãe espiritual, Mãe Mona de Oiá
responde:
Tudo, eu sou feliz. Eu peço a Nossa Senhora porque sou devota dela
que ela me ensine a cada dia a ser mãe, porque eu tenho um gênio muito
forte. Eu sou muito austera, eu num queria que nada de mal acontecesse a
nenhum. E sou muito dura com eles. Mas, ao mesmo tempo em que eu sou
dura, eu boto no colo, e vou na cozinha e faço a comida que ele mais gosta.
E digo assim: “A mãe te ama muito, por isso que ela briga contigo; no dia
que eu deixar de brigar é que eu não gosto mais de ti”. (MÃE MONA DE
OIÁ, janeiro de 2009)
Entrevi com a pesquisa que os norteamentos que essas mulheres têm no mundo
sociocultural vão se fazer presentes nesta dimensão espiritual, religiosa. Não se desvencilham
dos perfis de mulher ao assumir o sacerdócio de mãe-de-santo. E, como conseqüência, elas
convivem com angústias, preocupações, e exercem relações de poder de forma dominadora e
autoritária.
Mãe Zimá pontua o que considera problema no exercício do sacerdócio na Umbanda:
é a discriminação que sofrem também por parte de quem é adepto do Candomblé, por se
194
sentirem com maiores conhecimento e prestígio. Ela comenta ainda a pouca responsabilidade
de alguns adeptos em relação às exigências para ser mãe-de-santo e para receber e trabalhar
com as entidades espirituais. Nesse sentido, ela afirma:
Hoje, você entra num terreiro, você é muito homossexual que um
ritribuado no meio do salão, com dois dias é pai ou mãe-de-santo. Pra ser
pai ou mãe-de-santo precisa se ter sangue no olho. A gente tem de deixar pra
trás muita coisa pra ser mãe-de-santo, uma zeladora de orixá. Porque eu
continuo dizendo. Não acredito que você passe a noite todinha em cima de
uma cama com um homem, sentada num bar bebendo e dançando e no dia
seguinte vai receber o orixá. Eu não acredito, que eu num recebo. Pra mim
receber o caboco, eu tenho de tomar os meus banhos, eu tenho que arriar as
comidas dos meus santos, eu tenho de matar pra Exu, (...) é como se eu fosse
me converter. Quando eu abri essa casa, eu abri com um objetivo: de ajudar,
de juntar, e crescer. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
No depoimento, e Zimá critica a forma aligeirada de se tornar um pai ou uma mãe-
de-santo, demonstra preconceito em relação aos homossexuais e chama atenção para a
promiscuidade e a necessidade de ser uma matéria limpa para poder melhor cumprir seu
sacerdócio.
Eu não bebo, eu não fumo e eu o danço. E eu acho que, com uma matéria
limpa, você tem mais força do que você passar a noite todinha sentada numa
ponta de um bar bebendo e dançando a noite toda pra ver se vai receber
caboclo. Eu não acredito que isso existe. Se você tem uma matéria limpa,
você tem uma energia diferente. Como é que você passa a noite todinha
bebendo, dançando, tendo sexo e de manhã cedo recebe uma entidade? Eu
num acredito, não. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
Contudo, devemos ter claro o quanto não é possível homogeneizar a forma de
funcionamento dos terreiros, bem como as práticas cotidianas das mães-de-santo dessas
religiões tradicionais da oralidade. Em cada terreiro percebi as diferenças, e isso tem sido
motivo para legitimar ou não certas condutas das sacerdotisas. Nesses espaços coexistem
conflitos, discórdias, perseguições entre os pais, mães e filhos-de-santo, tendo como
conseqüência a maior mobilidade dos filhos e filhas-de-santo. Essas complexidades
relacionam-se com a natureza do projeto religioso adotado por cada mãe. Este projeto guarda
relações intrínsecas com o imaginário social construído em torno da maternidade biológica e
espiritual presente na nossa cultura.
As relações de poder entre pais, mães e filhos-de-santo levam a rupturas e
segmentação. Vale lembrar que os adeptos estão inseridos numa sociedade de classe, em que
195
conta na definição dos lugares que ocupam as clivagens de gênero, étnico-racial e orientação
sexual. Essas, por sua vez, entram em conflitos com sua posição na hierarquia do terreiro.
Nas comunidades do terreiro, essas mulheres se utilizam dos universos míticos para
exercer poder, encontrando nos mitos de suas divindades o reconhecimento de suas
potencialidades. Com a capacidade de subverter a ordem no contexto da sociedade brasileira
caracterizada pelo patriarcado, pelo preconceito e pela discriminação de gênero, essas
mulheres assumem uma liderança que tende a ser destaque porque inusitada (THEODORO,
2008).
Destaco as mulheres que, em sua prática cotidiana, foram capazes de transgredir a
ordem de uma sociedade masculina, de exclusão das mulheres embora se saiba que essa
realidade vem se modificando por força dos movimentos sociais, em especial o movimento de
mulheres. Utilizam-se de estratégias diversas de insubordinação que lhes abrem margem para
sobrevivência e manutenção de seus traços culturais ao articular traços de subjetivação para
melhor viver seu cotidiano, guiando suas ações e atitudes ao longo de sua experiência.
Demonstram a capacidade criadora que possibilita a elas o uso de suas potencialidades, as
fortalece e encoraja para agir na sociedade.
Na tentativa de interpretar os projetos religiosos dessas mães-de-santo, destaco a
forma como Mãe Júlia Condante viveu o seu sacerdócio, à luz da narrativa de sua filha-de-
santo Mãe Stela Pontes, o que passo a fazer no capítulo seguinte.
196
CAPÍTULO 4
MÃE JÚLIA: A mãe primeira da Umbanda no Ceará
197
4.1 Lembranças de Mãe Júlia
Meu olhar irá se dirigir a uma personagem sobre a qual existem algumas informações;
falo aqui, especificamente, da memória sobre Júlia Condante, entrecruzada com a história da
Umbanda no Ceará que a pesquisa biográfica permite a apreensão das relações entre a
vida individual, as estruturas e as regras sociais.
O interesse em tratar das mães-de-santo da Umbanda me foi despertado pelo
entendimento e a constatação de que a história dessas mulheres e das religiões afro-brasileiras
é uma história de silenciamentos. uma invisibilidade do grupo de adeptos, da religião
como prática cultural, o que resulta em poucas informações, uma escassez de documentação.
Assim, é de grande valia a história oral temática, mediante a história pessoal do narrador.
Reuni fontes importantes de informação sobre a trajetória de Júlia Condante como mãe-de-
santo, sendo possível traçar um perfil dessa liderança feminina na religião de possessão, na
perspectiva de perceber a tendência e a multiplicidade de formas de exercer esse sacerdócio.
A trajetória individual de Mãe Júlia guarda relações com o sistema social como um
todo e está arraigada em um contexto. A biografia de Mãe Júlia esclarece a ambiência da
década de 1950 e da história da Umbanda na realidade cearense fragmentada e conflitante. A
história dessa mãe-de-santo é relevante, representativa, e possibilita identificar o que está
latente na Umbanda como religião da tradição, cuja documentação é escassa e fragmentária.
Apresento uma dentre várias formas de interpretação do projeto religioso de Mãe
Júlia. Considerei as estruturas de poder, as diversas formas de dominação e a dinâmica das
resistências nas condutas coletivas que seguiram como sistema de relações. Entendo a religião
como uma das razões de o ser humano crer e elaborar sentido para sua existência, depositando
nela a esperança da realização imediata de seus desejos subjetivos. Nesse sentido, tem papel
preponderante a mãe-de-santo com sua função sacerdotal de ajudar na organização e
estruturação da vida individual e espiritual dos filhos-de-santo, reanimando-os para viver dias
melhores ou mais suportáveis.
Aqui, ao tratar da biografia de Mãe Júlia, fiz uso da história oral e compartilho da
compreensão de que as memórias se relacionam às perspectivas e aos códigos existentes entre
grupos de pertencimento, e de que elas podem fornecer dados importantes sobre contextos,
processos e conflitos sociais que fazem parte da vida dos diversos narradores. Tem
importância a memória como fonte de informação; vale, então, recordar fatos relacionados à
198
Umbanda, à liderança da mãe-de-santo nos terreiros. O espaço da religião se configura como
lugar de conservação da memória.
Colocou-se como primeiro problema o modo de conseguir informantes-chave para
ajudar a construir a história de vida dessa mãe-de-santo. Contei com a indicação dos próprios
adeptos, daqueles que conheceram o terreiro liderado por Mãe Júlia, bem como dos
conhecedores do trabalho de cura, assistência e orientação espiritual por ela desempenhado.
Tentei levantar seu perfil social, relacional e espiritual e compreender os motivos que a
levaram a integrar a religião, a forma como se deu seu desenvolvimento, formação e
preparação espiritual para ser mãe-de-santo, além de perceber sua relação com o orixá dono
de sua cabeça Ogum. Por fim, interessava saber acerca da transmissão do axé após sua
morte, em 1984.
Essa metodologia da tradição oral é importante para compreender a permanência dos
mitos e a visão de mundo das comunidades em relação a um passado recente. Tive como fonte
primária a narrativa de sua filha-de-santo, Stela Pontes, que demonstrou sempre boa vontade
ao me receber. Conversamos por longas horas, de modo que ela me forneceu referências
históricas para o entendimento das particularidades do exercício sacerdotal de Mãe Júlia.
Compreendo que a memória social da filha-de-santo Stela Pontes se modifica com o
tempo, que, não sendo memória documental, não a função ou a obrigação de ser fixada.
Contando com as narrativas de Mãe Stela, fiz, por meio de suas lembranças, uma reconstrução
ou construção imaginativa a partir das experiências passadas e organizadas por ela. Como
filha-de-santo, conviveu no terreiro e compartilhou daquele grupo, o que possibilita a
descrição de detalhes importante para a feitura de uma biografia.
Assim, são elucidativas as palavras de Pordeus Júnior:
Para que as lembranças permaneçam, é necessário que façam parte do
pensamento de um grupo. No entanto, é necessário que essa memória seja
articulada entre os membros desse grupo. Isso vale para a sociedade mais
ampla. A memória possui características que se manifestam em seus
aspectos afetivos e sociais. (PORDEUS JÚNIOR, 2002, p.7)
As lembranças de Mãe Stela têm um papel importante, pois a história oral não se trata
somente de registros falados, mas também da memória relacionada a sentimentos e emoções.
Certamente seus depoimentos guardam relações com o grupo de que fez e faz parte.
199
A história oral se volta para a narração das pessoas comuns, para a importância delas
para a história. A narração é recolhida mediante técnicas de depoimentos e de entrevistas. Ao
trabalhar com a memória oral, no entanto, o zelo metodológico se faz necessário para o se
cair no sensacionalismo, na primazia pelo o exótico, numa postura reificadora de certos
grupos historicamente discriminados – em particular as mulheres e os adeptos da Umbanda.
A linguagem é uma forma de memória que nos antecede. As construções coletivas do
presente também guardam rememorações de experiências passadas. A memória se cristaliza
fora de nós, em lendas, monumentos e objetos que estão longe de ser reflexos de verdades
históricas.
Segundo Amado e Ferreira (2002), a alternativa encontrada por muitos autores foi a de
procurar compreender o passado através de representações ou memórias coletivas, ou seja, a
partir de uma abordagem que procura o sentido atribuído aos fatos passados pelas pessoas
que, de uma forma ou de outra, estiveram envolvidas com eles. O passado é recuperado pelo
presente através de processos de interação social. A compreensão do passado, neste caso, é
composta de uma rede bem mais complexa de significados. São indivíduos em contato com
outros, em determinados contextos sociais, trazendo o passado para o presente. O conceito de
memória, portanto, nos permite entrelaçar passado e presente, por um lado, e ultrapassar a
antinomia teórica clássica entre indivíduo e sociedade, por outro.
Para Halbwach (1990), memória é uma forma de pensamento, percepção ou prática
que tenha o passado como principal referência. Ela está nos sentimentos e nas percepções,
bem como na imaginação. Tudo o que sabemos ou que podemos aprender se deve às
memórias que possuímos ou que iremos adquirir.
A memória é seletiva: não memorizamos tudo, apenas aquilo que nos é interessante. A
memória envolve o esquecimento e não está sob nosso controle, pois o que lembramos ou
apagamos não é resultado apenas de nossas intenções e desejos declarados. Nós nos
lembramos de detalhes aparentemente sem importância e esquecemos outros relevantes.
