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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO-
DOUTORADO
ANGELA CRISTINA SALGADO DE SANTANA
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA
E SUA PRÁTICA EDUCATIVA
1862-1934
Salvador
2008
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ANGELA CRISTINA SALGADO DE SANTANA
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA E SUA
PRÁTICA EDUCATIVA – 1862-1934
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal da Bahia
para obtenção do título de Doutora em
Educação pela Linha de pesquisa Filosofia,
Linguagem e Práxis Pedagógica.
Orientador: Profª. Dra. Elizete Silva Passos
Salvador
2008
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Bibliotecárias responsáveis:
Celia Maria de Almeida Mattos CRB5/67
Lucineia Machado CRB5/1455
S223s Santana, Ângela Cristina Salgado de
Santa Casa de Misericórdia da Bahia e sua prática educativa; 1862 – 1934 /
Ângela Cristina Salgado de Santana. - Salvador : A. C. S. de Santana, 2008.
230f. : il. ; 35 cm.
Orientador : Profº PhD. Elizete S. Passos
Tese (doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, 2008
1. Educação – Prática pedagógica, 1862 – 1934. 2. Santa Casa de Misericórdia
(Ba) – Pedagogia do ensino, 1862 – 1934. 3. Santa Casa de Misericórdia (Ba) - Roda de
expostos. I. Título. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação - Tese
CDD 370
ANGELA CRISTINA SALGADO DE SANTANA
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA E SUA
PRÁTICA EDUCATIVA - 1862-1934
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal da Bahia
para obtenção do título de Doutora em
Educação pela Linha de pesquisa Filosofia,
Linguagem e Práxis Pedagógica.
Salvador,
Elizete Silva Passos (Orientador)
Doutora em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade Federal da Bahia
Professora Adjunta da Faculdade de Filosofia – UFBA
Arlete Silva Santos
Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia
Professora e Coordenadora Geral do Centro de Pesquisa e Pós-graduação da Fundação
Visconde de Cairu - Bahia
Elizeu Clementino de Souza
Doutor em Educação UFBA e FPCE/UL (Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação/Universidade de Lisboa)
Professor Adjunto PPGEduc/UNEB
Nívea Rocha
Doutora em Educação pela Universidade Autônoma de Barcelona
Professora Titular da Fundação Visconde de Cairu-Bahia
Sara Marta Dick
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia
Professora Adjunta do Departamento de Educação I da Faculdade de Educação - UFBA
Este trabalho é dedicado a alunos e mestres da
Escola Interna do Asylo de Nossa Senhora de
Misericórdia, da Santa Casa de Misericórdia
da Bahia, nos idos de 1862 a 1934.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho não seria realizado sem o apoio incondicional dos meus pais, Mabel e
Ivo, da minha filha Mirna, do meu marido Luiz, dos meus irmãos Francisco, Márcia, Rita e
João e da minha tia Edna.
A Profª Drª Elizete Silva Passos, orientadora deste trabalho, pelo exemplo de
competência, disponibilidade e calor humano.
Meu agradecimento se estende, também, aos amigos e incentivadores:
Profª Adelice dos Reis Borges
Profª Drª Dilcélia Almeida Sampaio
Cezar Pereira de Araújo Alves
Prof. José Domingos Blanco Neto
Prof. Dr. Laerton Lima
Frei Lucas Dolle
Profª Drª Nanci Helena Rebouças Franco
Pedro Spinelli
Prof. Dr. Ronaldo Jacobina
Terezinha Oliveira Santos
À Santa Casa de Misericórdia da Bahia, nas pessoas de
Dr. Antonio Ivo de Almeida – meu primeiro contato na instituição, há mais de
uma década, e colaborador constante
Drª Neuza Esteves - Diretora do Arquivo
Jorge Martins Conceição
Rosana Santos de Souza
Valdicley Vilas Boas
Pela colaboração, apoio e incentivo.
Ao Setor de Obras Raras e Valiosas da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nas
pessoas das Bibliotecárias Célia Mattos e Lucineia Machado.
A Maria José Bacelar, pela criteriosa revisão e normalização do texto.
“As meninas, assim como os meninos
freqüentarão a escola do estabelecimento:
aquelas receberão uma educação accommodada
à sua condição, pela qual se tornem boas mães
de famílias, e se habilitem a passar a vida com o
resultado do seu honesto trabalho.”
(Artigo 32 do Regulamento do Asilo, 1863)
RESUMO
A Educação é importante recurso utilizado pelas sociedades como meio de socialização dos
indivíduos, de aquisição e difusão de conhecimentos, de valores sociais, morais e religiosos e
de capacitá-los para a vida em grupo. O processo educativo, perpassado de ideologia, pode
ocorrer tanto nas escolas da rede pública ou privada como nas instituições filantrópicas ou não
governamentais, como a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, objeto desta tese. O objetivo
geral desta pesquisa é conhecer a prática pedagógica da Escola Interna do Asylo da Santa
Casa de Misericórdia da Bahia, durante o período de 1862 a 1934, destinada a alunos asilados
oriundos da Roda dos Expostos, avaliar o que propunha para as crianças do sexo masculino e
feminino que acolhia e abrigava e os efeitos e conseqüências do processo de socialização
numa instituição total. São objetivos específicos: reconstruir a história da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia no contexto sociohistórico de Salvador, enfocando suas obras e sua
estrutura administrativa; conhecer o Asylo dos Expostos; conhecer a Escola Interna, no
contexto educacional baiano; identificar e analisar o modelo pedagógico seguido pela Escola
Interna; conhecer o tipo de educação oferecida na Escola Interna; analisar a prática
pedagógica da Escola Interna; saber o que a instituição considerava e defendia como papéis
sociais para homens e mulheres durante os anos que lá permaneciam. A metodologia utilizada
foi a adotada pela História das Mentalidades. Assim, este é um estudo histórico-analítico, de
natureza qualitativa. Optou-se pelo estudo de caso com a utilização de pesquisa bibliográfica
e documental. Os resultados apontam que a Educação Tradicional, adotada pela instituição,
com seus componentes de disciplinamento, poder e memorização, ao lado da religiosidade
católica, embasou o processo educativo do período em tela, influindo na formação moral e
intelectual das crianças. A releitura do cotidiano da Escola, calcado no ideário cristão,
mostrou as relações sociais tecidas entre os vários atores envolvidos no processo educativo e
revelou como meninos e meninas eram educados e aprendiam a introjetar valores
socioculturais e religiosos considerados fundamentais para cada sexo. A relação entre
educação e condição social também foi evidenciada, mostrando a ideologia e as fragilidades
do processo educativo. Foram reveladas a atuação da Santa Casa de Misericórdia e sua
participação no campo educacional baiano, bem como seu papel social, filosofia,
características, inserção na sociedade e transformações decorrentes das mudanças sociais na
cidade de Salvador de meados do século XIX até meado do século XX. Concluiu-se que a
Escola Interna atuou em bases pedagógicas tradicionais, propiciando educação elementar e
prática aos asilados, em conformidade com os princípios da Santa Casa de Misericórdia da
Bahia, entidade autônoma cuja ação, pautada na caridade cristã e na observância às regras do
Estado, amparou meninos e meninas enjeitados e procurou assegurar-lhes abrigo físico,
orientação religiosa e adequação ao contexto sócio-político e cultural vigente.
Palavras-chave: Educação. Prática pedagógica. Santa Casa de Misericórdia da Bahia.
ABSTRACT
Education is an important resource used by societies as a means of socialization of
individuals, of acquisition and diffusion of knowledge as well as of social, moral and religious
values, and of enabling them to adjust to group living. The educative process, along with
ideology, may occur both in public and private schools and also in philanthropic or non-
governmental institutions, such as the Santa Casa de Misericórdia da Bahia, which is the
subject of this thesis. The general objective of this research is to learn about the pedagogical
practice in the Boarding School of the Santa Casa de Misericórdia da Bahia´s Asylum during
the period of 1862 to 1934, targeted at students coming from the Roda dos Expostos (a place
at the Santa Casas where rejected children were left), assess what it proposed to the male and
female children it fostered, and the effects and consequences of the socialization process in a
total institution. Its specific objectives are: to reconstruct the history of the Santa Casa da
Misericórdia da Bahia in the socio-historical context of Salvador, with a focus on its work and
administrative structure; to get to know the Asylo dos Expostos; to get to know the Boarding
School in the educational context of Bahia; to identify and analyze the pedagogical model
followed by the Boarding School; to get to know the type of education provided by the
Boarding School; to analyze the pedagogical practice of the Boarding School; to learn what
the institution considered and defended as social roles for men and women during the years
they spent there. The adopted methodology was the History of Mentalities’. This is therefore a
socio-analytical study of a qualitative nature. A case study with the use of bibliographical and
documental research was chosen. The results show that the Traditional Education which was
adopted by the institution, with its components of discipline, power and memorization,
alongside with the Catholic religiousness, was the basis of the educative process, having an
influence on the moral and intelectual development of the children. The study of the School’ s
everyday life, founded on Christian ideals, showed the social relations woven among the
various agents involved in the educative process and revealed how boys and girls were
educated and how they learned to introject socio-cultural and religious values that were
regarded as fundamental for each of the genders. Also, the relation between education and
social standing became evident, showing the ideology and the fragilities of the educative
process. The action of the Santa Casa de Misericórdia and its participation in the educational
field in Bahia were also revealed, as well as its social role, philosophy, characteristics,
insertion in society and transformations due to social changes in the city of Salvador from the
mid XIX century until the mid of the XX century. The conclusion was that the action of the
Boarding School was based on traditional pedagogical bases, providing elementary and
practical education to the pupils, in accordance with the principles of the Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, an autonomous entity which, founded on Christian charity and in
observance to the government´s rules, assisted rejected boys and girls and assured that they
had a shelter, religious orientation and were apt to be part of the socio-political and cultural
context of the time.
Key words: Education. Pedagogical practice. Santa Casa de Misericórdia da Bahia.
LISTA DE QUADROS
1 - Atividades desempenhadas pelas expostas maiores de 12 anos - 1886 94
LISTA
DE TABELAS
1 – Constituição da população masculina de Salvador – 1872 32
2 – Constituição da população feminina de Salvador – 1872 33
3 – Quantidade empregados no Asylo por função - 1914 90
4 – Distribuição de meninas e meninos por cor da pele - 1886 95
5 – População escrava no Brasil no século XIX, segundo as regiões – 1864-1887 115
6 - Asilados com idade entre 1 ano a maiores de 20 anos – por cor de pele e sexo -
Asylo dos Expostos em 1885
118
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
11
1 SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA E SEU CONTEXTO
HISTÓRICO
29
1.1 CRIAÇÃO DA SANTA CASA DA BAHIA 30
1.1.1 Cidade de Salvador
31
1.1.2 Origem e objetivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
43
1.2 CORPO DE PESSOAL E ADMINISTRAÇÃO DA SANTA CASA DE
MISERICÓRDIA DA BAHIA
47
1.3 OBRAS REALIZADAS PELA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA
BAHIA
52
1.3.1 Participação da Santa Casa de Misericórdia da Bahia na saúde
52
1.3.2 Ações caritativas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
55
1.3.3 Obra educativa
61
1.3.3.1 Escola do Recolhimento 61
1.3.3.2 Escola Elementar Mista 63
1.3.3.3 Escola Externa: um espaço só para meninas 68
2 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA
74
2.1 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA: ABRIGO E
EDUCAÇÃO PARA CRIANÇAS ENJEITADAS
75
2.2 A GENTE DO ASYLO: SONHOS, DORES E PAPÉIS 79
2.2.1 A criança exposta
80
2.2.2 Corpo administrativo
84
2.2.3 Pessoal médico
89
2.3 ATIVIDADES DAS CRIANÇAS ASILADAS 92
3 ESCOLA INTERNA DO ASYLO DE NOSSA SENHORA DA
MISERICÓRDIA
105
3.1 CONTEXTO EDUCACIONAL BAIANO – 1862 a 1934 107
3.2 CRIAÇÃO DA ESCOLA INTERNA DO ASYLO: HISTÓRICO,
FINALIDADE E CLIENTELA
124
3.2.1 Cotidiano escolar:
tempo, espaço, disciplinamento e poder
127
3.2.2 Pessoal docente: professoras e outras mestras
139
3.2.3 Comemorações, lazer, saídas e visitas
143
10
4 PRÁTICA PEDAGÓGICA DA ESCOLA INTERNA
150
4.1 PROPOSTA PEDAGÓGICA DA ESCOLA INTERNA 151
4.1.1 Objetivo, currículo e metodologia da escola interna
154
4.1.2 Avaliação de conhecimento
164
4.1.3 Avaliação das prendas artesanais
170
4.1.4 Os sujeitos da educação
175
4.2 CONSEQUÊNCIAS DA PRÁTICA PEDAGÓGICA: MENINOS E MENINAS
E SEUS PAPÉIS SOCIAIS
176
CONCLUSÃO
190
FONTES
199
REFERÊNCIAS
204
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
213
APÊNDICE A – RELAÇÃO DOS PROVEDORES DA SANTA CASA
- 1861- 1934
217
ANEXO A - COMPROMISSOS DA MISERICÓRDIA
219
ANEXO B – FOTOGRAFIAS DE IMÓVEIS DA SANTA CASA DE
MISERICÓRDIA DA BAHIA
220
ANEXO C – FOTOGRAFIAS E ASSINATURAS DE PROFESSORAS
DA ESCOLA INTERNA
223
ANEXO D – PATRONO DA ESCOLA INTERNA
224
ANEXO E – ASSINATURAS DA GENTE DO ASYLO
225
ANEXO F – RECIBO DE PAGAMENTO DE SERVIDORES DO
ASYLO /ESCOLA INTERNA
227
ANEXO G – RODA DOS EXPOSTOS
228
11
INTRODUÇÃO
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia (SCMB) é a mais antiga entidade filantrópica
do Estado da Bahia. Sua fundação, em 1549, confunde-se com a própria história da cidade do
Salvador. Ainda hoje ela pode ser definida como uma irmandade de inspiração religiosa, mas
formada por leigos, independente da igreja e do governo, cujos membros são voluntários, com
espírito associativo, que contribuem com tempo, dedicação e dinheiro. De origem portuguesa,
transplantada para a recém-fundada cidade de Salvador, no Brasil, criada para atender a fins
políticos e administrativos, a SCMB buscou cuidar das muitas necessidades da população da
nova terra.
Todas as ações da Santa Casa eram pautadas em seu Estatuto, chamado de
Compromisso, estruturado em sete ações espirituais e sete corporais, que deviam ser sempre
observadas. Entre as ações da entidade está a de “Ensinar aos ignorantes”, ou seja, propiciar o
conhecimento a outrem. Ao longo de sua atuação na vida da cidade do Salvador, a Santa Casa
acolheu crianças de ambos os sexos, pobres, brancas, mestiças e negras deixadas na porta da
instituição, na Roda dos Expostos
1
. Foi para estas crianças que a Santa Casa criou o Asylo
2
de
Nossa Senhora das Misericórdias, chamado de Asylo dos Expostos. Ali funcionou um espaço
específico de educação, a Escola Interna, universo deste trabalho.
O objeto desta pesquisa é, portanto, a educação prestada pela Escola Interna do Asylo
da Santa Casa de Misericórdia da Bahia a meninos e meninas enjeitados por familiares na
cidade do Salvador, no período de 1862 a 1934.
O marco temporal inicia-se em 1862, quando a instituição organizou-se em novo
imóvel, localizado no Campo da Pólvora, área central da cidade de Salvador, ali instalando o
Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia para receber as crianças abandonadas na Roda dos
Expostos. Estas crianças ocupariam as salas da Escola Interna. O recorte encerra-se em 1934,
quando a instituição extingue as atividades da Roda, ou seja, deixa de receber as crianças
anonimamente ali colocadas, fechando um ciclo de sua atuação.
A História Social é extremamente importante para o estudo, por fornecer o
instrumental necessário ao conhecimento do contexto social, cultural, econômico, político e
1
Dispositivo cilíndrico e giratório, confeccionado em madeira, instalado em um dos muros da instituição, onde
eram depositados bebês enjeitados. Ao girar o artefato, que ligava o exterior ao interior da casa, a criança era
conduzida para dentro, preservando o anonimato de quem ali a colocasse.
2
A grafia Asylo ou Asilo dependerá do documento referenciado.
12
suas relações com os sistemas de valores e as formas institucionais. Este trabalho está
assentado em dois eixos a História Social e a Educação , enfocados no quadro de uma
instituição total como o Asylo, onde as crianças viviam e estudavam.
Não se pode conhecer um objeto dissociando-o de seu contexto. Assim sendo, não se
pode separar a análise social do estudo de seus locais e meios de produção, sistemas culturais
de crenças e valores. Como a história dos povos não é produzida apenas pela cúpula
governante, mas, e muito também, pela participação do cidadão anônimo e comum, que vive
seu cotidiano e nele pode ou não deixar sua marca, o conhecimento da vida cotidiana, em
qualquer corte histórico, é base necessária. Assim, o objetivo geral deste estudo é analisar a
prática pedagógica da Escola Interna do Asylo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
destinada a alunos asilados oriundos da Roda dos Expostos, e avaliar o que propunha para as
crianças do sexo masculino e feminino que acolhia e abrigava.
Desdobrando, tais são os objetivos específicos deste trabalho: reconstruir a história da
Santa Casa de Misericórdia da Bahia no contexto sócio-histórico de Salvador, enfocando suas
obras e sua estrutura administrativa; conhecer o Asylo dos Expostos; conhecer a Escola
Interna, no contexto educacional baiano; identificar e analisar o modelo pedagógico seguido
pela Escola Interna; mostrar o tipo de educação oferecida na Escola Interna; analisar a prática
pedagógica da Escola Interna; saber o que a instituição considerava e defendia como papéis
sociais para homens e mulheres durante os anos que lá permaneciam.
A escolha do tema quase sempre passa por impressões e interesses que tocam
diretamente alguma faceta da vida do pesquisador. Esta pesquisa sobre a Santa Casa de
Misericórdia da Bahia não foge à regra: a instituição sempre esteve muito próxima da vida
pessoal da pesquisadora, pelo fato de ter vivido a adolescência em Cachoeira, histórica cidade
do Recôncavo baiano e lá, no Hospital São João de Deus, da Santa Casa, a figura paterna
trabalhar como médico clínico e pediatra. Mas era um próximo/distante, pelo pouco
envolvimento de uma adolescente com aquele universo destinado às questões de saúde.
O interesse pela Santa Casa de Misericórdia foi, de fato, despertado no período em
que fazia o Mestrado em Saúde Pública, no Instituto de Saúde Coletiva (ISC), da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), cursando a disciplina Políticas de Saúde, com o Prof.
Dr. Ronaldo Jacobina, de quem foi Tirocinante. Para dar cumprimento à tarefa disciplinar,
optou pela pesquisa na Santa Casa de Cachoeira, onde encontrou um rico campo de estudo,
que conciliava o eixo do curso e o interesse pela História Social.
A realização da monografia A Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira e as Políticas
de Saúde foi a abertura de um novo foco de pesquisa que se acentuou com a leitura do
13
trabalho de Russel-Wood (1981), Fidalgos e Filantropos a Santa Casa de Misericórdia da
Bahia, 1550-1755. Desde este momento, muitas e novas leituras foram feitas e todas as tarefas
disciplinares do Mestrado foram focadas na instituição.
Após o Mestrado, o interesse não arrefeceu e, assim, foi conseqüência manter
contato com a Santa Casa de Salvador, a segunda criada no Brasil. Os aspectos históricos,
sociais, políticos e filosóficos que permearam a existência da instituição foram, cada vez
mais, reforçando o desejo de conhecer a origem, motivação, fundamentação, constituição,
enfim, o que se relacionasse com a instituição. Foi ao longo dessas leituras e contatos com
Antonio Ivo de Almeida, Secretário Geral da entidade, que a pesquisadora começou a se
inquietar com a falta de informações sobre as ações educacionais prestadas pela Santa Casa
da Bahia, que se notabilizou pelos serviços voltados para a saúde, especificamente com o
Hospital Santa Isabel.
Ao resolver apresentar um projeto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, para concorrer a uma vaga no
doutorado, não restaram dúvidas em escrevê-lo com o título Asylo N. Srª das Misericórdias –
Educação e a Santa Casa de Misericórdia da Bahia – 1862 a 1934. Contudo, devido à riqueza
de dados sobre as duas escolas do Asylo a Interna e a Externa optou-se pela Escola
Interna, pelo fato de estar visceralmente ligada à vida asilar, em tão estreita ligação que às vezes
não há como dissociar claramente os campos de ação do Asylo e da Escola Interna.
O interesse da pesquisadora pela Escola Interna foi sendo aguçado pelas leituras que
mostravam a matriz cultural de educação da Santa Casa, que era comum às instituições de
assistência, herdada do pensamento português e construída ao longo da vida social. Para
encontrar dados sobre o campo educacional da instituição, foram coletadas e analisadas
informações sobre a vida asilar das crianças enjeitadas (órfãs, legítimas ou não, abandonadas
pelos pais e/ou familiares) e colocadas sob o abrigo institucional, a educação diferenciada
quanto ao gênero, a prática pedagógica e as relações entre as instituições sociais na cidade do
Salvador no período de 1862 (meados do século XIX) até 1934 (meados do século XX),
período de grandes mudanças sociais e políticas.
Com ênfase numa contextualização histórica da Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
o estudo do tema justifica-se pela importância da instituição na história da Bahia e do Brasil.
É relevante resgatar o trabalho educacional formal da SCMB, pois ele poderá contribuir com
mais informações para o Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e para
pesquisadores sobre a história da educação na cidade do Salvador e na Bahia. Num momento
em que os estudiosos e pesquisadores desvelam para o público a importância de se conhecer a
14
história da educação na Bahia, esta pesquisa ampliará o conhecimento sobre a ação
educacional da instituição, que foi ofuscada pelas ações caritativas, até hoje presentes na
memória de muitos, de acolher crianças na casa da Roda dos Expostos e cuidar dos doentes no
Hospital Santa Isabel.
