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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
DANNIELLE REZENDE STARLING
A PALA V R A -B U R A CO:
BORDADURAS EM TORNO DA ESCRITA DE MARGUERITE DURAS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
programa de s-Graduação da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, na área de concentração Teoria da
Literatura, linha de pesquisa Literatura e
Psicanálise, como parte dos requisitos
necessários para obtenção do título de mestre
em Letras, elaborada sob orientação da Profa.
Dra. Lucia Castello Branco.
Belo Horizonte
Março de 2009
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Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Starling, Dannielle Rezende.
D952.Ys-p A palavra-buraco [manuscrito] : bordaduras em torno da escrita de
Marguerite Duras / Dannielle Rezende Starling. – 2009.
104 f., enc.
Orientadora: Lúcia Castello Branco.
Área de concentração: Teoria da Literatura.
Linha de Pesquisa: Literatura e Psicanálise.
Dissertão (mestrado) Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 100-104.
1. Duras, Marguerite, 1914-1996. Deslumbramento Crítica e
interpretação – Teses. 2. Duras, Marguerite, 1914-1996. Amor –
Crítica e interpretação – Teses. 3. Duras, Marguerite, 1914-1996.
Escrever – Crítica e interpretação Teses. 4. Psicanálise e literatura
Teses. 5. Crítica literária feminina Teses. 6. Mulheres
Linguagem Teses. 6. Comunicação escrita Teses. 7. Escritoras
francesas Crítica e interpretação Teses. 8. Mulheres na literatura
– Teses. 9. Amor na literatura – Teses. 10. Dor na literatura – Teses.
11. Espaço e tempo na literatura Teses. I. Castello Branco, Lúcia.
II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III.
Título.
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AG R A D ECI M E NTO S
A Lúcia, por ter me ensinado, com doçura, a bordar com as letras.
A Christian, porque com ele é possível escrever o amor.
A Ram Mandil, a quem carinhosamente apelidamos 'claro Mandil', por saber transmitir,
com clareza, os pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise.
A Ana Lucia Lutterbach Holk, por sua “mulher abismada” e por ter aceitado gentilmente
participar da banca de avaliação desta dissertação.
A Ruth Silviano Brandão, pelas literaturas e as literaterras.
A Luciana, Erick e João pelas engrandecedoras discussões, pelas trocas de idéias e boas
risadas.
A Paulo de Andrade, pela poesia inerente e por sua leitura atenta.
A Jeferson M. Pinto, pelo acolhimento, incentivo e leitura quando esse texto era ainda um
projeto.
A Mário Lúcio Vieira da Silva, pela escuta do que se escreve e do que é impossível de se
escrever.
A Sérgio Laia, responsável pela facilitação da compreensão e formalização de várias idéias
presentes neste trabalho.
A Fernando Grossi, Ângela Diniz, Carolina Bellico e Isabela Campario, pelo 'sinthoma'
que nos uniu.
A Cris, Lis, Nina, amigos para sempre.
A Vera, amiga, parceira de consultório e de outras jornadas.
A meus pais, por me ensinarem o que fazer e o que não fazer.
Aos amigos do CMT, pelo incentivo e apoio.
Aos funcionários da Pós-graduação em Letras, pela atenção, organização e disponibilidade
de sempre.
A Fapemig, pelo auxílio financeiro que tornou possível a realização dessa pesquisa.
RE S U MO
A vasta obra de Marguerite Duras, que transita entre a literatura e o cinema, entre
relatos autobiográficos e ficção, expõe sua maneira de tratar a linguagem, através do que se
pode nomear de escrita feminina, isto é, uma escrita que comporta e pressupõe a
incompletude, as falhas, a falta de linearidade, os buracos e os vazios. A partir de três
livros escolhidos O deslumbramento de Lol V. Stein, Amor e Escrever acompanha-se o
procedimento dessa escritora em direção à depuração das palavras, à palavra-buraco
aquela que contem, mas também contamina todas as outras –, à letra, ao infinito literário.
Tal qual o oleiro trabalha seu vaso, Duras tece, com sua escritura trançada com linhas de
letras, suas bordaduras, na tentativa de bordejar e criar o vazio. Portanto, é sobre o vazio, a
borda construída pela escritura ou, mais propriamente, pela escrita feminina de Duras, que
se pretende aqui refletir.
RE S U ME
Le vaste ouvrage de Marguerite Duras, qui se situe entre la littérature et le cinéma,
entre les rapports autobiographiques et la fiction, montre sa façon de traiter la langue, la
façon dont cela peut désigner l'écriture féminine, c'est-à-dire un écrit qui admet et
présuppose l'incomptude, les échecs, le manque de linéarité, les trous et les vides. À
partir des trois livres choisis Le ravissemen de Lol V. Steint, Amour et Écrire on
accompagne la procédure de l'auteur vers l'apurement des mots, le mot-trou – ce qui
contient, mais aussi contamine tous les autres la lettre, l'infini littéraire. Tout comme un
potier qui fabrique son pot, Duras tisse, avec son écriture tressé avec des lignes de lettres,
de leur broderies, comme une tentative de border et de créer le vide. Alors, c’est sur le
vide, le bord construit par l’écriture ou, plus précisément, par l’écriture féminine de Duras,
qu’on veut réfléchir ici.
SU M Á R I O
INTRODUÇÃO 6
I - DURAS: AMOR(DOR)DA ESCRITA 13
Escrever… 13
A literatura e a vida 15
A palavra amor existe 21
Duras: a escritura da dor 25
A literatura durasiana e a psicanálise: litorais 30
II - PASSO A LER: O FEMININO REVELADO 36
O que não se lê: a letra 36
Um longo percurso de extração 44
Lol: A palavra-buraco 46
Os efeitos de buraco 53
O buraco em Amor 56
Os efeitos de nomeação: o buraco 58
O feminino revelado pelo que não se lê 63
III - BORDADURAS: O VAZIO QUE SE ESCREVE 68
Desdobramentos 72
A escrita não me abandonou, nunca 75
O paradoxo da sublimação 78
Tão longe, tão perto 85
O vazio que se escreve 88
O infinito literário 91
CONCLUSÃO 94
É tudo?
Não. É não-tudo.
94
A escrita em desaparecimento 97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 100
6
IN T R O D U Ç ÃO
“A escrita é o desconhecido.
Antes de se escrever,
nada se sabe do que vai escrever.
E em total lucidez.”
M. Duras, Escrever.
“A abordagem da leitura é, talvez, uma felicidade difícil, mas ler é o que de mais
fácil, liberdade sem trabalho, um puro Sim que se expande no imediato.”
1
assim nos
ensina Blanchot. Desconhecido, felicidade difícil, liberdade sem trabalho: sim, tudo isso se
implica no encontro primeiro com uma escrita, com a leitura, e meu contato inicial com a
obra de Marguerite Duras não foi diferente, ele se deu a partir de um grande encontro na
s-graduação da Universidade – esse espaço mediador e investigador
2
entre a literatura,
representada pela professora Lucia Castello Branco, e a psicanálise, representada pelo
professor Jeferson Machado Pinto. Sempre quis e busquei a articulação entre esses dois
campos, heterogêneos e instigantes, aos quais podeamos chamar suplementares.
À época, investigávamos sobre o feminino e a letra, o pas-à-lire (“não a lerou
“passo a ler”), e uma das autoras escolhidas para essa difícil tarefa foi Marguerite Duras, a
partir do livro O deslumbramento.
3
Para falar sobre a autora e sua obra, foi convidado
Paulo de Andrade, que, na ocasião, havia defendido sua tese de doutoramento sobre amor,
escrita e tradução em Duras. Ele nos forneceu as primeiras pistas para ir ao encontro dessa
escritora.
Rapidamente busquei O deslumbramento e o li avidamente. A forma como Duras
exprimia a falta de palavras, a palavra-buraco essa palavra que faltava e que, sem ela,
todas as outras seriam contaminadas , aparecia-me como uma luz que esclarecia,
imediatamente, aquilo que Lacan repetiu várias vezes durante seu ensino: “o Outro falta”,
“não existe Outro do Outro”, é “impossível dizer tudo porque algo escapa”. Essas frases,
apesar de sempre presentes em toda minha formação, que se deu pelos caminhos da
psicanálise, revelaram-se transparentes e de uma verdade tão intensa que me deixaram
estarrecida. Foi o meu primeiro arrebatamento!
1
BLANCHOT. O espaço literário, p.196.
2
Cf. MANDIL. Literatura e psicanálise: modos de aproximação, Aletria, p.45.
3
Cf. DURAS. O deslumbramento (Le ravissement de Lol V. Stein).
7
Até então eu sabia muito pouco sobre o tanto que se escrevera sobre Duras e
sequer imaginava que o próprio Lacan lhe havia prestado uma homenagem. Tudo isso só
fui descobrir quando resolvi escrever sobre Marguerite Duras, passar da leitura à escrita
escrever a leitura, como diria Barthes. A partir das discussões feitas durante o curso e com
as leituras propostas, outras questões foram se apresentando, em especial sobre a letra, e a
maneira como Duras conseguia manuseá-la, bordá-la; sobre o feminino em sua
proximidade e intimidade com o vazio; e sobre a criação a partir do trabalho de Lacan em
seu Semirio, livro 7, Da criação ex nihilo. Após as leituras e algumas reflexões, voltei a
ler o romance e novamente fiquei aturdida. Foi meu segundo arrebatamento.
Lancei-me, então, à leitura de diversos livros da escritora e outros sobre sua obra.
Nesse momento, tive acesso à tese de Paulo de Andrade, que trazia a tradução de Amor,
livro de Marguerite Duras ainda inédito no Brasil. Este livro convocava ainda outra leitura
– mais uma vez, de um texto lacaniano: “Lituraterra”.
No livro Amor, as noções de subtração ao ponto da letra, de desestabilização das
relações sintáticas/gramaticais, da letra como marca, rasura, litoral, interposta entre
significante e significado, amplamente desenvolvidas por Lacan no referido texto, ficaram
mais claras. Dessa forma, pude experienciar o que Freud já havia dito sobre os artistas: que
eles precediam algumas descobertas teóricas. Lacan, apesar de concordar com Freud sob
este aspecto, fazia a essa observação ainda duas ressalvas: a primeira seria que, enquanto o
teórico tece suas elaborações sabendo a que serve, o artista nem sempre sabe a descoberta
que fez. Já a segunda, específica à psicanálise, adverte que o saber não autoriza ao
psicanalista “bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho”.
4
No percurso pelos livros de Duras, suas passagens pela letra, pela palavra-buraco,
pelo amor e pela dor, pelo vazio, ficou claro que sua escrita não era uma escrita comum:
havia certa particularidade que a atravessava e atraía tantos estudiosos da literatura, da
psicanálise, da filosofia (como, por exemplo Lacan, Kristeva, Foucault, entre outros). Não
seria pelo fato de se tratar de uma escrita de fruição, de gozo, para além do princípio do
prazer, que coloca em crise a relação com a linguagem?
5
Uma escrita feminina? Enveredei,
pois, pela leitura do Seminário, livro 20, bem como pelo livro de Lucia Castello Branco, A
traição de Penélope, que formaliza esse conceito. Descobri-me, então, diante de um
emaranhado de traços e fios que convocavam à bordadura, esse ofício tão feminino de
4
LACAN. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.200.
5
Cf. BARTHES. O prazer do texto.
8
construir bordas que criam e contêm o vazio do qual se ocupara Duras durante vários anos
de sua vida. Somava-se a essa descoberta o fato de eu estar abordando uma escritora, uma
artista, para quem o vazio é, antes de tudo, centro e inspiração para criação da obra,
conforme nos ensinam Lacan e Blanchot. Uma vez mais fui arrebatada!
Portanto, para alcançar a obra de Duras em toda sua complexidade, eu precisaria,
necessariamente, abordar e fazer borda ao vazio. Seja o vazio da memória, que traz em seu
próprio modo de funcionamento as lacunas, a descontinuidade, os brancos – seja o vazio da
Coisa (Das Ding) originária, que se mantém, apesar de todos os esforços que fazemos para
obturá-lo, mas a que os artistas dão outro tratamento: a sublimação –, seja, ainda, o vazio
do feminino, situado para além do registro fálico, que comporta um gozo Outro,
suplementar, pois A Mulher sabe-se faltosa e infinita e, daí, goza. Ou, mais ainda, o vazio
do amor, incompleto, não-equivalente, essa “palavra com um buraco no meio” e o vazio da
escrita, feita de letras, de traços, “compostos de retas e curvas”, que o contornam.
No entanto, restava um problema, o mais difícil de todos: como falar do vazio, da
falta de palavras, do indizível, do inominável, da falta de representação a partir da escrita,
das palavras, mecanismos estes próprios da representação? A partir desse impasse, adveio,
inicialmente, a angústia, e depois a frustração, para logo em seguida dar espaço à
conformação e à aceitação dos limites impostos pela linguagem, e à constatação de que o
Real seria tocado em suas bordas, pois é possível acessá-lo pelo registro simbólico,
“tornando-o matéria de linguagem”.
6
Outros haviam tentado esse feito, abordar e
bordejar o Real, e foram bem sucedidos. Por que, então, recuar?
Portanto, tentei criar um procedimento aos moldes durasianos, de forma que, tal
como os textos dessa escritora, que se dobram sobre si mesmos, retornam, repetem, se
esgarçam e acabam por decomporem-se em letras, silêncios, vazios, o meu pudesse
acompanhar esse movimento e aproximar-se do Real, do vazio da Coisa. Para esse
trabalho, três livros de Marguerite Duras foram escolhidos: O deslumbramento (Le
ravissement de Lol V. Stein), representando o primeiro encontro com a palavra-buraco, o
momento em que a escritora começa a se deparar com alguns brancos e rupturas; Amor,
espécie de reescritura do Deslumbramento, para retratar o método de escritura que segue,
segundo Blanchot, rumo ao seu desaparecimento, ao ponto mínimo, ao limite para
continuar sendo chamado escrita, e Escrever, uma espécie de livro-diário onde Duras
deposita sua experiência e sentimentos, como amor e dor, desespero, destruição e salvação,
6
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p.86.
9
que estão intimamente relacionados ao ato e ao significado de escrever em sua vida. Esse
livro nos acompanhará e servirá como um oráculo, desvendando, ao mesmo tempo em que
vela, os enigmas da escrita.
Embora saibamos que em todos os romances de Duras sempre encontraremos
fragmentos, referências a outros livros escritos pela autora, os dois primeiros livros citados
acima o de especial importância, uma vez que, colocando-os lado a lado, fazendo-se uma
leitura conjunta, ou talvez na sequência (apesar de não terem sido escritos em
continuidade), permitem-nos acompanhar todos os procedimentos referidos anteriormente,
a saber: a decantação e o esgarçamento da linguagem em direção à letra, a ruína das
palavras, da história, e a presença, cada vez mais importante e insistente, dos silêncios e
vazios.
O livro Amor, também revela, em sua escrita, uma perigosa aproximação ao vazio e
impõe à escritora, após seu término, dez anos de intervalo e “fuga no cinema”.
7
A despeito
desse fato, a escritura desse livro é um momento de grande liberdade da escritora e da
linguagem, que se permitem ir além, ultrapassar os limites, como S. Thala: seguindo ainda
para depois das margens do rio.
Assim, o texto que aqui se apresenta, fruto de um intenso trabalho de depuração, de
extração, é, também ele, circular, incompleto e infinito. É difícil delimitar um começo e
um fim, pois esses dois pontos acabam se encontrando num texto que retorna, repete e
avança, na tentativa de contornar, de bordejar os vazios das terras distantes: a lituraterra de
Duras. Talvez, para essa jornada, pudéssemos pegar de empréstimo o título de um dos
contos de Jorge Luis Borges, “Ruínas circulares”, não apenas por percebermos na obra de
Duras um livro dentro de outro livro (e assim sucessivamente, como nas figuras em abismo
mise-en-abyme), mas também por tratar-se aqui de trabalhar com os restos, com a littura,
com as ruínas sempre além, “a uma volta da linguagem”.
Dessa forma, no primeiro capítulo, abordo, sobretudo, alguns traços biografemáticos
8
da vida da autora, incluindo os aspectos que a própria escritora revela em seus livros e que
reproduz, em um ambiente artificial, conforme explica Badiou,
9
situações de perdas, dores,
sofrimento. Esse procedimento da autora de trazer recortes, passagens e fatos de sua vida
privada aos livros parece fazer parte de um movimento de torção que converte impotência
7
LABELLEY. Marguerite Duras: uma vida por escrito, p.215.
8
Mais adiante trataremos melhor desse conceito criado por Roland Barthes em seu livro Sade, Fourier e
Loiola.
9
BADIOU. Por uma estética da cura anatica. In: A psicanálise e os discursos, p.239.
10
em impossibilidade. E a impossibilidade, neste caso é, justamente, não ser possível
recuperar o que foi perdido, apenas recriá-lo. É isso que Duras faz: recria o vazio.
Além de seus próprios livros, dos quais Duras diz dispensarem mais biografias, opto
por utilizar, ainda, relatos da vida da autora feitos por outras pessoas, sejam elas pximas,
como seu amante, sejam biógrafos de fato. Isso se justifica não para se compreender
melhor a autora pois penso que, tal como Lol, Duras não se quer compreendida , ou
para psicologizar sua obra, mas, sobretudo, para investigar que outros destinos, para além
da escrita, Duras deu ao seu gozo e qual a utilidade e os efeitos da escrita no tratamento
desse gozo.
No primeiro capítulo, tento, ainda, estabelecer as litoralidades (ou seriam
literalidades?) entre a obra de Marguerite Duras e a psicanálise, a partir das perspectivas
freudianas e lacanianas.
No segundo capítulo, desenvolvo e aprofundo alguns conceitos psicanalíticos
importantes para a leitura de Duras, investigando sobre o feminino, o que dele se dá a ler e
o que permanece velado. Assim, torna-se necessário abordar a letra e sua distinção do
significante. Com essa finalidade, fez-se imprescindível a passagem pelo conto de Edgar
Alan Poe, bem como pelo texto lacaniano sobre a “carta roubada”. Busco, ainda,
estabelecer certa distinção entre furo, buraco e vazio, palavras que, de tanto serem
repetidas, desgastaram-se ao longo deste trabalho e, às vezes, me soam estranhas, como se
o sentido quisesse se perder.
Os romances de Duras são aqui retomados e lidos sob a perspectiva da letra, do
feminino, do buraco, da escritura e, então, entendemos o porquê do grande interesse dos
psicanalistas pela obra dessa escritora.
Lacan foi contemporâneo de Duras e teve em suas mãos o livro do arrebatamento.
Ele próprio ficou arrebatado. Chegou a interpelar pessoalmente a escritora, indagando
sobre a origem da personagem Lol, que muito o instigara, porque expunha, em seu
funcionamento, o que ele próprio, no Seminário, livro 11, havia trabalhado, a saber, “a
esquize do olho e do olhar”. Ficou surpreendido ao escutar da boca da escritora que ela não
sabia lhe dizer de onde lhe surgira Lol. Portanto, em 1965, Lacan lhe presta uma
homenagem. Em primeiro lugar, porque ela descobrira, por seu próprio caminho, o que a
11
psicanálise ensinava e, segundo, porque ela evidenciava que “a prática da letra converge
com o uso do inconsciente”.
10
A partir daí, vários foram os psicanalistas que enveredaram pelos descaminhos de
Lol ou de outros personagens dos vários livros (mais de oitenta títulos entre livros, roteiros
de cinema e peças de teatro) escritos por essa autora, o que demonstra as infinitas leituras e
efeitos que elas provocam. Por isso também achei interessante passar por eles, pelos
leitores, e pelos efeitos sofridos com a leitura, mas, sem deixar de lado, é claro, os efeitos
da escritura sobre a própria escritora, pois sem ela Duras “teria se tornado uma alcoólatra
incurável”,
11
ou ficaria presa, eternamente, no buraco, porque de “só a escrita poderia
nos salvar”.
12
Nesse percurso, o feminino foi sendo revelado (e re-velado). Porém, o curioso é que
não era possível lê-lo facilmente, uma vez que ele se situa no para além da linguagem, no
intervalo da língua e quiçá fora dela, nos silêncios, nos vazios. O feminino, assim como Ⱥ
Mulher, se a ver contingencialmente, na ppria escritura. É o que tentarei
demonstrar.
É no terceiro capítulo que se dá o encontro com o vazio, que, por ser sem substância,
moldável e reversível, adquire diversos nomes. A princípio, o reconheceremos pelo nome
de A Coisa (Das Ding), conforme trabalhado por Lacan em seu Seminário, livro 7, ou seja,
um nihil, um nada do qual todos padecemos. Esse vazio original, estrutural e estruturante,
estaria no centro da criação, seria sua fonte eterna, sua inspiração. É nesse ponto que tento
responder à pergunta lançada, ainda no projeto, sobre o fato de Duras, com sua escritura,
bordar, contornar e, assim, expor o vazio de Das Ding.
Outro nome atribuído ao vazio é Ⱥ mulher, significante faltoso, que não encontra
representação no inconsciente e que revela, por sua vez, a inexistência da relação sexual.
Um dos desdobramentos desse significante, ao longo do capítulo, seo feminino, mais
propriamente, a escrita feminina (dȺ Mulher), essa escrita da (in)significância, que
apresenta um Gozo Outro, suplementar, para além da linguagem.
A solidão é mais um nome que surge para o vazio, dessa vez inserido,
principalmente, no campo literário. Tanto Duras quanto Blanchot se aventuraram por ela e
escreveram sobre sua importância para realizão da obra. É só a partir da solidão, de uma
10
LACAN. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.200.
11
DURAS. Escrever, p.21.
12
DURAS. Escrever, p.19.
12
solidão essencial,
13
ou seja, da “solidão da obra”, que escrever torna-se possível. Segundo
Duras: “a solidão da escrita é uma solidão sem a qual o texto não se produz (...)”.
14
Sobre
essa palavra substituta e sua importância, Duras deu seu testemunho em Escrever, livro
essencial à minha elaboração acerca da aproximação proposta entre o vazio e a solidão.
A multiplicidade de nomes atribuídos ao vazio, sua dificuldade de apreensão ajudam
a preservar sua intimidade, sua obscuridade, seu enigma. A maneira como me aventurei a
abordá-lo, portanto, foi via escritura, mais propriamente via a escrita particular de uma
artista: Marguerite Duras. Sobre esse aspecto, cabe ainda observar um ponto: são os
escritores que escrevem o vazio, ou ele que insiste em escrever a si mesmo? Essa é uma
das questões trabalhadas neste capítulo.
Ainda na direção de apreender o vazio, de abordá-lo em suas possibilidades, e
examinar suas inserções na obra durasiana, desenvolvo, suportada pelos textos freudianos e
lacanianos, a noção de sublimação. Para mim, neste momento, muito mais importante que
a articulação da sublimação aos “destinos felizes” da pulsão que longe estão de significar
uma saída para a felicidade , está sua proximidade e intimidade com o vazio, com Das
Ding. É isso que tento avaliar, tanto do lado da escritora, quanto da parte do leitor de suas
obras.
E, quanto ao infinito (este outro nome do vazio), aquele que chamamos com
Blanchot de infinito literário, ou Aleph, poderá ser lido ao longo de todo o percurso deste
trabalho, porque é lá que está a literatura, é lá que estão o mundo e o livro, refletidos um no
outro. É lá também que encontramos o impossível de onde a escritora retira sua obra.
Tentar conter o vazio nas palavras, no traço da letra, este foi o trabalho de Marguerite
Duras que procurei, com estas bordaduras, acompanhar.
13
Abordaremos mais adiante o conceito desenvolvido por Blanchot em seu livro O espaço literário: “solidão
essencial”.
14
DURAS. Escrever, p.14.
13
I
DU R AS : AM O R (D O R )D A E S C R I T A
Escrever…
Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não se pode.
E se escreve.
M. Duras, Escrever
Marguerite Duras, escritora, reescritora.
Duras segue o ditado de que se escreve apenas um livro no intervalo de uma vida. Os
outros, que porventura existam, são reescrituras daquele primeiro. Afirma sobre sua
escrita: “Essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita
não me abandonou nunca.”.
15
Com esta frase, Duras aponta para a grande importância
desse ofício em sua vida, pois a escrita era sua “razão de ser”,
16
seu fio de Ariadne que a
guiava salvando-a do “fundo de um buraco, de uma solidão quase total”.
17
Portanto, percorramos esse fio, ou, se preferirmos, essa banda de Möebius, sem
como nem fim, sem dentro ou fora, eterno retorno ao mesmo, movimento próprio
delineado na escritura de Duras, que nos aponta o caminho a traçar. Aprendamos com esta
autora o caminho da reescritura, não para buscar a verdade por trás da ficção, como
propõem as biografias, pois “não nada de verdadeiro no real, diz Duras, nada”,
18
mas
para compor “biografemas”, que são, segundo Barthes,
pequenas unidades biográficas, índices de um corpo perdido e agora recuperável
como um simples “plural de encantos”. A vida o como destino ou epopéia,
mas como texto romanesco, “um canto descontínuo de amabilidades”.
19
15
DURAS. Escrever, p.15.
16
DURAS. Escrever, p.18.
17
DURAS. Escrever, p.19.
18
LEBELLEY. Marguerite Duras: uma vida por escrito, p.183.
19
PERRONE-MOISÉS. Roland Barthes: o saber com sabor, p.9-10.
14
Sobre a proposta da escrita de uma possível biografia, Duras haveria dito com um
sorriso irônico: “O que vou fazer com uma biografia escrita a meu respeito? Meus livros
deveriam bastar”.
20
Portanto, não se pretende aqui ser biográfico, mas “ser bio”, como diria
Clarice Lispector,
21
sublinhando aquilo que, da vida, marcou o trajeto da escrita percorrido
por Marguerite Duras.
Muito foi dito e escrito sobre essa importante autora francesa do século XX,
inclusive pela própria Duras. E nós, tecendo as bordaduras nesse vazio que se escreve, em
torno do qual um ponto sempre permanece opaco, guardando no enigma a grandiosidade
da obra e dessa autora, também reescreveremos, pisando sobre os pés daquela que nos
precedeu e deixou suas marcas. É na reescritura da hisria, na escrita da memória dessa
autora, que tentaremos encontrar o sujeito que se manifesta, segundo Lacan, no lapso entre
um significante e outro, nesse espaço vazio e evanescente de um momento.
Reescrever, bordar, tecer margens em torno do vazio daquilo que não está lá, mas
que foi um dia, e deixou suas marcas, os sulcos profundos na vida de Marguerite Duras.
Esse é o procedimento durasiano em sua escritura da memória, tal como um mise-en-
abyme, figura que se desdobra nela mesma em direção ao infinito, a um ponto, um traço
mais além. Trata-se de uma escrita sem começo nem fim, presa nela mesma, insistente, por
onde a autora se extravia, já que, como diria Blanchot,
o lugar do extravio ignora a linha reta; nele não se vai de um ponto a outro; não se
sai daqui para chegar ali; nenhum ponto de partida e nenhum como para a
marcha. Antes de ter começado, tudo recomeça; antes de ter realizado,
repetimos, e essa espécie de absurdo que consiste em voltar sempre sem nunca ter
partido (...).
22
Esse é o destino dessa mulher labiríntica que se chamou Duras, “destinada à errância
de uma marcha necessariamente um pouco mais longa que sua vida”.
23
Marguerite Duras
traz em sua escrita este movimento, escreve, reescreve, sobram restos, talvez traços,
palavras (letras?)... que nos remetem a um núcleo, a um centro, ou seria a um buraco?
Aquela “palavra buraco, escavada em seu centro para um buraco, para esse buraco onde
todas as outras palavras teriam sido enterradas. Não seria possível pronunciá-la, mas seria
20
LEBELLEY. Marguerite Duras: uma vida por escrito, p.12.
21
LISPECTOR. Água viva, p.7.
22
BLANCHOT. O livro por vir, p.137.
23
BLANCHOT. O livro por vir, p.137.
15
possível fazê-la ressoar”.
24
Que ressoe, pois, sua história, porém sem nos esquecermos que
o vazio é próprio do processo da memória, e que o instrumento, por excelência, que
possuímos para acessar esse vazio, a ausência, é a linguagem. Só ela possibilita nos
aproximarmos dele, tocá-lo, bordejá-lo sem, contudo, encobri-lo.
O que seria a memória senão uma reconstrução pela linguagem daquele espaço
vazio, da ausência do que foi um dia? A memória trata de uma construção do sujeito que
tenta, por esse ato, reviver o desaparecido, recuperá-lo. E, por que não dizer, elaborá-lo?
Não foi sem qualquer razão que, em sua visita ao psicanalista, num momento de grande
angústia, Marguerite Duras foi rapidamente dispensada com a seguinte recomendação: “A
solução para senhora é escrever”.
25
A escrita foi o tratamento encontrado por Duras para o
ato de enfrentar, não simplesmente as lacunas da memória, mas, principalmente, tentar
apreender a “coisa” significada “que escapa no ato mesmo de significar”.
26
E assim fez:
com a escrita suportou as dores e enfrentou os amores. Escreveu muito, mais de 80 títulos,
entre livros, roteiros de cinema, peças para teatros. E em todos nós nos deparamos com o
movimento próprio dessa escrita da memória, qual seja, o bordejamento, o contorno de um
furo, de um vazio, onde habita o ímpeto criador.
A literatura e a vida
A escrita vem como o vento, nua, é de tinta,
a escrita, e passa como mais nada passa na
vida,nada, exceto ela, a vida.
M. Duras, Escrever.
Marguerite nem sempre foi Duras. Antes era Donnadieu. Nasceu num oriente
distante, num “sul longínquo
27
chamado Vietnam, no subúrbio de Saigon, cercado pelo
rio Mekong que marcou sulcos eternos na vida da escritora. O lugar era colônia francesa no
início do século XX. Marguerite era filha de professores, o pai era matemático, Émile
Donnadieu, e a mãe professora primária, Marie Donnadieu. Teve mais dois irmãos, Paul e
24
DURAS. O deslumbramento, p.35.
25
LEBELLEY. Marguerite Duras: uma vida por escrito, p.162.
26
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p.32.
27
Significado do nome Vietnam.
16
Pierre, que sempre lhe despertaram emoções muito diversas, amor, ódio, inveja. Tudo isso
leremos, mais ou menos claramente, em seus textos.
É na Conchinchina de sua infância que serão encenados vários de seus romances,
senão todos, pelo menos os mais importantes e marcantes de sua carreira. É sob o sol, às
margens do rio, ou próximo do mar do oriente, que será possível imaginar S. Thala, cidade
que cerca alguns de seus escritos sem nunca “estar lá”,
28
não em um lugar preciso, porém
em todos os lugares. Como a própria escritora afirma em Amor, “aqui é S. Talah, até o
rio”.