Temos, portanto, de buscar uma compreensão das lembranças de Mãe Stela nesta trama.
Embora a memória seja sempre resultado de um processo interativo, há casos em que a
experiência pessoal é fundamental e outros em que as determinações coletivas precisam ser
consideradas. historiadores, no entanto, que se voltam para uma etnografia da teia de
relações sociais do passado a partir da interpretação de construções simbólicas que não
antecedem como ultrapassam o conteúdo de relatos obtidos.
200
Maurice Halbwach, em Os quadros sociais da memória, afirma que “é impossível
conceber o problema de evocação e da localização das lembranças se não tomarmos para
ponto de aplicação os quadros sociais reais que servem de pontos de referência nesta
reconstrução que chamamos memória” (1990, p.10). uma correlação dialética entre o
dinamismo criador dos grupos humanos e a organização da representação do cosmo, da forma
como esses grupos vivem e sobrevivem na sociedade considerada.
A memória individual esenraizada dentro dos quadros sociais diversos nos quais o
sujeito encontra-se inserido. A rememoração situa-se na encruzilhada das malhas de
solidariedades múltiplas em que estamos engajados.
As lembranças coletivas são o conteúdo do pensamento social. A sociedade pode
reconstituí-las a qualquer momento, operando com suas estruturas sociais. Podemos afirmar
que as rememorações perdidas foram as representações coletivas próprias de uma estrutura
social que passaram a não ter mais sentido dentro das condições sócio-históricas do tempo
presente (BASTIDE, 1971).
Antes de adentrar a biografia de Mãe Júlia Condante, é importante mencionar e
comentar as leituras reducionistas acerca da Umbanda como religião. Para alguns estudiosos,
a Umbanda é um culto degenerado, de perda da tradição, uma forma não evoluída do
Kardecismo e destituída da pureza africana, degradada em práticas mágicas. Penso ser válido
perceber essa religião como uma criação brasileira, reveladora das contradições presentes
nesta “sociedade da cordialidade” e da exclusão e marginalização de segmentos como os
pobres, os desempregados e as mulheres, que são representados em seu panteão. Assim, não
me interesso por balizar perdas nem acréscimos, a não ser os normais nos processos culturais.
A tradição não é cristalizada, também muda. Ela não apresenta formas estatísticas,
mas revela uma dinâmica, seja recusando ou propiciando mudanças. Pertencentes ao âmbito
da tradição, as religiões afro-brasileiras são reinventadas, criadas e recriadas em seus
fundamentos e na reconfigurabilidade das crenças e doutrinas. Com liberdade de recriação,
não apresentam dogmas nem codificação estatística. Pela polifonia dos atores inscritos nas
sete linhas e pelos desdobramentos das falanges de entidades espirituais que atuam em
diferentes campos, ela se torna favorável à inclusão de conflitos e à explicitação de
contradições. Cada entidade espiritual diz algo que acrescenta ou se contrapõe a outra voz
enunciada.
201
A Umbanda, como religião da tradição, lida com o passado. As tradições caracterizam
um modo de viver que, como uma herança, tem no passado a força para assentar saberes que
nem sempre se querem úteis ou verdadeiros mas que permitem fundar o sentido de grupo.
As identidades e o discurso que promovem ao indivíduo e ao grupo a idéia de pertencimento e
de “coesão social” dão, ao mesmo tempo, sentido à diferença. Já as representações são as
matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem
como explicativa do real.
A Umbanda praticada por Mãe Júlia Condante foi o Espiritismo de Umbanda,
identificado por muitos como aquele que nega as raízes africanas, e teria, portanto, um culto
empobrecido e menos “puro”. Muito dos estudiosos das religiões afro-brasileiras encaminham
suas análises para explicações polares, nas quais as religiões tradicionais “puras”
conservariam um conteúdo étnico, em contraponto ao sincretismo e à degenerescência,
mostrados como desagregação de valores tradicionais.
Os estudos em questão costumam enquadrar a Umbanda na segunda perspectiva,
julgando que, ao abrir mão do seu conteúdo étnico, ela teria se tornado uma religião mais
adequada às camadas de classe média e baixa de grandes cidades pessoas em busca de uma
mobilidade social ascendente na sociedade brasileira, permeada pelo preconceito racial. Dessa
forma, as pesquisas sobre Umbanda e cultos afro-brasileiros tentaram mapear o que seriam os
dois caminhos seguidos pelas crenças religiosas trazidas pelos escravizados africanos para o
Brasil: de um lado, haveria a luta pela manutenção da tradição dos cultos afro-brasileiros ditos
“puros”; de outro, o apagamento gradativo dos elementos africanos e étnicos realizado pela
Umbanda. Tenho aqui a intenção de me distanciar das análises dessa ordem.
No Espiritismo de Umbanda é visível, por parte de alguns integrantes, temores em
assumir a herança cultural negra. No entanto, apesar das divergências ideológicas, tanto a
linguagem como a estrutura simbólica e ritual africanas estão presentes na Umbanda
(THEODORO, 2008).
Houve no Ceará uma forte influência do Catimbó e da Macumba. Depois, passou-se
por um processo de mutação da Macumba para o Espiritismo de Umbanda. As análises de
Pordeus Júnior (2000) sobre a memória histórica do Espiritismo de Umbanda no Ceará nos
ajudam a situar essa religião na sociedade brasileira dentro de um momento histórico marcado
pela modernização, industrialização e urbanização, pela consolidação das classes sociais
era, portanto, um cenário de valorização da racionalidade e da secularização.
202
O Espiritismo de Umbanda é criado na década de 1930, quando começa a se
consolidar uma sociedade urbana industrial portadora de uma nova visão de
mundo, racional e secularizado, com a valorização do trabalho urbano. Esta
nova religião tem como um dos seus elementos a possessão dos seus adeptos
por espíritos desencarnados, fenômeno que suscita questões de ordem social
e religiosa, que não se enquadram numa visão racional e secularizada
(PORDEUS JÚNIOR, 2000b, p.39).
Com a implantação e a consolidação de uma sociedade urbana industrial e de classes,
a Umbanda surge como uma nova religião no começo do século XX. Ela assume caráter de
movimento religioso quando da realização do I Congresso Umbandista, em 1941. Constitui-se
uma religião brasileira com práticas religiosas das três bases culturais formadoras da
nacionalidade mestiça: indígena, africana e européia aquela do Catolicismo, em uma
perspectiva espírita kardecista (PORDEUS JÚNIOR, 2008).
A Umbanda é derivada e constituída da contribuição do Catolicismo, do culto dos
índios, do Espiritismo Kardercista e dos cultos de base afro-brasileira, o que faz dela uma
religião sincrética:
(...) o “fenômeno do sincretismo” é um processo gerado pela repressão que
se abatia sobre o negro e sua cultura no Brasil. Esse processo se caracteriza
pelo fato de que, para superar a repressão religiosa e a opressão catequética,
os diversos cultos negros introduziram imagens de santos católicos para
transmitir aos repressores que era o culto àqueles santos que ali se
processava. Por trás dessa aparência, o africano manteve, implantou e
dinamizou nas Américas sua religião (...) (THEODORO, 2008, p. 82-83).
O Espiritismo de Umbanda reflete o processo de desafricanização, no qual a Umbanda
busca maior aproximação com o Espiritismo de Allan Kardec e com as antigas tradições
religiosas do Extremo Oriente e do Oriente Próximo, minimizando a contribuição africana:
Incluem, entretanto, em seus rituais, duas figuras originárias das antigas
tradições da macumba: o caboclo e o preto-velho, que foram destituídas, não
obstante, de aspectos considerados depreciativos, que são o fumo e a bebida,
ou, quando estes ainda são permitidos, sofrem grande controle por parte dos
responsáveis pelas casas de umbanda. Esses personagens, porém, possuem
um caráter especial que lhes confere notoriedade: eles são responsáveis pelas
“consultas”. Juntamente com os espíritos de criança e os exus, são as
divindades que aconselham, curam, protegem e defendem os “filhos de fé”.
Essas divindades (...) estariam divididas em três domínios distintos que
configurariam a visão do mundo do grupo: o mundo da natureza, (caboclos),
o mundo civilizado (pretos-velhos e crianças) e o mundo marginal (exus),
que seria o avesso da civilização (BARROS; MOTA, 2008, p.249).
203
Como os cultos originários da África são perseguidos e ameaçados desde a inserção
dos africanos na sociedade brasileira, acredito que a desafricanização promovida pela
Umbanda em seus primórdios procurava eliminar aspectos que pudessem identificá-la
diretamente como mais uma variante dos cultos considerados “selvagens”, “primitivos”. Não
obstante tais esforços, a Umbanda tem se disseminado não como “pura” ou desprovida de
elementos africanos, mas de acordo com sua própria origem, isto é, misturada.
Precisamente pelas diferentes linhas religiosas que absorveu e pelas outras em que se
divide, a Umbanda consegue “compor, somar, articular princípios diversos na sua prática”
(BARROS; MOTA, 2008, p.250). Esse gradiente possibilita a ela incorporar às suas práticas e
inserir em seu sistema inúmeros outros personagens originários da experiência urbana,
conferindo-lhe um caráter extremamente dinâmico no sentido de algo capaz de
constantemente se renovar e se adaptar a novas configurações sociais (BARROS; MOTA,
2008).
Os fundadores da Umbanda acreditavam que a religião de matriz africana era resultado
de uma mistura grosseira de elementos mais evoluídos aqueles espíritos de mentalidades
civilizadas com outros inferiores marcados por sacrifício de animais, danças orgástica e
culto a entidades brutas, ligadas a forças demoníacas. Contudo, permaneceram validadas no
panteão da Umbanda as entidades espirituais como os exus feminino e masculino ou pretos e
pretas-velhas, que descem para “trabalhar” e dar ajuda a quem disso necessita, vindo à terra
para trazer bons conselhos.
Na Umbanda, encontramos diversas linhas ou falanges que se apresentam por meio de
entidades como caboclos, pretos-velhos, crianças, mestres de jurema, orixás, marinheiros,
boiadeiros, baianos e baianas, coral (Linha de Cobra), assim como ciganos e ciganas,
príncipes e princesas, ondinas e sereias, oriente (Linha dos Astros), exus masculino e
feminino. Todos têm suas características específicas, seus pontos cantados sobre suas
particularidades, têm seus vieses de trabalho relacionados aos problemas dos consulentes e
visitantes, tais como: desencontros amorosos, doenças, separações, casos de amor, amarração,
dinheiro, bruxaria, feitiçaria, trabalhos que envolvam justiça, derruba de obstáculos, limpeza
(purificação do corpo e descarrego), abertura de caminhos, dentre outros.
Diante da perseguição policial, da imposição e da opressão da sociedade oficial à
Umbanda, ela conseguiu resistir plasticamente às inúmeras tentativas de deslegitimá-la graças
a essa liberdade ao criar a recriar. É nesse contexto que se estrutura o projeto religioso de Mãe
Júlia Condante.
204
A Umbanda, como religião afro-brasileira em Fortaleza e Região Metropolitana, conta
com um número maior de adeptos em relação ao Candomblé. Assume maior popularidade e
adesão dos extratos mais baixo da sociedade. Contudo, torna-se visível a inserção de
seguidores de outros segmentos sócio-econômicos.
Por seu peculiar sincretismo das práticas do catolicismo popular, do Espiritismo
kardecista, da Pajelança indígena e do culto aos orixás como matriz africana, congrega em seu
panteão uma mistura dos três elementos da brasilidade.
Disseminou-se na realidade cearense o Espiritismo de Umbanda como culto de
preponderância do Espiritismo kardecista e de rituais de magia considerada branca, em
detrimento da cosmologia africana. O termo “espírita” soava mais civilizado portanto, com
maior possibilidade de aceitação e reconhecimento dos trabalhos de mesa branca. Contudo,
esse legado da tradição africana não desaparece, e iremos perceber sua influência dentro de
uma ordem situacional.
Por isso, considero reducionistas as análises que acusam a Umbanda de culto
misturado e de perda da pureza africana, afirmando ser o Candomblé a religião que consegue
preservar com fidelidade as tradições da África e ser menos flexível às transformações
sincréticas. Entendo que a Umbanda reflete a história e a sociedade brasileira perpassada por
ambigüidades e contradições. As religiões afro-brasileiras não são formas religiosas
exclusivas de negros: cabe legitimar as várias identidades religiosas que compõem esse
universo plural.