É sabido o quanto o campo da História da Educação é rico e quanto tem despertado o
interesse de pesquisadores que compreendem sua importância e também vivenciam dilemas
entre tendências nos campos teórico e metodológico. Alguns estudiosos como Nóvoa (1991,
1995, 2002, 2005) e Saviani (1984, 2004a, 2004b) consideram que a História da Educação é
um campo consolidado, visto que lida com objetos específicos e regras próprias, ainda que
reconheçam a necessidade de maior aprofundamento epistemológico e metodológico.
Nóvoa (2005, p. 9) defende que a História da Educação existe com a
[...] mobilização rigorosa dos instrumentos teóricos e metodológicos da investigação
histórica. Mas também não há História da Educação sem um pensamento e um olhar
específicos sobre a realidade educativa e pedagógica [...] a teoria sem história é
vazia; a história sem a teoria é cega.
O autor vai além em suas considerações e algumas delas aqui são referenciadas para
fundamentar a justificativa para tal trabalho: “Para que a História da Educação? para
compreender a lógica das identidades múltiplas; para pensar os indivíduos como produtores
de história; para explicar que não há mudança sem história; para cultivar um saudável
ceticismo.” (NÓVOA, 2005, p. 10).
Não existe aqui a pretensão de fazer um trabalho sem retoques, sob o prisma histórico,
visto que a pesquisadora não tem formação em História, nem é especialista no assunto; mais
do que isto, não acredita na possibilidade de trabalhos conclusivos. Do mesmo modo, ainda
que muitos documentos primários tenham sido disponibilizados e consultados, é difícil que
possa extrair deles toda a riqueza de significados, especialmente em se tratando de uma
instituição como a Santa Casa da Bahia. Contudo o presente estudo pode ser considerado uma
contribuição para o conhecimento e divulgação da História da Educação baiana, com a qual a
Santa Casa se entrelaça desde os primórdios da Faculdade de Medicina da Bahia.
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, estudada por vários pesquisadores, sob
diversos enfoques (artístico, histórico, de saúde, acolhimento às crianças enjeitadas, entre
outros), é aqui mostrada pela ótica educacional, talvez sua faceta menos conhecida.
Para compreender o que de fato era a Santa Casa como instituição caritativa, foi
necessário realizar a leitura e analisar o mecanismo de funcionamento do Compromisso, ou
seja, seu Estatuto, que definia objetivos, estrutura e hierarquia administrativa e propostas de
15
ação. É nesse contexto que está inserido o Asylo da Misericórdia, onde as crianças viviam,
estudavam e se preparavam para a vida adulta.
Na intenção de homogeneizar a nomenclatura no tocante às crianças abrigadas no
Asylo e educadas na Escola Interna, ao longo do trabalho elas serão designadas como
expostas ou asiladas, ficando subentendido que são elas as crianças abandonadas e enjeitadas
pelos familiares, conforme linguagem da época.
As crianças acolhidas e sobreviventes no Asylo deveriam, pelas regras do
Compromisso, ser educadas desde os seis anos de idade. A vida ali era balizada por seu
Regulamento, que observava todas as ações cotidianas, prescrevendo formas, periodicidade,
controle, religiosidade e educação. Foi no cenário do Asylo que existiu a Escola Interna,
ambos iniciados em 1862, no prédio do Campo da Pólvora, na cidade de Salvador. Estudar,
refletir e compreender a ação educacional desenvolvida na Escola Interna para os meninos e
meninas asilados foi uma tarefa que levantou muitas perguntas e exigiu concentração para a
obtenção de algumas respostas.
A Escola Interna pertencia a uma instituição de origem portuguesa e adotava a
Educação Tradicional, condizente com a ideologia católica vigente, onde os alunos e alunas,
como sujeitos sociohistóricos e culturais, formavam-se no processo de interações sociais
ocorridas no espaço asilar/escolar, com componentes de vigilância, disciplinamento e poder;
ou seja, a educação oferecida e a prática pedagógica eram determinantes para a reprodução
dos papéis sociais destinados a meninos e meninas.
Neste trabalho, em que a Educação e a História se encontram, existem categorias que
não podem ser minimizadas, destacando-se a criança, já que ela era a figura em torno da qual
as demais se movimentavam no cenário da Escola Interna e do próprio Asylo. Os diversos
aspectos sociais, políticos, religiosos e morais que envolviam a prática educativa desenvolvida
pela instituição refletiam-se diretamente na criança asilada que freqüentava as salas e demais
espaços da Escola Interna.
É importante registrar que, para dar conta dos objetivos propostos, foram escolhidos
como suportes teóricos autores que ajudaram a fundamentar as análises. Optou-se por
trabalhar com eles, à proporção que os dados da pesquisa empírica o exigissem, como forma
de estabelecer o diálogo com cada um, num cotejamento de idéias para melhor interpretar e
explicar os aspectos do objeto de estudo e sua contextualização. A opção de não construir
capítulos teóricos à parte decorreu da intenção de garantir maior dinamicidade ao texto e
valorizar os dados históricos.
16
Alguns autores foram fundamentais, a exemplo de Almeida (1989), com a obra
História da Instrução Pública no Brasil (1500-1889), Nunes (1997), com Educação da Bahia
no Século XIX, Saviani (1984, 2004a), com Escola e Democracia e Educação e Colonização,
e Antonio Nóvoa (2002, 1995), com os trabalhos Formação de Professores e Trabalho
Pedagógico, para o estudo sócio-histórico da gênese e desenvolvimento da profissão docente,
e Profissão Professor, coletânea de trabalhos de vários autores, por ele organizada.
É notória a dificuldade da periodização da história da educação. No presente estudo, a
despeito de limitado a um corte de 72 anos (1862-1934), ocorreram importantes fatos na vida
socioeconômica e política do país e da Bahia, tais como surtos epidêmicos, abolição da
escravatura, Proclamação da República e legislação educacional. Assim, a exposição do
cenário da educação na Bahia que precede e também se relaciona com a exposição sobre a
Escola Interna tem por finalidade contextualizar a estreita simbiose entre sociedade e
educação, ou seja, a cidade de Salvador e a educação propiciada pela Santa Casa de
Misericórdia. Desta forma, levando em consideração que não há uma periodização definida
consensualmente entre os estudiosos para a história da educação, foram utilizados nesta
pesquisa os elementos marcantes da história do objeto em estudo, ainda que seja do
conhecimento de muitos que a educação de qualquer período é a expressão do que, de fato,
está movendo a sociedade, apresentando sua condição histórica, socioeconômica e político-
ideológica.
No que se refere à Educação/ Prática Pedagógica da Santa Casa em sua Escola Interna,
foi abordada sua concepção educacional, decididamente tradicional, embasada nos conceitos
de São Tomás de Aquino, fazendo jus aos pilares cristãos que norteavam as atividades da
instituição. É imprescindível compreender os mecanismos que asseguram a dominação e a
exploração de uns homens sobre os outros e que se traduzem nas relações econômicas,
políticas, sociais, culturais, nas tradições, nos sistemas de valores e nas formas institucionais.
Enfim, a ideologia que perpassa todos os procedimentos institucionais, políticos, policiais,
legais e ilegais utilizados pela classe dominante.
Foram relevantes as obras de autores como Foucault (1988, 1992, 2007), em História da
Sexualidade, Microfísica do Poder, Vigiar e Punir, e Goffman (1974, 1988), com suas obras
Manicômios, Prisões, Conventos e Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade
Deteriorada. Esses autores possibilitaram a compreensão das relações sociais, notadamente as
relações de poder que ocorriam no espaço institucional. Ambos, ao analisarem profundamente
as instituições sociais, ainda que nada tenham escrito especificamente sobre a Santa Casa de
17
Misericórdia de qualquer país, parecem falar sobre ela e seu lastro conceitual, sua proposta de
ação, exercício de poder e controle e dificuldades vivenciadas.
As reflexões indispensáveis sobre a criança, que, a depender do momento histórico e
do contexto social onde vivia, podia ser o centro das atenções, um adulto em miniatura ou
alguém para ser ignorado, foram estruturadas com base em autores como Priore (2000), com
sua obra História da Criança no Brasil, Ariès (1981), com História Social da Criança e da
Família, Venâncio (2001), com Maternidade Negada; o Abandono no Brasil Antigo: Miséria
e Legitimidade e Orfandade, e Marcílio (1998), com História Social da Criança Abandonada.
Para fundamentar a análise sobre a Santa Casa de Misericórdia da Bahia com seu
lastro histórico, filosófico e religioso foram utilizados trabalhos de autores que cuidaram da
temática, a exemplo de Russel-Wood (1981), com sua obra Fidalgos e Filantropos: a Santa
Casa de Misericórdia da Bahia 1550-1755, bem como Ações Sociais da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, de Costa (2001), e ainda a obra A Infância Esquecida: Salvador 1900
a 1940, de Rodrigues (2003).
Vale ressaltar que as questões sobre gênero, ainda que não sejam o foco do trabalho,
pelo fato da SCMB propiciar uma permanência maior das meninas que dos meninos, levaram
a algumas leituras de autoras como Scott (1990), Saffiotti (1991), Passos (1995, 1999),
Fagundes (2005), buscando maior compreensão da temática e mais ampla visão do modo de
vida permitido às meninas e mulheres que viviam e estudavam na Escola Interna e
trabalhavam no espaço do Asylo. As fontes foram imensamente úteis para o entendimento do
processo de fragilização, domesticação e educação feminina, delimitações de espaços de
circulação e inserção na vida social.
Também foram leituras importantes, na busca da caracterização do contexto histórico
sobre a História da Bahia, em que a experiência educacional estudada se deu, as obras Família
e Sociedade na Bahia do século XIX e Bahia Século XIX uma Província no Império, de
Mattoso ([1988], 1992). A leitura possibilitou uma visão do contexto sociohistórico cultural
da Bahia, mais especificamente da cidade de Salvador, urbe singular desde sua fundação, com
processo civilizatório marcado pela influência da Igreja Católica, pela escravidão e pela
miscigenação racial. O aprofundamento buscado no estudo histórico-social da conjuntura
brasileira, mais especificamente baiana, visou contribuir para a compreensão de como foram
sendo criadas, cristalizadas e modificadas as modalidades de prestação de cuidados aos
“desvalidos” dentro da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, num aprofundamento propiciado
também pelo conhecimento da filosofia da educação, com análise dos valores então vigentes,
das relações de poder e sua reprodução.
18
Como já citado, a proposta deste trabalho não é visibilizar isoladamente a história da
Escola Interna, até porque não existiu dissociada de um contexto sociohistórico-cultural, mas
elucidar a realidade cotidiana que se impunha aos pensamentos e comportamentos dos
indivíduos que nela atuavam. Para dar conta de uma proposta desta natureza, o método
escolhido segue as definições e aportes teóricos da História das Mentalidades, pela ênfase e
valorização concedidas à história do dia-a-dia, à fala ou ao silêncio do ser humano comum,
assim como aos processos econômicos, às relações que se estabeleciam entre os indivíduos e à
forma como os discursos eram feitos.
Visando o entendimento dos fatos e eventos históricos em seus específicos níveis de
temporalidade e ritmo, foi buscado o aporte da Escola dos Annales
3
, mais precisamente na
História das Mentalidades ou História da Época, útil para a compreensão do tema proposto
nesta tese, visto que ela leva em conta elementos importantes como o cotidiano e as relações
sociais. Esse caminho de entendimento é defendido por autores como Braudel (1990) e Le
Goff (1994) que, sozinho ou com a parceria de Pierre Nora (1976), mostra que é passível de
compreensão a estrutura da sociedade e a cultura como realidade socialmente partilhada. A
influência da Escola dos Annales, ao priorizar a pesquisa científica interdisciplinar sobre a
história humana, traçou, definitivamente, novos caminhos para o conhecimento da sociedade.
No contexto de interpretação dos acontecimentos, abre-se um diálogo com as demais Ciências
Humanas, dando vez e voz à sociologia, economia, lingüística, antropologia e psicologia,
fazendo uso da interdisciplinaridade.
Ao deixar de lado os estudos firmados em meras narrativas, em que os protagonistas
eram sempre os indivíduos considerados socialmente importantes, a Escola dos Annales
valoriza a alteridade humana, compreendendo que os sujeitos produtores e receptores de
cultura assim como a leitura do passado têm como ponto de partida o tempo presente, não se
devendo acatar prontamente toda a homogeneidade.
Ainda que não se tenha a pretensão de teorizar sobre a História das Mentalidades, que
se remete à primeira metade do século XX, por ser sobejamente conhecida por todos os que se
interessam por aspectos antes não tão explícitos na vida cotidiana das sociedades, vale
registrar que essa abordagem histórica possibilitou o entendimento de elementos, tais como os
3
A Escola dos Annales teve seu início com os textos publicados no periódico de Bloch e Febvre, Annales
d'Histoire, Economique et Sociale, uma publicação de 1929 que, pela gama de conhecimentos transmitidos,
deu origem à Escola dos Annales, tal a relevância na revisão da abordagem dos fatos históricos. A publicação
existe até hoje sob o nome de Annales, Economies, Societés. As lições apresentadas pelos Annales
impulsionaram o movimento da Nova História. Vale ressaltar que as divergências conceituais entre
pensadores da citada escola, resultantes de reformulações e revisões ao longo do tempo, extrapolam a proposta
deste trabalho de pesquisa.
19
hábitos, ritmos, valores, crenças e costumes. Numa rápida revisão do conceito de História das
Mentalidades, Vovelle (1987, p. 16) diz que se trata de uma “[...] história das atitudes, dos
comportamentos e das representações coletivas inconscientes: a criança, a mãe, a família, o
amor e a sexualidade [...] a morte”, conceito que se constitui com uma amplitude maior que o
de ideologia, já que, segundo o referido autor, ele “[...] integra o que não está formulado, o
que permanece aparentemente como ‘não significante’, o que se conserva muito encoberto ao
nível das motivações inconscientes. Daí a vantagem, talvez, dessa referência mais maleável
para a História total” (VOVELLE, 1987, p. 19).
Contudo não se pode pretender conhecer um dado momento histórico sem, de fato,
tentar compreender como os indivíduos pensavam acerca da estrutura mental que dispunham
sobre si mesmos enquanto agrupamento social, que tem uma psicologia e representações
sociais coletivas (MANDROU, 1979 apud VOVELLE, 1987). Este autor argumenta que os
indivíduos não podem ser compreendidos fora de seu grupo, suas circunstâncias e influências,
enfim, do referencial conceitual/visão de mundo que eles utilizam na vida cotidiana, em seu
comportamento na vida social.
Ao valorizar a compreensão das estruturas invisíveis à cronologia dos eventos,
Braudel (1995 apud FLORES, 2005) reconhece que existem tempos históricos, durações
existenciais, ritmos e temporalidades que se mesclam e nessa tessitura os indivíduos fazem e
vivenciam a história. Braudel (1995 apud FLORES, 2005) pensa primeiro uma história de
tempo extensivo (longa duração), que reconhece três dimensões temporais: a geográfica, que
representaria uma história quase imóvel e analisa a relação do homem com seu meio
ambiente, fundamentado na compreensão de que no meio físico podem ser encontradas causas
que estabelecem características de uma coletividade e as mudanças não estruturais nas
relações sociais; a social, história lentamente ritmada, que procura explicar a conjuntura
econômica, as instituições políticas e os avanços científicos que também provocam mudanças;
a individual, a história não do homem como coletividade, mas do homem como indivíduo, em
cujo plano as variações são rápidas e o tempo muito dinâmico.
Para Braudel (1990, p. 10), a História é um aspecto da realidade social que extrapola
o conceito tradicional de estudar apenas fatos pequenos ou grande, mas sempre finitos e bem
delimitados: a alteração do tempo histórico tradicional ganha nova concepção, “[...] muito
superior a sua própria duração”. Em sua reflexão a respeito da dialética do espaço e do tempo,
ele elabora a análise da pluralidade de durações. Assim sendo, mesmo que os acontecimentos
se esgotem, eles extrapolam seu tempo de existência e duração e podem ser estudados para a
compreensão da realidade.
20
Outro dado importante na História das Mentalidades, considerado neste trabalho
acadêmico, é o respeito ao universo vocabular dos indivíduos que se pretende conhecer. A
despeito de qualquer argumentação de que a linguagem registrada nos documentos seja
contaminada por interesses e/ou pensamento do autor e não indique plenamente a realidade do
objeto ou seres descritos, no presente trabalho optou-se por trazer à luz textos originais, com a
grafia da época, como forma de oferecer mais um elemento para a análise do tema.
A pesquisa sobre o cotidiano e o papel social de uma escola que atendia crianças
pobres e sem famílias na cidade de Salvador, na segunda metade do século XIX e primeira
metade do século XX, traz consigo componentes instigantes e também elementos que
passariam desapercebidos ou deliberadamente ignorados.
Partindo da idéia de que a pesquisa é ato político, foi feita uma leitura dos dois séculos
(da metade do XIX até meados do XX), analisando a documentação dentro de seu contexto
histórico, buscando compreender os mecanismos socioculturais de então e, assim, a
mentalidade da época. Foram estudados os fatos e não é lógico dispensar as descrições e
interpretações sobre a realidade social, a qual, por si só, é um texto a ser lido e interpretado,
tendo que redobrar a atenção com conceitos ou visões preconceituosas ou romantizadas sobre
algumas questões, tais como ideologia, inclusão social, gênero, entre outras, que podem
esconder simplificações e paradoxos.
A metodologia escolhida permite considerar como protagonistas os sujeitos que
produzem, reproduzem e consomem a cultura de sua sociedade e abriga diferentes formas de
tratamento dos objetos, tais como práticas, processos e padrões, definindo um recorte
privilegiado e possibilitando abordagem extensiva das fontes de informação.
Esta é, pois, uma pesquisa histórica. Para o seu desenvolvimento, optou-se pelo estudo
de caso, com definidos recortes de temporalidade e espacialidade, em que a mentalidade
vigente na Santa Casa de Misericórdia da Bahia se apresentava no cotidiano da Escola Interna
do Asylo, considerando seu contexto socioeconômico e cultural. O estudo de caso é aqui
entendido, na perspectiva de Yin (2001, p. 35), como “[...] uma maneira de se investigar um
tópico empírico seguindo-se um conjunto de procedimentos pré-especificados”.
Para o autor citado, as características tecnicamente importantes do estudo de caso
podem ser apresentadas de duas maneiras:
O estudo é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo
dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o
fenômeno e o contexto não estão claramente definidos.
[...]
21
A investigação de estudo de caso enfrenta uma situação tecnicamente única em que
haverá muito mais variáveis de interesse do que pontos de dados, e, como resultado,
baseia-se em várias fontes de evidências, com os dados precisando convergir em um
formato de triângulo, e, como outro resultado, beneficia-se do desenvolvimento
prévio de proposições teóricas para conduzir a coleta e a análise de dados. (YIN,
2001, p. 32).
Pode-se dizer que o estudo de caso, na perspectiva do autor citado, é utilizado quando
as condições contextuais são extremamente significativas para entender o fenômeno
pesquisado, porque ambos estão completamente imbricados. O estudo de caso configura-se
como uma estratégia de pesquisa que compreende um método abrangente, uma vez que deixa
evidente a sua lógica de planejamento, definindo o formato da coleta de dados e sua análise.
A coleta de dados desta pesquisa será relatada mais adiante.
No caso em estudo, a Escola Interna, visceralmente parte do Asylo dos Expostos,
necessita da contextualização da Santa Casa e da vida da cidade de Salvador para ser
compreendida. Desta forma, o estudo da Escola Interna permitiu o levantamento de dados no
campo da educação, política, religiosidade, ideologia, etc., que, por sua importância,
mereceram análise cuidadosa.
Para Vieira, Peixoto e Khoury (1991) é preciso que o pesquisador utilize outras
disciplinas para trazer à tona mais elementos da realidade do objeto, favorecendo seu
entendimento. Destacam que a recuperação do passado, ainda que sofrendo interferência da
subjetividade do pesquisador, é uma representação construída com base em evidências e que a
compreensão desse passado pode questionar e/ou modificar a compreensão do presente que,
por sua vez, pode modificar a compreensão do passado.
Foi feita uma pesquisa documental, principalmente do Arquivo da Santa Casa de
Misericórdia de Salvador. No presente estudo, as fontes documentais da instituição, muitas
delas seriadas e anuais, foram significativas para o entendimento do objeto pesquisado, na
medida em que possibilitaram o conhecimento da atuação, transformações, posturas
institucionais e suas relações com as redes sociais. Assim sendo, foram lidos e analisados os
Compromissos da Santa Casa de Misericórdia (1618 e1896 referentes ao período deste
estudo, mas também os Compromissos de 1958, 1966, 1983, 1996 e 2002), documentos
oficiais que enunciam objetivos, normas e regras que pautavam a vida da instituição.
Também foram lidos os Regulamentos do Asylo (de 1863 e 1914), para a
compreensão sobre acolhimento e educação das crianças expostas, rotina interna e utilização
dos espaços físicos e diversos tipos de funções dos empregados e voluntários. Os Relatórios
anuais ou bianuais dos Provedores, a partir de 1862, sendo o primeiro de 1863 até 1934,
22
mostram a realidade dos diversos estabelecimentos da instituição, ou seja, de todo o
conjunto da Santa Casa, possibilitando uma visão sobre o cotidiano institucional. Os Livros
de Atas possibilitaram uma visão sobre a dinâmica dos requerimentos (sobre patrimônio,
contratação e demissão de pessoal, proteção e educação das crianças, destino pós-
institucional, entre outras informações) encaminhados à Mesa Administrativa, bem como as
deliberações e decisões tomadas. Outro material importante foi o Livro de Empregados,
para o acompanhamento de admissão, permanência, vencimentos, licenças e dispensa do
pessoal contratado. Igualmente válidas foram as leituras das correspondências e Ofícios
expedidos e recebidos alguns manuscritos , pois ali estão importantes dados
intrínsecos da instituição, envolvendo procedimentos administrativos, religiosos, sociais,
políticos e financeiros.
Desta forma, a fonte de dados deriva basicamente de documentos primários.
Documentos não são “inocentes”, pois, como disse Le Goff (1994, p.30), qualquer documento
[...] é produzido consciente ou inconscientemente pelas sociedades do passado, tanto
para impor uma imagem desse passado, quanto para dizer a verdade [...] todo
documento é um monumento e como tal nunca é puramente objetivo, na medida em
que são previamente construídos, planejados e arquitetados com interesses de
determinados grupos, apresentando paradoxos e antíteses. Dessa forma, deve ser
analisado, descosturado e desmontado.
