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A história dos outros na
minha história: memórias e
relatos de pessoas que
fizeram do esporte um
espaço de aprendizagem e
oportunidades
Fernando Corrêa de Macedo
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Fernando Corrêa de Macedo
A história dos outros na minha
história: memórias e relatos de
pessoas que fizeram do esporte um
espaço de aprendizagem e
oportunidades
Dissertação apresentada como requi-
sito parcial para a obtenção dotítulo de
mestre ao Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Sgarbi
Rio de Janeiro
agosto de 2008
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PROPED
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Fernando Corrêa de Macedo
A história dos outros na minha história:memórias
e relatos de pessoas que fizeram do esporte um
espaço de aprendizagem e oportunidades
Dissertação apresentada como requisito
para a obtenção do título de mestre ao
Programa de Pós-graduação da Faculda-
de de Educação da Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro.
Aprovado em 21 de agosto de 2008.
Banca examinadora:
Prof. Dr. Paulo Sgarbi (orientador)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Aldo Voctorio Filho
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço
Unversidade Federal do Espírito Santo
Rio de Janeiro
agosto de 2008
DEDICATÓRIA
À minha esposa, Maria Fernanda, pelo amor e apoio em
todas as etapa da vida. Sem você nada disso seria possível.
Obrigado por transformar minha vida.
Aos meus pais, Dirce e Joaquim, pela vida, a dedicação para
criar os filhos e por respeitarem e apoiarem minhas decisões.
Às minha irmãs, Beth e Meg, pela solidariedade e carinho.
À minha avó, Maria Rosa, e ao meu cunhado,
Carlos Magno, pelo exemplo de vida
que me proporcionaram conhecer.
Ao meu filho, que esperou para nascer após essa dissertação,
pois seria difícil dedicar-me a ela ao invés de brincar com você.
AGRADECIMENTOS
A Paulo Sgarbi, meu orientador, pela alegria, sinceridade, competência,
ensinamentos e pelas boas conversas. Somos resultado da ajuda que
recebemos na hora certa. Obrigado pela ajuda.
Ao colaborador André Brown pela dedicação em nosso trabalho.
Obrigado pelas ilustrações e por me ensinar a desenhar.
À Nilda Alves pelo acolhimento.
Aos amigos da Oficina de Desenho, Alessandra Nogueira e Marcelo
Meirelles, pela contribuição generosa de seus tempos e conhecimentos
para ajudar-me.
Aos amigos dos grupos de pesquisas As redes de conhecimento em comunicação e
educação: questão de cidadania e Linguagens desenhadas e educação.
Aos professores e funcionários do ProPEd-UERJ.
RESUMO
Essa dissertação tem como objetos de estudo a educação física e o esporte,com
recortes no esporte escolar e no esporte como conteúdo das aulas de educação
física.Aborda discussões dos campos da educação física, da ciência da motricidade
humana e dos esportes, assim como da formação dos professores. Discute a relação
entre escola e esporte a partir de projetos esportivos voltados para crianças e adoles-
centes em clubes e dos relatos e narrativas de sujeitos que tiveram/têm suas histórias de
vida ligadas às escolas da rede pública do município e do estado do Rio de Janeiro.Adoto,
como postura teórico-epistemológico-metodolólica em destaque, o uso de linguagens
desenhadas como forma de trazer, para o corpo do texto, informações, sensações, im-
pressões que precisam de outra expressão midiática para uma melhor compreensão.
Palavras-chaves: educação física, esportes, história de vida, narrativas, relatos e
formação de professores.
RESUMÉ
Cette dissertation a l’éducation physique et le sport comme sujets d’étude,
notamment le sport scolaire et le sport comme contenu de leçons d’éducation physique.
Elle ponse des débats dans les champs de l’éducation physique, de la science de la
motricité humaine et du sport, ansi que de la formation des enseignants. Il y a une discussion
à propos de la relation entre l’école et le sport à partir de projets sportif tournés vers les
enfants et les adolescents dans des clubs et de histoires et récits de sujets qui on eu/out
leurs histoires de vie liées aux écoles publiques de la ville et de l’état de Rio de Janeiro.
Le choix théorique-epistemologique-méthodlgique principale retombe sur l’usage de
langages dessinées en tat que oyen de mettre dans le corps du texte des informatins des
sensations et des impressins qui sont meilleur exprimées et peuvent être mieux comprises
ainsi que par d’autres langages.
Mots-clés: éducation physique, sports, histire de vie, récits histries et formation
d’ensigants.
LISTA DE IMAGENS
Imagem 01: Paratletas na Olimpíada de Atena. 47
Imagem 02: Márcio Jerônimo, zagueiro do time do IBDD. 47
Imagem 03: Márcio Jerônimo assinando seu contrato de prática esportiva e promoção social
junto ao IBDD. 47
Imagem 04: Clodoaldo da Silva na Paraolimpíada de Atenas. 48
Imagem 05: A ginasta Dayane dos Santos e o paratleta Clodoaldo da Silva retratados em um
muro do Rio de Janeiro. 49
Imagem 06:Ádria dos Santos e o guia de corrida Jorge Luiz, o Chocolate. 49
Imagem 07: Do livro Ensinando educação física, de Singer e Dick, demonstrando uma
situação em que o professor domina o cenário e transforma o ambiente em controlado e
inibidor. 50
Imagem 08: Alice Milliat, presidente da FSFI. 50
Imagem 09: Barão de Coubertin. 51
Imagem 10: Maria Lenk. 51
Imagem 11: “Os alemães saúdam o seu líder durante os Jogos Olímpicos. 52
Imagem 12: A carreata de Hitler passa através do Portão de Brandenburg indo para a
cerimônia de abertura da Olimpíada de Berlim. 52
Imagem 13: O alemão Lutz Long, à esquerda, e o americano Jesse Owens, à direita,
competindo na prova de salto em distância na Olimpíada de Berlim, 1936. 53
Imagens 14a, 14b, 14c: Long e Owens no podium e conversando entre as séries da prova de
salto em distância na Olimpíada de Berlim, 1936. 53
Imagens 15a e 15b: O símbolo da campanha "Diga não ao racismo" usado na copa do
mundo da Alemanha em 2006 e sua exposição no centro do campo de futebol antes das
partidas da competição. 54
Imagem 16: As equipes do Brasil e França posam antes do jogo da semifinal da copa do
mundo de 2006. 55
Imagem 17:As equipes de Portugal e Alemanha posam antes do jogo da semifinal da
Eurocopa 2008. 55
Imagem 18: Bandeira exibida no jogo Quilmes x São Paulo 55
Imagem 19: Banana atirada em campo em jogo amistoso da seleção brasileira de futebol no
estádio do Pacaembú. 55
Imagem 20: Torcedores dos EUA e do Irã confraternizando-se antes da partida de
1998. 56
Imagem 21:As equipes dos Estados Unidos e do Irã trocaram flores e posaram juntos para
as fotos em 1998. 56
Imagem 22: Mapa dos boicotes olímpicos de 1976 a 1984. 57
Imagem 23: O mascote russo das olimpíadas de 1980. 58
Imagem 24: Smith e Carlos no México em 1968. 58
Imagem 25 65
Imagem 26: Vanderlei Cordeiro sendo seguro pelo ativista político na olimpíada de Atenas,
2004 66
Imagem 27: Vanderlei Cordeiro com a medalha de bronze da maratona, Atenas, 2004. 66
Imagem 28: Grajaú Tênis Clube – categoria juvenil – equipe campeã estadual de futsal –
1993. 85
Imagem 29: Janaína Silva. 86
Imagem 30: Grajaú Tênis Clube – voleibol – categoria infantil – 2000. 86
Imagem 31: A foto que me fez escolher Larissa Evaristo e Márcia Santos como
sujeitospersonagens da pesquisa. 93
Imagem 32: Vista panorâmica da escola devassada. 113
Imagem 33: Entrada do turno da manhã. 113
Imagem 34: Entrada do turno da tarde. 113
Imagem 35: Paulo Sgarbi à esquerda, André Brown à direita e Fernando Macedo sentado no
Laboratório do grupo Linguagens desenhadas e educação. 114
Imagens 36 e 37: A professora interrompe a aula e, sentada NA mesa, pelo gestual usado,
podemos perceber a convicção da professora em suas colocações. Não é uma conversa, é
um discurso, pois as crianças permanecem caladas. 118
Imagem 38: A aula dos polichinelos começa embaixo da árvore. 120
Imagem 39: Alguns alunos usam camisas de times de futebol, enquanto a maioria usa a
camisa do uniforme escolar. 121
Imagem 40: Os alunos jogando com os coletes amarelos e azuis trazidos pelo
professor. 121
Imagem 41: Mapa obtido por uma ferramenta da internet. 126
Imagem 42: Professor André e a equipe feminina do seu colégio no treino de voleibol. 138
Imagem 43: A quadra tem dois ralos de escoamento de água e quatro tampões de ferro de
esgoto em seu interior, além dos buracos remendados com cimento áspero. 139
Imagem 44: Professor André e os alunos que representaram sua escola no desfile de
abertura dos Jogos Escolares Municipais. 140
Imagem 45: Alunos reunidos, bandeira olímpica e pira acesa. 140
Imagem 46: O evento contou com a exibição de uma banda, do pelotão da bandeira e da
apresentação de um grupo de dança de um clube escolar. 141
Imagem 47: Solenidade de abertura do torneio início da categoria juvenil feminino de
voleibol. 144
Imagem 49: Da esquerda para a direita, as equipes do Tijuca, Fluminense e
Flamengo. 144
Imagem 48: Coluna de dois. 144
Imagem 50 145
Imagem 51: Larissa no aquecimento para o primeiro jogo. 146
Imagem 52: Larissa assistindo ao jogo junto às atletas que ficaram fora da relação de
jogo. 146
Imagem 53: Larissa, com a medalha de vice-campeã, ao lado da mãe. 147
Imagem 54: Seleção brasileira de voleibol campeã olímpica em Atenas, 2004: a homenagem
ao atleta Henrique. 147
Imagem 55 159
Imagem 57: Mapa das Coordenadorias Regionais de Educação – CRE. 174
Imagem 56: Mapa da cidade do Rio de Janeiro, marcando os bairros do Méier e do
Grajaú. 174
Imagem 58a: http://webapp.sme.rio.rj.gov.br/jcartela/publico/pesquisa.do?cmd=listCres 175
Imagem 58b: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/
interna.php?n0=1&n1=4&n2=6&rn0=5 175
Imagem 59a: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/
interna.php?n0=1&n1=4&n2=6&rn0=10 176
Imagem 59b: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/
interna.php?n0=1&n1=4&n2=6&rn0=5 176
Imagem 60: Sport Club Mackenzie – equipe mirim feminino – 2003. 177
Imagem 61: Sport Club Mackenzie – equipe ínfanto-juvenil feminino – 2005. 177
Imagem 62: Equipes pré-mirins do Sport Club Mackenzie, à esquerda, e do Grajaú Tênis
Clube à direita – 2002. 178
Imagem 63: Reportagem do jornal O Globo sobre os clubes sociais. 181
Imagem 64: Presidente do Sport Club Mackenzie, Eugênio Bastos. 182
Imagem 71: Reportagem do Jornal O Globo sobre o projeto Segundo Tempo. 183
SUMÁRIO
Introdução 13
A história de outros na minha história 14
CAPÍTULO 1: EDUCAÇÃO FÍSICA E EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
Educação física e educação física escolar 25
A educação física e seus conteúdos 26
A licenciatura e o bacharelado em educação física 26
CAPÍTULO 2: A QUEM CABE FALAR SOBRE EDUCAÇÃO FÍSICA E ESPORTE
Saberes e conhecimentos 36
As vitórias históricas no campo da educação física 38
Desconstruindo algumas injustiças históricas 39
Um breve histórico da educação física com comentários 41
CAPÍTULO 3: EM DEFESA DO ESPORTE
O esporte, a escola e a educação física 46
Esporte, eugenia e racismo 49
Questões políticas 56
O esporte exclui? 62
A competição e a concorrência 63
O importante é competir 65
O esporte e a escola no mundo globalizado e midiatizado 69
CAPÍTULO 4: MEMÓRIAS E RELATOS:MUDANDO OS LUGARES E OS
SUJEITOSPERSONAGENS
Os usos da memória: a métis, as táticas e as estratégias 76
A repressão social das táticas e da métis 80
Relatos, lugares e espaços 81
Os sujeitospersonagens 84
Outros sujeitospersonagens 102
As entrevistas 104
As transcrições das entrevistas 106
Questões éticas 108
CAPÍTULO 5: TRABALHOS DE CAMPO
A escola devassada 113
Histórias sobre um professor da escola 119
História 1 – O domínio da turma de crianças 120
História 2 – Professor, treinador, comentarista e torcedor 121
História 3 – A agressão 122
Visita à escola X 124
O futebol 124
A aula no pátio 131
Segunda visita ao colégio 133
Visita à escola do professor André 137
O treino 137
O desfile 139
Campeonato estadual de voleibol juvenil 142
Torneio Início 142
CAPÍTULO 6: OS PROJETOS GRAJAÚ TÊNIS CLUBE E SPORT CLUB MACKENZIE
Os projetos Grajaú Tênis Clube e Sport Club Mackenzie 149
O projeto Grajaú Tênis Clube 155
Minha entrada no projeto GTC 156
O projeto Sport Club Mackenzie 157
As gerações e suas marcas 158
Os projetos e as escolas 160
As dificuldades em ser atleta no Rio de Janeiro 162
A escola e a formação de atletas 165
Esportes e os espaços social e geográfico: a circulação do habitus 167
As diferenças geográficas e sociais entre os projetos GTC e SCM 173
Os clubes e os projetos sociais a partir do esporte 180
Os clubes escolares 183
CONCLUSÃO: A REORGANIZAÇÃO DO MEU LUGAR E A BUSCA POR NOVOS ESPAÇOS
O espaço da educação física na escola 191
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 199
ANEXOS: AS ENTREVISTAS 201
INTRODUÇÃO
14
A HISTÓRIA DE OUTROS NA MINHA HISTÓRIA
Uma das tantas alegrias que tenho em ser professor de educação física é ter
a oportunidade de, através do meu trabalho, ajudar os meus alunos e alunas a tentarem
realizar seus sonhos. Dos muitos alunos e atletas com os quais pude ter o privilégio de
trabalhar, alguns se tornaram amigos, outros amigos de profissão e muitos sumiram no
mundo. Fotos, filmes e outros objetos que suscitam a lembrança de vários espaçostempos
ao longo da vida fazem aparecer, frente aos olhos da memória, muitas histórias de vida
que me instituíram como professor e como pessoa.
São alunos e atletas que dividiram comigo as turmas e equipes das quais fizemos
parte e que, entre derrotas e vitórias, nas quadras e fora delas, nos colégios, clubes e
fora deles, tornaram-se amigos através dos treinos, jogos e aulas, mas, sobretudo das
trocas de experiências e vivências, tecendo, a partir do esporte e da educação física,
uma rede de apoio mútuo onde nos constituímos amigos.
O trabalho que se finda com a apresentação dessa dissertação de mestrado, na
realidade, é um início, ou melhor, é um processo, composto de inúmeras etapas que
começam e terminam sem nunca haver a precisão de onde é seu começo ou seu fim,
uma vez que estão sobrepostas umas às outras e não somente no sentido linear, como
fossem madeiras formando uma ponte ou as telhas de um telhado, mas são etapas que
se tocam por todos os lados e, mesmo quando não se tocam diretamente, podem estar-
se sustentando mutuamente.
Como num jogo de pega-varetas, onde cada vareta participa de um sistema em
equilíbrio após serem lançadas ao chão, conseguimos identificar cada segmento clara-
mente pela cor das varetas, mas algumas varetas caem destacadas, outras caem tão
emaranhadas com as demais que fica difícil mover qualquer uma sem abalar todo o
equilíbrio do sistema. Essas etapas vão constituindo um processo que não se consegue
precisar o início e nem o seu final.
O que se apresenta, nessa dissertação, é uma tentativa de contribuição ao pensa-
mento – a teoriapráticateoria – e à ação – a práticateoriaprática – dos professores de
educação física, sabedor de que tal contribuição é provisória e limitada pela
15
espaçotemporalidade da sua construção.
Refiro-me ao pensamento e a ação da maneira que fiz acima com o intuito de
superar a dicotomia teoria-prática
1
e a dualidade teoria-prática
2
. Tento ressaltar com
essa forma de escrever – teoriapráticateoria e práticateoriaprática – que, apesar de em
determinada etapa possa haver um predomínio dos processos de construção teórica
sobre os processos da ação e vice-versa, a construção do conhecimento é um processo
em que teoria e prática se tecem mutuamente. Portanto, essa dissertação necessita de
circulação entre os professores de educação física que trabalham nas escolas, entre os
futuros professores que estão na etapa de formação acadêmica, entre os pesquisado-
res da área da ciência da motricidade humana e entre tantos que têm o interesse pelas
discussões fomentadas nessa pesquisa. Essa necessidade de circulação se dá pelo
desejo de incrementar as conversas que já existem sobre essas questões. Inserir os
resultados dessa pesquisa nos espaços de discussão do esporte, da educação física e
da educação passa a ser a tarefa à qual os nossos esforços serão dedicados daqui em
diante.
No projeto de intenção de pesquisa que apresentei em minha entrada no
mestrado, optei por ter como objeto de estudos o esporte. Dentro desse amplo tema,
delimitei como assuntos de pesquisa o esporte escolar e o esporte como conteúdo das
aulas de educação física, sendo que, concomitantemente, interessava-me estudar como
o esporte contribui, a partir da escola, como alavanca para o desenvolvimento
socioeconômico dos alunos.
Aos poucos, com as aulas do curso e com a leitura das obras de pensadores como
Pierre Bourdieu e Michel de Certeau – principalmente, mas não somente – percebi que,
falsamente, as instituições são mistificadas e passam a constituir-se em sujeitos históri-
cos capazes de formular e realizar seus próprios fins, mas que sua atuação social é
produto das ações e reações dos agentes que as compõem. (BOURDIEU, 2003, p. XX).
Mantive os objetivos traçados – pesquisar sobre a educação física e o esporte no
contexto escolar – mas optei por uma abordagem diferente da que foi pensada na pri-
meira vez. Ao invés de estudar somente o fenômeno esportivo e suas influências ou re-
percussões no ambiente escolar, escolhi pesquisá-los através das histórias de vida de
1
Dicotomia teoria-prática está entendida, neste trabalho, como o processo de construção do conhecimento em duas etapas
contrárias, complementares e hierarquizadas entre si – primeiro se pensa sobre algo e depois se coloca em prática. Nesse
processo, a teoria seria mais importante do que a prática, assim como a prática que não se explica teoricamente não tem validade.
2
Compreendo como dualidade teoria-prática a divisão do conhecimento em duas etapas antagônicas e dessemelhantes, na qual
cada uma cumpre um papel isolado na constituição do conhecimento.
16
agentes e praticantes
3
que circulam nos ambientes do esporte e da educação física,
incluindo-me entre estes.
A princípio, convidei três meninas com as quais trabalhei em clubes e que foram
para esses espaços esportivos vindas de escolas públicas. Denominei-as
sujeitospersonagens da pesquisa e concebi uma explicação do porquê da construção e
utilização do termo, para que pudesse informá-las sobre suas importâncias nessa pes-
quisa, sendo que uma delas, Janaína Silva, conseguiu reduzir à expressão colaborado-
ra. No decorrer da pesquisa, apareceram outros sujeitos com relatos de memórias muito
importantes para a tessitura dos conhecimentos aqui presentes. Suas experiências como
atletas, professores e diretores de clubes e escolas e, no caso das três meninas, en-
quanto alunas da rede pública de ensino do município e estado do Rio de Janeiro, foram
imprescindíveis a esse trabalho de pesquisa.
O que essas pessoas representam na minha história, que tipos de atitudes ou
ações me influenciaram, e influenciam até hoje, em meu modo de ação profissional e em
minha forma de agir em minha vida pessoal, tenho condição de perceber. E o que esses
personagens teriam a falar de suas próprias histórias? E o que de minha história ligada
às deles nas/com/pelas redes que construímos e nos/com/pelos saberes que tecemos, e
ainda tecemos, mesmo que só na lembrança ou na inspiração continuada que proporci-
onamos uns aos outros em anos de convivência, pode ser lembrado? Pode ser lembra-
do por mim e por eles?
Como resgatar as vivências individuais e coletivas? Como suscitar a memória de
fatos, momentos, pessoas? Como abordar as recordações sobre os diferentes espaços
e tempos?
Será que os momentos vividos marcam alguns de uma maneira profunda e a outros
de forma superficial ou nem isso?
Para me ajudar a caminhar nesse universo dos “relatos”, “memórias”, “histórias”,
“citações de vozes”, “demarcações”, “operações” e tantos outros conceitos e termos,
utilizei como referencial teórico o texto de Michel de Certeau, “A invenção do cotidiano –
Artes de fazer”.
Em uma das importantes passagens de sua obra, Certeau (1994) expõe a
utilização dos relatos de indivíduos em confrontação de histórias com a intenção de cria-
ção do “meta-relato”, especialmente no discurso jurídico – “juízo interlocutório”. Conside-
ro essa afirmativa uma advertência para não apropriar-me dos relatos com os quais
trabalhei nessa pesquisa, com fins de criar o relato superior, ou seja, o texto esclarecedor
3
Agentes no sentido que o usa Pierre Bourdieu e praticantes no sentido que o usa Michel de Certeau.
17
dos fatos e acontecimentos.
Contudo, Certeau (op. cit.) aparece como grande encorajador da utilização
dos “relatos”:
Nessa organização, o relato tem papel decisivo. Sem dúvida, “descreve”.
Mas “toda descrição é mais que uma fixação”, é “um ato culturalmente cria-
dor”.
4
Ela tem até poder distributivo e força performativa (ela realiza o que
diz) quando se tem certo conjunto de circunstâncias. Ela é então fundadora
de espaços. Reciprocamente: onde os relatos desaparecem (ou se degra-
dam em objetos museográficos), existe perda de espaço: privado de narra-
ções (como se constata ora na cidade, ora na região rural), o grupo ou indiví-
duo regride para a experiência, inquietante, fatalista, de uma totalidade infor-
me, indistinta, noturna. Considerando o papel do relato na delimitação, pode-
se aí reconhecer logo de início a função primeira de autorizar o estabeleci-
mento, o deslocamento e a superação de limites e, por via de conseqüência,
funcionando no campo fechado do discurso, a oposição de dois movimentos
que se cruzam (estabelecer e ultrapassar o limite) de maneira que se faça do
relato uma espécie de quadrinho de “palavras cruzadas” (um mapeamento
dinâmico do espaço” e do qual a fronteira e a ponte parecem as figuras nar-
rativas essenciais. (p. 209)
Portador de grande capacidade de relembrar fatos e histórias dos espaços e
tempos vividos, preocupou-me ser defensor de uma única posição, de na escrita dessa
dissertação, tornar totalitários meus relatos e de querer transformar em lugar estratégico
um espaço que deveria servir para o questionamento, ampliação e a fundamentação
teóricoprática dos temas abordados e pesquisados.
A discussão sobre a aproximação do pesquisador de seu objeto de estudos
é um dos temas que Bourdieu (2003) discute em sua aula inaugural proferida no Collège
de France, em abril de 1982, quando questiona a produção do conhecimento em socio-
logia e a conduta do sociólogo nessa tarefa, e foi fundamental para dirimir minhas preo-
cupações:
...todas as proposições que essa ciência enuncia podem e devem aplicar-se
ao sujeito que faz a ciência. É na medida em que não sabe introduzir essa
distância objetivante, portanto crítica, que o sociólogo dá razão àqueles que o
vêem como uma espécie de inquisidor terrorista disponível para toda e qual-
quer ação de policiamento simbólico. (p. 4-5)
Continua sua intervenção:
Não se entra na sociologia sem romper com as aderências e adesões atra-
vés das quais pertencemos a grupos, sem abjurar crenças constitutivas dessa
pertença e renegar todo e qualquer laço de afiliação ou filiação. (p. 5)
Lidas assim, destacadas de seus textos anteriores e posteriores, pode pare-
cer que o intelectual francês defende a antiga posição dicotômica entre sujeito e objeto
4
Y.M. Lotman, em Ecole de Tartu, Travaux sur lês systèmes de signes, p. 89.
18
de pesquisa. Porém, Bourdieu advoga que se pode fazer a sociologia científica superan-
do essa dicotomia e atribui à consciência do pesquisador a possibilidade dessa supe-
ração:
Tomar a inserção social do pesquisador como obstáculo insuperável para a
construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra
armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e,
portanto em sua consciência. (p. 6)
Bourdieu mostra que a metodologia científica, forma pela qual é desenvolvida
a ciência moderna, busca a manutenção da ordem estabelecida e somente com o
questionamento epistemológico da forma hegemônica de produção do conhecimento
científico poderá haver uma maneira de escapar a esse princípio sistemático de erro que
é a tentação da visão soberana.
Ao elevar a importância da minha experiência profissional no campo da edu-
cação física e dos esportes, não o faço no intuito de autorizar-me a deter uma visão
soberana e inquestionável sobre os objetos e sujeitos da pesquisa, mas oferecer à pes-
quisa uma fonte testemunhal que participa nesses campos em diversos espaços e tem-
pos exercendo funções e estabelecendo relações diversas com suas estruturas e agen-
tes.
A princípio, as contribuições de Bourdieu ajudaram-me a questionar e criticar
essa minha experiência, mostrando-me que sempre atenderam a uma forma de pensar,
querer e poder, que, assim como me alerta Benedito (2005), passíveis de serem perce-
bidas pelo pesquisador, as próprias experiências influenciam suas opções:
Sou uma pesquisadora e professora de escola que estuda na universidade,
e não uma pesquisadora da universidade que pesquisa na escola. Isto em
mim é marca que não sai, é marca que informa minhas opções por alguns
significados em detrimento de outros, perpassando o texto e os argumentos
que emprego. (p. 17)
Portanto, não considero a minha proximidade ao espaço dos esportes um fator
que tenha impossibilitado a condução e a execução ética de uma pesquisa que se pro-
pôs a estudar esse fenômeno social, contribuindo para o desenvolvimento do conheci-
mento nos ramos dos esportes e da educação física.
A defesa do esporte como conteúdo da educação física escolar ou a importância
do esporte escolar na inclusão social dos alunos têm sua presença nas discussões e
mesmo nos depoimentos espontâneos, visto que os sujeitospersonagens selecionados
para a pesquisa tiveram/têm uma relação muito íntima e de carinho com o esporte. Por
outro lado, também apareceram posicionamentos desfavoráveis a estas postulações.
Como não estive sozinho nessa empreitada acadêmica, visto que pertenço a amplas
19
redes de saberes e conhecimentos, quando me faltou discernimento para manter um
posicionamento “consciente”, estive amparado pelo companheirismo e competência dos
componentes dos grupos As redes de conhecimentos em educação e comunicação:
questão de cidadania, coordenado pela professora doutora Nilda Guimarães Alves, e
pelo grupo Linguagens desenhadas e educação, coordenado pelo professor doutor
Paulo Sgarbi, também meu orientador nessa pesquisa.
Paralelamente à construção da dissertação, haveria a produção, em vídeo,
de um documentário da trajetória ou do processo da sua realização, se possível com
todos os primeiros contatos gravados, ou pelo menos relatados, de forma a estabelecer
uma visão geral de como foram construídas as relações que possibilitaram a realização
de todo o projeto. Esse material foi constituído ao longo da elaboração da dissertação.
São entrevistas em áudio e áudio e vídeo, filmes de jogos e treinamentos, fotografias de
aulas e escolas, gravações de conversas informais
5
– sempre de conhecimento do(s)
interlocutor(es), e tantos outros materiais que não encontram no papel – suporte voltado
para a linguagem escrita – a possibilidade de fazerem parte do corpo da dissertação.
Mesmo que pudessem ter sua presença como anexos, ainda assim não cumpririam a
função de complementar o texto que compõe o corpo da dissertação. Quando escrevo
que o papel é suporte mais apropriado para a linguagem escrita, do que para outras, não
estou negligenciando as possibilidades do uso iconográfico nesse suporte. Embora, nos
textos científicos modernos o que apareça de diferente das palavras seja o gráfico esta-
tístico, muitos outros textos científicos fazem uso das imagens, para além da mera ilus-
tração do texto, como linguagem. Não proponho essa discussão nesse espaço, porém
preciso fazer referência às – quase infinitas – possibilidades de produção de imagens,
sejam estáticas ou em seqüência dinâmica, assim como às diversas formas de produ-
ção de materiais para pesquisa que não encontram no papel um suporte que possa
aproveitá-los como linguagem:
Por exemplo, há o problema da representação de uma seqüência dinâmica
na forma de uma cena estática, em outras palavras, do uso do espaço para
substituir ou para representar o tempo. O artista tem que condensar ações
sucessivas numa única imagem, geralmente um momento de clímax, e o
espectador tem de estar consciente dessa condensação. (Burke, 2004, p.
179)
Parte desse problema encontrou sua solução com as transcrições das entrevistas
5
Denominei essas conversas como informais no sentido de explicar que, às vezes ocorriam por acaso em um encontro não previsto
ou mesmo nos previamente combinados, mas que não seguiam a linha das entrevistas ou de resenhas, mas sim de conversas entre
amigos sobre temas diversos. Ressalto o grifo ao informal, pois a partir do momento em que há a presença do gravador ou a intenção
de escrever sobre esses encontros, parte da espontaneidade das conversas é perdida, cabendo ao pesquisador perceber quando
o gravador é fator de constrangimento.
20
gravadas, que podem ser encontradas nos anexos da dissertação, e com a inclusão de
textos que visam trazer para a dissertação o que ficava ausente na transcrição das pala-
vras gravadas tão somente. Embora perceba que tal procedimento não é neutro, pois
significa a minha interpretação sobre as coisas que são ditas e sobre a forma que são
ditas, tais acréscimos às entrevistas são importantes e para explicar por que contarei
uma história.
No grupo de pesquisa “As redes de conhecimento...”, um dos autores estudados,
em um dos semestres, foi Pierre Bourdieu. Procurando obras desse autor, encontrei um
livro escrito a partir de uma entrevista para Maria Andréa Loyola, no qual ocorre a trans-
crição dessa entrevista. Esse encontro está registrado em vídeo e consegui encontrá-lo
em uma videoteca
6
na UERJ. Ao acompanhar as passagens da entrevista no vídeo com
a sua leitura subseqüente no livro, pude perceber que as expressões faciais, gestos e
entonações de voz de Bourdieu eram uma linguagem, no caso corporal, que permitia
modificar a minha interpretação do que havia lido anteriormente no livro. Embora ainda
estivesse lendo as palavras escritas nas legendas, pois minha fluência no idioma fran-
cês não permita que as despreze, as informações contidas naquela linguagem corporal
escapavam ao texto que transcrevia apenas as palavras ditas.
Em um momento da entrevista Loyola pergunta: O que o senhor chama de Chica-
go Boys?” (BOURDIEU, 2002, p. 23). Bourdieu passa a respondê-la, porém, na entrevis-
ta em vídeo, a expressão facial e o uso das mãos revelam que, para o entrevistado,
aquele não é um termo que usa apenas para denominar um grupo de pessoas, mas que
se sente bastante incomodado com as opções feitas por esse grupo. Ver e ouvir Pierre
Bourdieu responder, com certo toque de ironia, a essa pergunta, mostra o quanto é per-
dido nas transcrições de entrevistas que apenas reproduzem as palavras ditas. Embora,
perceba que a interpretação das imagens e tom de voz do entrevistado são representa-
ções que faço de suas ações corporais durante a entrevista, não quer dizer que Bourdieu
sente-se assim em relação a tais pessoas. Mas, de qualquer maneira, são informações
importantes que foram perdidas no ato da transcrição.
Apesar da sugestão de meu orientador para as possibilidades do uso dos diver-
sos modelos de fontes de texto e formatações das palavras, pelos recursos existentes
nos editores de texto presentes nos computadores, com os quais poderia indexar muitas
informações às próprias palavras do texto ou mesmo optar por uma estética diferente,
como quando o faz com a palavra e o conceito de epistemologia em sua tese de
6
Algo como uma biblioteca de fitas VHS, DVDs e outros formatos que permitem a gravação de filmes, documentários e outras tantas
possibilidades de uso do audiovisual.
21
doutoramento:
epistemologia... epistemologia... epistemologia... epistemologia...
epistemologia... epistemologia... epistemologia... epistemologia...
epistemologia... epistemologia... epistemologia... epistemologia...
(Sgarbi, 2005, p. 36.)
não me senti capaz de experimentar, ainda, tais recursos, embora os reconheça como
de grande utilidade para os textos das ciências humanas e, principalmente, para transmitir
com mais propriedade e clareza as posições autorais dos pesquisadores em relação a
todo o material produzido no percurso de uma pesquisa e que escapa aos meios formais
da palavra escrita no papel.
Parte da idéia inicial de produzir um vídeo com visitas aos lugares mencionados
pelos sujeitospersonagens, com as entrevistas, reencontros produzidos entre os
sujeitospersonagens, foi substituída pela linguagem desenhada das histórias em
quadrinhos para que fizessem parte do corpo do trabalho e ampliasse a possibilidade
de inserção da imagem, além do uso da fotografia, como linguagem nessa pesquisa.
Essa é uma discussão importante, que não encontrou, nesse momento, um espaço
maior do que o dei nessa introdução de minha dissertação. Quase como uma explicação
do por que uso a linguagem desenhada na reconstrução de algumas histórias contadas
e tantas outras produções audiosvisuais, falta um aprofundamento dessa discussão,
porém tornou-se impossível fazê-la no decorrer da dissertação sob o risco de perder o
foco da pesquisa que lhe originou. Nessa empreitada, contei com o apoio dos colegas
do grupo de estudos Linguagens desenhadas e educação e, especialmente, pelo membro
desse grupo e amigo André Brown
7
, que fez as ilustrações da dissertação.
Trago, no quadro abaixo, um texto de autoria de André Brown sobre o processo de
realização das ilustrações que estão incorporadas a essa dissertação.
Quando desenhar vira esporte
Estudo os usos das linguagens desenhadas na educação. Atualmente, estou trabalhando em parce-
ria com o colega de grupo de pesquisa, o professor de educação física Fernando Macedo, mestrando no
ProPEd/UERJ. Ele está desenvolvendo sua dissertação a partir de suas memórias e observações relaci-
onadas ao ensino de educação física na escola e a inserção do esporte como conteúdo curricular desta
disciplina. Para tecer seu texto, o Fernando conta, também, com relatos de professores e alunos sobre as
práticas esportivas, mostrando, também, algumas tensões sociais geradas por essas práticas no cotidi-
ano escolar.
O pesquisador escolheu, como uma das formas de linguagem para apresentar o seu trabalho acadê-
mico, as histórias em quadrinhos. Eu fui convidado por ele e seu orientador, o professor Paulo Sgarbi,
para realizar os quadrinhos a partir das narrativas a serem incluídas e analisadas na dissertação.
Para iniciar essa experiência, precisei fazer um mergulho nos textos da dissertação para, depois, criar
7
André Brown é cartunista, pedagogo e mestre em Educação (ProPEd-UERJ).
22
desenhos para compor o trabalho acadêmico. Fiz a leitura de parte dos textos que pretendia transformar
em desenhos, mas, como a dissertação estava ainda em processo de criação, precisei me envolver mais
com o trabalho do professor Fernando enquanto ele produzia novos textos simultaneamente.
As narrativas e entrevistas contidas na dissertação eram repletas de imagens e descrições de situa-
ções do cotidiano escolar, facilitando a minha tarefa de construir as histórias em quadrinhos.
O mestrando me deu a pista (GINZBURG, 1989 p. 150) sobre como pretendia que fosse o resultado do
trabalho sugerindo que os desenhos poderiam ser apenas esboços, pois o mais importante para ele
seria mostrar uma idéia geral das situações narradas e não retratar fielmente as pessoas envolvidas.
Esse trabalho conjunto gerou para mim uma oportunidade de aprendizado sobre as práticas esporti-
vas na escola. Fernando, durante a elaboração do trabalho, me explicou detalhes que não conhecia do
vôlei, sua especialidade, me mostrou fotos e vídeos sobre o assunto. Passei a entender um pouco das
dificuldades enfrentadas por professores de educação física e seus alunos no cotidiano escolar.
Fernando mostrou interesse pelas minhas maneiras de fazer (CERTEAU, 1994, p. 35) os desenhos
e, apenas com a sua observação, começou a esboçar seus próprios desenhos e depois passou a criar
os layouts
8
para que eu pudesse desenhar posteriormente, o que demonstra um processo de aprendiza-
do do desenho e do planejamento de histórias em quadrinhos realizado pelo mestrando.
Trazendo um pouco dessa experiência acadêmica para minhas práticas de ensino na escola, gosta-
ria de proporcionar aos meus alunos oportunidades de aprendizado como essa que foi possível para nós
dois em função do interesse mútuo e da necessidade de dar forma ao trabalho acadêmico em tempo
predeterminado. O desafio que enfrento cotidianamente na escola é tornar as minhas aulas atrativas
para os alunos a ponto de gerar o envolvimento deles no processo educativo. Para isso, tenho recorrido
às linguagens desenhadas
9
para ensinar.
A pesquisa foi dividida em três partes principais. A primeira aborda discussões
dos campos da educação física, da ciência da motricidade humana e dos esportes. Os
questionamentos epistemológicos sobre a educação física e a área científica que a com-
preende estão presentes, assim como, a formação do professor e a revisão de certas
injustiças históricas que relacionam essas áreas à subserviência a muitos propósitos,
quase nunca nobres. A defesa da importância da experiência competitiva esportiva, dife-
renciando-a da competição mercantilista neoliberal – a concorrência – e a análise do
espaço esportivo ao longo dos séculos XX e XXI, com suas contribuições à quebra de
tabus e mudanças sociais, assim como, o exame do esporte comercial tornado espetá-
culo e sua presença na mídia, encontram-se aí apresentados.
Na segunda parte, propus a discussão e a fundamentação do uso dos relatos
e memórias dos praticantes para a pesquisa em educação, a partir do referencial de
Michel de Certeau, fazendo algumas leituras de sua obra que se distanciam do uso que
tenho visto ser feito do trabalho desse pensador francês. A relação dicotômica entre
tática e estratégia é uma delas, assim como o valor da experiência de vida para a ação
estratégica fora do campo do poder. A relação entre ciência, conhecimento e saberes é
vital nessa discussão, fundamentando a necessidade de valorizar os conhecimentos
empíricos de professores e alunos. O conceito de sujeitopersonagem ocupa lugar cen-
tral em um dos capítulos dessa parte da dissertação e alguns questionamentos éticos e
8
A linguagem dolayout, na produção de quadrinhos, engloba desenhos rápidos, planejamentos de espaços, utilização de letras e
balões para organizar a página que será, posteriormente, arte-finalizada.
9
Considero comolinguagens desenhadas as histórias em quadrinhos, as ilustrações, caricaturas, charges, cartuns, desenhos
animados, mangás e outras formas artísticas ou comunicacionais que utilizem o desenho.
23
metodológicos sobre a pesquisa em educação explicam algumas opções que foram
feitas no percurso de sua construção.
Na última parte, estão alguns relatos de trabalhos de campo e de dois projetos com
os quais estive envolvido profissional e afetuosamente – preferi esse termo a usar
afetivamente. Ao relatá-las, espero poder criar um espaço com outras memórias e rela-
tos, possibilitando que outros pesquisadores sintam-se seguros em discutir sobre as
“verdades” teóricas ou práticas do campo do esporte e da educação física ou que se
sintam, pelo menos um pouco, inseguros em afirmar existir apenas uma forma de ação
pedagógica ou pensamento filosófico. São histórias de oportunidades aproveitadas –
ou da construção das oportunidades – e de oportunidades negadas, mas que mostram
apenas uma das formas de se agir no mundo e de se narrar a vida. Essas experiências
de observações e pesquisa em campo formam, junto com as entrevistas dos
sujeitospersonagens, a rede – ou espaço – que permite tecer novos conhecimentos –
ou novos lugares.
Por fim, as conclusões – ou os novos lugares , que, embora provisórias, como
estão fadadas todas as conclusões a serem, surge uma propostas de aplicação desses
conhecimentos – tecidos em rede – na tentativa de contribuir com o processo
teoriapráticateoria ou práticateoriaprática – ou qualquer outra palavra no estilo dízima
periódica, a qual se abrevia a escrita por não ser possível repetir o numeral infinitamente.
As transcrições das entrevistas dos sujeitopersonagens estão dispostas como
anexo ao final da dissertação.
CAPÍTULO 1
EDUCAÇÃO FÍSICA
E
EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
25
EDUCAÇÃO FÍSICA E EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
A educação física e a educação física escolar não podem ter como seus conteú-
dos somente os esportes, e esses três termos não podem ser entendidos como sinô-
nimos. Epistemologicamente, prefiro usar o termo ciências da motricidade humana
para especificar “o radical científico onde se fundamenta o desporto, a dança, a ginás-
tica, a ergonomia, a reabilitação, o yoga, as lutas, as artes marciais, a capoeira, e
outras.” (SERGIO, 1989), e o termo educação física para referir-me ao “ramo pedagó-
gico da ciência da motricidade humana” (SERGIO, 1987).
Portanto, no parágrafo inicial desse capítulo, os termos que deveriam ser usados
seriam: ciência da motricidade humana e educação física, respectivamente, no lugar
de educação física e educação física escolar.
Ao longo dessa dissertação, irei utilizar o termo “educação física” para referir-me
à disciplina curricular escolar e não “educação física escolar”, que, para mim, configu-
ra uma redundância, já que considero a educação física um fenômeno escolar.
Essa utilização inicial dos termos serve para esclarecer aos que não são da área
da motricidade humana e da educação física parte das lutas e dos esforços que são
realizados pelos que “pensam” a epistemologia das referidas área e seus ramos, pois,
como se pode imaginar, há outras formas de pensar esses termos e as relações entre
eles.
Uma dessas formas de pensamento está descrita no livro Metodologia do ensino
da educação física, escrito por um coletivo de autores e que se posiciona em favor da
seguinte definição:
No presente trabalho, provisoriamente, diremos que a Educação Física é
uma prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza formas de ativida-
des expressivas corporais como: jogo, esporte, dança, ginástica, formas es-
tas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de
cultura corporal. (SOARES et al., 1992, p. 50).
Para outros, como Knudson e Morrison (2001), essa é a cinesiologia: “Os profis-
sionais da Cinesiologia que atuam em várias áreas (como ensino, dança, treinamento
esportivo, medicina esportiva, fisioterapia, aptidão física, ergonomia)...” (p. 4).
26
A EDUCAÇÃO FÍSICA E SEUS CONTEÚDOS
Embora, a lei federal de número 9.696, de 1º de setembro de 1998, reconheça a
profissão de Educação Física e estabeleça as competências de atuação dos profissi-
onais de educação física, opto, como já mencionado pela contribuição de Sergio (1989),
em usar o termo educação física quando me referir ao componente curricular escolar,
e não para denominar a área científica que reúne os conhecimentos sobre a motricida-
de humana. Então, sendo a educação física o ramo pedagógico da área da motricida-
de humana, da cinesiologia ou da cultura corporal, pois, independentemente do nome
que se dá à área científica, todas as correntes pesquisadas denominam como educa-
ção física sua manifestação pedagógica no espaço escolar, presume-se que todos os
ramos dessa área podem e, devem, constar como conteúdo da educação física, ou
seja, terem sua presença nos currículos que são desenvolvidos nas escolas.
Mas, se o ramo responsável pela presença do esporte na escola é a educação
física, esta não pode ignorá-lo como um dos seus conteúdos de maior penetração
social e poder atrativo sobre as crianças, principalmente na faixa etária que ingressa
no segundo segmento do ensino fundamental. Faço essa ressalva pois, a partir de
textos que refletem as conquistas históricas de alguns grupos no espaço da educação
física brasileira – espaço filosófico, acadêmico e político –, e que serão discutidas
brevemente em tópicos posteriores, e na perspectiva teórica do ensino em redes, que
considera a competição esportiva um dificultador da cooperação entre seus pratican-
tes, o esporte tem perdido espaço na educação física.
Grande parte das críticas que são feitas ao esporte está ligada à competitividade
e à exclusão dos alunos pelo critério da performance esportiva de excelência. No ramo
pedagógico da ciência da motricidade humana, o esporte tem sido menosprezado e
são encontrados discursos contra a sua inclusão como conteúdo curricular.
Tal argumentação contra os esportes encontra, na divisão da formação superior
do profissional de educação física entre licenciatura e bacharelado, uma de suas con-
seqüências e um de seus apoios.
A LICENCIATURA E O BACHARELADO EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Embora as conceituações anteriores pareçam apenas uma discussão sobre ter-
mos a serem utilizados para denominar os mesmos fenômenos, conceitos ou noções,
já estabelecidas em outros espaços e tempos, o que seria uma forma de estabelecer o
mesmo discurso com uma estética diferenciada, ao invés de uma reflexão acerca da
área científica que embasa a atividade pedagógica destinada às escolas e acerca da
27
própria atividade pedagógica, e, portanto, vindo a contribuir com poucos elementos
que permitam avançar no pensamento sobre as relações entre esses fenômenos, con-
ceitos e noções, tal elaboração mostra-se necessária frente ao que vem acontecendo
na formação dos professores de educação física e nos campos de trabalho destinados
a estes profissionais.
Na época em que prestei o vestibular para ingressar no ensino superior, a opção
para os vestibulandos que desejavam seguir a carreira da educação física era o curso
de licenciatura plena em educação física e desportos. No próprio título do curso, vê-se
que há a separação entre educação física e desporto, assim como o complemento
“plena” em relação à licenciatura, que especifica a capacitação para a atuação do
professor licenciado pleno em todos os setores da profissão de educação física.
A partir das conquistas do reconhecimento da profissão de educação física, ou-
tras mudanças ocorreram na formação desse professor e a principal é a divisão do
curso em duas vertentes: licenciatura e bacharelado. Suas definições são as seguin-
tes:
“A LICENCIATURA: a formação de professores que atuarão nas diferentes
etapas e modalidades da educação básica, portanto, para atuação específi-
ca e especializada com a componente curricular Educação Física.
O BACHARELADO (oficialmente designado de graduação) qualificado para
analisar criticamente a realidade social, para nela intervir por meio das dife-
rentes manifestações da atividade física e esportiva, tendo por finalidade
aumentar as possibilidades de adoção de um estilo de vida fisicamente ativo
e saudável, estando impedido de atuar na educação básica.” (STEINHILBER,
2006, p.20).
Essas duas vertentes de formação superior foram instituídas pelo Conselho Na-
cional de Educação – CNE, através da resolução 1, de 18 de fevereiro de 2002, e pela
resolução 7, de 31 de março de 2004:
RESOLUÇÃO N° 7, DE 31 DE MARÇO DE 2004.
Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em
Educação Física, em nível superior de graduação plena.
Art. 1º A presente Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para
o curso de graduação em Educação Física, em nível superior de graduação
plena, assim como estabelece orientações específicas para a licenciatura
plena em Educação Física, nos termos definidos nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica.
Art. 4º O curso de graduação em Educação Física deverá assegurar uma
formação generalista, humanista e crítica, qualificadora da intervenção aca-
dêmico-profissional, fundamentada no rigor científico, na reflexão filosófica e
na conduta ética.
§ 1º O graduado em Educação Física deverá estar qualificado para analisar
criticamente a realidade social, para nela intervir acadêmica e profissional-
mente por meio das diferentes manifestações e expressões do movimento
humano, visando a formação, a ampliação e o enriquecimento cultural das
28
pessoas, para aumentar as possibilidades de adoção de um estilo de vida
fisicamente ativo e saudável.
§ 2º O Professor da Educação Básica, licenciatura plena em Educação Físi-
ca, deverá estar qualificado para a docência deste componente curricular na
educação básica, tendo como referência a legislação própria do Conselho
Nacional de Educação, bem como as orientações específicas para esta for-
mação tratadas nesta Resolução. (CNE, 2004.)
As observações acima são relevantes, pois mostram que existem, além das ques-
tões relativas às discussões sobre a epistemologia da ciência da motricidade humana
e da educação física, também os questionamentos sobre as áreas de atuação dos
profissionais formados nos cursos superiores de educação física e sobre essa forma-
ção, assim como demandas acerca do papel social desses professores, sejam nos
campos de atuação destinados aos licenciados quanto aos graduados (bacharéis)
1
.
Como essa é uma polêmica que faz parte do meu espaçotempo
2
, como estudan-
te e, arrisco-me a fazer algumas considerações sobre as argumentações que deram
origem às proposições para a supracitada divisão da formação do profissional da área.
Os principais argumentos eram/são gerados pelas seguintes perguntas:
a) Para que preciso estudar as matérias ligadas à didática e metodologias do
ensino da educação física voltadas para a escola se não pretendo trabalhar
nesse setor?
b) Para que preciso estudar os esportes se não pretendo trabalhar em clubes ou
com equipes esportivas?
c) Para que preciso estudar as disciplinas voltadas às academias ou fitness se
pretendo trabalhar somente em escolas?
Essas perguntas permearam minha estada no curso de licenciatura plena em
educação física e desportos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no período
entre 1985 a 1989. Realmente parecia desnecessário o estudo de algumas disciplinas
do currículo da época para alguns amigos que já haviam decidido por uma área de
trabalho específica dentro do universo de possibilidades que proporcionava a habilita-
ção profissional através da licenciatura plena.
A abrangência de áreas e possibilidades para qual era pensada a formação do
professor de educação física parecia obrigar-nos a estudar conteúdos que nunca usa-
1
Steinhilber faz um esclarecimento sobre os termos graduação e bacharelado apontando que o CNE, optou por usar a termi-
nologia graduação contrariando o encaminhamento feito pelo Conselho Federal de Educação Física – CONFEF, que assim
como outros órgãos envolvidos nas discussões das diretrizes curriculares nacionais para a formação em educação física,
solicitavam o uso do termo bacharelado. (Steinhilber, 2006, p.19).
2
Termo utilizado pela profª Nilda Alves para indicar a necessidade de se ir além dos limites herdados das ciências modernas.
ALVES, Nilda. Imagens de professoras e redes cotidianas de conhecimento. In: Educar em Revista. Curitiba: Editora da UFPR.
n.24, p. 19-36, 2004.
29
ríamos e, conseqüentemente, não aprofundarmos o estudo nas disciplinas que ofere-
ciam os conteúdos com os quais nos identificávamos ou que, naqueles tempos, julgá-
vamos como mais necessários para a nossa futura ação.
O Conselho Federal de Educação Física – CONFEF, através da resolução 046/
2002, caracterizou como campos de intervenção do profissional de educação física a
docência, o treinamento desportivo, a avaliação física, a orientação de atividades físi-
cas, a gestão desportiva, a preparação física e a recreação e lazer. O Conselho reco-
nhece a inserção do profissional de educação física em duas áreas, além da própria
área na qual é formado, são estas as áreas da saúde e da educação.
No ano de 2005, um grupo de trabalho do CONFEF publicou, na Revista de E. F.
– revista publicada pelo próprio conselho – um artigo no qual transparece um raciocí-
nio que nos leva a perceber algumas questões que estão envolvidas na divisão da
formação superior em educação física:
Com a consolidação da profissão Educação Física na área da saúde, fato
que, entre outros aspectos, sinaliza para uma concepção moderna e plural
de Saúde, em que a preocupação com a prevenção de doenças avança
sobre a perspectiva da cura pura e simples de diferentes males, verificou-se
o reconhecimento social e o conseqüente enquadramento dessa profissão
em uma outra área para além da licenciatura.
Os campos de intervenção de uma profissão sofrem interferência direta ou
indireta do mercado de trabalho que, em geral, indica uma demanda do con-
junto ou de parte da sociedade. É evidente que as instituições formadoras
não devem ter no mercado o único elemento balizador dos seus projetos
pedagógicos, mas esse mercado também não deve ser desconsiderado na
definição do perfil do profissional que as instituições se credenciam para
formar. (MARTINS, 2005, p. 23)
Com base nessas colocações, é possível entender que, na visão dos conselhei-
ros da entidade que organiza as profissões ligadas à educação física no Brasil, a
formação do professor dessa área não estava sendo realizada na perspectiva ideal
para o mercado de trabalho da área de saúde:
Ao ser incluída na área da Saúde a Educação Física ampliou as suas possi-
bilidades e campos de intervenção profissionais, agregando ao já consolida-
do campo da Educação uma nova área de ação para os egressos de cursos
superiores de Educação Física. Trata-se, assim, não da redução, mas da
ampliação de espaços de inserção profissional, os quais devem ser ocupa-
dos com competência e qualidade para resguardo dos direitos da própria
sociedade e do cumprimento das responsabilidades dos profissionais. (id.,
ib.)
Segue o discurso dos conselheiros:
Educação e Saúde não são áreas de conhecimento antagônicas, elas são
complementares e convergentes, por natureza e necessidade. Contudo, não
se pode desconhecer que essas áreas são independentes enquanto acervo
30
de conhecimentos próprios, acumulados histórica e cientificamente e enquanto
áreas possuidoras de campos, técnicas e procedimentos de intervenção pro-
fissional distintos. (id., ib.)
A partir das idéias de Martins, chego à conclusão de que a divisão da formação
superior do professor de educação física em licenciatura e bacharelado está voltada
para o mercado de trabalho acoplado à área de saúde, sendo essa vertente do merca-
do de trabalho mais exigente do que a área da educação, sendo necessária a
reformulação da formação do profissional que nela irá atuar.
Se recuperarmos algumas informações históricas sobre as origens da educação
física e sobre as influências das áreas médicas na justificativa da presença dessa
disciplina na matriz curricular da educação brasileira, podemos estar presenciando
uma tentativa de alcançar o status social e o reconhecimento do valor dos profissio-
nais da área através de sua vinculação de sua formação à área da Saúde. Ou seja,
parece-me que a ênfase é dada ao bacharelado e não à licenciatura.
Há a possibilidade de que as coisas sejam revertidas no próprio cotidiano do
mercado de trabalho. Existindo uma adesão do futuro profissional à escola e, sendo
restrita a sua atuação a esse campo, no caso dos licenciados, pode ser que ocorra
uma especialização desses professores para a solução dos problemas diagnosticados
na educação física atual, vindo a contribuir com a fundamentação necessária a manu-
tenção de seus conteúdos e metodologias como disciplina obrigatória no ensino bási-
co, tarefa que tem sido negligenciada ao longo do tempo.
Desde 1996, quando da promulgação da LDB, não há mais determinação de
carga horária das disciplinas. A escola é que constrói seu projeto pedagógico
e define a carga horária de cada uma. Portanto, é o professor de Educação
Física que deve justificar a permanência da sua disciplina no currículo e apre-
sentar sua finalidade, argumentando e convencendo a comunidade da quan-
tidade de sessões a ser oferecida na escola. Isto representa uma ruptura
muito brusca e pegou desprevenidos os professores escolares, que sempre
estiveram sob a capa protetora da obrigatoriedade, sem que tivessem que
se preocupar em demonstrar para os pais, para o corpo docente e até mes-
mo para os alunos sua finalidade e sua importância para o futuro da socieda-
de. (CONFEF, 2002, p. 8)
Mas, o comprometimento do professor de educação física com a sua ação peda-
gógica parece estar distante da fundamentação presente nos textos das leis que asse-
guram a educação física como disciplina obrigatória no ensino básico. A constatação
da insatisfação de professores e diretores com as condutas de muitos profissionais da
área é recorrente nas entrevistas que fiz, por exemplo, Larissa Evaristo, uma das
sujeitospersonagens dessa pesquisa, perguntada sobre como era a esta disciplina no
colégio público no qual estudou:
31
– Eu não gostava, por que elas davam a bola e joga aí, faz o que você
quiser. Aí a gente se virava. Jogava vôlei só quem sabia jogar, aí
ficava aquele grupinho, nós dividíamos os times. E quem sabia jo-
gar handebol a mesma coisa. Quem queria jogar jogava e quem não
queria....
Janaína Silva, outra sujeitopersonagem da pesquisa, em resposta à mesma per-
gunta:
– Ah, tinha dia que tinha educação física de fato, mesmo! Tinha dia
que ele dava a bola para ficar jogando.
Questionada sobre a atuação do professor, visto que estuda em um curso de
formação superior em educação física, Janaína diz:
– Ele poderia ter explorado mais os esportes, não fazer o que a
maioria dos professores tem feito, dar a bola de futsal para os
meninos e outra bola para as meninas jogarem queimado ou vôlei.
De fato há uma separação das turmas de educação física nos colégios que fo-
ram visitados, havendo a predominância do futebol para os meninos – qualquer que
seja a faixa etária da turma – e às meninas o queimado e as brincadeiras com a bola
de voleibol, sendo que, para as meninas, não há a organização como jogo esportivo.
O professor Jorge, nome fictício de um dos profissionais de educação física que
contribuíram com depoimentos para a pesquisa, faz um comentário na segunda visita
que fiz à sua escola, justamente quando percebi que na quadra do colégio estão os
meninos e, em uma quadra improvisada entre a grade que circunda a quadra e a
parede do colégio, entre os quais Jorge fixa a rede de voleibol, estão as meninas:
– Eu já tentei dar aula juntando os meninos com as meninas, mas a
aula não rende.
1
Quanto às diretoras, o questionamento está relacionado à postura dos professo-
res frente ao compromisso assumido com o funcionalismo público e são enfáticas às
críticas aos professores, diz a diretora Carmem, que possui experiência como profes-
sora de educação física de colégios particulares e públicos e agora como diretora de
um colégio municipal:
A diferença é a postura sua como profissional e isso não é exclusivo do
professor de Educação Física, abrange todos os profissionais. A partir do
momento que você sabe que é um funcionário público e que você tem as
tuas regalias e que você tem a tua estabilidade, que o privado não te dá,
você acaba agindo diferente, alguns profissionais agem diferentemente no
ensino público e no privado.
A diretora Rosa, que, assim como a diretora Carmem, tem experiência de traba-
3
Conversa informal com o professor Jorge.
32
lho em vários cargos dentro das escolas municipais relata:
– Uma coisa que a gente vê muito aqui é o colega de trabalho dar uma
bola para as crianças ficarem ali fora jogando e vem para a sala
dos professores ficar de bate-papo.
Continua:
– Eu costumo dizer aqui nas minhas crises de nervos —
usa esse
termo dando a entender que em certos momentos desabafa com
outros professores sobre as situações que são acima do suportá-
vel —
que a estabilidade é o que atrapalha. Para muito profissional
isso não quer dizer nada, ele trabalha de acordo com a sua consci-
ência, mas para outros, que são muitos, a estabilidade é o avesso
do compromisso. Com a estabilidade não precisa ter o compromis-
so. (o grifo na citação é meu.)
E complementa, dizendo que não tem poderes para cobrar do professor que
execute o seu trabalho:
– Se eu chego e vejo o professor conversando na sala dos professo-
res num momento em que ele deveria estar em sala de aula, a única
coisa que eu posso fazer é conversar com ele e pedir para ele ir
trabalhar. Se eu sou dona da escola, de uma escola particular,
esse professor é demitido.
Fato também relatado pela diretora Carmem:
– Não, aqui nós temos um coordenador pedagógico, mas é difícil você
“amarrar” com todos do grupo um mesmo pensamento. O pensa-
mento em comum é o projeto político-pedagógico da escola. E tam-
bém não tem uma cobrança, você não tem como obrigar aquele que
não quis, aquele que não fez, você não tem meios legais para co-
brar isso. Você dá uma advertência, chama a atenção, mas não
causa um efeito.
As diretoras, na linha da fala da diretora Rosa, evidenciam as condições de tra-
balho ruins, enfrentadas pelos professores:
– Você vê a condição de trabalho do Jorge? Os professores são uns
heróis, pois as condições de trabalho deles são péssimas.
Porém, parece que parte dos professores não se importa com a rotulação dos
professores de educação física como professores de segunda classe, enquanto ou-
tros trabalham para modificar esse conceito de como são percebidos os professores
dessa disciplina nas escolas ou em justificar sua a presença da nesse espaço educa-
cional, com a palavra a diretora Carmem:
– Agora, a gente ainda enfrenta um monte de tabu. Em qualquer
área a gente tem o profissional sério e outro que não é assim. Eu,
como diretora, não tenho tido problemas, mas escuto outras dire-
toras dizendo que tem gente que larga a bola e sai, deixa fazer o
que se quer, tem professor que vai ler jornal no carro e deixa um
33
aluno lá apitando, tem professor que dá futebol o ano inteiro, den-
tro da rede pública nós temos muito isso. Agora, também temos
aquele professor que dá trabalho, que se preocupa em três partes
de uma aula —
referindo-se ao modelo de aula com aquecimento e
formação corporal, parte principal da aula e volta à calma —
que
faz planejamento, que procura dar uma visão de que a Educação
Física não é somente a parte física, mas que tem a parte social,
que tem a parte de saúde... Em um dia chuvoso, o professor vai
para a sala e dá uma aula sobre anabolizante, dá uma aula sobre
aspectos de saúde, toda essa parte que tem relação com a ativida-
de física. E esse professor sério é muitas vezes marginalizado,
pois tem que vencer uma “certa coisa” para ser ouvido no conselho
de classe. (os grifos são meus)
Para ilustrar o tema, trago uma história contada por um amigo, professor Maurí-
cio Barros, durante sua defesa de monografia de pós-graduação em docência superi-
or, quando da sua apresentação em uma escola estadual em São Gonçalo:
34
Muitas dúvidas crescem a partir dessa constatação, mas como a mudança é
recente, provavelmente, daqui a 2 ou 3 anos, possamos desenvolver pesquisas que
nos permitam perceber o que ocorreu com essa divisão na formação do professor e se
as justificativas da inclusão da educação física no ensino básico estão em consonân-
cia com a ação pedagógica e profissional do professor de educação física, assim como
as condições de trabalho oferecidas a esse profissional e a essa disciplina curricular.
CAPÍTULO 2
A QUEM CABE FALAR
SOBRE EDUCAÇÃO FÍSICA
E ESPORTE
36
SABERES E CONHECIMENTOS
As pesquisas sobre os temas ligados ao esporte têm recebido, ao longo dos
últimos 30 anos, contribuições de diversas áreas dos saberes e dos conhecimentos
humano. Proponho essa nomenclatura diferenciada entre saberes e conhecimentos
humanos com o propósito de ressaltar a influência das pesquisas empíricas na área
dos esportes, que comporiam, no raciocínio que pretendo desenvolver, um corpus de
“conhecimentos práticos”, diferenciado das contribuições ditas científicas, que são as
respaldadas pela academia. Muitos saberes são tecidos pelos atletas, técnicos e ou-
tros profissionais que trabalham com esportes, mas não encontram fundamentos teó-
ricos que os certifique e, às vezes, expor esses saberes à comunidade científica, com
intuito de certificá-los como um conhecimento, não é uma preocupação desses profis-
sionais.
Bourdieu, que, em sua obra, faz grandes utilizações metafóricas do esporte e
dos jogos para explicitação de suas teorias, fazendo referência às dificuldades enfren-
tadas pela sociologia dos esportes, diz:
A lógica da divisão social do trabalho tende a se reproduzir na divisão do
trabalho científico. Assim, de um lado existem pessoas que conhecem muito
bem o esporte na forma prática, mas que não sabem falar dele, e, de outro,
pessoas que conhecem muito mal o esporte na prática e que poderiam falar
dele, mas não se dignam a fazê-lo, ou o fazem a torto e a direito. (BOURDIEU,
2004, p. 207).4
A princípio, parece-me que todas as áreas científicas têm dificuldades em esta-
belecer esse diálogo entre suas teorias e suas práticas, e essas dificuldades evidenci-
am-se no campo do esporte por tratar-se de um espaço de intensa prática, muitas
vezes alheia às informações teóricas de cunho científico – o conhecimento –, porém,
impregnadas de teorias empíricas – os saberes.
Marchi Jr (2002) afirma-se desafiado por Bourdieu, a partir de sua leitura do
trecho acima do pesquisador francês, a ser um interlocutor que possa discutir, com
4
Este capítulo do livro foi composto a partir da participação no grupo de estudos “Vida física e jogos”, CEMEA, novembro de
1980 e conferência introdutória ao VIII Simpósio do ICSS, “Sport, classes sociales et sub-culture”, Paris, julho de 1983.
37
autoridade, sobre esporte. Como professor de educação física e esportista – vivenciei o
voleibol como atleta e, posteriormente, como treinador de equipes e pesquisador, assim
como Marchi Jr (2004), que revela em sua tese de doutorado um percurso pessoal liga-
do ao voleibol semelhante ao que percorri em minha história de vida –, sentia-me impe-
lido a ser um desses autorizados, pelo domínio da prática do esporte e pela inserção no
meio acadêmico, a tomar o desafio feito por Bourdieu e mostrar que, nas áreas da edu-
cação física e esportes, existem profissionais que podem “falar” sobre o esporte.
Porém, com as contribuições das discussões sobre o tema “relação entre prática e
teoria” desenvolvidas nos grupos de pesquisa dos quais faço parte
5
, percebi que a tenta-
tiva de Bourdieu era menos a de instigar os esportistas e professores de educação física
a participarem com mais empenho das pesquisas na área dos esportes do que discutir
a relação entre os conhecimentos práticos e as teorias. Em diversos momentos posteri-
ores à primeira citação que utilizei, o autor determina o objetivo de sua exposição: “Pen-
so que o esporte é, como a dança, um dos terrenos onde se coloca com acuidade máxi-
ma o problema das relações entre a teoria e a prática...” (BOURDIEU, 2004, p. 218)
Quanto a esse assunto, concordo com Alves e Garcia (2006), que estabelecem um
objetivo:
Rompendo com a histórica segmentação e hierarquização entre teoria e prá-
tica, em que o momento da teoria precedia o momento da prática, que se
dava apenas através dos estágios, entendeu-se que a pesquisa, percorren-
do todo o curso, garantiria uma permanente relação teoria-prática. Prática
não entendida apenas como atividade, mas também, e principalmente, como
acumulação e transmissão de conhecimentos apriorísticos, vistos como apro-
priação refletida da prática. (p.79)
Desde os anos em que foram proferidas as exposições que permitiram a publica-
ção do texto no livro citado
6
até os dias atuais, há uma enorme diferença da capacitação
do professor de educação física para as pesquisas, assim como na formação geral
dos professores desta área. Embora, como acrescente Marchi Jr (2002), as áreas dos
esportes futebol e voleibol tenham crescido em produções acadêmicas,
No caso do voleibol, as produções são insípidas, relatando invariavelmente
preocupações com performances técnicas, metodologias de aprendizagem
dos fundamentos, estruturas táticas primárias e análises biomecânicas ou
fisiológicas de determinados gestos motores (p. 78).
5
Grupos “As redes de conhecimentos em educação e comunicação: questão de cidadania” e “Linguagens desenhadas e
Educação” do Programa de Pós-graduação em Educação– ProPEd-UERJ, coordenados, respectivamente, pela profª drª Nilda
Alves e o prof. dr. Paulo Sgarbi.
6
Respectivamente, 1980 e 1983, para a publicação do livro em 1987 e a publicação brasileira em 1990. Respectivamente,
1980 e 1983, para a publicação do livro em 1987 e a publicação brasileira em 1990.
38
Outra situação que pode ser observada é a acentuada melhoria no nível cultural dos
atletas, com uma participação crescente desse grupo no ensino médio e superior. O
próprio esporte tem sido um caminho para a formação superior pela concessão de bol-
sas de estudos para atletas em escolas do ensino médio e universidades privadas que
investem no esporte estudantil.
No campo dos esportes há uma crescente exposição dos saberes de treinadores
em cínicas e palestras, onde esses profissionais relatam aos seus colegas de ofício
suas metodologias de trabalho e as histórias acumuladas nos anos de trabalho à fren-
te de equipes esportivas. Porém, esses conhecimentos produzidos empiricamente, e
que são reconhecidos pelos que trabalham com esportes em clubes, não são reco-
nhecidos pelo universo científico da área da ciência da motricidade humana. A experi-
ência de atletas e outros sujeitos que vivenciam o esporte e produzem conhecimentos
empiricamente não recebe atenção dos cientistas. No campo da educação física, en-
tre os professores e os alunos, acontece o mesmo processo de ignorar os saberes/
conhecimentos dos que não estão autorizados a falar em nome do científico.
Entendo que o conhecimento, como está instituído atualmente, recebe essa no-
meação quando é reconhecido por uma comunidade de eleitos de uma área. Esse
poder de determinar o que é ou não conhecimento é uma das questões que, a meu
ver, precisa ser discutida com mais profundidade na área da ciência da motricidade
humana. Assim como, precisam ser questionadas as formas de produção desse co-
nhecimento, pois, embora o método científico moderno possa funcionar, por exemplo,
para as pesquisas relacionadas às áreas biológicas e bioquímicas que dão subsídios à
área da ciência da motricidade humana, esse método não tem a mesma capacidade
de atender as pesquisas na área das ciências humana e sociais que igualmente sub-
sidiam aquela área do conhecimento humano.
AS VITÓRIAS HISTÓRICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO FÍSICA
O esporte e a educação física ocupam, no imaginário educacional das últimas
décadas, um lugar vinculado ao militarismo e aos interesses do poder político
hegemônico, qual seja sua linha ideológica. Alguns textos, ao longo dos anos, princi-
palmente após a metade da década de 80 do século passado, retratam essa visão de
subserviência da educação física e do esporte ao sistema capitalista, por exemplo.
A sociedade não pode ser analisada sem que sejam levadas em conta as rela-
ções de poder e forças históricas que a forjaram da maneira que se apresenta ao
nosso tempo atual. As formas de discursos e ações que conhecemos como dominan-
39
tes ou hegemônicas são resultados de lutas travadas no interior dos campos das diver-
sas áreas da atuação e do conhecimento humanos. Assim, como algumas posições são
reconhecidas como as corretas, outras perspectivas sobre o mesmo objeto são margi-
nalizadas ou tidas como erradas e, às vezes, nem reconhecidas são. Tal aceitação da
superioridade de uma perspectiva sobre a outra fundamenta a tomada de decisões e
determina a adoção de políticas públicas em vários setores da sociedade.
Em muitos casos, a hegemonia de uma determinada visão de mundo não é majo-
ritária, ou seja, inúmeras vezes, certas políticas são traçadas por uma pequena parcela
de pessoas que detêm o poder em suas áreas de atuação em detrimento de uma maio-
ria de pessoas que não possuem poder suficiente para contrapor a ideologia ou não tem
o reconhecimento político para interferir nessas disputas de poder.
Portanto, várias formas hegemônicas de pensar e atuar são vitórias históricas,
nem sempre representativas de uma maioria, e mesmo as que o são podem ter sido
conseguidas com a utilização de manipulações ou de forças não democráticas. E as
vitórias democráticas, observa Oliveira (1999), mesmo assim, são a expressão da
dominação de uma maioria sobre uma minoria, o que não dá o direito aos dominantes
de não reconhecerem ou marginalizarem as visões derrotadas.
Essas perspectivas, movimentos, ideologias, grupos ou pessoas derrotadas nas
relações de força das lutas pelo poder em determinado campo ou espaço, às vezes,
não se dão conta da importância de suas participações nesses embates pelo poder, ou
mesmo não se interessam em assumir a hegemonia ou questionar a existente em seu
campo de atuação. Certas categorias profissionais, por exemplo, são dominadas ide-
ologicamente por grupos que não encontram resistência ou, quando as encontram,
não precisam desenvolver uma relação dialética com esses grupos opostos, seja pela
ausência de condições políticas dentro do campo profissional ou pela falta de interes-
se e visão política de seus participantes. Particularmente na área da educação física,
essa dominação ocorreu, muitas vezes, por influências de outras áreas, como a medi-
cina e o militarismo, que, a bem da verdade, foram as áreas fundadoras e divulgadoras
da importância da educação física, seja como meio para os cuidados com a saúde,
seja para a aptidão física e melhor execução das tarefas cotidianas.
DESCONSTRUINDO ALGUMAS INJUSTIÇAS HISTÓRICAS
Parte do estigma que a educação física carrega em seus ombros atualmente, e
muitas das críticas sofridas no ambiente educacional, provêm dessa origem não tão
distante do termo educação física, pois o doutrinamento do corpo ou a repressão cor-
40
poral são apontados como a forma de agir dos professores dessa disciplina. Contra
essa posição, tenho diversas críticas, e umas delas é a imputação da participação da
educação física como elemento primeiro do regime militar dentro das escolas na épo-
ca da ditadura militar no Brasil. Muito pelo contrário, naquela época, em que vivi como
aluno, a repressão dentro de sala de aula era tal qual a que existia nas aulas de
educação física – falo da segunda metade da década de setenta –, quando era proibi-
da qualquer manifestação dos alunos dentro de sala de aula, com exceção das autori-
zadas pela professora. Lembro-me perfeitamente da formatura para a entrada nas
salas de aula, quando, no pátio do colégio, éramos posicionados como tropa militar
pela professora ou por algum membro da diretoria da escola, quando, antes da execu-
ção do hino nacional brasileiro ou de algum sermão matinal, precisávamos cumprir a
“ordem unida”, uma seqüência de posicionamentos que deveria ser executado ao co-
mando do responsável pela organização deste momento rotineiro do colégio.
Posicionados em colunas, os alunos tinham que esticar o braço direito à frente de
modo que as pontas dos dedos tocassem o ombro do aluno posicionado à sua frente;
o mesmo procedimento era utilizado para afastar as colunas da direita e da esquerda,
e os comandos utilizados eram: cobrir à frente, cobrir ao lado direito e cobrir ao lado
esquerdo. Tais procedimentos eram executados em todos os momentos da rotina diá-
ria das escolas. Os deslocamentos dentro das escolas eram feitos sempre em colunas
com os alunos respeitando as distâncias estabelecidas na “ordem unida”. Ou seja,
nesse período da história da educação no Brasil, confundiu-se a presença da educa-
ção física, estimulada pelos militares, com as posturas adotadas em todo o funciona-
mento da escola.
Mas talvez fossem os momentos vividos pelos alunos nas aulas de educação
física os de maior liberdade corporal. Naqueles momentos, os alunos podiam correr,
brincar, jogar e outros comportamentos não tolerados nas aulas de outras disciplinas
como: falar com os amigos, abraçar uns aos outros, rir e até sugerir práticas aos pro-
fessores, que eram claramente divididos em dois segmentos: os de origem militar ou
de ideologia militar e os professores provenientes das faculdades de educação física,
certamente os mais liberais e defensores da igualdade e da capacidade humana em
aprender. Quando se tinha a sorte de “cair” na turma de um professor desses do se-
gundo grupo, sabia-se que, pelo menos uma vez por semana, a escola seria um local
de convivência ampla, de amizade e de trabalho em grupo.
Ainda nesse caminho de desfazer injustiças, outro tópico interessante a ser
desconstruído é a atribuição da doutrinação corporal exercida pela educação física em
41
seus discentes. Há uma grande diferença entre doutrinação, embrutecimento corporal
ou adestramento corporal e a educação física, mesmo a praticada nos seus primórdios.
Portanto, a educação física que temos hoje pode ser considerada a perspectiva vence-
dora das lutas que foram travadas no campo dessa área, e, nela, o esporte perdeu espa-
ço, mas continua sendo um conteúdo importante do currículo praticado nas escolas e
com ótima aceitação pelos alunos (LUCERO, 2006).
UM BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA COM COMENTÁRIOS
O que se segue nesse tópico é uma apresentação de como a história da educa-
ção física é encontrada nos livros. São análises bem construídas, porém, muitas ve-
zes, anacronicamente construídas. Portanto, farei algumas considerações acerca dessa
maneira de contar essa história.
A educação física escolar – segmento da educação física que se consolida na
educação brasileira desde o século XIX (VAGO, 1999), e segundo Capitanio (2003) –
, nos diferentes momentos históricos, respondeu às necessidades sociais. Como a
autora demonstra, a partir de outros autores, a educação física recebe influências e
determinações a partir das ideologias e dos movimentos políticos.
No final do século XIX e no início do XX, a importância da educação física escolar
era pelo seu caráter higiênico. Se imaginarmos esse espaçotempo, provavelmente
concluiremos que o fenômeno que aparecia nas escolas era a ginástica com fins de
saúde, o que é chamado higienismo. Não podemos desprezar essa contribuição em
um momento em que Oswaldo Cruz se esforçava para sanear as cidades brasileiras,
afastando-as da peste bubônica, febre amarela e varíola, chegando a acontecer a
Revolta das Vacinas, no Rio de Janeiro, em 1906, pela obrigatoriedade da vacinação
contra a varíola. Nesse mesmo período, o prefeito Pereira Passos organizava a refor-
ma urbana no então Distrito Federal.
