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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Antonia da Conceição Espírito Santo
Cognições Sociais e Discursos: Renato Russo em diálogo com
alunos de uma escola pública paulistana
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Antonia da Conceição Espírito Santo
Cognições Sociais e Discursos: Renato Russo em diálogo com
alunos de uma escola pública paulistana
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE
em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra.
Regina Célia Pagliuchi da Silveira.
SÃO PAULO
2009
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Banca Examinadora
...........................................................................................
...........................................................................................
...........................................................................................
O Sonho possível
Ai de nós, se deixarmos de sonhar sonhos possíveis.
Ai daqueles e daquelas, entre nós, que pararem com a sua capacidade de
sonhar, de inventar a sua coragem de denunciar e de anunciar.
Ai daqueles e daquelas, que se negarem a visitar, de vez em quando, o amanhã, o
futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora.
Ai daqueles que, em lugar desta viagem constante ao amanhã, se atrelam a um
passado de exploração e de rotina.
Paulo Freire
AGRADECIMENTOS
A gratidão é uma forma de compartilhar o sentimento de satisfação pela
concretização de um objetivo. Portanto, meus sinceros agradecimentos a todos
aqueles que contribuíram, valiosamente, na realização deste trabalho:
à Professora Doutora Regina Célia Pagliuchi da Silveira, coenunciadora
deste trabalho, levando-me a aprimorar e ampliar meus conhecimentos, além
de sua sabedoria, paciência e generosidade na orientação;
às Professoras Doutoras Doroti Maroldi Guimarães e Marilena Zanon, pela
valiosa contribuição e sugestões apresentadas a este trabalho;
aos Professores do Programa de Língua Portuguesa da PUC-SP, que me
proporcionaram momentos de reavaliação de meus conhecimentos;
aos colegas do Mestrado e, em especial, à Deborah Gomes de Paula, pelo
apoio e pelas importantes contribuições;
à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro;
à Direção da Escola Estadual Caetano de Campos-Consolação, pela
tolerância às minhas frequentes manifestações de angústia e aos alunos do
primeiro ano do ensino médio, do diurno, que me ofereceram a base deste
trabalho.
aos meus familiares, pela compreensão e incentivo;
e a Deus, por me fazer entender que Ele é o princípio e o fim de todas as
coisas.
Cognições Sociais e Discursos: Renato Russo em diálogo com alunos de
uma escola pública paulistana
Antonia da Conceição Espírito Santo
Dissertação situada na Análise Critica do Discurso, em interdisciplinaridade com a
Linguística de Texto, a Teoria das Representações Sociais e a Teoria da Enunciação. Tem
por Objetivo Geral, contribuir para os estudos dos papéis sociais, em diferentes grupos
sócio-culturais brasileiros e por Objetivos Específicos: identificar os diferentes papéis
sociais que compõem a estrutura da sociedade do nosso sertanejo nordestino; examinar
qual funcionamento esses papéis têm entre si, a partir da interação do sertanejo nordestino
com outros grupos sociais; e reconhecer os valores culturais e ideológicos, contidos na
representação dos diferentes papéis sociais examinados.
Justifica-se, pois frequentes avaliações da educação brasileira apontam a ineficiência das
escolas públicas no processo ensino-aprendizagem e as soluções apontadas são,
comumente, apresentadas por profissionais que atuam fora da escola e, portanto, o
contexto da sala de aula e o perfil do aluno o desconsiderados. O ponto de partida da
investigação foi conhecer as diferentes representações sociais, que são formas de
conhecimento armazenadas na memória de longo prazo dos alunos, através de um
questionário para caracterizá-los e para a escolha de uma música de suas preferências. A
hipótese orientadora da pesquisa decorre da dialética entre o social e o individual e o
procedimento metodológico foi trico-analítico, o que propiciou a análise do texto-base a
partir das categorias Sociedade, Cognição e Discurso, sendo complementada por
intertextos.
Os resultados obtidos indicam que: 1) o texto-base traz, representado em língua, uma
denúncia de Renato Russo contra a injustiça e a opressão social, relativas às classes
carentes, oriundas da migração nordestina; 2) a metrópole é representada por diferentes
grupos sociais, cada um com papéis sociais específicos, determinados pela ideologia do
Poder; 3) o Poder se institui a partir do poder econômico, que reorganiza as demais
hierarquias sociais, presentes nas representações dos marcos de cognição social, intra,
inter e extragrupais. Conclui-se que a cidadania não é atribuída a todos os brasileiros, pois,
as classes mais carentes têm dever com o Estado, porém, o Estado não tem dever com
elas.
Palavras-chave: Análise Critica do Discurso; Representações Sociais; o cidadão brasileiro
e os Discursos Institucionais.
Social Cognition and Discourse: Renato Russo in a dialog with São Paulo
public school students.
Antonia da Conceição Espírito Santo
This Dissertation is situated on the Critical Analysis of the Discourse, in interdisciplinarity
with Text Linguistics, Social Representation Theory and Enunciation Theory. Its General
Purpose it to contribute with the study of the different roles in different Brazilian social and
cultural groups, and its Specific Purposes are: to identify the different social roles forming
the social structure of our northeastern country man (“sertanejo”); to examine how such
roles function, focusing the interaction of the northeastern country man with other social
groups; and to recognize the cultural and ideological values contained in the representation
of the different social roles examined.
It is justified that the frequent evaluations of Brazilian education evidence the inefficiency of
public schools in the teaching-learning process, the solutions commonly presented being
given by professionals who are out of school and, thus, the classroom context and the
student profile are not considered. The setting point of the investigation was to know the
different social representations, which are kinds of knowledge stored in the students’ long
term memory, by means of a questionnaire to characterize them and to choose one of their
favorite songs. The hypothesis guiding the research results from the dialect between the
social and the individual aspects, and the methodological proceeding was the theoretical-
analytical one, which enabled the analysis of the base-text, taking into consideration the
categories Society, Cognition and Speech, being supported by internal texts.
The results obtained evidence that: 1) the base-text brings Renato Russo’s complaint
against social injustice and oppression in the lower classes resulting from northeastern
migration; 2) the big city is represented by different social groups, each one with specific
social roles determined by the Power ideology; 3) the Power is established by the economic
power, which reorganizes the other social hierarchies, present in the representations of the
social cognition signs, intra, inter and extra group. In conclusion, the citizenship is not
attributed to all Brazilian citizens,
since lower classes are subject to the State, although the
State is not responsible for them.
Key-words: Critical Analysis of the Discourse; Social Representations; The Brazilian
Citizen and the Institutional Discourse.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO....................................................................................................01
CAPÍTULO I
MATERIAL E MÉTODOS UTILIZADOS NA SELEÇÃO DO TEXTO-BASE E
SUA CONTEXTUALIZAÇÃO....................................................................................07
1.1 A pesquisas para seleção do material ............................................................08
1.2 Resultados obtidos dos questionários...............................................................09
1.2.1 Idade dos alunos.....................................................................................09
1.2.2 Naturalidade dos alunos e dos pais.........................................................10
1.2.3 Identificação por mudanças de pontos geográficos do país ...................11
1.2.4 A seleção do texto-base ..........................................................................12
1.3 Métodos utilizados ...........................................................................................13
1.3.1 As categorias textuais da narrativa de história .......................................13
1.3.2 As representações sociais ......................................................................14
1.4. O compositor Renato Russo e o texto-base “Faroeste Caboclo” ....................16
1.4.1 Apresentação do texto-base “Faroeste Caboclo” ...................................19
1.4.2 O texto-base ...........................................................................................20
1.4.3 A temática do álbum “Que país é este” ..................................................24
1.4.4 “Faroeste Caboclo” e a temática do álbum .............................................29
1.4.5 Intertextualidade no álbum “Que país é este” .........................................33
1.4.5.1 Intertexto 1: O reggae ..............................................................33
1.4.5.2 Intertexto 2: Baader-Meinhof blues .............................................34
1.4.5.3 Intertexto 3: Metrópole ................................................................36
CAPÍTULO II
FUNDAMENTOS TEÓRICOS: LINGUÍSTICA DE TEXTO, TEORIA DAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO, COM
VERTENTE SÓCIO-COGNITIVA ............................................................................37
2.1 A Linguística de Texto .....................................................................................38
2.1.1 Os esquemas mentais ...........................................................................42
2.1.2 A Teoria da Memória por armazéns ......................................................44
2.1.3 A crônica e a estrutura textual argumentativa ........................................47
2.2 Intertextualidade: reconstrução histórica por intertextos .................................50
2.3 A Teoria das Representações Sociais .............................................................54
2.4 Análise Crítica do Discurso ..............................................................................58
2.5 Polifonia ...........................................................................................................64
2.6 O texto e as expressões indexais ....................................................................65
2.7 A construção das figuras no intra-texto e as noções de relevância e
saliências .........................................................................................................67
CAPÍTULO III
ANÁLISES DO TEXTO-BASE “FAROESTE CABOCLO” E RESULTADOS
OBTIDOS .................................................................................................................72
3.1 Análise do texto-base ......................................................................................73
3.1.1 Sociedade ...............................................................................................73
3.1.1.1 Grupo Social: Cristianismo .............................................................74
3.1.1.2 Grupo Social: Os Excluídos, sócio-economicamente ....................81
3.1.1.3 Grupo Social: Moradores de grandes centros urbanos .................85
3.1.1.4 Grupo Social: dos Bandidos ...........................................................87
3.1.1.5 Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas e dos
Usuários de drogas ........................................................................89
3.1.1.6 Grupo Social: Instituições Penais e Policiais .................................91
3.1.1.7 Grupo Social: Mídia televisiva.........................................................92
3.1.1.8 Grupo Social: Os Corruptos ..........................................................93
3.1.1.9 Grupo Social: O Extragrupo ..........................................................94
3.1.1.10 Grupo Social: dos Migrantes ..........................................................94
3.1.1.11 Grupo Social: Os Políticos .............................................................96
3.1.1.12 Grupo Social: da Família ................................................................97
3.1.2 Cognição .................................................................................................97
3.1.3 Discurso ...............................................................................................106
3.1.3.1 Os episódios narrativos .................................................................107
3.1.3.2 A estrutura argumentativa em “Faroeste Caboclo” .......................111
3.1.3.3 O título do texto-base “Faroeste Caboclo” ...................................113
3.1.3.4 As pressuposições e subentendidos em “Faroeste Caboclo” ......114
3.1.4 O papel dos intertextos e interdiscursos, na leitura de reconstrução
histórica do texto-base ..........................................................................117
3.1.4.1 Intertexto 1: O reggae ..................................................................117
3.1.4.2 Intertexto 2: Baader-meinhof blues ..............................................118
3.1.4.3 Intertexto 3: Metrópole .................................................................119
3.1.4.4 Análise dos intertextos e “Faroeste Caboclo”, em relação ao
marco de cognição social .............................................................120
3.1.5 Outros intertextos: com referências bíblicas ........................................124
3.1.6 Conclusões obtidas das análises dos intertextos .................................129
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................135
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................139
ANEXOS.................................................................................................................144
Anexo 1: Que país é este ...................................................................................145
Anexo 2: Conexão Amazônica ...........................................................................146
Anexo 3: Tédio (com um T bem grande pra você) .............................................147
Anexo 4: Eu sei ...................................................................................................148
Anexo 5: Mais do mesmo ...................................................................................149
Anexo 6: Angra dos Reis ....................................................................................150
Anexo 7: Química ...............................................................................................151
Anexo 8: Depois do começo ...............................................................................152
Anexo 9: Se fiquei esperando meu amor passar ................................................153
Anexo 10: Índios ...................................................................................................154
Anexo 11: Pais e filhos .........................................................................................155
Anexo 12: Geração Coca-Cola .............................................................................156
Anexo 13: Sagrado coração .................................................................................157
Anexo 14: Questionário para pesquisa .................................................................158
1
APRESENTAÇÃO
Esta dissertação está vinculada à linha de pesquisa “Texto e Discurso nas
Modalidades Oral e Escrita”, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua
Portuguesa, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
A pesquisa realizada está situada na Análise Crítica do Discurso, com vertente
sócio-cognitiva e complementada com a Teoria das Representações e bases
tipológicas da Linguística de Texto.
Tem-se por tema, as formas de identificação sócio-cognitivas que alunos do
primeiro ano de ensino médio, da Escola Estadual Caetano de Campos
Consolação, têm com a música de Renato Russo.
Tem-se por pressuposto, que uma dialética entre o social e o individual, na
medida em que o social guia o individual e este o modifica.
Com visão pragmática, entende-se que os estudos de língua só podem ser
realizados no uso efetivo dos seus sujeitos produtores: locutor-interlocutor. Dessa
forma, a atenção dos linguistas volta-se para o texto e o discurso.
Entende-se que o discurso é uma prática sócio-interacional, que se define por
participantes, suas funções e suas ações. Dependendo do gênero textual, os
participantes do discurso representam papéis sociais diferentes e, dessa forma,
cada papel adquire uma função específica na interação comunicativa. Logo, as
ações o controladas pelas funções de cada papel que os participantes
representam.
A pesquisa realizada trata da letra de uma música de Renato Russo, que tem por
título “Faroeste Caboclo”. O discurso examinado é de denúncia e o seu
produtor constrói sentidos interagindo com seus interlocutores, de forma que eles
construam uma narrativa formalizada, textualmente, pela crônica contemporânea.
2
Entende-se, nesta dissertação, que o texto é visto como produto linguístico, que
traz representado em língua, a partir das intenções de seu produtor e da
informação. O texto-base analisado é relativo à denúncia da ausência de cidadania
para um determinado grupo social brasileiro, o sertanejo nordestino, embora a
cidadania seja um direito que as pessoas têm, ao se situarem em uma nação, pois
elas têm deveres para com o Estado e este para com elas.
O texto crônica é entendido, conforme Silveira (2000), como sendo da classe
textual opinativa. As crônicas têm suas origens na Europa, onde podiam ser
definidas como texto bibliotecário construído pelo cronista, que tinha por tarefa
ordenar, no tempo (cronos), um conjunto de textos escritos por outros autores.
Em Portugal, o cronista Fernão Lopes apresenta uma modificação para a crônica
original, introduzindo um texto escrito por ele próprio, para entrelaçar textos de
outros autores. Introduz, também, características do povo português, deixando de
focalizar apenas a vida da corte.
No Brasil, a crônica é introduzida no século XIX, com a chegada da corte
portuguesa no Rio de Janeiro, que, além de D. João VI, chega, também, a
imprensa e, consequentemente, o jornal.
Os textos crônicas passam a fazer parte do Folhetim, promovendo o acesso ao
público leitor, fato que lhes propicia interação lúdica. Atualmente, a crônica
jornalística é diferenciada em: crônica do cotidiano e crônica de notícia (cf. Scafuro,
1999).
A pesquisa desta dissertação está delimitada à crônica do cotidiano, que traz,
representado em língua, o cotidiano da vida dos brasileiros, tematizado pelo seu
produtor, Renato Russo. Busca-se examinar os papéis sociais que identificam um
determinado grupo social, no Brasil, o sertanejo nordestino.
As contribuições dadas pela Psicologia Social, com o Interacionismo
Simbólico, propiciaram que se entendesse a sociedade, tanto como uma estrutura,
quanto como um funcionamento.
3
A sociedade, vista como uma estrutura, compreende a identificação de quais
papéis sociais um determinado grupo social seleciona, por se identificar com eles.
A sociedade, entendida como um funcionamento, implica quais papéis sociais
podem interacionar-se, a partir de determinado núcleo.
Dessa forma, esta dissertação tem por Objetivo Geral, contribuir para os estudos
dos papéis sociais, em diferentes grupos sócio-culturais brasileiros e por Objetivos
Específicos:
1. identificar os diferentes papéis sociais que compõem a estrutura da
sociedade do nosso sertanejo nordestino, que migra de sua região, em
busca da sobrevivência em um grande centro urbano;
2. examinar qual funcionamento esses papéis têm entre si, a partir da
interação do sertanejo nordestino com outros grupos sociais;
3. reconhecer os valores culturais e ideológicos, contidos na representação
dos diferentes papéis sociais examinados.
Justifica-se esta pesquisa, pois, frequentes avaliações da educação brasileira
apontam a ineficiência das escolas públicas no processo ensino-aprendizagem e as
soluções apontadas são, comumente, apresentadas por profissionais que atuam
fora da escola e, portanto, o contexto da sala de aula e o perfil do aluno são
desconsiderados. Consequentemente, muitas vezes, planejamento, conteúdo e
metodologia são estabelecidos pelas escolas, antes de se conhecer o aluno,
quando não copiados, integralmente, ano após ano e questões relativas à
formação do sujeito-cidadão são minimizadas.
Outrossim, a questão da identidade do sertanejo nordestino, aqui tratada,
perpassa pela vida de muitos cidadãos brasileiros, inclusive de alguns alunos e/ou
seus familiares e, portanto, tratar dessa questão possibilitará a ampliação e/ou
reformulação de conhecimentos de mundo.
4
O ensino geral de língua tem suas origens na Grécia e decorre da necessidade dos
mestres transformarem seus alunos em nobres pensadores. Dessa forma, antes de
se conhecer o aluno, os professores traçavam, para eles, o perfil do aluno ideal, a
fim de que se comportassem como nobres. A partir dessa concepção, eram
selecionados os conteúdos, as tarefas e as avaliações e todos os alunos eram
instruídos para se identificarem com esse perfil traçado.
A partir do século XX, na Europa, houve mudança nas práticas de ensino. Opta-se
por um ensino específico, que atendesse às necessidades e dificuldades dos
alunos. O professor passa a ser visto como um facilitador do aprendizado e, para
tanto, faz-se necessário que se conheça o real perfil do aluno que está em sala de
aula.
No Brasil, ainda mantém-se o ensino geral nas escolas públicas, ou seja, trabalha-
se para um aluno ideal, não real e, portanto, surgem problemas de interação
professor-aluno e, consequentemente, de aprendizagem.
Portanto, esta dissertação se justifica, na medida em que busca conhecer o aluno
e, principalmente, resgatar suas cognições sociais, a partir de sua identificação
com valores atribuídos a papéis sociais representados no texto “Faroeste Caboclo”.
O procedimento metodológico adotado compreende:
1. seleção de informantes-alunos, num total de cento e cinquenta,
regularmente matriculados e frequentando o primeiro ano do ensino
médio, do período diurno, da Escola Estadual Caetano de Campos
Consolação.
Esses alunos foram selecionados tendo por critério o vivido e
experienciado por eles, por meio do discurso, pois, no ensino médio, a
maioria dos alunos tem por objetivo o acesso à universidade e, também,
muitos trabalham, portanto, conhecem as Instituições Sociais: Família,
Igreja, Escola e Empresa;
5
2. o texto para análise foi selecionado com base na escolha dos alunos,
que, pressupostamente, se identificavam com o papel de denunciador,
representado por Renato Russo, sobre a ausência de cidadania atribuída
a determinado grupo social brasileiro, o sertanejo nordestino;
3. as análises realizadas seguiram um procedimento teórico-analítico e a
seleção teórica está fundamentada nas categorias analíticas Sociedade,
Cognição e Discurso, propostas por van Dijk (1997).
Essas análises foram elaboradas percorrendo a alinearidade do texto
selecionado, de forma a diferenciar quantos grupos sociais estão
representados, quais papéis sociais identificam cada um deles e quais
valores culturais e ideológicos são atribuídos a cada papel social.
A hipótese orientadora da pesquisa decorre da dialética entre o social e o
individual. Dessa forma, tem-se por hipótese, que as cognições sociais dos alunos
são relativas a grupos sociais diferentes; todavia, os discursos públicos, tal como a
música de Renato Russo analisada, constróem cognições extragrupais, de forma a
dar origem a uma unidade imaginária, na diversidade de grupos sociais, onde estão
situados os diferentes alunos de uma mesma classe escolar.
Esta dissertação busca responder à seguinte pergunta:
No atual conflito existente entre os diferentes grupos sociais de alunos, de
uma mesma classe escolar, o que pode, unitariamente, identificá-los com
papéis sociais e quais valores são atribuídos a esses papéis?
Três capítulos compõem esta dissertação, a saber:
Capítulo I: “Material e métodos utilizados na seleção do texto-
base e sua contextualização” - apresenta resultados de uma
pesquisa realizada com alunos de uma escola pública paulistana e a
respeito da produção de letras musicais de Renato Russo, com o seu
papel de denunciador, na sociedade contemporânea, fato que o mantém
6
vivo, mesmo após sua morte, nas cognições sociais de alunos
adolescentes de uma escola pública paulistana. Apresenta, ainda, os
intertextos selecionados na obra de Renato Russo, que propiciaram a
síntese ou a progressão semântica das representações sociais,
atualizadas em língua, no texto-base selecionado.
Capítulo II: “Fundamentos teóricos: Linguística de Texto, Teoria das
Representações Sociais e Análise Crítica do Discurso, com vertente
sócio-cognitiva” revê fundamentos teóricos da Linguística de Texto,
relativos a esquemas textuais; da Teoria das Representações Sociais,
por seus papéis e questões identitárias; e da Análise Crítica do Discurso,
proposta por van Dijk (1997), através das Categorias Analíticas:
Sociedade, Cognição e Discurso.
Capítulo III: Análises do texto-base ‘Faroeste Caboclo’ e resultados
obtidos” - apresenta as análises que foram orientadas pela inter-relação
das categorias Sociedade, Cognição e Discurso, bem como os
resultados obtidos. Por se tratar de um texto narrativo-crônica, os
resultados obtidos são relativos aos episódios que compõem a narrativa
da história do texto analisado, de forma a descrever os papéis sociais e
seus devidos valores culturais e ideológicos.
7
CAPÍTULO I
MATERIAL E MÉTODOS UTILIZADOS NA SELEÇÃO DO TEXTO-
BASE E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO
8
CAPÍTULO I
MATERIAL E MÉTODOS UTILIZADOS NA SELEÇÃO DO TEXTO-
BASE E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO
Esta dissertação busca examinar os papéis sociais e os devidos valores atribuídos
a eles por Renato Russo, em seu texto musical “Faroeste Caboclo”.
Entende-se que as representações sociais não são meras formas de conhecimento
do mundo existencial, pois há uma convenção de valores sociais que integram cada
representação social. Essa prática social caracteriza os conhecimentos da
memória social de longo prazo, que guiam as formas de conhecimentos individuais,
de forma dialética: o social guia o individual e este modifica, progressivamente, o
social.
1.1 A pesquisa para seleção do material
O material selecionado, para análise, decorre da escolha feita por cento e
cinquenta alunos do primeiro ano do ensino médio, a partir do seguinte critério:
foi entregue aos informantes-alunos, para que eles respondessem, por escrito,
questionário (Anexo 14) composto pelas seguintes áreas:
a) identificação dos alunos, por naturalidade e idade;
b) identificação dos alunos e dos pais, por mudanças de pontos geográficos no
país;
c) a escolha do tipo de texto, que o aluno mais gosta de ler/ouvir.
1.2 Resultados
obtidos d
Em face da diversidade de respostas obtidas nos questionários
alunos e visando melhor caracterização e compreensão dos dados obtidos, foram
elaborados gráficos
, que serão apresentados a seguir,
idade dos alunos; n
aturalidade dos alunos e dos pais;
de pontos geográficos do país; e a
1.2.1 Idade
Nº de
alunos
Os dados,
ora apresentados
realidade das escolas públicas, amplamente divulgada na mídia, ou seja, a sala de
aula é composta por grupos com idade heterogênea. Todavia, há algo que os
identifica: são adolescentes
Aurélio
da Língua Portuguesa
0
30
60
90
120
150
14
15
Idade
obtidos d
os questionários
Em face da diversidade de respostas obtidas nos questionários
entregues aos
alunos e visando melhor caracterização e compreensão dos dados obtidos, foram
, que serão apresentados a seguir,
com as seguintes variáveis:
aturalidade dos alunos e dos pais;
i
dentificação por mudanças
de pontos geográficos do país; e a
seleção do texto-base.
dos alunos
ora apresentados
,
não revelam nenhuma novidade em relação à
realidade das escolas públicas, amplamente divulgada na mídia, ou seja, a sala de
aula é composta por grupos com idade heterogênea. Todavia, há algo que os
identifica: são adolescentes
; termo, este, assim caracter
izado pelo Novo Dicionário
da Língua Portuguesa
(1975):
15
16 17 18
acima de 18
9
entregues aos
alunos e visando melhor caracterização e compreensão dos dados obtidos, foram
com as seguintes variáveis:
dentificação por mudanças
não revelam nenhuma novidade em relação à
realidade das escolas públicas, amplamente divulgada na mídia, ou seja, a sala de
aula é composta por grupos com idade heterogênea. Todavia, algo que os
izado pelo Novo Dicionário
acima de 18
10
“adolescência. [Do lat. Adolescentia] S.f. (...) 2. Psicol. Período que se estende da
terceira infância até a idade adulta, marcado por intensos processos conflituosos e
persistentes esforços de auto-afirmação. Corresponde à fase de absorção dos
valores sociais e elaboração de projetos que impliquem plena integração social.”
Renato Russo, ao escrever o texto “Faroeste Caboclo”, tinha dezenove anos, logo,
um adolescente, fato que autoriza a inferência de que o autor escrevia, com
propriedade, sobre sua época, traduzindo as inquietações dos jovens. Levando-se
em consideração a definição acima, sobre adolescência, pressupõe-se que Renato
Russo representa o papel de porta-voz dos conflitos sociais e anseios de
autoafirmação, vividos por muitos adolescentes, desencadeando uma forte
identificação.
1.2.2 Naturalidade dos alunos e dos pais
Naturalidade dos alunos Naturalidade dos pais
Nº de
Alunos
150
120
90
60
30
0
Naturalidade Cidade de SP Interior de SP Nordeste Outros estados
11
Através deste gráfico, conclui-se que a maioria dos alunos, bem como seus pais,
deixou sua cidade de origem, vindo para São Paulo. Denota-se que a cidade de
São Paulo comporta cidadãos egressos de diferentes regiões brasileiras.
1.2.3 Identificação por mudanças de pontos geográficos do país
Identificação dos alunos e dos pais, por mudanças de pontos geográficos do país,
destacando-se os que nasceram na capital de São Paulo e os egressos de outras
cidades.
Naturalidade dos alunos Naturalidade dos pais
%
100
80
60
40
20
0
Naturalidade Cidade de SP Outras Cidades
Tem-se, neste gráfico, um retrato da grande metrópole, São Paulo: a população
migrante de outras cidades sobrepõe aos nativos. Setenta e quatro por cento
dos alunos pesquisados migraram de outras cidades, enquanto seus pais atingiram
o percentual de noventa por cento, índices altamente significativos, quando se
analisa os problemas sociais do sertanejo nordestino e das metrópoles brasileiras.
12
1.2.4 A seleção do texto-base
Todos os alunos indicaram, como texto de preferência para se ler/ouvir, nomes de
músicas, aparecendo como as mais votadas: “Faroeste Caboclo”, de Renato
Russo; Deixo”, interpretada por Ivete Sangalo; e “Senhor do Tempo”, de Charlie
Brown Jr., como se vê no gráfico a seguir:
Nº de
Alunos
150
120
90
60
30
0
Músicas Deixo Faroeste Caboclo Senhor do Tempo Outras
A partir dessa seleção, as três músicas mais votadas retornaram aos alunos, para
que escolhessem somente uma delas, de acordo com sua preferência, apurando-se
o seguinte resultado:
de
Alunos
150
120
90
60
30
0
Músicas Deixo Faroeste Caboclo Senhor do Tempo
13
“Faroeste Caboclo”, de Renato Russo, o texto mais votado, passou, então, a ser
considerado o texto-base desta pesquisa e será analisado tendo por critério a
segmentação da linearidade textual.
1.3 Métodos utilizados
O procedimento metodológico é teórico-analítico e orientado pelas categorias
textuais da narrativa de história e pelas representações sociais que identificam os
personagens dessa historia.
1.3.1 As categorias textuais da narrativa de história
O texto-base está formalizado pela narrativa de história e os estudos, realizados,
sobre tipologia de textos, indicam que a narrativa de história é um esquema textual,
designado superestrutura, por Kintsch e van Dijk (1978).
A superestrutura da história é definida por três categorias obrigatórias e uma
optativa: Apresentação, Conflito e Resolução, que podem ou não virem seguidas da
categoria Moral.
A categoria Apresentação agrupa as palavras e frases que constróem sentidos
relativos a uma situação de equilíbrio, construída com personagens, tempo,
cenário-espaço e espaço-cenário. Essa categoria reúne os sentidos relativos aos
papéis representados por cada personagem, situados em determinado tempo e
espaço, recorrendo aos conhecimentos sociais dos leitores, de forma a construir,
para eles, uma expectativa do que acontecerá.
A categoria Conflito reúne as palavras e frases que constróem sentidos relativos a
uma quebra de expectativa do leitor, de forma a construir, para eles, um conflito
14
vivido pelos personagens da história, que entram em desequilíbrio com a situação
inicial da Apresentação.
A categoria Resolução reúne as palavras e frases que constróem sentidos relativos
à forma como o conflito é solucionado, para que os personagens retomem o
equilíbrio, em suas relações de papéis.
A categoria Moral reúne as palavras e frases que constróem sentidos opinativos, ou
seja, valores que possam guiar os leitores a enfrentarem novas situações.
Uma narrativa de história, segundo Reis & Lopes (1988), pode ser Simples ou
Complexa. A Narrativa Simples é formalizada com apenas um episódio e cada um
deles é organizado pelas categorias: Apresentação, Conflito e Resolução. A
Narrativa Complexa é construída com um grande número de episódios, todos
interligados pela opinião do autor, que está agrupada na categoria Moral.
1.3.2 As representações sociais
Considerando-se que cada episódio compreende personagens, tempo e lugar, cada
personagem, dependendo do momento histórico e da situação geográfica, é
construído com papéis sociais que compõem a estrutura social do grupo, onde eles
se situam. Assim, os papéis sociais o representações identitárias de um grupo
social (cf. Resende & Ramalho, 2006).