Partindo da idéia de que todo documento possui uma intencionalidade, ele também
revela em sua narrativa a mentalidade dos indivíduos de cada tempo, refletindo uma interação
intersubjetiva. Em concordância com o pensamento de Ariès (1995), a análise histórica de
documentos possibilita a compreensão da estrutura mental e social, torna perceptível a
organização social, os modelos de socialização dos indivíduos e como estes constroem sua
subjetividade, bem como as práticas sociais comuns a toda sociedade, num dado momento
histórico.
De acordo com Vieira, Peixoto e Khoury (1991), para os historiadores da Escola dos
Annales houve uma ampliação da noção do que seja documento, pois, como documentos não
são apenas coisas escritas em papéis guardados em arquivos e museus, as fotos, imagens
sacras e o próprio espaço físico onde funcionou a Escola Interna são aqui considerados
documentos e mereceram atenção e análise.
O Arquivo da Santa Casa foi vital para o conhecimento da Escola Interna. Nos
documentos foram encontradas informações sobre o cotidiano da escola, sua proposta
educativa, sua ideologia e sua prática pedagógica, ponto fulcral deste trabalho, que busca dar
23
visibilidade a uma ação educacional que, mesmo não sendo sua missão principal, foi
responsável por levar meninos e meninas para a trilha do conhecimento formal e da
aprendizagem de um ofício que lhes assegurasse a sobrevivência digna.
O cotidiano vivido pelos alunos e alunas da Escola Interna foi revelador de como as
relações de produção, de dominação e poder, influíram de forma poderosa e sutil no modo de
vida das crianças e jovens que viviam no Asilo, uma instituição que se enquadra no conceito
de Goffman (1974) de Instituição Total, ou seja, local onde as pessoas desempenham todas as
suas funções e papéis, pois ali vivem, se relacionam, estudam, trabalham. As análises do autor
embasaram muitas das considerações sobre o modo de vida dos alunos da Escola Interna,
fosse no tocante ao modo de vida asilar, fosse na configuração do estigma, muito útil para
ajudar a entender a estigmatização que recaía sobre as crianças enjeitadas.
As práticas e os discursos são elementos imprescindíveis para o entendimento da
estrutura da sociedade. Assim sendo, foi importante atentar para a utilização da linguagem
usada nos documentos, pois é por meio dela que o indivíduo tem seu acesso facilitado ou
impedido à posse do conhecimento e dos signos, à posse de si mesmo e à plena vida social.
Na linguagem não podem ser ignoradas ou menosprezadas as relações de poder, perpassadas
por interesses diversos, notadamente num aparelho como um asilo de enjeitados.
Na Escola Interna, a ocupação do locus pelos alunos e demais pessoas integrantes da
instituição, de acordo com o pensamento vigente, era nítida e deliberadamente estratificada:
segregados por raça, gênero e classe social, fortemente dirigido por cérebros e mãos masculinas,
o poder era algo vital e, numa casa de ensino, ele deveria ser exercido nos menores detalhes. A
disciplina, segundo Foucault (2007, p.143), “[...] fabrica indivíduos, pois é técnica específica de
um poder que tem os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu
exercício”. Certamente, ainda de acordo com Foucault (2007, p.143), “[...] o poder tem a função
de adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” e “[...] é no ensino primário onde o
aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles”
(FOUCAULT, 2007, p.140). Sob o constante olhar do disciplinador, existia o que o autor
chamou de “biopoder o poder sobre a vida”, sob as mais variadas formas, e este determina as
relações entre as pessoas, dividindo-as entre dominantes as que detêm o conhecimento e
aquelas para quem o saber é um templo lacrado.
Foram igualmente lidos e analisados os Relatórios da Instrução Pública do Estado da
Bahia a partir de 1871 até 1928, da Inspetoria Geral da Hygiene e do Instituto de Proteção e
Assistência à Infância da Bahia, pois o Estado, no exercício de seu controle, estendeu suas
ações até a Santa Casa, conseqüentemente, ao Asylo e à Escola Interna. No micro-universo da
24
Escola Interna chegava o olhar fiscalizador do Estado que, personificado em seus agentes
inspetoriais, realizava visitas, registrava suas impressões, exigia informações sobre o
funcionamento da sala de aula, como identificação dos professores, número de alunos, mapa
de freqüência mensal, estado sanitário da casa, condições de saúde dos alunos e resultados de
exames de conhecimento.
A documentação primária precisava ser explorada de forma crítica, para que não
resultasse num amontoado de dados, já que o objetivo era realizar uma pesquisa devidamente
norteada por princípios, conceitos, categorias e fundamentações consoantes ao tema e à
metodologia escolhidos. Contudo documentos que seriam úteis para melhor compreensão da
Escola Interna não foram encontrados
4
, tais como relação nominal dos alunos, cadernetas de
aulas, boletins e regulamento escolar. Diante disto, seguiu-se os preceitos da Nova História,
que ampliou a noção de documento, tal como exposto por Febvre (1989 apud LE GOFF,
1994, p. 540):
[...] a História faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem.
Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem.
Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu
mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas.
Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem
dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as
análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que,
pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem,
demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.
O homem, como ser social, é quem faz a História. É na busca retrospectiva que
podem ser achados os indícios e os dados fundamentais para o olhar crítico e investigativo,
voltado para o verdadeiro cerne da questão, de forma a responder às perguntas formuladas
nesta tese. Como pesquisa é ato político e a realidade é um texto a ser interpretado, não se
pode pretender o conhecimento da problemática educacional da Bahia, no final do século
XIX, sem uma análise histórico-social; é indispensável que tamm se reconheça a dupla
dimensão social e política da Educação, reflexão cada vez mais importante para a
compreensão da realidade, num país como o Brasil, com longa tradição de poder centralizador
que, muitas vezes, ao distorcer a envergadura dos problemas, não atenta sobre as
possibilidades de soluções primordialmente localizadas.
4
De acordo com as informações da responsável pelo Arquivo da Santa Casa, Drª Neusa Esteves, não foram
encontrados tais documentos durante o processo de ordenamento e catalogação.
25
Para estudar a prática pedagógica da Escola Interna do Asylo, todos estes campos do
saber interagiram, se fizeram presentes nas análises daquele pequeno universo, cujas ações
eram direcionadas aos alunos (crianças e jovens de ambos os sexos) que, criados na
instituição, estudaram em sua Escola Interna. Trata-se, pois, de um estudo analítico, de
natureza qualitativa na coleta e análise dos dados históricos. O trabalho obedeceu a fases
definidas, objetivando o aprofundamento das questões teóricas e empíricas.
Na fase inicial, ou seja, na coleta dos dados, foram identificadas as fontes documentais
sobre a instituição. Assim sendo, o primeiro local pesquisado foi o próprio Arquivo da
SCMB, instalado no prédio do antigo Asylo, no Campo da Pólvora, onde se encontram os
elementos primordiais utilizados neste estudo. Os documentos Estatuto original e as
alterações; Regulamentos do Asylo (1863 e 1914); Registros; Atas, Relatórios, Inventários e
Testamentos de Provedores, Tesoureiros e Irmãos; Balancetes e comunicações internas, entre
outros forneceram dados indispensáveis para o conhecimento do funcionamento da
instituição, bem como da visão, propostas e ações desenvolvidas por seus integrantes.
O aprofundamento de questões teóricas e empíricas buscou considerar, com referência
ao espaço físico: estrutura, localização das salas, condições de uso e adequação, sistema de
permanência e circulação, equipamentos e recursos disponíveis, decoração, possibilidades de
mudanças, entre outros. No tocante ao alunado: procedência, cor, sexo, portador ou não de
necessidades especiais; critérios para distribuição em salas, critérios de entrada e saída ou
conclusão dos estudos. Quanto aos professores, foi levado em conta: sexo, idade, origem, se
houve indicações ou seleções para o cargo, período de permanência, relacionamento com o
alunado, causas de desligamento, mobilidade, entre outros. Também foram pesquisados
mestres de ofício e de música. Com relação à parte pedagógica, buscou-se conhecer:
currículo, programas, método de ensino adotado, sistema de acompanhamento da
aprendizagem, cadernetas de classes, tabelas de horários de aulas regulares e de oficinas,
avaliação da aprendizagem, atas de exames, sistema de premiação e punição, promoção ou
não de contatos com o mundo exterior, atividades religiosas e de lazer e ocorrências fora da
instituição que causaram interferência em sua rotina.
Também foram pesquisadas as demais pessoas envolvidas diretamente na vida
educacional da instituição Corpo Administrativo, Mordomo, Superiora, Irmãs de Caridade,
Capelão, pessoal da área de saúde, censores, ajudantes de disciplina, administradores , para
saber como atuavam e como se relacionavam com os alunos.
26
Como os dados referentes à Escola Interna constam em diferentes documentos, tais
como Atas, Relatórios, Livro de Empregados, entre outros, foi necessário elaborar fichas de
catalogação para facilitar a busca dos registros e oportunizar a criação de novas categorias.
Ainda nesta fase ocorreu a digitalização de documentos que poderiam figurar nos Anexos da
pesquisa como elementos ilustrativos e informativos. É importante registrar que a leitura de
outras fontes impressas, tais como jornais da época Monitor Católico, Mensageiro da Fé,
Diário da Bahia e Diário de Notícias
, além de fontes manuscritas, como as Ocorrências
sobre a Instrução Pública, contribuíram para a ampliação da circunstancialização e
compreensão do universo estudado.
A fase seguinte, a análise das informações, configurou-se na classificação do material
coletado de acordo com a tipologia e a cronologia dos documentos, como, por exemplo, os
Relatórios, que são fontes seriadas.
5
Na organização das informações, buscou-se, na medida
do possível, identificar e selecionar as ações correspondentes ao processo educacional
circunscrito à sala de aula e o que se concentrava nas demais ações educativas extra-sala, pelo
simples fato de que o processo educativo não fica restrito ao espaço escolar. Muitos dados
encontrados exigiram atenção devido à tênue linha que separava as ações ou aos fortes traços
de ligação entre o Asylo e a Escola Interna. Igualmente importante foi o estabelecimento das
relações entre os dados. Ainda que a pesquisa não estivesse centrada em dados quantitativos,
alguns deles foram referenciados para melhor fundamentar a análise qualitativa da ação
educativa da Escola.
Na terceira fase do trabalho foi feita a estruturação do conteúdo da pesquisa.
O trabalho está estruturado em quatro capítulos organizados numa seqüência lógica,
visando abordar o objeto estudado dentro de um contexto que favoreça sua compreensão e
análise, valorizando as fontes primárias e o diálogo com o pensamento dos autores que dão o
suporte teórico. No primeiro, A Santa Casa da Bahia e seu Contexto Histórico, o assunto é
apresentado em três seções que discorrem sobre a criação da instituição na cidade de
Salvador, seu objetivo, clientela, pressupostos filosóficos, disciplinares, assistenciais e
religiosos, uma contextualização histórica, social, política; o corpo de pessoal e a
Administração; as obras realizadas nos campos da saúde, assistência social e educação. A
exposição sobre a cidade de Salvador, sua construção e consolidação tem a intenção de
5
A Santa Casa utilizava a denominação Anos Administrativos nos Relatórios, que se iniciavam em 1º de julho e
findavam em 30 de junho do ano seguinte. Tal formatação se manteve até 1892, quando o período
administrativo passou a ser de dois anos, começando em janeiro.
27
mostrar o contexto histórico, os momentos importantes vividos pela população, possibilitando
maior compreensão do cenário histórico e cultural da cidade na qual foi erguida a instituição.
O segundo capítulo, intitulado O Asylo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
aborda dois aspectos: a contextualização físico-histórica do Asylo e seu espaço escolar; e
Retrato da Gente do Asylo, seção que lança o olhar sobre atores sociais da instituição, tais
como a criança exposta e futura aluna da Escola Interna, mordomos, religiosas, auxiliares,
médicos e outros atores. Ainda que a importância do Asilo extrapole a apresentação feita
neste trabalho, ela se faz necessária para visibilizar o quanto ele era significativo para a
instituição e para a sociedade baiana.
O capítulo terceiro, como indica seu título, trata da Escola Interna do Asylo de Nossa
Senhora das Misericórdias. Tem início com uma abordagem sobre o contexto educacional
baiano, trazendo uma reflexão sobre as leis educacionais, avanços e dificuldades vivenciadas
no recorte temporal em tela. A Educação Tradicional, que norteava as ações educativas do
período, é mostrada em suas especificidades, características e finalidade, bem como as
relações entre a religião, o ensino e o poder. No tocante à Escola Interna, é mostrada sua
criação, finalidade e clientela, o cotidiano escolar vivido por meninos e meninas, o pessoal
docente, ou seja, as pessoas que se encarregavam do trabalho educativo na instituição, bem
como lazer, saídas e visitas, além de tentar propiciar uma compreensão de como o mundo
extra muros via o Asylo.
O quarto capítulo, intitulado Prática Pedagógica da Escola Interna, analisa a Proposta
Pedagógica da instituição, a relação ensino-aprendizagem, objetivos, corrente pedagógica e
metodologia adotados, fundamentos filosóficos, religiosos e morais, currículo, disciplina e
sistema de avaliação dos conhecimentos formais adquiridos em salas de aula.
Nas Conclusões são apresentadas as considerações e observações sobre os diversos
aspectos do tema que foram abordados ao longo dos capítulos, enfatizando as formas como a
Escola Interna efetivou sua prática educativa para meninos e meninas expostos. Buscou-se
configurar criticamente as relações existentes no material coletado, visando exceder uma
simples compilação de dados, ou seja, procurou-se realizar um trabalho que permitisse um
avanço na elaboração do conhecimento sobre o tema proposto.
Como disse Le Goff (1994, p.45): “A história caminha mais ou menos depressa,
porém as forças profundas da história só atuam e se deixam apreender no longo do tempo.”
Assim sendo, diante da organização e da riqueza do arquivo da instituição, é possível que
muito venha a ser conhecido sobre a Escola Interna em novas pesquisas realizadas. Até lá,
este trabalho poderá contribuir com a história da educação baiana, que ainda é lacunar, não
28
obstante o esforço empreendido por alguns pesquisadores que se interessam por desvendá-la,
resgatando informações preciosas para a elaboração consistente do quadro educacional baiano
que, em sua singularidade, tem muito a ser conhecido, registrado e oferecido a novos e
antigos estudiosos.
29
Edifício sede da Santa Casa, na Rua da Misericórdia – Salvador
Foto- Antonio Ivo de Almeida
30
1 SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA E SEU
CONTEXTO HISTÓRICO
“A memória, onde cresce a história, que por sua vez a
alimenta, procura saber o passado para servir o presente e o futuro.
Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a
libertação e não para a servidão dos homens.”
Le Goff (1
994, p. 26)
1.1 CRIAÇÃO DA SANTA CASA DA BAHIA
A Santa Casa de Misericórdia é uma instituição secular, com forte presença na história
do Brasil e da Bahia. Destaca-se por sua importância no cenário baiano nos períodos colonial,
imperial e republicano. Para melhor compreender a Misericórdia na Bahia é oportuno um
retrocesso temporal com sucinta apresentação da cidade de Salvador, onde ela foi fundada,
urbe criada para ser sede de governo geral. Tal exposição serve de pano de fundo para que se
possa, de fato, dimensionar os princípios norteadores das ações caritativas, religiosas e
educacionais da instituição que sempre ocupou importante lugar na sociedade.
A criação da Misericórdia em Salvador é apresentada considerando o surgimento da
instituição no contexto do império português, sua história, pressupostos filosóficos, sociais,
políticos e religiosos que a compõem e que a levaram a realizar várias obras. A contextualização
da Santa Casa de Misericórdia da Bahia (SCMB)
1
é necessária, partindo do imbricamento entre
a cidade e a instituição, que não pode ser compreendido sem a conexão com o universo do
Estado da Bahia, notadamente a área do Recôncavo, e também com os fatos de caráter nacional
e internacional que se refletiram no cotidiano de homens e mulheres de diferentes etnias que
teceram seu tecido social, construíram e legaram uma cidade plurifacetada.
A apresentação da Santa Casa da Bahia comporta, além de seus objetivos, as
características, estrutura de poder e aspectos administrativos, para um melhor
dimensionamento do campo social que está delimitado especialmente entre o período de 1862
a 1934, corte temporal deste estudo.
1
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia (SCMB) não pode estar ausente de qualquer estudo sobre a História
baiana e do Brasil. A sua real e ampla dimensão como elemento que contribuiu para o processo de formação
da colônia portuguesa requer larga pesquisa que excede os limites de um trabalho acadêmico que busca
conhecer os serviços de educação prestados por ela, a partir da segunda metade do século XIX até 1934.
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A despeito das muitas e importantes vertentes de atuação da Santa Casa de Misericórdia
da Bahia na área da saúde e da assistência aos desvalidos, o enfoque central deste estudo
consiste em sua ação educativa, ou seja, a educação oferecida, dentro de seu espaço, sob sua
orientação e por ela custeada, a crianças enjeitadas pelos pais ou algum familiar.
1.1.1 Cidade de Salvador
A Santa Casa da Bahia foi fundada em Salvador, cidade que já nasceu capital, com
função político-administrativa, concebida para ser sede do Governo Geral em 1549, sob o
comando de Tomé de Souza. Da mancha-matriz, na parte alta da povoação, espalharam-se
ruas e prédios públicos, administrativos, militares e religiosos, elaborando traçados estreitos e
singulares, no esforço da criação de um núcleo urbano, demarcador e produtivo.
A feição da cidade ia se modificando: apenas dez anos após a fundação, pelo Alvará
de 29 de março de 1559, o Rei D. Sebastião decidiu atender aos pedidos formulados em 1533,
pelo donatário da capitania de São Vicente, e em 1539, pelo donatário de Pernambuco,
permitindo que trouxessem do Congo até 120 peças de escravos para cada um deles (FOLHA
DE SÃO PAULO, 1997). Os africanos escravizados trabalharam nos engenhos, onde moíam a
cana-de-açúcar trazida por Martim Afonso de Souza, cujo plantio foi iniciado em 1532.
Assim, esse período da história baiana é marcado pelo início do tráfico de escravos, o qual,
segundo Verger (1987, p.9):
[...] pode ser dividido em quatro períodos: ciclo da Guiné, durante a segunda
metade do século XVI; o ciclo de Angola e do Congo no século XVII; o ciclo da
Costa da Mina durante os três primeiros quartos do século XVIII e, por fim, o ciclo
da baía de Benin entre 1770 e 1850, estando incluído aí o período do tráfico
clandestino.
Desse modo, em terras brasileiras, passaram a conviver as três etnias (branco, índio e
negro), que se misturaram e viveram entre si relações desiguais de poder, exploração,
dominação e lutas, participando, ao longo dos anos, da consolidação da cidade e de suas
instituições.
Quase no final do século, precisamente em 1763, mesmo com a perda do posto de
capital para o Rio de Janeiro, Salvador continuou como metrópole regional. Inevitavelmente,
os problemas também se faziam presentes, inclusive os infra-estruturais, como poucas
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moradias para uma população que não dispunha de significativo poder econômico para
enfrentar a concentração de propriedade.
Ainda que este trabalho não prime pela análise demográfica, vale a apresentação do
quadro populacional como elemento facilitador da compreensão dos aspectos socioeconômicos
e comportamentais dos indivíduos que viveram em Salvador entre 1862 e 1934.
É interessante começar com uma referência ao livro Bahia Século XIX – uma
Província no Império, de Kátia Mattoso (1992), que traz uma ampla análise sobre “O peso
dos homens”, ou seja, sobre a questão populacional da província da Bahia origens, matizes
raciais, distribuição por gênero, idade, freguesia religiosa etc. , com variações entre os
resultados obtidos e analisados por diversos pesquisadores. Nele é referenciado o primeiro
recenseamento da Bahia, realizado em 1759, a mando do 6º Conde dos Arcos, então vice-rei e
capitão-geral, num trabalho que não incluiu crianças menores de sete anos, monges e outros
integrantes de ordens religiosas, bem como índios residentes em aldeias administradas por
padres. O levantamento populacional realizado no período de 1780 a 1872, pela forma como
foram coletados e avaliados os dados, de modo fantasioso, com tendência a superestimar o
número de habitantes, foi, segundo Mattoso (1992, p. 82), “[...] de avaliações imprecisas”.
Salvador estava estruturada, no século XIX, com base nos critérios de prestígio social,
nível de renda e poder político, tendo em seu topo os ricos e poderosos senhores de engenho,
grandes negociantes, funcionários do Estado, da Igreja Católica e militares de alta patente;
logo em seguida estavam colocados os funcionários intermediários do Estado e membros da
Igreja, profissionais liberais, comerciantes, mestres-artesãos, agiotas e cidadãos que viviam de
aluguéis de casa ou escravos; no terceiro escalão situavam-se os funcionários públicos
menores, militares, profissionais liberais de reduzido prestígio social, quitandeiros,
taverneiros e ambulantes. Na base de tudo isso estavam os escravos, mendigos e vagabundos.
Nessa estrutura social havia a possibilidade de mobilidade dentro e entre os grupos, a
depender de eficientes e importantes padrinhos, casar com pessoas de pele clara e possuir
educação formal. Enfim, era preciso saber identificar, escolher e percorrer os caminhos
socialmente aceitos (MATTOSO, 1992).
No período de 1862-1934, a Bahia já tinha vivenciado a extinção do tráfico negreiro,
ocorrido em 1850 (Lei Eusébio de Queirós) e havia sido visitada por estrangeiros, a exemplo
de James Wetherell e Maria Graham
2
, que comentaram as belezas naturais, mas criticaram
2
James Wetherell, ex-consul britânico, viveu muitos anos na Bahia. No século XIX, escreveu o livro
Apontamentos Sobre a Bahia. Maria Graham, escritora inglesa, visitou o Brasil no século XIX e escreveu o
Diário de uma Viagem ao Brasil, publicado em 1824.