29
E acrescenta: “depois do rio é ainda S. Talah”. Se, no nome da cidade, escutamos o
estalar de “thalassa”, que significa mar, em grego, também poderíamos, numa licença
poética, aproximar esse nome do português, no qual escutaríamos que algo “está lá”. Quem
“está lá”? Duras? Lol V.? Amor? A escrita? Somos, portanto, convidados pela leitura a
entrar no mundo de Duras, onde a escritora é evanescente, está em todo lugar e em lugar
algum, não se deixa captar completamente. Percorrer suas idas e vindas, seguindo o que
poderíamos chamar com Blanchot de “exigência da obra”, sobre a qual o autor diz:
A essa exigência chamemo-la então pintura, chamemo-la obra ou arte, mas assim
chamá-la não nos revela de onde ela tira sua autoridade, nem por que essa
“autoridade” nada pede àquele que a suporta, atraindo-o todo e abandonando-o
todo, exigindo dele mais do que pode ser exigido por qualquer moral, de qualquer
homem, e ao mesmo tempo o o obriga a nada, não se relaciona com ele embora
o solicite para sustentar essa relação – e assim o atormenta e agita com uma alegria
desmedida.
30
Marguerite sempre fora atormentada por essa exigência, sabia que apenas ela poderia
salvá-la e, por isso, escreve: “Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa
solidão quase total, e descobrir que a escrita pode nos salvar”.
31
Estava perdida, para
sempre, tal qual Goethe em sua conversa com o demônio, quando inicia sua escrita, “Pois
bem, agora você está perdido.” – “Devo então parar? “Não, se você parar estará
perdido.
32
Duras também se perdeu.
28
Fazendo certo jogo por homofonia com o significante, podemos ouvir em S. Thala, em português, o “está
lá”.
29
DURAS. Amor. In: ANDRADE. Nada no dia se da noite esta passagem: amor, escrita e tradução em
Marguerite Duras, p.40-41.
30
BLANCHOT. O livro por vir, p.43.
31
DURAS. Escrever, p.19.
32
BLANCHOT. O livro por vir, p.43.
17
A mãe, Marie, nunca a quisera escritora, essa era sua vergonha, e isso a dirá sempre.
Desta nunca receberá o reconhecimento. Já o pai não esteve presente: morreu ainda em sua
infância. No lugar de sua ausência, deixa apenas uma marca, a terra (lituraterra?), que virá
compor o nome de escritora: Duras. É nesta região da França, Duras, “fortaleza nesse
lugar”,
33
à margem do mar, que jaz o pai ao lado da primeira esposa. Essa terra Marguerite
conhecerá apenas na sua juventude.
Durante vários anos, resignada ao desejo materno, mortifica seu próprio desejo de
escrita, o qual retoma em ocasião de intenso horror mundial, ao final da Segunda
Grande Guerra. Nesse período também sofre uma importante perda: seu primeiro filho,
morto durante o parto. A palavra falta-lhe nesse momento, a dor a invade ainda mais
profundamente. É nessas circunstâncias, cujas palavras serão sempre insuficientes para
representar o doloroso real vivido, que Duras iniciasua escrita. E, certamente, as marcas
dessa época se farão notar para sempre nesse seu ofício, seja em sua escrita do vazio, da
falta de representação, na sua fidelidade à dor, seja na palavra-buraco que contamina todas
as outras, deixando o silêncio, o grito preso na garganta.
contava com 29 anos quando escreveu seu primeiro romance, Les impudentes, em
1943. A partir daí sua produção foi volumosa e intensa. nesse primeiro livro percebe-se,
na tessitura da história, que Duras transita entre relatos autobiográficos e ficção, sendo, por
vezes, difícil delimitar a fronteira entre eles, pois que a escritora leva ao extremo o
formulado por Barthes sobre o processo da escrita:
Escrever é hoje se fazer centro do processo da fala, é efetuar a escrita afetando-se a
si próprio, é fazer coincidir a ão e a afecção, é deixar o escritor no interior da
escrita, não a título de sujeito psicológico, mas a título de agente da ação.
34
Esse movimento é bastante perceptível em suas obras posteriores, seja em Uma
barragem contra o Pacífico, livro que recupera, em parte, a saga de sua mãe para deter a
invasão do mar em suas terras distantes, seja em A vida tranquila, escrito após a morte de
seu irmão Paul, e que traz marcas dessa perda, seja ainda em O vice-cônsul, que recupera
algumas pessoas e fantasias presentes na sua infância, vivida na Indochina. Ou mesmo nos
livros posteriores e bastante aclamados como O amante, A dor, O deslumbramento, algo de
sua história é tecida junto com os aspectos ficcionais. Em cada um de seus livros é possível
33
Significado do nome em língua occitana. LEBELLEY. Marguerite Duras: uma vida por escrito, p.68.
34
BARTHES. Escrever, verbo intransitivo? In: O rumor da língua, p.24.
18
percebermos traços de memória, certa coincidência entre o eu e o ele, entre a personagem e
a autora. Esse é, sem dúvida, um dos encantos de sua vasta obra, que nos seduz e nos
confunde entre os restos das ruínas da lembrança e a ficção.
Certamente esses não são efeitos casuais, mas provocados por essa autora de modo
insistente em seu procedimento de escrita, que a expõe e a traveste ao mesmo tempo,
restando o enigma, que lança o leitor desavisado à busca da verdade, num caminho em que
fatalmente se perderá. Talvez seja por isso, por esse efeito de leitura, que várias tentativas
de biografias foram feitas, em busca de revelar a autora, mas o que fizeram foi, ao da
letra, (re)velar, velar mais um pouco aquilo que era suficientemente nebuloso. E alguns
mistérios permanecem.
Estamos de volta ao terreno da memória, mas, sobretudo, àquele da autonomia, da
liberdade da obra, que não pertence ao artista, mas lhe é independente, mesmo tendo no
artista aquilo que a vincula ao mundo. Como diria Blanchot sobre a escrita de Proust, cujos
ecos são percebidos na escrita de Duras,
Ele poderia exprimi-la, torná-la real, concreta e verdadeira, projetando-a no
próprio tempo em que ela é realizada e do qual a obra depende: o tempo da
narrativa na qual, embora ele diga “EU”, não é mais Proust real nem o Proust
escritor que tem o poder de falar, mas sua metamorfose na sombra que é o narrador
tornado personagem do livro, o qual, na narrativa, escreve uma narrativa que é a
própria obra e produz, por sua vez, as outras metamorfoses dele mesmo que o os
diversos “Eus” cujas experiências ele conta.
35
Ora, se a escrita memorialista tradicional pretende ser um retrato fiel do passado,
trazendo as recordações de maneira intacta, completando as lacunas deixadas pelo tempo,
não é essa escrita que nos interessa. Aqui se adota a concepção da memória como um
duplo gesto, ou seja, a meria que contempla o esquecimento e tece em seu entorno as
malhas da fantasia. A memória não é estática e precisa. Ao contrário, está sempre em
construção, pois,
se o que resta do vivido são apenas traços, inscrições, e se o esquecimento se
incumbiu de apagar as sucessivas escritas (...), recuperar a história do sujeito
significa construir no lugar da falta, do vazio, edificar os traços que restaram.
36
35
BLANCHOT. O livro por vir, p.21.
36
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p.38.
19
É este o paradigma da escrita durasiana. E esse movimento vai se intensificando ao
longo de sua trajetória em direção ao que poderíamos chamar de “decantação da escrita”,
seu caminho rumo ao mínimo necessário, ao resto e, por vezes, ao silêncio, ao vazio de
palavras. Se, no início, seus livros seguem a ordem prosaica, demonstram certa unidade,
linearidade, e a memória ainda está preservada, no decorrer de sua escritura esse
movimento vai se desgastando, a visão torna-se mais turva e, da memória, ficam as ruínas.
A escrita mostra-se mais corroída, árida, perde sua unidade e as interrupções, os silêncios
são mais constantes. Assim, a imagem é convocada ao texto, uma vez que as palavras são
insuficientes.
É no ano de 1958, quando receberá a visita de Alain Resnais, que se dará sua
inserção formal no mundo das imagens, do cinema. Em menos de 15 dias escreve o roteiro
de Hiroshima mon amour, escrita que julgava impossível, pois lhe restava o silêncio
diante do horror por que se passou. É disso que trata essa obra, da impossibilidade: “Tudo
que podemos falar é da impossibilidade de falar de Hiroshima”.
37
Assim, o caminho
escolhido para revelar essa impossibilidade é, precisamente, o amor relação amorosa
sempre impossível. Talvez a isso se devam os nomes cuidadosamente escolhidos da
localização Hiroshima-Nevers (na qual podemos ler Hiroshima-Nunca mais), ou mesmo
perceber a marca do “Nevers”(nunca) na relação amorosa para sempre perdida. Para isso a
escrita é insuficiente e as imagens são chamadas a falar.
Diz-se aqui “falar” no sentido literal, pois, em seu cinema, Duras propõe certa
legibilidade e presença constante da voz, da narrativa, fazendo de seu filme uma “escritura
do cinema”, conforme explica César Guimarães,
38
a voz autônoma em relação à imagem
“mostrando o que o olho o vê”. Se esse roteiro para o cinema aborda o horror e as dores
da guerra, sua impossibilidade de falar algo, isso é sentido no cinema, no qual Duras
preserva a “concisão, o silêncio, ou a representação propositadamente posada”.
39
Nossa
rápida passagem pelo cinema se faz, pois, necessária, principalmente porque este foi um
dos tratamentos dado pela autora à sua escrita, e que influenciou toda sua obra posterior.
Em um dos livros escolhidos como objeto desta dissertação, Amor, é impressionante
a força da imagem na construção da escrita. Esse texto, escrito em 1971, é uma espécie de
reescritura do seu aclamado sucesso O deslumbramento, escrito em 1964, e amplamente
reconhecido pelo público, pelos críticos, teóricos e psicanalistas.
37
DURAS. Hiroshima mon amour, citada por KRISTEVA. Sol negro: depressão e melancolia, p.209.
38
GUIMARÃES. Imagens da memória, p.212.
39
GUIMARÃES. Imagens da memória, p.212.
20
Mas se no Deslumbramento a lógica, a articulação e linearidade do texto ainda são
conservadas, o mesmo não podemos dizer do que acontece em Amor. Neste último, como
bem observa Paulo de Andrade, uma perda da ordem prosaica, a “escrita se mostra
corroída pelo seu próprio movimento de composição, abrindo-se ao anonimato das
personagens (...) à mudez das imagens sem qualidade”.
40
Em Amor, percebemos a presença
da “imagem escrita”, o texto sendo amplamente suportado pelas imagens, com palavras
que servem para constituí-las e logo se perdem, restando apenas elas, as imagens. A
escrita se dá como takes, em cenas, como um cinema que se realiza nas páginas em branco.
A escritura de Duras é, pois, afetada e modificada conforme sua experiência, sua
história, seus encontros com o Real. Nessa trajetória, outros elementos vão sendo,
necessariamente, incorporados a sua escrita, o que não significa extensão, soma, mas, ao
contrário, subtração, redução em direção a um ponto. Desse modo Duras vai se
aproximando daquele ponto que, conforme Blanchot, é buscado e temido por toda escrita:
o ponto do seu desaparecimento. Talvez esse desaparecimento possa ser entendido como a
própria impossibilidade que, por vezes, essa escritora tentou enfrentar, ou melhor seria
dizer, alcançar lançando mão das imagens: a impossibilidade de falar, a impossibilidade da
escrita, a impossibilidade do amor. Mais uma vez a escrita e o amor aparecem lado a lado,
pois, para a escritora, essas duas palavras serão, para sempre, conjugadas juntas.
Porém, voltemos um pouco no tempo, ainda em 1958, recuperemos o momento em
que a mudança em sua escrita se anuncia e sua relação com o livro toma outros rumos.
Como sua hisria é sempre marcada pelos amores, esta não poderia ser diferente. Duras
escreve Moderato Cantabile após um rompimento amoroso, e aqui percebemos a
aproximação desses dois campos: tal como o amor se foi, a escrita também caminha nesse
sentido, em direção ao seu desaparecimento. Nesse livro conserva-se, da memória, da
história vivida, apenas seu esqueleto, sua estrutura, ou, quem sabe, os restos.
Segundo Labelley, “é a partir de Moderato que Duras se diante do perigo da
escrita, a o momento, apenas pressentido: anular-se completamente diante da que
escreve. Fora do estado de crise, o livro não se famais”.
41
Essa mudança se conservará
ao longo de sua escrita, e possibilitará que se construa o que chamamos hoje de “estilo
Duras”.
40
ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.11.
41
LEBELLEY. Marguerite Duras: uma vida por escrito, p.162.
21
A palavra amor existe
Vens.
É preciso falar de nosso amor.
Vamos encontrar as palavras para isso.
o há palavras talvez.
M. Duras, É tudo.
A palavra amor encontra, na obra de Marguerite Duras, um estranho e enigmático
lugar. Embora o amor não possua em sua obra o caráter de um tema privilegiado, esta
palavra ressoa no interior de seus livros ou nos títulos dos mesmos, por vezes se fazendo
ouvir nos nomes das personagens, e se laa ao desvendamento, à pergunta: “que amor é
esse? Do que se trata quando Duras fala de amor?”
De fato, a autora não parece articular a palavra amor aos amores convencionais,
àquele dos encontros complementares e totalizantes entre os amantes. Ao contrário, para
falar de amor, Duras fala de desencontro, de assimetria, de loucura, da destruição, da
morte. E, outras vezes ainda, a escritora silencia-se, marcando a impossibilidade de dizê-lo,
ou, quem sabe, marcando aquilo que Lacan chamou da não existência da relação sexual,
42
ou seja, a não complementaridade entre os sexos. Duras denuncia em sua escrita que o
existe o encontro perfeito entre um homem e uma mulher, um encontro sem furos. E esse
furo se escreve. Diríamos, então, de um amor da escrita?
Quando Duras fala de amor, chama, imediatamente, essa outra palavra, que se
aproxima e se mistura a ela: escrever.
43
Assim, o dizer lacaniano “amar é dar o que não se
tem” toca o dizer durasiano “escrever não se pode”. É na impossibilidade que amor e
escrever se aproximam. Não dizemos, contudo, ser impossível amar ou escrever. Disso
Lacan e Duras nos dissuadem, apontando que não se trata de uma impossibilidade de amar
ou escrever, mas de escrever e amar em sua própria impossibilidade. É no instante que
nada se tem a dar, em que não é possível escrever, que se escreve. Segundo Duras, “a partir
42
Para Lacan, não haveria proporcionalidade entre o gozo masculino, caracterizado por ser todo fálico, e o
gozo feminino, que, embora tenha uma parte situada do lado lico, possui outra não-todo fálico,
suplementar, sobre o qual a mulher pouco sabe dizer, “só sabe que acontece”. Portanto, a relação sexual é
marcada pela não complementaridade, seria aquilo que não cessa de não se escrever. Nesse sentido a escrita
poderia vir nesse lugar suplementar, fazendo existir algo no lugar vazio, na “folha em branco em que nada se
inscreve. Cf. LACAN. O seminário, livro 20, p.49.
43
Em sua tese de doutoramento, Paulo de Andrade defende a correspondência entre o amor e a escritura de
Marguerite Duras. Cf. ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.273.
22
do momento que se está perdido e que o se tem mais o que escrever, mais o que perder,
é que se escreve”.
44
Indo ao mais além, é em sua essência, no nada contido e oferecido
nessas palavras “sem ninguém dentro”, que amor e escrever traçam seu caminho rumo à
ruína, ao desaparecimento. Elas almejam o nada.
Talvez seja esta a grande busca também de Duras: “construir uma ruína para a
palavra amor”,
45
para que ela renasça “como um lírio pode nascer de um monturo”, tarefa
esta possível apenas via escrita, e parece que alcançada em seu limite no livro Amor, texto
que expõe os restos em sua função principal: “pode-se dizer que todos são restos...o que os
outros chamariam de restos. Visto de fora poderíamos falar de restos, o que para mim é o
principal”.
46
Da palavra amor Duras lança mão, sempre, e se aventura a dobrá-la e desdobrá-la,
manuseá-la como os oleiros com seus vasos, retirando os excessos, deixando os restos,
enfim, criando o vazio. Duras vai tecendo, com sua escritura, as bordaduras do nada que
constitui a palavra amor. Como escreverá Lucia Castello Branco sobre a autora e suas
articulações entre amar e escrever: “amar a escrita. Escrever o amor. Escrever o nada que o
amor é. Amar o nada em que consiste o escrever”.
47
A essa tarefa, Duras entregou-se, sob o
risco de perder-se, porque este é o destino das palavras (da escrita?): perder-se, no
momento em que o pronunciadas.
E Duras se perdeu. Foi muito longe, deixou-se encantar pelos amores, se entregou a
todos os possíveis (e aos impossíveis) do amor. Acompanhamos suas (des)aventuras
amorosas, bem como as de suas personagens que possuem, sempre, uma marca
biografemática, em seus romances, no roteiro de seus filmes, enfim, em toda sua produção.
O amor em todas as suas formas, da menina e de seu amante chinês (O amante), da esposa
pelo marido raptado (A dor), do encontro petrificado em um instante para sempre repetido
(O deslumbramento), do amor em pedaços, despido das vestes imaginárias (Amor), do
amor pela escrita (Escrever).
A palavra amor existe, possui materialidade, e ressoa: a escutamos frequentemente
em seus escritos, mas também a sentimos em toda sua dureza. Deter-nos-emos, aqui, em
dois de seus romances: O deslumbramento e Amor. Com relação ao primeiro, Duras
44
DURAS. Escrever, p.21.
45
Tal qual nos ensina Manoel de Barros. BARROS. Ensaios fotográficos.
46
DURAS, GAUTHIER. Boas falas: conversa sem compromisso, p.51.
47
CASTELLO BRANCO. Os absolutamente sós: Llansol, a letra, Lacan, p.110.
23
afirmaria que foi ali que a “experimentação, a experiência dos brancos”,
48
dos silêncios e
espaços vazios começou a se fazer presente. No segundo, essa experiência atinge seu
limite: os brancos, os buracos são mais freqüentes. Nesse momento, “as palavras são mais
importantes que a sintaxe” e é justamente essa recusa violenta da sintaxe”
49
que constitui
o furo. Neles, o amor o aparece como o que esconde, como o que oblitera a falta com
suas vestes imaginárias. O amor revela pela escrita o que ocorre quando retiramos o véu
que encobre a cena e ela se apresenta em toda sua nudez, deixando à vista, diante do olhar
arrebatado do leitor, o Unheim,
50
aquilo que desestabiliza a cena, incomoda, angustia: o
vazio.
Retiremos o primeiro véu, ou, neste caso, o melhor seria tirar o vestido (dérobé) que
encobre “o indizível da nudez”
51
da cena? Olhemos o que está em baixo, não sem angústia.
Fiquemos, pois, arrebatados.
O amor escrito em seu nome marcará para sempre sua história. Lol V. nos revela “o
que acontece com o amor, ou seja, com essa imagem de si de que o outro reveste você e
que a veste, e que quando dessa é desinvestida a deixa”.
52
É no momento que algo é
desinvestido, desvestido, que surge um ponto, uma mancha, o unheim, o estranho, que
marcará essa história.
Marguerite Duras nos permitirá um lugar privilegiado, no corpo do texto, para
observar o que se passa quando se perde a consistência imaginária do corpo e se descobre
que não se está onde se acreditava estar.
Sendo o amor aquilo que pode dar consistência imaginária a um corpo, quando ele se
retira, resta o buraco. É aí que está Lol: nesse furo, como a “mancha no campo de centeio”,
“o primeiro modelo do olhar”.
53
De Lol é retirado o olhar: ela é desinvestida de seu objeto
de amor, sendo, neste momento, despossuída de seu corpo, restando sem consistência, sem
palavras, sem nada. Entretanto, resta uma cena, ocorrida antes de seu arrebatamento, de
uma dança. Essa cena solda, sob o olhar de Lol, o casal composto por seu noivo e a mulher
que o raptara na noite de seu noivado. E é essa cena que Lol buscará reconstituir para
reatar o desfeito e recuperar sua consistência de corpo, porém no corpo de uma outra
48
DURAS, GAUTHIER. Boas falas: conversa sem compromisso, p.14.
49
DURAS, GAUTHIER. Boas falas: conversa sem compromisso, p.11.
50
Segundo Freud, o Unheim é o (in)familiar, aquilo que um dia esteve ali, mas não está. Cf. FREUD. O
estranho. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.17, p.275-318. Segundo Lacan, o unheim é
quando a “falta vem a faltar”, causador de angústia.
51
LACAN. Homenagem à Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.201.
52
LACAN. Homenagem à Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.201.
53
LACAN. Homenagem à Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.202.
24
mulher. Para tal, Lol ocupará o mesmo lugar de antes, ou seja, aquele do não-olhar, do
unheim, estranho que não deveria aparecer, mas que aparece e desestabiliza a cena.
Lol, é pintada por Duras, no mesmo lugar em que Lacan coloca seu objeto a,
54
ou
seja, em seu estado de objeto puro, aquele que, ao mesmo tempo que é importante para a
composição da cena em sua ausência, a desestabiliza em sua presença. Duras compõe, por
sua escrita, um romance que coloca em funcionamento, diante do nosso olhar arrebatado, a
constituição da imagem, do corpo, das estratégias do amor em fazer um a três.
55
E Lol V.
(love) é a peça fundamental dessa engrenagem.
Em Amor, espécie de reescritura do Deslumbramento, novamente nos deparamos
com o Unheim, no lugar onde Freud se pôs a interrogá-lo, qual seja, daquilo que nos foi
familiar e retorna causando certo estranhamento
56
. Nesse livro, algo de familiar da história
de Lol é trazido à tona: o baile, o olhar, o amor (em uma frase). Contudo, sem referências
explícitas a ele. A cena está degradada, perdida, em ruínas, e, com ela, a linguagem, que
sofre perturbações. Não verificamos uma desintegração completa e desordenada da
linguagem. Porém, mais uma vez, a suspensão do fluxo de palavras, impondo-lhe uma
ruptura, um silêncio”,
57
e a escrita se mostra corroída, havendo um empobrecimento, um
esgarçamento da linguagem.
Amor é um texto limite, que marca a história da escrita de Marguerite Duras. Ali ela
“escreve completamente”, pois “só se pode escrever completamente ultrapassando (...) a
54
Aborda-se, aqui, o conceito de objeto a conforme elaborado por Lacan em seu Seminário 10, que discute
sobre a angústia. Nesse momento do ensino de Lacan, o objeto a é concebido como um pedaço (de corpo)
heterogêneo, e o especularizável, que não se transmite para a cena do mundo (lugar ordenado segundo as
leis do significante) a não ser como objeto faltante. Esta falta é imprescindível para compormos nosso corpo
integrado e recuperarmos certo equilíbrio homeostático. Para explicar seu conceito, Lacan propõe o esquema
ótico, através do qual ensina, usando das leis da ótica, como constituímos nosso corpo. No seu esquema,
Lacan demonstra, num jogo de espelho, que, a partir de dois objetos de natureza heterogênea, forma-se uma
terceira imagem, com a ilusão de serem compostas da mesma substância e se encaixarem “anatomicamente”.
Contudo, para que isso ocorra, depende-se ainda de mais um detalhe, a posição do observador, pois conforme
seu “ponto de vista” uma determinada imagem de corpo surgirá, desintegrado ou unificado, e uma cena se
formará. Como exemplo, lembremos da obra de Marcel Duchamp, Etant donné, que exige uma localização
ótima do observador para que a imagem articulada se dê, mesmo que restem ainda alguns elementos
estranhos que nos remetam a algo que não está ali (objeto a), e abram caminho para diversas interpretações.
E é por um buraco, espaço emoldurado de falta, que essa imagem integrada pode ser apreendida pelo olhar.
Assim, o objeto a é aquele estado de objeto puro, irrepresentável, responsável – em sua falta – pela
unificação de uma imagem e, no simulacro de sua presença, pela angústia.
55
Refiro-me, aqui, ao procedimento de Lol para adquirir consistência de corpo, restabelecendo certa unidade
corporal pela via amorosa, através da construção de uma fantasia, após a vivência do arrebatamento. Para
isso, Lol ocupará a posição de objeto-olhar, ou seja, aquele observador que vê a cena para que ela se
constitua. E, ainda, necessitará de Jacques Hold, pois este lhe servirá como articulador simbólico (no lugar do
“eu penso”), e Tatiana (no lugar de eu sou”), como prótese de corpo de mulher (invólucro), e, assim, fará
um, no sentido de dar unidade a seu corpo.
56
Cf. FREUD. O estranho. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.17, p.275-318.
57
ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.24.
25
linguagem, ou a escrita propriamente dita”.
58
Não é sem prosito, pois, que este texto
amplamente marcado pelos silêncios, ou melhor, pelo nada ali escrito traga como seu
título a palavra Amor. Afinal, se amar é dar o que não se tem, dar o nada, é disso que se
trata nessa escritura. O amor e a escrita rumo ao impossível, não ao impossível de se
escrever e se amar, mas ao escrever e amar em sua impossibilidade.
Depois de Amor, Duras suspende a escrita por dez anos e começa a fazer cinema.
Para alguns, essa foi uma estratégia de fuga, para preservar sua escrita do desaparecimento,
uma vez que ela se tornara por demais “grave” e arriscada. Para outros, Duras, em sua
busca pelo “completamente escrito, necessitava ultrapassar a escrita, encontrar novos
recursos. Talvez se trate da soma desses fatores acrescidos da experiência um tanto quanto
destruidora da qual ela precisava se recuperar, pois se “construir é uma destruição
enorme”,
59
o que se dirá de construir uma ruína para a palavra amor?
Duras: a escritura da dor
A dor é uma das coisas mais importantes de minha vida. A palavra
“escrito” não seria adequada. Encontrei-me diante de páginas
metodicamente repletas de uma letra extraordina-riamente regular
e calma. Encontrei-me diante de uma fenomenal desordem do
pensamento e do sentimento que o ousei tocar, e comparada à
qual a literatura me envergonha.
M. Duras, A dor.
Se a palavra amor é uma constante nos textos de Duras, seja no interior de seus
livros, nos temas abordados, seja nos seus tulos de seus romances, se concordamos com
Paulo de Andrade que o amor é o outro nome para a escrita durasiana,
60
devemos, por
coerência, acrescentar àquelas palavras uma outra: a dor, que assume igual importância e
relevância em sua escrita.
A dor, tal como a escrita, não a abandonou nunca, estando presente em todos os seus
romances, roteiros, teatro, ao longo de toda sua obra. De fato, como revela o trecho citado
acima, a dor foi uma das coisas mais importantes de sua vida. Foi nesse sentimento que
58
DURAS citada por ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.218.
59
DURAS citada por ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.218.
60
Cf. ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.273.
26
encontrou a força propulsora de sua escrita e, nesta, paradoxalmente, a salvação para sua
dor.
Não é sem razão que nos deparamos com uma escrita cada vez mais recheada de
silêncios, de interrupções, de arrebatamentos e palavras que faltam. A dor, a angústia são,
por definição, sem objeto, de acordo com o defendido pela psicanálise: elas estão no
registro do real, daquilo que escapa à representação, que não se presta à simbolizão.
Então como captá-las? Como escrevê-las? Essa é uma das artes de Duras: “fazer surgir o
impossível no lugar onde havia impotência”.
61
A operação realizada por esta escritora em sua obra segue no sentido apontado por
Badiou: a lógica do trabalho poético, que é também a lógica do desaparecimento. Portanto,
se no início o que existe é a impotência diante do real vivido a dor, a angústia, o mal-
estar – e isso é amplamente observado no texto durasiano, a sua escritura vem proporcionar
um outro movimento: de reconstrução, de uma reorganização que aponta para a
impossibilidade. A impossibilidade é propriamente a de recuperar o que foi perdido (causa
da dor), não por que se é incapaz, mas por isso ser impossível, pois o objeto está para
sempre perdido. Assim, há que lidar com a falta, com o buraco que permanece. E, todavia,
ele é possível de ser contornado pelas bordaduras da escrita.
É no movimento de sua escrita que a autora recupera o objeto, não por meio do
objeto real, mas via repetição da perda, do desaparecimento. Esse é o tratamento dado por
Duras a sua dor, isto é, a repetição do evento, no ambiente artificial de seus romances, por
meio de sua escrita. Segundo afirma Badiou, “há uma capacidade criadora na própria
repetição (...). Estamos certos de que uma repetição natural não tem nenhum poder criador,
é a repetição formal, artificial que tem poder criador”.
62
Assim, Duras repete, sempre de outra maneira, sua história. Deixa os leitores
perdidos em meio à profusão de recordões, ao mosaico que constrói com os pedos de
memória e de ficção. Em seus livros, encontramos as marcas da difícil relação com a mãe,
que não lhe dirige seu olhar terno, que mantém Marguerite apartada do seu desejo, desejo
este voltado particularmente ao irmão. É nas páginas em branco que Duras deposita as
letras que irão ajudá-la a lidar com esse abandono, domar seu sofrimento. Repetir e
também criar, refazer, recontar, reescrever... Até o ponto de tornar possível conviver com
essa dor, sem ser aniquilada por ela. É também sobre elas, sobre as folhas, que expia sua
61
BADIOU. Por uma estética da cura analítica, p.239.
62
BADIOU. Por uma estética da cura analítica, p.242.
27
inveja e seu rancor dirigidos ao irmão mais velho, por ser este o eleito por sua mãe como
centro de seus olhares. É via “repetição controladaque é possível enfrentar o horror da
guerra (ápice da impotência dos recursos simbólicos), o desespero da perda de um filho ou
de um amor.
Contudo, não podemos dizer de uma superação da dor, do desaparecimento desse
sentimento, de uma redenção ou cura pela escrita, mas talvez de uma sublimação,
63
no
sentido da transformação em outra Coisa, da construção de um produto que permanece e
faz dessa dor algo mais além da dor.
Julia Kristeva aborda a escritura da dor em Duras sob os nomes de “estética da
inabilidade” e “literatura não catártica”, e articula a esses dois conceitos uma “retórica do
mal-estar”, referindo-se à capacidade de a escritora domesticar a dor e a morte, porém sem
aboli-las.
Por estética da inabilidade”, Kristeva entende um discurso da “dor embotada”, que
não se auto-analisa. Ou seja, uma fidelidade ao mal-estar, à angústia, que se reproduz
naqueles que leem seus livros. Isso não se dá por uma falha na lógica da narração, que
também poderia gerar esse efeito de angústia, mas por essa escrita sustentar o vazio, a falta
de palavra, de ação. É assim na mudez de Lol no baile, cujo grito quase sai da boca do
leitor, mas de nada adiantaria, ou na angústia e incompreensão de Jacques Hold diante do
entrelaçamento no qual se encontra seguro (Hold).