O texto-base analisado traz, representado em língua, diferentes grupos sociais que
integram, em sua maioria, a cultura de massa, representada pelos grupos: dos
Excluídos, sócio-economicamente – composto pelos grupos dos Trabalhadores,
Rural e da Periferia, do Interior dos Bandidos; dos Traficantes; dos
Contrabandistas e dos Usuários de Drogas; das Instituições Penais e dos Policiais;
e dos Migrantes.
15
A cultura de elite está representada pelos grupos: dos Políticos; do Clérico; dos
Burgueses (pessoas de poder aquisitivo); da Mídia Televisiva; dos Corruptos; e o
grupo Urbano faz parte, tanto da cultura de massa, quanto da cultura de elite, pela
própria diversidade que lhe é peculiar.
Traz, também, caracterizado em língua, um grupo de Poder, representado pelos
grupos: dos Políticos, dos Policiais e das Instituições Penais, da Mídia Televisiva e
do Clérico, que impõem, ideologicamente, um grupo de valores positivos e
negativos, discriminando os demais grupos sociais.
Para se analisar os valores culturais ideológicos teoricamente, as análises estão
fundamentadas em van Dijk (2000), que propõe a ideologia vista como um conjunto
de valores impostos pelos participantes do Poder. Como tais participantes são
membros de grupos de Poder diferentes, as ideologias são plurais: grupo de Poder
no Tráfico de Drogas, grupo de Poder Político no Estado e grupo de Poder
Econômico e, consequentemente, os demais grupos sociais são marginalizados.
Ainda, segundo van Dijk, os grupos dominados e discriminados pelo Poder, em
certo momento, reagem, impondo, também, suas ideologias e, nesse conflito,
também o se pode falar na ideologia de um Poder, pois elas sempre serão
plurais.
Segundo Silveira (2007), os termos Ideologia e Cultura são definidos por um
conjunto de valores sociais, que guia o comportamento e a atitude das pessoas.
Todavia, diferença entre Ideologia e Cultura, pois esta compreende um conjunto
de valores atribuídos ao vivido e ao experienciado, socialmente, pelas pessoas,
conforme os seus objetivos e interesses.
As culturas, também, são plurais, assim como os grupos sociais, pois têm raízes
históricas e contemporaneidade; mas, a cada contemporaneidade ocorre uma
mudança, que produz uma dinâmica nos valores atribuídos, uma vez que os
problemas novos dos grupos sociais são resolvidos pelos valores histórico-sociais.
16
Assim, a Cultura é vista como um conjunto de valores transmitidos socialmente, no
e pelo próprio grupo social. Enquanto a Ideologia compreende um conjunto de
valores impostos pela(s) classe(s) de Poder, para se manter em sua posição e,
dessa forma, discriminar quem ameaça seu Poder. Os valores ideológicos são
estáticos e só desaparecem quando a classe de Poder, que os impõem,
desaparece e, ao aparecer uma nova classe de Poder, outra ideologia será
imposta.
1.4 O compositor Renato Russo e o texto-base “Faroeste
Caboclo”
Na tentativa de se caracterizar o texto-base selecionado para análise, poder-se-ia
dizer que:
Renato Manfredini nior nasceu em 1960 e faleceu em 1996. Teve infância e
adolescência tranquilas, em família de classe média alta, vivendo em Nova York,
dos sete aos dez anos, em função do trabalho do pai. Essa experiência, mais tarde,
o beneficiaria em sua primeira profissão, professor de inglês, língua que
aprendera, desde pequeno. Retornando ao Brasil, foi morar no Rio de Janeiro e,
depois, em Brasília. Dos quinze aos dezessete anos, teve problemas sérios de
saúde, impossibilitando-o, inclusive, de andar durante esse período.
Apesar da complicação natural da situação, Renato trancava-se em casa,
aproveitando o tempo para ler e estudar muito: ouvia música clássica, lia a
Enciclopédia Britânica, livros e revistas sobre música e a coleção “Os Pensadores”,
fato considerado, pela mãe, como atípico para um jovem de sua idade e justificado,
ironicamente, pelo próprio Renato, dizendo sou diferente”. Era extremamente bem
informado, tinha vasta cultura e gostava de planejar o futuro.
É nesse período que nasce o desejo de ser músico e cria uma banda fictícia, em
que o cantor/alterego chamava-se Eric Russel, cujo sobrenome foi em homenagem
ao filósofo Jean-Jacques Rousseau, ao pintor Henri Rousseau e ao filósofo
17
Bertrand Russell. Esta mistura filosófica e artística daria origem, posteriormente, ao
seu sobrenome artístico, Russo.
O compositor Renato Russo surge em meio à atmosfera juvenil da Brasília dos
anos setenta, assim caracterizada: o efeito da ditadura militar sobre a juventude
fazia parte do cotidiano desses jovens e marcaria a história de cada um;
estudantes na capital, muitos cresceram sob a exigência íntima de falar alguma
coisa sobre o assunto e, então, surgiram as bandas musicais que assumiram esse
papel e, por isso, seus fãs atribuíam-lhes caráter messiânico fato este muito
marcante em Renato Russo; a efervescência do lugar; as rodinhas dos jovens de
classe média, alguns eram filhos de professores, que moravam na Universidade de
Brasília, outros filhos de diplomatas ou de executivos, que se reuniam nos saguões
dos blocos habitacionais; a falta do que fazer, na capital do país, potencializa o
surgimento de diversas bandas musicais, opção fundamentalmente alternativa com
a chegada de discos de
punk rock
, trazidos de Londres; as “paqueras”, as primeiras
experiências com drogas, as bebedeiras, as brigas com os
playboys
”, a relação
com os policiais, etc. Aconteciam, também, as chamadas “rockonhas”, festas com
muito som e ervas, que acabavam, frequentemente, com a chegada da polícia.
Sobre essa época, Percino (2005, p. 4-5) comenta:
“Naquele engenho dos anos finais da ditadura, assumir uma postura
comportamental diferenciada era diretamente se comprometer com um estilo oposto
às regulamentações e protótipos oficiais. Conta-se que os policiais, apesar de tudo,
tinham um certo respeito devem ser filhos de políticos ...” e que, às vezes,
desafiavam os meninos, no máximo, para um embate de flexão de braços no meio
da rua. Renato, coitadinho, que tinha problema nas pernas, era sempre o último a
acabar as flexões. Calças rasgadas e alfinetes eram o suficiente para chocar a
sociedade brasiliense. Os garotos foram caracterizados como “o movimento punk
de Brasília” e o núcleo do grupo, do qual faziam parte os amigos do Renato, era
conhecido como “turma da colina”¹. Esses garotos reuniam-se para conversar,
partilhavam suas idéias, planejavam a montagem de bandas, que, aos poucos, iam
surgindo com apresentações nas esquinas das ruas, tendo como destaque o punk
_______________
1 Colina era o nome de um conjunto de quatro prédios, dentro da Universidade de Brasília.
18
rock, com nítida influência das bandas estrangeiras, que norteavam o universo
musical desses jovens. Essa referência musical estrangeira aconteceu porque o
Brasil, no final dos anos 70, vivia uma expectativa de abertura política e parte
da juventude ousava se expressar, ainda que marginalmente, seduzidos pelas
letras do punk rock vindo da Europa e que, além de toda a irreverência tão peculiar
a essas bandas, apregoava uma proposta nova, com a filosofia “faça-você-
mesmo”.
Assim, os jovens brasilienses da época assimilaram essas ideias,
buscando concretizar outro tipo de linguagem musical, outra via cultural,
expressa, sobretudo, pela presença conceitual, pelo apelo subjacente no
discurso
,
como afirma Percino (p. 6):
Cria-se que isso poderia cumprir o papel de agente canalizador de uma
existência renovada e até mesmo estimular, num momento adiante, uma agitação”
na maneira de interpretar e transformar os conteúdos cotidianos. O jovem
Russo, por exemplo, utilizava as letras do Sex Pistols nas
suas aulas de
inglês na Cultura Inglesa em Brasília; e tudo era uma grande novidade, pois a
irreverência e o modo cru com que as letras decodificavam a vida e o mundo
propunha aos alunos, mais do que o exercício da língua inglesa, um exercício
interpretativo e formador de opinião.”
É nesse cenário que Renato Russo, em 1978, formou sua primeira banda musical,
“Aborto Elétrico” e, em 1979, com dezenove anos, compôs letra e melodia de
“Faroeste Caboclo”, embora não a lançasse, naquele momento. Em 1982,
abandonou a banda e decidiu fazer trabalhos solos. Em 1984, com dois amigos,
cria a banda Legião Urbana”, atuando inicialmente como guitarrista, e depois,
como cantor, lançando o primeiro álbum, no ano seguinte, que alcança grande
sucesso e marca sua consagração, atingindo, então, os grandes anseios dos
jovens brasileiros, com seus refrões poderosos e letras que falavam de
inseguranças emocionais e do niilismo da geração crescida durante o regime
militar.
Em face desse contexto sócio-político tão efervescente da época, despertou-se o
interesse em pesquisar o porquê de as bandas de Renato terem sido assim
19
designadas. Para
Aborto Elétrico
duas versões: a primeira é que o nome teria
surgido em decorrência de uma invasão do
campus
da UNB, pelo Exército, numa
das famosas ações do governo, durante a ditadura militar, quando uma estudante
universitária grávida teria perdido o filho, em consequência de um cassetete elétrico
inventado em 1968 e dava choque utilizado por um soldado mais afoito; a
segunda, apresentada pelo próprio Renato, numa entrevista do grupo concedida à
Revista “Showbizz”, diz que o nome surgiu num daqueles encontros dos amigos, no
térreo de um dos blocos de apartamentos da Colina e, em suas divagações à
procura de um nome, aparecia a palavra
elétrico,
e alguém o chamou de
tijolo
elétrico
. Imediatamente, um de seus companheiros o corrigiu, dizendo que deveria
ser
Aborto Elétrico
. Acrescentara, ainda, que tal fato desmentia a
lenda
da primeira
versão.
Para o nome
Legião Urbana
, a explicação é que Renato pretendia montar um
núcleo mínimo para a banda baixo e bateria e convidar guitarristas e
tecladistas para tocarem como convidados, completando a banda e representando,
assim, uma legião de músicos da cidade. Entretanto, essa ideia não foi adiante,
mas o nome da banda permaneceu e Renato fez uma adaptação do mote cunhado
pelo imperador Júlio César
Romana Legio omnia vincit
, Legião Romana tudo
vence”, passando a usar a frase em latim como lema da banda:
Urbana
Legio
omnia vincit
, Legião Urbana tudo vence”, epíteto presente em quase todos os
encartes de álbum da banda.
1.4.1
Apresentação do texto-base “Faroeste Caboclo”
O texto-base “Faroeste Caboclo”, composto por Renato Russo em 1979, foi
lançado somente em 1987, em seu terceiro álbum com a banda Legião Urbana,
intitulado “
Que país é este
” – que é também o nome de uma das músicas do disco.
“Faroeste Caboclo”, com 159 versos e, aproximadamente, nove minutos de
duração, narra a trajetória de vida do personagem João de Santo Cristo, um
homem que sai de uma fazenda do interior da Bahia, segue para Salvador e depois
20
para Brasília, torna-se traficante, contrabandista, apaixona-se, tenta mudar de vida,
mas retorna ao crime e morre num duelo com seu rival.
É uma obra de ficção, do final dos anos setenta, porém, parece familiar ao retratar
temas ainda tão presentes nos dias atuais: desigualdade social, violência, drogas e
traficantes, criminalidade, contrabando, injustiças sociais e o papel da televisão.
Essa é uma característica que permeia, não somente essa letra, mas todo o álbum.
Renato Russo está caracterizado no texto como um compositor de denúncias e
denunciar implica explicitar o que socialmente é silenciado e proibido de ser dito e
todas as formas de proibição são reproduções ideológicas do Poder.
Assim, a seguir, será apresentado o texto-base, tema central desta pesquisa e,
em seguida, uma análise da temática das outras letras de música, inseridas no
mesmo álbum de “Faroeste Caboclo”, cujo objetivo é verificar as possíveis ligações
temáticas entre o texto-base e as demais composições, ampliando, desta forma, as
possibilidades de compreensão.
1.4.2 O texto-base
FAROESTE CABOCLO (Renato Russo)
1
Não tinha medo o tal João de Santo Cristo,
2
Era o que todos diziam quando ele se perdeu.
3
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
4
Só para sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu.
5
Quando criança só pensava em ser bandido,
6
Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu...
7
Era o terror da cercania onde morava
8
E na escola até o professor com ele aprendeu.
9
Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro
10
Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.
11
Sentia mesmo que era mesmo diferente
12
E sentia que aquilo ali não era o seu lugar
13
Ele queria sair para ver o mar
14
E as coisas que ele via na televisão
15
Juntou dinheiro para poder viajar
16
E de escolha própria, escolheu a solidão.
21
17
Comia todas as menininhas da cidade
18
De tanto brincar de médico, aos doze era professor.
19
Aos quinze, foi mandado pro reformatório
20
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror.
21
Não entendia como a vida funcionava –
22
Discriminação por causa da sua classe, sua cor
23
Ficou cansado de tentar achar resposta
24
E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.
25
E lá chegando foi tomar um cafezinho
26
E encontrou um boiadeiro com quem foi falar
27
E o boiadeiro tinha uma passagem
28
E ia perder a viagem, mas João foi lhe salvar.
29
Dizia ele: - Estou indo pra Brasília
30
Neste país lugar melhor não há.
31
Estou precisando visitar a minha filha
32
Eu fico aqui e você vai no meu lugar.
33
E João aceitou sua proposta e num ônibus entrou no Planalto Central.
34
Ele ficou bestificado com a cidade
35
Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal.
36
– Meu Deus, mas que cidade linda.
37
No Ano Novo eu começo a trabalhar.
38
Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
39
Ganhava cem mil por mês em Taguatinga.
40
Na sexta-feira ia pra zona da cidade
41
Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador.
42
E conhecia muita gente interessante
43
Até um neto bastardo do seu bisavô:
44
Um peruano que vivia na Bolívia
45
E muitas coisas trazia de lá.
46
Seu nome era Pablo e ele dizia
47
Que um negócio ele ia começar.
48
E Santo Cristo até a morte trabalhava
49
Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar.
50
E ouvia às sete horas o noticiário
51
Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar.
52
Mas ele não queria mais conversa
53
E decidiu que com o Pablo ele iria se virar.
54
Elaborou mais uma vez seu plano santo
55
E, sem ser crucificado, a plantação foi começar.
56
Logo, logo, os malucos da cidade souberam da novidade:
57
– Tem bagulho bom aí!
58
E João de Santo Cristo ficou rico
59
E acabou com todos os traficantes dali.
60
Fez amigos, freqüentava a Asa Norte
61
E ia pra festa de rock, pra se libertar.
62
Mas de repente
22
63
Sob uma má influência dos boyzinhos da cidade
64
Começou a roubar.
65
Já no primeiro roubo ele dançou
66
E pro inferno ele foi pela primeira vez.
67
Violência e estupro do seu corpo.
68
– Vocês vão ver, eu vou pegar vocês.
69
Agora o Santo Cristo era bandido
70
Destemido e temido no Distrito Federal.
71
Não tinha nenhum medo de polícia
72
Capitão ou traficante, playboy ou general.
73
Foi quando conheceu uma menina
74
E de todos os pecados ele se arrependeu.
75
Maria Lúcia era uma menina linda
76
E o coração dele pra ela
77
O Santo Cristo prometeu.
78
Ele dizia que queria se casar
79
E carpinteiro ele voltou a ser.
80
– Maria Lúcia pra sempre eu vou te amar
81
E um filho com você eu quero ter.
82
O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe com
dinheiro na mão.
83
E ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta
84
Uma resposta de João:
85
Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criança
86
Isso eu não faço não.
87
E não protejo general de dez estrelas,
88
Que fica atrás da mesa com o cu na mão.
89
E é melhor o senhor sair da minha casa
90
Nunca brinque com um Peixes, ascendente Escorpião.
91
Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse:
92
– Você perdeu sua vida, meu irmão.
93
Você perdeu sua vida, meu irmão. Você perdeu sua vida, meu irmão.
94
Essas palavras vão entrar no coração
95
E eu vou sofrer as conseqüências como um cão.
96
Não é que o Santo Cristo estava certo
97
E seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar.
98
Se embebedou e no meio da bebedeira
99
Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar.
100
Falou com Pablo que queria um parceiro
101
E também tinha dinheiro e queria se armar.
102
Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia em
Planaltina.
103
Mas acontece que um tal de Jeremias,
104
Traficante de renome, apareceu por lá.
105
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
106
E decidiu que com João ele ia acabar.
23
107
Mas Pablo trouxe uma Winchester-22
108
E Santo Cristo já sabia atirar.
109
E decidiu usar a arma só depois
110
Que o Jeremias começasse a brigar.
111
O Jeremias, maconheiro sem-vergonha,
112
Organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar.
113
Desvirginava mocinhas inocentes
114
E dizia que era crente, mas não sabia rezar.
115
E Santo Cristo há muito não ia pra casa
116
E a saudade começou a apertar.
117
– Eu vou embora, eu vou ver Maria Lúcia.
118
Já está em tempo de a gente se casar.
119
Chegando em casa então ele chorou
120
E pro inferno ele foi pela segunda vez.
121
Com Maria Lúcia Jeremias se casou
122
E um filho nela ele fez.
123
Santo Cristo era só ódio por dentro e então o Jeremias pra um duelo
ele chamou.
124
Amanhã às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é pra lá que
eu vou.
125
E você pode escolher as suas armas, que eu acabo mesmo com você,
seu porco traidor.
126
E mato também Maria Lúcia, aquela menina falsa pra quem jurei o meu
amor.
127
Santo Cristo não sabia o que fazer
128
Quando viu o repórter na televisão
129
Que deu notícia do duelo na TV
130
Dizendo a hora e o local e a razão.
131
No sábado então, às duas horas,
132
Todo o povo sem demora foi lá só para assistir
133
Um homem que atirava pelas costas
134
E acertou o Santo Cristo e começou a sorrir.
135
Sentindo o sangue na garganta,
136
João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir.
137
E olhou pro sorveteiro e pras câmeras
138
E a gente da TV filmava tudo ali.
139
E se lembr
ou de quando era criança e de tudo que vivera até ali.
140
E decidiu entrar de vez naquela dança
141
– Se a via-crucis virou circo, estou aqui.
142
E nisso o sol cegou seus olhos e então
Maria Lúcia ele reconheceu.
143
Ela trazia a Winchester-22
144
A arma que seu primo Pablo lhe deu.
145
– Jeremias, eu sou homem, coisa que você não é.
146
E não atiro pelas costas não.
147
Olha pra cá filha-da-puta, sem vergonha.
148
Dá uma olhada no meu sangue
24
149
E vem sentir o teu perdão.
150
E Santo Cristo com a Winchester-22
151
Deu cinco tiros no bandido traidor.
152
Maria Lúcia se arrependeu depois
153
E morreu junto com João, seu protetor.
154
E o povo declarava que João de Santo Cristo era santo porque
sabia morrer.
155
E a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que eles
viram na TV.
156
E João não conseguiu o que queria, quando veio pra Brasília
com o diabo ter.
157
Ele queria era falar pro presidente,
158
Pra ajudar toda essa gente
159
Que só faz sofrer.
1.4.3 A temática do álbum “Q
ue país é este”
A começar pelo título do álbum,
Que país é este –
segundo a banda, é uma
exclamação de desabafo, mas repercute como pergunta, ao ser cantada pelos
jovens que aponta em direção à discussão de temas nacionais, como forma de
desmascaramento da sociedade, esse é um disco que mostra a força inicial do
rock
básico da banda, tendo o protesto à sociedade como tônica, além de
questionamentos existenciais.
O álbum é composto por nove músicas todas escritas por Renato Russo e em
parcerias em que alguns tulos antecipam o conteúdo de suas letras, como em:
Conexão Amazônica
, escrita em 1980, denuncia o uso de uma região que interliga
o tráfico internacional ao tráfico brasileiro;
Tédio
, escrita em 1979, retrata um
período de ostracismo resultante da situação sócio-política do Brasil; e
Angra dos
Reis
, que aborda a relação entre a construção de usinas e os prejuízos ambientais
refletidos na vida humana.
Outro aspecto relevante desse álbum é que, das nove músicas, oito apresentam
foco narrativo em primeira pessoa e apenas em “Faroeste Caboclo” tem-se o foco
narrativo em terceira pessoa, quase em sua totalidade. Contudo, a tônica do álbum
é que o “EU” assume a cosmovisão do “ELE”, encarnando-o, para criticá-lo.
25
É uma lógica discursiva para denunciar a mísera alternativa de realização
individual, como em “O reggae”, em que o autor utiliza-se da ironia, afirmando e
criticando, ao mesmo tempo:
“Assistia o jornal da TV / E aprendi a roubar pra vencer / Nada era como eu
imaginava / Nem as pessoas que eu tanto amava / Mas e daí? / Se é mesmo assim,
/ Vou ver se tiro o melhor pra mim.”
Nessa perspectiva, vêm à tona questões relevantes na construção da cidadania e
da identidade brasileira, como:
a) A floresta Amazônica e os índios
Terceiro mundo se for / Piada no exterior / Mas o Brasil vai ficar rico / Vamos
faturar um milhão / Quando vendermos todas as almas / Dos nossos índios em um
leilão
.” (Que
país é este – Anexo 1)
“Os tambores da selva começaram a rufar / A cocaína não vai chegar / Conexão
amazônica está interrompida” (Conexão Amazônica – Anexo 2)
Os recursos naturais, as florestas brasileiras não são preservadas, são invadidas
por estrangeiros e, consequentemente, a vida e as terras dos índios o,
frequentemente, ameaçadas e desrespeitadas. Falta consciência ecológica e a
Amazônia é vista como “terra de ninguém” e, por isso, alguns tiram proveito da
região como rota do tráfico e na exploração ilegal da floresta, provocando conflitos,
violência e mortes.
“No Amazonas, no Araguaia, na Baixada Fluminense / Mato Grosso, nas Geraes e
no Nordeste tudo em paz / Na morte eu descanso mas o sangue anda solto /
Manchando os papéis, documentos fiéis / Ao descanso do patrão” (Que país é este
– Anexo 1)
26
Contudo, na ótica das autoridades, “do patrão”
,
essa “guerra” que acontece na
Amazônia e em outras regiões brasileiras, está dentro da normalidade, está tudo
em paz, não há nada que os incomode.
b) Corrupção
“Nas favelas, no Senado / Sujeira pra todo lado / Ninguém respeita a Constituição /
Mas todos acreditam no futuro da nação” (Que país é este – Anexo 1)
“Moramos na cidade, também o presidente / E todos vão fingindo viver
decentemente / Só que eu não pretendo ser tão decadente não” (Tédio – Anexo 3)
“Um dia pretendo tentar descobrir / Por que é mais forte quem sabe mentir / Não
quero lembrar que eu minto também” (Eu sei – Anexo 4)
Denuncia-se, aqui, a prática da ilegalidade, tanto em classes dominadas – as
favelas, quanto em classes dominantes – o Senado em Brasília, em que o
individual se sobrepõe ao social, revelando a falsidade ideológica presente em
alguns grupos sociais. Entretanto, apesar da violação dos direitos e deveres dos
cidadãos, executada de forma dissimulada
E todos vão fingindo viver
decentemente
” – todos ainda acreditam no futuro do país.
c) A exclusão social e as favelas
“Ei menino branco o que é que você faz aqui / Subindo morro pra tentar se divertir /
Mas já disse que não tem / E você ainda quer mais / Por que você não me deixa em
paz?” (Mais do mesmo – Anexo 5)
Denota-se, nesse trecho, a seguinte correspondência:
Morro Favelas do Rio de Janeiro Negros
27
Tem-se, aqui, o contraste entre o mundo da burguesia, caracterizado pelo menino
branco e o mundo das favelas no morro, que se confrontam, no momento em que
o menino branco sobe o morro. Todavia, o distanciamento se mantém: o menino
branco, ao subir o morro, representa, agora, a conscientização dos direitos do
cidadão:
E agora você quer que eu fique assim igual a você / Bondade sua me explicar
com tanta determinação / Exatamente o que eu sinto, como penso e como sou
(Mais do mesmo – Anexo 5);
Enquanto que a favela representa, anos, o desprovimento total de qualquer
direito do cidadão:
“Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim / É mesmo, como vou crescer se nada
cresce por aqui? / Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel.”
(Mais do mesmo
Anexo 5)
Além disso, a favela é caracterizada, também, como lugar de corrupção e violência
:
“ Nas
favelas, no Senado / Sujeira pra todo lado” (Que país é este – Anexo 1)
“E quando tem chacina de adolescentes / Como é que você se sente?”
(Mais do mesmo – Anexo 5)
d)
Ausência do exercício de cidadania/alienação
“Quem vai tomar conta dos doentes?” (Mais do mesmo – Anexo 5)
Os doentes são as pessoas que estão paralisadas, em estado de inércia; não
conseguem reagir a essa situação de miséria das favelas e se acomodam. Porém,
no texto o “EU”, alguém consciente, vivendo a mesma realidade e que acredita
poder fazer algo por essa gente, o “OUTRO”. Na verdade, essa conscientização
sócio-política dos problemas da favela é despertada no “EU” talvez estivesse
adormecida – através do encontro com o menino branco:
28
“Bondade sua me explicar com tanta determinação / Exatamente o que eu sinto,
como penso e como sou / Eu realmente não sabia que eu pensava assim” (Mais do
mesmo – Anexo 5)
Acomodar-se, facilmente, à situação é um traço cultural muito forte no brasileiro,
mesmo quando seus direitos estão sendo ignorados. As autoridades responsáveis
fingem que não veem, maquiam a realidade e o povo finge que está feliz, aderindo
facilmente aos apelos da classe dominante:
“E agora você quer um retrato do país / Mas queimaram o filme / E enquanto isso,
na enfermaria / Todos os doentes estão cantando sucessos populares.” (Mais do
mesmo – Anexo 5)
E no último verso, desse mesmo texto, caracterizando a desvalorização da
identidade, da cultura
brasileira e da falta de nacionalismo dos governantes, tem-
se:
“(e todos os índios foram mortos)”.
Em “Conexão Amazônica” (
Anexo 2
), tem-
se outro exemplo dessa
alienação:
“E você quer ficar maluco sem dinheiro e acha que está tudo bem”.
E como solução a essa alienação, usando de ironia, em “Tédio” (
Anexo 3
), o autor
sugere
“Tédio com um
T bem grande pra você
,
fazendo alusão a “tesão”, antítese de
tédio, propondo mudança de atitude.
Para continuar enfatizando essa alienação, o autor, em “Angra dos Reis” (
Anexo
6
), utiliza-se da questão ecológica repercutida no aquecimento global:
“Deixa, se fosse sempre assim quente / Deita aqui perto de mim / Tem dias em que
tudo está em paz / E agora todos os dias são iguais”.
E ainda, nesse mesmo texto, o autor ironiza:
“Deixa pra lá, a angra é dos reis / Por que se explicar se não existe perigo? / Mesmo se as
estrelas começassem a cair / E a luz queimasse tudo ao redor / E fosse o fim chegando
cedo / E você visse nosso corpo em chamas / Deixa pra lá.”
29
Finalmente, convém ressaltar outras questões abordadas em duas letras,
não mencionadas até então: em “Química” (
Anexo 7
), escrita em 1981, o pretexto
é a disciplina de química, para se discutir o vestibular e a imposição dos valores
culturais e ideológicos na vida dos jovens, em detrimento às suas escolhas:
“Estou trancado em casa e não posso sair / Papai já disse, tenho que passar / Nem
música eu posso mais ouvir / E assim não posso nem me concentrar / Ter carro do
ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão / Ter filho na escola, férias na Europa,
conta bancária, comprar feijão / Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo,
burguês padrão / Você tem que passar no vestibular.”
E em “Depois do começo” (
Anexo 8
), escrita em 1982, o equilíbrio aparece como
sinônimo de apatia, de alienação e, por isso, propõe o desequilíbrio como solução,
como forma de chocalhar a consciência social das pessoas:
“Vamos deixar as
janelas abertas / Deixar o equilíbrio ir embora”.
Ainda nesse texto, trechos em que não existe unidade gica há coesão, mas
não coerência recurso utilizado sugerindo a necessidade de anarquia total na
ordem das coisas, como forma de atingir o equilíbrio consciente, pensado e não
induzido pela ideologia do Poder, vigente até então:
“Acender um intervalo pelo filtro / Usar um extintor como lençol / Jogar pólo-
aquático na cama / Ficar deslizando pelo teto / Retalhar as cortinas desarmadas /
Com a faca surda que a fé sujou.”
1.4.4 “Faroeste Caboclo” e a temática do álbum
Assim como em todas as outras letras desse álbum, “Faroeste Caboclo”, também,
trata de temas nacionais, tendo, como foco principal, a reflexão sobre as
interferências do comportamento social no comportamento individual e vice-
versa. O protagonista da crônica, João de Santo Cristo, um bandido na vida real
e que, antagonicamente, agrega em seu nome uma referência bíblica,
“Santo
Cristo”,
apresenta uma trajetória que exemplifica bem essa inter-relação entre o
30
individual e o social: é um personagem que tem sonhos, tenta concretizá-los,
através do trabalho, depara com os entraves do capitalismo e, no meio do caminho,
acaba cedendo às tentações do mundo do crime.
A alienação das pessoas é outro tema que aparece caracterizando duas classes
sociais:
“E a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que eles viram na TV”,
em
que a expressão “não acreditou” revela a total falta de empatia da alta burguesia,
com o mundo ora mostrado.