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acidamente a falta de pavimentação, de planejamento sanitário e a sujeira da cidade; estes
fatores, sempre subestimados pela população e pelos administradores, foram seriamente
considerados quando ocorreram as epidemias de febre amarela (1849-1854) e colera morbus,
em 1855, moléstia reincidente a partir de 1861, com espaçamentos até 1879. É digno de
registro que até 1852 a cidade não dispunha de um regular e eficiente serviço de
abastecimento de água, o que levava as pessoas a buscarem-na nas fontes e chafarizes
públicos ou com os aguadeiros, como no tempo da colônia. Com a criação da Companhia do
Queimado
3
a situação teve uma melhora, inclusive com a criação de pennas d´água para a
venda de água (VASCONCELOS, 2002).
Conforme Mattoso (1992, p. 487): “Salvador, no século XIX, via-se à mercê de um
mercado internacional caprichoso e tinha sua atividade de exportação prejudicada pelo
transporte deficiente dos produtos na Província.” A segunda metade do século registra as
mudanças do mercado exterior, a latente decadência do ciclo da cana-de-açúcar com a perda
do primeiro lugar na produção nacional do açúcar, o deslocamento das rotas comerciais de
Salvador e cidades do Recôncavo pela Baía de Todos os Santos e pelas novas estradas que
conduziam as riquezas da terra para a comercialização e o consumo (MATTOSO, 1992).
É importante comentar como eram os homens e mulheres que integravam a população
de Salvador no final do século XIX, quais posições ocupavam e quais papéis desempenhavam
numa sociedade que ainda colocava em lugares distintos os homens e as mulheres, cabendo
aos primeiros a ocupação dos espaços públicos e à mulher o espaço privado, do lar. Assim, o
comportamento da mulher incluía as ações e trabalhos que a sociedade permitia e incentivava
como condigno, observando-se os aspetos morais considerados importantes. Deste modo, na
cidade de Salvador, homens e mulheres de diferentes “cores” e condições sociais,
trabalhavam, miscigenavam-se e reproduziam-se, o que pode ser mostrado nos quadros do
primeiro recenseamento oficial, datado de 1872.
Tabela 1 – Constituição da população masculina de Salvador – 1872
Fonte: Mattoso (1992, p. 123-124).
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Companhia do Queimado empresa responsável pelo abastecimento de água na cidade de Salvador.
Ano Branco Negro Mulato Caboclo TOTAL Negro Mulato TOTAL TOTAL
HOMEM LIVRE
HOMEM ESCRAVO
GERAL
1872 19.608 8.702 21.101 1.108 50.519 4.036 2.052 6.088
56.607
38,8% 17,2% 41,8% 2,1% 48,7%
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Tabela 2 – Constituição da população feminina de Salvador - 1872
Ano Branca Negra Mulata Cabocla TOTAL Negra Mulata TOTAL TOTAL
MULHER LIVRE MULHER ESCRAVA GERAL
1872 14.064 8.720 21.332 1.002 45.118 3.880 2.533 6.413
51.531
31,2% 19,3% 47,3% 2,2% 51,3%
Fonte: Mattoso (1992, p. 123-124).
Ao se trabalhar com as categorias sexo e cor, situação de escravidão ou liberdade vê-se
que a população de 108.138 pessoas, de maioria negra ou mestiça, deve-se segundo Marcílio
(1998, p.87):
[...] a entrada maciça de escravos africanos no mercado de Salvador, particularmente
no período que vai da repressão britânica ao tráfico negreiro até a sua extinção,
aumentou fortemente. Como conseqüência, houve um aumento da presença de
negros e mulatos na cidade, o que pode ser observado nos dados do censo de 1872:
72% de pardos e pretos.
O trabalho manual era associado à escravidão e à desonra e, por causa dessa distorção,
o branco evitava trabalhar em público, executando qualquer atividade diante de outras
pessoas, fato que levou o inglês John Lucock, que visitou o Brasil em 1808, a declarar: “[...]
os brancos se sentiam fidalgos demais para trabalhar em público.” (FOLHA DE SÃO
PAULO, 1997, p.74). Desempenhando atividades sem reconhecimento social, muitos homens
e mulheres negros buscavam a ascensão social por meio do apadrinhamento, do casamento
com alguém de pele mais clara (“limpo”), elementos que facilitavam as relações numa
sociedade de aparência liberal, mas que dispunha de eficientes mecanismos de controle
comportamental (MATTOSO, 1992).
Não é possível compreender-se os aspectos de identidade e cultura se forem excluídos
da análise os componentes históricos e sociais referentes ao homem, ser masculino, hegemônico
na estrutura social patriarcal brasileira. Com relação ao conceito de hegemonia, Connell (1995,
p.77) afirma que a masculinidade hegemônica “[...] é a configuração de práticas de gênero que
incorpora a resposta aceita ao problema da legitimação do patriarcado, dando garantia à posição
dominante dos homens e da subordinação das mulheres”. Hunt (1991) declara que, no final do
século, a mulher ainda era representada como o contraponto do homem, identificada por sua
sexualidade. Diz o autor: “[...] o útero define a mulher e determina seu comportamento
emocional e moral.” (HUNT, 1991, p. 50).
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Salvador não era diferente do restante do país no que se referia à forma de ver a figura
da mulher: ela possuía seus papéis sociais demarcados, valores morais definidos, enfim, o
delineamento feito por uma sociedade patriarcal, concentradora de renda e conservadora. O
pertencimento ou não a um estrato social era fundamental para a ocupação ou não da mulher
no mercado de trabalho. Óbvio que existia a distinção entre categorias da população feminina:
escravas, libertas, mestiças, brancas pobres ou burguesas, distinção que começava no berço,
na estrutura familiar, educação recebida, religiosidade, relações sociais, nas alianças sexuais
ou matrimoniais, enfim, acompanhava-as até o túmulo. Quanto à mulher escrava, por sua
baixa posição social, as atividades exercidas eram: vendeira, serviçal para limpeza e ofícios
considerados pesados e desvalorizados. Ainda tinha os “serviços sexuais” prestados ao senhor
e/ou seus filhos. Se à discriminação de sexo se somavam as discriminações de cor e status
social, é evidente que as mulheres pobres, negras, analfabetas e desprotegidas socialmente
eram constantemente ignoradas, tolhidas ou punidas em tal sociedade. Contudo, não obstante
a ausência da educação formal em seu cotidiano, essas mulheres tinham percepção da
violência a que eram submetidas, além da violência física (MATTOSO, 1992).
No modelo sexual hegemônico, as categorias baseavam-se em binarismos
(senhor/escrava; homem provedor/mulher sem trabalho ou dona de casa) que determinavam
práticas diferenciadas de dominação entre os indivíduos. A questão da dominação e da
violência simbólica por ela gerada é discutida por Bourdieu (1999, p.142), em sua obra A
Dominação Masculina:
A violência simbólica impõe uma coerção que se institui por intermédio do
reconhecimento extorquido que o dominado não pode deixar de conceder ao
dominante na medida em que não dispõe, para o pensar e para se pensar, senão de
instrumentos de conhecimento que tem em comum com ele e que não são senão a
forma incorporada da relação de dominação.
A despeito das adversidades, a mulher negra firmou-se no recesso dos espaços do
Candomblé. Ao longo do tempo, em Salvador, algumas deram visibilidade a seu poder
carismático exercido nas comunidades negras, nas quais eram líderes e guardiãs de
fundamentos do culto da religiosidade africana, enfrentando o preconceito étnico e religioso
de uma sociedade lastreada em subjugadores valores europeus e católicos. Muito do
conhecimento que dispunham sobre uso de ervas e benzeduras foi utilizado quando a cidade
viveu as epidemias já citadas. Assim sendo, as mulheres influíram na busca de liberdade,
algumas delas organizando Irmandades de cunho religioso e libertário como a Irmandade da
Boa Morte, surgida na Barroquinha, área central de Salvador. Tecendo uma rede de
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solidariedade para compra de cartas de alforria e preservando sua ancestralidade, elas
transferiram suas atividades para a cidade de Cachoeira (NASCIMENTO, 1994).
4
Os homens negros escravos trabalhavam nas casas, fazendas ou ainda como
“alugados” pelo dono; os libertos atuavam como marítimos ou embarcados (carregadores,
marinheiros), artesãos, pequenos comerciantes, empregados em pequenos comércios, oficiais
subalternos, entre outras atividades (MATTOSO, 1992).
Não se pode deixar de analisar o papel dos homens e mulheres brancos que também
compunham o tecido social de Salvador. A figura do “branco” permeia toda a história da
cidade, desde sua fundação. Num processo de valorização contínua, do século XVI até o meado
do século XIX, foi o homem branco, considerado fino, superior e agressivo que,
etnocentricamente, se colocou como elemento importante e dominante na vida econômica,
política, religiosa e cultural dos diferentes momentos da colônia, do império e da república
brasileira. A ele eram destinadas a melhor educação e a salvaguarda dos valores socioculturais e
morais vigentes, o que lhe assegurava a posição dominante nas diversas esferas da vida pública
ou privada. Cabia-lhe ainda privilégios diversos, definidos por sua cor e diversificados por sua
filiação (legítima, legitimada ou natural), posição na hierarquia social, privilégios que pretendia
usufruir, garantir e transmitir a seus descendentes (MATTOSO, 1992).
No tocante à mulher branca, valorizada pela sociedade, a Coroa Portuguesa não via
com bons olhos o ingresso em ordens religiosas: elas deveriam permanecer no “mundo”,
fazer bom casamento, ajudando a compor a tessitura social desejada, ou seja, unir-se com
alguém branco, igual ou superior na escala social, aprovado pelos pais o costume dos
genitores escolherem o futuro genro só entrou em decadência no início do século XIX
(MATTOSO, [19--]).
A sociedade desejada na Bahia, ou seja, composta majoritariamente por pessoas
brancas e católicas, começa, de fato, a partir de 1551, quando chegaram as primeiras mulheres
“de boa qualidade”, ou seja, brancas, órfãs recolhidas pela rainha D. Catarina, para a
realização de casamento com homens brancos, buscando resolver um grave problema na
cidade-capital: a anarquia sexual (NASCIMENTO,1994). Segundo Mary Del Priori (1995, p.
43): “[...] a vida da maioria das populações femininas organizava-se no atropelo da construção
de um novo mundo.” Neste novo mundo, a Igreja, a serviço do Estado, estabeleceu regras
comportamentais exteriores e interiores para as mulheres, figuras consideradas secundárias ou
espectadoras de uma construção sócio-histórica. A menina de família branca desde cedo
4
Até hoje existe nesta cidade do Recôncavo a Irmandade da Boa Morte, formada por mulheres negras, com
idade acima de 40 anos, observadoras do culto afro e da religiosidade católica.
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aprendia que a virgindade era um bem precioso, inestimável, muito guardado pela família,
que zelava por sua reputação, para evitar a desonra, prole ilegítima e a prostituição
(NASCIMENTO, 1994).
A idade do casamento era, para as meninas, 12 anos e 14 para os meninos. Após a
cerimônia, podiam ter residência patrilocal, matrilocal ou neolocal, a depender dos acordos
feitos e da situação financeira dos noivos. A Igreja Católica, via a família como instrumento
de disseminação da fé católica e o casamento como sacramento indissolúvel, propiciador de
segurança para a mulher e os filhos que eram assim legitimados. No casamento, a mulher era
quase santificada e tanto a legislação civil quanto a religiosa valorizavam o estatuto social da
esposa e mãe e apertavam o cerco sobre formas não sacramentadas de convívio. A Igreja
Católica criou a “devoção mariológica” como norma da conduta baseada no modelo de Maria
(mãe e mulher), exercitando o controle do invisível sobre o visível no cotidiano colonial (DEL
PRIORI, 1995).
Como elemento importante nas formas de regulação e dominação, a Igreja Católica
determinava também a reprodução da estratificação social vigente em seus espaços, como por
exemplo, no Convento do Desterro. Criado em 1677, para atender aos pais que ali desejavam
deixar as filhas para professar votos religiosos, como forma de evitar a partilha do patrimônio
familiar com a concessão de dotes matrimoniais e/ou a redução das despesas com o envio das
jovens para os conventos portugueses, o convento atendia também à vaidade familiar de ter as
filhas usando o “véu preto”, símbolo de superioridade social, de clareza de pele e de origem
familiar destacada, em contraponto “às freiras de véu branco”, de condição social inferior.
Assim, no convento de elite de Salvador, a origem social das religiosas era o reflexo da
posição dos pais na sociedade; ali viviam outras mulheres, como as servas particulares, para
atender às religiosas, educandas e recolhidas, as mulheres viúvas ou casadas, que ali ficavam
“guardadas” dos perigos do mundo (NASCIMENTO, 1994).
Mas estavam, de fato, tão “guardadas” as mulheres brancas? Os Censos do século XIX
indicam que de cada três mães brancas uma havia tido filho fora das fronteiras matrimoniais.
“[...] o modelo patriarcal que contrapõe o recato da mulher branca à promiscuidade das
escravas é uma grosseira simplificação a realidade.” (VENÂNCIO, 2001, p. 199). As pessoas
“negras” e “brancas” miscigenavam-se cada vez mais, dificultando o estabelecimento de um
conceito único sobre o que era, de fato, ser branco ou mulato. As primeiras traziam no sangue
sua herança africana: os componentes étnicos, culturais e religiosos eram elementos fortes que
persistiram e, mesmo após a extinção do tráfico negreiro, continuaram perpassando o modus
vivendi dos descendentes de tais indivíduos. Um reflexo da miscigenação pode ser visto nos
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livros da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, nos quais predominam, como abandonadas, as
crianças classificadas como de cor parda.
O ano de 1888 foi marcado pela abolição da escravatura e o conseqüente elevado
número de quase 800 mil negros jogados no desamparo, sem políticas públicas de apoio para
ensino, aquisição de terra ou qualquer outra medida de ajuda. Muitos homens deixaram a
lavoura das fazendas e afluíram a Salvador para trabalhar no pequeno comércio e como
zeladores de prédios na Cidade Baixa. Inúmeras mulheres, no trabalho informal, ocupavam o
cenário urbano. Muitos escravos “de dentro”, escravos domésticos, com a liberdade recém-
obtida, abandonaram as imponentes residências senhoriais, que dependiam de seu trabalho.
Estas, com seus proprietários enfrentando dificuldades financeiras e sem poder arcar com o
trabalhador remunerado, foram alugadas para escolas, asilos, entre outros, ou mesmo
transformadas em cortiços (VASCONCELOS, 2002).
O ano de 1889 destacou-se pela Proclamação da República, alteração nos quadros
políticos e administrativos do país e a influência do positivismo nas questões educacionais. A
província da Bahia era, então, presidida pelo Conselheiro José Almeida Couto, político da ala
liberal, mas não federalista. O número de republicanos existentes na Bahia era pequeno, “[...]
não chegando a duas centenas”, segundo Tavares (1981, p.164), entre comerciários,
estudantes e professores da Faculdade de Medicina. A Bahia continuava enfrentando os
problemas decorrentes da crise na lavoura da cana-de-açúcar, abundância de ex-escravos sem
ocupação definida e que não mais queriam trabalhar nos latifúndios do Recôncavo, onde,
apesar dos incentivos e financiamentos do governo, a riqueza e a fartura não voltariam a
existir, chegando a uma estagnação econômica (MATTOSO, 1992).
A partir de 1890, o plantio de cacau no extremo sul da Bahia começou a dar bons
resultados, ainda que muito do lucro auferido fosse aplicado no Rio de Janeiro. Salvador era a
segunda maior cidade do Brasil e aquele ano trouxe como fato importante a separação da
Igreja Católica do Estado, pelo Decreto nº 119, que contribuiu para a redução do prestígio da
Igreja no âmbito político-administrativo. Na esfera individual, o casamento civil passou a
existir e a Igreja, a despeito das mudanças, manteve seu discurso sobre a moralização dos
costumes, a morte, o julgamento divino, a necessidade das boas ações, penitência,
cumprimento das regras religiosas e observância aos sacramentos.
A primeira Constituição da República, de 1891, instituiu nova feição na organização
do Estado: novidades na área tributária, autonomia federativa, uma relação de trabalho mais
liberal e era considerada anti-clerical por não mais permitir a fundação de novos conventos e
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defender o ensino laico. Na Bahia, a elite política tinha permanecido fiel à Monarquia, só
aderindo a contragosto à República (SAMPAIO, 1978).
Salvador refletia seu pensamento conservador, ainda que não se descuidasse de sua
sustentação econômica, alimentada pelo movimento portuário e pelo comércio. De acordo
com Vasconcelos (2002), a cidade chegou a ter nesse período: 11 casas de exportação e 64 de
importação; 7 estabelecimentos bancários; fábrica de vestuários; Empório Industrial do Norte,
criado por Luis Tarquínio, em Itapagipe, com 1.600 operários, que implantou a primeira vila
operária em Salvador, com 258 casas. Nesse período outros agrupamentos industriais também
se instalaram, empregando mais 1.570 pessoas. Em 1893 estavam instaladas em Salvador 107
fábricas, 12 companhias de seguro e a cidade começou a ver sair às ruas, durante os festejos
de carnaval, os clubes e grupos de negros, com temáticas africanas, trazendo um elemento
inovador para a antiga festa do Entrudo, que havia sido proibida em 1878, por ser considerada
muito violenta (VASCONCELOS, 2002).
Em 1897, a população passou a contar com o Elevador do Taboão. Nesse mesmo ano,
a Bahia, governada pelo Conselheiro Luis Vianna (1896-1900), foi sacudida pela Guerra de
Canudos, que Tavares (1981, p. 168) registra como episódio que “[...] começou com um
exagero e se agravou com um equívoco”. Ou seja, foi superdimensionada e, em conseqüência,
acrescida de erros na condução. Vivendo numa intensa movimentação popular e religiosa,
Canudos foi duramente combatido pelo governo, para quem era ponto de honra a vitória sobre
os “rebeldes”. A população de Salvador vivia amedrontada, os jornais anunciavam medidas e
providências oficiais e a guerra aconteceu, resultando na morte de 5.000 pessoas. No período
final do século XIX, Salvador era a terceira cidade mais populosa do país e as idéias
higienistas
5
, em voga no Rio de Janeiro e São Paulo, eram aqui pregadas por uma elite
intelectual preocupada com a questão sanitária da cidade que crescia. Os médicos higienistas
pregavam contra o perigo dos miasmas maléficos que existiam nas ruas estreitas, mal
ventiladas, sem calçamento e esgotamento sanitário, conjunto de fatores prejudiciais à saúde
dos cidadãos que, independente de classe social, cor ou sexo, podiam adoecer e falecer em
conseqüência das diversas doenças assim adquiridas. Os modernos conceitos de progresso e
civilização que regiam a vida das duas citadas capitais permeavam as idéias dos médicos e
administradores que almejavam ordem, progresso e cumprimento de modelos sociais, tais
como ruas limpas de dejetos, focos de doenças, atraso e miséria, de pessoas famintas e
5
A preocupação de médicos com a higiene e as questões sanitárias. Não há como ignorar que em tal
preocupação havia um componente ideológico de que a pobreza, a cor escura da pele e a ignorância eram
elementos que precisavam ser cuidados e controlados na sociedade.
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crianças pedintes, elementos que precisavam ser erradicados, pois eram incompatíveis com as
idéias do que seria uma cidade moderna, higiênica e progressista, agravado pelo fato de que as
chagas sociais como mendicância e vadiagem eram expostas aos olhos de todos
(RODRIGUES, 2003).
Salvador, dividida por onze paróquias e com 15.257 casas, havia se expandido e entrado
em modernização urbanística, provocando mudanças de residências, demolição de prédios,
locação e sub-locação de muitos imóveis no centro da cidade, onde havia concentração de
propriedade com inadequadas condições sanitárias e, segundo Rodrigues (2003, p.26): “[...] a
idéia de estabilidade residencial para a população de baixa renda só pode ser vista como uma
aspiração, sendo uma realidade concreta apenas para os proprietários.” Os pobres habitavam
cortiços (sublocações, imóvel multidividido e precário) no centro da cidade, casas que eram
semelhantes a pocilgas, fétidas e insalubres, espaços em que nada convidava à permanência e à
saúde.Ainda segundo a citada autora, a moradia dos pobres fazia vivo contraste com as áreas
consideradas aprazíveis, com novas construções para os indivíduos ricos, com sítios e árvores,
pertencentes à elite que ali gozava dos benefícios do contato com a natureza.
Havia, pois, necessidade de saneamento, mas, antes, a prioridade era para as obras
visíveis, tais como construção de prédios, calçamento de ruas, entre outras, a exibirem
permanentemente o trabalho do intendente ou do governador da província. Além da
preocupação com a saúde, o fator estético fazia parte desta concepção higienista. Na verdade,
desejava-se uma cidade saudável e bela, que se distanciasse dos traços coloniais dominantes
no ordenamento das ruas estreitas, tortas e sem arte. O urbanismo, assim, contava com as
práticas sanitaristas e higienistas que visavam modernizar a velha cidade de São Salvador. O
poder público, ainda que reconhecendo como imprescindível a efetivação do saneamento,
muito a protelou e, manipulando o discurso saneador, assim atendia as exigências da
burguesia que desejava um saneamento moral da população que já tinha vivenciado epidemias
como a da febre amarela e do cólera (RODRIGUES, 2003).
Segundo Rodrigues (2003, p.26), a cidade do Salvador “[...] foi uma das capitais que,
com a mudança de regime político (Monarquia para República), voltou sua atenção para o
segmento pobre e trabalhador que nela residia, estabelecendo um processo de disciplina dos
costumes e hábitos sociais desse segmento.” Havia o interesse das elites em controlar a vida
da população pobre, composta por muitos mestiços, negros e analfabetos, constituindo um
quadro bastante distanciado do ideário da cidade civilizada e moderna, pequena réplica da
Paris arborizada e com largas avenidas projetadas por Haussmann, que serviu de modelo ao
Rio de Janeiro. De acordo com a autora citada, na cidade de Salvador, com forte
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predominância do indivíduo negro, a ele, considerado inferior, vadio, biscateiro ou ocioso,
eram atribuídos os maus hábitos higiênicos que proliferavam nos espaços públicos e abertos,
ainda que não se quisesse admitir que decorriam da falta de planejamento e estruturação urbana.