Considerando que o Brasil havia se tornado república em 1889, quase 1890, e
que as escolas públicas no Brasil têm o início de sua expansão nessa última década
do século XIX, não é difícil de imaginar quanto era avançada, para a época, a inclusão
da ginástica nas escolas. Hoje, quando se fala dos objetivos higiênicos da ginástica
daquela época, faz-se muitas vezes com o intuito de denegrir a importância da
implementação dessa atividade nas escolas, embora hoje, como já relatado em outros
momentos dessa dissertação, o CONFEF reconhece que a vertente da área de saúde
é essencial para a justificativa da manutenção da educação física curricular — que eu
gosto de chamar de educação física, apenas, sem a necessidade do complemento
42
curricular ou escolar.
No ideal escolanovista, o importante era criar novos hábitos e tornar o corpo disci-
plinado. As décadas de 50 e 60 do século passado estavam voltadas para os alunos das
classes populares e o desenvolvimento da saúde e das habilidades fundamentais para a
vida e o trabalho, assim como para a formação do caráter do bom cidadão. Porém, sem
discordar da visão histórica de Capitanio, é preciso que discutamos se tais influências e
objetivos eram postos em prática apenas na área da educação física ou se era um pro-
jeto que atingia a todos os segmentos da educação.
As críticas feitas à associação do esporte com as ideologias capitalistas preci-
sam receber uma revisão por parte dos professores que atuam e acreditam no valor
educacional do esporte, mesmo para o alcance dos objetivos do ensino em redes e da
emancipação humana. Esses discursos ideológicos, partidários ao socialismo e contra
o capitalismo, construíram grande parte da retórica contra a presença do esporte na
escola. Mesmo tendo seu valor – a época em que esses discursos foram escritos e
defendidos era de mudanças políticas em nosso país – e contribuindo com propostas
positivas para a utilização do esporte nas escolas, foram forjados por professores com
uma determinada formação acadêmica ligada à filosofia e às ciências políticas e utili-
zados como argumento contra as posições defendidas por professores com formação
técnica em educação física e com pouca preparação para os embates políticos acerca
do tema. Nesse contexto de desigualdade de forças políticas, foram estabelecidos
alguns conceitos que se tornaram “verdades”, mas que não possuem nenhum outro
fundamento a não ser a ideologia política e a competência retórica de seus defenso-
res. Parte da dificuldade em se falar dos esportes ou estudá-lo, principalmente no
Brasil, nessa época em que Bourdieu publica o livro Coisas ditas, provém de um dis-
curso que pode ser encontrado nas obras dos mais consagrados escritores e pesqui-
sadores da área da educação física brasileira e que acusava o esporte de subserviên-
cia aos regimes totalitários, marcadamente aos regimes de orientação capitalista e
militar. Em 1986, é lançado um texto que ainda é muito citado em trabalhos relaciona-
dos à educação, esportes e educação física “a criança que pratica esporte respeita as
regras do jogo... capitalista.” (BRACTH, 1986). Este artigo e as discussões que o
sucederam impuseram uma vitória histórica de um grupo intelectualizado, porém ide-
ologicamente comprometido com a luta política daquele espaçotempo, sobre uma
maioria de professores de educação física, esportistas e defensores do potencial
educativo e emancipador do esporte, que Bourdieu (2004) constata ser uma parcela
que se mantinha em silêncio: “O silêncio dos esportistas de que falei no início deve-se
43
em parte, quando não se é profissional da explicitação, ao fato de haver coisas que não
se sabe dizer [...] (p. 219).
Cabe, aqui, ressaltar a importância histórica da década de 80 do século XX para a
política brasileira. A “abertura política” que possibilitou o retorno de intelectuais e líderes
políticos exilados, as manifestações populares em defesa das eleições diretas, a forma-
ção da assembléia constituinte e a promulgação da constituição brasileira em 1988 e
tantas outras mudanças no cenário social e político brasileiro, respaldavam um tipo de
discurso no qual os esportes perderam seu potencial emancipador e ganharam um es-
tigma de subserviência aos regimes de governo. O próprio Bourdieu faz referências a
este uso do esporte no texto supracitado.
Portanto, considero que, hoje em dia, os esportistas
7
fazem-se representar me-
lhor que em outras épocas, mas ainda têm batalhas a travar no complicado espaço da
intelectualidade e do poder da área da educação física.
O esporte, e a própria educação física (área científica) – que eu considero como
área da ciência da motricidade humana – devem ser “re-significados” (MORENO, 2006),
no que se referem à educação física. Nessa perspectiva, são tarefas importantes a
análise da formação acadêmica e da prática do profissional da área nas escolas, as-
sim como, a investigação do cotidiano escolar.
A história da educação física, o ramo pedagógico da ciência da motricidade hu-
mana, deve ser pesquisada sem que seja confundida com a história de outros fenôme-
nos dessa área científica, pois, quando há esta superposição de histórias, o discurso
que cabe à educação física é sempre o higiênico-terapêutico-disciplinarizante herdado
das influências médicas e militares que originaram a ginástica sueca, os exercícios
respiratórios e a preparação de tropas para a guerra. Há que se pesquisar o fenômeno
escolar educação física a fim de consolidarmos os propósitos que fundamentam a sua
presença como elemento curricular nas nossas escolas.
Paralelamente aos estudos sobre educação física, suas áreas irmãs devem ser
estudadas com a finalidade de oferecerem subsídios para a atuação do professor de
educação física. Portanto, as subdivisões da área da ciência da motricidade humana
devem oferecer uma proposta de sua inclusão nos conteúdos da educação física, que
devem ser feitas a partir dos preceitos e diretrizes que alicerçam a educação geral.
A tarefa parece singela, porém é de difícil execução, visto que ramos como os
7
Refiro-me tanto aos professores de educação física que acreditam no poder emancipatório do esporte, quanto aos próprios
esportistas, que hoje possuem escolarização média e superior, em contraste com outras épocas.
44
esportes, as danças, as lutas e tantos outros se encontram sob grande exposição midiática
e encontram fortes barreiras culturais para a sua implementação nas escolas.
CAPÍTULO 3
EM DEFESA
DO
ESPORTE
46
O ESPORTE, A ESCOLA E A EDUCAÇÃO FÍSICA
Quero defender o potencial educativo do esporte e a sua inclusão no ambiente
escolar, tanto como conteúdo quanto como atividade desvinculada das aulas de edu-
cação física na forma de oficinas e equipes esportivas, porém, constante no projeto
curricular nas escolas públicas do Município do Rio de Janeiro e do Estado do Rio de
Janeiro.
Na perspectiva teórica do ensino em redes, que considera a competição esporti-
va um dificultador da cooperação entre seus praticantes, o esporte tem perdido espa-
ço na educação física. Grande parte das críticas que são feitas ao esporte, nesse
contexto está ligada à competitividade e à exclusão dos alunos pelo critério da desem-
penho esportivo de excelência. Na própria área, o esporte tem sido menosprezado e
são encontrados discursos contra a sua inclusão como conteúdo dos currículos e até
mesmo que seja desenvolvido nas escolas através de competições esportivas.
O esporte, a escola e a educação física são três instituições histórico-sociais que
têm suas origens, percursos e finalidades definidos no interior dos seus campos de
luta e espaços de poder, assim como, pelas demandas sociais que as garantiram
como dever do Estado nas legislações, como o é o desporto pela constituição brasilei-
ra (1988):
Art. 217 – É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-
formais, como direito de cada um ...(p. 235.)
Bourdieu (2003), como dito na introdução desse estudo, alerta para o fato de que
instituições são mistificadas e passam a constituir-se em sujeitos históricos capazes
de formular e realizar seus próprios fins, mas que sua atuação social é produto das
ações e reações dos agentes que as compõem. Portanto, não podemos responsabili-
zar o esporte, a escola ou a educação física pelos usos que são feitos destes, ou
melhor, não podemos acusá-los de agir. A intervenção do professor é fundamental
para que o esporte seja uma prática educativa no espaço escolar ou fora dele.
O exemplo paraolímpico
Acredito que o esporte seja a maior instituição sociocultural da atualidade em
47
termos de inclusão e aceitação das diferen-
ças. Nenhuma outra área humana realiza
eventos mundiais de inclusão como o espor-
te. Para ressaltar essa vertente esportiva, cabe
aqui citar as paraolimpíadas, que são disputa-
das na seqüência dos jogos olímpicos de ve-
rão e contam com a participação de mais de
4000 atletas disputando as competições de 19
modalidades esportivas.
O esporte paraolímpico é realizado, qua-
se em sua totalidade, por entidades não go-
vernamentais como o Instituto Brasileiro dos
Direitos das Pessoas com Deficiência – IBDD, que promove a
inclusão de pessoas como Márcio Jerônimo, zagueiro do time
de futebol da instituição. Quando vemos as fotografias de
Márcio correndo no campo de
futebol e o mesmo atleta assi-
nando com os pés o seu contra-
to junto ao IBDD, percebemos a
magnitude que a experiência es-
portiva e o fomento do esporte
para pessoas com deficiência
podem significar no projeto soci-
al de um país.
Um amigo de trabalho, Leo-
nardo Silva, professor de basquete no clube em que tra-
balho com voleibol, há alguns anos atrás trabalhava em
um clube destinado à prática esportiva de pessoas com deficiência física – clube dos
paraplégicos – localizado no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, onde desenvolvia
basquetebol de cadeirantes
8
e atletismo. Trabalhou, também, na fase de implantação
do IBDD no desporto para pessoas com deficiência mental e física. Sobre essa expe-
riência e questionado sobre a importância do esporte para a integração social do defi-
ciente físico, Leonardo diz:
O esporte é um meio de integração com outras pessoas e, no caso
8
Cadeirantes é um termo que refere aos deficientes físicos que usam cadeira de rodas.
Imagem 01: Paratletas na
Olimpíada de Atena.
Imagem 03: Márcio Jerônimo
assinando seu contrato de prática
esportiva e promoção social junto ao
IBDD.
Imagem 02: Márcio Jerônimo,
zagueiro do time do IBDD.
48
da competição, permite ao deficiente conhecer outros lugares,
ser conhecido, ser respeitado nos lugares que freqüenta. Acho
que o esporte dá mais motivação a ele, uma nova visão que ele não
teria se não estivesse praticando esporte, dá a superação e a cer-
teza de que ele pode realizar algumas coisas que antes ele não
saberia. Por isso o esporte é importante para essas pessoas.
Em relação à utilização do esporte como ferramenta de inclusão dos portadores
de necessidades especiais nas escolas, sua opinião é a seguinte:
– Muitas vezes, estes alunos não têm o conhecimento de suas possi-
bilidades e os outros alunos também não sabem a capacidade que
esses alunos têm. Cabe a nós, professores, integrá-los e desenvol-
ver as atividades na escola. Levando esses atletas paraolímpicos
para apresentações, podemos quebrar essa barreira que existe
ainda na escola. [...] E até em relação aos professores, pois muitos
desconhecem essas práticas, mesmo os professores que traba-
lham com esportes às vezes desconhecem o trabalho que é desen-
volvido no paradesporto. E as escolas devem receber também adap-
tações para que esses alunos possam estar no nosso convívio. É
muito importante que isso aconteça.
Qual instituição, organização, entidade governamental ou social promove a inclu-
são dos portadores de necessidades especiais com tanta veemência como o esporte?
Tais competições são disputadas, também, nas competições continentais, como nos
jogos pan-americanos. Em 2007, tivemos a realização dos jogos parapan-americanos,
na cidade do Rio de Janeiro, e, desde 1995, existe o Comitê Paraolímpico Brasileiro,
responsável por organizar e desenvolver essa vertente desportiva no Brasil.
A cobertura, pelas mídias, das últimas competições paradesportivas – a Parao-
limpíada da Grécia, em 2004, e o Parapan-americano do Brasil, em 2007 – permitiram
a divulgação do desporto paraolímpico e possibilitaram o reconhecimento público de
novos atletas.
Clodoaldo da Silva ficou conhecido na Paraolimpía-
da da Grécia e a influência de sua participação no evento
ultrapassou os limites da cobertura esportiva e apareceu
nos muros da cidade mostrando o orgulho e o reconheci-
mento popular ao atleta. Portador de paralisia cerebral, o
atleta de natação recebeu o prêmio de melhor atleta para-
olímpico do mundo pela sua participação nas olimpíadas
de Atenas.
Ádria dos Santos considera seu sucesso nas pistas
de atletismo uma forma de incentivar as mulheres portado-
ras de deficiência visual a acreditarem em seu potencial.
Imagem 04: Clodoaldo da Silva na
Paraolimpíada de Atenas.
49
Diz, em entrevista a um site da internet:
Com o meu reconhecimento eu posso mostrar para as mulheres, principal-
mente aquelas portadoras de deficiências visuais, que a gente tem capaci-
dade e condições de se superar, não só no esporte, mas também no traba-
lho. A mulher pode alcançar um espaço muito grande. Antes ela vivia dentro
de casa. Hoje muitas mulheres deficientes praticam esporte e tem seus em-
pregos. (LUSTOSA, 2006)
Sobre o trabalho do esporte paraolímpico, Ádria diz:
No nosso país existem muitas pessoas com preconceito. O trabalho de divul-
gação do esporte paraolímpico tem ajudado bastante. Mostra para as pesso-
as que o deficiente é capaz de fazer as coisas. Mesmo com algumas limita-
ções são poucas as coisas que não conseguimos fazer. Tem pessoas que
não sabem conviver com a diferença. Se você não tem um dedo, os outros já
vão te olhar de uma maneira diferente. Essa é nossa cultura. (id., ib.)
ESPORTE, EUGENIA E RACISMO
Por toda a literatura dedicada à história da educação física, há estabelecida uma
confusão entre esse termo e esporte, havendo, também, referências à educação física
como eugênica e higienista. Essas referências fundamentadas na eugenia e no higie-
nismo são comuns a vários espaçostempos. Não aparecia exclusivamente nas ativida-
des ligadas à educação física e fizeram parte de toda a área de saúde, educação,
política e tantas outras instituições sociais entre os séculos XIX e XX e está presente
hoje, com mais ênfase do que naqueles tempos, na forma das preocupações preven-
tivas com a saúde, das discussões sobre a utilização da manipulação genética com
células tronco, nas pesquisas de detecção de problemas genéticos em fetos, na utili-
zação de pesquisas experimentais com doentes voluntários, nas ações de fertilização
Imagem 05: A ginasta Dayane dos Santos e o paratleta Clodoaldo da
Silva retratados em um muro do Rio de Janeiro.
Imagem 06:Ádria dos Santos e o guia de
corrida Jorge Luiz, o Chocolate.
50
humana in vitro, ações que eram denominadas eugenia e consideradas tabus éticos
para a ação humana e que receberam uma revisão crítica e ética ao longo dos anos.
Que se atribua esses fins aos primeiros métodos de ginástica e seus exercícios
de rotação, flexão, extensão – formas de manifestação da educação física na sua
inserção na escola – é compreensível, mas atribuí-los ao esporte redunda a uma con-
fusão histórica.
O esporte utilizava-se dos mes-
mos sistemas de ginásticas emprega-
dos na educação física, porém, dife-
rentemente do preconizado para a dis-
ciplina pedagógica, o esporte sempre
foi precursor de avanços e lutas soci-
ais que se opunham ao racismo, à
eugenia, à discriminação das mulhe-
res e às manifestações de opiniões
políticas.
Por exemplo, a educação física,
nas décadas de 20 e 30 do século XX,
preocupava-se com a introdução da
atividade física para as mulheres com
o intuito de preparar-lhes para a maternidade e para fortalecer as suas proles
(CASTELLANI FILHO, 1991). Na década de 1940, as mulheres tinham sua participa-
ção em esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza” pelo decreto-lei
número 3199, de 14 de abril de 1941 (CASTELLANI FILHO, 1991), porém, enquanto
os legisladores determinavam os aconselhamentos sobre o papel da atividade física
para as mulheres, na vida cotidiana as esportistas lutavam por seus direitos e influen-
ciavam as mudanças sociais. Em 1921,
esportistas da Inglaterra, dos Estados Uni-
dos, da França, Tchecoslováquia e Itália
fundaram a Féderation Sportive Feminine
Internationale (FSFI). (JÄGER, 2008).
Portanto, através do esporte, as mu-
lheres brigavam na sociedade pelos seus
direitos à participação nos eventos que
eram destinados somente aos homens. As
Imagem 07: Do livro Ensinando educação física, de Singer e Dick,
demonstrando uma situação em que o professor domina o cenário
e transforma o ambiente em controlado e inibidor.
Imagem 08: Alice Milliat, presidente da FSFI.
51
características físicas da competição esportiva – sudorese e sinais faciais de esforço
físico – e suas características psicológicas – empenho, determinação e superação de
limites – não eram admitidos socialmente como comportamentos pertinentes às mu-
lheres. (KLAFS, 1981). Segundo Jäger (2008), a atuação esportiva da mulher era con-
siderada por seus opositores uma ameaça à distribuição natural dos papéis.
A primeira participação das mulheres nos jogos olím-
picos aconteceu em 1900 em competições de golfe e tênis;
porém essa competição não foi organizada pelo Comitê
Olímpico Internacional, que tinha como opositor ao esporte
feminino nas olimpíadas o Barão de Coubertin, responsável
pelo restabelecimento dos jogos olímpicos modernos. O di-
rigente escreveu, em 1912, que as mulheres deveriam per-
manecer apenas na função do coroamento dos vencedores
das competições olímpicas com as coroas de flores, como
na Grécia Antiga. (KLAFS, 1981, p. 8)
Contudo, mesmo com todas as forças contrárias à parti-
cipação feminina nos jogos olímpicos, em 1920, as modalida-
des patinação no gelo, iatismo, tênis, ginástica e natação re-
ceberam mulheres em suas competições olímpicas.
No Brasil, a nadadora Maria Lenk, no final da década de
20, com 13 anos, começava a sua trajetória atlética que com-
preenderia a participação nas olimpíadas de 1932 e 1936. Lenk
foi a primeira mulher sul-americana a participar de uma ver-
são dos jogos olímpicos.
Em virtude da segunda grande guerra mundial, a olimpí-
ada de 1940, em Tóquio, foi cancelada e a nadadora brasilei-
ra não pode competir no auge da sua forma técnica e física, tendo batido dois recordes
mundiais de natação na temporada anterior. Com o sucesso da participação em uma
série de competições nos Estados Unidos, foi convidada para estudar em uma univer-
sidade americana de onde retornou para assumir o cargo de professora na Escola
Nacional de Educação Física da Universidade do Brasil, em 1942.
Na olimpíada de 1936, em Berlim, Adolf Hitler esperava fazer do evento esportivo
mundial com sede em seu país uma plataforma de seu projeto nazista. Para tanto,
Hitler convidou uma cinegrafista para documentar os eventos esportivos a fim de fazer
propaganda da superioridade ariana ao final dos jogos olímpicos. Alguns historiadores
Imagem 09: Barão de Coubertin.
Imagem 10: Maria Lenk.
52
afirmam que o presidente Getúlio Vargas nutria apreço pelas idéias nazistas de Hitler
e as fascistas de Mussolini, assim como outros governantes com tendências à ditadu-
ra.
Os alemães esperavam comemorar a supremacia ariana no estádio olímpico de
Berlim; porém, o americano Jesse Owens, atleta negro, ganhador de 4 medalhas de
ouro, foi a sensação dos jogos olímpicos. Embora a Alemanha tenha alcançado a
primeira colocação no quadro geral de medalhas, os sucessos dos atletas negros e
judeus colocaram abaixo o projeto de publicidade do nazismo a partir do esporte. A
festa germânica, prestigiada pelo público dentro e fora do estádio, havia vencido a
resistência dos países que queriam realizar um boicote aos jogos de Berlim quando da
ascensão do partido nazista ao poder, em 1933. A Espanha não enviou equipe para a
disputa dos jogos e entre as delegações que viajaram à Alemanha, muitos atletas
haviam-se negado a participar da competição temendo estarem fortalecendo o regime
nazista de Hitler.
Embora, os feitos de Jesse Owens o tenham levado a ser figura importante
contra a máquina de publicidade nazista, sua imagem passou a ser usada na
tentativa americana de divulgar seu país como símbolo de justiça, liberdade
e democracia. Porém, os Estados Unidos viviam forte crise interna em rela-
ção ao racismo e Owens acabou abandonando a seleção de atletismo do
seu país após rebelar-se contra a forma de remuneração e as condições
severas como os dirigentes americanos tratavam os atletas. (SILVINO, 2004).
Hitler havia deixado o estádio ao perceber que o vencedor da prova do salto em
altura seria outro atleta negro, Cornelius Johnson, e, como havia cumprimentado os
dois vencedores das primeiras provas, um alemão e um finlandês, deixara o estádio
para evitar o constrangimento de ter que cumprimentá-lo a frente dos cem mil alemães
que estavam presentes no local de competição.
Imagem 11: “Os alemães saúdam o seu líder durante os
Jogos Olímpicos.
Imagem 12: A carreata de Hitler passa através do Portão de
Brandenburg indo para a cerimônia de abertura da
Olimpíada de Berlim.
53
Apesar do clima de descon-
tentamento, Lutz Long, adversário
de Owens na prova do salto em
distância, mostrava bastante sim-
patia com o rival de saltos:
Insensíveis ao ambiente de exaltação
racista que se criara, Owens e Long
unem-se num comovido abraço e as-
sim abandonam a pista! Anos mais
tarde Jesse escreveria: «Poderia der-
reter todas as medalhas e troféus que
ganhei e mesmo assim não seria ca-
paz de cobrir a amizade de 24 quila-
tes que senti por Lutz naquele momen-
to.» Não teve tempo para a desenvolver e desfrutar. Porque Hitler (há quem
jure que para se vingar da afronta por que o fizera passar...) decidiu enviar
Long para uma das mais complicadas e mortíferas frentes de batalha da II
Guerra Mundial, morrendo em combate, na Sicília, a 14 de Junho de 1943. (A
Bola On-line)
O esporte percorreu as décadas do século XX sendo campo de lutas políticas e
sociais. Apesar de grande parte dos textos históricos fazerem referência à subserviên-
cia do esporte aos regimes governamentais, podemos ressaltar a importância do espor-
te nas mudanças sociais ocorridas ao longo do século.
Um dos fenômenos que o esporte ajuda a combater é o racismo. Nas copas do
mundo de futebol, além das campanhas pelo jogo limpo (fair play), há as campanhas
contra a discriminação racial e religiosa. Conquanto possa haver um interesse econômi-
co nessas campanhas, visto que o custo das contratações de atletas europeus pelos
Imagens 14a, 14b, 14c: Long e
Owens no podium e
conversando entre as séries da
prova de salto em distância na
Olimpíada de Berlim, 1936.
Imagem 13: O alemão Lutz Long, à esquerda, e o americano Jesse
Owens, à direita, competindo na prova de salto em distância na
Olimpíada de Berlim, 1936.
54
clubes daquele continente é maior que o investimento necessário para a contratação
de atletas sul-americanos e africanos, o mercado do futebol necessita que os atletas
negros, árabes, assim como os atletas provenientes dos países colonizados pelos
europeus, que possuem a nacionalidade européia, sejam aceitos naquele mercado
sem as manifestações de racismo que existem em algumas regiões européias.
A seguir, o resumo de uma reportagem de setembro de 2006 e relata os aconte-
cimentos de um jogo do campeonato alemão no qual um brasileiro foi insultado pela
torcida. A matéria jornalística mostra que as federações e confederações que organi-
zam o futebol punem financeiramente e com sanções ligadas à interdição do campo
de jogo da equipe responsável pela torcida agressora.
BERLIM – O atacante brasileiro Kahê, ex-Ponte Preta e Palmeiras e atualmente no Borussia
Mönchengladbach, foi vítima de atitudes racistas por parte da torcida do Alemannia Aachen, em confronto
pela quarta rodada do Campeonato Alemão.
Na partida, vencida pelo Alemannia Aachen por 4 a 2, a torcida do time de casa ofendeu Kahe com gritos de
"exilado". O árbitro Michael Weiner ordenou, então, que o sistema de alto-falantes do estádio solicitasse o
fim dos insultos, sob risco de paralisar o jogo.
Na última sexta-feira, a Federação Alemã já havia punido o Hansa Rostock, da Terceira Divisão, com multa
de 20 mil euros (cerca de R$ 55 mil) e uma partida com portões fechados pelas ofensas racistas de sua
torcida ao atacante Asamoah, do Schalke 04, em jogo válido pela Copa da Alemanha.
RIO DE JANEIRO – O atacante Kahê, do Borussia Mönchengladbach, vítima de atitudes racistas da torcida
do Alemannia Aachen no último final de semana, diz nesta segunda-feira, dia 18, que só foi entender os
xingamentos após o fim da partida. O motivo? O jogador, que está há cerca de um ano na Alemanha, não
entende muito o idioma local.
Em entrevista ao GLOBOESPORTE.COM, por telefone, da cidade de Mönchengladbach, o ex-palmeirense
relembra o fatídico lance que aconteceu no segundo tempo da partida, que terminou com a vitória de 4 a 2
para o Alemannia Aachen em jogo válido pela quarta rodada do Campeonato Alemão.
- Foi uma coisa chata. Estava perto da linha de escanteio e aí um adversário me deu uma cabeçada. Eu caí
e o juiz, que não viu o lance, me deu cartão por simulação. Nesse momento, os torcedores que estavam ali
perto começaram a gritar. Não entendi nada na hora e vi que o árbitro pediu para que os alto-falantes
anunciassem alguma coisa. Como ainda não compreendo muito o idioma, só fui saber que fui chamado de
"Exilado" e "Estrangeiro" depois que o jogo acabou – conta Kahê que, entretanto, acredita que a atitude foi
um ato isolado.
–Foi a primeira vez que aconteceu isso comigo aqui. Estou aqui há um ano e saio normalmente com minha
esposa e com meu filho na rua e nada acontece – ressalta o atacante, de 24 anos, que é o artilheiro do
Campeonato Alemão com três gols em quatro jogos.
FELIPE, Marcos. Kahê só soube de ato racista depois do jogo. GLOBOESPORTE.COM ,
Rio de Janeiro, 18 set. 2006. Disponível em: <http://globoesporte.globo.com/ESP/Noticia/
Arquivo/0,,AA1276905-4841,00.html>. Acesso em: 28 nov. 2007.
Imagens 15a e 15b: O símbolo da campanha "Diga não ao racismo" usado na copa do mundo da Alemanha em
2006 e sua exposição no centro do campo de futebol antes das partidas da competição.
55
Imagem 16: As equipes do Brasil e França posam antes do jogo da
semifinal da copa do mundo de 2006.
Imagem 17:As equipes de Portugal e
Alemanha posam antes do jogo da semifinal
da Eurocopa 2008.
As campanhas contra o racismo são justificadas pelo que acontece também no
futebol sul-americano, onde, em um jogo entre equipes da Argentina e do Brasil, um
dos jogadores da equipe do São Paulo Futebol Clube acusou de
racismo um jogador argentino da equipe do Quilmes Atlético Club.
O atleta brasileiro Edinaldo Batista, apelidado de Grafite por ser
negro, acusou o atleta Desábato, da equipe argentina, por tê-lo
ofendido chamando-o de macaco. O jogo foi realizado no estádio
do Morumbi, em São Paulo, e o atleta argentino foi preso pela
polícia paulista. As equipes enfrentaram-se em outra partida na
Argentina e bandeiras ofendendo o jogador brasileiro podiam ser
vistas pelo estádio da equipe argentina.
Algumas semanas depois desses acontecimentos, o atleta
Grafite foi novamente ofendido, em amistoso da seleção brasi-
leira de futebol disputado no estádio do Pacaembú, também
em São Paulo. Dessa vez, o insulto foi feito por torcedores
brasileiros, provavelmente alguns torcedores de outras equi-
pes paulistas. Uma banana com os dizeres “Grafite macaco”
foi atirada em campo.
No caso do atleta brasileiro Grafite, há a possibilidade de prisão e abertura de
inquéritos na justiça comum para os casos de racismo, sem que haja a interferência
das entidades que administram o futebol.
Apesar do esforço contra o racismo, a decisão da copa da UEFA de 2008 teve
duas equipes de torcidas intolerantes às questões raciais e religiosas como protago-
nistas, como mostra a reportagem abaixo.
Intolerantes Zenit e Rangers decidem a Copa da Uefa
Time russo não contrata negros, e os escoceses passaram a aceitar católicos em 1989
O campeão da Copa da Uefa será conhecido nesta quarta. A partir das 15h45min, Zenit-RUS e Rangers-
Imagem 19: Banana atirada
em campo em jogo amistoso
da seleção brasileira de futebol
no estádio do Pacaembú.
Imagem 18: Bandeira
exibida no jogo Quilmes x
São Paulo
56
ESC se enfrentam no Estádio City of Manchester, na cidade inglesa. O clicRBS acompanha no Minuto a
Minuto. Os dois times possuem um histórico de intolerância, racial no caso dos russos e religiosa entre os
escoceses.
O Zenit tem uma torcida declaradamente racista. O técnico da equipe, o holandês Dick Advocaat, já admitiu
que não pode contratar jogadores negros, "porque a torcida não quer". Por sua vez, há quase 20 anos, o
Rangers deu um passo à frente contra o preconceito: o clube de origem protestante e mais de 130 anos de
fundação mudou a política de contratações ao abrir as portas para os católicos.
Intolerantes Zenit e Rangers decidem a Copa da Uefa. CLICRBS, 13 mai. 2008. Disponí-
vel em: <http://www.clicrbs.com.br/clicesportes/jsp/default.jsp?newsID=a1860986.
htm&subTab=00065&uf=1&local=1&template=3858.dwt&section=Not%C3%ADcias>.
Acesso em: 27 mai. 2008.
QUESTÕES POLÍTICAS
A copa do mundo, em sua versão disputa-
da em 1998, conseguiu reunir as seleções dos
Estados Unidos e do Irã, que escutaram perfila-
das, lado a lado, os hinos nacionais de seus pa-
íses e fizeram um grande jogo, no qual a vitória
foi da equipe do Irã. Ao final da partida, os atletas
posaram juntos para fotos e trocaram flores como
cumprimentos ao final da partida. O exemplo do
clima amigável e esportivo que cercava o jogo está na postura dos torcedores antes e
depois da partida com confraternizações e tra-
tamento cordial, mostrando que o esporte
pode ser um veículo de aproximação dos po-
vos e nações.
Ao longo dos anos, muitos foram os
momentos em que países que passavam por
crises diplomáticas ou mesmo guerras tiveram
um encontro esportivo pacífico.
Nos bastidores do esporte, os boicotes
às competições mundiais levaram ao conhecimento de todos a polarização política
existente entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas. Em 1980, os EUA e seus aliados não compareceram à olimpíada de Mos-
cou e, em 1984, a URSS e seus aliados boicotaram a olimpíada de Los Angeles.
Alguns aliados dos dois países que lideravam a guerra fria não concordaram com as
determinações dadas pelos líderes dos seus blocos políticos e participaram das com-
petições esportivas organizadas pelos seus adversários políticos. Outros países for-
malizaram o apoio ao boicote, porém deixaram que seus atletas decidissem se com-
Imagem 20: Torcedores dos EUA e do Irã
confraternizando-se antes da partida de 1998.
Imagem 21:As equipes dos Estados Unidos e do Irã
trocaram flores e posaram juntos para as fotos em
1998.
57
petiriam ou não nas olimpíadas. Os atletas desses países que decidiram por competir
o fizeram sob a bandeira do Comitê Olímpico Internacional.
Os boicotes já haviam ocorrido em outras versões dos jogos olímpicos. A Espanha
não participou da olimpíada de Berlim, em 1936, países africanos não compareceram
à olimpíada de 1976, em Montreal, Canadá. Com nos eventos de 1980 e 1984, a
comunidade esportiva preocupou-se com a possibilidade da extinção dos jogos olím-
picos pelas ações políticas dos países que compunham os dois blocos ideológico-
políticos daqueles espaçostempos.
Imagem 22: Mapa dos boicotes olímpicos de 1976 a 1984.
A motivação para o boicote dos EUA e seus aliados à competição organizada na
URSS foi a invasão do Afeganistão pelos Soviéticos. A URSS, em represália ao boico-
te americano de 1980, mas alegando falta de segurança para seus atletas e aliados,
não compareceu a Los Angeles. Porém, essa versão dos jogos olímpicos inaugura
uma nova vertente do esporte mundial: o esporte comercial.
Mas o mais importante fato destes Jogos foi o anúncio, feito pelo Presidente
do Comitê Organizador Peter Ueberroth meses após seu término, de que
eles haviam dado um lucro de 200 milhões de dólares, além do lucro indireto
à própria cidade, o que sinalizava que, desde que organizados com compe-
tência organizacional, parceria com a iniciativa privada e bom senso na ad-
ministração financeira, os Jogos Olímpicos poderiam ser economicamente
viáveis, afastando a sombra de uma extinção provocada pela impossibilida-
de econômica que pairava sobre eles. (WIKIPÉDIA, s.d.)
O fim do amadorismo – que proibia a participação nos eventos olímpicos dos
atletas que recebiam salários ou alguma ajuda econômica para treinar e competir –
permitiu a entrada nos jogos de atletas que atuavam profissionalmente no esporte.
O conceito de amadorismo que impera ainda hoje é mais recente do que se
58
pensa. Não surgiu com os atletas da Grécia Antiga, mas com a aristocracia
inglesa do século 19. Foi uma forma de evitar que as classes trabalhadoras
se misturassem aos nobres nas competições. Os ricos podiam competir sem
a preocupação de terem como ganhar a vida. Por isso, sustentavam a idéia
do amadorismo.
A definição de amadorismo tem variado de tempos em tempos, de esporte
para esporte. A primeira vez em que foi posta no papel foi na velha Inglaterra,
em 1866. Segundo o código do Amateur Athletic Cub era amador “todo cava-
lheiro que nunca tenha participado de uma competição pública, que não haja
enfrentando profissionais, por preço ou dinheiro e que, não seja operário,
artesã ou diarista”.
Como tempo, esse conceito tornou-se mais elástico. A entrada da União
Soviética nos Jogos Olímpicos de 1952, criou os amadores do Estado – atle-
tas profissionais na prática, mas mascarados sob a condição de estudantes,
militares ou operários. Nos Jogos de Munique, em 1972, o Comitê Olímpico
Internacional considerava amador “todo aquele que não obtém vantagens
materiais do esporte. Já naquela época quase todos os atletas de alto nível
ganhavam alguma coisa para competir por seus países. (SOBIERAJSKI, 1999)
Com o término da proibição aos atletas profissionais, os jo-
gos olímpicos de Los Angeles contaram com o maior número de
atletas participantes até então na história das olimpíadas. Nas olim-
píadas de 1968, em meio às lutas pelo reconhecimento da igual-
dade racial, os jogos do México protagonizaram o protesto dos
atletas americanos Tommie Smith e John Carlos, campeão e ter-
ceiro lugar, respectivamente, da prova dos 200 metros rasos do
atletismo.
O mundo fervia, com manifestações por toda parte. Na Tchecoslováquia
o governo tentou se afastar de Moscou veio a “Primavera de Praga”. A
União Soviética invadiu Praga. O líder negro Martin Luther King foi assassi-
nado. O mundo queria mudanças e esse desejo não era diferente no espor-
te. México, 1968! Na própria cidade sede dos Jogos Olímpicos, cerca de dez
mil estudantes ocuparam a Plaza las Tres Culturas em protesto contra a
ocupação de militares em duas universidades públicas. A prova dos 200 metros
foi vencida pelo afro-americano Tommy Smith, dono de 11 títulos mundiais
em corridas de curta distância, assombrando o mun-
do. Era a primeira vez, que se alcançava esse re-
corde em menos de 20 segundos. O bronze ficou
com John Carlos, afro-americano e aluno do San
Jose State College, da Califórnia, mesmo college de
Smith, que liderava a prova, mas desconcertou-se
com a performance de Smith e acabou abrindo es-
paço para o australiano Peter Norman conseguir o
segundo lugar. Na hora de subir ao pódio para rece-
ber as medalhas, o que aconteceu ali ficou na histó-
ria do esporte e marcou as imagens dos anos 60.
Dois negros americanos de punho erguido, cabis-
baixos e descalços, em protesto contra o racismo.”
O protesto foi planejado pelos americanos ainda no
Imagem 23: O mascote
russo das olimpíadas de
1980.
Imagem 24: Smith e Carlos
no México em 1968.
59
campus da faculdade, na Califórnia. Caso um deles conquistasse medalha,
usaria o pódio como palco para denunciar a desigualdade racial nos Estados
Unidos. O público que lotava o Estádio Nacional não percebeu de imediato o
que se passava. Foi com o semblante carregado que os atletas acompanha-
ram o içamento das bandeiras. Aos primeiros acordes do hino nacional, Smith
ainda pareceu entoar a letra. Depois se calou e abaixou a cabeça. Começou,
então, a erguer o braço direito enluvado, em sincronia com o braço esquerdo
de Carlos. A saudação “black power” tinha invadido os Jogos Olímpicos.
(SPORTMARKETING, 2008.)
Proibidos de permanecerem na vila olímpica e de competirem nas outras provas
em que estavam escalados, Smith e Carlos retornaram aos Estados Unidos e foram
acusados de introduzir a política no olimpismo.
Entrando no debate sobre se os atletas devem ou não usar a Olimpíada para
protestar contra a repressão chinesa a manifestações de monges no Tibete,
John Carlos disse ao jornal francês Le Monde que se ele fosse competir,
encontraria uma forma de expressar oposição à China.
“Se eu fosse um atleta hoje, eu saberia como ser criativo e eu faria uma
declaração para mostrar que discordo do que está acontecendo”, disse ele
ao jornal. “Quando você faz esse tipo de declaração pública, você manda
uma mensagem de coragem ao mundo.” (O Estado de S. Paulo digital, 2008)
Em 1972, na cidade de Munich, Alemanha, o esporte internacional enfrentou
uma crise de insegurança pela invasão da vila olímpica por terroristas árabes da orga-
nização Setembro Negro. O alvo dos terroristas era a delegação de Israel, que teve
onze de seus atletas seqüestrados e mortos.
A partir desse incidente, as competições esportivas mundiais passaram a rece-
ber atenção especial em relação à segurança dos atletas. O temor que os atletas
pudessem ser alvo de retaliações contra as ações políticas dos seus países passou a
encarecer a organização dos jogos e a mantê-los nos centros mais desenvolvidos.
Após o lucro das olimpíadas de Los Angeles, os comitês olímpicos nacionais
passaram a disputar com energia a possibilidade de sediar uma versão das olimpía-
das. Por isso, há um processo de concorrência no qual as cidades proponentes têm
que cumprir uma série de acordos firmados com o Comitê Olímpico Internacional –
COI no sentido de promoverem a melhoria de infra-estrutura e qualidade de vida dos
seus habitantes. O impacto social no país sede é um dos pontos importante para que
o Comitê Olímpico Internacional conceda a organização dos jogos olímpicos a um
país.
Portanto, apesar de, no imaginário dos historiadores, o esporte figurar como ins-
trumento de manipulação política, na vida cotidiana ele tem-se mostrado um veículo
de visibilidade de injustiças e violências sociais. Por vezes, o esporte tem sido o cami-
nho que traz à opinião pública questões que não são debatidas pelos veículos de
60
comunicação pública.
Atualmente, as críticas sobre o direito concedido à China de organizar os jogos
olímpicos de 2008 estão trazendo para a opinião pública os abusos cometidos pelo
governo daquele país no que diz respeito aos direitos humanos e às questões ecológi-
cas. As manifestações pró-Tibet, contra o trabalho escravo e a poluição do meio ambi-
ente passaram a dividir os noticiários de televisões e jornais que anteriormente apenas
enalteciam o progresso econômico-financeiro e o mercado consumidor daquele país
asiático, sem criticar a que preço social e humano são alcançados esses patamares
de desenvolvimento econômico.
O COI e as agências esportivas nacionais estão em desacordo quanto à possibi-
lidade de os atletas usarem os jogos olímpicos da China para exporem suas convic-
ções ideológicas e políticas em relação às ações do governo do país sede e outras
questões internacionais ou locais.
Nos quadros 3 e 4, o presidente do COI diz, em entrevista à imprensa, qual a
posição do Comitê em relação aos problemas políticos da China, sobre os possíveis
boicotes e manifestações de atletas durante as competições. Pede respeito aos chine-
ses e constata a dificuldade de evolução dos ocidentais possuidores de colônias até
40 anos atrás. Admite que a China não seja um país democrático, mas que espera que
as olimpíadas possam ajudar a população na conquista dos direitos humanos.
Porém, os atletas podem ser punidos por usarem o espaço dos jogos com fins
ideológicos e que têm o direito de não participarem dos jogos se não concordarem
com as regras:
O alemão Walther Troger, membro do Comitê Olímpico Internacional (COI),
afirmou que os atletas que participarem de manifestações contra a política
chinesa em relação ao Tibete podem ser excluídos dos Jogos Olímpicos de
Pequim.
“Quem não respeitar a proibição de propaganda não autorizada nas zonas
regulamentadas será excluído assim que o caso for avaliado”, alertou Troger.
O dirigente acrescentou que cada competidor deve conhecer as regras
estabelecidas pelo COI, e pode achar outras formas mais adequadas de
protesto.
“Eles têm o direito de não participar dos Jogos caso não aceitem as regras”,
explica Troger, membro do COI desde 1989.
No entanto, Troger diz que se um atleta participar das manifestações após
ganhar uma medalha, não terá que devolvê-la.
“Os resultados das competições já disputadas só podem ser anulados se as
regras técnicas forem violadas”, disse. (www.globoesporte.com, 2008)
QUADRO 3
O Ocidente precisa parar de intimidar a China acerca dos direitos humanos, afirmou o presidente do Comitê
Olímpico Internacional (COI), Jacques Rogge, em entrevista.
61
"Você não ganha nada na China levantando a voz", disse Rogge no Financial Times deste sábado. "Esse
é o grande erro das pessoas no Ocidente querendo somar suas visões".
"Manter o respeito (na Ásia) é de vital importância. Todos os especialistas chineses irão lhe dizer que só
uma coisa funciona — discussão firme, mas respeitosa e quieta".
"Do contrário, os chineses irão se fechar. É isso que acontece hoje. Há muito protesto, muito e forte poder
verbal, e os chineses então se fecham".
O alerta de Rogge enquanto a China, que irá sediar os Jogos Olímpicos em Pequim, anunciou que irá
conversar com enviados do Dalai Lama, líder espiritual tibetano, a quem a China culpa por uma onda de
inquietação, afirmou a mídia estatal na sexta-feira.
A medida veio depois de pressões centralizadas no Ocidente para que a China dialogasse com o Dalai
Lama.
O Tibete tem se tornado o foco dos protestos contra a China que vêm atrapalhando a viagem de tocha
olímpica pelo mundo e tem originado pedidos para que os líderes dos países boicotem os Jogos de Pequim.
"Nós precisamos de 200 anos para evoluir da Revolução Francesa. A China começou em 1949", apontou
Rogge, observando que houve uma época em que a Grã-Bretanha e outros países europeus também foram
potências coloniais, "com todo o abuso relacionado às potências coloniais".
"Libertamos as colônias há apenas 40 anos. Sejamos um pouco mais modestos".
A China pode não ser um modelo no Ocidente, afirmou Rogge, mas "devemos um pouco mais de tempo a
eles".
Rogge acrescentou que o COI sempre acreditou que sediar as Olimpíadas em Pequim "abriria a China", e
que isto ainda irá ocorrer.
"Acreditamos que os jogos terão boa influência na evolução social da China, e os chineses mesmos admi-
tem isso".
Rogge colocou que suas relações com Pequim eram excelentes, apesar "deles terem suas prioridades e
nós, as nossas". Ele acrescentou que algumas vezes essas prioridades se contradizem umas às outras.
O presidente do COI explicou que a China ofereceu terreno significativo à instituição sobre o acesso da
mídia, e ele espera que este seja estendido em 2009, no que acredita ser um fator chave na evolução social
do país.
"Temos conseguido alcançar algo que não estou certo que líderes nacionais tenham conseguido chegar
mais longe do que nós", concluiu.
Ocidente precisa conter os protestos contra a China, diz COI. SWISSINFO.CH, 26 de
Abril de 2008. Disponível em: <http://www.swissinfo.org/por/noticias/internacional/
Ocidente_precisa_conter_os_protestos_contra_a_China_diz_COI.html?siteSect=143&sid=9021058&cKey
=1209220760000&ty=ti>. Acesso em: 25 mai. 2008.
QUADRO 4
Em meio às polêmicas de censura na China e de repressão a direitos humanos, o presidente do Comitê
Olímpico Internacional (COI), Jacques Rogge, admitiu que a entidade vive uma crise e disse que estuda
punições aos atletas que usarem o pódio ou as competições para fazer "propaganda".
"É uma crise, não há dúvida disso. Mas o COI já enfrentou tempestades maiores", disse Rogge, citando o
atentado terrorista de Munique-72 e o boicote aos Jogos de 1980 e 1984.
"Daremos regras de onde e como essas manifestações serão permitidas", disse o cartola belga, em entre-
vista coletiva. "As instalações olímpicas não são espaço para política, mas os atletas podem falar o que
quiserem durante as entrevistas coletivas." Rogge disse que haverá regras para se determinar o que é
liberdade de expressão e o que é propaganda.
Um jornalista italiano lembrou um episódio marcante da Olimpíada de Sydney, em 2000: a atleta aborígene
Cathy Freeman subiu ao pódio com as bandeiras australiana e a aborígene, dos nativos discriminados e
vitimizados pela colonização inglesa do país. O uso da bandeira aborígene era uma atitude política. "Se um
atleta americano ou francês subisse ao pódio com uma bandeira do Tibete, isso seria visto como propagan-
da?"
A resposta de Rogge: "Se um atleta espanhol quiser subir ao pódio com a bandeira de sua província, é
legítimo. Agora, se um atleta quiser usar a bandeira de outro país, vamos ter que estudar para ver se é
propaganda ou não". Como a China não é uma democracia e pessoas que demonstram discordância da
linha oficial costumam ir para a cadeia, é improvável que chineses subam ao pódio com a bandeira do
Tibete.
Rogge disse que há "espaço para se melhorar" o respeito à chamada "Lei de Mídia", em vigor desde janeiro
do ano passado até setembro deste ano. Ela permite a jornalistas estrangeiros viajar pela China sem per-
missão oficial. Mas, províncias chinesas, onde os tibetanos protestam contra a repressão oficial, estão
fechadas a jornalistas estrangeiros.
O presidente do COI afirmou que a execução da lei é "imperfeita" e que levou esses problemas ao governo
chinês. Mas garantiu que durante os Jogos, não haverá censura à Internet.
Depois da repressão no Tibete e da prisão recente de dissidentes, o COI foi questionado se Pequim não
estaria desrespeitando seu compromisso ao competir para abrigar os Jogos, de "melhorar o respeito aos
62
Direitos Humanos".
O belga afirmou que a candidatura de Pequim era a melhor à época, e que o compromisso da cidade era
baseado em regras técnicas, financeiras e logísticas. Mas há um compromisso "moral" de melhorar a situ-
ação dos direitos humanos.
LORES, Raul Joste. COI anuncia punição a possíveis protestos durante Olimpíada.
FOLHAONLINE, 11 abr. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/
ult92u390994.shtml>. Acesso em: 25 mai. 2008.
O ESPORTE EXCLUI?
O esporte pode ser inclusivo ou excludente e o que determina uma ou outra
utilização não é, de modo algum, o formato de competição do esporte, e sim a forma
como são apresentadas e conduzidas as competições esportivas. Há a possibilidade
da participação de todos os alunos de um colégio em competições esportivas, man-
tendo o esporte estimulante, agregador e inclusivo. Esta orientação geral do esporte
dentro das instituições é tarefa dos professores de educação física.
Porém, parece-me que um dos pontos fundamentais para a exclusão, a partir da
escola, está na formação dos professores, não só dos professores de educação física.
Os cursos de formação de professores, as licenciaturas, têm, em suas próprias ori-
gens, a exclusão, posto que os alunos prestam um exame de qualificação para ingres-
so nesses cursos – o vestibular. Muitas vezes, este é tomado como o objetivo de todo
o ensino fundamental e médio, hierarquicamente inferiores na relação com o ensino
superior.
Não rara é a participação das crianças em seleções de ingresso em colégios a
partir do segundo ciclo do ensino fundamental, assim como, vestibulares para o in-
gresso nas primeiras séries de colégios muito requisitados – os vestibulinhos.
E, no percurso de formação do futuro professor, com raras exceções, as rotinas
de avaliações e práticas educativas experimentadas pelos alunos confirmam o modelo
de ensino orientado pela necessidade de atribuir um conceito comparativo entre os
mesmos.
A exclusão na escola é inserida pela ação dos professores formados em um
ambiente de comparação e concorrência, que tende a ser naturalizado por estes que,
ao invés de perceberem, nesse fenômeno histórico e social, a exclusão, percebem-no
como um processo de inclusão dos que têm méritos, sem notar a exclusão à sua volta.
Como professores que são, vitoriosos em todos os processos de exclusão/seleção/
concorrência pelos quais passaram, são incapazes da solidariedade com o outro, víti-
ma da exclusão, só reconhecem em seus pares o legítimo mérito. Por mais que exista
um sistema social calcado nos termos da concorrência, é na figura dos profissionais
de ensino que tal sistema encontra legitimidade na escola.
63
Portanto, o que se encontra nas quadras e espaços de educação física é um
reflexo do sistema escolar calcado no desempenho dos alunos e na atribuição de
notas e conceitos de rendimento, legitimado pelos professores. É assim na matemáti-
ca, na geografia e tantas outras disciplinas.
A exclusão dentro das escolas pode ser percebida em todas as disciplinas atra-
vés da comparação entre os alunos, que serve inclusive para a formação das turmas
de um período letivo para o outro.
Para ilustrar a presença da exclusão no sistema escolar como um todo, ressalto
as tarefas de trabalhos em grupos, nos quais há sempre os alunos excluídos da fala ou
da apresentação do trabalho, por uma dificuldade de expressão verbal, timidez ou
mesmo por não dominar o tema do trabalho, e não se percebe a aceitação de tal
situação como exclusão, visto que alguns alunos são impedidos de um crescimento
pessoal através de uma atividade educacional desenvolvida no espaço escolar e que,
portanto, deveria atender a todos os alunos com igual oportunidade de participação.
Mas a cultura da importância do conceito ou da nota que são alcançados pelos alunos,
em detrimento da participação efetiva no processo educativo, impregna-se também
nos discentes, que preferem abrir mão do seu direito à participação eqüitativa nos
trabalhos em grupo, em função da nota ou conceito que pode ser obtido, nesse caso,
sem nenhum benefício educativo próprio, porém, seguindo as lógicas de mercado,
obtendo um grau maior que possivelmente possa ser transformado em lucro quando
houver comparações entre os coeficientes dos alunos.
A COMPETIÇÃO E A CONCORRÊNCIA
O esporte tem uma versão tornada espetáculo, às vezes chamado de esporte
profissional, mas que prefiro chamar mesmo é de comercial! Todo o ramo que é
comercializado gera um mercado de trabalho remunerado no qual a relação ética e
estética passa a ser a da concorrência, ou seja, a da competição mercantil.
As imagens geradas nesse contexto mercantil invadem a sociedade brasileira,
propiciando a analogia entre a ética da competição esportiva e a ética da competição
mercantilista, ou melhor, gerando a confusão entre esses termos, que passa a tomar
uma pela outra. A lógica do esporte comercial passa a ser implantada por ex-atletas e
professores de educação física nas suas ações educativas no campo do esporte para
crianças. Com o argumento de estarem preparando os jovens atletas para serem futu-
ros campeões, muitas vezes o que ocorre é a condução do treinamento das equipes
infantis pelos profissionais que as dirigem com a intenção de obter o sucesso para
64
proveito próprio, ou seja, vitórias que possibilitem a ascendência na profissão de treina-
dor de esportes. Porém, essas vitórias não seguem a ética e a lógica da competição
esportiva, e sim, a da competição mercantil, mas precisamente, a concorrência.
– Eu sou contra essa competição acirada desde o mirim, isso mostra
um monte de falhas, por exemplo, qual a aspiração dos treinadores
do Rio de Janeiro? Ser treinador de infanto-juvenil, por que juve-
nil só tem três equipes e adulto nem existe [...]Então, a disputa
fica no mirim, infantil e infanto-juvenil e todos os princípios do
treinamento desportivo são aplicados nessas categorias, e as me-
ninas não estão prontas para receber essa carga. (Maurício Bar-
ros)
Assim como nas artes, é importante que o esportista que serve ao espetáculo e
ao desempenho humano de excelência possa fazê-lo como profissão. Os bailarinos,
músicos, atores e atletas, tanto quanto os diretores, coreógrafos, cineastas, treinado-
res, formam um mercado de trabalho como outro qualquer, que na nossa sociedade é
regido pelas leis de mercado capitalista, que a cada década perde as conquistas soci-
ais alcançadas pelo estado de bem estar social – os direitos sociais.
Porém, o que ocorre no esporte comercial, assim como na arte comercial, deve
ficar restrito aos indivíduos que tenham interesse por ingressar nesses ramos da ativi-
dade econômica. É claro que não podemos negar o fato de que estes mercados de
trabalho possibilitam a sobrevivência e a melhoria socioeconômica de uma parcela da
população que não encontra, através de outros mercados, a possibilidade de se sus-
tentar. As leis brasileiras estabelecem regras para o trabalho e para a iniciação do
jovem no mercado de trabalho, essas leis devem ser respeitadas em todos seus as-
pectos, preservando a criança de uma introdução precoce no mundo do trabalho, mesmo
que essa esteja disfarçada de arte ou esporte.
– Deixa-me dizer, a turma da minha filha, que no ano passado não
competia externamente, era a melhor turma de escolinha por que
elas vinham para cá brincar de vôlei, davam os três toques e a bola
não caía, já sacavam por cima, tinha menininho que já sacava via-
gem, naquela mini-quadra do mini-voleibol. Agora elas se frustram
quando o time joga mal, ou seja, o treinamento dela evoluiu, a
levantadora já sabe largar de segunda, pois é canhota, igualzinho a
Fernanda Venturini, e eu vejo nessa turma nesse ano, um grupo
mais triste, e isso é fato, é bom para você relatar no seu trabalho.
A competição quando chega numa bagagem de cobrança que entra
em conflito com a natureza da criança, você violenta a criança pelo
aspecto das suas características, que são: irresponsabilidade, que-
rer sempre brincadeira, imaturidade e os técnicos para atingirem
o sucesso o que têm que cobrar? Que a criança seja mais madura,
que tenha mais responsabilidade, então você acaba, eticamente
falando, violentando toda uma natureza. (Maurício Barros)
65
O que importa dizer é que a competição esportiva não existe sem o outro. É na
comunidade esportiva que reconhece os méritos dos participantes da competição es-
portiva, sejam estes vencedores ou perdedores, que está a diferença entre o esporte e
o mercado. O sentido da competição esportiva não está em derrotar o outro para
submetê-lo, humilhá-lo ou ridicularizá-lo. Na concorrência, só há espaço para quem
ganha; na competição esportiva, o reconhecimento de toda a comunidade esportiva e
dos adversários de competição é que legitimam a vitória. Faz parte da competição
esportiva haver ao seu final um vencedor. Porém, o processo de disputa é o que nos
interessa.
O IMPORTANTE É COMPETIR
“O importante é competir”, a frase atribuída ao Barão de Coubertin, pedagogo
francês, entusiasta do esporte e responsável pelo ressurgimento dos jogos olímpicos
na modernidade, soa no mundo comercial e globalizado atual como utópica. Entendo
que o sentido da expressão competir na frase refere-se à possibilidade da participação
em eventos esportivos.
O ideal olímpico, representado pela velha máxima, foi defendido, pela primeira
vez, em 1908, pelo bispo da Pensilvânia, durante um sermão aos atletas que disputa-
riam as Olimpíadas de Londres.
Porém, as palavras proferidas pelo religioso teriam sido: “O importante não é
vencer, é participar.” (http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=210. Acessado
em 01-04-2008.)
A apropriação da frase dita pelo Bispo por Pierre Frédy, o Barrão de Coubertin,
teria recebido alguns complementos: “O essencial não é vencer, mas competir com
lealdade, cavalheirismo e valor.” (http://www.superdicas.com.br/milenio/olimpico.asp. Acessado
em 01-04-2008.)
Ao final, restaria a frase “o importante é competir”, claramente representando o
desejo do Bispo e do Barão de enaltecer a participação sobre a vitória. Note que a
conduta do competidor é fundamental na opinião expressa por
Pierre Frédy.
Atualmente, existe, nos jogos olímpicos, uma premiação
chamada Medalha Pierre de Coubertin (imagem 25), dedicada à
premiação de atletas que demonstrem espírito de competição
olímpico e alto grau de esportividade. O brasileiro Vanderlei Cor-
deiro de Lima recebeu a honraria em Atenas, na Grécia, ao ser
Imagem 25
66
seguro por um ativista político quando estava em primeiro lugar da prova da maratona.
Contudo, o atleta brasileiro continuou a prova ao ser liberado das mãos do agressor,
mas foi ultrapassado por dois competidores e terminou a prova em terceiro lugar.
No esporte profissional, onde a quebra de um recorde ou a vitória em uma prova
de atletismo pode valer R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), – veja o quadro 5 – parece
improvável que o lema do olimpismo possa permanecer atual.
quadro 5
Subir no pódio no torneio de atletismo do PAN 2007, além de projeção natural, também garantirá prêmio em
dinheiro para os brasileiros. A Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) divulgou a tabela de prêmios
para a temporada.
Para os Jogos Pan-americanos, que serão disputados no Rio de Janeiro, de 22 a 29 de julho, estes são os
valores, para os classificados nos três primeiros lugares:
Medalha de Ouro: R$ 10.000,00 (dez mil reais)
Medalha de Prata: R$ 7.000,00 (sete mil reais)
Medalha de Bronze: R$ 5.000,00 (cinco mil reais)
As provas de pista e campo do atletismo serão disputadas no Estádio João Havelange. As maratonas,
masculina e feminina, serão realizadas na orla e no centro histórico da cidade. As provas de marcha estão
marcadas para o Aterro do Flamengo.
Para o Campeonato Mundial de Atletismo, que será disputado de 24 de agosto a 02 de setembro em Osaka,
no Japão, a premiação prevista para a conquista de pódio segue abaixo:
Medalha de Ouro: R$ 15.000,00 (quinze mil reais)
Medalha de prata: R$ 12.000,00 (doze mil reais)
Medalha de bronze: R$ 10.000,00 (dez mil reais)
No Mundial de Menores, que será realizado em Ostrava, na República Tcheca, de 11 a 15 de julho, os
prêmios por medalhas ganhas serão iguais aos do PAN: ouro - R$ 10 mil, prata - R$ 7 mil, e bronze - R$ 5
mil.
Também foram definidos os prêmios para o estabelecimento de recordes na categoria adulta, conforme
tabela abaixo:
Recorde Mundial: R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais)
Recorde Pan-americanos: R$ 4.000,00 (quatro mil reais)
Recorde Sul-americano: R$ 3.000,00 (três mil reais)
Recorde Brasileiro: R$ 2.000,00 (dois mil reais)
"Estes prêmios são um incentivo a mais aos atletas, além dos Programas de Apoio tradicionais", explica o
presidente da CBAt, Roberto Gesta de Melo. "Entre estes estão os Programas de Apoio a Atletas de Alto
Nível, de Apoio a Jovens Talentos, e de Apoio a Treinadores, patrocinados pela Caixa Econômica Federal",
completa o dirigente.
TURCO, Benê. Atletismo define prêmios por medalhas no pan. CBTA, 09 jan. 2007. Dis-
ponível em: <http://www.cbat.org.br/noticias/noticia.asp?news=2168>. Acesso em: 25 mai.
2008.
Os exemplos de amizade, companheirismo, fraternidade e tantos outros concei-
Imagem 26: Vanderlei Cordeiro sendo
seguro pelo ativista político na olimpíada
de Atenas, 2004
Imagem 27: Vanderlei Cordeiro com a
medalha de bronze da maratona, Atenas,
2004.
67
tos que exprimem o reconhecimento mútuo dos atletas continuam existindo, mesmo no
esporte comercial.
Porém, a violência e a agressividade geradas pela concorrência, que impõe os
valores mercantis e comerciais na forma de agir dos indivíduos, tenta ridicularizar os
ideais expressos na frase do Barão de Coubertin e que dão ao esporte a sua possibi-
lidade educativa e a razão de estar na escola.
Frases como: “O importante não é ganhar. O importante é competir. Porém, sem
perder ou empatar.”, “O importante é competir... para ganhar.”, “O importante é compe-
tir... desde que eu ganhe.”, ditas no ambiente esportivo mostram como, filosoficamen-
te, a competição esportiva está aproximada da concorrência onde a finalidade é ven-
cer a qualquer custo.
Por mais que a vitória seja o objetivo das competições esportivas, tão ou mais
importante que conquistá-la é a forma com que se alcança esse objetivo.
Tocado pelas mãos do mercado, o esporte passou a ser organizado e dirigido
com as normas administrativas das empresas. As estruturas amadoras dos clubes
sociais deram lugar às estruturas empresariais, gerando o clube empresa.
O esporte dá o seu retorno às estruturas empresariais com as palestras dos
treinadores de esportes. O treinador da seleção brasileira de voleibol, Bernardo Rezende
(Bernardinho), e os ex-treinadores da seleção brasileira de futebol, Luiz Felipe Scolari
(Felipão) e Carlos Alberto Parreira (Parreira), são alguns dos personagens do esporte
que faturam alguns milhares de reais proferindo palestras baseadas nas suas experi-
ências à frente de equipes esportivas. As empresas perceberam que há muito em
comum entre as equipes de vendas e as equipes esportivas. Os treinadores são com-
parados aos gerentes da área comercial das empresas ou aos gerentes de recursos
humanos.
Na confusão entre os termos competição esportiva e competição é que está o
centro da discussão sobre o valor educacional do esporte, pois a concorrência (com-
petição) que determina o modelo social globalizado e perpassa todas as instituições
sociais, inclusive o esporte, deve receber tratamento ético e estético por parte dos
professores e outros profissionais do ensino presentes na escola.
A influência estética das transmissões esportivas pela televisão nas crianças é
perceptível durante as aulas de educação física. Geralmente, as quadras de esportes
ficam próximas ou são o pátio de recreio das escolas – essa falta de lugar da educa-
ção física nas escolas será analisada posteriormente – e quando tem alguma aula em
que o jogo esportivo está sendo desenvolvido, o comportamento dos alunos que estão
68
assistindo ao jogo é bastante parecido com o comportamento dos torcedores que são
mostrados na televisão. A forma de torcer e incentivar os “atletas” é parte de uma
orientação estética que deve ser discutida com os alunos “torcedores” e alunos “atle-
tas” do exemplo acima. Não é por que as torcidas usam cantos com palavrões para
incentivar os atletas dos seus times que os alunos devem fazer o mesmo na escola.
Raciocínio semelhante deve ser usado para discutir com os alunos as formas de assis-
tir aos eventos esportivos relacionando a estética e a ética como aconteceu através
dos meios de comunicação durante a realização do Pan-americano do Rio de Janeiro,
em 2007, quando os torcedores brasileiros vaiavam os competidores de esportes como:
ginástica artística, saltos ornamentais, ginástica rítmica e outros esportes que exigem
alto grau de concentração para a realização da sua prova com eficiência. A torcida
brasileira não sabia analisar esteticamente as diversas modalidades esportivas, ou
seja, não conseguia apreciar a beleza plástica dos movimentos executados ou a difi-
culdade dos movimentos realizados pelos atletas, estava apenas preocupada com o
resultado das competições esportivas, com o número de medalhas no quadro que as
contabiliza. Decorrência da monocultura esportiva, existente em grande parte do terri-
tório nacional, na qual o futebol serve como sinônimo de esporte, tanto na exposição
na mídia, quanto na oportunidade de prática esportiva oferecida à população. As for-
mas de torcer, assistir e consumir o esporte no Brasil são orientadas pela estética do
futebol.
– Para o brasileiro, se o Brasil vai à copa do mundo, se for vice-
campeão ou sair na primeira fase é a mesma coisa. Então esse
contexto cultural de que o bom é o que ganha influi. O brasileiro
não vê o trabalho, alguns pais de alguns clubes até me elogiam: o
teu time está melhorando, que trabalho bom. Mas, o campeão é o
mais. (Maurício Barros)
Moreno (2007) critica, em uma matéria de jornal, alguns fatos que diz ter presen-
ciado nas transmissões esportivas dos canais abertos de televisão durante o pan-
americano:
Dois exemplos de comentários dispensáveis: “Não poderia haver final mais
feliz para um brasileiro”, disse o repórter Nivaldo de Cillo, da Bandeirantes,
após a vitória brasileira no handebol diante da Argentina. “Ganhar no vôlei é
bom, ganhar de Cuba é melhor ainda!”, decretou Galvão Bueno, o “medalha
de ouro em asneiras”. Na final do futebol feminino, entre Brasil x EUA, bra-
dou a palavra “revanche” dezenas de vezes.
Qual deveria ser a ação pedagógica do professor de educação física quando
seus alunos têm uma relação ética e estética com o esporte na qual o que importa é a
vitória do seu time, independentemente dos meios de sua obtenção ou da qualidade
69
da ação esportiva?
O esporte, como uma das manifestações da cultura humana do movimento cor-
poral, compreende, na sua prática de alto nível ou alto rendimento uma expressão de
excelência humana, que pode e deve ser admirada como o são o teatro, a pintura, a
dança clássica e tantas outras formas da produção humana. Mesmo o esporte comer-
cial que, assim como o teatro, a dança, as artes plásticas constituíram um mercado à
sua volta, pode ser enaltecido em seu valor estético, não em seus valores éticos.
O ESPORTE E A ESCOLA NO MUNDO GLOBALIZADO E MIDIATIZADO
O desporto é um fenômeno social (TEODORESCU, 1984) e, como tal, aparece
na escola não só pela implementação da educação física. A presença dos diversos
esportes nos meios de comunicação de massa e a repercussão social dos resultados
esportivos ou das transmissões esportivas não podem ser barradas nos portões de
entrada das escolas, elas ultrapassam os muros da instituição e são percebidas, entre
outras maneiras, nas conversas sobre os acontecimentos esportivos do final de sema-
na passado ou dos que estão por vir no próximo final de semana.
As imagens dos atletas que ganham as capas dos jornais ou a mídia eletrônica e
suas histórias de vida povoam o imaginário das crianças e adultos e aparecem como
discurso dentro da escola a todo o momento. Quando uma aluna é ativa e vive a saltar
e girar pelos espaços da escola, é prontamente apelidada de Daiane dos Santos, um
dentuço é logo comparado aos Ronaldinhos e assim por diante.
Nas aulas de várias disciplinas, o esporte e os esportistas são usados como
metáforas ou exemplos para o desenvolvimento de seus conteúdos. Usa-se a geome-
tria das linhas demarcatórias do campo de futebol para trabalhos em matemática, os
textos das reportagens sobre esportes nas aulas de português, as formas de giro e de
trajetória da bola em um chute na física, ou seja, o esporte está presente e é utilizado
na escola de várias formas. Facilmente observável nos momentos de recreio nos páti-
os da escola, o esporte aparece nas brincadeiras entre os alunos que improvisam
bolas com qualquer objeto que possa ser chutado, golpeado ou agarrado e promovem
reedições dos eventos esportivos passados, assumindo os nomes dos esportistas que
neles obtiveram destaque. Em vários espaços da escola, se escutam as reproduções
das narrações dos jogos transmitidos pela televisão. Um aluno, ao chutar uma bolinha
de papel, diz:
– E chuta Romário – prolongando o som da primeira sílaba do nome do atleta de
futebol que preenche parte da mídia dedicada ao futebol de campo, assim como fa-
70
zem os narradores esportivos.
Em outro espaço, outro aluno grita:
– E saca Nalbert e é ponto do Brasil – imitando o gesto de saque do voleibol
saltando no ar e atacando com a mão uma bola imaginária.
E assim as crianças vão brincando com as informações que receberam através
de diferentes e variadas fontes.
O esporte entra nas escolas vindo da televisão, dos jornais e da experiência dos
alunos fora das escolas e traz consigo conceitos e discursos que são aprendidos e
apreendidos a partir da fala de comentaristas, locutores, repórteres, treinadores, atle-
tas e tantos outros sujeitos presentes na mídia. Mas é também trazido dos discursos e
práticas cotidianas vivenciadas pelos alunos, professores, inspetores e todos que tra-
balham nas escolas e que praticam o esporte. Esse termo, prática esportiva, gostaria
de estendê-lo aos que assistem e desfrutam in loco o esporte, seja o esporte profissi-
onal ou o esporte amador, adulto ou infantil, feminino ou masculino, adaptado ou não,
coletivamente chamado de torcida, espectadores ou consumidores esportivos, essas
pessoas constituem seus conceitos e opiniões sobre o esporte através de redes dife-
rentes daqueles que participam do esporte apenas através da mídia.
Essa ampliação no conceito de prática esportiva, para além daquele que pratica
fisicamente o esporte, ocorre no sentido de ressaltar a sua importância afetiva para
muitas pessoas que, mesmo sem exercerem a prática regular do esporte, reservam
parte considerável do seu tempo e o dedicam ao consumo esportivo. Tamanha capa-
cidade em atrair as pessoas rendeu, a certos segmentos do esporte adulto, a nomen-
clatura de esporte espetáculo, pela forma mercantil e comercial com a qual passaram
a ser organizadas essas competições esportivas, agora denominadas eventos espor-
tivos ou espetáculos esportivos. Entre algumas características que diferenciam o es-
porte espetáculo das demais competições esportivas, estão: a maciça presença de
seus eventos nas mídias, a profissionalização dos atletas, a profissionalização e espe-
cialização de setores da imprensa e da área de comunicação social que fazem a co-
bertura jornalística do esporte, a profissionalização do professor de educação física
como profissional do esporte e a comercialização do que é produzido para – ou no –
evento esportivo.
Há algum tempo, os recursos tecnológicos de transmissão de eventos esportivos
detalham, através das câmeras, certos acontecimentos durante os eventos que são
cobertos pelas emissoras de televisão, que não são perceptíveis ao vivo ou não eram
possíveis de serem captados nas transmissões antigas de televisão. Cada vez mais,
71
está exposta a questão ética intrínseca às disputas esportivas. Não é raro ouvir comen-
taristas e narradores defendendo ações desonestas ou antidesportivas, praticadas em
campo, em suas transmissões. A exaltação, por parte da mídia, de um ou outro atleta –
que tenta ludibriar a arbitragem do jogo simulando um choque com um adversário a fim
de que o árbitro o penalize, com a conseqüente vantagem para seu time – muitas vezes
é feita em nome de uma malandragem, de um “jeitinho brasileiro” ou de uma esperteza
que “não causa nenhum mal” ou “que é coisa do futebol”. Esta era, há cerca de 20 ou 30
anos, a maior dificuldade encontrada por um jogador de futebol brasileiro para sua trans-
ferência para o exterior, principalmente para a Europa, pois, no futebol europeu, essas
atitudes são entendidas como falta de caráter e de socialização, pelo fato de o ludibriador
prejudicar a carreira do atleta alvo de sua “malandragem”. Havia uma ética interna na
carreira do atleta – um habitus
9
do jogador de futebol – que permitia a condução do jogo
pela arbitragem sem maiores conflitos éticos, não que não existissem as ditas “malan-
dragens” ou as formas de ludibriar as arbitragens, mas, grosso modo, essas não eram
obtidas com o prejuízo do colega de profissão. Atualmente, esse habitus vem sofrendo
uma influência das pressões da filosofia neoliberal com suas leis de mercado e formas
de negociações.
Assim como, são percebidas essas interferências em vários setores da vida coti-
diana e o esporte, por ser uma construção social, não poderia deixar de refletir essa
filosofia neoliberal, que mercantiliza os produtos de inúmeras áreas, seja a educação,
as artes ou mesmo a mídia televisiva ou impressa. Porém, a abrangência dos discur-
sos veiculados na mídia – através dos comentários e narrações esportivas, sobretudo
no espaço do futebol, pelas análises de comentaristas de arbitragens e glorificação
dos ardis utilizados pelos atletas menos conscientes de sua atuação social e pressio-
nados pela necessidade de resultados para sua valorização – parece estar formando
uma nova geração de atletas que se importa menos com essas questões éticas do que
as gerações passadas. A questão não fica evidente apenas na atuação do atleta atual
em comparação aos de outros espaçostempos, mas aparece no discurso dos treina-
dores e dirigentes de equipes com o uso de terminologias neoliberais para definir as
estratégias e condutas assumidas na organização desse “negócio” em que se tornou o
esporte profissional. Que toda essa mudança tenha ocorrido, em função da necessi-
dade dos atletas em obterem êxito nos gramados, nas quadras, piscinas e outros
locais de prática do esporte espetáculo, é compreensível, e as organizações que
9
História encarnada nos corpos, sob a forma desses sistemas de disposições duráveis que chamo de habitus. O corpo está
dentro do mundo social, mas o mundo social está dentro do corpo. (Bourdieu, 2003, p. 41)
72
gerenciam os esportes estão estudando a incorporação de punições e sanções a atle-
tas, treinadores, dirigentes e clubes, com o auxílio das imagens captadas por equipes
de televisão durante suas transmissões dos eventos esportivos, como forma de dimi-
nuir esse tipo de prática.
Algumas campanhas desenvolvidas em eventos esportivos, como a copa do
mundo, visam aproveitar sua exposição na mídia para tentar conscientizar os amantes
dos esportes contra algumas atitudes presentes nos campos de jogos, como o fair
play
10
, as atitudes racistas protagonizadas por alguns atletas e torcedores e o consu-
mo de drogas. Mais do que contribuir para a conscientização da sociedade, essas
campanhas mostram que estes problemas estão presentes no esporte e precisam ser
combatidos para a sobrevivência do esporte espetáculo como um espaço de educa-
ção e, conseqüentemente, comercializável, pois parte do prestígio que o esporte espe-
táculo possui provem da afetividade que as pessoas desenvolvem pelo esporte, ao
percebê-lo como uma prática saudável, ética, educadora e isenta de interesses mer-
cantis.
Essas condutas antiesportivas aparecem em outros locais da prática de
esportes. Lembro-me de que, quando tinha 12 anos, nas “peladas” de rua, existia a
transmissão de um código de conduta dos mais velhos para os mais novos. Embora
alguns meninos daquela época insistissem em tentar ludibriar as regras da “pelada”,
existia uma força maior gerada pelo grupo de meninos que coibia e até mesmo excluía
dos jogos os rapazes que “faziam” faltas e não se acusavam ou não aceitavam quando
estas eram “marcadas” contra sua equipe. Havia muita discussão e o uso variado de
argumentos, vindo de todos os participantes dos jogos, e, invariavelmente, havia a
exclusão dos que não aceitavam as regras de conduta ética, como não xingar as pes-
soas, não provocar brigas, não usar de violência dentro das partidas e não enganar os
demais. Naquela época – por volta de 1978 – já ocorriam, na vertente espetáculo do
esporte, vários casos de suspeita de manipulação de resultados em copas do mundo,
comprometimento de atletas e dirigentes em manipulação de resultados de loterias
esportivas e outros relatos de comprometimento extra campo de dirigentes e atletas.
Esses acontecimentos de corrupção dentro do esporte espetáculo tornaram-se cada
vez mais freqüentes e evidenciaram que as relações éticas no esporte e na sociedade
estão se modificando. Porém, em outras seções do esporte, que não o esporte profis-
sional, os valores mantinham-se aparentemente inalterados em confronto aos da épo-
ca da minha infância, havendo a exaltação da conduta e da esportividade acima da
10
Nas campanhas da FIFA, essa expressão não aparece traduzida, mas é utilizada no sentido de “jogo limpo”.
73
obtenção da vitória no jogo. O resultado da competição tinha sua importância, porém,
a forma de atuação do atleta para conquistá-lo tinha maior relevância. Na minha práti-
ca como professor de educação física, percebo os alunos com códigos de conduta
esportiva diferentes dos que havia na minha geração. Parte da diferença entre as
condutas da minha época de adolescente e a de hoje são reflexos das questões éticas
nesses espaçostempos distintos. A influência da mídia é decisiva na formação dessa
nova conduta esportiva que, proveniente do esporte espetáculo, alcança os espaços
esportivos fora daquele.