A Umbanda herdou do Espiritismo o processo de comunicação com os mortos e a
idéia da existência de espíritos bons e sofredores; da herança africana, tomou os orixás Nagôs
e deu a eles uma vestimenta cristã, aproximando-os dos santos católicos e da moral do
Cristianismo.
Dentro do espectro das religiões afro-brasileiras, a Umbanda sofre estereotipação
como culto misturado e degenerativo. Assim, é fomentada a interiorização de preconceitos e
de discriminação, sendo ela vista como forma religiosa atrasada e tornando-a por muito tempo
objeto de perseguições. Foi disseminado no imaginário social que os participantes desse culto
são potencialmente perigosos por causa do poder mágico por eles exercido. Diante disso,
muito dos adeptos buscavam formas de legitimação ao se dizer católicos, na tentativa de se
livrar de qualquer suspeita de bruxaria, feitiçaria, escondendo suas crenças sob aquele rótulo.
205
É nesse contexto que Mãe Júlia busca obter legitimidade e reconhecimento social: o contexto
da sociedade brasileira múltipla e hierarquizada.
Muitos umbandistas têm recusado práticas mágicas com as divindades do panteão
africano, como os exus, e tentam disciplinar a espontaneidade do imaginário ao classificar os
orixás ou entidades, por influência do Espiritismo kardecista, como espíritos evoluídos e não
evoluídos. estaria a importância de se afastar daqueles de energia negativa, ou seja, os que
trabalham para o mal.
Como todas as entidades do panteão Umbandista, os exus masculinos e femininos se
organizam em linhas e estão marcados pelo signo da resistência e da liberdade. Eles descem à
terra para trabalhar na defesa e na proteção dos adeptos e clientes que a eles recorrem para
solucionar seus males (PORDEUS JÚNIOR, 2000b).
Inerente ao seu sentido religioso, os exus comportam a função de dar cidadania ao
recalcado, de simbolizá-lo miticamente tanto do ponto de vista psicológico como do social e,
portanto, também nas perspectivas histórica e política (BAIRRÃO, 2002).
4.2 Júlia Condante: Mãe primeira do Espiritismo de Umbanda no Ceará
Tomei como base na construção da biografia da Mãe Júlia os contextos econômico,
social, cultural e político nos quais ela viveu, mas também o estabelecimento da memória
coletiva. Interessava saber a forma como ela desenvolveu seu compromisso religioso na
sociedade cearense, as condições sociais suportadas num Estado de preponderância católica
em um momento de perseguição política.
Embora haja um cruzamento, em geral, entre as representações coletivas e as
individuais, é preciso levar em conta, nas histórias de vida, as condições de
inserção social dos agentes/ator, também determinante das manifestações
discursivas sobre os mais variados assuntos e, especialmente sobre o estilo
de vida assumido/atribuído/imposto e a rede social formada, com as
respectivas implicações no cotidiano de cada ator/agente social.
(TEIXEIRA, 1994, p.22)
Dentre incontáveis aspectos da vida de Júlia Condante, dei ênfase à dimensão religiosa
de sua inserção no Espiritismo de Umbanda no Ceará e à forma como atuou diante dos
206
processos sócio-históricos que perpassaram a vida cotidiana, num caráter fragmentário e
dinâmico da construção da narrativa sobre ela.
O material que deu base à construção da biografia de e Júlia Condante foi uma das
entrevistas feitas por Ismael Pordeus Júnior nos anos de 1978 e 1979 além das narrativas de
Mãe Stela Pontes, nas quais busquei indícios dos atos e das palavras do cotidiano de Mãe
Júlia, e de depoimentos de outros adeptos da Umbanda, de pessoas que fizeram parte de sua
família-de-santo ou que a conheciam. De modo geral, não foi possível encontrar muitos
documentos escritos; havia a escassez de fontes, o que me impossibilitou de seguir uma
cronologia ordenada, coerente e estável. Nesse sentido, são fundamentais as palavras de Pierre
Bourdieu ao chamar atenção sobre a “ilusão biográfica”. Ele considera indispensável
reconstruir o contexto, a superfície social em que o indivíduo age, numa pluralidade de campo
a cada instante, não obedecendo a um desenvolvimento linear ou a um itinerário coerente e
determinado:
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o
relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e
direção, talvez seja conforma-se com uma ilusão retórica, uma representação
comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa
de reforçar. (...) o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem
razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque
surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório
(BOURDIEU, 2002, p.185).
O contexto foi o de busca da legitimação da Umbanda. e Júlia atuou junto a
comunidades que sofriam pela ausência de políticas públicas, principalmente no âmbito da
saúde; conviveu num cenário de perseguição política às religiões afro-brasileiras, tendo de
enfrentar a Polícia.
Acerca dos aspectos individuais, pode-se ressaltar que era mulher branca, viúva,
imigrante, sem filhos biológicos, cuidadosa com sua mãe. Ela viveu em um cenário urbano e
assumiu uma liderança religiosa durante as décadas de 1950 a 1980, perfazendo mais de trinta
anos de sacerdócio.
Sobressaiu a imagem de uma mulher forte, cujo sacerdócio exprime a contradição de
evitar o legado e a herança africana no culto. Ao mesmo tempo, estava ela no interior de uma
religião cuja matriz é também africana.
207
Essa personagem social não está dissociada da tessitura da sociedade brasileira,
marcada pela discriminação de gênero e racial e que pesa contra as mulheres e contra uma
religião discriminada por ser praticada por negros. Ao narrar a história de vida de Júlia
Condante, percebo uma teia de complexidades, repleta de retornos que demarcam o caráter
paradoxal do pensamento e da linguagem. É o elemento contraditório que constitui a
identidade de um indivíduo e das representações que ele possa ter conforme os diferentes
pontos de vista: o de uma de suas filhas-de-santo, o de um professor que levava seus alunos
para visitar seu terreiro e o da obra do pesquisador da Umbanda no Ceará Ismael Pordeus
Júnior.
Mãe Júlia tornou-se uma liderança na Umbanda. Foi uma das mães-de-santo mais
respeitadas no Ceará, e isso se deve aos poderes espirituais e a seu carisma pessoal,
conseguindo agregar pessoas de todas as classes em seu terreiro. Prestava solidariedade a
mulheres que passaram a morar com ela. Despertou, pelo desejo de organizar a Umbanda,
inveja e rivalidades, intrigas de filhos e filhas-de-santo e de outros adeptos.
Buscou a legitimação dos terreiros de Umbanda mediante registro na Polícia e criou a
Federação Espírita Cearense de Umbanda em 1953. Seu objetivo foi garantir a afirmação da
religião de modo a ocupar um espaço público em Fortaleza e em outros municípios do Ceará,
atingindo maior grau organizativo. Sendo o conhecimento algo prioritário em uma sociedade
que se diz moderna especificamente no Brasil republicano, urbanizado, e cuja economia
girava então em torno da industrialização –, era requerido esse saber legitimado, em
detrimento da tradição oral. Assim, o modelo adotado foi o do Kardecismo, baseado no
desenvolvimento mediúnico (PRANDI, 1996).
Havia a preponderância do estigma, da violência física e simbólica; havia a
perseguição pela opinião pública e por parte de instituições como a Polícia, a Igreja Católica,
representantes da medicina oficial e da Justiça. O Estado brasileiro legitimava ões como as
batidas policiais nos terreiros e a apreensão de objetos sagrados, que passavam a fazer parte
do museu da Polícia. Hoje a perseguição continua, muito embora adquira novos contornos: a
proliferação das igrejas evangélicas, por exemplo, difundem esse preconceito. Tudo isso tem
exigido, por parte dos adeptos e de suas entidades organizativas, a realização de atos públicos
e ações judiciais em defesa das religiões afro-brasileiras.
Nesse contexto marcado por conflitos, preconceitos, estigmas e violência, os adeptos
criaram estratégias defensivas. A Federação Espírita de Umbanda veio como um dos
primeiros sinais da institucionalização da religião em nível local. A criação dessa entidade
208
coletiva proporcionou um maior processo organizativo dos umbandistas não em Fortaleza,
mas também nas cidades do interior do Estado.
Ao tentar reconstruir fragmentos da experiência vivida por Mãe Júlia Condante,
pretendi tornar visível a figura da mãe-de-santo e sua atuação no Ceará durante as décadas de
1950 a 1980, tendo como base de informação o legado da memória de sua filha-de-santo, Mãe
Stela Pontes. Mãe Júlia foi uma mãe-de-santo que assumiu atitude corajosa perante os
mecanismos de perseguição policial à Umbanda e realizou um trabalho de cura e de
atendimento espiritual intenso na cidade de Fortaleza, especificamente na comunidade
próxima ao bairro Benfica.
Em sintonia com a tendência da época a de buscar a codificação e a legitimação da
Umbanda –, criou uma entidade representativa do Espiritismo de Umbanda com o propósito
de adquirir melhores condições para a realização dos cultos. Para tanto, foi concluir seu
desenvolvimento espiritual na cidade do Rio de Janeiro, um grande centro urbano-industrial.
também pretendia adquirir maior reconhecimento de trabalho, conquistando espaço para
uma religião considerada primitiva e charlatã.
Para alcançar esse propósito de reconstrução, entrevistei a mãe-de-santo que assumiu a
liderança de seu terreiro após sua morte, a senhora Maria Stela Pontes, que, até o ano de 2008,
residiu à rua Dom Joaquim de Melo, número 636, localizada no bairro Benfica, em Fortaleza.
Nesse lugar ficava o Terreiro de Ogum. Mãe Stela tem tomado conta do terreiro como mãe-
de-santo desde a morte de Mãe Júlia, em 4 de janeiro de 1984. Relatou que Mãe Júlia sempre
foi uma boa pessoa e, na ocasião da separação de Mãe Stela, cedeu a ela um espaço dentro do
terreiro para morar com seus quatros filhos pequenos, já que eles viviam em péssimas
condições numa favela no bairro denominado Damas. Stela não tem uma lembrança certa da
data em que veio morar no Benfica.
O que me motivou a escolher Mãe Stela para ser a entrevistada principal na construção
da memória histórica de Mãe Júlia foi a informação de que ela havia sido a filha-de-santo
herdeira do terreiro de Ogum, e que mantinha com a mãe espiritual uma relação amistosa, de
proximidade e de grande amizade. Acrescente-se a tudo o fato de ela ser idosa. Acredito que
seu depoimento é rico historicamente, e merece atenção de minha parte o valor que está em
suas memórias. Eu sabia do valor de sua experiência como adepta da Umbanda, filha-de-santo
e hoje sacerdotisa e facilitou a minha pesquisa o fato de ela disponibilizar de tempo para
conversarmos acerca dos conhecimentos que adquiriu com Mãe Júlia ao longo de sua vida. Na
esteira dessa compreensão, Gisafran Jucá nos fala da importância que têm os interlocutores
209
velhos: “Por isso, as informações prestadas por eles trazem subsídios valiosos à compreensão
do passado, uma vez que elas são apresentadas de uma maneira mais espontânea, deixando
fluir o conteúdo restaurador do passado” (JUCÁ, 2003, p.18).
Mãe Stela Pontes foi uma grande admiradora de Mãe Júlia Condante. Esse fato foi
tomado com cuidado para que eu não incorresse no equívoco de limitar esta biografia,
renunciando à veracidade individual para acentuar paixões e emoções do conteúdo,
reafirmando e supervalorizando as atitudes dela como protagonista, recaindo na pura
simplificação. Preferi dizer, por meio da biografia de Mãe Júlia, de seu estilo pessoal, do
contexto em que vivia um grupo de religiosos da Umbanda no Ceará e de suas experiências
comuns. Assim, Júlia Condante concentra características do grupo, comportamento de uma
época, típico daquele meio social.
Na construção da biografia de Mãe Júlia, estabeleci uma relação entre passado e
presente na qual se enlaçam a memória e a história. A memória tem uma dimensão simbólica,
remete a algo mais do que um mundo pessoal, deixa transparecer a ligação entre o indivíduo e
seu contexto social, ampliando as possibilidades de leitura da realidade. Assim, memória e
história não devem ser confundidas, pois possuem significados bem diferentes.