Pobreza e mendicância, desemprego e infrações sociais, assim como a miscigenação,
mortalidade infantil e carências educacionais eram considerados problemas prioritariamente
indesejados numa cidade que desejava ostentar uma aura de civilização européia. Assim,
começaram a ser criados em Salvador espaços como a Maternidade Climério de Oliveira, em
1904, para acolher parturientes pobres, o Instituto de Proteção e Assistência à Infância e a
Escola Pública Abrigo dos Filhos do Povo, para educar crianças pobres (RODRIGUES, 2003).
A Salvador do século XX conviveu com os resquícios da Guerra de Canudos, o
bombardeio da cidade em 1912, a inauguração da Avenida Sete de Setembro, a instalação do
Mercado Modelo, a modernização de seu traçado urbano na Rua da Misericórdia, na mancha-
matriz com mais um alargamento, acordado entre a Santa Casa, a Companhia Linha Circular
de Carris da Bahia e o Município, envolvendo demolições, permutas entre as partes,
colocando abaixo “[...] edifícios velhos e então considerados irrecuperáveis” (ASCMB-
Relatório..., 1917-1918).
A década de 1930 trouxe profundas mudanças políticas para todo o país, com a posse
de Getúlio Vargas, que suspendeu a Constituição e nomeou interventores em todos os Estados
e Territórios, exceto Minas Gerais. Ainda naquele ano Salvador viu serem concluídas as obras
da construção do porto, iniciadas em 1906, marco importante para a economia e a vida local
da cidade.
[...] com cais de 1378 metros para atracação de grandes cargueiros; quebra-mar; cais
de 300 metros para embarcações de pequeno calado; dragagem; esgoto para águas
pluviais;oito armazéns, 15 guindastes; 1.200 metros de linha elétrica para
guindastes; 3.400 metros de trilhos no cais; canalização de água para fornecimento
aos navios; iluminação; calçamentos;pavilhões para administração. (TAVARES,
1981, p. 178).
No porto aconteciam a economia, a política, as relações de trabalho, encontros
amorosos, enfim, a vida pulsante de uma cidade portuária, desejosa de maior espaço
comercial e marcada por fortes tradições de contato com outras localidades, notadamente o
Recôncavo (VASCONCELOS, 2002).
Ainda na década de 1930, ocorreu o movimento do “Quebra-bondes”, quando a
população, revoltada com o monopólio e péssimo serviço, além do aumento da passagem dos
veículos, viveu mais de cinco horas de confusão, desordem e prejuízo. Foram destruídos 83
bondes (70% da frota). A cidade do Salvador viveu também o momento da derrubada da
42
Igreja da Sé, sua primeira catedral (a Sé de Palha), para a pretendida viabilização de obras
modernizadoras na cidade, em 1933, crime histórico no qual tomaram parte a Prefeitura, a
Arquidiocese e a Circular, a despeito do clamor popular e do noticiário na imprensa
(VASCONCELOS, 2002).
As administrações públicas, estadual e municipal, apregoavam a necessidade de
mudanças, de criar condições de uma vida mais digna para a população soteropolitana, com
modernidade e mais oportunidades de trabalho, agora regulamentado pela nova
Constituição. Criada por Vargas e aprovada em 15 de julho de 1934, após um pleito regido
pela nova Lei Eleitoral, que instituía o voto secreto, a Justiça Eleitoral para coibir fraudes e
o direito das mulheres ao voto
6
, a nova Constituição estabelecia uma república federalista.
Tais idéias coadunavam-se com o ideário do Estado no período de Getulio Vargas: educar e
preparar crianças para futura inserção no mercado de trabalho, pois, como registra
Rodrigues (2003, p. 41):
[...] a política corporativista introduzida com o governo Vargas, a partir de 1930, e
intensificada no Estado Novo apostava na substituição dos conflitos de classe pela
idéia de colaboração entre as classes. Utilizando-se de mecanismos como as leis
trabalhistas, meios de comunicação e práticas assistenciais para o trabalhador e sua
família, buscou-se inculcar, nestes últimos, o ideal de trabalhador ordeiro e produtivo.
A administração da cidade do Salvador revelava preocupação com a falta de trabalho,
de produtividade, fosse de adultos ou de jovens e crianças que vagassem por suas ruas e vielas
em franca desocupação e conseqüente falta de dinheiro, da qual decorriam o furto, roubo ou
mendicância. Muitos jovens e crianças foram olhados como seres inconvenientes e perigosos,
retratos vivos da miséria e do desamparo, que precisavam ser colocados em lugares
específicos. Daí o interesse de prestar alguma ajuda a instituições assistenciais que cuidassem
deles, tais como o Colégio dos Órfãos de São Joaquim, a Santa Casa de Misericórdia, o já
citado Abrigo do Povo, a Escola de Aprendizes de Marinheiros e outros. Muitos, porém,
pararam na Casa de Correção, onde o uso do aparato policial era utilizado sem pudores
(RODRIGUES, 2003).
Muitos desses jovens desconheciam as figuras paternas, abandonados à própria sorte.
Outros foram deixados na Santa Casa de Misericórdia, e ali, além do teto e do alimento, era-
lhes propiciada a educação, visando prepará-las para o trabalho que assegurasse a auto-
sustentação. Muitos meninos foram direcionados em idade então considerada adequada, a
espaços domésticos e outros locais institucionais que lhes garantissem o distanciamento da
6
Em 1933, Carlota Pereira de Queiroz foi eleita por São Paulo, a primeira deputada federal do Brasil.
43
marginalidade. As prisões e as escolas são locais onde, segundo Foucault (2007, p.122): “[...]
houve o grande ‘encarceramento' dos vagabundos e dos miseráveis”, com disciplinamento,
limitações e obrigações constantes. Assim sendo, para conhecer um pouco sobre a situação
das crianças e jovens atendidos pela Santa Casa, bem como homens e mulheres aos quais ela
dispensava algum tipo de cuidado faz-se necessário focar seu histórico, objetivo, estruturação
administrativa da instituição seu corpo de pessoal e suas obras.
1.1.2 Origem e objetivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
O surgimento da Santa Casa de Misericórdia em terras brasileiras foi parte importante
no processo de ocupação e demarcação dos elementos religiosos, expansionistas e políticos do
reino português. A vastidão e a desocupação da colônia preocupavam Portugal e a coroa
percebeu a necessidade de imprimir-lhe sua marca possessória, resguardá-la e torná-la
produtiva, leal a Deus, à Pátria e ao Rei. Contudo, ainda que de origem católica, a Misericórdia
era secular e, zelosa de sua autonomia, não permitia membros das ordens religiosas em seus
quadros. Assim sendo, ela pode ser definida como uma organização leiga e não governamental
impregnada de filosofia humanitária e princípios cristãos, destinada a dar assistência, socorro
físico e espiritual a todos os que dela necessitassem (RUSSELL-WOOD, 1981).
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia foi fundada no sítio central da cidade de
Salvador, na rua que até os dias de hoje leva seu nome: Rua da Misericórdia. Convém
esclarecer que a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, a segunda do Brasil
7
, não tem
documento com data de sua fundação
8
. Alguns autores afirmam ter sido em 1549 e outros em
1552. Tal dúvida é fruto da destruição dos arquivos da entidade quando, em 1624 e 1625,
ocorreu a invasão holandesa e as lutas acirradas nada pouparam (RUSSELL-WOOD, 1981).
No bojo das considerações sobre a origem da Santa Casa da Bahia, vale ressaltar que
remonta a Portugal, fato que merece uma pequena abordagem sobre a conjuntura européia. A
Europa nos séculos XII e XIII, sob a ótica e filosofia cristã medieval, tinha na caridade um
traço marcante. Impregnada pela motivação religiosa, abrigava confrarias e corporações que
7
A primeira Santa Casa do Brasil é a de Santos (SP), fundada em 1543.
8
Segundo Campos (1943), a preocupação em definir a data da fundação consta na história inicial da Santa Casa
da Bahia, organizada pelo escrivão, depois Provedor, Manoel José Figueiredo Leite e sistematizado por
Antonio Joaquim Damásio, num trabalho publicado em 1862. Não cita o título da obra. Hoje se aceita
comumente o ano de fundação como 1549.
44
visavam proteger os interesses de determinados grupos, cuidar da observância religiosa e
executar atividades caritativas, formando irmandades
9
consagradas a Nossa Senhora da
Misericórdia. A Itália primou pela pluralidade de irmandades fundadas para este fim e em
Florença, no século XIII, foi criada a Confraternitá di Santa Maria della Misericórdia: em
1244, um homem chamado Piero Borsi usou o dinheiro arrecadado com as multas cobradas
aos blasfemadores para comprar seis macas para transporte de doentes para o hospital e
remoção dos corpos de vítimas de morte súbita em vias públicas (RUSSELL-WOOD, 1981).
No século XV, no vizinho Portugal, as questões sociais foram alvo da atenção da
rainha D. Leonor, que se destacou no cenário da assistência aos desvalidos. Seu confessor,
Frei Miguel Contreiras, grande pregador e praticante da caridade, é considerado por alguns
estudiosos como o instituidor da Misericórdia. Sob a influência da rainha e esposa, o rei D.
João II
10
determinou a centralização de 43 pequenos nosocômios existentes na capital e criou,
em 1492, o Hospital de Todos os Santos. De acordo com Russell-Wood (1981), a rainha
Leonor é considerada historicamente como a inspiradora do projeto. Com a subida de seu
irmão
11
ao trono, foi fundada em Lisboa a primeira Casa da Misericórdia Portuguesa, modelo
de todas as demais.
Segundo Russell-Wood (1981, p.9): “[...] a Misericórdia de Lisboa prosseguiu uma
tradição já existente dentro do quadro mais genérico da filantropia social na Europa.” No
leque de ações caritativas e na ritualização da caridade, estavam incluídos os cuidados com o
corpo e o espírito dos pobres e desvalidos, ações que correspondiam aos preceitos de
comportamentos cristãos, e que sofreram as inevitáveis conseqüências das mudanças sociais.
Assim sendo, ao perceber que a assistência precisava ser institucionalizada, unindo os
componentes espirituais, o cumprimento da finalidade pública e a ação política, Portugal
lançou a Santa Casa Misericórdia em todos os seus domínios (RUSSELL-WOOD, 1981).
Lisboa foi a capital do expansionismo europeu no século XVI. Tornando-se uma
cidade cosmopolita, estendeu o domínio português pelos sete mares e cinco continentes,
estabelecendo um império multicontinental antes de 1575: Marrocos (África), Índia (Ásia) e
América. Em todos estes pontos, o Império Português mostrou sua visão empreendedora,
mesclada de audácia, política e forte senso de oportunidade. Com a criação e instalação das
Santas Casas em tão diversos lugares, a instituição teve um forte papel na manutenção e
9
Segundo Reis (2000 p. 55): “Irmandades eram associações corporativas que desenvolviam no seu interior um
conjunto de ações que as levavam a atingir status, identidade e comunhão”. Assim, os Irmãos se reconheciam
como tais, partilhavam muitas idéias e ações aprovadas pela Irmandade.
10
D. João II reinou em Portugal de 1481 a 1495.
11
D. Manuel I subiu ao trono em 15 de agosto de 1498.
45
identidade do império português, funcionando como elemento de coesão e vínculo com a
metrópole, propiciando conforto emocional e valorização de suas raízes a todos os indivíduos
que atendesse e cuidasse. Assim, desde o século XVI, todas as Santas Casas
12
eram centradas
sobre o pilar da caridade e contribuíam enormemente para assegurar a lealdade ao rei de
Portugal e divulgar e preservar a fé católica (RUSSELL-WOOD, 1981).
No Brasil a instituição se fez presente e atuante no campo social e político,
estabelecendo paradigmas e servindo de modelo para outras irmandades que coexistiam nos
núcleos urbanos, perpetuando-se na vida coletiva das vilas e cidades.
A fundação da Santa Casa da Bahia foi um marco na cidade capital de São Salvador e
desde então ela buscou atender a seu objetivo, firmando-se na nova terra imbuída de suas
responsabilidades e dificuldades. O objetivo maior da Santa Casa da Bahia, como de todas as
Santas Casas, desde sua criação, era praticar a caridade cristã, observando o estatuto, “a lei
escrita da Misericórdia”, chamado de Compromisso
12
. A Santa Casa da Bahia seguia o
Compromisso datado de 1516, que regia a Santa Casa de Lisboa. O Compromisso prescrevia
as quatorze ações ou “obras de misericórdia” que concretizavam a prática caritativa, sendo
sete Espirituais ensinar aos ignorantes; dar bom conselho; consolar os infelizes; perdoar as
injúrias recebidas; suportar as deficiências do próximo; orar a Deus pelos vivos e pelos
mortos e sete compromissos Corporais resgatar os cativos e visitar prisioneiros; tratar
os doentes; vestir os nus; alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os
viajantes e os pobres; sepultar os mortos (COSTA, 2000, p. 24-25).
Tais tarefas eram imensas, exigindo da instituição, mais especificamente dos que a
conduziam, recursos financeiros, disposição pessoal e sentimento de fé e religiosidade para
atenuar as próprias imperfeições e executar os deveres do Compromisso (Russell-Wood,
1981). A caridade, virtude pregada pela Igreja Católica, segundo Leite (2001, p.92) era para
os católicos, “[...] ‘uma forma de justiça social’ e também uma ‘sublimação espiritual’,
levando a ‘conhecer o prazer inigualável de beneficiar o indigente’.”
Assim, a sociedade baiana, ao longo dos séculos, ajudava a Misericórdia e outras obras
sociais, satisfazendo os princípios cristãos e também o desejo de ostentação das virtudes, por
meio da divulgação em festas profanas e religiosas e também em jornais. Vale observar o
trabalho de Rodrigues (2003, p.101), quando cita: “[...] a concepção cristã de caridade
pretendia amenizar e corrigir as desigualdades sociais, mas nunca suprimi-las. A caridade
envolvia a salvação dos ricos e a santificação dos pobres.”
12
Desde sua fundação até a presente data a SCMB obedeceu aos Compromissos: 1516 e 1618 (de Lisboa); 1896;
1958; 1966 (registrado em 1967); 1983 (mesmo teor do anterior); 1996; 2002.
46
A caridade praticada pela instituição buscava atender as necessidades da colônia, e a
Santa Casa era um elemento importante para o Governo Geral. Tomé de Souza, aqui chegado
em 1549, D. Duarte da Costa e Mem de Sá, e cada um, a seu modo e a seu tempo, esteve
próximo da instituição. Este último chegou a ser dirigente maior e auxiliou financeiramente a
Irmandade, assim como teve significativa participação na construção da primeira igreja da
Misericórdia, além de ter deixado um rico legado testamentário, com longa pendência judicial
entre a Santa Casa e outros pretensos herdeiros (RUSSEL-WOOD, 1981).
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, bem como as Misericórdias de Portugal
13
,
gozou grandes privilégios jurídicos, sociais e fiscais, tais como: isenção de imposto sobre seus
prédios urbanos; suas igrejas estavam sob a proteção régia, o que as deixava livres da
jurisdição do prelado diocesano; não pagar selo correspondente a legados deixados em
testamento; não prestar contas de sua administração em juízo; recebimento de 400$00 da
municipalidade, para os expostos e 200$00 para auxílio no hospital; recebimento de impostos
sobre a tripulação de navios mercantes que aqui aportavam, entre outros. Tais privilégios
permitiam que a Misericórdia tivesse destaque sobre todas as outras irmandades existentes em
Salvador (RUSSEL-WOOD, 1981).
Um outro privilégio era o da bandeira. As Misericórdias portuguesas e do Brasil tinham
o privilégio de cobrir com sua bandeira os condenados à morte que acidentalmente escapassem
da punição, fosse pelo rompimento da corda ou de qualquer peça do instrumento do suplício
que, ao danificar-se, possibilitasse ao indivíduo sobreviver. O porta-estandarte da Misericórdia
podia cobrir a vítima com a bandeira e a sentença era considerada cumprida. A libertação do
condenado era uma prerrogativa que incomodava a alguns e, por vezes, deu origem a conflitos
numa cidade que se estruturava movida por interesses religiosos e econômicos.
Mesmo com todos os problemas de saneamento, habitação, entre outros que a cidade
de Salvador vivia, bem como as dificuldades financeiras da Santa Casa de Misericórdia da
Bahia, o prestígio da instituição era notório. Foi apoiada pelos governantes durante o período
colonial e, durante o período imperial, foi alvo de distinções da família imperial. Em 1859
recebeu a visita do imperador D. Pedro II, que subscreveu a Ata da sessão da Mesa
Administrativa com uma pena de ouro “[...] que lhe foi offerecida a fim de ser guardada no
archivo da Casa da Santa Misericórdia” (COSTA, 2001, p. 68); em 1866 recebeu a visita da
Princesa Leopoldina, casada com o neto de Luis Felipe, Rei da França. Tais visitas
13
De acordo com Russel-Wood (1981, p. 12): “D. Manoel concedeu cerca de trinta privilégios a Misericórdia,
metade dos quais durante os três primeiros anos de existência da Irmandade.”. Ainda segundo o autor, Felipe
III, em 1622, estendeu os privilégios da Misericórdia de Lisboa para a da Bahia. O privilégio de enterrar os
mortos, por ser considerado obra caritativa, será tratado oportunamente neste capítulo.
47
reforçavam e abrilhantavam, aos olhos da sociedade, a importância da instituição e o prestígio
da Irmandade (COSTA, 2001, p. 67).
Todas as ações da Santa Casa da Santa Casa eram exercidas por seus integrantes, por
isto é importante a apresentação de seu corpo de pessoal e as atribuições pertinentes a cada
segmento administrativo.
1.2 CORPO DE PESSOAL E ADMINISTRAÇÃO DA SANTA CASA DE
MISERICÓRDIA DA BAHIA
Como já dito, a Santa Casa era totalmente regida por seu Compromisso (Estatuto) que
regulava o cumprimento dos 14 Compromissos corporais e espirituais, funcionamento
administrativo, estabelecia regras normativas para seus membros, para admissão,
permanência, ascensão aos postos, enfim, direitos e deveres dos integrantes.
Como já citado, desde a sua fundação até a presente data a SCMB obedeceu ao
Compromisso, editado nos seguintes períodos: 1516 e 1618 (que regiam a Misericórdia de
Lisboa); 1896; 1958; 1966 (registrado em 1967); 1983 (mesmo teor do anterior); 1996 e 2002.
Este estudo abrange a vigência do Compromisso inicial, de 1516, com dezenove capítulos; o
de 1618; e o de 1896. O estatuto inicial, que vigorou de 1516 a 1618, ainda que em período
anterior a este estudo, será apresentado sucintamente, para melhor compreensão da estrutura
de poder da Santa Casa, que era formada pela Irmandade que compunha os órgãos
denominados de Mesa e Corpo de Guardiães (RUSSEL-WOOD, 1981).
A Santa Casa corporificava-se em sua Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia
14
,
ou seja, nos Irmãos, homens que a faziam atuar e, por meio dessa atuação, referendavam-se
como pessoas de importância no cenário social. Pertencer à Irmandade da Misericórdia, em
Salvador, era sinal inequívoco de aceitação e reconhecimento social, em que estavam
imbricados orgulho, vaidade, prestígio e poder pessoal ou familiar. De acordo com Russel-
Wood (1981), na intrincada rede social da cidade, a Misericórdia destacava-se; portanto,
pertencer ao quadro de sua Irmandade conferia ao indivíduo a satisfação de íntimos desejos de
ocupação de posição de respeito e reconhecimento públicos.
14
Segundo Reis (2000), as Irmandades existiam como associações corporativas que desenvolviam internamente
um conjunto de ações que as levavam a atingir posição, identidade e comunhão, algumas chegando a ter
grande destaque social.
48
A Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia, de acordo com Russell-Wood (1981),
tinha, inicialmente, o número de 100 Irmãos, ou seja, homens que a compunham e davam
cumprimento a suas ações e responsabilidades. Os irmãos pertenciam a duas classes: “irmãos
maiores” (gentis-homens e profissionais da classe social considerada superior) e “irmãos
menores” (plebeus, oficiais mecânicos). A Irmandade, desejosa de preservar seus traços de
supremacia, pureza e religiosidade, valores altamente representativos da estrutura social baiana,
atinha-se a preconceitos de cor, credo e classe social. Assim, qualquer aspirante à condição de
Irmão era submetido a um inquérito social rigoroso e minucioso, cujo resultado era aguardado
com expectativa e ansiedade, já que poderia significar inclusão num grupo seleto e conceituado.
Pertencer a uma irmandade religiosa, fazer testamento doando bens para caridade e desejar
sepultamento honroso e cristão eram idéias presentes no imaginário e na vida social de todo
católico praticante, ou mesmo dos desejosos de aparentar posição social. A Irmandade da
Misericórdia oferecia o cenário ideal para tais desejos! (RUSSELL-WOOD, 1981).
A Irmandade possuía também um pequeno corpo de empregados formados por um
capelão, dois padres assistentes para celebração de missas, ministrar sacramentos e executar
os ritos fúnebres, serviços assegurados aos irmãos e familiares. Segundo Russell-Wood
(1981), ela possuía prataria e paramentos para cultos religiosos, sino, duas arcas para dinheiro
e roupas, uma essa para os enterramentos dos irmãos e liteiras para transportar cadáveres de
pobres e enforcados.
A MESA era o órgão diretivo, formado por 13 Irmãos, sendo seis “irmãos maiores”,
seis “irmãos menores” e um Provedor (Diretor) escolhido entre os irmãos maiores, eleito
indiretamente, ou seja, por uma comissão eleitoral de dez irmãos, que eram indicados pela
totalidade da irmandade para tal tarefa. As responsabilidades da Mesa duravam um ano
(RUSSELL-WOOD, 1981).
O
PROVEDOR era dirigente e ocupante do mais alto cargo da instituição. Tinha por
obrigação reunir a Mesa para a tomada das decisões que envolvessem questões políticas,
transações financeiras ou despacho de petições de diversas modalidades, além de visitar
mensalmente os trabalhos da instituição na prisão e no hospital, além de fiscalizar a correta
distribuição de esmolas. Tinha imensas responsabilidades que dele exigiam sensatez,
altruísmo e determinação e deveria ser sempre “[...] um homem fidalgo de autoridade,
prudência, virtude, reputação, idade [...]” (RUSSELL-WOOD, 1981, p. 89). Sua idade não
podia ser inferior a quarenta anos. Tais qualidades eram indispensáveis para que, ao lado da
vaidade de ocupar tão cobiçado posto, tivesse a disponibilidade de tempo, amor pela
instituição, capacidade de estabelecer cordiais relações com todos os subordinados e também
49
com as pessoas de fora, igualmente importantes para o bom andamento dos trabalhos da
Provedoria. De acordo com o citado autor, vale o destaque para a importância social conferida
ao Provedor da Misericórdia, motivo de orgulho para o ocupante do cargo, satisfação que se
estendia a familiares e amigos que se sentiam próximos de alguém aureolado de prestígio,
condutor de uma grande e sólida entidade social abençoada pela Igreja e aplaudida pela
sociedade em geral.