64
Esperamos o desfecho, mas o que
encontramos é o vazio, a auncia de sentido, a dor. Ou, mesmo no livro que traz já no
título A dor, espécie de drio que relata a espera de uma esposa angustiada por seu marido
raptado pelas forças nazistas na segunda Guerra. Portanto, deparamo-nos sempre com a
63
Em seu Seminário 7, quando Lacan aborda o problema da sublimação”, ele formula que sublimar é:
“elevar um objeto à dignidade da Coisa”. Assim, para entender esse aforismo lacaniano é necessário um
breve esclarecimento sobre o que é a Coisa. Para este autor, a Coisa é apresentada na representão psíquica
como um nada, um vazio, portanto, pode ser entendida como aquele objeto para sempre perdido e acessível
somente via outras coisas. Desta forma, a aproximação da Coisa, via escrita (objeto), e sua consequente
sublimação, o necessariamente, proporcionam uma redenção ou cura, mas criam outros sentidos, outras
finalidades para os objetos (escritos, textos), diferentes dos inicialmente estabelecidos, que os colocam em
relação direta com o vazio da Coisa, no entanto, de maneira mais aprazível, suportável e aceitas socialmente.
A arte, a escrita, permitem, pela via da modelagem (representação) dos significantes, colocar outras coisas no
lugar da Coisa e organizar o vazio que define o humano. Adiante, o tema da Coisa e da Sublimação serão
mais amplamente trabalhadas e esclarecidas. Cf. LACAN. O problema da sublimação. O seminário, livro 7: a
ética da psicanálise, p.111-202.
64
Talvez, o melhor seria traduzir Hold como amarrado, preso ao laço de Lol, pois é isso, precisamente, o que
acontece a este personagem. Ou, ainda, aquele que enlaça, amarra os elementos para que se mantenham
juntos. Jacques Hold é amante de Tatiana e se apaixona por Lol. Não compreenderá sua importância na vida
de Lol, que consistirá em ser amante de Tatiana, tê-la em seus braços, e se fazer visto por Lol. Isto é: a Hold
cabe o papel de mediador da relação entre Tatiana e Lol. É no lugar do olhar (dirigido a Hold e Tatiana,
juntos) que Lol se realiza, que se constitui como corpo. Hold tenta apreendê-la, compreendê-la, mas isto lhe é
impossível, pois a Lolo convém a compreensão. Diante disso, Jacques Hold sofre, angustia-se.
28
palavra, mesmo aquela subtraída, com tamanha materialidade, tamanha potência, que seu
dizer nos fere e o não dizer (que se dá, muitas vezes, pela impossibilidade de dizer) nos
deixa completamente desamparados, atordoados. Como observa Kristeva, os livros de
Duras
nos fazem beirar a loucura. Eles não a mostram de longe, não a observam nem a
analisam, para com ele sofrer a distância, na esperança de uma saída, por bem ou
por mal, um dia ou outro... Bem pelo contrário, os textos demesticam a doença
da morte, tornam-se um com ela, nela estão no mesmo nível, sem distância nem
escapatória. Nenhuma purificação nos espera no desfecho desses romances ao
nível da doença, nem a de um estar-melhor, nem a promessa de um além, nem
mesmo a beleza encantadora de um estilo ou de uma ironia, que constituiria um
prêmio de prazer além do mal revelado.
65
À estética da inabilidade Kristeva ainda acrescenta a não catarse, isto é, ao invés do
nada de sentido (desestabilização da relação significante/significado que produziria um a
mais de gozo), estamos diante do sentido do nada, da não articulação; o nada como centro,
o vazio, o silêncio, “esse buraco onde todas as outras palavras teriam sido enterradas. o
seria possível pronunciá-la, mas seria possível fazê-la ressoar”.
66
Assim, Kristeva afirma
que, na escritura sem catarse de Duras,
a crise conduz a escrita a permanecer aquém de qualquer torção do
sentido, atém-se ao desnudamento da doença, ela a cultiva e domestica,
sem jamais esgotá-la. Sem catarse, esta literatura encontra, reconhece,
mas também propaga o mal que a mobiliza.
67
Por literatura sem catarse não entendemos literatura sem ressonâncias. Ao contrário:
o que nos resta é aquele som ensurdecedor do canto das sereias soando em nossos ouvidos
atentos, ou seja, o silêncio absoluto em que a ausência se realiza, a ausência de palavras, de
representação.
68
65
KRISTEVA. A doença da dor: Duras. In: Sol negro: depressão e melancolia, p.206.
66
DURAS. O deslumbramento, p.33.
67
KRISTEVA. A doença da dor: Duras. In: Sol negro: depressão e melancolia, p.208.
68
Para Maurice Blanchot, em seu texto “O canto das sereias”, o que era insuportável, elouquecedor para
Ulisses no seu encontro com as sereias não era seu canto, mas o seu silêncio, este sim mortal. Segundo o
autor, o canto silencioso provocava um encantamento, por uma promessa enigmática, expunha os homens a
serem infiéis a eles mesmos, a seu canto humano e até à essência do canto, despertando a esperança e o
desejo de um além maravilhoso, e esse além representava um deserto, como se a região-mãe da música
fosse o único lugar totalmente privado de sica, um lugar de aridez e secura onde o silêncio, como o ruído,
29
Embora a escrita passe a ser pensada como uma forma de tratar a dor, que
poderíamos chamar de sublimada, a dor permanecerá, pois Duras a fa durar. Assim
parece dar-se seu encontro com o álcool: ela bebe, muito, pois na bebida espera encontrar
algo que a ajude suportar a dor. Como a própria escritora revela: “o álcool é Deus (...)
ajuda a suportar o vazio do universo, esse vazio que descobrimos num dia de adolescência
e do qual nada pode ser feito que nunca tenha acontecido”.
69
O saber (nem o sabor) não a
salva desse encontro mortífero. Saber que o álcool nunca preencherá seu vazio, não o torna
mais suportável, e assim se entrega a ele: ao sabor do álcool, tal qual à escrita.
O álcool e a embriaguez passam a lhe acompanhar em sua escritura. Dura escritura:
Duras. Nesse percurso são rias as internações para desintoxicações (seria do álcool, ou
da dor que não a abandona?), vários momentos em que nem sequer consegue segurar uma
caneta, em que sua letra torna-se irreconhecível, em que a morte se aproxima
vertiginosamente. E Duras persevera, dura. Nesses momentos, não escreve com sua
“caneta em punho”, mas dita, e, ao som de sua própria voz, o livro vai se tecendo: “quando
uma certa música está presente sei que o texto esavançando. Quando a música ra, eu
paro. Quando recomeça, recomeço eu também.”
70
Talvez esteja aí a explicação da importância cada vez maior do som, da voz, tanto em
sua escrita quanto em seu o cinema, da “clivagem entre os corpos e as vozes concedendo a
estas uma corporeidade inesperada, que solicite do espectador [ou do leitor] um ouvido
musical, capaz de distinguir as diferenças de timbre, de acento”.
71
Portanto, se para o cinema o chamado “estilo Duras” possibilitou que se “lessem as
imagens”, na literatura o movimento que se deu foi o inverso, permitindo que se visse
durante a leitura.
Esse processo faz tornar a dor, o sofrimento, mais intenso, mais consistente. A dor
irradia, atingindo em cheio o leitor desavisado, que é contaminado por ela. É nessa ciranda
que o leitor é arrebatado: são-lhe retirado o lego, as palavras, e resta, então, o silêncio, o
vazio para o qual cada um tecerá suas bordas, suas bordaduras.
barrasse, naquele que havia tido aquela disposição, toda via de acesso ao canto”. BLANCHOT. O livro por
vir, p.3-13.
69
DURAS. A vida material, p.22.
70
DURAS citada por LEBELLEY. Marguerite Duras: uma vida por escrito, p.186.
71
ROPARS-WULLEMIER citada por GUIMARÃES. Imagens da memória, p.212.
30
A literatura durasiana e a psicanálise: litorais
A análise não é nem uma consolação, nem
propriamente uma cura, no sentido banal da
recuperação da saúde: pode-se dizer que ela é uma
vitória sobre o desaparecimento.
Alain Badiou, Por uma estética da cura analítica.
Para pensarmos, inicialmente, as relações entre a literatura e a psicanálise, tomaremos
de empréstimo a Lacan a ideia do litoral, usada por este autor no desenvolvimento do
conceito de letra em sua obra, que demarcaria uma região entre dois campos híbridos, mas
que se tocam e se modificam, quais sejam: o simlico e o real.
72
Litoral nos remete, inicialmente, a uma possibilidade de encontro (mar e terra), mas,
ao mesmo tempo, o impossível desse encontro, uma vez que as substâncias em contato o
heterogêneas e, portanto, têm elementos próprios e distintos de cada lado. Assim, podemos
pensar os encontros da literatura e da psicanálise, marcados por certo fracasso, que não
deve ser concebido em sua dimensão de falha, mas, sim, sob o aspecto de impossibilidade
de uma leitura totalizante, que desvende completamente os textos literários a partir da
psicanálise, ou de uma literatura que contemple e deixe à mostra todos os mistérios da
mente humana.
Sabemos haver um impossível no universo literário, pois algo sempre escapará à
representação. Desse mesmo impossível compartilha a psicanálise. É nessa
impossibilidade, comum a cada campo e entre eles, que podemos localizar, precisamente, a
relação estabelecida entre a literatura e a psicanálise. Portanto, é no ponto mesmo do
desencontro, da impossibilidade de encontro, que este se dá.
Se o litoral, a aproximação entre a Literatura e a Psicanálise pode ser percebida desde
suas origens pois têm na linguagem sua substância comum, seja ela escrita ou falada,
72
Lacan, em seu texto “Lituraterra”, elabora a noção de Letra como litoral. Segundo ele, a letra seria,
precisamente, o espaço de litoral, que delimita por um lado o saber (pois a letra constituirá o significante, que
sempre significa algo saber) e de outro o gozo (aquilo que escapa ao semblante, à representão, do qual
nada se pode dizer, e que mantém o enigma). Portanto, a letra que serve como “instrumento apropriado à
escrita do discurso”, que designa também “a palavra tomada por outra, ou até por outro, na frase, e portanto
para simbolizar certos efeitos significantes” é litoral entre a literatura e a psicanálise. A literatura, como
prática da letra, é a “acomodação de restos”, “litura”, ou a “borda do furo do saber”. E a psicanálise lança luz
e ocupa-se, justamente, desse furo, daquilo que resta, do gozo que é evocado ao romper-se o semblante do
significante. Cf. LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.15-25.
31
significante ou letra, prosa ou poesia , ela também obedece aos ritmos e humores das
ondas do mar que vão e vêm nos seus encontros e desencontros com a terra, que
poderíamos chamar aqui de encontros “litorários”. Vários são os momentos em que
percebemos maior proximidade entre a literatura e a psicanálise. Todavia, também são
muitos os equívocos sobre seus pontos de interseção, perceptíveis nas tentativas, sempre
frustradas, de uma leitura completa.
A psicanálise, desde seu início com Freud, busca, no campo da literatura, suporte à
sua teoria, seja por ela participar da organização de alguns de seus conceitos, seja por
expor, em seus textos, pontos instigantes que nos iluminam acerca das questões subjetivas
do homem e, por isso, da clínica. Assim, com Freud, as obras de arte ou os textos literários
foram lidos e analisados de maneira a aju-lo a formular, aclarar ou dar universalidade
aos seus conceitos. Lembremo-nos de Édipo-rei, peça de focles, e sua importância para
a formulação do complexo de Édipo, conceito fundamental à psicanálise, e da Gradiva, de
Jensen, para pensarmos o processo dos sonhos, do recalque, do funcionamento do
inconsciente. Ou, ainda, o conhecido caso Schreber, todo construído a partir da leitura de
um livro, As memórias de um doente dos nervos, de Daniel Schreber, texto que permite a
Freud a construção de suas idéias fundamentais acerca da psicose. Ressalte-se, porém, a
advertência de Lacan que deve ressoar em nossos ouvidos:
Quanto à psicanálise estar pendurada no Édipo em nada a habilita a se orientar
no texto de Sófocles. A evocação de um texto de Dostoievski por Freud não
basta para dizer que a crítica dos textos, reserva de caça, até hoje, do discurso
universitário, tenha recebido da psicanálise mais alento.
73
Entendamos: Lacan faz, com esse comentário, sua crítica a psicobiografia, e aponta
que, por mais que os saberes literários e psicanalíticos se cruzem, se interponham em
determinados momentos, eles são distintos. O texto de Sófocles (e outros) está, sob certo
aspecto, além da psicanálise, bem como a psicanálise se desvincula, em outros momentos,
do texto literário e vai além. Ou seja, não esperemos reciprocidade, mas “litoralidades”
entre esses dois campos do saber.
Durante anos, iludidos por uma vontade de leitura totalizante, seja dos textos
literários, seja dos textos humanos, os psicanalistas entenderam o interesse de Freud pelas
obras literárias (não sem responsabilidade deste teórico) como um dever interpretativo da
73
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.16.
32
obra, do autor, do personagem, etc. Pensava-se que havia um sentido outro por trás do
texto, uma verdade, algo que demandava um desvendamento, que precisava ser descoberto.
Assim, o texto virou apenas depositário de provas inequívocas” de patologias, desejos,
fantasias, frustrações de um autor, narrador, personagem; a linguagem, as palavras em sua
materialidade (como objetos) foram se perdendo pelas proliferações de significados. Esse
procedimento, como nos aponta Ruth Silviano Brandão, sutura o texto com sua
interpretação, fechando-o”,
74
impondo dificuldades a uma leitura mais fina e aguçada do
texto literário; bem como propicia uma leitura apressada e imprecisa das questões
psicanalíticas. Essa leitura, ao permitir a proliferação (interminável!) das significações, se
esquece de que o encontro entre a literatura e a psicanálise se dá no ponto que escapa à
representação.
Se, desde Freud, e ainda hoje, estamos familiarizados a aplicar a psicanálise à
literatura, lendo o texto literário à luz dos conceitos psicanalíticos com fins interpretativos,
percebemos ser esta uma leitura limitada do procedimento freudiano. Como nos aponta
Mandil, Freud
jamais teve o objetivo de transformar ou reduzir a obra ao ponto de mera
ilustração dos conceitos analíticos. Se de algum modo a Literatura, para Freud,
antecipa as descobertas da invenção analítica mesmo à revelia da intenção dos
escritores –, é justamente porque nela se supõe um saber do qual a psicanálise
poderá extrair uma orientação para sua prática do inconsciente.
75
Os primeiros textos da obra de Freud apoiados em escritos literários nos mostram,
desde o início – numa época em que Saussure ainda não tinha desbravado os caminhos das
relações significantes (semióticas/semiológicas) , como aquele autor se detinha em uma
leitura cuidadosa. Freud se propunha uma leitura não restrita aos significados, à
interpretação, mas também voltava sua atenção à materialidade das letras, à relação entre
as palavras, às pequenas marcas da letra nos textos. E foi nesse caminho que prosseguiu
Lacan: rumo àquilo que escapa à representação, ao encontro traumático com a linguagem e
ao vazio que separa “as palavras e as coisas”.
Portanto, propomos aqui uma leitura que subverta a habitual. Partamos rumo à
literatura como fonte de importantes materiais para o avanço da psicanálise, uma vez que o
74
SILVIANO BRANDÃO. Gradiva, personagem de Freud. In: SILVIANO BRANDÃO, CASTELLO
BRANCO. Literaterras: as bordas do corpo literário, p.31.
75
MANDIL. Literatura e psicanálise: modos de aproximação, Aletria, n.12, p.45.
33
escritor, “no rigor de seu trato com a língua e com a satisfação a ela atrelada, vai, a seu
modo, na mesma direção do que de melhor uma psicanálise pode almejar no seu fim”.
76
Sabemos que tanto a literatura quanto a psicanálise o são campos estanques de
conhecimento e estão sempre em processo de renovação na mesma medida do
desenvolvimento do homem. Daí o grande ganho desse encontro, pois que ele permite
repensar, re-significar o homem e re-elaborar os conceitos.
Tecer bordas de um furo com a escrita, privilegiar o olhar ao vazio, fazer uma escrita
da memória que leve em consideração suas infidelidades, a falta e o que se coloca nesse
lugar incerto. Marcar com a escrita os sulcos, deixar rasuras, rastros nas terras literárias,
inscrever-se no litoral, num entrelugar. Estas são características do texto durasiano que as
aproximam da psicanálise, e em especial de alguns de seus conceitos, principalmente os
desenvolvidos por Lacan, ao seguir os caminhos já apontados por Freud. Esses conceitos
o de Letra, de lituraterra, de objeto a, de não relação sexual –, entre outros, serão
fortemente convocados para a leitura dos textos durasianos, e serão abordados mais
adiante, neste trabalho.
Duras teve seu primeiro contato com a psicanálise em uma época bastante
conturbada de sua vida (final de 50 e início dos anos 60), que marcou profundamente sua
história e, consequentemente, sua escritura. A morte do irmão mais novo, o término de um
relacionamento amoroso intenso, a separação do filho, o questionamento sobre o sentido da
escrita, são estas as preocupações que habitam a vida da escritora, quando opta pela visita a
um psicanalista para lidar com a angústia vivida. O que encontra, porém, não foi de todo
apaziguador. O analista a escuta e em seguida a dispensa do tratamento, com a
recomendação de que sua saída seria a escrita. No fundo, Duras já sabia disso e se e a
fazer o que sabe: escreve. É a partir disso que se verifica uma mudança essencial em sua
escrita, uma curva rumo à sinceridade”,
77
que se pode entender como um anúncio do
movimento da literatura durasiana em direção à lituraterra. Ou seja, Duras busca outras
terras para sua escrita, não mais aquelas marcadas apenas pela representação, mas que
escapem a ela, que atinjam a própria coisa. Sua escrita, agora, aproxima-se da fala, do
corpo, da voz, e preserva o caráter “material da letra, de impressão: porque é capaz de
76
MANDIL. Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce, p.19.
77
DURAS citada por LEBELLEY. Marguerite Duras: uma vida que se conta, p.162.
34
imprimir marcas no sujeito (...) rasura o corpo do sujeito falante”.
78
E, por isso, privilegia
também os buracos, o vazio, o silêncio da ausência de representação.
Se, desde Moderato Cantabile – romance de 1958 –, percebemos o movimento rumo
à vacuidade da representação, a uma maior atenção ao caráter material da letra, é em Amor,
texto publicado em 1971, que essa forma de escrita atinge seu ápice. Nesse intervalo,
diversas outras obras são produzidas e chamam a atenção de vários teóricos, tanto do
campo das artes (cênicas, literárias) quanto de filósofos e psicanalistas. Duras, com seu
estilo próprio de escrita que privilegia as imagens (com seu cinema escrito e sua escrita
imagética), a voz, e, sobretudo, o silêncio –, encanta.
É O deslumbramento, publicado em 1962, que primeiramente atrai o olhar
interessado da psicanálise. Sobre esse romance, Lacan escreve um texto, uma “homenagem
a Marguerite Duras pelo deslumbramento de Lol V. Stein” e se revela, ele próprio,
arrebatado por Duras expressar, sem o saber, parte de sua teoria acerca da cisão da visão
entre o olhar e a imagem, marcando precisamente a constituição do primeiro modelo do
olhar. Lacan também observa, na escrita durasiana, que “a prática da letra converge com o
uso do inconsciente”,
79
apontando, pois, para a presença da letra na obra dessa autora.
Entende-se por esta afirmativa de Lacan, que a letra manifesta-se independentemente de
um saber epistemológico sobre ela, mas, sobretudo, por um savoir-faire, um saber prático,
poético, que alguns escritores, em seus textos, conseguem manejar e transmitir.
Duras produziu textos litorâneos, ou talvez pudéssemos dizer: textos de borda ou
femininos. Livros que expõem o litoral, entre centro e ausência, saber e gozo”.
80
Sua
escrita ousou aproximar-se da borda da letra e vislumbrar o buraco. Arriscou. Pois, neste
buraco, há uma força, um centro, para o qual todas as palavras poderiam ser atraídas,
arrastando com ela o escritor sucumbido. Esse ponto é justamente aquele que Blanchot
chamou de “centro do livro”, aquele “que não se pode atingir, o único, porém, que vale a
pena atingir”.
81
Um livro, mesmo fragmentário, possui um centro que o atrai: centro este que não
é fixo, mas se desloca pela preso do livro e pelas circunstancias de sua
composição. Centro fixo tamm, que se desloca, é verdade, sem deixar de ser o
78
NICOLADIS citado por CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p.59.
79
LACAN. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.200.
80
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.21.
81
BLANCHOT. O espaço literário, p.49.
35
mesmo e tornando-se sempre mais central, mais esquivo, mais incerto e mais
imperioso.
82
Nesse processo de encontro com esse buraco, o furo da própria palavra, Duras
testemunhará sobre o perigo, o medo dessa escrita, mas, ao mesmo tempo, sobre sua
salvação. Dirá: “O medo comou com Lol V. Stein, e, a bem da verdade, com Moderato.
Foi muito grande com truire, e até um pouco perigoso”.
83
Contudo, para se chegar até este centro, o buraco, trabalhou-se muito. É a própria
Duras que afirma: “Os buracos... (...) foi preciso escrever muitos livros para chegar até esse
ponto.”
84
82
BLANCHOT citado por ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.12.
83
DURAS, GAUTHIER. Boas falas: conversa sem compromisso, p.13.
84
DURAS, GAUTHIER. Boas falas: conversa sem compromisso, p.12.
36
II
PA S S O A L E R : O F E M I N I NO R E VEL A DO
O que não se lê: a letra
O modo como leio uma Carta – é assim
Primeiro – fecho a Porta
E, a seguir – aperto-a com os dedos
Para assegurar o transporte –
Então me afasto o bastante
Para qualquer chamado evitar –
Abro minha pequena Carta
E a penetro devagar –
Lançando um olhar oblíquo à parede
E olhando assim o chão
Para a firme Condenação de um Rato
Não exorcizado até então –
Leio o quanto sou infinita
Para ninguém que Você – conheça
E suspiro pela falta do céu – mas não
Que Deus não o ofereça –
Emily Dickinson, Poema 636.
No caminho, ou nos descaminhos, em direção à escrita feminina, deparamo-nos,
inevitavelmente, com a Letra. Poderíamos também ler esta sentença invertendo-a, dizendo,
pois, que no trajeto em direção à letra acabaremos por encontrar a escrita feminina (ou
seria do feminino?). Resta-nos a pergunta: por que a letra e o feminino estariam tão
próximos? Precisamos dar um passo além, um passo a ler, mais ainda, um não-a-ler, para
descobrirmos o quê dessa relação os aproxima. Intuímos que nela (na relação) uma
impossibilidade, que nem tudo sobre ela poderá ou quererá ser dito. Mas observamos tanto
nos escritos psicanalíticos que inauguram a investigação acerca da letra quanto na escrita
de alguns autores, sobretudo, autoras, a efetividade dessa articulação: letra-feminino.
Falar desses termos, da letra e do feminino, gera algum desconforto, uma sensação
de impostura. Primeiro, porque usaremos a letra para nos referirmos a ela mesma, lançando
37
mão da questionável metalinguagem, e por isso poderemos ser interpelados sobre a
confiabilidade de um método que é também objeto de estudo. Pois será que a letra não
usaria de alguns artifícios para não se dar a ler, para manter-se, em certa medida,
enigmática? De fato este parece ser, por um lado, um problema e, por outro, nossa
salvação, como veremos mais adiante.
Depois, porque tratar do feminino é igualmente complexo. Fora o risco de
equivocadamente sermos acusados de nos utilizarmos de um discurso sexista (apesar de,
literalmente, ser do sexo que se trata),
85
ainda poderíamos adicionar a dificuldade de
definir esse termo, uma vez que ele não é coincidente com o ser mulher (no sentido
biológico), mas também não está completamente apartado dele.
Para alguns autores, o feminino encontraria maior equivalência à noção de
passividade (Freud), enquanto que o masculino estaria vinculado a uma postura mais ativa.
Portanto, essa divisão teria mais a ver com uma posição subjetiva que propriamente com
seu sexo. Porém, outros autores acrescentam ao feminino o aspecto enigmático, uma vez
que seu conceito “é construído no vazio, na ausência, na lacuna”
86
, tal como uma peça de
renda, bordada – bordejando. Assim, o feminino estaria, decisivamente, do lado d’Ⱥ
Mulher
87
para além daquela biologicamente marcada pela ausência –, aquela da
impossibilidade de se dizer completamente, aquela da falta da palavra, aquela não-toda.
É esse feminino enigmático que nos interessará aqui, pois é nesse ponto da
impossibilidade de se fazer inteiro, absoluto, completo, compreensível, que seu caminho
parece cruzar-se ao da Letra.
A expressão a letter, a litter” (carta/letra, lixo), originária dos escritos de James
Joyce, aparece pela primeira vez no texto de Lacan, segundo Mandil, no momento em que
“ele [Lacan] expõe a razão pela qual, no conto de Poe, a qualificada polícia parisiense não
conseguiu recuperar a carta roubada dos aposentos da Rainha pelo ministro D”.
88
A análise
85
Ou seja, da impossibilidade de existir a relação sexual.
86
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p.63.
87
Lacan, em seu seminário 20, propõe uma nova maneira de se escrever a mulher, colocando esse Ⱥ
maiúsculo e barrado que, ao contrário de defini-la e universalizá-la – como se poderia supor com o emprego
do artigo definido – indica que há um imposvel em dizê-la, que Ⱥ mulher é não-toda, que ela não existe. Ou
seja, Ⱥ mulher o existe situada inteiramente na norma fálica esta da comunicação, do laço social, da
generalização ela a extrapola, vai além, descobre um Gozo Outro, para além da norma, para além da
linguagem, do qual nada se pode dizer dele, sabe-se apenas que existe.
88
MANDIL. Os efeitos da letra, p.25.
38
lacaniana do conto de Edgar Allan Poe, A carta roubada”,
89
introduz, além das primeiras
elaborações sobre a letra/carta, que extrapolam a noção de letra/carta como significante,
isto é, como portadora e transportadora de uma mensagem, a noção de letra/carta como
objeto, e sua articulação ao feminino pelo efeito feminizante naquele que se apossa da
letra/carta.
Este conto narra o percurso e percalços de uma carta/letra, da qual nunca saberemos
a mensagem, por ser o que menos importa. Afinal, como indicou Lacan, uma
precedência do significante em relação ao significado.
90
Acompanharemos, no conto,
apenas o movimento da carta, seus destinos. Inicialmente, estará em posse da Rainha que,
para não fazer notar o que tinha nas mãos diante do Rei, deixa a carta, displicentemente,
sobre a mesa. O ministro D, que entra no gabinete, percebe, “com seus olhos de lince”, a
carta em cima do móvel, reconhece a letra e deduz o destinatário, percebe também o
constrangimento da Rainha e apossa-se, sorrateiramente, da carta. A fim de tentar resgatá-
la, a Rainha aciona o prefeito da Polícia de Paris, mas, como este não tinha a seu alcance
mais (ou menos) reflexão do que o óbvio e esperado da gica de um homem comum, o
consegue ver o que se coloca, claramente, diante dos olhos. o encontra a carta, mesmo
após meses de busca. Dupin é acionado e deduz que a carta estaria em local cuja
simplicidade ofuscaria sua percepção. Em uma visita ao ministro D, Dupin descobre a
carta, mas ela havia sofrido algumas modificações quanto a sua aparência exterior, desde o
aspecto do papel até o sobrescrito que se mostrava. Lá onde o selo era vermelho e pequeno,
havia sido colocado um grande e negro; no lugar do nome da Rainha, encontrava-se o do
ministro; ao invés de letra masculina, percebia-se a feminina. A partir dessa descoberta,
para reaver a carta, Dupin faz outra manobra: produz carta de igual aparência daquela
comprometedora e a substitui, num momento de distração do ministro D. Na carta deixada
por Dupin encontram-se os seguintes dizeres que visam identificar o autor da troca: “Um
destino tão funesto/ Se não é digno de Atreu, é digno de Tieste”.
Esse conto é paradigmático para percebermos esses movimentos: primeiro, da
passagem da letra/carta de significante, mensagem, para um objeto, um resto, a litter, um
papel, amassado, dobrado e desdobrado. Isto é notado quando, inicialmente, a Rainha se
despoja da carta/letra em cima de um móvel, tentando dar a crer que se tratava de um
89
POE. A carta furtada. Ficção completa, poesia e ensaios, p.171-186. Não me aterei aqui a relatar o conto
integralmente, por não se tratar de objeto deste estudo, mas apenas alguns pontos que se fizerem necessários
à melhor compreensão dos conceitos aqui abordados.
90
Cf. LACAN. O seminário sobre ‘a carta roubada’. In: Escritos, p.32.
39
objeto pouco importante, um resto. Mas, sobretudo, pela maneira como ela é manuseada,
trabalhada como objeto pelas mãos do ministro D, e também de Dupin. E, segundo, por
explicitar, também, de maneira brilhante (no sentido daquilo que há de ofuscante no brilho
da luz),
91
o efeito feminizante sofrido por todos aqueles que se apossam da carta. Sobre
isso Lacan pontua que o ministro, ao forjar para si uma carta de mulher, numa escrita de
traços delicadamente femininos, e empregar nela, na carta/letra, seu próprio brasão,
fazendo confundir, por isso, destinatário e remetente, coloca-se numa posição feminina.
Lacan afirma, no sentido do enlaçamento carta/letra/feminino, ser “significativo que a carta
que em suma o ministro endereça a si mesmo seja a carta de uma mulher: como se por
convenção natural do significante, essa fosse uma fase pela qual ele tivesse que passar”.
92
Lemos, ainda em Jeferson Pinto, que “a feminização induzida pela letra/carta se refere
também a uma posição de gozo enigmática. ‘O texto da carta, seus efeitos de significação,
o pprio relato, nada do que se diz nele dá conta do enigma dessa posição
93
. Vamos
mais além, ainda na companhia de Lacan, que compara a carta/letra roubada a um grande
corpo de mulher, esparramado no gabinete do ministro, um corpo obscuro, enigmático,
indecifrável e esburacado: o corpo d’Ⱥ Mulher tal qual o corpo da letra.
Curiosamente, o texto de Lacan ao qual nos referimos encontra-se nos Escritos, que,
segundo o próprio autor, é um título que porta em si certa ironia, pois “é bem sabido que
eles não se leem facilmente (...). Eu pensava, e talvez chegue mesmo a isso, eu pensava
que eles não eram para ser lidos”.
94
Nesta frase podemos entender que os textos ali
reunidos destinam-se a não serem lidos de forma convencional, direta, óbvia, mas sim
levando em consideração aspectos outros: da marca, da letra, do objeto. Trata-se, portanto,
de escrever para não ser lido, mas para ensinar a ler. Essa nos parece ser a proposta de
Lacan: a de escrever e se fazer ler no ponto de p,
95
no ponto da letra.