(...) a memória por ser social é sempre vivida e compartilhada, ao passo que
a história escrita torna-se impessoal, ou melhor, reflete apenas a
interpretação do seu autor, tornando-se deveras limitada, se confrontada com
a memória de diversos indivíduos, que se torna plural. Por isso, a memória
desapontaria como uma viabilidade de revelar aspectos que poderiam ser
relegados pela história documental, sobretudo se considerarmos as condições
afetivas que aproximam os indivíduos pertencentes à mesma faixa etária e
posição social. Portanto, a história é reconstituída mantendo uma distância
entre quem a elabora e os envolvidos no seu enredo. a memória não
estabelece uma cisão entre o passado e o presente, pois as lembranças
permanecem, mesmo sendo reconstituídas com novas versões apresentadas,
ao passo que a História se apresenta de forma fragmentada. (JUCÁ, 2003,
p.29)
O real e o inventado estão implícitos nos discursos de Mãe Stela Pontes, personagem
que vivenciou e participou do convívio de Mãe Júlia, testemunha dos fatos.
Segundo Mãe Stela Pontes, Mãe Júlia nasceu em Portugal. O pai partiu com a esposa
daquele país para o Brasil; aqui chegando, deixou mulher e filha sob os cuidados do senhor
José Pinto do Carmo. Ela conta, em seu depoimento:
210
Finado Pedro era pai de Mãe Júlia e, quando (ela) estava perto de nascer,
disse que viria pra (Brasil) vender o ouro e passar uns seis meses. Com
três meses, ela nasceu em cima dos matos, em cima dos lajeiros lá de
Portugal. Com cinco meses que ela tava de vida, ele veio embora pra com
ela e com a vozinha (mãe de Júlia). Ele entregou ela a José Pinto do Carmo.
Nunca botou ela pra estudar, nunca fez nada pra ela. (MÃE STELA, maio de
2005)
Por certo tempo, Mãe Júlia e sua mãe permaneceram sob tutela de José Pinto do
Carmo, morando nas proximidades do bairro Jacarecanga, região próxima ao Centro da
cidade de Fortaleza. Mãe Stela conta que esse senhor se apropriou dos bens financeiros
deixados pelo pai de Mãe Júlia e passou a ser dono de fábricas do ramo de redes. Diante dessa
situação desfavorável, ela resolveu procurar outro lugar para morar, alugando um pequeno
quarto.
Casou-se e engravidou. Contudo, antes de conceber seu filho, ficou viúva e, com
apenas seis meses de vida, esse seu único filho biológico também veio a falecer. Não mais
contraiu núpcias.
Suas filhas e filhos-de-santo, que não foram poucos, formaram uma comunidade, um
povo-de-santo espalhado em Fortaleza e em outras cidades do interior do Estado e até
mesmo em outros Estados. Morou durante muitos anos na travessa Leandro Monteiro, bairro
Jacarecanga, e também na rua Senador Pompeu, na Gentilândia, vivendo na companhia de
três mulheres: Julinha, dona Ana e Madrinha Zilda. Ao lado de sua casa, alugou outra para
servir como terreiro. Nele fazia atendimentos individuais durante a semana, de segunda a
sexta-feira, destinando o sábado exclusivamente para seus trabalhos de mesa branca.
4.2.1 A “desenvolvência” de Mãe Júlia
Em entrevista realizada por Ismael Pordeus em 1978 e 1979, Mãe Júlia afirmou que
seus pais eram católicos, tendo ela inclusive feito os sacramentos na Igreja Católica. Porém,
quando começou, ainda muito moça antes dos anos 1940 –, a ser tomada pela mediunidade,
passava mal e não conseguia permanecer na igreja. Um dia, foi alertada de que deveria tomar
alguma providência, caso contrário poderia enlouquecer, e foi a partir daí que começaram as
iniciativas para o seu desenvolvimento mediúnico.
211
O tempo dela foi um tempo difícil. Quando começou, ela não tinha
liberdade, a Umbanda não tinha liberdade no Ceará. Quer dizer, no Rio de
Janeiro tinha, em Salvador, noutros lugares tinha. Aí ela foi uma pessoa que
começou a desenvolvência dela, uma pessoa indicou a ela assim: “Você não
tem doença, vá ao Rio de Janeiro e procure a Mãe Laura. A Mãe Laura vai
receber você muito bem e vai dar um caminho na sua vida. Porque você vive
doente, você vive assim e assado, você não tem é doença”. Ela foi, foi muito
bem recebida pela mãe Laura no Rio de Janeiro, e ela fez a
desenvolvência dela. Recebeu os caboclos dela tudinho, mas ficou brigando
para puder trazer uma liberdade pra aqui, para puder ter liberdade. E foi
embora pro Rio de Janeiro atrás desta liberdade, e foi embora atrás desta
liberdade, brigando com o Cordeiro Neto, brigou dois anos com ele. Ele
chegava, quebrava a estátua (...). (MÃE STELA, maio de 2005)
O desenvolvimento mediúnico de Mãe Júlia representou para ela um momento
revelador, vindo por meio de doença. Isso provocou uma ruptura com a religião antes
professada e um momento de renascimento para uma nova vida, de revelação, chamamento
para cumprir sua missão como sacerdotisa, liderança do terreiro de Ogum e muitas conquistas
a realizar.
Mãe Júlia viajou para o Rio de Janeiro para cuidar de um dos seus filhos-de-santo que
se encontrava doente, em 1952 – nessa época, a Umbanda se expandia tanto no Rio de Janeiro
quanto em São Paulo. Em São Paulo, especificamente, a religião ganhava visibilidade pela
realização de festas populares públicas e pela ampliação do número de devotos e
simpatizantes, muito embora os terreiros fossem obrigados a se registrar nas delegacias
policiais. Podemos pensar que, em meio a esses acontecimentos históricos da Umbanda, Mãe
Júlia considerou importante criar também essa ambiência aqui no Ceará. Depois dessa
viagem, encarregou-se de criar a Federação Espírita Cearense de Umbanda.
Com sua iniciação, continuava trabalhando com a Umbanda de forma escondida. Nos
anos 1950, abriu o Terreiro de Umbanda São Jorge; para “libertar” a Umbanda da
perseguição, fundou a Federação Espírita Cearense de Umbanda como mecanismo
burocrático institucional responsável por emitir os estatutos dos terreiros.
Então, Ogum disse pra mim registrar isso aqui como Federação Espírita
Cearense de Umbanda. Mandei o meu filho falar com o Chefe de Polícia e
depois fazer o registro no Diário Oficial. As pessoas chegavam aqui e
ficavam olhando na parede o registro na moldura. Eu não tinha medo da
polícia, pois eu trabalhava tanto no Espiritismo como também em
desmanchar trabalho. (...) antes a gente ia trabalhar lá pros lados da Barra do
Ceará, era mato. Tinha que ser escondido porque a Polícia prendia todo
mundo, era uma perseguição só; depois, com os estatutos, nós ficamos livres,
e a Umbanda ficou livre (MÃE JÚLIA in PORDEUS JÚNIOR, 2002, p.13).
212
Entrevi que a liderança de Mãe Júlia voltou-se para “libertar” a Umbanda no Ceará, e
isso ficou marcado na memória de muitos umbandistas. Nesse sentido, é ilustrativo o seguinte
depoimento:
Ah, meu Deus do céu! (...) Posso dizer que quem libertou a nossa Umbanda
foi Mãe Júlia. Porque Mãe Júlia foi do tempo do Cordeiro Neto, ela que
entrou pesado com ele e ganhou. Ela ganhou porque era ele que mais
perseguia eles. Eu não, porque eu num tinha nada, como se diz, ia pra
andar, só pra ver. Nessa época não tinha terreiro. Tinha nada, era assim,
andava fazendo visita, que eu gostava, entrei e fiquei gostando (...). Mas a
Mãe Júlia foi quem libertou nossa Umbanda, ela entrou com o Cordeiro
Neto, eu não sei o que houve que ele mandou terminar tudo, e terminou a
esposa dele se curando dentro do terreiro de Mãe Júlia. (...). (MÃE ANITA,
julho de 2008)
O depoimento de Mãe Anita reconhece o papel desenvolvido por Mãe Júlia na
legitimação do Espiritismo de Umbanda e o poder mágico dela como mãe-de-santo. Além de
sair vitoriosa no embate, ainda presta assistência espiritual a um membro da família de seu
maior opositor, o coronel Cordeiro Neto.
Mãe Júlia, a partir desse momento, começa a registrar os terreiros por ela legalizados,
bem como a documentar os filhos-de-santo feitos por ela, com a data de suas obrigações,
numa espécie de arquivo. Segundo Mãe Stela, na última contagem essa documentação
totalizava mais de mil registros, dado que demonstra o crescimento da Umbanda no Ceará.
Assim, mais ou menos, uma vez que o Padrinho Arquimino fez uma
notação dos terreiros que ela tinha filiado – e os terreiros que ela tinha
filiado era filhos dela aí dava 1002 terreiros entre aqui, Fortaleza. e fora,
porque ela tinha filho no Iguatu, no Crato, tinha em todo canto, ela tinha
filho. (...) (MÃE STELA, maio de 2005).
Um dos propósitos de Mãe Júlia foi trabalhar para o bem, canalizar as vibrações
espirituais para ajudar as pessoas, ensinar os médiuns a não fazer o mal ao próximo. Criticava
a proliferação de práticas irresponsáveis aqui no Ceará, como a Quimbanda, considerada por
alguns como o lado esquerdo da Umbanda, aqueles que trabalham para o mal, cujas
divindades são ”atrasadas” ou demoníacas, sincretizada com o diabo do inferno católico
(PRANDI, 1996).
Para Roger Bastide, a Umbanda aceitou concepções equivocadas quanto à
Quimbanda:
213
(...) e Quimbanda, identificada com a macumba, se torna uma forma de
Espiritismo às avessas, uma magia negra que trabalha com os selvagens
desencarnados, as almas penadas e os esqueletos. Sob a presidência das duas
mais temíveis divindades negras, exu, deus das encruzilhadas perdidas, e
Omolu, deus da varíola (BASTIDE, 1971, p.447).
O depoimento de uma das filhas-de-santo de Mãe Júlia dizia que ela evitava o trabalho
com a energia dessas entidades.
(...) eu comecei a trabalhar com ele, e no princípio, na época de Mãe Júlia,
ele era muito discriminado. Mãe Júlia não aceitava esse tipo de entidade e
trabalhando, se fosse uma coisa necessária. E ela fazia muita
discriminação, por exemplo, na casa dela, Exu baixava uma vez por ano.
Ela fazia uma festa para Exu. Porque ela dizia que não devia se envolver
muito com esse tipo de energia. Aí exatamente a coisa mudou muito a
respeito disso, hoje em dia Pilintra é uma entidade muito conhecida.
Acho que num tem um terreiro de Umbanda nem de Candomblé que o
Pilintra num baixe (MÂE CONSTÂNCIA, julho de 2008).
A Umbanda praticada por Mãe Júlia conservou da religião afro-brasileira alguns traços
do sistema de correspondência mística entre as cores, os dias, as forças da natureza dos orixás
e entidades (dimensão mágica), e nela continha a força das mulheres como responsáveis pela
reprodução da religião. Contudo, seu propósito central foi reorientar, a partir de 1954, a antiga
Macumba para a Umbanda, sendo possível a mutação, realçando a contribuição do
Espiritismo kardercista, mediante fundação da Federação Cearense de Umbanda.
Com o passar do tempo, Mãe Júlia comprou um terreno no bairro Benfica para ter
mais espaço para realização dos trabalhos e das festas. Tinha a pretensão de construir um
grande prédio; no entanto, as condições financeiras não eram favoráveis.
4.2.2 Construção do terreiro de Ogum: Ogunhê
Mãe Júlia era filha de Ogum. Ogum, na mitologia africana iorubá, é um orixá cujo
arquétipo é o do guerreiro. Seu nome significa guerra”. Como divindade masculina, foi o
descobridor da fundição e inventor de todas as ferramentas (faca, lança, ancinho, foice,
tesoura, martelo, enchô, machado, cunha, espada) possibilitadoras de abertura de caminhos e
de desenvolvimento das atividades humanas. Isso o fez ser patrono da tecnologia e da própria
cultura. Tem o poder de abrir e fechar os caminhos, nunca se cansa de lutar, tem gênio
214
violento, é um orixá que não perdoa. Seu prazer não está no poder de governar, e sim nas
aventuras como guerreiro e conquistador de terras e matas.
Prandi, no livro Herdeiras do Axé: Sociologia das religiões afro-brasileiras, coloca as
características desse orixá:
Ogum Deus da guerra, do ferro, da metalurgia e da tecnologia.