O CORPO DE GUARDIÃES era parte do corpo diretivo, constituído pelo Irmão Escrivão,
nove conselheiros e dois mordomos. A cada um deles cabia uma atribuição: o Escrivão era
encarregado de registrar em atas o trabalho da instituição; com os nove conselheiros, ele
formava cinco pares eqüitativos de irmãos maiores e menores que atuavam em tarefas
específicas: visitar doentes em casa e no hospital; visitar prisioneiros; dar esmolas aos
necessitados; coletar esmolas, aluguéis e legados. Escrivão e conselheiros eram eleitos para
mandato de duração anual definida. Quanto aos Mordomos, denominação dada aos
encarregados administrativos, renovados mensalmente, um cuidava da capela, funerais,
missas e o outro, chamado “de fora”, cuidava da assistência jurídica dos presos. As
Mordomias deviam ser exercidas com equilíbrio, responsabilidade, dedicação e gratuitamente.
Muitos Guardiães eram figuras importantes no cenário social da cidade, desempenhando
funções sociais de destaque (RUSSEL-WOOD, 1981). Mas a sociedade mudava!
O Compromisso de 1618 foi aprovado em decorrência de a Santa Casa ter percebido a
necessidade de adequação e aprimoramento de seu papel social na cidade de Salvador que, ao
longo das décadas, enfrentou transformações e um contingente populacional que não parava
de crescer e sofrer mudanças físicas, estruturais e ideológicas. Conforme dados fornecidos por
Russel-Wood (1981), o novo Compromisso ganhou vinte e dois capítulos novos, buscando
definir com a maior precisão possível as tarefas e seu formato. Segundo o autor:
[...] o novo Compromisso de 1618 se caracterizava pela pormenorização e ausência
de ambigüidade, especialmente quanto às condições de admissão, procedimento
eleitoral e responsabilidade dos irmãos [...] Se o Compromisso de 1516 fora um
modelo de sua espécie, seu sucessor não o fora menos, como se comprova por sua
permanência até o século XIX. (RUSSEL-WOOD, 1981, p. 75).
A nova estrutura administrativa abrigava a Mesa, já apresentada, principal órgão
administrativo sem quase alteração do Compromisso anterior. As novidades ficaram por conta
do aumento do número de irmãos para 600 e da criação da JUNTA, órgão consultivo e
moderador, composto por vinte irmãos possuidores de alguma experiência administrativa e
50
escolhidos eqüitativamente dentro das duas classes de Irmãos Maiores e Menores. A eleição
era anual para os trabalhos diretivos, iniciando-se o chamado Ano Compromissal em 2 de
julho, dia da Visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel, data da principal festa da
Irmandade. Neste dia ocorria a sessão de posse dos eleitos, que deveriam se esforçar por
cumprir as quatorze ações corporais e espirituais do Compromisso (RUSSEL-WOOD, 1981).
A tarefa, entretanto, não era fácil pelo custo que implicava tanto na capacidade individual de
vencer ou agrilhoar os traços de vaidade, orgulho e individualismo e doar-se ao irmão em dor
moral ou física, como na capacidade financeira da instituição em arcar com despesas vultosas
e sempre crescentes.
No tocante à administração, a Santa Casa sempre administrou seus próprios bens, o
que nem sempre foi feito com parcimônia e retidão, levando-a a vivenciar dificuldades
financeiras, disputas jurídicas, intensas brigas judiciais, cooptação de votos nas eleições tidas
e havidas como fraudulentas, indisciplina, brigas pessoais entre irmãos e figuras públicas.
Estas ocorrências dificultavam a indicação de homens de caráter e fortuna pessoal para o
preenchimento do cargo diretivo de Provedor. A Santa Casa de Misericórdia mantinha
relações nem sempre muito cordiais com as autoridades desde os tempos coloniais, pois se
sentia merecedora de atenção dos poderes públicos, já que lhes prestava serviços; ou seja,
cumpria um papel que cabia ao Estado, como no caso do tratamento dos soldados da Coroa
em seu hospital, e da manutenção das crianças enjeitadas, atribuição originalmente do
Conselho Municipal (MARCÍLIO, 2001). Os Relatórios são repletos de queixas e críticas
acerca dos atrasos, por anos a fio, do pagamento devido à Santa Casa pela municipalidade e
pelo governo, o que gerou desavenças, entrega de cargos e publicização do problema.
Numa sociedade cheia de matizes de preconceitos, idiossincrasias e estereótipos, como
a sociedade baiana, cumprir os 14 Compromissos corporais e espirituais era tarefa difícil, mas
considerada absolutamente indispensável. Para fazer face às inúmeras despesas geradas pelo
cumprimento dos Compromissos, a Irmandade contava com legados e doações em dinheiro,
imóveis, escravos, tecidos e açúcar, expressos nos testamentos de Irmãos e fiéis que
almejavam a paz para suas almas no paraíso (RUSSELL-WOOD, 1981). Ela era instituída
como beneficiária, executora, encarregada de orar e celebrar missas póstumas, administrar os
bens recebidos e realizar empréstimos a juros. O autor considerou importante o impacto das
transformações sociopolíticas e econômicas vividas pela população de Salvador e do
recôncavo baiano, que se refletiram na mentalidade e disponibilidade financeira dos cidadãos,
principalmente dos senhores de engenho que integravam o quadro da Irmandade.
51
Na Bahia do século XVIII era emblemático nas famílias aristocráticas ter algum varão
integrando a Mesa e a Junta da Irmandade da Misericórdia e uma filha tomando estado
religioso no já citado Convento do Desterro (NASCIMENTO, 1994). Este quadro começou a
ser alterado com o declínio da indústria do açúcar, pois, conforme já visto, ainda que
mantendo o prestígio do nome e da classe social, muitas famílias viram-se em dificuldades
financeiras, declínios e falências que obstaculizavam a candidatura aos ambicionados postos
de Provedor e Tesoureiro, abrindo espaço no cenário social para os homens de negócios. Tais
indivíduos, enriquecidos, desfrutando da aceitação da sociedade e da ausência da pecha de
cristãos-novos (judeus convertidos ao catolicismo), não tiveram impedimentos para a
ascensão aos citados cargos (RUSSEL-WOOD, 1981). O quadro de poder, em Salvador,
começava a forçar mudanças!
O Compromisso de 1896 foi formulado pela Santa Casa da Bahia, levando em
consideração o passar do tempo e as inevitáveis mudanças socioeconômicas e políticas:
foi aprovado pela Mesa, na sessão de 31 de maio de 1896, durante a Provedoria de Manoel
de Sousa Campos, quando foi alterado o sistema eleitoral, que passou a ser feito pelo
sistema direto de votos (como forma de evitar as conhecidas e indesejáveis fraudes) e
alterou o Ano Compromissal (2 de julho a 30 de junho), fazendo-o acompanhar o ano
civil. Esta alteração levou a administração de então a atuar durante mais seis meses
(ASCMB, Relatório..., 1894-1896).
O Compromisso de 1896 manteve o impedimento da mulher nos quadros da
Irmandade, buscou estabelecer novas regras para suprir a contento as novas tarefas
encampadas, cada uma delas sob o comando de um Mordomo. De acordo com o citado
Compromisso, cada Mordomo deveria prestar contas de suas ações para a composição do
Relatório da Provedoria, a ser apresentado à Mesa e Junta Deliberativa da instituição, ao final
de cada período compromissal, fosse de um ano ou bienal.
Ao longo do período deste estudo, a estrutura administrativa esteve disposta com a
Junta Deliberativa, tendo sob sua alçada o Definitório (órgão composto pelos Definidores
Efetivos e Natos, ou seja, Irmãos que atuavam como conselheiros) e Mesa, órgão que
englobava a Provedoria e os Mesários (ASCMB, Compromisso..., 1618; 1947).
Com esta estrutura hierárquica e administrativa, a Santa Casa desenvolveu várias e
importantes obras, apresentadas na próxima seção.
52
1.3 OBRAS REALIZADAS PELA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA
Ao tratar das obras e trabalhos desenvolvidos pela instituição, é importante mostrar o
caminho histórico percorrido para o atendimento das necessidades existentes na sociedade
brasileira de origem colonial, que, com a independência da Coroa portuguesa, chegou à
organização de um império e depois à condição de República, cheia de contrastes oriundos de
uma estruturação social estratificada e fortemente embasada na religião e nas relações
oligárquicas de poder.
Todas as obras eram administradas pelos Irmãos que assumiam o título de Mordomos
e as diversas Mordomias consistiam na administração da Capela Central, localizada na sede
da instituição, na Rua da Misericórdia; da Repartição Central, órgão centralizador, também na
Rua da Misericórdia; das Locações, responsável pelo patrimônio imobiliário; do Contencioso,
que cuidava das desavenças e litígios; as demais Mordomias eram as do Hospital Santa Isabel,
Asilo São João de Deus Asilo da Mendicidade; Cemitério e Hospital dos Lázaros; Cemitério
do Campo Santo e Asilo dos Expostos.
1.3.1 Participação da Santa Casa de Misericórdia da Bahia na saúde
A Santa Casa criou o primeiro hospital da cidade de Salvador. Este, ao longo do
tempo, foi a obra mais conhecida da Misericórdia na Bahia, pelo cuidado com os enfermos,
atendendo a um dos Compromissos Corporais da Irmandade. A antiguidade do hospital
constitui base para admitir-se que a entidade foi criada no ano de 1549, pois as ordens de
pagamento para a construção do hospital, da lavra de Tomé de Souza, estão registradas no
volume Documentos Históricos XXXVII - mandados-1549-1552, publicados pela Biblioteca
Nacional, conforme Campos (1934). O hospital é um marco na história da instituição e na
história nacional, já que abriga significativa parcela da Medicina, visto que a Misericórdia
mantinha o único hospital da Bahia, nos séculos XVII e XVIII. Durante todo o período
colonial, a Coroa portuguesa cobria os custos originados de atendimentos a seus funcionários
e o hospital possuía uma enfermaria feminina e uma farmácia que vendia remédios vindos de
Portugal, bem como os produzidos na cidade de Salvador.
53
O hospital teve inicialmente várias denominações: no século XVI foi chamado
Hospital da Cidade; no século XVII, foi denominado Hospital Nossa Senhora das Candeias; e
depois de Hospital de São Cristóvão. Segundo Russell-Wood (1981), ele atendia a população
urbana de 1.000 colonos em 1554, e, não obstante sua importância e utilidade, os sucessores
de Tomé de Souza descuidaram de realizar benfeitorias, para que ali fossem atendidos os
doentes das três etnias (branco, índio e negro), cada uma com suas peculiaridades de
morbidade. Ele funcionou sucessivamente em três lugares: o primeiro, por 284 anos, em tosca
construção na própria sede da Misericórdia, na rua homônima, no centro de Salvador; em
1833 passou a funcionar no Terreiro de Jesus, onde ficaria por 60 anos
15
; por fim, foi
deliberado que seria construído em outro local, no atual bairro de Nazaré (COSTA, 2000).
Lenta, interrompida e custosa foi a construção do novo hospital que se fazia necessário
à cidade que crescia, conforme deliberação da Mesa e Junta Deliberativa em 1814. Vários
Provedores envidaram esforços para a obra, destacando-se entre eles a figura do Conde de
Pereira Marinho
16
, que segundo Verger (1987, p. 451-452):
[...] dominava o mercado de charque [...] possuía navios para o transporte de suas
mercadorias...com seu gênio criativo construiu muitos edifícios no caminho da
Vitória, no Farol da Barra e no Bairro Comercial... tornou-se muito rico [...] membro
fundador do Banco da Bahia [...] no fim da vida fez parte de instituições de caridade
de renome, como a Santa Casa de Misericórdia [...] no seu testamento contava com
uma fortuna considerável [...]
O hospital foi transferido para o novo prédio no Largo de Nazaré, já com o nome de
Hospital Santa Isabel, inaugurado em 30 de julho de 1893, pelo Provedor Manoel de Souza
Campos. À entrada do prédio, foi inaugurada uma estátua do Provedor Conde de Pereira
Marinho amparando duas crianças órfãs, representando o conceito de proteção no mais puro
molde da filantropia cristã, numa clara referência à Caridade, grande eixo sustentador da
instituição. Atendendo não só indigentes e pensionistas, o hospital recebia também os serviços
da Municipalidade do Governo do Estado. Em suas instalações já aconteciam os serviços de
necropsia para fins de inquéritos policiais e atendia também aos policiais (COSTA, 2000).
Infelizmente, os serviços não eram pagos, o que, obviamente, acarretou sérios transtornos.
O Hospital Santa Izabel, ao longo de sua história, atendeu doentes de diversas
moléstias; certamente atendeu também vítimas das epidemias de varíola (1680 a 1684), febre
15
Em 1859, o hospital foi visitado pelo imperador D.Pedro II (COSTA, 2000).
16
O Conde de Pereira Marinho devia parte de sua riqueza ao tráfico negreiro. Ainda segundo Verger (1987, p.
452): “[...] possuiu numerosos vasos que faziam o tráfico de escravos com a Costa da África entre 1839 e 1850
[...] desembarcando 3.800 negros e rendendo 47.000 libras esterlinas somente pelo frete para José Pereira
Marinho.” Esse homem, com tais papéis contraditórios, em distintos momentos da sua vida, faleceu em 24 de
abril de 1887, sem ver sua obra final concluída.
54
amarela (1686), colera morbus (1855), males de alta mortalidade, os feridos na guerra de
Canudos (1897), como já citado, e o contingente atingido pela gripe espanhola (1918)
(MATTOSO, 1992).
O hospital também atendia a estrangeiros e escravos. Segundo Barreto (2001) as
mulheres negras e mestiças, escravas ou livres, quando não os abortavam, tinham seus filhos
com as parteiras curiosas (comadres). Para a resolução de problemas não debelados pelo
conhecimento do senso comum, entretanto, recorriam aos serviços médicos gratuitos do
Hospital da Santa Casa de Misericórdia. Ainda em conformidade com Barreto (2001, p. 29-30):
[...] o quadro nosológico entre 1881-1883, período em que foram atendidas 2.800
pessoas, sendo 441 crianças, 1470 homens e 889 mulheres, das quais 29 eram
escravas. Persistiam doenças como sífilis, úlcera, diarréia, erisipela, pneumonia,
gangrena, hepatite, reumatismo, as hemorróidas, a paralisia, a apoplexia e as
doenças mentais [...] acrescidas da beribéri, febre perniciosa, insuficiência, úlcera
sifilítica, epilepsia, tubérculos pulmonares, tétano, dentre outras. Das 889 mulheres
atendidas 302 eram pardas, 254 eram pretas, 192 brancas 49 creolas e 09 cabras.
Dentre as atividades profissionais declaradas nos prontuários predominam as de
servente e costureira. Esses dados refletem uma cidade efervescente nas suas
atividades laborais, especialmente nas ocupações femininas, bem como evidencia
uma hierarquia social pautada em valores diversificados.
Desde sua fundação, o hospital sempre se destacou como um centro de atendimento e
referência, respeitado pelos poderes públicos e pela sociedade em geral, principalmente pelo
atendimento realizado a pessoas das mais diversas camadas sociais. Até a presente data,
funciona no bairro de Nazaré, tendo presença marcante na vida da cidade.
A ação da Santa Casa na área da saúde não ficou restrita a seu próprio hospital: a
Quinta dos Padres (da ordem dos jesuítas) foi comprada pelo Governo do Estado da Bahia,
que criou, em 1787, o Hospital dos Lázaros, no belo prédio cercado de muita área e que
possuía um cemitério, o atual Cemitério da Quinta dos Lázaros. Em 1895, o governo e a Santa
Casa celebraram um contrato, no qual ficou estabelecido que esta última fosse a responsável
pela administração do hospital e do cemitério. Durante 18 anos, a Santa Casa viu-se em
dificuldades para fazer face às despesas e ao custeio, devido ao total descompromisso do
governo com os pagamentos. O reparo da precariedade das instalações e os pagamentos de
salários eram imprescindíveis, mas nada a Santa Casa podia fazer a não ser deliberar pela
devolução dos imóveis, conforme Relatório da Mesa de 1912, do Provedor Theodoro Teixeira
Gomes, que ali, incisivamente, expôs a questão.
A ação da Misericórdia expandiu-se na cidade de Salvador, tendo início com o
cuidado dos indivíduos doentes, privados da razão. Em 1869, o Governo Provincial comprou
o Solar Boa Vista, no Engenho Velho de Brotas, e em 1874 inaugurou o Hospício São João de
55
Deus, administrado por 42 anos pela Misericórdia, que ali tratava dos alienados mentais. Sua
atuação estendeu-se até 1911, quando, por ausência dos pagamentos devidos pelo governo, o
Provedor Theodoro Teixeira Gomes, após acerbas críticas em seu Relatório ao Governador
Araújo Pinho e ao Intendente Conselheiro Antonio Carneiro da Rocha, findou a parceria, já
que “[...] ela se encarregou, por contrato, de administrá-lo mediante o pagamento de
subvenções anuais, e não no fim de 6, 7, 8 annos como acaba de succeder, e pelo que estão
rescindidos esses contratos.” (ASCMB, Relatório..., 1912, p. 206).
1.3.2 Ações caritativas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
A preocupação da Santa Casa com os pobres e desvalidos levou-a a administrar o
Asilo da Mendicidade, órgão de assistência instituído pelo Governo da Província da Bahia em
1862, que ficou abrigado na Quinta dos Lázaros até 1887. Em 1895, mediante contrato
assinado entre o Intendente João Agripino Dórea e o Provedor Manoel de Souza Campos, o
Asilo passou a ser administrado pela Misericórdia. Durante 16 anos, chegou a abrigar 350
mendigos. Repetida história de não pagamento das despesas por parte da municipalidade
levou o Provedor Theodoro Teixeira Gomes, com a aprovação da Junta, a devolver o Asilo à
Intendência Municipal em 31 de dezembro de 1912 (ASCMB, Relatório..., 1912). Em 1877 o
Asilo foi denominado Abrigo D. Pedro II e transferido para o Palacete Machado, no bairro da
Boa Viagem, onde permanece até o presente.
Ainda no contexto de oferecimento de abrigo e amparo a desvalidos, a Santa Casa
criou outros asilos
17
, merecendo destaque o Asilo de Beneficência, fundado pelo Provedor
Theodoro Teixeira Gomes. Ele foi um administrador capaz de fazer duros enfrentamentos,
conforme mostrado nas correspondências que enviou à Junta e aos representantes dos poderes
executivos, e destacou-se pela iniciativa de criar um asilo para “[...] amparar os Irmãos desta
Santa Casa que viessem a cair em indigência” (ASCMB, Relatório..., 1912, p. 107). A Junta
17
Ainda que extrapole o período desta pesquisa acadêmica, vale registrar que a Santa Casa, atendendo ao desejo
testamentário de Ernestina Guimarães, criou um Asilo com o seu nome para “[...] prover a sustentação de um
albergue ou asylo para recolhimento de viúvas pobres e envergonhadas, de bom comportamento, que sejam
velhas e não possam trabalhar” (COSTA, 2001, p. 117). Para dar condições de realização de seu desejo, ela
legou bens imóveis, jóias, apólices etc. Em 1950 foi inaugurado o asilo com as presenças de ministro,
governador, irmãos, entre outros convidados, mas, com o passar do tempo e o surgimento de novas
necessidades e dificuldades, foi transformado em Internato para abrigar também pensionistas. Apesar de todo
o aparelhamento moderno, não obteve a clientela esperada e Costa (2001) levanta a hipótese de que o
preconceito foi a causa do insucesso.
56
aprovou a proposta da criação do Asilo e o regulamento das bases para o Fundo da
Beneficência, formado pela doação de Irmãos. Em 11 de junho de 1914, ocorreu a
inauguração do prédio erguido num terreno da Santa Casa, no largo de Nazaré, vizinho ao
Hospital Santa Isabel. A inauguração contou com as presenças do Governador J.J. Seabra, do
Intendente Dr. Júlio Viveiros Brandão, do Arcebispo Primaz D. Jerônimo Tomé da Silva, que,
com suas presenças prestigiavam e reforçavam as ações sociais desempenhadas pela
instituição, numa cidade cada vez maior e com os conseqüentes problemas. Muitos Irmãos de
menor condição social, humildes, soldados e artesãos tiveram suas viúvas e filhos amparados
pelo Fundo. Os doentes eram atendidos nas enfermarias do Hospital, mas o prédio, segundo
Costa (2000, p. 83), “[...] nunca foi usado como Asilo”, o que levou a entidade a dar-lhe outra
finalidade até quando foi arrendado em 1942 à Cruz Vermelha e adquirido posteriormente
pelo Governo Federal.
Dentre as ações caritativas da Santa Casa estava a importante tarefa e o privilégio da
Misericórdia: o de enterramento de Irmãos e pessoas de posses sepultadas em igrejas,
conforme costume, e não-irmãos, negros e pobres num cemitério que a instituição possuía no
Campo da Pólvora. Tal ato de caridade, impedindo que corpos fossem lançados ao mar ou
permanecessem insepultos nas praias e portas de templos, gerava-lhe custos, mas bom
conceito na sociedade (RUSSELL-WOOD, 1981).
A concessão ou privilégio de enterrar os mortos, segundo Campos (1934, p. 223),
remonta ao “[...] Cardeal Arquiduque da Áustria, legado de ‘latere’ de Clemente VIII que
estabeleceu em 30 de junho de 1593 o monopólio de tumbas e esquifes.” Com o privilégio da
Misericórdia de carregar os cadáveres da família reinante, na Bahia, cabia a ela carregar o
corpo dos Governadores falecidos, enterrar os mortos e o monopólio do sepultamento de
brancos rendiam dividendos e prestígio à Irmandade.