A princípio isso pode soar paradoxal um escrito “que não é para ser lido” –, mas
não o é, pois não se trata aqui exatamente do ilegível, mas do incompreensível, entendido
como o que de uma relação não é estável, esperado e óbvio entre os significantes e seus
significados. Trata-se de outra maneira de leitura, abordando a marca, a materialidade,
91
LACAN. O seminário sobre ‘a carta roubada’. In: Escritos, p.35.
92
LACAN. O seminário sobre ‘a carta roubada’. In: Escritos, p.39.
93
PINTO. A mulher e a letra, p.6.
94
LACAN. A função do escrito. In: O seminário, livro 20: mais, ainda, p.38.
95
Segundo Lúcia Castello Branco, o ponto de p é: “o ponto poético da palavra e da redução da palavra a seu
ponto de letra, [em que se] pode renomear as coisas, acreditando, quem sabe, que os nomes de fato não o
nomes, mas as coisas mesmas, em sua singularidade, em sua corporeidade, em sua matéria bruta.”
CASTELLO BRANCO. Os absolutamente sós: Llansol, a Letra, Lacan, p.21-22.
40
expondo o que de buraco, de enigmático naquela relação, recuperando a dimensão da
linguagem, da palavra em seu estranhamento, daquilo que pode surpreender, ou seja, a
abertura a novas possibilidades de leitura.
Em “Lituraterra”, outro texto relacionado às funções e rastros da letra, Lacan de
início faz uma ressalva ao título, observando que, antes de uma associação etimológica,
essa palavra lhe surgiu por assonância (ou, talvez pudéssemos dizer, por uma dissonância)
com “literatura”, a partir da influência sofrida com a leitura dos textos joycianos. Nessa
palavra, segundo o autor, estão condensadas, nos moldes do chiste, “litura”, “liteira”,
“terra”, “liturarius”, mas podemos derivar ainda outras como: “litoral”, “literal”, que
marcarão essa “cartografia” na terra das letras, da literatura.
96
Assim, já nesse ponto é
possível vislumbrarmos o que nos espera a seguir: uma nova maneira de fazer com a
linguagem, com a língua, com a letra, recebendo novos sentidos, deixando marcas, criando
o inédito, uma outra forma de falar. A partir daí, vemos surgir uma nova escrita e, com ela,
uma nova leitura.
Posteriormente, nesse texto, Lacan elabora a não da letra como litoral, que seria
distinta da ideia de fronteira. Como explica Lacan, para diferenciar esses dois conceitos:
“A fronteira, com certeza, ao separar dois territórios, simboliza que eles são iguais para
quem os transpõe, que entre eles um denominador comum.”
97
O litoral seria aquele
lugar no qual “um campo inteiro serve de fronteira para outro, por serem eles estrangeiros
a ponto de serem recíprocos”.
98
É a própria visão de um litoral, onde se dá o encontro da
água com a areia: são campos heterogêneos entre si, que não se misturam, mas que, por
vezes, se tocam, se interpõem.
A letra seria litoral entre simbólico e real, entre saber e gozo. Nas palavras de Lacan:
Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral que vira literal quando,
essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É somente a partir
dque podem tomar-se pelo agente que a sustenta.
99
A letra, que conjuga dois universos heterogêneos, contém, pois, elementos tanto de
um lado que tocariam o gozo, o objeto a quanto de outro que estariam no campo do
saber, permitindo a formação de uma cadeia (S1 S2). E o lugar apontado por Lacan que,
96
Cf. CASTELLO BRANCO, SILVIANO BRANDÃO. Literaterras: as bordas do corpo literário, p.15.
97
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.18.
98
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.18.
99
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.22.
41
segundo ele, melhor designaria a articulação desses aspectos da letra contendo as duas
bordas seria a escritura (que abrangeria certas literaturas e a caligrafia). A escritura oferece
duas formas de tratamento da letra: a primeira como sendo a vertente significante, do
sentido, da produção; e a segunda contemplaria o gozo, o prazer, uma vez que a escritura
não obliteraria o gozo (como o faz a ciência).
Caminhando nesse sentido, Eric Laurent afirma, em suas elaborações sobre o texto
“Lituraterra”, que ele se encontra centrado em dois aspectos da letra: o que faz furo e o que
faz objeto a.
100
O primeiro corresponde à função da letra como foi tratada no conto “A
carta roubada”, de Poe, cuja função extrapola a transmissão da mensagem. Trata-se do
significante podendo ser lido fora de sua correspondência ao significado (considerando a
barra que existe entre eles, a independência de um em relação ao outro), a partir de seu
lugar de letra, de seu aspecto material. A letra funcionaria, então, como operador do mal-
entendido, do furo no sentido (saber), do que resta concreto, manipulável, enigmático.
Ainda que considerando, em última instância, sua articulação ao campo simbólico, pois
percebemos que há a função de transmissão da mensagem como um dos objetivos da carta
a partir dos efeitos que ela produz em quem a possui. Aqui podemos, também, entrever o
lugar litoral da letra enquanto aquilo que faz furo, que e em contato dois campos
distintos que se atravessam, que é o que a imagem do furo nos indica. Lacan afirma:
A borda do furo no saber, não seria o que ela [letra] desenha? E como a
psicalise poderia negar esse furo uma vez que isso que a letra diz ao “pé da
letra” através da sua boca, ela não deveria desconhecê-lo –, como poderia ela
negar esse furo, se, para preenchê-lo, ela recorre aí à invocação do gozo.
101
Para Laurent, esse conto é o primeiro apólogo de Lacan, momento em que a letra é
tomada como escritura em sua “vertente alfabética”, (in)significante.
O segundo ponto se refere à letra como objeto, traço, rasura, lugar de gozo, de objeto
a. Nesse momento, a letra se converte em literal, se descola do significante, e é despojada
de significado, reduz-se a seu elemento material, tipográfico, de traço que escava, que
produz um furo, uma sulcagem.
Esse aspecto corresponde ao segundo apólogo de Lacan e aborda a escritura em sua
vertente ideográfica. É a visão do alto de seu avião da planície siberiana, branca,
100
LAURENT. La carta robada y El vuelo sobre La letra, p.145.
101
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.18.
42
marcada com seus sulcos de rios, o ravinamento das águas, que lhe desperta para o
escoamento do significado pelo efeito da escritura.
102
Assim, haveria uma operação de
decantamento, de depuração do significante, em direção a um traço que rompe o semblante
(aquilo que de significado no significante) e libera o gozo ali contido. Ou seja, se, num
primeiro momento, o que teríamos seria o significante como semblante por excelência, lido
a partir da metáfora das nuvens, carregadas de significações, de interpretações, num
segundo momento, com a decantação do significante e o rompimento dessas nuvens,
observaríamos a precipitação de algo, das letras, que vão sulcando a planície, produzindo
rasuras, deixando suas marcas sobre solo branco.
103
É nesse processo de ruptura do
semblante que se libera gozo. Segundo Lacan,
O que se evoca de gozo ao se romper o semblante, é isso que no real se apresenta
como ravinamento das águas.
É pelo mesmo efeito que a escrita [écriture] é, no real, o ravinamento do
significado, aquilo que choveu do semblante como aquilo que constitui o
significante. A escrita não decalca este último, mas sim seus efeitos de língua, o
que dele se forja por quem a fala. Ela remonta a isso se disso receber um
nome, como sucede com os efeitos entre as coisas que a bateria significante
denomina, por havê-las enumerado.
104
Embora Laurent apresente as duas funções da letra separadamente, percebemos
tratarem-se de faces opostas de uma mesma borda. Percebe-se aqui, novamente, a letra
fazendo litoral entre o semblante, residente no campo do simbólico, e como litura, rasura
que liberaria gozo e, portanto, estaria do lado do Real. Cabe aqui ressaltar que Lacan
aborda a questão da letra a partir da escrita, apontando para certa distinção entre esse
campo e o da fala. Assim, a literatura (como escritura) seria o lugar, por excelência, em
que seria possível tanto encontrar a letra como semblante quanto a letra como “vazio
escavado pela escrita”.
105
É sobretudo esse segundo aspecto que irá nos interessar aqui.
Lacan nos advertia, em seu seminário sobre a função do escrito, que “é justamente
por considerar que as coisas são espontâneas que não vemos nada do que, no entanto,
temos diante dos olhos, diante dos olhos no que concerne à escrita”.
106
Aponta, assim,
102
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.22.
103
Essa imagem remete-nos, de imediato, ao que foi anteriormente tratado sobre a escritura de Marguerite
Duras, sua materialidade, como se as letras fossem “objetos caídos sobre a folha branca”.
104
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.22
105
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.24
106
LACAN. A função do escrito. In: O seminário, livro 20: mais, ainda, p.47.
43
justamente, para aquilo que, da escrita, escapa ao semblante, ou seja, que está como
marca, sulco, “rasura de traço algum que lhe seja anterior”,
107
literal. Assim, a escritura,
partindo se seu ponto de letra, no que se propõe a não tomar as coisas de maneira
espontânea, vai além, extrapola-a, toma-a a partir do furo, do buraco, e pode, dessa
maneira, nos re-ensinar a ler, uma leitura que nos relança não apenas ao ‘não sentido’,
mas a um suplemento de sentido, um ‘a mais de sentido’”.
108
Finalmente, é sob a perspectiva da letra na borda do buraco, escavado pela escritura,
e tomada como Real; e do feminino como algo que se aproxima e contempla o buraco, que
a articulação e a relação (de não-equivalência)
109
entre a letra e o feminino se farão
possíveis. Portanto, a escrita feminina (ou do feminino) seria aquela que se daria na borda,
no litoral, pois, ao mesmo tempo em que preserva seu aspecto comunicacional, dado pelo
que de semblante no significante que constitui o discurso a partir da norma fálica (do
todo, universal), ela o ultrapassa, por estar, em parte, inserida no buraco, por ser não-toda
(fálica). Então, é no lugar daquilo que não se lê, pelo menos não a partir da lógica
totalizante, universalizante, que constatamos a presença do feminino. E é nesse lugar, da
escrita feminina, que outros arranjos da letra, da língua, são possíveis, produzindo-se um a
mais, um além, ou um Outro Gozo.
110
107
LACAN. Lituraterra. In: Outros escritos, p.21
108
CASTELLO BRANCO. Um passo de letra, p.5.
109
A não de equivalência foi retirada do texto lacaniano O seminário: livro 23, no qual Lacan afirma que
“a não relação deriva da equivalência, a relação se estrutura na medida em que não há equivalência. ,
portanto, ao mesmo tempo, relação sexual e não há relação.” (p.98). Isso significa que, estando o homem e a
mulher inseridos na norma fálica, isto é, marcados pela castração, eles seriam equivalentes e, desta forma,
o haveria relação sexual. A partir do momento que a letra e o feminino permitissem uma outra inscrição,
para além do fálico, produzindo um gozo não-todo fálico, mesmo que contingencialmente, a relação sexual
poderia se dar. Sobre o papel da contingência na relação sexual, Lacan explica, com base em seu aforismo
escrito no seu Seminário: livro 20, que “a relação sexual não pára de não se escrever”. Assim, “(...) a
aparente necessidade da função lica se descobre apenas como contingência. É enquanto modo do
contingente que ela pára de não se escrever. A contingência é aquilo no que se resume o que submete a
relação sexual a ser, para o ser falante, apenas o regime do encontro.(p.127). Talvez, então seja possível,
com a letra, escrever, contingencialmente, a relação sexual.
110
O conceito de gozo em Lacan surge a partir da sua leitura de Freud acerca da pulsão de morte e da libido.
Essa noção seria equivalente à “satisfação pulsionale contemplaria ao mesmo tempo prazer e sofrimento. O
gozo indicaria ainda o que estaria para além dos limites, o indizível, o Real. Em suma, o que é o gozo? (...)
É algo que significa a escamoteação do limite, a abolição do limite. Quanto ao prazer, constitui uma forma
comedida de eclipse momentânea do limite, onde entra em causa apenas o prazer e todo o circuito do desejo
que o repõe em jogo. O gozo propriamente dito, enquanto inacessível, enquanto realidade, enquanto
impossível, é exatamente a abolição do limite” (LECLAIRE citado por CASTELLO BRANCO. A traição de
Penélope, p.76). Partindo desses princípios, o Outro Gozo estaria para além do corpo, para além do gozo
sexual, além da norma fálica, fora da linguagem. Esse Outro Gozo, ou gozo d’A mulher, seria um gozo
suplementar (pois, a mulher é não-toda inserida no registro fálico) do qual nada se pode dizer dele a não ser
que é experienciado por algumas(uns). Segundo Lacan: “Há um gozo dela, esse ela que não existe e não
significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta
44
Daí também se derivou a aproximação entre a literatura de Duras e a lituraterra de
Lacan. Duras faz da lituraterra do a mais de sentido” (ou do “fora do sentido”), dado
pela literalização da letra em sua escritura, tomando a palavra como objeto sua literatura,
criando novos arranjos entre significante e significado (e entre as letras) e, por vezes,
apontando para a hiância instaurada entre eles, para o buraco da palavra, para a palavra-
buraco.
Um longo percurso de extração
Furo, buraco ou vazio? Com qual desses três termos designaríamos melhor os efeitos
provocados pela escrita durasiana? Em busca dessa resposta, examinaremos cada um deles
separadamente, levando em consideração, além de seu aspecto semântico, do uso prático e
corrente na ngua, também suas especificidades e efeitos provocados em uma leitura mais
atenta. A importância dessa distinção para a escolha do termo deve-se, primeiro, à
frequência pela qual transitaremos entre eles. Isto porque falar da borda, da bordadura da
escrita, implica, necessariamente, falar sobre aquilo que é circunscrito, bordejado (pela
palavra, pela letra), isto é, um furo, um buraco ou um vazio. Depois, é preciso haver
cuidado diante da proximidade de sentidos que eles evocam, o que pode gerar certa
confusão quanto ao que se deseja abordar neste percurso através da escrita durasiana.
Tanto no que se refere aos significados disponíveis nos dicionários este “lugar onde
as palavras fazem coleção, podem ser alistadas
111
quanto no uso cotidiano, esses três
termos se aproximam e se confundem, mas também guardam sutis diferenças. Por
exemplo, no Houaiss, o verbete furo designa diretamente “buraco, orifício”,
112
mas em seu
uso corrente observamos algumas particularidades, como sua utilização para indicar
perfuração, atravessamento e “o encontro com uma superfície ou plano heterogêneo”.
113
É
também uma palavra mais neutra, ou, se pudéssemos dizer, menos carregada de afetos. A
palavra buraco remete, em seu significado, a um “espaço vazio, cavidade, oco”,
114
além de
isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a elas todas”(LACAN. O
seminário:livro 20, p.100).
111
LACAN. A Jakobson. In: O seminário, livro 20: mais, ainda, p.29.
112
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p.1407.
113
MANDIL. Os efeitos da letra, p.214.
114
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p.529.
45
portar o sentido de “local menos nobre, pouco desenvolvido”, e até mesmo de “morte”.
Esta palavra, por sua vez, é mais dura, mais intensa em relação aos afetos a ela associados,
de tal modo que parece despir-se de suas vestes representativas e aproximar-se mais da
coisa representada, do Real.
115
a palavra vazio é das três a que mais se distingue. No entanto, em suas
significações – “o espaço que não contém nada”, “ausência de conteúdo, oco, o” –
116
ela
acaba perpassando entre o furo e o buraco. Portanto, um ponto em que as três palavras
se enlaçam, se tocam, sendo que, às vezes, se torna impossível distingui-los. Este
entrelaçamento, especialmente entre as palavras buraco e furo nota-se mais precisamente
na palavra correspondente em francês, trou. Esta palavra agrupa, de certa maneira, todas as
significações acima, permitindo que ela seja traduzida como furo ou como buraco,
dependendo do efeito que se busca atingir.
No livro O deslumbramento, Duras utiliza un mot-trou”, traduzida com eficácia
para o português como palavra-buraco, pois porta o sentido de algo escavado, aberto,
exposto, morto, de uma palavra que toca a coisa em seu ponto mesmo de silêncio. A
palavra-buraco é aquela que, com tamanha materialidade, corporeidade, Duras compara a
um “cão morto da praia em pleno meio dia, esse buraco de carne”.
117
Essa palavra, bem
como o efeito provocado por sua utilização, parece situar-se no litoral (ou mesmo no
literal) entre os dois campos heterogêneos o da representação e o da coisa. Pode-se notar
aqui certa subversão da função da palavra, que deixa de ser a morte da coisa em nome da
representação, para se tornar a morte da representação na decantação do significante, no
traço da letra. Ou, caso se prefira: a precipitação da letra, que sulcará a carne, a partir da
chuva significante (tomada como semblante).
Assim, não se objetiva aqui desatar o que articula esses termos, a saber, furo,
buraco, vazio, propondo um significado exclusivo para eliminar o possível trânsito entre
eles. Ao contrário, contamos com a dupla face que cada termo contempla com a abertura
da palavra às possibilidades de significação. Transitaremos entre esses significantes furo,
buraco, vazio –, dependendo do efeito que percebemos no que é provocado pela escrita de
Duras: se furo, querendo apontar para a natureza perfurante e heterogênia de dois campos
115
O conceito de Real, para Lacan, sempre esteve ligado à idéia de impossível de representar, do que está
fora do universo simbólico, a algo inacessível a qualquer pensamento subjetivo”. Enfim, o “real é
assimilado a um ‘resto’ impossível de transmitir, que escapa à matematização”. Cf. ROUDINESCO, PLON.
Dicionário de Psicanálise, p.644-646.
116
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p.2834.
117
DURAS. O deslumbramento, p.35.
46
distintos que se tocam; se buraco, quando carregada de afetos e apontando para algo do
Real, do corpo ou da morte; se vazio, quando nos referirmos à possibilidade de criação, à
construção. Trata-se, tanto na escrita de Duras quanto em nossa leitura, de um longo
percurso de extração.
Todavia, às vezes encontraremos os três termos numa mesma frase. Porém, eles não
deverão ser tomados como simples sinônimos, mas sim como um enlaçamento, uma
articulação de suas várias possibilidades de sentido. Conforme aprendemos com Lacan, o
significado, normalmente, “nada tem a ver com o que o causa”,
118
isto é, com o
significante. Há uma barra entre eles. Dessa forma, as coisas que o significante “serve para
aproximar, restam justamente aproximativas”:
119
próximas, mas intocadas. Podemos dizer,
então, que não relação simétrica, unívoca, entre significante e significado, apesar de
sempre termos a expectativa de que essa relação entre o que causa o significado
(significante) e o Real exista. Lacan ainda observa: isto [a relação] se obtém depois de
um tempo muito longo de extração, de extração para fora da linguagem”.
120
E isto é o que
parece ter sido buscado e alcançado por Duras, essa depuração da palavra como
observamos na palavra-buraco, silenciosa, inexistente – em direção ao Real.
Lol: A palavra-buraco
Teria sido uma palavra ausência, uma palavra-buraco,
escavada em seu centro para um buraco,
esse buraco onde todas as outras palavras
teriam sido enterradas.
M. Duras, O deslumbramento.
Falar dos buracos na escrita durasiana é trazer à pauta a discussão sobre uma escrita
da impossibilidade (não da impossibilidade da escrita), da falta de representação, do Real,
segundo preferirá a psicanálise. Isso pode soar bastante paradoxal, pois, como a escrita,
que parece se propor representativa desde sua concepção, poderia não representar, tocar o
real, o irrepresentável? Na tentativa de responder a essa pergunta seguiremos os rastros
118
LACAN. A Jakobson. In: O seminário, livro 20: mais, ainda, p.31.
119
LACAN. A Jakobson. In: O seminário, livro 20: mais, ainda, p.31.
120
LACAN. A Jakobson. In: O seminário, livro 20: mais, ainda, p.31.
47
apontados pela própria Marguerite Duras, particularmente em dois de seus textos, O
deslumbramento e Amor.
Duras afirma que o medo da escrita começou com Lol V. Stein, talvez porque tenha
sido nesse momento que sua escrita aproximou-se, de maneira mais decisiva, do buraco, de
um furo. Seria o furo da linguagem? O buraco da letra? Parece-nos que sim, e a própria
Duras o diz quando questionada em uma entrevista feita por Xavière Gauthier: “Não foi a
partir de Ravissement que começou a haver o buraco?” E Marguerite Duras responde: “A
experiência, a experimentação. É como você dizia; eu experimentava esse branco na
sequência.”
121
Duras revela, em outra ocasião: Foi em Trouville que caí na loucura de me tornar
Lola Valérie Stein”,
122
frase na qual podemos escutar que foi nessa cidade buraco
123
que
Duras também foi arrebatada, provavelmente por seu encontro com Lol e com a palavra
que não existe, a qual chamou de palavra-buraco. Sigamos o primeiro passo, junto com
Lol, e vejamos aonde ele nos leva. Possivelmente nos levará à borda da letra que contorna
perigosamente o buraco. Afinal, o próprio nome da personagem, essa palavra com um
buraco no meio (O), já o anuncia.
Foi nesse livro que a autora lançou ao leitor algo que trataremos aqui como um
conceito a palavra-buraco , pois ele define os limites da linguagem, sua
impossibilidade de dizer tudo. Finalmente, como afirma a própria Duras: “Escrever (...)/ é
preciso dizer: não se pode/ E se escreve”.
124
Se um dia, até o final do século XIX, pensou-se poder dizer tudo, acreditando-se que
a linguagem representava fielmente a natureza e o pensamento, como ensina Foucault,
125
com a invenção da psicanálise essa realidade é alterada. Descobre-se que a linguagem
carrega em si seus limites (da morte, do Real o é possível dizer nada), que nem tudo é
passível de ser representado, ou que o Outro da linguagem também é marcado por uma
falta, por um furo, como ensinará Lacan. Daí a importância da palavra-buraco tomada
como conceito de uma palavra que escapa ao registro da representação, pois se refere a
uma palavra-ausência, ou à ausência de palavras vivida no encontro com o Real, conforme
desvendado por Marguerite Duras em seu romance.
121
DURAS, GAUTHIER. Boas falas: conversa sem compromisso, p.14.
122
DURAS. Escrever, p.14.
123
o podemos deixar de escutar, ao da letra, a tradução de “Trouville” como “cidade buraco”. Seria isso
um prenúncio?
124
DURAS. Escrever, p.63-4.
125
FOUCAULT. A palavra e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
48
É com essa palavra-buraco que Lol encontra-se inesperadamente no dia do baile em
T. Beach e que “não seria possível pronunciá-la, mas seria possível fazê-la ressoar”.
126
Talvez por isso fiquemos com o grito contido, escutando angustiados o silêncio de Lol
ensurdecedor, pois realiza a total falta de representação e deixa o ouvinte entregue ao puro
estado de angústia.
Para uma melhor compreensão daquilo que tomamos como um conceito a palavra-
buraco , será necessário que abordemos o texto referido e nos aprofundemos, com os
ouvidos de analistas, nessa impressionante escritura das bordas de Duras: suas bordaduras.
O livro O deslumbramento relata a história de uma jovem, Lola Valérie Stein,
“engraçada, gozadora inveterada e muito sutil, embora uma parte dela estivesse sempre
desligada, longe do interlocutor e do momento”,
127
que apaixona-se, aos 19 anos, por
Michael Richardson e deste torna-se noiva. Numa noite, num baile no cassino de T. Beach,
Lol estava com seu noivo e uma amiga, Tatiana Karl, e uma mulher entrar pelo salão,
Anne Marie Stretter, com sua filha. Essa mulher era magra, bela, e estava vestida de negro.
Não apenas Lol a vê, mas também seu noivo, que dança com a desconhecida a noite toda e,
ao final do baile, vai embora com ela, deixando Lol para trás, arrebatada. Diante do rapto,
consentido, de seu noivo, Lol se cala, em busca de uma palavra que acreditava existir, mas,
na falta de sua existência, ela se cala. Teria sido uma palavra-ausência, uma
palavra-buraco, escavada em seu centro para um buraco, para esse buraco onde
todas as outras palavras teriam sido enterradas. o seria possível pronunciá-la,
mas seria possível fazê-la ressoar. Imensa, sem fim, um gongo vazio, teria retido
os que queriam partir, os teria convencido do impossível, os teria ensurdecido a
qualquer outro vocábulo que não ele mesmo, de uma só vez os teria nomeado, o
futuro e o instante. Faltando, essa palavra estraga todas as outras, contaminando-
as, é também o cão morto da praia em pleno meio-dia, esse buraco de carne.
128
Por fim, quando o casal se prepara para ir embora, Lol consegue emitir um som, um
grito insensato, desarticulado, temendo o fim daquela cena, e, quando se vão, Lol
desvanece.
126
DURAS. O deslumbramento, p.35.
127
DURAS. O deslumbramento, p.8.
128
DURAS. O deslumbramento, p.35.
49
A cena do casal dançando sob o olhar de Lol, a articulação desse nó de três”
129
é o
ponto central do livro e insistirá até os momentos finais, mas também depois, nos outros
textos que retomam, mesmo que de maneira parcial e disfarçada, a história de Lol.
Segundo Cleonice Barreto, esse será o lugar onde se estancará a memória de Lol:
Sua memória se reduzirá à percepção visual do par Anne Marie e Michael,
imagem única diante de seus olhos, brilhando de uma luminosidade excessiva
que ofusca tudo mais, inclusive o próprio sofrimento, a dor que não teve como
acontecer.
130
E, em seguida, a mesma autora nos pistas para entendermos a insisncia, a repetição
dessa cena:
Lol é incapaz de nomear o próprio sofrimento e esse espaço em branco inabitado
pela palavra é o ponto de partida da teia verbal que vai se tecer sem cessar nas
bordas dessa ausência.
131
129
A expressão de Três” remete-nos à topologia dos nós amplamente desenvolvida no ensino de Lacan,
em especial ao borromeano apresentados nos seminários 22 e 23, respectivamente, RSI e O Sinthoma.
Com a figura do borromeano (que pode ser pensado no enodamento de, no mínimo, três elos, sendo o
terceiro aquele que conectaria os outros dois), Lacan buscava articular e homogeneizar, mas ao mesmo tempo
criar uma relação entre os três registros, a saber: simbólico, real e imaginário, de modo que cada um deles
teria a mesma importância na manutenção do . Isso significa que qualquer um que fosse rompido
representaria a desconstrução do nó. Essa teoria, além de romper com certa hierarquia dos termos,
possibilitou maior flexibilização e manejo das estruturas clínicas, uma vez que o poderia ser dado de
rias formas, inclusive sendo atado por um quarto termo que foi designado como Sinthoma. Este último
permitiria ao nó manter-se atado mesmo com o desenodamento de um dos termos. É interessante notar que o
recurso ao nó foi uma maneira de escrever a relação entre os três registros, que se dá como uma costura, uma
bordadura, ou seja, uma linha que vai se trançando em torno de um furo (que só pode ser verificado por suas
bordas) e prendendo, amarrando, adquirindo consistência. Nesse sentido, temos, segundo Granon-Lafont, a
seguinte articulação: a linha formando o como consistência, que é imaginária, ou seja, é ela que dá corpo,
que cria certa homogeneidade da figura; o furo, que está situado no ponto mesmo de entrelaçamento e apenas
vivel por sua borda, como equivalente ao simbólico (“furo simbólico no simbólico”) algo que jamais se
saberá, a palavra-buraco, que e em funcionamento o trabalho significante; e a existência, dada pela corda
em si, existente, como o Real. Assim, temos o enlaçamento de três termos heterogêneos, em uma mesma
estrutura (amarração) para constituição do sujeito (Cf. GRANON-LAFONT. A Topologia de Jacques
Lacan.). A partir dessa breve introdução ao estudo da topologia lacaniana, poderemos entender melhor o “nó
de três”, esse gico, desenhado por Marguerite Duras em O deslumbramento. Para Lol, a cena do casal
dançando permitirá atar o que se encontrava frouxo, o corpo da outra mulher substituirá o seu próprio, e
daconsistência a ele. No entanto, no momento que a dança acaba, o casal desaparece, a consequência é o
desatamento do (elo simbólico e imaginário se soltam) e o desaparecimento (morte imaginária e
simbólica) de Lol, que fica entregue ao Real, à deriva, fora do engodo imaginário (porém, necessário) de uma
consistência de corpo, e imersa no furo simbólico. Mais adiante no romance, o que veremos é a nova
amarração que Lol tecerá de seu nó. Este será uma reedição do primeiro, e tomapor seu o corpo de Tatiana
junto a Jacques Hold (atando novamente o elo imaginário aos outros). Isso fará com que Lol dê consistência
ao seu corpo e “volte à vida”.
130
MOURÃO. A deriva do olhar, p.27.
131
MOURÃO. A deriva do olhar, p.27.
50
Pouco após o incidente do baile, Lol se casa com Jean Badford, e vai morar em outra
cidade. vive um longo período, dez anos, de estabilidade. Tem sua casa, marido e dois
filhos, tudo em perfeita organização. Porém, ao retornar para a cidade natal, após uma
promoção do marido, Lol começa a mudar seu comportamento. Vê, na rua, um casal num
encontro amoroso e reconhece, na mulher, sua antiga amiga de infância, Tatiana Karl.
Escuta uma frase que a capta: “Talvez tenha morrido”.
132
A partir de então, institui
passeios diários e passa a seguir, à distância, os encontros desse casal, para olhá-los. Era
apenas isso que queria: fazer parte da cena como espectadora. Assim, a mesma cena do
baile, com novos personagens, se repete: Lol como aquela que olha o casal num encontro
amoroso. Ela gosta de estar nessa cena, pois só assim pode estar viva de novo.
Lol procura a amiga sob o pretexto de retomar o contato, lembrar os velhos tempos, e
conhece seu amante. Inesperadamente, o amante de Tatiana, Jacques Hold, se apaixona por
Lol e deseja ajudá-la a expiar o suposto fantasma do abandono sofrido no passado, para,
então, poder ficar com ela por inteiro (mas isto ninguém podia, não era possível captar toda
Lol, prenunciará Tatiana). Decide, pois, ir com Lol ao mesmo lugar onde se realizou o
baile e, nesse lugar, sem Tatiana como anteparo, ao tentar fazer amor com Lol, ela sofre
nova crise.
Certos fragmentos da cena, do enlaçamento a três, a saber, Lol e o casal, chamam
atenção devido a sua insistência, ao longo do romance, ao seu retorno, como se algo
faltasse e buscasse reconstituir-se pela via da repetição. Contudo, com essa repetição
um esgarçamento, um desgaste, como se a palavra e a cena ressoassem tantas vezes que
rompessem o sentido, se esburacassem. Trata-se de uma cena girando sobre ela mesma,
apoiada num ponto, num centro. o seria aquele centro onde se situa o buraco, deixado
pela palavra que não existe, e para o qual todas as outras palavras seriam atraídas
(enterradas)?