E em
“Todo o povo sem demora foi para assistir”,
revela a falta de sensibilidade
do povo, que encara o crime como um grande evento, uma espécie de catarse
frente à sociedade, como se em:
“E o povo declarava que João de Santo
Cristo era
santo porque sabia morrer.”
, ou seja, matou e morreu em defesa de sua honra.
Outro exemplo dessa alienação tem-se em:
“Sentindo o sangue na garganta,
João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir.
E olhou por sorveteiro e pras câmeras
E a gente da TV filmava tudo ali.
E se lembrou de quando era criança e de tudo que vivera até ali.
E decidiu entrar de vez naquela dança
- Se a via-crucis virou circo, estou aqui.”
Estando prestes a morrer, João associa todo o lado festivo do evento, com seus
sonhos de criança: bandeirinhas, sorveteiro, câmeras, TV filmando e o povo
aplaudindo traduzem o desejo de ser alguém reconhecido, socialmente. Porém,
contrariamente, naquele momento, o que se mostrava era um evento de violência,
em que um bandido estava prestes a morrer e o povo em estado de
alienação aplaudia o fim de seu sonho. Por isso, entrega-se de vez à ironia de
sua trajetória
(“Se a via-crucis virou
circo,
estou aqui”
), ou seja, sua incessante busca
por uma vida digna culmina, ironicamente, com aplausos, por estar redimindo-se
a um final trágico: matando Jeremias e sendo morto.
31
Em todos os casos, o que prevalece é um olhar desprovido de sensibilidade,
gerando a banalização: no caso da burguesia, por não conseguir estabelecer
relação entre esses dois mundos tão diferentes; e no caso do povo, por tratar-se
de uma cena perfeitamente integrada e “acomodada”, em seu cotidiano.
Em “Conexão Amazônica”, fala-se em “auto-exílio”:
“Estou cansado de ouvir falar / Em Freud,Jung, Engels, Marx / Intrigas intelectuais /
Rodando em mesa de bar / Mas alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de
ninguém / Auto-exílio nada mais é do que ter seu coração na solidão”.
E em “Faroeste Caboclo”, tem-se:
“Sentia mesmo que era mesmo diferente / E sentia que aquilo ali não era o seu
lugar / Ele queria sair para ver o mar / E as coisas que ele via na televisão / Juntou
dinheiro para poder viajar / E de escolha própria, escolheu a solidão.”
No primeiro caso, vê-se um distanciamento entre o “pensare o “ter”, mostrando
que não basta ter conhecimentos filosóficos, é preciso “ação” para mudar os rumos
de uma sociedade; e a percepção dessa realidade é que gera o auto-exílio do
indivíduo, pela sua impotência para transformar essa realidade. No segundo,
também um distanciamento entre o “pensar” e o “ter”, porém, é algo que
impulsiona o eu-poético à mudança e o auto-exílio significa acreditar e buscar, a
todo custo e solitariamente, a concretização de seus sonhos.
As Instituições Penais também são denunciadas em “Faroeste Caboclo”,
pelo descumprimento de seu papel social, fomentando, ainda mais, a violência
interna e, por isso, denominadas “inferno”:
“Aos quinze, foi mandado pro reformatório /
Onde aumentou seu ódio de tanto terror. / E pro inferno ele foi pela primeira vez. / Violência
e estupro do seu corpo.”
Outro tema abordado é a cidade de Brasília, como rota de tráfico e contrabando.
Em “Conexão Amazônica”, vê-se:
32
“Os tambores da selva começaram a rufar / A cocaína não vai chegar / Conexão
Amazônica está interrompida”.
E em “Faroeste Caboclo”, tem-se:
“Pablo
trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo
revendia em Planaltina.”
Além dessa caracterização, Brasília representa, para as pessoas da periferia, a
possibilidade de concretização de seus sonhos:
“E o boiadeiro tinha uma passagem / E ia perder a viagem, mas João foi lhe salvar. /
Dizia ele: - Estou indo pra Brasília / Neste país lugar melhor não há. / - Meu Deus,
mas que cidade linda / No Ano Novo eu começo a trabalhar.”
(Faroeste Caboclo).
Todavia, esconde seu lado ruim, da corrupção, das contravenções:
“Nas favelas, no Senado / Sujeira pra todo lado” (Que país é este);
“O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe com dinheiro na
mão. / E ele faz uma proposta
indecorosa e diz que espera uma resposta.”
(Faroeste Caboclo);
“Vivemos na cidade, também o presidente / E todos vão fingindo viver
decentemente” (Tédio).
E é o lugar onde mora o “diabo”, aquele que faz seu povo sofrer:
“E João não conseguiu o que queria, quando veio pra Brasília com o diabo ter. / Ele
queria era falar pro presidente, / Pra ajudar toda essa gente / Que faz sofrer.”
(Faroeste Caboclo).
É, em Brasília, que ocorre a grande transformação de João de Santo Cristo:
começa a roubar, conhece o traficante Pablo, entra para o tráfico de maconha,
conhece Maria Lúcia, envolve-se com o traficante Jeremias e vira bandido,
destemido e temido. Ou seja, sua trajetória, em Brasília, representa a
desmistificação da cidade dos sonhos, revelando-se uma cidade comum e com
todos os problemas tão peculiares ao Brasil.
33
1.4.5 Intertextualidade no álbum “Que país é este”
A música “Faroeste Caboclo” é reconstruída, historicamente, a partir de intertextos
selecionados no mesmo álbum,
Que país é este,
de Renato Russo, a fim de
verificar como as representações sociais, presentes no texto-base, são expandidas
por retomadas em outros textos. Foram selecionados três intertextos, a saber: “O
reggae, Baader-Meinhof blues e Metrópole”.
1.4.5.1 Intertexto 1: O reggae
Renato Russo / Marcelo Bonfá
Ainda me lembro aos três anos de idade
O meu primeiro contato com as grades
O meu primeiro dia na escola
Como eu senti vontade de ir embora
Fazia tudo que eles quisessem
Acreditava em tudo que eles me dissessem
Me pediram pra ter paciência
Falhei
Gritaram: - Cresça e apareça!
Cresci e apareci e não vi nada
Aprendi o que era certo com a pessoa errada
Assistia o jornal da TV
E aprendi a roubar pra vencer
Nada era como eu imaginava
Nem as pessoas que eu tanto amava
Mas e daí, se é mesmo assim
Vou ver se tiro o melhor pra mim.
Me ajuda se eu quiser, me faz o que eu pedir
Não faz o que eu fizer
Mas não me deixe aqui
Ninguém me perguntou se eu estava pronto
E eu fiquei completamente tonto
Procurando descobrir a verdade
Nos meios das mentiras da cidade
Tentava ver o que existia de errado
Quantas crianças Deus já tinha matado.
Beberam o meu sangue e não me deixam viver
Têm o meu destino pronto e não me deixam escolher
Vêm falar de liberdade pra depois me prender
Pedem identidade pra depois me bater
Tiram todas as minhas armas
Como posso me defender?
Vocês venceram essa batalha.
Quanto à guerra,
vamos ver.
34
Justifica-se a seleção do intertexto 1, pois traz, representado em ngua, o sentido
mais global do texto-base:
“Beberam o meu sangue e não me deixam viver
Têm o meu destino pronto e não me deixam escolher.”
Essa representação, em língua, é social e guia a representação do personagem
João de Santo Cristo, ou seja, apresenta a dialética entre o social e o individual.
No que se refere ao individual, Renato Russo afirma:
“Vocês venceram essa batalha.
Quanto à guerra,
vamos ver.”
Portanto, o Intertexto 1 progride, semanticamente, o texto-base, na medida em que
a denúncia feita torna-se causa para a consequência, que é instigar o público jovem
a uma mudança social.
1.4.5.2 Intertexto 2
-
Baader-Meinhof blues
Renato Russo e
Dado Villa-Lobos
A violência é tão fascinante
E nossas vidas são tão normais
E você passa de noite e sempre vê
Apartamentos acesos
Tudo parece ser tão real
Mas você viu esse filme também.
Andando nas ruas
Pensei que podia ouvir
Alguém me chamando
Dizendo meu nome.
Já estou cheio de me sentir vazio
Meu corpo é quente e estou sentindo frio
Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
Afinal, amar o próximo é tão demodé.
Essa justiça desafinada
É tão humana e tão errada
35
Nós assistimos televisão também
Qual é a diferença?
Não estatize meus sentimentos
Pra seu governo,
O meu estado é independente.
Já estou cheio de me sentir vazio
Meu corpo é quente e estou sentindo frio
Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
Afinal, amar o próximo é tão demodé.
Justifica-se a seleção do Intertexto 2, pois a Facção Exército Vermelho, também
conhecida como Baader-Meinhof, foi uma organização guerrilheira alemã, de
extrema esquerda, fundada em 1970, na Antiga Alemanha Ocidental e dissolvida
em 1998. Recebeu a alcunha Baader-Meinhof, depois que Andréas Baader
escapou da polícia, graças à ajuda de uma jornalista de esquerda, Ulrike Meinhof.
As raízes da Facção Exército Vermelho podem ser encontradas no Movimento
Estudantil Alemão, dos anos 1960. Inicialmente, centrados na crítica à Instituição
Universitária, os estudantes alemães, da época, viraram suas atenções para
eventos internacionais, como a Guerra do Vietname, a pobreza do Terceiro Mundo
ou à questão da energia nuclear. Os estudantes criticavam, igualmente, aquilo que
lhes parecia ser a relutância da sociedade alemã, em confrontar-se com seu
passado nazista. Para alguns, o Estado que vigorava, na República Federal da
Alemanha, era continuação do Estado Nazista.
A Facção Exército Vermelho, Baader-Meinhof, realizou uma série de manifestações
de protestos, contra a violação de direitos humanos e todas terminaram em
fracasso e resultaram na prisão dos manifestantes principais, que foram julgados e
condenados. Porém, durante todo o seu percurso de existência, essa Facção
procurou recrutar militantes para suas ideias e, embora a Baader-Meinhof tenha
atuado durante mais de trinta anos, seus líderes principais foram mortos nas ruas
ou em suicídios simulados nas prisões.
O intertexto 2 traz, representado em língua, a metáfora da Facção Baader-Meinhof,
que luta contra a opressão e a injustiça social. Ele intertextualiza Baader e Meinhof
e os demais deres da Facção Exército Vermelho com João de Santo Cristo, que
36
luta pela sobrevivência, em busca da justiça e dos direitos humanos e é destruído,
tanto quanto os líderes da referida facção.
1.4.5.3 Intertexto 3 - Metrópole
Renato Russo
É sangue mesmo, não é mertiolate
E todos querem ver
E comentar a novidade.
É tão emocionante um acidente de verdade
Estão todos satisfeitos
Com o sucesso do desastre:
Vai passar na televisão
Por gentileza, aguarde um momento.
Sem carteirinha não tem atendimento -
Carteira de trabalho assinada, sim senhor.
Olha o tumulto: façam fila por favor.
Todos com a documentação.
Quem não tem senha não tem lugar marcado.
Eu sinto muito mas já passa do horário.
Entendo seu problema mas não posso resolver:
É contra o regulamento, está bem aqui, pode ver.
Ordens são ordens.
Em todo caso já temos sua ficha.
Só falta o recibo comprovando residência.
Pra limpar todo esse sangue, chamei a faxineira -
E agora eu vou indo senão perco a novela
E eu não quero ficar na mão.
Justifica-se a seleção do intertexto 3, pois ele está intertextualizado com o texto-
base, a partir de “sangue” (“
Sentindo o sangue na garganta)
e “televisão” (“
Quando
viu o repórter na televisão / Que deu a notícia do duelo na TV / E a gente da TV filmava
tudo ali.”)
Em síntese, este capítulo é composto pelo procedimento metodológico que orientou
as análises realizadas, tanto em relação à seleção do material, quanto aos critérios
metodológicos adotados.
O capitulo seguinte apresenta as bases teóricas relativas ao procedimento
metodológico indicado neste capítulo, ou seja, o procedimento teórico-analítico.
37
CAPÍTULO II
FUNDAMENTOS TEÓRICOS: LINGUÍSTICA DE TEXTO, TEORIA
DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ANÁLISE CRÍTICA DO
DISCURSO, COM VERTENTE SÓCIO-COGNITIVA
38
CAPÍTULO II
FUNDAMENTOS TEÓRICOS: LINGUÍSTICA DE TEXTO, TEORIA
DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ANÁLISE CRÍTICA DO
DISCURSO, COM VERTENTE SÓCIO-COGNITIVA
Esta dissertação está fundamentada em princípios teóricos da Linguística de
Texto e da Análise Crítica do Discurso, com vertente sócio-cognitiva, que oferecem
subsídios para o tratamento do processamento cognitivo das informações,
enquanto processo interpretativo, propiciando a compreensão discursiva. Dessa
forma, tem-se por ponto de partida, a Teoria das Representações Sociais, proposta
por Serge Moscovisci (2007).
2.1 A Linguística de Texto
A Linguística de Texto tem suas origens nas Gramáticas de Texto, construídas na
década de sessenta. Em geral, os gramáticos de texto tiveram formação gerativista
e, por essa razão, mantiveram a
Teoria dos Componentes
o da base, o
transformacional e o da superficialização – da teoria Gerativo-Transformacional.
Todavia, os gramáticos de texto ultrapassaram o limite da frase, em busca da
dimensão do texto. Os estudos realizados, por eles, seguiram duas direções: do
texto-enunciado para o texto-processo ou do texto-processo para o texto-
enunciado. Para tanto, foi necessário interdisciplinaridade da Linguística com a
Psicologia, privilegiando, nesta última, a Teoria das Memórias.
Segundo os gramáticos de texto, a comunicação humana não se reduz a
uma sequência de palavras e frases. Dessa forma, esses gramáticos postulam uma
competência textual, ou seja, um conjunto interiorizado de regras para serem
aplicadas, de forma ordenada, na construção do texto-processo. As tarefas
39
propostas pelos gramáticos de texto são: a noção de completude do texto; a
coerência e a coesão textuais; e a tipologia de textos.
Com o desenvolvimento dos estudos e a construção de gramáticas textuais, os
estudiosos verificaram que nenhum texto tem a mesma leitura, seja pelo mesmo
leitor, em momentos diferentes, seja por leitores diferentes. Dessa forma,
concluíram a não-existência de regras gramaticais para a construção de sentidos.
De forma geral, quando os gramáticos de texto chegam à hipótese nula de um
conjunto de regras ordenadas para construir sentidos, aparece a Linguística
Textual, também designada Linguística de Texto.
Na década de setenta, consolida-se a LinguísticaTextual, que tem, por objeto de
estudo, a boa formação de um texto, a partir da noção de completude textual, das
noções de coerência e de coesão, além de diferentes construções de tipologias
textuais. Consequentemente, as noções de coesão e coerência passam a ser
relacionadas às estratégias de compreensão discursiva, abandonando-se, assim, a
noção de regras ordenadas de compreensão.
No que se refere à tipologia de textos, Kintsch e van Dijk (1978) propõem que as
histórias são organizadas por um esquema textual ou superestrutura, que se
apresenta como uma forma social de conhecimento do texto. A superestrutura da
história define-se por categorias textuais, com suas regras de ordenação:
Apresentação, Conflito e Resolução,
que podem ou não virem seguidas de Moral.
Esses autores (1983) apresentam a descrição de outras superestruturas, tais
como: a do relato científico e a estrutura argumentativia.
Isemberg (1987), tratando da tipologia de textos, propõe que, uma tipologia que
possa dar conta dos diferentes tipos de texto, convencionados socialmente,
deve partir de uma hierarquia mais alta, a classe de texto. Esta se define por um
conjunto de traços constantes, que ocorrem em diferentes tipos de texto, em
diferentes gêneros discursivos.
Nesse sentido, a narrativa é uma classe de texto, que se define pela sequência
cronológica de ações. Dependendo do gênero discursivo, a narrativa modifica-se
40
em um tipo de texto específico, como por exemplo: o relato científico no discurso
científico; a história no discurso ficcional; a crônica no discurso jornalístico e/ou
literário.
A Linguística de Texto, para dar conta da boa formação do texto, passa a
diferenciar texto-produto de texto-processo. O texto-produto tem natureza
linguística, como produto da enunciação de um sujeito enunciador; trata-se, assim,
do que o texto traz representado em língua, decorrente da seleção lexical e das
regras gramaticais, realizadas pelo enunciador; enquanto que o texto-processo tem
natureza memorial, cognitiva e, para se tratar dele, foi necessário que os linguistas
de texto buscassem, interdisciplinarmente, a Teoria dos Esquemas, de Bartlet
(1932) e a Teoria das Memórias por Armazéns (Kintsch e van Dijk, 1978).
Inicialmente, a Linguística de Texto, ao se consolidar, foi interdisciplinar, mas,
progressivamente, para tratar da compreensão discursiva e da enunciação, foi
necessário que se recorresse à inter, multi e transdisciplinaridade. Dessa forma, a
Linguística de Texto situa-se em transdisciplinaridade com as Ciências da
Cognição.
A partir de então, quando a Linguística de Texto foi desenvolvida com
interdisciplinaridade entre Linguística e Psicologia, as formas de conhecimento do
mundo são privilegiadas para o estudo das memórias, momento que, de forma
geral, é designado por
virada cognitiva
, na linguística.
Assim sendo, a Linguística de Texto vai explicar a coesão pelas relações sintáticas
estabelecidas por quem compreende um texto e realizadas no produto linguístico.
Tais relações sintáticas retomam palavras do texto: para o que vem antes de
uma determinada palavra, anáfora; para o que vem depois de uma determinada
palavra, catáfora; e remete-se a elementos fora do texto, esófora.
Portanto, a coesão passa a ser explicada por formas remissivas referenciais,
responsáveis por se entender o texto com uma manutenção temática referencial,
seguida de uma progressão semântica, de forma a impedir uma circularidade do
que é enunciado.
41
Por sua vez, a coerência é relativa ao texto-processo, onde se situa a construção
do sentido, passando a ser explicada por um processo de expansão das
informações recebidas do texto-produto, que é realizado por inferências e por
explicitações de implícitos. A expansão textual é designada, segundo Kintsch e van
Dijk (1978), por base de texto e definida por um n-túplos de proposições, sendo que
cada proposição é um sentido.
O processo de expansão é recursivo, com um processo de redução, sendo, este,
entendido como a construção de um sentido mais global para os sentidos
secundários. Em outros termos, uma macroproposição que reduz os sentidos
microproposicionais. Assim, a coerência é vista, na dimensão cognitiva, como os
sentidos mais globais de um texto.
Uma das nicas da década de oitenta, quando a Linguística de Texto,
definitivamente, se instaura, foi exatamente a ampliação do conceito de coerência,
devido à perspectiva pragmático-enunciativa, introduzida para os estudos do texto-
processo. Assim, a coerência, definitivamente, deixa de ser tratada no texto-produto
e passa a ser tratada como um fenômeno muito mais amplo: a coerência se
constrói, interativamente, entre o leitor e o texto, em função da atuação de uma
complexa rede de fatores, de ordem linguística, cognitiva e sócio-interacional.
Em síntese, a diferença entre texto-produto e texto-processo é que o texto-produto
é a representação em língua, portanto, de natureza linguística; e o texto-processo
é o conjunto de representações mentais, das formas de conhecimento e tem
natureza memorial.
A coesão é um processo de leitura que se remete para trás, para frente e para fora
do texto, de forma a reagrupar o texto enunciado em língua. A coerência é o
processamento da informação que expande os sentidos em um n-túplos de
proposições, ao mesmo tempo que as reduz, em um sentido mais global..
Para o estudo do texto-produto, os linguistas textuais recorreram à Teoria da
Enunciação, que é composta pelo seguinte quadro enunciativo: a) pessoas: EU,
que enuncia para um TU, interlocutor; b) a enunciação atende às intenções do
42
enunciador, de forma a guiar a sua seleção lexical e gramatical, para dar conta de
como o TU, interlocutor, possa ser convencido ou persuadido pelo enunciador; c) e
o ELE, do que se enuncia como unidade referencial, em progressão semântica, de
forma a recorrer ao “dado”, o já sabido pelo TU; d) e ao “NOVO”, o que se informa
que o TU não sabe.
Para Kerbrat-Orecchioni (1980), enunciar é representar o mundo em língua, é
construir o texto, argumentativamente, com subjetividade. Enunciar implica
escolher léxico e regras gramaticais e, considerando-se que o texto enunciado é
produto da subjetividade do enunciador, a autora propõe que o textos
objetivos, em oposição a textos subjetivos. Para ela, todos os textos são subjetivos,
embora haja graus diferentes de subjetividade: textos mais subjetivos/ textos
menos subjetivos.
Durante o Estruturalismo, houve a crença no significado unitário do signo: para
cada significante um significado. Progressivamente, os estudos lexicológicos e
lexicográficos obtêm resultados que desmistificam a crença no significado unitário
do signo. Dessa forma, o significante de um signo é visto como uma designação,
que contém, semanticamente, vários significados, com naturezas distintas:
significados linguísticos, significados enciclopédicos (culturais e ideológicos) e
significados interacionais.
Consequentemente, a noção de implícitos é introduzida para os estudos linguísticos
e explicitar implícitos faz parte do processo de expansão das informações e
dependendo das intenções de quem anuncia, para um determinado TU, um texto-
produto conterá muitos/poucos implícitos.
2.1.1
Os esquemas mentais
Segundo Bartlet (1932), as formas humanas de conhecimento não são aleatórias,
mas construídas por esquemas mentais organizados, relativos a conhecimentos
declarativos, a planos, à estratégias, a acontecimentos e à ações, entre outros.
43
Um esquema mental pode ser exemplificado por um conhecimento declarativo, ou
seja, por uma sequência de ações explicitadas de forma ordenada no tempo, um
script
, com seqüência de ações situadas em uma relação de tempo anterior e
posterior, expressas por sentidos secundários. O sentido mais global de um
script
é designado
frame
e, no processamento da informação, os conhecimentos são
construídos de forma organizada, ou seja, existe uma construção hierárquica dos
sentidos formalizados, a partir de um
frame
.
Denhiere e Baudet (1992) analisam as representações através de operações
cognitivas. Propõem que os esquemas mentais, evocados pelo texto, constróem as
representações mentais, utilizando-se de operações cognitivas. Os seres humanos
têm uma forma especial de construir representações, pois projetam seu ponto de
vista, de acordo com o seu referente social, escolhendo a que grupo querem
pertencer.
Segundo van Dijk (1992),
frame
é um esquema mental que contém o sentido mais
global, atribuído a alguém ou a alguma coisa. A partir desse sentido mais global, se
organizam os sentidos secundários, construídos a partir da sequenciação dos
participantes e suas ações, cronologicamente. Assim, para o autor,
script
são
sequências de ões, verbais ou não-verbais, a partir de um modelo contextual e
tem relação com um ponto de vista, projetado sobre o mundo existencial. Cada
ponto de vista é guiado por interesses, objetivos e propósitos, que podem ser
sociais ou individuais.
Os esquemas mentais o guardados na memória de longo prazo, que está
dividida em dois grandes armazéns: o individual e o social. Tanto o armazém
individual, quanto o social, aloca os esquemas mentais, de forma organizada, em
sistemas de conhecimento, como os de língua, de mundo e de interação sócio-
comunicativa.
O sistema de conhecimentos de língua compreende os conhecimentos do léxico e
de elementos gramaticais; os conhecimentos de mundo são enciclopédicos e
relativos ao mundo concreto, que se representa como forma de conhecimento por
seres, seus fazeres, suas características, suas funções e o cenário (lugar e tempo)
em que os personagens se situam; e os conhecimentos interacionais são relativos
44
a atos de fala, estruturas argumentativas, superestruturas textuais, regras
conversacionais, entre outros.
O armazém de longo prazo individual agrupa formas de conhecimento, construídas
a partir de experiências individuais, em sistemas de conhecimento, da mesma
forma que os sociais.
2.1.2 A Teoria da Memória por Armazéns
Segundo a Teoria da Memória por Armazéns, de Atkinson (1975), é necessário
distinguir: memória de curto prazo, memória de dio prazo e memória de longo
prazo.
A memória de curto prazo propicia a entrada da informação, a ser processada, na
memória de trabalho. Trata-se de uma memória sensorial, cuja entrada é realizada
por um dos sentidos humanos; tudo depende do código semiótico utilizado para a
representação do texto-produto. No caso da informação linguística, os sentidos
captadores são: a audição e a visão do interlocutor, para uma interação
comunicativa normal.
Por se tratar de uma memória sensorial, a memória de curto prazo é quantitativa,
para dar entrada às sequências de palavras e frases de um texto-produto, a fim de
possibilitar a produção de sentidos por um interlocutor e a quantidade de
informação, que ela retém, é medida por um
chunk.
Quando o
chunk
está lotado, a
informação que vinha entrando fica perdida e, para tanto, é necessário que ele seja
esvaziado, para que não haja perda de novas informações. Assim, processando a
informação, esvazia-se o
chunk,
de forma recursiva.
Entre a memória sensorial de curto prazo e a memória de médio prazo, localiza-se
a memória de trabalho. Esta é qualitativa e transforma, no caso do texto-produto
linguístico, as palavras e frases em proposições semânticas.
45
A memória de trabalho, como já foi indicado, ao tratar da coerência textual,
processa a informação por um movimento de expansão, a partir de inferências e
explicitação de implícitos e por um movimento de redução, construindo sentidos
mais globais, para os sentidos secundários expandidos.
Os sentidos menores, microproposições, são produzidos pelo leitor e compreendem
um
n-túplos
de proposições, pois dependem das estratégias conhecidas e usadas
pelo leitor. Um leitor imaturo produz um número reduzido de microproposições, ao
passo que um leitor maduro produz maior quantidade delas, seguindo a orientação
do que está representado, em língua, no texto-produto.
Durante o processamento por expansão e redução, o que já foi processado fica
armazenado na memória de médio prazo, sendo reformulado, a todo momento,
durante a leitura de um texto, num movimento de “ir” e “vir”: ir para a memória de
curto prazo e vir para a memória de trabalho. Ao concluir o processamento da
informação, vinda do texto, o agente processador armazena a forma de
conhecimento obtido na memória de longo prazo e aí fica guardada, para ser
ativada pelo agente processador, durante um outro processamento.
A memória de trabalho, para produzir as proposições, recorre,
estrategicamente, à memória de longo prazo, que mantém as formas de
conhecimento guardadas em dois grandes armazéns: o social, também chamado
de
memória semântica
; e o individual, também chamado de
memória episódica
.
O armazém social guarda as formas de conhecimento construídas no e pelo
discurso em sociedade, principalmente, os discursos institucionalizados. O
armazém individual guarda as formas de conhecimento construídas a partir de
experiências pessoais com o mundo. Outrossim, tanto o armazém social, quanto o
individual, da memória de longo prazo, é construído, organizadamente, por
sistemas de conhecimentos.
Em síntese, na memória de trabalho, cada palavra, sequência de palavras, frases e
sequências de frases são transformadas em proposições, de forma expansiva. A
memória de médio prazo vai armazenando a expansão das proposições, para que
a memória de trabalho, recursivamente, expanda os sentidos secundários e reduza
em sentidos mais globais, constituindo as macroproposições.
46
Dessa forma, segundo Kintsch e van Dijk (1983), o texto-processo é definido por:
base de texto, microestrutura, macroestrutura e superestrutura.
A
base de texto
é semântica e compreende um
n-túplos
de proposições, que estão
armazenados na memória de médio prazo e produzidos na memória de trabalho.
A
microestrutura
é construída pela ordenação expansiva das microproposições, a
partir das sequências de palavras e frases do texto-produto, de forma a construir a
coesão do texto.
A
macroestrutura
compreende um conjunto das macroproposições, ou seja, os
sentidos mais globais do texto, construídos pela transformação redutora de várias
microproposições em uma macroproposição.
A
superestrutura
é a projeção de um determinado esquema textual, para a memória
de trabalho.
Segundo Koch & Travaglia (1989), o conjunto das macroproposições constrói o
sentido mais global de um texto, em sua completude, de forma a produzir a
coerência do texto, pelo princípio da interpretabilidade.
Os estudos sobre a memória tiveram maior destaque, a partir das descobertas
tecnológicas na área da informação e da inteligência artificial, na medida em que
estabelecem relação de analogia entre o cérebro humano e a inteligência artificial.
Denhiere e Baudet (1992), ao tratarem da compreensão discursiva pela leitura,
diferenciam as representações mentais ocorrentes e tipos. A representação mental
ocorrente é construída durante a leitura de um texto, na memória de trabalho,
interligando a memória de curto prazo à memória de médio prazo. A representação
mental tipo é armazenada na memória de longo prazo e ativada para a memória de
trabalho, guiando, desta forma, a construção da representação ocorrente.
47
2.1.3 A crônica e a estrutura textual argumentativa
A crônica atual é considerada um texto brasileiro, mas teve sua origem, em
Portugal, no século XIV, época em que o cronista organizava e ordenava,
cronologicamente, narrativas, memórias e outras histórias escritas por autores.
Fernão Lopez passa a incorporar, na crônica, resultados de suas investigações, de
forma a registrar os acontecimentos históricos e também fatos ligados à vida da
corte e do povo, atribuindo outra orientação para a crônica, possibilitando a análise
crítica, a partir de documentos autênticos.
Van Dijk (1978) constrói diferentes superestruturas textuais, entre elas a da
argumentação. Segundo o autor, todos os textos são argumentativos e, por essa
razão, ainda que de forma provisória, apresenta uma estrutura argumentativa que
organizaria qualquer tipo de texto, a saber:
Argumentação
Justificativa Conclusão
Marco de cognição Circunstância
Pontos de Partida Fatos
Legitimidade Reforço
48
As denominações dessas diferentes categorias hierárquicas são provisórias e
poderão ser substituídas por outras, dependendo do tipo de argumentação, que
varia de acordo com o contexto institucional em que os argumentos são
instaurados.
A categoria Conclusão agrupa a opinião construída no texto e, para ser
argumentada, precisa de justificativa, que agrupa a categoria Marco das Cognições
Sociais e as Circunstâncias.