Sincretizado com Santo Antônio e São Jorge. É o orixá que tem o poder de
abrir os caminhos, facilitando viagens e progressos na vida. Os estereótipos
mostram os filhos de Ogum como teimosos, apaixonados e com certa frieza
racional. Eles são muito trabalhadores, especialmente moldados para o
trabalho manual e para as atividades técnicas. Embora eles usualmente
façam qualquer coisa por um amigo, os filhos e filhas de Ogum não sabem
amar sem machucar: despedaçam corações. Acredita-se que sejam muito
bem dotados sexualmente, tanto quanto os filhos de Exu, irmão de Ogum.
Embora eles possam ter muitos interesses, os filhos de Ogum preferem
coisas práticas, detestando qualquer trabalho intelectual. Eles dão bons
guerreiros, policiais, soldados, mecânicos, técnicos. Saudação: Ogunhê!
(PRANDI, 1996, p.24).
Orixá dedicado aos irmãos, tinha afeição especial pelos irmãos Exu e Oxossi,
defendendo-os várias vezes dos inimigos. É filho de Iemanjá com Odudua. Na infância era
destemido, impetuoso, arrojado e viril, tendo se tornado um brilhante guerreiro e conquistado,
para seu pai, muitos reinos. Assim, não haveria caminhos não percorridos por ele:
Ogum é um solteirão de caráter intratável, que controla as desgraças, a
guerra, o ferro e o mal; a sua cor é o azul profundo. Na “vida africana” é um
ferreiro de casta principesca. Os Exus são seus criados e ele é invocado
juntamente com os Exus para fazer o mal. È identificado com o soldado
Santo Antônio (LANDES, 1967, p.304).
Quanto às características dos filhos de Ogum, podemos afirmar que são pessoas
curiosas e resistentes, com grande capacidade de concentração no objetivo a ser conquistado,
corajosas, simples, mas não desprovidas de contradições. Associam-se à camaradagem e à
amizade tipicamente masculina, relaxada, cuja relação emocional é sincera e leal. São pessoas
diretas em seus discursos, definem os assuntos em rápidas palavras, falam diretamente a
verdade sem a preocupação de agradar seus interlocutores. É considerado um orixá impiedoso
e cruel, temível guerreiro que brigava sem cessar contra os reinos vizinhos. Essa imagem
confronta com outra, de ele também saber ser dócil e amável.
Era (Mãe Júlia) filha de Ogum, uma pessoa que batalhou muito, ela guerreou
muito. Ela provou que era filha de Ogum, que ela era muito batalhadora, ela
215
era aquela pessoa de você ouvir ela dizer: “Eu vou fazer”, e ela fazia. Se ela
disser: “Eu não faço”, não tinha como ela fazer, porque ela tinha dito que
não fazia. Ela era uma pessoa muito decidida nas coisas dela (MÃE STELA,
maio de 2005).
No que se refere ao culto a Ogum, as oferendas e festas costumam ser realizadas nas
terças-feiras, dia a ele consagrado. Todas as danças dos filhos de Ogum possuídos pelo orixá
guardam traços de guerra e luta. A cor é o azul escuro, o elemento é o ferro, seus domínios
são os caminhos e a guerra, as comidas são inhame assado e feijão. No Brasil, o galo é o
animal para sacrifício.
Quando nos referimos à Umbanda, podemos dizer que essa religião comporta
elementos de sincretismo. Ogum foi uma das primeiras figuras do Candomblé incorporadas
por outros cultos, notadamente pela Umbanda, em que é muito popular. É sincretizado com
São Jorge ou com Santo Antônio, tradicionais guerreiros dos mitos católicos, também
tradicionais lutadores, festejados durante o mês de junho.
Mãe Stela entrevê essas características em Mãe Júlia: como filha de Ogum, buscou a
legalização e a formalização da Umbanda no Ceará. Mediante sua insistência e resistência
tentou fazer com que a religião fosse reconhecida e respeitada por todos e, principalmente,
lutou para livrar-se da perseguição da Polícia.
Ele (chefe da Polícia) chegava, quebrava a estátua, botava as pessoas pra
correr. Quando era no outro dia, ela fazia o altar de novo e botava as estátuas
novamente. Quando ele aparecia, fazia a mesma coisa. A última vez que
ele quebrou as estátuas dela, ela tava fazendo a cura de uma muda, e Ogum
tinha dito que ela não era muda. Quando ele pegou a estátua aqui, segurou
pra quebrar aliás, eu tenho até essa estátua, hoje ela é minha estátua a
menina gritou: “Num faça isso!”. ele botou a estatua lá, ficou... Ele ficou
na perseguição, e ela sempre dizendo: “Um dia eu vou trabalhar no meio da
rua sem ser perseguida por você nem pelos seus soldados”. ele disse:
“Duvido”. Ela disse: se num existir Deus no céu e Ogum na terra,
porque se existir eu vou fazer”. Ele disse: “Você num faz nunca”. “Faço”.
Ela fez, no dia quando ela foi e fez uma obrigação, terminou de fazer, ela
conversou lá com o chefe de polícia, e o chefe de polícia deu liberdade a ela.
Disse que ela tinha de dar liberdade para os outros, aqueles que quisessem
botar um terreiro, pra ela dar o registro pra pessoa trabalhar sem ser
perturbado pela Polícia. Quando passou no Diário Oficial, foi uma confusão
que ele fez. Ele passou no carro, chamando ela de víbora (MÃE STELA,
maio de 2005).
O contexto sócio-histórico em que Mãe Júlia busca realizar seu desenvolvimento
mediúnico é o de pós-1945, com o fim da ditadura de Getúlio Vargas, momento em que a
216
Umbanda toma impulso e se desenvolve com as características de um movimento religioso
nacional. Os terreiros se multiplicam em todo o País. Federações são criadas para dar proteção
legal contra a perseguição policial aos terreiros afiliados, para codificar a doutrina e o
conjunto dos ritos. Os meios massivos entram na divulgação: programas de rádio, os
primeiros jornais. Vale ainda ressaltar a publicação de milhares de livros com doutrinas,
pontos cantados, receitas de oferendas, vindo a se tornar uma “religião de livro”, uma religião
que conjuga três linguagens: a oral, a do corpo (o transe), e a escrita gráfica (PORDEUS
JÚNIOR. O Povo, 16 nov. 2008).
Mãe Júlia vai ao Rio de janeiro, na década de 1950, depois de feita na Umbanda, com
o propósito inovador de consolidar a Umbanda como religião. A preocupação residia em lutar
pela abertura de novos caminhos para a Umbanda aqui, e mostrar aos seus perseguidores que
aquilo não se tratava de heresia ou charlatanismo, e sim de uma religião que respeita a todos e
deveria ter seu espaço consagrado ou oficializado, pondo fim às ações violentas da Polícia.
Abriu novos caminhos com a Federação Espírita Cearense de Umbanda: por meio dessa
instituição, passou a instituir/emitir registro de funcionamento e formalização da abertura dos
terreiros, de modo que, com essa institucionalidade, os praticantes da religião, em especial
seus filhos-de-santo, poderiam abrir seus terreiros e trabalhar “em paz”.
Com a codificação garantida, passariam os umbandistas a se identificar mais com o
Kadercismo e a se distanciar das práticas relacionadas às entidades “inferiores”, aos espíritos
que trabalhavam para o mal. A Umbanda absorveu do Kardecismo algo de seu apego às
virtudes da caridade e do altruísmo, fazendo-se assim mais ocidental que as demais religiões
do espectro afro-brasileiro; entretanto, nunca completou o processo de ocidentalização,
ficando a meio caminho entre ser religião ética, preocupada com a orientação moral da
conduta, e religião mágica, voltada para a estrita manipulação sobrenatural do mundo.
Nesse sentido, segundo depoimento de Mãe Stela, notamos que, como filha de Ogum,
Mãe Júlia não desiste da luta e tem objetividade em seus propósitos, determinação no que
quer alcançar. A preocupação dela foi buscar uma codificação na filiação dos terreiros à
Federação Espírita de Umbanda com um mínimo de ordem e de coerência. Assim, garantiria
certa unidade nos fundamentos e procedimentos da Umbanda, de modo a legitimá-la na
sociedade como uma religião também possível, capaz de responder às demandas que se lhe
chegassem por parte do indivíduo marcado por sofrimentos de toda ordem.
217
Mãe Júlia se dizia também a responsável pela criação da festa na Praia do Futuro no
dia 15 de agosto. Essa festa, segundo ela, desperta a curiosidade das pessoas que querem ver o
culto a Iemanjá, as oferendas.
Figura 3 Mãe Júlia, na festa de Iemanjá na praia do futuro, em Fortaleza (CE), cedida por
Mãe Stela, 2008.
Assim, ela criou mais uma possibilidade de reconhecimento da Umbanda por outras
religiões, por outros sacerdotes religiosos e pela população de modo geral. Relata a
dificuldade inicial de mobilizar seus filhos-de-santo para participar da festa. Nesse aspecto,
Mãe Stela conta:
ela, com muito sacrifício, ela iniciou aquela festa da Praia do Futuro
que hoje não tem mais festa, tem uma bagunça. Porque, de primeiro, era uma
coisa bonita, era uma coisa pra Iemanjá, para as Princesas, pro Príncipe;
hoje é pra Exu, é pra tudo. Porque na festa de Iemanjá era todo mundo de
azul e branco, hoje é preto, vermelho, amarelo, a cor que querem botar.
Amarelo até que aceita, porque Oxum é amarelo, né? Mas o preto, o
vermelho e o verde não têm nada a ver. Aí ela sempre dizia: “Cada linha tem
sua festa, é diferente da outra, cada caboclo tem o seu tempo, tem o tempo
de Oxossi, o tempo de Iemanjá, tem o tempo de Exu, tem o tempo do preto-
velho, do Exu, do Ogum, não precisa misturar”. Ela achava que era errado,
trabalhando com uma linha e lá vem, já vem com outra ali. (MÃE
STELA, maio de 2005)
218
Durante a pesquisa com as mães-de-santo, entrevi contrapontos quanto a quem teria
iniciado, no final dos anos 1960, a festa de Iemanjá na Praia do Futuro. A União Espírita
Cearense de Umbanda reclama como fundador da festa seu primeiro presidente, o senhor
Manoel Rodrigues de Oliveira. Já para Mãe Zimá, o responsável pela criação deste evento foi
o seu pai-de-santo:
Foi o finado Alberto. Mas, quando o finado Alberto, meu pai-de-santo,
era vivo, existia a festa de Iemanjá. Não foi a Mãe Júlia quem criou isso, eu
digo porque tenho meus sessenta e poucos anos e foi dentro da casa do
Alberto que eu vi a criação da festa de Iemanjá. Ela participava, como eu
participava, como essas pessoas, com o Deo Tranca-Rua, como a Lourdinha
Pomba-Gira, como outros milhares. (MÃE ZIMÁ, janeiro de 2009)
Mesmo com os diferentes pontos de vista, é legítimo afirmar que Mãe Júlia foi uma
liderança importante para o desenvolvimento da Umbanda no Ceará. No entanto, verificamos
alguns componentes que, sincreticamente, deveriam fazer parte do culto da Umbanda, mas
eram por ela recusados; alguns exemplos são os trabalhos com exus e estátuas deles ou de
índios, o toque de tambores e atabaques, o uso de bebidas alcoólicas, a utilização de velas de
outra cor que não a branca. Ela relacionava esses elementos à Quimbanda e àqueles que
trabalhavam para o mal, algo contrário aos valores da Umbanda, como o bem comum e a
evolução espiritual. Segundo ela, havia muitas diferenças entre esses cultos; a Umbanda seria
uma religião fina, próxima ao Catolicismo. Os trechos da entrevista realizada por Pordeus
Júnior ilustram bem esse contexto:
IP - Quer dizer que um médio não pode beber?
MJ Bebida de espécie alguma, nada, eu não admito. Chegou ontem aqui
um rapaz a mando não sei de quem, eu olhei pra ele e disse “Você bebeu,
não bebeu?” Ontem? (...) Eu não boto a mão na cabeça da pessoa que bebe
(...) (MÃE JÚLIA in PORDEUS JÚNIOR, 2002, p.110).
Ou ainda:
Meu filho, é o seguinte: estátua, né, eu digo, eu não gosto dentro do meu
terreiro, nem estátua também de Exu, porque tudo você sabe que nessas casa
tem e muitos que trabalham por têm, no altar deles eles botam, estátuas de
índios e de Exu, tudo isso eles botam, mas meus caboclos vêm, vem índio,
vem orixá (...) (MÃE JÚLIA in PORDEUS JÚNIOR, 2000a, p.111).