Duras tecerá de modo impressionante, com sua escrita, as bordas desse buraco,
costurando cuidadosamente sua narrativa sem que, no entanto, o buraco seja obliterado.
Em nenhum momento do livro perceberemos o rompimento da lógica da narrativa, embora,
por vezes, o leitor sinta-se um pouco perdido, impactado por frases deslocadas, causando
certa confusão acerca do narrador da história. A linearidade do romance, no entanto, se
132
DURAS. O deslumbramento, p.28.
51
mantém. A narrativa é a ppria linha que vai contornando os buracos, fazendo rendas,
133
dando formas ao vazio, que vai sendo construído intencionalmente.
É-nos avisado, desde o início, para não haver surpresas, quem será narrador: Jacques
Hold. No entanto, o narrador se desloca, mistura-se, e às vezes parece habitar a própria
Lol. Nesse momento, o que temos é uma tal sensação de estranheza que podemos
vislumbrar que falta algo. Por mais que Jacques Hold tente, com sua narrativa,
aparentemente inteira, amarrar, interligar os fatos, dar sentido à história, suturar os furos,
estes insistem.
Em outros momentos, porém, quando a narrativa parece assumir outra identidade a
feminina, que aceita a existência de “um ponto de intradutibilidade que a rememoração
sempre comporta” –,
134
é como se nos fosse possível habitar a memória de Lol, e
ficamos aturdidos, sofremos o efeito de incompreensão. É quando somos surpreendidos
por espaços em branco, por parágrafos extremamente curtos, que parecem estar ali, no
meio da gina, apenas para que o vazio (a falta) das palavras, o buraco, apareçam. São
algumas frases soltas, desarticuladas, que não incomodam por sua brevidade, mas fazem-
nos aproximarmo-nos, ver pelos olhos de Lol, a cena fragmentada:
Ele [Jean Bedford] parou, pegou sua mão. Ela consentiu. Beijou essa mão, tinha
um cheiro enjoado de poeira, em seu anular havia uma aliança de noivado muito
bonita. Os jornais tinham anunciado a venda de todos os bens do rico Michael
Richardson e sua partida para Calcutá. A aliança brilhava intensamente.
135
Ou, em outra passagem, na cena do baile, quando Lol observa o noivo se dirigindo
em direção à outra mulher. Não sabemos de quem é a voz que expressa o desejo de
convidar a dama. Será o pensamento de Micheal Richardson? Será a fala de Lol?
Tinham caminhado para a pista de dança. Lol os tinha olhado; uma mulher de
certa idade, cujo coração está livre de qualquer compromisso, olha assim seus
filhos afastarem-se dela; ela pareceu amá-los.
133
Ana Maria Portugal se refere às rendas como algo do savoir-faire da Mulher com o buraco, com a Coisa
que é “opaca à significação” ou, indo um pouco mais além, seu “saber fazer” com a escrita em torno desse
buraco. Segundo a autora, a renda é “essa peça de artesanato que enfeita as roupas. Peça dispensável do
ponto de vista da utilidade, mas que, uma vez colocada, ‘faz falta que não esteja ali’. E o que é uma renda?
Não mais que uma linha, cordão ou fita que contorna os buracos, fazendo desenhos. Com esse contorno
desfilam-se flores, folhas, arabescos, gregas, uma infinidade de formas, mas o buraco continua lá”.
PORTUGAL. Mulher: da cortadura à bordadura, p.31.
134
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p. 40.
135
DURAS. O deslumbramento, p.20.
52
Preciso convidar essa mulher para dançar.
Bem que Tatiana o tinha visto agir de sua maneira nova, adiantar-se, como no
suplício, inclinar-se, esperar.
136
Essa confusão gera um efeito interessante de amálgama, de entrelaçamento das
personagens, de um agrupamento artificial, que deixa exposta a cola que os une. Ali, não
conseguimos separá-los, pois Tatiana, Lol e o casal de amantes se condensam numa
mesma voz, em um mesmo olhar, numa mesma imagem, e não se distinguem. E é na
junção desses elementos, nesse nó de quatro
137
(e, posteriormente, de três) que a cena se
forma, toma corpo, enquanto poderosa imagem preservada na memória de Lol. O efeito de
enlaçamento imaginário, alcaado pela linguagem durasiana, de solapamento dos corpos
– melhor seria dizer de constituição de corpo – também revela a fragilidade desse arranjo e
a possibilidade de uma fragmentação, a qualquer momento, uma vez que temos
artificialmente fundidos esses quatro elementos.
No entanto, percebe-se nesse livro que o destacamento do sentido não se realiza
apenas quando a linearidade do discurso é rompida, mas também por meio de suas
condensações, seus silêncios, dos buracos e dos vazios no texto. No livro O
deslumbramento, o é o sentido do texto que se perde, provocando efeitos de furo com o
rompimento da articulação entre significante/significado. O que se perde é o sentido de
Lol, uma mulher inexplicável, que não pode ser compreendida, e que nunca está
inteiramente presente, pois onde ela deveria estar o que se encontra é uma ausência, um
buraco.
Lol, nossa heroína, contempla em si, na própria grafia de seu nome na
materialidade do significante que diz ao da letra a palavra-buraco. Ela ppria seria a
palavra com o buraco no meio L(O)L, amparada por suas bordas (L), num equilíbrio frágil,
que pode ser rompido a qualquer momento. Lol está esburacada: falta-lhe uma palavra,
sem a qual o pode se fazer presente como corpo, como consistência. Ficando sem
amarras, o que lhe resta é o buraco.
136
DURAS. O deslumbramento, p.12.
137
É interessante observar que o que se forma inicialmente com quatro elementos (Lol, Tatiana, Michael
Richardson e Anne Marie Stretter), poderá ser lido posteriormente como um nó de três. Isto porque Anne
Marie Stretter poderá ser lida como um duplo de Tatiana: “havia coberto aquela magreza, lembrava-se
claramente Tatiana, com um vestido preto bastante decotado. Com duas sobre-saias de tule igualmente
pretas” (DURAS. O deslumbramento, p.10). Assim, teremos o nó reduzido a três elementos.
53
Portanto, se existe um lugar onde podemos localizar precisa e indubitavelmente o
efeito de buraco, o furo da escrita, esse lugar é Lol. Porém, avancemos com cautela na
construção dessa afirmativa.
Os efeitos de buraco
Aproveitemos a duplicidade semântica provocada pelo ressoar da palavra efeito a
saber: efeito, como aquilo que é produzido, causado; mas também, numa escansão, como o
que é feito, ou seja, aquilo que é constituído por algo –, para pensarmos sobre o lugar
coincidente de Lol com o furo da escritura.
O efeito de buraco pode ser notado sutilmente no contexto do próprio romance, da
história, na qual Lol é arrebatada, retirada da cena, deixando uma vacuidade, uma ausência
para sempre marcada no lugar dessa personagem. Esse buraco se porque resta um
enigma do lado do leitor do qual se escuta apenas a interjeição Ó, saída de sua boca
aberta , que está arrebatado. O que se passou com Lol? Por que ela preferia o lugar do
olhar, ao invés de ser vista? O que faltava a Lol? Onde está Lol? O mais próximo que se
poderia chegar das respostas não passaria de suposições, nunca certezas. Não há uma
explicação para Lol, pois, como disse Lacan, “ser compreendida não convém a Lol”.
138
O que há em O deslumbramento é um efeito de incompreensão, no que concerne a
Lol, essa mulher inexplivel (como a maioria das mulheres!) para a qual não encontramos
palavra que defina, a o ser a ausência.
139
Ausência de significado, ausência de palavra,
ausência de Lol. uma espécie de fuga de sentido no que concerne a essa personagem, a
sua hisria, que se dá na própria forma que Duras trabalha a palavra, as letras com as
quais a escreve. Segundo Kristeva, “não se trata de um discurso falado”, pois nesse
perceberíamos a coerência, a linearidade, “mas de uma palavra superfeita de tanto ser
desfeita”, a ponto de perder o sentido, soar insólita, inesperada e dolorosa.
140
É como se
algo fosse repetido tantas vezes que a palavra repetida (e a história, pois também
138
LACAN. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.203.
139
Em momento nenhum do livro O deslumbramento se propõe um significado para o vivido por Lol, uma
explicação totalizante e apaziguadora. O leitor espera que em algum momento lhe seja revelado algo da
história de Lol que o fará compreender, inequivocamente, as reações da personagem (ela é assim porque...),
mas essa explicação nunca vem. Ao contrário, é no lugar do não-toda compreendida que Lol é intrigante e
desejada.
140
Cf. KRISTEVA. A doença da dor: Duras. Sol negro: depressão e melancolia, p.205.
54
observamos esse efeito na cena que se repete) causasse efeito de estranhamento, de perda
de sentido, levando o efeito de buraco ao lugar de seu significado. Lol – o nome, a cena é
essa palavra. Mesmo que a Jacques Hold ainda reste a esperança de amarrar Lol, suturar
seu furo, apreendê-la ou compreendê-la, isso não terá efeitos: o enigma será mantido.
Contudo, se ainda um lugar no qual o efeito (ou, melhor seria dizer, o é feito) de
buraco far-se-á mais perceptível, este será na palavra Lol. Trata-se de um nome próprio,
cuidadosamente desenhado por Duras, que talvez possa ser lido nos moldes dos
ideogramas chineses, que condensariam significante e significado, abolindo a barra entre
eles.
A partir do que é ensinado pela psicanálise lacaniana, uma hiância ou um
décalage (distância) estrutural entre significante e significado e é isso que permite a
existência de múltiplas possibilidades de leitura.
141
No entanto, o homem ocidental tentaria
insistentemente abolir essa distância, decalcando o significante ao significado. Esse
decalcamento é, em grande parte, responsável pela comunicação e compreensão do que é
enunciado, pois manteria uma correspondência inequívoca entre os dois termos e reduziria
a angústia causada pela falta de significação. Já na cultura oriental, com a escrita do
ideograma – que seria “um conjunto de signos feitos de traços estruturados em torno de um
centro, segundo certas regras, mas com variedades infinitas”
142
seria possível condensar
num traço, numa palavra, ao mesmo tempo o significante e o significado, sem decalcá-los,
pois que essa palavra, esse traço, contemplaria, pela flexibilidade de seus caracteres, e pela
maneira como é constituído, todos os significados possíveis. A palavra traria em si, em sua
grafia, em seu desenho, a própria coisa representada, aproximando-se de uma escrita do
Real. Segundo Fenollosa: “Lendo o chinês não temos a impressão de estar fazendo
malabarismos com fichas mentais, e sim de observar as coisas enquanto elas vão tecendo
seu próprio destino”.
143
Daí a aproximação entre os ideogramas e o nome Lol: esse nome
cujo buraco é feito de letras.
Lol traz o buraco em seu centro (O), seja aquele da palavra que falta, da boca aberta
em um grito mudo, ou mesmo das rendas, das amarras, que ela tenta finamente tecer para
dar forma, contorno, a seu vazio, garantindo consisncia a seu corpo esburacado.
Motivados ainda pelo nome de Lol, poderíamos metonimicamente rumar ao infinito das
141
Cf. MANDIL. Os efeitos da letra, p.134.
142
CHENG. Lacan e o pensamento chinês. In: Lacan, l’ecrit, l’image. Trad. Yolanda Vilela.
143
FENOLLOSA. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia. In: CAMPOS (org).
Ideograma: lógica, poesia, linguagem, p.115.
55
significações que esse traçado provoca, mas acrescentemos apenas mais duas, inspiradas
pelas letras de Erté:
144
o zero, que define a mulher como ausência, como lugar de falta; e
também o movimento circular (O) de Lol, de eterno retorno ao mesmo ponto de partida.
Há ainda na escrita chinesa uma outra característica importante: considerar o som da
palavra também para a constituição de seu significado. Segundo Fenollosa, em seu estudo
sobre esta escrita ideogramática: “ela fala de imediato com a vividez da pintura e a
mobilidade dos sons”.
145
Nesse sentido, também o som do nome de Lol, e as articulações
para pronunciá-lo, remetem-nos ao furo, ao buraco, com o O forçando-nos a abrir a boca,
produzindo e deixando à mostra nosso próprio furo. E ainda podemos ouvir em seu nome,
homofonicamente, a palavra amor (Lol V.: Love), o que se encontra intimamente
engendrado à história da personagem, mas também nos remete à falta, à incompletude, à
busca insistente de fazer o UM e seu eterno fracasso. Afinal, como interpretou Lacan
através da leitura do mito de Poros e Penia (o nascimento do amor), contado por Diotima,
no Banquete, de Platão: “O amor é dar o que não se tem”.
146
Portanto, Lol engaja, numa
escrita arrebatadora do buraco, a imagem – no traçado das letras – e o corpo.
Lol, porém, não é apenas o furo (pois, assim ela não sobreviveria, ou pelo menos não
estabeleceria qualquer laço, não seria possível dizê-la): ela contém o furo. Lol é escrita, é
litoral (e literal) e como tal nos revela os dois movimentos: o do furo, e também o da
borda. Nas bordas de Lol nos deparamos com essas duas muletas nas quais ela se aia, ou
seja, o L das extremidades formaria em seu traçado uma espécie de moldura ao buraco.
Essa moldura, ou L, possuem diversos nomes possíveis: Anne-Marie Stretter, Michael
Richardson, no primeiro momento; Tatiana, Jacques Hold em substituição ao primeiro par.
São esses arranjos que permitem a Lol sustentar-se e adquirir consisncia de corpo e,
assim, existir, enquanto personagem e, mais ainda, enquanto discurso, inserida no laço
social.
Enfim, os efeitos produzidos pela escrita de Marguerite Duras, que traz ao pé da letra
o buraco, o furo, e o bordeja com seus significantes, serão sentidos pelo leitor. Ele sofrerá
junto com Lol o arrebatamento, pela força da letra, e quedará sem fôlego, de boca aberta,
quase desfalecido. Poderá se perder ante os efeitos de buraco causado pela superposição de
sentidos que destacarão, unirão, misturarão os significantes, e os significados, não a ponto
144
BARTHES. Erté ou ao pé da letra, p.97-116.
145
FENOLLOSA. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia. In: CAMPOS (org).
Ideograma: lógica, poesia, linguagem, p.115.
146
LACAN. O seminário, livro 8: a transferência, p.125.
56
de romper a sintaxe (pelo menos não nesse momento), mas provocando uma
desestabilização do sentido, do sentido de Lol. o obstante, o leitor colherá, em seu
próprio corpo, os efeitos de esburacamento da letra, quando ele próprio, em seu movimento
de leitura/fala, será esburacado. E, como diz Kristeva: “coitado do leitor-cúmplice que
sucumbe a seu encanto: ele pode ficar ali [no buraco] de verdade”.
147
O buraco em Amor
Se em O deslumbramento nos deparamos com os efeitos de buraco menos associados
à perda de sentido do texto e mais relacionados à personagem Lol, pela maneira como essa
mulher é escrita, isto é, pelo furo, em Amor
148
esse buraco ou furo se fazem ainda mais
decisivos mesmo que situados em outro lugar, ou seja, no percurso da escrita –, pois a
ordem prosaica é rompida, o sentido é corroído, as palavras assumem tamanha concretude
que ficamos perdidos, sem saber se elas pertencem ao mundo das representações ou dos
objetos, das coisas. A escrita segue pelo caminho de seu desvanecimento, parecendo
atingir o intervalo, o ponto de indefinição (litoral?) situado no entre-lugar, que tem, de um
lado, a representação, e, do outro, a coisa. A escrita retorna ao seu ponto de origem: o furo
característico da linguagem.
Conforme dissemos anteriormente, Amor é um livro limite na obra de Marguerite
Duras, um momento em que ela se arrisca em uma escrita para além do sentido, para além
da sintaxe, para além da escrita. Nele poderíamos ler as ruínas de um outro livro, O
deslumbramento, escrito sete anos antes. Ruína da história, ruína da linguagem, ruína da
palavra, enfim, ruína do amor. Percebemos nesse livro a ação do tempo que passa, que
desgasta, que destrói e deixa seus destroços, e é com eles que nos deparamos: com o resto
da cidade, com o resto da mulher, com os silêncios e os buracos, com o resto das palavras:
a letra.
O tempo que decanta a escrita em direção à letra/resto (letter/litter) deixa seus rastros
impressos nas páginas do livro. Nelas, nos deparamos, frequentemente, com os espaços em
147
KRISTEVA. A doença da dor: Duras. Sol negro: depressão e melancolia, p.207.
148
Nesta dissertação utilizamos a tradução de L’amour (Amor) feita por Paulo de Andrade em sua tese de
doutoramento intitulada Nada do dia se da noite esta passagem: amor, escrita e tradução em Marguerite
Duras, defendida em 2005. Portanto, a paginação se refere à tese e não ao original francês.
57
branco, os vazios dos parágrafos sem sentido, as frases curtas estruturadas em estrofes, tal
como uma poesia que deixa na longa margem branca do papel o lugar de criação para o
leitor imaginativo. as palavras que recheiam, cuidadosamente, a página em branco, são
como “objetos caídos sobre a folha branca”,
149
como observa o teórico e poeta Paulo de
Andrade, e vão tecendo as bordas do buraco. São elas que abrem e margeiam os caminhos
que levam até o rio – aquele que deixa seu traço único, os sulcos, seu rastro, sua “rasura de
traço algum que seja anterior” ,
150
mas também o ultrapassa: “Aqui é S.Talah, até o rio.
(...) Depois do rio é ainda S. Talah.
151
A leitura também convoca as imagens, parece buscar nelas uma ancoragem, uma
maneira de não se perder, de não desaparecer, à medida que se inscreve num plano outro,
virtual. Duras realiza, então, uma escritura das imagens”, de modo que se não nos fosse
dito tratar-se de um livro, poderíamos julgar ler no texto um roteiro de cinema, ou até
mesmo um filme. Um filme ao estilo daqueles de guerra, nos quais, após as explosões, o
que se vê são apenas os destroços, as ruínas, as crateras que restaram das palavras caídas,
sozinhas, sobre a folha branca. Não obstante, Amor, com sua escritura cinematográfica,
possibilita ao texto certa coesão, certa consistência que parece faltar às palavras, criando,
num espaço virtual, um campo onde tentamos, malogradamente, suturar o furo da
linguagem, e encontrar na imagem o sentido até então inacessível pela via simbólica.
Segundo Lacan, “o sentido está no campo entre o imaginário e o simlico. Não podemos
esperar colocá-lo em outro lugar, pois nos limitamos a imaginar tudo o que pensamos”.
152
Contudo, nem sempre esses campos estão amarrados propriamente, ocorrendo, por vezes,
desse estar frouxo, ou mesmo solto, e o sentido não se fixar. É o que verificamos na
escritura de Marguerite Duras, que expõe a insuficiência do simbólico, da linguagem (a
fissura entre significante e significado), e convoca os outros sentidos olhar, voz,
pensamento para nos arremessar para além deles. A autora lança o leitor para fora do
texto, ao espaço virtual próprio do imaginário também insuficiente onde as imagens
são constituídas em busca de um sentido para sempre perdido. Assim, Duras, de maneira
surpreendente, por meio da escrita, produz e dirige um filme projetado na memória e no
imaginário do leitor. Porém, essa escritura que é também imagem, texto, voz, olhar, não
mantém esses elementos enodados, produzindo uma unidade. Ao contrário; preserva a
149
ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.11.
150
LACAN. Lituraterra. In: Outros Escritos, p.21.
151
DURAS. Amor, p.40-41.
152
LACAN. O seminário, livro 23: O sinthoma.
58
autonomia de cada um deles, sua disjunção, caminhando em busca da depuração, da
constituição de uma economia significante voltada para o mínimo, mas essencial, uma
escritura livre do relato e até mesmo da imagem”.
153
Em Amor, a escrita preserva em seus traços, o mínimo necessário para continuar
sendo escrita. Ou como observa a própria Duras: uma escrita da não-narrativa. (...). Um
escrita breve, sem gramática, uma escrita de palavras sozinhas. Palavras sem apoio de uma
gramática. Extraviadas. Ali, escritas. E logo deixadas de lado
154
. A escrita segue o
caminho rumo à sua origem, ao seu ponto de partida, em direção à letra esse objeto
mínimo da palavra, feito de combinações de algumas retas e de algumas curvas”
155
que
bordejam, contornam o buraco da palavra, o furo próprio da linguagem.
Talvez o que se almeje nesse texto seja atingir uma escrita “que não seria do
semblante”,
156
isto é , uma escrita da letra, ou seja, que não seria a da representação, mas
que pudesse tocar, de alguma maneira, a própria coisa, o Real.
Os efeitos de nomeação: o buraco
Diferentemente de O deslumbramento, livro no qual verificamos a importância e os
efeitos da nomeação – e considerando que nomear é consentir em afastar-se da coisa –, em
Amor segue-se o anonimato das personagens, que o se prestam à nomeação, que não se
encerram em um nome próprio, rejeitando o caráter ficcional (representativo) da
linguagem.
157
Elas estão aquém (ou além?) do nome. As personagens são descritas o
viajante, a mulher e o louco que caminha e, muitas vezes, são designadas apenas pelos
pronomes pessoais Ele e Ela –, que se multiplicam ao longo da obra. Mesmo que essa
descrição/designação se assemelhe à nomeação, os efeitos provocados são diversos, pois
não determinam o sujeito de quem se fala. Ao contrário, lançam o leitor num circuito de
indeterminação, de transitoriedade. Isso porque é dada às personagens a possibilidade de
153
GUIMARÃES. Imagens da memória, p.214.
154
DURAS. Escrever, p.63.
155
BARTHES. O espírito da letra. O óbvio e o obtuso: Ensaios críticos III, p.93-96.
156
Faço aqui uma referência ao Seminário 17 de Lacan, intitulado: “De um discurso que não seria do
semblante”, no qual Lacan discute a possibilidade de se atingir a Coisa através da linguagem, que em sua
origem e finalidade seria da ordem da representação.
157
Segundo Derrida, um nome verdadeiramente próprio é aquele que indica “sem ambiguidades e sem
recorrer ao circuito das significações um indivíduo concreto”. DERRIDA citado por MANDIL. Os efeitos da
letra, p.197.
59
alternarem seus papéis, dependendo do momento e do lugar em que se encontram no
triângulo constituído
158
por Duras. O que se nomeia não são as personagens, mas suas
posições nesse polígono, que tem em seus vértices: o olhar, o não-olhar e aquele que
caminha (o movimento, a passagem). Portanto, as personagens transitam: às vezes trata-se
daquele que caminha, às vezes do olhar, e, em outras, da ausência desse olhar. Esse é o
procedimento adotado por Duras que permite a alternância dos lugares, adança das
personagens”.
Observemos esse movimento, seguindo o louco que caminha:
O homem que caminha não olha, nada, nada senão a areia diante dele. Sua
marcha é incessante, regular, longínqua. (p.29)
Mais adiante, no próximo vértice, temos o olhar:
O homem que caminha.... Ele pára. Volta-se, vê, tamm ele olha, espera, olha
novamente, parte, vem. (p.37)
Seguindo um pouco mais, o encontraremos no próprio lugar da ausência do olhar:
Ele chega. Pára em frente àquele que está encostado no muro, o viajante. Seus
olhos são azuis, de uma transparência esmagadora. A ausência de seu olhar é
absoluta. (p.37 grifo nosso)
Nesse seu trajeto de caminhante, a personagem passa por cada um dos vértices do
triângulo construído, propositadamente, pela autora. Um triângulo que se forma, se
deforma, se reforma, sem se quebrar jamais”.
159
O mesmo movimento será feito por aquele que a escrita se propõe nomear: o
viajante. Contudo, nomeia-se sem evocar um nome próprio, que daria ao ser nomeado uma
maior concretude, particularidade, enfim, uma identidade.
158
Duras propõe, ao modelo de um matema lacaniano, um triângulo em que cada vértice poderíamos
localizar uma posição representando determinada função –, e um elemento que a ocupa originariamente,
mas que não é fixo, podendo alternar-se. Assim temos, nas posições, os seguintes elementos: a posição do
olhar (viajante), a do caminhar (louco), a da ausência do olhar (mulher). Essas posições determinam uma
função, independente de quem a ocupe. Temos uma variação das posições pelas personagens em cada
momento do texto: eles transitam pelos vértices do triângulo. Portanto, não é um nome que as determina, mas
a posição que ocupam nesse circuito.
159
DURAS. Amor, p.29.
60
Nomearemos esse homem o viajante se por ventura for necessário devido à
lentidão de seu passo, à perdição de seu olhar.
160
O nome, nesse caso, não decalca a coisa. Aos moldes da letra, do símbolo, ele é
reversível, vel, evanescente. Passa-se, então, do estatuto de nome próprio para o de
nome comum aquele que circula, não designando univocamente um ser, ao contrário,
permite formarem-se, metonimicamente, várias articulações significantes em torno desse
nome. Dessa forma, o viajante será, em alguns momentos, um homem que olha, em outros,
poderá ser qualquer um, um sujeito indeterminado.
Poderíamos ainda dizer que a narradora, mesmo o atribuindo à personagem um
nome próprio, acrescenta-lhe detalhes, características exclusivas àquele indivíduo. No
entanto, isto não procede. A explicação atribuída à nomeação nada explica, não fornece
qualquer especificidade daquela personagem. Ao contrário, fornece qualificações comuns a
todas elas “lentidão de seu passo”, “perdição de seu olhar”. Portanto, temos novamente a
personagem transitando entre os vértices do triângulo.
O viajante tem, como lugar original no vértice, a posição de olhar (coincidente com o
pensamento, com o cogito):
Um homem.
Ele está de pé, ele olha: a praia, o mar.
(...)
Ele não se move. Ele olha. (p.28)
Porém, mais adiante, ele caminha:
O passo recomeça.
Irregular, incerto, ele recomeça.
Ele pára, agora.
Recomeça agora.
O homem que olhava passou. (p.32)
Em um dado momento, ocupa a posição do não-olhar:
Deixa de olhar o que quer que seja, a praia, o mar, o homem que caminha, a
mulher de olhos fechados.
160
DURAS. Amor, p.34-35.
61
Por um instante ninguém olha. Ninguém é visto. (p.32)
No vértice que designamos como a ausência do olhar, encontra-se a mulher. É
interessante o fato de ser uma mulher a ocupar esse lugar. Inicialmente, porque o lugar do
não-olhar (não ver) é, precisamente, aquele do olhar, tal qual designado por Lacan, em que
na “nossa relação com as coisas, tal como constituída pela via da visão e ordenada nas
figuras da representação, algo escorrega, passa, se transmite, de piso para piso, para ser
sempre nisso em certo grau elidido”.
161
Ou seja, o lugar do olhar não é coincidente com o
do ver, não se apreende pela imagem nem pelo pensamento, que estes pressupõem a
interferência do Outro, uniformizando, designando e determinando o que é visto. O olhar é
o lugar onde podemos nos despojar do Outro, criar nossas pprias representações, sendo,
portanto, o lugar da indeterminação, da mancha, do objeto que falta (a) e que, por isso,
desliza por diversos objetos. Segundo Lacan,
o olhar pode conter em si mesmo o objeto a (...) o olhar, enquanto objeto a, pode
vir a simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração, e que ele é
objeto a reduzido, por sua natureza, a uma função puntiforme, evanescente
(...).
162
Ademais, esse lugar negativo (no sentido da não existência) também é o lugar d’Ⱥ
mulher (ou de Deus), aquela a qual falta algo que a defina, que a capte inteiramente e a
aprisione no interior de uma representação. Poderíamos, ainda, fazer equivaler esse lugar a
Lol aquela a quem não convém a compreensão agora, em Amor, sem nome, designada
apenas por mulher, de quem o viajante diz:
Objeto do desejo absoluto, diz ele, sono da noite, a esta hora em geral, onde
quer que ela esteja, aberta a todos os ventos – ele pára, retoma – objeto de
desejo, ela é de quem a quiser, ela o porta e o embarca, objeto do absoluto
desejo. (p.71-72)
Embora seja a posição do não-olhar que convenha à mulher, ela também circula nos
outros vértices do triângulo, como podemos acompanhar, a seguir, sua trajetória.
Primeiro, no lugar do não-olhar:
161
LACAN. A esquize do olho e do olhar. O seminário, livro 11, p.74.
162
LACAN. A esquize do olho e do olhar. O seminário, livro 11, p.77.
62
O triângulo se fecha com a mulher de olhos fechados. (p.29)
Segundo, a encontramos no vértice do olhar:
Ela abre os olhos. Ela o vê, olha. (p.35)
Depois será, também, aquela que caminha:
Ela se levanta, segue-o. Seus primeiros passos são titubeantes, muito lentos.
Depois se equiparam.
Ela caminha. Segue-o. (p.41)
Enfim, constituir um nome pprio significa inserir a coisa ou pessoa nomeada no
circuito da linguagem, da determinação, da representação. Mas parece que o objetivo de
Duras não era esse: ela buscava uma escrita para além do nome (ou seria aquém dele?),
para além daquilo que fixa o significante e determina um sujeito. Duras propõe uma escrita
sem sujeito d o risco de perder-se –, uma escrita que encontra na palavra, no
significante, não seu repouso, sua fixação, mas a possibilidade de ultrapassá-la, retornando
à sua origem, ao traço da letra. Traço este que, ao mesmo tempo em que delimita um
contorno, uma borda, expõe o furo, o próprio buraco da linguagem.
A escrita, a partir de um processo de decomposição, de esgarçamento no seu estranho
movimento de retorno, despojando-se de suas vestes, da maquiagem, dos excessos, fica
nua, conforme revela Duras: “A escrita vem como o vento, nua, é de tinta, a escrita, e passa
como nada mais passa na vida, nada, exceto ela, a vida”.
163
Preserva-se da escrita o som,
um ruído (anterior à linguagem), o traçado da letra.
Segundo a alise de Paulo de Andrade, em sua tese de doutoramento, em Amor o
uso abusivo dos pronomes pessoais que ao invés de ajudar o leitor a precisar o referente,
o desorienta, laa-o numa vacuidade, provocando um efeito que poderíamos nomear
como uma “quase despersonalização” , assinala o caráter mais musical que semântico da
escrita durasiana.
164
Essa musicalidade, esse ruído emitido em Amor, anônimo, repetitivo,
parece nos revelar o aspecto gozoso dessa lalação, do balbucio de quem experimenta a
língua sonora e corporeamente.
163
DURAS. Escrever, p.48.
164
ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.23.
63
Essa não seria a definição da lalangue lacaniana? Ou seja, uma pré-linguagem, uma
linguagem aquém do verbo, da sintaxe, que não busca um sentido e que porta em si a
pulo, o gozo dos sentidos corporais, da voz, do olhar?
165
O mais interessante é que esse
efeito é atingido à custa de uma obediência exagerada às regras gramaticais, à lei, o que
poderia soar bastante paradoxal, não fosse o fato de sabermos, com Lucia Castello Branco,
que “não como escrever o silêncio, a lacuna, a assimbolia, a não ser simbolizando-os,
tornando-os matéria de linguagem”.