A categoria Marco das Cognições Sociais compreende um conjunto de
conhecimentos, instaurado como ponto de partida das interações sócio-
comunicativas, de um grupo social. Ninguém argumenta a respeito dos
conhecimentos sociais, pois, eles são dados como “verdades” possíveis/prováveis,
para o grupo social que os conhece.
Para que haja argumentação, é necessário construir uma Circunstância, em relação
aos conhecimentos sociais, pois ela é nova e não é do conhecimento social do
grupo. Para tanto, a argumentação é realizada a partir de provas, que são os Fatos
a ela apresentados e são construídos por Pontos de Partida, pelos argumentos de
Legitimidade e de Reforço.
Os argumentos de Legitimidade são selecionados no marco das cognições sociais
e os de Reforço compreendem repetições, paráfrases ou retomadas que possam
argumentar a respeito da Circunstância criada, em relação ao marco de cognição
social. Nem todos os elementos argumentativos precisam estar explícitos no texto
e, muitos, podem manter-se implícitos, pois são formas culturais de conhecimento.
Segundo Vignaux (1986), a enunciação é vista como a colocação da língua em
funcionamento, por um ato individual e trata-se de uma atividade exercida por
aquele que fala, num dado momento e de determinado lugar e, também, por aquele
que escuta, naquele momento e de determinado lugar.
Nesse sentido, os sujeitos envolvidos, no processo da enunciação, estão imersos
em um contexto situacional, que é histórico e extrapolam o universo linguístico,
que estão referenciados numa prática que transcende os aspectos puramente
linguísticos, ainda que marcados no enunciado.
49
Tratando, especificamente, do gênero crônica, Scafuro (1999), em sua pesquisa
sobre o tema, considera que existe uma diversidade de tratamentos para esse tipo
de texto, que se caracteriza: pela linguagem do cotidiano; pelo tema relativo ao
cotidiano; pelo folhetim que organiza um texto dedicado a distrair o leitor; pela
maneira curta; e pela articulação argumentativa.
Para a autora, as crônicas revelam o cotidiano, pois apresentam uma sequência
de ações usuais, que se caracterizam por acontecimentos diários e, desta forma,
definem o espaço urbano e cultural e as representações sociais desses espaços,
buscando explicar a realidade e reunindo valores que constróem o mundo, ao
categorizá-lo.
Quando a autora aborda a organização tipológica textual da crônica brasileira,
sugere que sua definição pode ser obtida pela articulação de duas categorias
hierarquizadas: Marco de Cognições Sociais e Avaliação Opinativa do cronista,
construídas por um paradoxo, como se demonstra a seguir:
Focalização
Paradoxo
Estrutura textual A
Estrutura textual B
Focalização do jornalista
Focalização do cronista
Polo 1 Polo 2
50
2.2 Intertextualidade: reconstrução histórica por intertextos
A Linguística de Texto caracteriza a linguagem humana por textualidade,
intertextualidade e argumentatividade. Embora privilegie o estudo da
textualidade, como característica da linguagem humana, que tece representações
mentais e em língua, para a boa formação do texto-produto e do texto-processo, a
intertextualidade e a argumentatividade, também, são estudadas.
A intertextualização participa da textualização, na medida em que as formas de
conhecimento, armazenadas na memória de longo prazo, são ativadas, para
construção da representação mental ocorrente.
Segundo Maingueneau (1996), todos os textos são respostas para outros textos e,
nesse sentido, o existe texto autofundado. Ele sempre estará intertextualizado
com textos já produzidos, anteriormente.
Dessa forma, para haver um bom processamento da informação, é necessário
verificar como ocorre a intertextualização de temas, realizada por um mesmo autor
ou por autores diferentes.
No que se refere ao texto literário, segundo Eagleton (1997), o significado de uma
obra literária não se restringe às intenções do seu autor e novos significados
poderão ser dela extraídos, sendo, muitos deles, inusitados, em comparação com a
ideia inicial de seu autor ou de seu público contemporâneo.
Diante disso, a obra literária produz uma leitura heurística inicial, durante a qual, o
leitor reconhece as palavras e frases, seguindo a linearidade do texto, e, assim,
produzindo sentidos. A leitura hermenêutica segue a leitura heurística e diferencia-
se dela, por ser alinear; logo, é um “ir” e “vir” contínuo, intra-texto, da direita para a
esquerda, de baixo para cima e nas diagonais.
A leitura hermenêutica requer a leitura de reconstrução histórica, através de
intertextos do texto-base lido. Durante a leitura hermenêutica, o leitor segmenta o
51
texto-base, para inserir nele um outro texto, que o complementa, expandindo-o ou o
reduz, concluindo-o. Para a seleção de intertextos, é necessário pensar, sempre,
para qual texto o texto-base é uma resposta ou para qual texto o texto-base é a
origem.
O texto-base, objeto de estudo desta dissertação, não é literário; porém, é artístico
e, de certa forma, pode ser lido com os mesmos procedimentos de leitura de um
texto literário. Os sentidos do texto-base não se restringem às intenções do seu
autor e novos sentidos poderão ser dele extraídos, sendo muitos, inusitados, em
comparação à ideia inicial do seu autor e/ou de seu público leitor.
Assim, para a leitura de reconstrução histórica, o leitor precisa buscar um outro
texto, para o qual o texto-base é uma resposta e o entendimento dar-se-á
quando
nossos horizontes de significados e suposições históricas se fundem com o
horizonte dentro do qual a obra é colocada.
(Eagleton 1977, p.99)
O conceito de intertextualidade, segundo Fávero e Koch (1983), envolve as várias
formas
pelas quais a produção e a recepção de um texto pressupõem o
conhecimento de outros textos, isto é,
“diz respeito aos fatores que tornam a
utilização de um texto dependente de um ou mais textos previamente existentes
(p. 28).
Com o objetivo de ampliar esse conceito, Koch (1986) propõe a divisão da noção
de intertextualidade, em um
sentido amplo
e em um
sentido restrito
. Em sentido
amplo, considera que a intertextualidade se faz presente em todo e qualquer texto;
um texto relaciona-se com outros textos, dos quais nasce e para os quais aponta, o
que caracteriza todo texto como, necessariamente, incompleto.
Essa incompletude é válida tanto pela correspondência de um texto com outros
textos, quanto por sua ligação com os conhecimentos prévios do leitor, em relação
à linguagem e ao seu conhecimento de mundo. Em sentido restrito, a
intertextualidade se dá quando há a relação de um texto com outros textos, prévia e
efetivamente produzidos, ou seja, quando existe a inserção de um segundo texto,
anteriormente produzido.
52
Em Koch (1991), discute-se a questão da intertextualidade e polifonia serem
consideradas um fenômeno, a partir da noção de que em um texto
sempre a presença de outros, o que determina seu caráter heterogêneo. Conclui-se
que, na intertextualidade, a alteridade se faz pela presença de um intertexto, tanto
explícita, quanto implicitamente presente dialogando com o conceito de
Maingueneau (1996), da heterogeneidade citada e heterogeneidade constitutiva.
Ainda segundo Koch, o conceito de polifonia, em sentido estrito, sobrepõe o de
intertextualidade, isto é, todo exemplo de intertextualidade é também exemplo de
polifonia, porém, o inverso não é verdadeiro. Em contrapartida, considerando-se a
intertextualidade em sentido amplo e a polifonia como sinônimo, o fenômeno da
linguagem passa a ser caracterizado como essencialmente polifônico. E conclui
que, quando a intertextualidade é analisada em sentido amplo, é preciso buscar
intertextos para os quais o texto-base é uma refuta ou uma retomada; quando é
analisada em sentido estrito, é preciso buscar intertextos que mantenham
relações expressivas com o texto-base.
Para Kristeva (1974), a palavra “literária” encontra-se numa intersecção
tridimensional, num
cruzamento de superfícies textuais
”, ou seja, três dimensões
que correspondem ao sujeito da escritura, ao destinatário e aos textos exteriores.
Se, por um lado, horizontalmente, a palavra no texto pertence, simultaneamente,
ao sujeito da escritura e ao destinatário, verticalmente, ela estará direcionada
para o
corpus
literário anterior ou sincrônico.
Numa concepção ampla, a intertextualidade se apresenta em toda manifestação
textual-discursiva e configura-se como condição de existência do próprio discurso.
A interdiscursividade configura-se como o processo de incorporação de temas e/ou
figuras de um discurso em outro. Dessa forma, pode-se afirmar que a
intertextualidade implica a interdiscursividade, pois o enunciador, ao referir-se a um
texto, refere-se, também, ao discurso ora manifestado.
A intertextualidade no processo comunicativo é fundamental para o entendimento
do texto e seu processo argumentativo, pois a língua pode ser entendida como
uma forma de ação sobre o outro. Para Kristeva (2003), um texto é resposta para
um outro texto e pode ser tratado a partir do texto-produto. Dessa forma, a palavra
53
é considerada texto-base para a inserção de um outro texto, como uma progressão
desse texto-base.
Assim, o enunciador não é ideal e abstrato, nem é representante de uma
comunidade homogênea. Ele é constituído por uma heterogeneidade e, segundo
Kristeva, essa heterogeneidade resulta no recurso argumentativo, em que o sujeito
não é, ele se faz e se desfaz, na complexidade em que se incluem o outro e seu
discurso. Um texto resulta sempre do entrecruzamento de outros textos e de outros
autores, outros indivíduos, diferentes grupos ideológicos e diferentes discursos.
Segundo Silveira (2000), a manifestação da representação, em língua, ocorre na
inter-relação entre o texto-processo e o texto-produto, sendo o processo, de
natureza mental e o produto, a materialidade linguística dessas formas de
conhecimento. A intertextualização é definida, assim, como a ativação de
conhecimentos, no momento do processamento expansivo das informações do
texto-base. Logo, a intertextualidade pressupõe a presença de um texto em um
outro texto, produzido anteriormente, o chamado intertexto. O diálogo entre os
intertextos e as diversas ações sociais pressupõem múltiplas realidades.
O sujeito que “fala” atua sob orientação da prática social em que está inserido e,
dessa forma, para Maingueneau (2002),
os textos são elaborados dentro da
interdiscursividade, ou seja, no processo discursivo entre práticas sociais diversas,
com participantes e intenções diversos.
Os intertextos, para o autor, estão presentes na formação ideológica, a partir da
alteridade e, desse modo, repetem o que a classe dominante impõe (eles têm
ideologia), por meio do discurso citado, usado como argumento de autoridade e do
discurso indireto, que ao relatar o que se entende, fica previsível a manipulação de
informações.
Desse modo, o discurso como prática social tem, no processo da
interdiscursividade, relação com a origem do discurso, que nunca é híbrido, pois, a
cada enunciação, prevê mudanças sobre o que já foi dito.
A noção de intertextualidade permite uma leitura na linearidade do texto-produto e,
assim, cada referência pode, na intertextualidade, dar lugar a outro sentido ou
54
fragmento de outro texto. O processo de textualização se na relação entre o
texto-processo e o texto–produto, de forma a considerar as condições de produção
do texto e seu contexto discursivo.
2.3 A Teoria das Representações Sociais
Quando os estudos da Psicologia Social tornam-se multidisciplinares com a
Psicologia do Conhecimento, a Psicologia da Memória e o Interacionismo
Simbólico, aparece a Teoria das Representações Sociais, como a ideia de
construção de uma Psicologia Social do Conhecimento e é sob essa acepção que
ela deve ser vista.
Segundo Moscovisci (2000, p.8),
“Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tratam,
distribuem e representam o conhecimento. Mas o estudo de como, e por que as
pessoas partilham o conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum,
de como eles transformam idéias em prática numa palavra, o poder das idéias,
é o problema específico da Psicologia Social.”
Logo, sob o ponto de vista da Psicologia Social, o conhecimento nunca é uma
simples descrição ou uma cópia do estado de coisas, em que se encontra o
referente no mundo concreto. Ao contrário, o conhecimento é sempre produzido
através da interação e da comunicação e sua expressão está sempre ligada aos
interesses humanos que estão, nele, implicados.
O conhecimento emerge do mundo, onde as pessoas se situam e interagem, onde
os interesses humanos, necessidades e desejos encontram expressão, satisfação
ou frustração.
Em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e, portanto, nunca é
desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto de um grupo específico de
55
pessoas, que se encontra em circunstâncias específicas, nas quais, o grupo está
engajado em projetos definidos.
Segundo o autor, uma Psicologia Social do Conhecimento está interessada nos
processos, através dos quais o conhecimento é gerado, transformado e projetado
no mundo social. Frente ao exposto, Moscovisci apresenta a sua Teoria das
Representações Sociais, que está situada no mundo anglo-saxão:
“As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, se
entrecruzam e se cristalizam continuamente, através de uma palavra, de um gesto,
ou de uma reunião em nosso mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de
nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as
comunicações que estabelecemos. Nós sabemos que elas correspondem, de um
lado, à substância simbólica que entra na sua elaboração e, por outro lado, à prática
específica que produz essa substância, do mesmo modo como a ciência ou mito
correspondem a uma prática científica ou mítica.” (p. 9)
Segundo o autor, a realidade das representações sociais é fácil de ser
compreendida, mas o seu conceito não o é:
“Há muitas boas razões para que o conceito de representações sociais seja
complexo. Na sua maioria, elas são históricas e é por isso que nós devemos
encarregar os historiadores da tarefa de descobrí-las. As razões não-históricas
podem todas ser reduzidas a uma única: sua posição “mista”, no cruzamento entre
uma série de conceitos sociológicos e uma série de conceitos psicológicos. É nessa
encruzilhada que nós temos de nos situar.” (p.10)
A perspectiva sociológica tratou da sociedade e a definiu como uma estrutura de
unidades inter-relacionadas. Assim, por exemplo: a estrutura política, no Brasil
atual, é composta por uma estrutura democrática, que compreende, na hierarquia
mais alta, o Presidente da República e seus ministros, o Senado e a Câmara dos
Deputados Federais; numa estrutura intermediária, o Governador e os Deputados
Estaduais; na estrutura mais baixa, o Prefeito e os Vereadores. Assim sendo,
poder-se-ia dizer que a sociedade é definida por uma multiplicidade de estruturas
sociais.
56
Numa perspectiva psicológica, a cognição é entendida como a construção, a
circulação e a interação de conhecimentos, que são tanto individuais, quanto
sociais, de forma a se entender que a memória de longo prazo é composta por dois
armazéns: o social e o individual. Ao se estabelecer a interdisciplinaridade, a
perspectiva psicológica do conhecimento e a perspectiva social das estruturas
sociais, ocorre o Interacionismo Simbólico.
Segundo Bazilli et all. (1998), o Interacionismo Simbólico é o modelo teórico
construído com os protagonistas sociais e suas interações em sociedade. Segundo
eles, duas grandes vertentes para o Interacionismo Simbólico: a primeira, trata
da estrutura social, definindo-a por papéis sociais; e a segunda, trata das funções
que os protagonistas sociais têm na interação simbólica.
A interação é vista como uma relação de protagonistas, como por exemplo: médico-
paciente; professor-aluno; patrão-empregado, entre outras. De forma geral,
entende-se o interacionismo como simbólico, porque ele é produto do discurso, a
partir do uso efetivo da língua.
O modelo teórico do Interacionismo Simbólico é construído com a metáfora teatral,
de forma a se descrever a estrutura social, a partir de dois planos: o palco e os
espectadores. O palco é distribuído em: cena, coxia, ponto, personagens e ações.
Com a metáfora teatral, aparece a teoria dos papéis sociais, segundo a qual, as
pessoas, como indivíduos, têm o direito de escolha para representar determinado
papel, dependendo de suas intenções. Dessa forma, ocorre a diferença entre EU e
MIM. O EU escolhe o papel que quer representar, de forma a criar para o TU, uma
imagem de si, que é o MIM.
No que se refere à análise do discurso, o Interacionismo Simbólico contribui para se
instaurar uma categoria analítica, relativa aos papéis sociais representados no
cenário discursivo.
A Teoria das Representações parte da Teoria dos Papéis e busca verificar como se
constróem as formas de conhecimento, associando os papéis sociais à percepção
do mundo e à sua representação cognitiva. Dessa forma, busca, através dos
intercâmbios comunicativos, como as representações sociais, como formas de
conhecimento, são estruturadas e transformadas.
57
Logo, a Teoria das Representações exclui a crença no “poder ilimitado da mente”,
em conformar a realidade, em penetrá-la e ativá-la, em determinado curso dos
acontecimentos.
Para o Interacionismo Simbólico, o pensamento é visto como agindo sobre a
realidade e modificando-a. Por essa razão, aparece o postulado de que as
representações sociais possuem, precisamente, duas funções:
a) em primeiro lugar, elas convencionalizam os objetos, pessoas ou
acontecimentos que encontram, dando-lhes uma forma definitiva,
localizam-nos em uma determinada categoria e, gradualmente, os colocam
como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de
pessoas. Todos os novos elementos, que se juntam a esse modelo,
sintetizam-se nele. Mesmo quando uma pessoa ou objeto não se adéqua,
exatamente, ao modelo, a mente força-o a assumir uma determinada
forma, entrar em determinada categoria e se tornar idêntico aos outros, sob
pena de não ser compreendido. Logo, cada experiência é somada a uma
realidade pré-determinada por convenções, que claramente define suas
fronteiras, distingue mensagens significativas e não-significativas e liga
cada parte a um todo, colocando cada pessoa em uma categoria específica.
Por isso, a realidade é para a pessoa, em grande parte, determinada por
aquilo que é, socialmente, aceito como realidade;
b) em segundo lugar, as representações são prescritivas, isto é, elas se
impõem sobre as pessoas, com uma força irresistível. Esta força é uma
combinação de uma estrutura que está presente, antes mesmo de
começarmos a pensar, pois é uma tradição que decreta o que deve ser
pensado. Assim, essas representações, que são partilhadas socialmente,
penetram e influenciam a mente de cada um; elas não são pensadas pelo
indivíduo, restando-lhe, apenas, a opção de repensá-las, recitá-las e
reapresentá-las.
Assim, segundo Moscovisci (2000, p.37):
“Eu quero dizer que as representações são impostas sobre nós, transmitidas e são
o produto de uma seqüência completa de elaborações e mudanças que ocorrem no
decurso do tempo e são o resultado de sucessivas gerações. Todos os sistemas de
58
classificação das representações, como formas de conhecimento, e todas as
imagens, além de todas as descrições, que circulam dentro de uma sociedade,
implicam um elo de prévios sistemas e imagens, uma estratificação na memória
coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um
conhecimento anterior e que quebra as amarras da informação presente.”
Logo, por serem as representações prescritivas, as experiências e ideias passadas
não são mortas para as pessoas; elas continuam a ser ativadas, a mudar e a
infiltrar experiências e ideias atuais.
Ainda segundo Moscovisci (p.38):
“Podemos afirmar, à luz da história e da antropologia, que as representações são
entidades sociais, com uma vida própria, comunicando-se entre elas, opondo-se
mutuamente e mudando em harmonia com o curso da vida; esvaindo-se apenas
para emergir novamente sob novas aparências. Geralmente, em civilizações tão
divididas e mutáveis como a nossa, elas co-existem e circulam através de várias
esferas de atividade, onde uma delas terá precedência, como resposta à nossa
necessidade de certa coerência, quando nos referimos a pessoas ou coisas.”
Moita Lopes (2003) afirma que os papéis sociais o representações mentais, que
propiciam a identificação das pessoas com determinados papéis. A noção de
identidade está atrelada à noção de alteridade, sendo a primeira, a representação
social, com a qual a pessoa se identifica e a segunda, a representação do outro,
com o qual a pessoa não se identifica. Em sociedade, dependendo dos papéis
escolhidos pela pessoa para serem representados, elas constróem, para si, uma
identidade.
2.4 Análise Crítica do Discurso
Todas as vertentes da Análise Crítica do Discurso estão agrupadas na
transdisciplinaridade das Ciências Cognitivas, diferentemente da Análise do
Discurso, que se estabelece nas Ciências Sociais. Análise Crítica do Discurso é
59
método, focaliza o social e reconstrói o contexto para analisar o discurso; é o social
mais o cognitivo que possibilitarão a plena compreensão de um texto.
Na década de sessenta, um grupo de pesquisadores, vinculados à Escola de
Frankfurt, desenvolveu uma abordagem de estudo da linguagem em ação,
conhecida como Linguística Crítica. Na década de oitenta, outros estudiosos se
dedicaram ao desenvolvimento dessa abordagem, porém, foi Fairclough o primeiro
a usar a expressão
“Análise Critica do Discurso
”, que pode ser considerada uma
continuação da Linguística Critica.
Análise Crítica do Discurso (ACD) vem sendo usada, mais especificamente, para
referir-se à abordagem linguística critica, adotada por pesquisadores que
consideram a unidade mais ampla do texto, como uma unidade comunicativa
básica. O termo “crítico” tem suas origens na Linguística Sistêmica da Escola de
Frankfurt, que tem, também, por ponto de partida, as ideias marxistas para
Ideologia. Os analistas do discurso, com visão crítica, voltam-se, com
especificidade, para os discursos institucionais, de gênero social, tais como: o
discurso político, o da dia, o religioso, etc., que materializam relações de luta e
de conflitos sociais, mais ou menos explícitas, linguisticamente.
A ACD tem por objetivo principal denunciar o domínio das mentes das pessoas,
a partir dos discursos blicos e institucionais, ainda que pressuponha a existência
de uma dialética entre o social e o individual: o social guia o individual e este
modifica o social. Trata-se, portanto, de entender esta dialética, a partir da Teoria
da ão, segundo a qual, toda forma de comunicação estabelece-se por uma
interação entre os participantes discursivos.
Considera-se que o discurso é uma prática social, que pode ser definida por um
contexto discursivo, que é o modelo mental e compreende participantes, suas
funções e suas ações.
A ACD vem sendo realizada por diferentes vertentes, sendo que uma delas é a
sócio-cognitiva, da qual van Dijk é seu maior expoente. Van Dijk (1997) propõe a
Análise Critica do Discurso a partir de três categorias analíticas, a saber:
Sociedade
,
Cognição
e
Discurso
, que se inter-relacionam, na medida em que uma
se define pela outra.
60
A
Sociedade
é vista como um conjunto de grupos sociais. Cada grupo social é visto
como uma reunião de pessoas que têm, em comum, os mesmos objetivos,
interesses e propósitos. Dessa forma, por haver diferença entre os grupos sociais,
um constante conflito intergrupal. Todavia, os discursos públicos, por terem
acesso a um grande número de grupos sociais, produzem uma unidade imaginária
entre eles, que é extragrupal.
A
Cognição
é compreendida como um conjunto de representações mentais, que
são formas de conhecimento. Cada representação mental é construída devido à
projeção de um ponto de vista para se observar o que acontece no mundo e esse
ponto de vista é guiado, socialmente, pelos objetivos, interesses e propósitos
comuns a um grupo e, portanto, diferem de um grupo para outro.
Essa diferença constrói um constante conflito intergrupal, devido às suas próprias
cognições sociais. O conjunto de conhecimentos, construídos por um grupo social,
forma o Marco das Cognições Sociais deste grupo. O conflito intergrupal decorre de
oposições entre os Marcos de Cognição Social de grupos diferentes.
O
Discurso
é entendido como uma prática social que se define por participantes,
suas ações e funções e todas as formas de conhecimentos sociais são construídas
no e pelo discurso.
Em van Dijk (2002), o conhecimento envolve dimensões cognitivas, sociais e
discursivas. Na dimensão cognitiva, o conhecimento é visto como uma espécie de
crença, pois, para o autor, todas as formas de conhecimento são avaliativas.
A epistemologia, tradicionalmente, diferencia episteme de opinião. Os
conhecimentos epistêmicos são conferíveis nas coisas que ocorrem no mundo;
dessa forma, decorrem de ações, pessoas e objetos observáveis e que produzem
uma forma de conhecimento, atribuindo, ao dito, valor de verdade ou falsidade. A
opinião é uma forma de avaliar o que ocorre no mundo real e, por essa razão, não
é observável, nem comprovável, podendo ser aceita ou rejeitada.
Entretanto, com a
Teoria das Representações
, as noções de episteme e opinião
passam a ser revistas. Van Dijk (1997) discute essa diferença e conclui que todas
as formas de conhecimento, por serem representações do real, são avaliativas,
61
portanto, opinativas. Essas formas de conhecimento o construídas no e pelo
discurso e, portanto, todas as formas de conhecimentos sociais são crenças e não
epistemes.
Na dimensão social da interação comunicativa, nos discursos que o são
autoritários logo são crenças é necessário que se faça uma justificativa e ela
implica a condição de que o conhecimento vale quando é justificado, ou seja,
para excluir especulações que não sejam verificáveis e culturalmente aceitas.
Nesse sentido, as noções de verdade e real são definidas de modo social,
principalmente, em termos de concordância, compartilhamento ou critérios sociais.
Tratando-se da dimensão discursiva, no discurso cotidiano, as crenças são
descritas como conhecimentos de fatos, quando há concordância entre aquele que
fala e aquele que ouve. O Discurso é entendido como uma prática social definida
por um esquema mental, que compreende os participantes, suas funções e suas
ações.
Esses participantes são tanto de discursos públicos institucionalizados, quanto de
eventos discursivos particulares. O texto está inserido na dimensão discursiva e
visto como um produto linguístico, cujas palavras têm o poder de difundir
conhecimentos atuais, culturais e ideológicos.
Como todas as formas de conhecimento são construídas no e pelo discurso,
embora haja conflitos intergrupais, os discursos públicos institucionalizados
constróem uma unidade imaginária, com campos de similitude para os diferentes
Marcos de Cognição Social, designada memória social, que compreende os
conhecimentos extragrupais.
Os Marcos de Cognições Sociais são construídos por um conjunto de
representações sócio-cognitivas, moldadas pela ideologia do grupo de Poder do
referido Marco de Cognição Social. Portanto, para van Dijk (2000), as ideologias
são plurais e compreendem formas de avaliação, para o que está representado
como forma de conhecimento no mundo.
Dessa forma, entre a designação e o designado, há uma avaliação ideológica
imposta pelo grupo de Poder, que reside na memória social dos grupos sociais, de
62
forma a propiciar a discriminação de grupos sociais menos favorecidos,
dependendo dos interesses dos participantes do Poder.
Segundo van Dijk (1992), a Ideologia desempenha papel central na (re)produção
dos processos de persuasão. Consiste em um marco sócio-cognitivo que, de forma
inconsciente, para os grupos minoritários, assegura a realização dos interesses e
objetivos do grupo dominante: a solidariedade entre os membros do grupo de
Poder prevalece sobre as divisões de classe, com as quais joga intertextualmente,
mas hierarquiza sua ideologia ao formular e produzir marcos para a sociedade, ou
seja, transforma fatores sociais, que são combinados com dimensões culturais da
ideologia dominante. Assim, as ideologias devem incorporar conhecimentos e
crenças sociais.
Embora ambas sejam crenças, Silveira (2000) diferencia cultura de ideologia,
apesar de ambas se definirem como formas de opinião social. A Cultura é
transmitida, de geração para geração e esses valores guiam o comportamento das
pessoas, ao experienciarem e vivenciarem o que ocorre no mundo. A Ideologia,
também, compreende valores transmitidos, socialmente, pelos discursos
institucionalizados, públicos; todavia, esses valores são transmitidos com o objetivo
de discriminar pessoas e grupos sociais, o que não acontece com os
conhecimentos culturais.
Os conhecimentos culturais, conforme Silveira (1999), decorrem de formas de
representação do que foi vivido e experienciado, socialmente, num determinado
momento histórico. Pelo fato de a cultura ser transmitida, de geração para geração,
suas formas de representação, enquanto crenças, têm raízes históricas, mas são
dinâmicas, pois, a cada contemporaneidade, cada geração precisa resolver
problemas novos. O velho resolve o novo, construindo e reconstruindo um trajeto
cultural na sociedade.
Como cada grupo tem um Marco de Cognição Social, para a autora, as culturas são
plurais, embora haja uma unidade imaginária nacional, extragrupal. As culturas
oferecem formas de conhecimentos, para a construção das ideologias pelas
classes de Poder e a dinâmica ideológica decorre da mudança de interesses
dessas classes de Poder.
63
Em suma, para a ACD, o discurso é uma pratica sócio-interacional, sendo que a
interação é entendida nas relações interpessoais, inter-sociais, inter-institucionais,
na medida em que definir interação implica a dinâmica de formas de conhecimento,
que constróem o novo interacionado com o velho e projetam as imagens do futuro,
pelo imaginário.
O discurso, como prática social, tomando por base a Teoria do Interacionismo
Simbólico, propicia que van Dijk (1997) apresente a noção de contexto discursivo,
definida por um esquema mental, constituído por participantes, suas funções e suas
ações. O Interacionismo Simbólico propicia, ainda, que van Dijk apresente os
diferentes grupos sociais, cada qual com a sua estrutura social específica de
papéis, que participa do Marco de Cognição Social do referido grupo.
Cada prática discursiva seleciona, na estrutura social, conhecida pelo grupo social
– o qual compõe o marco de suas cognições sociais papéis sociais para
caracterizar os seus participantes e estes estão inter-relacionados, cada qual na
própria estrutura da sociedade. Nesse sentido, a interação simbólica entre os
papéis sociais define as funções discursivas dos participantes e quais ações eles
podem praticar, numa determinada condição de produção discursiva.
Van Dijk (1997) diferencia os discursos públicos institucionais dos eventos
discursivos particulares. Os discursos públicos institucionais, ideologicamente, são
organizados pelas seguintes categorias: Poder, Controle e Acesso.
A categoria Poder reúne um grupo de participantes que tem o poder de tomar
decisões, de forma a realizar ações e com elas incluir ou excluir valores sociais.
A categoria Controle agrupa um conjunto de participantes que tem por função
executar as decisões tomadas pelo Poder e, para tanto, determina quais ões
serão realizadas.