219
Na biografia de Mãe Júlia, sua personalidade e suas características sociais como mãe-
de-santo da Umbanda encontram-se imbricadas com o social mais amplo, o que possibilita
perceber o campo das relações sociais preponderante da e na sociedade na qual ela estava
inserida. No âmbito religioso, é preciso observar que sua tentativa de legitimar o Espiritismo
de Umbanda passa pelo fato de essa religião ter no Ceará, dentre tantas outras ramificações,
mais elementos para conseguir algum espaço de sobrevivência em meio à perseguição
policial. Além disso, o contexto de ser Mãe Júlia uma pessoa que intervinha junto à
comunidade pobre e destituída de bens e serviços públicos, principalmente a saúde.
Segundo relato de Francisco Alencar, hoje professor aposentado da Universidade
Federal do Ceará (UFC), Mãe Júlia pontuava em seu projeto religioso a necessidade de
“libertar” a Umbanda no Ceará. O professor destaca também o trabalho de cura desenvolvido
por ela, de grande importância para a comunidade próxima e até para os mais distantes de seu
terreiro, isso é, os clientes de participação ocasional para a solução imediata de problemas que
procuravam o terreiro localizado nas imediações do bairro Gentilândia, perto do antigo Clube
Maguari em Fortaleza. Como figura central do pensamento religioso da Umbanda, ela
mantinha o trabalho de orientar e ajudar as pessoas a solucionar os seus problemas e
dificuldades.
O professor Alencar teve oportunidade de conhecer Mãe Júlia Condante nos anos
1960, quando, ao ministrar disciplinas junto aos estudantes do curso de Medicina e de
Ciências Sociais, considerou oportuno levá-los ao terreiro para que eles se deparassem com as
formas alternativas de cuidado com a saúde. O trabalho se dava com a substituição
psicológica do objeto clínico pelos objetos dela dentro do panteão religioso e cultural afro-
brasileiro. A religião era concebida como instância terapêutica. Aquelas práticas de terapia
guardam estreita associação com as práticas alternativas de saúde popular. Mãe Júlia obtinha
resultados como a clínica farmacológica científica, posto que muitas doenças incidentes nas
populações que lhe procuravam eram relacionadas ao universo psíquico, à saúde mental
individual e coletiva.
Muitas vezes, as informações dadas pelo paciente/cliente era a mesma que
dava para o médico e para ela como mãe-de-santo. Ela introduzia o
procedimento dela; vale dizer que não tinha o SUS (Sistema Único de
Saúde), mas ela tinha a capacidade de criar o SUS particular dela, atendia a
todos gratuitamente, ela dava atenção aos clientes e adeptos e não cobrava
nada. Ela dizia: “Você não deve nada, você ofereça o que quiser”, até onde
conheci não havia pagamento, a não ser com ovos, galinhas e outros objetos
como agradecimento (ALENCAR, Francisco, dezembro de 2008).
220
O trabalho de cura nos terreiros de Umbanda encontra sentido na preocupação que o
ser humano tem com o corpo, com o bem-estar físico, mental e social. A saúde é buscada e
promovida por meio de novas atitudes, práticas e procedimentos terapêuticos, embasados
tanto por ideologias religiosas quanto pelas científicas. Junto à ideologia dominante de
cuidado com a saúde através de procedimentos hegemônicos, coexistem outras concepções e
sistemas, como a do campo religioso afro-brasileiro (TEIXEIRA, 1989).
Ela ouvia as queixas de quem a procurava, o mesmo que se dizia para o
médico e ele não entendia. O remédio costumeiramente era caro, eles não
tinham dinheiro para comprar. Vinham a ela pedir ajuda, ela ouvia e dava o
diagnóstico a partir do método dela, de uma forma não evasiva, mas sim
concreta, dentro da lógica causa/efeito. Ela dizia: “O mal está vivo dentro de
você”. E indicava a solução, pois estava pronta para intervir, e dizia: “Faça
isso, faça aquilo”. O médico tinha o bisturi que vai cortar e ela vai curar.
(ALENCAR, F., dezembro de 2008).
Toda ação terapêutica requer o estabelecimento de uma relação entre o doente e o
“terapeuta”, aquele que escuta as queixas, o diagnóstico e aponta a solução do problema
para o restabelecimento da saúde da pessoa, objetivando uma correspondência entre causa e
efeito. Diante de a relação médico/paciente ser muitas vezes de impessoalidade e
distanciamento, a relação com o pai ou mãe-de-santo é de proximidade, em que a pessoa é
percebida como totalidade, em seus múltiplos aspectos, exigindo ações que levem em conta
essa multiplicidade.
Lina Teixeira, em sua tese de Doutorado, explicita a relação entre corpo, saúde e axé
no Candomblé, contribuindo para que compreendamos esse trabalho de cura realizado nos
terreiros de Umbanda, em particular o de Mãe Júlia:
O relacionamento estabelecido pode estar traduzido em forma de
medicamentos, ou representado sob a forma de rituais religiosos, ou ainda,
pela junção de medicamentos e de ritos. Em contraposição ao modelo
terapêutico da biomedicina, que representa a doença como uma entidade
específica que penetra no corpo do paciente, e cujo objetivo é a destruição
do agente patogênico sem destruir o doente (se possível), encontra uma serie
de procedimentos que englobam, além de saberes empíricos, sistemas de
crenças religiosas (TEIXEIRA, 1998, p.49-50).
221
O aspecto gico-religioso das práticas curativas exercidas por Mãe Júlia encontra
poder de cura na crença e fé das pessoas. As doenças teriam causas situadas no plano
sobrenatural e, para tratá-la, as pessoas recorriam a ela:
Como mãe-de-santo, ela mantinha uma relação com a comunidade muito
grande, mais humana e possível de ser entendida. O divino era a barreira, era
o limite, não separava, mas aproximava, ela tinha sensibilidades. Ela
descobriu o valor que tinha de legitimá-lo, ela sempre pensou na sua
legitimação para atender o povo, isso há trinta e cinco anos. (ALENCAR, F.,
dezembro de 2008).
Por meio das práticas curativas, muitas pessoas buscavam melhoria na saúde
psicossocial ou física. Àquela época, geralmente as pessoas não possuíam acesso à saúde
pública ou não haviam encontrado respostas de cura para seus males na medicina tradicional.
O professor Alencar, ao levar seus alunos para analisar as práticas e os métodos de cura da
religião umbandista, deparou-se com os mitos e as práticas populares, além da representação
que isso tinha para a população local, para a comunidade que freqüentava o terreiro.
Mediante essas práticas curativas, a mãe-de-santo aproxima-se da comunidade do
terreiro e da sociedade abrangente como consoladora do sofrimento daqueles que a
procuravam. Ela consultava sem cobrar, recomendava os remédios e os trabalhos mágico-
religioso, como o preparado de ervas, limpeza, sacudimento, dentre outros.
O professor Alencar diz que, ao se sentir atingido pela perseguição política nos anos
da Ditadura Militar, foi se despedir de Mãe Júlia e aceitou sua proteção. Esse era um
momento de fragilidade, de perturbação do seu cotidiano, pois exigia sua saída do País; ele
buscou, então, a dimensão extra-cotidiana, a religiosa:
Devido aos acontecimentos políticos de 1968, fui despedir-me dela. Eu
nunca esqueci a figura dela ao receber a notícia. Ela disse: “Se deve sair,
pois então saia. Eu acho que você necessita estar protegido, porque as forças
do mal estão em toda parte. Você aceita que eu lhe proteja? Eu fecho teu
corpo contra a força do mal, e que os metais o te façam mal”. E ela fez.
“Eu vou te dar quem te proteja, vai, acompanhado por Oxossi. Oxossi te
protege, é o deus da selva, das florestas, guerreiro, e com ele você vai para a
briga”. (ALENCAR, F., dezembro de 2008).
Com aquele cenário político, o desencanto e a descrença nas instituições públicas
dominavam o momento de instabilidade. Alencar carecia reencontrar sentido, o que lhe
impulsionou a ir ao terreiro buscar algo que pudesse transcender o caos do cotidiano.
222
Seguindo essa compreensão, durante a entrevista com Mãe Stela verifiquei a
configuração atual do terreiro. Até abril de 2008, o local sofreu modificações, tendo sido
feitas, portanto, algumas alterações no espaço físico. No fundo do terreno duas casas: uma
alugada e outra ocupada por Mãe Stela e seus familiares. Na parte da frente está o barracão e
mais dois compartimentos reservados para as camarinhas onde os filhos dão suas obrigações.
também a casa de Exu, e próxima a ela encontra-se a cruz vermelha do Pilintra ela
deveria ser branca, mas foi mudada para vermelha por exigência dele próprio, que queria a cor
igual à do bico do seu sapato.
Dentro do barracão, um altar composto de diversas estátuas de santo católicos, orixás,
índios e outras entidades, demonstrando todo o sincretismo presente na Umbanda, a fusão do
Catolicismo com o Candomblé, a Pajelança e o Espiritismo. Encontramos no altar Oxalá
(representando o pai de todos os orixás), São Jorge, General Brigadeiro, Nanã Buruque
(representando o primeiro orixá do mundo, um orixá feminino ligado à maternidade), São
Sebastião (Rei da Mata), Caboclo Sete Flechas (Rei dos Índios), Obaluaiê (orixá responsável
pela cura de doenças), Mãe Chiquinha e Pai José (pretos-velhos da casa), Iansã, Cipriano,
Nossa Senhora Desatadora dos Nós, Nossa Senhora das Cabeças, Jurema (Rainha da Mata),
Constantino (que trabalha como boiadeiro na mata), Príncipe Danilo, Cosme e Damião e São
Miguel. E, no outro lado do altar, havia a fotografia de Mãe Júlia (como elemento sagrado)
numa festa na Praia do Futuro, com uma mão branca e outra escura, sinalizando, segundo
informação de Mãe Stela, que a morte dela aconteceria logo, um anúncio de que no ano
seguinte não estaria mais entre seus filhos.
Ainda dentro do barracão estão Xangô, Nego Gerso e Nego Simbamba (os exus da
casa), alguns atabaques. No espaço do terreno existem muitas plantas que servem de material
para trabalhos como banhos de ervas para descarrego, para amor, para atrair dinheiro, saúde e
prosperidade.
Reconstruir a história de Mãe Júlia é decifrar um pouco a história dessa religião na
nossa sociedade. É analisar e compreender o Ceará na especificidade de um Estado de forte
influência católica, de toda uma construção social da invisibilidade do povo negro e não
poderia ser diferente no campo religioso. Porém, as práticas da Umbanda são as da religião do
vivido, e não é possível ocultar a diversidade étnico-cultural presente nas religiões
mediúnicas, de possessão.
223
4.3 Morte de Mãe Júlia e passagem da função sacerdotal para Mãe Stela
Quando Mãe Stela foi entrevistada, ela se prontificou a recordar o tempo passado de
Mãe Júlia e o seu, das festas, de quando veio morar dentro do terreiro no Benfica, do
significado da maternidade simbólica, das práticas religiosas da Umbanda durante aqueles
anos, bem como teria a possibilidade de fazer comparações com o tempo presente. A
entrevista significou a possibilidade de reconstruir um conjunto de lembranças de modo a
reconhecer as impressões sobre sua mãe-de-santo, voltando ao passado, recolhendo da
memória o que quisesse lembrar. Permanecia em seu espírito traços dos acontecimentos que
iria narrar, vivos nos sentimentos e emoções expressas.
Ao falar de Mãe Júlia como sua mãe-de-santo, ela expressa muita emoção:
Como minha mãe ela foi tudo, ela foi meu pai, foi minha mãe, tudo. Ela era
uma pessoa com força de vontade e de amar. Um dia desses, eu tava
dizendo: “Se eu tivesse minha mãe, eu era outra pessoa, não era essa”.
Agradei algumas pessoas, mas não agradei a todos porque eu sinto saudades,
faz um bocado de ano (...). Era aquela atenção que, quando eu mais
precisava, ela me dava uma mão. Cansei de sair daqui cheia, assim, arrasada,
quando eu chegava ela dizia: “O que foi?”, ela dizia. “Nada não. Eu vim
aqui ...” Ela dizia: “Senta aqui (...)”. Eu sentava aqui, perto da perna dela,
passava a mão na minha cabeça, ia acedia uma vela pra mim, e eu saía de
outra pessoa. E nós éramos muito assim: eu tinha muito a ver com ela e
ela tinha muito a ver comigo. tinha muitas pessoas que diziam assim:
“Não sei o quê, a Mãe Júlia quer bem a Stela, eu não sei o porquê...” Eu
digo: “Por coisa nenhuma, é porque eu respeito ela como mãe, eu não tenho
ela só como mãe-de-santo, eu tenho ela como mãe verdadeira”. E respeito
muito, eu nunca menti pra ela, eu menti pra ela duas vezes. E dessas duas
vezes ela brigou comigo tanto que eu chorei... Chorei, eu disse (risos):
“Nunca mais eu vou mentir pra ela”. (MÃE STELA, maio de 2005).