A escola não é um espaço imune a essas influências e tampouco um espaço que
possa modificar, sozinha, as formas de práticas culturais sociais. Porém, a escola e a
educação física têm como um de seus objetivos a formação do consumo crítico do
esporte, sendo de suas responsabilidades a apresentação deste às crianças e a sua
organização, crítica e saudável, dentro da escola.
A competição não é gerada pelo esporte, escola, educação física ou educação. É
através da atuação dos profissionais que trabalham com a educação, educação física
e esporte, dentro e fora da escola, que os objetivos educacionais são colocados em
prática, assim como os objetivos sociais. Portanto, é preciso formar os professores
para uma atuação crítica dos conteúdos que desenvolvem em suas práticas, assim
como, da lógica do sistema educacional em que estão inseridos como profissionais.
Na relação entre esporte e mídia, torna-se necessário que a formação dos profis-
sionais que trabalham com o esporte na mídia, sejam narradores, jornalistas ou co-
mentaristas, dentre tantos que trabalham nesse setor, esteja fundamentada no serviço
social que prestam as televisões, rádios e jornais e não para atender aos interesses de
grupos que comercializam o esporte espetáculo.
Embora, como Certeau (1994) tenha relatado em seus estudos, não possamos
desconsiderar as redes de entendimento e a produção de sentidos que os usuários
fabricam com as informações que recebem dos meios de comunicação de massa,
mas parece-me que certos fatos nas transmissões esportivas colaboram negativa-
mente para a construção social dessas redes, justamente por estimular, através de
exemplos de conduta de atletas e opiniões dos profissionais da mídia e do esporte, a
prática esportiva sem preocupações éticas e privilegiando o resultado da competição
como objetivo único dessa prática.
Por tudo, é preciso que os professores de educação física assumam o espaço
que conquistaram no ensino fundamental e estejam preparados para discutirem as
questões presentes na mídia com seus alunos, companheiros de profissão, diretores
74
de escola e demais profissionais do espaço escolar.
Ao assumirem a responsabilidade pedagógica do esporte na educação física, os
professores não podem reproduzir, no interior da escola, a forma de funcionamento do
esporte profissional, embora não precisem negá-lo e devam usá-lo para subvertê-lo
em proveito das ações pedagógicas em suas aulas.
Para preservar o esporte como experiência social de trabalho em grupo e civilida-
de, é preciso que este vá para o interior das escolas, para as mãos dos professores de
educação física que estejam preocupados em proporcionar uma vivência de competi-
ção esportiva aos alunos. As crianças não são miniaturas de adultos, para as quais as
atividades adultas devam ser apenas reduzidas em sua quantidade ou intensidade
para serem implementadas nas escolas. As diferenças entre adultos e crianças não
são meramente corporais ou fisiológicas, as crianças necessitam de atividades dife-
renciadas em sua elaboração e objetivos. É importante que o espaço escolar da ciên-
cia da motricidade humana seja ocupado por profissionais que tenham estudado não
apenas o esporte, no que diz respeito às suas regras, estrutura de funcionamento ou
de organização, mas, fundamentalmente, por professores que tenham estudado as
pessoas que praticam o esporte no ambiente escolar – as crianças e os adolescentes.
CAPÍTULO 4
MEMÓRIAS E RELATOS:
MUDANDO OS LUGARES
E OS
SUJEITOSPERSONAGENS
76
OS USOS DA MEMÓRIA: A MÉTIS
11
, AS TÁTICAS E AS ESTRATÉGIAS
Lembro-me de histórias acontecidas há 30 ou 35 anos, passagens que formam
um lugar do qual pude apropriar-me do mundo e acumular capital, seja ele simbólico
ou material. Recordar os fatos, estabelecê-los como acontecimentos
12
e pontuar a vida
através desses marcos espaçotemporais é fazer-se pessoa no mundo, indivíduo.
A memória é propriedade que capacita o homem à ação. A memória está inscrita
no tempo de sua aquisição formando um saber, porém, um saber que tem por forma a
duração de sua aquisição e a coleção intermináveis dos seus conhecimentos particu-
lares. (CERTEAU, 1994, p. 157)
Questão de idade, dizem os textos: à irreflexão da juventude eles opõem a
experiência do ancião. Este saber se faz de muitos momentos e de muitas
coisas heterogêneas. Não tem enunciado geral e abstrato, nem lugar pró-
prio. (id., ib.).
A memória, encontrada na métis dos gregos, é também fundamento da tática, e
instaura a afinidade entre esses termos, tanto quanto a ocasião. Doula (2001), a partir
dos conceitos de James C. Scott, utiliza a seguinte definição:
Métis representa um tipo de perícia adquirida como resposta a mudanças
constantes no meio natural e humano e por isso mesmo requer constantes
ajustes a um meio que não pode ser simplesmente controlado ou criado. As
situações nas quais o métis é relevante são a) similares, mas não idênticas;
b) requerem uma prática rápida de adaptação; c) requerem uma habilidade
11
Métis refere-se à obra de Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant, Les Ruses de l´intelligence. La métis des Grecs, onde na
introdução encontramos:”La métis est bien une forme d’intelligence et de pensée, un mode du connaître; elle implique un
ensemble complexe, mais très cohérent, d’attitudes mentales, de comportementes intellectuels qui combinent le flair, la sagacité,
la prévision, la souplesse d’esprit, la feinte, la‘debrouillardise, l’attention vigilante, le sens de l’opportunité, des habiletés diverses,
une expérience longuement acquise; elle s’applique à des realités fugaces, mouvantes, déconcertantes et ambiguues, qui ne
se pretent ni à la mesure précise, ni au calcul exact, ni au raisonnement rigoureux.” ( Detienne e Vernant 1974, p.10).
Na tradução de Medeiros (2005): “A métis é exatamente uma forma de inteligência e de pensamento, um modo de conhecer;
implicando um conjunto complexo, mas coerente de atitudes mentais, de comportamentos intelectuais que combinam o flair, a
sagacidade, a precaução, a firmeza de espírito, o fingimento, a capacidade de se desembaraçar (débrouillardise), a atenção
vigilante, o senso de oportunidade, diversas outras habilidades, numa longa experiência adquirida; aplica-se a realidades
fugazes, movediças, desconcertantes e ambíguas, que não se prestam nem à mensuração precisa, nem ao cálculo exato, nem
ao raciocínio rigoroso”. (DETIENNE e VERNANT, 1974, p. 10).
12
Acreditamos que o nosso presente se apóia em intenções profundas, em necessidades estáveis; pedimos aos historiadores
para nos convencer disso. Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que vivemos sem referências nem coordenadas
originárias, em miríades de acontecimentos perdidos.(Foucault, apud Bastos, 2008, p. 4).
77
adquirida na prática e uma percepção desenvolvida para as estratégias; d)
aquelas que resistem à simplificação a princípios dedutivos que possam ser
transmitidos em manuais e) o meio onde esse conhecimento é aplicado é tão
complexo e não repetitivo que os procedimentos formais das “decisões pron-
tas” são impossíveis de se aplicar. Métis, então, é um tipo particular de sabe-
doria que é adquirida pela prática do “tato” ou “olhar” de uma atividade base-
ada na experiência prática. Assim, o métis está em oposição ao modelo for-
mal do método científico e da razão cartesiana em todos os princípios. Está,
por sua vez, em desacordo com as manifestações do Estado que requer
uma grade administrativa uniforme. (p. 356-357).
A autora mostra como a CLOC (Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones
Del Campo) trabalha a identidade a partir das formas de conhecimento próprias dos
camponeses em oposição às formas de conhecimento que são próprias da Ciência e
do Estado.
Ao escrever sobre a tática Certeau (1994) o faz assim: “chamo de tática a ação
calculada que é determinada pela ausência de um próprio.” (p. 100)
E continua:
Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas
depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e pre-
ver saídas. O que ela ganha não conserva. Este não-lugar lhe permite sem
dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar
no vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que usar, vigilante,
as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder
proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém
espera. É astúcia. (id., p. 100-101)
Sobre as estratégias ele diz:
As estratégias são ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a
propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos
totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as
forças se distribuem. Elas dominam esses três tipos de lugar e visam dominá-
los uns pelos outros. (id., p. 102)
E relacionando uma à outra:
As estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lu-
gar oferece ao gasto do tempo, as táticas apontam para uma hábil utilização
do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas
fundações de um poder. (id., ib.)
E complementa: “...apostas feitas no lugar ou no tempo distinguem a maneira de
agir.” (id., ib.).
Certeau não descreve a relação da memória com a estratégia, a não ser pela
oposição desta à tática, e conseqüentemente, à memória. Sendo assim, não concede
à tática, à métis e à memória o poder de ser utilizado de maneira premeditada com o
conseqüente acúmulo de capitais, ou, nas palavras de Certeau (id., ib.), “o que ela
78
ganha não conserva”, visto que para o autor francês a ocasião é o que possibilita a
ação tática: “A ocasião é ‘aproveitada’, não criada.” (id., p. 162).
Mas será que a métis não possui a possibilidade da premeditação?
Para Medeiros (2005), a métis é a vitória do fraco frente ao forte e se caracteriza
pelo domínio do tempo pela experiência do passado, por “agarrar o momento presen-
te, fugaz” e por fazer “predições para o futuro”. Ainda não existe, a priori, uma “pers-
pectiva moral ou racional”, mas tampouco os usuários da métis “se deixam levar por
impulsos”, utilizando a atitude de premeditação vigilante. Conclui ser a métis
“inteligênciaprática”, uma forma de inteligência “dotada de argúcia, sagacidade e fingi-
mento aliada à experiência adquirida”.
A “premeditação vigilante” pode ser entendida como a atenção para identificar a
ocasião, o que já demonstra a intencionalidade para agir, mesmo que ainda se precise
do momento oportuno para que se possa agir. Porém, podemos entendê-la como a
possibilidade de criar a ocasião e ficar a espreita até que se possa agir. E ainda que as
memórias sejam relativas ao seu tempo de aquisição, aparece tanto no texto de Medeiros
(2005), quanto em Santos (2008), abaixo, a utilização da experiência acumulada para
a predição do futuro, ou seja, planejar a ação, e o caráter de utilização das memórias
das experiências passadas nas soluções dos problemas presentes.
Aliás, Detienne e Vernant resumiram muito bem esse conjunto de qualida-
des, olhadas pelo ângulo do tempo e pela acumulação da experiência: “... o
homem dotado de métis se mostra, em relação a seu concorrente, ao mes-
mo tempo mais concentrado no presente, do qual nada lhe escapa, mais
alerta para o futuro, a respeito do qual já faz algumas especulações especí-
ficas, e mais rico pelas experiências acumuladas no passado. (Santos, 2008).
Certeau (1994), ao falar de Detienne e sua capacidade de contar histórias recri-
ando-as, diz:
Neste espaço de práticas textuais, como num jogo de xadrez cujas figuras,
regras e partidas teriam sido multiplicadas na escala de uma literatura,
Detienne conhece como artista mil lances já executados (a memória dos
lances antigos é essencial a toda partida de xadrez), mas ele joga com esses
lances; deles faz outros com esse repertório: conta histórias por sua vez.
(p.155).
Alita Rego escreve, na resenha para a revista E-Pós
13
, sobre um livro de Glaúcia
Duley
14
:
Glaucia sugere que Freud, que tem paixão pela deusa grega, tenha se valido
da métis grega para construir a psicanálise, pois articulou o movimento entre
13
Revista eletrônica da pós-graduação eco/UFRJ. Disponível em: http://www.eco.ufrj.br/epos/index.html.
14
Duley, G. O silencio da Acrópole, Freud e o Trágico. Uma ficção psicanalítica.Ed. Forense universitária, 2002.
79
um saber estável (embora nunca fixo) e um saber instituinte, instável, que o
fazia rever posições, ultrapassando-as sem nunca abandoná-las completa-
mente.
Nos dois últimos trechos citados, a memória das experiências passadas aparece
nutrindo as decisões do presente. Transformada em memória pela ação do tempo e
relativa ao momento de sua aquisição, a experiência presente informa a experiência
passada atualizando-a, porém, sem apagá-la. Nesse processo, aumenta-se o repertó-
rio de memórias, testa-se a atualidade e operacionalidade das memórias antigas e
compõe-se uma rede de memórias, conectadas entre si, permitindo ao praticante o
reconhecimento do que provoca as ocasiões (sempre haverá a ocasião inédita) estan-
do preparado contra a surpresa (sempre haverá surpresa) e apto à ação rápida (nem
sempre será possível a ação).
Como os elementos materiais que permanecem no mundo, sendo usados por
décadas a fio, expostos nos museus ou reciclados de uma coisa em outra, as memó-
rias são acumuladas no ser humano, formando uma propriedade individual fundadora
da subjetividade. É desse lugar subjetivo que me aproprio do mundo e acumulo capi-
tal. A memória é capaz de capitalizar o tempo em espaço.
Dialogando com Certeau e os outros autores citados, creio que a memória, como
propriedade gerada na experiência de vida ou mesmo como resultado do estudo aca-
dêmico, produz um lugar do qual é possível a produção da estratégia, vitória do tempo
sobre o lugar que só é permitida a quem age, a quem “pratica”. Vitória que possibilita a
posse de capital financeiro (dinheiro) e capital simbólico através do investimento do
tempo na aquisição de memória.
Portanto, concluo que Certeau, ao falar de táticas e estratégias, não está queren-
do criar um binômio ou uma dualidade que permita explicar as formas de ação huma-
na, ou seja, não quer dizer que aos socialmente fracos cabem as táticas e aos fortes
as estratégias, como tem sido de uso recorrente em textos das pesquisas em educa-
ção. Entendo que Certeau propõe a discussão sobre a construção de uma “memória
coletiva”, histórica e socialmente construída, que permite a alguns dizer o que é ou não
conhecimento.
Aos proprietários dos lugares de poder é concedido dizer quais memórias são
válidas como capital e de quais lugares se pode executar ações estratégicas:
O método científico, visto como único meio de se obter o conhecimento ver-
dadeiro, facilita um design racional dos sistemas sociais, o que torna os experts
(cientistas, engenheiros e planejadores) capazes de prever e manejar, se-
não eliminar, os persistentes conflitos e crises que solapam a sociedade
moderna. (MENDES, apuc DOULA, 2001, p. 352)
80
Assim, tanto o Estado como a Ciência, dispõem, a partir de um modelo de
leitura esquemático e globalizante, de mecanismos de intervenção e recons-
trução artificial do mundo natural e social. A modernidade, notadamente as
noções de progresso e desenvolvimento, é marcada pela aliança entre o
Estado e a ciência no que se refere à intervenção continuada sobre o mundo
social e natural. Dado os limites da própria forma cognitiva desse tipo de
visão, complexas cadeias de processos sociais e naturais são ofuscadas e
silenciadas, fazendo com que os efeitos da intervenção se tornem, na gran-
de maioria das vezes, imprevisíveis, negativos e até mesmo desastrosos.
(id., ib.)
A REPRESSÃO SOCIAL DAS TÁTICAS E DA MÉTIS
As características das táticas são as da métis. As semelhanças das duas às
atividades da caça e da pesca e a supressão da métis tanto na mitologia quanto na
filosofia de Platão, como se fosse prejudicial à instituição social, são abordadas por
Santos (1999) a partir dos textos de Detienne e Vernant, referencial importantíssimo tam-
bém na obra de Certeau. O autor aponta para a ligação entre a métis e o instinto animal,
assim como, ressalta a natureza de armadilha da métis, aquilo que sempre se apresen-
ta como sendo algo que não é, e “que dissimula sua realidade assassina sob aparên-
cia de completa segurança.” Por essa relação com as armadilhas e instinto animal, San-
tos observa que Detienne e Vernant foram procurar o Tratado de pesca e o Tratado de
caça, escritos por Opiano:
Nesses tratados se aprende que, tanto no mundo animal como no mundo
humano, as relações de força são sempre derrubadas ou superadas pela
astúcia. “Aqueles que não recebem de um deus a força, e que não são pro-
vidos de uma lança afiada para se defender, têm como armas os recursos da
sua inteligência, fértil em estratagemas e artimanhas”, escreve Opiano, cita-
do por Detienne e Vernant. (id.)
A reprovação de Platão à caça e à pesca, por desenvolverem qualidades de
astúcia e duplicidade, são ressaltadas por Santos, ainda a partir do texto de Detienne
e Vernant, pois seriam contrárias às virtudes humanas propostas por Platão como o
sustentáculo da estabilidade da vida social e política. A caça e a pesca deveriam ser
feitas sem o uso de armadilhas ou redes, apenas com o uso de cães e cavalos, preser-
vando o embate do uso da força do caçador contra a força do animal.
Como se vê, a recomendação platônica é favorável ao uso heróico da força,
em oposição ao uso da inteligência astuciosa através do princípio do “menor
esforço” físico. Sabemos que o uso desse menor esforço é às vezes a única
maneira, através da qual, o fisicamente mais fraco pode dominar o mais
forte. Isso é pelo menos indiretamente condenado por Platão com algo que
induz ao crime. Isso dá ainda outro motivo para Platão criticar Homero, cujo
herói da Odisséia, Ulisses, matou o robusto ciclope, Polifemo, não por vio-
lência, mas “por astúcia”. (id., ib.).
81
Segundo Medeiros (2005), a morte do ciclope Polifemo teria ocorrido após o herói
da Odisséia ter embebedado o monstro e ter furado seu único olho. Polifemo teria grita-
do em socorro aos outros ciclopes, porém esses pensaram tratar-se de uma brincadeira
de Polifemo que gritava que “Ninguém” o estava matando. Por astúcia, ao ter seu nome
perguntado pelo mostro, o herói havia respondido: “– Ciclope, perguntaste o meu glorio-
so nome; eu vou dizer-te. Chamam-me “Ninguém” minha mãe, meu pai e todos os meus
companheiros.”
A astúcia da sua resposta premeditada ao monstro permitiu a complementação
do plano de fuga do herói, que antecipou a forma que o ciclope pediria socorro aos
demais ciclopes. Aproveitando a ocasião para atacar o monstro, depois de tê-lo embe-
bedado, para fugir com seus companheiros.
A métis foi abolida da história da civilização grega, berço da civilização ocidental,
que chega até nós como sendo o local das virtudes humanas. Não é sem sentido que
a deusa grega Métis, segundo Santos (1999), não tinha um culto à sua divindade. Dife-
rentemente de Themis, também esposa de Zeus, que representa o império da lei e da
ordem. A deusa Métis teria sido engolida por Zeus que passou a reunir assim a força e a
astúcia:
Métis representa o conhecimento do que é dinâmico, instável, confuso, caó-
tico, enrolado. Ao se adornar da métis, Zeus será capaz de encontrar o se-
gredo da ordem no meio nebuloso do caos. O mais esperto é capaz de domi-
nar e vencer a esperteza dos outros.
RELATOS, LUGARES E ESPAÇOS
Percebo em Certeau o alerta contra essa eficaz estratégia de dominação, o do-
mínio da memória, para qual a saída seria a solidariedade da sociedade de formigas.
Certeau (1994) aponta é a necessidade da transformação dos lugares em espaços, ou
seja, a prática social: “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência.” (p. 201).
O espaço é um lugar praticado (id., p. 202):
Num exame das práticas do dia-a-dia que articulam essa experiência, a opo-
sição entre “lugar” e “espaço” há de remeter sobretudo, nos relatos, a duas
espécies de determinações: uma por objetos[...] a outra, por operações que,
atribuídas a uma pedra, a uma árvore ou a um ser humano, especificam
“espaços” pelas ações de sujeitos históricos (parece que um movimento sem-
pre condiciona a produção de um espaço e o associa a uma história). (id., p.
203)
O lugar, a estrutura totalizante, a ordem necessitam sofrer a ação dos praticantes
para tornarem-se espaços, precisam ser praticados. Os relatos das operações feitas
82
no espaço contam o que é fabricado e feito ali. Contudo, da mesma forma que os relatos
podem produzir espaços a partir dos lugares, podem produzir lugares a partir de espa-
ços. A ação humana, a prática, é potencial em demarcar os lugares e os espaços.
O lugar da memória, a subjetividade, criada pela experiência pessoal e pelo con-
junto de experiência adquirida como herança cultural – aqui poderíamos usar o concei-
to de habitus em Bourdieu – precisa ser confrontado com outros lugares, uma dialética,
permitindo fundar espaços. Porém sempre haverá a consolidação desses espaços
fundados em novos lugares com leis mais rígidas e mais totalizantes, ou em lugares
nos quais as leis sejam relativas e possam contemplar a complexidade do mundo. Os
espaços aparecem assim como um processo, como um movimento nos lugares, que
permitiria, inclusive, a posse coletiva de lugares pela formação de grupos. Algo como
a democracia representativa necessita da fundação de espaços nos lugares de poder
e para que esse movimento possa continuar existindo na dinâmica democrática, o
lugar democrático deve ser estruturado de forma a permitir a existência da complexi-
dade, se é que pode haver uma estrutura com esse grau de adaptação e mobilidade.
Entendo a proposta de Certeau como um alerta em favor da troca coletiva das
experiências táticas de praticantes, favorecendo a comunicação e a comunhão dos
sucessos obtidos por cada um frente ao poder hegemônico. Forma de luta coletiva
atenta a tendência da individualização do social, como diz Certeau ao falar do seu
estudo das práticas:
O exame dessas práticas não implica um regresso aos indivíduos. Atomismo
social que, durante três séculos, serviu de postulado histórico para uma aná-
lise da sociedade supõe uma unidade elementar, o indivíduo, a partir da qual
seriam compostos os grupos e à qual sempre seria possível reduzi-los. [...],
tal postulado se acha fora do campo desse estudo. (id., p. 39)
Do estudo da rede de antidisciplina:
Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilân-
cia”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não
se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidi-
anos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela
a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a
contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados?”), dos processos
mudos que organizam a ordenação sociopolítica. (id., p. 41).
E das práticas indígenas que não rejeitavam diretamente as leis que lhes eram
impostas pelos conquistadores, mas subvertiam-nas e modificavam-nas: “Dessa ativi-
dade de formigas é mister descobrir os procedimentos, as bases, os efeitos, as possi-
bilidades.” (id., p. 40)
Os usos dos relatos dos praticantes do campo dos esportes podem possibilitar o
83
entendimento das ações táticas e estratégicas presentes em vários espaçostempos,
transformando lugares e memórias. Interessam-me os relatos de atletas e professores
de educação física, principalmente, aqueles que conviveram comigo em espaçostempos
determinados, especificamente em dois projetos de equipes de voleibol feminino, o
projeto Grajaú Tênis Clube (GTC) e o projeto Sport Club Mackenzie (SCM). A princípio,
trabalharia somente com o primeiro projeto do qual selecionaria três meninas, mas,
por questões que espero esclarecer à frente, estendi a pesquisa ao segundo projeto.
Como exposto ao longo desse capítulo, compreendo que a memória é parte cons-
tituinte de nossa subjetividade e funda nosso lugar no mundo. Porém, a partir desse
lugar estruturado e estruturante da nossa forma de perceber tudo que nos cerca, pas-
samos a sedimentar nossas convicções ao repetir nossos relatos, sem que nossas
experiências sejam confrontadas com as de outros praticantes que tenham operado
nos mesmos espaçostempos.
Quando propus confrontar relatos de praticantes, o fiz na intenção de criar um
espaço no qual pudesse identificar as práticas de atletas que possibilitaram sua per-
manência no esporte, apesar desse lugar – o esporte em clubes – ser distante de suas
realidades e de seus habitus. Por isso, escolhi trabalhar com meninas de origem hu-
milde, moradoras de bairros da zona norte, estudantes do ensino público, com pais e
mães trabalhadores, afro-descendentes e que tivessem entrado no esporte de clube
através de convites para a realização de testes nas equipes esportivas dessas institui-
ções e não através da iniciativa de freqüentar um clube social para participar de suas
escolinhas esportivas.
Uma das estratégias traçadas era selecionar esses sujeitospersonagens para a
participação na pesquisa através da minha memória e pelos artefatos materiais produ-
zidos pelos projetos aos quais me referi acima (fotos, súmulas, anotações de treinos,
fichas de dados antropométricos, filmagens de treinamentos e jogos). Esperava en-
contrar as sujeitopersonagens enquanto analisava meus arquivos do primeiro projeto,
que durou de 1993 a 2002, inclusive. Porém, na confusão dos arquivos de um e outro
projeto, apareciam fotos e súmulas do segundo, que ainda estava em processo, tendo
começado em 2003. Embora não quisesse trabalhar na pesquisa com atletas com as
quais ainda tivesse um relacionamento de treinador ou professor, pois considerava
que esta relação pudesse interferir no processo de pesquisa, percebi que duas das
meninas que procurava faziam parte do projeto SCM.
Os relatos das sujeitopersonagens fundaram espaço em um lugar que é minha
propriedade, ou seja, estabeleceram entre nossas memórias uma relação que modifi-
84
cou algumas de minhas convicções acerca de fatos e acontecimentos e, principalmente,
estruturaram um novo lugar do qual percebo, tanto os acontecimentos passados quanto
os processos do presente. Posso afirmar que a experiência de conversar e entrevistar
as pessoas que participaram da criação dessa pesquisa produziu conhecimentos, seja
ratificando percepções e intuições acerca da relação de atletas, clubes e escolas, nas
proposições de novos estudos sobre a educação física e formas de organizar a estrutura
esportiva educacional ou na formação e ação do professor dessa disciplina.
Contudo, a utilização dos relatos não estará presente no sentido de autorizar um
discurso ou a criação de um “metarelato”. Como esclarece Certeau (1994):
Onde os relatos desaparecem (ou se degradam em objetos museográficos),
existe a perda de espaço: privado de narrações (como se constata ora na
cidade, ora na região rural), o grupo ou indivíduo regride para a experiência,
inquietante, fatalista, de uma totalidade informe, indistinta, noturna. (p. 209)
E, como complementa Alves (2000): “Nesse sentido, interessa-me mais o que
cada um tem a dizer do que aquilo que eu gostaria de ouvir.” (p. 14).
OS SUJEITOSPERSONAGENS
O conceito de sujeitopersonagem é uma tentativa de superação do uso dicotômi-
co dos termos objeto e sujeito na pesquisa em educação. Embora outros estudos o
façam apenas com o uso do termo sujeito da pesquisa, construí essa denominação
dos sujeitos de minha dissertação, pois aparecerão aqui também como personagens
de histórias em quadrinhos ao longo do texto.
Para conseguir realizar o estudo do esporte e da educação física, objetos da
minha pesquisa, foi preciso a colaboração dos “agentes” (denominação de Bourdieu)
ou “praticantes” (como chama Certeau). Sua atuação é decisiva no campo ou no espa-
ço. No meu entendimento, mais importante que estudar as instituições foi estudar
esses campos ou espaços com as pessoas que deles participam/participaram. A sua
importância nessa pesquisa – não só como fonte de dados e testemunhas de aconte-
cimentos em vários espaçostempos – existe por serem detentores de conhecimentos
cotidianos sobre os campos aqui estudados.
Como sujeitos de trabalho nessa pesquisa, optei por três atletas e suas histórias
de vida. São mulheres com quem trabalhei em equipes de voleibol em clubes. Surgi-
ram em minha história entre as meninas que vinham até o clube indicadas ou trazidas
pelos professores de educação física dos colégios em que estudavam ou que eram
convidadas a fazê-lo em visitas que fazíamos
15
nas escolas das redes municipal e esta-
dual do Rio de Janeiro.
85
Inicialmente, havia decidido por selecionar esses sujeitos entre as centenas de
meninas e rapazes com quem trabalhei no Grajaú Tênis Clube, clube social da zona
norte do Rio de Janeiro, local em que exerci as funções de preparador físico de equi-
pes de futsal e voleibol. Na verdade, minha relação com esse clube havia iniciado na
época em que fui estudar na Escola Municipal Lourenço Filho, pois as aulas de educa-
ção física eram ministradas nas dependências esportivas do clube – mais à frente
contarei essa história.
Ao elaborar a proposta de pesquisa para o mestrado, um nome apareceu com
nitidez entre os tantos que surgiam nas fotos ou nas relações de presença aos treina-
mentos: Marreco, como também era conheci-
do – diga-se de passagem, mais conhecido –
o então ala esquerdo da equipe juvenil de futsal
de 1992, Gilberto da Silva Melo, atual lateral
esquerdo da seleção brasileira de futebol de
campo. A idéia de trabalhar com a história de
vida e os relatos desse atleta nortearam o iní-
cio dessa pesquisa, pois sua trajetória reúne
os aspectos que, até então, julgava necessári-
os para ocupar o lugar de sujeito dessa pes-
quisa. Um atleta que participou de equipes
esportivas escolares, de origem humilde e que
alcançou sucesso no esporte.
Apesar de Gilberto estar morando na Alemanha, consegui estabelecer um conta-
to pela internet, expus a ele minha proposta de pesquisa e solicitei sua autorização
para desenvolvê-la. Obtive uma resposta favorável porém, a agenda do atleta tornaria
difíceis os encontros pessoais e decidi por guardar a possibilidade de trabalhar com os
relatos de Gilberto em outra oportunidade. Mas não poderia deixar de citá-lo e ofere-
cer-lhe créditos de sujeito dessa pesquisa, pois as minhas e as suas memórias daque-
les espaçostempos, em que lutávamos juntos pelo futsal do Grajaú Tênis Clube, esta-
rão conosco constituindo os lugares de onde falamos, esperando a ocasião em que
poderemos relatá-las para, na fundação desse espaço, analisarmos a importância
daquele espaçotempo na tessitura de quem somos hoje e, quem sabe, produzirmos
conhecimentos que possam ajudar no desenvolvimento dos esportes nas escolas e
propostas de trabalho para o futuro. Obrigado, Marreco!
Imagem 28: Grajaú Tênis Clube – categoria juvenil –
equipe campeã estadual de futsal – 1993.
15
Uso o plural por não estar sozinho nessa ação, contava com o apoio do professor André Gava.
86
Outro sujeitopersonagem que surgiu das fotografias do meu arquivo pessoal foi
Janaína Silva, atleta de voleibol que desempenhou a função de levantadora nas equi-
pes mirim, infantil e infanto-juvenil do Grajaú Tênis Clube. Porém, havia perdido o
contato com ela desde ano de 2002 e, quando tentei encontrá-la através do número de
telefone que estava anotado em uma lista de atletas datada de 1999, não obtive su-
cesso. Eu queria trabalhar com essa atleta na pesquisa da dissertação pela sua expe-
riência como aluna da rede municipal de educação, por residir em uma comunidade
popular – o morro do Salgueiro –, por ser negra e por morar distante do clube, o que lhe
acarretava uma tarefa extra que era o deslocamento
entre os bairros da Tijuca e do Grajaú, fato que eu gos-
taria de estudar.
Um dia, conversando com uma ex-atleta sobre
o meu projeto de mestrado, comentei que uma das
pessoas com a qual pretendia trabalhar seria Janaína,
mas que estava encontrando dificuldades em esta-
belecer um contato com ela. Essa ex-atleta, Lívia
Campos, contou-me que, no Clube Maxwell, no Bair-
ro de Vila Isabel, funcionava um projeto social do go-
verno do Estado baseado no voleibol em parceria com
Jackie Silva, medalhista olímpica de vôlei de praia em
1996, e que Janaína estaria jogando voleibol nesse pro-
jeto social.
Entrei em contato
com o clube para saber em
quais horários funcionava
esse projeto e fui procurar
por Janaína. Encontrei-a
no meio de um treino e,
embora quisesse logo falar
com ela, esperei o interva-
lo para me aproximar.
Imagem 30: Grajaú Tênis Clube – voleibol – categoria infantil – 2000.
Imagem 29: Janaína Silva.
87
Expliquei-lhe as questões que me levaram a convidá-la e consegui sua concordân-
cia e autorização para incluí-la como sujeitopersonagem da pesquisa.
Lembro-me pouco da história que levou Janaína até o clube. Na verdade apenas
suponha que tivesse sido através do professor de educação física da escola em que
estudava. Só na entrevista que fiz com Janaína é que fiquei sabendo que a responsá-
vel pelo seu ingresso no voleibol foi a professora de francês Tânia, que tinha sua filha
como atleta do Grajaú Tênis Clube.
Eu exercia a função de preparador físico de todas as categorias do voleibol
do clube, mas, nesse ano, 1999, eu havia assumido outros compromissos e passei a
não trabalhar com a categoria mirim, justamente a que Janaína passava a freqüentar.
O trabalho de preparação física era planejado por mim junto ao preparador físico que
88
ficou responsável pela categoria, professor Leonardo Chita, que trabalhava junto ao pro-
fessor Walner Santos, ambos ainda estudantes de educação física e, por isso, supervisi-
onados por mim e pelo professor Maurício Barros.
Portanto, não me lembro de ter encontrado com Janaína até um dia em que
ela foi convidada a treinar na categoria infantil. Ao entrar no ginásio, durante o treino
da categoria infantil, deparei-me com uma menina negra, magra e que saltava bem na
execução dos bloqueios. Lembro-me que a primeira ação que vi Janaína executar
numa quadra de vôlei foi um bloqueio. Dirigi-me ao professor Maurício Barros que
ministrava o treinamento e perguntei-lhe quem era a menina nova. Ele me respondeu
que era uma menina da categoria mirim que estava indo bem nos jogos daquela cate-
goria e que havia conversado com o professor Walner para que ela treinasse também
na infantil.
Sobre essas experiências Janaína Silva relata que:
– Eu estava no colégio, 1º ciclo, quinta série, aí a minha professora
de francês pediu para eu passar... Pediu para eu escrever não sei o
quê no quadro.
Outra atleta do GTC, Monique Galvão, relata a mesma experiência de ser
convidada pela professora de francês para o teste no clube:
– Ela achava que eu tinha porte de atleta e muita energia para gas-
tar. Por que eu tinha ido ao médico e ele havia dito que eu tinha
muita energia para gastar. Eu falei isso com ela e ela me convidou
para ir ao Grajaú Tênis Clube.
Janaína conta como foi sua apresentação no Grajaú Tênis Clube, após o con-
89
vite da professora de francês:
– Na primeira vez que eu fui não fui vestida para treinar. –
sorrindo
– fui de sandália, saia... O treinador era o Walner ou a Renata, um
dos dois –
mostrando dúvida
–, aí falou: – você veio assim para
treinar? –
interrompe a história pois lembra quem a recebeu –
Era
o Walner... Ele disse: – você veio assim para treinar? E eu disse: –
não sabia.... Aí ele me falou o outro dia de treino, aí eu fui a cará-
ter.
Embora Janaína tenha relatado que Renata havia sido sua professora na
escolinha do GTC, em entrevista, Renata nega esse fato.
90
91
Janaína Silva permaneceu no Grajaú Tênis Clube de 1998 a 2002, participou de
equipes que não tiveram um bom desempenho nos campeonatos disputados, mas
para a atleta não importava a questão da vitória, segundo ela, as atletas sentiam-se
frustradas por treinarem e não conseguirem as vitórias, mas em nenhum momento
sentiam-se desmotivadas para os treinos.
A ausência da mãe nos jogos é relatada com uma ponta de tristeza, porém
com muita maturidade, reconhece-a como uma pessoa trabalhadora e que a apoiou
desde o princípio na caminhada pelo voleibol, ainda confortando-a na volta para a
casa após as derrotas:
– E aí? Como é que foi? Ganhou?
– Não perdemos.
– Perderam? É mas não tem importância, um dia vai ganhar.
Os motivos de sua saída do clube foram a forma de trabalho do treinador
que assumiu a equipe em 2002 e uma contusão no joelho:
– Houve uma troca de técnico e na mesma época meu joelho tinha
machucado, eu já tinha machucado umas duas vezes antes e houve
uma terceira vez, e eu não gostava do técnico, da forma que ele
lidava com o time e eu aproveitei essa contusão, por causa da
desmotivação que estava havendo em relação a ele e parei. [...] por
que ele sempre exaltava o erro. E quando havia o acerto ele desde-
nhava, dizia que não havia feito mais do que a obrigação.
Janaína fala da experiência de ter jogado ao lado da campeã olímpica de
vôlei de praia, Jackie Silva, em uma equipe formada por alunas de um projeto que a
ex-atleta mantinha junto ao governo estadual do Rio de janeiro.
92
Como pretendia trabalhar com três sujeitospersonagens, não por alguma questão
metodológica ligada ao número de indivíduos que comporiam a amostra, mas por pre-
caução em relação ao material que poderia ser produzido por um sujeitopersonagem ou
por três deles, continuei revirando os arquivos de trabalho da época em que trabalhava
no Grajaú Tênis Clube e inclui nessa procura arquivos de outros lugares onde havia tra-
balhado a procura de pelo menos mais duas pessoas para incluir no estudo. Excluí des-
sa seleção os alunos e atletas com os quais ainda estivesse trabalhando no momento da
proposta de pesquisa, pois não queria que estes se sentissem na obrigação de colabo-
rar com o professor ou treinador.
Em outras palavras: uma entrevista com alguém que tem poder sobre nós ou
sobre outrem não está, necessariamente, sujeita ao mesmo conjunto de con-
siderações éticas que vigoram para outras entrevistas – não importa o que
pensemos da pessoa. (PORTELLI, 1997, p. 28)
O fato é que trabalhava em um projeto que reunia muitas atletas com o perfil que
93
procurava para a pesquisa, porém, como havia feito a opção de desenvolver o estudo a
partir de projetos com os quais não estivesse mais envolvido, não percebia a
potencialidade desses grupos como possíveis sujeitospersonagens da pesquisa. Até
que, por acaso, ao manusear fotografias desses projetos antigos, encontrei algumas
fotos de um desses times com o qual ainda estava envolvido. Eram fotos de um jogo
amistoso da equipe de voleibol do Sport Club Mackenzie, justamente na quadra do
Grajaú Tênis Clube. Apesar de encerrar meu vínculo de trabalho com este clube, man-
tinha bons amigos entre seus funcionários e professores, o que nos levava a fazer
alguns jogos amistosos entre as equipes dos dois clubes como preparação para os
campeonatos nos quais estávamos inscritos. Essas fotografias devem ter sido arqui-
vadas por engano na pasta pertinente ao período em que trabalhei no Grajaú Tênis
Clube pelas características da quadra que aparecia nas suas imagens, justamente o
ginásio de jogo do Grajaú Tênis Clube.
Nessas fotos, duas meninas chamaram minha atenção, Larissa Evaristo e Már-
cia Santos.
Relutei em incluí-las entre as possíveis sujeitospersonagens da pesquisa, mas
percebi que suas histórias de vida tinham as características pertinentes ao grupo de
com o qual desejava trabalhar. Separei as fotos em que apareciam e acrescentei seus
nomes a lista de possíveis candidatos a sujeitos da pesquisa.
Depois de consultar alguns amigos do grupo de pesquisa que trabalhavam com
história oral, percebi que, mesmo com aquelas meninas com as quais não havia mais
a relação de trabalho hierárquica, ainda teríamos um vínculo treinador/professor e
atleta/aluno, não tão rígido pelo distanciamento temporal, mas ainda presente em nos-
sa relação pessoal pelos anos que traba-
lhamos juntos. Realmente, percebi que,
por mais que eu as considere amigas, elas
têm em mim a figura do professor/treina-
dor. Portanto, abri mão da minha proposi-
ção inicial e defini o grupo de trabalho com
a participação dessas três atletas: Janaína
Silva, Larissa Evaristo e Márcia Santos.
Porém, no tempo entre a definição
dos sujeitospersonagens, a apresentação
do plano de pesquisa na inscrição para a
seleção do mestrado e a minha aprova-
Imagem 31: A foto que me fez escolher Larissa Evaristo e
Márcia Santos como sujeitospersonagens da pesquisa.
94
ção como aluno regular do Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ, acon-
teceram algumas mudanças nessas relações de trabalho entre nós. Primeiramente,
aceitando um convite que fiz, Janaína Silva passou a integrar a equipe universitária de
voleibol da qual sou treinador, enquanto Larissa Evaristo e Márcia Silva deixaram de
participar do projeto de voleibol do Sport Club Mackenzie, onde eu era treinador – a
história dessas mudanças será relatada em outro momento.
Larissa Evaristo foi consultada quanto à sua participação na pesquisa enquanto
ainda trabalhava comigo em 2005. De maneira idêntica ao procedimento adotado no
convite feito a Janaína Silva, expliquei-lhe o conceito de sujeitopersonagem e identifi-
quei algumas possibilidades de pesquisas a serem feitas, como a gravação de entre-
vistas em vídeo e som, respostas a questionários escritos – que acabaram suprimidos
– e pesquisas nos colégios em que estudou. Minha percepção em relação à
receptividade de Larissa à proposta foi de muita alegria e disposição para participar da
pesquisa. Aparentava estar muito orgulhosa de ter sido escolhida para essa participa-
ção e manteve-se silenciosa em comentários sobre o fato com as outras atletas do
grupo em que trabalhávamos, sem que isso lhe fosse solicitado.
Na época em que estávamos formando a equipe mirim de voleibol do Sport Club
Mackenzie, eu e o professor André Gava percorríamos as escolas do bairro do Méier
para explicarmos aos professores de educação física as intenções e a estrutura do
projeto. Solicitávamos que os professores entregassem uns cartões de visita para as
meninas que consideravam interessadas nas aulas de educação física e que estives-
sem dentro da faixa etária de 11 a 13 anos. Nesses cartões, havia o nome e o endere-
ço do clube, dos professores e as datas em que poderiam ir ao clube para participar
dos treinamentos da equipe de voleibol. Explicávamos aos professores que não traba-
lhávamos com peneiras
16
, e sim com períodos de treinamento. Eram organizados pe-
ríodos de treinamento de duas semanas nos quais as atletas proponentes formavam
um grupo onde eram ministrados os treinamentos à semelhança do que era ministrado
à equipe do clube. Ao fim desse período, as atletas que ainda estavam participando do
grupo de testes – pois algumas atletas desistiam por não se identificarem com os
treinamentos e outras eram excluídas do grupo por excesso de faltas ou atrasos, único
critério estabelecido como excludente nessas duas semanas de treinamento – eram
unidas à equipe do clube e treinavam mais duas semanas. Assim os fatores de ansie-
dade e nervosismo diminuíam entre as atletas em teste, e outros fatores além dos
16
Peneira é um termo usado no esporte para nomear o processo de seleção de novos atletas para as equipes de clubes.
Normalmente é feita em um dia no qual o aspirante a atleta é avaliado pelos responsáveis técnicos das equipes.
95
físicos e de desempenho eram observados na admissão das novas atletas. Portanto,
na abordagem ao professor de educação física nas escolas municipais não eram esti-
pulados altura mínima ou exigida competência atlética no voleibol para que uma meni-
na fosse indicada para teste. O fator principal para a indicação era a participação nas
aulas de educação física e no convívio com os outros alunos nas atividades esportivas
extracurriculares da escola.
Em um dia de muito calor, após andarmos pelo Engenho de Dentro, bairro vizi-
nho ao Méier, chegamos à escola municipal em que Larissa estudava. Ao entrarmos
na escola, fomos até a secretaria e pedimos informação à diretora da escola sobre o
professor ou professora de educação física. Como estava muito ocupada, dando uma
enorme bronca em três ou quatro alunos, ela solicitou a um outro aluno que nos levasse
até a professora Marly.
96
A professora mostrou também a preocupação com a inscrição das atletas junto à
FEVERJ, pois, às vezes, as meninas são inscritas para a participação na categoria
mirim e são dispensadas nas categorias infantil ou infanto-juvenil e, com esse vínculo
junto à federação, ficam proibidas de representarem a sua escola nos campeonatos
estudantis para não-federados
17
perdendo assim a possibilidade de estudarem como
bolsistas-atletas na rede particular no ensino médio.
18
Na data marcada para o início dos testes, para a minha surpresa, compareceram
21 meninas, provenientes de diversas escolas que foram visitadas no início do mês de
março de 2003. Nesse grupo de meninas, 8 estudavam na escola municipal em que
Larissa estudava e a acompanharam no primeiro dia de teste.
Pelas anotações daquela época, revistas hoje na ficha de testes usada naquele
dia, conheci Larissa no dia 12 de março de 2003. Recordo que naquele momento eu
não lembrava o nome da menina mencionado pela professora Marly e não conseguia
rememorar a fisionomia de Larissa, que só havia visto rapidamente brincando na qua-
dra do colégio.
Era um grupo de meninas muito animado, embora estivessem visivelmente ansi-
osas, estavam empolgadas pela oportunidade. A equipe de vôlei mirim, para a qual
estavam tentando entrar, treinaria logo após a elas e as atletas dessa equipe começa-
vam a chegar ao clube, vestidas com seus uniformes de treino, reuniam-se, aos pou-
cos, em um canto da arquibancada do ginásio.
Reuni o grupo de testes no centro da quadra e expliquei que havíamos formado
uma equipe de voleibol mirim que estava inscrita no campeonato carioca, do qual
participavam os grandes clubes de futebol (Flamengo, Botafogo e Fluminense) e que
nós estávamos precisando de meninas dedicadas e que gostassem de voleibol. A
partir de então, comecei a fazer alguns jogos e brincadeiras como aquecimento e para
deixá-las mais à vontade, em seguida exercícios de voleibol que culminaram com um
jogo. Não conseguia destacar quem seria a menina indicada pela professora Marly
das demais, pois o desempenho nos fundamentos técnicos do voleibol – as ações que
compõe o básico do voleibol como saque, manchete e toque – era muito homogêneo
entre as meninas. Mas, no momento do jogo, começou a aparecer uma garota que se
diferenciava das outras meninas pela alegria com que jogava e pelo apoio que ofere-
17
Os campeonatos estudantis são divididos nas categorias federados e não-federados. Na primeira podem participar todos os
atletas, mesmo os não-federados, também é conhecida como categoria livre. Na segunda categoria só podem competir os
atletas que não tenham vínculo com a federação estadual do esporte em que competem pela escola. Um atleta federado em
futsal, por exemplo, pode competir em voleibol, mas não em futsal.
18
Há a oportunidade de conseguir bolsa de estudos para competir pelas equipes de escolas particulares que disputam os
campeonatos promovidos pela Federação Estudantil do Estado do Rio de Janeiro.
97
cia às suas amigas nos momentos em que essas erravam uma jogada. Ao final do treina-
mento, perguntei o seu nome e tive certeza de que aquela era a aluna à qual a professora
Marly referiu-se.
Das 21 atletas que se apresentaram no dia 12 de março de 2003, apenas
onze conseguiram manter a regularidade da presença aos treinos até o dia 26 de
março de 2003, quando deveriam juntar-se ao grupo de atletas da equipe mirim. Con-
tudo, Larissa foi convidada a juntar-se à equipe federada uma semana antes das de-
mais, pois já demonstrava muito interesse e empenho nos treinamentos, assim como
um ritmo de aprendizagem acelerado.
Infelizmente, não houve registro fotográfico ou em vídeo daquele período
de testes. O único registro desses testes é a lista de acompanhamento de freqüência,
onde se encontram os nomes das atletas, as datas em que foram convidadas a treina-
rem com a equipe mirim, as faltas e presenças do período de testes, as datas de
nascimento das alunas em teste e seus nomes.
Larissa havia chegado ao Rio de Janeiro, vinda de Brasília, em 2002 e,
desde 2004, trabalha em uma casa de festas para ganhar seu dinheiro e ajudar a
família. Conciliar treinamentos, estudos e trabalho não é tarefa fácil, ainda mais para
uma menina, na época com 14 anos, mas com perseverança concluiu o ensino médio
sem precisar parar de jogar.
Após três anos de convívio nas equipes do SCM, Larissa transferiu-se para
o Tijuca Tênis Clube, pois o projeto SCM estava sem condições financeiras para sus-
tentar a equipe da categoria da qual faria parte em 2006, ficando só com a categoria
inferior à dela, para as meninas nascidas até 1991. Intermediei esse processo de
transferência junto ao treinador e ao diretor do clube tijucano, mas, mesmo assim,
Larissa só conseguiu acesso ao clube pela interferência das suas amigas de colégio
que também jogavam naquele clube.
Embora tenha sido titular tanto nas equipes do Sport Club Mackenzie quan-
to nas de seu colégio, no Tijuca Tênis Clube, Larissa ocupa o lugar de reserva, muitas
vezes ficando fora da relação de jogo. Porém, continua treinando com afinco e dedica-
ção, pois sabe que as ocasiões podem aparecer a qualquer momento. Uma dessas
oportunidades está em andamento, Larissa está participando de uma seleção para
bolsas de estudo através do voleibol para estudar nos Estados Unidos. No dia em que
gravamos essa entrevista, ela tinha ido a um dos treinos dessa seleção, que, por
problemas relacionados com a avaliadora do processo, foi transferida para a semana
seguinte. Independentemente do sucesso nessa avaliação, Larissa já possui convites
98
para integrar equipes universitárias com direito a bolsa de estudos.
Márcia Santos deixou o projeto SCM antes da definição da pesquisa e o procedi-
mento de consulta para o consentimento de sua inclusão no estudo foi feita por meio
de ligação telefônica. Depois de quase seis meses de tentativa de contatá-la, pois não
conseguia comunicar-me com Márcia através dos números telefônicos de costume.
Porém, em uma última série de tentativas, através de um número de telefone que encontrei
anotado a lápis em uma minuta de treino datada de 2003, consegui entrar em contato
com uma vizinha de Márcia que, a princípio, desanimou-me, pois disse que ela havia-se
mudado da vizinhança. Solicitei que anotasse os números de meus telefones e que, se
pudesse dá-los a alguém da família de Márcia, eu lhe seria muito grato. A senhora
respondeu que talvez conseguisse fazê-lo, porém não poderia precisar quando o faria e
nem se obteria sucesso. Passei-lhe meus números de telefone, um tanto sem esperanças
de conseguir êxito.
Durante uma das reuniões de orientação, falava sobre a dificuldade em encon-
trar Márcia, quando recebi uma ligação telefônica na qual minha esposa me comunica-
va que Márcia havia entrado em contato e deixado um número de telefone celular para
que eu lhe retornasse a ligação. Era uma terça-feira à noite e, na quarta-feira, antes
que eu fizesse o contato, a própria Márcia liga para a minha casa. Perguntei-lhe se
lembrava do convite que lhe havia feito para participar da minha pesquisa e se poderí-
amos nos reunir para a realização de uma entrevista. Márcia respondeu-me positiva-
mente às duas perguntas e marcamos em frente ao colégio em que estudou do CA até
concluir o ensino médio no turno noturno. Márcia recebeu a notícia com muita emo-
ção, inclusive agradecendo a sua inclusão no estudo e mostrando-se disposta em
poder contribuir com a pesquisa, notadamente, com a intenção de ajudar-me.
Quando idealizei o projeto SCM, o responsável pelo trabalho com as escolinhas
e de pré-equipe do clube seria o professor André. Percorremos muitas escolas procu-
rando meninas com boa capacidade atlética para a prática do voleibol. Fazíamos uma
divulgação com os professores das escolas para que eles nos encaminhassem as
meninas que se identificavam com os esportes nas suas escolas.
Logo no primeiro ano de funcionamento do projeto SCM, André foi aprovado no
concurso para o magistério promovido pela Secretaria de Educação do Município do
Rio de Janeiro. Sem a possibilidade de conciliar os dois trabalhos, fez a opção pelo
magistério publico.
No segundo semestre de 2003, foi designado professor de uma turma de meni-
nas da faixa etária que estávamos trabalhando em nosso projeto. Porém, esse grupo de
99
meninas estudava à tarde e precisaríamos criar um núcleo no clube na parte da manhã
para que pudéssemos recebê-las.
Negociei com a diretoria do clube um horário às terças e quintas-feiras, de 9h30mim
às 11h. Com isso, passamos a divulgar nosso projeto para os alunos do turno da tarde
das escolas públicas.
Na quinta-feira marcada para o primeiro encontro desse grupo, apareceram cer-
ca de dez meninas. Creio que foram ao treino num misto de curiosidade e para agra-
dar ao professor André, porém acho que se surpreenderam com a proposta por nós
apresentada. Teríamos as terças e quintas-feiras uma quadra, material e professores
para desenvolvermos uma equipe de voleibol no horário da manhã. Tenho certeza que
poucas haviam experimentado o esporte em forma de equipe, apenas uma menina,
Camila, jogava vôlei em um projeto existente na FAETEC de Quintino, antiga FUNABEM,
as demais só conheciam a prática de esportes institucionalizados pela via do colégio.
Márcia e Camila destacavam-se pela mudança de comportamento. Enquanto
algumas ainda mantinham as brincadeiras de quem só conhece o espaço esportivo do
colégio, em meio às aulas, nem sempre organizadas, da educação física, as duas
apresentavam-se compenetradas e dedicadas nos treinos. Mantive o grupo treinando
pela parte da manhã, mas solicitei que Márcia e Camila viessem treinar após as suas
aulas da escola, no treinamento da equipe que acontecia às terças e quintas-feiras
das 18h30mim às 20h30mim. Como o semestre já estava terminando e o entrosamento
de Márcia e Camila com as atletas da equipe federada tinha sido muito bom, solicitei
que as duas pedissem a transferência para o turno da manhã para o próximo ano
letivo, 2004.
Essas meninas tornaram-se duas das melhores atletas da equipe, porém apre-
sentavam comportamentos diferentes na relação com o vôlei, enquanto Camila parecia
satisfeita por integrar a equipe e não procurava novos desafios dentro do esporte, ao
contrário de Márcia que aparentava querer dedicar-se seriamente ao voleibol.
Filha de uma família pobre, Márcia enfrentou as dificuldades geradas pelas con-
dições financeiras precárias de sua família. Mesmo tendo capacidade atlética para
seguir seus sonhos, não possuía condições econômicas de manter-se treinando. Com
o fim da 8ª série, consegui uma bolsa de estudos para que pudesse estudar em um
colégio particular que investia nas suas equipes esportivas, trazendo atletas que jo-
gassem em clubes. Indiquei para esse colégio Larissa e Márcia, porém apenas Larissa
conseguiu aproveitar a oportunidade, pois por não poder arcar com uma taxa de matrícula
e não poder abrir mão do cartão Riocard, que garante aos estudantes da rede pública do
100
Rio de Janeiro a gratuidade nos deslocamentos nos ônibus urbanos, Márcia teve que
continuar seus estudos na escola pública.
No dia marcado para o encontro, depois de um abraço saudoso, ela foi logo me
mostrando a aliança na mão esquerda e dizendo que se havia casado há três meses.
Surpreendi-me com a notícia e dei-lhe os parabéns. Ela continua atlética, parece não ter
mudado muito fisicamente, porém está mais madura e séria, até um pouco contida, mas
começo a fazer algumas brincadeiras dizendo que achava que iria encontrá-la gorda e
barriguda e ela começa a rir e vamos descontraindo-nos, pois confesso estar apreensivo
com aquele momento que julgava ser muito precioso para a minha pesquisa.
Sentamos em um banco de concreto na entrada da escola e começamos a con-
versar. Perguntei-lhe sobre o casamento e se o rapaz era da Igreja, pois Márcia con-
verteu-se a uma igreja evangélica. Ela entendeu que eu havia perguntado se haviam
casado na Igreja:
101
– Não, casamos só no civil.
– Ele também é da igreja?
– Ainda não é, mas vai ser – mostrando a intenção de converter o
marido à igreja evangélica.
Márcia ainda mora na mesma rua que morava, embora a vizinha houvesse me dito
que ela havia se mudado da vizinhança, e faz curso técnico em administração em uma
escola do estado e está estagiando na FAETEC de Quintino, no departamento pessoal.
OUTROS SUJEITOSPERSONAGENS
Outros sujeitos aparecem na pesquisa ao longo do processo de sua construção, a
participação de alguns podia ser prevista pela proximidade com os percursos de vida
das sujeitospersonagens e outros pela aproximação à minha trajetória. Alguns desses
sujeitos não foram entrevistados formalmente e não produziram entrevistas a serem
transcritas. As inúmeras conversas que só conseguiram ser registradas através da
minha própria memória, dos encontros fortuitos e imprevisíveis, nos quais a gravação
em vídeo ou voz não foi possível.
Como me mostrou/mostra-me Mitsi Pinheiro em sua tese de doutorado2, algu-
mas conversas informais que ocorrem espontaneamente durante encontros aconteci-
dos podem ser usadas pelo pesquisador:
Outro aspecto que considero importante destacar em relação ao conteúdo
do trabalho, refere-se à inserção, em todo o texto, do que me disseram as
pessoas com as quais conversei nos encontros “marcados” e nos encontros
“acontecidos”. [...] Suas falas apareceram sempre que senti necessidade de
trazer alguém que me ajudasse a dizer algo que não conseguia dizer sozi-
nha. (p. 18)
102
Isso foi de grande valia para minha pesquisa, pois, por ser um professor de educa-
ção física que trabalha com o esporte e que freqüenta os ginásios de esportes tanto nas
competições de clubes quanto nas competições estudantis, estou sempre em contato ou
reencontrando amigos, ex-atletas ou ex-alunos. Ao saberem da minha incursão nos
estudos acadêmicos, mostravam-se/mostram-se interessados em saber sobre o que
estou pesquisando e contribuíram/contribuem com histórias, opiniões, saberes,
conhecimentos e até, solidariamente, colocavam-se/colocam-se à minha disposição para
que eu pudesse/possa visitar as escolas em que trabalham ou mesmo entrevistá-los.
De certa maneira, estes meus encontros casuais com pessoas que nutrem uma
paixão pelo esporte, sobretudo o voleibol, se parece com o que escreve Mitsi Pinheiro.
Por morar em uma cidade pequena, a autora descreve as formas como encontra casual-
mente com seus amigos de infância e de escola e como pode, através do tempo, ter a
possibilidade de acompanhar proximamente as diferentes trajetórias percorridas por
esses amigos e até as trajetórias dos seus ex-alunos. E, citando uma professora, deixa
evidente que esse fenômeno não ocorre só com ela:
...eu fui em uma loja de eletrodomésticos e reencontrei esse menino, já com
vinte e um ou vinte dois anos, ele vendedor da loja, aqui em Carangola, e nós
nos reconhecemos. Eu disse a ele: você já foi meu aluno, lembra? Ele disse:
lembro, eu te vejo sempre na igreja. [...] Então, nas cidades pequenas, mes-
mo com o passar do tempo, você sempre reencontra os seus alunos. (PI-
NHEIRO, 2005, p. 14)
Essa comparação entre o espaço de uma pequena cidade e os encontros que a
proximidade geográfica produz pode ser comparado aos encontros promovidos pela
manifestação do espaço ocupado pelo voleibol no espaço geográfico, que aproxima
as pessoas através de competições, círculos de amizades, eventos esportivos e tan-
tos outros momentos e fatores comuns aos que participam dessa comunidade.
Esses outros sujeitospersonagens, assim como “as três meninas”, encontram-se
ligados aos clubes e as escolas formando uma rede de memórias e relatos que possi-
bilitaram meu contato com diferentes espaços esportivos e escolares e suas práticas
cotidianas, mesmo sem ir, presencialmente, ao espaço físico dessas escolas ou clu-
bes para observar suas práticas.
Essa ampliação do universo espacial da pesquisa que permite ao pesquisador ir
até um local através das representações dos sujeitos com os quais trabalha, ou que
traz ao pesquisador as representações das práticas que lá acontecem, assim como, a
ampliação temporal que possibilita, a partir desses relatos de práticas e espaços por
sujeitos, transitar através de inúmeros espaçostempos e ir para frente e para trás na
linha do tempo, reunindo representações para a construção do conhecimento, foi uma
103
das escolhas metodológicas que fiz nessa pesquisa.
Da mesma forma que uso as construções de autores que me fundamentam no
discurso que escrevo nessa pesquisa – pois a escrita é a transcrição da minha fala
desenhada em letras – faço uso dos relatos de outros sujeitos que não possuem status
acadêmico, porém possuem o status de sujeitos da minha pesquisa, por serem pesso-
as que praticam a educação e podem contribuir para a construção do conhecimento
em redes através do uso dessa metodologia efêmera:
De modo geral, em nossa metodologia efêmera, as redes foram desveladas,
produzidas e fortalecidas nas relações com educadores, estudantes e outros
sujeitos do cotidiano escolar, a partir da diversidade de saberes, crenças,
valores preferências, não preferências, representações e significados com-
partilhados. A partir da multiplicidade de aços, táticas e artimanhas produzi-
das. A partir da variedade de cheiros, barulhos, imagens, gostos e sentimen-
tos vividos. (FERRAÇO, 2002, p. 106-7)
AS ENTREVISTAS
Definidas as sujeitospersonagens da pesquisa, elaborei as estratégias que seri-
am utilizadas para contatá-las, informá-las dos propósitos da pesquisa e as formas de
estimular suas memórias e relatos, assim como registrá-los. As primeiras idéias trazi-
am a possibilidade de produção de um documentário sobre o processo de execução
da pesquisa, no qual seriam filmados os primeiros contatos, as suas reações ao terem
suas solicitações de participação na pesquisa requeridas e as entrevistas. Porém, logo
no primeiro contato com Janaína Silva, percebi que o uso da câmera filmadora a cons-
trangia, como diz Coutinho (1997):
Na verdade, não é a presença da câmera que muda realmente, [...] Essa
possível interferência no gesto e na fala existe também para o historiador
oral, que não tem câmera, mas tem um gravador, que pode ser um gravador
de bolso, então a simples presença já muda. (p. 167)
Apesar da correta observação acima, a relação com o gravador mostrou-se me-
nos constrangedora do que a relação com a câmera filmadora, embora o fato de estar
sendo entrevistada fosse o que não a deixava à vontade.
Optei, então, a partir dessa primeira tentativa de registro filmado com Janaína,
por conversar sobre a pesquisa alguns minutos antes de ligar o gravador e, depois de
ligá-lo, esforçar-me para não alterar a forma da minha fala, mantendo-a tão coloquial
quanto vinha sendo na conversa introdutória. Porém, ainda assim, as entrevistadas
mantinham-se mais caladas nessas conversas iniciais do que normalmente o são e
nota-se que, em suas falas iniciais, elas alteram a forma como vinham se expressando
104
tentando ser mais formais, através de um tom de voz mais alto – talvez preocupadas em
contribuírem com a qualidade da gravação – e da pronúncia correta das palavras – não
que as pronunciassem incorretamente, mas nota-se o empenho em seguir a norma culta
da língua portuguesa.
As “três meninasreagiram diferentemente no decorrer das entrevistas, embora
todas tenham procedido de maneiras muito semelhantes em seus momentos iniciais.
Enquanto uma manteve-se mais tensa e contida nas respostas, usando poucas pala-
vras e refletindo por mais tempo antes de começar a respondê-las, outra se mostrava
mais à vontade, respondendo com profusão de informações. Uma delas, às vezes,
respondia mesmo antes da conclusão da pergunta, tentando adivinhar o seu final. Ou
seja, não houve um padrão que possa ser apontado como recorrente na reação das três
sujeitospersonagens no desenvolvimento da entrevista gravada.
Com a seqüência de entrevistas e a apresentação de suas transcrições, consegui-
mos estabelecer uma relação mais harmoniosa com a câmera filmadora e com o grava-
dor, sendo que, com a câmera, fazia o processo inverso ao uso do gravador de voz que
só acionava após alguns minutos de conversa. Quando na entrevista havia o uso da
filmadora, essa era posta em modo de gravação enquanto ainda nos posicionávamos
para a entrevista, ou seja, enquanto íamos conversando sobre a pesquisa. Esse procedi-
mento nos deixou tão à vontade que fez com que nos esquecêssemos várias vezes de
trocar a fita de gravação ou o módulo de bateria da câmera, resultando na gravação
parcial de várias entrevistas.
As entrevistas foram planejadas para produzirem relatos sobre espaçostempos
passados, para isso formulei questões, a partir da minha memória, que permitissem
iniciar um diálogo sobre alguns eventos e acontecimentos. Portanto, as entrevistas
possuíam um roteiro, porém, muitas perguntas foram acrescidas no decorrer das en-
trevistas, assim como os enunciados de algumas perguntas receberam adendos
explicativos após o não entendimento de uma ou outra questão por parte da entrevis-
tada. Mas as perguntas relacionadas nos roteiros das entrevistas não tinham o objeti-
vo de conseguir uma determinada resposta, o que como explica Coutinho (1997), tor-
naria desnecessária a entrevista:
Eu não faço roteiros escritos [...] Tento fazer filmes em que tenho perguntas
a colocar e vou tentar saber quais são as respostas fazendo o filme. [...] Se
fosse para obter uma resposta fechada, também não valia a pena fazer fil-
mes com som direto. (p. 169).
Segundo Silva et al. (2006), dependendo do autor consultado, este tipo de entre-
vista recebe várias denominações: semi-estruturada, mista, semi-dirigida, entre ou-
105
tras. Ressalta que o sucesso da entrevista depende das habilidades do entrevistador,
sendo que sua capacidade de comunicação verbal e a paciência para ouvir as falas dos
entrevistados são fundamentais. Outra observação das autoras é o desenvolvimento do
entrevistador pela prática da entrevista. Particularmente, no meu processo de pesquisa,
pude perceber minha evolução como entrevistador da primeira entrevista – com Janaína
Silva – à última – com Márcia Santos. Nas primeiras entrevistas, ao menor sinal de demora
da entrevistada em responder a uma pergunta colocava-me a explicar-lhe o sentido da
questão, muitas vezes embutindo nessa explicação um direcionamento de resposta para
a entrevistada, como acontece na entrevista com Janaína em que lhe pergunto:
– Qual a importância da educação física na escola e dos professores, aí de uma
maneira geral, de todos os professores na sua vida?
Como demorava a responder, apressei-me a explicar:
– Dessa educação física que você experimentou na escola e os professores na
sua vida, você já falou aí da professora de francês, por exemplo, que foi quem te
encaminhou para o voleibol. Qual foi uma coisa que você tenha achado importante?
E quando a entrevistada esboçou um início de resposta dizendo:
– Hummmm, sei lá, deixe-me pensar....
Fiz lhe outra pergunta, interrompendo o seu momento de reflexão sobre tudo o
que havia lhe perguntado:
– Ou não teve importância? Também pode ser que não tenha importância.
Após toda essa incompetência na arte de entrevistar, a única resposta possível
foi a formulada pela entrevista, que se mostrava confusa pelos vários complementos
adicionados à pergunta inicial:
Ah, sei lá...
Como exposto anteriormente, escolhi as sujeitospersonagens a partir de certas
características comuns a todas elas, ou seja, eram meninas, da mesma faixa etária,
afro-descendentes, de famílias economicamente desfavorecidas, que haviam estuda-
do em colégios da rede municipal. Temia que essas características em comum redu-
zissem suas respostas a um núcleo limitado de possibilidades e acabassem por não
gerar a qualidade e a quantidade de material com a qual gostaria de trabalhar. Recea-
va cair nessa armadilha descrita por Coutinho (1997):
O cineasta tradicional de esquerda só vai ouvir aquelas pessoas que vão dar
respostas de acordo com seu espírito militante, o que gera um acúmulo de
respostas do mesmo tipo, previsível, e que são aquilo que... o diretor quer
ouvir. (p. 169)
Mas encontrei algum conforto e estímulo para trabalhar como havia planejado
106
nas palavras de Portelli (1997):
Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim
como as impressões digitais, ou a bem da verdade, como as vozes – exata-
mente iguais. [...] Cada entrevista é importante, por ser diferente de todas as
outras. (p. 16-17).
AS TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS
Ao assistir o vídeo da entrevista de Pierre Bourdieu a Maria Andréa Loyola, como
relatei na introdução dessa dissertação (p. 8), percebi que as entonações vocais e o
gestual do entrevistado são partes integrante de suas respostas. Como pude perceber
nos vídeos resultantes de nossas entrevistas, a entonação da voz do entrevistador e
sua postura corporal, também fazem parte das perguntas, assim como a postura cor-
poral e expressões faciais de entrevistador e entrevistado, podem influenciar tanto nas
respostas, quanto nas perguntas, no caso da entrevista aberta. Esses detalhes que
podem ser vistos e escutados na gravação audiovisual ou apenas escutados na grava-
ção de áudio, perdem-se na transcrição literal da entrevista. Por vezes uso alguns
apostos as falas de entrevistador e entrevistado com o intuito de gerar mais informa-
ções sobre esse contexto ausente na transcrição da entrevista.
Usei o expediente de fazer algumas minutas após as entrevistas tentando des-
crever alguns detalhes que eram perdidos entre aquele momento e o estágio de trans-
crição das entrevistas. Percebi essa falta no trabalho de transcrição das primeiras
entrevistas, onde não havia a utilização da câmera filmadora, porém, mesmo com a
possibilidade de rever as cenas gravadas em audiovisual, as impressões registradas
nas minutas pós-entrevistas eram, às vezes, mais significativas do que as imagens
geradas na entrevista ou, no mínimo, contribuíam para a complementação da obser-
vação posterior do filme da entrevista.
As filmagens foram importantes para a análise da postura corporal de entrevistador
e entrevistado em relação às perguntas e respostas, fornecendo um feed-back que
permitiu a minha evolução na condução das entrevistas subseqüentes. Percebi, por
exemplo, que determinadas ações corporais, principalmente o gestual das mãos,
enfatizavam determinada frase ou palavra da pergunta, influenciando a resposta da
entrevistada.
O ato de transcrever as gravações, mesmo ornamentando-a com outras informa-
ções ou mantendo-a literal, recebe uma série de questionamentos, desde os tempos
em que a transcrição da entrevista para o papel era feita simultaneamente ao ato de
resposta do entrevistado às perguntas, previamente escritas. A invenção das fontes de
107
pesquisas – pelo fato do pesquisador indicar ou escolher uma testemunha – e a constru-
ção do documento resultante da história oral pelo pesquisador – pelo fato do pesquisa-
dor ter o controle dessa transcrição da oralidade para a escrita – fazem parte dos
questionamentos levantados por Voldman (1987). O autor relata a divergência entre a
corrente norte-americana e a francesa, essa última dividida meio a meio, em relação à
transcrição de gravações de áudio, e solicitando a gravação das entrevistas em
audiovisual como mais fidedigna. Voldman pergunta:
A quem devemos nos dirigir e como? Podemos contestar abertamente o
interlocutor durante a entrevista? Como utilizar o que se ouviu? Por qual
processo a fonte assim constituída servirá de material probatório? (p. 251)
Embora reconheça a pertinência das dúvidas de Voldman, que as tem também
quanto à produção dos documentos escritos, públicos e declaratórios, que receberem
mais aceitação e menos desejos de explicação por parte dos historiadores, preocupa-
me a questão: como utilizar o que se ouviu? E movido pelas incertezas desse autor
que, ainda no texto referência, questiona o direito do entrevistado quanto ao uso que
será feito de suas declarações podendo mesmo embargar a utilização de suas falas
pelo pesquisador, passo a questionar a ética do meu processo de pesquisa.
QUESTÕES ÉTICAS
As relações éticas entre o pesquisador e os sujeitos presentes em sua pesquisa,
assim como com os locais e instituições onde o pesquisador busca informações para
a construção do seu discurso, são tema de discussões em diversas áreas de pesqui-
sa. As autorizações para utilização do material acumulado no processo de investiga-
ção, que digam respeito a um sujeito, a um coletivo de sujeitos – pois, o que é dito de
uma instituição pode denegrir quem dela participa – ou de um acontecimento, assim
como dos escritos a partir das entrevistas, por exemplo, devem ser apresentados an-
tes de sua exposição pública ao parecer desses sujeitos que se dispuseram a contri-
buir com a pesquisa. Com maior ou menor grau de exposição no texto resultante, deve
ser concedido a estes sujeitos o embargo da utilização dos seus nomes, imagens,
falas ou ações descritas pelo pesquisador, mesmo que signifiquem perda da qualida-
de do texto final. Até mesmo o direito de o sujeito expressar-se no texto da pesquisa,
por suas próprias palavras, deve ser concedido a estes ao final do trabalho, seja em
discordância ou concordância a este.
No processo da minha pesquisa, consciente da necessidade ética de informar
aos sujeitos dela participantes da utilização que estava fazendo de suas colaborações,
108
fiz questão de ir apresentando os resultados obtidos e os textos construídos para as
suas observações. Com isso, cheguei ao término da dissertação com algum material
que não pude utilizar, mas que tive tempo hábil para substituir por outro, sem que houvesse
comprometimento da discussão proposta. Noutras vezes a solicitação de retirada de
algum fato, uma opinião ou uma imagem por parte de um sujeito ocasionou uma perda
irreparável na estética do texto e no conteúdo das discussões. Embora tenha, nesse
processo, me desfeito de algumas passagens laboriosas em sua criação, fundamentação
e desenvolvimento, preferi fazê-lo a desfazer-me da consciência tranqüila de ter percorrido
um caminho ético.
Portanto, alguns sujeitos dessa pesquisa tiveram seus nomes verdadeiros troca-
dos por nomes fictícios. Achei prudente que as diretoras dos colégios fossem dois des-
ses sujeitos. Embora suas falas sejam espontâneas e seguras, demonstrando não temer
que suas palavras pudessem ser utilizadas de forma errônea na pesquisa e certas de
estarem sendo éticas com seus colegas de profissão e de escola, as duas diretoras
fornecem depoimentos sobre fatos acontecidos em suas escolas e comportamentos de
professores sob sua administração. Nem todos estes fatos e comportamentos são os
que esperamos que aconteçam em um estabelecimento público de ensino. Conquanto
se saiba que esses fatos acontecem dentro das escolas, eles são invisibilizados fora
delas e admiti-los publicamente requer coragem e expõe quem os visibiliza a inimizades
ou represálias políticas.
As escolas visitadas não serão identificadas, assim como os seus professores.
Ou seja, como meu acesso às escolas foi por parte de um professor ou diretor conhe-
cido, tanto o nome da escola, quanto dos professores serão trocados por nomes fictí-
cios. As escolas citadas pelas sujeitospersonagens e pelos demais sujeitos da pesqui-
sa identificados serão omitidos apenas por solicitação dos mesmos, sendo mantidos
em caso contrário. As escolas observadas nessa pesquisa são três que serão denomi-
nadas como: a escola devassada, a escola X e a escola do André. As três escolas
serão descritas à frente, assim como a forma de acesso a elas.
Os professores dos projetos GTC e SCM foram identificados, porém as escolas
em que trabalham e as escolas que foram locais de fatos relatados em suas entrevis-
tas tiveram suas identificações suprimidas.
Porém, à luz das discussões sobre a ética na pesquisa, nem todos os preceitos e
exigências tidas como essenciais foram atendidas. Por exemplo, as autorizações dos
órgãos governamentais que gerem a educação nas esferas municipal e estadual, para
realizar observações nas escolas públicas ou para entrevistar os seus funcionários,
109
não foram solicitadas. Os contatos entre mim, as diretoras e professores dos colégios
foram estabelecidos a partir da minha rede social ou pela minha iniciativa de apresentar-
me como pesquisador a tais profissionais da educação. As dificuldades geradas pelos
órgãos que administram as unidades escolares para que neles possa ser desenvolvido
um processo de pesquisa, por vezes, inviabiliza a sua execução.
Essa experiência, uma tática de praticante da pesquisa, havia aparecido no
implemento de um trabalho de pesquisa que realizei sobre as escolas criadas na ges-
tão de Fernando de Azevedo, como diretor da instrução pública do Distrito Federal, no
final dos anos 20 do século passado, para uma disciplina do curso de mestrado. Uma
das alunas faria o trabalho de conclusão da disciplina sobre o tema violência escolar e,
para tal cumpriu rigorosamente todos os estágios exigidos para a sua entrada na escola
escolhida como pesquisadora. No entanto, o processo que lhe concedia este status e a
autorização para conduzir sua pesquisa no interior dessa unidade escolar da rede muni-
cipal de educação do Rio de Janeiro demorou quase três meses para ser concluído,
período em que a aluna-pesquisadora não desenvolveu sua pesquisa que tinha como
proposta partir das observações do funcionamento da escola e dos relacionamentos
entre os alunos e entre alunos e professores. E, quando foi permitida a sua entrada,
mesmo com uma autorização de pesquisa, sua ação como pesquisadora era censurada
pela diretora do estabelecimento, que não permitia que registros fotográficos fossem
feitos sem que passassem por sua posterior verificação, tendo inclusive que apagar os
registros determinados pela diretora. Como a minha proposta de trabalho naquela disci-
plina necessitava da observação e do registro em imagens dos espaços de educação
física daquelas escolas da época de Fernando de Azevedo, para analisar os espaços
dos projetos originais que foram modificados ao longo das décadas e para identificar os
locais usados nas aulas de educação física, precisaria ter acesso às escolas e aos pro-
fessores para, através de seus relatos, estabelecer quais seriam os espaços da educa-
ção física naqueles colégios e se as escolas de Fernando de Azevedo, que foi um gran-
de defensor da ginástica no currículo escolar, teriam um bom espaço para essas aulas
atualmente. A minha preocupação era ter que entrar com um processo buscando a auto-
rização para as pesquisas naquelas escolas em cada coordenadoria regional de educa-
ção – CRE – responsável por aquelas unidades escolares, no caso 4 CREs.