Tal situação perdurou até o século XIX, quando ocorreu a “Cemiterada”, 1836,
movimento de oposição à determinação oficial de não mais permitir sepultamentos nas
igrejas, quando a Assembléia Provincial concedeu a uma firma privada o monopólio da
construção de cemitérios (REIS, 1991). Assim, o Campo Santo foi construído sob o desagrado
de todas as irmandades e Ordens Terceiras que incitaram a população à destruição do imóvel.
A Assembléia Provincial teve que ressarcir os prejuízos à companhia construtora e acordou a
administração do cemitério com a Santa Casa, que o comprou em 1840.
Como já referenciado, desde sua fundação, a SCMB obtinha rendas provenientes de
heranças e bens alienáveis e recebeu em 1700 o grande legado de mais de 182 contos de réis
57
deixado pelo rico comerciante português João de Mattos de Aguiar
18
, conhecido como João de
Matinhos. O homem de negócios do século XVIII sobrepujara a tradição dos homens de terras
do século XVII e o testamento foi cumprido após inúmeras dificuldades. O testamento de João
de Matinhos deixava 100.000 cruzados para celebração de 11.000 missas por sua alma, de seus
pais e avós, 16.000 cruzados para serem emprestados e os juros retornarem à Misericórdia,
134.500 cruzados mais uma cota para serem oferecidos em empréstimo e cujos juros
financiariam dotes para as moças abrigadas e 80.000 cruzados para a construção de um
Recolhimento para mulheres (RUSSELL-WOOD, 1981). Depois de diversos desentendimentos
quanto ao lugar, definiu-se pela construção vizinha ao hospital localizado na Rua da
Misericórdia e a ele ligado por um passadiço elevado sobre a Ladeira da Misericórdia.
Assim, ainda no século XVIII, a cidade de Salvador presenciou a importante ação da
Santa Casa de Misericórdia: a fundação do Recolhimento do Santo Nome de Jesus,
inaugurado em 1716. A construção da casa secular do Recolhimento atendendo ao testamento
de João de Matinhos, ofereceu abrigo para donzelas brancas e mulheres casadas que tiveram
sua honra ameaçada ou por problemas conjugais, numa clara concordância com os valores
morais de preservação da honra, castidade e bom nome das famílias. Elas ali partilhavam da
vida rigorosa e disciplinada, convivendo com religiosas brancas, escravas negras e agregados
mestiços. Dentro daquele universo próprio, e em minoria, aprendiam valores éticos, religiosos
e sociais, onde, sem dúvida, estavam implícitos os componentes raciais. Sobre elas pesava
sempre a suspeita de serem frutos de amores ilícitos, rebentos de famílias importantes no
cenário social, ou mesmo de famílias remediadas, mas que tinham em sua cor branca um
importante capital que poderia abrir algumas portas e facilitar a ascensão social.
A obra foi começada em 1705 e inaugurada em 1º de junho de 1716, com as presenças
do Provedor e Desembargador da Relação, Dionísio de Azevedo Arvelos, sob a gerência de
Victória Correia de Sá. Segundo Costa (2001, p.23), uma “[...] mulher branca, cristã-velha, de
idade avançada, de boa reputação e posição social adequada. Começou a funcionar com oito
internas, uma porteira e as escravas necessárias ao serviço.” O estabelecimento desfrutava de
prestígio junto a sociedade baiana, que o via como espaço física e moralmente seguro e
organizado.
A transcrição do livro de Tombamentos dos Bens da Santa Casa, escrito por Joaquim
Antonio Damázio, feita por Costa (2001, p. 24) revelou: “[...] os três pavimentos do imóvel
abrigavam 58 quartos, além das dependências de servidão comum: claustro, oficinas,
18
João de Mattos de Aguiar era português, veio para o Brasil, aqui se casou, mas não teve filhos.
58
sanitários, banheiros, cozinha, refeitório e outras.” Ele fez duras críticas sobre a estrutura do
prédio considerando-o insalubre e inadequado (COSTA, 2001). Com o passar do tempo
chegou a abrigar 166 pessoas, inclusive apresentando problemas de ordem disciplinar e
administrativa, carecendo de asseio e controle para um bom funcionamento. Tais problemas
levaram a Mesa a trazer da França as Irmãs de Caridade de São Vicente de Paulo, para
efetuarem um reordenamento. Esta tarefa revelou-se muito difícil, pois, conforme o Relatório
de 1858, transcrito por Costa (2001, p.26), as internas estavam mal acostumadas ao trabalho, à
educação, disciplina e a vida regrada, levando-as a protestar publicamente durante a missa da
Quaresma, gritando das janelas, a clamarem por socorro contra as Irmãs.
A chamada Revolta das Internas
19
foi um escândalo inesperado e mortificante para a
Provedoria. Costa (2001) relata que a repercussão do fato foi grande, redundando na renúncia
do Provedor João Mariano Wanderley, na decisão da Junta de separar as rebeldes e as maiores
de 17 anos que quisessem acompanhá-las, destinando-as a outros estabelecimentos, devendo
as demais permanecer no Recolhimento, sob a direção das Irmãs. Este fato merece um estudo
aprofundado pelos aspectos que revela: gênero, educação, disciplina, controle, hierarquia,
religião, entre outros. O Recolhimento funcionou por 146 anos, até 1862, quando as meninas
e mulheres foram transferidas para o novo prédio no Campo da Pólvora, juntamente com as
crianças que foram ali colocadas, na Roda dos Expostos (COSTA, 2001).
A Misericórdia queria fazer jus aos deveres contidos em seu Compromisso ou
Estatuto, todo ele lastreado em princípios cristãos, e a criança desvalida foi um de seus alvos
de cuidados. Também, a exemplo do que ocorria na Europa desde a Idade Média, a Santa
Casa de Misericórdia da Bahia abrigou Roda de Expostos, a primeira do Brasil. A Roda era
uma caixa cilíndrica de madeira, onde, anonimamente, parentes ou responsáveis colocavam as
crianças por eles abandonadas, enjeitadas, chamadas também de expostas. Daquele momento
em diante passariam a ser cuidadas pela instituição. A criação da Roda foi decorrente da
iniciativa do Vice-Rei, Conde de Sabugosa, que fez reunir a Junta Provincial em 1726 para
regular e registrar o recebimento de crianças abandonadas, devido a problemas econômicos,
sociais e também de ordem moral, embasados em preconceitos. Vale ressaltar que o rei de
Portugal considerava os enjeitados e abandonados como manchas na reputação da colonização
portuguesa e o arcebispo Dom Luis Álvares de Figueiredo (1724-1735) demonstrava
19
A Revolta das Internas ocorreu dia 28 de fevereiro de 1858. Nesse mesmo período, ocorreu em Salvador a Revolução da
carne sem osso e farinha sem caroço ou revolução das pedras, ou dos chinelos. De acordo com Recordações Históricas de
Braz do Amaral (2007, p. 269), a população soteropolitana, desagradada das presenças das religiosas, invadiu algumas casa
pias, ao tempo em que gritava nas ruas por farinha barata, iluminação a gás, estrada de ferro e outros melhoramentos. O
Palácio recebeu pedradas e, na dispersão da multidão, muitos chinelos ficaram perdidos na rua (BRAZ DO AMARAL, 2007).
59
preocupação com o aspecto moral e religioso da questão. O registro mais antigo de enjeitado
existente na SCMB data de 1757 (RUSSELL-WOOD, 1981).
A efetivação da Roda, contudo, só ocorreu “[...] em 1734, após a autorização do Rei
de Portugal e foi primeiramente instalada na portaria do prédio do Recolhimento, na rua da
Misericórdia” (COSTA, 2001, p.34-34). As crianças eram alojadas nas inadequadas
instalações do internato no Hospital São Cristóvão para, em seguida, serem enviadas a
famílias adotivas ou mães-criadeiras. Neste sistema de alocação, as amas, comumente
mulheres pobres, negras ou mestiças, que cuidavam da criança até a idade de três anos,
recebiam em contrapartida uma pequena ajuda paga pela Santa Casa, que ainda custeava
assistência médica e vestuário aos enjeitados. Após este período de três anos, as crianças
retornavam a instituição para serem educadas. De junho de 1833 até 1862, as crianças
passaram a viver no prédio do Recolhimento, devido à transferência do Hospital para o prédio
do Colégio dos Jesuítas, na área do Terreiro de Jesus.
O enjeitado ou exposto ali acolhido, conforme os Evangelhos, era um dos pequeninos
que Jesus pedia que acolhesse: “Deixai vir a mim os pequeninos, pois deles é o reino dos
céus” (EVANGELHO, Lucas 18:16), ou ainda “Quem acolher um destes pequeninos é a mim
que acolhe” (EVANGELHO, Mateus 18, 5).
O sentimento cristão movia pessoas a cuidarem dos deserdados da sorte, por puro
sentimento de piedade. Para a nobreza, elites e governantes, entretanto, a existência de tantos
enjeitados era uma nódoa social a ser resolvida pelo incômodo que causava. As crianças que
não traziam identificação, de acordo com o art. 6º do Regulamento de 1863, recebiam o nome
do santo do dia e o cognome do padrinho e benfeitor Mattos, sobrenome do âmbito
institucional, era alvo de discriminação e preconceito (RODRIGUES, 2003).
Numa cidade portuária como Salvador, com fluxo intenso de pessoas de diferentes
etnias e seus perfis de atividade, cultura e morbidade, as ligações ocasionais podiam resultar
em filhos que não encontravam estrutura familiar que os acolhesse, cabendo à mulher a
criação ou o enjeitamento do filho. A mulher urbana, notadamente as negras ou mestiças,
muitas vezes sem companheiro, podiam contar apenas com a rede de solidariedade de
parentes e vizinhos para ajudar na criação do filho, que lhe seria de mais valia se ela vivesse
numa realidade rural, onde o trabalho infantil era desde cedo solicitado (VENÂNCIO, 2001).
Já foi comentado anteriormente sobre o contingente de homens e mulheres negros e
mestiços de Salvador, vivendo em situação de escravidão ou de liberdade desassistida, sem reais
condições de vida digna, o que impeliu muitos deles a deixarem na Santa Casa os frutos de suas
relações, crianças recém-nascidas (saudáveis, enfermiças ou moribundas) para ali receberem
60
abrigo ou sepultamento. O abandono de seus filhos foi, muitas vezes, justificado pela necessidade
de sobrevivência da mãe do próprio infante, pois a limitava e exigia-lhe tempo e recursos. Os
gêmeos, os doentes, moribundos ou portadores de qualquer anomalia eram os que mais corriam
riscos de abandono, devido aos encargos e despesas maiores que causariam às mães, aos pais ou
responsáveis (VENANCIO, 2001). Retomando o Censo de 1872, observa-se que a cidade
abrigava 51.531 mulheres, sendo 14.064 brancas e livres e as demais 37.467 negras ou mestiças,
livres ou escravas. Dentro desse universo não é de surpreender que a maioria das crianças
expostas ou em situação de risco social tenha sido filha das negras e mulatas.
Marcílio (1998) considera que a Misericórdia, enquanto cuidava das crianças
enjeitadas obrigação da Câmara Municipal , praticava a caridade, desde a aprovação da
Lei dos Municípios, de 1828, que determinava a responsabilização dessas casas, onde
houvesse, pelo cuidado dos enjeitados, passando a receber ajuda da Assembléia Legislativa
Provincial. De acordo com a autora:
[...] estava-se oficializando a roda de expostos nas Misericórdias e colocando estas a
serviço do Estado. Perdia-se, assim, o caráter caritativo da assistência, para
inaugurar a sua fase filantrópica, associando-se o público e o particular.
(MARCÍLIO, 1998, p. 62).
A Roda foi uma saída do caminho do abandono e da solidão para muitas crianças, mas
também a via considerada mais fácil para que recebessem atendimento médico, batismo e
sepultamento, já que muitas eram entregues em avançado estado de doença ou moribundas,
por pais ou responsáveis que não queriam ou não podiam arcar com as despesas de tratamento
e funeral. Diversos trabalhos, notadamente o de Rodrigues (2003) relatam a pungente situação
das crianças, seja no que se refere às acomodações no abrigo, seja nas casas a amas de leite,
com um assustador quadro de morbi-mortalidade infantil. A despeito da contribuição
financeira feita pela Coroa, a assistência aos enjeitados passou a depender muito dos legados.
Conforme já relatado, as crianças acolhidas viviam nas exíguas e precárias instalações
conjuntamente ao Recolhimento e o alto índice de mortalidade preocupava as sucessivas
Provedorias, Mordomias e Irmãs de Caridade. Como membros da elite integravam a Santa
Casa de Misericórdia, não é de estranhar que as já citadas influências higienistas tenham
determinado ações de maior cuidado com a saúde dessas crianças cuidadas pela instituição,
em sua maioria negras e pardas, buscando reduzir as altas taxas de mortalidade registradas em
seus documentos. Preocupando-se com a salubridade dos espaços, para impedir a proliferação
de doenças e a possível mortalidade dos abrigados, a Santa Casa zelava pelas crianças e
61
adultos de diferentes etnias que estavam sob sua guarda e também por seu importante capital:
o prestígio e o conceito que gozava junto às esferas de poder.
Foi por estas razões que a instituição deliberou oferecer melhores condições aos
expostos, providenciando acomodações mais adequadas a sua criação, educação, lazer e
saúde. Para isto, adquiriu o antigo Colégio Nossa Senhora dos Anjos, numa roça no Campo da
Pólvora, em 1862. No espaço foi instalado o Asilo de Nossa Senhora das Misericórdias, que
acolhia os expostos e propiciava-lhes a indispensável educação (COSTA, 2001).
1.3.3 Obra educativa
A ação educativa
20
iniciou-se com a Escola do Recolhimento, depois com as Escolas
Internas e Externas abrigadas no espaço do Asylo de Nossa Senhora das Misericórdias,
também conhecido como Asylo dos Expostos e, por fim, com a Escola Elementar.
1.3.3.1 Escola do Recolhimento
Conforme já citado, o Recolhimento foi criado em 1716 para abrigar “donzelas” em
idade apropriada para o casamento, oriundas de famílias de classe média e, preferencialmente,
filhas dos irmãos mais pobres. Ao se casarem, as moças recolhidas recebiam dotes
21
com o
recurso destinado por um Irmão da Misericórdia, João de Matinhos, especificamente para tal
fim, ainda que o Compromisso da Misericórdia, datado de 1618, fosse expressamente
contrário ao recebimento de outras mulheres que não as donzelas em estabelecimentos por ela
administrados (RUSSEL-WOOD, 1981).
20
A Santa Casa, além de seus componentes filosóficos e religiosos, tinha também seus componentes legais, pois
a instituição era juridicamente reconhecida e buscava pautar todas as suas ações observando a legalidade.
Assim sendo, os espaços escolares da instituição eram embasados em regras social e juridicamente aceitas,
observando-se as determinações oficiais para as providências e encaminhamentos pedagógicos referentes a sua
instalação e funcionamento. Contudo, não será observado o rigor cronológico da exposição de cada uma delas
devido ao fato de que é a Escola Interna nosso objeto principal de análise. Assim sendo, o Asilo e a Escola
Interna constituem-se no objeto do segundo capítulo.
21
De acordo com Russell-Wood (1981), o dote era dado às expostas quando elas contraíam matrimônio. Tal
encargo não estava previsto no Compromisso de Lisboa, de 1516, mas foi regulamentado no Estatuto de 1618.
Para fazer jus ao dote era necessário observar certos requisitos, que variavam entre reputação, cor, religião,
dentre outros.
62
Na carta em que aprovara a instituição do Recolhimento, o rei recomendara com
empenho à Mesa a admissão de outros dois tipos de mulheres. O primeiro eram as
“porcionistas”, viúvas ou solteiras de boa reputação, que pagassem seu alojamento e
alimentação. O segundo grupo era de mulheres cujos maridos estivessem ausentes
da Bahia a negócios e que ficariam no recolhimento durante o
afastamento daqueles.
(RUSSELL-WOOD, 1981, p. 259).
Já no século XIX, a Misericórdia se preocupava com a formação das “donzelas” e
meninas recolhidas, buscando oferecer-lhes o mínimo que fosse de educação formal e de
preparo para a vida. De acordo com Costa (2001, p.86): “[...] em 1830 foi construído um salão
para a Escola Primária, com duas professoras pagas pela irmandade da Misericórdia, para
ensinar as crianças ali recolhidas.” As crianças enjeitadas, em 1847, mereceram a atenção do
Arcebispo Dom Romualdo Antonio de Seixas, então ocupante do cargo de Provedor da Santa
Casa, que criou as Casas de Expostos em Educação, uma para cada sexo, demonstrando uma
preocupação com as crianças e jovens alojados.
Como relatado anteriormente, as prendas domésticas faziam parte do programa
educativo, mas não foram localizadas as especificações e outros dados sobre os tipos de
trabalhos ali desenvolvidos. Costa (2001, p. 24) refere a ampliação do Recolhimento: “Em
1859/60, o espaço físico do Recolhimento foi acrescido de salas para trabalhos das internas.”
As dificuldades enfrentadas pela Mesa, órgão diretivo, são expostas em Relatório de 1863:
[...] em vão tem diversas Mesas tentado melhorar a sorte dessas suas tuteladas,
introduzindo no Recolhimento o ensino de primeiras letras, e de algumas prendas
domésticas, o trabalho lucrativo, os costumes regrados: taes e tão inveterados são os
defeitos de educação naquelle Estabelecimento, que a todas as providências da
Administração tem resistido e burlado! (ASCMB, Relatório..., 1863-1864, p.15).
Já foi visto que nem todas as determinações da vida do Recolhimento foram
observadas pela administração e pelas recolhidas, levando o estabelecimento a um nível de
desregramento de costumes e rebeldia considerado inaceitável por parte da Provedoria, que
buscou corrigir, inutilmente, tal situação. O Recolhimento tomou a seu cargo outra
incumbência: foi o primeiro local a abrigar as crianças acolhidas pela Santa Casa, já que na
portaria de seu prédio foi efetivamente instalada a Roda dos Expostos em 1734. As crianças
eram recolhidas e encaminhadas para o Hospital São Cristóvão, para serem entregues por três
anos a amas contratadas pela Santa Casa. Após tal período voltavam ao precário internato
instalado no hospital. Em 1833, o hospital passou a ocupar o antigo prédio do Colégio dos
Jesuítas, localizado no Terreiro de Jesus. Desde esse momento, as crianças passaram a ser
alojadas no próprio Recolhimento, onde eram educadas.
63
Considerando o alto custo para reformar o imóvel, a Provedoria aventou a possibilidade
de remover as crianças para outro imóvel da entidade, mas por ser igualmente inadequado, a
idéia foi abandonada. Os problemas com a conduta das mulheres se avolumavam no
Recolhimento e atingiram o clímax com a citada Revolta das Recolhidas, a qual contribuiu
para o fechamento do estabelecimento, em 1862, dispersão das revoltosas e decisão de
transferir as crianças para um espaço condigno (COSTA, 2001).
1.3.3.2 Escola Elementar Mista
A partir de 1901 a Santa Casa começou a se preocupar com a educação dos filhos dos
Irmãos que não podiam custear seus estudos, assim como de meninos e meninas pobres que
viviam com seus familiares ou responsáveis. Por conta disso, em 14 de março de 1898, a Junta
tomou a resolução de criar uma escola mista de ensino elementar que funcionasse gratuitamente.
[...] para educação dos filhos dos Irmãos pobres que não tiverem meios de educal-os,
e ainda para as creanças desvalidas em geral, podendo ser esta cadeira estabelecida
no salão por baixo da Repartição Central. Opportunamente será posta em prática esta
resolução cuja utilidade perfeitamente compreendeis. (ASCMB, Relatório..., 1897-
1898, p.6).
Tal propósito concretizou-se com a instalação da escola, subordinada diretamente à
Provedoria, na ala esquerda do pavimento térreo da Repartição Central
22
, inaugurada em 21
de fevereiro de 1901. A Mesa nomeou o Irmão Antonio Pacífico Pereira, que já exercia a
função de Mordomo do Hospital dos Lázaros, para realizar a inspeção do serviço, ficando a
organização da escola e do respectivo regimento aos cuidados do Professor Elias de
Figueiredo Nazareth. Foi nomeada como Professora a aluna mestra D. Maria d’Assumpção
Lessa (ASCMB, Relatório..., 1901-1902, p. II).
O Regimento Interno da Escola Elementar da Instrucção Primaria da Santa Casa da
Misericórdia da Capital da Bahia, aprovado em Junta de 20 de dezembro de 1900, constava de
24 artigos distribuídos em quatro capítulos: o primeiro tratava da Escola; o segundo, do Ensino;
o terceiro, da Fiscalização da Escola; o último tratava das Disposições Gerais. Com a matrícula
gratuita para qualquer criança pobre e/ou filha de Irmãos, mediante guia da Repartição Central,
a escola funcionava das 9 às 14 horas, incluindo momento para descanso e recreio. Tendo bem
22
A Repartição Central era o centro administrativo da Santa Casa. Sempre esteve localizada no prédio matriz, na
Rua da Misericórdia, área central da cidade de Salvador.
64
definido seu calendário, os trabalhos eram iniciados em 3 de fevereiro e encerravam-se em 30
de novembro, especificando os feriados da Semana Santa, da República, dias santos para a
Igreja e as férias que iam de 23 de junho a 5 de julho (ASCMB, Regimento..., 1904).
O Art. 12 do Regimento (ASCMB, Regimento..., 1904) especificava que o ensino
constava de religião cristã, língua vernácula (falar, ler e escrever corretamente); cálculo das
operações aritméticas usuais e prática do sistema de pesos e medidas métricas; desenho linear;
noções de geografia e história pátria, especialmente da Bahia; noções de história natural;
noções de higiene; noções de moral cívica e civilidade (explicadas em livro de leitura); canto;
ginástica; e trabalhos manuais (mais como recreação do que tarefa).