Com a morte de Mãe Júlia em 1984, Mãe Stela passou a ser a mãe-de-santo do terreiro
e responsável pela Federação Espírita Cearense de Umbanda. Ela já morava naquele espaço
desde 1978: houve então a mudança total do terreiro que funcionava na rua Senador Pompeu
para esse antigo terreno. Segundo ela, essa passagem se deu de modo tranqüilo, e ela foi a
escolhida por Mãe Júlia pelo grau de relacionamento que mantinham como mãe e filha-de-
santo, pelo respeito e afeto muito fortes que as unia.
Ela me convidou: “Você vai morar na Federação, é a casa de Ogum, e
você é quem vai tomar de conta. Porque eu chego é tudo num sei o
quê”. Porque morava uma pessoa aqui, mas num cuidava em nada, não.
Era mato e um caminzim ali, aqui era um quartinho que tinha, e ela
morava lá. Ela não cuidava nada, “vai pra lá porque está abandonado e a
224
casa de Ogum é tua casa”. Eu vim. Quando foi um dia, Ogum me chamou
ali: “Olhe, tome conta de minha casa, que essa casa também te pertence,
também é sua, quando sua mãe partir é você quem vai ficar aqui, é você
que aqui, é você que vai tomar de conta, é quem vai levar o resto pra
frente até um dia que Deus quiser que você vá, no dia que Deus resolver
você também passa pra outra pessoa”. Eu disse: “Tudo bem”. Aí ela ficou
lá, ela só vinha pra cá dia de festa. (MÃE STELA, maio de 2005)
Assim, Mãe Stela passou a tomar conta do terreiro de Ogum até o dia em que veio a
ser a mãe-de-santo do local, quando se tornou a herdeira do axé. Vale ressaltar as lembranças
quanto à fase da doença de Mãe Júlia e a forma como ela entregou a Stela toda a
responsabilidade do terreiro:
Num dia, ela disse: “Minha filha, eu vou ao médico”. Aí: “Eu vou pra ir com
a senhora”. Ela foi, a gente foi com ela pro médico e disse que ela tava muito
gripada, e que ela tava num sei o quê. Passou remédio pra ela e nada
resolveu. ela se internou lá no Hospital Batista. Essa doença começou no
dia 4 de dezembro, ela morreu no dia 4 de janeiro, foi um mês que ela
passou. Agora, eu não sei que doença foi. Do que ela morreu, de que doença
ela morreu. Nos últimos dias, ela dizia: “Tome conta da casa de Ogum,
porque se eu num ficar mais aqui, eu vou segura e vou satisfeita porque vai
fazer as coisas do jeito que eu quero, da maneira que eu quero”. ela
morreu e aqui eu tô. (MÃE STELA, maio de 2005)
Quando Mãe Stela foi inquirida quanto à herança do cargo de mãe-de-santo do
terreiro, se havia ocorrido alguma divergência ou se inicialmente outra pessoa teria ocupado o
cargo, ela assinalou:
Não teve, não. Porque essa passagem dela, ela tava no hospital e passou três
dias sem falar, e lá disse assim: “Stela, vá lá em casa e diga a Julinha que lhe
dê, que você vai fazer um ponto pro seu caboclo e pro meu”. Mas eu num
tava entendendo, eu não sabia, eu fui pela cabeça dela. Quando chegou, eu
acendi pro Ogum, pro meu Ogum e pro dela, acendi pra minha criança e pra
dela. Quando cheguei, ela disse: “Você fez?”. Eu disse que fiz, ela disse: “Eu
não tenho mais Ogum; hoje, meu Ogum, os meus cabocos lhe pertencem
porque eu não tenho mais nada a ver com ele, desde já eles são entregues a
você e meus cabocos pertencem a você, desde eles pertencem a você,
tome conta e preste conta. Assim como você presta dos seus”. Eu disse: “Ah,
mas a senhora não devia ter feito isto, não. A senhora devia ter me falado”.
“Se tivesse falado você não teria aceitado, então agora feito, feito,
tem que aceitar”. Tive que aceitar. E tanto que, no dia do Ogum, canto pro
meu e depois canto pro dela. Canto primeiro pro dela, porque o dono disso
aqui é o dela. Não é o meu, é o dela. (MÃE STELA, maio de 2005)
225
Dessa forma, e Stela assumiu o sacerdócio e a liderança do terreiro de Ogum,
guardando algumas características do tempo de Mãe Júlia e alterando outras ao compreender
que, em determinado momento, isso se fazia necessário.
No que se refere à transmissão do cargo de mãe-de-santo na Umbanda, há uma
tendência de que recebam a liderança os filhos e filhas-de-santo que guardam uma boa relação
com a mãe ou pai-de-santo. Em particular, Mãe Stela, segundo afirmam outras filhas-de-santo
de e Júlia, mantinha com a mãe espiritual uma relação de muita amizade, respeito e
confiança.
E com a Mãe Júlia não teve isso. Ela num tinha essa amizade muito
aconchegante comigo não, ela teve com a Stela e com outros mais que
morava na casa dela. Eu não, eu ia naqueles dias de trabalho, de festa,
aquela coisa toda. Mas ela era uma pessoa muito sábia, a Mãe Júlia, e
também era analfabeta. Acho que por ser do Ogum era batalhadora. (MÃE
CONSTÂNCIA, julho de 2008)
Para substituir a mãe-de-santo, o filho precisa ter conhecimento e disposição para
aprender os fundamentos, experiência em fazer o desenvolvimento mediúnico dos iniciados,
domínio dos preceitos e a respeitabilidade dentro da comunidade religiosa. Na Umbanda,
diferentemente do Candomblé, não são utilizados ou exigidos critérios como referência
obrigatória à ordem hierárquica e etária na religião. A sucessão costuma ser entregue àquele
mais próximo ao sacerdote ou sacerdotisa do terreiro. Porém, vários fatores podem ser
decisivos na transmissão do axé, na aclamação de um filho ou filha como novo líder do
terreiro. São considerados, por exemplo, a relação de proximidade, a competência religiosa, o
pertencimento à família biológica, a indicação por aspectos místicos por decisão dos orixás
e entidades espirituais –, o bom relacionamento com os membros do terreiro e a moradia nas
instalações do terreiro.
Mãe Stela mantinha uma relação de confiança com Mãe Júlia e morava no terreno do
bairro Benfica, onde funcionava o terreiro de Ogum, tendo acompanhado de perto e vivido os
momentos difíceis de perseguição policial enfrentados combativamente por Mãe Júlia.
Passados mais de 20 anos da morte de Mãe Júlia, no hoje Terreiro de Ogum não se faz
mais menção à Federação Cearense de Umbanda. Não foi dada continuidade à organização e
constituição burocrática da instituição. Os fundamentos e a codificação do terreiro de
Umbanda como religião do vivido e da oralidade estão sob responsabilidade de Mãe Stela. Ela
ressalta que muitos filhos de Mãe Júlia morreram, outros estão adoentados pela idade (são
226
idosos), e por isso não freqüentam mais o terreiro em dias de festas ou no dias reservados às
giras (terças-feiras).
Mãe Stela, ao se referir aos trabalhos, eventos e giras da casa, relaciona todas as festas
hoje comemoradas no terreiro: em 20 de janeiro a festa de Oxossi; em fevereiro não há
festa; em março, apenas canta para Xangô; em 23 de abril é feita a festa de Ogum, o santo da
casa; em 13 de maio existe a festa dos pretos-velhos (Mãe Chiquinha e Pai José comandam as
giras de pretos-velhos); em 13 de junho, tem-se a festa de Exu (Maria Padilha); no mês de
julho, apenas canta para Nanã; 15 de agosto é dia da festa de Iemanjá, comemorada na Praia
do Icaraí, no município de Caucaia, Ceará; 27 de setembro destina-se à festa de Cosme e
Damião; no mês de outubro não há festas no terreiro; em novembro, apenas canta para
Obaluaiê, e em dezembro canta para Oxalá.
Após trinta anos morando no terreiro de Ogum, no bairro Benfica, Mãe Stela decidiu,
em abril de 2008, vender o terreno e mudar-se para um local mais afastado do Centro de
Fortaleza. Ela foi para o bairro Presidente Vargas também por questões de desentendimento
entre sua família:
Foi assim, uns atritos com minha nora. (...) Eu disse: “Eu ainda saio dessa
vida, eu ainda saio daqui”. vendi por pouca coisa. Pedi permissão a Ogum,
ele permitiu. Eu procurei sete cabeças pra pedir pra ver se um dava fora, mas
ninguém deu fora, pode fazer. Porque eu só mudei o canto, eles são os
mesmos. Eu o desprezei nenhum, trouxe todos, ele permitiu, eu me sinto
bem aqui, eu gosto muito (...). Ali é Centro, mas o importante é minha saúde.
Tinha dia que eu ficava tremendo, eu sentia minha carne tremer por dentro. Aí
eu digo: o mais importante é minha saúde. Se Ogum permitir, eu vou sair
daqui. (MÃE STELA, julho de 2008)
Considero que, depois dos anos 1980, a Umbanda assistiu a uma nova fase de
consolidação, institucionalização e visibilidade dos umbandistas e de suas práticas. um
maior número de fontes de informação, graças também a publicações de livros produzidos
pelos próprios religiosos. Hoje, verifico que uma aproximação maior com o poder público
e mais visibilidade na Mídia. Contudo, a religião ainda se depara com o surgimento de novos
opositores, como os evangélicos pentecostais e neopentecostais.
227
CONSIDERAÇÕES FINAIS
228
Fiz a opção de estudar, no Doutorado, o papel sociocultural da mãe-de-santo na cidade
de Fortaleza e Região Metropolitana. Isso foi para mim instigante, por vários motivos:
representou a possibilidade de aprofundamento no tema da maternidade na constituição da
subjetividade da mulher-mãe e sua construção inscrita na cultura e na religião; oportunizou
compreender as dimensões simbólicas de que a mulher mãe-de-santo se apropria na sociedade
atual para exercer o sacerdócio; favoreceu uma análise fecunda da questão sociocultural e
simbólica da maternidade pela via da religiosidade afro-brasileira. Interpretei o poder
religioso na vida do povo-de-santo e a forma como a cultura se faz locus de sociabilidade e de
preservação da identidade dos sujeitos.
Posso afirmar que, nas tradições religiosas afro-brasileiras, em particular na Umbanda,
as mães-de-santo são guardiãs de uma tradição que se renova na dinâmica contemporânea.
Elas tentam manter vivas as heranças culturais e religiosas como parte da função de seus
sacerdócios, e o fazem tendo em vista a conservação da memória social. Por meio da
autoconfiança e do prestígio espirituais, as mães-de-santo, de uma forma ou de outra,
contribuíram para que a cultura e a religião afro-brasileiras saíssem do confinamento e
ocupassem espaços públicos na nossa sociedade, ganhando o reconhecimento de suas práticas.
Surgiu entre as elites o forte desejo de criar uma ideologia para disciplinar homens e
mulheres sobre o ser mãe, com o objetivo de submeter às mulheres a função materna. Elas
teriam, então, de gerar e criar os filhos para a edificação do Brasil como nação. Tratava-se de
uma mulher idealizada, a boa e santa mãezinha, predestinada a ser mãe por contar com o
sentimento materno, que seria inato. Muitas dessas idéias permanecem influenciando a
maneira de agir de mulheres até hoje, inclusive dentro das religiões afro-brasileiras.
Ficaram registrados na memória da sociedade abrangente os preconceitos e as
representações do imaginário e da cultura, conceitos genéricos que oprimem as mulheres e
que são revelados no poder excessivo dos maridos sobre suas esposas, um estado de
dependência e tutela a que se reduzia a vida das mulheres casadas. Essas mulheres, no
entanto, não ficaram relegadas à determinação, ao silêncio e ao esquecimento: resistiram de
diferentes maneiras aos modos de pensar legitimados pelo discurso oficial médico, jurídico,
dentre outros.