A categoria Acesso reúne um conjunto de participantes que dão acesso ao público
às decisões tomadas pelo Poder e controladas em suas práticas.
Os eventos discursivos particulares não têm acesso ao público e, por essa razão,
não precisam de ser controlados pelo Poder.
64
2.5 A Polifonia
Ducrot (1987) formulou sua teoria polifônica, tendo como ponto de partida o
conceito de polifonia de Bakhtin. O autor considera que num mesmo enunciado
isolado ressoam várias vozes e, com essa concepção, contesta a ideia de que
cada enunciado é produzido por um único autor, aquele que se diz “EU” e propõe
distinguir locutores e enunciadores, em uma mesma enunciação.
Segundo o autor, o locutor é aquele que, no enunciado, é visto como seu
responsável, enquanto o enunciador é o produtor físico do enunciado, um ser
empírico; e os enunciadores são as outras vozes presentes na enunciação. Assim,
a polifonia é a incorporação das vozes de outros enunciadores, feita no próprio
discurso, uma vez que o pensamento do “outro” é constitutivo do “EU” e,
consequentemente, a produção dos sentidos está condicionada pela alteridade.
Ele trabalha com o conceito de polifonia, ou seja, o indivíduo representa a fala de
vários outros falantes, quando ouve, seleciona e cria, em cima disso, a sua fala, o
seu discurso. Num discurso poder-se-ia descobrir quais classes são privilegiadas,
quais são menos privilegiadas e os interdiscursos que permeiam tudo isso.
Quando Ducrot (1981) apresenta a necessidade de dintinguir locutor de enunciador,
em face das múltiplas vozes existentes no interior de um discurso, revê, também, a
noção de ato ilocutório, pois o discurso persuasivo tem, por intenção, levar o
“OUTRO” a abandonar o que sabia e acatar o que lhe está sendo proposto, por
meio da argumentação. O ato ilocucional apresenta as intenções do “EU” e o ato
perlocucional apresenta o reconhecimento das intenções do “EU pelo “TU” e
determinam o sucesso ou fracasso da persuasão, pois o “TU” é levado a fazer algo,
a partir do que alguém diz.
Tratando-se da argumentação, os intertextos se constróem em um discurso
polifônico, em que o texto 2 refuta o texto 1, apesar de esse ter sido o seu ponto de
partida, o que Brandão (1997) denomina de (E1), um enunciador que produz o
enunciado afirmativo e (E2) o enunciador que o contradiz.
65
Segundo Brandão (1997), a argumentação está centrada no discurso e esta é
sócio-interacional: é feita por um sujeito e dirigida a outros sujeitos, também em
ação. Considera que a Teoria da Argumentação na língua, proposta por Ascombre
& Ducrot, está articulada com a teoria da polifonia, para a qual Ducrot postula a
existência de um diálogo de vozes, de forma a isentar o locutor, no seu dito, do
valor de verdade/falsidade.
2.6 O texto e as expressões indexais
Cavalcanti (1989) postula que o aspecto pragmático da interação tenta explicar a
negociação de sentido, durante a interação, comparado ao sentido em abstração,
ou seja, a relação entre o sentido pragmático e semântico. Acrescenta, reportando-
se a Leech (1983), que a semântica como parte da gramática e a ela cabe a
compreensão de sentido e a pragmática como parte da retórica e a ela cabe a
interpretação de sentido estão em relação de complementaridade e a tarefa da
pragmática é a de explicar a espécie de relação entre o sentido e a força
ilocucionária. E para poder atribuir força ilocucionária, os leitores dependem de sua
competência comunicativa, que compreende aspectos concernentes a
procedimentos de interpretação, esquemas e conhecimento acumulado. Sua
competência comunicativa é influenciada pelo aspecto sócio-psicológico, através
dos sistemas de valores na memória, ativados durante a interação.
A interpretação pragmática, segundo Cavalcanti, é a negociação de significados,
por um processo interativo, que compreende a interação EU-Texto; num segundo
momento, o processo é interacional, ou seja, EU-TU.
Durante o processo interativo, o autor, ao enunciar o seu texto, deixa saliências
lexicais e gramaticais, para que o leitor tenha uma orientação de leitura do texto-
produto. Dessa forma, a interação autor-leitor é realizada por expressões indexais,
que guiam o procedimento interpretativo, durante o qual, o leitor atribui força
ilocucionária a enunciados, ou seja, os atos retóricos por meio de uma série de
66
processos, que envolve a reconstrução da intenção pressuposta do escritor, seus
propósitos e outras razões possíveis.
De acordo com Cavalcanti, problemas de interpretação pragmática são definidos
como ambiguidades ou discrepâncias, resultantes de desencontros na negociação
de significado, através da interpretação de atos retóricos, que se tornam
transparentes na interação, devido a itens, contextualmente, relevantes. Esses
problemas podem estar relacionados somente à força ilocucionária, somente ao
conteúdo proposicional ou a ambos.
A autora menciona Zaefferer (1977), em seu estudo sobre desvios da compreensão
e que se refere a esses problemas como leituras questionáveis, tanto semânticas,
quanto pragmáticas. Outrossim, Cavalcanti inclui leituras semântico-pragmáticas
questionáveis, uma vez que considera difícil demarcar, claramente, a fronteira entre
conteúdo proposicional o semântico e a força ilocucionária a pragmática.
Define essas leituras questionáveis, como reflexos de desencontros entre
expressões indexais intrinsecamente
salientes
e extrinsecamente
relevantes
no
texto e nos sistemas de valores/estruturas de conhecimento do leitor.
Acrescenta, ainda, que esses problemas podem resultar de uma combinação de
desencontros de pressuposições, com base em estruturas de conhecimento, de
expectativas e em sistema de valores. Em suma, problemas de interpretação
pragmática têm por base, principalmente, desencontros entre o mundo do leitor e a
visão de mundo potencialmente veiculada no texto.
Artigos sobre a subjetividade na linguagem, escritos por Benveniste (1966),
motivaram a ampliação dos estudos sobre a semântica linguística, visando
introduzir, na própria linguagem, determinado número de fenômenos ligados à
enunciação, que antes eram ligados à fala. Com este objetivo, Ducrot (1981) parte
do princípio de que muitos Atos de Enunciação têm uma função argumentativa, que
visa levar o destinatário a uma certa conclusão ou dela desviá-lo. E que a frase
pode conter diversos morfemas, expressões ou termos que, além de seu conteúdo
informativo, servem para dar orientação argumentativa ao enunciado, a conduzir o
destinatário em uma direção ou direções.
67
O autor define as classes argumentativas pelas circunstâncias e, portanto, são
relativas a uma conclusão particular, a um locutor determinado, levando-se em
conta sua identidade e situação: ideológica, sociológica e espaço-temporal. Para
tanto, Ducrot, através de alguns exemplos de morfemas, estabelece algumas
escalas argumentativas, levando-se em conta: as proposições, implicações
(inferências), valor essencial do morfema e valor argumentativo.
Ducrot trabalha com os conceitos de
pressuposição e atos de linguagem.
Considera que o sentido de um enunciado está no ato de linguagem e que
implicaturas lexicais e textuais, assim como conclusões e argumentos explícitos e
implícitos. E nesses argumentos, tanto explícitos quanto implícitos, sempre: o
posto
, o dito e o “EU”, o locutor; o
pressuposto
, de conhecimento do “EU” e do
“TU”
(nós), pertence ao domínio comum dos dois interlocutores; e o
subentendido
,
construído pelo “TU”, que acresce ao
posto
sentidos novos e não é do componente
linguístico, mas do retórico.
2.7 A construção das figuras no intra-texto e as noções de
relevância e saliências
tempos, as palavras o empregadas em sentido figurado e, um
exemplo
típico, é o caso da Bíblia. Na Retórica Antiga, já se discutia o “sentido
próprio
versus
sentido figurado”, pois havia a crença no significado original e
unitário das palavras. Ao longo do tempo, muitos estudos foram se desenvolvendo
e continuam sendo desenvolvidos, atualmente, a respeito da questão.
A Retórica Clássica denominava as figuras de
tropos
”, classificando-as em:
figuras
de pensamento
, aquelas relacionadas ao modo de pensar e
figuras de palavra
, as
relacionadas ao modo de se expressar. Assim, as figuras eram consideradas
“desvios” da norma, uma vez que rompiam com a estrutura lógica.
Em Benveniste (1976), as figuras passam a ser descritas como mudanças nas
coordenadas ou deslocamento no interior dos conjuntos, causados por operações
68
de supressão, adjunção, supressão-adjunção e permutação. Essa é uma visão que
define as figuras apenas como ornamento.
Propondo uma nova perspectiva, a autora Palma (1998) faz um estudo das figuras
de oposição que se constróem por processos associativos, como: a antítese, o
paradoxo, a litotes, a ironia e o eufemismo, postulando a inexistência do sentido
literal, a priori, pois, são as especificidades contextuais que atualizam o real sentido
da palavra, no texto.
Quando diferencia o sentido literal do figurado, Palma (p.102) postula que:
O conteúdo das informações expressas no nível lingüístico, relacionados a um
evento específico, será determinado por fatores culturais, por crenças e por valores
daquele que recebe a mensagem, devendo estar adequado à situação. Quando
isso não ocorre, ou seja, quando essas expectativas do usuário frustram-se, ele
realiza um processo interpretativo mais acurado e complexo, apreendendo, então, o
sentido figurado.”
Cavalcanti (1989) denomina,
itens contextualmente relevantes
”, as palavras e
expressões com as quais o leitor escolhe interagir em leitura e representam o seu
ponto de vista na interação com o texto. Cada leitor escolhe esses itens, de acordo
com suas motivações, seus conhecimentos, interesse imediato, enquanto realiza a
leitura e essa escolha, que numa primeira instância pode ser considerada como
periférico no texto, poderá ou não coincidir com os itens que foram sinalizados pelo
autor, para serem tomados como relevantes.
Esses
itens contextualmente relevantes
são, potencialmente, ligados a problemas
de interpretação pragmática em leitura, isto é, o elementos importantes para a
atribuição de força ilocucionária e deram origem ao
Princípio de Relevância
”, para
o qual Cavalcanti reporta-se à proposta de Sperber & Wilson (1981), que o definem
como princípio central na interpretação e tem, como determinantes, a comunicação
produtiva e receptiva, o que significa dizer que, por um lado, o escritor apresenta o
que considera
relevante,
através da
saliência
no texto e, por outro lado, o leitor
procura e interage com esses aspectos
salientes
no texto.
69
Entretanto, a autora ressalta que o conceito de relevância do leitor não é restrito ao
domínio do texto – conceito divergente de Sperber & Wilson – pois o aspecto sócio-
psicológico da interação ficaria fora do escopo da pragmática. Cavalcanti acredita
que expectativas mais específicas, diferentes daquelas apresentadas pelo escritor,
representam a contribuição idiossincrática pistas contextualmente relevantes – do
leitor para a interação, que é uma adição às expectativas sistemáticas na
interpretação pragmática.
O
Princípio de Relevância
é a base da ideia da heurística da interpretação,
segundo Cavalcanti, em que o papel do leitor é descobrir o melhor caminho para
negociar significado, tendo em vista as expressões indexais e focalizando os
aspectos salientes do texto, em busca de melhor compreensão das reais intenções
do autor. E acrescenta uma definição de Sperber & Wilson (1981, p.18), do ponto
de vista do ouvinte/leitor:
“... a relevância de um enunciado é estabelecida em relação a um conjunto de
crenças e suposições, isto é, um conjunto de proposições; relevância é uma
relação entre a proposição expressa por um enunciado de um lado, e o conjunto
de proposições na memória acessível do ouvinte, de outro lado.”
Em ntese, pautada nessa definição, a autora considera que o
Princípio de
Relevância
norteia-se pela relação entre os aspectos salientes do texto e o
conhecimento prévio e acumulado do leitor, sendo a informação nova trabalhada
com base no quadro de referência pessoal do leitor, incluindo seus sistemas de
valores.
Decorrente do
Princípio de Relevância
, Cavalcanti, embasada em Leech (1983),
apresenta, também, o
Princípio de
Economia
, em que o escritor torna aspectos de
seu enunciado redundantes, propositalmente, para que o ouvinte/leitor possa
maximizá-lo, ou seja, a redundância pode representar, no texto, uma saliência
intencional do autor.
Cavalcanti (1989) postula que a
saliência
no texto dá-se pelos
itens lexicais
chave,
enquanto a
relevância
dá-se por
itens contextualmente relevantes
. Os itens
lexicais chave classificam-se em:
itens restritivos
tratam-se de palavras ou
70
expressões que adquirem valor de adjetivo no enunciado e, portanto delimitam a
interpretação semântica/pragmática;
itens
associativos
aqueles que dão a ideia
de uma coesão lexical e aparecem em pares ou sequenciados, no contexto; e
itens
iterativos
aqueles que se relacionam com o referente, sustentam os itens lexicais
chave.
Segundo a autora,
Itens lexicais chave
são expressões linguísticas existentes na
superfície textual e, cognitivamente, produzem saliências, na medida em que levam
às inferências ostensivas, de acordo com o
princípio de relevância
, com a
finalidade de buscar uma solução para o problema encontrado durante o
processamento das informações. São
sinais chave
representantes do elo
subjacente entre leitor e texto, exercendo o papel de ativar
molduras, esquemas
e
sistemas de valores
e, portanto, são considerados fonte de problemas potenciais de
interpretação pragmática, na interação leitor-texto.
Para a autora, o conceito de
itens lexicais chave
está atrelado a dois prismas:
semântico
, porque se baseia na saliência assinalada pela coesão léxico-gramatical
e de estrutura de informação no texto; e
pragmático
, porque se refere às
expressões indexais, cuja saliência é negociada em termos de relevância-leitor, em
busca da criação da coerência.
A inter-relação entre diferentes
itens lexicais chave,
no texto, é que sustenta essa
definição quanto ao aspecto semântico, pois a saliência de um item lexical chave
só se justifica diante de outros itens lexicais, ou seja, não podem ser caracterizados
como palavras isoladas. Quanto ao aspecto pragmático, a definição se sustenta,
se considerada em relação a itens contextualmente relevantes, na interação leitor-
texto.
Em suma, para Cavalcanti, itens lexicais chave centralizam informação, a qual,
apresenta relações semânticas diretas no texto e relações pragmáticas indiretas, na
interação leitor-texto. Servem de alicerce para o estabelecimento de conteúdo
proposicional e força ilocucionária, ativando as estruturas de conhecimento e os
sistemas de valores do leitor, além da função de instigadores à construção de
pressupostos, em relação ao todo ou a parte do texto. São, portanto, expressões
71
indexais salientes que ocorrem no texto, preservando sua unidade, através de
coesão topical e servindo de base para a criação de coerência.
Este capítulo foi composto pelas questões teóricas pertinentes ao procedimento
metodológico selecionado, o teórico-analítico e as análises realizadas, com essas
bases teóricas apresentadas, compõem o próximo capítulo.
72
CAPÍTULO III
ANÁLISES DO TEXTO-BASE FAROESTE CABOCLO” E
RESULTADOS OBTIDOS
73
CAPÍTULO III
ANÁLISES DO TEXTO-BASE “FAROESTE CABOCLO” E
RESULTADOS OBTIDOS
Este capítulo apresenta as análises realizadas e seus respectivos resultados,
seguidos de discussão.
3.1 Análise do Texto-Base
Trata-se de uma narrativa com linguagem poética, com progressão linear, tendo
como referente a exclusão social, sob o ponto de vista sócio-econômico e que
mostra a saga de João de Santo Cristo. Todavia, essa narrativa está modificada,
textualmente, em uma crônica do cotidiano, evidenciada pela opinião implícita do
cronista Renato Russo, sobre o referente do texto. E para compreendê-la, norteado
pela Análise Crítica do Discurso, estabeleceu-se como critério, as três categorias
analíticas: Sociedade; Cognição; e Discurso, postuladas por van Dijk (1997).
3.1.1 Sociedade
Considerando-se que a sociedade é constituída por conjuntos de grupos sociais e
que cada grupo social é uma reunião de pessoas, que têm em comum os mesmos
objetivos, interesses e propósitos, serão identificados, a seguir, os grupos sociais
representados no texto-base.
74
3.1.1.1 Grupo Social: Cristianismo
- verso 1: “Não tinha medo o tal João de Santo Cristo
Nome bíblico, João Batista, que Nome próprio, construído
era um dos apóstolos de Jesus. com o nome próprio de Jesus,
adjetivado por Santo.
- verso 4: “Só para sentir no seu sangue o ódio que Jesus
lhe deu.
Nome próprio do filho de Deus, Jesus Cristo, nascido de Maria.
- verso 9: “Ia pra igreja
só pra roubar o dinheiro
Templo onde os cristãos se reúnem para rezar.
- verso 10: “Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.
Mesa especial consagrada aos sacrifícios religiosos.
- verso 28: “E ia perder a viagem, mas João
foi lhe salvar.
Nome próprio de um dos apóstolos Obter a salvação eterna;
de Jesus. livrar-se das penas do Inferno.
75
- verso 54: “Elaborou mais uma vez seu plano santo
Sagrado; está adjetivando plano: elaborado de acordo
com os preceitos religiosos.
- verso 55: “E, sem ser crucificado
, a plantação foi começar.
Pregado na cruz; crucifixo; aquele que padeceu o suplício
da cruz: Jesus Cristo.
- verso 66: “E pro inferno
ele foi pela primeira vez.”
Segundo o Cristianismo, lugar ou situação pessoal, em que se
encontram os que morreram em estado de pecado.
- verso 74: “E todos os pecados
ele se arrependeu.”
Ruptura e/ou transgressão de preceito religioso.
- verso 75: “Maria
Lúcia era uma menina linda”
Nome próprio da mãe de Jesus. Nome próprio que deriva de luce,
que deu
origem a dois significados: a) luze
Luzia
Santa Luzia: a protetora dos olhos, a luz
do bem; b) lúcifer
luz
: a luz do mal, o diabo.
76
- verso 79: “E carpinteiro ele voltou a ser.”
Profissão exercida por São José, o pai de Jesus, segundo a bíblia.
Possivelmente, essa também teria sido a profissão de Jesus, uma
vez que, nessa época, era tradição os filhos aprenderem o ofício
do pai.
- verso 103: “Mas acontece que um tal de Jeremias
,”
Nome próprio de um profeta bíblico.
- verso 114: “E dizia que era crente
, mas não sabia rezar.”
Que crê; que tem fé ou crença Dizer ou fazer oração ou
religiosa. súplica religiosa.
- verso 141: “ – Se a via-crúcis
virou circo, estou aqui.”
Caminho da cruz; calvário.
- versos 148/149: “Dá uma olhada no meu sangue
/ E vem sentir o teu perdão.”
Termos usados no Cristianismo, em que sangue simboliza o
sacrifício, a morte de Jesus, em nome de seu povo, para
que todos alcançassem o perdão, a remissão de seus pecados.
77
- verso 156: “E João não conseguiu o que queria, quando veio pra Brasília
com o diabo
ter.”
O chefe dos demônios, o gênio do Mal; anjo mal, que tendo se
rebelado contra Deus, foi precipitado no Inferno e procura a
perdição da humanidade.
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Cristianismo
A fim de explicitar a análise desse grupo, torna-se relevante entender,
primeiramente, o significado do termo Cristianismo, conforme definição da Nova
Enciclopédia Ilustrada Folha (1996, p.242):
“Religião cristã, baseada na crença em Jesus Cristo como o filho encarnado de
Deus e na adesão aos seus ensinamentos. O cristianismo, a maior religião do
mundo, foi originariamente uma seita do judaísmo e compartilha com este a crença
em um Deus único e onipotente. Jesus, que era um judeu, era tido por seus
seguidores como Messias e Filho de Deus, o cumprimento das profecias milenares
e escatológicas (isto é, relativas ao fim dos tempos) a respeito do Salvador. Jesus
proclamou uma nova aliança entre Deus e a humanidade, diferentemente daquela
mencionada nos textos bíblicos judaicos. Um aspecto fundamental é a crença de
que Jesus é o filho de Deus feito carne; dessa crença se elaborou a doutrina da
“Trindade, segundo a qual Deus reúne em si três pessoas o Pai, o Filho e o
Espírito Santo , sem deixar de ser único. Jesus é Deus e homem, uma pessoa
com duas naturezas (humana e divina). Ele morreu crucificado e sua morte
representa um sacrifício através do qual toda a humanidade foi redimida de sua
condição pecadora; sua ressurreição dentre os mortos simboliza a esperança na
vida eterna, tal como expressa na doutrina da expiação ou purificação dos pecados.
O livro sagrado cristão é a Bíblia, cuja primeira parte, o Antigo Testamento, consiste
nas escrituras sagradas hebraicas. Os cristãos reconhecem a vigência moral dos
Dez Mandamentos, mas acrescentam-lhes os ensinamentos de Jesus sobre o amor
de Deus pela humanidade, encontrados na segunda parte da Bíblia, o Novo
Testamento. Este reúne relatos sobre a vida de Jesus e escritos da época de
formação e desenvolvimento das comunidades e doutrina cristãs. A doutrina do
78
amor divino é considerada o aspecto central da relação entre Deus e a humanidade,
e os cristãos são chamados a mostrar o mesmo amor em suas relações com os
demais seres humanos. Desde o seu início, o cristianismo caracterizou-se por uma
forte tradição de culto comunal e, em muitos casos, de rituais bastante elaborados.
(...) Modernamente, o cristianismo está difundido por todo o mundo, com
comunidades e missões na Ásia e seitas e congregações em rápido crescimento na
África e América do Sul. Há, em diversas regiões, uma pluralidade de movimentos e
tendências, como a Teologia da Libertação, que associa a mensagem cristã à luta
por justiça social, e outras correntes mais conservadoras, fundamentalistas ou de
ênfase na espiritualidade.”
Levando-se em consideração essa definição de Cristianismo, em que se afirma que
Jesus é Deus e homem, um ser com duas naturezas distintas: humana e divina e
todos os termos bíblicos empregados no texto-base, conclui-se que o sobrenome
Santo Cristo,
sob o ponto de vista cristão, é o perfil de João sendo traçado com
contornos parecidos com os de Jesus Cristo: pobre, marginalizado e carpinteiro.
As figuras bíblicas, que têm seus caminhos cheio de dores e provações,
assemelham-se à descrição do personagem no texto. Porém, estranhamente,
referência divina atrelada a um personagem tido como bandido: em seu sobrenome
“João de
Santo Cristo”
e no verso
para sentir no seu
sangue o ódio que Jesus lhe
deu
”.
Nota-se, aqui, um paradoxo intencional, porém conflitante e suscita encontrar
respostas às perguntas: segundo o Cristianismo, Jesus simboliza o amor, o bem,
enquanto o Diabo simboliza o ódio, o mal. Por que o texto-base diz que Jesus deu
ódio ao personagem? Poderia João ser bandido e, ao mesmo tempo, ter uma
essência de bondade, de generosidade?
João - bandido - ódio
x
Jesus Cristo - santo - amor
79
Apesar de conflitantes, tais características integram-se no texto, indicando que
João, um ser originariamente bom, fora transformado pela sociedade pelas
constantes injustiças sociais em um bandido, em um mártir, assim como Jesus
também o fora. Carrega em seu nome essas duas características:
João de Santo
Cristo
um homem santo no nome e um homem diabólico, bandido no cotidiano,
ou seja, com duas naturezas a divina e a humana tal qual Jesus também é
descrito.
Essa constatação nos reporta ao filósofo Rousseau que diz:
“Todo homem nasce
bom. A sociedade é que o corrompe.”
Quem rege a vida do personagem é um
destino cego e implacável, que está acima de sua vontade própria. E,
consequentemente, sua vida fora tomada pela inconformidade, pela
impotencialidade e pelo ódio a uma sociedade que o rejeita e o agride. João de
Santo Cristo, cuja dor acentua o sofrimento das classes sociais mais baixas,
representa a figura do próprio mártir, pelas seguintes razões:
a) nasceu bom, mas a sociedade o tornou mau, evidenciado no verso
“...quando ele se
perdeu”.
Significa que houve um tempo em que ele era bom
e depois se perdeu; e, para se perder, subentende-se que ele era certo,
antes de se perder;
b) a todo momento, a figura de João reporta-se ao mito cristão, sugerindo
que todos têm uma cruz para carregar. Há várias passagens com o uso de
termos do domínio religioso, referindo-se a João de Santo Cristo, em que
uma aproximação com
Jesus Cristo
, constituindo-se como um dos muitos
cristos”
crucificados em nossa sociedade, cotidianamente. Porém, por ser
um “
cristo”
muito mais humano que o bíblico, cede às tentações;
c) analisando o nome dos dois outros personagens, tem-se outras evidências
dessa aproximação de João com Jesus Cristo:
-
Maria Lúcia
, o nome de sua amada:
Maria
é a mãe de Jesus, uma figura
acolhedora; enquanto
Lúcia
possui dois significados: a luz do bem,
reportando-se a Santa Luzia e a luz do mal, reportando-se ao Diabo. Maria
Lúcia agrega as duas naturezas: uma luz que desgraça e, ao mesmo tempo,
salva; sintetiza o amor que salva e o amor que mata.
80
-
Jeremias
, o seu rival: um adversário poderoso, que surge para
desequilibrar o mundo de João. Traz em seu nome referência a um profeta
do Velho Testamento, que recebeu de Deus a missão de converter o povo
de Jerusalém e a cumpre fielmente. Porém, o Jeremias do texto é um profeta
às avessas, seduzindo e conduzindo as pessoas aos vícios e aos desvios
das normas sociais. É o vilão que se opõe à figura heróica de Santo Cristo.
Representa o bandido profissional, já plenamente estabelecido, diferente de
João que luta para não ceder às tentações;
d) o ódio que corre em suas veias não foi escolha própria, mas uma
imposição divina, estava predestinado:
“... o ódio que Jesus lhe deu.”
Embora a palavra
inferno
faça parte do domínio religioso, aparece no texto, com
duas acepções diferentes:
caracterizando uma instituição que não cumpre sua função social, a
prisão:
“Já no primeiro roubo ele dançou / E pro inferno ele foi pela primeira vez.”
caracterizando o sentimento de decepção, ódio, desilusão do
personagem, ao ser traído pela mulher amada:
“Chegando em casa então ele chorou / E pro inferno ele foi pela segunda vez. /
Com Maria Lúcia Jeremias se casou”
Ainda dentro do domínio religioso, a palavra
diabo
foi usada caracterizando as
pessoas responsáveis por tantas injustiças sociais sofridas pelo personagem e
por sua comunidade. Cita a cidade de Brasília como o lugar onde mora o
diabo
, o
que permite concluir que há uma referência aos políticos brasileiros, em especial ao
Presidente da República:
“E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília,
com o diabo ter.
Ele queria era falar pro presidente,
Pra ajudar toda essa gente
Que só faz sofrer.”
81
João é
João de Santo Cristo,
porque uma comparação entre sua caminhada e a
do filho de Deus, que pode ser estendida a outros indivíduos marginalizados e,
portanto, todos têm uma peregrinação constante e dolorosa, todos carregam,
inevitavelmente, sua cruz. Logo, existe a fusão do modelo do herói grego aquele
que nasce para servir, o defensor de seu povo e do ideal de sacrifício cristão,
cuja intenção do texto não parece reforçar essas idéias, mas conduzir à reflexão,
fazer um questionamento sobre as relações sociais vigentes.
3.1.1.2 Grupo Social: Os Excluídos, sócio-economicamente
- verso 1: “Não tinha medo o tal João de Santo Cristo”
Denota alguém sem poder, sem prestígio, sem identidade social.
- verso 22: “Discriminação por causa de sua classe, sua cor
Preconceito social e racial.
- verso 49: “Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar
.”
Salário insuficiente para a sobrevivência.
- verso 132: “Todo o povo
sem demora foi lá só para assistir”
O conjunto das pessoas pertencentes às classes menos
favorecidas; plebe.
82
- versos 158/159: “Pra ajudar toda essa gente / Que só faz sofrer.”
Referência explícita às pessoas que estão à margem
da sociedade.
O personagem João de Santo Cristo, na narrativa apresentada em “Faroeste
Caboclo”, circula por diferentes subgrupos sociais e, embora todos se incluam no
Grupo dos Excluídos, sócio-economicamente, esses subgrupos, também, serão
explicitados e analisados a seguir, pois integram as justificativas utilizadas pelo
autor, em defesa de seu ponto de vista:
a) Grupo Social: dos Trabalhadores
- versos 37 a 39: “No Ano Novo eu começo a trabalhar. / Cortar madeira,
aprendiz de carpinteiro / Ganhava cem mil por mês em
Taguatinga.”
- verso 41: “Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador.”
- versos 48/49: “E Santo Cristo até a morte trabalhava / Mas o dinheiro
não dava pra ele se alimentar.”
- verso 79: “E carpinteiro ele voltou a ser.”
- verso 99: “Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar.”
83
b) Grupo Social: Rural
- verso 3: “Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Grande propriedade rural.
- verso 26: “E encontrou um boiadeiro
com quem foi falar”
Tocador de boiada.
c) Grupo Social: da Periferia de Brasília
- versos 38: “Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
Trabalho típico de regiões do interior.
- verso 39: “Ganhava cem mil por mês em Taguatinga
.”
Cidade localizada na periferia de Brasília,
possuindo um núcleo rural.
- verso 124: “Amanhã às duas horas na Ceilândia
, em frente ao lote 14, é
pra lá que eu vou.”
Cidade da periferia de Brasília.
84
- verso 102: “Pablo trazia o contrabando da Bolí
via e Santo Cristo
revendia em Planaltina.”
Cidade da periferia de Brasília.
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Os Excluídos, sócio-
economicamente
No Brasil, a exclusão racial está inserida na exclusão social. Basta observar as
periferias das cidades, para se comprovar esse fato. O texto, também, aponta
nessa direção, ao caracterizar esse grupo, através da figura de João de Santo
Cristo: são pessoas sem identidade social, discriminadas por causa da classe e da
cor, sofrem privações econômicas e são designadas, negativamente, como
povo
.