166
Portanto, usa-se a lei, a língua do pai, para escrever-
se fora dela.
Duras, em sua escrita, resgata uma língua materna, mais pxima do registro do Real,
deixando à mostra o fragmentado, o incompleto, o buraco. Porém, essa língua está
modulada pelo registro do pai, da gramática, da lei. A autora utiliza-se da lógica fálica (das
regras e normas) para revelar, precisamente, o que está para além dela, o que escapa à
representação, à lógica. Enfim, uma escrita que nomearemos, em consonância com Lucia
Castello Branco, de feminina.
O feminino revelado pelo que não se lê
Por arrebatamento entendemos, em português, em consonância com o Houaiss,
“puxar, levar com força, arrancar”, mas também “raptar, sequestrar”.
167
De fato, pode-se,
perfeitamente, ler Lol a partir desse ponto do rapto, do sequestro, ou mesmo encontrar
neste ponto o sentido da experiência do leitor ao ser surpreendido e enlaçado na trama de
Lol. Todavia, a palavra francesa ravissement nos revela um “a mais de sentido” que muito
nos interessa.
168
Segundo o Larousse, ravissement deriva de ravir, que teria em sua
acepção teológica o sentido de “ser transportado fora de si pela contemplação”, “ação de
elevar uma pessoa...”, ou “encantar” e, ainda, “êxtase”.
169
Nessa direção, somos remetidos
às místicas e suas experiências de êxtase, seus encontros com o divino, ou ao gozo Outro
165
Cf. CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p.88.
166
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p.86.
167
HOUAISS. Dicionário da língua Portuguesa, p.298.
168
Também podemos encontrar este sentido na língua portuguesa, em consulta ao Houaiss, arrebatar:
“experimentar sensação de êxtase, enlevar-se, maravilhar-se”, porém achamos importante ressaltar o francês
por ser a língua originária do texto.
169
LAROUSSE. Dictionnaire de la langue française.
64
d’Ⱥ Mulher, abordado por Lacan. Portanto, encontramos, ainda, um outro efeito de buraco:
o impossível de dizer. Desta vez, porém, no campo do escritor.
Em seu seminário 20, Lacan afirma sobre a dificuldade em se tirar algo das mulheres
sobre esse gozo Outro, pois, sobre ele, as mulheres e os místicos nada sabem dizer. Esse
gozo está para além da compreensão, da cognição, ele está do lado da experiência, de um
savoir-faire. Lacan afirma que “o testemunho essencial dos místicos é justamente o de
dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele”.
170
O autor conta, em outro
momento de sua obra, que (...) Marguerite Duras me fez saber por sua própria boca que
não sabe, em toda sua obra, de onde lhe veio Lol (...)”,
171
dando certo testemunho de seu
gozo. Sabe-se, todavia, que esse gozo Outro se localiza para além da linguagem, da
transmissibilidade, do verbo. Talvez possamos encontrá-lo, então, nos vazios, nos
silêncios, naquele buraco onde a palavra falta, na palavra-buraco, revelada por Duras, por
meio de Lol, assim:
Essa palavra que não existe e que, no entanto está aí: espera você a uma volta da
linguagem, desafiando-o, nunca adiantou erguê-la, fazê-la surgir fora de seu
reino perfurado de todos os lados (...).
172
Decididamente, Marguerite Duras não se situa do lado da mística, no sentido de
dirigir-se ao exterior, elevar-se, num encontro com o Outro/Deus. Porém seu escrito “ex
siste”, coloca-se fora, ou de fora da questão da comunicação, num ponto de real, de vazio,
de silêncio, aquele em que se encontra L(o)l, com o buraco no meio, diante da palavra que
não existe. um ponto de incomunicabilidade na escrita de Duras, daquilo que só se toca
a partir da experiência e, certamente, esse ponto da escritura que aponta o vazio (em torno
do qual a obra se constrói, borda), é aquele cujas pretensões ex trapolam, ou seja, se
colocam fora do âmbito da compreensão. Sua escritura visa um mais além, “uma prática de
gozo, ligada às profundezas pulsionais do corpo e às produções mais sutis da arte”.
173
Assim, ao pensarmos na escritura como prática de gozo, não poderíamos deixar de
incluir também a leitura como parte nesse processo. o é sem razão que Lacan, em seu
texto “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein”, afirma que
somos nós, leitores, os arrebatados.
170
LACAN. O seminário, livro 20: mais, ainda, p.103.
171
LACAN. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.200.
172
DURAS. O deslumbramento, p.35.
173
MANDIL. Os efeitos da letra, p.152.
65
Conforme explica Barthes e, na mesma direção, Derrida,
174
a escritura não poderia
ser pensada separadamente da leitura sob risco de transformarmos a teoria literária em
“teoria da expressividade, do estilo, da criação ou um canto à linguagem como
instrumento”.
175
Barthes propõe que ao leitor o seja designado apenas o lugar de “primo
pobredo escritor, como se o autor fosse o proprietário eterno da obra, e s, seus
leitores, simples usufrutuários”,
176
mas que a ele, leitor, seja reservado um papel mais
ativo, certa autoria sobre o texto, pois ele também participa dessa escritura.
Barthes, no seu texto sobre a leitura,
177
deixa claro que a leitura é da ordem da
experiência bem como o gozo que se acessa. Lê-se com o corpo, e os efeitos dessa leitura
são sentidos sobre esse mesmo corpo: chora-se, ri-se, angustia-se, arrebata-se durante uma
leitura. A leitura, sem dúvida, afeta o legente,
178
por isso Barthes declara tratar-se de uma
aventura, referindo-se ao prazer (ou, às vezes, gozo) vindo ao leitor por meio da obra. E
ainda acrescenta:
a leitura é condutora do desejo de escrever (...); não é, de modo algum, desejar
forçosamente escrever como o autor cuja leitura nos agrada; o que desejamos é
simplesmente o desejo que o scriptor teve de escrever, ou ainda: desejamos o
desejo que o autor teve do leitor quando escrevia, desejamos o amar-me presente
em toda escrita.
179
É em torno da experiência, da experiência de prazer/Gozo, que se encontram escritor
e leitor, amalgamados, inseparáveis, por mais distantes que estejam. Em cada escritor
reside um leitor, que é ele próprio e outros, como afirma Duras sobre essa aproximação
“(...) ler nossa própria escritura, esse primeiro estado de nosso escrito ainda indecifvel
para os outros”.
180
Da mesma maneira, em cada leitor existe um escritor do texto que se
está lendo, pois a cada leitura um novo texto é produzido, um texto bem particular.
Vale lembrar, contudo, que alguns textos, algumas obras, entre elas a de Marguerite
Duras, não são compostas apenas por letras e frases legíveis, organizadas sintaticamente e
174
Derrida afirma, em A farmácia de Platão, que “se há uma unidade da leitura e da escritura, como hoje se
pensa facilmente, se a leitura é a escritura, esta unidade não designa nem a confusão indiferenciada nem
identidade de todo repouso; o é que une a leitura à escritura deve descosê-las”. DERRIDA citado por
MANDIL. Os efeitos da letra, p.173.
175
MANDIL. Os efeitos da letra, p.154.
176
BARTHES.O rumor da língua, p.28.
177
BARTHES.O rumor da língua, p.33.
178
Palavra cunhada por Maria Gabriela Llansol para referir-se ao leitor de sua obra, sem perder o aspecto
dinâmico e ativo desse processo da leitura.
179
BARTHES.O rumor da língua, p.36.
180
DURAS. A vida material, p.27.
66
visando à comunicabilidade, à transmissão. Elas se situam no para além da mensagem, do
sentido. São da ordem do pas-à-lire, isto é, daquilo que não se dá a ler, mas que ao mesmo
tempo revelam o além da leitura, o passo-a-ler, que está logo ali, “a uma volta da
linguagem”. Segundo Mandil, é “somente ao abandonar a idéia de escritura como
écrivance, como simples transcrição de mensagens, é que se pode depreender seu valor de
gozo”.
181
Ou seja, quando o sentido é retirado da escritura o que permanece é o corpo, o
gozo do corpo.
Neste sentido, Barthes elabora a distinção entre “texto de prazer” e “texto de gozo”.
Para este autor, o texto de prazer seria aquele “que contenta, enche, dá euforia; aquele que
vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura”,
enquanto o texto de fruição (gozo) é aquele que
põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz
vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus
gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com
a linguagem.
182
Ainda que não nos interesse fazer dessas categorias uma classificação dos textos
durasianos, podemos localizá-los, sem grande dificuldade, do lado da fruição, do gozo,
daquele gozo Outro dȺ Mulher intransmissível, impossível de dizer e, apenas,
experienciável , seja do lado do autor que, por vezes, não sabe o que diz/sente, seja do
lado de leitor que sofre as consequências dessa leitura. Assim, embora autor e leitor
estejam unidos em um bloco, inseparáveis, eles não são, necessariamente, coincidentes,
permitindo, portanto, que se leia o impossível de se escrever e se escreva o impossível de
ler. Isto se dá porque a escritura sempre nos remete a um “para além da escritura”, seja
pelo processo de leitura, feita nos silêncios, nos buracos (que estão além da letra, da
linguagem), seja pela própria escrita, que revela aspectos, por vezes, inapreensíveis até
mesmo ao escritor, pois este nem sempre é leitor de sua obra, nem sempre sabe daquilo que
escreve, só sabe que escreve.
Duras, em sua escrita feminina, vai tecendo suas bordas, bordaduras da escrita,
colocando o leitor sob seu fio, seu traço de letra que contorna o vazio, o buraco, deixando o
181
MANDIL. Os efeitos da letra, p.155.
182
BARTHES. O prazer do texto, p.20.
67
leitor entregue a vertigens, revelando o que o se lê, mas que provoca efeitos. E desses
efeitos podemos dar nosso testemunho: somos todos arrebatados.
68
III
BO RD A D U R AS : O V A ZIO Q UE SE E S C RE V E
Para começar, o autor se pergunta
que silêncio é esse ao redor de si.
M. Duras, Escrever.
Silêncio.
Eis que as primeiras palavras se formam.
Como falar do vazio senão a partir de seu preenchimento, da criação, da borda?
Fomos raptados, elevados, subimos ao u, e agora a queda se apresenta. Se não
sucumbirmos, o passo seguinte é a criação. Estamos perigosamente no limite, porque é
paraque a experiência de leitura dos textos durasianos nos leva.
Este é o movimento da criação: se por um lado o que encontramos é o silêncio, o
vazio, o branco, é também que a palavra surge: contornando-o, contendo-o, fazendo
aparecer algo, suas bordas. É a partir do vazio que se introduz a perspectiva de seu
preenchimento. É a partir do branco, mais propriamente, da folha em branco, que o traço se
instaura e que ao homem é concedido “ser o artesão de seus suportes”,
183
de seus
significantes, da linguagem. Essa é a aposta da escrita.
Segundo Lacan, o homem, por via da modelagem dos significantes, tem acesso a
representações da Coisa, sem de todo tocá-la. A Coisa é apresentada em seu ensino como a
“existência do vazio no centro do Real”,
184
o que significa dizer que há, no homem, um
vazio estrutural do qual todos padecem. Esse vazio, o sentimos como perda e, de fato, algo
foi perdido (recalcado) para sempre (parcela de gozo),
185
mas o sabemos a partir dos
reencontros com outros objetos que nos rememoram essa perda. Esse objeto é, sempre, um
objeto “reachado”, mas nunca encontrado. Isso não nos impede de continuar procurando
183
LACAN. Da criação ex nihilo, p.150.
184
LACAN. Da criação ex nihilo, p.153.
185
Inicialmente, poderíamos pensar a criança e sua mãe como uma unidade, encerradas em si mesmas,
alienadas, indiferenciadas numa relação de satisfação completa a qual poderíamos chamar de gozo totalizante
(quantidade excessiva de prazer). Para adentrar-se no mundo simbólico da linguagem é necessária a
intervenção de um terceiro: do nome-do-pai, da lei, sobre o desejo da mãe, no sentido de promover uma
separação entre ela e seu bebê. Para que isso se dê é exigido ao sujeito abrir mão de algo, de uma parcela de
gozo de parte daquela quantidade de satisfação proporcionada pela ilusão totalizante da simbiose com a
e –, submeter-se à lei do pai, ou seja, consentir a castração, a incompletude, a falta originária, o fato de
nunca podermos dizer tudo.
69
um objeto que possa preencher esse espaço, esse vazio, e nos levar em direção ao que
Freud chamou de princípio do prazer,
186
ou seja, ao equilíbrio homeostático do aparelho
psíquico.
Só é possível acessar o vazio situado no meio da Coisa via outras coisas, pois,
segundo Lacan: (...) esse vazio, tal como ele se apresenta na representação, apresenta-se
efetivamente como um nihil, como nada”.
187
Portanto, a única forma de conceber a Coisa é
via outras coisas, outros objetos que a representem, que a tangenciem, mas que não serão,
nunca, a Coisa.
Esses outros objetos alocados no lugar da Coisa revelam um movimento paradoxal
próprio, que se alterna entre a presença e a ausência, criando uma espécie de miragem da
Coisa, de anamorfose,
188
em cujo processo o objeto aparece e some, mas deixa a marca do
vazio que sempre estará ali. E, quando o objeto aparece, ou melhor, é criado, a sensação é a
de que se está sobre alguma coisa, um vazio, e aquele objeto não é mais do que uma
representação daquilo que não se encontra mais ali. Segundo Lacan, “um objeto pode
preencher essa função que lhe permite não evitar a Coisa como significante, mas
representá-la na medida em que esse objeto é criado”.
189
186
Freud propôs o termo princípio do prazer pela primeira vez em seu texto “Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental” (1911) em oposição ao princípio de realidade. O princípio de realidade
estaria relacionado, inicialmente, às necessidades internas, tais como fome, sede, dor, etc. Posteriormente,
este seu conceito foi ampliado para a realidade e exigências impostas pelo mundo externo. Segundo Lacan, o
princípio da realidade estaria associado, sobretudo, aos processos da consciência e da pré-consciência, posto
que seria da ordem do discurso refletido, articulável. Já com o termo princípio do prazer, Freud quis designar
o esfoo que o homem faz em direção a evitar o sofrimento, a buscar sempre o prazer, “a manter a atividade
psíquica afastada de qualquer evento que possa causar desprazer” (p.278), reduzindo a tensão do aparelho
psíquico. O princípio do prazer, para Freud, “é uma tendência que opera a servo de uma função, cuja
missão é libertar inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a quantidade de excitão constante
nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível.” (p.83). O princípio do prazer, para Lacan, funcionaria, pois, do
lado do inconsciente, uma vez que está associado à ficção criada pelo sujeito para orientar-se em relação ao
mundo real (processo do pensamento/ao imaginário) e, por conseguinte, articulada ao desejo (LACAN. Das
Ding. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise, p.64)
187
LACAN. Da criação ex nihilo, p.153.
188
A anamorfose nas artes plásticas, segundo o Houaiss, é: representão de uma figura (objeto, cena, etc)
de maneira que, quando observada frontalmente, parece distorcida ou mesmo irreconhecível, tornando-se
legível quando vista de um determinado ângulo, a certa distância, ou ainda com o uso de lentes especiais ou
de um espelho curvo”. Na ótica, trata-se da deformação de uma imagem obtida por um sistema ótico que
permite variação da ampliação transversal relativamente à ampliação longitudinal”. HOUAISS. Dicionário
Houaiss da língua portuguesa, p.203. Lacan lançou mão do conceito de anamorfose na ótica, bem como de
seus exemplos nas artes psticas, para tratar da imagem, mais propriamente da cisão da visão entre a imagem
e o olhar. Para esse teórico, o olhar estaria mais próximo daquilo que não vemos, do não-olhar, do invisível.
Seria como a primeira “mancha de onde deriva o radar”, aquela semelhante ao quadro dos Embaixadores de
Holbein: uma espécie de fantasma (ou uma mancha estranha) que traria, simbolicamente, a dimensão da falta.
Isso porque a imagem apresentada está ali distorcida, está num jogo de presença e ausência. a imagem
estaria mais associada ao visível, àquilo que se oferece à visão no espetáculo do mundo. LACAN. A
anamorfose, p.79-89.
189
LACAN. Da criação ex nihilo, p.151.
70
O significante está inserido na ordem simbólica, e é entendido, pela psicanálise
lacaniana, de modo bem sintético, a partir de duas indicações: a primeira se refere àquilo
que “representa o sujeito para outro significante”.
190
Ou seja, trata-se de um elemento, de
uma representação simbólica organizada em uma cadeia (S
1,
S
2,
Sq) e, sendo possível
coletivizá-lo, isto é, compartilhá-lo ao nível de fazer laços entre os indivíduos, permite a
articulação de um discurso.
191
Por via do discurso, nos intervalos entre seus significantes
(conhecidos desde Freud como os lapsos, mal-entendidos, escansões, entre outros), faz-se a
“representação” do sujeito do inconsciente a outro significante.
A segunda indicação propõe que o significante é “aquilo que tem efeito de
significado”.
192
Essa assertiva, antes de marcar uma conexão entre esses dois termos,
aponta para o que os difere, para a barra que os separa. Embora a tendência do significante
seja repousar sobre os efeitos de significado e buscar ali a estabilidade e uma certa
harmonia, o que se nos apresenta é que esta relão é, para sempre, conflituosa, instável.
Isso porque “o significante se coloca como o tendo nenhuma relação com o
significado”,
193
uma vez que o significado também nada tem a ver com o que o causa, ou
seja, com o Real. O que quer dizer que o significante pretende representar o real
conectando-se a um significado, pois espera que, desse modo, se tenha um retrato fiel do
real, do objeto. Porém, verificamos o quão falaciosa é essa acepção, uma vez que a
conexão entre esses dois termos é sempre falha e não garante a fidelidade ao objeto, pois
este já foi perdido no momento mesmo de sua nomeação.
Sendo assim, enquanto o significado tem a ver com o que se lê, é efeito da
manipulação e articulação dos significantes, o significante está mais próximo dos
caracteres tipográficos, da materialidade da letra e, portanto, tem a ver com o que se ouve e
com o que vem rechear o significado, ou seja, seus efeitos de significância. Em resumo, os
significantes o um modo que o humano encontrou de aproximar-se e lidar com o vazio
central da Coisa pela via da representação. Ou, dito de outra maneira, “os significantes vão
demonstrando sua falta de essência, a falta-a-ser do sujeito que se diante do puro
nada”.
194
Dessa forma, a escrita, como modelagem dos significantes (ao pé da letra), pode
190
LACAN. O seminário, livro 20: mais ainda, p.68.
191
Por discurso entendemos a articulação entre significantes e significados para se estabelecer a
comunicação, no entanto, consideramos que esta articulação preserva sempre um impossível, pois há sempre
a barra entre os dois termos (S/s).
192
LACAN. O seminário, livro 20: mais ainda, p.29.
193
LACAN. O seminário, livro 20: mais ainda, p.42.
194
PINTO. Há algo novo no amor, p.85.
71
ser uma das maneiras de representação da Coisa, que esta não pode ser atingida senão
via outras coisas, via significantes.
Na tentativa, ainda, de elucidar essa articulação entre significante e a Coisa, Lacan
propõe a metáfora do vaso como o primeiro significante modelado pelo homem. O vaso
instaura o vazio e, consequentemente, a possibilidade de preenchê-lo. Lacan utiliza-se da
imagem do oleiro que, com suas os, funda o vazio, tal qual o criador mítico,
195
ex nihilo, a
partir do nada, do furo, e institui-se algo do humano o significante. Assim, pelas os do
oleiro, é possível atribuir ao vaso outra representação para além do utensílio doméstico. Essa
mudança de relão com o objeto se no momento do desenvolvimento humano em que os
homens percebem que algo para além deles, maior, mais abrangente (podemos nomear esse
além como linguagem, embora alguns prefiram “Deus”); quando os homens passam a acreditar
que são criaturas divinas e almejam contato com essa divindade, tal como ocorria nos rituais
primitivos; quando começam a significar seus objetos. Nesse instante, a modelagem do vaso
adquire outra conotação: ela deixa de ser, simplesmente, o entalhe de um utensílio, de um
objeto funcional, para assumir seu valor significante. Assim, finalmente, o homem insere-se no
registro simbólico, passando a ser regido por ele. O vaso passa a ser, eno, a representação da
conexão do homem com seu criador.
Desse modo, o vaso articula-se a um significado subjetivo e coletivizado, a um
discurso (inserido nos rituais coletivos, permitindo a instituição dos laços sociais), ao ser
tomado em sua dupla orientação, conectando essencialmente o céu (divino) para o qual
aponta uma das extremidades do objeto, e a terra (humano), onde situa sua base. Ou,
segundo a concepção de Heidegger citado por Lacan: “para cima para receber, em relação
à terra da qual ele eleva alguma coisa”.
196
Portanto, o oleiro, em seu ofício, constrói um
objeto, constrói o próprio vazio, e, desse modo, cinge a Coisa, a bordeja, sem de todo tocá-
la, domesticando-a apenas.
É no próprio lugar do oleiro que encontramos os artistas e os escritores, artesãos de
significantes. Esses sujeitos conseguiriam estabelecer uma relação diferente com a Coisa e,
195
Por criador tico entende-se o que chamamos correntemente de Deus, o Criador, que, a partir do nada,
criou o mundo, os homens e contemplou sua criação no último dia. Lacan faz coincidir o lugar de Deus com
o do Outro, isto é, com o da linguagem e seus significantes, uma vez que estes se fundam sobre o vazio, o
nada, sobre a ausência da coisa. Para Lacan, “o outro, o Outro como lugar da verdade é o único lugar, embora
irredutível, que podemos dar ao termo ser divino, Deus, (...) para chamá-lo por seu nome. Deus é
propriamente o lugar onde (...) se produz o deus-ser o deuzer o dizer. Por um nada, o dizer faz Deus ser.
E enquanto se disser alguma coisa, a hipótese Deus estará aí”. (LACAN. O seminário, livro 20: mais ainda,
p.62). Daí convém lembrar o que a Bíblia revela: que “No início era o verbo”, ou seja, a ausência, o vazio, a
palavra. (João O 1: 1. O evangelho segundo São João. Bíblia Sagrada).
196
LACAN. Da criação ex nihilo, p.151.
72
ao invés de procurar objetos que a velariam de uma vez por todas, eles criam certos objetos
que preservam o vazio no centro da Coisa, revelando-nos seus contornos. Lembremos,
pois, a célebre frase de Picasso, citada também por Lacan: “Eu o procuro, acho”. É nisso
que consiste a criação em sua vertente sublimatória, isto é, não se trata mais de procurar
um substituto, mas de encontrar-se com esse vazio no centro do Real: a Coisa.
Marguerite Duras, ao invés do vaso nos deu a escrita, esta que nos arrebata, nos lança
para fora, para o vazio, numa outra relação com a linguagem, esta que nos “mantém em
contato com o humano (...) embora, justamente, o humano nos escape”.
197
Duras nos
apresentou sua palavra-buraco, aquela palavra que falta e que, “faltando, (...) estraga todas
as outras, contaminando-as (...)”.
198
Nesse sentido, é interessante notarmos que, ao
vivenciarmos essa condição de arrebatados, estamos, justamente, testemunhando nosso
encontro com o vazio da Coisa ao qual a escrita faz borda.
Ora, se a escrita nos rapta, à medida que encontramos com a falta de uma palavra
aquela que idealmente organizaria sem falha o mundo e o homem, que poderia dizer tudo ,
resta a sensação de um buraco, de um vazio, como se, antes, naquele lugar, existisse algo,
um objeto, uma palavra que fora dali retirada. É nesse encontro com o vazio da falta da
palavra que se dá, paradoxalmente, o encontro com o objeto, porém na condição de para
sempre perdido. Sendo assim, é a mesma função do vaso de borda que atribuímos à
escrita, sobretudo à escrita feminina, esta que abordamos no decorrer do nosso percurso,
uma vez que observamos que ela se funda a partir do furo, desse vazio da Coisa com o qual
estamos sempre tentando lidar.
Desdobramentos
Lacan me deixava atordoada.
E aquele sua frase: “Ela não deve
saber que escreve, nem aquilo que escreve.
Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe.”
Esta frase tornou-se para mim, uma espécie
de identidade de princípio, um “direito de dizer”
totalmente ignorado pela mulheres.
M. Duras, Escrever.
197
Se é a linguagem que marca o humano, Duras nos mantém em contato com ele, mas ao mesmo tempo nos
lança para fora da linguagem, para a palavra-buraco, para o vazio característico dela que é, para sempre,
incompleta, marcada pela falta, pelo impossível de dizer. Assim, por mais que a linguagem nos coloque em
contato com o humano e o defina, este sempre nos escapa. LACAN. Da criação ex nihilo, p.157.
198
DURAS. O deslumbramento, p.35.
73
A borda, aqui, será desdobrada em bordaduras, que podem ser compreendidas como
costuras em que cada ponto é formado por um pequeno nó. A esse nó chamaremos, mais
propriamente, de borromeano,
199
naturalmente amarrado e trançado pelas mulheres,
que seguem preservando seu vazio, o furo, mesmo que em seu entorno diferentes desenhos
se apresentem pois, a cada um é reservado o direito de criar suas bordas como lhe
aprouver ou como lhe for possível. Esse é um importante norteador para pensarmos sobre o
vazio que se escreve e sua aproximação com a escrita feminina de Duras.
De acordo com as elaborões psicanalíticas, desde Freud, e a seguir com Lacan, a
mulher
200
possui maior identidade com o vazio e, conseqüentemente, com sua borda, uma
vez que se encontra situada não-toda na função fálica, conforme exposto anteriormente.
Em uma breve digressão, lembremos que Freud, desde seu texto “Três ensaios sobre
sexualidade (1905)” e, posteriormente, em outros ensaios,
201
já atribuía ao pênis uma
importante função de organização pquica e também social, uma vez que, o homem
confunde o pênis com o Falo. O falo, na elaboração de Freud, seria distinto de sua imagem,
o pênis, e é um importante significante organizador das relações humanas, posto sua
posição privilegiada na economia libidinal.
A mulher, por não possuí-lo, precisaria encontrar outros caminhos para se organizar
psiquicamente e lidar com essa falta. Lacan, nesse mesmo sentido, colocará o homem
como todo, inteiramente situado no registro fálico (que é aquele da representação, do
sentido, dos laços sociais), já que, para o lugar da falta estrutural, do objeto para sempre
perdido, encontrou um bom substituto: o pênis/Falo.
202
Já as mulheres, não encontrando
um substituto à altura, situam-se, então, do lado não-todo fálico. Como sua relação com o
Falo é mais frouxa, a mulher tem que aprender a lidar com a falta, com a falta de
199
Usamos aqui a terminologia da topologia lacaniana para apontar que algo além do fio é trançado. Segundo
Granon-Lafont, um nó “é, com efeito, formado por um único fio que representa um trajeto suficientemente
particular para não ser reduzido a um simples anel”. O borromeano é composto por três elos, e, se
cortarmos qualquer um de seus anéis, todos se desligam e o se desfaz. É através desse que Lacan
apresenta sua articulação entre os registros Imaginário, Simbólico e Real, representação característica da
organização humana.
200
Nesse ponto, concordamos com Lucia Castello Branco quando esta afirma que, mesmo que feminino e mulher
o possam ser confundidos, entendemos que “dizer feminino relaciona-se às mulheres, em geral àqueles que ‘se
alinham sob a bandeira das mulheres’”. CASTELLO BRANCO. A traição de Pelope, p.17.
201
Freud aborda o tema do falo em diversos trabalhos. Dentre eles, citamos alguns mais importantes para este
breve comentário: “Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” (1925), A organização
genital infantil” (1923).
202
É importante, contudo, enfatizar que, por mais que tente fazer equivaler nis e falo, eles o bem
distintos. Conforme lembra Ana Lúcia Lutterbach, “o falo não coincide com o pênis, está onde não há órgão;
é, portanto, significante de uma falta”. HOLK. Patu: a mulher abismada, p.62.
74
representação, a falta de definição, a falta de significantes no inconsciente para dizer o que
é uma mulher.
203
É claro, que os dois caminhos, o masculino e o feminino, conduzirão a diferentes
conseqüências e, portanto, diferentes relações com a falta, com aquele vazio que se coloca
no centro do Real (a Coisa). Essas diferenças, contudo, não nos autorizam a dizer “Todos”,
ou seja, não nos autorizam a afirmar que todos os homens e todas as mulheres farão o
mesmo percurso, pois algumas mulheres se posicionam do lado masculino e se travestem
fálicas, como forma de obturar a falta, e alguns homens encontram um modo feminino de
se apropriar desse vazio. São aqueles que aprendem a bordar, bordejar.
Retomemos, assim, o caminho da escrita, esse bordado de letras que, a exemplo da
renda criada pela linha, é instaurada pelo traço; traço este que, ao ser puxado, desdobrado,
poderá retornar a sua condição de buraco, de espaço vazio.
204
Nesse movimento de
construção, desconstrução e reconstrução, intimamente relacionado ao processo da
escritura, é-nos possível observar que há “uma identidade entre a modelagem do
significante e a introdução no real de uma hiância, de um furo”,
205
ou mesmo de um vazio,
o que quer dizer que não se pode pensar no traço que contorna a letra sem considerar o
vazio que, nesse movimento, é instituído.
Na escritura há, portanto, o traço, o vazio, como a folha branca sobre a qual os
objetos – letras serão depositados. Cabe, portanto, ao homem a propriedade de manuseá-
lo. Entretanto, a alguns é reservado o dom de aproximar-nos, de fornecer-nos uma
miragem da Coisa.
203
Na tentativa de esclarecer um pouco mais o que foi dito acima, novamente evocaremos as referências de
Ana Lutterbach quando explica que “o decisivo na castração não é que o sujeito tenha ou o o pênis, o
decisivo é que a mãe não tem o falo e, porque ela o tem e deseja esse significante do desejo, o filho quer
ser o falo, mas essa aspiração está condenada ao fracasso”. Adiante no texto, a autora retoma ainda as
fórmulas lacanianas da sexuação para distinguir o lado masculino do feminino. Assim, o masculino é
designado como aquele submetido à lei do falo, na qual para todo x “há um x para o qual a função Φx é
negada” (LACAN, O seminário: livro 20, p. 107). O que significa dizer que há uma exceção, um que não
é castrado (o pai assassinado da horda primeva descrito por Freud no mito Totem e Tabu). Do lado feminino,
a proposição de não mulher que não esteja submetida à castração” inscreve-a do lado não-toda fálica,
portanto ela pode escolher “se colocar em Φx ou não”, pois não há exceção, “não existe a figura fundadora de
um conjunto de mulheres [a figura da exceção], logo, não há “nem uma que não esteja submetida à
castração” (HOLK. Patu: a mulher abismada, p.66). Ser não-toda fálica faz referência a certa inconsistência
que não permite dizer a mulher em sua totalidade. Concluindo, “não é a função Φx, a lei fálica, que faz a
diferença entre os dois sexos, é a posição subjetiva pela qual cada um se declara submetido a ela” (HOLK.