Minha estratégia foi ir às escolas nos finais de semana e fotografá-las, ao mesmo
tempo em que procurava, nos bancos de imagens da prefeitura, seus registros
imagéticos – antigos e atuais – e, usando uma ferramenta de mapas por satélite en-
contrada na internet, tentaria conseguir imagens que me permitissem identificar qua-
110
dras, ginásios, piscinas, pátios e outros espaços normalmente destinados à educação
física. Porém, como havia estabelecido que a pesquisa incluiria os usos que seriam
feitos desses espaços, fui visitar as escolas para tentar assistir as aulas de educação
física e conversar com os professores. Das nove escolas visitadas, somente em uma
foi proibida a minha entrada sem algum documento oficial autorizando a minha pes-
quisa. Mesmo nessa escola em que tive a entrada vedada, recebi autorização da dire-
tora para fotografar alguns detalhes da fachada do colégio e ela própria conversou
comigo sobre os espaços que eram utilizados para a prática da educação física na sua
escola. Em outras duas unidades, não foi permitido que eu registrasse com fotografias
o interior da escola, mas pude deslocar-me sem restrições por esse espaço, inclusive
conversando com professores e diretoras, tendo todas as minhas questões respondidas
por estes. Nas demais escolas, o acesso ao seu espaço interno foi ilimitado, inclusive
com a possibilidade de registro fotográfico que não incluísse a identificação de alunos
ou funcionários que não houvessem autorizado esse registro.
Como havia sido correto com todos os diretores e professores nessa experiência,
expondo os intuitos de minha presença na escola e obedecendo as restrições por eles
impostas, não abandonei essa forma de abordagem ao espaço e aos sujeitos da
pesquisa durante as intervenções posteriores do trabalho de campo.
CAPÍTULO 5
TRABALHOS DE CAMPO
112
A ESCOLA DEVASSADA
Observo, cotidianamente, uma escola sem que seus sujeitos saibam que estão
sendo observados. Se há, na minha pesquisa, um calcanhar de Aquiles ético (Ih, es-
correguei!) é este, ao que denomino – a escola devassada. Não que tenha começado
a observá-los – eu observo os sujeitos e sua apropriação do espaço – intencionalmen-
te. A questão é que resido a vinte metros
de uma escola municipal, bem de frente
ao pátio de recreio, à quadra de espor-
tes, com visão de parte do corredor in-
terno de entrada da escola e ao portão
de acesso a esta unidade escolar. Exa-
tamente às sete horas e dez minutos,
passa a ser impossível não perceber a
existência daquela escola, pois os alu-
nos que ultrapassam o portão de entra-
da dirigem-se para a quadra de esportes, na qual conversam animadamente e de
onde são convidados, aos gritos, a irem para as suas aulas pela diretora do colégio.
Logo em seguida, a quadra é ocupada pelas aulas de educação física, assim como o
Imagem 32: Vista panorâmica da escola devassada.
Imagem 33: Entrada do turno da manhã.
Imagem 34: Entrada do turno da tarde.
pátio da escola. Como o colégio não recebe um tratamento acústico que isole a comu-
nidade ao seu redor do vozerio de seus sujeitos, parte das falas de professores, alu-
113
nos e funcionários é escutada com perfeição. Inúmeras vezes, fui levado até um dos
meus pontos de observação pelos gritos de um professor de educação física ou da
diretora da escola no desempenho de suas funções, pois o alvoroço de vozes é tão
grande no espaço externo da escola que o tom alto de voz predomina na comunicação
entre as pessoas na quadra e no pátio do colégio. Notei que poderia acompanhar o
desenvolvimento das aulas de educação física e o comportamento dos alunos em
seus períodos sem aulas enquanto estivessem no pátio da escola.
A idéia inicial era poder investigar o funcionamento daquela escola com a possi-
bilidade de não interferir nas práticas dos professores e alunos e perceber o que esta-
va sendo feito de certo e de errado naquele espaço (Êta, Certeau! Continue a leitura.).
Havia um pensamento oculto de que, daquela forma, poderia ver a atuação real dos
professores que, sem saberem da minha presença como espectador das suas ações,
não mudariam suas rotinas de trabalho. Porém, em diversas observações iniciais, pren-
dia-me a analisar onde estariam sendo cometendo erros ou mesmo torcendo para que
alguma incompetência profissional fosse demonstrada. Logo percebi que, em alguns
momentos, o relato do professor sobre suas práticas pedagógicas faziam falta para
complementar as observações feitas. Ou seja, se por um lado poderia observar a
escola sem interferir no seu espaço com a minha presença, por outro lado perderia a
possibilidade de discutir com os professores sobre suas ações pedagógicas.
Defini, então, que usaria a
proximidade com essa escola, não
para julgar ou avaliar o comporta-
mento dos professores e funcioná-
rios da escola ou os conteúdos das
aulas de educação física, e sim
observá-los para poder compará-
los com outros espaços escolares
e identificar questões que pudes-
sem receber mais atenção no de-
senvolvimento das entrevistas e
nos estudos de campo.
Com o objetivo de preservar as identidades de professores, alunos e funcionári-
os, assim como a não identificação da escola, todo o material fotográfico, de vídeo ou
gravações que pudessem permitir o reconhecimento desse espaço e sujeitos foi mani-
pulado por meio digital com o cuidado de serem mantidas suas características essen-
Imagem 35: Paulo Sgarbi à esquerda, André Brown à direita e
Fernando Macedo sentado no Laboratório do grupo Linguagens
desenhadas e educação.
114
ciais ou transformados em desenho em quadrinhos pela arte do meu colaborador André
Damasceno Brown. Os recursos de edição de imagens no computador e de transfor-
mar filmes em histórias em quadrinhos permitem que, além de preservar a identidade
de seus sujeitos, o suporte em que é escrita essa dissertação, o papel, receba uma
série de informações contidas nas linguagens visuais e desenhadas que não poderi-
am ter lugar nessa dissertação somente com o uso da linguagem escrita.
Uma das importantes conclusões a qual cheguei, com a ajuda de Ilya Prigogine
(1996), é a de que o caos tem suas leis. Às vezes, o espaço desorganizado, improdu-
tivo e com práticas diferentes daquelas as quais julgamos correto pode, na verdade,
conter uma organização diferente, porém, produtiva e coordenada dentro da lógica
daquele espaço ou sob suas condições de funcionamento. Nessa perspectiva, uma
observação como a minha poderia perceber somente aquilo que estou condicionado a
julgar como certo ou errado, deixando escapar outras formas de ações pedagógicas
existentes no espaço observado, embora a totalidade dificilmente possa ser apreendi-
da, o reconhecimento das inúmeras possibilidades de funcionamento de um espaço
escolar, para além do que julgamos conhecer, parece-me importante destacar.
Dentre todos os contributos que a observação dessa escola me permitiu, um
deles é fundamental nas discussões finais dessa pesquisa que é a observação do
espaço físico ocupado pela educação física naquele colégio. A partir daquela escola,
pude estabelecer alguns fatores a serem observados em outras escolas e formular
questões a serem apresentadas aos sujeitos entrevistados.
Ao invés de comparar as escolas entre si, para determinar um modelo de espaço
físico que deva ser oferecido à educação física, a construção foi feita no sentido de
perceber os usos e apropriações feitas desses diferentes espaços, porém, comparan-
do as situações recorrentes nas escolas que impediam ou propiciavam a ação peda-
gógica do professor e a utilização educacional da educação física e do esporte nas
escolas. Bourdieu (2003) contribui nessa metodologia:
Pensar cada um desses universos particulares enquanto campo é encontrar
o meio de entrar no que há de mais singular em sua singularidade, como
fazem os historiadores mais minuciosos, construindo-os de maneira a percebê-
los como um “caso particular do possível” [...] Na medida em que esteja
orientada por um princípio de pertinência que permita construir o dado para a
comparação e a generalização, a própria leitura dos dados cotidianos pode
tornar-se um ato científico. (p. 42-43)
Algumas cenas que observei serão descritas aqui, como contribuição para
discussões a cerca do ambiente escolar, mas o subsídio dessa escola à pesquisa
pode ser encontrado mais consistentemente nas perguntas formuladas para as entre-
115
vistas e na minha argumentação frente às respostas ou questionamentos obtidos a
partir delas, pois, nas vezes em que foi preciso o uso de uma situação hipotética, ou
mesmo real, para complementar uma pergunta que havia sido mal elaborada – daque-
las que só se percebe assim na hora da entrevista –, trouxe as memórias da observa-
ção dessa escola, geralmente fazendo uso das expressões: imagina se tal coisa acon-
tecesse... ou eu conheço um professor que faz assim...
O estudo cotidiano dessa escola permite-me saber os horários dos professores
de educação física e quais as faixas etárias que compõem suas turmas, pois, enquan-
to alguns professores trabalham com todas as turmas de 1º a 9º anos, outros traba-
lham apenas com as séries mais adiantadas.
São oito professores de educação física na escola, sendo três mulheres e cinco
homens, e aparentemente todos cumprem pelo menos doze horas de aulas semanais,
com exceção de uma das professoras que, pelo que pude observar, trabalha apenas
às terças e quintas-feiras pela manhã, o que representa uma carga semanal de oito
horas.
As segundas e quartas-feiras, em vários horários, existem três professores dan-
do aulas simultaneamente. Normalmente um deles fica na quadra com os alunos mai-
ores e dois professores dividem o espaço em torno da quadra com crianças menores.
Duas das três professoras trabalham nesses dias e sempre estão com as turmas onde
há crianças mais novas.
Em um dos horários da manhã e da tarde de quarta-feira, aparentemente, há a
junção de duas turmas de sexta ou sétima séries, onde ocorre a divisão das meninas
e meninos, havendo um rodízio na utilização da quadra e do espaço em torno da
quadra. Metade do tempo de aula os meninos jogam futebol na quadra e as meninas
jogam queimado
19
ou brincam com a bola de vôlei no outro espaço, na outra metade
do tempo de aula as meninas usam a quadra para o handebol e os meninos continuam
com o futebol no outro espaço. Embora os professores dessas turmas sejam diferen-
tes, a divisão da aula é rigorosamente igual, apenas mudando o posicionamento dos
professores. Enquanto um desses fica sempre na quadra apitando o jogo de futebol
dos meninos e depois o de handebol das meninas, o outro acompanha sempre o
grupo dos meninos, deixando as meninas sozinhas.
As terças e quintas-feiras são ocupadas, na parte da tarde, com as turmas de
menor faixa etária, enquanto, pela manhã, há aulas para alunos de muitas faixas etárias
diferentes.
19
Queimado ou queimada há as duas formas de referir-se a este jogo.
116
Quatro professores fazem o chamado horário vertical em um dos seus dias de
aulas, trabalhando nos dois turnos, e são os professores que dão aulas para todas as
faixas etárias, com exceção do professor de sexta-feira, que só trabalha com os mais
velhos. Há um desses professores que trabalha às terças-feiras à tarde e às quintas-
feiras nos dois turnos, sendo ele o protagonista de histórias que contarei, pelo menos
três, mais à frente.
Dois desses professores trabalham quase sempre na quadra e com os alunos
mais velhos, são dois homens, aparentemente entre 45 a 50 anos. Um deles trabalha
às segundas, terças e quartas-feiras pela manhã, o outro trabalha às quintas pela
manhã e nos dois turnos de sexta-feira, quando, a partir das 11h, é o único responsá-
vel pelas aulas de educação física, sempre com as turmas mais velhas, aparentemen-
te os 8º e 9º anos. Parece ser o professor mais antigo da escola e está sempre envol-
vido com a organização das festas juninas da escola.
dia 2ª 3ª 5ª 6ª
professora 1 professor 1 professor 1 professor 2
professora 2 professora 3 professora 1 professor 3
professor 1 professor 5 professora 2 professora 3
professora 1 professor 3 professor 4 professor 4
professor 4 professor 5 professor 5 professor 3
manhãtarde
professor 2
professora 2
professor 2
Professora 1 e professora 2: são as professoras que trabalham com as crianças menores. Professora 3: é
a professora que, aparentemente, não cumpre as 12 horas semanais de aulas. Professor 1: professor que
aparenta ter entre 45 e 50 anos e trabalha a apenas com as turmas de alunos mais velhos. Professor 2:
professor que parece ser o mais antigo da escola, trabalha apenas na quadra e com os alunos mais velhos.
Professor 3: professor negro e mais velho, protagonistas das histórias desse capítulo. Professor 4: profes-
sor que chega à escola de bicicleta. Professor 5: professor de aproximadamente 45 anos, suas aulas são as
que menos observo, mas é um dos que trabalha com todas as faixas etárias.
Com exceção das aulas de uma das professoras, que sempre está com a turma
dos alunos mais novos, provavelmente o 2º ano, das aulas de um professor do turno
da tarde, que chega à escola de bicicleta – e a prende com correntes na árvore à frente
da portaria do prédio onde moro – e de algumas aulas daquele professor das histórias
que prometi contar, todas as aulas da escola têm o esporte como tema.
Esse professor da bicicleta e aquela professora que julgo não cumprir as 12
horas de trabalho semanal, são os dois professores que mais mantêm as crianças
sentadas ou interrompem as atividades para reclamarem do comportamento dos alu-
nos; com isso, mais da metade de suas aulas são conversas no centro da quadra ou
embaixo de uma árvore que existe no espaço em volta da quadra. Nas aulas da pro-
fessora, invariavelmente, ela senta em uma mesa existente na quadra e lá fica conver-
117
sando com algumas alunas que a cercam ou escrevendo em algo que parece um
diário de classe e deixa as alunas jogando handebol ou os meninos jogando futebol.
Na aula das meninas ou dos meninos mais novos, quase sempre ocorre uma confu-
são no meio da aula e a professora interrompe o jogo e se põe a discursar para as
meninas até o final da aula. Quando a aula é com os meninos mais velhos, começa
sentada naquele mesmo lugar, porém apita o jogo sem se levantar. No meio da aula,
elege um dos alunos, lhe passa o apito e sai da quadra, voltando apenas para encerrar
a aula.
Imagens 36 e 37: A professora interrompe a aula e, sentada NA mesa, pelo gestual usado, podemos perceber a convicção da
professora em suas colocações. Não é uma conversa, é um discurso, pois as crianças permanecem caladas.
O professor da bicicleta tenta sempre novas atividades ou brincadeiras que exi-
gem o raciocínio e o entendimento de regras. Trabalha no estilo de ensino por tarefas
ou solução de problemas. Propõe brincadeiras ou problemas que estimulam os alunos
a procurarem uma resposta corporal, ou seja, uma forma de deslocamento diferente,
um posicionamento distinto do vertical. Propõe jogos cooperativos
20
e, mesmo quando
trabalha com turmas de alunos mais velhos, tenta não utilizar a aula toda em função do
esporte. Mas, diversas vezes, os alunos não entendem as suas propostas, tanto os
problemas propostos, quanto os jogos cooperativos que são dinamizados, e isso o
deixa visivelmente contrariado e passa a interromper a aula para dar as soluções dos
problemas propostos ou para reclamar que o grupo não consegue agir em união para
o desenvolvimento dos jogos cooperativos que propõe. Ao fazer essa pausa na aula,
passa a discursar sobre as carências que os alunos têm e como estarão mais distante
20
Não gosto muito do termo jogos cooperativos por considerar que todos os jogos coletivos são cooperativos e mesmo quando
esse "cooperativos" é usado para exprimir a idéia de ser um jogo sem competição entre os jogadores, há uma competição
contra o tempo ou contra a proposta desafiadora do professor, sendo que a condução do jogo pode, apesar da proposta
coletiva de trabalho, gerar uma competição interna dentro do grupo de trabalho. E na sua aplicação prática há a imposição da
participação do aluno, por parte dos professores, criando a "obrigação" da participação dos alunos, isso quando não há um
culpado por não se atingir aos objetivos propostos ou vencer o desafio proposto.
118
de uma vida melhor se continuarem a comportarem-se daquela maneira. As suas au-
las começam sempre alegres e terminam tristes, diferentemente das aulas do profes-
sor de sexta-feira à tarde, aquele que parece ser o mais antigo da escola, apesar de
suas aulas serem esportivas e repetitivas, seus alunos movimentam-se durante toda a
aula e terminam sempre mais alegres do que nela chegaram.
HISTÓRIAS SOBRE UM PROFESSOR DA ESCOLA
Contarei três breves histórias sobre aquele professor a quem me referi uns pará-
grafos atrás. Ele é um senhor mulato calvo e forte, talvez seja o professor de mais
idade do colégio, mas tem vigor físico invejável para a sua faixa etária. Está sempre de
bermudas ou shorts, com as meias esportivas esticadas até o meio das canelas, cami-
sa de malha e chega à escola a pé com uma bolsa a tiracolo. Pela rua, vai encontrando
seus alunos ou ex-alunos e brinca com eles sobre o resultado das partidas de futebol
do fim de semana, principalmente às terças-feiras, quando, em seu horário de chega-
da, ainda encontra os alunos do primeiro turno fazendo algazarra pelas ruas em torno
da escola. Geralmente se despedia dos alunos na quinta-feira à tarde falando sobre os
jogos do fim de semana que estavam por vir e chegava à terça-feira fazendo os co-
mentários dos jogos. Ultimamente tem brincado menos sobre o assunto futebol, pois é
botafoguense, percebi isso quando, nas decisões dos campeonatos cariocas do ano
passado e do começo desse ano, implicava com os torcedores do Flamengo e, depois
das vitórias rubro-negras, ficava justificando as derrotas do seu time. Com a fase ruim
de seu time no campeonato brasileiro, tem preferido falar com os alunos do primeiro
turno que encontra na rua para irem para casa estudar, sempre de maneira firme, mas
com uma gargalhada ao perceber o susto que os alunos tomam com o tom alto de sua
voz, que imposta para intimidar os alunos. Não tem vergonha de gritar com os alunos
durante as aulas e chama todos os alunos por meninos ou meninas:
– Vem cá menino.
Grita quando algum menino sai correndo enquanto está com o a turma reunida.
– Sai daí menina.
Grita quando uma menina atravessa correndo o jogo de futebol dos mais novos.
Grita com todos, mesmo quando está conversando parece que está brigando.
Parece entender as crianças e as conduz sem muita preocupação que fiquem organi-
zadas em filas. Quando dá aula no mesmo espaço com uma das professoras, aquela
que interrompe as aulas para conversar com as meninas, geralmente fica com os
meninos e ela com as meninas, que vivem fugindo das filas organizadas pela profes-
119
sora para entrarem nas atividades de pular ou correr que o professor organiza, isso
quando não correm atrás dele enquanto os meninos estão jogando futebol e aí vem
aquele grito:
– Sai daí menina.
E, a cada grito, mais elas parecem gostar da brincadeira de chamar sua atenção
e passam, de novo, no meio do futebol, para desespero da professora, que tem sem-
pre uma fila nas suas atividades e que volta e meia fica só com quatro ou cinco alunas,
pois as outras estão brincando de “levar grito” do professor.
HISTÓRIA 1 – O DOMÍNIO DA TURMA DE CRIANÇAS
Uma das aulas desse professor – que rotineiramente posso observar por mais
tempo – é de uma turma composta por crianças de 6 ou 7 anos. É o horário das oito da
manhã de quinta-feira. O espaço usado é o lateral à quadra de esportes do colégio,
onde existe uma pequena árvore. Quando o Sol está iluminando esse espaço de aula,
o professor costuma ficar sob a sombra da árvore propondo atividades para os alunos.
Uma dessas atividades é uma sessão
de polichinelos que devem ter suas
execuções contadas, geralmente até
20 repetições. Normalmente, isso faz
parte de uma negociação entre o pro-
fessor e os alunos, que, ao pedirem
para jogar futebol ou queimado, rece-
bem a proposta de execução dos
polichinelos em contrapartida. O com-
binado são vinte, os alunos começam
a fazer os polichinelos
desordenadamente, enquanto uns fazem outros estão parados, uns contam a execu-
ção outros estão calados. O professor deixa que façam algumas repetições do exercí-
cio e dá uma ordem de pararem. Reclama da falta de ordem e fala que só podem
começar quando ele disser já. Faz brincadeiras fingindo que vai dizer a palavra e diz
outra. Quando autoriza os alunos a começarem, vai dizendo que não está ouvindo os
números e pedem que parem. Os alunos vão gostando da brincadeira, mas fingem
estarem perdendo a paciência com o professor.
Ele vai fazendo uma seqüência de brincadeiras desse tipo, às vezes deixando
que os alunos cheguem perto dos vinte polichinelos para interrompê-los alegando um
Imagem 38: A aula dos polichinelos começa embaixo da árvore.
120
motivo qualquer, os alunos vão à loucura e reclamam que estavam fazendo certo, que
não havia motivo para a interrupção, mas o professor diz que têm de começar do zero
novamente. Assim, prolonga a brincadeira durante uns dez minutos, nos quais as cri-
anças fazem exercitam-se dentro de um clima de brincadeira.
Toda quinta-feira é assim, as criança querem jogar futebol e queimado, o profes-
sor propõe polichinelos e começa a brincadeira.
HISTÓRIA 2 – PROFESSOR, TREINADOR, COMENTARISTA E TORCEDOR
Em umas das turmas, existe um grupo de meninos que está sempre de camisas
de futebol dos grandes clubes do Rio de Janeiro, são cinco meninos e têm cerca de
oito anos. O professor organiza três times
e coloca esses meninos sempre no mes-
mo time. É o último tempo da manhã de
terça-feira e o espaço usado é o lateral à
quadra. O professor parece ser uma mis-
tura de professor, torcedor, treinador e co-
mentarista esportivo, pois, ao mesmo tem-
po que orienta os alunos, faz comentários
sobre o andamento do jogo e torce para
que as jogadas terminem em gol, tudo isso
com gritos e os mais diferentes sons usa-
dos por torcedores em estádios de futebol.
Percebo a influência de várias redes naqueles gritos e orientações. E as reco-
nheço, também, em mim, na minha conduta como professor, através da observação
daquele professor.
Para os alunos que
já jogam bem, faz o papel
de treinador. Para aqueles
que estão aprendendo, os
orienta como professor. E
todos recebem a porção
comentarista e, principal-
mente, torcida. Vibra com
todos os lances do jogo, às vezes extrapola na forma grosseira de um comentário, e
não é partidário de nenhuma das equipes. Mas a porção comentarista/torcedor parece
ganhar maiores proporções quando a equipe dos que estão com camisas de clubes,
Imagem 39: Alguns alunos usam camisas de times de
futebol, enquanto a maioria usa a camisa do uniforme
escolar.
Imagem 40: Os alunos jogando com os coletes amarelos e azuis trazidos pelo
professor.
121
ao invés das camisas do uniforme da escola, estão em campo. Faz o coro da torcida
do time do menino que está com a bola, apelida os meninos com nomes dos jogadores
dos clubes e comemora os gols desses jogos com mais entusiasmo, mas não favore-
ce a nenhum dos times na condução do jogo.
O número de alunos com as camisas de times aumentou. Num dos dia, eu contei
dois flamenguistas, dois vascaínos, dois tricolores, um botafoguense e um com a ca-
misa do Barcelona. Naquele dia, os jogos dos que estavam com uniformes de equipes
cariocas foram muito mais animados do que os outros. Porém, os outros jogos foram
tumultuados, até mesmo agressivos. Acho que o professor percebeu que aquilo esta-
va deixando alguns alunos afastados da atividade ou deixando os alunos que não
tinham as camisas dos seus times chateados. Na outra aula, o professor apareceu
com dois conjuntos de coletes azuis e amarelos, mesmo quem veio com a camisa de
clube teve que vesti-los por cima desta. Foi a melhor aula de futebol daquela turma,
todos os jogos foram animados contando com a participação ativa daqueles que eu
passei a chamar de descamisados. Além de conseguir a participação de todos os
alunos, a escola ficou esteticamente mais bela e mais organizada.
HISTÓRIA 3 – A AGRESSÃO
No final da tarde de quinta-feira, esse professor tem, na sua penúltima aula, uma
turma da faixa etária de 13 anos, provavelmente um 8º ano. Ele divide a turma em
dois, como quase todos os professores que conseguem trabalhar nos dois espaços de
educação física do colégio, a quadra e o espaço em torno dela. Os meninos ficam
sempre na quadra, mas, se as meninas quiserem participar do futebol dos meninos ou
os meninos irem jogar vôlei com as meninas – ou melhor, brincar com a bola de vôlei,
pois não há rede e nem quadra marcada no chão –, podem. E existe uma menina que
sempre faz a opção pelo futebol, não somente faz a opção, como joga muito bem esse
esporte. E joga de igual para igual com os meninos, pelo menos tecnicamente, pois
sempre que dribla um menino ou faz uma jogada de efeito é sempre parada com o uso
do corpo pelos meninos, algumas vezes com falta outras não, mas ela nunca reclama
quando a falta é marcada, mesmo quando é uma jogada ríspida. Porém, acha que
toda intervenção, quando não consegue prosseguir com a sua jogada, seja falta. Em
um desses jogos que tenho filmado em vídeo, a menina recebe a bola e um menino,
ao tentar tirar a bola de seu controle, acerta um chute que pega na bola e em sua
perna na seqüência, porém o jogo segue normalmente sem que seja marcada a infra-
ção cometida pelo menino. Ouve-se um sonoro palavrão proferido pela menina. O
professor, que estava no lado oposto da quadra, segue em direção à garota e, naquele
122
seu tom de voz habitual, a manda sair da quadra:
– Pode sair, pode sair.
Ele repete. Como a menina não lhe dá atenção ele aumenta o tom de voz:
– Pode sair, pode sair.
Vai andando e se aproximando da menina, aumentando o volume da voz e com
o braço estendido com o dedo indicador apontando para os bancos que ficam em
torno da quadra, apontando-lhe para onde deveria ir.
A menina vai-se aproximando do banco, como se fosse obedecê-lo, mas questi-
ona a não marcação da falta ao seu favor, quando o professor “solta” o maior de todos
os seus gritos, pelo menos dos que eu havia escutado, interrompendo a tentativa de
argumentação da menina:
– Pode sair!
A menina já está acuada entre os bancos – onde ele queria que ela ficasse – e o
professor, mas tenta desvencilhar-se dele e voltar para a quadra. Vendo que não con-
seguirá driblá-lo, segue enfurecida na direção do portão de entrada e saída da quadra;
ele a segue e não consigo ver para onde eles vão, imagino que tenha sido para a
secretaria da escola, porém a menina volta à cena por outro lado e vai sentar-se nos
bancos, mas antes pega a bola que será utilizada no jogo de futebol que está para
começar. Senta-se colocando os pés sobre a bola como se esta fosse um banquinho.
Ao procurar a bola, o professor que não havia visto o retorno da menina, encontra-a
sob os pés dela, faz um gesto com as mãos mandando que ela a rolasse para ele, mas
ela a ignora. Ele dá um passo à frente, em direção a ela e repete o gesto com as mãos
e a menina responde com um aceno negativo com a cabeça, mostrando que não iria
rolar-lhe a bola. O professor vai até ela, agacha-se e puxa a bola de debaixo dos seus
pés. A menina levanta mostrando que vai entrar no jogo – não consigo ouvir o diálogo
–, mas acontece como se ela impusesse algo ao professor e ele imediatamente apon-
ta para o banco, mostrando-lhe que a quer sentada. A menina tenta entrar no jogo sem
o consentimento do professor, ignorando a sua ordem. Impedida de fazê-lo, ela tenta
ir em direção a saída da quadra, mas é impedida pelo professor que a segura pela
cintura e tenta fazê-la sentar-se no banco à força. Ela faz força para livrar-se e conse-
gue, porém, é segura pelo braço e não consegue fugir do professor. É carregada à
força em direção a entrada da quadra onde é expulsa daquele recinto. O professor
retorna para a quadra e continua a sua aula, mas não é o mesmo, está calado e não
brinca com ninguém. De repente, a menina aparece na quadra, do lado oposto aos
123
bancos da quadra, onde há o muro que separa esta do espaço externo que também
serve de sala de educação física, no qual as meninas estão brincando de vôlei. Uma
mulher loira – que reconheço ser a diretora da escola – que, às sete e dez da manhã
funciona como meu despertador gritando os números das turmas para que essas se
dirijam às suas salas de aulas, vem em sua direção e fica durante quase quinze minu-
tos conversando com a menina. O professor está visivelmente contrariado com a pre-
sença delas ali e só volta a ficar mais à vontade quando estas deixam aquele lugar.
Não vejo para onde elas vão.
O professor termina a aula e se despede da turma. Eu marquei, no meu quadro
de pesquisa, um calendário onde eu anoto as minhas idas ao trabalho de campo e as
observações dessa escola – para que, quando queira encontrar as mesmas pessoas
nos mesmos lugares, eu saiba em que dia ir até eles –, para observar a outra aula
dessa turma. Porém, na outra quinta-feira, não teve aula por causa de um feriado e
não sei como foi o reencontro desses personagens depois daquele dia. Só pude ob-
servar a escola em uma quinta-feira depois de um mês e estava tudo correndo bem, as
meninas estavam jogando handebol com os meninos na quadra, pois estava choven-
do e o professor os dividiu em times mistos, com as meninas misturadas aos meninos
fica difícil identificar aquela garota, tenho que esperar um dia em que estejam separa-
das para ver se ela continua a jogar entre os meninos e como está o relacionamento
entre ela e o professor.
Queria poder ir lá conversar sobre tudo aquilo, mas não é possível, talvez um dia
entre na escola, me apresente e tente recuperar essa história para saber os relatos
desses sujeitos. Essa estratégia de pesquisa me permite ter acesso a um cotidiano
sem interferência da minha presença, mas não me permite conversar com os sujeitos
das cenas que presencio.
Tento não tecer muitas conclusões a cerca do acontecido, mas tenho convicção
de que se aquele dia não fosse uma quinta-feira, dia em que o professor faz seu
horário vertical, trabalhando oito horas nos dois turnos de aulas, sua conduta com a
menina teria sido diferente.
VISITA À ESCOLA X
O FUTEBOL
Nas conversas com amigos, tenho recebido inúmeras manifestações de apoio
quando declaro o tema de minha pesquisa e as formas de estudo que estou utilizando
para levá-la adiante. Ao revelar minhas pretensões de pesquisar nas escolas e conver-
124
sar com os profissionais que nela trabalham, muitos são os convites que recebo de
amigos – professores e diretores – para visitar suas escolas e clubes escolares.
A oportunidade de estudar essa escola surgiu dessa maneira quando conversa-
va com um ex-companheiro de trabalho em clubes que encontrei em um jogo de futsal
universitário da categoria feminino. Aceitei sua colaboração e solicitei que estabele-
cesse contato com a diretora do seu colégio para que eu a entrevistasse. Alguns dias
após esse encontro casual –mas que permitiu uma grande oportunidade de estudo
para minha pesquisa –, telefonei para esse amigo procurando saber a resposta da
diretora da escola sobre a possibilidade de entrevistá-la. A resposta foi positiva e com-
binei o horário entre os turnos de aula, após o meio dia.
A escola está situada no bairro de Quintino Bocaiúva, ou simplesmente Quintino,
bairro famoso por situar a antiga FUNABEM e por ser o bairro de nascimento de Zico,
ex-atleta do Flamengo e da seleção brasileira de futebol. A escola é próxima a outra
escola que visitei por conta da entrevista com Márcia Santos e para assistir ao treino
de voleibol da equipe escolar do professor André Gava.
O trajeto até a escola segue pela rua principal do bairro a Rua Clarimundo de
Melo, um trânsito com muitos ônibus e pista mal conservada. Apesar de sinalizada
com semáforos, os carros e ônibus os ultrapassam mesmo quando fechados e com
pedestres esperando para atravessar a rua. Não vejo policiamento e nem câmeras de
controle de tráfego ou fiscalização do trânsito. A rua vicinal em que tenho que entrar
para ter acesso à rua da escola tem um comércio de hortaliças, legumes e frutas,
como se fosse uma feira livre, em uma de suas calçadas, que obriga os pedestres a
dividirem a rua com os carros. Há caminhões de entrega estacionados mais à frente e
alguns bares onde seus motoristas e carregadores de mercadorias almoçam. Estão
no caminho dos alunos que se dirigem à escola e as meninas são alvos de gracejos,
galanteios e grosserias por parte dos homens que estão nos bares das esquinas entre
essa rua e a do colégio.
Existe um trânsito grande de pessoas a pé em direção ao final dessa rua e das
suas ruas adjacentes. Em casa, através de uma ferramenta de mapas por satélite
disponibilizada na internet, constatei que a escola está inserida em um complexo de
favelas.
A rua da escola é uma ladeira e esta se situa a uns oitenta metros da esquina.
Não há saída para carros na rua e não observo nenhum acesso à comunidade em seu
final, e o fluxo dos alunos que chegam à escola e saem dela é todo em direção à rua
onde os caminhões estão parados.
125
A fachada da escola é um muro
alto pintado de azul, depois que entrei
pude perceber que a escola é
construída em uma elevação e que
aquilo que havia percebido como muro
é, na realidade, um platô de nivelação
do solo de uns três metros de altura
sobre o qual a escola está construída.
Há uma escada que permite o acesso
do nível da calçada da rua para o nível
do pátio da escola. O portão de entrada fica à frente dessa escada e havia uma con-
centração de pais dos alunos do primeiro turno esperando seus filhos na calçada em
frente ao portão. Alguns alunos conversavam e brincavam ao longo da rua, não sei se
eram alunos do segundo turno esperando seu horário de entrada no colégio ou do
primeiro turno que, ao invés de irem para casa, ficam por ali. Nas observações da
escola devassada, quando posso notar que os alunos e pais de alunos vão-se acumu-
lando em torno do portão do colégio próximo aos horários de entrada e saída dos
turnos. Nessa escola, assim como naquela, posso perceber também uma concentra-
ção de pessoas que, aparentemente, nada têm a ver com os alunos ou mesmo com a
escola. São alguns homens jovens na faixa etária dos dezessete aos vinte anos que
parecem observar o vai-e-vem dos alunos. Na escola devassada, esse público que
circunda a escola, aparentemente sem ter nada a ver com ela, fica fazendo galanteios
às meninas e implicando com alguns meninos. Na hora dos intervalos de algumas
aulas, recebem dinheiro dos alunos pelas frestas dos portões da escola para compra-
rem refrigerantes e doces em uma loja próxima e lançá-los por cima dos portões ou
muros para o lanche dos alunos. Porém, não percebi nenhuma ação além da atitude
suspeita em ficar observando a entrada e a saída.
Não há a presença de guardas municipais ou qualquer outra força policial na rua
da escola, o único controle de entrada e saída é feito por um inspetor que estabelece
quem pode ultrapassar o portão do estabelecimento. Porém, só descobri isso quando
já havia entrado e estava no corredor entre a quadra e o prédio do colégio, encostado
em uma coluna da construção, observando as aulas que ocorriam na quadra e em um
espaço do outro lado da quadra, entre as suas grades e um dos muros laterais. Ele
passa por mim, vindo do interior da escola, no sentido às escadas que levam ao portão.
Cumprimenta-me, mas nada fala sobre minha presença ali. É um sujeito moreno, en-
Imagem 41: Mapa obtido por uma ferramenta da internet.
126
tre 45 e 50 anos, com cerca de um metro e setenta de altura e compleição física forte.
Usa um cavanhaque embranquecido e está usando um gorro de lã e um casaco que
parece ser de couro. Tem um jeito meio malandro de andar e usa muitas gírias no seu
vocabulário, mas aparenta ser educado e calmo no trato com as pessoas, apesar da
maneira firme com que responde as perguntas que lhe são feitas e das ordens dirigidas
aos alunos que devem sair da escola e aos que devem esperar para nela entrar.
O professor que trabalhava do outro lado da quadra era o amigo que havia pos-
sibilitado minha entrada naquela escola; como ele estava ocupado com uma turma de
crianças de aproximadamente seis anos, preferi ficar observando esperando o final
das aulas para que ele pudesse apresentar-me à diretora do colégio.
O cenário é dominado pelas crianças correndo. Para todo lugar que olho, tem
uma criança pulando ou correndo, seja nas aulas que estão acontecendo ou nos espa-
ços em torno dessas. O barulho incomoda. Os alunos que estão em um pequeno pátio
coberto, na realidade um saguão à frente da entrada da secretaria e das escadas que
dão acesso ao segundo andar da escola, onde ficam as salas de aulas, gritam e con-
versam com volume de voz alto que ecoa no espaço de dez metros quadrados ampli-
ando o ruído que toma conta da escola. Parecem estar esperando pelo fim do turno,
provavelmente em tempo vago ou sem aulas, pois não há professores organizando
qualquer atividade com eles. Somado aos gritos dos alunos que estão em aula, dos
que estão em torno da quadra assistindo o futebol da aula de educação física e dos
alunos que se reúnem na frente da escola, o nível de barulho, possivelmente, supera
os indicados para a salubridade humana e, com certeza, para o ambiente de ensino-
aprendizagem. Parece ser pouco espaço para tanta gente e para tantas atividades
diferentes.
Na quadra da escola, as bolsas dos alunos ocupam grande parte da lateral da
quadra, na altura do centro da quadra. Os alunos estão descalços, embora seus tênis
estejam junto das bolsas. Imaginei que fosse para poupar os calçados, mas o profes-
sor explicou-me que o chão da quadra é muito escorregadio e os alunos combinam de
retirar os tênis, mesmo os que com eles não escorregam, para proteger os pés dos
que estão descalços de possíveis pisões de tênis. A grade é próxima à linha lateral da
quadra, tão próxima que não há como a bola ultrapassá-la totalmente, a bola bate na
grade sem sair da quadra, por isso há uma convenção entre os alunos que a bola só
sai de jogo quando ultrapassa as linhas de fundo. O jogo é movimentado, até por que
a bola fica em jogo muito tempo sem que saia pelas laterais da quadra. Os alunos são
meninos, na faixa etária de 12 a 14 anos, aparentemente, alguns parecem ser mais
127
novos. Enquanto um grupo joga, cerca de 10 alunos, divididos em dois times de cinco,
um outro grupo de 10 ou 12 alunos, espera sua vez de jogar. O time que vai entrar no
lugar do que perder já está formado e controlam o tempo de jogo, parece que a disputa
é feita por número de gols – quem fizer dois gols ganha e continua em quadra – ou por
tempo – ao fim de 10 minutos a equipe que estiver à frente do placar é a vencedora –
se houver empate ao final do tempo de jogo, a equipe que estiver a mais tempo em
quadra cede seu lugar à equipe que espera para entrar.
A bagunça é grande, não no jogo em si, que é até organizado, mas os alunos que
esperam para entrar continuam dentro da quadra, junto das bolsas e calçados, diminu-
indo ainda mais o espaço de jogo. A professora da turma, quando não está resolvendo
outros assuntos fora da quadra, ou pelo menos parece que os está resolvendo, está
conversando com o inspetor de alunos. Acho que ela inventa situações a resolver só
para sair da quadra e abandonar a turma à sua sorte, pois vaga pelo pátio de recreio
por entre os alunos, mas não fala com ninguém, inclusive está sempre parecendo
procurar alguém que não acha nunca. Após uma saída dessas, volta para a quadra ou
pára na grade da quadra e logo sai para fazer a mesma cena. Quando encontra o
inspetor de alunos, começa a conversar com ele, aparentemente sobre alguma coisa
importante ou que diga respeito à escola ou alunos, mas estou próximo e posso ouvir
que são assuntos pessoais ou comentários de fatos esportivos e notícias de jornais. O
posicionamento dela é de lado, quase de costas para a quadra, onde os alunos orga-
nizam-se e discutem os lances da partida, chegando a acordos inimagináveis em meio
a toda a gritaria, empurrões e alguns xingamentos. O inspetor está de frente para a
quadra, ele segue algumas jogadas enquanto conversa com a professora, que olha
fixamente para o inspetor, mesmo quando ele está com o olhar direcionado para o
jogo.
Enquanto não estavam ali parados, e a professora vagava fingindo-se preocupa-
da pelo pátio, um menino de casaco e tênis, destoando do conjunto de alunos, pois os
outros estavam de blusa e sem tênis, jogava um jogo particular. Para ele só interessa-
va xingar os outros, tanto os do seu time, quanto os do outro time e até os que espera-
vam para jogar. Corria atrás da bola não para dominá-la ou chutá-la, mas para chutar
os alunos que tentavam dominá-la. Os demais não o recriminavam por essa violência,
embora estivesse claro que as suas atitudes eram incompatíveis com a conduta dos
outros alunos, para mim estava claro que ele acabaria machucando alguém.
O inspetor conversava com a professora e acompanhava o jogo. Em determina-
do momento, há uma falta próxima a um dos gols e o inspetor apressa-se a gritar de
128
onde estava, interrompendo a conversa com a professora, que, mesmo assim, evita
olhar para o que estava acontecendo na quadra:
– Foi falta! Foi falta! Não viram a falta ali não? Pô, se aquilo não é
falta, o que que é?
Um aluno, defendendo o seu time, aproxima-se e grita sem paciência com o
inspetor:
– Tinha sido mão do goleiro fora da área antes, tá aí fora e quer dar
palpite.
Ao que o inspetor, mais comedido do que na sua primeira interferência diz:
– Ah, então tá.
E volta a conversar com a professora, que nada falou. Mas os alunos ainda dis-
cutiam sobre se havia sido falta ou mão do goleiro até que os alunos que esperavam
para jogar agitaram-se com a discussão e a gritaria tornou-se insuportável. O inspetor
começa a gritar:
– Ei, ei, que bagunça é essa, parece futebol de favela, todo mundo
quer gritar.
Os alunos parecem entender a observação do inspetor, que parece o “dono” da
favela. A professora nem preciso dizer, omissa novamente.
Quando um aluno dribla o menino de tênis e casaco, aquele que destoava da
turma, e segue em direção ao gol adversário, já o deixando para trás, recebe um
pontapé covarde por trás em seu pé, quase no tornozelo, um chute de tênis em um pé
descalço. Ninguém repreende o agressor, talvez o inspetor o fizesse, mas o lance foi
justamente às suas costas, dentro do campo de visão da professora tenho certeza que
não foi, pois ela continuava conversando com o inspetor fixando sua visão no seu
rosto, e tenho cá minhas dúvidas se não havia, naquele olhar fixo, uma abstração, ou
seja, parecia que tentava fugir dali pelo olhar, ou melhor, pelo não olhar.
O garoto agredido nem olha para trás, mas olha para a professora e para o inspe-
tor como se pedisse ajuda, mas nota que esses não viram o lance, parece que nin-
guém viu! Ele, ao mesmo tempo que corre em direção ao portão da quadra, procura
olhar os rostos das pessoas em volta, como se procurasse alguém que pudesse servir
como testemunha do fato. Ele me acha! Sou o único que pareço me importar com a
agressão, pois o jogo já está se desenvolvendo sem ele e sem o agressor, que o
persegue até o portão da quadra fazendo-lhe ameaças de agressões futuras com um
repertório significante de palavrões e ofensas. O aluno chega até onde estão o profes-
sor e o inspetor e reclama da agressão e da perseguição do outro aluno. A professora,
129
retirada do seu “esconderijo”, fica chateada com a reclamação do aluno agredido que
desiste de usar-me como testemunha mediante ao desinteresse da professora em
ouvir seu relato. O aluno agressor, que vinha defender-se com o semblante preocupa-
do pela ousadia do outro aluno, que desprezou as suas ameaças e teve coragem de
denunciá-lo para a professora, ao perceber que nada iria acontecer – pela forma que a
professora atendeu aos apelos do outro aluno – volta para a quadra, aliviado e com um
sorriso discreto nos lábios, enquanto a professora, chateada por ter sido chamada a
intervir, volta a conversar com o inspetor com a testa franzida e balançando a cabeça
lateralmente (aquele gesto que usamos para dizer não ou negar alguma coisa), como
se dissesse:
– Esses garotos chatos ficam atrapalhando a minha conversa.
Ao voltar à quadra, o aluno agredido aproxima-se por trás do que o agrediu e diz
alguma coisa ameaçadora a este, que não o responde, apenas sai da quadra, pois seu
time perdera a partida. Passa a implicar com os alunos que esperam para jogar dizen-
do que vai jogar na próxima partida, sem respeitar a lista de espera e causando novo
rebuliço entre esses alunos. O inspetor iria intervir novamente, mas o sinal da escola
toca acabando com a aula, sem nem terminar a conversa com o inspetor ou dar qual-
quer satisfação a este, a professora entra em quadra para pegar a bola usada no jogo.
A professora parece infeliz, não está satisfeita em estar ali. O inspetor fala com todo
mundo e começa a coordenar a saída do primeiro turno e organizar os alunos do
segundo turno que estão à frente da escola.
Conversando com o professor que me levou até a escola sobre a postura da
professora e os acontecimentos da “aula” que presenciei, fui informado sobre o desin-
teresse da professora pelo seu trabalho na escola. Segundo esse amigo, a professora
tem um vínculo como treinadora de uma seleção brasileira de esporte ligada ao Comi-
tê Olímpico Brasileiro (COB), fala abertamente que não gosta de trabalhar ali e o faz
apenas pelo salário. Complementa que a professora é boa profissional, porém seu
perfil de trabalho é distante do que é necessário na escola pública, principalmente
naquela região da cidade.
O professor diz que, também, não interfere muito no jogo de futebol de suas
turmas, somente quando há a necessidade de manter a ordem, retirar os alunos que
atrapalham o jogo ou garantir a participação de todos os alunos da turma no jogo.
Não conversei com a professora, pois havia ido à escola para entrevistar a direto-
ra e, quando cheguei, as aulas estavam em andamento, tanto a da professora, quanto
a do professor que é meu contato. Fiz as observações sem registro de imagens ou
130
gravação de qualquer tipo, apenas escrevi algumas notas que pudessem ajudar-me
na escrita dos relatos dessas aulas. Desenhei um pequeno mapa da escola que aju-
dou-me na observação do espaço, assim como na construção de questões sobre o
funcionamento da escola e das aulas de educação física, que usei na entrevista com a
diretora do colégios.
A AULA NO PÁTIO
Ao mesmo tempo em que a “aula” de futebol acontecia na quadra do colégio, o
professor Jorge trabalhava com uma turma do 1º ano do ensino fundamental. A turma,
de aproximadamente 15 alunos, está dividida em dois grupos, que brincam de futebol
em uma metade do espaço e brincam de acertar a bola de basquete em pneus coloca-
dos em cima de uma cadeira. Os dois grupos trocam de atividade ao comando do
professor, que fica sempre com o grupo de alunos que brinca de arremessar a bola de
basquete. Ele precisa organizar a fila para garantir que todos possam participar, pois
alguns alunos, apesar da presença do professor e de seus pedidos insistentes para
que respeitem a fila, tentam entrar na frente dos que respeitam a organização da
brincadeira ou tentam ficar arremessando seguidamente a bola, sem dar oportunidade
aos outros alunos. O espaço é pequeno, mas pelo menos está mais distante do pátio
do colégio do que a quadra. Existem dois bancos de concreto de três lugares e duas
árvores – uma seca e outra ainda verde e com vida que provoca rachaduras e ondula-
ções no piso de cimento com o crescimento de suas raízes – há uma rede de voleibol
recolhida, presa a grade da quadra por um cano de ferro e percebo ganchos na parede
oposta a esse, ou seja, apesar do espaço reduzido e dos obstáculos (bancos, árvores,
buracos no chão) aquele espaço serve também para as aulas de vôlei.
Quando acaba a aula, Jorge traz a turma para o pátio do recreio, onde começa a
fazer uma brincadeira com uma corda. Ele solicita a ajuda de uma aluna da sua turma
de 6º ano para girar a corda junto com ele, para que os alunos da turminha do 1º ano
possam brincar de saltar corda. O aluno fica na fila e, quando chega sua vez, sem que
Jorge e sua ajudante parem de rodar a corda, eles devem correr para o local onde a
corda toca o chão e ali esperarem a corda passar por sobre a sua cabeça e saltá-la
quando for tocar o chão. Deve fazer 3 saltos e voltar para a fila, deixando o espaço
livre para outro aluno experimentar a brincadeira. Depois, fiquei sabendo que Jorge
havia proposto essa brincadeira no início da aula, porém, os alunos haviam preferido
brincar de futebol e de arremessar a bola nos pneus. De qualquer forma, no meio do
pátio do recreio e auxiliado pela aluna da série mais avançada, pude presenciar o
esforço de um professor para propiciar a educação através do movimento. Os alunos
131
que não respeitavam a fila no exercício de arremesso continuavam a tentar tomar a
frente dos outros alunos, mas, pacientemente, sem deixar de rodar a corda junto com
a menina do 6º ano, Jorge os colocava em ordem, explicava que eles deveriam espe-
rar sua vez, e ainda ajudava os alunos que estavam receosos em sair da fila e “entra-
rem” no exercício sem que a corda fosse parada com instruções como:
– Vamos lá, confiança, quando a corda bater no chão você entra!
Sempre de forma alegre, paciente e sorridente. Quando era necessário parar a
corda e deixar o aluno que estava com medo ou não conseguia perceber o tempo de
entrada no exercício, o fazia com tranqüilidade e estímulo ao aluno, que, a cada tenta-
tiva, se mostrava mais confiante em tentar executar a tarefa proposta. Quando havia
alguma manifestação de ridicularizar um aluno que caía ou que parava a corda por
deixá-la bater em suas pernas, o professor logo solicitava o apoio ao aluno, sendo
atendido por todos que estavam assistindo a brincadeira.
Jorge revela que não gosta de trabalhar com essa faixa etária, mas ninguém
nota, parece ser a turma predileta dele. Na realidade, a aula já acabou, mas, ao invés
de soltar as crianças no pátio, ou colocá-las sentadas em um degrau que separa o
pátio do corredor de entrada da escola – como estão duas turmas com suas professo-
ras olhando a atividade da turma de Jorge – ele propõe a brincadeira com a corda
enquanto espera a professora da turma chegar para levá-los. Conversando, mais tar-
de, com Jorge, ele revela que, às vezes, fica mais 5 ou 10 minutos com os alunos da
primeira série, embora não seja a sua faixa etária predileta, pois ele vê o esforço das
professoras
21
dessas turmas que só têm aquele momento da educação física para
descansarem um pouco.
Quando a professora da turma chega e leva os alunos, faz um agradecimento ao
professor por ficar com os alunos aquele tempo a mais, chega a esboçar uma descul-
pa pelo atraso em retomar a turma, mas é interrompida pelo professor com um afetu-
oso:
– Está tranqüilo, não esquenta.
Os alunos começam a ser liberados para casa e, a cada passo que o professor
dá tentando dirigir-se à sala de materiais, para guardar o material de aula, é interrom-
pido para receber um cumprimento de um aluno ou de uma professora desejando um
bom fim de semana, embora seja quinta-feira, o professor só retornará à escola na
21
Cada turma do 1º ano é de responsabilidade de uma professora que trabalha com as crianças por todo o turno, as aulas de
educação física são os momentos em que a professora pode descansar do contato com os alunos, por isso mesmo, as
professoras procuram ter como os professores de educação física de suas turmas aqueles que não costumam faltar.
132
terça-feira. Parece ser bastante querido pelos alunos e funcionários da escola.
Após guardar o material de aula, o professor levou-me até a diretora do colégio.
Apresentou-me a ela como o amigo que faz o mestrado em educação sobre o qual
havia lhe falado. Perguntou-lhe se estava lembrada. Embora muito solícita e educada,
a diretora confirmou a lembrança, porém descartou a possibilidade de reunir-se comi-
go naquele dia. Perguntou-me se havia a possibilidade de retornar em outro dia. Deu-
me a relação de seus horários na escola e colocou-se à minha disposição. Desculpou-
se, mais uma vez, revelando que precisaria daquele horário e, provavelmente, da tar-
de inteira para resolver problemas junto à coordenadora pedagógica e alguns funcio-
nários administrativos da escola. Despedi-me, agradecendo a atenção e combinando
uma visita para a outra semana.
SEGUNDA VISITA AO COLÉGIO
Como havia visitado a escola em uma quinta-feira, decidi retornar na semana
seguinte, também na quinta-feira. Minha intenção era observar os mesmos grupos de
alunos e professores da primeira semana e realizar a entrevista com a diretora do
colégio.
Como, nas minhas observações da escola devassada, não consigo conversar
com os professores, sujeitos das minhas observações, considerei que fosse importan-
te fazê-lo com a professora cuja aula havia presenciado na semana passada. Meu
desejo em realizar essa conversa estava em ouvir a professora sobre as diferenças
sociais entre alunos e professores e, também, sobre essas diferenças entre os profes-
sores. Na minha primeira visita à escola, tive a impressão de que entre alguns profes-
sores e os alunos de certas escolas ou regiões, há um abismo social que atrapalha o
entendimento da forma de ser do outro. Como se o professor proveniente de um espa-
ço social diferente daquele que está representado naquela escola não conseguisse
entender a lógica que se estabelece no habitus daqueles alunos. E entendo que esse
estranhamento aconteça também nas relações entre professores que são mais ou
menos distantes no espaço social, às vezes não há entendimento, não por que não se
queira, mas por que não se compreende o habitus alheio. Talvez a distância demons-
trada pela professora em relação aos seus alunos fosse uma pista que pudesse se-
guir, valendo-me do paradigma indiciário (GINZBURG, 1990).
Estacionei o carro em frente à escola e notei que não havia tanto movimento na
entrada quanto na semana anterior. O inspetor de alunos que trabalha no turno da
manhã, aquele que havia passado a aula conversando com a professora de educação
física e interferindo no jogo de futebol, estava na calçada em frente ao portão do colé-
133
gio conversando com outro homem. Acompanhou a minha manobra de estacionamen-
to e pude notar que me havia reconhecido quando desci do automóvel, pois sua
fisionomia tornou-se mais amigável do que a expressão de poucos amigos que tinha
no rosto quando comecei a estacionar. Aproximei-me e ele estendeu a mão para cum-
primentar-me e perguntou:
– Como vai?
Respondi:
– Comigo tudo bem, e com o senhor?
E já aproveitei para perguntar pelo professor para que o inspetor pudesse com-
plementar seu reconhecimento, pois percebi que embora tivesse me identificado como
alguém conhecido, ainda não havia estabelecido quem eu era.
– O professor está aí? , perguntei.
– Olha o
cascudo
aí! , apontando para o alto da escada de entrada
do colégio na direção da quadra, onde o professor estava com sua
turma.
Não consegui conter o riso ocasionado pela forma do inspetor referir-se ao pro-
fessor: cascudo! O que pode parecer um insulto é na verdade um elogio. Significa que
o professor é determinado, que tem autoridade e não se abala com as dificuldades da
profissão. Subi as escadas rindo e o cenário era outro em relação à semana anterior.
Ao invés da turma de meninos de 12 a 14 anos jogando futebol, o professor Jorge
ocupava a quadra com os alunos da primeira série, também com futebol para os meni-
nos, enquanto as meninas da turma pulavam corda e faziam outras brincadeiras no
espaço em que a turma ocupava na semana anterior, perto das árvores (espaço 2).
A turma que ocupava a quadra na visita passada não estava na escola. Ao con-
versar com a diretora, soube que a professora responsável por aquele horário havia
viajado ao exterior como treinadora daquela seleção brasileira esportiva e, como aquela
seria a última aula do turno da manhã, os alunos haviam sido liberados para o retorno
às suas casas. Por servir a uma seleção brasileira reconhecida pelo COB, segundo a
diretora, a professora tem o direito de ter suas faltas abonadas, porém as suas turmas
seriam dispensadas das aulas de educação física no período de sua ausência por não
haver a possibilidade de remanejá-las para os cuidados de outro professor da escola.
A diretora relatou-me que a professora estaria à disposição do COB durante duas
semanas em treinamentos na Rússia e que já haveria um memorando solicitando a
sua dispensa para outro período de treinamentos em Portugal, por mais três semanas,
assim que retornasse da primeira viagem. Portanto, talvez a professora que eu havia
134
visto na semana anterior e considerado negligente ou desinteressada na sua atuação
pedagógica estivesse em um dia ruim por conta de seus compromissos com a seleção
brasileira que treina. Porém, fica a dúvida.
De qualquer forma, a diretora mostrou-se inconformada por não poder contar
com a professora por um período tão longo, no qual os alunos ficarão dispensados das
aulas de educação física.
Enquanto fui conversar com a diretora, o professor Jorge foi aproveitar seu horá-
rio de almoço, período em que a diretora aproveita para realizar a resolução de assun-
tos pendentes, geralmente contatos com a CRE da região, preenchimento de formulá-
rios e questões pertinentes às documentações ou arquivamento das mesmas.
Ao terminar minha entrevista, fui despedir-me do professor Jorge e agradecer-
lhe pela gentileza de ter contribuído com a minha pesquisa. Na quadra, havia um
grupo de meninos de 15 a 17 anos, alunos do 9º ano do ensino fundamental. O profes-
sor estava colocando a rede de vôlei no espaço 2 para que as meninas da turma
pudessem jogar. Confessou que prefere separar a turma pelo gênero, pois, quando
não o faz, a aula não alcança seus objetivos, diz o professor:
– Eu já tentei dar aula juntando os meninos com as meninas, mas a
aula não rende.
Na parte dos meninos, o jogo é organizado e todos participam, são poucos alu-
nos, dez ao todo, o que permite a formação de dois times de futebol sem que ninguém
precise ficar fora da atividade. No lado das meninas, enquanto duas meninas brincam
de passar a bola por cima da rede, as outras estão sentadas nos bancos de concreto
existentes nesse espaço. As duas meninas que brincam com a bola na quadra impro-
visada estão vestidas com calças compridas, sendo que uma delas está com os olhos
muito maquiados e com uma bermuda colorida vestida por cima da calça jeans. Em
um dos bancos de concreto, estão reunidas quatro ou cinco meninas fazendo o con-
torno das suas sobrancelhas com uma tesoura, que usam tanto para aparar os pêlos
quanto para raspá-los, um verdadeiro salão de beleza dentro da escola. O professor
Jorge chama a atenção dessas meninas para o perigo de manipularem a tesoura perto
dos olhos enquanto as outras jogam vôlei às suas costas, pois a bola pode desviar-se
e bater na tesoura provocando um acidente, ao que respondem que estão atentas
para o perigo, mas continuam com a sessão de embelezamento. Outro grupo de alu-
nas aparece, são quatro meninas, também de calças compridas e maquiadas, sen-
tam-se e não parecem dispostas a realizarem qualquer esforço físico que as faça suar,
borrar a maquiagem ou despentear os cabelos, quase todas as meninas são afro-
135
descendentes e têm seus cabelos alisados em penteados que usam presilhas que os
mantêm em penteados rígidos. Com a solicitação do professor para participarem da
aula, uma dessas meninas questiona o professor sobre umas bolas que ele usa em
outras aulas:
– Cadê as bolas novas, professor? Pega lá uma para a gente, também
temos direito.
– A bola que tem para o vôlei é essa daí, cheia de cabelos.
Responde o professor, referindo-se ao material que fica na bola quando seus
gomos são retirados. Ou seja, o estado da bola era realmente ruim, o uso constante
em atividades para as quais não foi projetada – a bola já havia sido usada como bola
de futebol em uma brincadeira entre os alunos mais novos do primeiro turno – reduz a
vida útil do material. A bola havia sido doada ao colégio pelo professor Jorge, que a
utilizava em um projeto de iniciação esportiva de um colégio particular, no formato de
atividade extraclasse, para o qual havia adquirido novo material.
Pelo outro lado da grade, ou seja, pela quadra do colégio, um aluno aproxima-se
do professor e solicita uma autorização para participar do futebol usando calça jeans.
Recebe uma negativa do professor que explica não poder conceder seu pedido, pois
estaria sendo injusto com os outros alunos que já havia impedido de participar das
aulas com tais trajes. O aluno insiste dizendo que dobraria a calça até acima dos
joelhos para que parecessem com bermudas, mas o professor mostra-se irredutível e
pergunta ao aluno sobre o material que geralmente usa para as aulas:
– Cadê aquela tua bermuda amarela que você usa nas aulas?
O aluno responde:
– É que esqueci em casa. Eu fui fazer um teste para ver se consegui-
ria entrar para o time de basquete da FAETEC.
Naquela região, uma das unidades da FAETEC desenvolve o trabalho de inicia-
ção esportiva para a comunidade, porém não há a implementação de equipes que
disputem campeonatos regulares para esse público, somente os alunos daquela uni-
dade FAETEC participam de campeonatos estudantis. Esse aluno referiu-se a ques-
tão do teste para a equipe, mas depois complementou a sua fala dizendo que as
equipes eram apenas para quem lá estudasse, mostrando-se bastante decepcionado
pela falta de oportunidade em participar de uma equipe de basquete.
O professor o convidou a participar da atividade de voleibol junto às meninas:
– Vou ficar te devendo essa. Valeu? Desculpe-me, mas se eu deixar,
vou perder a razão com os outros, ok? Vem bater uma bola aqui
136
fora com as meninas – disse Jorge. O aluno aceitou a justificativa e
foi caminhando em direção a porta de saída da quadra, passando
por entre os alunos que jogavam o futebol para juntar-se as meni-
nas no voleibol.
As alunas estavam-se animando para o jogo, além das duas do início da ativida-
de outras quatro já estavam participando da aula. Despedi-me do professor e estava
deixando o espaço 2 com destino a saída do colégio quando, em um gesto brusco,
uma das alunas golpeou a bola que ultrapassou o muro da escola indo parar na casa
ao lado. A menina que havia solicitado uma das bolas novas para o jogo da turma falou
em um tom de deboche e implicância com o professor:
– Ih, essa não tem volta, agora vai ter que pegar uma bola nova para a
gente.
Não fiquei para ver o fim da história, porém tenho certeza de que o professor iria
tentar recuperar a bola, embora em estado precário, ainda é um material importante
para aquele colégio.
VISITA À ESCOLA DO PROFESSOR ANDRÉ
O TREINO
Alguns professores que me ajudaram nessa pesquisa, além de serem colegas
ou ex-colegas de trabalho, são amigos com os quais divido as dúvidas que permane-
cem após vinte anos de trabalho na área da educação física. O professor André Gava
é um destes amigos.
André inscreveu a sua escola nos jogos escolares, serão apenas duas equipes
de voleibol, mas é uma contribuição valorosa, visto que somente ele se comprometeu
com esse projeto. A diretora acha muito importante que os alunos tenham a possibili-
dade de experimentar a competição esportiva, porém não pode obrigar que os profes-
sores desenvolvam um trabalho de equipes na escola. Cada professor pode fazê-lo
desde que se responsabilize por todo o processo, desde a comunicação com os alu-
nos até o deslocamento das equipes para os jogos. As aulas de educação física não
podem ser usadas para o treinamento das equipes e os professores devem utilizar o
horário entre onze e cinqüenta e doze e cinqüenta, intervalo de aula entre os turnos,
para o treino das equipes. A direção compromete-se em abonar as faltas dos alunos
para que participem de jogos, dispensar os professores das suas aulas nos dias de
jogos e preparar declarações para que os responsáveis pelos alunos/atletas autorizem
as suas inscrições na competição, assim como, as autorizações para os deslocamen-
137
tos entre a escola e os locais de jogos que devem ser igualmente assinadas pelos
responsáveis dos alunos/atletas.
A escola está situada na mesma região da escola X, possui as mesmas caracte-
rísticas gerais, porém não consegui ver a dinâmica dos alunos e professores, pois,
quando cheguei à escola, já havia sido encerrado o primeiro turno e a escola estava
vazia, apenas o professor André e as alunas que participariam do treinamento de vo-
leibol ocupavam a quadra.
O ambiente em torno da escola é parecido com o da escola X e com o da escola
devassada, alunos do primeiro turno ainda estão na rua conversando ou brincando,
alunos do segundo turno já estão por ali e algumas pessoas, que parecem não ter
relação com a escola, ficam observando os alunos e a escola.
O professor utiliza o seu horário de almoço, justamente o intervalo entre os dois
turnos de aulas, para treinar a equipe. Hoje haverá o treino da equipe feminina de
voleibol, formado pelas meninas de quatorze e quinze anos. Algumas atletas estudam
no turno da manhã e outras no turno da tarde. Começam a chegar alguns meninos,
aparentemente mais velhos, com uns 17 anos, vão ajudar no treino da equipe. Pergun-
to a André quem são estes meninos:
– São ex-alunos do colégio,
que jogavam nas equipes dos
anos passados e que eu cha-
mo para ajudarem nos treinos.
Alguns jogaram 4 anos pela
equipe do colégio – respon-
deu-me.
A escola está vazia, os alunos do
primeiro turno se foram e os do segun-
do turno estão na frente do colégio. Só
é permitida a entrada dos ex-alunos que
ajudam no treino e das meninas do segundo turno que participarão do treino da equi-
pe.
O ambiente é diferente do que presenciei na escola X e na escola devassada, o
professor coloca a rede de vôlei e traz o material de treino: quatro bolas e alguns
cones. As bolas são duras e de péssima qualidade, mas as meninas começam a trei-
nar aos comandos do professor. Ele não precisa gritar para ser escutado e não há
alunos do lado de fora da quadra interferindo no treino.
Estou sentado em uma cadeira nos fundos da quadra, próximo ao muro do colé-
gio que o separa da rua. As atletas parecem muito empolgadas com o treinamento,
Imagem 42: Professor André e a equipe feminina do seu colégio
no treino de voleibol.
138
embora seja um treinamento de fundamentos básicos de voleibol, os exercícios são
realizados com certa dificuldade. André havia-me alertado para o fato de serem
iniciantes, apesar dos 15 anos de idade, e a maioria mostra-se mesmo pouco habilido-
sa. Porém, todas treinam com muita alegria, disposição e esforçam-se para executar
os movimentos propostos pelo professor-treinador.
O material não contribui para o sucesso, bolas duras, que machucam os braços
das atletas. Não há razão para que as bolas sejam tão poucas e de qualidade tão ruim.
Tenho experiência na compra de material para escolinhas de voleibol há duas déca-
das e sei que o preço das bolas oficiais é elevado, mas existem bolas de boa qualida-
de e de preço razoáveis, muito melhores do que aquelas que ali estavam. Como con-
tribuinte do Estado, pessoa física que pago meus impostos em dia, pergunto-me: como
pode o Estado oferecer um material tão ruim para aquelas meninas e para aquele
professor?
Naquela quadra, ao meio-dia de
uma quinta-feira, um professor de edu-
cação física (sem almoçar), algumas
meninas (também sem almoço) e alguns
meninos (que nem são mais alunos da
escola) construíam uma equipe de vo-
leibol. Trabalho coletivo, social e políti-
co, talvez seja essa a razão das bolas
serem tão ruins, só se vê o Estado atra-
vés daquelas bolas e da quadra de trei-
no que têm 4 tampões de esgoto e dois
ralos para escoamento da água no seu interior, pois o professor, representante desse
Estado, está no seu horário de almoço, faz por que gosta, mas não é pago por isso.
Eles desviam dos ralos e das tampas de esgoto existentes no meio da quadra,
ajudam-se mutuamente sem nenhum outro interesse a não ser ajudar, reúnem-se no
único horário possível para treinar, passam a acreditar em si acreditando no grupo,
superam os braços vermelhos e doloridos pelo uso de uma bola ruim, ou seja, se eles
fazem isso com todas essas dificuldades, imagine se dermos boas condições para
eles treinarem?
O DESFILE
O término do treino é marcado pelo início do segundo turno de aulas, quando a
quadra precisa dar lugar às aulas de educação física das turmas desse turno. Aos
Imagem 43: A quadra tem dois ralos de escoamento de água e
quatro tampões de ferro de esgoto em seu interior, além dos
buracos remendados com cimento áspero.
139
poucos, o barulho vai aumentando na escola, começa a se configurar o mesmo cená-
rio que estou acostumando-me a ver nas escolas que observo. Os alunos vão ocupan-
do os espaços da escola correndo e gritando. Há uma mistura dos alunos no pátio da
escola. São alunos de várias idades, mas, nesse colégio, parecem predominar as
faixas etárias mais avançadas, a proporção de adolescentes em relação às crianças
parece maior. O professor reúne as alunas para combinar o próximo encontro e agra-
decer o empenho que todas tiveram no treinamento. As meninas deixam à quadra
mostrando os braços vermelhos e doloridos, mas o sorriso no rosto deixa transparecer
que na próxima terça-feira, as onze e cinqüenta estarão novamente prontas para trei-
nar.
Finda essa etapa do seu dia, André
Imagem 44: Professor André e os alunos que representaram
sua escola no desfile de abertura dos Jogos Escolares
Municipais.
Imagem 45: Alunos reunidos, bandeira olímpica e
pira acesa.
se apressa a guardar o material de treino para
reunir-se com os alunos que representarão a es-
cola no desfile de abertura dos jogos
interescolares 5ª CRE – cada CRE faz a sua
abertura para os jogos escolares municipais e a
abertura da 5ª CRE será realizada no SESC de
Madureira, unidade do serviço social do comér-
cio. São sete atletas que irão a esse desfile, três
meninas e quatro meninos. Eles trazem um do-
cumento assinado pelos seus responsáveis, au-
torizando-os a irem de ônibus (de linha normal)
da escola até o local da abertura da olimpíada
estudantil, sob a responsabilidade do professor.
Um dos ex-alunos da escola e ex-integran-
140
te da equipe de voleibol acompanha o professor até o SESC de Madureira com os
alunos que irão representar a escola no desfile de abertura. Há uma placa de identifi-
cação do colégio que é conduzida junto com a comitiva no ônibus. André não sabe o
ônibus que devem pegar e nem o percurso até o SESC, mas os alunos sabem e
conduzem o professor até o destino. O fato vira logo motivo de brincadeira entre eles:
ao invés do professor nos trazer, nós é que trouxemos o professor – dizia uma menina.
E é verdade, eles trazem o professor, pois ele não precisa estar ali, como tantos outros
professores que não fazem equipes em seus colégios, ele o faz por eles.
No local, havia uma concentração pequena de alunos, que foi aumentando até o
momento do início do desfile. Segundo o site da Secretaria de Educação da Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro, a 5ª CRE é responsável pelas escolas de 26 bairros, num
total de 126 unidades escolares. Pelas minhas observações no local, o número de
escolas presentes no evento de abertura dos jogos escolares não ultrapassou 30 uni-
dades escolares, ou seja, identifico uma adesão pequena dos professores de educa-
Imagem 46: O evento contou com a exibição de uma banda, do pelotão da bandeira e da apresentação de um
grupo de dança de um clube escolar.
ção física das escolas municipais com esses jogos, pois, ao invés de receberem incen-
tivos para formarem equipes em seus colégios e participarem dessas competições
esportivas, recebem carga extra de trabalho e responsabilidades.
Contudo, o evento demonstrou que há estrutura de pessoal na Secretaria de
Educação para a organização de eventos mais abrangentes e periódicos, pois foram
apresentados ao público presente pelo menos 4 coordenadores de educação física
dessa CRE e outros 4 representantes da Secretaria de Educação envolvidos com os
jogos. Aparentemente, mostraram-se funcionários públicos comprometidos e compe-
tentes, organizando sem dificuldades o evento.
Ao final da solenidade, que contou com o desfile de um pelotão da bandeira
seguido da execução do hino nacional brasileiro, de uma banda escolar e de apresen-
tações de atletas de Ginástica Rítmica Desportiva (GRD) e de dança do clube escolar
de Marechal Hermes, foi oferecido um lanche para os atletas. Cada escola esperava
141
ter seu nome anunciado para dirigir-se a uma sala onde estava servido o coquetel,
embora a professora que comandava o evento tenha-se referido ao lanche como coffe-
break, os alunos/atletas saíam da sala contentes e com as mãos cheias de sorvete,
cachorro-quente e pizza, talvez fosse o caso de tentar uma experiência alimentar mais
saudável, porém os alunos acharam ótimo.
Depois de dar aulas por toda a manhã, treinar a equipe na hora do almoço, levar
seus alunos de ônibus da escola ao desfile, estava na hora de reunir os alunos para a
volta para a escola. Ao chegar à escola, no final do turno da tarde, os alunos que
avistaram o professor foram logo questionando:
– Professor, por que o senhor não deu aula hoje?
Uma menina olhou para o rosto de André e disse:
– Não quer nada, professor. Por que não deu aula hoje?
Mas ela sabe que esse é um dos poucos que quer alguma coisa e ouvindo as
explicações do professor disse:
– Professor, não falta mais não, gosto tanto das suas aulas.
CAMPEONATO ESTADUAL DE VOLEIBOL JUVENIL
TORNEIO INÍCIO
No dia 17 de fevereiro de 2008, iniciei a fase de trabalho de campo da pesquisa,
que irei denominar, daqui para frente, de observação da atleta Larissa. Inicialmente, o
objetivo seria tentar observar Larissa nos jogos da sua equipe e registrar o seu relaci-
onamento com os professores e atletas da equipe, já que ela é a única das
sujeitospersonagens que continua jogando voleibol em clubes esportivos.
Fui ao ginásio do Clube de Regatas do Flamengo assistir ao torneio início juvenil
feminino, que é uma competição que inaugura o campeonato da categoria, reunindo
as equipes que, provavelmente, jogarão o referido campeonato. Essa categoria é para
atletas nascidas até 1988, ou seja, atletas que completarão 20 anos em 2008, sendo
que as que nasceram em anos anteriores podem compor essa categoria.
Em 2007, no campeonato do primeiro semestre, segundo as informações expos-
tas no site da FEVERJ, disputaram o campeonato dessa categoria 6 equipes, sendo:
Flamengo, Tijuca, Fluminense, Macaé, Niterói e UFRJ.
Segundo a mesma fonte, no mirim, categoria para meninas até 13 anos, disputa-
ram 9 equipes, sendo: Fluminense, Niterói, Vassouras, Botafogo, Macaé, Campos,
Grajaú, Flamengo e Tijuca.
142
Como não há acréscimo de equipes para a disputa do juvenil em relação ao
mirim, muito pelo contrário, há a redução da quantidade de equipes participantes,
podemos imaginar que com o passar das temporadas, quando chegam à faixa etária
da categoria, 17 a 20 anos, a oferta de atletas juvenis é maior do que a capacidade dos
clubes em absorvê-las.
O campeonato juvenil, pela quantidade reduzida de clubes, passa a ter um nível
técnico melhor, os jogos são mais disputados e mais bem jogados. Porém, as equipes
jogam menos vezes por ano, atraindo poucos investimentos em equipes da categoria.
Nessa mesma faixa etária as atletas estão terminando o ensino médio e come-
çando a estudar no ensino superior. Muitas atletas que não recebem apoio financeiro
dos clubes em que jogam optam pelas bolsas de estudos nas universidades, algumas
abandonam o voleibol em clubes, contanto que a bolsa de estudos não esteja vincula-
da à sua permanência como atleta federada de um clube esportivo.
A categoria anterior à juvenil, infanto-juvenil, tem uma grande importância na
carreira de uma atleta, pois, nessa época, aos 15 e 16 anos, as atletas passam por
grandes modificações corporais e na rotina de estudos. É comum uma atleta que teve
bom desempenho nas categorias mirim e infantil não conseguir repeti-lo a partir do
infanto-juvenil, às vezes por mudanças corporais acentuadas, principalmente em rela-
ção à massa corporal e à diminuição do volume de treinos em virtude do aumento da
carga horária destinada aos estudos. Portanto, quando uma atleta tem bom desempe-
nho nessa categoria, sua participação em uma equipe juvenil está praticamente asse-
gurada e, como o número de equipes infanto-juvenis é superior ao de juvenis, pode-se
afirmar que o juvenil é, também, o vestibular para se entrar no grupo que tem possibi-
lidades de prosseguir como atleta nos clubes do Rio de Janeiro.
Algumas tentam manter-se nos clubes para continuarem treinando com esperan-
ças de alcançarem seus sonhos ou conseguirem o acesso à universidade, mesmo
sem muito espaço para aparecer nos jogos. A persistência é de grande importância
nesse momento.