Incluem-se nesse grupo:
a)
os trabalhadores
, caracterizados por ganharem salários incompatíveis
com suas necessidades básicas, além de sofrerem com a questão do
desemprego;
b)
grupo rural
, representado, no texto, pelas pessoas de baixo poder
aquisitivo, que ora são empregados dos fazendeiros e comumente são
exploradas ora vivem em propriedades próprias, mas em precárias
condições de vida. Em
marasmo da fazenda
, que representa o ponto de vista
dessas pessoas, evidencia-se o contraste entre os seus sonhos e a dura
realidade em que vivem, fato que explica a freqüente migração para os
grandes centros urbanos, em busca de melhores oportunidades de vida.
Excluem-se, no texto, as pessoas de alto poder aquisitivo, que são os donos
das fazendas;
c)
grupo da periferia
, caracterizado, no texto, pelas cidades satélites
Taguatinga, Ceilândia e Planaltina, em Brasília e que oferecem trabalho de
85
mão-de-obra pesada, como em
cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
,
diferentemente dos trabalhos desenvolvidos em grandes centros urbanos.
Tem-se, também, o aspecto negativo atribuído pela alta sociedade às
periferias e ratificado no texto como o reduto das contravenções:
drogas, violência, crimes, enfim, onde “nascem” os bandidos. Ratificando
essa idéia, temos no episódio do duelo entre João e Jeremias, o cenário da
periferia:
“Amanhã, às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, ...”
3.1.1.3 Grupo Social: Moradores de grandes centros urbanos
- versos 13/14: “Ele queria sair para ver o mar / E as coisas que ele via na
televisão
O que se mostra na televisão é o mundo das grandes cidades.
- verso 24: “E comprou uma passagem, foi direto a Salvador
.
- verso 29: “Dizia ele: - Estou indo pra Brasília
- verso 35: “Saindo da rodoviária
, viu as luzes de Natal.”
- verso 40: “Na sexta-feira ira pra zona da cidade
- verso 60: “Fez amigos, freqüentava a Asa Norte
Área nobre de Brasília, onde se localiza a Universidade de Brasília.
86
- verso 63: “Sob uma má influência dos boyzinhos da cidade
- verso 155: “E a alta burguesia da cidade
não acreditou na estória que
eles viram na TV.”
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Moradores de grandes
centros urbanos
Grupo que simboliza a possibilidade de concretização dos sonhos, de ascensão
social das pessoas excluídas sócio-economicamente e a mídia, através da
televisão, fomenta essa idealização do urbano, mostrando um mundo ideal e não
real, sob o ponto de vista das elites. O mundo real das classes baixas só é
mostrado em eventos de criminalidade, de violência, ratificando o estigma da
periferia como reduto da bandidagem, como em:
“Santo Cristo não sabia o que
fazer/Quando o viu o repórter na televisão/Que deu notícia do duelo na TV/Dizendo a hora
e o local e a razão./E a gente da TV filmava tudo ali.”
O texto faz referência a Salvador e Brasília, destinos de João de Santo Cristo, ao
deixar o interior da Bahia, representando a possibilidade de resgate da cidadania,
tão almejada pelo personagem. Porém, esse encantamento que o urbano exerce
sobre o homem do interior, do sertão, impulsionando-o a deixar suas origens, pode
transformar-se em profunda desilusão, diante de todos os obstáculos peculiares à
difícil relação campo-cidade, por seus valores intrínsecos tão diferentes e
sedimentados, socialmente.
O espaço urbano encanta:
“Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal./ - Meu Deus,
mas que cidade linda.”,
mas esconde a dura realidade aos olhos de seus migrantes,
devorando suas esperanças e empurrando-o novamente para a marginalidade.
João de Santo Cristo, estando novamente à margem da sociedade, agora em meio
a todo fascínio da cidade grande, não resiste e entrega-se ao mundo da ilegalidade,
para alcançar a tão sonhada ascensão social, através do tráfico, podendo, enfim,
participar do mundo
glamuroso
da alta sociedade, além do Poder, ora adquirido:
“E
87
João de Santo Cristo ficou rico/E acabou com todos os traficantes dali./Fez amigos,
freqüentava a Asa Norte/E ia pra festa de rock, pra se libertar.”
3.1.1.4 Grupo Social: dos Bandidos
- verso 1: “Não tinha medo o tal João de Santo Cristo,”
- verso 6: “Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu...”
- verso 7: “Era o terror da cercania onde morava
- verso 9: “Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro
- verso 64: “Começou a roubar.”
- verso 69: “Agora o Santo Cristo era bandido
- verso 70: “Destemido e temido no Distrito Federal”
- versos 71/ 72: “Não tinha nenhum medo de polícia / Capitão ou traficante,
playboy ou general.”
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: dos Bandidos
O texto apresenta João como alguém que:
“Desde criança só pensava em ser
bandido,
88
/Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu...”
E aqui surgem algumas
perguntas:
- É possível uma criança pensar em ser bandido? Seria o exemplo da família, o
ambiente que a levaria a pensar assim? A morte do pai, com um tiro de soldado,
provoca em João um ódio ainda maior, aguçando sua sede de vingança. Mas o que
provocaria ódio em uma criança?
- O motivo da morte do pai fica por conta das inferências do leitor, justificadas pelo
uso das reticências colocadas no final do verso, autorizando as seguintes
indagações: seria o pai de João um bandido e, por isso, foi morto pela polícia? Ou
foi uma vítima inocente da polícia?
Para responder a todas essas perguntas, duas possibilidades de leitura
autorizadas pelo texto:
- A primeira, e já explícita no grupo social do Cristianismo, é que João de Santo
Cristo era um cristão de fato, era bom na sua essência, mas fora corrompido pela
sociedade, através da exclusão social, pela marginalidade em que vivia seu povo e
pela morte do pai, como vítima inocente da polícia. Explicar-se-ia, então, o ódio que
sentia por essa sociedade que o rejeita e, por isso, encontra, no crime, a
possibilidade de vingança e de sobrevivência.
- A segunda, é que o pai de João era de fato um bandido e, por influência, João,
ainda criança, pensa em seguir o seu exemplo, ideia que se concretiza após a
morte do pai, por um policial. Por isso, tomado pelo ódio, não tinha medo, era o
terror da cercania, era destemido e temido, o tinha nenhum medo de polícia,
capitão, traficante,
playboy
ou general.
Dessa forma, a referência a nomes bíblicos seria, apenas, alusão a uma prática
cultural de os pais colocarem esses nomes em seus filhos, sem haver,
necessariamente, qualquer semelhança entre a trajetória de vida desses
personagens; espera-se, na adoção de tal comportamento, que haja similitude
entre a vida do santo e a vida do filho, como se operasse um milagre
89
transformador, na vida de alguém. Porém, o que o texto mostra é o contrário:
enfatiza-se o contraste existente entre os nomes bíblicos – caracterizados pelo bem
– e a vida real dos personagens – caracterizados pelo mal; e dessa relação resiste
apenas o nome de santo e todo o resto é marcado por atitudes fora-da-lei, no
âmbito divino e social.
Esse argumento encontra respaldo numa referência a Jeremias:
“E dizia que era
crente, mas não sabia rezar.;
e numa referência a João:
“Ia pra igreja só pra roubar o
dinheiro
. Evidencia-se, aqui, um traço cultural familiar de religiosidade, mas que
nega pertencer a uma religião, ser cristão efetivamente.
3.1.1.5 Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas e
dos Usuários de drogas
- versos 44/45 : “Um peruano que vivia na Bolívia
/ E muitas coisas trazia
de lá.
Por sua localização geográfica, é Subentendem-se diversas
um país com tradição na rota do mercadorias: armas de fogo
contrabando e do tráfico no Brasil. e drogas, entre outras.
- versos 46/47: “ Seu nome era Pablo
e ele dizia / Que um negócio ele ia
começar.”
Nome do líder do narcotráfico colombiano, Pablo Escobar.
- verso 55: “E sem ser crucificado, a plantação
foi começar.
Subentende-se a plantação de maconha.
90
- versos 58/59: “E João de Santo Cristo ficou rico / E acabou com todos os
traficantes dali.
- verso 102: “Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia
em Planaltina.”
- versos 103/104: “Mas acontece que um tal de Jeremias,/ Traficante de
renome, apareceu por lá.”
- versos 107/108: “Mas Pablo trouxe uma Winchester-22 / E Santo Cristo já
sabia atirar.”
- versos 111/112: “O Jeremias
, maconheiro sem-vergonha, / Organizou a
Rockonha e fez todo mundo dançar
.
- versos 56/57: “Logo, logo, os malucos da cidade
souberam da novidade:/
Tem bagulho bom aí!
- verso 111: “O Jeremias, maconheiro sem-vergonha,”
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: dos Traficantes, dos
Contrabandistas e dos Usuários de drogas
Bolívia, Brasília e Pablo o nomes, no texto, que fazem referência explícita ao
tráfico e contrabando, no Brasil: Bolívia e Brasília, por fazerem parte da rota de
entrada e Pablo, por ser nome próprio de Pablo Escobar, grande líder do
narcotráfico, na Colômbia.
91
O nome Pablo sintetiza: a marca de experiência no assunto de um grande chefe; a
referência aos cartéis colombianos; e o poder de sedução às pessoas
marginalizadas, pela possibilidade de conquista da tão desejada ascensão
social, ainda que ilegalmente. O personagem João, seduzido por Pablo e
consciente de sua opção, começa uma plantação de maconha, fica rico e acaba
com todos os traficantes da região.
O personagem Jeremias representa o líder do tráfico em comunidades brasileiras
da periferia, que refuta a tentativa de entrada de outros traficantes, na mesma
região, provocando a chamada “guerra do tráfico”.
3.1.1.6 Grupo Social: Instituições Penais e Policiais
- verso 19: “Aos quinze, foi mandado pro reformatório
Alusão à Casa de Apoio ao Menor, antiga FEBEM.
- versos 65/66: “Já no primeiro roubo ele dançou / E pro inferno
ele foi
pela segunda vez.
Subentende-se que agora seja uma prisão, uma cadeia.
- verso 6: “Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu...”
- verso 87: “E não protejo general de dez estrelas,”
92
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Instituições
Penais e
Policiais
Tanto as Instituições Penais, quanto os Policiais o representados, no texto,
como corresponsáveis pela perdição total do personagem João de Santo Cristo.
Inicialmente, quando o pai é morto por um soldado fato que aumenta o seu ódio
e seu desejo de vingança e aparece como o desencadeador de sua entrada no
mundo do crime. Depois, ao ser preso por duas vezes, as Instituições Penais são
chamadas de “inferno”, por deixarem de cumprir a sua função social e contribuírem
para que saísse de lá, ainda mais revoltado, reforçando sua necessidade de
continuar no mundo do crime:
“Aos quinze, foi mandado pro reformatório/Onde aumentou seu ódio diante de tanto
terror/Violência e estupro do seu corpo./- Vocês vão ver, eu vou pegar vocês.”
3.1.1.7 Grupo Social: Mídia Televisiva
- versos 13/ 14: “Ele queria sair para ver o mar / E as coisas que ele via na
televisão”
- versos 128 a 130: “Quando viu o repórter na televisão / Que deu notícia do
duelo na TV/ Dizendo a hora e o local e a razão.”
- verso 138: “E a gente da TV filmava tudo ali.
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Mídia Televisiva
A televisão veicula o tráfico e ele queria sair para ver o mar e tudo aquilo que
também é mostrado pela televisão e serve para fomentar seus sonhos e desejos
93
consumistas. O tráfico é considerado objeto de notícia, pois, trata do inusitado: a
briga entre grupos de traficantes. Todavia, o conteúdo de veiculação da televisão é
o mundo ideal e não o real, que só é mostrado quando interesse em reafirmar
as diferenças de classes. Logo, tem-se aqui a síntese do propósito ideológico da
mídia televisiva: reafirmar seu poder de sedução e de persuasão, frente aos pontos
de vista, por ela defendidos.
3.1.1.8 Grupo Social: Os Corruptos
- versos 82/83: “O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe
com dinheiro na mão. / E ele faz uma proposta indecorosa e
diz que espera uma resposta.”
- versos 87/88: “E não protejo general de dez estrelas, / Que fica atrás da mesa
com o cu na mão.
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Os Corruptos
Nesse grupo, evidencia-se o código ético existente até mesmo no mundo do crime,
que rege, principalmente, aquilo que eles não fazem por dinheiro algum, como
se vê em:
“ – Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criança /
Isso eu não faço não.”
Por
outro lado, para o corrupto, o dinheiro representa uma moeda de troca entre
duas classes sociais distintas: a classe pobre que, por vezes, permite “vender-se”
em nome da conquista material; e a classe rica, na concretização de seus fins, em
nome de uma pseudo justiça para preservar poder e “
status
”.
94
3.1.1.9 Grupo Social: O Extragrupo
- verso 2: “Era o que todos diziam quando ele se perdeu.”
Tem valor extragrupal.
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: O Extragrupo
A palavra “todos”, pronome indefinido, neutraliza a individualidade de cada grupo
social, no sertão da Bahia, lugar de origem do protagonista da narrativa e,
portanto, trata-se do extragrupal. Essa neutralização decorre da representação do
papel social, com valor negativo, representado por João de Santo Cristo, quando
“se perdeu”, decisão, esta, caracterizada e reconhecida como anti-ética, pela
comunidade local.
3.1.1.10 Grupo Social: dos Migrantes
- verso 12: “E sentia que aquilo ali não era o seu lugar”
Sertão da Bahia. Identificação de João com o grande
centro urbano.
- verso 15: “Juntou dinheiro para poder viajar
A representação de como sair do lugar de origem.
95
- verso 24: “E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.”
Sertão da Bahia. Grande centro Urbano.
- verso 27: “E o boiadeiro tinha uma passagem
Meio para sair de Salvador e ir para um centro maior,
a capital do país.
- versos 29/30: “Dizia ele: - Estou indo pra Brasília
/ Neste país lugar melhor
não há.”
Descrita e caracterizada como o melhor lugar
do Brasil.
- versos 36/37: “- Meu Deus, mas que cidade linda
. / No Ano Novo eu começo
a trabalhar.”
Brasília, concretização de um sonho: João, queria viver
num grande e importante centro urbano.
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Os Migrantes
Grupo representado, no texto, pelas pessoas que sonham com uma vida melhor,
que lutam e acreditam que podem conquistar melhores condições de vida. Alguém
ativo, consciente e inconformado com sua situação social, características que o
transforma em andarilho inquietante à procura, por toda parte, da felicidade.
96
3.1.1.11 Grupo Social: Os Políticos
- verso 51: “Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar.”
Papel social inter-relacionado ao Presidente da República e
representa o controle do Poder do Presidente.
- verso 157: “Ele queria era falar pro presidente
,”
O mais alto papel social hierárquico da estrutura social política.
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Os Políticos
Grupo considerado, no texto, como corresponsável pelo sofrimento do personagem
João de Santo Cristo e também de seu povo, de sua comunidade. Os políticos
representam as promessas não cumpridas, o descrédito daquilo que falam:
“E Santo
Cristo até a morte trabalhava / Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar. / E ouvia às
sete horas o
noticiário / Que
sempre dizia que o seu ministro ia ajudar.”
Brasília é considerada a morada do “diabo”, aquele que é responsável por todas as
maldades, todas as injustiças e sofrimentos. E o Presidente da República,
considerado autoridade máxima no comando do país e, consequentemente, da vida
das pessoas, representa o próprio diabo, com quem João de Santo Cristo desejava
se encontrar, para pedir compaixão ao seu povo, que tanto sofre.
Nesse grupo social, o Poder é representado pelo Presidente, que nomeia seus
ministros para o controle das decisões tomadas por ele e, dessa forma, Poder e
Controle não têm acesso ao público.
97
3.1.1.12 Grupo Social: da Família
-
verso 6: Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu.
Referência à paternidade de João de Santo Cristo.
Resultados obtidos da análise do Grupo Social: da Família
Observa-se, no texto-base analisado, que o Grupo Social: da Família é
representado, cognitivamente, apenas por relações de consanguinidade. João de
Santo Cristo não se refere à mãe, a irmãos, a tios ou a avós. Refere-se, apenas, ao
pai, que é morto por um policial, fato que caracteriza a representação da Instituição
Família como falida, cancelando seus papéis sociais, sua estrutura social e a
interação entre seus membros.
3.1.2 Cognição
O texto-base desta dissertação, “Faroeste Caboclo”, enquadra-se no gênero
crônica do cotidiano, pois, há a representação dos marcos da cognição social,
através dos diferentes grupos sociais presentes no texto e é um texto opinativo, a
respeito de algo que está situado no marco das cognições sociais, para o qual se
constrói uma circunstância, que é um juízo de valor, construído por um paradoxo:
valor positivo e valor negativo. Entretanto, sua linguagem não é a do cotidiano, pois
a expressão linguística é construída com a linguagem poética e organizada de
forma argumentativa.
A partir dos grupos sociais identificados no texto-base, serão relacionadas suas
respectivas formas de representações mentais, que são as formas de
conhecimento válidas para todos os membros do grupo, ou seja, seus marcos de
98
cognição social serão apontados. Cada marco de um grupo é definido a partir dos
papéis sociais selecionados, pelo grupo, para serem representados por eles. Por
isso, quando se analisa e compara cada grupo social e seus respectivos marcos de
cognição social, percebe-se que é possível fazer um reagrupamento, pois, alguns
deles se alinham, enquanto outros se opõem.
Grupos Sociais que se alinham e que serão renomeados:
- Grupo Social: da Família
- Grupo Social: dos Excluídos, sócio-economicamente
- Grupo Social: dos Bandidos Grupo Social:
- Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas do Povo
e dos Usuários de drogas
- Grupo Social: dos Migrantes
O termo
povo
deve ser entendido, conforme verbete retirado do Novo
Dicionário Aurélio (1975):
o conjunto das pessoas pertencentes às classes
menos favorecidas; plebe.
O alinhamento de todos esses grupos, em
Grupo Social: do Povo justifica-se, pois, no texto, é desta forma que
estão representados.
Torna-se relevante ressaltar, também, que tanto o Grupo Social: da Família,
quanto o Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas e dos Usuários
de drogas foram realinhados nesse Grupo Social: do Povo, levando-se em
consideração a caracterização desses grupos apresentada pelo texto. É
óbvio que a representatividade desses grupos sociais não se encontra,
apenas, no Grupo Social do Povo.
O Grupo Social: do Povo, na memória social, tem valor negativo, pois seus
membros são representados como feios, sem educação e carregam o estigma de
causadores dos males sociais. Porém, o cronista Renato Russo estabelece uma
relação de oposição a este ponto de vista, colocando esse grupo na zona de
99
intersecção, uma vez que sua intenção é mostrá-lo como vítima da sociedade, que
o impede de ascender, socialmente.
- Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas Grupo Social: dos
e dos Usuários de drogas Contraventores
- Grupo Social: dos Corruptos
O Grupo Social: dos Contraventores tem, como marco de cognição social, o
oportunismo, a exploração de pessoas marginalizadas e Renato Russo reforça
esse ponto de vista, no texto, por adesão.
- Grupo Social: das Instituições Penais Grupo Social: das
- Grupo Social: dos Policiais Instituições Policiais
Esse grupo, das Instituições Policiais, tem, como marco de cognição social, a
proteção, pois são os mantenedores da ordem social; enquanto no texto, por
oposição, representam a repressão, a violência e o abuso de Poder.
Sabendo-se que a crônica é um gênero textual que apresenta polaridade, pois,
implicitamente, traz a avaliação sobre o que está sendo focalizado pelo seu
discurso subjacente, será mostrado, a seguir, como se dá essa polaridade, entre
dois hiperônimos: bandido e sociedade, sob o ponto de vista do marco de cognição
social e do cronista Renato Russo.
100
Focalização
Antítese
Marco da cognição social
Polo negativo Polo positivo
bandido
socieda
- é o agente do mal à soc - é a vítima do bandi
Focalização
Antítese
Cronista Renato Russo
Polo negativo Polo positivo
sociedade bandido
Sociedade
- é agente do mal ao bandido.
- é composta pelos incluídos.
- é responsável pelas injustiças
sociais.
- empurra o indivíduo para o
mundo do crime.
- não proporciona, a todos , o
direito à cidadania.
Bandido
- é agente do mal à sociedade
.
Sociedade
- é vítima do bandido.
Bandido
- é vítima da sociedade.
- são os excluídos.
- na essência, é um ser bom.
- luta pelo resgate de sua
cidadania.
- o mundo do crime é a única
alternativa de sobrevivência.
- a marginalização, imposta
pela sociedade, legitima seu
ato.
101
Evidencia-se, nessas polaridades, a antítese empregada no texto-base, entre
bandido e sociedade e é em torno dessa ideia que a narrativa se desenvolve,
tendo como objetivo a reflexão acerca dos valores individuais e sociais, presentes
no texto e como os dois se interagem.
No marco da cognição social, o bandido representa o mal e a sua condição social é
determinada por escolha própria; por isso, deve ser afastado da sociedade que, por
sua vez, é a vítima e precisa ser protegida, não assumindo qualquer
responsabilidade. Enquanto que, sob o ponto de vista do cronista, é a sociedade a
principal responsável pela condição do bandido, pois ela não lhe garante os direitos
intrínsecos a todo cidadão, como emprego e salário justo.
João de Santo Cristo deixa a vida pacata da fazenda, viaja para Brasília em busca
de trabalho e, ao conseguí-lo, depara com a difícil equação de trabalhar muito e
ganhar pouco. Tal fato, acrescido do fascínio exercido pela cidade grande, faz
João mudar de trajetória e ceder à tentação do dinheiro fácil e farto, prometido pelo
mundo do crime.
A seguir, será mostrada a polaridade entre o marco de cognição social dos grupos
representados no texto e o ponto de vista do cronista, enfatizando o Grupo Social:
do Povo e sua relação com os demais grupos.
102
Focalização
Marco de cognição social
Polo negativo Polo graduado Polo positivo
Grupo Social:
do Povo
Grupo Social: da
Mídia televisiva
Grupo Social: das
Instituições policiais
Grupo Social: dos
Contraventores
Grupo Social: dos Mo-
radores dos grandes
centros urbanos
Grupo Social: dos
Políticos
Grupo Social: o
Extragrupo
Grupo Social: do
Cristianismo
Grupo Social: da
Família
103
Focalização
Cronista Renato Russo
Polo negativo Polo graduado Polo positivo
Culturalmente, no Brasil, a classe social alta atribui valor negativo ao indivíduo
pobre e preto, caracterizado como oriundo das periferias, vistas como reduto do
crime. Por esta razão é que, no marco da cognição social, o Grupo Social: do Povo
e dos Contraventores se opõem ao Grupo Social: dos Moradores dos
grandes centros urbanos, pois representam-lhe uma ameaça. Ao mesmo tempo,
este último, tem como aliados e protetores, o Grupo Social: das Instituições
Policiais e o Grupo Social: do Cristianismo, capazes de atenuarem essa ameaça.
Grupo Social: dos
Contraventores
Grupo Social: o
Extragrupo
Grupo Social: da
Família
Grupo Social: das
Instituições Policiais
Grupo Social: dos
Moradores dos gran-
des centros urbanos
Grupo Social: do
Povo
Grupo Social: dos
Políticos
Grupo Social: do
Cristianismo
Grupo Social: da
Mídia televisiva
104
Todavia, sob o ponto de vista do cronista Renato Russo, o Grupo Social: do Povo –
representado, no texto-base, por João de Santo Cristo adquire valor positivo e os
grupos que se opõem são: o Grupo Social: dos Contraventores, o Grupo Social:
das Instituições Policiais e o Grupo Social: dos Políticos, pois, são eles os
responsáveis pelos conflitos vividos pelo protagonista.
No texto, o Grupo Social: dos Moradores dos grandes centros urbanos passa a ter
valor graduado, pois, representa tanto o valor positivo, como o valor negativo:
positivo, quando João deixa a fazenda e, deslumbrado, acredita que, em Brasília,
tudo será diferente em sua vida; e negativo, quando João descobre o outro lado da
cidade grande: a violência, o crime, o tráfico de drogas, a ambição e as dificuldades
de sobrevivência, em que o clímax dessas descobertas dá-se com sua morte.
O texto “Faroeste Caboclo” é uma narrativa que tem como seu protagonista, João
de Santo Cristo, personagem que, junto com os demais, sintetizam valores cristãos
positivos e valores sociais negativos, como mostrados no quadro a seguir:
105
VALORES POSITIVOS ZONA DE INTERSECÇÃO VALORES NEGATIVOS
CRISTÃOS SOCIAIS
__________________________________________________________________________
- Jesus dá amor - pecados - Jesus dá ódio
- criança é anjo Ø - criança só pensa em ser
bandido
- colocar dinheiro na - pobre - roubar dinheiro caixinha do
caixinha do altar altar
- santo - marginalizado - bandido
- crucificação de Jesus Ø - a morte causada por um
soldado
- céu - marasmo da fazenda - inferno
- arrependimento Ø - reformatório/Febem
- ser crente/saber rezar Ø - não saber rezar
- via-crucis - carpinteiro - trabalhava até a morte
e o dinheiro não dava
pra ele se alimentar
- sangue/perdão Ø - crucificado, castigo,
sentimento de culpa
- influência religiosa da Ø - má influência dos
família boyzinhos da cidade
- Jesus Ø - Diabo
- Igreja: templo de oração Ø - Igreja: prática de roubo
Ø Ø - violência, estupro
Ø Ø - corrupção
Ø Ø - traição
Ø Ø - falsidade
Ø Ø - covardia, não ser homem
106
Verifica-se, nesta análise, que os valores sociais selecionados, pelo texto, são
antagônicos em relação aos valores cristãos, evidenciando-se um contraste entre a
religiosidade exacerbada do brasileiro e suas dificuldades sócio-econômicas.
Reforça a ideia da crença como verdade, contrastando com a dura realidade social
do brasileiro.
3.1.3 Discurso
Neste trabalho, a análise será tanto linguística, quanto ideológica, pois ambas são
imprescindíveis ao estudo de qualquer uso de linguagem. Outrossim, a linguística
conta dos recursos utilizados, estrategicamente, pelo autor, enquanto a
ideológica pressupõe uma avaliação implícita e ambas se complementam no
entendimento do sentido global do texto. E mais, o caráter ideológico é importante,
quando se pretende utilizar o “como se diz” para expressar o “que se diz”, de
acordo com a
Teoria da Enunciação
.
Entende-se o discurso como uma prática sócio-interacional, constituída por seus
participantes, funções e ações, que se atualizam na enunciação, no texto-produto
enunciado. Há discursos institucionais públicos e eventos discursivos particulares.
O texto-base selecionado é construído por um discurso público institucionalizado e,
também, pelo discurso empresarial, porque é o dono da empresa que toma
decisões em sua gravadora, de forma a lucrar economicamente. O Controle coloca
em prática essa ideologia do Poder e, para tanto, verifica qual cantor e quais
músicas têm a preferência popular, a fim de que o que for gravado seja vendável.
Dessa forma, Renato Russo e sua coletânea satisfazem tanto o Poder, quanto o
Controle e, por essa razão, a sua obra tem acesso ao grande público.
Na categoria Discurso agrupa-se, também, o texto-produto, pois, segundo a ACD,
as formas de representação, em ngua, constróem novas formas de conhecimento,
tanto ideológicas, quanto culturais.
107
3.1.3.1 Os episódios narrativos
O texto-produto analisado, “Faroeste caboclo”, é do tipo narrativo e, portanto,
formado por episódios, que se agrupam a partir das categorias narrativas da
história: Apresentação, Conflito e Resolução e serão descritos a seguir:
Episódio 1
: João de Santo Cristo, na infância.
-
Apresentação
: João de Santo Cristo, quando criança, morando
numa fazenda e já pensava em ser bandido.
-
Conflito
: o pai de João é morto com um tiro, por um policial.
-
Resolução:
com sentimento de vingança, começa a praticar
roubos na igreja, aterrorizando a todos.
Episódio 2
: João de Santo Cristo, na adolescência.
-
Apresentação
: João de Santo Cristo, aos doze anos, ainda
vivendo na fazenda, continua no mundo do
crime, mas com várias inquietações acerca da
vida que levava.
-
Conflito
: aos quinze anos, é mandado para um
reformatório a FEBEM atual que contribuiu
para aumentar seu ódio à sociedade, pois,
enfrenta ali, todo o tipo de hostilidade, tão
peculiar ao ambiente, mas não condizente com
as expectativas daquele jovem.
-
Resolução
: cansado de não encontrar respostas a tantas
perguntas, em seus questionamentos, resolve,
então, sair da fazenda e ir para Salvador.
Episódio 3:
João de Santo Cristo, em Salvador e em Brasília.
108
-
Apresentação
: chegando em Salvador, encontra-se com um
boiadeiro que lhe oferece uma passagem para
Brasília. Desembarca na rodoviária, encanta-se
com a decoração natalina da cidade e faz
planos para começar a trabalhar, no Ano
Novo, fato este que se confirma. Trabalha na
periferia, em Taguatinga e, às sextas-feiras,
frequenta os pontos de diversão da cidade.
-
Conflito
: João conhece um neto bastardo de seu bisavô,
Pablo, traficante boliviano, que o convida para ser
seu parceiro.
-
Resolução
: João resiste à tentação e continua sua rotina de
homem trabalhador.
Episódio 4
: João passa a ser traficante de maconha.
-
Apresentação
: desiludido com a expectativa de uma vida melhor
e seduzido pela possibilidade de ganhar muito
dinheiro, decide juntar-se a Pablo, iniciando a
plantação de maconha e logo fica rico.
-
Conflito
: torna-se líder do tráfico da região, passando a
fazer parte do mundo glamuroso da cidade e,
por influência de outros jovens, começa a
roubar, vai preso e é submetido ao horror
existente na prisão: violência e estupro.