Patu: a mulher abismada, p.68).
204
PORTUGAL. Mulher: da cortadura à bordadura, p.31.
205
LACAN. Da criação ex nihilo, p.153.
75
A escrita não me abandonou, nunca
Acho que a pessoa que escreve
não tem a idéia de um livro, tem as mãos vazias,
a mente vazia, e dessa aventura do livro ela
conhece apenas a escrita seca e nua, sem futuro,
sem eco, distante, com suas regras de ouro,
elementares: a ortografia, o sentido.
M. Duras, Escrever.
Até o momento abordamos a escritura de Duras no ponto em que faz aparecer o furo,
a palavra esburacada, seja através da personagem Lol V. Stein e seu silêncio ante a falta da
palavra (impossível) que acreditava existir, seja na escritura de Amor, na qual o que faz o
furo é a própria linguagem em sua estrutura, na falta da sintaxe, no silêncio deixado por
cada palavra não dita, cada nome não falado, como se a linha/traço estivesse sempre sendo
puxada, retornando ao buraco. Nesse sentido, Andrade, em Nada do dia se vê da noite esta
passagem, afirma sobre o livro Amor:
São frases sem ponto final (...), estranhas vírgulas que ora põem em dúvida a
relação sintática entre os elementos da frase ora indiferentes a qualquer
possibilidade de relação, a toda regra gramatical marcam apenas a suspensão
do fluxo das palavras, impondo-lhes uma ruptura, um silêncio.
206
Em Escrever, o buraco surge novamente, mas ali a escrita parece se construir na
possibilidade de enfrentá-lo. Poderíamos, talvez, dizer: modelando-o, tecendo seus
arabescos de renda e tornando-o mais aprazível, suportável. Ou, quem sabe, construindo
em torno do buraco suas bordaduras.
Nesse livro, reconhecidamente biográfico, Duras revela o que foi o processo da
escrita em sua vida e a intimidade necessária com a solio. E afirma: “A solidão da escrita
é uma solidão sem a qual o texto não se produz, ou então a gente se acaba, exangue, de
tanto procurar o que escrever”.
207
Essa solidão, para além daquela de se estar desacompanhado, recolhido, constitui o
que Blanchot formula como “solidão essencial”:
208
“inviolável”, é a solidão da obra, a
206
ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.23-24.
207
DURAS. Escrever, p.14.
208
Blanchot, em seu texto “A solidão essencial”, afirma que para além da solidão do artista, seu
recolhimento, existiria a solidão da obra, esta, sim, essencial para que a obra se constitua. A solidão da obra
consistiria no fato de que à obra não poderíamos impor as categorias de acabado ou inacabado, a obra é.
76
solidão da escrita, sem a qual escrever torna-se impossível. Duras explica que, por mais
que essa solidão, para ela, estivesse diretamente ligada ao estar , sem ninguém por perto,
não se tratava apenas disso. Segundo a autora, “a solidão não se encontra, se faz”
209
e é
possível fazê-la a qualquer momento. A solidão implica a liberdade, a liberdade de criá-la
em qualquer lugar e instante:
Em Trouville, porém, havia a praia, o mar, a imensidão do céu, das areias. E era
isso a solidão. Foi em Trouville que contemplei o mar até o nada. Trouville é
uma solidão para a vida inteira. Ainda tenho essa solidão, inexpugnável, à minha
volta.
210
A solidão significa também um despojamento, o despojamento do Eu em nome do
Ele, da obra. Assim, Duras afirma:
Quando um livro chega ao fim quero dizer, um livro que se terminou de
escrever – não se pode mais dizer, ao ser lido, que este livro seja um livro escrito
por você, nem que coisas estão escritas nele, nem em que estado de desespero ou
em que felicidade, a de um achado ou de um fracasso de todo o seu ser.
211
É interessante notar esse ponto, da solidão da obra, na escritura de Duras, uma vez
que seus livros são praticamente inclassificáveis, no sentido de sempre restar a dúvida
entre serem ou não relatos autobiográficos, pois o eu está disperso na obra, esem todo
lugar e em lugar algum. Observamos, na obra durasiana, que o eu vai perdendo a
consistência, sempre, mesclando-se ao ele, seja via escrita do indecidível, que não revela o
narrador, mas, ao contrário, se utiliza de artifícios para mantê-lo velado, seja em livros nos
quais é, supostamente, a personagem que perde a consistência, enlouquece, deixando o eu
esfacelado.
À solidão também poderíamos nomeá-la de encontro com o vazio, esse vazio que se
escreve e do qual o escritor é apenas um condutor desse desejo infinito que a obra porta: o
Trata-se, dessa forma, de um infinito contido no espaço fechado de um livro. Outro importante ponto da
solidão essencial refere-se à indeterminação da obra, no sentido de seu não pertencimento, da independência
dessa obra em relação ao artista. Segundo Blanchot, quando o escritor abandona o Eu” porque não é
ele mesmo, não é ninguém”, em favor do “Ele”, é essa a solidão “que sobrevém ao escritor por
intermédio da obra”. BLANCHOT. O espaço literário.
209
DURAS. Escrever, p.16.
210
DURAS. Escrever, p.17.
211
DURAS. Escrever, p.28.
77
desejo da escritura. Esse desejo comporta autor, leitor e a própria obra, nesse de três,
borromeano, que se mantém junto e, sobretudo, que preserva o vazio em seu centro.
É em seu livro Escrever, dedicado inteiramente à solidão e à infinitude do escrever
que Duras expõe o procedimento da escrita, seus artifícios e motivações, abordando, de
maneira bem interessante, não aonde se pretende chegar com ela, mas, fundamentalmente,
de onde se partiu: da solidão, do nada (nihil).
De seu título, Escrever, podemos derivar algumas interpretações possíveis. Primeiro
o óbvio: tratar-se-á ali da ação de escrever, do que foi, para a autora, na sua vida, o ofício
da escrita e as consequências dessa escolha. Mais adiante, nas primeiras linhas lidas,
retomamos e ressignificamos o tulo, e, desse ponto a as últimas letras do texto,
percebemos que o título com o verbo no infinitivo não se reduz, simplesmente, à ênfase no
verbo, no ato de escrever, mas sim, constitui o prenúncio do infinito que encontraríamos
em seu interior. E não poderia ser diferente, pois escrever, segundo Blanchot, é um ato
infinito, “o escritor nunca sabe que a obra está realizada. O que ele terminou num livro
recomeçá-lo-á ou destruí-lo-á em outro”,
212
em um movimento circular, contínuo, presente
“num lugar fechado de trabalho sem fim”: o livro.
Em Escrever, de alguma forma, estão contidos todos os outros livros. Em suas
páginas se encerra o mundo com todos os seus lugares, todas as personagens, todas as
emoções e todos os outros livros. Lá estão: O deslumbramento, Amor, O vice-cônsul, Uma
barragem contra o Pacífico..., mas também Trouville, Neuphle-le-Château, S. Thala.
Ainda encontramos, em suas páginas, Lol, o Vice-cônsul, Anne-Marie, Robert A..., o
álcool, a dor, o desespero, o amor, e a própria Marguerite Duras desfilando ao lado de suas
criações e confundindo-se com elas, aparecendo, como um holograma, uma miragem, no
intervalo de um significante a outro. Mundo e livro remetem-se mutuamente e se
desdobram, numa espécie de figuras en-abyme, seguindo, rumo ao infinito.
212
BLANCHOT. O espaço literário, p.11.
78
O paradoxo da sublimação
De novo chegais, ó formas adejantes! Encontro-vos,
Tão cedo à minha vista enevoada brilhais!
Tentarei uma vez mais vos apreender e vos cingir?
213
Diante dos afetos despertados pelas obras daqueles a quem chamamos artistas, e da
maneira como dissemos aqui que eles conseguem manusear o próprio vazio e nos
oferecer algo repleto de emoções e sensações, retomamos uma afirmativa feita por Freud
em seu texto “Moisés de Michelangelo”, ainda sob os efeitos da obra: “Esse estado de
perplexidade intelectual [é] condição necessária para que uma obra de arte atinja seus
maiores efeitos”.
214
Freud escolhe, não sem razão, a expressão perplexidade intelectual” para dizer dos
mais altos efeitos da arte sobre seu observador. E, se atentarmos, perceberemos que essa
expressão nos remeterá, imediatamente, à outra bastante explorada neste trabalho: o
“arrebatamento”. Freud foi arrebatado pela obra de Michelangelo, deparou-se com a
palavra-buraco, ou com a falta de palavras. Ou seja, é uma exigência da obra que o
admirador seja subtraído, de alguma maneira, de seu ser e lançado para fora, para um
vazio, para o nada onde a obra é, primeiramente, constituída.
Nesse lugar vazio, a palavra falta. Como afirma Freud, mais adiante, em seus
escritos, tentando formular a experiência proporcionada pela obra: “Sentimo-nos cheios de
admiração reverente por elas [obras de arte] e as admiramos, mas somos incapazes de dizer
o que representam para nós”.
215
Freud encontra-se, pois, diante da impossibilidade da obra,
qual seja, a de permitir ao sujeito elaborar, por meio de palavras intelectualmente
organizadas e articuladas, o que se passa no interior do observador e, menos ainda, no
interior do artista. E são nossos artistas contemporâneos que cantam em consonância com o
teórico: Procuro explicar o meu sentimento/ E consigo encontrar/ Palavras que não
existem no dicionário”.
216
Seria, pois, somente a interpretação (psicanalítica) dos efeitos da
obra sobre o indivíduo que, segundo o psicanalista, poderia nos dar pistas sobre sua
representação.
213
GOETHE citado por FREUD. Discurso pronunciado na casa de Goethe em Frankfurt. Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, v.XXI, p.242.
214
FREUD. O Moisés de Michelângelo (1914). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.XIII,
p.254.
215
FREUD. O Moisés de Michelângelo (1914). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.XIII,
p.253.
216
MONTE, ANTUNES, MENDES. Quatro paredes. Universo ao meu redor.
79
As indicações freudianas apontam para a seguinte perspectiva: inicialmente algo se
passa com o artista e se repete no admirador da obra (no próprio momento de seu contato
com ela), uma espécie de “contágio emocional”. Esses efeitos escapam completamente à
linguagem, expondo suas limitações, pois que não conseguem atingir a obra. A linguagem
pode, no máximo, cingi-la. Portanto, esses efeitos estão para além dos efeitos intelectuais,
não pretendem ser compreendidos, mas sentidos, pois estão no domínio dos afetos. Ou
seja, o artista conseguiria, por meio de sua obra, fazer despertar no receptor sensações
próximas àquelas que o levaram a criar.
Falar sobre a criação implica, assim, necessariamente, adentrarmos nos terrenos
anuviados, enigmáticos e, por vezes, controversos, da sublimação. Esse conceito foi
desenvolvido, primeiramente, por Freud que assim o caracteriza:
] a solução pela qual a energia dos desejos infantis não se anula, mas, ao
contrário, permanece utilizável, substituindo-se o alvo de algumas tendências por
outro mais elevado, quiçá não mais de ordem sexual.
217
Freud acrescenta que, na sublimação, seria possível “permutar o fim sexual por um
outro mais distante e de maior valor social”,
218
de modo que este seria um fator
fundamental para o desenvolvimento da sociedade. Isso porque, sendo a energia sexual
aquela que impõe certa resistência à vida social, aos ideais civilizarios, quando lhe é
dado um destino diferente ao da repressão (recalque), ou seja, podendo-se sublimá-la,
219
“conquistaríamos maiores frutos para a sociedade”.
Tal afirmativa freudiana deu margem a uma série de mal-entendidos e interpretações
questionáveis sobre a sublimação e suas relações com a arte, no decorrer da história e do
desenvolvimento da psicanálise. O conceito de sublimação atravessou o solo das místicas,
da religião, e foi deitar-se sobre os solos do vazio de Das Ding. E, ainda hoje, gera
polêmica.
Algumas críticas às elaborações de Freud acerca da sublimação baseiam-se,
inicialmente, no fato de que, nesta vio, a arte (executada a partir da sublimação de certa
quantidade de energia) estaria profundamente atrelada ao valor que a sociedade atribuiria à
217
FREUD. Cinco lições de psicanálise (1909). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.XI, p.50.
218
FREUD. Cinco lições de psicanálise (1909). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.XI, p.50.
219
Lembramos aqui que a energia ou representações que são reprimidas ou recalcadas tendem a retornar na
forma de sintoma (neuroses), já o sublimado seria aquela energia completamente transformada, sem riscos de
retornar, pois já teria se realizado, chegado ao seu fim.
80
determinada obra. Ou seja, só seria sublimada aquela obra que adquiriu valor social
coletivo, que propiciou concilião entre os desejos individuais e os anseios do social. E
sabemos o quanto a arte, em vários momentos da história contemporânea, esteve
intimamente conectada a movimentos revolucionários e contestadores. O que significa que
ela provoca e, por vezes, almeja, diversos outros efeitos surpresa, incômodo, estranheza,
rejeição , e não somente ser valorizada socialmente pela beleza estética, como parecem
ter pensado alguns leitores e o próprio Freud no início de suas elaborações.
Além disso, como ele próprio declarou em outros momentos, os artistas
conseguiriam, via obra, antecipar algumas importantes descobertas da psicanálise e isso
não aconteceria sem se pagar um pro. Portanto, as obras de arte, no lugar de vanguarda e,
muitas vezes, apontando para pontos de resistências dos indivíduos, nem sempre
assumiriam elevado valor social. Esses seriam os primeiros paradoxos da sublimação e, a
fim de clareá-los, vale lembrar que há uma grande diferença entre as idéias de satisfação e
de bem estar, conforme veremos mais adiante
O fundador da psicanálise, no entanto, não pára por aí: ele continua, não recua ante
aos impasses que se lhe apresentam. A partir da iia de sublimação, Freud indica a
capacidade plástica da pulsão,
(...) devemos ter em mente que os instintos [pulsões] sexuais, em particular, são
extraordinariamente plásticos (...). Um deles pode assumir o lugar do outro, um
pode assumir a intensidade do outro; no caso de a realidade frustrar a satisfação
de um deles, a satisfação do outro pode proporcionar compensação completa.
Relacionam-se uns com os outros à semelhança de uma rede de canais
intercomunicantes cheios de líquidos (...).
220
Contudo, Freud adverte que essa capacidade plástica da pulsão sexual não é
ilimitada. o é possível, portanto, sublimar toda energia sexual, apenas parte dela.
(...) assim como não contamos transformar em trabalho senão parte do calor
empregado em nossas máquinas, de igual modo não devemos esforçar-nos em
desviar a totalidade da energia do instinto sexual da sua finalidade própria. Nem
o conseguiríamos. E se o cerceamento da sexualidade for exagerado, trará
consigo todos os danos duma exploração abusiva.
221
220
FREUD. Conferências introdutórias sobre a psicanálise (1916-1917). Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud, v.XVI, p.403.
221
FREUD. Cinco lições de psicanálise (1909). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.XI, p.50.
81
É interessante notar, sobre a plasticidade da pulsão, que o autor fornece certas
indicações que seriam exploradas, e quiçá compreendidas, alguns anos mais tarde, no
ensino de Lacan. Um bom exemplo disso é a propensão da libido humana aos
deslocamentos significantes: a energia sexual deslizaria sobre os signos, uns podendo
substituir os outros, como numa rede de “canais comunicantes”; todavia, parte da pulsão
demandaria, pois, satisfação direta, sob ameaça de danos mais graves em caso de não
cumprimento dessa exigência.
Para responder aos paradoxos apresentados pelo conceito de sublimação, Lacan
lançou luz sobre outros aspectos da elaboração freudiana, em especial às relações da libido
com o objeto e com Das Ding (a Coisa). Esse psicanalista não pretendia desfazer os
paradoxos: ao contrário, contava com eles, pois percebeu a fundamental importância que
tinham na construção do conceito.
Portanto, inicialmente, Lacan proe outra interpretação, outra leitura, à afirmativa
feita por Freud sobre a valorizão social da obra, tendo em vista a articulação com as
noções supracitadas. Para esse autor, o impulso sublimatório não estaria apenas vinculado
à aceitação e utilidade social da obra, mas, principalmente, à articulação com a função
imaginária do objeto e sua relão direta com Das Ding. Não nos ateremos aqui às
especificidades dos dois conceitos, a saber, objeto e Das Ding, por não se tratar de nosso
objetivo, mas apenas ao que deles poderemos extrair em relação aos problemas da
sublimação.
Lacan lembra que, embora a pulsão sexual busque satisfação nos objetos,
222
uma
interdição para que essa satisfação se dê completamente em nome da manutenção da vida
em sociedade. Assim, a pulsão, em seus desvios, buscará caminhos alternativos para
encontrar a satisfação. São eles: os sintomas e a sublimação. No sintoma, a pulsão sexual
encontrará alívio nas formações substitutas, na substituição significante, de modo que o
alvo da pulsão é apenas contornado, abrindo-se a possibilidade de seu retorno e
provocando conseqüente sofrimento e mal-estar.
223
Nesse caso, o objeto será sempre um
substituto da Coisa, e esta restará intacta.
222
Segundo Lacan, o objeto é um ponto de fixação imaginário dando, em qualquer registro que seja,
satisfação a uma pulsão”. LACAN. O objeto e a Coisa. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p.143.
223
Conforme podemos constatar, a idéia de satisfação é distinta daquela do bem estar, de felicidade, e pode
estar associada, inclusive, ao sofrimento, à angústia, ao mal-estar exigido pela vida em sociedade. A
satisfação à qual nos referimos aqui quer dizer, simplesmente, que determinada energia realizou ou concluiu
seu caminho. Portanto, essa idéia não deverá ser confundida com o conceito de sublimação.
82
nos caminhos da sublimação, encontraremos em funcionamento outros
mecanismos de satisfação e outra relação com os objetos. Conforme explica Lacan,
No nível da sublimação o objeto é inseparável de elaborações imaginárias e,
muito especialmente, culturais. Não é que a coletividade as reconheça
simplesmente como objetos úteis ela encontra o campo de descanso pelo
qual ela pode, de algum modo, engodar-se a respeito de Das Ding, colonizar com
suas formações imaginárias o campo de Das Ding. É nesse sentido que as
sublimações coletivas, socialmente recebidas se exercem.
224
Nesse sentido, os objetos seriam os elementos imaginários da fantasia (objeto a) que
poderiam “recobrir ou engodar o sujeito no ponto mesmo de Das Ding”. Portanto, se Das
Ding, a Coisa, é, inquestionavelmente, impossível de se atingir, por ser algo para sempre
perdido, podemos encontrar objetos (artísticos) que o funcionem simplesmente como
substitutos significantes dos alvos da pulsão sexual, mas sim como objetos especiais que
cingiriam a Coisa. Esses objetos nos permitiriam acessá-la de alguma maneira, mesmo que
apenas contornando suas bordas e preservando, em sua origem, em seu centro, o vazio.
Esse parece ser o significado do célebre aforismo lacaniano, que afirma que sublimar é
“elevar um objeto à dignidade da Coisa”.
225
Ou seja, é fazer com que um objeto possa nos
fornecer a miragem da Coisa (de Das Ding), colocar-nos em contato com esse vazio, Nihil
característico da Coisa.
Portanto, enquanto com o sintoma pode-se atingir o alvo da pulsão (que é sempre
sexual), via substitutos e isso acaba por manter, em certa medida, a insatisfação –, na
sublimação verificamos que não há substituição, mas construção de significantes. Assim, é
possível à pulsão “encontrar seu alvo em outro lugar que não seja naquilo que é seu
alvo”,
226
o que significa dizer que a libido sexual torna-se, por essa via, dessexualizada,
pois, ao invés de ter o objeto (sexual) como alvo de sua satisfação, ela estabelece uma
relação com o vazio de Das Ding (a Coisa).
Daí estabelecermos certa identidade, certa aproximação entre a sublimação e a arte.
A arte imita, manuseia e transforma objetos criando significantes. Todavia, sua finalidade
não é representar esses objetos, apesar disso muitas vezes acontecer. Quando o artista
fornece a imitação, a representação desse objeto, ele faz outra coisa desse objeto. Segundo
224
LACAN. As pulsões e os engodos. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p.125.
225
LACAN. O objeto e a Coisa. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p.141.
226
LACAN. O objeto e a Coisa. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p.139.
83
Lacan, os artistas “nada fazem senão fingir imitar” aquele objeto de satisfação pulsional.
Ou, nos dizeres do poeta Fernando Pessoa,
o poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
227
Seguindo pelo trajeto da arte, poderíamos, ainda que ilustrativamente, fazer equivaler
essa idéia sobre o trabalho do artista à estrutura da técnica de pintura conhecida como
anamorfose. Isto é, o artista, artesão de significantes, faz surgir, ali onde não há nada, uma
imagem ou uma miragem da Coisa. É no momento em que a imagem velada se nos
apresenta, de relance, diante do obscurecimento da imagem principal, que nos damos conta
de que naquele lugar existia um vazio que foi recoberto. Essa imagem velada aparece não
com o objetivo, com a finalidade, de recobrir o vazio, o furo, e sim de estabelecer uma
relação com a Coisa, bordejá-la. A arte seria, então, capaz de cingir e presentificar, ao
mesmo tempo em que ausentifica a Coisa.
Resta-nos, entretanto, separar a noção de sublimação da noção de prazer,
apaziguamento e alívio garantidos. Nesse ponto, encontramos novamente o paradoxo
apontado por Freud e, posteriormente, por Lacan, sobre o referido mecanismo da
sublimação, pois, nesse caminho, conjugam-se prazer e dor, prazer e desprazer. um
preço a se pagar por atingir tão altos voos, ou talvez, sob outra perspectiva, alguma
recompensa em se estabelecer um vínculo tão profundo ao vazio, à dor, ao mal-estar. A
antinomia esno fundamento mesmo da sublimação e, portanto, parafraseando Blanchot,
em sua referência a Goethe, para o artista está fora de causa acabar bem.
228
O artista é aquele que está mergulhado no desamparo, no vazio, e a criação é sua
resposta ao fato de que ao desamparo e ao vazio não será possível escapar. É isso que
Blanchot constata na relação de Goethe com a escrita, ou melhor, com seu demônio
aquele que o habita nas profundezas:
227
PESSOA. Obra poética, p.164.
228
BLANCHOT. O livro por vir, p.37.
84
O demônio foi, para Goethe, este limite: impotência de perecer; esta negação:
recusa de deixá-lo decair; donde lhe veio a certeza de triunfar, que ele precisou
pagar com outra decadência.
229
Entendemos que é justamente por saber-se já caído que o artista se eleva, que eleva o
objeto “à dignidade da Coisa”. Convocando o artista Baudelaire, em sua história de Levana
e as três Nossas Senhoras das Tristezas, trazida à luz com grande propriedade por Lucia
Castello Branco,
230
encontraremos ajuda para abordar (ou bordejar) o conceito de
sublimação no próprio ponto da contradição.
Segundo esse texto, Levana teria a função, como o próprio nome o diz,
231
de manter
a coisa elevada, suspensa no ar. No entanto, em seus desígnios, os meios utilizados seriam
um tanto cruéis:
Levana enobrece o ser humano por quem vela, mas com meios cruéis. É dura e
severa essa boa ama, e entre os processos que usa para aperfeiçoar a criatura
humana, aquele que sobre todos prefere é a dor. Três deusas lhe são submetidas,
que emprega em seus desígnios misteriosos. Assim como três Graças, três
Parcas, ts Fúrias, como primitivamente havia três Musas, há também três
deusas da Tristeza. São elas as Nossas Senhoras das Tristezas.
232
Portanto, a obra seria a via inevitável do artista, sua saída feliz, o que é bem distinto
de uma saída para a felicidade. É por ela que os artistas atravessam os desertos, submetem-
se à dor, aos tormentos de quem enfrenta, de muito perto, o vazio da Coisa, e dele retiram o
que dizer, o que fazer, expondo ao mundo seus contornos.
229
BLANCHOT. O livro por vir, p.38.
230
CASTELLO BRANCO. A branca dor da escrita, p.43-45.
231
Levana retira seu nome do verbo latino levare que significa erguer no ar, manter elevado. BAUDELAIRE
citado por CASTELLO BRANCO. A branca dor da escrita, p.43-4.
232
BAUDELAIRE citado por CASTELLO BRANCO. A branca dor da escrita, p.43-4.
85
Tão longe, tão perto
Eis tudo.
Vou falar de nada.
De nada.
M. Duras, Escrever.
A partir de nossa breve passagem pelos terrenos movediços e enigmáticos do
conceito de sublimação, adentremos agora no campo onde colheremos seus frutos e
verificaremos seus efeitos.
anunciamos anteriormente que algo se passaria no interior do artista no momento
da criação. Esse algo não seria possível captar com palavras, e, consequentemente, não
seria possível explicar através da razão (logos), mas seria possível perceber seus efeitos,
seja no próprio artista e nos destinos que dará a sua pulsão, ou ainda, na forma como se
dará a construção da obra; seja do lado do observador da obra, uma vez que a sensação, os
afetos desenvolvidos no momento da criação poderiam ser repetidos, revividos por ele.
Dessa forma, propomos pensar aqui a especificidade do campo da literatura, no qual
escritor e leitor estariam de certa maneira condensados, tão longe e tão perto, inseparáveis,
na constituição da obra.
Para Blanchot, um livro para ser verdadeiramente escrito, passaria por dois
momentos de feitura: aquele em que ele é propriamente escrito, quando estariam em
evidência os impulsos criadores, a vida, a história, os afetos e desamparos do escritor; e,
depois, o segundo momento, no qual tudo isso é mais ou menos apagado em nome da obra,
na ligeireza do leitor em transformar tudo isso em nada. Esse seria o momento da leitura
que, por sua vez, faz parte do movimento da escritura. Para ele, ler “é fazer com que um
livro se escreva ou seja escrito desta vez sem a intermediação do escritor, sem ninguém
que o escreva.
233
A leitura permite o renascimento do livro numa espécie de “aurora
exterior”, sempre nova, sempre única em sua experncia.
Poderíamos, ainda, identificar um terceiro momento: aquele em que a obra é, e mais
nada: ela faz-se e abre-se para o mundo, tornando-se obra. É quando o autor desaparece e o
leitor, também em seu ser anônimo, não interessa. O livro, assim, afirma-se como Coisa
sem autor e sem leitor.
233
BLANCHOT. O espaço literário, p.193.
86
Em Escrever, acompanhamos com Duras toda sua trajetória pela escrita: do
desamparo, do desespero, da angústia, ao impulso, ao contentamento, à satisfação. Para a
impetuosidade da “exigência da obra”, a proximidade da borda do vazio, escrever foi a
saída, a construção de asas para lançar-se num voo sobre o vazio. Com sua escrita, Duras
modelou seus significantes, criou suportes que, embora bordejassem o Real, também
conseguiam protegê-la de sua implacabilidade. O seu ofício de escritora abriu novas vias
de satisfação pulsional, sobrepujou as resistências, mirou novos alvos com o fim de
satisfazer-se.
Assim, claro está que o processo sublimatório, de certa quantidade de energia, foi
vivido por Duras. Mas, e seus leitores? Que parcela caberia a eles? Poderíamos dizer que
também sublimaram certa quantidade de energia a partir da leitura de seus livros? Afinal,
sabemos como eles são fundamentais para que o objeto literário seja inteiramente
satisfeito, ou melhor, para que este se constitua. É a própria escritora que afirma não
existirem livros sem leitor, e, ainda,
o acredito nas pessoas que dizem: rasguei meu manuscrito, joguei tudo fora”.
o acredito nisso. Ou o que estava escrito não existia para os outros, ou não era
um livro. E sempre se sabe quando não é um livro.
234
Entendemos, por essa afirmativa, que um livro poderia se considerar escrito a
partir do momento em que fosse lido, o que não significa propriamente a presença de um
leitor outro, mas sim da própria ideia da leitura. Essa idéia está contida na gênese da obra
literária, uma vez que “escrever assume então as características da exigência de ler, e o
escritor torna-se a intimidade nascente do leitor ainda infinitamente futuro”.
235
É somente
pela leitura que poderíamos pensar em um segundo momento da escrita, ou seja, aquele
momento em que o livro se refaria incessantemente, a cada leitura e, por isso, seria
considerado infinito, nunca completo, sempre em processo.
É pelo leitor que é possível medir um livro, conhecer melhor seu alcance e limites,
perpetuá-lo, mantendo-o aquém ou além do tempo, como se o livro nunca tivesse sido
criado porque sempre existiu. O leitor entrará em contato, bordejará o vazio, ao se sentir
infinitamente desprovido na presença do livro que nunca escreveu e que se escreve diante
de si, ou talvez, por meio de si. Nesse sentido, Blanchot observa:
234
DURAS. Escrever, p.22.
235
BLANCHOT. O espaço literário, p.200.
87
Ler nem mesmo requer dons especiais e faz justiça desse recurso a um privilégio
natural. Autor, leitor, ninguém é dotado, e aquele que se sente dotado, sente,
sobretudo, que não o é, sente-se infinitamente desprovido, ausente desse poder
que se lhe atribui, e assim como ser “artistaé ignorar que existe uma arte,
ignorar que já existe mundo, ler, ver e ouvir a obra de arte exige mais ignorância
do que saber, exige um saber que investe uma imensa ignorância em um dom
que não é dado de antemão, que é preciso a cada vez receber, adquirir e perder,
no esquecimento de si mesmo.
236
Entretanto, na sua ignorância, é apenas ele, o leitor, que pode, por acolher
generosamente o livro, escutá-lo em seu apelo silencioso, mantê-lo em seu voo com suas
asas de papel, e elevá-lo à dignidade da Obra, à dignidade da Coisa.
Para alguns, enquanto ao escritor é destinado o caos, os tormentos e angústias
advindos do ato de criação, o leitor seria aquele que evocaria para si a parte divina,
irresponsável e inocente daquele escritor que não produz, que não precisa se arriscar a
perder-se pelos descaminhos da escritura. Sabemos, contudo, que aos leitores de certas
obras não seria possível escaparem ilesos da experiência da leitura.
Para Duras, de fato, a escrita nunca foi sinônimo de alívio, de bem estar – pois estava
intimamente associada à impossibilidade, à palavra-buraco, ao álcool, à dor , embora
fosse, assim mesmo, sua única salvação, única alternativa para sair do buraco, como
verificamos em seu testemunho, em Escrever. Mas, o que poderíamos dizer sobre seus
leitores que também enfrentaram, por vias secundárias, o risco de se perderem diante da
proximidade com a Coisa? Não se correria o risco de o mal-estar, a dor, o vazio, o
presentes para escritora, serem contagiantes, de modo a prender alguns de seus leitores
aqueles mais susceptíveis –, nas teias de seus livros, de modo que poderiam sucumbir,
enlouquecer, não suportando a “fidelidade ao mal-estar”?