Pois bem, fui ver o torneio início dessa categoria e tentar observar o comporta-
mento de Larissa perante o grupo, os treinadores e todo o contexto em que está inserida.
Optei em chegar próximo ao horário do desfile das equipes que abre o evento. Che-
guei durante a execução do hino nacional brasileiro quando as atletas já estavam
perfiladas na quadra de jogo. Posicionei-me no alto das arquibancadas e procurei
fotografar as equipes.
Na fotografia, podemos ver as equipes perfiladas em dois grupos, um em cada
143
lado da quadra. Da esquerda para a direita, estão perfiladas as equipes do Tijuca
Tênis Clube, do Fluminense e do
Flamengo, no lado esquerdo da quadra.
Do lado direito da quadra, também da
esquerda para a direita estão as equipes
da UFRJ (equipe de idade adulta, que dis-
puta como convidada), uma equipe no-
rueguesa (também de idade adulta, que
disputa como convidada) e a equipe de
Macaé. Das 6 equipes que estão presen-
tes ao torneio, apenas 4 irão disputar o
campeonato juvenil de 2008.
Ao final da cerimônia do hino nacional e de apresentação da bandeira nacional,
as equipes deixam a quadra em uma formação conhecida como coluna dupla ou colu-
na de dois, permanecendo apenas as equi-
pes que iniciarão o primeiro jogo do tor-
neio.
A forma de deslocamento, na entra-
da e na saída, das equipes para o desfile,
assim como o cerimonial da bandeira na-
cional e execução do hino nacional são re-
miniscências do militarismo no esporte e na nossa sociedade ou apenas uma forma de
organizar o deslocamento das atletas? A realidade é que isso é feito em competições
pelo mundo afora e não somente no esporte, em vários setores da nossa sociedade é
utilizado esse tipo de organização das pessoas nos eventos. Fica a questão!
Porém, na fotografia, podemos ver várias pessoas postadas com os braços para
trás em posição militar de descansar, enquanto, se não me falha a memória, o preco-
nizado pela doutrina militar seria a posi-
ção de sentido. Observa-se, também,
uma atleta da equipe da Noruega abai-
xada entre as suas companheiras, em-
bora sua equipe tenha assumido a pos-
tura com os braços para trás. Aparente-
mente, a equipe do Fluminense é a me-
nos preocupada em assumir a postura
Imagem 47: Solenidade de abertura do torneio início da
categoria juvenil feminino de voleibol.
Imagem 48: Coluna de dois.
Imagem 49: Da esquerda para a direita, as equipes do Tijuca,
Fluminense e Flamengo.
144
dominante entre as atletas – braços para trás do corpo com uma das mãos segurando
a outra ou antebraço. Nota-se, também, que os treinadores do Fluminense estão con-
versando, embora um deles assuma a postura dominante.
Na saída da equipe do Tijuca Tênis Clube, Larissa mostrava-se sorridente e mui-
to à vontade, conversando com uma menina que estava formada ao seu lado. Somen-
te nas fotos pude ver, posteriormente, que riam de algo que a atleta posicionada a
frente delas estava fazendo.
Na foto registrada nesse momento (imagem 50), nota-se a atleta à frente de
Larissa saltando com os braços para o alto e em seguida batendo palmas (1), mas não
é possível ver o imenso sorriso de
Larissa (2), achando graça das brin-
cadeiras da amiga.
Na seqüência, pode-se ver a
atleta continuando a bater palmas
enquanto caminha para deixar a
quadra, enquanto, à esquerda, perto da mesa central (3), uma funcionária do Flamengo
dobra a bandeira nacional usada na cerimônia de maneira informal. Pode ser que todo
o cerimonial seja uma herança do militarismo, mas, aos poucos, está perdendo esse
caráter formal e tornando-se uma manifestação civil e social, como se mostrou no pan-
americano do Rio de Janeiro e em alguns eventos de massa, onde se tem demonstra-
do mais a emoção e a participação do público cantando o hino nacional do que a
valorização dos protocolos militares de veneração dos símbolos nacionais.
Há um portão (4) por onde as atletas saem da quadra de jogo. As fotografias
estão sendo efetuadas do lado oposto do ginásio nas arquibancadas. Existe outro
portão idêntico ao que aparece na fotografia acima que dá acesso a essas arquiban-
cadas onde estou posicionado. As atletas deixam a quadra de jogo e retornam para o
ginásio por esse segundo portão. Esperava que Larissa retornasse ao ginásio junto ao
grupo de atletas do Tijuca Tênis Clube, mas não foi o que ocorreu. Suas companheiras
de equipe dividiram-se entre a saída do ginásio e o retorno ao mesmo, como se vê na
foto abaixo:
O fato de as atletas retornarem ao ginásio em grupos separados não representa,
necessariamente, uma divisão na equipe, pois é comum que as atletas aproveitem a
oportunidade de estarem em um evento que reúne muitas equipes de voleibol da cate-
goria para atualizarem as novidades sobre os treinamentos, estudos, namorados, en-
tre tantos outros assuntos, porém esse não parecia ser o motivo da ausência de Larissa
Imagem 50
145
nesse grupo que aparece na foto.
Larissa entrou no ginásio uns cinco minutos depois e foi sentar-se entre algumas
pessoas na arquibancada, aparentemente, pais de outras atletas da equipe que fica-
ram tomando conta das bolsas das meninas da equipe enquanto desfilavam no ceri-
monial de abertura do torneio. Tentei tirar algumas fotos desse momento sem que
chamasse sua atenção, mas não consegui nem tirar uma fotografia de qualidade e
nem permanecer incógnito. Ao ver-me, Larissa sorriu e veio em minha direção cumpri-
mentar-me. Após as perguntas comuns nesses cumprimentos (– Oi, tudo bem?; –
Como você está?), Larissa questionou minha presença ali. Como trabalho em uma
universidade que cede bolsas de estudos para atletas de voleibol, penso que ela achou
ser essa a minha intenção em assistir o torneio. Porém, esclareci meu objetivo à Larissa
dizendo estar iniciando a parte de pesquisa de campo da dissertação de mestrado e
interessava-me observar como estava o voleibol juvenil e levantar questões que de-
pois pudessem ser usadas nas entrevistas que gostaria de fazer com ela e com outras
pessoas. Larissa disse que estava com dificuldades para treinar devido a duas tendinites,
uma no joelho e outra no ombro, mas que se estava dedicando. Falou também que
está tentando ir para os Estados Unidos estudar em uma faculdade através da indica-
ção de um professor – Júlio Cunha – que tem uma ex-aluna que hoje é administradora
de equipes de uma universidade americana.
Larissa é uma dessas meninas determinadas a continuar no voleibol de clubes
apesar de não estar tendo muitas oportunidades de jogar. Nessa competição a que fui
assistir, o treinador usa uma estratégia para que todas as atletas compareçam ao
evento, revela quais as jogadoras que estarão na relação de jogo apenas após o aque-
cimento para a primeira partida. As atletas que não estiverem relacionadas não podem
continuar entre as atletas da equipe durante os jogos, devendo assistir a eles da arqui-
Imagem 51: Larissa no aquecimento para o primeiro jogo. Imagem 52: Larissa assistindo ao jogo junto às atletas que
ficaram fora da relação de jogo.
146
bancada ou de um platô existente na lateral da quadra. É para esse local que se
dirigem Larissa e mais três atletas que não foram incluídas na relação para esse tor-
neio.
A mãe e a irmã de Larissa vão assistir ao torneio, mas ficam chateadas ao verem
que ela não estará em quadra. No final do torneio, sua equipe é a vice-campeã. A mãe,
orgulhosa, posa para a foto exibindo a
medalha conquistada. No voleibol, é recor-
rente o discurso dos treinadores
enaltecendo a importância do grupo. Quan-
do uma equipe é campeã, as atletas que
não participaram do jogo final são
enaltecidas pela dedicação nos treinos pre-
paratórios e a vitória é dedicada a elas,
pois, sem sua participação, o grupo de atle-
tas não conseguiria o título de campeão. A
seleção brasileira de voleibol masculino, ao
ser campeã olímpica, na cidade de Atenas,
em 2004, subiu ao pódio para receber sua
condecoração levando uma camisa do jogador Henrique, atleta que havia treinado
com a equipe durante todo o período que precedeu a ida para os jogos, porém, não foi
inscrito entre os doze atletas que disputariam a competição.
Imagem 53: Larissa, com a medalha de vice-campeã, ao
lado da mãe.
Imagem 54: Seleção brasileira
de voleibol campeã olímpica
em Atenas, 2004: a
homenagem ao atleta
Henrique.
CAPÍTULO 6
OS PROJETOS
GRAJAÚ TÊNIS CLUBE E
SPORT CLUB MACKENZIE
148
OS PROJETOS GRAJAÚ TÊNIS CLUBE E SPORT CLUB MACKENZIE
É difícil valorar as experiências vividas nos quase 20 anos como professor de
Educação Física e colocá-las em uma hierarquia de importância na minha formação
como professor. Embora algumas tenham sido mais marcantes do que outras, todas
contribuíram significativamente na minha formação profissional e pessoal. Mas, entre
os diversos projetos nos quais estive envolvido ao longo destes anos lecionando, dois
me trazem lembranças muito especiais. São duas experiências no voleibol feminino,
uma como preparador físico e outra como treinador. Embora consiga fazer essa divi-
são da função exercida em tais projetos, no trabalho cotidiano – o que se diz comumente
como “na prática” –, as funções exercidas eram inúmeras. Desde gerente administra-
tivo até roupeiro, passando por tarefas ligadas à psicologia, fisioterapia e marketing,
por exemplo. Algumas dessas atividades foram estudadas na Faculdade de Educação
Física – ou, como também se diz, “na teoria” – e outras aprendidas em razão da de-
manda, ou seja, da necessidade de fazer. Portanto, o envolvimento em tais projetos
exigia a utilização prática da teoria e a fundamentação teórica das práticas. Nesse
contexto, sentia-me feliz em ter tido uma boa formação superior e, sobretudo, por essa
formação ter incidido na pesquisa como motor primário da formação docente e não na
aquisição estanque dos conhecimentos. Digo isso, pois me sentia capaz de atuar nas
diversas áreas para as quais o professor de educação física é formado, assim como,
ultrapassar a generalidade superficial dos estudos em algumas áreas do conhecimen-
to, podendo aprofundar-me teoricamente em diversas questões específicas pela ca-
pacidade de pesquisa, amplamente estimulada e orientada pelos professores que me
formaram no ensino superior.
Assim sendo, minha relação com as pessoas ligadas a estes projetos não
se resumia a uma função específica de preparador físico ou de treinador. As diversas
funções exercidas obrigavam-me a tecer vários tipos de relações interpessoais com
os diretores de federação ou dos clubes, com os pais e familiares das atletas, com
diretores e professores de vários colégios e, principalmente, com as atletas.
Os motivos de estes dois projetos serem especiais na minha vida – e aqui não
149
farei distinção entre a profissional e a pessoal – talvez estejam na amplitude da atua-
ção profissional e no crescimento pessoal proporcionado pelas interações com sujei-
tos variados. Esses projetos de voleibol no Grajaú Tênis Clube e no Spot Club
Mackenzie, que denominarei, respectivamente, de projeto GTC e projeto SCM, permi-
tiram-me várias perspectivas em relação ao esporte.
Anteriormente ao trabalho nesses dois espaços, sobressaía à minha visão o es-
porte na sua importância como promotor de saúde e como caminho de inclusão
socioeconômica, principalmente econômica. Posteriormente, ou melhor, no desenvol-
vimento desses processos, pude perceber a magnitude da experiência esportiva para
a formação do ser humano e o quanto as instituições e os professores que nelas
atuam são importantes nessa ação de potencializar o esporte como espaço educacio-
nal.
Quando escrevo instituições, não quero atribuir a estas as propriedades da ação,
pois, como já escrevi anteriormente, Bourdieu (2003) alertava para o fato de que “ins-
tituições são mistificadas e passam a constituir-se em sujeitos históricos capazes de
formular e realizar seus próprios fins”, mas que sua atuação social é produto das ações
e reações dos agentes que as compõem. No caso dos clubes e escolas, existe a ação
dos agentes em níveis hierárquicos diversos, desde a direção das instituições, das
ações dos professores ou nas condutas dos demais funcionários de clubes e escolas.
Teodorescu (1984) esclarece:
Todos os jogos educam, mas não sempre positivamente, isto é, em confor-
midade com as exigências da sociedade na qual a criança, o jovem, se inte-
gra. Daqui a necessidade de dirigir as direcções da influência (educação)
através da actividade lúdica, em conformidade com os princípios éticos e a
concepção acerca da vida e do mundo da sociedade em que se integram a
criança e o jovem; isto impõe a presença do educador e do meio educativo,
mais ou menos institucionalizado (família, escola, diversas formas associativas
– grupos e outros micros sistemas sociais). (p. 22).
A intervenção do professor de educação física é fundamental para que o
esporte seja uma prática educativa, o que estes projetos puderam mostrar-me é que
essa atuação do profissional de educação física não deve orientar somente os proces-
sos de treinamento ou de ensino-aprendizagem, mas interferir na organização geral
do esporte e no seu consumo, ou seja, deve agir ética e esteticamente no campo dos
esportes.
Nesse sentido, como experiência de gestão esportiva, havia, nesses projetos, a
inovação de serem geridos administrativamente pelos mesmos professores responsá-
veis pela ação pedagógica propriamente dita. Portanto, aos professores que trabalha-
150
vam diretamente com as atletas não era reservada apenas a transposição do planeja-
mento institucional para a ação pedagógica. Os professores interferiam nas questões
éticas e estéticas da presença do esporte naqueles espaços, determinando que tipos
de estratégias administrativas e ações gerais seriam adotadas nesses clubes, como,
por exemplo: os professores decidiram abrir as equipes de voleibol para a participação
de atletas que não fossem sócias dos clubes, decidiram que a escola pública seria a
parceira principal do projeto de encontrar atletas, determinavam em que competições
participar e quais equipes formar.
Essa exigência do engajamento social dos professores de educação física nes-
ses dois projetos e o contexto experimental desses espaços foram fundamentais para
os seus êxitos.
A tendência de análise do êxito de um projeto esportivo é relacioná-lo à
quantidade de vitórias ou campeonatos conquistados por suas equipes. Mesmo aten-
do-se ao desempenho esportivo e atlético de uma equipe, estatisticamente pode ser
feita a comparação entre as equipes participantes de um campeonato e, dependendo
dos critérios que sejam escolhidos para determinarem o êxito das equipes, concluir
que a equipe campeã pode não ter sido a que obteve melhor êxito em todo o campe-
onato. Na maioria das vezes a colocação final em um certame é referência de compe-
tência da equipe e, conseqüentemente, de seus treinadores, atletas e dirigentes. Isso
vale para o sucesso e para o fracasso. Em grande parte, essas relações são
estabelecidas erroneamente, pois são muitos os fatores envolvidos na colocação final
de uma equipe esportiva em um campeonato e atribuir rótulos de competência ou
incompetência aos seus participantes por esse critério é inadequado e um dos princi-
pais fatores para a supervalorização da vitória em detrimento da participação esporti-
va, em suma, coloca em dúvida a capacidade inclusiva do esporte.
O sucesso de um projeto é determinado pelo alcance dos objetivos que para ele
são traçados em seu planejamento e nas reformulações desses objetivos no processo
de ação e desenvolvimento do mesmo. Em outras palavras, muitas vezes planeja-se
algo e, na sua execução, nota-se que os objetivos traçados estão aquém ou além das
possibilidades reais de execução. Nos dois casos, o processo reorganiza os objetivos
e, em ambos, o planejamento é falho. Embora, no primeiro caso, haja a compreensão
de que ocorreu um sucesso: planejou-se aquém das potencialidades de execução e,
por isso, os objetivos são atingidos e ultrapassados facilmente. E, no segundo caso,
um fracasso: esperava-se alcançar os objetivos e o processo mostra que estes foram
estabelecidos acima das possibilidades de execução. Portanto, há uma expectativa de
151
rendimento ou de êxito na ação de planejar. Há também a avaliação do rendimento
durante o processo de execução do projeto, sendo que, tanto a expectativa de resulta-
dos (planejamento), quanto o resultado obtido (avaliação) são relacionados aos crité-
rios que são utilizados para referenciar o sucesso. Nas equipes esportivas, é comum
associar o sucesso às vitórias ou colocação obtida ao final do campeonato. Este é um
comprometimento ético, ou seja, determinar quais os critérios que nortearão a execu-
ção das ações pedagógicas é estabelecer uma relação ética entre o trabalho que será
desenvolvido pelos agentes e os objetivos de um projeto. Por mais que um clube
esportivo tenha comprometimento com as vitórias, quando o trabalho esportivo é de-
senvolvido nas categorias de base, o referencial que estabelece o sucesso de suas
equipes não pode ser este.
Eticamente, os projetos GTC e SCM romperam com esse paradigma que vincula
os conceitos de bom trabalho e de sucesso às vitórias e conquistas de campeonatos.
Os critérios de sucesso dos projetos foram vinculados com a organização estrutural
das equipes, à quantidade de meninas atendidas, ao desenvolvimento físico-técnico-
tático das atletas e ao desenvolvimento psicológico e social das atletas.
A gente dá treino quase que igual para todas as atletas, faz aquele esquema
de todo mundo treinar quase a mesma coisa e jogam, de fato, as melhores.
Então a gente tem um grupo maior, treinando mais e numa melhor forma e
para isso nosso treino tem que ser melhor, o nosso planejamento tem que
ser mais adequado a nossa realidade, a gente tem que tratar as meninas
melhor do que eles tratam lá – pois, eles continuam a tratar mal, por que o
time de camisa por si só basta – então o cara pode dar “esporro”, xinga o pai
de atleta no meio do jogo, a gente não, a gente tem que tratar todo mundo
educadamente, então tem o sentido da educação dentro do nosso trabalho.
(Maurício Barros).
As vitórias e conquistas passaram a ser uma busca prazerosa e coletiva, ao
invés de ser um objetivo planejado em uma estância institucional administrativa ou um
critério de sucesso do projeto e, conseqüentemente, um sinal da competência dos
treinadores e atletas que compunham as equipes. Os processos de treinamentos, as
relações humanas e a evolução atlética das meninas passaram a ser o centro do
trabalho desenvolvido nesses projetos esportivos.
Porém, na entrevista com o professor Maurício Barros, idealizador desse projeto
de voleibol, há a afirmação de que as vitórias eram o grande objetivo do projeto:
Eu acho que tem a ver o que você fala, mas a vitória era o grande objetivo
[...] Então, isso que você falou, sobre a organização, as garotas felizes, opor-
tunidade para todo mundo, era um diferencial para que a gente tivesse a
mesma vitória que os caras tinham, Flamengo, Fluminense, Botafogo, a gente
passou a ter o melhor trabalho e até hoje eu ouço isso, que o nosso trabalho
152
era show. [...] mas, eu discordo de você quando você fala que a gente
desvinculou a vitória do sucesso, que a gente passou a ver o sucesso de
outra forma.
Mas, ao falar da nova geração com que trabalha na atual fase do projeto
GTC, meninas nascidas entre 1994 e 1992, o professor Maurício Barros reconhece
que já considera o trabalho como um sucesso, mesmo sem conseguir chegar às finais
dos campeonatos, como fazíamos anteriormente:
Mas é o que está acontecendo com essa nova geração, depois que eu retornei
ao trabalho de equipe. Essa geração foi última nos campeonatos de mirim
por dois anos e ano passado já ganhou mais do que perdeu e esse ano está
com tudo para entrar nas finais do campeonato. Por quê? O trabalho fixou e
eu estou na terceira temporada. [...] Com certeza, eu já considero essa equi-
pe um sucesso.
Para conseguir levar essa opção ética à frente, em meio às informações veicula-
das pela mídia (discutidas no capítulo 3) e pelas influências do neoliberalismo econô-
mico – não o princípio econômico defendido no início do século XX, mas a doutrina
que, a partir da década de 70 daquele mesmo século, passa a defender a total liberda-
de de mercado e a restrição da ação do Estado na economia – que passa a repercutir
na vida social cotidiana seus valores baseados no capitalismo e nas políticas econômi-
cas vinculadas ao conceito de mercado, foram necessários os usos das táticas por
parte de seus professores e o questionamento da forma hierárquica com que eram
geridas as instituições frente à influência neoliberal e midiática daquele espaçotempo.
Nilda Alves (2003) relata, influenciada por Certeau, Varela, Popkewitz, Foucault e
Lefebvre, entre outros, que a modernidade é estabelecida na metáfora da árvore, na
qual a estrutura hierarquizada e linear vai ser buscada, não só, pela ciência moderna
e, também, pelas organizações sociais. A autora escreve:
Neste campo, por excelência, vão ser estruturadas as normas de organiza-
ção burocrática, sempre linear e hierarquizada. Na organização social mais
ampla, nos chamados movimentos sociais, vai ser também buscada uma
estrutura que leva à construção dos mesmos dentro da metáfora da árvore.
Surgem, assim, os partidos políticos e os sindicatos, com o mesmo tipo de
estrutura.
Mas desde sempre, é preciso lembrar, esses processos não se dão sem
lutas. O tempo todo, os homens e as mulheres buscaram fugir da sua lógica,
através daquilo que Certeau (1994) chama de táticas de praticantes. (p. 2)
Ou seja, esses projetos esportivos tentaram fugir a lógica hegemônica daqueles
espaçostempos através do uso das experiências profissionais e pessoais de seus inte-
grantes. Ao invés de copiar os modelos de organização de outros clubes ou associa-
ções esportivas, foi criada uma forma de ação diferenciada, na qual as propostas de
trabalho não eram aceitas ou descartadas por estarem em acordo com o que era feito
153
pelas instituições em exposição na mídia ou preconizados em formulações teóricas
modelares, e sim pela coerência interna com as experiências pessoais e profissionais
de seus participantes.
A essa forma de trabalho denomino trabalho em rede, assim como diz Nilda Alves
no texto supracitado referindo-se à forma de tecer o conhecimento nomeado rede:
A grande diferença introduzida por esta nova forma está no critério dominan-
te na mesma e cujo referencial básico é a prática social. Por isto mesmo, se
encontra, nos processos de criação do conhecimento, a unidade
práticateoriaprática... (id., p. 3)
Na seqüência de seu texto, ainda escrevendo sobre a rede, Nilda Alves, traz a
contribuição de Lefebvre:
Nela é possível estabelecer um sem número de percursos para se ir de um
ponto a outro ponto, complexificando as lógicas de compreensão dos múlti-
plos espaçostempos do viver humano, exigindo que esses sejam percebidos
como não completamente ordenados, nunca, porque fruto de múltiplas de
diferentes práticas, em permanente mudança (id., ib.)
É justamente essa noção de práticateoriaprática, escrita assim por Nilda Alves
para exemplificar a unidade entre a teoria e a prática, com a prevalência da prática
como precedente à teoria, o elemento fundamental da organização dos projetos GTC
e SCM. A importância do saber empírico, nas decisões tomadas no decorrer da im-
plantação desses projetos, é essencial para explicá-los. Chamo de saber empírico
tanto os resultados das aplicações práticas das teorias – ou seja, os usos que são
feitos das teorias, mesmo que estas não sejam aplicadas ao seu destino primário –
quanto às teorizações das práticas cotidianas – as formas com as quais os professo-
res justificam suas ações – que não se encontram relatadas e reconhecidas como
conhecimento científico, porém são saberes ratificados por um grupo de professores
ou mesmo por um professor. Embora o conhecimento empírico seja relatado nas obras
pertinentes como um tipo de conhecimento que não precisa de comprovação científica
ou que é produzido através da tentativa e do erro na ação cotidiana das pessoas,
considero o saber ou conhecimento empírico gerado no exercício profissional do pro-
fessor de educação física um híbrido entre o científico e o empírico.
A educação física, seja na sua aproximação com a área da saúde ou da educa-
ção, é lócus de aplicações práticas das teorias de muitas outras áreas e de produção
de problemas práticos para a busca de soluções teóricas que possam ser aplicadas ou
reaplicadas na prática. Ou seja, a educação física é eminentemente prática, e a ela
servem tanto as teorias científicas quanto as práticas não fundamentadas cientifica-
mente, mas aceitas empiricamente.
154
Às vezes, em algumas áreas, o empírico
vale mais do que as teorias científicas que não
encontram eco entre seus praticantes. Muitos
desses saberes empíricos não se tornam co-
nhecimentos científicos pela incapacidade do
sistema da ciência moderna em perceber
linearidade, estrutura ou regularidade na sua
aplicação*, embora haja na atuação dos pro-
fessores uma base teórica, proveniente de di-
versos recantos da ciência, que fundamenta sua ação. Outro fator importante é a difi-
culdade de uso do sistema científico moderno nas ciências humanas, principalmente
na educação. Há que se tentar outro paradigma que possa captar, nesse saber empírico,
a complexidade das relações humanas e as influências de inúmeros fatores no produ-
to final da educação física. Portanto, a prática cotidiana dos professores de Educação
Física é riquíssima na aplicação prática das teorias e na possibilidade de realimenta-
ção a estas teorias, porém esse fenômeno escapa à percepção de muitos dos intelec-
tuais da área, que percebem na ação dos professores incoerências, despreparo teóri-
co e uma formação inconsistente.
Além de terem sido propostas éticas diferenciadas na forma de estabelecer a
organização da ação, esses dois projetos de equipes esportivas, GTC e SCM, foram
também esteticamente diferenciados, pois, para seu funcionamento, era necessário
que a relação estética dos participantes dos projetos com o esporte fosse outra que
não a encontrada na mídia e em outros setores do esporte institucionalizado.
O PROJETO GRAJAÚ TÊNIS CLUBE
O projeto Grajaú Tênis Clube surgiu da ação do diretor de voleibol, Nilton Amaral,
que decide contratar o professor Maurício Barros para organizar as equipes de voleibol
do clube. Com experiência de trabalho em clubes como a Associação Atlética Banco
do Brasil, Botafogo de Futebol e Regatas e Rio Forte, Maurício Barros organiza um
planejamento que visa o aumento do número de alunos na escolinha de voleibol e nas
equipes mirim e infantil.
As primeiras ações para concretizar o planejamento proposto foram as visitas às
escolas publicas e particulares dos bairros do Grajaú, Vila Isabel e Andaraí. Esse pro-
cedimento era executado no período de volta às aulas, entre os meses de fevereiro e
março. Com a repetição das visitas ao longo dos anos, alguns professores de educa-
* Vale a observação atenta do amigo Winston –
integrante do grupo de pesquisa “Linguagens de-
senhadas e educação” – quando diz que “a empiria
não se submete a essa adjetivação da mesma for-
ma que o conhecimento científico. Há o método
entre os dois e que estabelece diferenças qualita-
tivas.”
Ao invés de “consertar” o texto, quis trazer a fala
do Winston em diálogo com a minha escrita para
abrir uma conversa sobre esses preceitos que ins-
tituem a ciência.
155
ção física desses colégios passaram a nos indicar as meninas que consideravam com
alguma capacidade esportiva para a prática do voleibol.
MINHA ENTRADA NO PROJETO GTC
No final de 1993, eu trabalhava com as equipes de futsal do Grajaú Tênis Clube
quando o professor Maurício Barros convidou-me para ser responsável pela prepara-
ção física das equipes de voleibol. A relação interna entre os departamentos de volei-
bol e futsal não eram as melhores, os dois diretores estavam sempre em luta por
espaço – físico e político – no clube. A história do futsal e do voleibol eram distintas na
trajetória esportiva do clube e, especialmente naquele período, as diferenças eram
muito acentuadas. Enquanto o futsal classificava-se, ano após anos, para as finais dos
campeonatos que disputava, o voleibol terminava suas competições nas últimas colo-
cações. O empenho das equipes de voleibol era para fugir da última colocação. O
futsal, em 1992, havia disputado o campeonato brasileiro de clubes na categoria adul-
to e, em 1993, estava classificado para as finais do campeonato estadual juvenil e
adulto. Foi nesse contexto que aceitei o convite do professor Maurício Barros para
assumir o setor de preparação física do voleibol. Tentei, de várias formas, dificultar
esse acordo, pois deixar as equipes de futsal pelas equipes de voleibol do GTC era
impensável para qualquer professor que trabalhasse com preparação física. Mas, di-
ante da insistência do professor Maurício, fechamos um horário que permitiu que eu
trabalhasse nos dois departamentos, para desespero dos dois diretores, que faziam
questão que seus departamentos tivessem nada em comum. De fato, acho que fui o
único profissional que trabalhou nos departamentos de voleibol e futsal do clube simul-
taneamente. Como era previsto por todos no clube, naquele ano, 1993, o futsal foi
campeão juvenil e o voleibol terminou na décima posição entre onze times.
Com a conquista do campeonato, a equipe juvenil iria disputar o campeonato
brasileiro em 1994, porém, decidi não viajar com a equipe por motivos profissionais
em outros locais e optei por abandonar o departamento de futsal após o fim do cam-
peonato brasileiro, quando fomos vice-campeões. Havia um vice-diretor do clube, um
senhor espanhol, chamado Miguel, que, quando soube da minha decisão de “trocar” o
futsal pelo voleibol, quando me via, não se continha e falava com seu sotaque espa-
nhol:
156
Ao que eu respondia:
– Seu Miguel, o futsal não preci-
sa de mim. E não fala assim das meni-
nas do vôlei, quando eu for campeão
no vôlei o senhor vai ter que ir lá co-
locar a medalha no meu peito.
E o espanhol retrucava e saía
sorrindo:
– Campeão no voleibol? Aí eu
quero ver.
O PROJETO SPORT CLUB MACKENZIE
Desde 1992, desenvolvo o trabalho de iniciação esportiva ao voleibol no Sport
Club Mackenzie. A formação de equipes para a disputa de jogos não oficiais, aqueles
que não são organizados por federações ou confederações, consta como parte do
processo de transição do aluno das turmas de iniciação ao voleibol às turmas de aper-
feiçoamento. Nesse segundo estágio, o aperfeiçoamento, existe o aprofundamento
nas táticas de jogo e a participação em campeonatos promovidos por outras institui-
ções, ainda sem o caráter oficial, porém no formato de competição esportiva com a
consagração de uma equipe campeã, premiação com medalhas e os ritos tradicionais
do esporte. Sendo que a participação nesses certames visa conceder aos alunos a
oportunidade de vivenciar a competição esportiva como agentes ou sujeitos desse
processo, cedendo à participação e ao empenho nas ações de jogo maior importância
do que às vitórias e premiações alcançadas.
Já havia trabalhado com equipes de futsal para crianças no Sport Club Mackenzie.
Diferentemente do ocorrido no Grajaú Tênis Clube, como relatado anteriormente, não
fiz uma troca entre o futsal e o voleibol. Nos anos de 1989 e 1990, iniciamos um projeto
de futsal no Sport Club Mackenzie em parceria com uma empresa de seguros de
saúde e, posteriormente, com uma empresa de turismo. Transferi-me para o Clube de
Regatas do Flamengo, onde trabalhei do final de 1990 a 1992, quando aceitei a pro-
posta de trabalho nas categorias de futsal do Grajaú Tênis Clube.
Apresentei o projeto de implementação de uma escolinha de voleibol ao diretor
de esportes do clube, Nelson Cunha, que me conhecia da época em que havia traba-
157
lhado no clube entre 1989 e 1990. Aprovada a proposta de trabalho, passei a organizar
o espaço do clube destinado ao voleibol, trabalho que já se estende por 17 anos.
Porém, com o trabalho de equipes de voleibol feminino desenvolvido no Grajaú
Tênis Clube, o foco do empreendimento junto ao Sport Club Mackenzie fixou-se na
iniciação e aperfeiçoamento do esporte através da escolinha de voleibol.
Em 2002, a Federação de Volley-ball do Estado do Rio de Janeiro (FEVERJ),
emitiu uma nota oficial comunicando que a idade base das atletas para a participação
do campeonato mirim de 2003 seria alterada de treze para quatorze anos. As atletas
nascidas em 1989, que deveriam ascender para a categoria infantil, poderiam ser
mantidas na categoria mirim por mais uma temporada. Como, na escolinha do SCM,
havia um grupo de meninas nascidas em 1989 e 1990, fiz um acordo com o professor
Maurício Barros, do projeto GTC, para que pudesse inscrever o Sport Club Mackenzie
no campeonato da categoria mirim. O consentimento do professor Maurício Barros
fazia-se necessário, uma vez que o confronto entre as equipes dos dois projetos seria
inevitável naquele campeonato e como eu permaneceria como funcionário do Grajaú
Tênis Clube, somente poderia inscrever essa outra equipe com o seu consentimento,
pois, sem esse acordo, seria desagradável a minha participação como treinador de
outra equipe.
AS GERAÇÕES E SUAS MARCAS
O esporte é dividido em categorias que são estabelecidas pelas faixas etárias
dos atletas. Assim como nas escolas as turmas são separadas em relação às idades
dos alunos que as compõem, no esporte, as categorias tentam minimizar as diferen-
ças de maturação com o estabelecimento de categorias por idade. Mesmo assim,
essas diferenças permanecem, pois, se pegarmos a categoria infantil, por exemplo,
nela podem jogar os atletas que farão 14 ou 15 anos naquela temporada, ou seja, na
temporada de 2008 a categoria infantil é composta pelos atletas que nasceram nos
anos de 1994 e 1993. Portanto, um atleta que tenha nascido em dezembro de 1994 é
da mesma categoria de outro atleta que tenha nascido em janeiro de 1993, entre es-
ses dois atletas a diferença seria de dois anos. Nos campeonatos adultos, uma dife-
rença de dois anos é muito pouco considerada, mas, na categoria infantil, é bastante
relevante. Assim como nas escolas, nos clubes essas diferenças de maturação às
vezes são pouco consideradas dentro de uma faixa etária. Embora as diferenças não
sejam, somente físicas, nas fotos podemos perceber a discrepância física entre as
atletas. A pose clássica das equipes de voleibol nas fotos – as mais altas na fileira de
158
trás e as mais baixas sentadas ou ajoelhadas na fileira da frente – atrapalha a compa-
ração das atletas, porém, ainda podemos perceber essas diferenças maturacionais
entre as meninas – da imagem 55 – que tinham entre 13 e 12 anos em 1994.
Essas divisões por faixa etárias acabam por identificar as atletas de um clube
adicionando ao seu nome o ano do seu nascimento, por exemplo, se existem duas
atletas de nome Renata, nascidas em anos diferentes, aos seus nomes serão acres-
centados o ano em que nasceram. Se uma nasceu no ano de 1993 e a outra em 1994,
logo serão conhecidas como Renata 93 e Renata 94. O mesmo ocorre com as gera-
ções de atletas que passam a ser chamadas coletivamente pelos seus anos de nasci-
mento. Assim as atletas nascidas em 1982 são conhecidas “as 82” e as nascidas em
1997, “as 97”. Algumas dessas gerações são muito marcantes na história de um proje-
to como os GTC e SCM, igualmente na escola, por exemplo, a quinta série de 2001, ou
mesmo as turmas, a turma “508 de 2000”. No projeto GTC, trabalhei nas categorias de
base, com as gerações nascidas de 1979 a 1989. No SCM trabalhei com as gerações
nascidas de 1988 a 1993.
Pela experiência adquirida na fundação de projetos esportivos para crianças –
trabalhei em pelo menos seis –, as gerações que iniciam um projeto são as que reú-
nem as histórias das dificuldades da sua implantação e incluem o ano anterior, que
serve para o planejamento e preparação e os primeiro e segundo anos de funciona-
Imagem 55
159
mento do projeto. Nessa fase, as questões estruturais como horários de treinamentos,
relação do projeto com a direção do clube ou das federações, escolha dos professores
que estarão à frente dos treinamentos e organização da equipe, entre outros, são
fundamentais para a implantação de um projeto esportivo.
As duas ou três gerações subseqüentes são as que reúnem as memórias vincu-
ladas às conquistas e à melhoria do desempenho técnico das equipes. Quando não há
essa melhoria em resultados ou da qualidade técnica das atletas, a continuidade do
projeto está ameaçada. As vitórias não são o essencial nessa fase, mas contribuem
para a aceitação do trabalho desenvolvido, por isso é necessário que os critérios de
sucesso sejam definidos no sentido a valorizar o empenho de todos que trabalham no
projeto, ao invés das conquistas em campeonatos ou vitórias. As vitórias, assim como
os dados estatísticos obtidos nos jogos, podem servir para demonstrar o crescimento
global de uma estrutura esportiva, mas não deve ultrapassar essa utilização com a
possibilidade de frustrar e/ou desestimular os investimentos na continuação do proje-
to, pois nem sempre o trabalho adequado às faixas etárias que constituem as equipes
de base resulta em vitória.
OS PROJETOS E AS ESCOLAS
A seleção de atletas para os projetos GTC e SCM encontrava nas escolas e em
seus professores de educação física os parceiros ideais. Fazíamos um período de
testes para ingresso nas equipes dos clubes nas épocas do início dos períodos letivos
das escolas públicas e particulares, geralmente entre os meses de fevereiro e março,
e no segundo semestre, geralmente entre outubro e novembro.
A estratégia usada era irmos às escolas conversar com os professores de educa-
ção física sobre nosso projeto e determinávamos duas ou três datas de testes para
que os professores pudessem informar às meninas. Nesses dias, organizávamos uma
série de avaliações técnicas e físicas com as pretendentes às vagas oferecidas.
Embora muitos professores acolhessem nossa proposta, outros tantos a rejeita-
vam pela impossibilidade futura de contar com as atletas que passassem nos testes
em suas equipes escolares. Em algumas competições escolares, não é permitida a
presença de atletas federados, ou seja, que estejam registrados por clubes às federa-
ções esportivas estaduais. Algumas atletas também se ressentem dessa impossibili-
dade em continuar nas competições esportivas estudantis. Como é o caso de Larissa,
relatado em sua entrevista:
– Na escola, eu mesma não gostava muito, por que sendo federada eu
160
não podia jogar pela escola...
Por outro lado, alguns colégios particulares nos procuravam solicitando atletas
que quisessem receber bolsas de estudos para disputar os campeonatos estaduais e
nacionais que permitiam a presença de atletas federadas. Larissa foi uma dessas
meninas que conseguiu bolsa de estudos em um colégio do bairro do Méier, que inves-
tia em atletas federadas para a participação em competições estudantis. Ela pôde
desfrutar a ascensão de uma instituição de ensino pública para uma particular e relata
essa experiência assim:
– No primeiro ano, eu fui para lá e foi muito difícil sair de uma escola
pública para uma escola particular, assim, na pública era assim...
quer fazer faz, não quer não faz... e para mim foi muito difícil, eu
senti muito a diferença. Aí veio o segundo ano e foi mais fácil. O
terceiro ano já foi mais fácil. O que pesou mesmo foi o primeiro
ano.
Quanto às diferenças na convivência com os alunos do colégio público e do par-
ticular:
– Era... as pessoas... não sei se de todos os colégios particulares, mas
lá era grupinho, aqueles que têm dinheiro e aqueles que não têm. E,
para mim, era assim, já na escola pública não, todo mundo era ami-
go, todo mundo se conhecia, até por que morava todo mundo perto.
E sobre a importância da convivência com essa diferença:
– Ajudou-me a conviver com pessoas de nível social diferente do
meu e saber lidar com aquilo, respeitar, saber conversar ou até
mesmo sair... Ajudou-me muito nesse aspecto.
Márcia não pôde experimentar tal evolução, mesmo recebendo uma bolsa de
estudos integral, precisaria quitar uma única mensalidade a título de matrícula e não
possuía o valor cobrado nessa taxa de ingresso no colégio. Informado sobre essa
situação, propus ajudá-la, intercedendo junto ao clube para conseguir o montante ne-
cessário para o pagamento dessa taxa, mas Márcia não aceitou, sob a justificativa de
que não se sentiria confortável frente ao clube e que, pelo fato de morar em um bairro
distante, precisaria usar o ônibus para deslocar-se no trajeto entre sua casa e a esco-
la, o que seria impossível pelas condições financeiras de sua família.
– Eu parei de jogar porque eu passei a me dedicar mais à escola. E
também pela condição financeira, pois eu não tinha dinheiro de
passagem. Lembra que você queria me ajudar com uma cesta bási-
ca? Eu nunca aceitei. Eu disse que ia jogar até quando desse para
eu ir, independente de alguém me ajudar. Não que eu estivesse
menosprezando a ajuda, era um pouco de orgulho meu também.
161
Ao trocar a escola pública pela particular, os alunos perdem o direito ao RioCard
22
– um programa de custeio das passagens em transportes coletivos oferecidos aos
estudantes das redes públicas – e sem esse dispositivo, Márcia não poderia arcar com
os custos do transporte entre sua casa e o colégio.
É, pois eu tinha o RioCard, mas como era um colégio particular eu
iria perder esse direito. E não iria ter o dinheiro das passagens.
Essa questão financeira me separou do vôlei. Não só do vôlei. De
várias coisas (Márcia Santos).
AS DIFICULDADES EM SER ATLETA NO RIO DE JANEIRO
Outro argumento freqüentemente usado contra a presença do esporte na escola
é o que determina que essa não seja lugar de formar atletas, que essa tarefa é desti-
nada aos clubes sociais e esportivos e que os alunos que tenham algum “talento es-
portivo” devem ser encaminhados para tais instituições. Como professor de educação
física que trabalha em clubes sociais e esportivos, em outro momento diferenciarei um
do outro para melhor entendimento do que proponho, percebo que, no espaçotempo
atual, os clubes não possuem condições de arcar com as despesas dos atletas em
formação, na forma de ajuda de custo ou bolsa-atleta.
Um aluno que estude na rede municipal da cidade do Rio de Janeiro e que queira
desenvolver-se atleticamente em uma modalidade como o voleibol, por exemplo, pre-
cisará deslocar-se num percurso entre sua casa e seu local de treino, o clube. Supo-
nhamos que esse aluno tenha treze anos de idade e more em um bairro da zona da
Leopoldina, ele terá que se deslocar até o bairro de Botafogo ou da Tijuca para treinar
em um dos clubes que estão inscritos no campeonato carioca promovido pela Federa-
ção de Volley-ball do Estado do Rio de Janeiro, pois essa é a organização esportiva
vinculada no Estado do Rio de Janeiro à Confederação Brasileira de Volley-ball (CBV).
Esta, por sua vez, é a responsável por organizar o voleibol brasileiro junto à Federação
Internacional de Volley-ball, que é a entidade que organiza, junto ao Comitê Olímpico
Internacional, a parte de voleibol dos jogos olímpicos. Por que é necessário que ele
saia do seu bairro para ir até um desses clubes? A resposta é simples. Somente seis
clubes disputam o campeonato carioca de voleibol na categoria mirim masculino
23
e
nenhum deles está nas proximidades do bairro de origem de nosso aluno “talentoso”.
As razões por que tão poucos clubes estão disputando o campeonato de voleibol
22
Enquanto escrevo esta nota, passa na televisão uma reportagem na qual os alunos da rede pública de ensino realizam uma
manifestação contra o fim desse benefício que é concedido aos estudantes para o seu deslocamento, quando uniformizados e
no período de funcionamento da escola, não podendo ser utilizado durante os períodos de férias escolares e nem nos finais de
semana.
162
promovido pela FEVERJ são inúmeras. Posso citar algumas que já foram ouvidas por
mim em várias situações da minha atuação profissional: os clubes não têm como pa-
gar as taxas cobradas pela FEVERJ, os clubes não têm verbas para contratar um
professor de educação física para ser o professor/treinador das equipes e os diretores
não têm interesse em disputar o voleibol. O porquê da não participação nos clubes nos
campeonatos oficiais é uma pesquisa passível de ser feita junto aos clubes do municí-
pio do Rio de Janeiro e a FEVERJ. Portanto, nosso aluno que mora na zona da
Leopoldina teria que ter cerca de R$ 5,00 (cinco reais) diários para ir e voltar aos
treinos, isso se houver uma linha de ônibus que possibilite sua chegada, sem baldea-
ções, ao destino. Fora o custo financeiro, despenderia cerca de uma hora e meia em
cada parte do trajeto de ida e volta. Considerando que os treinos da categoria mirim,
geralmente, são no horário da tarde, a partir das 14 ou das 16 horas, e duram cerca de
duas horas, nosso aluno não poderia estudar no turno da tarde e teria que estar na
condução às 12h30min para que possa chegar no horário do início do treino, no caso
do primeiro horário e retornaria à sua casa aproximadamente às 18h, e convém lem-
brar que ele tem apenas treze anos de idade.
Os clubes que disputam os campeonatos vinculados às federações são de dois
tipos, o clube social, ou seja, um clube que tem uma sede e que possui um quadro de
sócios que, através de taxas de mensalidades, divide os custos de funcionamento do
clube. Basicamente são clubes de lazer que, quando promovem alguma atividade de
iniciação esportiva, têm o mesmo objetivo do trabalho realizado nas escolas, ou seja,
a apresentação do esporte às crianças e sua prática orientada, mas sem o intuito de
formar equipes para a participação nos campeonatos promovidos pelas federações
estaduais. Aparecendo um aluno que se destaque, na grande maioria das vezes, esse
aluno é encaminhado a outro clube, geralmente outro clube social com um número de
sócios maior, com mais verbas para investir em equipes esportivas e que desenvolva
o trabalho de equipes de base, como são chamadas as categorias de mirim, infantil e
infanto-juvenil no voleibol.
Porém, esses trabalhos de iniciação esportiva desenvolvidos nos clubes são pa-
gos, e são genericamente chamados de “escolinhas de esportes” ou somente
“escolinha”, os alunos pagam uma taxa mensal para freqüentarem as aulas e para a
utilização do espaço do clube, o que faz com que muitos “talentos” que aparecem
23
Os esportes ligados às federações são divididos em categorias etárias, no caso do voleibol a primeira categoria é a mirim
onde participam os atletas que completaram ou completarão treze anos no ano vigente. Nessa categoria estão inscritos seis
times para o campeonato do primeiro semestre de 2007 promovido pela FEVERJ, a saber: Fluminense F.C. - Niterói V.C. - C.R.
Flamengo - Macaé - Tijuca T.C. - Botafogo F.R.
163
nesses espaços sejam mantidos por lá, para que continuem a contribuir com a receita
do clube.
Muitos clubes custeiam, a partir da receita obtida pelas “escolinhas de esportes”,
o trabalho de equipes de base, fato cada vez mais raro no voleibol carioca, onde
mesmo alguns dos grandes clubes de futebol cobram dos atletas de suas equipes de
base uma taxa para pagamento de arbitragens ou dos custos de uniformização e ma-
terial da equipe.
O outro tipo de clube é o esportivo ou associações esportivas, geralmente essas
associações não trabalham com categorias de base e voltam seus interesses para o
esporte competitivo de alto rendimento, as equipes profissionais, que promovem, atra-
vés do esporte, as marcas, produtos ou serviços de patrocinadores. Muitas vezes,
essas associações não possuem sede esportiva, alugando o espaço dos clubes soci-
ais ou outras instalações esportivas para seus treinos e jogos. Essas organizações
compunham, com os clubes sociais, uma seqüência, na qual o atleta participava de
equipes de base em clubes sociais e depois eram captados pelas equipes profissio-
nais. Essa captação dos atletas formados nas equipes de clubes sociais, que não
dispõem de recursos além do gerado pelo seu quadro social e pelo pagamento das
atividades esportivas praticadas no seu espaço, pelas equipes patrocinadas por gran-
des empresas, ocasionou, no meu modo de entender, um dos fatores do desapareci-
mento do esporte adulto em clubes sociais, pois a verba destinada ao pagamento de
ajuda de custo para os atletas adultos e juvenis não conseguia competir com os orça-
mentos das associações esportivas e as disputas tornavam-se desiguais pelo aporte
de recursos das associações esportivas em relação aos clubes sociais.
Ou seja, um dos fatores da diminuição da participação dos clubes nos campeo-
natos das equipes de base pode ter sido ocasionado por esse aparecimento das equi-
pes patrocinadas que não investem em categorias de base e recrutam os atletas for-
mados nos clubes sociais oferecendo salários e melhores condições de treinamento
para estes atletas.
Sem a possibilidade de competir em igualdade de investimentos com as grandes
equipes patrocinadas, os clubes sociais reduzem os investimentos nas categorias de
base e causam a escassez de espaços esportivos para a prática do esporte de forma-
ção de atletas. Essa possibilidade também poderia ser estudada nos arquivos da
FEVERJ, recuperando os clubes participantes dos campeonatos anteriores aos anos
80 e a partir desses, quando ocorre o aparecimento das associações esportivas no
voleibol do Rio de Janeiro, e pelos relatos de pessoas que viveram esse espaçotempo
164
do voleibol carioca. Porém, em consulta informal com um funcionário da FEVERJ,
tomei conhecimento da perda de muitos documentos armazenados no suporte papel
em uma inundação na sede da FEVERJ. Marchi Jr também pode ser consultado em
sua tese de doutorado por fazer um estudo particular do que aconteceu nessa frontei-
ra entre o esporte amador e o profissional, com o intuito de se encontrar outras pistas
para o entendimento desse fenômeno.
O fato é que nosso aluno ou terá que pagar para ingressar em uma escolinha ou
contribuir com alguma taxa para o sustento da equipe para o qual foi indicado. Sem
contarmos o custo com o seu deslocamento e com material esportivo. Portanto, a
partir desse breve relato, fica fácil imaginarmos as dificuldades apresentadas ao jo-
vem atleta para que continue em sua caminhada.
O governo municipal tenta organizar esse processo com a instituição dos clubes
escolares, que servem de opção para os alunos da rede municipal que possam ser
identificados como “atletas de capacidade”
24
ou mesmo os que querem desfrutar de
um trabalho de iniciação esportiva ou de prática esportiva por si só. Nesse último caso,
o clube escolar cumpre parte da sua função, pois reúne os alunos dos colégios de
determinada região, porém com pouca participação de alunos, pois não possuem, a
meu ver, infra-estrutura para atender aos alunos e aos professores, já que, por atende-
rem às escolas de uma ampla região, obrigam os alunos aos deslocamentos
dispendiosos e perigosos, visto a violência urbana que envolve as grandes cidades
brasileiras.
A ESCOLA E A FORMAÇÃO DE ATLETAS
Parte das críticas recebidas em se trabalhar o esporte na escola ou clubes esco-
lares com o intuito de contribuir na formação de atletas de alto nível tem sua razão no
argumento de que essa função exercida pelos clubes sociais e dificultada pelo apare-
cimento das equipes adultas patrocinadoras, como exposto anteriormente, não deve
ser uma obrigação da escola ou do governo, e sim da iniciativa privada. Nesse raciocí-
nio, as empresas patrocinadoras de times devem desenvolver projetos sociais a partir
do esporte que possam oportunizar aos jovens o treinamento necessário para atingir o
24
Prefiro esse termo à expressão talento esportivo, caracterizando uma diferença entre capacidade e potencial, onde a capa-
cidade seria entendida como um determinado desempenho que o atleta poderia alcançar e, potencial, o desempenho que
apresenta no momento. Embora a previsão do futuro esportivo de uma criança seja extremamente difícil de ser feita, prefiro
não condicionar a avaliação de sua capacidade futura de rendimento ao seu potencial momentâneo, pois inúmeros fatores são
relevantes nesse desenvolvimento até sua fase adulta de alto rendimento. Portanto, é precoce identificar uma criança como
futura atleta, assim como, é precoce identificá-la como uma não-atleta. Para solucionar essa questão, de difícil resposta, faço
a opção de considerar como atleta de capacidade todas aquelas crianças que desenvolvem o desejo de participação esportiva.
165
alto nível de desempenho. Na realidade, esses projetos já existem, mas recebem, em
suas dependências, os alunos provenientes de escolinhas de clubes sociais e de colé-
gios particulares que desenvolvem oficinas esportivas ou equipes estudantis, dificul-
tando a participação de alunos da rede pública.
Em parte, concordo com esse último argumento contra o esporte nas escolas,
pois a finalidade desse trabalho esportivo escolar que proponho não é a
profissionalização dos atletas provenientes do ensino público ou a formação de mão-
de-obra para o mercado esportivo. No entanto, não podemos negar que, assim como
as artes, o esporte é um espaço de ascensão socioeconômica para os jovens e esse
caminho é obstruído pela desigualdade inicial de suas condições, se comparadas as
de outros jovens que provêm de uma realidade socioeconômica mais elevada.
No quadro a seguir, a relação dos clubes que disputaram os campeonatos pro-
movidos pela Federação de Volley-ball do Estado do Rio de Janeiro no primeiro se-
mestre de 2008:
categorias masculino feminino
Mirim
até 13 anos
Botafogo F. R.; C. R.
Flamengo; Fluminense F. C.;
Grajau T. C.; IBBN; Niterói V.
C.; Tijuca T. C.; ACM
Botafogo F. R.; C. R.
Flamengo; Fluminense F. C.;
Niterói V. C.; Tijuca T. C.
Infantil
14 e 15 anos
Botafogo F. R.; C. R.
Flamengo; Fluminense F. C.;
Com. 5 de julho; Grajau T. C.;
AABB/Tijuca; Niterói V. C.;
Tijuca T. C.
Botafogo F. R.; C. R.
Flamengo; Fluminense F. C.;
Niterói V. C.; Tijuca T. C.;
CSN
Infanto-Juvenil
16 e 17 anos
Fluminense F. C.; Botafogo F.
R.; Niterói V. C; Quissamã; C.
R. Flamengo; Tijuca T. C.;
Vassouras; Grajaú T. C.;
Magnatas F. S.
Botafogo F. R.; C. R.
Flamengo; Fluminense F. C.;
Niterói V. C.; Quissa;
Tijuca T. C.
Juvenil
18, 19 e 20 anos
C. R. Flamengo; Fluminense F.
C.; Fm Esp/Campos; Tijuca T.
C.; UFRJ
Botafogo F. R.; C. R.
Flamengo; Fluminense F. C.;
Fm Esp./Campos; Tijuca T. C.;
Magnatas F. S.; Cordeiro
A convocação dos clubes para a assembléia geral da Federação de Volley-ball
do Estado do Rio de Janeiro para a apresentação das contas relativas ao fechamento
da contabilidade do ano de 2007, publicada através do site da federação, solicita a
presenças dos clubes:
Fonte: Federação de Volley-ball do Estado do Rio de Janeiro.
166
O Presidente da FEVERJ de acordo com o Artigo 18, Letra “A”, N.º 01 da
Seção II dos Estatutos desta Entidade convoca os filiados (FM Esportes Cam-
pos, Botafogo F. R., C. R. Flamengo, Fluminense F. C., Grajaú T. C., E. C.
Vassourense, AM Prosport/Macaé, Niterói V. C. e Tijuca T. C.) para a Assem-
bléia Geral Ordinária a ser realizada no dia 01/02/2008 na FEVERJ (Rua
Prof. Eurico Rabelo, s/nº. Portão 18 Parque Aquático Julio Delamare) às
19:00 horas em 1ª convocação e às 19:30 horas em 2ª convocação com
qualquer freqüência. (FEVERJ, 2008). (Grifo meu).
Com base nesses últimos dados apresentados, os clubes participantes dos cam-
peonatos e os clubes que têm direito a voto nas assembléias gerais ordinárias da
FEVERJ, podemos perceber que o voleibol de clubes na Cidade do Rio de Janeiro
depende dos clubes ditos “de camisa” ou de futebol, Botafogo F.C, Fluminense F.C e
C.R. Flamengo, que disputam todas as categorias até infanto-juvenil nos dois naipes,
feminino e masculino. O Tijuca Tênis, clube tradicional do bairro que o batiza com seu
nome, assim como, Flamengo e Fluminense, tem equipes do mirim ao juvenil, no mas-
culino e feminino. O Grajaú Tênis Clube, com participação de mirim a infanto-juvenil,
prossegue na sua trajetória de sucesso, mantendo-se entre os clubes de maior estru-
tura da cidade, apesar das dificuldades na gerência do projeto, pois, para que o clube
possa disputar essas três categorias, o custo é de R$ 3.500,00 (Três mil e quinhentos
reais), que são pagos com a cobrança de mensalidades no valor de R$ 60,00 (sessen-
ta reais) das 45 atletas envolvidas nas equipes do clube. O valor excedente é custeado
através da renda da escolinha de voleibol do clube. Expediente semelhante é utilizado
pelo Niterói Vôlei Clube, que compete nas categorias de mirim a infanto-juvenil, nos
dois naipes, e custeia seus gastos com a cobrança de mensalidades que chegam até
a R$ 120,00 (cento e vinte reais).
ESPORTES E OS ESPAÇOS SOCIAL E GEOGRÁFICO: A CIRCULAÇÃO DO HABITUS
Defendo o valor educacional do envolvimento em equipes esportivas e da partici-
pação em competições esportivas como atleta. Considero uma das melhores experi-
ências educacionais que um pré-adolescente ou adolescente pode vivenciar, como
relata Márcia Santos sobre a importância da equipe de vôlei em sua vida:
– Ajuda, ajuda muito, me ajudou muito. Foi muito importante para
mim nessa época. [...] Tem esse poder de transformar, de tirar da
rua para colocar com o objetivo de querer crescer, de coletivida-
de, a pensar no outro. Melhora 100%, 200%. [...] fiquei mais res-
ponsável, fiquei mais concentrada nas coisas também. Eu era meio
rebelde [...] era desobediente, mas comecei a pensar mais no que
fazia, pois tinha um objetivo na vida que era ser jogadora de vôlei
[...] Lá (no clube) era coletividade. Era físico, a gente participava,
interagia, era diferente da sala de aula.
167
No entanto, a grande parcela da população que estuda em escolas públicas no
Rio de Janeiro está alijada dessa oportunidade. Parte dessa imensa exclusão é resul-
tado da falta de projetos esportivos dentro das escolas e a partir dela. Bourdieu (2004)
demonstra a projeção do espaço social no espaço geográfico. Suas teorias mostram
que uma determinada classe de elevado nível social tende a se encontrar agrupada
proximamente no espaço geográfico e, por isso, passa a ter à sua disposição melhor
qualidade e quantidade dos serviços públicos e privados, em contrapartida, os espa-
ços geográficos ocupados por grupos sociais mais populares estão fadados a terem
menos atenção do Estado. Embora possam encontrar-se e terem contato no espaço
geográfico, os agentes permanecem separados pelo espaço social.
As pessoas próximas no espaço social tendem a se encontrar próximas –
por opção ou por força – no espaço geográfico, as pessoas muito afastadas
no espaço social podem se encontrar, entrar em interação, ao menos por
breve tempo e por intermitência, no espaço físico. (p. 153).
Por esse prisma, pode-se entender que as equipes esportivas em clubes aproxi-
mam geograficamente atletas provenientes de vários espaços geográficos e sociais
diferentes e, conseqüentemente, com habitus diferentes. Essa talvez seja a grande
contribuição do esporte em clubes sociais e esportivos, a circularidade cultural encar-
nada, ou seja, a circulação do habitus.
Quando os jovens
25
provenientes de espaços geográficos populares encontram
e interagem com os jovens de espaços geográficos elitizados, encontram-se também
as relações de capitais, sejam eles, segundo Bourdieu (2004), econômico, cultural ou
simbólico. Essa interação não é efêmera como acontecem nos encontros momentâ-
neos entre as pessoas afastadas no espaço social. Quando bem mediadas pelos pro-
fessores e diretores dos clubes, há a possibilidade de permanência desses jovens
menos capitalizados na equipe, mesmo que existam exigências econômicas, culturais
ou simbólicas para a freqüência naquele espaço. Porém, às vezes não há essa medi-
ação dos profissionais do clube e em outras esses jovens não possuem o mínimo
capital necessário para a sua estabilização nesse espaço de encontro que são as
equipes esportivas.
A diretora Carmem resume as dificuldades que estes alunos enfrentam:
– Ele não está acostumado com o treino, ele não tem como pagar a
passagem para ir. E isso não é só em relação ao clube escolar, às
vezes a gente vê alguns alunos despontando para o futebol e o
garoto vai fazer um teste e, a gente sabe que isso aí é uma máfia,
25
Aqui talvez fosse melhor o uso do singular para ressaltar a imensa exclusão a que estão submetidos os jovens carentes de
capitais quando o assunto é participação em equipes esportivas de clubes sociais.
168
não é? O garoto às vezes não tem uma alimentação correta, tem
que acordar de madrugada para ir treinar.
As sujeitospersonagens descrevem como foi chegar ao clube para realizar o teste
ou para os primeiros dias de treino:
– Fiquei um pouco com medo, pois eu não sabia jogar, eu jogava um
voleizinho básico, três cortes, um corte, recorde –
são três brin-
cadeiras feitas com a bola de voleibol, mas sem precisar de qua-
dra, rede e das regras do voleibol –
[...] Ah, eu fiquei meio retraí-
da, todo mundo já sabia jogar e tal. Todo mundo tinha situação
financeira razoável para boa, classe média, alta, média-alta, sei
lá.... (Janaína Silva). (Grifo meu).
– Ah, eu estava nervosa. E não sabia se ia passar ou não. [...] A minha
impressão é que era muito difícil. O treinamento era muito difícil.
Dar a passada de ataque então.... Era muito difícil, por que eu pu-
lava em um pé só, lembra? Para mim eu não iria conseguir nunca.
(Larissa Evaristo).
– Não, eu achava que não iria passar, por que eu jogava por jogar,
mas lá dentro era outra coisa, não é? Muito difícil, eu nunca apren-
di o rodízio direito. –
imitando os gritos dos professores e atletas
– Márcia vem para cá... Márcia vai para lá. Eu nunca aprendi direito
aquilo. –
referindo-se aos posicionamentos na quadra.
(Márcia San-
tos). (Grifo meu).
Vou propor algumas premissas, seguidas de exemplos fictícios e situações
simuladas para tentar explicar esse raciocínio:
Premissa 1 – Penso na equipe esportiva como um lugar de encontro de agentes
de diferentes espaços sociais e geográficos que portam, cada qual, seu volume global
de capitais.
Ex: É só imaginarmos um menino que mora em um bairro da zona da Leopoldina,
por exemplo, Olaria, e que joga voleibol no Fluminense, no bairro das Laranjeiras.
Vamos estabelecer que sua família sobreviva com três salários mínimos de referência
mensais. Digamos que tenha 15 anos de idade e é a primeira vez que ele vai treinar
em um clube social-esportivo, antes ele só treinava na quadra do seu colégio ou na
quadra do clube escolar, ambos de piso de concreto e sem cobertura. E por fim, esta-
beleceremos que ele seja negro e estudante da rede pública de ensino.
Conclusão: Seria excelente que esse menino pudesse ter contato duradouro com
esse ambiente e o habitus que é nele requerido. Porém, dificilmente conseguiria ir
adiante em sua experiência esportiva, pelo distanciamento do seu volume global de
capitais do que ali é exigido, mesmo que possua condições técnicas e físicas de per-
manecer na equipe. A estrutura do clube, através de seus diretores, pode ajudá-lo a
resolver problemas da ordem econômica fornecendo-lhe uma ajuda de custo para o
169
deslocamento entre sua casa e clube, com materiais esportivos e com alimentação an-
tes ou após os treinos. Os professores podem ajudá-lo em relação ao capital cultural,
explicando-lhe como funcionam as interações sociais naquele espaço. Quanto ao capi-
tal simbólico desse atleta, que aqui seria negativo – pelo o fato de ser negro e pobre em
meio a um clube de origem aristocrática
26
– não deve ser negligenciado por professores
ou diretores que podem trabalhar as questões das diferenças junto ao seu grupo de
atletas, ou pelo menos não deixar que esse capital, ou a falta dele, interfira nas relações
professor/treinador-aluno/atleta e atleta-atleta.
Premissa 2 – O espaço dessa reunião de agentes é delimitado por duas frontei-
ras, a do clube e a do esporte que se treina. Tanto os clubes variam nas exigências de
capitais para que as pessoas o possam freqüentar, quanto os esportes precisam ser
relacionados com o espaço social que nele se manifesta e as relações com o corpo
que estabelece.
Ex: O mesmo menino do exemplo anterior, porém trocaremos o clube e o espor-
te. Vamos dizer que ao invés do clube Fluminense, ele fosse treinar no clube Social
Ramos Clube, um clube da zona da Leopoldina, e que ao invés de voleibol fosse
treinar futebol.
Conclusão: Embora seu volume global de capitais possa suprir com mais
propriedade o que é exigido por aquela estrutura – um clube pequeno e de freqüência
menos elitizada – se, por exemplo, inserirmos o capital econômico como fundamental
nessa relação, ou seja, o atleta deverá arcar com os custos de uma mensalidade e
deverá comprar material específico para os treinos e jogos, sua condição de participa-
ção estaria ameaçada, assim como pelas questões do capital cultural e simbólico, pois
o pagamento de mensalidade influenciaria na composição do grupo, tendendo a reunir
as crianças ou adolescentes provenientes das famílias com maior capital econômico e
cultural da região.
Lembro-me de que, quando fui à escola em que Larissa Evaristo estudava para
divulgar o período de testes para o ingresso na equipe mirim do projeto SCM, a profes-
sora Marly perguntou-me sobre a necessidade do pagamento de mensalidades por
parte das atletas que fossem selecionadas, pois outros professores/treinadores havi-
am ido até a escola com o propósito de selecionar atletas para projetos semelhantes,
que iniciavam sem a cobrança de taxas, mas que depois de um ou dois meses passa-
vam a exigir desses alunos o pagamento de mensalidades para a permanência nas
26
Como afirma Filho (2003) comentando sobre o Fluminense Football Club do começo do século XX “Para alguém entrar no
Fluminense tinha de ser, sem sombra de dúvida, de boa família. Se não ficava de fora, feito os moleques do Retiro da Guanabara,
célebre reduto de malandros e desordeiros”.(p. 36).
170
aulas ou treinamentos. Segundo a professora Marly, os alunos que não podiam arcar
com essas taxas sentiam-se frustrados pela falta de condições financeiras da família em
custeá-las e mudavam seus comportamentos na escola, portando-se de maneira agres-
siva e hostil, evidenciando, segundo a professora, que haviam sido vítimas de uma exclu-
são que não levava em conta as suas condições afetivas, ou mesmo sua capacidade,
em relação aquela atividade e sim a sua condição econômica.
Bourdieu (2004) afirma que, para o estudo dos esportes, seria necessária a aná-
lise de cada esporte e o valor distintivo que recebe e a posição que ocupa nesse
campo. Para tal, Bourdieu propõe o estudo de indicadores como: a identificação da
distribuição dos praticantes de um esporte no espaço social e as características soci-
ais dos dirigentes. Ainda considera importante estudar a relação que essa prática favo-
rece ou exige do corpo, pois:
As práticas mais distintivas são também aquelas que asseguram a relação
mais distanciada ao adversário, são também as mais estetizadas, na medida
em que, nelas, a violência está mais eufemizada, onde a forma e as formali-
dades prevalecem sobre a força e a função (p. 209)
Embora tenha havido uma difusão pelo espaço social de alguns esportes, as
práticas esportivas têm maior ou menor adesão em certos setores do espaço social do
que em outros. Podemos observar esse fenômeno no Brasil, pelo menos nas capitais
dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, no que diz respeito ao futebol de campo e
ao voleibol. Através de minha experiência, posso dizer que a prática desses esportes
estende-se por um maior espectro social do que ocorria na época em que eu os prati-
cava. Minha participação nesses dois espaços esportivos pode ser dividida em dois
estágios, o primeiro quando os praticava como atleta e o segundo quando os pratica-
va/pratico como profissional da educação física. A participação como atleta de voleibol
pode ser situada entre o fim da década de 70 e o começo da de 80 do século passado
e como atleta de futebol de campo entre os anos de 1982 a 1990, embora esses
esportes tenham permeado vários espaçostempos de minha vida.
Como profissional do esporte, situo entre os anos de 1990 e 1993 a minha parti-
cipação no futebol de campo e de 1994 até os dias atuais a atuação profissional no
voleibol, embora acompanhe o cotidiano de vários esportes através dos relatos de
amigos de profissão que trabalham em diversos setores do treinamento de equipes.
As direções da expansão da prática do futebol de campo e do voleibol são inver-
sas em relação ao espaço social. Enquanto tornar-se atleta de voleibol em 1978 era
uma ação pertencente aos agentes dos espaços sociais elitizados econômica e cultu-
ralmente, tornar-se atleta de futebol de campo era uma ação que pertencia aos agen-
171
tes dos espaços sociais mais populares. O que ocorria também em relação aos profissi-
onais que trabalhavam com essas duas práticas esportivas. Hoje em dia, podemos cons-
tatar a presença maciça da prática do voleibol em variados espaços geográficos do Rio
de Janeiro, conseqüentemente em variados espaços sociais segundo a relação que
Bourdieu faz entre esses dois espaços, desde as praias e clubes da zona sul até as
praças e clubes da zona norte, onde sua prática era ínfima ou inexistente e, por outro
lado, constatamos o surgimento de jogadores profissionais de futebol de campo prove-
niente de espaços sociais elitizados dos quais não era comum serem originários.
Com a vivência nesses 30 anos como atleta em clubes e professor de esportes,
posso constatar a grande diferença da procura desses esportes da época em que era
atleta para a época atual, embora ainda haja uma significante diferença na presença
do futebol de campo e do voleibol no espaço social, há entre os praticantes de futebol
de campo e voleibol uma expansão no que diz respeito a pertença desses indivíduos a
um espectro desse espaço. Ou seja, embora o futebol de campo ainda apareça nas
áreas geográficas menos favorecidas economicamente e o voleibol nas mais
favorecidas, o número de praticantes – ou pelo menos o número de indivíduos que
tentam ser atletas – do futebol de campo cresceu nos espaços sociais mais capitaliza-
dos e o voleibol nos espaços sociais menos capitalizados (KASZNAR, 2002, p. 45-ss).
Não vou discutir os fatores que propiciaram essas difusões, quero apenas discutir uma
questão relevante em relação a esse crescimento de crianças e adolescentes que
sonham em serem atletas de uma ou outra dessas modalidades esportivas. A questão
principal é que esses esportes difundiram-se na prática ou no desejo de praticá-los
das crianças e adolescentes, porém os espaços geográficos e, principalmente, o habitus
e os capitais globais necessários para freqüentar esses espaços mudaram pouco com
o tempo. O voleibol continua a ser um esporte que contribui para a elitização do indiví-
duo que dele participa e o futebol de campo contribui para popularizar o indivíduo que
nele se insere. Ou talvez possa ser formulado de outra maneira: o voleibol e o futebol
de campo continuam exigindo habitus distintos aos seus atletas.
O habitus é ao mesmo tempo um sistema de esquemas de produção de
práticas e um sistema de esquemas percepção e apreciação das práticas. E,
nos dois casos, suas operações exprimem a posição social em que foi
construído. (BOURDIEU, 2004, p. 158).
A partir das entrevistas com as sujeitospersonagens, pude estabelecer que a
possibilidade de freqüentarem locais de maior exigência de capitais culturais e econô-
micos fez com que elas fizessem a crítica do que delas era exigido cotidianamente. As
três remeteram comparações com o habitus das comunidades em que vivem e as
172
experiências que as fizeram aprenderem novas formas de portarem-se no mundo.
– E no clube, eu aprendi a como me portar em um jogo, como eu devo
me portar perante os outros, comportamento diante dos outros,
acho que isso foi importante. É outra educação. Aqui na escola
você não aprende postura, postura no sentido de incentivo, de ba-
talhar, lá no clube você aprende postura. (Márcia Santos).
Acho que elas –
meninas com quem estudava no colégio público –
nunca tiveram a oportunidade de conhecer pessoas que nem eu
conheci.... essas coisas. Hoje em dia, eu conheço gente que gosta
das mesmas coisas que eu, que freqüenta os mesmos lugares que
eu e, se não fosse o vôlei, eu iria conhecer só aquelas pessoas da
minha rua, do meu colégio, até por que eu nem teria estudado em
um colégio particular. E iria ser aquelas pessoas do colégio e da
minha rua. (Larissa Evaristo) (grifo meu).
O clube foi muito mais importante na minha vida do que a escola. A
escola foi uma obrigação minha estar lá aprender. O clube não, foi
uma oportunidade que surgiu. [...] Se não fosse o esporte talvez eu
não estivesse estudando em uma faculdade, quase me formando,
tendo uma profissão. (Janaína Silva).
Uso a presença de atletas bem sucedidos em esportes para os quais não possu-
em o habitus ou os capitais de pertencimento àquele campo, inclusive os simbólicos,
como a presença do afro-americano Tiger Woods no golfe, do jovem de classe média
Kaká no futebol de campo, da afro-descendente Daiane dos Santos na ginástica artís-
tica ou Fabiana Murer no salto com vara do atletismo, para justificar a necessidade da
inserção de programas de esportes aliados à rede de educação. Pois essa presença
esporádica ou isolada do atleta em um esporte, mesmo sem possuir, a princípio, o
habitus necessário para tal, não ocorria com tamanha facilidade na direção elitista,
quanto ocorria na direção popular. Um jovem de classe alta poderia ser jogador de
futebol, porém um jovem de classe baixa não chegava a ser jogador de tênis
Portanto, conhecer outros espaços com outras lógicas e exigências é importante
para o crescimento pessoal. Mas às vezes tudo funciona tão diferente do que se está
acostumado a fazer que se torna impossível que se permaneça tempo o suficiente
nesses espaços, como diz a letra da música de Djavan: Sabe lá? O que é não ter e ter
que ter para dar?
27
AS DIFERENÇAS GEOGRÁFICAS E SOCIAIS ENTRE OS PROJETOS GTC E SCM
Embora implantados em consonância ética e estética, os projetos GTC e SCM,
divergiram em muitos aspectos e considero importante a identificação e estudo des-
27
Trecho da música Esquinas do compositor Djavan Caetano Viana, lançada no álbum Lilás em 1984 pela gravadora Sony.
173
sas diferenças para que as implementações de projetos de equipes esportivas possam
servir-se desses conhecimentos.
A proximidade geográfica entre os bairros do Grajaú e do Méier esconde uma
fronteira social que pode ser identificada nos blocos de bairros utilizados para a admi-
nistração pública, por exemplo, a Secretaria Municipal de Educação.
Enquanto o bairro do Grajaú está incluído na 2ª CRE, o Méier faz parte da 3ª CRE.
Podemos ver nas relações de bairros que formam essas CREs que, enquanto o Grajaú
está junto aos bairros da Tijuca e zona sul carioca, tidos como de maior capital econômi-
co, o Méier encontra-se reunido aos bairros mais populares:
Imagem 56: Mapa da cidade do Rio de Janeiro, marcando os bairros do Méier e do
Grajaú.
Imagem 57: Mapa das Coordenadorias Regionais de Educação – CRE.
174
2ª CRE – Glória, Flamengo, Laranjeiras, Catete, Urca, Cosme Velho,
Botafogo, Humaitá, Praia Vermelha, Leme, Copacabana, Ipanema, Rocinha,
Vidigal, Gávea, Leblon, Jardim Botânico, Alto da Boa Vista, Horto, Tijuca, Pra-
ça da Bandeira, Vila Isabel, Andaraí e Grajaú.
• 3ª CRE – Higienópolis, Engenho Novo, Rocha, Riachuelo, Del Castilho,
Méier, Maria da Graça, Inhaúma, Engenho da Rainha, Tomás Coelho,
Bonsucesso, Piedade, Sampaio, Jacaré, Cachambi, Todos os Santos, Pila-
res, Lins, Engenho de Dentro, Água Santa, Encantado, Abolição, Jacarezinho
e Alemão. (http://webapp.sme.rio.rj.gov.br/jcartela/publico/pesquisa.do?cmd=
listCres)
A sede da 2ª CRE encontra-se no bairro da Lagoa, bairro nobre da zona sul do
Rio de Janeiro, enquanto a 3ª CRE tem a sua sede no bairro do Engenho Novo, bairro
do subúrbio da cidade, assim como o Méier, pois é como são chamados os bairros
cortados pelos trilhos da companhia brasileira de trens urbanos.
O Grajaú é incorporado à IX Região Administrativa da prefeitura, que inclui os
bairros de Vila Isabel, Andaraí e Maracanã. O Méier faz parte da XIII Região Adminis-
trativa junto a outros 15 bairros. Em um estudo feito pela prefeitura da cidade do Rio de
Janeiro, em 1991, as regiões da Tijuca/Vila Isabel – onde está incluído o Grajaú– e a
região do Grande Méier, obtiveram as seguintes classificações em relação ao índice
de desenvolvimento humano:
Tijuca/Vila Isabel
A Região está classificada como de alto desenvolvimento humano segun-
do o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH=0,914), e ocupa a 2ª posição
quando consideradas todas as 12 regiões do Plano Estratégico. Entre as
dimensões que compõem o IDH, é a 2ª colocada em longevidade (IDH-
L=0,837), 1ª em educação (IDH-E=0,983) e 2ª em renda (IDH-R=0,922).