-
Resolução
: transtornado pelo acontecimento, decidiu tornar-se
bandido, enfrentando a tudo e a todos.
Episódio 5
: João conhece seu grande amor.
-
Apresentação
: Santo Cristo conhece Maria Lúcia e apaixona-se.
-
Conflito
: arrepende-se de tudo que fizera, até então.
109
-
Resolução
: entrega-se ao amor, planeja casar-se, ter filho e
volta a trabalhar como carpinteiro, abandonando o
mundo do crime.
Episódio 6
: João enfrenta uma tentativa de suborno.
-
Apresentação
: João é, novamente, tentado a ceder ao mundo do
crime.
-
Conflito
: aparece em sua casa um homem da alta
sociedade tentando suborná-lo, para cometer
um crime em nome de um general do alto
escalão.
-
Resolução
: João recusa a proposta, mas, como que
amaldiçoado, perde o emprego, logo em seguida.
Episódio 7
: João passa a ser contrabandista, em Planaltina.
-
Apresentação
: volta ao mundo do crime, agora como
contrabandista de armas, em Planaltina.
-
Conflito
: conhece Jeremias, traficante de renome, que não
aceita a invasão de seu território.
-
Resolução
: Jeremias promete matar Santo Cristo.
Episódio 8
: João sofre decepção amorosa.
-
Apresentação
: João, com saudades de Maria Lúcia, decide ir ao
seu encontro.
-
Conflito
: descobre que ela está casada com Jeremias e
espera um filho.
-
Resolução
: tomado pelo ódio, chama seu rival para um
duelo e a mídia televisiva faz, desse
acontecimento, um grande evento.
110
Episódio 9:
O duelo entre João e Jeremias.
-
Apresentação
: João é atingido por Jeremias, com um tiro pelas
costas.
-
Conflito
: antes de morrer, por instantes, faz uma
retrospectiva de sua vida e percebe que é
chegado o fim.
-
Resolução
: recebe sua arma de Maria Lúcia e acerta cinco
tiros em Jeremias. Maria Lúcia, num ato de
reconhecimento do amor de João e, por
arrependimento, suicida-se.
Episódio 10
: A real intenção de João, em Brasília.
-
Apresentação
: momento de revelação do real motivo da
peregrinação de João de Santo Cristo, até chegar
em Brasília.
-
Conflito
: sua intenção é pedir ao presidente para fazer
alguma coisa pelo seu povo, para acabar com as
injustiças sociais sofridas pela sua comunidade.
-
Resolução
: João morre, sem concretizar seu desejo.
Um gráfico das macroproposições, de cada episódio, realça o desenvolvimento da
narrativa, em progressão linear e cronológica, apresentando-se desta forma:
111
Epi Episó
3.1.3.2 A estrutura argumentativa em “Faroeste Caboclo”
Segundo a estrutura argumentativa postulada por van Dijk (1978) e sendo
“Faroeste Caboclo” um texto opinativo e argumentativo, sua estrutura está assim
organizada:
Episódio 1
João de Santo
Cristo, na
infância.
Episódio 2
João de Santo
Cristo, na
adolescência.
Episódio 5
João
conhece
seu grande
amor.
Episódio 3
João de Santo
Cristo, em
Salvador e em
Brasília.
Episódio 4
João passa a
ser traficante
de maconha.
Episódio 6
João enfrenta
uma tentativa
de suborno.
Episódio 7
João passa a
ser
contrabandista,
em Planaltina.
Episódio 8
João sofre
decepção
amorosa.
Episódio 10
A real
intenção de
João, em
Brasília.
Episódio 9
O duelo entre
João e
Jeremias.
FAROESTE CABOCLO
112
Argumentação
As políticas sociais dos governos não são
representativas para as classes populares
carentes.
Justificativa
Vivem à margem da
sociedade, os grupos
sociais mais carentes.
Conclusão
O sertanejo nordestino
pobre, não tem
cidadania.
Marco de cognição
O pobre fica cada vez
mais pobre e o rico
cada vez mais rico.
Circunstância
Os grupos mais carentes
vivem em periferias, nas
favelas.
Ponto de Partida
O sertanejo nordestino,
pobre, deixa seu lugar de
origem, migrando para as
grandes metrópoles.
Fatos
Grupos sociais
marginais:tráfico de
drogas, violência, crimes.
Legitimidade
A magia dos grandes
centros urbanos, para o
sertanejo nordestino pobre.
Reforço
Questão de
sobrevivência.
113
3.1.3.3 O título do texto-base “Faroeste Caboclo”
Visando compreender melhor o texto “Faroeste Caboclo”, estabeleceu-se, como
ponto de partida desta análise, o entendimento do título do texto, tendo com
referência a Grande Enciclopédia Larousse (1998):
Faroeste. S. m. (do inglês Far West) 1. gênero cinematográfico de peripécias
movimentadas, criado nos Estados Unidos, que relata as aventuras dos
desbravadores do Oeste norte-americano, no século XIX. 2. películas de bangue-
bangue, caracterizadas pela luta armada entre forasteiros e nativos, entre ladrões e
proprietários, entre chefes e empregados, entre outras. 3. lugar onde reina a lei do
mais forte.
Caboclo. S. m. (do tupi Kari’boka, que procede do branco). 1. mulato de cor
acobreada, descendente de índio. 2. mestiço de branco com índio. 3. sertanejo,
homem do sertão, de pele queimado de sol, caipira, roceiro. 4. sertanejo
desconfiado ou traiçoeiro.
As predicações contidas nos dois verbetes, ao construírem, inter-lexicalmente,
“Faroeste Caboclo”, propicia que certas predicações sejam canceladas e outras
privilegiadas. Assim, o conteúdo das expressões “Faroeste Caboclo” pode ser
compreendido como bangue-bangue, passado pela televisão e transformado em
espetáculo, para ser objeto de curiosidade dos telespectadores. Esse bangue-
bangue é produzido por personagens desbravadores de uma metrópole brasileira,
Brasília, em busca de um lugar em sua estrutura social, representados, no texto,
pelo personagem principal, João de Santo Cristo, o sertanejo caboclo.
“Faroeste Caboclo” está, intra-textualmente, tecido com “João de Santo Cristo”;
porém, Santo Cristo está inter-textualizado com Jesus, que morre na cruz,
injustamente, morto pelos judeus, que é o seu próprio povo. Os nomes próprios
“José” e “João” fazem parte da cultura popular e atualizam a religiosidade cristã,
que é a raiz histórica do povo brasileiro. “João” é primo de Jesus e foi quem o
batizou, no intra-texto bíblico; enquanto que na música “Faroeste Caboclo”, João é
o nome popular, intertextualizado com o personagem bíblico “Batista” e “Santo
114
Cristo” está intertextualizado com a morte de Jesus, pois, o personagem da
narrativa da história, do texto-base, é morto por um membro de seu próprio grupo.
3.1.3.4 As pressuposições e subentendidos em “Faroeste
Caboclo”
O pressuposto é um recurso argumentativo, pois o interlocutor, ao introduzir no
discurso um conteúdo pressuposto, torna-se coautor de um ponto de vista, uma vez
que o pressuposto não é colocado em discussão, mas apresenta-se como verdade
inquestionável. A pressuposição delimita as possibilidades de interpretação do
leitor, através de uma lógica criada pelo produtor do texto, porque, enquanto o
posto
é proposto como verdadeiro, o
pressuposto
é, de certa forma, imposto como
verdadeiro, é indiscutível.
O subentendido é a informação veiculada por um enunciado e sua atualização
depende da situação/contexto em que se dá a interlocução. É uma construção
textual que se constitui em um meio de proteção para o falante, pois o locutor pode
dizer o que quer, sem comprometer-se inteiramente.
O subentendido é de responsabilidade do ouvinte, enquanto o pressuposto é dado
pelo locutor como uma informação inquestionável ou apresentada como tal, tanto
para o locutor, quanto para o interlocutor, pois decorre, necessariamente, de um
marcador linguístico.
Segundo Fiorin (2006, p.184),
“O pressuposto pode ser contestado, mas é formulado para não o ser. o
subentendido é construído, para que o falante, caso seja interpelado, possa,
apegando-se ao sentido literal das palavras, negar que tenha dito o que
efetivamente quis dizer.”
115
Para o autor, existem dois tipos de subentendidos: a alusão, que se refere a fato
conhecido pelos sujeitos da interlocução ou faz menção a algum conteúdo de outro
texto ou discurso; e a ironia, que possui caráter maldoso, através da insinuação.
Em “Faroeste Caboclo” tem-se:
“Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu ...”
As reticências foram empregadas como recurso de cancelamento de uma
informação: o motivo pelo qual o pai foi morto. O
posto
é que um policial matou o
pai de João. O termo “
policial
traz como subentendido: aquele que protege o
cidadão de bem e pune o criminoso. Logo, um
pressuposto
: o pai de João era
um bandido ou um inocente, morto injustamente.
“Não tinha medo o tal João de Santo Cristo
Era o que todos diziam quando ele se perdeu
.”
A conjunção temporal “
quando
” indica que houve um momento.
Ele se perdeu
”, pressupõe que houve um momento em que ele era certo, pois o
perder-se,
entendido como o momento em que João começa a agir na ilegalidade,
pressupõe o
não se perder,
entendido que houve um momento em que João agia
na legalidade.
“— Meu Deus, mas que cidade linda,
No Ano Novo eu começo a trabalhar
.”
A conjunção
“mas”
liga dois segmentos que não indicam oposição entre si; indica
uma exclamação de júbilo, quando pela primeira vez, a cidade de Brasília e
toda a beleza dos enfeites natalinos
(“Saindo da Rodoviária, viu as luzes de Natal”);
fica
subentendido que João chegou à cidade, no mês de dezembro, época em que,
tradicionalmente, os enfeites natalinos são expostos.
“...
eu começo a trabalhar
.” é o
posto
e o conteúdo
pressuposto
é que João estava
chegando sem emprego à cidade, mas, com a certeza de que seria bem sucedido
na nova cidade e que no Ano Novo estaria trabalhando. Tem-se como
116
pressuposto, também, que o tempo de espera para um novo emprego seria de
menos de um mês, considerando-se que ele chegou em dezembro e no Ano Novo
ele já estaria empregado, revelando um sentimento de otimismo.
“E dizia que era crente, mas não sabia rezar.”
A conjunção “
mas
” indica uma oposição entre os dois segmentos: ser crente
versus
não saber rezar. Assim, um
pressuposto
: Jeremias cultivava apenas o traço
cultural da religiosidade e não era um religioso, pois, rezar é uma característica
marcante desse grupo, os crentes; ou seja, saber rezar está no marco da cognição
social do grupo.
“E Santo Cristo há muito não ia pra casa”
“Sob uma má influência dos boyzinhos da cidade
Começou a roubar.”
Tem-se, como contexto, a criminalidade e, como pressuposto, que João morava em
uma região da periferia de Brasília e praticava seus crimes, no centro da cidade,
argumento esse justificado pela expressão
boyzinhos da cidade
”, em que o
termo “boyzinhos” é usado, culturalmente, para jovens de poder aquisitivo, que não
trabalham e os pais sustentam; e o termo
da cidade
é usado, culturalmente,
referindo-se à região central da cidade.
“Dá uma olhada no meu sangue
E vem sentir o teu perdão.”
O termo “
sangue
” refere-se a João de Santo Cristo e “
perdão
” refere-se a Jeremias.
Considerando as referências bíblicas contidas em “Faroeste Caboclo” e a
caracterização desses dois personagens, chega-se ao
pressuposto
: o sangue de
João representa o sangue de Jesus Cristo e o perdão de Jeremias representa o
perdão concedido aos fiéis religiosos. Elabora-se, então, o seguinte subentendido:
os termos
sangue
e
perdão
fazem alusão ao Cristianismo, em consonância com a
representação e trajetória dos personagens João e Jeremias, apresentadas pelo
texto.
117
3.1.4 O papel dos intertextos e interdiscursos, na leitura
de reconstrução histórica do texto-base
A fim de realizar a leitura de reconstrução histórica do texto-base, busca-se
mostrar como a intertextualidade contribui na produção de sentidos, a partir do
levantamento e da seleção de intertextos.
A análise dos intertextos segue o critério de segmentação do texto-base, para nele
inserir segmentos ou texto completo de um intertexto.
3.1.4.1 Intertexto 1: O reggae
Texto-Base Intertexto 1
Quando criança só pensava em ser bandido , Ainda me lembro aos três anos de idade
Anda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu... O meu primeiro contato com as grades
Ele queria sair para ver o mar Assistiu o jornal da TV
E as coisas que ele via na televisão E aprendia a roubar para vencer
O boiadeiro tinha uma passagem Ninguém me perguntou se eu estava
pronto
Estou indo pra Brasília E eu fiquei completamente tonto
Neste país, lugar melhor não há Procurando descobrir a verdade
Estou precisando visitar a minha filha Nos meios das mentiras da cidade
Eu fico aqui e você vai no meu lugar
E João aceitou sua proposta
Só para sentir no seu sangue Tentava ver o que existia de errado
O ódio que Jesus lhe deu. Quantas crianças Deus já tinha matado
Beberam o meu sangue e não deixam
viver.
E a gente da TV filmava tudo ali Assistiu o jornal da TV
E a alta burguesia da cidade
Não acreditou na história que eles viram na TV.
118
O Intertexto 1 traz representado, em ngua, o sentido mais global do texto-base,
que é a denúncia feita por Renato Russo, a respeito da injustiça e da opressão
social nas classes mais carentes, refletindo desde muito cedo na vida das crianças,
como se fosse algo hereditário. Renato Russo, ao fazer a sua denúncia, instiga os
jovens a lutarem pelos direitos humanos e pela cidadania a todos os brasileiros,
como se vê em:
“Vocês venceram essa batalha / Quanto à guerra / Vamos ver.”
A cidadania implica uma interação entre o nativo e o Estado: o cidadão tem deveres
com o Estado e este deveres com o cidadão. As classes sociais carentes
brasileiras têm deveres com o Estado, contribuem com seu trabalho para a
produção econômica do país; mas o Estado não tem deveres com essas classes
sociais, que para sobreviverem ou se tornam marginais, bandidos e traficantes, ou
são ignoradas, banidas do contexto social.
3.1.4.2 Intertexto 2: Baader-Meinhof Blues
O Intertexto 2 está intertextualizado com o texto-base pela similitude de
representação entre os membros da Facção Baader-Meinhof e João de Santo
Cristo, que compreende a luta contra a opressão e a injustiça estatal com o povo.
Da mesma forma que os membros da Facção Baader-Meinhof foram militantes,
batalhadores, idealistas e praticaram muita violência, João de Santo Cristo luta para
ser um bom e honesto trabalhador, mas o que ganha não para comer. Assim,
para realizar o sonho de implorar a ajuda, a compaixão do Presidente da República
“pra ajudar toda essa gente / que faz sofrer
, ele luta, cai na marginalidade e é
morto.
Texto-base Intertexto 2
E João não conseguiu o que queria Já estou cheio de me sentir vazio
Quando veio pra Brasília Meu corpo é quente e já estou sentindo frio
Com o diabo ter. Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
119
Ele queria era falar pro presidente Afinal, amar ao próximo é tão demodé.
Pra ajudar toda essa gente
Que só faz sofrer.
Não entendia como a vida funcionava A violência é tão fascinante
Discriminação por causa de sua classe, sua cor E nossas vidas são tão normais
Essa justiça desafinada
É tão humana e tão errada
Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar Não estatize meus sentimentos
Ele queria era falar pro presidente Pra seu governo
O meu estado é independente.
O Intertexto 2 relaciona-se ao texto-base por uma narrativa de idealistas, que lutam
pela justiça e contra a opressão social; todavia, na conclusão da primeira narrativa,
o extermínio pela violência e na segunda, o contexto é de violência, porém
um clamor pela resistência do cidadão ao extermínio de sua identidade.
3.1.4.3 Intertexto 3: Metrópole
O Intertexto 3 expande o excesso de deveres impostos pela burocracia estatal à
população brasileira e focaliza a televisão como o veículo que transforma o
desastre em evento festivo.
Texto-base Intertexto 3
Sem carteirinha não tem atendimento
Olha o tumulto: façam fila por favor.
Santo Cristo não sabia o que fazer É sangue mesmo, não é mertiolate
Quando viu o repórter na televisão E todos querem ver
Que deu notícia do duelo na TV E comentar a novidade
Dizendo a hora e o local e a razão. É tão emocionante ver um acidente de
verdade
No sábado então, às duas horas Estão todos satisfeitos
120
Todo o povo sem demora foi lá só pra assistir Com o sucesso do desastre
Só para assistir Vai passar na televisão.
E a gente da TV filmava tudo ali.
E Santo Cristo com a Winchester-22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor.
O Intertexto 3 está intertextualizado com o texto-base, de forma a denunciar o papel
da televisão, que acesso ao público às diferentes formas de violência social,
gerando sua banalização e induzindo as pessoas a aprenderem a ser marginais,
como se em:
Assistia o jornal da TV / E aprendi a roubar pra vencer” (Intertexto 1: O
reggae).
3.1.4.4 Análise dos intertextos e “Faroeste Caboclo”, em relação
ao marco de cognição social
Considerando-se que a sociedade capitalista não aceita o fracassado o homem
do povo e o marginaliza até a destruição e que esse rótulo de “fracassado” está
no marco de cognição social da classe dominante, o cronista Renato Russo opõe-
se a esse ponto de vista, quando aponta essa sociedade capitalista como
responsável por essa condição do homem, apresentando-o como vítima.
Nesse sentido, o texto “O reggae” estabelece uma relação de adesão ao ponto de
vista do cronista, complementando-o, mostrando um homem que, desde criança,
está fadado a engolir” todas as imposições culturais e ideológicas da sociedade,
novamente na condição de vítima:
“Beberam o meu sangue e não me deixam viver / Têm o meu destino pronto e não
me deixam escolher / Vêm falar de liberdade pra depois me prender / Pedem
identidade pra depois me bater / Tiram todas as minhas armas / Como posso me
defender?”
121
Embora foquem questões no âmbito existencial, os outros dois
intertextos estabelecem a mesma relação de adesão ao texto-base: “Baader-
Meinhof blues” aborda os temas indiferença social e solidão, enquanto “Metrópole”
trata, também, da indiferença social e da alienação; porém, ambos apresentam o
homem como vítima da sociedade.
Buscando-se analisar a relação entre texto-base e seus intertextos, serão
destacadas
algumas saliências encontradas na superfície textual do texto-base,
estabelecendo relações cotextuais:
A criança e a herança cultural
Em “Faroeste Caboclo”, a referência a João de Santo Cristo, quando criança, indica
que a violência fazia parte de seu mundo, nessa fase. Pela própria ingenuidade
característica da infância, é comum uma criança querer imitar o comportamento
das pessoas que a cercam, quase sempre vistas como “seus heróis”,
independentemente da avaliação social de tal conduta. João, ao ver o pai morto,
por um policial – o agente repressor da violência – vem à tona o desejo exacerbado
de vingança, encarnado na figura do bandido.
Em “O reggae”, complementação dessa ideia: a criança representa a fase em
que os valores culturais e ideológicos são impostos ao indivíduo,
independentemente de sua vontade:
“Como eu sentia vontade de ir embora / Fazia tudo que eles quisessem / Acreditava
em tudo que eles me dissessem / Têm o meu destino pronto e não me deixam
escolher”.
Há, também, referência bíblica, utilizando-se de um paradoxo:
“Quantas crianças
Deus já tinha
matado.”,
em que a intenção do autor é criticar e até ironizar quando
responsabiliza Deus pela morte de crianças um traço cultural marcante, a
religiosidade imposta pela instituição familiar, que, teoricamente, estaria pautada
em valores humanos defendidos pelo Cristianismo amor, justiça, dignidade,
122
verdade, solidariedade, entre outros – mas que, na prática, são ignorados e
desrespeitados. Enfatiza-se aqui, o distanciamento entre o falar e o agir, em que
adultos impõem às crianças suas crenças cristalizadas interiormente, porém, não
vivificadas através de exemplos.
O conflito existencial
Em “Faroeste Caboclo”, tem-se:
“Não entendia como a vida funcionava - / Discriminação
por causa de sua classe, sua cor / Ficou cansado de tentar achar resposta”.
E, em “O reggae”, tem-se:
“Ninguém me perguntou se eu estava pronto / E eu fiquei
completamente tonto / Procurando descobrir a verdade / Nos meios das mentiras da
cidade”.
Em ambos os textos, fica evidente tratar-se de um “EU” questionador, em fase de
formação e que busca entender como funciona essa engrenagem social, diante da
complexidade existencial.
Com outro enfoque, “Baader-Meinhof Blues” denuncia a questão da indiferença
social, do individualismo exacerbado e da falta de solidariedade, provocando um
“vazio”, ou seja, retrata a profunda solidão do indivíduo, em meio a uma multidão,
gerando o conflito existencial:
“Andando nas ruas / Pensei que podia ouvir / Alguém me chamando / Dizendo meu
nome. /Já estou cheio de me sentir vazio / Meu corpo é quente e estou sentindo frio
/ Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber / Afinal, amar o próximo é tão
demodé.”
Em “Metrópole”, também, aparece a questão do individualismo exacerbado:
“Eu sinto muito mas passa do horário. / Entendo seu problema mas não posso
resolver: / É contra o regulamento, está bem aqui, pode ver. / E agora eu vou indo
senão perco a novela / E eu
não
quero ficar na mão.”
123
Nota-se, aqui, a ambiguidade das relações: o “EU” mostra-se sensibilizado com a
situação do “OUTRO”, porém, o que prevalece são seus interesses próprios, como
que energizados em torno de si mesmos.
A mídia televisiva
“Ele queria sair para ver o mar / E as coisas que ele via na televisão”
(Faroeste
Caboclo).
Restringindo-se à área de entretenimento, evidencia-se, aqui, o fascínio exercido
pela televisão nas pessoas de classes inferiores, pois o que se veicula na televisão
é o mundo da classe dominante, para a qual a ênfase deve estar no belo. Logo,
retrata o diferente, o novo, o desconhecido e, por vezes, mágico, para essa
população marginalizada, representada, no texto, por João de Santo Cristo, vivendo
no interior da Bahia.
Entretanto, quando o foco é a área jornalística, o que se nos textos é a violência
televisionada, criando o efeito de espetáculo moderno que desperta o interesse das
pessoas, mas não as sensibiliza; é a comercialização dos eventos metropolitanos,
expondo a submissão e a domesticação acrítica dos que a assimilam, como se vê
em “Metrópole”:
“É sangue mesmo, não é mertiolate / E todos querem ver / E comentar a novidade. /
É tão
emocionante um
acidente de verdade / Estão todos satisfeitos / Com o
sucesso do desastre: / Vai passar na televisão”.
Já em “Baader-Meinhof Blues”, a crítica está na massificação da televisão, em
que o geral se sobrepõe ao individual; critica-se a atuação da televisão em prol dos
interesses ideológicos das classes dominantes e, portanto, apresenta um retrato fiel
da sociedade, sob o comando dessa mesma elite; é a tentativa de predomínio
absoluto sobre o indivíduo, pertencente às camadas sociais inferiores, simulando,
reproduzindo e encenando o discurso geral, ideologizado:
124
“Essa justiça desafinada / É tão humana e tão errada / Nós assistimos televisão
também / Qual a diferença? / Não estatize meus sentimentos / Pra seu governo, / O
meu estado é independente.”
3.1.5 Outros Intertextos: com referências bíblicas
A narrativa “Faroeste Caboclo” apresenta várias referências bíblicas, a começar
pelo protagonista que traz como sobrenome
“Santo Cristo”
, uma menção explícita
ao Cristianismo, no aspecto semântico. Entretanto, o que causa estranhamento é o
fato dessa referência estar ligada ao nome de um personagem fora-da-lei. Outras
referências conflitantes aparecem no texto como:
“... o ódio que Jesus lhe deu.”
“... um tal Jeremias, traficante de renome...”
“... Maria Lúcia, aquela menina falsa ... “
Jesus, Jeremias, Maria e Lúcia são nomes ligados ao Cristianismo e, portanto,
possuem valores positivos; todavia, no texto, adquiriram valores negativos. Há,
também, citação de outros termos, com a mesma força semântica: crucificado,
igreja, carpinteiro, salvar, inferno, sangue, perdão, diabo.
Percebe-se, claramente, que a narrativa desenvolve-se a partir da tríade
sociedade/indivíduo/religião, estabelecendo-se uma inter-relação de oposição. E
que numa sociedade capitalista é fácil compreender essa antítese, sociedade
versus
indivíduo. Entretanto, o que deixa dúvida é o fato de valores
positivos cristãos estarem, paradoxalmente, ligados a valores negativos sociais.
Por este motivo, o propósito, aqui, é buscar compreender por que tantas citações
bíblicas e qual a intenção do autor ao empregar tantos paradoxos e, para isso,
outros textos de Renato Russo, com referências similares, serão analisados e
comparados com o texto-base.
Os outros intertextos selecionados, com referências bíblicas, são:
125
Depois do começo
(Anexo 8)
Um texto que propõe o desequilíbrio, uma inversão na ordem das coisas, como
forma de ruptura com o aparente equilíbrio vigente, resultado da alienação social.
Nesse contexto às avessas, a religião, também, se enquadra: clama por Deus,
mas, ao mesmo tempo, se declara ateu, ou seja, fica explícito o aspecto da
religiosidade, em que as pessoas simplesmente verbalizam uma crença herdada,
mas não demonstram opção por uma religião, como em:
Abrir a geladeira e deixar o vento sair
Cuspir um dia qualquer no futuro
De que já desapareceu
Deus, Deus, somos todos ateus.”
uma proposta de substituir a retórica pela ação, substituir um Deus divino por
um deus plebeu, na tentativa de reverter a contemplação pela ação, como se
em:
“Vamos cortar os cabelos do príncipe
E entregá-los a um deus plebeu.”
Se fiquei esperando meu amor passar (Anexo 9)
Faz uma exaltação ao amor, um sentimento que liberta o homem de suas
inseguranças, tornando-o forte, confiante em si mesmo e capaz de transcender o
corpo físico, chegando ao plano espiritual. Desliga-se do plano material e
sintoniza-se com o espiritual, momento em que o “EU” atinge, mentalmente, esse
plano espiritual, como se estivesse conversando com Deus:
“Começo a ficar livre
Espero. Acho que sim.
De olhos fechados não me vejo
E você sorriu pra mim
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
126
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Daí-nos a paz ...”
Índios
(Anexo 10)
Retrata o inconformismo do “EU” diante das atitudes humanas, representadas pelo
“OUTRO” no texto. E desse inconformismo advém o lamento (“Quem me dera”)
presente em todo o texto, por não conseguir entender a ganância, o egoísmo e as
contradições humanas. E a religiosidade, tão marcante na instituição familiar,
também está presente como herança recebida pelo “EU e que ele tenta
compreender: o mistério da Santíssima Trindade. Ao mesmo tempo, mais uma vez,
questiona a relação amor a Deus e amor ao próximo, tão próximas, na teoria, mas
distantes, na prática.
“Quem me dera
Ao menos uma vez
Entender como um só Deus
Ao mesmo tempo é três
Esse mesmo Deus
Foi morto por vocês
Sua maldade, então
Deixaram Deus tão triste.
Quem me dera
Ao menos uma vez
Acreditar por um instante
Em tudo que existe
E acreditar
Que o mundo é perfeito
Que todas as pessoas
São felizes.”
127
Pais e Filhos
(Anexo 11)
Aborda a relação entre pais e filhos e os problemas que interferem nessa relação:
separação dos pais, conflitos de geração, crianças abandonadas e, como solução,
para todos esses problemas, propõe o amor incondicional. A questão da
religiosidade familiar aparece, agora, de forma mais explícita:
“Meu filho vai ter
Nome de santo
Uummhumm!
Quero o nome
Mais bonito ...”
Geração Coca-Cola (Anexo 12)
A temática desse texto é um protesto à força da indústria americana no Brasil
e ao consumismo ingênuo do povo brasileiro, denominado Geração Coca-Cola. Os
autores desse protesto são os filhos dessa geração, que se intitulam burgueses
sem religião, o que significa ruptura com toda a herança familiar e remete à
pressuposição de que, o que restou, foi apenas religiosidade:
“Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove as seis.
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola.”
Sagrado Coração
(Anexo 13)
Esse título remete à expressão do Cristianismo “Sagrado Coração de Jesus” e,
128
para se obter melhor fundamentação, realizou-se uma pesquisa, em
site
da
Internet, sobre o seu significado:
“Sagrado Coração de Jesus é uma devoção praticada pela Igreja Católica, que se
comemora todas as primeiras sextas-feiras de cada mês. Consiste na veneração do
Coração de Jesus. A origem desta devoção deve-se a Santa Margarida Maria
Alacoque, uma religiosa de uma Congregação conhecida como Ordem da
Visitação. A Santa Margarida Maria teve extraordinárias revelações por parte de
Jesus Cristo, que a incumbiu pessoalmente de divulgar e propagar no mundo esta
piedosa devoção.”
A partir dessa definição, nota-se que o texto “Sagrado Coração” enfatiza o
distanciamento entre fé e ação, entre o que se diz e o que se faz. O “EU” se
pergunta quem é e onde está esse ser divino, o poderoso, que “permite” esse
caos social; enfatiza-se o hiato existente entre fé e prática social, fato que o
impossibilita de aceitar o mistério da fé cristã:
“Falam de algum lugar
Mas onde é que está?
Onde há virtude e inteligência
E as pessoas são sensíveis
E que a luz no coração
É o que pode me salvar
Mas não acredito nisso
Tento mas é só de vez em quando
Onde está este lugar?
Onde está essa luz?
Se o que vejo é tão triste
E o que fazemos tão errado?”