Neste estudo sobre a maternidade simbólica das mães-de-santo, foi relevante o
pensamento castoriadiano sobre o imaginário social e sobre nosso presente. Tratei
especificamente do imaginário nas religiões de base africana e tentei interpretar, através dos
229
depoimentos das mães-de-santo, como elas vivem e sobrevivem no seu sacerdócio, nessa
maternidade simbólica que pode se entrecruzar com a maternidade biológica.
No campo religioso, o feminino e a maternidade para as sacerdotisas se constituem a
partir das referências dos orixás e entidades espirituais que lhes guiam. Por meio desse
simbolismo, constroem novos espaços de luta contra a opressão feminina e contra o
disciplinamento de sua sexualidade, transgridem os poderes e os discursos oficiais que
circunscrevem os domínios da mulher ao campo doméstico.
As mães-de-santo se constroem como agentes histórico-sociais expressando múltiplas
subjetividades, diversas e complexas identidades em meio às contradições. Isso exige
compreender e interpretar as circunstâncias em que vivenciam as diferentes experiências
sociais, sexuais, culturais e o modo com que constituem a si mesmas por meio de uma
multiplicidade de diferenças, na heterogeneidade discursiva e material.
As mães-de-santo se metamorfoseiam de acordo com a situação histórica por elas
vivenciada. Desse modo, elas não apenas reproduzem as subjetividades maquínicas
(GUATARRI; ROLNIK, 1996), mas vivem um processo de subjetivação, buscando formas
singulares de viver como mães-de-santo na sociedade brasileira marcada por ambigüidades e
contradições. Assim, no cotidiano da experiência vivida, as mães-de-santo escapam dos
micropoderes, assumindo diversas formas de resistência e forjando ativamente distintas e
singulares trajetórias de vida. Elas criam processos diferenciais e relativamente autônomos de
subjetivação.
As mulheres não estão inertes, mas sim no centro de transmissão de poder, exercendo
esse poder algumas seriam como mulheres travestidas de homem, que têm por dono da
cabeça orixás quentes como Ogum, Xangô, Oxossi e Omolu/Obaluaiê e Oiá/Iansã. Para
Teixeira (1994), as divindades quentes estão relacionadas ao princípio classificatório Gun
(agitação), que se opõe complementarmente ao Erro (calma). Elas encontram formas de
negociar os padrões normativos da sociedade abrangente mediante a reinvenção da
subjetividade, modelando suas identidades, reinventando-as diante das adversidades e dos
imprevistos da vida.
A sociedade brasileira, como plural, evidencia o caráter ambíguo das relações sociais.
Isso se fez presente no universo pesquisado das mães-de-santo, quando me deparei com suas
trajetórias individuais como adeptas e sacerdotisas das religiões afro-brasileiras. Ao assumir a
maternidade espiritual, elas apresentam características, valores, sentimentos e atitudes
230
antagônicos entre a boa e a má-mãe, vivências de conflitos. Porém, todas essas distinções se
tornam complementares quando relacionadas à multiplicidade do social. Nesse sentido, no
seio de uma sociedade heterogênea e plural tanto em termos ideológicos quanto
populacionais –, as identidades são situacionais, produtos e produtoras do arbitrário, maneiras
de fazer crer e fazer ver que delimitam fronteiras e demarcam o jogo de confronto social
(TEIXEIRA, 1994).
O pensamento de Castoriadis (1982) tem importância para minha pesquisa na medida
em que ali é feita uma crítica ao racionalismo instrumental, ao extermínio das culturas
diferentes pela sociedade moderna. Ele esclarece a crise de decomposição por que passa a
sociedade contemporânea, acreditando que nossa história é uma história de acúmulo e de
horrores contra as religiões não-cristãs.
Para Castoriadis, a sociedade contemporânea encontra-se numa profunda crise a
crise de sentido, tornando-se uma sociedade apática, de privação dos indivíduos, que se
fecham cada um em seu pequeno círculo pessoal; e isso seria visível também nessas religiões.
Os cultos, que antes tiveram uma dimensão mais coletiva de formação de comunidade, vêem-
se diante de uma tendência a se voltar à resolução dos problemas de ordem estritamente
individual, como a cura, a demanda por amor, emprego, saúde, perdendo o viés de
pertencimento e congregação coletiva.
É válido pensar que, dentre os adeptos da Umbanda, encontram-se também os grupos
excluídos da sociedade e marcados pela vulnerabilidade sócio-econômica, que precisam do
aparato institucional e das políticas públicas para garantia de sua sobrevivência. Devem ser
considerados os dilemas atuais entre mercantilização e caridade, polarizando a
comercialização e o altruísmo religioso, a ostentação e a humildade, todos presentes no
exercício da maternidade espiritual das mães-de-santo.
As mães-de-santo, como lideranças nos terreiros de uma religião que pratica a magia,
têm se deparado com argumentos depreciativos. Os ataques afirmam que os adeptos se
afastam cada vez mais da cidadania, são aéticos, ausentes de responsabilidade com a situação
social, econômica, política, de modo a procurar soluções mágicas para os problemas em
detrimento dos procedimentos racionais.
Os projetos religiosos das mães-de-santo não se orientam apenas pelas lógicas
individualistas modernas ou pelas práticas de resistência aos valores da modernidade. Outras
coerências têm guiado as práticas dessas mães-de-santo e, por meio delas, as mães buscam
231
garantir prestígio e poder dentro do terreiro. Ao seguir outras gicas de pensar a religião e a
maternidade espiritual, afastam-se e aproximam-se em fluxos incessantes dos discursos
aprisionadores da sociedade moderna quanto ao ser mãe. Elas convivem numa pluralidade de
modos de pensar e de agir no seu grupo, sobressaindo diferentes comportamentos
culturalmente orientados. Possuem uma visão de mundo mítica, e assim apresentam soluções
e explicações no universo mítico mas mostram soluções e explicações do mundo “real” ao
justificar suas condutas como mães-de-santo.
Essas mulheres têm se orientado no exercício da maternidade espiritual pelos valores
do mundo moderno e pelas explicações do universo mítico religioso. Assim, elas fazem uso,
em suas práticas cotidianas, desses dois simbolismos, por meio das reinvenções para ordenar
o mundo em que estão inseridas.
As fronteiras entre os dois universos simbólicos não estão fixadas, não são construídas
a partir de uma dicotomização entre o “mítico” e o “real”. As fronteiras se constroem de
maneira complexa: portanto, não faz sentido nem se configura como preocupação das mães-
de-santo a determinação de onde cada um começa e termina. Interessa esse campo de poder
no qual se negociam posições simbólicas e materiais, que se torna importante ocupar lugar
decisivo no norteamento de suas práticas.
A dimensão sociocultural na maternidade simbólica das mães-de-santo não pode ser
reduzida às suas formulações racionais, acreditando que elas só protegem e cuidam. Diria que
vão além: convivem com o incerto, o que provoca nelas o poder de criar e reinventar suas
práticas na vida cotidiana.
Penso que essas mulheres-mães, como humanas que são, têm dentro de si a bondade, a
proteção e o cuidado, mas também a maldade, a rivalidade, a demarcação de relações de
poder num contexto de ambigüidades e o uso desse poder conforme exija a situação. Na
realização do sacerdócio como mãe-de-santo, não são poucas as dificuldades a ser
enfrentadas.
A prática da pesquisa permitiu entrever as relações de poder que marcam o contexto
social em observação, a forma com que, a partir da inserção na comunidade religiosa e da
adoção da identidade religiosa de sacerdotisa, há a contribuição para o estabelecimento de
relações de poder, num misto com relações de cuidado e proteção, conferindo um novo
sentido à realidade circundante.
232
Creio que o estudo da maternidade pode ajudar na compreensão de como se
estruturaram os discursos, as mentalidades e as práticas do ser mulher e mãe na sociedade
brasileira, ao mesmo tempo em que permite perceber a articulação existente entre a
pluralidade de papéis e a heterogeneidade de subjetividades constituídas por tais mulheres. As
formas com que as mães-de-santo assumem o sacerdócio não podem ser interpretadas como
dadas, determinadas, mas como o resultado de um processo contínuo em constante
(re)construção.
233
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ZALCBERG, Malvine. A relação mãe e filho. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
245
ANEXO
246
ANEXO - LEI DO SILÊNCIO
LEI N.º 13.711, DE 20.12.05 (D.O. DE 21.12.05)
(Proj. Lei nº 22/05 – Dep. Ivo Gomes)
Estabelece medidas de combate à poluição sonora gerada
por estabelecimentos comerciais e por veículos no Estado
do Ceará e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO
CEARÁ.
Faço saber que a Assembléia Legislativa decretou e eu, Marcos César Cals de
Oliveira, Presidente, de acordo com o art. 65, §§ 3.° e 7.° da Constituição do Estado do
Ceará promulgo a seguinte Lei:
Art. Ficam expressamente proibidos, no Estado do Ceará, independente da
medição de nível sonoro, utilizar quaisquer sistemas e fontes de som:
I - os estabelecimentos comerciais, com a finalidade de fazer propaganda
publicitária e/ou divulgação de produtos ou serviços;
II - os carros de som, volantes ou assemelhados em vias públicas;
III - os veículos particulares, em vias públicas, com volume que se faça audível
fora do recinto destes veículos.
Parágrafo único. Não estão sujeitos à proibição prevista neste artigo os sons
produzidos durante o período de propaganda eleitoral, determinados pela Justiça Eleitoral; os
sons produzidos por sirenes e assemelhados utilizados nas viaturas, quando em serviço de
policiamento ou socorro; os sons propagados em eventos religiosos, populares e integrantes
do calendário turístico e cultural do Estado do Ceará.
Art. Verificada a o observância desta Lei, ficam os infratores sujeitos a
multa de 100 (cem) UFIRCE´S cumulada com a apreensão da aparelhagem emissora da fonte
sonora.
Art. Cabe a qualquer pessoa do povo que considerar seu sossego perturbado
por sons ou ruídos não permitidos nesta Lei comunicar ao órgão competente a ocorrência,
para que sejam tomadas as providências necessárias.
Art. O Poder Executivo Estadual fica autorizado a estabelecer convênios e
parcerias com órgãos federais e municipais, para o fiel cumprimento do disposto nesta Lei.
Art. 5º O Poder Executivo Estadual regulamentará a presente Lei.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 7° Revogam-se as disposições em contrário.
PAÇO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ, em
Fortaleza, 20 de dezembro de 2005.
247
APÊNDICES
248
APÊNDICE A - ROTEIRO DA ENTREVISTA
Dados de identificação
Nome:
Naturalidade:
Estado civil:
Profissão:
Endereço:
Nome do terreiro:
Número de filhos biológicos:
Temáticas
1- Religiões afro-brasileiras no Ceará (em Fortaleza e Região Metropolitana)
2- Processo de iniciação na Umbanda e/ou no Candomblé
3- Arquétipos dos orixás e das entidades espirituais
4- Maternidade espiritual
5- Maternidade espiritual, maternidade biológica e imaginário social
6- Exercício do sacerdócio (desafios e perspectivas)
7- Festa de Iemanjá na Praia do Futuro e publicização da Umbanda no Ceará
Fale sobre o significado dessa religião para você:
Quando e como se deu sua iniciação na religião? E seu desenvolvimento espiritual?
Fale um pouco de sua mãe ou pai-de-santo responsável pela sua feitura no santo.
Quais são os seus guias espirituais (orixás, entidades espirituais)? Poderia falar das
características de cada um?
O que significa ser mãe-de-santo?
Há uma relação entre a maternidade biológica e a espiritual para você, como mãe-de-
santo?
Descreva as atividades cotidianas do terreiro.
Fale um pouco do que considera dificuldades enfrentadas na realização do seu
sacerdócio.
E os facilitadores?
O que significa fazer um filho-de-santo?
Fale sobre a Festa de Iemanjá na Praia do Futuro do dia 15 de agosto.
249
APÊNDICE B - FOTOS
Figura 4 Mãe Anita na festa em seu terreiro Oxóssi Caboclo Capitão das Matas, dezembro
de 2008. (Foto cedida por Mãe Anita)
Figura 5 - Mãe Mona de Oiá, na festa de Oxóssi incorporada com Iansã, janeiro de 2009.
(Foto cedida por Mãe Mona de Oiá)
250
Figura 6 Filho-de-santo incorporado, na festa no terreiro de Oxóssi Caboclo Capitão das
Matas, dezembro de 2008. (Foto cedida por Mãe Anita)
Figura 7 – Altar do Terreiro de Oxóssi Caboclo Capitão das Matas, julho de 2008.
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