Grande Méier
A Região está classificada como de alto desenvolvimento humano segun-
do o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH=0,858), e ocupa a 3ª posição
quando consideradas todas as 12 regiões do Plano Estratégico. Entre as
dimensões que compõem o IDH, é a 4ª colocada em longevidade (IDH-
L=0,804), 3ª em educação (IDH-E=0,955) e 5ª em renda (IDH-R=0,816).
Imagem 58a: http://webapp.sme.rio.rj.gov.br/jcartela/publico/
pesquisa.do?cmd=listCres
Imagem 58b: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/
interna.php?n0=1&n1=4&n2=6&rn0=5
175
As diferenças entre os bairros do Grajaú e do Méier podem ser encontradas
em outras comparações simples. O primeiro é um bairro residencial, caracterizado por
casas, por prédios de até 4 andares – gabarito garantido por lei municipal que impede
construções acima desse número de pavimentos em grande parte do bairro – e pelo
alto percentual de ruas arborizadas. O segundo bairro é caracterizado pelo amplo
comércio, intenso trânsito de transporte coletivo e ruas pouco arborizadas.
Imagem 59a: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/
interna.php?n0=1&n1=4&n2=6&rn0=10
Imagem 59b: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/
interna.php?n0=1&n1=4&n2=6&rn0=5
Embora os dados do plano estratégico da cidade do Rio de janeiro sejam de
1991, podemos perceber algumas diferenças significantes na renda e na escolarização
superior da população dessas áreas. Os mapas apresentados indicam uma diferença
de renda de 2 salários mínimos, comparando a faixa superior do bairro do Méier com a
faixa inferior de renda do bairro do Grajaú. E uma diferença de 13 a 11 % do total da
população com ensino superior nesses bairros, a favor do Grajaú, comparando os me-
nores e maiores índices apresentados no mapa para essa referência.
Apesar das diferenças entre os bairros, os clubes mantinham-se como re-
duto das elites locais, tendo aproximadamente o mesmo custo para o acesso aos seus
quadros sociais e aos serviços prestados na área dos esportes. Porém, em relação às
equipes esportivas de voleibol o fato de existir a cobrança de mensalidades para a
participação em seus trabalhos modifica radicalmente o perfil de composição étnica e
econômica nos dois clubes analisados. Mas, independentemente dessa cobrança, nas
equipes do Grajaú Tênis Clube, há menor presença de afro-descendentes do que nas
equipes do Sport Club Mackenzie.
As equipes do projeto SCM eram formadas por uma porção maior
de afro-descendentes do que os outros times?
– Era, é verdade –
enfática.
(Larissa Evaristo). (Grifo meu)
176
– Tinha, era 100% mais negro que todos os outros. Acho importante,
por que a qualidade não ta na cor. (Márcia Santos).
Janaína Silva faz uma observação sobre a presença de atletas negras nas
equipes do projeto GTC:
– Mas tinham outras atletas negras. Na escolinha é que não tinha.
Mas na equipe tinha.
Assim como Janaína, algumas atletas negras presentes na equipe e ausentes na
escolinha recebiam isenção do pagamento das contribuições mensais para custeio
dos gastos das equipes, prática que se tornou necessária no projeto GTC a partir de
1998. A própria Janaína era dispensada do pagamento das mensalidades da escoli-
nha do clube, pois era uma norma do professor Maurício Barros oferecer bolsas de
estudos para as atletas carentes economicamente e que possuíssem alguma capaci-
dade em ser atleta. Com isso, na escolinha, fora as atletas bolsistas, era raro a presen-
ça de alunas negras.
No início do projeto SCM, havia a contribuição das atletas para a manutenção da
equipe de voleibol, visto que as atletas que formaram a primeira equipe de voleibol
desse projeto faziam parte da escolinha de voleibol do clube e já custeavam o paga-
mento de mensalidades. Nesse período, havia a presença mínima de atletas afro-
descendentes no grupo da equipe. Em determinado momento, essa cobrança de men-
salidades foi suspensa pela presença maciça de atletas que recebiam isenção do seu
pagamento, a grande maioria proveniente dos testes que eram realizados com alunas
da rede de ensino público. Pode-se perceber a diferença étnica na composição des-
ses grupos através de fotos:
Imagem 60: Sport Club Mackenzie – equipe mirim feminino –
2003.
Imagem 61: Sport Club Mackenzie – equipe ínfanto-juvenil
feminino – 2005.
O pagamento de mensalidades altera significantemente a composição étnica das
equipes. Podemos perceber na foto as semelhanças entre as equipes do GTC e do
SCM quando havia pagamento de mensalidades:
177
O professor André que, como eu, trabalhou nos dois projetos, GTC e SCM, porém,
trabalha no GTC na fase em que se cobra mensalidades das atletas, aponta as diferen-
ças:
Imagem 62: Equipes pré-mirins do Sport Club Mackenzie, à esquerda, e do Grajaú Tênis
Clube à direita – 2002.
178
Nas entrevistas, as sujeitospersonagens identificam o espaço das equipes espor-
tivas, com os quais tiveram contato, como ambiente isento do preconceito racial. Embo-
ra possa haver outros tipos de segregação a partir do capital simbólico. Perguntada
sobre existir preconceito racial no esporte Larissa Evaristo diz:
– Eu acho que existe. Eu nunca sofri nenhum preconceito, a não ser
de altura, mas de grana, de cor, nada... Mas eu acho que existe sim,
devem ter pessoas que sofrem.
Já em relação a sua vida fora do esporte:
– Nunca sofri, a não ser financeiro, de cor eu nunca sofri nenhum
preconceito. Mas financeiro sim, às vezes não poder ir a um lugar,
freqüentar os mesmos lugares por não ter dinheiro, já.
Perguntada sobre uma brincadeira que fazia com outra atleta negra da equipe do
projeto SCM, Aline B. O., na qual se chamavam de negra ou negrinha, forçando bem a
pronúncia dos erres da palavra, Larissa comenta:
– Ah, era uma brincadeira, eu a chamava de negrete, ela me chamava
de negrinha. A gente sempre brincou assim... E como a gente brin-
cava aqui, a gente brinca no Tijuca. Eles falam... sua negrinha. Mas
era uma forma carinhosa de chamar ela. E a gente ficava brincan-
do, pois a Aline B. O. já era cheia de cuidados... Deixa eu (sic)
cuidar do meu cabelinho... –
fazendo um gestual e a voz como se
fosse uma dondoca –
e eu já era toda desleixada, largada.
Márcia Santos responde à pergunta: Você acha que o esporte discrimina os ne-
gros?
– Não, o esporte abraça a todos que querem alguma coisa. Se você é
negro e tem qualidade está dentro do esporte, mas se você é ne-
gro e não tem jeito para a coisa você não vai ser aceito. Mas tem
os esportes de elite que aí tem realmente essa partição, não são
todos os esportes.
Janaína Silva complementa sobre o preconceito no esporte às pessoas que não
são ricas e moram em comunidades:
– Não, quando fui ao Grajaú, fui muito bem tratada... Nos outros
lugares também. E seguiu assim... [...] No esporte não há esse pre-
conceito. Quer dizer, dependendo do esporte também. Comigo eu
nunca percebi. O Brasil esconde o preconceito, mas há o precon-
ceito. Por exemplo, as cotas, as bolsas na faculdade, eu acho que
não precisa ser para negros, deve ser para o estudante do colégio
público, mas não para negros. (Janaína Silva).
Aliás, em relação às cotas para afro-descendentes no ensino superior público, as
três sujeitospersonagens são radicalmente contra, acham que deveriam ser destina-
das aos alunos do ensino público ou não deveriam existir, mesmo para estes:
– Isso é um absurdo esse negócio de cota. Por que o negro não é pior
179
e nem melhor do que ninguém. A expressão cota para negros já é
um preconceito. As pessoas querem maquiar, mas é um preconcei-
to. Isso é um absurdo. –
argumento em favor das ações afirmati-
vas e utilizo a própria história de Márcia para exemplificar que há
uma barreira socioeconômica, que seleciona as pessoas antes do
vestibular –
Também não acho que isso seja certo, acho que não
deveria haver cotas. Se você quer entrar na faculdade tem que
estudar. Todo mundo que quer entrar na faculdade tem que estu-
dar e só por que eu sou negra vou entrar sem estudar, por que tem
uma cota para mim lá. (Márcia santos).
O espaço dos esportes é um local de tessitura do sujeito, o que quero dizer com
isso? Que o esporte é um espaço de interações sociais de grande relevância na for-
mação da personalidade, dos simbolismos e da aprendizagem de comportamentos
sociais. Junto das artes, principalmente a música, o esporte têm sido instrumento de
alavanca socioeconômica para jovens afro-descendentes de classes econômicas menos
privilegiadas. Longe de serem espaços de redenção da desigualdade social, manipu-
lado por conceitos liberais e neoliberais pelos que detêm o poder nesse campo e
estreitamente ligado em sua vertente profissional ao espetáculo e ao comercial, no
entanto, o esporte é uma atividade que lhes garante uma forma de expressão e de
existência social, uma atividade que lhes retira de uma zona de invisibilidade. Pergun-
tada sobre o que mudara no relacionamento com os outros alunos dentro da escola
quando passou a ser atleta de voleibol em clube Márcia Santos disse:
– Mudou muito, uma porção de gente vinha perguntar como é que era
ser atleta. Por que uma atleta –
fala a palavra atleta com orgulho
dentro da sala de aula é diferente, não é? O jeito de falar com os
outros. Ensinava também algumas coisas que a gente aprendia nos
treinos nas aulas de educação física. Todo mundo procurava – ah,
quero a Márcia no meu time. –
imitando a voz das amigas
– O jogo
aqui era péssimo, por que eu sabia um pouquinho, mas ninguém sa-
bia nada. Mas era muito bom ensinar para os outros um pouco da-
quilo que eu tinha aprendido. [...] As pessoas passaram a me consi-
derar mais. A Márcia, a atleta, jogadora de vôlei, vai a campeona-
tos, viaja com a equipe do clube. Foi importante.
As possibilidades simbólicas criadas para esses jovens negros quando vislum-
bram pessoas como eles em destaque no mundo do esporte, não somente pessoas
negras que alcançaram sucesso, credibilidade e melhores condições de vida, mas
pessoas proveniente de uma camada pobre da população, devem ser consideradas
pelos educadores.
OS CLUBES E OS PROJETOS SOCIAIS A PARTIR DO ESPORTE
O Grajaú Tênis Clube e o Sport Club Mackenzie têm suas histórias ligadas à
180
tradição esportiva dos clubes sociais da cidade do Rio de Janeiro, que proporcionavam
um cenário diverso do encontrado hoje nessa cidade. Em outras épocas, o esporte cari-
oca encontrava no trabalho esportivo dessas entidades sem fins lucrativos o esforço
necessário para que fossem organizados campeonatos de várias modalidades vincula-
dos às federações esportivas estaduais. Nesses espaçostempos, os clubes serviam
também para a formação da identidade do morador do bairro. Em conversas com dire-
tores e conselheiros dos diversos clubes onde trabalhei como professor e freqüentei
como sócio, percebia /percebo uma transformação na função dos clubes sociais de bairro.
Muito desses sujeitos, principalmente os que têm mais de 60 anos, possuem uma liga-
ção afetiva com o bairro, além da que possuem com o clube. As rivalidades entre os
moradores dos bairros de certa região encontravam nos clubes e nas atividades neles
originadas ou para ele transportadas o seu espaço de expressão, como as equipes de
futebol das ruas do bairro, as bandas e bailes de carnaval, as reuniões de associação de
moradores, entre outras. Assim como ocorria com as escolas de samba e blocos carna-
valescos, os clubes passaram a reunir os moradores em torno de um espaço físico e de
afinidades.
Imagem 63: Reportagem do jornal O Globo sobre os clubes sociais.
Não raro era existir, em um mesmo bairro, dois clubes sociais, geralmente um mais
popular e outro elitizado, sem falar dos clubes classistas, como associações de funcio-
nários de bancos e empresas estatais. Mas o fato é que encontrávamos em quase todos
os bairros essas instituições com equipes de futebol de salão – que deu origem ao futsal
181
de hoje – basquete, futebol de campo, natação, judô e voleibol, mas, principalmente fute-
bol de salão e basquete no caso da zona norte carioca.
Importante frisar que o estatuto de instituição sem fins lucrativos permitiu a esses
clubes gerenciar suas contas de maneira diversa à forma que os gestores profissio-
nais indicam como as corretas. Landau (2004) aponta com um dos resultados da má
administração dos clubes sociais o grande número de ações trabalhistas que impossi-
bilitam o desenvolvimento de novos investimentos pela apropriação de bens feita pela
justiça para o pagamento das dívidas do passado e que afastam os colaboradores
abnegados que passam a não contribuir com seus clubes de coração sabedores de
que esse investimento servirá para quitar dívidas adquiridas por gestões passadas.
Ainda sobre a gestão das entidades sem fins lucrativas, diz:
– Seus antigos administradores abusaram do endividamento partindo do pres-
suposto que ninguém teria coragem de pedir a insolvência de entidades com
tanto significado social e cultural. Se houvesse um perdão de dívidas estarí-
amos enviando uma mensagem errada e abençoando práticas que nada
tiveram de santas. A idéia é que, para poderem se beneficiar do mecanismo
legal da recuperação que seria criado, tais entidades deveriam cumprir uma
série de exigências para evitar fraudes e impor profissionalismo aos seus
dirigentes.
Ainda pairam sobre os clubes e seus diretores as suspeitas de envolvimento
em escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro:
– Em pleno século XXI, os clubes são verdadeiras “caixas-pretas”, com ad-
ministrações que não são transparentes e democráticas, pelo contrário, ges-
tões marcadas pela malversação financeira e administrativa que enterram
clubes em crise [...] com intuito de manter o modelo vigente, de promoção
dos velhos cartolas enclausurados em escândalos de corrupção e lavagem
de dinheiro.Estes permanecem comandando o patrimônio do povo brasilei-
ro, o nosso futebol. Os clubes do nosso país estão cheios de pessoas vazias.
(Souza, 2004)
Há dúvidas quanto à utilização das isenções fiscais facultadas aos clubes e ou-
tras entidades sem fins lucrativos para o
favorecimento de campanhas políticas.
Com a falência dos clubes de bair-
ro (imagens 63 e 64), que passam a co-
brar mensalidades dos atletas que parti-
cipam das suas equipes, podemos per-
ceber essa barreira econômica discrimi-
nando as oportunidades de acesso de
jovens moradores de regiões populares
Imagem 64: Presidente do Sport Club Mackenzie, Eugênio
182
ao trabalho de equipes esportivas, que ainda dependem de projetos da iniciativa priva-
da, muitas vezes vinculados a políticos ou organizações não governamentais com
intenções voltadas para a lavagem de dinheiro de campanhas públicas ou desvio de
verbas através de ONGs, como mostra a reportagem do Jornal O Globo, em relação a
um projeto governamental chamado “Segundo tempo”.
OS CLUBES ESCOLARES
A estrutura do município do Rio de Janeiro possui uma organela chamada Clube
Escolar, são 12 dessas unidades espalhadas no espaço geográfico da cidade. Nesses
espaços, são oferecidas atividades esportivas para os alunos da rede municipal de
educação em horários pela manhã e à tarde, para que o estudante possa freqüentar o
Imagem 71: Reportagem do Jornal O Globo sobre o projeto Segundo Tempo.
183
clube escolar em turno diferente do usado para ir à escola. Embora a iniciativa seja
excelente, tanto o planejamento de funcionamento do clube escolar, quanto o número de
estudantes atendidos estão aquém do que imagino ser o ideal. Entre os pontos falhos
desse sistema estão a área de abrangência dos clubes escolares, que impõe aos alu-
nos das escolas mais afastadas grandes deslocamentos e o número de alunos a aten-
der, que é superior a sua estrutura física. O trabalho desenvolvido nessas unidades não
caminha no sentido da formação de equipes, embora haja a organização esporádica de
jogos que envolvam essas unidades.
– O clube escolar está um pouco largado, ele tem 11 ou 12 anos de
existência, o que acontece com aquele garoto que entrou para fa-
zer voleibol, que entrou com 8 ou 9 anos para fazer voleibol e hoje
está com seus 13 ou 14 anos? Chega num nível que ele quer mais e
a estrutura do clube escolar não ofereceu mais a ele. O que seria
esse mais? Campeonatos periódicos entre os clubes escolares.
Campeonato do clube escolar de voleibol, de futebol, de basquete,
uma liga de esportes dos clubes escolares. (Diretora Carmem)
Na cerimônia de abertura dos jogos escolares municipais, houve a apresentação
de dois grupos formados no clube escolar de Marechal Hermes, um de ginástica rítmi-
ca desportiva (GRD) e outro de dança. O nível técnico das apresentações não foi além
do básico para essas atividades, porém, o comprometimento dos participantes e das
professoras nas apresentações, assim como, o orgulho que aparentavam em pode-
rem exibir seus aprendizados foram emocionantes. Porém, o aluno passa a querer
evoluir cada vez mais na atividade que escolhe e as apresentações e competições
esportivas regulares são importantes para esse desenvolvimento:
– Pois o aluno começou com uma atividade recreativa, fora do horá-
rio da escola, mas a criança chega a tal nível, como eu tinha alguns
alunos que estavam comigo há 5 anos, eles queriam mais, queriam
uma competição na qual eles pudessem estar disputando, eles que-
riam uma equipe do clube escolar, e isso não existia, continuava
como um processo pedagógico extracurricular. Então o clube es-
colar começou a fazer o quê? Quando percebia que um aluno tinha
se desenvolvido bem, você acabava ligando para um amigo seu que
estivesse num clube e indicava para um teste. (Diretora Carmem).
Além das discussões relacionadas com a qualidade da experiência proporciona-
da às diferentes classes sociais, onde os mais ricos têm acesso a clubes e os mais
pobres dependem das vilas olímpicas do Estado e clubes escolares do município,
essa discussão se faz importante em outro ramo da área da ciência da motricidade
humana, que são as pesquisas para determinação de que tipos de características
físicas são as que tornarão um indivíduo o atleta adequado para aquela modalidade e
até que etnia é mais propensa ao bom rendimento em um ou outro esporte. Ao que eu
184
respondo que o esporte é um fenômeno social e não biológico, como o jogo talvez o seja
e como o lúdico certamente o é. E, assim o sendo, o esporte é afetado mais pelo habitus
do que pela genética, vide, mal comparando as corridas de cavalo nas quais o cruza-
mento de um cavalo campeão com uma égua campeã, muitas vezes, resulta em um
pangaré. Ainda hoje, é creditada aos nadadores negros uma incompetência de resulta-
dos em comparação aos nadadores brancos por questões ligadas à composição corpo-
ral, assim como é ressaltada a superioridade negra nas provas de velocidade do atletis-
mo. Mas prefiro a estas afirmações de supremacias raciais aqui e ali, as opiniões de
Robson Caetano:
Acredito que os negros se destacam mais em esportes como o atletismo e o
futebol por uma questão quantitativa. Quantos têm acesso ao tênis ou o gol-
fe, por exemplo? São muito poucos. Não creio em genética, mas em oportu-
nidade. (Duarte, 2005)
Assim como as de Ellis Cashmore:
Historicamente, indivíduos negros tiveram acesso limitado a atividades soci-
ais. E, nos esportes, as opções não eram muitas. Golfe, tênis e natação, por
exemplo, exigem bom poder aquisitivo para a compra de equipamento ou
associações a clubes. Atletismo e futebol são modalidades baratas. A ques-
tão é muito mais cultural do que natural. (id. ib.)
CONCLUSÃO
186
A REORGANIZAÇÃO DO MEU LUGAR E A BUSCA POR NOVOS ESPAÇOS
Ao final do processo dessa pesquisa, mais do que afirmar qualquer conclusão com
fins de predizer o que deve ser feito pelos administradores das escolas, pelos responsá-
veis por políticas públicas de educação ou professores de educação física, interessa-me
ter demonstrado as possibilidades dos usos educacionais do esporte. Porém, proporei
um modo de funcionamento da estrutura esportiva escolar e de educação física que pos-
sa servir de fonte de reflexão para aqueles que estão à frente dos processos decisórios
nas instituições do ensino público e para aqueles que estão no exercício de funções
ligadas à educação física. Qualquer proposição que se possa fazer será apenas mais
uma entre tantas as formas de ações possíveis. A transitoriedade do conhecimento hu-
mano ata-me ao espaçotempo da minha pesquisa necessitando que sua leitura posteri-
or seja impregnada dos acontecimentos aqui relatados para que essas proposições
tenham coerência e sentido.
As discussões sobre o uso educacional do esporte nas escolas apresentadas nes-
sa dissertação estão sendo feitas em um momento que antecede aos jogos olímpicos
da China e, certamente, durante e após esse evento, momento em que já terei defendido
essa dissertação, arrisco-me a prever que o tema esporte e escola deverá ser discutido
na mídia, conclamando políticas públicas que fomentem a prática esportiva vinculada
aos colégios das redes públicas de ensino. Novamente arriscando-me em uma previ-
são, grande parte da presença dessa discussão nos meios de comunicação deverá ter
como recorte jornalístico a possibilidade do uso das escolas públicas na formação do
atleta que representará as futuras equipes olímpicas brasileiras, enfoque com o qual
concordo e espero ter esclarecido essa minha concordância ao longo dessa disserta-
ção. Porém, não se trata apenas de utilizar a escola como local de formação atlética ou
de seleção de atletas com capacidades para o esporte profissional ou olímpico. O es-
porte é ferramenta educacional e, independentemente da formação de atletas, deve re-
ceber mais atenção dos educadores e gestores.
São necessárias mais pesquisas sobre os saberesfazeres dos sujeitos e seus co-
tidianos para que possamos perceber as possibilidades e os limites das proposições
187
da utilização do esporte nas escolas, vinculadas aos seus planejamentos pedagógicos e
sob a gerência e implementação dos professores de educação física. Portanto, conten-
to-me em trazer, à reflexão das pessoas, os fatos, relatos e maneiras de fazer (CERTEAU,
1994, p. 35) constantes nessa dissertação, para que os usem da forma que acharem
melhor – até porque não tenho o poder, e nem a intenção, de que ocorra de outra forma.
Quando faço a defesa do esporte na escola, não me estou referindo à existência
de jogos esportivos entre as escolas. Essa etapa deve existir para proporcionar a vivência
da competição esportiva, que, como espero ter demonstrado ao longo dessa disserta-
ção, não é sinônimo de competição (concorrência). A experiência esportiva é importante
quando envolve o processo de treinamento e não quando é voltada apenas para o jogo.
A Secretaria Municipal de Educação promove os jogos escolares, porém, não dá
condições para que os professores possam treinar as equipes nos colégios e o planeja-
mento pedagógico, em muitas escolas, não insere essas etapas da formação e treina-
mento das equipes escolares em suas atividades regulares. As equipes escolares, no
caso da rede municipal, são organizadas apenas nos períodos próximos à realização
dos jogos escolares, quando deveriam estar presentes no decorrer do ano letivo e ao
longo da permanência da criança nas escolas.
O professor Maurício Barros, conta a sua experiência:
– Em todas as escolas em que eu chego, pergunto para a diretora: o
que eu preciso fazer para montar a equipe da escola? Eu já estou
na décima escola e só consegui fazer o time da escola em uma
delas. E, por ironia do destino, tive que sair da escola. Mas a dire-
tora gostou tanto que me manteve na escola com outro projeto,
pois eu não sou mais professor de escola e vou lá só para dar esse
treino, por que nenhum outro professor da escola quer fazer isso.
Então, em dez escolas públicas que eu já passei só em uma eu con-
segui fazer uma equipe.
Portanto, é importante que haja a criação de estruturas esportivas, como as já exis-
tentes vilas olímpicas, porém com infra-estrutura que permita o acesso dos alunos da
rede pública, seja municipal ou estadual, aos materiais que só terão acesso por meio
dessa estrutura, como piscinas, ginásios de ginástica artística, ciclismo e outros espor-
tes que dependem de materiais especiais.
Essas unidades devem ser centralizadoras de competições esportivas e apresen-
tações de dança e lutas, por exemplo, além de desenvolverem o trabalho de equipes que
possam disputar os campeonatos vinculados às federações estaduais filiadas ao Comi-
tê Olímpico Brasileiro (COB).
Paralelamente a essas unidades centralizadoras, deve existir uma disseminação
de clubes escolares, de forma que cada um destes possa atender a uma quantidade
188
menor de escolas. O clube escolar deveria poder oferecer espaço para que as equipes
das escolas que não possuem quadras possam desenvolver ali seus treinamentos regu-
lares, assim como para que as equipes dos colégios da região possam realizar treina-
mentos em conjunto, aumentando a interação e a cooperação entre as unidades escola-
res, professores de educação física e alunos. Com essa dinâmica, os professores po-
dem trocar experiência sobre treinamento de equipes propiciando a capacitação dos
professores pelo intercâmbio entre eles.
Mas falta a adequação dessas estruturas, como falam as diretoras entrevistadas:
– Nem espaço para isso a gente tem. E eu encarar uma coisa dessas...
referindo-se a dificuldade de implementar uma atividade
extracurricular no espaço da escola –
a diretora anterior, da qual
eu era diretora adjunta, ela não permitia que tivesse Educação
Física no primeiro segmento, por que achava que a escola não ti-
nha espaço, e realmente, não tem. (Diretora Rosa)
– Não há infra-estrutura para isso –
ao responder sobre a possibili-
dade de utilização do clube escolar para o treinamento de equi-
pes dos colégios.
[...] O clube escolar é a “minha menina dos olhos”
eu tenho a ambição de um dia poder dirigir algum clube. [...] Aquilo
é maravilhoso, o aluno que vai ali se inscreve no que ele gosta, não
tem como não dar certo. (Diretora Carmem)
Nas escolas, as equipes esportivas devem constar do projeto pedagógico das es-
colas, possibilitando que sejam construídas independentemente das aulas de educação
física, mas incorporadas ao planejamento dessa disciplina e acoplada ao estabeleci-
mento de oficinas esportivas que possibilitem o acesso do restante dos alunos a esta
atividade, dando-lhes condições de participar das equipes de acordo com seu desen-
volvimento no esporte, esses alunos também participariam de competições esportivas
em jogos internos da escola.
Assim como a estrutura dos clubes sociais esportivos têm vários níveis que
interagem no cotidiano de atividades do clube, começando nas escolinhas esportivas,
geralmente mistas e sendo dividida em naipes feminino e masculino com a formação
das equipes pré-mirim, mirim, infantil, infanto-juvenil, juvenil e adulto, no caso do voleibol.
Na escola, pode haver a analogia dessa estrutura da seguinte maneira, para o voleibol:
Nível Clube Esportivo Escola
Escolinha 9 e 10 anos. e 5º anos
Pré-mirim 11 e 12 anos. 6º e 7 º anos.
Equipe mirim 13 anos. 8º ano.
Equipe Infantil 14 e 15 anos 9º ano.
É importante que mesmo os esportes coletivos que têm o trabalho de equipes em
189
37
Considero que não exista a inaptidão para o esporte entre os alunos que freqüentam a escola pública. Prova disso são as
competições esportivas para pessoas portadoras de necessidades especiais, como as paraolimpíadas e competições para portado-
res de deficiência mental. De outra forma, reconheço a presença do desinteresse pela prática esportiva de alguns alunos que se
abstêm do envolvimento com o esporte por não perceber neste alguma forma de interesse pessoal.
clubes e federações iniciados abaixo dos 9 anos, como é o caso do futsal, tenham na
escola sua adaptação para respeitar essa faixa etária como a mínima para a introdução
do aluno nessa estrutura esportiva. Essa recomendação não ocorre apenas por ques-
tões ligadas às maturações fisiológicas e psicológicas necessárias para que esse pro-
cesso possa ser considerável saudável – e até por que esse limite não está definido por
consenso pelos pesquisadores estudiosos desse assunto –, mas ocorre para a criação
de um espaço anterior a essa faixa etária que deve ser preenchido por atividades físicas
gerais e lúdicas que visem à formação holística da criança. Nesse sentido, as atividades
relacionadas ao atletismo, ginástica artística e natação devem ser utilizadas na educa-
ção física dos três primeiros anos do ensino fundamental, porém sem que haja a inten-
ção esportiva em sua implementação e sim a experimentação dos padrões de movi-
mentos utilizados nesses esportes, como correr, saltar, arremessar, rolar, equilibrar-se e
tantos outros padrões quantos forem os possíveis de serem trabalhados em virtude do
material e espaços disponíveis.
O professor Maurício Barros, durante sua entrevista, respondeu a uma pergunta
relativa à possibilidade de desenvolvimento de projetos esportivos semelhantes ao pro-
jeto de voleibol do Grajaú Tênis Clube da seguinte forma:
– Eu acho que sim. Onde estão as crianças? Nas escolas. E os clubes
não conseguem pegar um por cento da comunidade de crianças e
jovens. Agora, isso teria que ser uma coisa muito organizada e
totalmente despolitizada, ou seja, se existisse uma lei que toda
escola teria a obrigatoriedade de possuir duas equipes de espor-
tes olímpicos para competir, o professor de educação física seria
destinado para isso, iria receber a mesma carga horária. E a edu-
cação física poderia cuidar de outros conteúdos, pois tem alunos
da escola que são inaptos para o esporte, ou mesmo não se inte-
ressam, mas aí teria a parte de dança, de outras esferas da edu-
cação física que esse público se enquadraria.
Respondendo a outra pergunta, sobre a possibilidade de inclusão dos alunos
que considerou inaptos
37
para o esporte e complementando a anterior, o professor Mau-
rício Barros ressalta a existência de crianças e adolescentes que não se interessam pela
participação em equipes esportivas, embora gostem de praticá-lo sem o envolvimento
com as competições esportivas regulares. Acrescenta que outros alunos não têm desejo
no envolvimento com a prática de esportes, podendo existir oficinas a partir de outros
conteúdos da educação física para atender a estes alunos. A destinação das aulas de
190
educação física para o desenvolvimento de outros conteúdos que não o esporte é uma
possibilidade apontada pelo referido professor:
– Você perguntou se o que eu faço aqui no clube poderia ser feito
na escola. E o que eu faço aqui é uma grande rede de praticantes
de vôlei, na qual eu tenho 200 alunos, dos quais 45 são das equipes
que disputam os campeonatos da federação, ou seja, 25 por cento
dos alunos estão nas equipes. Os outros 75 por cento participam
de uma competição interna. Esses outros alunos que querem parti-
cipar do esporte, mas não querem entrar para a equipe participa-
riam das competições internas, como são organizadas as olimpía-
das de colégio, onde todos jogam. Então a gente também atingiria
esse aluno. O que eu falo é sobre o aluno que nem ali está, aquela
gordinha que não gosta, que não quer mesmo, que só quer ficar
sentada nas aulas de educação física, tem outras coisas que ela
pode fazer.
Ressalto, novamente, que essas proposições têm apenas a intenção de fundar
espaço nas discussões sobre o tema esporte e escola.
O ESPAÇO DA EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA
De todos os aspectos relacionados ao esporte na escola e à educação física, aque-
les que mais me preocupam como professor-pesquisador são: a justificativa dos profes-
sores para a continuidade da disciplina como obrigatória no ensino básico e o espaço
físico reservado às atividades da disciplina nas escolas. São duas questões espaciais,
uma relativa ao espaço político/poder e outra ao espaço físico, mas que se encontram
atreladas uma à outra, pois a destinação do espaço físico a ser ocupado pela educação
física na escola é decidida através dos embates e negociações políticas no campo do
poder.
Sem diminuir a importância sobre o debate político acerca da justificativa da pre-
sença da educação física nas escolas, que discuti nos capítulos iniciais e que permeia
essa dissertação, o espaço físico ocupado para as aulas revelou-se como um dos prin-
cipais fatores para a perda de suas motivações, para a diversificação de suas propos-
tas de trabalho – continuam utilizando o esporte como conteúdo único de suas aulas – e
da inclusão dos alunos nas aulas de educação física. Não se trata, como pode parecer,
de reclamar das condições de trabalho dos professores e justificar a falta de empenho
desses profissionais no exercício de suas atividades. Trata-se de perceber que o empe-
nho de muitos professores, apesar das dificuldades políticas e materiais enfrentadas, é
desperdiçado na confusão espacial da escola. Durante o desenvolvimento dessa pes-
quisa, alguns relatos, conversas e observações forneceram indicações que a questão
do espaço físico destinado à educação física nas escolas precisa ser investigada com
191
profundidade, pois não é um fator inócuo para o comprometimento de professores e
alunos com as aulas dessa disciplina.
O professor Maurício Barros contou uma história, em conversa informal, sobre alu-
nas que brincam de queimado com suas mochilas nas costas, pois não podem perder o
contato com seu material escolar em virtude dos furtos que ocorrem dentro da escola,
praticados por alunos e por outros sujeitos que têm acesso à quadra de esportes e páti-
os de recreio da escola estadual em que trabalha. Disse também que os alunos têm que
colocar suas mochilas e pertences dentro das balizas de futebol durante as aulas de
educação física para que possam ser vigiados e não haja o furto de seus materiais.
Pude comprovar prática semelhante na minha “espionagem” da escola devassada,
onde as mochilas dos alunos ficam amontoadas junto às grades laterais da quadra du-
rante a aula de educação física, e na entrevista do professor André, que disse ocorrer o
mesmo em sua escola:
– É que já houve casos de roubarem celulares e outras coisas, aí as
bolsas ficam ali ocupando espaço na quadra. Quando eu cheguei lá
isso me incomodava muito. Eu fiquei um ano inteiro sem voz. Por
que eu queria combater isso, eu não aceitava isso de jeito nenhum,
eu queria dar minha aula. Você chega num local cheio de vontade
de dar tua aula, de mostrar teu trabalho, colocar tuas idéias em
prática e aquilo ali acabava comigo. Eu ficava chateado, eu não
aceitava. Hoje em dia eu já entrei, mais ou menos, nessa realidade.
Não que eu aceite esse esquema, ainda batalho contra ele, mas
agora eu compreendi que não adianta perder minha voz.
Ou seja, não há instalações que permitam a guarda do material dos alunos para
que estes participem de atividades fora de suas salas de aulas, como armários ou guarda
volumes. Os vestiários para a troca de roupas e para o banho dos alunos após as
atividades físicas são raros nas escolas municipais, e quando estão presentes em CIEP
ou clubes, e são usados com a presença de um professor, fato relatado em conversa
informal com Moema Gralha, estagiária de um colégio particular que aluga o espaço
físico de um clube para as aulas de educação física:
– O professor pediu que eu ficasse no vestiário enquanto algumas
alunas tomavam banho ou trocavam de roupas, pois já ocorreram
casos de brigas, furtos e casos de meninas se beijando após as
aulas de educação física no vestiário.
Algumas escolas possuem quadras ou espaços delimitados por grades onde
são desenvolvidas as aulas. Às vezes, esses locais não têm qualquer separação das
áreas de trânsito ou recreio da escola. Nos dois casos, as aulas ocorrem devassadas
para os alunos que estão em recreio e horários vagos ou mesmo para as pessoas de
fora da escola que têm acesso ao espaço escolar, principalmente nos CIEP, que têm
192
suas áreas externas, onde fica a quadra, aberta à comunidade. O professor Leonardo
Silva comentou, certa vez, que na escola estadual em que trabalha alguns jovens da
comunidade em que está situado esse CIEP utilizam a quadra de esporte para andarem
de skate e que, mesmo após as suas solicitações para que deixem o local quando hou-
ver aulas, durante elas é comum esses sujeitos continuarem com essas atividades nos
espaços de concreto em volta da quadra, com a prancha de skate invadindo a quadra
após algum desequilíbrio de seu usuário, chegando a chocar-se com os pés e pernas
dos alunos que estão nas atividades por ele propostas. Contou, também, que, durante as
aulas teóricas sobre os efeitos prejudiciais dos anabolizantes ou sobre anorexia, con-
teúdos do programa de educação física das escolas do estado do Rio de Janeiro, os
alunos dividiam as arquibancadas da quadra com jovens da comunidade que ficam per-
manentemente dentro do colégio, mesmo sem serem alunos.
Em entrevista, a diretora Carmem fala sobre os cuidados que os professores têm
com as interferências em suas aulas:
– Às vezes, o professor está trabalhando com os alunos mais velhos
e entra uma criança mais nova na quadra correndo e leva uma bo-
lada. E o professor tem que dar aula preocupado com isso para
que um aluno não se machuque. Tem que ficar dando bronca na
criança para respeitar esse espaço, uma criança que ainda não
tem noção que está atrapalhando. O local é inapropriado, a falta
de inspetor no colégio. Um colégio das dimensões do meu tem um
inspetor que vai embora às 14h, e eu tenho espaço físico na escola
para até 4 ou 5 inspetores.
O professor Maurício diz:
– A sala de educação física é o pátio, o aluno passa e chuta a bola
para cima do telhado. Eu estou dando aula para o sexto ano, para
as meninas do sexto ano, passa o menino do ensino médio chuta a
bola e aí toda turma ri e eu não tenho ingerência nenhuma sobre
esse cara. Se eu for falar com esse aluno ele vai virar para mim e
me mandar para aquele lugar. Por que eu não sou professor dele.
A presença dos alunos ociosos em torno dos locais de aula de educação física
pode ser responsável pela inibição, desinteresse ou desestímulo dos alunos que possu-
em menos habilidades nos jogos e brincadeiras propostos nas aulas, assim como, para
aqueles alunos que são mais gordos ou magros que o normal para a idade, e dos que se
ressentem das mudanças hormonais ocorridas na infância e adolescência, que são, tal-
vez, os que deveriam ter através das aulas de educação física o desenvolvimento de sua
estima pessoal, porém encontram-se expostos ao sarcasmo de outros alunos, sem que
haja a possibilidade de interferência do professor nesse processo:
– Aquilo atrapalha muito, ficam gritando desviando a atenção dos
193
outros e tem aluno que fica com vergonha. (André Gava)
– O aluno acaba não fazendo, veja você, às vezes o professor falta,
tem dois ou três professores na casa que faltaram, manter esses
alunos trancados na sala de aula, não tem como. Você não tem
inspetor para levar esses alunos para um espaço onde tenha ping-
pong, essas coisas para eles ficarem em tempo vago. Eles ficam no
pátio e no pátio está acontecendo o que? Educação física! Aí o
professor e os alunos ficam dispersos a todo o momento, pois é
aluno pedindo bola toda hora, interrompe a aula, fica do lado do
professor. (Diretora Carmem)
A quadra é exposta e quando tranca a galera entra, por que quan-
do o professor falta a turma vai para onde? Para o pátio ou vai ver
as aulas de educação física. Aí fica implicando com quem joga mal,
ou então ficam mexendo com as garotinhas que são bonitinhas, ou
fica enchendo o saco: professor deixa a gente jogar aí. E se deixa
a outra turma jogar, e eu confesso que já deixei, e é a turma dos
pequeninos, os pequenininhos e os ruinzinhos não jogam, só vão
jogar os bons da turma, aí vira a tal da exclusão. Então eu não
deixo mais, só joga quem é da turma. E isso acontece toda a hora
na escola, não é todo o dia não, é toda a hora. Você fica brigando
para poder funcionar a aula. (Maurício Barros)
O número de tempos vagos das turmas das escolas públicas pela falta dos profes-
sores parece influenciar diretamente nas aulas de educação física, como relatado pela
diretora Carmem em sua última fala, pois os alunos que não têm aulas ficam atrapalhan-
do as aulas de educação física:
– É professor deprimido, professor doente, mas doente mesmo, tem
que tomar antidepressivo o tempo todo, pede BIM o tempo todo —
BIM é uma licença médica — aí tem semana que a escola está sem
4 ou 5 professores. Tinha aluno que ia para a aula e fazia um ou
dois tempos de aula e ia embora, ou fica pelo pátio do colégio sem
atividade e atrapalha as aulas de educação física, fica querendo
participar das aulas das outras turmas. (André Gava)
Nas escolas particulares, esse problema parece ser menor, como relata o profes-
sor Maurício Barros na conclusão de sua citação anterior:
– Coisa que, no particular, não acontece, a quadra está ali, e o públi-
co quando não tem aula e assiste a educação física, seja por tem-
po vago – que quase não ocorre por que o pai que paga o colégio
está em cima – ou outra razão, a turma assiste com certo respeito.
Ou quando “sacaneia”, quando um toma uma bolada no vôlei ou um
drible no futebol, aí você como professor interage: amigo, por
favor! Os caras, na hora, respeitam, coisa que, na escola pública,
não acontece, se você faz isso eles te “sacaneiam”, eles sabem que
mandam na escola. Como em uma escola que eu fui, em Santa Tere-
sa, os moleques maneiros, maneirríssimos, e aí papo vai papo vem
os caras mandaram na hora: professor pode ficar tranqüilo, aqui
quem manda é a gente, não tem esse negócio de direção não, aqui
quem manda é a gente.
194
Na sala dos professores:
195
196
O professor Maurício Barros define a situação em que se encontra o professor de
educação física que trabalha nas escolas estaduais:
– A aula de educação física é uma aventura no colégio do estado.
Ao que parece, essa desorganização espacial não é prejudicial apenas para os
professores de educação física, pois, ao terminar minha entrevista com a diretora Rosa
e elogiar a sua dedicação à escola pública, ela diz que está cansada das exigências do
cargo e que está pensando em não concorrer às próximas eleições para a diretoria da
escola. Esclarece que gostaria de deixar a direção da escola nas mãos de alguém que
se empenhasse no cargo, pois percebe que vem “perdendo o gás” – nas suas próprias
palavras – e não quer deixar de cumprir as tarefas com empenho e correção. Pergunto-
lhe se há alguém na escola disposto a assumir a direção ou uma segunda chapa candidata
à eleição. A diretora responde que não há nenhum candidato à vaga e que pretende
cumprir seu mandato até o final, mas que se não aparecer alguém disposto a sucedê-la
na direção, provavelmente entregue o cargo à coordenação da CRE, que terá a incum-
bência de designar um novo profissional para a direção da escola. Revela que tem a
intenção de trabalhar na formação de professores, onde poderá transmitir sua experiên-
cia em diversas funções dentro da escola: professora, agente do pessoal, organizadora
da merenda, coordenação, diretora adjunta, responsável pela sala de leitura e diretora,
num período compreendido entre 1999 e 2008.
Constato que há muitos profissionais dispostos a fazerem um bom trabalho, quali-
ficados e apaixonados pela escola. Para esses profissionais a estrutura que falta nas
escolas é desgastante e representa um fator de desmotivação ao longo do tempo. Por
outro lado, há professores que não têm o compromisso com o trabalho e para os quais a
falta da estrutura adequada serve como desculpa para a negligência de suas funções.
Com o relato dessa pesquisa, transformo em espaço os meus lugares teóricos,
assumindo-os como fundamentais para o início da caminhada investigativa que por hora
findo, mas percebendo-os como limites que precisam ser ampliados – durante essa
pesquisa, muitas fronteiras foram movidas para longe do centro. É desse espaço, ainda
com pouco movimento, que pretendo contribuir para o entendimento da complexa rela-
ção entre esporte e escola. Que os usos ou consumos dessa pesquisa possam ampliar
as discussões dos temas abordados e movimentar o campo da educação física.
REFERÊNCIAS
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198
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ANEXOS
AS ENTREVISTAS
1
ENTREVISTA COM JANAÍNA SILVA
Essa entrevista foi feita numa terça-feira após o treinamento da equipe universitária de voleibol feminino do Centro
Universitário Celso Lisboa na qual exerço a função de treinador e Janaína de atleta.
Na preparação para a entrevista optei por usar o gravador de voz ao invés da câmera de vídeo com o intuito de deixar
a entrevistada mais a vontade nesse primeiro contato formal. Já havíamos conversado informalmente sobre algumas questões
que seriam abordadas, mas o questionário não havia sido apresentado para a entrevistada.
As questões foram sendo expostas na seqüência programada, porém, em alguns momentos, as questões subseqüentes
eram respondidas durante a resposta da questão anterior, portanto ficando sem sentido e redundante, mas assim mesmo foram
apresentadas essas questões para efeito de manutenção da seqüência programada.
Em outros momentos apareceram questões que não seriam abordadas, mas que se tornaram necessárias para a
complementação da resposta da entrevistada e para o entendimento do entrevistador.
Fiz uma introdução à entrevista esclarecendo à entrevistada que não se preocupasse com formalidades nas respostas,
pois depois de transcritas seriam corrigidos, tanto os meus erros de concordância gramatical como os delas.
Segue a entrevista:
Fernando: “Introdução”: - Pode falar tranqüila sem se preocupar com erro de português ou concordância, pois depois eu vou
corrigir os erros, tanto os meus quanto os seus que possam ocorrer.
Janaína: - Tá.
Fernando: - A idéia é a seguinte – começando a explicar o objetivo da entrevista – eu estou contando certas histórias da minha
vida e estou procurando pessoas que viveram essas mesmas situações, não só para comparar, mas para ter uma noção se essa
minha visão é uma visão correta, inclusive sobre as pessoas. Pode ficar tranqüila que depois a gente corrige os erros, inclusive
os meus. Posso ser sincera, depois eu vou te mostrar e só vai entrar o que você autorizar.
Janaína: - Ta, pode deixar. (aparentemente tranqüilizada com essa introdução feita pelo entrevistador).
Fernando: - Como você chegou ao Grajaú Tênis Clube?
Janaína: - Eu estava no colégio, 1º ciclo, quinta série, aí a minha professora de francês pediu para eu passar...pediu para eu
escrever não sei o quê no quadro. Aí ela achou que eu era alta e perguntou se eu jogava, se eu queria jogar e que a filha dela
jogava no Grajaú Tênis. Aí ela me indicou para ir lá, treinar e tal....
Fernando: - E você lembra como ela fez esse convite? (Essa questão já havia sido respondida na resposta da questão anterior,
mas foi apresentada com o intuito de seguir a ordem das perguntas e para possibilitar a complementação de informações).
Janaína: - Foi assim... Eu tava no quadro e ela falamos isso.
Fernando: - Mas ela te indicou alguém, falou algum dia para você ir lá, ou não? (Essa questão não constava do questionário).
Janaína: - Ela falou os dias de treino e disse que tinha escolinha lá.
Fernando: - E você lembra como foi o primeiro dia e as primeiras impressões que você teve quando foi treinar no primeiro dia
que você foi ao Grajaú (referindo-me ao Grajaú Tênis Clube)? Dá para lembrar isso? (Essa complementação da pergunta não
constava do questionário).
Janaína: - Na primeira vez que eu fui não fui vestida para treinar. (sorrindo) fui de sandália, saia... O treinador era o Walner ou
a Renata, um dos dois (mostrando dúvida), aí falou: você veio assim para treinar? Era o Walner (lembrando-se do treinador
que a recebeu)... Ele disse: - você veio assim para treinar? E eu disse: - não sabia.... Aí ele me falou o outro dia de treino, aí
eu fui a caráter. Fiquei um pouco com medo, pois eu não sabia jogar, eu jogava um voleizinho básico, três cortes, um
corte, record (são três brincadeiras feitas com a bola de voleibol, mas sem precisar de quadra, rede e das regras do voleibol.).
Fernando: - E as tuas primeiras impressões lá do clube? Do Walner e do pessoal todo?
Janaína: - Ah, eu fiquei meio retraída, todo mundo já sabia jogar e tal. Todo mundo tinha situação financeira razoável para
boa, calsse média, alta, media-alta, sei lá...
Fernando: (interrompendo) - O pessoal, não é?
Janaína: - É... (pensativa).
Fernando: - Foi sozinha ou com mais gente?
Janaína: - No primeiro dia minha mãe me levou, no segundo dia eu já fui sozinha.
Fernando: - E teve mais gente do colégio indicada, ou não?
Janaína: - Tinha gente do meu colégio que jogava lá, que foi também, mas não junto comigo e eu nem conhecia e eu fazia em um
horário e essa pessoa fazia a noite.
Fernando: - Mas indicado pela professora de francês?
Janaína: - Eu acho que foi.
2
Fernando: - Quem era a professora de francês? (Essa pergunta não constava do questionário).
Janaína: - Tânia.
Fernando: - Era mãe de quem?
Janaína: - Camila? (em dúvida), acho que era camila...
Fernando: - Qual Camila?
Janaína: - (Lembrando)..Bianca, era Bianca...uma que tinha uma mancha...
Fernando: - Eu me lembro. A irmã da Fernanda?
Janaína: - Não... Tinham duas Biancas, essa tinha uma mancha.
Fernando: - Quem foi que te recebeu no clube?
Janaína: - Foi o Walner...
Fernando: - E como foi o teu primeiro contato com ele? Foi esse que você já respondeu não é?
Janaína: - É...no segundo dia já foi a Renata.
Fernando: - Que Renata? (surpreso).
Janaína: - A Renata Cordovil.
Fernando: - A Renata Cordovil trabalhava lá nessa época? (surpresos, pois Renata Cordovil joga no mesmo time universitário
em que Janaína joga e estava participando do treino junto a Janaína antes da entrevista.)
Janaína: - Acho que ela ficava as sextas... É acho que o dia dela era sexta.
Fernando: - E quais as meninas com quem você se identificou mais, você lembra?
Janaína: - Nessa primeira fase eu não lembro.
Fernando: - E qual foi a reação da tua família quando você disse que iria fazer um teste?
Janaína: - Ah, minha mãe gostou... Praticar esporte e coisa e tal. E eu gostava.
Fernando: - E o maior apoio da tua família foi o da tua mãe mesmo?
Janaína: - É da minha mãe e do meu pai.
Fernando: - E como foi a reação da tua família depois que você virou atleta, depois que você passou no teste?
Janaína: - Ah, ela ficava preocupada, não parava em casa. Eu vinha do colégio, almoçava e ia para o clube, aí quando o treino
terminava cedo eu ficava lá até tarde, aí voltava para casa à noite. Aí ela ficava falando que eu não parava em casa... No final
de semana tinha jogo.
Fernando: - Mudou muito?
Janaína: - É...
Fernando: - E com quais as atletas que você passou a se identificar mais, a ter mais amizade?
Janaína: - A Monique, que já era do mesmo colégio que eu... Débora, Débora Taka, Thais, Carol Paes...
Fernando: -Maior galera... Eu me lembro... Thais, Carol Paes... (Bateu uma lembrança nostálgica dessas meninas citadas...)
Fernando: -E como era teu relacionamento com os treinadores?
Janaína: - Era bom!
Fernando: - E em que escola você estudou?
Janaína: - Nessa época eu estava no Francisco Manuel.
Fernando: - E como você passou a ser tratada na escola depois que virou atleta? Teve mudança?
Janaína: - Hummm (tentando lembrar), na aula de Educação Física teve. As pessoas achavam que eu estava querendo aparecer
e nem era isso, eu estava jogando o que eu tinha aprendido.
Fernando: - Teve mudança para pior, não é? ( Essa pergunta não estava no questionário e foi feita em tom de piada).
Janaína: - é...
Fernando: - E tinha equipe esportiva na tua escola?
Janaína: - Nessa não.
Fernando: - Como era a Educação Física na tua escola e o que você achava do trabalho feito pelos professores?
Janaína: - Ah, tinha dia que tinha Educação Física de fato, mesmo! Tinha dia que ele dava a bola para ficar jogando.
Fernando: - A Educação Física de fato, mesmo! Era o quê?
Janaína: - Ele dava fundamento...exercício de....
Fernando: - (Interrompendo) Esporte.
Janaína: - É.
Fernando: - A maioria das vezes era exercícios de esportes?
Janaína: - Era.
Fernando: - E você gostava?
Janaína: - Gostava.
Fernando: - Você acha que era bem aceita a Educação Física no colégio assim?
Janaína: - Era, todo mundo queria fazer.
Fernando: - Os professores eram legais? Você lembra de algum professor de Educação Física?
Janaína: - Lembro... O Jorge Luis (Janaína ri ao lembrar e citar o professor).
Fernando: - Do Jorge Luis você lembra? E por que você lembra? (intrigado com as risadas de Janaína ao lembrar do profes-
sor).
Janaína: - Lembro... Ah, ele era engraçado.
Fernando: - E o quê ele fazia de engraçado?
Janaína: - Não... É que ele era legal comigo, eu gostava dele.
Nesse momento fomos interrompidos, pois a sala em que nós estávamos conversando iria ser utilizada para uma aula e tivemos
que mudar de local.
3
Fernando: - E como professora de Educação Física o quê você acha que poderia ter sido feito na sua escola em termos de
Educação Física?
Janaína: - Ele poderia ter explorado mais os esportes, não fazer o que a maioria dos professores tem feito dar a bola de futsal
para os meninos e outra bola para as meninas jogarem queimado ou vôlei.
Fernando: - Você acha que ele tinha condições de ter feito um trabalho de iniciação esportiva com os alunos?
Janaína: - Com certeza.
Fernando: - Qual a importância da Educação Física na escola e dos professores, aí de uma maneira geral, de todos os profes-
sores na sua vida? (a pergunta não foi bem formulada e fui obrigado a tentar explica-la). Dessa Educação Física que você
experimentou na escola e os professores na sua vida, você já falou aí da professora de francês, por exemplo, que foi quem te
encaminhou para o voleibol. Qual foi uma coisa que você tenha achado importante? (Apesar da tentativa de esclarecer o
objetivo da pergunta a entrevistada mostrou-se confusa em respondê-la, não por não a ter entendido, mas pela falta de clareza
em formular a pergunta).
Janaína: - Hummm, deixe-me pensar...
Fernando: - (Interrompendo) Ou não teve importância? Também pode ser que não tenha importância.
Janaína: - Não... Quando ele fazia uma aula direita... Entre aspas...ah, sei lá....
Fernando: - Tem um outro professor marcante no colégio que possa ter te influenciado até hoje na sua vida?
Janaína: - Não...é...não,Quando eu entrei para o clube, eu falei para ele (Jorge Luis) e ele sempre me incentivava e tal...
Fernando: - Lembra de algum professor na escola, pode ser de qualquer matéria, que tenha contribuído muito na tua forma-
ção? Tem alguém que tenha contribuído de maneira mais importante que os outros?
Janaína: - Naquele colégio? Não....A Tânia, não é. Não lembro de outros.
Fernando: - Por que você saiu do Grajaú Tênis?
Janaína: (Uma risadinha) - Houve uma troca de técnico e na mesma época meu joelho tinha machucado, eu já tinha machuca-
do umas duas vezes antes e houve uma terceira vez, e eu não gostava do técnico, da forma que ele lidava com o time e eu
aproveitei essa contusão, por causa da desmotivação que estava havendo em relação a ele e parei.
Fernando: - Era o Maurício?
Janaína: - Não era o Luis.
Fernando: - Ah, era o Luis? Foi na época do Luis que você saiu de lá? Você trabalhou com o Walner, com o Maurício e depois
com o Luis?
Janaína: - Isso.
Fernando: - Eu pensava que você tinha saído do clube por que a categoria em que você jogava tinha acabado.
Janaína: - Não... Depois que acabou.
Fernando: - E como você se sentiu saindo do Grajaú Tênis?
Janaína: - Ah, sentia falta.
Fernando: - E a tua família, o que achava disso? Quando você parou de jogar?
Janaína: - Ah, me deixa pensar... Bem, já era a terceira vez que eu tinha machucado o joelho e eu já estava sem estímulo e tal...
Fernando: - Mas já tinha recuperado nas outras vezes, não é? Até por que tinha um preparador físico bom, não é? ( Rindo, pois
o preparador físico era eu).
Janaína: - (Rindo pela brincadeira anterior sobre o preparador físico) É, tinha fisioterapia. E fiquei fazendo fisioterapia por
um tempo e ele (joelho) ficou bom.
Fernando: - Com a Elaine?
Janaína: - É, com a Elaine.
Fernando: - E você tentou fazer teste para outro time?
Janaína: - Não, eu parei mesmo.
Fernando: - E a tua família não ficou chateada, desapontada, nada?
Janaína: - Não... Era minha vontade. (um tanto desanimada).
Fernando: - E teus pais chegaram a comentar alguma coisa?
Janaína: - Não, mas eu já tinha comentado sobre o técnico.
Fernando: - Aí tua família achou melhor você parar mesmo, já que não estava gostando do treinador?
Janaína: - É.
Fernando: - Então da mesma forma que houve treinador que te estimulou, houve treinador que não te estimulou. Você conse-
gue perceber o quê não fez com que você trabalhasse bem com esse treinador e ele contigo?
Janaína: - Assim....por que ele sempre exaltava o erro. E quando havia o acerto ele desdenhava, não fez mais do que a
obrigação.
Fernando: - Aí você foi fazer o ensino médio. E em que escola você estudou?
Janaína: - Herbert de Souza. Aí nesse ano a gente formou um time para jogar o inter-colegial. E o técnico foi o Jaques que
estava fazendo um trabalho na Estácio e. não sei como ele foi parar lá. Aí ele treinou a gente e a gente participou de um
campeonatozinho.
Fernando: - E a formação dessa equipe partiu de vocês ou da direção do colégio?
Janaína: - Das atletas. Por que tinham duas que jogavam no Tijuca, aí tinha eu e a Monique, mais umas que já tinham jogado
em clube.
Fernando: - E a Educação Física nesse colégio?
Janaína: - Ah, nesse realmente tinha Educação Física. Todo bimestre era um esporte e davam fundamentos... Tudo direitinho.
Tinha dia que tinha ginástica.
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Fernando: - E você participou de projetos esportivos baseados em esportes, não é? E como foi essa experiência? Foi no clube
Maxuell?
Janaína: - Isso mesmo, eu tava parada, aí os amigos foram e me chamaram para bater uma pelada de vôlei em um projeto, e aí
eu sempre falava: - ah, ta, um dia eu vou. Até que um dia eu fui, aí gostei e passei a ir direto. Um dia teve uma seleção dos
alunos do projeto, os melhores, para fazer uma viagem com a Jakie (Jakie Silva), que o projeto era dela, para Vitória.
Fernando: - E ela que foi levando a equipe?
Janaína: - Foi.
Fernando: - Ela que foi dirigindo a equipe?
Janaína: - Não, ela jogou. O técnico era....
Fernando: - (Interrompendo) Ela foi como jogadora jogou no time com vocês? Ela levantando?
Janaína: - Não, eu que levantei para ela.
Fernando: - Dessa eu não sabia. E como foi essa experiência?
Janaína: - Ah, eu adorei. Foi a primeira vez que eu andei de avião na minha vida, fomos para Vitória e lá parecia que nós
éramos jogadoras de alto nível. Nós chegamos na pousada, fomos jantar, depois voltamos para a pousada e só andava de
Van...Aí ia para o local do jogo de Van e chegando lá tinham vários fotógrafos. E tinha apresentação antes do jogo, com
microfone e cada uma ia lá no meio e tal...
Fernando: - E ela jogou os jogos todos com vocês?
Janaína: - Jogou!
Fernando: - Que legal... E ela jogou atacando?
Janaína: - Jogou de saída.
Fernando: - E essa experiência com viagem e tudo mais foi a mais marcante da sua vida?
Janaína: - Talvez sim, mas as do Grajaú Tênis também foram... Quando a gente tinha viagem para Quissamã a gente fazia
bagunça no ônibus, cantava musiquinha.
Fernando: - Você consegue lembrar das emoções que você sentia nos jogos do Grajaú?
Janaína: - Lembro... Teve um que foi Grajaú e Fluminense... Nossa... Foi 3 x 2, aquele foi “o jogo”.
Fernando: - Foi na categoria mirim esse?
Janaína: - (Um pouco em dúvida)...Foi.
Fernando: - E você já participou de algum clube escolar do município, aquele clube escolar que atende aos alunos do muni-
cípio?
Janaína: - Não.
Fernando: - O que você acha que o esporte trouxe de benefício para a tua vida?
Janaína: - Se não fosse o esporte talvez eu não estivesse estudando em uma faculdade, quase me formando, tendo uma
profissão.
Fernando: - Você consegue imaginar a sua vida sem o esporte? Como ela estaria se você não tivesse entrado para o esporte?
Janaína: - Sei lá, talvez eu estivesse trabalhando em loja, em shopping....
Fernando: - Uma vida bem diferente?
Janaína: - É com certeza.
Fernando: - Você acha que conheceu pessoas e lugares que não conheceria se não fosse pelo esporte?
Janaína: - Com certeza.
Fernando: - E conhecer essas pessoas... ( a energia elétrica acaba e as luzes se apagam na sala em que estávamos fazendo a
entrevista e uso a iluminação do visor do celular como uma lanterna. Relato esse fato para que seja gravado e Janaína brinca
perguntando se eu estou conseguindo vê-la, em alusão ao fato de ser negra).
Você acha que essas pessoas que você conheceu no meio do esporte de várias outras classes sociais, se é que a gente
pode chamar assim, ou com mais dinheiro ou menos dinheiro e lugares como clubes, você não teria acesso sem o esporte?
Janaína: - Ih, eu perdi o fio da meada...
Fernando: - Bem, é assim, com o esporte, como você mesmo disse, você conheceu muitas pessoas e teve muitas vivências...
E essas vivências de você conhecer pessoas de níveis diferentes, lugares que de repente você não teria acesso se não fosse
através do esporte contribuíram para a tua vida de que maneira? Ou o que você acha dessas contribuições?
Janaína: - ehhhhhhh...
Fernando: - Ficou enrolada essa pergunta, não é?
Janaína: - Não, mas faz sentido por que... Eu moro em comunidade, então talvez, sei lá, talvez eu estivesse grávida que nem
outras meninas aí. Não sei....
Fernando: - Você acha?
Janaína: - Não sei... a maioria das meninas que estudou comigo já tem filho.
Fernando: - Você nota.....era mais ou menos isso que eu queria perguntar e não estava conseguindo formular a pergunta. Você
consegue perceber que as pessoas com quem você conviveu em uma época da sua vida antes do esporte seguiram um caminho
totalmente diferente do teu?
Janaína: - Com certeza, como eu te falei, a maioria das meninas hoje está grávida ou já teve filho.
Fernando: Um caminho ruim, no caso?
Janaína: - Mas eu não sei se isso iria acontecer comigo, pois a minha mãe deu uma base boa para a gente sabe?
Fernando: - Você já tinha uma formação em casa que já te protegiam de alguns desses caminhos, não é? Mas você acha que o
esporte te possibilitou conhecer um mundo novo, ampliar teus horizontes?
Janaína: - Sim.
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Fernando: - Quer falar um pouco sobre isso? (Janaína não se mostrou muito empolgada com o assunto) Então vamos seguindo
e se você lembrar ou quiser falar sobre o assunto você fala, ok?
Fernando: - Você é negra, mora em comunidade, não é rica, você sofreu algum preconceito dentro do esporte?
Janaína: - Não, quando fui ao Grajaú fui muito bem tratada... Nos outros lugares também. E seguiu assim...
Fernando: - E em relação às atletas, teve algum preconceito?
Janaína: - Não que eu percebesse.
Fernando: - O fato de o Walner ser negro pode ter ajudado nessa tua inserção ou você acha que não influenciou?
Janaína: - Nunca tinha parado para pensar nisso, mas pode ser que sim. Ele foi a primeira pessoa que me recebeu lá.
Fernando: - Você acha que o fato dele ser negro não deixou ficar um ambiente tão distante do que você conhecia?
Janaína: - Pode ser que sim. Mas tinham outras atletas negras. Na escolinha é que não tinha. Mas na equipe tinha.
Fernando: - A maioria das atletas tinha um poder aquisitivo maior que o teu. Como era nas viagens e nas reuniões depois do
treino?
Janaína: - Pelo fato da minha mãe ser autônoma, fica mais fácil para mim. Pois todo dia ela recebe um dinheiro. Se ela
recebesse um salário eu não iria ter condições mesmo. Passagem todo o dia, lanche....
Fernando: - E como você se virava com isso?
Janaína: - A minha mãe sempre me dava um dinheiro para a passagem para o lanche.
Fernando: - Mas no orçamento doméstico esse dinheiro da passagem e do lanche pesava, não é?
Janaína: - Com certeza. E pesa até hoje.
Fernando: - É, porque até hoje ela contribui, não é? Mas hoje ela faz num outro sentido, não é? Ela contribui para uma
formação profissional, não é? Naquela época ela investia num futuro incerto...
Janaína: - (Interrompendo-me) Num lazer.
Fernando: - E ela sempre foi legal com isso?
Janaína: - Sempre.
Fernando: - Você nunca teve privação a nada? Você ia lá no Beijo-Beijo (uma lanchonete em frente ao clube) e ficava com as
meninas lá. Sempre foi dentro das tuas capacidades conviver com aquele grupo?
Janaína: - É... a gente saia do treino e ia para a Beioj-Beijo e ficava lá horas tomando sorvete, conversando.
Fernando: - Essa vivência você não teria também se não tivesse entrado para o vôlei, é ou não é?
Janaína: - (Já um pouco cansada da entrevista) É verdade.
Fernando: - E tinha outras saídas com o pessoal?
Janaína: - Tinha. A gente sempre ia ao cinema ou ao shopping. Todo mês tinha o aniversário de alguém e quando era longe
sempre dormia na casa de alguém.
Fernando: - E quais as meninas com que você saía mais?
Janaína: - Carol Paes, Thais, Roberta... Sempre iam ao shopping. Ah, e tinha também a Nataly....não a Nathália.
Fernando: - Quais as melhores recordações e as piores dessa época do Grajaú?
Janaína: - As melhores eram estar lá com as meninas, técnico, tanto na hora do treino quanto na hora do extra treino. E a pior
foi quando eu parei que já não estava gostando mais, já não ia para o clube com tanta vontade.
Fernando: - E do teu colégio Francisco Manuel. Quais as melhores e as piores recordações?
Janaína: - Ah, não lembro, faz muito tempo. Tem amigos que eu lembro e tem=nho contato até hoje, um não é, sempre tem
uma pessoa que você leva para sua vida de cada lugar.
Fernando: - E dos outros lugares que você estudou e jogou?
Janaína: - Tem... Essa semana mesmo eu encontrei com um menino do projeto da Jakie. Aí ele me chamou para uma pelada no
final de semana.
Fernando: - O melhor de todos os lugares são as pessoas? É isso? As recordações boas que ficam são atreladas às pessoas?
Janaína: - É isso, mas não sei como expor. Às vezes o lugar não é tão bom, não é o caso desses lugares, mas se você está ao
lado de uma companhia boa se torna.
Fernando: - Assim como era o Grajaú e passou a não ser mais por influência de outras pessoas?
Janaína: - Exatamente.
Fernando: - Quais as pessoas que mais te ajudaram dentro do Grajaú e as que te prejudicaram, se é que houve alguém que
prejudicou ou ajudou?
Janaína: - Dentro da equipe mesmo?
Fernando: - É dentro da equipe e da tua formação como atleta?
Janaína: - Assim, as levantadoras, nós éramos bem unidas, principalmente no mirim. Não tinha uma titular fixa, éramos eu,
Thais e Nathália. Aí a gente revezava sempre e estávamos sempre juntas, uma dando toques para a outra.
Fernando: - Podemos dizer que dentro da tua experiência do Grajaú as atletas tinham mais união do que brigas? Era um
ambiente legal de se estar?
Janaína: - Com certeza.
Fernando: - E essa experiência que você teve, independente do que ela pode ter te trazido de bom durante a vida, ela é uma
experiência importante de ser vivida por uma menina de 13 anos ou 14 anos? Por quê?
Janaína: - Com certeza....deixe-me pensar...é por que o esporte é um meio de integração...de inclusão e de integração.
Fernando: - Você acha que na convivência humana no esporte você colheu mais influências positivas do que negativas?
Janaína: - Negativas... Nenhuma!
Fernando: - E tua mãe o que acha desse teu processo todo?
Janaína: - Ela tem consciência total de que se não fosse o esporte eu não estaria estudando. Ela mesma fala isso para mim,
como acontece com a minha irmã. Ela quer fazer uma faculdade só que o trabalho dela não permite...ela quer sair para ver se
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consegue um trabalho que permita estudar a noite. E minha mãe sempre fala que quando ela conseguir eu vou ter que ajudar ela,
assim como eu fiz com você.
SEGUNDA ENTREVISTA COM JANAÍNA SILVA
Essa segunda entrevista foi elaborada para dirimir dúvidas geradas pela primeira entrevista. A abordagem através de
rápidas conversas após alguns treinos para a produção de relatos mais extensos não surtiu o efeito esperado visto que
compromissos posteriores de Janaína dificultavam sua concentração e interesse em responder as respostas.
No início da entrevista, ao preparar o material para o seu registro, conversava sobre o processo de escrita da dissertação
e Janaína atribuiu sua participação na pesquisa como colaboradora da pesquisa.
Fiz uma apresentação dos capítulos da dissertação e como estão dispostos no corpo da pesquisa as discussões, o
desenvolvimento e fundamentação teórica.
Fernando: — A professora de francês foi decisiva para a tua vida?
Janaína: — Foi, tava passando dever no quadro e ela achou que eu era alta e nem era, e se eu queria ir jogar na escolinha
do Grajaú Tênis.
Fernando: — Não era nem escolinha era o trabalho de pré-mirim que o Walner fazia, pois eu busquei nos arquivos que tenho
em casa e havia uma anotação em um relatório anula que o professor Maurício fazia, dizendo que o trabalho de pré-mirim
começou em novembro de 1998. Então você deve ter sido incorporada nesse trabalho de pré-mirim em 1998.
Janaína: — Isso eu não lembro.
Fernando: — Peguei os relatórios anuais do GTC e mostrei a Janaína, e perguntei-lhe se lembrava de um time adulto que
fizemos em 1999.
Fernando: — Mas eu ainda não consegui descobrir quem era a filha dessa professora?
Janaína: — Bianca Cabral, eu lembro que tinham duas Biancas.
Fernando: — A tua mãe apóia que você seja atleta e o teu pai?
Janaína: — Ele não dava muito a opinião dele não. Mas não se importava.
Fernando: — Você lembra da primeira vez que me viu?
Janaína: — Não.
Fernando: — Não tem nem idéia? Eu tento contar na dissertação que a primeira vez que eu te vi deve ter sido no final de
1999, quando você passou a treinar junto com a equipe infantil.
(Conto a história de como eu me lembro da primeira vez que a vi.)
Fernando: — Você treinava entre as infantis quando era mirim, não?
Janaína: — No infantil quando eu era mirim e no infanto quando era infantil.
Fernando: — Como era essa experiência?
Janaína: — Ah, eu ficava muito nervosa, pois elas eram mais habilidosas, estavam numa fase acima da minha.
Fernando: — Era aquela geração 84, não?
Janaína: — Era. Marcelinha, Karina.
Fernando: — E como era essa experiência entre elas? Elas te recebiam bem?
Janaína: — Tinham alguns problemas, mas eu não me lembro bem. Ainda mais por eu ser levantadora e ainda não ter o
tempo de bola delas. Eu lembro que entrei em atrito com uma menina, que esqueci o nome, que ela pedia a bola chutada e
aí eu chutei a bola lá na arquibancada. Mas as outras não, as outras eram legais.
Fernando: — E quando você voltava para o mirim?
Janaína: — Era normal, ninguém falava: ah, ta jogando no infantil... Ou coisa assim.
Fernando: — Até por que você não saiu do mirim, não é? Você dobrava os treinos, não?
Janaína: — A gente treinava com o mirim, aí terminava o treino a gente ia na cantina tomar um suco de laranja e voltava
para o treino.
Fernando: — Cansada já, não é? E ainda tinha mais a cobrança no treino de infantil, não?
Janaína: — É. Mas a gente melhorava muito. Na defesa, pois a gente treinava muita defesa. Por que já tinham as
levantadoras do infantil, então eu ficava mais na defesa.
Fernando: — Pelos meus arquivos, você tinha bons tempos na corrida. Você gostava da corrida? E como era correr pelo
bairro em volta do clube?
Janaína: — Gostava, eu hoje até fico pensando, será que eu seria boa se eu fosse para o atletismo? Será que eu teria me
dado bem no atletismo? Eu me sentia a atleta de alto rendimento.
Fernando: — Assim como devia ser legal você vir de ônibus da sua casa para o clube, como era isso?
Janaína: — Vinha com a joelheira no pé, as pessoas perguntavam por que eu colocava a joelheira ali na canela e não no
joelho. E eu explicava que colocava ali, mas que quando ia treinar colocava no joelho, que não iria andar pela rua com a
joelheira no joelho.
Fernando: — E a musculação? Eu lembro que tinha um grupo que treinava com as infantis e queira ir para academia e eu
não deixava, ficavam fazendo as listas de exercícios. Mas vocês queriam ir para a musculação para se divertir, não é?
Janaína: — Eu não me lembro, mas acho que era mais pela parte física mesmo. Eu queria mais, fazer mais exercícios além
daqueles que a gente fazia lá no clube. Eu não lembro de todos os exercícios da lista de exercício, mas tem uns que eu não
esqueço: tríceps no degrau, elevação...
Fernando: — E como era chegar à academia com o uniforme do clube?
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Janaína: — Eu não lembro direito, mas era legal.
Fernando: — Pelos relatórios de final de temporada que o Maurício fazia, percebi que aquele time tinha um percentual médio
de vitórias de 26%, ou seja, de 4 jogos nos ganhávamos 1. Isso era um fator de pressão, desmotivação ou frustração?
Janaína: — É por que a gente treinava, o time era razoavelmente bom e quando a gente chegava na hora do jogo não conseguia
a vitória. Aí dava uma frustração, né.
Fernando: — E tinha pressão? Vocês se sentiam pressionadas em relação a isso? E as pressões maiores eram por parte de
quem?
Janaína: — Vinha do Maurício para o Walner que passava para a gente.
Fernando: — E pelos pais? Existia mais conforto ou pressão por parte deles?
Janaína: — Era mais conforto, até minha mãe que não acompanhava os jogos era assim. Perguntava:
— e aí? Como é que foi? Ganhou?
— Não perdemos.
— Perderam? É mas não tem importância, um dia vai ganhar.
Fernando: — Mas desmotivação nunca, não é?
Janaína: — Não. Mesmo perdendo estava motivada.
Fernando: — A minha tendência é lembrar do gtc como um lugar que realizava um trabalho modelo na área do esporte
infantil. o que você acha hoje em dia sobre aquilo que você viveu naquela estrutura? O que poderia ser melhor e o que eram
erros que não percebíamos?
Janaína: — Em relação a quê? Sinceramente eu não via erros não. E ainda tinha a Gilda para ajudar. Eu gostava muito das
conversas com ela, e as atletas viviam com dor de cabeça e ela tinha uma massagem ótima.
Fernando: — Na primeira entrevista você falou que nunca se sentiu discriminada por ser negra e nem por morar em comunidade.
Conversando com o Walner, ele me disse que sofreu vários preconceitos na sua vida e que o esporte foi um dos únicos locais
em que ele acha que nunca sofreu nenhuma discriminação por ser negro. Você pode comparar o preconceito dentro e fora do
esporte? Não precisa ser necessariamente com você, pode ser em relação à sua família (mãe, irmã, pai) ou amigos.
Janaína: — No esporte não há esse preconceito. Quer dizer, dependendo do esporte também. Comigo eu nunca percebi.
O Brasil esconde o preconceito, mas há o preconceito. Por exemplo, as cotas, as bolsas na faculdade, eu acho que não
precisa ser para negros, deve ser para o estudante do colégio público, mas não para negros.
Fernando: — Numa equipe você reúne, às vezes, meninas de diversas formações sociais. Muitas vezes isso gera questionamentos
da sua própria formação, pois você entra em contato com outras formas de agir no mundo. Quais foram questionamentos que
você fez sobre a sua forma de educação? O que você achava errado dentro da sua forma de educação e o que achava certo? Ou
bom e ruim nesse confronto de formações?
Janaína: — Não em relação à minha educação, mas em relação ao meio em que eu vivia e que elas viviam. Dos hábitos, de
lazer e tal... Até pelo fato da minha mãe trabalhar muito, acho que ela pecou no convívio comigo e com a minha irmã, não
sei....
Fernando: — Eu interfiro em defesa da mãe de Janaína e digo: — pecou não, não é? Tava na batalha, às vezes não tinha opção.
Tava batalhando a vida, não é?
Janaína: — É, tava querendo ver o melhor para a gente.