Porém, apesar da dificuldade em compreender esse mistério, redime-se a esse
sentimento de fé, suplicantemente, como única prerrogativa para encontrar ajuda e
conforto ao seu coração. Ao mesmo tempo que questiona esse hiato, deixa claro
que, diante de tantos problemas existenciais e sociais, uma opção: apelar
para o divino:
129
“Por isso lhe peço por favor
Pense em mim, ore por mim
E me diga:
_ Este lugar distante está dentro de você
E me diga que nossa vida é luz
Me fale do sagrado coração
Porque eu preciso de ajuda”
Após as análises desses intertextos, conclui-se que a religiosidade é uma temática
bastante presente nos textos de Renato Russo e que, assim como os demais
temas abordados por ele, tem como objetivo conduzir os leitores à reflexão, a
questionamentos acerca da sociedade vigente. Há uma ênfase sobre esse hiato
existente entre fé e ão e esta é mais uma das questões sociais repercutidas nas
letras de música do autor.
3.1.6 Conclusões obtidas das análises dos intertextos
O texto “Faroeste Caboclo” está enquadrado no gênero crônica, visto que é um
texto opinativo, que tem por tema o cotidiano, construído de forma narrativa.
Entretanto, o se trata de linguagem do cotidiano, pois, sua expressão linguística
foi construída com a linguagem poética e organizada de forma argumentativa, fato
que se observa, também, em outros intertextos.
Quando a análise estava centrada apenas no texto-base, as inferências e a
compreensão do texto ficaram reticentes e a necessidade de buscar outros textos
de Renato Russo tornou-se latente. A partir de então, após analisar vários outros
textos, por similitude temática, percebe-se, nitidamente, que a matéria-prima
dessas letras do autor é a complexidade existencial da vida moderna, com todas
suas ramificações temáticas possíveis, indicando uma leitura mais negativa do que
positiva, quanto às possíveis soluções.
Ler esses textos de Renato Russo significa lidar com as contradições o tempo todo,
que essas letras tentam reproduzir as contradições presentes na vida humana.
130
Explicita que a esfera particular não está dissociada da esfera social e que a
dimensão pessoal está, cotidianamente, em confronto com a dimensão coletiva,
provocando um dos conflitos mais característicos da vida moderna, o existencial,
frente às dificuldades sociais. Alguns temas como cura, salvação, redenção e
transfiguração são os efeitos almejados pela poética de Renato Russo e, apesar
das tentativas explícitas de transmitir positividades, há um tom melancólico e
desencantado com a sociedade vigente.
O que Renato Russo fez foi dar voz a um “EU” que, por vezes, decodifica o seu
mundo, mas que noutras vezes não, negando-o, omitindo-o, por um processo
criativo de fingimento. O “EU” joga a culpa no “OUTRO”, fazendo-se de vítima,
seguindo uma lógica discursiva em que o “EU” encarna o “OUTRO” para criticá-lo,
ou seja, afirmando e criticando, ao mesmo tempo.
O “EU” é visto, não como mero espectador alheio ao ritual da vida ao seu redor,
mas, como convém a alguém que já conhece o seu papel, sendo tanto vítima,
quanto participante ativo. É, ao mesmo tempo, ator e contemplador, sendo, por
vezes, “EU” e “ELE dentro do discurso, fundamentados pelo uso constante de
paradoxos.
Numa focagem crítica, vê-se que a própria dinâmica da sociedade brasileira e das
relações existenciais foram contempladas em versos, estando sempre submissas a
um processo histórico-social que, no mundo atual, assimilam-se as contradições de
classe, como por exemplo, em “Faroeste Caboclo”, em que João recebe o nome de
santo, por herança familiar de religiosidade e torna-se um bandido.
Tanto no tema sobre a mídia televisiva, quanto sobre a religiosidade, enquanto
herança familiar, o que se vê é uma tentativa de ridicularizar, criticamente, os
artifícios da alienação, simulando, reproduzindo e encenando o discurso geral
ideologizado. E, a partir dessa ridicularização, assumindo o discurso dos outros, o
autor revela a ineficácia dessa postura, expondo a sua essência egoísta e, ao
mesmo tempo, revelando a submissão e a domesticação acrítica daqueles que a
assimilam.
131
Percebe-se um discurso em tom catártico, na tentativa de reproduzir a sensação do
indivíduo, diante de uma sociedade em estado agonizante, em que o autor revela
seu desejo de resgatar a pureza básica do ser humano, reconstruindo-o ou
dignificando-o, de alguma maneira, denunciando os esquemas de desintegração
que rechaçam esse objetivo.
Ao mesmo tempo em que suas letras possuem esse tom melancólico, diante da
situação caótica do país, ele, também, trata de amor, como que um antídoto a tanta
dor, a tanto sofrimento. João de Santo Cristo apaixona-se por Maria Lúcia e, apesar
desse amor não ser bem sucedido, ele representa a possibilidade de resgate de um
cidadão, fora da lei, voltar a comportar-se de acordo com as regras sociais.
É como se o amor o aliviasse, o anestesiasse, diante das dores sofridas pela
injustiça social, conduzindo-o à alienação, ao conformismo com a situação. Nessa
mesma perspectiva apresenta-se o amor universal, o amor a Deus. Diante de
tantas inquietações e aflições, resta uma opção: apelar para o divino, para o
plano espiritual.
Todavia, até mesmo esse Ser Supremo é questionado pelo eu-poético, quando não
consegue entender como esse Ser, que diz amar seus filhos, pode permitir que eles
sofram tanto. Por isso, usando de ironia, atribui a Jesus sentimentos antagônicos,
como, por exemplo, em “Faroeste Caboclo”, quando cita que João sentia ódio
concedido por Jesus – desde criança.
O intento de Renato Russo é conduzir o leitor a uma reflexão sobre a questão
da religiosidade
versus
a questão social, em que a primeira se estabelece, apenas,
no plano da intencionalidade das pessoas e a segunda se estabelece na
realidade concreta do cotidiano dessas pessoas e, para a qual, propõe uma saída:
lutar contra essa situação, trocando a apatia pela ação e o egoísmo pela
solidariedade.
Consequentemente, denuncia as desigualdades sociais e apresenta os grupos do
Poder Institucionalizado, impondo suas ideologias aos grupos subalternos, cujo
objetivo é a manutenção dessa estrutura social, que atende, exclusivamente, a
132
seus interesses. Denuncia o Poder institucionalizado, através do personagem João
de Santo Cristo, um sertanejo nordestino, que simboliza a decepção, a falta de
perspectiva, a luta pela sobrevivência, encarnando o papel pertencente ao grupo
social dos excluídos, socialmente.
Em síntese, tanto o texto-base, quanto os três intertextos analisados, todos de
Renato Russo, são textos da classe narrativa, modificados em um texto opinativo,
crônica do cotidiano e todos estão monofonizados pela denúncia social,
representada por uma polaridade de valores.
Os valores positivos/negativos, impostos como representações sociais pela classe
dominante, estão invertidos em relação aos valores positivos/negativos das classes
mais carentes. Essa inversão é denunciada como uma ausência de diálogo e de
preocupação da elite com o povo e está explicitada no Intertexto 2, por:
“Todo
mundo sabe e ninguém quer mais saber
/
Afinal amar o próximo é tão démodé.”
Dessa forma, a opressão, a miséria e a marginalidade são representadas, pelas
classes elitistas, como objeto de curiosidade. No Intertexto 3, a denúncia de Renato
Russo está focalizada na mídia que, ao invés de se preocupar com os direitos
humanos das classes mais carentes, transforma a injustiça social em objeto de
curiosidade para os telespectadores.
Quando se pensa no perfil dos informantes-alunos, da escola pública Caetano de
Campos Consolação, através da pesquisa para escolha do texto-base, realizada
inicialmente, há de se destacar os seguintes números: vinte e seis por cento
desses alunos e quarenta por cento de seus pais são egressos de cidades
nordestinas; vinte e seis por cento dos alunos e seis por cento de seus pais
nasceram em São Paulo; quarenta e oito por cento dos alunos e cinquenta e quatro
por cento de seus pais nasceram no interior de São Paulo e em outros estados.
Constatou-se, então, que setenta e quatro por cento desses alunos e noventa e
quatro por cento de seus pais deixaram suas cidades de origem, para viverem em
São Paulo, o que permite afirmar que o perfil desses alunos assemelha-se ao perfil
133
de João de Santo Cristo, que deixa sua terra natal e migra para grandes centros
urbanos, em busca de melhores condições de vida.
O sertanejo nordestino, representado por João de Santo Cristo, é alguém que, por
herança familiar, já nasce sem identidade social, sem cidadania e, ao tentar
resgatá-la, vê-se como muitos outros brasileiros, que, ao migrarem de suas cidades
de origem para os grandes centros urbanos, fugindo da marginalidade, acabam,
igualmente, marginalizados, nesses grandes centros, impossibilitados de romper
essa barreira social, tão fortemente construída pelo Poder Institucionalizado.
Dessa forma, conclui-se que a identificação com Renato Russo e suas
composições dá-se pelo saber constituído através do experienciado ou pelo
conhecimento de mundo adquirido em seus grupos sociais. Renato Russo retrata
uma camada social brasileira excluída socialmente e, para seus admiradores,
simboliza o “grito dos excluídos”, disseminados por toda parte do nosso país.
Ao se encerrar este capítulo, retoma-se a pergunta que orientou a investigação
realizada:
-
No atual conflito existente entre os diferentes grupos sociais de alunos, de
uma mesma sala de aula, o que pode, unitariamente, identificá-los a papéis
sociais e quais valores são atribuídos a esses papéis?
A pesquisa realizada possibilita a seguinte resposta:
Os alunos de uma mesma sala de aula, de uma escola pública paulistana,
pertencem a grupos sociais diferentes, percorrendo desde grupos elitistas até mais
carentes. A idade média dos informantes da pesquisa é de quinze anos e, portanto,
em plena adolescência. Segundo os psicólogos, a adolescência é um período
intermediário entre a infância e a vida adulta e, nesse período, os jovens estão
expostos às diferentes estruturas sociais de seus grupos e têm as
representações avaliativas dos papéis sociais que compõem cada estrutura.
Outrossim, ainda segundo os psicólogos, a busca por uma identidade única é um
134
dos problemas que adolescentes, frequentemente, encaram, desafiando
autoridades e regras, como um caminho para se estabelecerem como indivíduos.
E, nesse sentido, não aceitam a imposição ideológica do Poder político e
econômico e identificam-se com papéis sociais representados por artistas
idealistas, justiceiros e lutadores por sobrevivência, atuando como modelos de
comportamento.
Portanto, as representações, em língua, das músicas de Renato Russo, constróem,
para eles, novas formas de conhecimento, a partir da denúncia da desigualdade
social, demonstrando uma identificação tanto com os papéis, quanto com a
denúncia.
Essa empatia entre autor e público jovem dá-se pela utilização de determinados
elementos linguísticos e semânticos, focando diretamente o universo juvenil e
revelando-se como alguém que compreende os problemas, os conflitos e
apreensões desses jovens. Incorpora, em seus textos, a complexidade
característica da adolescência, ajudando-os a refletir sobre sua condição pessoal e
social, apresentando-lhes caminhos, que podem ou não ser trilhados.
Utiliza-se de um discurso em que reaparecem as imagens do cotidiano
adolescente, remodeladas em uma linguagem atraente a esses jovens, a musical,
revelando um pouco da história de cada jovem e, consequentemente, valorizando-
o, fato que, muitas vezes, é negado pela sociedade.
135
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No término desta dissertação, os objetivos orientadores da pesquisa são revistos,
tendo como Objetivo Geral, contribuir para os estudos dos papéis sociais, em
diferentes grupos sócio-culturais brasileiros.
Acredita-se que a descrição dos papéis sociais, nas estruturas sociais dos
diferentes grupos representados no texto-base e retomados nos intertextos
analisados, possa contribuir com os estudos discursivos dos diferentes grupos
sócio-culturais brasileiros e sua inter-relação com os grupos sócio-ideológicos
brasileiros.
Entende-se que as ideologias grupais têm suas origens nas culturas sociais, porém
são modificadas e podem ser examinadas pelas categorias analíticas: Poder,
Controle e Acesso ao público, de forma a denunciar o domínio das mentes no e
pelos discursos institucionais.
Os Objetivos Específicos são:
1. identificar os diferentes papéis sociais que compõem a estrutura da
sociedade do nosso sertanejo nordestino, que migra de sua região em
busca da sobrevivência, em um grande centro urbano.
Os resultados obtidos indicam que o sertanejo nordestino, extragrupalmente, tem
uma estrutura social organizada, com os seguintes papéis:
Grupo Social: da Família, representado pelo papel de consanguinidade.
Grupo Social: dos mais Carentes, representado pelo papel do marginal
(que é preso ou morto pela polícia); pelo papel do professor na escola;
pelo papel da igreja na coleta de dinheiro; pelo papel do soldado, que
mata quem pratica infração; e esse conjunto de papéis é representado
136
pelo
“marasmo da fazenda”.
O papel mais hierarquizado é o de “João de
Santo Cristo”, que representa a marginalidade social, como se vê em:
“Quando criança só pensava em ser bandido
Era o terror da cercania onde morava.
“E na escola até o professor com ele aprendeu
“Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro”
“Sentia mesmo que era mesmo diferente”
O segundo Objetivo Específico é:
2. examinar qual funcionamento esses papéis têm entre si, a partir da
interação do sertanejo nordestino, com outros grupos sociais.
Esses papéis interacionam-se, de forma a:
incluir o sertanejo nordestino no grupo social da metrópole, composto por
pessoas que trabalham, arduamente, e não conseguem obter dinheiro
para sobreviverem;
incluir o sertanejo nordestino em grupo de marginais traficantes, onde
obtém ascensão social ao dinheiro e, consequentemente, ao Poder;
incluir o sertanejo nordestino no grupo social de criminosos, onde é
julgado e preso, por ser de grupo social carente.
O terceiro e último Objetivo Específico é:
3. reconhecer os valores culturais e ideológicos, contidos na representação
dos diferentes papéis sociais examinados.
Os valores culturais implicam, tanto a cultura da elite, quanto a cultura popular. Na
cultura da elite, os grupos sociais têm cidadania e justiça social, podendo, até
mesmo, serem marginais, pois o dinheiro dá, a eles, prestígio social. Na cultura
137
popular, o desejo da sobrevivência guia as ações das pessoas, tornando-as
migrantes, em busca de uma vida melhor, nas grandes metrópoles.
Dessa forma, os valores culturais positivos são atribuídos a ter uma casa, comida,
amigos e fé. Os valores ideológicos da elite estão relacionados, positivamente, a ter
Poder: Poder de decisão, Poder de julgamento, Poder de premiar e Poder de
castigar. O Poder é exercido pelas pessoas que o detém, sempre visando a sua
manutenção e, por essa razão, discriminam qualquer grupo social que ameace a
perda desse Poder.
Assim sendo, o grupo ideológico das classes mais carentes atribui valor positivo à
submissão, por reprodução ideológica do Poder, o que impede a mudança no
Poder e, dessa forma, ideologicamente, são representadas como pessoas
incapazes e medrosas, pois só assim serão submissas.
A hipótese orientadora da pesquisa mostrou-se adequada, pois as cognições
sociais dos alunos o relativas a grupos sociais diferentes. Todavia, cognições
extra-grupais, construídas pelos discursos públicos, no caso, as músicas de
Renato Russo, que dão origem a uma unidade imaginária, que é a luta pela
liberdade, contra a opressão e a desigualdade social.
Dessa forma, passam a representar:
“Já estou cheio de me sentir vazio
Meu corpo é quente e estou sentido frio.
Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
Afinal, amar o próximo é tão demodê.”
Essa representação opõe-se à:
“essa justiça desafinada
é tão humana e tão errada
(...)
Não estatize meus sentimentos
Pra seu governo
138
Meu estado é independente.”
Essas representações estão interacionadas com o desejo de mudança, expresso
em:
“Vocês venceram essa batalha
quanto à guerra
vamos ver.”
Esta dissertação não se quer conclusiva, pois entende-se que ela abre perspectiva
para a denúncia do domínio das mentes pelos discursos públicos,
institucionalizados pelo Poder. Ao prosseguir essa pesquisa far-se-á necessário
levantar as diferentes representações sociais, inter e extragrupais, de forma a abrir
perspectivas para estudos identitários do brasileiro.
139
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Biografias - http://www.casadobruxo.com.br/renato/biografia
Origem de nomes - http://pt.wikipedia.org/wiki/sagrado coracao
Origem de nomes - http://pt.wikipedia.org/wiki/faccao_exercito_vermelho
1
A N E X O 1
QUE PAÍS É ESTE
Renato Russo
Nas favelas, no senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é esse
No amazonas, no araguaia iá, iá,
Na baixada fluminense
Mato grosso, minas gerais e no
Nordeste tudo em paz
Na morte o meu descanso, mas o
Sangue anda solto
Manchando os papéis e documentos fiéis
Ao descanso do patrão
Que país é esse
Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão
Que país é esse
2
A N E X O 2
CONEXÃO AMAZÔNICA
Renato Russo / Felipe Lemos
Estou cansado de ouvir falar
Em Freud, Jung, Engels, Marx
Intrigas intelectuais
Rodando em mesa de bar
Yeah, yeah, yeah,
O que eu quero eu não tenho
O que eu não tenho eu quero ter
Não posso ter o que eu quero
E acho que isso não tem nada a ver
Yeah, yeah, yeah,
Os tambores da selva já começaram a rufar
A cocaína não vai chegar
Conexão amazônica está interompida
Yeah, yeah, yeah,
E você quer ficar maluco sem dinheiro e acha que está tudo bem
Mas alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de ninguém
Uma peregrinação involuntária talvez fosse a solução
Auto-exílio nada mais é do que ter seu coração na solidão
Yeah, yeah, yeah!
3
A N E X O 3
TÉDIO (com um T bem grande pra você)
Renato Russo
Moramos na cidade, também o presidente
E todos vão fingindo viver decentemente
Só que eu não pretendo ser tão decadente não
Tédio com um T bem grande pra você
Andar a pé na chuva, às vezes eu me amarro
Não tenho gasolina, também não tenho carro
Também não tenho nada de interessante pra fazer
Tédio com um T bem grande pra você
Se eu não faço nada, não fico satisfeito
Eu durmo o dia inteiro e aí não é direito
Porque quando escurece, só estou a fim de aprontar
Tédio com um T bem grande pra você
4
A N E X O 4
EU SEI
Renato Russo
Sexo verbal
Não faz meu estilo
Palavras são erros
E os erros são seus...
Não quero lembrar
Que eu erro também
Um dia pretendo
Tentar descobrir
Porque é mais forte
Quem sabe mentir
Não quero lembrar
Que eu minto também...
Eu sei! Eu sei!...
Feche a porta do seu quarto
Porque se toca o telefone
Pode ser alguém
Com quem você quer falar
Por horas e horas e horas...
A noite acabou
Talvez tenhamos
Que fugir sem você
Mas não, não vá agora
Quero honras e promessas
Lembranças e histórias...
Somos pássaro novo
Longe do ninho
Eu sei! Eu sei!...
5
A N E X O 5
MAIS DO MESMO
Renato Russo / Dado Villa-Lobos / Renato Rocha / Marcelo Bonfá
Ei menino branco o que é que você faz aqui
Subindo o morro pra tentar se divertir
Mas já disse que não tem
E você ainda quer mais
Por que você não me deixa em paz?
Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim
E agora você quer que eu fique assim igual a você
É mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui?
Quem vai tomar conta dos doentes?
E quando tem chacina de adolescentes
Como é que você se sente?
Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel.
Sempre mais do mesmo
Não era isso que você queria ouvir?
Bondade sua me explicar com tanta determinação
Exatamente o que eu sinto, como penso e como sou
Eu realmente não sabia que eu pensava assim
E agora você quer um retrato do país
Mas queimaram o filme
E enquanto isso, na enfermaria
Todos os doentes estão cantando sucessos populares.
(e todos os índios foram mortos).
6
A N E X O 6
ANGRA DOS REIS
Renato Russo / Renato Rocha / Marcelo Bonfá
Deixa, se fosse sempre assim
Quente, deita aqui perto de mim
Tem dias, que tudo está em paz
E agora os dias são iguais
Se fosse só sentir saudade
Mas tem sempre algo mais
Seja como for
É uma dor que dói no peito
Pode rir agora que estou sozinho
Mas não venha me roubar
Vamos brincar perto da usina
Deixa prá lá, a angra é dos reis
Por que se explicar se não existe perigo?
Senti teu coração perfeito batendo à toa
E isso dói
Seja como for
É uma dor que dói no peito
Pode rir agora que estou sozinho
Mas não venha me roubar
Vai ver que não é nada disso
Vai ver que já não sei quem sou
Vai ver que nunca fui o mesmo
A culpa é toda sua e nunca foi
Mesmo se as estrelas começassem a cair
E a luz queimasse tudo ao redor
E fosse o fim chegando cedo
E você visse o nosso corpo em chamas!
Deixa pra lá.
Quando as estrelas começarem a cair
Me diz, me diz pra onde é que a gente vai fugir?
7
A N E X O 7
QUÍMICA
Renato Russo
Estou trancado em casa e não posso sair
Papai já disse, tenho que passar
Nem música eu não posso mais ouvir
E assim não posso nem me concentrar
Não saco nada de Física
Literatura ou Gramática
Só gosto de Educação Sexual
E eu odeio Química
Não posso nem tentar me divertir
O tempo inteiro eu tenho que estudar
Fico só pensando se vou conseguir
Passar na porra do vestibular
Chegou a nova leva de aprendizes
Chegou a vez do nosso ritual
E se você quiser entrar na tribo
Aqui no nosso Belsen tropical
Ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão
Ter filho na escola, férias na Europa, conta bancária, comprar feijão
Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão
Você tem que passar no vestibular.
8
A N E X O 8
DEPOIS DO COMEÇO
Renato Russo
Vamos deixar as janelas abertas
E deixar o equilíbrio ir embora
Cair como um saxofone na calçada
Amarrar um fio de cobre no pescoço
Acender o intervalo pelo filtro
Usar um extintor como lençol
Jogar pólo-aquático na cama
Ficar deslizando pelo teto
Da nossa casa cega e medieval
Cantar canções em línguas estranhas
Retalhar as cortinas desarmadas
Com a faca surda que a fé sujou
Desarmar os brinquedos indecentes
E a indecência pura dos retratos no salão
Vamos beber livros e mastigar tapetes
Catar pontas de cigarros nas paredes
Abrir a geladeira e deixar o vento sair
Cuspir um dia qualquer no futuro
De quem já desapareceu
Deus, Deus, somos todos ateus
Vamos cortar os cabelos do príncipe
E entregá-los a um deus plebeu
E depois do começo
O que vier vai começar a ser o fim.
9
A N E X O 9
SE FIQUEI ESPERANDO MEU AMOR PASSAR
Renato Russo / Marcelo Bonfá / Dado Villa-Lobos
Se fiquei esperando meu amor passar
Já me basta que então, eu não sabia
Amar e me via perdido e vivendo em erro
Sem querer me machucar de novo
Por culpa do amor
Mas você e eu podemos namorar
E era simples: ficamos fortes.
Quando se aprende a amar
O mundo passa a ser seu
Quando se aprende a amar
O mundo passa a ser seu
Sei rimar romã com travesseiro
Quero a minha nação soberana
Com espaço nobreza e descanso.
Se fiquei esperando meu amor passar
Já me basta que estava então longe de sereno
E fiquei tanto tempo duvidando de mim
Por fazer amor fazer sentido.
Começo a ficar livre
Espero. Acho que sim.
De olhos fechados não me vejo
E você sorriu pra mim
"Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Dai-nos a paz...”
10
A N E X O 10
ÍNDIOS
Renato Russo
Quem me dera Esse mesmo Deus Assim pude trazer
Ao menos uma vez Foi morto por vocês Você de volta pra mim
Ter de volta todo o ouro Sua maldade, então Quando descobri
Que entreguei a quem Deixaram Deus tão triste. Quem é sempre só você
Conseguiu me convencer Que me entende
Que era prova de amizade Eu quis o perigo Do início ao fim.
Se alguém levasse embora E até sangrei sozinho
Até o que eu não tinha Entenda! E é só você que tem
Assim eu pude trazer A cura pro meu vício
Quem me dera Você de volta pra mim De insistir nessa saudade
Ao menos uma vez Quando descobri Que eu sinto
Esquecer que acreditei Que você sempre só você De tudo que eu ainda não
Que era por brincadeira Que me entende vi.
Que se cortava sempre Do início ao fim. Nos deram espelhos
Um pano-de-chão E vimos um mundo doente
De linho nobre e pura seda E é só você que tem Tentei chorar e não
A cura do meu vicio consegui.
Quem me dera De insistir nessa saudade
Ao menos uma vez Que eu sinto
Explicar o que ninguém De tudo que eu ainda não vi.
Consegue entender
Que o que aconteceu Quem me dera
Ainda está por vir Aos menos uma vez
E o futuro não é mais Acreditar por um instante
Como era antigamente. Em tudo que existe
E acreditar
Quem me dera Que o mundo é perfeito
Ao menos uma vez Que todas as pessoas
Provar que quem tem mais São felizes ...
Do que precisa ter
Quase sempre se convence Quem me dera
Que não tem o bastante Ao menos uma vez
Fala demais Como a mais bela tribo
Por não ter nada a dizer. Dos mais belos índios
Não ser atacado
Quem me dera Por ser inocente.
Ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto Eu quis o perigo
Como o mais importante E até sangrei sozinho
Mas nos deram espelhos Entenda!
11
A N E X O 11
PAIS E FILHOS
Renato Russo / Dado Villa-Lobos / Marcelo Bonfá
Estátuas e cofres Eu moro com a minha mãe
E paredes pintadas Mas meu pai vem me visitar
Ninguém sabe Eu moro na rua
O que aconteceu... Não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar ...
Ela se jogou da janela
Do quinto andar Já morei em tanta casa
Nada é fácil de entender... Que nem me lembro mais
Eu moro com os meus pais
Dorme agora Huhuhuhu! ... ouh! Ouh! ...
Uuummhum!
É só o vento É preciso amar as pessoas
Lá fora... Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar
Quero colo! Prá pensar
Vou fugir de casa Na verdade não há ...
Posso dormir aqui
Com vocês Sou uma gota d’água
Estou com medo Sou um grão de areia
Tive um pesadelo Você me diz que seus pais
Só vou voltar Não entendem
Depois das três... Mas você não entende seus pais ...
Meu filho vai ter Você culpa seus pais por tudo
Nome de santo Isso é absurdo
Uummhum! São crianças como você
Quero o nome O que você vai ser
Mais bonito... Quando você crescer?
É preciso amar haahaa as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar
Prá pensar
Na verdade não há...
Me diz, por que que o céu é azul
Explica a grande fúria do mundo
São meus filhos
Que tomam conta de mim...
12
A N E X O 12
GERAÇÃO COCA-COLA
Renato Russo / Fê Lemos
Quando nascemos fomos programados Vamos fazer nosso dever de casa
A receber o que vocês E aí então vocês vão ver
Nos empurraram com os enlatados Suas crianças derrubando reis
Dos U.S.A., de nove as seis. Fazer comédia no cinema com as
suas leis.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial Somos filhos da revolução
Mas agora chegou nossa vez Somos burgueses sem religião
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Somos os filhos da revolução Geração Coca-Cola
Somos burgueses sem religião Geração Coca-Cola
Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Depois de 20 anos na escola
Depois de 20 anos na escola Não é difícil aprender
Não é difícil aprender Todas as manhas do seu jogo sujo
Todas as manhas do seu jogo sujo Não é assim que tem que ser
Não é assim que tem que ser
Vamos fazer nosso dever de casa
Vamos fazer nosso dever de casa E aí então vocês vão ver
E aí então vocês vão ver Suas crianças derrubando reis
Suas crianças derrubando reis Fazer comédia no cinema com as
Fazer comédia no cinema com as suas leis suas leis.
Somos os filhos da revolução Somos filhos da revolução
Somos burgueses sem religião Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola.
Depois de 20 anos na escola
Não é dificil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser.
13
A N E X O 13
SAGRADO CORAÇÃO
Renato Russo
Sei que tenho um coração
Mas é difícil de explicar
De falar de bondade e gratidão
E estas coisas que ninguém gosta de falar
Falam de algum lugar
Mas onde é que está ?
Onde há virtude e inteligência
E as pessoas são sensíveis
E que a luz no coração
é o que pode me salvar
Mas não acredito nisso
Tento mas é só de vez em quando
Onde está este lugar?
Onde está essa luz ?
Se o que vejo é tão triste
E o que fazemos tão errado ?
E me disseram!
Este lugar pode estar sempre ao seu lado
E a alegria dentro de você
Porque sua vida é luz
E quando vi seus olhos
E a alegria no seu corpo
E o sorriso nos seus lábios
Eu quase acreditei
Mas é tão difícil
Por isso lhe peço por favor
Pense em mim, ore por mim
E me diga:
- Este lugar distante está dentro de você
E me diga que nossa vida é luz
Me fale do sagrado coração
Porque eu preciso de ajuda.
14
A N E X O 1 4
E.E. CAETANO DE CAMPOS – CONSOLAÇÃO
ALUNOS DO 1º ANO DO ENSINO MÉDIO - 2008
QUESTIONÁRIO - 1ª Etapa
1. Aluno: _____________________________________________________
2. Idade: _____________________
3. Naturalidade do aluno: _______________________________
4. Naturalidade dos pais: ________________________________
5. Tipo de texto que mais gosta de ler/ouvir:
__________________________________________________
6. Cite o nome de um texto/música de sua preferência:
__________________________________________________
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
QUESTIONÁRIO - 2ª Etapa
Escolha uma
dessas músicas, de acordo com sua preferência:
( ) Senhor do Tempo – Charlie Brown Jr.
( ) Deixo – Ivete Sangalo
( ) Faroeste Caboclo – Legião Urbana
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