Mesmo que aos leitores nem sempre estejam destinadas as dores, os temores, e o
peso da história de vida dos autores, uma vez que conseguiriam apagar toda e qualquer
memória de autoria sobre o texto, a leitura de certas obras não passa incólume a estes cujos
efeitos o sofridos também no corpo, na carne. Então, como se realizaria e qual destino
seguiria a sua pulsão? Teria o leitor também acesso às elevadas vias de satisfação
disponíveis ao autor?
236
BLANCHOT. O espaço literário, p.192.
88
Tendo como ponto de partida a proximidade desses dois anjos decaídos, inseparáveis
– autor e leitor –, despojados de seu ser, que, por se saberem tão desprovidos, tão próximos
do vazio, do nada, seriam capazes de contorná-los, de moldá-los e elevar o objeto à
dignidade de Obra, poderíamos pensar que a ambos estariam disponíveis os caminhos
sublimatórios. Contudo, é Freud que nos fornece pistas sobre as diferenças entre esses dois
seres quando afirma sobre o artista:
Um homem que é um verdadeiro artista tem mais uma coisa a sua disposição.
Em primeiro lugar, sabe como dar forma a seus devaneios de modo tal que estes
perdem aquilo que neles é excessivamente pessoal e que afasta as demais
pessoas, possibilitando que os outros compartilhem do prazer obtido nesses
devaneios. Também sabe como abrandá-los de modo que não traiam sua origem
em fontes proscritas. Ademais, possui o misterioso poder de moldar determinado
material até que se torne imagem fiel de sua fantasia; e sabe, principalmente, por
em conexão uma o vasta produção de prazer com essa representação de sua
fantasia inconsciente, que, pelo menos no momento considerado, as repressões
são sobrepujadas e suspensas. Se o artista é capaz de realizar tudo isso,
possibilita a outras pessoas, novamente, obter consolo e alívio a partir de suas
próprias fontes de prazer em seu inconsciente, que para eles se tornaram
inacessíveis.
237
Portanto, resta-nos ainda a pergunta: seria possível ao leitor sublimar via leitura?
Talvez não. Mas, certamente, poderíamos dizer que as pulsões encontrariam, por essa via,
caminhos menos tortuosos para sua satisfação.
O vazio que se escreve
É preciso ler sozinho o livro que se
escreveu, enclausurar-se no livro.
M. Duras, Escrever.
Tal como Duras, levamos muito tempo para chegar ao vazio. Foi um longo percurso
de extração, de despojamento, de decantação do sentido, das frases, das palavras, até
restar-nos a letra, o ponto. E, nesse momento, a palavra falta, o risco de perdermo-nos é
mais evidente e aterrador. Durante o trajeto/leitura vencemos alguns obstáculos,
237
FREUD. Conferência XXIII: Os caminhos da formação dos sintomas (1916- 1917). Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, v.XVI, p.439.
89
enveredamos pelos errantes destinos de S.Thala, quase ficamos por lá. Tomamos os
caminhos imprecisos e lacunares da memória, arriscamo-nos pela letra, deparamo-nos com
o leitor, para chegarmos, enfim, à obra. Portanto, neste instante o vazio se nos apresenta
em toda sua brancura e sua força de atração. Essa presença, contudo, não se dá sem a
necessidade de um anteparo: a escritura, pois sem ela sucumbiríamos. No entanto, é Duras
quem constrói esse artifício, nós apenas nos valemos dele. Afinal, a nós não foram dadas as
asas de papel.
A qual vazio nos referimos aqui? pelo menos duas possibilidades para lermos o
título proposto a esse capítulo: “O vazio que se escreve”. A primeira se refere àquele vazio
que poderia ser escrito por alguém,
238
em uma estrutura sintática que manteria o sujeito
indeterminado. Já na segunda alternativa de leitura, poderíamos entender a frase de modo
reflexivo, no qual o sujeito e o objeto se refletem, são os mesmos, e, portanto,
perceberíamos que o vazio escreve e é escrito por si mesmo. Nessa última alternativa de
interpretação, o ser (falasser)
239
estaria fora, subtraído na frase, enquanto que o vazio se
tornaria o agente, exercendo sua própria força, seu poder de atração e criação. Talvez, as
duas possibilidades de leitura convirjam, uma vez que é possível pensar o vazio pela
borda, a partir da mão firme que inaugura o traço, que modela e dá forma, mas também que
conseguiria aprisioná-lo para que possamos dele nos aproximar de maneira um pouco mais
segura.
Da primeira possibilidade, muito já se falou: como o escritor (artista) seria artesão de
seus significantes, como construiria, com sua letra, bordejando e domesticando o vazio,
quais os efeitos sofridos e provocados nesse percurso. Cabe-nos, então, agora, arriscarmo-
nos pela segunda possibilidade: aquela que considera que algo mais além, e que esse
algo se escreve. Seria uma força, um impulso originário da própria obra, que mesmo
passando pelo sujeito da escrita, o ultrapassaria, ou lhe seria anterior? Parece-nos que sim.
Nesse sentido, considera-se que no vazio um movimento próprio a favor de sua
constituição que, independente dos meios disponíveis (obra), tentaria se fazer perceber, se
criar. A essa potência Blanchot nomearia de “exigência da obra”. A exigência estaria
238
Se lermos o pronome pessoal se como partícula de indeterminação do sujeito, daí, poderíamos, ainda,
derivar outras questões sobre como esse vazio poderia ser escrito, ou mesmo se perguntar quem seria esse
sujeito.
239
Ser humano, sujeito falante. Lacan, para falar do ser falante, cria a palavra parlêtre, fazendo um jogo
interessante com as palavras francesas parler (falar) e être (ser). Nesse sentido, Jeferson Machado Pinto
afirma ser essa expressão o modo encontrado por Lacan de radicalizar a dimensão do efeito de divisão do
sujeito. Acrescenta, ainda que parlêtre é o “ponto de articulação entre o desejo e a ngua. ‘Os homens,
mulheres e as crianças o são mais do que significantes’”. (PINTO, p.26)
90
ligada à “tormenta e a impetuosidade criadora, cuja razão se desconhece”
240
. Ela estaria
diretamente relacionada ao artista, pois é nele que se manifesta, porém o teria origem em
sua intimidade, na sua pessoa, no seu “eu”, e sim o transcenderia. Conforme esclarece
Blanchot, a partir da pintura de Cézanne,
Mais do que a ele mesmo, é ao quadro que ele busca que o segredo diz respeito,
e esse quadro, ao que tudo indica, não teria nenhum interesse a Cézanne se ele só
lhe falasse de Cézanne, e não da pintura, da essência da pintura cuja
aproximação é para ele inacessível.
241
Ou, pelas letras de Duras, em Escrever,
É o desconhecido de si mesmo, de sua cabeça, de seu corpo. Escrever não é
sequer uma reflexão, é um tipo de faculdade que se possui ao lado da
personalidade, paralelo a ela, uma outra pessoa que aparece e avança, invisível,
dotada de pensamento, cólera, e que por vezes acaba colocando a si mesma em
risco de perder a vida.
242
É, pois, na essência da obra, em seu centro, que vislumbramos o vazio. Esse vazio
seria o ponto mesmo do desvanecimento, do desaparecimento da obra, da escrita, aquele
“que não se pode atingir, o único, porém, que vale a pena atingir”.
243
Na literatura,
Blanchot chamou de ponto central da obra esse ponto de atração, de convergência para
onde a obra, a escrita e o escritor caminham.
Neste sentido, vazio e obra se encontram a ponto de desaparecerem um no outro,
tornarem-se uma e mesma coisa em sua reciprocidade, pois a obra busca o vazio na mesma
medida em que aí se constitui. Esse é o sentido do “désœuvrement”,
244
em Blanchot.
240
BLANCHOT. O livro por vir, p.42.
241
BLANCHOT. O livro por vir, p.43.
242
DURAS. Escrever, p.48.
243
BLANCHOT citado por ANDRADE. Nada do dia se vê da noite esta passagem, p.11.
244
Para Maurice Blanchot, “désœuvrement” é, precisamente, a essência da literatura, o lugar para onde ela
caminha, ou seja, seu desaparecimento. Em Blanchot a literatura “é antes aquilo que não se descobre, não se
verifica e não se justifica jamais diretamente, aquilo de que só nos aproximamos desviando-nos, que se
capta indo para além dela, por uma busca que não deve preocupar-se com a literatura, com o que ela é
‘essencialmente’, mas que se preocupa, pelo contrário, com reduzi-la, neutralizá-la (...) até o ponto em que
apenas a neutralidade impessoal parece falar” (BLANCHOT. O livro por vir, p.293). Nesse sentido, a
literatura não estaria localizada na boa utilização da linguagem que atende a todas as regras e formas e visa à
transmissão da mensagem. A literatura estaria além, onde a linguagem busca seu retorno à língua, à fala
instintiva que há dentro de cada escritor, e seria “transformada em profundidade ociosa do ser, o meio em que
o nome se torna ser, mas não significa nem desvenda” (p. 305). Portanto, para se atingir a obra, a literatura, é
necessário abrir mão dela, seguir em direção ao seu centro: o vazio, o silêncio (origem e fonte infinita da
obra); aceitar a impossibilidade não como limite, mas como infinitude; abrir mão do “Eu” em nome da
91
Assim, temos um caminho circular e sem limites, no qual vazio e obra remetem um ao
outro, incessantemente, infinitamente.
Na origem da obra, não há sujeito: o artista e seu “eu” desaparecem. apenas o
vazio, que é o sopro inicial para a sua constituição, e é ainda a intimidade, a profundidade e
a presença intrínseca na obra. Esse é o ponto em que a obra se afirma, torna-se, é. Trata-se,
portanto, do ponto em que um livro (obra) transforma-se em objeto sem autor e sem leitor,
ultrapassando o homem que o escreveu.
Desse modo, a partir da força fundadora e pulsante do livro/obra, poderíamos dizer
que, para além de alguém o escrever, o vazio se escreve, ele busca sua realização mesmo
que esta se dê, paradoxalmente, a partir de sua domesticação, de seu bordejamento, de seu
aprisionamento na obra. Ele não pode ser apreendido senão via matéria, via objetos, e, para
a função de manuseá-lo, são convocados os artistas, os escritores.
O sopro vital chamado vazio pulsa eternamente em direção à obra, e, aos ouvidos
mais atentos, àqueles espíritos labirínticos, é dado o dom de escutá-lo em seu apelo de ser
modelado, pois esta seria a única maneira de tornar-se acessível aos sentidos, realizar-se
em sua potência criadora.
Resta-nos, por fim, afirmar sobre o vazio, em uníssono com Duras: é impossível. E
se escreve.
O infinito literário
(...) vi o Aleph, e no Aleph a terra,
vi meu rosto e minhas vísceras,
vi teu rosto e senti vertigem e chorei,
porque meus olhos haviam visto esse objeto
secreto e conjetural cujo nome usurpam os
homens, mas que nenhum homem olhou:
O inconcebível universo.
Jorge Luis Borges, O Aleph
Existiu na história um certo Borges, que, pela primeira vez, testemunhou sobre o
Aleph e nos incitou a buscar o infinito. Foi ele quem se arriscou, desceu em um porão, num
buraco escuro e, desacreditando naquele que pensava ser, até aquele momento, um
impessoalidade da obra. Esta seria a única maneira de se aproximar da obra e, portanto, descobrir para onde
vai a literatura: rumo ao vazio, ao seu desaparecimento.
92
enlouquecido anfitrião, pôde ver logo a sua frente surgir, naquele décimo nono degrau, a
figura do Aleph. Nessa figura estavam reunidos todos os alfabetos, toda a linguagem, todos
os prazeres, todos os olhares, todo o tempo, e, nesse espaço de não mais que três
centímetros, cabiam todos os pontos do universo, o infinito. Essa revelação, senão pelo
nosso grande poder de esquecimento, poderia tê-lo matado, não como matam outras mortes
comuns, mas como uma morte em vida. Morte das surpresas, das descobertas, enfim, do
novo início presente em cada dia, em cada obra, em cada letra.
Temos notícias também de um certo Blanchot, que, iniciado por Borges nas questões
das infinitudes, procurou o Aleph em outros campos e o encontrou. A este chamou de
“infinito literário”, posto que o recebeu, do mesmo modo que Borges, da literatura. O
ensaísta sabia que para certos homens “desérticos e labirínticos” categoria que
contemplaria Borges, Duras, entre outros –, o caminho a percorrer seria um pouco mais
longo do que suas vidas. E que esses mesmos homens teriam o poder, ou talvez o infeliz
destino, de caminharem errantes, sem poderem se deter diante do vasto mundo das letras.
Foi-lhe revelado, ainda, que “o livro é, em princípio, o mundo, e o mundo é um livro”,
245
e
sem que isso tenha acalmado àquele que também vislumbrou o infinito pois não
acreditou que o fato de que um livro fosse ficção o pouparia de seus efeitos de verdade –,
Blanchot o se aplacou e prosseguiu. Deparou-se, portanto, com o essencial da literatura,
que é também seu grande risco, o labirinto no qual podemos ficar eternamente perdidos:
afinal, não importam os indivíduos, os autores, mas a própria literatura e sua estranha
potência de transformar cada livro na unidade inesgotável de um único livro e na
repetição fatigada de todos os livros”.
246
Essa descoberta fez Blanchot compreender o Aleph, o infinito literário, de modo a
não mais sentir medo. Percebeu que:
se o mundo pudesse ser exatamente traduzido e duplicado num livro, perderia
todo o começo e todo o fim, tornar-se-ia o volume esférico, finito e sem limites,
que todos os homens escrevem e no qual são escritos: não seria mais o mundo,
seria, será o mundo pervertido na soma infinita dos possíveis.
247
245
BLANCHOT. O livro por vir, p.138.
246
BLANCHOT. O livro por vir, p.139.
247
BLANCHOT. O livro por vir, p.140.
93
Nisso consistiria toda a beleza do Aleph e, por conseguinte, da literatura: a eterna
possibilidade de se escrever e se reescrever o mundo, a partir do momento em que ela se
arrisca pela multiplicidade dos caminhos do imaginário, sabendo-o infinito.
Existiu, ainda, uma terceira escritora (e talvez outras mais), uma certa Duras, que
também mirou-se no espelho que refletia o outro espelho do mundo/livro e viu seu reflexo
indo em direção ao infinito, àquele ponto de fuga do olhar. A ela, do mesmo modo, foi
revelado o Aleph e das consequências dessa revelação tivemos notícias: sabemos que essa
escritora muitas vezes buscava o esquecimento no álcool, pois o conseguia se esquecer
de outra maneira. Por outras vezes escrevia, e suas letras foram tecendo palavras, frases,
páginas inteiras que lhe lembravam, a todo o momento, que mundo e livro duplicavam-se.
No entanto, isso o lograva suturar o buraco, o vazio, que sempre restara em seu centro,
que era também o do livro.
Assim, escreveu livros “incompreenveis, e que foram lidos”
248
. Escrever era para
ela a noite, o escuro do porão onde brilhava o Aleph, o buraco do qual se controla a saída,
porque ali se sabe que “não é preciso se matar todos os dias, visto que é possível se matar a
qualquer dia”.
249
E seguiu escrevendo. Escreveu muito, mas cada livro era sempre o mesmo, pois ela
ignorava a linha reta. Em Duras não início ou fim: simplesmente, há. “Antes de
começar, tudo recomeça; antes de realizar, repetia, e essa espécie de absurdo consistia
em voltar sempre sem nunca ter partido, ou em começar para recomeçar (...)”.
250
E, assim,
foi escrita Lol, que está escrita em Amor, que também se lê em Escrever. Assim se revela o
traço de Duras, tecendo seus belos bordados de letras, as bordaduras da escrita, suas
bordas, que, ao mesmo tempo em que a aprisionam no finito espaço de um livro, a
libertam, no próprio ponto de nunca deixá-la chegar ao fim, porque o fim es sempre mais
adiante, inatingível. E suas letras seguem refletindo eternamente sua imagem, até aquele
ponto em que esta desaparece. Ali reside o vazio intangível, mas sempre desejado.
248
DURAS. Escrever, p.33.
249
DURAS. Escrever, p.27-8.
250
BLANCHOT. O livro por vir, p.137
94
CO N C L U S ÃO
É tudo?
Não. É não-tudo.
A frase permanece aberta, não conhece fim
M. Duras, Amor.
Y.A.: Vós tendes um tulo para o próximo livro?
M.D.: Sim. O livro em desaparecimento.
M. Duras, É tudo.
As crianças estão brincando do lado de fora, o barulho dos gritos chegam pela brisa
que suavemente invade por sua janela. esta ela, Duras, assentada em sua escrivaninha
perto da janela, fechada na sua solidão essencial, naquela Trouville sua cidade buraco,
que, assim como S. Thala, estará sempre lá, bordejada pelo rio, mas que também o
ultrapassa. E repete: “Aqui é S. Talah, até o rio. (...) Depois do rio é ainda S. Talah”,
251
e
segue pelo caminho circular da escritura que não conhece fim.
É naquela “casa-livro”,
252
naquele quarto, cercada por garrafas vazias e “tinta preta
impossíveis de achar em outro lugar ”,
253
que ela trabalhava na construção de seu vaso, de
seu vazio, mas acreditava estar escrevendo. Um livro?
É sobre o papel branco que a escritora depositava sua matéria bruta, suas letras, e,
como o oleiro que inicialmente manuseia a argila e lhe as primeiras formas, ela assim
fazia com sua escrita. Sabia o quanto era importante, para a escrita, a manutenção do
buraco, do vazio no meio, pois este seria, reconhecidamente, o centro gravitacional de toda
sua obra. Desta forma, Duras produziu seu artifício, sua escritura: moldando as letras em
palavras, depois em frases, e logo em livros “completos e ilegíveis”. Com suas mãos
experientes e trêmulas seguiu retirando da linguagem seu excesso, desnudando-a e, por
vezes, destruindo-a, para manter a mais fina borda entre o seu ser, suas mãos e o abismo
que se lhe apresentava. Essa borda não pôde impedi-la do contato com o vazio fonte
251
DURAS. Amor, p.40-41.
252
Expressão tomada de empréstimo do texto de Lucia Castello Branco, De Duras para Blanchot: minha
solidão conhece a sua. Versão eletrônica. p.4.
253
DURAS. Escrever, p.15.
95
infinita de onde lhe vinha a obra ou, segundo Blanchot, ponto puro de inspiração de que
ela [obra] vem, e que só parece poder atingir desaparecendo como obra”.
254
Contudo,
ajudou a protegê-la de sua força atrativa que insistia em tragá-la para seu interior.
Conforme verificamos no nosso percurso, Duras escreveu livros de borda, que
contornaram e contiveram os vazios, deixando-os, dessa maneira, mais aparentes. Sua obra
transitou pelos enigmáticos caminhos da memória lugar mesmo da ausência, da lacuna,
como ensina Lucia Castello Branco através de relatos autobiográficos de sua infância na
Indochina, dos amores vividos e perdidos, das experiências dolorosas. Mas também,
adentrou pelo mundo da ficção aquele dos “existentes-não-reais”,
255
como escreve
Llansol –, do cinema, pois sabia que, para si, as palavras seriam sempre insuficientes: o
que a marcaria seria, inquestionavelmente, a falta delas. Descobriu que não seria muito
diferente com as imagens, com o cinema que influenciou com sua “legibilidade” e
concisão, com sua busca insistente pelo elemento mínimo, pelo silêncio.
Essa foi a trajeria dessa importante escritora do século XX que aos moldes de
outras Penélopes e Sherazades, produziu uma obra imensa aprendendo a bordar,
construindo e criando a partir de seu vazio, conforme apresentamos nesta dissertação.
Como aquelas, Duras ousou enfrentar a morte, despertou o amor e encontrou o Aleph,
assumindo as nem sempre tranquilas consequências por seus atos. Acabou se perdendo,
mas, só por isso, salvando-se.
Em nosso percurso, tentamos seguir os rastros e restos (talvez pudéssemos dizer
ainda: as ruínas) deixados por Marguerite Duras, que, com sua escrita, expôs o vazio com
seu branco brilho e nos deixou arrebatados junto a Lol V. Stein. Do mesmo modo, ela
apresentou-nos o amor despido de suas vestes imaginárias, marcado pelo silêncio, pela
incompletude e pela não complementaridade entre os sexos. Essa escritora, que sempre
soube ser impossível a relação sexual, sabia que era impossível escrever. Mas não se
entregou à impotência e escreveu na sua impossibilidade.
254
BLANCHOT. O livro por vir, p.293.
255
Com essa expreso, Llansol se refere “a imaginação criadora própria do corpo dos afetos, agindo sobre o
território das foas virtuais”. LLANSOL. Lisboaleipzig 1 o encontro inesperado do diverso, p.120. Mas
também poderíamos pensar, numa articulação com a psicanálise, que esta expreso aproxima-se da noção de
semblante (onde a letra repousa), trabalhada por Lacan em seu Seminário 17: De um discurso que não seria
do semblante. Ou seja, figuras que portam idéias que ultrapassam as palavras, apesar de encontrarem suporte
nas representações. Portanto, os existentes-não-reais no contexto durasiano, poderiam ser entendidos como
aqueles personagens ficcionais criados pela autora para dar suporte a afetos e representações que evocariam o
próprio Real.
96
Com Lol. V. Stein, descobrimos a palavra-buraco, aquela que não pôde nunca ser
pronunciada, e fomos remetidos, para além dos limites da linguagem, ao impossível de ser
dito. E, embora ainda estivéssemos muito próximos da borda, isso não impediu que
fôssemos arrebatados, não apenas como se fôssemos raptados ou lançados para fora da
linguagem, mas como se estivéssemos extasiados pela brancura do vazio que ali se
delineara. Lol nos mostrou as terras limites, a lituraterra, a letra que sulca, escava o litoral
localizado por Lacan entre saber e gozo. E por lá também passamos.
Foi nos escritos dos contornos de seu nome, Lol, aos moldes das escritas
ideográficas, que aproximam linguagem e Real, que expusemos aqui o buraco da letra que
revelaria, por debaixo o véu (do vestido), o não-todo que marca o feminino. Em seu
interessante Patu: a mulher abismada, Holk indica que a gica no livro O
deslumbramento é diferente daquela fálica simbolizada, limitada. Trata-se de uma lógica
feminina, isto é, positiva (por não indicar necessariamente a falta, a descompletude, mas,
sim, o ilimitado) e inconsistente, uma vez que o “espaço nãotodo [é] um conjunto aberto
definido pela impossibilidade de circunscrever uma totalidade”.
256
Assim, demonstramos ser Lol o próprio buraco (O). Ela é literal, incompleta e
emoldurada por suas bordas (L), bordas que lhe dão consistência e a sustentam,
protegendo-a de ser tragada para seu interior. E o que dizia Duras sobre sua escrita? Que
ela foi o instrumento, o artifício que lhe permitiu sair do buraco, salvar-se, porque os
vazios, os brancos se fizeram cada vez mais presentes, mais perigosos. Pareceu-nos, nas
elaborações produzidas por este trabalho, haver em Lol muito de sua criadora.
Com a história de Lol aprendemos o que Lacan também ensinou: há uma cisão entre
a visão e o olhar, porque algo resta sempre elidido, fora do campo da representação. Lol
está nesse lugar, fora. Ela não existe, ela ex-siste, é aquele ponto além, virtual, inatingível
onde a imagem é formada. Ela não tem consistência e, para lhe dar uma, Duras inventou o
nó, que foi atado por Hold, Tatiana e nossa heroína. Mas, ainda, por esse quarto elemento,
a ppria Duras,
257
que permitiu ao permanecer apesar de o esconder o buraco que
persistia em seu centro. Ela apenas o bordejou.
256
HOLK. Patu: a mulher abismada, p.39.
257
Segundo Lacan em sua “Homenagem...”, existe outro ternário, atado em um nó que é formado por Duras,
o Arrebatamento de Lol V., tomado como objeto em seu próprio nó”, e também o leitor (no caso, ele
próprio, Lacan): “Isso legitima que eu aqui introduza Marguerite Duras, (...), num terceiro ternário, um de
cujos termos é o arrebatamento de Lol V. Stein tomado como objeto em seu próprio nó, e onde eis-me o
terceiro a introduzir um arrebatamento, no meu caso decididamente subjetivo”. LACAN, J. Homenagem a
Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p.199.
97
Portanto, a partir do livro O deslumbramento, pudemos observar que ao mesmo
tempo em que ele revela o procedimento de escritura de Marguerite Duras que se situa
além da compreensão, da transmissibilidade, pois ultrapassa a linguagem, e deixa exposto
o vazio da Coisa –, ele convoca o leitor, afeta-o, retira-o de sua posição confortável, pois o
coloca em “estado de perda (...), faz entrar em crise sua relação com a linguagem”.
258
A escrita em desaparecimento
Escrever sem “escrita”, levar a literatura
ao ponto de ausência em que ela desaparece,
em que não precisamos mais temer seus segredos que são mentiras,
esse é o grau zero da escrita”, a neutralidade
que todo escritor busca, deliberadamente ou sem o saber,
e que conduz alguns ao silêncio.
M. Blanchot, O livro por vir.
O torno já concluiu algumas voltas, o vaso está delineado, mas Duras prossegue em
seu incansável ofício, subtraindo da linguagem os excessos. E, buscando o mínimo,
encontra a letra, que é também a letter/litter,
259
o resto dessa operação. Como pudemos
examinar, é assim que o Amor é escrito: nos intervalos vazios entre uma letra e outra, entre
uma frase e outra, nos silêncios, nos vazios que nos aproximam do nada que define o amor.
À pergunta que talvez persista ao leitor: “o que há de amor neste livro?”, poderíamos
responder, a partir do investigado até aqui, que ele se encontra, justamente, no nada, no
silêncio que a escritura preserva e alastra. Afinal, aprendemos pela leitura lacaniana do
mito de Poros e Penia que amar “é dar o que não se tem” a quem não pediu nada. Talvez,
no livro Amor, não se trate de um amor entre os personagens, mas de um amor pela escrita,
amor tal que a permitisse encontrar o vazio em seu destino, o nada, e a realizar-se rumo ao
seu desaparecimento. Nesse sentido, encontramos suporte no belo trabalho de Paulo de
Andrade, Nada no dia se da noite esta passagem, no qual o autor revela que amor e
destruição o os outros nomes da escrita durasiana. Segundo o autor,
258
BARTHES. O prazer do texto, p.20.
259
Brincadeira joyciana, tomada por Lacan que aproxima a letra, da carta, do lixo/resto, convocando a uma
leitura que concerne à materialidade significante e não à transmissibilidade de uma mensagem.
98
Existe sempre, ao lado da palavra amor, a proximidade de uma outra palavra,
que a silencia, quebra, reconduz para fora do amor. Essa “palavra neutra que
porta o desejo neutro” apenas se dissimula na palavra destruir. (...). Digamos
aqui, então, sem medo de perdê-la, porque ancestral e perdida, destruída e
infinita, essa palavra: escrever.
260
Constatamos que, para se chegar a essa construção da escrita, que “também foi uma
destruição enorme”,
261
Duras precisou de um longo percurso de extração e de grande
intimidade com os brancos, com os buracos e furos, enfim, com os vazios. Nesse livro,
marcado pelo anonimato das personagens, pela liberdade significante que não se prestou a
decalcar nenhum significado, distinto por certa pobreza (falta de elegância) da linguagem,
portanto, pelo uso da letra, a escrita atingiu o seu limite e o ultrapassou. Esse é o ponto
paradigmático e paradoxal da escrita durasiana, que buscamos evidenciar no presente
trabalho, onde escrever se fez barreira, borda, ante à enxurrada pulsional, ao gozo. Mas
também como furo, vazio, a escrita se abriu a um Outro Gozo, situado num certo infinito
feminino, além da linguagem. Esse é o ponto no qual escrever é também não escrever, é o
ponto de encontro com a impossibilidade da escrita. E, só assim, a escritura se torna
completa e, por isso, ilegível.
Aprendemos que escrever no ponto da impossibilidade é fazer amor, é fazer poesia, é
fazer existir, mesmo que contingencialmente, a relação sexual, num lugar onde ninguém a
espera – num ponto de letra –, pois ela não se faz na complementaridade entre os sexos, ela
se dá no próprio ponto da não equivalência, na falta, na impossibilidade.
Sendo assim, se se esperava, a partir do título, Amor, encontrar um amor idealizado,
imaginário e completo, que tem o mote em “viverão felizes para sempre”, o que se
encontrou foi outra coisa, pois neste livro é de outro amor que se trata. É ao amor real,
impossível, que Duras se refere, semelhante ao amor dos trovadores à época do amor
cortês; reservadas, é claro, algumas diferenças.
262
No amor cortês, é atribuído à dama o
lugar inacessível, interdito e, por vezes, cruel, o que leva o trovador a cantar como forma
de criar uma borda para acessar este objeto impossível. Mas, ao mesmo tempo, essa borda
o ajuda proteger-se daquele lugar, do enlouquecedor vazio que marca para sempre o lugar
da Dama, da Mulher.
260
ANDRADE. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.215.
261
Cf: DURAS citada por ANDRADE, Paulo. Nada no dia se vê da noite esta passagem, p.218.
262
Diferenças que se observam, especialmente, no que concerne à elegância e a beleza com que os trovadores
cantavam seus amores impossíveis.
99
Já o amor em Amor, conforme desenvolvemos neste trabalho, é também aquele
impossível entre uma mulher, a qual poderíamos chamar de inexistente, pois ela não está
mais ali (talvez esteja muito além dos limites de S. Thala, inacessível), e um homem, que
tenta apreendê-la toda. Ela ocupa a posição do não-olhar, da mancha, daquele ponto vazio
da Coisa inatingível, vazia, apenas bordejável. Seu corpo é apenas uma casca, um resto
para o qual o homem, viajante, se dirige sem nunca ser atendido ou ouvido em suas preces
para possuir e compreender toda aquela mulher. Nesse sentido, a escrita faz às vezes da
trova, bordejando o vazio que restou, criando uma representação para a Coisa, uma forma
de abordar o inabordável, de nomear o inominável. Daí escutarmos ressoar que:
Escrever (...) não se pode.
E se escreve.
263
E, assim, concluímos a última volta do torno, aquela que nos reconduz ao início onde
tudo começa novamente e infinitamente, nos moldes durasianos. O vaso está construído
com suas bordas de letras, mas nunca completo, pois o vazio em seu centro permanece,
para sempre.
263
DURAS, Marguerite. Escrever... op. cit. p. 63-4
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YANN, Andréa. M.D. Trad. Mírian Paglia Costa. São Paulo: Marco Zero, 1987.
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