Fernando: — E aí tinha esse contraste com as famílias das outras atletas?
Janaína: — Ah, minha mãe não vai ao meu jogo, mas não tinha como ela ir, pois ela trabalhava a noite toda, não dava para
acordar cedo para ir ver meu jogo, até dava, mas ficava difícil.
Fernando: — E esses choques entre as condições das famílias eram positivos, não é? ou não?
Janaína: — Ah, não sei. Por exemplo, o meu pai. Ele sempre teve carro, era bem de vida... Não bem de vida, mas trabalhava
e conseguia se manter bem. Mas aí depois agora que eu queria aproveitar que ele me levasse de carro ou me buscasse no
treino, alguma coisa assim, ele não tinha mais, entendeu? Isso foi parte da época da minha irmã, mas da minha não.
Fernando: — Você acha que há abuso no relacionamento do treinador com a atleta? A posição de poder do professor faz com
que abusos de todas as ordens sejam tolerados? Ou faz parte do processo?
Janaína: — Não. Até um determinado período eu achava que não. Mas depois eu comecei a achar que sim, foi aí que eu saí do
clube. Quando o Luiz foi trabalhar lá.
Fernando: — Se o Luiz fosse teu treinador desde mirim, talvez você tivesse aturado mais?
Janaína: — Talvez, pois eu já estaria acostumada ao jeito dele.
Fernando: — A experiência que você teve nas quadras, passando por situações de êxito e incompetência na frente de muita
gente que ia assistir aos jogos é diferente das tuas experiências hoje? Como era e é errar hoje em dia e naquele tempo?
Janaína: — Não, agora eu já tenho uma história no voleibol. Agora é mais complicada a cobrança é maior, e você dá mais
importância ao que as pessoas de fora estão vendo, ou estão achando.
Fernando: — Você hoje dá mais importância ao seu desempenho do que dava antes?
Janaína: — Hoje eu sinto mais.
Fernando: — Você acha que a condução das frustrações e das vaidades é feita de maneira correta pelos treinadores? Quais
lembranças têm dessas duas experiências?
Janaína: — Não sei... É por que a gente sempre pegava a súmula amarela. Quando vinha a azul.... Mas era muito difícil.
Fernando: — O relacionamento entre as atletas é influenciada pelo treinador? Muitas das competições internas de uma equipe
acontecem pela postura do treinador? Que outros fatores levam a essa competição interna entre as atletas do mesmo time?
Quando se é mirim é um problema ser reserva ou o que importa é ir para o jogo?
Janaína: — Na época, não. No mirim, por exemplo, eram três levantadoras e cada uma jogava o mesmo número de sets. Já no
infantil e no infanto já era diferente, pois havia só uma vaga de levantadora.
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Fernando: — No mirim então não importa se é reserva ou titular? O mais importante é ir ao jogo?
Janaína: — No mirim era. Depois vai mudando um pouco.
Fernando: — Qual a importância do colégio na sua vida e a do clube? Dá para comparar uma e outra?
Janaína: — O clube foi muito mais importante na minha vida do que a escola. A escola foi uma obrigação minha estar lá aprender.
O clube não, foi uma oportunidade que surgiu.
Fernando: — Foi um ambiente que te ajudou muito mais a te construir como você é hoje do que a escola?
Janaína: — Com certeza.
Fernando: — Nesse momento eu passo a mostrar algumas fotos, súmulas de jogos e anotações de treino.
Fernando: — Trouxe algumas fotos e queria conversar contigo a partir delas. Algumas eu peguei do teu orkut e queria tua
autorização para poder usá-las.
Apresentei as fotos tentando obter alguns relatos, mas não foi producente nesse sentido.
Fernando: — Trouxe umas súmulas de uns jogos que eu dirigi, da equipe que era dirigida pelo Maurício e que eu peguei no
final do campeonato.
Fernando: — Passei a apresentar relações de jogo pelas quais conseguimos determinar as atletas contemporâneas de Janaína
em cada equipe. A iniciativa não gerou uma quantidade de relatos.
Fernando: — alguns anedotários de treinamentos.
Fernando: — Você não era de faltar, não é? Seu nome aparece em todos os treinamentos.
Janaína: — Só faltava quando minha mãe não deixava que fosse por questão de doença. Mas se ela não me proibisse iria.
Fernando: — Você só aparece fora das relações de treino em 2002, justamente quando você começa a jogar no infanto,
categoria dirigida por Luiz. Esse número de faltas já tem relação com tua desmotivação?
Janaína: — Ah, deve ser, pois eu já tinha tido uma torção no joelho, nada grave, mas eu fiquei fazendo tratamento com a
Elaine na piscina.
Fernando: — Pelo que eu vejo aqui você some do Grajaú Tênis por volta de abril/maio de 2002. E abandonou mesmo? Nem
deu satisfação a ninguém do clube?
Janaína: — Não. Abandonei.
Fernando: — E ninguém do clube te ligou? Te procurou?
Janaína: — Eu me lembro que você me ligou, perguntou sobre o meu joelho, mas eu disse que não iria mais voltar a treinar,
que não queria mais.
Fernando: — Eu não me lembrava que havia te ligado. E pela ficha de avaliação dá para ver que você não fez a avaliação de
maio, pois teus dados estão zerados.
Fernando: — Como é que foi a tua vinda para a faculdade?
Janaína: — Caraca... Eu vou fazer uma faculdade, não que fosse impossível, eu queria, mas eu sabia que iria ter que estudar
muito para passar para uma universidade pública e que, mesmo assim, seria muito difícil. Quando eu terminei o ensino médio
e aí eu... caraca...vou ter que trabalhar, para tentar estudar, para tentar uma faculdade pública. Talvez eu não tenha dinheiro
para fazer um cursinho.
Fernando: — Se não fosse o esporte não iria?
Janaína: — Acho que não.
Fernando: — Comecei a ler parte do texto sobre Janaína, e lembrei-me de uma passagem na qual solicitei a um amigo dentista
se poderia fazer um tratamento dentário em Janaína. E falei que desconhecia o fato do pai dela ter carro e uma situação de vida
boa financeiramente.
Fernando: — Eu desconhecia que teu pai tinha carro.
Janaína: — Tinha e trocava de carro todo o ano. Ele era lanterneiro.
Fernando: — E de repente parou de ganhar grana?
Janaína: — É, mulheres, bebidas.
Fernando: — Eu pensei que teu pai era daquele tipo caretão. E tua mãe aturou tudo?
Janaína: — Puxa, coitada da minha mãe. Foi até que a morte os separe mesmo. Sei lá por que. Nessa época que eu nasci ele
já tinha perdido tudo. Eu sempre morei no Salgueiro.
ENTREVISTA COM LARISSA EVARISTO
A entrevista foi realizada no Sport Club Mackenzie e foi dividida em duas partes, a primeira onde foram feitas
perguntas previamente elaboradas e a segunda onde foi desenvolvida uma conversa estimulada por fotos e anotações de jogo
e treinos.
Fernando: - Você lembra quando eu e André fomos ao teu colégio?
Larissa: - Lembro, você falou com a Marly que algumas atletas poderiam vir aqui no Mackenzie fazer um teste. Aí viemos eu
e mais umas 2 ou 3 meninas. E aí passamos eu e a Júlia. Mas a Júlia não quis ficar.
Fernando: - Mas você lembra daquele dia em que eu fui até a escola? Eu lembro de você dentro da quadra batendo bola.
Larissa: - Lembro, disso.
Fernando: - O que a Prof.ª Marly falou com vocês?
Larissa: - Ela falou que foram duas pessoas lá que queriam que nós viéssemos aqui no Mackenzie para fazer um teste para o
vôlei. Eu falei que iria vir.
Fernando: - E você lembra como ela fez esse convite?
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Larissa: - Foi numa aula de Educação Física, ela reuniu todo mundo, nós éramos da mesma sala, e ela falou.
Fernando: - Mas ela não direcionou a uma ou outra aluna? Ela convidou quem quisesse vir?
Larissa: - É. E aí eu pensei, vou lá, pois eu gosto, já jogava pelo colégio.
Fernando: - Você já jogava vôlei no colégio? Na equipe do colégio?
Larissa: - Eu jogava handebol, vôlei, basquete.
Fernando: - E lá sempre havia essas equipes?
Larissa: - Sempre tinha, eu sempre joguei.
Fernando: - Você lembra quando foi fazer o teste no Mackenzie?
Larissa: - Eu lembro assim, mais ou menos. Lembro que a quadra naquela época estava dividida em duas, não sei não me
lembro.
Fernando: - Não tava não foi na quadra toda.
Larissa: - Foi na quadra toda? Não sei. Só lembro que eu fiz dupla com a Júlia, para bater bola.
Fernando: - Você não se lembra do clima do treino, se estava nervosa?
Larissa: - Ah, eu estava nervosa. E não sabia se ia passar ou não.
Fernando: - Você achou que iria passar?
Larissa: - Eu achei, achei que eu treinei bem.
Fernando: - Você teve que ir umas vezes ao grupo de teste antes de passar para a equipe, você passou e outras meninas não,
você tem contato com elas até hoje?
Larissa: - Assim... Eu tenho mais contato com a Lorraine. A Júlia eu nunca mais vi, só converso com ela pelo orkut ou pelo
msn.
Fernando: - E você lembra como foi o primeiro dia e as primeiras impressões que você teve quando foi treinar no primeiro dia
em que você passou para a equipe?
Larissa: - A minha impressão é que era muito difícil. O treinamento era muito difícil. Dar a passada de ataque então.... Era
muito difícil, por que eu pulava em um pé só, lembra? Para mim eu não iria conseguir nunca.
Fernando: - E das garotas? Quais tuas primeiras impressões?
Larissa: - Sei lá, eu não sei se elas gostaram de mim. Eu não conhecia ninguém. A primeira pessoa que eu conheci foi a Aline
B.O, eu acho....E achei ela legal, maneira, e o resto eu fui conhecendo aos poucos.
Fernando: - A Gabriela morava na sua rua, não é?
Larissa: - Isso, a Gabriela morava na minha rua.
Fernando: - E as tuas primeiras impressões do clube?
Larissa: - No tempo que eu fiquei aqui, eu gostava de treinar aqui, mas às vezes tinha que economizar luz, essas coisas... A
gente tinha que treinar na quadra lá de cima que ainda não estava reformada... Lá era ruim de treinar. Mas era legal assim....
Tinha que treinar aqui fora.
Fernando: - De mim do André e do pessoal todo?
Larissa: - Eu gostava de vocês dois... Era muito legal.
Fernando: - E qual foi a reação da tua família quando você disse que iria fazer um teste?
Larissa: - A minha mãe não gostou, disse que eu tinha que estudar. Mas meu pai gostou. Meu pai sempre gostou que eu fizesse
esporte.
Fernando: - Então nesse primeiro passo teu pai foi mais importante que sua mãe?
Larissa: - Foi, foi sim.
Fernando: - E como foi a reação da tua família depois que você virou atleta, depois que você passou no teste?
Larissa: - Aí minha mãe começou a gostar, não implicava mais comigo, aí eu falava que tava no treino, tava tudo bem.
Fernando: - E no que ela implicava contigo?
Larissa: - Reclamava que chegava tarde, que saía cedo e que não fazia nada em casa mais.
Fernando: - E com quais as atletas que você passou a se identificar mais, a ter mais amizade?
Larissa: - Eu ficava mais próximo da Gabriela, que morava na minha rua. Da Aline B.O, da Thaissa, da Aline Lamim, quando
ela jogava aqui ainda. Aline T.T também. Da Dandara.
Fernando: - E como você passou a ser tratada na escola depois que virou atleta? Teve mudança?
Larissa: - Na escola, eu mesma não gostava muito, por que sendo federada eu não podia jogar na escola, mas as meninas
gostaram, algumas foram jogar handebol em outros colégios com bolsa, mas ninguém falava nada não.
Fernando: - Como era a Educação Física na tua escola e o que você achava do trabalho feito pelos professores?
Larissa: - Eu não gostava, por que elas davam a bola e joga aí, faz o que você quiser. Aí a gente se virava. Jogava vôlei só quem
sabia jogar, aí ficava aquele grupinho, nós dividíamos os times. E quem sabia jogar handebol a mesma coisa. Quem queria
jogar jogava e quem não queria....
Fernando: - Mas mesmo assim eles entravam com os times no campeonato? Eles faziam treinamentos?
Larissa: - A gente treinava depois da aula, mas era uma vez por semana só. A gente já chegou a treinar com a Outra professora
e com a Marly, pois era ela quem levava a gente para os jogos.
Fernando: - Qual a importância da Educação Física na escola e dos professores, aí de uma maneira geral, de todos os profes-
sores na sua vida?
Larissa: - Olha, eu sempre gostei de fazer esportes, então para mim era muito importante estar jogando, não só o vôlei, como
o basquete, handebol. E dos professores, quando eu estudei na escola pública , os professores de Educação Física não eram
tão bons assim., mas os outros eu gostava.
Fernando: - Os outros quais?
Larissa: - O professor de história, de matemática... Até por que quando a gente precisava sair mais cedo eles não reclamavam.
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Fernando: - Tem um outro professor marcante no colégio que possa ter te influenciado até hoje na sua vida?
Larissa: - Não acho que não.
Fernando: - Você acha que os clubes pelos quais você passou foram mais importantes do que as escolas?
Larissa: - Eu acho que o clube depois de algum tempo foi até importante, a escola foi porque eu comecei a jogar na escola, eu
fui vista na escola para vir para o clube, então se eu não jogasse na escola eu não iria vir aqui no Mackenzie e dizer: to aqui e
quero jogar vôlei. Então para mim foi importante a escola. E depois aqui no clube foi importante, pois foi daqui que eu fui para
o colégio ADN.
Fernando: - Mas de uma maneira geral, você acha que o clube contribuiu mais para a tua vida pessoal do que a escola?
Larissa: - Eu acho que sim.
Fernando: - E você já participou de algum clube escolar do município, aquele clube escolar que atende aos alunos do muni-
cípio?
Larissa: - É, eu ia até para lá jogar umas peladinhas, mas nunca fui inscrita lá.
Fernando: - Mas você via o trabalho que era feito lá?
Larissa: - Era igual o colégio. Tinha um coletivo... O pessoal ia para lá jogar uma peladinha mesmo.
Fernando: - E o que você achava do trabalho que era desenvolvido nesses clubes escolares e o que era desenvolvido nos
clubes esportivos?
Larissa: - Daqui eu achava que poderia ir para outros lugares, crescer mais, por que aqui já era mais específico. E lá não.
Fernando: - Você era convidada para representar equipes de trabalhos sociais, jogou alguns torneios pelo casa branca, não?
Mas você não era aluna de lá, não é? Só ia para representar esses projetos?
Larissa: - Eu nem cheguei a jogar lá. Eu fui treinar uma vez lá, mas quando chegou o dia do jogo eu nem joguei. Acho que eu
fiquei doente. A gente não treinava lá, a gente só jogou.
Fernando: - Chamaram vocês por que vocês jogavam bem e os alunos que faziam aulas com eles ficaram barrados?
Larissa: - É isso mesmo.
Fernando: - Você acha que conheceu pessoas e lugares que não conheceria se não fosse pelo esporte?
Larissa: - Eu acho. Eu conheci vários lugares, vários outros clubes nos quais fomos jogar. Outras pessoas que hoje em dia são
minhas amigas.
Fernando: - Você acha que essas pessoas que você conheceu no meio do esporte de várias outras classes sociais, se é que a
gente pode chamar assim, ou com mais dinheiro ou menos dinheiro e lugares como clubes, você não teria acesso sem o
esporte?
Larissa: - Eu acho que sim, por que eu não conheço pessoas assim tão fora do comum, em condições financeiras. Eu acho que
conheceria sim.
Fernando: - Mas o esporte facilitou o teu encontro com essas pessoas?
Larissa: - Acho que sim, por que o esporte quando você começa a praticar você convive com aquela pessoa certo horário,
então você está sempre junta, sabe de todas as coisas....então eu acho que sim.
Fernando: - Você consegue perceber que as pessoas com quem você conviveu em uma época da sua vida antes do esporte
seguiram um caminho totalmente diferente do teu?
Larissa: - Eu tive mais contato com as meninas que vieram fazer teste aqui comigo por causa do colégio, por morar perto,
então assim, quando eu comecei a treinar aqui foi todo mundo se afastando. Viraram caminhos diferentes, hoje uma trabalha,
a outra estuda e eu às vezes não posso sair, pois tenho treino ou tenho que dormir mais cedo, pois amanhã eu tenho jogo.
Fernando: - E você sabe como seria sua vida sem que você tivesse entrado no esporte?
Larissa: - Acho que seria diferente por que eu já não gosto de estudar, então com o vôlei eu acho que tenho outras chances de
fazer outras coisas, eu acho que sim, seria bem diferente. Iria ser bem pior.
Fernando: - Às vezes as pessoas ficam muito presas no bairro ou naquela região em que moram e estudam. Você acha que é
diferente do pessoal com quem você foi criada?
Larissa: - Acho que elas nunca tiveram a oportunidade de conhecer pessoas que nem eu conheci... essas coisas. Hoje em dia
eu conheço gente que gosta das mesmas coisas que eu, que freqüenta os mesmos lugares que eu e se não fosse o vôlei, eu iria
conhecer só aquelas pessoas da minha rua, do meu colégio, até por que eu nem teria estudado em um colégio particular. E iria
ser aquelas pessoas do colégio e da minha rua.
Fernando: - Eu me lembro que o time do mackenzie tinha mais meninas negras do que outros times, era verdade?
Larissa: - Era, é verdade. Enfática.
Fernando: - Eu me lembro que você e a Aline B.O ficavam brincando uma com a outra quando chegavam para o treino
chamando uma a outra de negra...forçando bem o R..negrrrrrrraaa! Ou negrinha.....Pode falar um pouco sobre isso?
Larissa: - Ah, era uma brincadeira, eu a chamavaela de negrete, ela me chamava de negrinha. A gente sempre brincou assim...
E como a gente brincava aqui, a gente brinca no Tijuca. Eles falam... sua negrinha, mas era uma forma carinhosa de chamar
ela. E a gente ficava brincando, pois a Aline B.O já era cheia de cuidado... Deixa-me cuidar do meu cabelinho...e eu já era toda
desleixada, largada.
Fernando: - A maioria das atletas tinha um poder aquisitivo maior que o teu. Como era nas viagens e nas reuniões depois do
treino?
Larissa: - A mim, nunca influenciou em nada, até por que quando a gente tinha que viajar, eu dizia em casa: tenho que viajar...e
eu tenho que arrumar esse dinheiro...e tinha as rifas que a gente vendia. E conversava com a minha irmã, com a minha mãe.
A minha mãe nunca reclamou em dar o dinheiro para a viagem, só falava que não podia ficar indo sempre, pedindo sempre e
até que ela não reclamava muito não.
Fernando: - Você vinha a pé para o treino para economizar, não é?
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Larissa: - É, vinha. Quando eu não vinha a pé, eu vinha com a Gabriela. E quando tinha jogo longe eu ia com a Gabriela. Não
podia usar o Rio Card nos finais de semana para ir para os jogos.
Fernando: - Você começou a trabalhar cedo, lembro-me que no infantil você já trabalhava numa casa de festas. Como era
estudar, jogar e trabalhar, ou melhor, como era e como é, já que continua fazendo tudo, não?
Larissa: - Era difícil, continua sendo. Eu consigo até hoje conciliar, mas é difícil. Nos estudos me atrapalha mais por que, no
caso, se tiver festa na quinta-feira, sexta, sábado e domingo, na segunda-feira eu tô morta. No treino até não me atrapalha muito,
por que não é tão cedo, geralmente é à tarde.
Fernando: - Mas isso foi uma opção tua ou por uma necessidade familiar?
Larissa: - Os dois, não era nem uma necessidade desesperadora. Foi por que eu queria ter o meu dinheiro e por que eu queria
ajudar a minha mãe. Então conseguia fazer as duas coisas.
Fernando: - Você acha que o esporte te fez amadurecer, ou era natural que você tivesse um amadurecimento mais rápido que
as outras meninas?
Larissa: - Eu acho que me fez amadurecer um pouco, pois eu convivo com pessoas mais velhas e não eram só as meninas do
vôlei que jogaram comigo, tinha o pessoal da escolinha com os quais a gente conversava. Mas em casa eu sempre convivi com
pessoas mais velhas e quando eu morava em Brasília minhas amigas eram bem mais velhas, eu tinha 11 anos e andava com
pessoas de 20 anos. Eu acho que mesmo fora do esporte eu amadureceria.
Fernando: - Você nasceu em Brasília e veio para o RJ, como foi essa mudança em tua vida?
Larissa: - Para mim eu gostava do Rio de Janeiro, minha família toda morava aqui, só a gente morava em Brasília. Só a gente,
eu e meus pais, se passasse mal não tinha a quem recorrer, só a vizinhos. Aí minha mãe resolveu mudar para cá, eu achei bom,
pois sempre gostei daqui. Mas, quando eu comecei a morar aqui eu senti falta da amigas, depois comecei a me acostuma
Fernando: - A tua escola disputava os jogos do município, não é? Era mais uma iniciativa dos professores ou eles eram
obrigados pela direção da escola?
Larissa: - Era uma iniciativa nossa e da Marly, ela sempre gostou de participar desses jogos.
Fernando: - Você lembra da Karina? Ela era do Mackenzie na época em que você entrou, mas ela saiu e você não. O que você
acha que pode ter facilitado as coisas para você e não para ela?
Larissa: - Acho que a gente nunca chegou a jogar junto, quando eu cheguei acho ela tava parando. Acho que parou para
estudar, para fazer a prova para o Pedro II.
Fernando: - Você jogou no Mackenzie e joga no Tijuca, quais as diferenças entre as pessoas que freqüentam esses dois clubes
e as atletas que jogam nesses clubes?
Larissa: - Ah, é muito diferente, eu tava falando outro dia para minhas amigas lá. Teve uma briga lá com a gente, aí eu falei,
no Mackenzie nunca teve isso, essas palhaçadas. Lá eu acho que é uma querendo passar por cima da outra para se dar bem. Até
por que é um clube grande e que qualquer uma ali pode subir a qualquer hora, então uma faz fofoca dali, outra faz fofoca
daqui. Aparecem oportunidades, como essa que apareceu para mim, de ir para os Estados Unidos, ou de ir para a seleção. E
depois que chegaram duas meninas de Minas Gerais piorou, pois tinham meninas que eram titulares e foram para o banco e
começam a falar que não gostam delas. E vai dando aquela fofoca, e aqui nunca teve isso, o tempo que eu fiquei aqui foi
sempre todo mundo unido, nunca teve briga.
Fernando: - E como clube?
Larissa: - Aqui a gente nunca teve muita estrutura e lá a gente tem bola, quadra, não tem esse limite de luz, até por que tem um
horário certo para o vôlei, para o basquete.
Fernando: - E do pessoal que freqüenta o clube?
Larissa: - Do pessoal que freqüenta o clube eu não sei, nunca tive contato com ninguém.
Fernando: - Quando você lembra de tudo o que passou no Mackenzie, quais as lembranças que te vem à cabeça?
Larissa: - Eu gostei do tempo que eu joguei aqui, por que daqui é que eu consegui ir para o Tijuca, daqui é que eu consegui ir
para o meu colégio, foi daqui que eu levei coisas boas. Até aqui na minha vida coisas boas eu sempre me lembrei daqui com
satisfação, das pessoas, dos técnicos. Sempre gostei e sempre falo bem. As pessoas falam para mim: você era do Mackenzie
perdia direto...e eu falo: ei,ei,eiii, no Mackenzie não tinha falsidade, não tinha nada disso. Sempre defendi, sempre gostei de
lá.
Fernando: - E quais as meninas que ficaram mais tua amiga?
Larissa: - Dandara, a gente sempre se fala pelo telefone. A Aline B.O. E a Gabriela.
Fernando: - Você passou por uma mudança grande indo estudar no ADN com bolsa de estudo?
Larissa: - No primeiro ano eu fui para lá e foi muito difícil, sair de uma escola pública para uma escola particular, assim, na
Escola pública era assim...quer fazer faz, não quer não faz...e para mim foi muito difícil , eu senti muito a diferença. Aí veio
o segundo ano e foi mais fácil. O terceiro ano já foi mais fácil. O que pesou mesmo foi o primeiro ano.
Fernando: - E a convivência dentro do colégio era diferente também?
Larissa: - Era, as pessoas, não sei se de todos os colégios particulares, mas lá era grupinho, aqueles que têm dinheiro e aqueles
que não têm. E para mim era assim, já na Escola pública não, todo mundo era amigo, todo mundo se conhecia, até por que
morava todo mundo perto.
Fernando: - Essa mudança te ajudou a saber viver com a diferença?
Larissa: - Me ajudou a conviver com pessoas de nível social diferente do meu e saber lidar com aquilo, respeitar, saber
conversar ou até mesmo sair...me ajudou muito nesse aspecto.
Fernando: - Você acha que existe um preconceito no esporte?
Larissa: - Eu acho que existe. Eu nunca sofri nenhum preconceito, a não ser de altura, mas de grana, de cor, nada...mas eu
acho que existe sim, devem ter pessoas que sofrem.
Fernando: - E fora do esporte, já sofreu com preconceito?
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Larissa: - Nunca sofri, a não ser financeiro, de cor eu nunca sofri nenhum preconceito. Mas financeiro sim, às vezes não poder
ir a um lugar, freqüentar os mesmos lugares por não ter dinheiro, já.
Fernando: - Você acha que esses preconceitos aparecem mais no colégio do que nos clubes?
Larissa: - Acho que sim, principalmente nos colégios particulares. As pessoas pegavam o boleto para pagar a mensalidade e eu
nunca precisava pegar e as pessoas diziam: você só estuda aqui por que tem bolsa. E eu falava: com certeza...eu tenho
capacidade para ter bolsa.
Fernando: - E a tua mãe? O que ela acha de você continuar sendo atleta?
Larissa: - Meus pais gostam, mas eles acham muito diferente, por que aqui eu era titular e lá eu quase não jogo, então é bem
diferente. A minha mãe já acha que o treinador está de complô, mas eu tento explicar para ela que eu tenho que esperar minha
hora e que eu to treinando para isso.
Fernando: - Hoje você está num outro clube e pode comparar com aquele trabalho que a gente fazia aqui. Você acha que a
gente cometeu muitos erros?
Larissa: - Que erros?
Fernando: - Não sei, alguma coisa que a gente fazia e não deveria fazer?
Larissa: - Eu acho que não. Não é igual o treinamento, mas são as mesmas coisas. O que eu aprendi aqui poderia estar
aprendendo no Tijuca.
Fernando: - Você acha que é importante ter esses clubes, mesmo perdendo todas as partidas, sem muita estrutura?
Larissa: - Acho, por que foi assim que eu criei experiência para poder passar em um clube maior. Se não tivesse esse clube eu
nunca iria saber o que é jogar em Macaé, em Campos, jogar contra o Flamengo, perder, mas jogava, tava ali.
Fernando: - A competição entre as atletas é fomentada pelos técnicos?
Larissa: - Não, acho que é entre as atletas.
Fernando: - Você acha que os professores cometem abusos nas equipes e que a posição de poder do professor faz com que isso
seja tolerado? Ou isso é parte do processo?
Larissa: - Depende do abuso, mas acho que faz parte. Dar um esporro mais forte. O que não pode é assim...aquela pessoa está
errada e a outra também, e você dá um esporro em uma e na outra não. Tem que dar igual nas duas. Mas às vezes tem treinador
que acha que nunca está errado, você não pode discutir com ele, e em alguns momentos eu acho que ele está errado, mas eu
não posso discutir com ele, por que na hora ele te manda embora e depois quando pensa, vê que ta errado, mas não volta atrás.
Fernando: - Aí você tem que aturar para continuar jogando?
Larissa: - Com certeza.
Fernando: - E a pior coisa do esporte?
Larissa: - É, é a pior coisa do esporte. Ou senão, uma pode falar as coisas por que é a queridinha e outra não pode falar nada.
Fernando: - E o que determina isso?
Larissa: - Acho que tem a ver com os pais das atletas. Outro dia aconteceu uma briga onde 8 ou 9 meninas foram contra uma,
por causa de garoto. Uma tinha ficado com o namorado da outra e a gente não achou certo e foi para cima dela. Só que o pai
dela paga o apartamento, a comida e a passagem de um pessoal que joga no clube. E foi todo mundo do clube contra a gente,
ninguém ficou a nosso favor. E falaram que se ela não voltasse a jogar no Tijuca as nove seriam dispensadas. É por causa do
pai dela que paga essas coisas todas. O treinador se meteu dizendo que não estava do lado de ninguém, mas para mim ele
estava, e que só se meteu por que aconteceu no vestiário do clube.
Fernando: - Como você lidava com a experiência de sucesso e fracasso na quadra? Como era errar quando você era mirim e
como é agora?
Larissa: - Aqui eu gostava, mesmo perdendo, para mim todo mundo falava... ah, você joga muito. Não gostava de perder, mas
gostava de estar ali competindo, querendo ganhar... E agora eu não posso errar tanto quanto eu errava antigamente, por que é
uma tentando passar por cima da outra, então você tem que ter o mínimo de erro possível, para poder estar ali naquela meta.
Fernando: - E como é que você se sentia aqui quando perdia?
Larissa: - Ficava triste por que a gente ralava para caramba e nunca conseguia ganhar, a gente já conseguiu ganhar uma vez.
Fernando: - Você lembra qual foi tua primeira vitória e qual o teu primeiro jogo aqui no Mackenzie?
Larissa: - Não me lembro.
Fernando: - Pelas súmulas que eu tenho, teu primeiro jogo foi com o Miraflores em Niterói no dia 13/04/2003 e tua primeira
vitória foi no jogo do Monte Sinai, você lembra disso?
Larissa: - Não, não lembro. Lembro da vitória do Monte Sinai.
Fernando: - O jogo do Monte Sinai foi cinco meses depois da tua estréia e como foi ganhar esse jogo?
Larissa: - Foi muito bom, primeiro jogo que você ganha. É muito bom ganhar.
ENTREVISTA COM MÁRCIA SANTOS
Depois de um abraço saudoso ela foi logo me mostrando a aliança na mão esquerda e dizendo que havia se casado há três
meses. Surpreendi-me com a notícia e dei-lhe os parabéns. Ela continua atlética, parece não ter mudado muito fisicamente,
porém está mais madura e séria, até um pouco contida, mas começo a fazer algumas brincadeiras dizendo que achava que iria
encontrá-la gorda e barriguda e ela começa a rir e vamos nos descontraindo, pois confesso estar apreensivo com aquele
momento que julgava ser muito precioso para a minha pesquisa.
Sentamos em um banco de concreto na entrada da escola e começamos a conversar. Perguntei-lhe sobre o casamento e se o
rapaz era da Igreja, pois Márcia converteu-se a uma igreja evangélica. Ela entendeu que eu havia perguntado se haviam
casado na Igreja:
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Márcia — Não, casamos só no civil.
Fernando — Perguntei se ele também é da igreja?
Márcia — Ainda não é, mas vai ser — mostrando a intenção de converter o marido à igreja evangélica.
Disse que ainda mora na mesma rua que morava, embora a vizinha houvesse me dito que ela havia se mudado da vizinhança, que
faz curso técnico em administração em uma escola do estado e está estagiando na FAETEC de Quintino no departamento
pessoal.
Fiz uma introdução sobre a minha dissertação e o quê é o mestrado. Márcia fez um agradecimento por incluí-la nesse trabalho
e como se sentia feliz e importante por essa inclusão. Por isso eu temia tanto em não conseguir entrevistá-la e trazer sua
experiência, relatos de experiência e opiniões para minha pesquisa. Emocionado com a sua fala de agradecimento achei
melhor ir logo às perguntas que havia preparado, antes que esgotássemos o tempo previsto, pois dalí ela seguiria para seu
estágio e minha vontade era fazer um discurso dizendo da sua importância na rede que forma a minha maneira de ver o
mundo.
Nessa introdução estava falando sobre o que me fez escolher as três meninas das quais faria, através de seus relatos e memó-
rias, o ponto de partida dos meus questionamentos e fiz uma constatação sobre a situação financeira-econômica das três, dizia
eu:
Fernando — ...entre as semelhanças que vocês três têm (Larissa, Janaína e Márcia) estão o fato de serem mulheres, afro-
descendentes, terem vindo da escola pública para o clube e terem uma situação financeira ruim...— ao que Márcia me inter-
rompe.
Márcia — Ruim, não... Baixíssima!
Fernando — Mas, vocês tinham uma condição econômica boa, mas tinham uma família que orientava, não é?
Márcia — É, nem tudo é o dinheiro a família é a base de tudo.
Fernando — Quem te levou para o projeto SCM foi o professor André?
Márcia — Foi o André, e foi aqui mesmo que ele fez o convite.
Fernando — E você lembra como foi esse convite?
Márcia — Ele perguntou se eu queria participar de uma seleção que haveria no Mackenzie. Foi quando marcou para irmos, eu
e a Camilla, e foi como nós fomos selecionadas.
Fernando — Mas, foi uma galera junto com vocês?
Márcia — Foi. Foram Camila, Mariana, Carine, foram várias meninas.
Fernando — E você estudava à tarde?
Márcia — Estudava à tarde e ia treinar à noite.
Fernando — Esse primeiro período não foi pela manhã?
Márcia — Isso, era terça e quinta-feira pela manhã.
Fernando — Aí ficaram treinando um mês e foram selecionadas você e a Camila, não é?
Márcia — A Camila como levantadora e eu como meio-de-rede.
Fernando — Então você lembra das meninas que foram?
Márcia — Lembro, foi muito boa essa época — mostrando-se muito emocionada ao falar sobre aqueles momentos.
Fernando — E como vocês fizeram para ir lá?
Márcia — A gente marcou aqui na frente do colégio e foi todo mundo junto. A mãe da Camila foi. A mãe de todo mundo foi,
menos a minha e a da Carine.
Fernando — E quando você recebeu o convite para fazer o teste sua família gostou?
Márcia — Gostou.
Fernando — E você já tinha um irmão que jogava futebol, não tinha?
Márcia — O Maurício, meu irmão do meio.
Fernando — E ele ainda joga?
Márcia — Não, parou ta cortando cabelo agora.
Fernando — Mas ele jogava onde?
Márcia — Nessa época ele foi viajar lá para Coritiba, para fazer um teste em um time de lá. Mas não deu certo e voltou.
desistiu, continua jogando como amador, mas não profissionalmente.
Fernando — A tua mãe gostava dele ser jogador de futebol?
Márcia — Gostava é um caminha importante, tira da rua, desses pensamentos de tráfico de drogas, ajuda muito. Por que ocupa
sua mente com outras coisas.
Fernando — Você acha que ajuda mesmo?
Márcia — enfáticaAjuda, ajuda muito, me ajudou muito. Foi muito importante para mim nessa época.
Fernando — Você acha que o esporte tem esse poder?
Márcia — Tem esse poder de transformar, de tirar da rua para colocar com o objetivo de querer crescer, de coletividade, a
pensar no outro. Melhora 100%, 200%.
Fernando — E quando você passou no teste?
Márcia — Fiquei muito feliz.
Fernando — E tua família?
Márcia — Também ficou muito feliz, ganhei o uniforme, ia até vir com ele hoje, tenho guardado comigo até hoje. Foi muito
importante. Eu me senti mais confiante.
Fernando — Você achava que iria passar nesse teste?
Márcia — Não, eu achava que não iria passar, por que eu jogava por jogar, mas lá dentro era outra coisa, não é ? Muito difícil,
eu nunca aprendi o rodízio direito. — imitando os gritos dos professores e atletas — Márcia, vem para cá... Márcia, vai para
lá. Eu nunca aprendi direito aquilo.
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Fernando — A muito custo, mas aprendeu sim.
Márcia — É, com muito custo, mas aprendi sim.
Fernando — E qual foi a tua primeira impressão do clube?
Márcia — Foi boa. Muito organizado. Infelizmente a gente treinava na quadra assim. — apontando para o chão da calçada e
fazendo referência ao piso da quadra externa do clube que era de cimento áspero — Mas, também foi importante para saber
fazer e não se machucar.
Fernando — Mas, fora a quadra ruim, você achou o clube com uma boa estrutura?
Márcia — Era boa, pois tinha tudo, tinha bola, tinha rede, tinha um horário de quadra só para a gente, a gente tinha o nosso
espaço.
Fernando — Diferente dos outros ambientes de esportes que você conhecia?
Márcia — Era... Totalmente diferente.
Fernando — E a tua impressão de mim?
Márcia — Muito rigoroso, muito rígido, muito sério, exigente, como todo professor tem que ser, para ter um bom atleta, um
bom aluno. E às vezes descontraído.
Fernando — E o André?
Márcia — Ah, o André o mais bobão, não é? — referindo-se a André carinhosamente e com um sorriso largo — Ele era mais
brincalhão, mas também era sério. Até corrigindo a gente ele era engraçado, mas a gente entendia o que ele queria passar.
Fernando — Quando você foi para a equipe só conseguia treinar duas vezes por semana à noite. E como era estudar à tarde e
ir treinar à noite?
Márcia — Era bom por que eu gostava. A gente saía da escola 17 e 30 h, às vezes o André ia com a gente, pois ele dava aulas
no período da tarde, aí nos últimos tempos ia junto. Chegava lá umas 18 horas e as 20 e 30 ou 21 horas vinha embora para
casa.
Fernando — E a família não reclamava disso?
Márcia — Não, ninguém reclamava.
Fernando — Como foi no colégio o fato de você ter virado atleta? Mudou alguma coisa?
Márcia — Mudou muito, uma porção de gente vinha perguntar como é que era ser atleta. Por que uma atleta — fala a palavra
atleta com orgulho — dentro da sala de aula é diferente, não é? O jeito de falar com os outros. Ensinava também algumas
coisas que a gente aprendia nos treinos nas aulas de Educação Física. Todo mundo procurava — ah, quero a Márcia no meu
time — imitando a voz das amigas — o jogo aqui era péssimo, por que eu sabia um pouquinho, mas ninguém sabia nada. Mas
era muito bom ensinar para os outros um pouco daquilo que eu tinha aprendido.
Fernando — E o fato de você estar em uma equipe modificou a tua maneira de ser na sala de aula?
Márcia — A minha postura? Modificou sim, claro que modificou. As pessoas passaram a me considerar mais. A Márcia, a
atleta, jogadora de vôlei, vai a campeonatos, viaja com a equipe do clube. Foi importante.
Fernando — E no teu colégio você já jogava os jogos escolares?
Márcia — Jogava. Joguei o handebol. Com o André. E olha, fiz o maior número de gols em uma partida, fiz sete gols. Mas
também a gente não ganhou, nem com esses sete gols.
Fernando — E o André é o professor que fazia essas equipes?
Márcia — Ele que incentivava a participar.
Fernando — E você estudou aqui desde que série?
Márcia — Estudei a minha vida toda aqui. Do C.A até a oitava série e depois fiz o ensino médio aqui à noite.
Fernando — E ninguém fazia equipe?
Márcia — A professora Lúcia e a Fátima faziam, mas só aqui dentro do colégio. Às vezes, muito raramente a gente ia jogar
com outro colégio.
Fernando — E o quê mudou na tua vida com o esporte?
Márcia — A minha formação pessoal, o pensamento de coletividade, pensar no outro, você tem que acertar para o outro poder
acertar. Mudou muito.
Fernando — E mudou a tua maneira de agir em casa?
Márcia — Mudou, fiquei mais responsável, fiquei mais concentrada nas coisas também. Eu era meio rebelde — titubeia e diz
que não era rebelde e tenta explicar o uso do termo rebelde — eu não era rebelde, assim rebelde — exacerbando a forma de
falar rebelde — era desobediente, mas comecei a pensar mais no que fazia, pois tinha um objetivo na vida que era ser
jogadora de vôlei, mas enquanto durasse, que fosse eterno enquanto durasse.
Fernando — Mas você tinha essa vontade de ser atleta de vôlei? Você viu que tinha condições de ser atleta de vôlei?
Márcia — Tinha vontade de ser. E acho que eu tinha jeito para a coisa. Que eu estava aprendendo e que estava dando certo.
Fernando — Eu conversei só uma vez com a tua mãe e achei uma pessoa muito tranqüila e inteligente. Ela é uma referência
na tua vida?
Márcia — É uma referência de força, de dedicação, de batalha....
Fernando — A tua família é humilde?
Márcia — É humilde, mas luta pelo que quer.
Fernando — Teu pai e mãe estudaram? E sempre te incentivaram a estudar?
Márcia — Minha mãe estudou até a oitava série e meu pai até a quinta. Eles me incentivaram, mas não tomavam conta,
entendeu? Eu é que sempre fui determinada nas coisas. Eu sempre pensei... Eu quero fazer isso, vou fazer e pronto acabou.
Fernando — Eu tenho duas fotos em que você aparece, uma em um amistoso no Grajaú Tênis e outra de uma viagem a
Campos. Você lembra disso?
Márcia — Eu lembro. Lembro que a gente viajou para Campos e Macaé. E a gente venceu em Macaé, não foi?
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Fernando — Não foi em Campos, no primeiro jogo do campeonato de 2004. E aquela vitória?
Márcia — Foi muito importante, foi a primeira vitória da gente fora de casa, não foi?
Fernando — Daquele grupo foi.
Fernando — Qual a tua impressão sobre as meninas da equipe do Mackenzie quando você chegou?
Márcia — No começo foi aquele gelo, depois com o passar dos tempos, da coletividade, a gente foi passando a se gostar, a
compartilhar as coisas, a conversar e a se ajudar em quadra dizer, foi uma impressão boa que eu tive.
Fernando — Com qual das meninas você manteve um relacionamento mais legal?
Márcia — Com a Larissa e com a Gabriela, fora a Camila que eu já conhecia.
Fernando — O que representava para você estar treinando e ser atleta?
Márcia — Para mim era importante, uma responsabilidade que eu tinha de estar junto com o grupo, de ajudar o grupo, para
mim foi importante.
Fernando — Você tinha uma série de dificuldades financeiras, mas conseguia freqüentar os treinos. Qual era a tua motivação?
Márcia — Era o incentivo dos professores. Vocês incentivavam a gente a não desistir.
Fernando — E a gente perdia muito, isso fazia diferença?
Márcia — Fazia diferença para a gente poder aprender com nossos erros. Fazia diferença, pois a gente não treinava para
perder. A gente treinava para ganhar, quando perdia se sentir triste.
Fernando — Se sentia triste, mas não tinha vontade de desistir?
Márcia — Não, perdendo ou ganhando sempre unidos, éramos um time. Ganhando, lógico melhor, mas perdendo vamos
treinar mais, vamos ver onde estamos errando.
Fernando — O treinamento era mais importante do que o jogo? Se não tivesse jogo também seria bom?
Márcia — É, o jogo era uma conseqüência do treino, se a gente treinava bem, a gente jogava bem. E se não tivesse jogo já
valia, por que era bom estar ali junto.
Fernando — E se só jogasse?
Márcia — Não iria ser legal, ia fazer o quê na quadra? Sem treinar?
Fernando — As atletas tinham uma condição econômica melhor que a sua. Isso atrapalhava o relacionamento de vocês? Você
se sentiu constrangida alguma vez?
Márcia — Nunca. Ali na quadra nós éramos jogadoras de vôlei e fora também, éramos colegas do vôlei.
Fernando — Eu converso com algumas pessoas que quando saem da escola e vão para o clube se sentem como se não fossem
dalí...
Márcia — Se sentem um peixe fora d’água.
Fernando — Isso. Você se sentiu um peixe fora d’água?
Márcia — No início sim, mas depois vi que ali era um ambiente também para mim. Que eu fazia por onde ser respeitada.
Fernando — As meninas saiam juntas algumas vezes. Elas te convidavam?
Márcia — Elas me chamavam, mas eu só fui uma vez em que a Larissa combinou para a gente bater bola em uma quadra que
tem lá no Méier.
Fernando — E por que você parou de jogar?
Márcia — Eu parei de jogar porque eu passei a me dedicar mais à escola. E também pela condição financeira, pois eu não
tinha dinheiro de passagem. Lembra que você queria me ajudar com uma cesta básica? Eu nunca aceitei. Eu disse que ia jogar
até quando desse para eu ir, independente de alguém me ajudar. Não que eu estivesse menosprezando a ajuda, era um pouco
de orgulho meu também.
Fernando — Então o que pesou mais foi a questão financeira?
Márcia — É foi, é verdade.
Fernando — Como você mesmo falou, você tinha o sonho de ser atleta e isso te frustrou?
Márcia — Um pouco, no começo eu fiquei triste. Fazia parte do meu dia, da minha rotina. Mas depois eu fui levando.
Fernando — Como foi você perceber que não foi uma questão técnica ou de incapacidade que não te deixou prosseguir e sim
uma questão financeira?
Márcia — Eu me senti muito frustrada nessa época. Eu saber que poderia, mas que não tava dando.
Fernando — Eu me lembro que a gente arrumou uma bolsa de estudos no ADN e você não pode ficar por que tinha que pagar
uma matrícula e a passagem de ônibus, não foi?
Márcia — É, pois eu tinha o RioCard, mas como era um colégio particular eu iria perder esse direito. E não iria ter o dinheiro
das passagens. Essa questão financeira me separou do vôlei. Não só do vôlei. De várias coisas
Fernando —. A Larissa fala que a ida dela para o vôlei e depois para o colégio particular ampliou os horizontes dela, isso deve
ter acontecido com você também?
Márcia — Ajudou a ampliar os limites. Se você fica ali naquele mundinho, você diz, ta bom aqui. Depois que você passa a
conhecer outros lugares como eu conheci, passei a ver que não é só esse meu mundinho, esse meu bairro.
Fernando — O nosso time tinha muita atleta negra, não é? Tinha mais negras do que os outros times todos?
Márcia — Tinha, era 100% mais negro que todos os outros. Acho importante, por que a qualidade não ta na cor.
Fernando — E o nosso time era pobre também, não é? Você acha que tinha essa relação entre a cor da pele a condição
financeira?
Márcia — É, talvez.
Fernando — Uma vez eu te ofereci uma ajuda de custo para você continuar jogando. E você me disse que teria que parar por
que precisava trabalhar, pois precisava comprar coisas básicas que você queria e não tinha, como lápis, caderno e coisas para
estudar. Isso te magoava muito, não?
Márcia — Muito — fala com a voz um pouco embargada e com lágrimas nos olhos.
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Fernando — E eu me lembro que quando você falou que não iria aceitar a ajuda que te ofereci, você disse que nunca tinha ido
ao MacDonald’s...
Márcia — E hoje eu vou e não vejo graça...
Fernando — Mas na época era fogo, não é?
Márcia — É, todo mundo ia, não é! E eu que ficava de fora.
Fernando — E eu conto isso para as pessoas, que eu tinha uma atleta que com quase 16 anos, em 2004, nunca tinha ido ao
MacDonald’s e tem gente que não acredita.
Fernando — Você é evangélica. Nem sempre você foi evangélica?
Márcia — Não, nem sempre fui. Agora eu sou de Jesus. Antigamente eu não era. Eu cria nele, mas não era.
Fernando — E foi nessa época que você foi para a igreja, não foi? Eu me lembro numa preleção no clube do Flamengo que eu
peguei uma planta e coloquei atrás da orelha dizendo que era arruda e você falou uma porção de coisas.
Márcia — Tá amarrado! Eu creio só em Jesus, essas coisas são simbólicas.
Fernando — Simbólicas? Tem gente que crê nisso também.
Márcia — É! Simbólicas, tem gente que crê, mas está errado. As pessoas se enganam, elas não querem ver a verdade. Se um
santo cai no chão e quebra, o meu Deus não quebra.
Fernando — Essa entrada na igreja pode ter atrapalhado a sua vida como atleta?
Márcia — A igreja sempre incentivou o esporte. É bom por que cuida do seu espírito, da sua alma... Você está bem, você está
feliz. Fazendo coisas que você gosta. Está cuidando da sua mente.
Fernando — Não tem nada a ver com uma restrição da igreja?
Márcia — Não — imitando como se outras pessoas falassem sobre o que pode ou não aos evangélicos — você é da igreja não
pode ser atleta, você não pode cortar o cabelo, você não pode se maquiar, você não pode estar bonito, não pode ficar cheiro-
sa... Isso não tem nada a ver. Não tem nada a ver, você tem que se cuidar, tem que estar bem — enfática.
Fernando — A tua mãe que foi primeiro para a igreja e te levou?
Márcia — Agora ela saiu, mas ela vai voltar. Voltou a fumar. Hoje não tem sido o meu referencial, como antigamente. Meu
referencial tem sido Jesus, hoje. Mas ela vai voltar. Não tem outro caminho, não é?
Fernando — Eu acho que você teria tudo para ser uma boa atleta, isso é difícil de falar, pois às vezes você pega uma atleta que
vai evoluindo e de repente para de evoluir. O que não acontecia com você, pois você treinou pouco tempo em relação às outras
meninas e evoluiu muito. E quando você parou, o quê você colocou no lugar desse teu sonho de ser atleta?
Márcia — Meus estudos.
Fernando — O que você achava da postura dos treinadores com que trabalhou, eu e André?
Márcia — Uma postura de guerreiros — rindo muito -— só vocês mesmos. Vocês gritavam e a gente ria muito. Mas muito
importante a postura de vocês que incentivavam a gente a não desistir dentro de quadra, mesmo perdendo de lavada.
Fernando — rindo -— A gente perdi, mas não perdia a pose, não é? E isso era importante para você?
Márcia — Muito importante. Desistir nunca, retroceder jamais. Perseverar, não é?
Fernando — Muita gente da tua comunidade, do meio em que você foi criada não sabe o que é ser atleta, nunca teve essa
experiência. Principalmente as mulheres, não é? Você acha que essa experiência pode mudar a vida dessas pessoas?
Márcia — Os jovens, hoje, naquela época também, mas mais hoje, com 14, 15 anos não têm responsabilidade com nada.
Quando você coloca um objetivo, você passa a ser responsável. Você passa a escolher — vou deixar de fazer isso para fazer
aquilo — não vou ficar aqui de papo furado por que eu tenho treino amanhã, tenho que acordar cedo. Vou prestar atenção na
aula por que não vou ter tempo para estudar.
Fernando — E o contato com essa organização que você teve no clube você não tinha em outro lugar?
Márcia — Não, não tinha nem em casa. Meus pais sempre me incentivaram muito, mas eles nunca acompanhavam. Meu pai
até hoje, acho que não sabe nem em que série que eu estou, mas ele sabia que eu estava estudando. Não eram presentes, mas
gostavam que eu estivesse estudando.
Fernando — Você não acha que foi uma coisa que faltou para eles também?
Márcia — É como é que você vai falar de uma coisa que você nunca teve?
Fernando — E o quê você aprendeu lá?
Márcia — A ralar para conseguir as coisas que quer. A gente treinava, se ralava no chão, às vezes se machucava, mas quando
chegava na hora do jogo era satisfatório, ganhando ou perdendo.
Fernando — E a tua vida hoje melhorou? Eu acho que você já era mais responsável do que algumas meninas da tua idade. Mas
você acha que a tua passagem no esporte te fez amadurecer mais ainda?
Márcia — A dificuldade trás responsabilidade. Eu acho que me ajudou a ser mais responsável.
Fernando — Você consegue ver uma diferença entre as meninas com as quais você foi criada e você? Hoje.
Márcia — Muito, das pessoas que eu convivia naquela época, pergunta se alguém está estudando? Pergunta o que essa pessoa
faz hoje em dia? A única das meninas daquela época, que está almejando uma faculdade, que está estudando sou eu. Não é por
que você está me entrevistando que eu estou falando isso. Uma começou a usar drogas, fumar. A outra parou de estudar.
Fernando — E você acha que o esporte te ajudou a ser diferente dessas meninas?
Márcia — Ajudou, por que aumentou meus horizontes. Por que antes eu só vivia aqui. Mas não, eu fui para o Flamengo, que
é até o clube que eu torço no futebol, conheci novos bairros, viajei, fui para outras cidades. Você passa a ter uma mente
diferente, passa a pensar em se dedicar ao esporte para conhecer outros lugares diferentes desse que eu vivo.
Fernando — A escola foi importante na sua vida?
Márcia — Muito importante, a escola, os professores. Os de Educação Física, Dona Penha, professor Cláudio de matemática,
a de história, ih esqueci o nome dela. Mas muitos.
Fernando — E foi importante por quê?
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Márcia — Foi importante por que me deu uma base, em nível de conhecimentos teóricos, sem isso você não faz nada lá fora,
não é? Nem tudo você aprende só no falar, você tem que estudar também. Você não pode fazer o mestrado só de ouvir os
outros falarem, você tem que estar lá presente, todo dia assistindo a aula, não é?
Fernando — Entre o clube e a escola embora você tenha passado mais tempo na escola do que no clube, quem contribuiu mais
para a tua vida?
Márcia — Os dois foram equivalentes. Eu aprendi no clube tanto quanto aqui na escola. E não é uma questão de tempo não,
é de conteúdo. Na escola eu aprendi coisas mais específicas e no clube aprendi mais coisas do mundo. Aqui eu aprendi as
matérias, português, matemática. E no clube eu aprendi a como se portar em um jogo, como eu devo me portar perante os
outros, comportamento diante dos outros, acho que isso foi importante. É uma outra educação. Aqui na escola você não
aprende postura, postura no sentido de incentivo, de batalhar, lá no clube você aprende postura. Na escola era mais corrigir,
você fez errado, no clube era mais uma relação de professor e aluno, quase de pai para filho, era mais conselho, faz isso daqui
que vai dar certo.
Fernando — O professor é o pai? —rindo.
Márcia — É, dando “esporro”, dando bronca.
Fernando — Mas essa relação de pai para filho também tem na escola, essa preocupação do professor?
Márcia — Tem, mas é como eu to falando. Na escola é mais matéria. Professor e aluno, e lá no clube já não era professor e
aluna, você participava mais tempo, não é você sentado na carteira e o professor te ensinando. Lá era coletividade. Era físico,
a gente participava, interagia, era diferente da sala de aula.
Fernando — O clube pode ser uma escola, não é?
Márcia — Pode ser e pode não ser depende do professor. E uma escola também pode não ser uma escola, depende do
professor. Se o professor não pegar no pé do aluno, o aluno não vai querer estudar.
Fernando — Você acha que a função do professor é pegar no pé do aluno?
Márcia — Incentivar. Instruir.
Fernando — E o aluno que não quer?
Márcia — O que eu digo é que se o professor dentro da sala de aula não incentivar o aluno para estudar, como o treinador, se
não incentivar o atleta a querer treinar, o atleta não vai querer treinar, tem que estimular, fazer aparecer esse querer dentro da
pessoa.
Fernando — E no SCM, você se sentiu estimulada?
Márcia — Claro, por isso que eu permaneci, até quando não deu mais.
Fernando — e você conheceu um novo tipo de mundo, além daquele que você conhecia? Não estou falando de lugares, não.
Márcia — Diferente em tudo, estrutura e ambiente.
Fernando — Quando a gente jogava com um clube de maior estrutura você se sentia diminuída?
Márcia — Não, tinha uma diferença financeira. Mas o que faz diferença é o atleta e o trabalho que é feito com ele. Não é só
estrutura.
Fernando — E daqui para frente o que você pretende fazer?
Márcia — Pretendo entrar na faculdade. Eu estou fazendo um curso técnico de administração, faço estágio em recursos
humanos e quero entrar para a faculdade, mas tenho que fazer um curso preparatório, pois acho difícil entrar direto.
Fernando — Tenta a UERJ, tem o sistema de cotas para afro-descendentes.
Márcia — Isso é um absurdo esse negócio de cota. Por que o negro não é pior e nem melhor do que ninguém. A expressão cota
para negros já é um preconceito. As pessoas querem maquiar, mas é um preconceito. Isso é um absurdo.
Fernando — Mas isso são medidas para reduzir a diferença histórica de oportunidades entre brancos e negros.
Márcia — E cota é apoio? Não dizem que as oportunidades são iguais para todos?
Fernando — Mas a tua própria história não está aí mostrando que as oportunidades não são iguais, que há uma diferença de
condições para se aproveitar as oportunidades?
Márcia — As oportunidades não são iguais, mas não quer dizer que eu não seja capaz.
Fernando — Com certeza, ninguém diz que você não é capaz por ser negra, as cotas somente ajudam as pessoas a passarem
pela barreira do vestibular. Poderiam ser cotas para as pessoas estudam no ensino público, por exemplo.
Márcia — Também não acho que isso seja certo, acho que não deveria haver cotas. Se você quer entrar na faculdade tem que
estudar. Todo mundo que quer entrar na faculdade tem que estudar e só por que eu sou negra vou entrar sem estudar, por que
tem uma cota para mim lá.
Fernando — Você acha que o esporte discrimina os negros?
Márcia — Não, o esporte abraça a todos que querem alguma coisa. Se você é negro e tem qualidade está dentro do esporte,
mas se você é negro e não tem jeito para a coisa você não vai ser aceito. Mas tem os esportes de elite que aí tem realmente essa
partição, não são todos os esportes.
Fernando — Veja o caso da natação. Quantas vezes você teve uma piscina a sua disposição? Vamos criar uma cota para negros
na natação? — faço essa pergunta tentando demonstrar as privações de oportunidades as quais os menos favorecidos econo-
micamente sofrem — E os investimentos também são desproporcionais, aqui tem menos investimento do que no Méier, por
exemplo.
Márcia — É verdade — diz rindo em relação à questão das cotas para a natação — O cuidado urbano é diferente. Mas a
gente não pode culpar apenas os que discriminam. Não é só reclamar do poder público, por exemplo, se colocar um orelhão
aqui na rua, amanhã já estará destruído
Termino a entrevista, pois ultrapassamos o horário combinado e Márcia precisa dirigir-se ao estágio. Agradeço a sua
entrevista e solicito a sua participação em outro encontro para que possa mostrar a transcrição da entrevista. Márcia sugere
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que, no caso de urgência, eu envie as perguntas para seu e-mail. Embora ainda não tenha acesso à internet em casa, ela tem acesso
à rede através de Lan Houses.
ENTREVISTA COM LEONARDO SILVA
Fernando — Você foi presidente do clube do otimismo? — clube destinado ao desenvolvimento do esporte para portadores
de deficiência física e mental.
Leonardo — Não, eu trabalhei no clube dos paraplégicos, no bairro da Piedade. Trabalhei no IBDD também.
Fernando — Trabalhou lá com que?
Leonardo — Trabalhei com atletismo.
Fernando — No IBDD os atletas ganham uma bolsa atleta?
Leonardo — Não sei se ganham, pode ser que hoje sim. Na época eles estavam fazendo um trabalho com deficiente mental e
desporto de participação, agora acho que eles só estão investindo em desporto paraolímpico.
Fernando — E o esporte ajuda na integração social dos deficientes?
Leonardo — Com certeza. O esporte é um meio de integração com outras pessoas e, no caso da competição, permite ao
deficiente conhecer outros lugares, ser conhecido, ser respeitado nos lugares que freqüenta. Acho que o esporte dá mais
motivação a ele, uma nova visão que ele não teria se não estivesse praticando esporte, dá a superação e a certeza de que ele
pode realizar algumas coisas que antes ele não saberia, por isso o esporte é importante para essas pessoas.
Fernando — E você acha que o esporte é uma das ferramentas que pode ser usada para integrar o cadeirante ou deficiente
físico? Acha que o esporte na escola pode servir para isso também? Para a integração dos alunos com alguma deficiência?
Leonardo — Muitas vezes estes alunos não têm o conhecimento de suas possibilidades e os outros alunos também não sabem
a capacidade que esses alunos têm. Cabe a nós professores integrá-los e desenvolver as atividades na escola, levando esses
atletas paraolímpicos para apresentações em escolas podemos quebrar essa barreira que existe ainda na escola.
Fernando — Até em relação aos professores, não?
Leonardo — E até em relação aos professores, pois muitos desconhecem essas práticas, mesmo os professores que trabalham
com esportes às vezes desconhecem o trabalho que é desenvolvido no paradesporto. E as escolas devem receber também
adaptações para que esses alunos possam estar no nosso convívio. È muito importante que isso aconteça.
ENTREVISTA COM O PROFESSOR ANDRÉ GAVA
Fernando — O espaço tolhe a iniciativa dos professores e dos alunos, às vezes você vem com uma boa proposta e não
consegue realizar. As bolsas dos alunos ficam jogadas no canto da quadra...
André — É que já houve casos de roubarem celulares e outras coisas, aí as bolsas ficam ali ocupando espaço na quadra.
Quando eu cheguei lá isso me incomodava muito. Eu fiquei um ano inteiro sem voz. Por que eu queria combater isso, eu não
aceitava isso de jeito nenhum, eu queria dar minha aula. Você chega num local cheio de vontade de dar tua aula, de mostrar teu
trabalho, colocar tuas idéias em prática e aquilo ali acabava comigo. Eu ficava chateado, eu não aceitava. Hoje em dia eu já
entrei, mais ou menos, nessa realidade. Não que eu aceite esse esquema, ainda batalho contra ele, mas agora eu compreendi
que não adianta perder minha voz.
Fernando — Mas no treino que você deu entre os dois turnos, que não tinha a gritaria redeu muito bem, funcionou o processo
educativo, pois havia um ambiente criado próprio para isso. Quando fica aquele pessoal pendurado na grade em volta da
quadra um ou outro aluno, que você convence a fazer a aula, desiste ....
André — Aquilo atrapalha muito, ficam gritando desviando a atenção dos outros e tem aluno que fica com vergonha.
Fernando — E a quadra do seu colégio tem dois ralos no meio da quadra, umas 5 ou 6 tampas de esgoto, ou seja, o espaço foi
criado sem cuidado, não está preparado.
André — Fora as pilastras que tem em volta. E a história dessa quadra é engraçada, não havia quadra, foi feito um aterro
custeado por um patrocinador, que também fez a cobertura da quadra — acho que foi um banco, eu não sei direito, pois
quando cheguei a quadra já estava lá — mas foi feito um aterro para elevar o nível do chão e foi feito de maneira bem
improvisada.
Fernando — E o material que você estava dando treino? Aquelas bolas não existem, são muito duras, ruins para o aprendiza-
do. Eu conversei com uma diretora que falou que a verba da escola para comprar material de Educação Física é a mesma para
cuidar da manutenção da escola, que ela tem que decidir se compra bolas ou guarda o dinheiro para uma emergência.
André — Olha, eu não posso dizer isso com tanta precisão, mas outro dia eu estava conversando com a diretora e ela estava
me dando umas explicações. Tem uma verba que é só para a manutenção da escola, outra verba é para construir coisas novas
no espaço, outra verba é para a merenda, ou seja, tem verbas separadas que você não pode pegar de um destino e usar em
outro.
Fernando — O clube escolar tem que ser um espaço bom, um ginásio legal, com uma ou duas quadras, aonde vão se reunir as
escolas de uma determinada região para treinar. Os professores agendam o treinamento, duas ou três vezes por semana, vai
haver um material comum para o uso das equipes. Vai ser um local de integração, onde as equipes podem treinar juntas,
fazendo amistosos ou dois professores darem o treino juntos para suas equipes. Vai ser um local de troca de experiência entre
os professores, para um poder aprender com o outro. Uma estrutura organizada. Com 15 bolas boas você atende a todas as
escolas da CRE duas ou três vezes por semana. E no meu colégio o que eu vou fazer? Oficina de vôlei e outros esportes, fora
da aula de Educação Física, que vai ficar destinada para trabalhar tudo aquilo que também é conteúdo de Educação Física e
não encontra espaço na escola. E dali, nas oficinas cria os níveis de iniciação e aperfeiçoamento. A equipe treina uma vez na
escola e duas no clube escolar. Aí tem as dificuldades, no primeiro ano não funciona, no segundo um pouquinho, dá continui-
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dade que no quarto ou quinto ano a coisa vai funcionar. Agora, a realidade é que para cada professor que quer trabalhar tem 4
ou 5 que não querem nada.
André — O que você falou agora é certo, eu vejo isso o tempo todo. É professor deprimido, professor doente, mas doente
mesmo, tem que tomar antidepressivo o tempo todo, pede BIM o tempo todo — BIM é uma licença médica — aí tem semana
que a escola está sem 4 ou 5 professores. Tinha aluno que ia para a aula e fazia um ou dois tempos de aula e ia embora, ou fica
pelo pátio do colégio sem atividade e atrapalha as aulas de Educação Física, fica querendo participar das aulas das outras
turmas. E aí, como é que você vai ter credibilidade com esses alunos? A escola vive sem aula. E a classe de professores está
desmotivada, desanimada, doente, por que um professor tem que funcionar por 4, [trecho da entrevista retirado a pedido do
professor André] e tem dia que não tem aula. E isso vai te desanimando também. E fora outras questões, como a aprovação
automática, que para mim é desmotivante. É um tiro pela culatra, em minha opinião. Apesar das justificativas pedagógicas que
existem, ritmo de aprendizagem, vamos dar mais tempo para o aluno aprender e etc. Não funciona, e é difícil alguém me
convencer que isso funciona. É uma questão numérica para conter a evasão, e o aprendizado? Será que se preocupam com
isso? Que nada, tão pouco se importando. Querem gerar boletim dizendo que tem mais alunos nas escolas, questão política.
O que o aluno faz em sala? Responde presença e fica que nem uma planta, parado, sem fazer nada.
Fernando — Mas você trabalhou no projeto SCM e agora está trabalhando no novo projeto GTC com o Maurício. Hoje eu
acho que você consegue perceber uma coisa que tem gente que não percebe assim fácil, que é a diferença entre um clube e
outro, dá para perceber?
André — Realmente é totalmente diferente o público de um clube e do outro.
Fernando — E a quantidade de meninas negras nas equipes?
André — Eu só tenho uma menina negra na minha equipe e acho que o Maurício não tem nenhuma.
ENTREVISTA COM A DIRETORA CARMEM
Fernando — A Educação Física faz parte do projeto pedagógico da escola, não é? Não é mais uma disciplina, com carga
horária estabelecida, como as aulas de artes, não é?
Diretora — Não, tanto nas escolas do município, quanto nas escolas particulares, a Educação Física entra como disciplina e
tem que estar vinculada ao projeto pedagógico da escola. Até por que o professor tem que fazer seu planejamento em cima do
projeto pedagógico da escola.
Agora, a gente ainda enfrenta um monte de tabu. Em qualquer área a gente tem o profissional sério e outro que não é
assim. Eu como diretora não tenho tido problemas, mas escuto outras diretoras dizendo que tem gente que larga a bola e sai,
deixa fazer o que quer, tem professor que vai ler jornal no carro e deixa um aluno lá apitando, tem professor que dá futebol o
ano inteiro, dentro da rede pública nós temos muito isso.
Agora, também temos aquele professor que dá trabalho, que se preocupa em três partes de uma aula (referindo-se ao
modelo de aula com aquecimento e formação corporal, parte principal e volta à calma), que faz planejamento, que procura dar
uma visão de que a Educação Física não é somente a parte física, mas que tem a parte social, que tem a parte de saúde... em
um dia chuvoso o professor vai para a sala de aula e dá uma aula sobre anabolizante, dá uma aula sobre aspectos de saúde,
toda essa parte que tem relação com a atividade física. E esse professor sério é muitas vezes marginalizado, pois tem que
vencer uma “certa coisa” para ser ouvido no conselho de classe. Quer dizer, há uma divergência, colocam a Educação Física
como disciplina obrigatória, mas a gente não reprova o aluno, ou seja, ta dentro da atividade, ta dentro da disciplina, tem que
estar envolvido dentro do contexto, mas você não reprova.
Fernando — Os professores de outras disciplinas reclamam da maneira como os alunos chegam das aulas de Educação Física,
e você falou sobre essa questão da aula dividida em três partes que a última é a volta à calma.
Diretora — É largam a turma como se estivesse indo para o recreio. E a professora de Educação Infantil tem a aula de
Educação Física como um momento que ele não vai ficar com aquele aluno. Então eu ainda vejo muito a figura do professor
de Educação Física como mero recreador infantil.
Isso daí denigre um a nossa conquista, pois já que não há essa exigência, você que é um profissional gabaritado pode
ser trocado por um recém formado.
Fernando — Você tem recebido professores novos aqui no colégio?
Diretora — Não, por que ele é concursado e aí a experiência pesa. Eu sei por que quando eu fiz prova a primeira vez para o
concurso público eu tava saindo da faculdade e eu não passei, por que eu não tinha vivência. A prática do dia-a-dia te ajuda
muito a responder as perguntas do concurso. Agora entrou uma leva de 4.000 professores, pois nós ficamos quase 10 anos sem
concurso público para professor. Agora de 3 a 4 anos tem concurso.
Aqui na escola eu já tentei até fazer a atividade física a nível de oficina, como se fosse o clube escolar, onde o aluno
escolhesse a atividade a cada dois ou três meses. Mas a gente tem muita dificuldade aqui, primeiro: conciliar os horários dos
professores, segundo: do aluno vir fora do horário, pois é proibido o aluno vir para a escola da rede pública fora do seu
horário. O aluno não pode vir fora do horário fazer Educação Física.
(A entrevista é interrompida por uma inspetora do colégio que comunica à diretora que tem duas alunas do turno da manhã
que não querem ir embora, e que a outra inspetora diz que elas vão embora sozinhas sempre, mas que não querem ir embora.)
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Quem é do primeiro turno não pode vir ao colégio no horário do segundo turno. Quando eu estudava na rede pública,
parte da minha vida eu estudei no ensino público, e nós vínhamos fazer a Educação Física fora do horário de aula. Hoje é
proibido na rede pública, nem no caso de uma oficina. Para isso existem os clubes escolares e as vilas olímpicas.
O clube escolar é a “minha menina dos olhos” eu tenho a ambição de um dia poder dirigir algum clube. Eu vim para essa
área da direção, pois eu estava dando muitas aulas, cerca de 14 aulas por dia, surgiu a oportunidade de eu entrar nesse meio, de
aprender com uma pessoa que já está na direção há muito tempo, aí eu vim. Mas eu ainda continuo em contato com o pessoal
do clube. Aquilo é maravilhoso, o aluno que vai ali se inscreve no que ele gosta, não tem como não dar certo.
Fernando — Quais as diferenças nos trabalhos entre os colégios públicos e o colégio privado na Educação Física?
Diretora — Olha, primeiro: parte de material, por que a gente aqui não tem uma verba própria para isso dentro do município,
você tem uma verba para a escola e disso você tem que comprar as coisas para a escola e consertar as coisas. Quando a gente
recebe alguma coisa específica para a Educação Física, é um ganho. Mas dentro dessa verba, se há a possibilidade, você pode
até construir uma excelente quadra, mas aí você fica “capenga” em outros setores. Por que é uma verba única que o diretor
administra. Já no colégio particular você tem um material melhor. E aquele aluno que tiver acesso a um material melhor e mais
diversificado, vai se desenvolver melhor. Em termos de profissional eu não vejo diferença, o mesmo profissional que faz um
concurso é o mesmo que trabalha no colégio particular. A diferença é a postura sua como profissional e isso não é exclusivo
do professor de Educação Física, abrange todos os profissionais. A partir do momento que você sabe que é um funcionário
público e que você tem as tuas regalias e que você tem a tua estabilidade, que o privado não te dá, você acaba agindo diferente,
alguns profissionais, agem diferente no ensino público e no privado. O mesmo professor tem uma atitude no particular e outra
no público, pois no privado ele é cobrado, tem um coordenador próprio da disciplina em que ele trabalha, um colégio bom tem
as coordenações de cada disciplina.
Fernando — Aqui tem um coordenador de Educação Física?
Diretora — Não, aqui nós temos um coordenador pedagógico, mas é difícil você “amarrar” com todos do grupo um mesmo
pensamento. O pensamento em comum é o projeto político-pedagógico da escola. E também não tem uma cobrança, você não
tem como obrigar aquele que não quis, aquele que não fez, você não tem meios legais para cobrar isso. Você dá uma advertên-
cia, chama a atenção, mas não causa um efeito.
Fernando — Os alunos do colégio fazem diferença na hora do professor dar aula?
Diretora — Dentro da aula de Educação Física? É a mesma criança. Todas têm paixão pela atividade física e cobram, é o único
professor que é cobrado quando falta. Que a galera até faz greve, briga e fica irritada por que aquele professor ta faltando
muito. É a mesma criança, é a mesma conduta, a mesma aptidão, vontade de estar ali fazendo.
Fernando — O professor se sente mais estimulado em trabalhar com um público ou outro?
Diretora — Sim, ele sente mais estimulado no privado, por que ele tem uma grande variedade de materiais para ele trabalhar
o que ele quiser. Em relação aos alunos não, o professor aqui ele é tão querido quanto ele é no privado. Pelo contrário até o
garoto do privado tem tanta oportunidade de pagar e fazer uma escolinha que muitas vezes ele não valoriza aquela aula de
Educação Física. Já o garoto da pública como ele não tem esse acesso fácil a uma escolinha, a um clube, ele abraça aquela
atividade física, ele adora aquilo. Então ele vê a oportunidade dele jogar num time, de disputar um torneio, de ele despontar
em algum esporte olímpico e alguém olhar descobri-lo ali.
Fernando — As quadras ou espaços destinados às práticas da Educação Física são, geralmente, expostas aos demais alunos e
funcionários, isso quando não ficam no meio do pátio de recreio. O que isso ocasiona para o professor, para a aula, para os
alunos?
Diretora — Na minha escola é, você vê que a minha quadra, eu tenho duas — uma coberta e outra descoberta — às vezes o
professor ta trabalhando com os alunos mais velhos e entra uma criança mais nova na quadra correndo e leva uma bolada. E
o professor tem que dar aula preocupado com isso para que um aluno não se machuque, tem que ficar dando bronca na criança
para respeitar esse espaço, uma criança que ainda não tem noção que está atrapalhando. O local é inapropriado, a falta de
inspetor no colégio. Um colégio das dimensões do meu tem um inspetor que vai embora às 14 horas, e eu tenho espaço físico
na escola para até 4 ou 5 inspetores.
Fernando — E atrapalha também a participação dos alunos nas aulas e as propostas dos professores, pois os alunos que não
estão nas aulas ficam incomodando os alunos, às vezes ridicularizando um ou outro?
Diretora — Aqui por exemplo a gente não tem tanto pois no horário que este menino vai estar no recreio.... o que poderia
acontecer é: se está no recreio dos mais velhos, o primário pode até estar fazendo aula. Mas no horário dos grandes é o
primário que está no recreio. Pode acontecer sim de uma criança estar fazendo uma atividade e um adolescente que está no
recreio ficar “gozando”.
Fernando — Inibe até a iniciativa do professor que quando propõe uma aula diferente da de esportes não consegue uma
adesão da turma, pois os outros ficam ali fora ridicularizando?
Diretora — Acaba não fazendo, veja você, às vezes o professor falta, tem dois ou três professores na casa que faltaram, você
manter esses alunos trancados na sala de aula, não tem como. Você não tem inspetor para levar esses alunos para um espaço
onde tenha ping-pong, essas coisas para eles ficarem em tempo vago. Eles ficam no pátio e no pátio está acontecendo o quê?
Educação Física, aí o professor e os alunos ficam dispersos a todo o momento, pois é aluno pedindo bola toda hora, interrom-
pe a aula, fica do lado do professor.
Fernando — Como o professor de Educação Física trabalha para justificar sua presença na escola, ocupar espaços e se inserir
no projeto-político pedagógico do colégio? Ou ele abre mão dessa participação?
Diretora — O professor do município, a maioria, quer dar vôlei, basquete, futebol. É o que o professor do município quer dar.
Já o professor da escola privada, por exemplo, esse ano está se fazendo tudo em cima da vinda da família real. Então no
aniversário da escola foi elaborada uma gincana, onde tinham coisas como: xadrez humano. Os alunos que estão com atestado
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médico e não pode fazer as aulas vai para a internet na escola fazer pesquisa sobre jogos e brincadeiras da época, do século
XVIII. É uma maneira de você estar vinculada com o projeto político-pedagógico do colégio.
( Nesse momento o telefone toca e após atende-lo a Diretora vai resolver o problema com as duas crianças que não queriam ir
embora.)
Fernando — A Educação Física é desportivizada na maioria dos colégios? O que se faz além de esportes na Educação Física?
Diretora — É essa a diferença da escola pública, no interior da escola pública tem vários projetos bons, núcleo de dança,
expressão corporal, teatro, aí o professor diz que não tem jeito com isso.
Fernando — O município oferece cursos de capacitação para os professores em dança e outras atividades,não?
Diretora — Uma escola como a minha, há dois anos não tem professor querendo levar alunos para os jogos escolares. Desde
que eu entrei para a direção, quando eu entrei para a direção eu tinha um grupo muito bom que já vinha há um ano comigo
competindo, aí eu deixava o capitão da equipe com eles no intervalo entre os turnos treinando, e eles ficavam depois do
horário treinando, agora não tem mais.
Fernando — Eu conversei com a uma menina e ela disse que nos 4 anos em que estudou aqui ela ia para os torneios entre
escolas municipais.
Diretora — Essa menina era desse grupo que eu falei. Ela era minha aluna. E esse grupo da Menina, nós chegamos a ser vice-
campeões no Rio de Janeiro em handebol.
Fernando — Ela me falou que a professora Sônia (troquei o nome da professora) era uma das que mais incentivava essa
participação.
Diretora — A Sônia de uns tempos para cá não teve mais interesse em levar os alunos para os jogos.
Fernando — A menina disse que era uma proposta de todos os professores que ajudavam nos treinos, mas quem levava mesmo
era a Sônia, mas agora não tem mais equipe?
Diretora — Eu recebi uma galera nova aí que não quer levar.
Fernando — Isso fica como uma proposta do professor?
Diretora — É, mas eu acho que isso tem que ser desvinculado da aula. Tem que ser outro esquema de horário. Não pode ser
dentro da aula. Você não pode treinar um grupo dentro da sua aula de Educação Física. Senão você está tirando o direito do
outro que não tem tanta habilidade.
Fernando — Os clubes escolares existem para ocupar esse espaço do trabalho de iniciação e experiência esportiva, você
trabalhou em clube escolar e eu presenciei o teu interesse em proporcionar essa experiência para teus alunos. O que você acha
dessa estrutura esportiva ligada à secretaria de educação?
Diretora — O clube escolar está um pouco largado, ele tem 11 ou 12 anos de existência, o que acontece com aquele garoto que
entrou para fazer voleibol, que entrou com 8 ou 9 anos para fazer voleibol e hoje está com seus 13 ou 14 anos? Chega num
nível que ele quer mais e a estrutura do clube escolar não ofereceu mais a ele. O que seria esse mais? Campeonatos periódicos
entre os clubes escolares. Campeonato do clube escolar de voleibol, de futebol, de basquete, uma liga de esportes dos clubes
escolares. Pois o aluno começou com uma atividade recreativa, fora do horário da escola, mas a criança chega a tal nível,
como eu tinha alguns alunos que estavam comigo há 5 anos, eles queriam mais, queriam uma competição na qual eles
pudessem estar disputando, eles queriam uma equipe do clube escolar, e isso não existia, continuava como um processo
pedagógico extracurricular. Então o clube escolar começou a fazer o quê? Quando percebia que um aluno tinha se desenvol-
vido bem, você acabava ligando para um amigo seu que estivesse num clube e indicava para um teste.
Fernando — E você vê que esse aluno vai para o teste do clube e se sente estranho, pois ele não está acostumado com aquela
estrutura de treino e funcionamento de equipe.
Diretora — Ele não está acostumado com o treino, ele não tem como pagar a passagem para ir. E isso não é só em relação ao
clube escolar, às vezes a gente vê alguns alunos despontando para o futebol e o garoto vai fazer um teste e, a gente sabe que
isso aí é uma máfia, não é? O garoto às vezes não tem uma alimentação correta, tem que acordar de madrugada para ir treinar.
Fernando — O clube escolar acaba atendendo só aos alunos das escolas próximas? Embora abranjam uma região grande
relativa à sua CRE?
Diretora — Não, o clube escolar atende a qualquer aluno. No Engenho de Dentro, se aparecer um aluno da Mangueira, do
Maracanã, você pode matricular. Mas é difícil vir alunos de outras regiões. Eu quando saí de lá ainda não existia o RioCard,
a criança tinha que entrar no ônibus com a camisa da escola, eu não sei agora com o RioCard com a criança tendo duas
passagens por dia, se facilitou. Mas a criança que mora perto vem a pé e pode até utilizar essas passagens para treinar em outro
lugar, como um clube. O clube escolar tem o objetivo de tirar realmente a criança da rua, já que você tirou o horário integral
da escola, pois se você dá o horário integral tem que dar várias refeições por dia. E no clube escolar o garoto vai para casa,
almoça por conta própria, pois o clube escolar não dá refeição, e ele ao invés de ficar na rua vai fazer uma atividade. Dentro
do clube, além das escolinhas deveria ter um espaço para as equipes, a equipe de voleibol, de futebol e etc...
Fernando — Eu acho que poderia ser um espaço para que as escolas da CRE pudessem usar para treinamento das suas
equipes.
Diretora — Não há infra-estrutura para isso.
(Há uma nova interrupção em que uma funcionária solicita que seja tomada providência quanto à permanência de uma turma
do turno da manhã que está na entrada da escola recusando-se a ir para casa.)
Fernando — Qual seria o caminho para a implantação de uma equipe esportiva no colégio do município?
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Diretora — Eu acho que a gente tem até professores dentro da rede, até com experiência, imagina de repente você tem uma
matrícula no município e já tem experiência como técnico de equipe. Acho que se oferecessem dentro das escolas a oportuni-
dade do professor fazer uma dobra da matrícula para que destinado a isso ele pudesse fazer duas horas extras ou semanais,
para ele poder ter esse horário de treino. Mas isso tem que ser desvinculado da Educação Física. Fazer a Educação Física em
formas de oficinas também seria uma opção, na qual o aluno estaria se inscrevendo na atividade com que ele se identifica, e aí
você poderia vir com o mesmo grupo trabalhando por muito mais tempo. Mas para fazer uma equipe só tendo isso.
Fernando — Não sei se você viu uma reportagem em que um professor de história implantou uma oficina de xadrez e acabou
tornando-a uma equipe e teve o reconhecimento do trabalho e recebeu uma matrícula para desenvolver esse projeto. Você vê
a possibilidade de um professor fazendo isso passar a ter esse reconhecimento?
Diretora — Você nem precisa ser professor da casa, você pode ser do projeto amigos da escola. A gente vê os horários que
podem ser utilizados e organiza. Mas no projeto amigo da escola você não pode trazer crianças de fora da escola, você vai
trabalhar aqui dentro da escola com o s alunos daqui. A gente já teve capoeira, contador de história, que às vezes é o professor
aposentado que quer continuar fazendo alguma coisa e tem o vínculo com a escola. Você como amigo da escola, sem vínculo
lucrativo pode fazer.
Fernando — E o professor da escola também poderia fazê-lo, não?
Diretora — É, mas eu acho meio difícil, conseguir alguém que fique trabalhando sem receber nada por isso dentro da escola.
Fernando — Você acha que pode haver uma equipe da escola originada de um trabalho como o amigo da escola?
Diretora — Eu concordo com a equipe se você tiver um trabalho de escolinha para oferecer, por que senão a equipe fica
elitista. Se você tem uma escolinha, onde todos vão ter a oportunidade de aprender aquela atividade, mesmo que alguns
continuem na escolinha e outros passem para a equipe, tudo bem. Pois você está dando oportunidade para as crianças apren-
derem. Você pode trabalhar assim com oficinas, por exemplo, o aluno estaria participando de um trabalho sabendo que
poderia vir a compor uma equipe do colégio, aí você está criando uma oportunidade legal de quem quiser aprender, aprender.
Fernando — Mas tudo isso teria que ser no mesmo horário que as crianças estudam?
Diretora — É, hoje no município você não pode, para isso existem os lugares que são extracurriculares.
Fernando — Então a escola não participa mais de campeonatos escolares?
Diretora — A minha escola não. Já há uns dois ou três anos. Agora vou te dizer por que. A gente não pode cobrar nada de
aluno, por exemplo, eu tive uma final do masculino, há uns quatro ou cinco anos atrás, quando eu estava começando na
direção, eles foram para a segunda fase, iriam para a semifinal em Realengo, num lugar aonde o trem não chegava próximo.
Eu arrumei um transporte com um vereador para levar os alunos, a minha regional não deixou que eu os levasse, pois não
podia criar vínculo com político e essas coisas. A minha escola dificilmente faz passeio de turma, você vê o preço de aluguel
de um ônibus, depois se acontecer um imprevisto como uma bomba de água que estoura, um problema na caixa d’água e eu
fico sem verba. E os professores alegam isso também, a falta de condições de levar o aluno para passeios fora da escola.
Fernando — Fica na responsabilidade do professor? Ou ele marca o encontro no local de jogo....
Diretora — Não pode marcar no local do jogo. O professor tem que levar o grupo da escola ao local do jogo. Entra no ônibus
com todo mundo. E aí num ônibus desses acontece um arranhão com um aluno.... Antigamente, a gente levava o aluno que se
machucava dentro do nosso próprio carro para o hospital, hoje se acontece alguma coisa e você não tem uma testemunha
dentro carro ou do ônibus, os pais entram com processo. Se um aluno se machuca na aula você tem que chamar a guarda
municipal ou os bombeiros. E se você vê que o aluno está mal e o socorro demora a chegar, às vezes você coloca dentro do
carro e socorre, mas sabendo que você pode responder a uma série de coisas. O que mais tem é gente levando danos morais,
as famílias entram nos tribunais de pequenas causas para ganhar cestas básicas. E você com teu salário de professor têm que
custear isso, pois não temos dentro do sindicato uma defesa.
Fernando — Pelo que eu conheço do esporte escolar, os professores envolvidos, sejam árbitros ou técnicos, não tornam essa
competição esportiva educacional. São irritados, se expressam vulgarmente, agridem verbalmente as crianças e as ridiculari-
zam às vezes, são coniventes com o desrespeito de um aluno com o outro e tantos outros. Acha que isso tem solução?
Diretora — Aí eu acho que cabe ao gestor ter um olho melhor para aquele profissional que está trabalhando essas crianças. É
a mesma coisa que você estar trabalhando com um estagiário que está aprendendo contigo, mas você vê que ele está trabalhan-
do diferente da sua proposta.
Eu acho que deveria ser como é lá fora, na Europa, por exemplo, em que na faixa etária de 6 a 12 anos ele não
compete, ele passa por um processo em que ele é trabalhado num todo, inclusive experimentando tudo. Aqui, você pega a
natação, você vê um garoto de 7 ou 8 anos despontando e já começam um treinamento massificado com aquela criança. Isso
aconteceu comigo que com 7 ou 8 anos estava enfrentando treinamento puxados de não sei quantas horas. E aí o que aconte-
ceu? Quando eu tinha 13 anos que eu poderia estar treinando para despontar, eu não queria ver água na minha frente.
Fernando — Você trabalha com escolinhas de esportes, muitas vezes o aluno que chega a uma escolinha não sabe nada do
esporte, muitas vezes tem uma série de deficiências ou atrasos motores que são trabalhados pelos professores com muita
competência. Por que nas aulas de Educação Física essa iniciação é mal conduzida, se é que é mal conduzida?
Diretora — Por que você pode fazer um trabalho mais específico e com aquele aluno que quer participar. Aqui a gente pegar
turma de 40 alunos, como você vai dar uma atenção especial a um ou outro aluno? E tem alguns alunos que têm problemas
neurológicos, como você pode dar atenção a ele numa turma de 40? Há como? Há. Mas é difícil, é complicado. Já na escolinha
quando você vê um aluno se destacando você tem como fazer um trabalho com ele e dar atenção ao restante do grupo.
Fernando — Os professores de educação física tinham o mesmo conteúdo de estudos não importasse se trabalhavam com
esportes ou no colégio. Agora se tem a licenciatura e a graduação, você vê alguma mudança na educação física por esse
motivo?
Diretora — A gente não tinha preparo, você saiu preparado?
Fernando — Saí, acho que saí preparado para muitas coisas, para outras não.
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Diretora — Mas você saiu preparado por que já estava inserido no voleibol, mas dizer que a gente tinha uma parte pedagógica
boa. Eu não sei como está o currículo de Educação Física hoje, mas a gente não tinha uma especialização grande, tinha? Você
acabava indo procurar um estágio naquela área que você gostava ou com o professor que você achava bom. Eu acho certo ter
um estudo mais voltado para a escola. Se você quiser ser treinador você se especializa, que nem médico.
Na minha época, eu fiz Gama Filho, você aprendia um pouco de tudo, era tudo meio jogado, aprendia um pouco de nada.
Eu aprendi no tapa, o que eu gostava eu fui para a experiência e quantas vezes você não se pegou seguindo a linha daquele cara
com o qual você foi estagiar? Lógico que com o tempo e a experiência, lendo, você foi desenvolvendo o seu jeito, mas no início
foi aquele ali com o qual você se “colou”. Não sei como estão as universidades agora, mas acredito que não tenha mudado muito
não.
O estagiário hoje em dia quer ganhar dinheiro, quantas vezes você ficou apitando jogo na beira de quadra para
aprender ou para ajudar o professor que ficava lendo jornal. Tem a situação financeira de cada um, que às vezes obriga um a
trabalhar. A gente ficava desesperado atrás de um local que pudesse estagiar e “colar” com um professor legal, hoje em dia
quando o estagiário chega e a gente diz que só tem o certificado de estágio ele não quer.
Fernando — O CREF tem tentado proibir o uso do estagiário como professor, e é uma conquista grande, não?
Diretora — É, antigamente você ia em escola pequena e quem dava aula de Educação Física era um estagiário. Não mudou
muito, pois o professor quando faz um tempo de casa é mandado embora e colocam um professor novinho no lugar dele com
um salário menor. O professor fazia 10 anos de casa e era mandado embora.
ENTREVISTA COM A DIRETORA ROSA
Apresentado à diretora na visita anterior pelo professor Jorge, retorno a escola para entrevistá-la. Entro na sua sala e
solicito que a entrevista possa ser gravada, ao ver o aparelho de gravação, pergunta se realmente é necessário que haja o
registro, porém argumento que tenho perdido algumas falas interessantes para a minha pesquisa pelo fato da memória não
conseguir armazenar esses relatos.
Fernando — Posso gravar a entrevista — retirando o aparelho da bolsa.
Diretora — É realmente necessário?
Fernando — Se você não permitir eu não gravarei, mas é que tenho perdido algumas falas importantes dos entrevistados.
Diretora — Tudo bem, não tem problema.
Fernando — O certo seria ir até a CRE (Coordenadoria Regional de Educação) solicitar uma autorização para fazer a entrevis-
ta, mas tenho contado com a colaboração das pessoas que trabalham nos colégios e tenho tido a preocupação de não identifi-
car as escolas aonde vou e os profissionais com quem converso. O próprio professor às vezes fica chateado, quando o elogio,
mas não o identifico.
Diretora — Rindo — Não tem problema.
Fernando — Queria saber sobre as verbas para compra de material que os colégios recebem. A escola recebe uma verba anual?
Diretora — Recebe mais do que uma verba anual. São diferentes tipos de verbas, por exemplo, a verba que nós recebemos em
cota única anual é uma verba federal do PDDE (Programa Dinheiro Direto Na Escola), do FNDE (Fundo Nacional de Desen-
volvimento da Educação
), e nós recebemos por conta do número de alunos. Com essa verba nós fazemos um planejamento
com o CEC (Conselho de Escola e Comunidade
), no qual eu sou presidente por ser a diretora da escola, o professor Jorge é
o meu vice-presidente, e ele é responsável por essa verba tanto quanto eu, pois somos titular e co-titular da conta do banco
para onde vai essa verba. Então a gente faz uma reunião com o CEC, faz um planejamento de como nós vamos gastar essa
verba. Essa verba é dividida por destinação de setores. Parte é para a compra de material de consumo da escola — material de
limpeza, material esportivo, enfim...— e parte dessa verba é para a compra de material permanente — tudo aquilo que pode
ser inventariado. A gente tem uma data para a prestação de contas até o final do ano, não pode sobrar verba, pois senão ela é
retomada. Bem, a gente tem a verba da prefeitura do Rio de Janeiro, que manda pelo SDP, Sistema Descentralizado de
Pagamento, em que todas as escolas recebem uma primeira verba. Usou esse dinheiro, presta contas e solicita mais. Usou,
presta contas e pede mais.
Fernando — E recebe?
Diretora — Recebe. Normalmente a gente recebe duas, três. Em anos fartos nós conseguimos receber até quatro.
Fernando — E essas cotas têm um valor específico?
Diretora — Têm, para as escolas maiores, oito mil reais, para as escolas menores são 5 ou 6 mil reais. Dependendo da
necessidade.
Fernando — E isso é um caixa único?
Diretora — A CRE recebe e distribui para as escolas. A primeira verba é um padrão, todas as escolas recebem. Aí vai depender
do gerenciamento que cada escola fizer. Eu gastei o dinheiro todo, faço a prestação de contas e solicito mais, especificando
qual o uso dessa nova verba solicitada.
Fernando — E pode vir ou não?
Diretora — Sempre vem alguma verba a mais, dependendo da disponibilidade da CRE, pode vir mais ou pode vir menos.
O telefone toca e a diretora solicita que eu desligue o gravador. Porém, fico na sala e posso ouvir as suas falas. Depois
ela me explica que o assunto diz respeito a professores que estão cedidos a funções administrativas na escola e terão que
retornar às salas de aulas, pois as funções por estes desempenhadas serão desenvolvidas por funcionários de administração,
que têm sido capacitados pelas CREs para assumirem estes cargos. Com isso, alguns professores estão insatisfeitos por terem
que retornar às funções originais e os funcionários administrativos por terem que agregar novas funções às suas, embora
estejam recebendo gratificações pelos cursos de capacitação concluídos. A cada curso que o funcionário freqüenta e é aprova-
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do incorpora-se uma gratificação ao seu salário, porém o valor recebido pelos professores para desempenharem as funções
administrativas é maior do que o valor das gratificações que são incorporadas aos salários dos funcionários administrativos
para que estes desempenhem essas novas funções.
Fernando — Então essa verba da prefeitura é de gerencia sua e serve tanto para a compra de material, quanto para a manutenção
da escola?
Diretora — Isso.
Fernando — E os professores de Educação Física fazem solicitações para a compra de material para que você possa incluir no
pedido de verba?
Diretora — Fazem. Conforme vai aparecendo a necessidade eles vão pedindo material para vôlei, basquete, cones, cordas, aí
eu vou anotando todas essas necessidades e vou atendendo dentro de uma lista de prioridades. Por que eu tenho até que fazê-
los entender que entre comprar um cone e consertar uma bica que quebrou, nós vamos ter que optar pela bica e o cone vai ter
que esperar.
Fernando — E para comprar esse material esportivo tem que ser em algum lugar determinado pela prefeitura?
Diretora — Eu faço uma tomada de preços, normalmente eu ligo para duas, três e, às vezes, quatro lojas. Tenho que ter no
mínimo três orçamentos. Ligo para as firmas das quais eu tenho alguma referência, outros diretores também indicam os locais
mais baratos. E a gente se preocupa em ver o preço e a qualidade, pois às vezes vem cada material ruim. Nós vamos tentando
atender a todas as necessidades, mas as pessoas têm que entender que parece muito oito mil reais, mas não é não. É muito
pouco, por que a mão-de-obra hoje em dia é cara. Eu acabei de fazer um muro nos fundos do colégio, pois os alunos estavam
pulando para a casa do vizinho e até a polícia foi chamada — o vizinho deu parte da escola na polícia e eu tive que ir até a
delegacia fazer depoimento e tudo mais — então eu fiz o muro e gastei quase dois mil reais. Um muro de um metro e meio
custa isso, o dinheiro é pouco, tem muita coisa para fazer.
Fernando — E a sua responsabilidade também é muito grande, não?
Diretora — É muito grande, sou eu e eu. A gente tem uma adjunta e uma coordenadora pedagógica, mas a responsabilidade
mesmo é da diretora da escola.
Fernando — E na estrutura da escola ou da CRE não tem pessoas responsáveis pela manutenção e obras? Ou fica tudo mesmo
contigo?
Diretora — isso é o que eu mais sinto falta. Eu não tenho muita facilidade em trabalhar com contas e imposto, pois até isso eu
tenho que fazer. Eu tenho que calcular o imposto, eu tenho que saber o dia em tem que pagar a conta, eu tenho que fazer a
contabilidade, a prestação de contas e isso para mim é muito complicado. Não seria se eu tivesse esse tempo que eu estou
tendo aqui com você, desse sossego, mas eu não tenho. Então é isso que você está vendo aqui, você começa a fazer uma coisa
e tem que parar para atender alguém.
Fernando — Você acaba tendo uma série de funções que você não imaginava que teria que fazer e para as quais não foi
preparada na faculdade?
Diretora — Eu aprendi fazendo e no soco! Coisas que você tem que fazer. Eu acabei de fazer um curso de direção na UFF, um
curso de extensão, mas nenhum curso te dá o que a prática te dá. Um ano de curso não equivale a uma semana sentada aqui na
minha cadeira.
Fernando — Eu faço uma discussão quanto ao tema da exclusão nas aulas de Educação Física e digo que o espaço da
Educação Física nas escolas é propício para isso, pois quando o aluno está começando a se interessar pela aula ou em aprender
um esporte, os outros alunos que estão em volta ficam atrapalhando, implicando com os que ainda não sabem fazer as
atividades direito, isso acaba atrapalhando os professores, não?
Diretora — Você vê a condição de trabalho do Jorge? Os professores são uns heróis, pois as condições de trabalho deles são
péssimas.
Fernando — Como diretora, ter profissionais como o professor Jorge na escola é bom?
Diretora — É um privilégio, são poucos os professores que têm a dedicação que ele tem. Eu tenho aqui funcionários, mesmo
na área de Educação Física, que já jogaram a toalha. Quando eu entrei aqui já havia gente que não está nem aí para o trabalho.
E o cuidado que ele tem com o material é fantástico. Tem professor que a bola cai no telhado e deixa lá, ou a bola cai fora do
colégio, uma bola nova e ele não se importa, pois o aluno vai pegar aquela bola e vai levar para casa. Uma coisa que a gente
vê muito aqui é o colega de trabalho dar uma bola para as crianças ficarem ali fora jogando e vem para a sala dos professores
ficar batendo papo. E isso eu também tenho que cuidar. Às vezes eu estou cheia de coisas para resolver e tenho que ir lá à sala
de professores e questionar o colega sobre a sua ação. E tem que ser com jeito, pois ele não pode nem ficar chateado com você
a diretora simula a conversa com o professor nesse tipo de situação — Colega, diz ela, cadê sua turma? E o professor
responde: — Já estou indo, vim aqui só tomar um café. Que nada, complementa a professora, o sujeito está lá de bate-papo
esperando o tempo passar. Isso a gente vê aos montes aqui.
Fernando — Eu conversei com outra diretora que reclamou sobre a falta de consciência do professor do ensino público com
seu trabalho, pelo fato de ter algumas regalias — entre aspas — como funcionário público, você vê isso? E o professor que
cumpre as suas funções acaba sobrecarregado?
Diretora — São regalias mesmo. As professoras do ensino fundamental só querem trabalhar com o Jorge, aqui é um desespero
no começo do ano para quem eu vou “dar” o Jorge. Eu tenho 40 turmas e para quem eu vou “dar” o Jorge?
Fernando — E o professor falta e as professoras que ficam com as crianças o turno inteiro têm que ficar com esses alunos
também nas aulas de Educação Física, que seria um tempo em que ela poderia até estar descansando, não?
Diretora — Não é só quando falta, mas também quando estão presentes, pois não tem um comprometimento com o trabalho.
Outra coisa que atrapalha aqui é uma professora que tem um currículo excelente, mas fica cedida a uma federação esportiva
e que viaja com a seleção. Ela agora viajou e a turma dela está aí, jogada às traças. Serão quinze dias em viagem com essa
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seleção, e depois tem que ir a Portugal, pois está fazendo o mestrado lá. E eu tenho que liberar. Então eu não tenho o funcionário
durante um mês. Ela viaja muito e está amparada por lei, ela serve a federação brasileira e tem que ter o abono de ponto.
Fernando — Em relação à equipe esportiva o Jorge é um dos que assume a responsabilidade em fazê-las, não é?
Diretora — Eu tenho o Jorge, eu tenho o Júlio, que é um dos professores mais antigos, mas que trabalha e que é legal com os
alunos. Mas ele já está pensando em se aposentar, já está em final de carreira, então ele já perdeu o pique de criar coisas, não
de trabalhar, pois ele não falta. Mas, o que eu digo é que você vê uma aula do Jorge e tem um cone, uma corda, uma rede, com
o Júlio você só vê ele, o apito e a bola. Aquela aula mais mecânica, ele não faz mais do que aquilo, não inventa, não cria. Mas
tem um pessoal aí, que vou te contar....— ironizando — é triste.
Fernando — O município não permite que haja a presença do aluno do primeiro turno no segundo turno e vice-versa. Isso
atrapalha a formação de equipes e oficinas de esportes na escola fora do horário de aula da Educação Física?
Diretora — Nem espaço para isso a gente tem. E eu encarar uma coisa dessas... — referindo-se a dificuldade de implementar
uma atividade extracurricular no espaço da escola — a diretora anterior, da qual eu era diretora adjunta, ela não permitia que
tivesse Educação Física no primeiro segmento, por que achava que a escola não tinha espaço, e realmente, não tem. Se você
for olhar mesmo só tem uma quadra e são 41 turmas esse ano, ano passado éramos 44 turmas. E como é que nós vamos fazer
Educação Física com 41 turmas e uma quadra? Então a gente improvisa muito. É auditório, é quadra b, quadra c — referindo-
se ao espaço lateral a quadra que é usado como espaço para a Educação Física — é um canto ali, um canto aqui, é o pátio.
Mas é um hospício, é uma loucura, então realmente eu acho que tem que ter, a criança quer ter a aula de Educação Física, o
professor quer trabalhar, o professor precisa da dupla — dupla regência —, precisa da matrícula e então a gente convive com
essa maluquice. O professor tenta não se estranhar com o outro, dividem a quadra para dar aulas, conversam entre si para
organizar o horário de uso da quadra, tem que haver esse coleguismo entre os professores para um não se estranhar com o
outro, pois a gente tem que conviver.
Fernando — Da outra vez que eu vim aqui, fiquei com a impressão de que a escola não tem o ambiente preparado para o
ensino-aprendizagem.
Diretora — Mas é ali que acontece. Os professores trabalham muito isolados, mesmo na área de português tem um professor
trabalhando uma coisa diferente do outro, um ta trabalhando Machado de Assis, outro está trabalhando um texto de outro
poeta, não tem uma unidade, e é muito complicado fazer isso. Você vê que o professor de biologia não leva uma planta para
a sala de aula, não propõe aquela experiência da semente no algodão. O professor de geografia não leva um mapa, então fica
aquela coisa do cuspe e giz. Os alunos também não estão fáceis, o aluno está muito complicado, as famílias se acabaram, mas
também existe o lado do professor que vendo isso tudo não assuma sua responsabilidade, pois ele foi preparado para isso
tudo, ele estuda aquilo, ele sabe o que vai encontrar, estuda um tempão para se formar, faz um concurso público e aí quando
passa acaba? Eu costumo dizer aqui nas minhas crises de nervos que a estabilidade é o que atrapalha. Para muito profissional
isso não quer dizer nada, ele trabalha de acordo com a sua consciência, mas para outros, que são muitos, a estabilidade é o
avesso do compromisso. Com a estabilidade não precisa ter o compromisso.
Fernando — O mesmo professor que dá aulas em um colégio público e em um particular, tende a se esforçar menos no
público?
Diretora — Geralmente é assim, até por que no particular existe uma cobrança.
Fernando — Mas a cobrança também existe aqui, não é?
Diretora — Claro, que há. Mas tem a questão da estabilidade. Se eu chego e vejo o professor conversando na sala dos
professores num momento em que ele deveria estar em sala de aula, a única coisa que eu posso fazer é conversar com ele e
pedir para ele ir trabalhar. Se eu sou dona da escola, de uma escola particular, esse professor é demitido. Eu tenho um filho
que é professor de matemática e que agora tem duas matriculas na rede pública, mas enquanto ele não conseguiu isso ele ralou
muito em escola particular e eu via fazerem com ele coisas, que o professor faz aqui e muito pior, e nada acontece. Eu acho
que tem muitos benefícios, mas a tua cobrança é a tua consciência, se o professor não tiver consciência profissional...
Fernando — interrompendo a fala da diretora — E como diretora...
Diretora — interrompendo a perguntaA gente sofre, mas sofre mesmo, se você vai falar com um colega, vai pedir para que
ele dê mais, ele responde que não dá por que está muito cansado, ou que está passando mal e ele pega um BIM e vai se
encostar ou se readaptar, essas coisas.
Fernando — E tem a questão da carga horária do professor que dobra o turno e que não consegue manter o nível da aula, isso
acontece?
Diretora — Claro, cai a produção.
Fernando — E é difícil convencer o professo de que é melhor que ele venha três vezes por semana no colégio do que fazer
uma grade vertical em dois dias?
Diretora — É difícil encaixar as disponibilidades dos professores com a carga horária de trabalho e com a carga horária que
os alunos precisam. Particularmente, janeiro é um mês muito difícil para mim, pois eu tenho que montar o quadro de horários
da escola. O professor te dá a disponibilidade dele, tão e somente aquela disponibilidade, e eu tenho que organizar tudo.
ENTREVISTA COM RENATA CORDOVIL
A entrevista foi realizada antes de um treino da equipe universitária do Centro Universitário Celso Lisboa.
Fernando — Você trabalhava com o Walner quando a Janaína apareceu no Grajaú Tênis Clube?
Renata — Não.
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Fernando — Ela me disse que você trabalhava com Walner na escolinha. Mas eu também não sabia disso não, fiquei sabendo
por ela. Você trabalhava lá?
Renata — Eu? Não.
Fernando — Ela disse que você foi professora dela na escolinha.
Renata — Eu nunca trabalhei com o Walner. Quando eu trabalhava lá foi antes do Maurício.
Fernando — Inclusive o Maurício ficou no teu lugar. O Romário que era um pai de atleta que ajudava o Nilton, diretor de
vôlei, disse que você havia dito que a filha dele não seria jogadora de voleibol.
Renata — E não errei. Mas ele falou que eu disse isso?
Fernando — Falou.
Renata — Ah, mentira dele, eu nunca falei isso. Quem era esse Romário?
Fernando — Pai da Daniele, uma morena.
Renata — Ah — parecendo lembrar-se — mas ela nunca jogou mesmo.
Fernando — Então quer dizer que você nunca deu aula lá?
Renata — Nessa época não. Dei aulas antes e estou trabalhando lá agora.
Fernando — Bem, uma pergunta que eu faria para você, que está programada aqui é: qual o teu sentimento em relação à
Janaína tendo sido professora dela e agora cursando faculdade juntas e jogando no mesmo time? Quer dizer que isso nunca
aconteceu?
Renata — Não.
Fernando — O que o esporte te proporcionou que sem ele você não teria conseguido?
Renata — Viagens, conhecer gente, disciplina — pois eu era muito indisciplinada —. E hoje estar estudando.
Fernando — Você consegue imaginar sua vida se você não tivesse entrado no esporte?
Renata — Não, eu entrei tão cedo no esporte que não consigo imaginar.
Fernando — Quais as diferenças que você percebe no voleibol na época em que você jogava em clubes e o que acontece hoje?
Principalmente nos clubes e colégios.
Renata — Quando eu jogava os campeonatos tinham muitos clubes: Olaria, Jequiá, Ginástico, isso é o principal. E nos
colégios também. Havia o inter-colegial. Tinha a disciplina que não tem mais hoje.
Fernando — O respeito dos treinadores com os atletas ou do atleta com o treinador?
Renata — Os dois. Não tinha tanto xingamento e nem tanto grito. O treino não era tão intenso quando eu era menor, como é
hoje. Acho o treino para a criança com muita intensidade.
Fernando — Você acha o voleibol um esporte elitista e preconceituoso?
Renata — Acho. Primeiro, por que hoje é caro — faz a observação de que hoje é mãe de atleta, pois sua filha Marina joga
voleibol na equipe mirim do GTC — agora tem que pagar para jogar, tem custo para ir aos jogos, o material esportivo é caro.
Fernando — Hoje em dia é mais difícil ser atleta do que antes?
Renata — Não sei pensa um pouco — acho que é.
Fernando — Para um atleta que joga bem, mas que não tem condição financeira hoje é mais difícil?
Renata — É, acho que é. É mais difícil do que era na minha época.
Fernando — E quem tem mais condições financeiras tem mais oportunidade hoje do que na sua época?
Renata — Hoje os melhores clubes estão na zona sul. Antigamente tinha clube com equipe em todos os bairros. O Grajaú
Tênis era bom, o Olaria também, o Monte Sinai tinha um timão, e não era só nas categorias de baixo não, nas categorias de
cima também. Hoje não, só o Fluminense e o Flamengo.
Fernando — E o que você acha que causou essa mudança?
Renata — Falta de incentivo, de organização da federação, está tudo caro para os clubes participarem. Também acho que o
vôlei de praia também atrapalhou, pois é mais barato você patrocinar uma dupla de praia do que um time de quadra.
Fernando — Obrigado pela entrevista. Mas, quer dizer que você não trabalhou com a Janaína no GTC?
Renata — Não, com o Maurício lá eu nunca trabalhei. Vai ver que ela se lembra de mim quando eu joguei o adulto lá. —
realmente na época em que Janaína começou a jogar na categoria mirim, Renata jogava na categoria adulto, que Janaína
confessou em sua entrevista ter acompanhado treinos e jogos da arquibancada do clube.
Aproveitando a presença de Janaína no treino, levei Renata até ela e perguntei se tinha certeza de que Renata havia
sido sua professora no GTC.
Fernando — Ela foi tua professora no GTC?
Janaína — Foi!
Renata — Nunca, Janaína.
Janaína — Foi sim, as sextas-feiras você quem dava o treino.
Renata — Eu? Não, quando o Maurício chegou lá eu saí.
Fernando — De repente foi você mesmo Renata, pois naquela época em que a Janaína começou na equipe, você jogava no
adulto.
Renata — Mas eu nunca trabalhei lá com o Walner. Eu ia treinar!
ENTREVISTA COM O PROFESSOR MAURÍCIO BARROS
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Fernando — A Janaína é uma das meninas com que estou trabalhando na minha dissertação. E uma das coisas que estou
escrevendo sobre é o projeto Grajaú Tênis Clube, que você iniciou e no qual eu entrei em 93.
Maurício — E que agora eu estou retomando.
Fernando — E estou escrevendo sobre como a gente fez uma mudança ética em relação ao trabalho que se fazia aqui dentro
na qual a vitória passou a não ser tão valorizada. Pois eu acho que a gente passou a trabalhar com outros critérios de sucesso,
embora chegar à final do campeonato era um objetivo, mas a gente trabalhava com outros critérios de sucesso, que era ter a
menina treinando sempre, as meninas valorizando a organização, etc...E também mudando esteticamente pois a gente não
copiava o modelo dos outros clubes, a gente ia criando um trabalho nosso.
Maurício — Um trabalho diferente, a gente fazia um trabalho diferente.
Fernando — E uma das mudanças que considero grande é que a gente não vinculava o bom trabalho à vitória. As vitórias
entravam até como um meio de avaliação do nosso grupo perante outros, mas a gente criou novos critérios para validar o
sucesso. Que eram ter um trabalho bom, um número de atletas grande, ter garotas felizes em estar participando da equipe, dar
oportunidade para todos, nossa preocupação em trabalhar com meninas do colégio público, enquanto os demais clubes queriam
trabalhar com meninas que já sabiam jogar. Você vê dessa maneira?
Maurício — Eu acho que tem a ver o que você fala, mas a vitória era o grande objetivo, eu vejo invertido do jeito que você
falou, eu acho que a gente não desvinculou o sucesso da vitória, eu acho que a gente partiu justamente para que isso que você
falou fosse um caminho mais honesto, verdadeiro e realizador do bom trabalho para se atingir a vitória. A gente chegava a
conclusão que os caras ganhavam por que tinham as melhores jogadoras e não por que tinham os melhores trabalhos, os caras
ganhavam por que tinham camisa, não o melhor trabalho, então para a gente ganhar dos caras a gente tinha que ter o melhor
trabalho. Então, isso que você falou, sobre a organização, as garotas felizes, oportunidade para todo mundo, era um diferencial
para que a gente tivesse a mesma vitória que os caras tinham, Flamengo, Fluminense, Botafogo, a gente passou a ter o melhor
trabalho e até hoje eu ouço isso, que o nosso trabalho era show. O estagiário que trabalha aqui está no Fluminense também, e
ele diz que não vê lá um treino como o que ele vê aqui, aqui se treina mais, que treina mais forte, que a gente treina mais com
todo mundo, que o treino do Fluminense — a gente teve oportunidade de ver quando chegava lá mais cedo para os jogos —
o treinador coloca as seis melhores na quadra e ficam as outras quinze atletas só sacando, ficam dois homens no time reserva,
portanto só entram quatro meninas no time reserva, e “porrada” no time titular, então o cara só treina seis. Tem quinze atletas
e só treinam seis, e é o time campeão. A gente dá treino quase que igual para todas as atletas, faz aquele esquema de todo
mundo treinar quase a mesma coisa e jogam de fato as melhores. Então a gente tem um grupo maior, treinando mais e numa
melhor forma e para isso nosso treino tem que ser melhor, o nosso planejamento tem que ser mais adequado a nossa realidade,
a gente tem que tratar as meninas melhor do que eles tratam lá — pois, eles continuam a tratar mal, por que o time de camisa
por si só basta — então o cara pode dar “esporro”, xinga o pai de atleta no meio do jogo, a gente não, a gente tem que tratar
todo mundo educadamente, então tem o sentido da educação dentro do nosso trabalho, mas eu discordo de você quando você
fala que a gente desvinculou a vitória do sucesso, que a gente passou a ver o sucesso de outra forma. Eu acho que a gente
passou a buscar, até por uma necessidade nossa, o quê que a gente tem que fazer para ganhar dos caras? Então a gente buscou
melhores condições, a gente criou melhores condições, criou um melhor relacionamento, até coisas específicas da Educação
Física quando aplicávamos os conceitos de treinamento. Eu lembro que nós ainda não tínhamos um relacionamento muito
estreito e eu chegava e falava: minha atleta sabe fazer tudo, sabe bater bola de tempo, sabe bater meio e sabe jogar na ponta e
você chegou para mim e falou: não Maurício, não interessa ela saber tudo e na hora do jogo só precisa saber fazer uma coisa
e fazer mal feita. Então a gente teve que pegar e estudar, eu particularmente, caiu aquele ficha e eu falei: é mesmo. Então eu
passei a treinar ela melhor para chegar na hora do jogo e acertar, meu treino passou a ficar mais específico, ou seja, a gente tem
que estar sempre estudando mais, quando acaba o jogo e eu faço o relatório, na preleção eu pego a súmula do jogo anterior e
os outros treinadores não fazem nada disso, por que o cara tem o melhor time chega lá e ganha. Então, para a gente ganhar dos
caras tem que estudar mais, tem que planejar melhor, então isso tudo que você falou foi um caminho para a gente atingir o
sucesso. Que a gente caiu dentro da competência.
Fernando — Mas o que eu digo é que a vitória passou a ser um objetivo, isso eu não discordo, a gente tinha o objetivo da
vitória, só que o nosso referencial para determinar o sucesso não era a vitória, embora ela tenha passado a ser um objetivo
prazeroso de ser alcançado, não era aquela neurose de ter que ganhar, passou a ser uma busca através do trabalho coletivo.
Maurício — Isso sem dúvida.
Fernando — Eu dividi aquele trabalho pelas gerações. A geração 80 e 81 foram as gerações de estruturação e as 82, 83 e 84
foram as que colheram vitórias. E depois passou a ter uma queda, mas esse período de bom funcionamento originado pela
geração 80 e 81 durou uns 6 ou 7 anos, não?
Maurício — É cada equipe dessas com uns 2 anos e a geração 84 que jogou até juvenil.
Fernando — Em relação aos relatórios quero te dar parabéns, pois aqueles relatórios anuais que você fazia serviram como
base de consulta dessa pesquisa pela quantidade de informações que estão contidas ali.
Maurício — E sabe que eu joguei tudo fora? Sorte que eu te dei uma cópia.
Fernando — Pois quando eu tentei lembrar de todas essas gerações e como eram os times, embora eu tenha fotos e muitas
planilhas de treino, ficava meio confuso a superposição das gerações. Por ali dá para estabelecer que a Janaína começou a
treinar no mirim em 1999 e que já havia um trabalho de pré-mirim em 1998, depois que ela jogou infantil em 2000 e 2001. E
quando ela abandonou na categoria infanto-juvenil que o Luiz dirigia.
Maurício — É que também nunca passou pela minha cabeça essa idéia de fazer o mestrado, e o problema é que eu quem tenho
que fazer tudo.
Fernando — Uma coisa que eu acho que consegui determinar através dos teus relatórios é que num projeto como esse precisa
de um ano ou dois de preparação e estruturação e depois de mais dois anos o projeto está implantado. Se conseguir resistir por
cerca de 4 anos o projeto segue.
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Maurício — Mas é o que está acontecendo com essa nova geração, depois que eu retornei ao trabalho de equipe. Essa geração
foi última nos campeonatos de mirim por dois anos e ano passado já ganhou mais do que perdeu e esse ano está com tudo para
entrar nas finais do campeonato. Por quê? O trabalho fixou e eu estou na terceira temporada.
Fernando — Isso que eu estou propondo, que a vitória fica como uma referência estatística ou de comparação com as outras
equipes, mas ela não é critério de sucesso do teu trabalho. E essa característica é a determinante na capacidade de investir, que
permite com que a gente prossiga trabalhando.
Maurício — Com certeza, eu já considero essa equipe um sucesso.
Fernando — Você lembra como a Janaína veio para cá?
Maurício — Não me lembro, foi num daqueles processos seletivos nas escolas públicas que fazíamos?
Fernando — Não, ela disse que foi a professora de francês que a convidou para vir para cá. Tânia, acho que era a mãe da
Fernanda e da Bianca.
Maurício — Isso, acho que foi assim.
Fernando — E você lembra o que te fez subir a Janaína do mirim para o infantil?
Maurício — Não, lembro pouco. Mas ela era um potencial, semelhante ao da Lulu, era uma menina séria, tinha um biótipo
bom para o esporte, forte, magrinha, eu vislumbrei nela algo que eu via também na Lulu.
(Maurício interrompe a entrevista para mostrar os relatórios dos jogos das equipes com que trabalha, onde há avaliações sobre
o desempenho de cada atleta nos jogos. Enquanto me mostrava os relatórios — feito no notebook recebido da secretaria de
Educação do governo do Estado do Rio de Janeiro pela matrícula de professor da rede pública de Educação — chega à porta
da sala a mãe de uma das meninas que participa da equipe de voleibol do clube para pagar a mensalidade que é cobrada das
atletas para custear os gastos das equipes que, segundo Maurício, chegam a mais de R$ 3.000,00 mensais para a disputa dos
campeonatos mirim, infantil e infanto-juvenil. Na seqüência discutimos sobre a utilização da tecnologia da informática para
a preparação das equipes com a utilização de fotografias digitais e filmes de jogos exibidos para as atletas antes dos jogos e
durante os treinamentos.)
Fernando — O Walner ficou com a equipe mirim que nós não conseguíamos mais trabalhar,não foi?
Maurício — É chegou um momento em que não dava para dirigir todas as categorias, em 1995 eu dirigi todas as categorias de
mirim a adulto e não dá. Aqui já não dá eu to dando treino de pré-mirim, infantil, infanto e não já não estou conseguindo.
Fernando — O objetivo da categoria de base não é ser campeão, não é?
Maurício — É a educação, o objetivo é formar eticamente o atleta e a pessoa.
Fernando — Fazendo um paralelo entre a escola e o clube, os clubes nessas categorias têm um objetivo educacional. Você
acha que esse tipo de campeonato que se faz cumpre esse objetivo?
Maurício — É um debate grande, é uma pergunta difícil de responder para quem ta dentro do meio. Eu sou contra essa
competição acirada desde o mirim, isso mostra um monte de falhas, por exemplo, qual a aspiração dos treinadores do Rio de
Janeiro? Ser treinador de infanto-juvenil, por que juvenil só tem três equipes e adulto nem existe, porque se você monta uma
equipe como a gente montava, contra a equipe do rexona é para perder todos os jogos de 3 a zero e sem chance de disputar,
ninguém mais monta. Então, a disputa fica no mirim, infantil e infanto-juvenil e todos os princípios do treinamento desportivo
são aplicados nessas categorias, e as meninas não estão prontas para receber essa carga. Hoje, no infantil a menina já agüenta
peso o treinador já vai soltando, pois o diferencial está nisso, como a gente vai igualar. Pois os clubes de camisa pegam as
atletas mais fortes dos outros times, a gente tem que ter as nossas atletas mais fortes, isso é onde você perde o contexto
educacional. E isso acontece também no mirim, o treinador xinga e pressiona a atleta, então nesse paralelo da educação no
esporte esse potencial é perdido, pois a competição leva a isso. Se a competição fosse mais leve...
Fernando — Mas aí são duas coisas diferentes, primeiro é você fazer um trabalho de treinamento adequado à faixa etária. No
mirim e no infantil você acha que está havendo uma antecipação desse rendimento?
Maurício — Até mesmo pela maturação. Você vai ao treino de mirim e vai ver a menina fazendo uma quantidade de repetições
de saques fortes na parede que você percebe, lógico que eu estou falando de forma empírica, mas você percebe que ela não
está madura para aquele exercício. Daqui a pouco a menina vai sentir uma tendinite no ombro, não tem como. Pela quantidade
do trabalho. E por que o Treinador está fazendo isso?
Fernando — Exatamente, por quê?
Maurício — Por que se ele não o fizer perde.
Fernando — Mas aí você não acha que modifica, não a visão educacional apenas, mas também o trabalho correto a ser feito?
Maurício — Mas agente não tem certeza de que ela vai sentir o ombro, se tivesse certeza não o faria, mas fica o risco, entre ou
vai dar certo ou vai dar errado. A gente vai ao limite, a gente vai jogando com o limite da criança, da menina que ainda está em
maturação sem esses dados científicos.
Fernando — Mas você tem os dados empíricos e essa experiência me interessa muito. Que é saber até quando você pode levar.
Por que tem a questão de ultrapassar o limite da criança sem intenção e lesioná-la, mas quem trabalha consegue perceber qual
esse limite, embora muitos estudos ditos científicos estipulem limites muito aquém da capacidade da criança e quem trabalha
com elas sabe que aquele exercício criticado não causa danos. E nós que trabalhamos e temos contato longo com as meninas
e as encontramos depois quando adultas podemos verificar que não causou nenhum problema. Mas quando acaba fazendo
algo que, mesmo empiricamente, a gente sabe que tem um risco em função da vitória, não estamos voltando a tê-la como
critério de sucesso e único fator que importa?
Maurício — Mas o nosso trabalho naquele projeto também tinha esse risco.
Fernando — Tinha algum, mas a gente nunca levou o nosso treinamento para a questão: tem que fazer para a gente ganhar e
você (atleta) que se dane.
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Maurício — Não, mas isso também não tem hoje.
Fernando — Mas você percebe que há, de repente até aqui mesmo ou em outros clubes, esse desrespeito para com o atleta?
Até pela informação com a qual a gente trabalha também, pois a gente é bem informado e sabe que às vezes está aplicando
certos treinamentos que não deveria estar aplicando, por exemplo, essa faixa etária não é para aplicar isso, mas acaba aplicando.
Mas em relação à parte educacional, pois nossa discussão está mais voltada para as questões de treinamento e biológica, mas
há a questão do valor educacional da experiência esportiva. É sobre esse outro lado que eu gostaria de saber mais a sua
opinião. Você consegue ver, a partir de toda a tua experiência, a competição esportiva nos moldes que é feita...
Maurício — Como uma coisa maléfica?
Fernando — Não, mas com um potencial educativo?
Maurício — Sem dúvida, pois dentro.... Bem, eu acho que entendi o teu trabalho. O que você quer é o seguinte: o trabalho em
si, às vezes a gente extrapola, trabalha com risco de lesão, tem o risco psicológico da criança se frustrar, pois ainda não está
pronta para isso e a competição é forte demais. Mas se você quer um relato meu de um todo, eu acho que com todas as
benesses e com todos os malefícios que estão embutidos no próprio treinamento, o que fica são os benefícios. Até porque,
como você disse, a gente tem contato com elas e todas elas vêm e dizem: Maurício, era a melhor época da minha vida. Às
vezes é uma menina que jogou mirim ou mirim e infantil, e todas elas dizem isso. E eu tenho o agradecimento dos pais: o que
você fez pela minha filha foi uma coisa fantástica. Então apesar de todos esses riscos, as partes boas superam as ruins. O
esporte, queira ou não, tem um formato educacional. Até os treinadores grosseiros, que falam palavrão, educam na disciplina,
pois o cara tem que ser disciplinado, almejar o sucesso, tem que querer vencer, ou seja, melhora a auto-estima. Não sei se é
isso que você quer?
Fernando — Eu quero o teu relato, a tua visão. Mas hoje, estudando, conversando com as pessoas, aproveitando essa minha
experiência ao teu lado e em outras coisas que eu fiz, eu percebo que o professor, assim como os árbitros, por exemplo, talvez
sejam os menos preparados para conduzir o momento da competição esportiva. Por quê? Por que a gente no clube tem a
possibilidade do processo de treinamento, que na escola às vezes você não tem. Então, na escola quando você vai para a
competição, você não sabe o que esperar daquele atleta ou se ele está preparado para a competição e no clube você tem esse
dia-a-dia em que você pode preparar a criança ou o adolescente para o jogo. Mas no jogo há a influência da torcida, do árbitro
que tendem a tirar aquela competição esportiva do âmbito educacional e levar só para o ambiente competitivo.
E aí eu digo o seguinte, quando uma competição é esportiva ela tem uma ética interna e uma série de coisas que a
fundamentam. A competição é a lógica da concorrência, é a lógica do capitalismo, do mercantilismo, ou sou eu ou é você,
quem vai jogar sou eu ou é você, quem vai ganhar sou eu ou é você. Enquanto na competição esportiva a primeira coisa que
valoriza a tua vitória sou eu, que joguei contigo e perdi, reconhecer a tua vitória. É o outro clube que ficou em terceiro lugar
reconhecer que você mereceu ficar em primeiro lugar no campeonato. É toda uma comunidade esportiva reconhecer o trabalho
que você faz, como você mesmo falou, quando o clube que é campeão ganha passando por cima de certos valores éticos que
aquela comunidade valoriza ele passa a não ter o respeito dos demais. Então, por exemplo, o treinador é campeão, mas ele
conquista o campeonato trazendo duas meninas de um time e duas de outro, enfraquecendo esses times, o que passa a ser isso?
Portanto eu acho que o sentido educacional do esporte está no reconhecimento de uma comunidade que não deixa isso
extrapolar para se tornar somente competição, pois quando ela passa a ser somente competição, passa a não ser educacional
ou a ser educacional só para aquele fim, ou seja, ser mais competitivo no mercado de trabalho, a educar para a concorrência,
entendeu? O que eu tenho visto hoje é um número de caras mais novos sendo treinadores, até ela questão financeira que você
mesmo levantou, da má remuneração dos treinadores. E esses treinadores acham que sendo campeões de mirim vão chegar à
seleção brasileira, que a gente sabe que tem um caminho político por trás. Ou seja, você acha que o valor educativo dos
esportes nos clubes diminuiu?
Maurício — Eu acho que não, acho que só muda um pouquinho a época, mas se parar para analisar, eu estou há 20 anos nisso
e antes de eu começar já tinha isso. Eu acho que é uma coisa do tempo, social. Mas não acho que diminuiu não. Eu acho que
continua, esse lado que você falou, eu sou mais campeão que o outro treinador, pois eu pego o meu time que estava em último
e agora ele está em terceiro, e ele pegou um time que já era primeiro, pegou as três melhores meninas de outras equipes,
agregou a esse time e continuou sendo primeiro colocado, mas é uma coisa que vale para mim, pois tem um contexto cultural
nisso. Para o brasileiro, se o Brasil vai à copa do mundo, se for vice-campeão ou sair na primeira fase é a mesma coisa. Então
esse contexto cultural de que o bom é o que ganha influi. O brasileiro não vê o trabalho, alguns pais de alguns clubes até me
elogiam: o teu time está melhorando, que trabalho bom. Mas, o campeão é o mais. Agora essa tua pergunta, se tem diminuído
o valor educativo do esporte? Acho que não. Mas você vê que essa questão de que o esporte de base não paga bem, aí você vê
quem vai ser técnico de mirim? Se achar um cara gabaritado, ele vai querer um salário bom. Então pega um garoto que está
começando que ele trabalha de graça, e ele vem com toda a falta de experiência para lhe dar com as crianças, com a falta de
experiência para melhorar as crianças, vem com aquele formato de ver o treino do Bernardinho e, se isso dá certo aqui no
adulto, eu vou aplicar lá com as crianças. Então pega todas essas falhas e esse treinador vai se fazendo ali, quando ele é bom
vai melhorando, quando é ruim, vai piorando. Então eu não acho que isso piorou, a parte educacional, a própria competição
em si, o caráter esportivo, a própria ética que isso está envolto, não numa esfera maior, não na esfera cultural e social do
Brasil, mas nessa parte de competição de respeito mútuo, isso vai acabar acontecendo meio que embutido nesse pacote que
são as equipes disputarem campeonatos com essa importância. Os profissionais despreparados acabam ficando melhores, os
antigos, como é o meu caso agora, acabam voltando e isso vai dando um certo equilíbrio e isso dá continuidade a esse caráter
educacional da competição. Não diminui, não diminui, eu acho que é sazonal, tem épocas em que tem treinadores mais novos.
Fernando — O que eu tenho visto nas entrevistas que eu tenho feito com as meninas que fazem parte dessa minha pesquisa...
Maurício — é que tem diminuído?
Fernando — É que não importa tanto na época de mirim e infantil ser titular ou reserva, ou ganhar e perder, elas querem estar
no grupo, no jogo, elas querem estar treinando...
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Maurício — Isso a gente já tinha até observado naquele nosso projeto. O pai fica injuriado por que a filha não está jogando e
ela está feliz e satisfeita por que está participando. A gente não pode falar que cientificamente, mas se a gente tivesse registrado
aquilo de alguma forma...
Fernando — Pois é, mas é um conhecimento que a gente tem. Eu acho isso, você acha isso, mas a gente não vê muitos trabalhos
pesquisando esse tema. Mas você falou que uma das tuas preocupações nesse processo é a menina se frustrar. E eu tenho me
preocupado menos com o fato da criança querer ser como o Giba ou a Paula Pequeno, ter essa vontade me preocupa menos.
Dizem que o Romário influencia os atletas a não treinarem, mas quando a gente trabalha com a criança vê que isso é fácil de
trabalhar. Mas o que me assusta mais hoje em dia é a influência que o Bernardinho, que o Scolari, que todos esses treinadores
que estão fazendo um trabalho excelente no lugar em que estão, pois trabalham com adultos e no esporte profissional....
Maurício — Influenciam em quem está começando.
Fernando — Acho que nem só em quem está começando, mas até nos que estão há mais tempo como treinadores....
Maurício — E até nos pais, que reclamam que o treinador não dá duro nas crianças. Mas isso não é uma coisa nova.
Fernando — não é nova, mas hoje estão mais em evidência. Hoje tem toda uma mídia que invade o universo dos esportes.
Quando a gente começou a trabalhar com vôlei, apesar do Brasil já ter sido campeão olímpico, não havia essa visibilidade. E
são algumas pessoas que não têm uma formação ética no esporte, que não entendem a importância do trabalho que é feito com
as crianças e ficam divulgando essas formas como se fossem a certa para o trabalho com crianças. E eu tento explicar que
esses treinadores estão certos por que eles estão no ambiente do esporte comercial e profissional, onde a ética é essa, a da
concorrência, embora não precisasse ser. E esse esporte profissional é importante existir, pois é uma manifestação humana de
excelência, assim como são o teatro profissional, o músico profissional. Por exemplo, você ver o Giba jogando voleibol é uma
maravilha, pois ele faz coisas que os outros não fazem, que a gente não consegue fazer e que nem quando jogava conseguimos
fazer, então é legal admirar esse atleta, ele merece ganhar a vida através desse trabalho, mas ele está lá onde deve estar, no
esporte profissional. Então, o que me assusta mais é quando essa lógica do esporte comercial ou profissional aparece nas
categorias de base por isso é que eu acho que tem perdido o poder educacional nos clubes.
Maurício — Mas isso está aparecendo agora nessa entrevista, não?
Fernando — Não, já havia aparecido, mas eu não tinha ilustrado com esse exemplo.
Maurício — Eu acho que você está colocando que a competição quanto maior a repercussão ela obtém no fator vitória,
atrapalha a formação do jovem atleta.
Fernando — Não por ela em si.
Maurício — Sem dúvida, isso é o desencadeamento de idéias, o cara fez sucesso por que trabalha mais, por que tem mais
cobrança e por que trabalha mais forte, isso com certeza vai varrer lá a base. Por que a base disputa com a base. A base não
disputa com eles, então o grupo de crianças de onze anos, por exemplo, que é o pré-mirim, que já está seguindo esse caminho,
treinava apenas aos sábados. Eu fui para dois torneios de pré-mirim e perdi feio. Passei a treinar quarta e sábado. Fui para um
outro torneio de pré-mirim e já fui melhor. Cheguei a conclusão que se eu treinar mais eu vou chegar no nível da competição.
Então eu passei a treinar terças, quartas, quintas e sábados, a coisa vai num desencadeamento de idéias lá em cima, a mesma,
aí eu considero a mesma, lá em cima e aqui embaixo. Só que aí você começa a forçar...é por isso que eu digo...se a competição
fosse mais fraca, ou seja, uma competição de pré-mirim a cada três meses, agora, jogo todos os domingos faz com que você
siga essa mesma lógica do profissional adulto.
Fernando — (interrompendo) Mas o que eu estou questionando não é a fórmula de disputa ou o treinamento, eu acho que a
criança pode treinar todos os dias. O que eu to questionando é o objetivo do processo.
Maurício — Deixa-me dizer, a turma da minha filha, que no ano passado não competia externamente, era a melhor turma de
escolinha por que elas vinham para cá brincar de vôlei, davam os três toques e a bola não caía, já sacavam por cima, tinha
menininho que já sacava viagem, naquela mini-quadra do mini-voleibol. Agora elas se frustram quando o time joga mal, ou
seja, o treinamento dela evoluiu, a levantadora já sabe largar de segunda, pois é canhota, igualzinho a Fernanda Venturini, e
eu vejo nessa turma nesse ano, um grupo mais triste, e isso é fato, é bom para você relatar no seu trabalho. A competição
quando chega numa bagagem de cobrança que entra em conflito com a natureza da criança, você violenta a criança pelo
aspecto das suas características, que são: irresponsabilidade, querer sempre brincadeira, imaturidade e os técnicos para atingirem
o sucesso o que têm que cobrar? Que a criança seja mais madura, que tenha mais responsabilidade, então você acaba, eticamente
falando, violentando toda uma natureza. Quando você compara o voleibol ao handebol, por que ele é mais “light” nesse
sentido? Por que não há uma projeção, por que hoje não tem time para jogar o campeonato de handebol, você só joga na
escola e na escola ele só joga rindo, brincando, tirando onda. Aí ele vai para a competição, o inter-colegial, e só joga um jogo,
perdeu ta fora, só joga ano que vem. Então, nesse sentido, você tem a competição sendo uma coisa que atrapalha o
desenvolvimento.
Fernando — E aí perde o sentido da formação e a gente sabe que isso tá errado.
Maurício — Perde sim. É relevante. E está errado.
Fernando — Até como questão ligada ao desempenho, pois a criança não arrisca mais o que arriscava nos jogos, por causa da
competição, que aí não é esportiva, pois se fosse competição esportiva haveria uma pessoa ali ajudando a superar os erros e
tudo mais.
(A conversa sobre esse assunto pareceu esgotar-se e passei à segunda parte.)
Fernando — Você é professor de colégio público e de colégio privado. Quais as diferenças entre o trabalho realizado nos
dois?
Maurício — São muito diferentes e tudo vai da cobrança. Tudo o que se dá para o professor trabalhar e o que se cobra. Eu vou
te falar a minha experiência. A minha experiência no particular é o seguinte: o cara me dá uma quadra coberta, material para
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todos os esportes, eu tenho até material de ginástica olímpica, tenho material de vôlei, de basquete, de handebol, de futebol,
tudo de primeira qualidade e novo. Tenho rede, tabela de basquete, enfim... E me cobram pouco, só me cobram assiduidade,
me cobram projeto, me cobram o quê eu estou fazendo, me cobram notas. No público, não me dá nada e não me cobra nada, ou
seja, eu peço algumas coisas, às vezes a diretora me dá, e sou eu que cobro um pouco: professora, dá uma bolinha aí. Quando
não tem eu levo daqui do clube. A tabela de basquete só tem em um lado, do outro é quebrada. A quadra é descoberta. Faz obra
na escola e a quadra fica interditada o ano inteiro e não tem aula. Em todas as escolas em que eu chego, pergunto para a diretora:
o quê eu preciso fazer para montar a equipe da escola? Eu já estou na décima escola e só consegui fazer o time da escola em uma
delas. E por ironia do destino tive que sair da escola. Mas a diretora gostou tanto que me manteve na escola com outro projeto,
pois eu não sou mais professor de escola e vou lá só para dar esse treino, por que nenhum outro professor da escola quer fazer
isso. Então, em dez escolas públicas que eu já passei só em uma eu consegui fazer uma equipe. Na escola que eu estou em São
Gonçalo, com essa visão que eu estou do trabalho com o mini-vôlei, pensei: posso colocar uma porção de redes aqui, dividir a
quadra e tal. A diretora me perguntou o que você precisa e eu disse tudo o que precisava, e é pouco material, estou lá há dois anos
e cadê o material? Falou que ia fazer e acontecer e não sai nada, ou seja, a cobrança faz com que, por mais que eu queira, não saia
nada. Por que as crianças são as mesmas, e aí é que está o problema. Às crianças do particular você dá uma recreação e os alunos
respondem. Você chega ao público e elas respondem até mais. Então é maneiro dar aula e isso me frustra, pois você chega ao
público em que a criança não tem dinheiro para fazer fora da escola, que o olho das crianças brilha quando tem uma atividade
de Educação Física, que valorizam até mais, não tem nada. Não sei, não vou generalizar, eu na escola pública estou sempre em
conflito. Na escola particular estou sempre tranqüilo.
Fernando — Se tiver que relaxar em um dos dois é na escola pública que você relaxa?
Maurício — Eu acho que se tiver que relaxar nos dois você vai relaxar nos dois. Por que o professor tem como ser um mau
professor dentro dessas cobranças todas. Agora, o que eu te falo com sinceridade é o seguinte, o esquema da pública é
forçado, até por que você chega à pública, por exemplo, em várias escolas você chega para dar aula e você divide o espaço
com outro professor e outra turma. O outro professor não faz nada, você fica dando aula para as duas turmas, aí daqui a pouco
você se sente lesado, você está dando aula para as duas turmas e o cara está lá encostado, ou fica na sala, sem se preocupar
com nada. Hoje a Educação Física está meio que jogada ali, em contra-partida quando eu fui de outra escola que eu trabalhei
com professor que trabalhava, aí você passa até a querer fazer coisas legais e diferentes. Agora, que o público é levada para a
coisa não funcionar, partindo um pouco de uma leitura política, até marxista, ou seja, a coisa é feita para não funcionar.
Fernando — Mas ela não funciona por que você não recebe condições ou pelo esquema que já não deixa que funcione. Como
você falou, se entrar um, grupo de professores que queira fazer alguma coisa você acha que é possível funcionar?
Maurício — Sem dúvida. Por que eu cheguei nessa escola e fiquei três meses e já montei a equipe da escola. Que eu já estou
trazendo para cá, pois na escola não tem lugar para treinar e eu estou treinando aos sábados aqui no clube, ou seja, você
trabalha de graça...
Fernando — Você trabalha como amigo da escola?
Maurício — Isso não existe, eu detesto esse amigo da escola, sou contra isso. Por que quem trabalha na escola é você, que
trabalha e dá aula de Educação Física. Por que é que não paga ao professor de Educação Física para fazer isso? Eu to fazendo
isso por que há um interesse meu, por que é uma escola em que eu quero firmar minha matrícula, vislumbrei esse trabalho e
a diretora gostou, mas eu tive que sair da escola, pois o professor que eu estava substituindo voltou. Quando eu comecei esse
trabalho lá eu reuni os alunos e expliquei: olha só, nós vamos fazer parte de um grupo de colegial e que eu quero que seja a
elite da escola. Então fiz uma série de cobranças aos alunos da escola, como: o aluno para estar na equipe do intercolegial tem
que ter nota boa, não pode ser aluno problema, ou seja, fui para a parte educacional que transcende o trabalho esportivo. O
meu sonho é que aquele grupo da escola fosse elogiado, bem visto, ou seja, é o cara que dá bom dia quando passa pela
portaria, quando a professora reclamar da turma vai excluí-lo das reclamações, enfim, não é a galera que puxa a turma para a
bagunça, pois o cara que é do esporte na escola é o sujeito que tem moral com os outros alunos. Então, o cara que tem moral
ele puxa a bagunça e “sacaneia” o professor dentro de sala de aula. Quando o cara que tem moral chega e fala com o outro
aluno: meu irmão vamos deixar o professor dar aula aí, a coisa se esfria. Então é isso que eu sonho criar condições para que
a escola funcione através do esporte. Então faço todo esse pacto, cobro dos alunos, a coisa funciona, faço chamada, cobro
freqüência, mostra a eles todos esses princípios esportivos do treinamento, aí chego agora, o jogo é mês que vem, dia 12 tem
o jogo do masculino, aí eu chego para os caras e digo: tchau! E agora faltando um mês eu vou abandonar? E a molecada? E
fora isso tem uma conversa com a diretora, que eu quero levar minha matrícula para lá. Então fiz um acordo com ela, pois ela
veio para mim e disse: poxa, você agora vai sair, e eu não queria que você saísse, pois fez uma coisa que ninguém fez na
escola. E eu disse: eu continuo e a senhora me promete que tudo o que a senhora puder fazer para me trazer para cá, que a
senhora vai fazer. E tem todo o respeito pelo trabalho das crianças que corresponderam, tem dois meses e meio de trabalho e
agora vai tudo pro lixo? Eu percebo que a galera está melhorando. Os alunos entravam na quadra chutando a bola. Eu disse:
eu não quero aluno dessa equipe entrando na quadra quando a aula for de outra turma e chute a bola ou atrapalhe as aulas, ou
seja, daquele grupo ninguém faz. Eu não sei mensurar quantos daquele grupo faziam isso e quantos pararam de fazer, mas
naquele grupo ninguém faz, sob a ameaça e o risco de estar fora daquela equipe que é o que eles querem. Então, há essa parte
da punição, que é onde acontece o Brasil. Eu não sei se o esquema é montado para não funcionar, mas o esquema está largado,
é diferente. Não é só o professor de Educação Física. Tem relatos, eu nunca vi, mas há relatos que tem professor que entra
passa um dever no quadro e vai embora. Agora eu já vi professor que entra passa trabalho no quadro nessa turma, vai para
outra sala e passa dever no quadro e vai em outra turma e passa dever no quadro e vai embora, isso eu já vi. O cara passa o
trabalho e vai embora. Não é só na Educação Física, coisa que o professor nunca iria fazer na escola particular, por que o pai
que está pagando vai lá e cobra, coisa que no público, embora não seja gratuito, por que tem alguém que paga, que somos nós,
a cobrança é nenhuma.
32
Fernando — Você acha que esses alunos que pararam de chutar a bola o fizeram por medo de sair da equipe ou por que passaram
a entender de outra forma?
Maurício — Não, acho que entenderam. Eu parti dessa punição. Por que o que acontece nas escolas hoje é o que acontece na
sociedade brasileira hoje. O filho da governadora do Rio Grande do Norte roubou foi preso pela polícia federal e a justiça
mandou soltar. O maluco entra na escola, manda a professora “tomar no cú”, a diretora fica sabendo e não faz nada, ou manda
um bilhetinho para os responsáveis e no outro dia o cara está na escola cantando funk alto na escola, atrapalhando todas as
aulas e não há punição. Então entrei nessa com uma punição, mas não precisou, o caráter educacional, por que esse jovem é
facilmente abraçado e conduzido se tiver uma pessoa, como eu fiz, que mostre e priorize ele. Eu não cheguei e fui dando
ordens: quem não fizer assim ta fora. Pelo contrário, eu valorizei: quero que vocês sejam a elite da escola, que olhem para
vocês e digam que bacana esse grupo. Acho que o jovem precisa dessa valorização para ser cobrado, como não tem essa
valorização, não é cobrado em nada e a coisa não funciona.
Fernando — O tipo de público de um e outro colégio então não faz diferença?
Maurício — Eu acho que faz diferença pela forma que eles são trabalhados, no particular o aluno é mais bem trabalhado. Por
que há uma cobrança em cima do professor, ou seja, isso que eu fiz nesse colégio público, eu nunca consegui fazer no
particular. E tentei fazer várias vezes. Por que o interesse é diferente, para o particular não interessa, não quero saber de
intercolegial, que aqui o negócio é passar no vestibular. Porém, a Educação Física funciona.
Fernando — As quadras e espaços usados pela Educação Física são geralmente expostos aos outros alunos. Você acha que
isso atrapalha o desenvolvimento dos alunos e as iniciativas do professor em atividades diferentes do esporte?
Maurício — A sala de Educação Física é o pátio, o aluno passa e chuta a bola para cima do telhado. Eu to dando aula para a
quinta série, para as meninas da quinta série, passa o menino do ensino médio chuta a bola e aí toda turma ri e eu não tenho
ingerência nenhuma sobre esse cara. Se eu for falar com esse aluno ele vai virar para mim e me mandar para aquele lugar. Por
que eu não sou professor dele. O estado lá funciona assim. Então eu tenho que ganhar o cara no respeito, ou seja, quando o
ensino médio quer uma bola e eles vêm pedir eu empresto. Eu vou criando um certo respeito para quando eu for exercer uma
cobrança, por exemplo, quando o cara ameaça brigar comigo por qualquer coisa, eu digo: o cara você ta brigando com o
professor errado. E aí os outros já entram numa de me defender: ta doido vai brigar com o cara. Por que às vezes eu jogo
futebol com eles lá no campo, aí convido o ensino médio para ir também. Aí eu crio um vínculo de valorização à pessoa e ao
aluno que a escola não permite que se crie. Eu faço na experiência, como uma forma de sobreviver dentro da escola, senão eu
estou ferrado, senão eu sou engolido pelos alunos. Tem professora lá que morre de medo, a própria diretora me chama para
resolver problemas. Um dia me chamou para resolver uma briga que ela era incapaz de resolver, dois caras que caíram na
briga e um deles era chefe da boca de fumo. Aí fui lá eu com essa minha experiência conversar com o cara que todo mundo tem
medo na escola. Quando eu tirei o contracheque e falei: olha só quanto o professor ganha. Ele pegou meu contracheque e
disse: professor, isso a galera lá faz por dia. O papo começou assim, eu tirei o contracheque para ele ver que o professor está
ali para fazer mais do que ele ganha para fazer, então o professor que está ali quer ver o melhor para o aluno e olha quem você
está “sacaneando” o cara que ganha quinhentos reais para cuidar de você. O cara tem família para cuidar, conta para pagar e
está aqui cuidando de você para quando você quiser sair dessa tenha para onde ir. Por que você sabe que isso aí é um tiro
curto, por que uns 4 anos você vai viver bem, depois ou você vai em cana ou vai morrer, e digo: você sabe disso, é só você ver
teus amigos, quantos já morreram ou estão presos? Aí ele diz: é já perdi uma porção de amigos. E a diretora fica de boca
aberta, para os pepinos ela me chama. Por que o cara está lá por que não tem onde estar, ele ta lá na boca por que não tem
opção, se ele tivesse talvez não estivesse lá. A coisa é por aí.
Fernando — E a quadra fica exposta?
Maurício — É exposta e quando tranca a galera entra, por que quando o professor falta a turma vai para onde? Para o pátio ou
vai ver as aulas de Educação Física. Aí fica implicando com quem joga mal, ou então ficam mexendo com as garotinhas que
são bonitinhas, ou fica enchendo o saco: professor deixa a gente jogar aí. E se deixa a outra turma jogar, e eu confesso que já
deixei, e é a turma dos pequeninos, os pequenininhos e os ruinzinhos não jogam, só vão jogar os bons da turma, aí vira a tal
da exclusão. Então eu não deixo mais, só joga quem é da turma. E isso acontece toda a hora na escola, não é todo o dia não,
é toda a hora. Você fica brigando para poder funcionar a aula. Coisa que no particular não, a quadra ta ali, e o público quando
não tem aula e assiste, seja por tempo vago ou outra razão, a turma assiste com certo respeito. Ou quando “sacaneia” quando
um toma uma bolada no vôlei ou um drible no futebol, aí você como professor interage: amigo, por favor. Os caras na hora
respeitam, coisa que no público não acontece, se você faz isso eles te “sacaneiam”, eles sabem que mandam na escola. Como
em uma escola que eu fui em Santa Teresa, os moleques maneiros, maneiríssimos, e aí papo vai papo vem os caras mandaram
na hora: professor pode ficar tranqüilo, aqui quem manda é a gente, não tem esse negócio de direção não, aqui quem manda
é a gente. Ou seja, a aula de Educação Física é uma aventura no colégio do Estado. E se eu faço um time de futsal ou de
futebol, pois tem umas escolas que tem um campinho, eu ganho os “podres” da escola, por que esses caras procuram a
Educação Física. Se eu faço um time desses eu ganho até a comunidade. Mas sabe quanto ganha para fazer uma coisa dessas?
Nada! Não tem essa valorização.
Fernando — O que se faz além do esporte nas aulas de Educação Física?
Maurício — Muito pouco, mas se faz. A parte cultural das festas. E na minha monografia de pós-graduação, você viu, eu
mostro que o ensino médio é uma continuação do primeiro segmento e que por lei não deveria ser, segundo os pcns. É
recreação para as crianças, pois tem escola do Estado que começa com o C.A e esporte. É muito mais isso descarado.
Fernando — E você disse que não acha legal o projeto amigo da escola. Você já trabalhou em alguma escola que tinha esse
projeto?
Maurício — Nessa escola que eu tenho a equipe tem um projeto de capoeira aos sábados, mas eu nem sei como funciona. Em
outra tinha o projeto segundo tempo, mas eu acho que as pessoas que trabalham nele nem profissionais de Educação Física
são. Mas eu não sei.
33
Fernando — E você acha que esse trabalho que a gente desenvolveu no Grajaú Tênis Clube caberia em uma escola?
Maurício — Eu acho que sim. Onde estão as crianças? Nas escolas. E os clubes não conseguem pegar um por cento da
comunidade de crianças e jovens. Agora, isso teria que ser uma coisa muito organizada e totalmente despolitizada, ou seja, se
existisse uma lei que toda escola teria a obrigatoriedade de possuir duas equipes de esportes olímpicos para competir, o
professor de Educação Física seria destinado para isso, iria receber a mesma carga horária. E a Educação Física poderia cuidar
de outros conteúdos, pois tem alunos da escola que são inaptos para o esporte, ou mesmo não se interessam, mas aí teria a
parte de dança, de outras esferas da Educação Física que esse público se enquadraria.
Fernando — Mas essa criança que não participa do esporte, às vezes não o faz por vergonha ou por não existir um ambiente
propício para que ele tenha essa experiência de participação junto com os seus amigos de turma, não é?
Maurício — Eu já vejo mais do que isso. Você perguntou se o que eu faço aqui no clube poderia ser feito na escola. E o que
eu faço aqui é uma grande rede de praticantes de vôlei, na qual eu tenho 200 alunos, dos quais 45 são das equipes que
disputam os campeonatos da federação, ou seja, 25 por cento dos alunos estão nas equipes. Os outros 75 por cento participam
de uma competição interna. Esses outros alunos que querem participar do esporte, mas não querem entrar para a equipe
participariam das competições internas, como são organizadas as olimpíadas de colégio, onde todos jogam. Então a gente
também atingiria esse aluno. O que eu falo é sobre o aluno que nem ali está, aquela gordinha que não gosta, que não quer
mesmo, que só quer ficar sentada nas aulas de Educação Física, tem outras coisas que ela pode fazer.
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