O Programa das matérias era distribuído em três cursos que englobavam três âmbitos:
educação física, educação intelectual/instrução e educação moral e religiosa. No que se refere
aos trabalhos manuais, havia a especificação de acordo com o curso e o sexo: no Primeiro Curso
eram indicados para os meninos a dobradura, recorte e cartonagem; para as meninas: crochet,
marca, ponto; no Segundo Curso os meninos continuavam com as mesmas indicações mas
“com outro desenvolvimento” e as meninas podiam aprender tecido, ilhó e começo de bordado;
no Terceiro Curso os meninos deviam ter trabalhos práticos sobre todas as matérias e as
meninas se dedicavam aos trabalhos de fantasia, cortes de costura (ASCMB, Regimento...,
1904). Meninos e meninas com trabalhos manuais considerados apropriados para cada sexo!
Ainda constavam nas Observações: “A lição de cousas
23
será a forma que revestirá
todo o ensino do 1º curso e parte do 2º.” Quanto ao método de ensino, o Art. 11 rezava que
“[...] o modo de ensino será o mixto, o méthodo concreto para as 1ªs classes ou cursos e o
método concreto e abstracto
24
para os superiores.” (ASCMB, Regimento..., 1904, p.3) O
Regulamento era bastante claro quanto à separação dos sexos, estabelecendo no Art. 8º: “Os
alumnos de ambos os sexos se sentarão em duas divisões correlativas, havendo porta de
sahida e de entrada para cada sexo” (ASCMB, Regimento..., 1904, p. 2). Este dado mostra a
separação por sexo desde a infância. Esta norma estabelecida pelo Regulamento contribuiu,
entre outras coisas, para que meninos e meninas introjetassem os papéis socialmente aceitos.
Num contexto social como o da cidade de Salvador, no final do século XIX e início
do XX, muitos conceitos estavam ainda arraigados e entre eles estava o de universos e
23
Lição de cousas - método intuitivo, conforme orientação de Ruy Barbosa, que abandonaria as características
de abstração, repetição e inércia do ensino até então adotado. Tal método já estava em discussão nas
conferências pedagógicas internacionais e era adotado em escolas na Europa e nos EUA (SAVIANI, 2004).
24
Através do método intuitivo/ lição de cousas, o processo de ensino devia desenvolver-se do simples para o
complexo, do que estava diante dos olhos para o que não se sabia, do fato as causas, chegando-se a ponto de
sair do concreto para o abstrato, da percepção dos sentidos para as idéias e o modo de ensinar e aprender seria
modificado pela nova dinâmica escolar (VALDEMARIN, 2008).
65
papéis diferenciados para meninos e meninas. Mesmo numa escola que se propunha a
educar ambos os sexos, ela refletia a mentalidade de seu tempo, que buscava transformar o
ser, macho ou fêmea, em homem e mulher, estabelecendo as relações sociais, os
comportamentos, sentimentos e valores para cada um dos sexos, numa clara demarcação de
gênero, que mostra de maneira inequívoca que as diferenças sexuais são suficientemente
fortes para que se exija a separação nos mínimos atos da vida escolar. Gênero é assim
definido por Scott (1990, p. 12):
Gênero é a organização social da diferença sexual percebida. O que não significa
que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e
mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as
diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos
sociais e no tempo, já que nada no corpo [...] determina univocamente como a
divisão social será estabelecida.
Nessa construção social de gênero, consoante Saffioti (1991, p. 23): “[...]
Rigorosamente, os seres humanos nascem machos e fêmeas. É através da educação que
recebem que se tornam homens e mulheres. A identidade social é, portanto, socialmente
construída.” Assim, não é de estranhar que meninos e meninas desde cedo aprendam suas
posições sociais, cabendo aos primeiros a concreta situação de comando e às meninas a
restrição ao espaço doméstico e a maternidade como forma de realização pessoal.
Nesse entrelace, com o uso da linguagem na construção de processos de significação,
entram em cena “[...] os sistemas simbólicos, ou seja, os modos como as sociedades
representam o gênero, servem-se dele para articular as regras de relações sociais ou para
construir o sentido da experiência” (SCOTT, 1990, p.16).
Na Escola Elementar da Santa Casa de Misericórdia, a professora devia zelar pela
reprodução destas concepções que definiam papéis sociais masculinos e femininos; ela ainda
tinha sob seus cuidados, além do trabalho didático, a obrigatoriedade de apresentar
mensalmente o mapa de freqüência e aproveitamento, que deveria ser visado pelo Inspetor ou
Auxiliar da escola, que acompanhava toda a atividade docente, efetuava visitas fiscalizadoras,
podendo dar orientação para melhores métodos de ensino, assim como propor ao Provedor
medidas dentro de sua área de reconhecida competência. O Inspetor, mensalmente, deveria
prestar informações ao Provedor sobre o desempenho da regente e da pessoa encarregada da
conservação do material escolar (ASCMB, Regimento..., 1904, p.4).
A escola sempre teve um grande número de alunos, chegando a ter cem meninas.
Durante a Provedoria de Manoel de Souza Campos, diante do número inicial de 70 a 80
66
alunos pobres de ambos os sexos na Escola Elementar, em 1903, foi nomeada como adjunta a
Professora Anna de Santa Rosa Lessa (ASCMB, Regimento..., 1903-1904, p.IV). Este
contingente, em 1911, foi reduzido por determinação do Provedor Comendador Theodoro
Teixeira Gomes que assim se expressou: “Julgando não ser possível com o auxilio de duas
únicas professoras, D.D. Maria e Anna Lessa, manter-se as cem meninas que a freqüentavam,
reduzi aquele número para 80. Encerrou-se esta escola com 73 alumnos, dos quaes 49
meninas.” (ASCMB, Relatório..., 1911, p.16).
A escola constituía-se num objeto de satisfação para a Santa Casa, ainda que nenhum
lucro gerasse, conforme as palavras do Provedor:
A escola é mais um attestado da caridade desempenhada pela Santa Casa de
Misericórdia, que não cuida somente dos enfermos, dos pobres e das creanças
desamparadas da fortuna, mas também dos que precisam do cultivo do espírito. Não
rende coisa alguma: a sua despeza, porem, elevou-se o anno passado a somma de
4:367$100. (ASCMB, Relatório..., 1911, p.16).
Em 24 de novembro de 1913, os 80 alunos da Escola Elementar, dentre os quais 12
pensionistas, encerraram o ano letivo numa solenidade considerada brilhante, iniciada com
missa na Capela Central da Misericórdia, na Rua da Misericórdia. A entrada dos
pensionistas, fazendo com que existissem duas classes uma para crianças de condição
social baixa e uma de pagantes mostrava uma separação por classe social e fazia a receita
elevar-se, ainda que continuasse em grande distância do montante das despesas. Em 1914 a
administração, além de limitar a lotação das salas, instituiu a taxa de 50$000 anuais, paga de
uma vez, para a matrícula das crianças de famílias abastadas, taxa paga sem relutância
(ASCMB, Relatório..., 1921-1922).
A realização dos exames finais e encerramento do ano letivo ocorriam nos primeiros
dias de dezembro, sob a presidência do Provedor ou alguém por ele designado. Começava com
missa festiva, torneio literário e contava com as presenças do Provedor, Escrivão, professoras de
diversas escolas municipais, da própria instituição, familiares e amigos dos alunos e repórter do
jornal Diário de Notícias. Como parte do programa de exame, eram expostos para apreciação
geral os trabalhos gráficos e as prendas domésticas produzidas no ano. A banca examinadora,
composta por professores de competência inquestionável, atribuía os conceitos de
“simplesmente”, “plenamente”, “distinção” e “louvor” aos examinados, (ASCMB, Relatório...,
1914, p. III). A escala de valores se fazia presente, demarcando posições, segundo Foucault
(2007, p.160) “[...] combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora.” Assim, o
exame era um ritual temido e esperado, manifestação de poder e de controle.
67
No ano de 1918, como já referenciado, ocorreram alterações urbanas no centro da
cidade, entre as quais o alargamento da Rua da Misericórdia, acordado entre a SCMB, a
Companhia Linha Circular de Carris da Bahia e o Município, envolvendo demolições e
permutas. Por conta disso, o enceramento das aulas se fez dias antes da época normal, em
conseqüência das demolições dos prédios à Rua da Misericórdia, para não expor as crianças
aos inconvenientes da “[...] poeira de edifícios velhos e necessariamente contaminados de
germens transmissiveis. A conselho do illustre hygienista Dr. Luiz Anselmo da Fonseca foi
tomada aquella resolução” (ASCMB, Relatório..., 1917-1918, p.111), indicando que a Santa
Casa vivenciou as preocupações higienistas que ocorriam na cidade.
Em 1919 a Escola apresentava o número de 112 matriculados, com a freqüência de
103 alunos; as professoras Maria d´Assumpção Lessa e Anna Lessa passaram a contar com a
atuação de mais duas mestras: Elisa Ribeiro Saldanha e Hercynia Witzlebem Fernandes.
Durante o biênio 1919-1920, na Provedoria de Isaias C. Santos, as 4 professoras e seus alunos
passaram a dispor de um pequeno palco para as atividades culturais. Foi nesta gestão
administrativa que a escola recebeu o nome de Eloy Guimarães, cirurgião dentista, integrante
da Irmandade da Misericórdia, que ao falecer contemplou a Santa Casa em seu testamento
(ASCMB, Relatório..., 1921-1922). Ao invés de fazer arriscadamente um grupo escolar com a
esmola de Eloy Guimarães, a Santa Casa optou por “[...] conferir às duas escolas, a esta e à do
Asylo dos Expostos, o caracter de permanência que até ahi não tinham. Eis ahi , portanto, a
feição moral do facto” (ASCMB, Relatório..., 1921-1922, p.67).
O dia 20 de dezembro de 1921 trouxe uma perda para a escola: a Profª. Maria
d´Assumpção Lessa de Carvalho, faleceu em “poucas horas de assalto do mal
levantino”
25
. Em função disso, a Professora adjunta Anna de Santa Rosa Lessa foi promovida
a efetiva e as duas auxiliares Elisa e Hercynia passaram a adjuntas efetivas pela Portaria
nº. 13, de 31-12-1921. O trabalho desenvolvido e a dedicação da professora falecida foram
reconhecidos e na sessão de 29 de novembro de 1922, a Junta, unanimemente, autorizou que
fosse colocado seu retrato, deferindo assim o pedido de sua colega e ex-discípula, Elisa
Ribeiro Saldanha (ASCMB, Relatório..., 1923-1924, p. 37).
A Escola Eloy Guimarães funcionou até a década de sessenta, tendo abrigado alunos
naturais da Bahia, Rio de Janeiro, Alagoas e alguns filhos de imigrantes (ASCMB, Livro...,
1921-1939).
25
Peste bubônica era conhecida como mal levantino, sendo justificada sua presença na Europa como resultado
dos hábitos anti-higiênicos dos orientais, que assim perpetuavam a doença em seu continente, e da fragilidade
dos serviços de vigilância sanitária dos portos europeus (CUKIERMAN; HENRIQUE LUZ, 2008).
68
1.3.3.3 Escola Externa: um espaço só para meninas
Ainda que subordinada ao Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia, obra da Santa
Casa que será tratada no capítulo seguinte, a Escola Externa é aqui apresentada no bojo das
demais ações educativas, por não ser o objeto central deste estudo.
Numa cidade com os componentes sociopolíticos e educacionais já vistos, a abertura
de uma escola gratuita para meninas pobres era uma oportunidade de oferecer educação a um
pequeno contingente que poderia ter ficado à margem do processo educativo formal. Vista
como uma valiosa oportunidade para meninas oriundas das classes sociais mais baixas, a
Escola Externa da Santa Casa foi aberta no prédio Campo da Pólvora, durante a Provedoria de
Antonio Ladislao de Figueiredo Rocha
26
. No dia 3 de fevereiro de 1872, sob a direção de uma
das Irmãs de Caridade, ela foi aberta em um dos pavilhões externos, a direita da entrada
principal (ASCMB, Relatório..., 1872, p.7).
A escola de primeiras letras foi fundada às expensas do Mordomo Antonio de Lacerda,
administrador que se empenhou pessoalmente em sua criação e, modestamente, dividiu o
mérito com a Irmã Lasnier, superiora do Asylo, como pode ser constatado na comunicação:
Fundada no ano passado em licença da Mesa de 2 de fevereiro de 1872, sem
dispêndio algum para a Santa Casa, esta escola primaria tem prestado ótimos
serviços às meninas de famílias pobres e honestas da vizinhança que vão receber ali
gratuitamente a educação primaria e religiosa, que as tornarão para o futuro boas
mães de familia. Temos hoje 65 alunas que são quantas podem caber no pequeno
edifício que a Santa Casa pôs a minha disposição. Os pedidos de admissão tem
subido a mais do dobro, o que prova, exuberantemente, quanto era necessaria a
creação desta aula naquele lugar.
Tendo sido este externato fundado durante minha mordomia a pedido da digna Irmã
Superiora que tem concorrido comigo para as despesas da aula, peço a V. Ex. que
me conceda autorização para continuar a sustenta-la, mesmo depois de passar a
mordomia a meu sucessor, por ter tomado interesse e amizade as 65 meninas que são
aí educadas.
10 de junho de 1873
Mordomo Antonio de Lacerda (ASCMB, Relatório..., 1872-1873, Anexo 10, p. 2).
O Mordomo Antonio de Lacerda era um homem de largas perspectivas e,
reconhecendo as dificuldades financeiras da Santa Casa, insistiu na oferta de educação para
crianças não admitidas pela Roda, já que a atividade na escola continuava com muita procura
e boa aceitação pelas famílias, com o número de pedidos de matrícula excedendo a
capacidade de acomodação. Tal situação levou o Mordomo Antonio Lacerda a relatar:
26
Antonio Ladislao de Figueiredo Rocha foi Provedor de 2 de julho de 1870 a 1 de julho de 1872 (ASCMB,
Relatório..., 1870-1871).
69
Se há semente que tenha produzido fructos cem vezes, é sem dúvida a nossa eschola
primária. Neste modesto recinto recebemos diariamente 150 meninas, a quem damos
gratuitamente uma educação christã; alhi lhes são ensinados o cathecismo, a
grammatica portugueza, a leitura, a orthographia, a artthimetica e alguns trabalhos
de agulha e crochet, etc. temos recebido neste anno para mais de cem pedidos pra
admissão de meninas que fomos obrigados a recusar, por falta absoluta de local, pois
o actual mal chega para as 150 que temos. O estado sanitário do estabelecimento em
geral tem sido bom. (ASCMB, Relatório..., 1875-1876, Anexo 8, p.2).
As transcrições mostram o interesse e a satisfação da instituição em prestar educação
às meninas pobres da vizinhança do Campo da Pólvora. Dentro dos parâmetros educacionais
da educação cristã, elas aprendiam a ler, escrever e contar, possibilitando-lhes, minimamente,
o rompimento da condição de analfabetas e excluídas do mundo das palavras escritas.
Somado a isso, entravam em jogo os componentes da gratuidade do ensino e do bom nome da
instituição, o que acentuava a procura das famílias que desejavam preparar melhor suas filhas
para a sobrevivência digna e, talvez, a inserção no mercado de trabalho como domésticas e
mestras de prendas. Mesmo considerando que esta ação educativa estava fundamentada na
caridade, as alunas eram firmemente direcionadas para o cumprimento da disciplina e a
observância da obediência às mestras, em plena conformidade com a concepção de que o
respeito às regras é parte do processo educativo.
Foucault (2007), ao analisar o poder da disciplina sobre o indivíduo, chamou a atenção
para o controle do corpo e do tempo como elemento de dominação que se estabelece no
espaço escolar. Meninas e suas mestras, seres femininos de diferentes idades, estavam
subordinadas às regras sociais que pautavam valores como obediência e disciplina, e se
concretizavam nas ações e comportamentos cotidianos esperados para seu universo
docilidade, submissão, religiosidade, expectativa de matrimônio e maternidade e aprendizado
de prendas domésticas para o futuro lar ou para um possível trabalho que garantisse a
sobrevivência num mundo em fim de século e em processo de industrialização.
A educação formal que preparava as meninas com “civilizador empenho” estava
contida em livros, cartilhas e catecismos, cuja aquisição significaria despesas para a Santa
Casa. Assim, em 1877, o Provedor interino Dr. Antonio Carneiro da Rocha, considerou a
possibilidade de o governo fornecer para a escola alguns materiais indispensáveis.
[...] os livros de que a província pode dispor e que costuma distribuir pelas escholas
publicas. É um grande beneficio que a Santa Casa presta a província ensinando e
educando a 160 meninas sem que se exija della um real para ser animada e protegida
nesse seu útil e civilizador empenho. A despesa do Asylo foi de 44:395$893.
(ASCMB, Relatório..., 1876-1877, p. 6-7).
70
Os livros solicitados foram remetidos pelo Presidente da Província, Conselheiro Barão
Homem de Mello, que ordenou à Diretoria de Instrução Pública o fornecimento de 50
exemplares de cada um dos livros usados nas escolas públicas, perfazendo o total de 950
exemplares. Considerando que a Santa Casa se esforçava para ministrar uma educação
compatível com a classe social e as possíveis necessidades das alunas, o uso dos livros que eram
fornecidos na rede pública da província estabelecia um razoável equilíbrio entre os conteúdos
curriculares da instituição e o das escolas que funcionavam às expensas governamentais.
O conceito da Escola Externa fez com que o Mordomo começasse a receber pedidos
de “pessoas abastadas” para a admissão de suas filhas, por considerá-la um espaço condizente
ao aprendizado de tudo o que era valorizado pela sociedade: conhecimentos gerais e
domésticos, formação religiosa e disciplina. A Santa Casa preocupava-se com as alunas,
chegando a ponto de propor, em 1886, um traje próprio e identificador para elas, aprovado e
confeccionado em 1888:
[...] ë muito necessário, para se poder distinguir as nossas meninas, das dos outros
estabelecimentos, prescrever-se o uso de um vestuário apropriado, que poderá ser de
merinó
27
preto, como antigamente, com uma cruz azul ferrete de velludo, igual as que
ornam as opas
28
da Irmandade, collocada sobre o peito esquerdo; sendo os vestidos
redondos com um frocado de plissê branco na golla e nos punhos, tendo na cintura
uma fita de setim ou gorgurão preto. (ASCMB, Relatório..., 1885-1886, p. 66).
Tal preocupação com o vestuário estava em conformidade com os princípios cristãos
que pregavam o recato com o corpo, considerado “templo do Espírito Santo”, assim como
com a preservação e o cuidado em usar algo apropriado para as meninas que se queria formar
como futuras mulheres recatadas, dignas, modestas e tementes a Deus. Desde o instante em
que passaram a usar um traje “identificador”, as meninas estavam ainda mais sujeitas ao olhar
vigilante da instituição, que passava a ter sobre elas maior alcance de controle. Foucault
(2007, p. 118) identificou em ações dessa natureza “[...] um controle minucioso das operações
do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas formas e lhes impõe uma relação
docilidade-utilidade.” Assim, as meninas seriam vistas e controladas pela instituição, pelos
transeuntes, enfim, pela sociedade.
Em 1887, as 120 alunas continuavam a estudar sob a direção das Irmãs de Caridade,
Magdalena Chovirie e Anna Ferreira. Como parte de sua formação religiosa, 40 delas fizeram
27
Merinó - tipo de tecido feito com fina lã (Novo Dicionário Aurélio, 1986,p. 1122).
28
Opa – Espécie de capa, sem mangas, com aberturas por onde se enfiam os braços, usadas pelas confrarias e
irmandades religiosas. (FERREIRA, 1986, p. 1226)
.
71
a primeira comunhão e em seguida receberam a crisma, ambos os sacramentos ministrados
pelo Monsenhor Manoel dos Santos Pereira (ASCMB, Relatório..., 1886-1887).
O número de alunas crescia, chegando a 160 meninas em 1888. Ainda neste ano, em
resposta endereçada a Associação Protetora da Infância Desamparada do Rio de Janeiro, a
Irmã Lasnier informava que a escola funcionava com
[...] 2 secções regidas por duas irmãs: é gratuita e freqüentada pelas meninas pobres
da freguesia e circunvizinhança. Na primeira secção ensina-se cathecismo, leitura,
gramatica, ortographia e arithmética; na segunda ensinão-se trabalhos de agulha; os
aviamentos clássicos e de costura são dados pelas irmãs. (ASCMB, Relatório...,
1887-1888, p. 81).
As duas salas, ainda que muito freqüentadas, com o passar do tempo começaram a
revelar necessidades de resolução inadiáveis, de acordo com Relatórios da Mesa, de 1874 e
1875, que informam pequenos reparos de caiação e pintura, canalização dos esgotos e
conserto da máquina que abastecia de água o estabelecimento. Vale registrar que, pelo fato de
a casa ser ao rés do chão, as janelas eram conservadas fechadas, “[...] pela aglomeração de
vadios que se ajuntam dirigindo ditos e gracejos para dentro da sala às meninas” (ASCMB,
Relatório..., 1889-1890, p. 20).
Como já dito, as alunas, subordinadas às professoras e irmãs de caridade, aprendiam em
sala de aula as prendas domésticas indispensáveis no espaço feminino; aprendiam também que
o mundo era dominado pelos homens, cabendo a elas obediência e sujeição aos pais, irmãos e
maridos e, mesmo em sala, eram preservadas dos “gracejos” masculinos que poderiam atentar
contra a honra e despertar a curiosidade sexual. Assim, ainda que as alunas convivessem em
suas casas com seus familiares, a escola era um espaço reprodutor da típica educação feminina,
propiciando o adestramento de corpos e mentes, tal como analisado por Foucault (2007).
Pelo Ato de 17 de janeiro de 1914, o Provedor Teixeira Gomes nomeou como
professora para a Escola Externa a aluna mestra D. Luiza Aboim de Barros, que ali trabalhou
até ser transferida para a Escola Interna, sendo substituída pela Profª Cecília Bricídio. A
escola continuava funcionando nos moldes tradicionais costumeiros, ainda que fosse alvo da
atenção da Provedoria de Arthur Newton de Lemos (1925-1927), que admitia francamente
que o espaço onde ela funcionava “[...] não obedecia às prescrições da hygiene e da pedagogia
[...]” (ASCMB, Relatório..., 1925-1926, p.28.), já que era um espaço sem luminosidade
natural, ventilação inadequada e abaixo do nível da rua. Assim sendo, sob as ordens do
Mordomo das Obras, Pedro Velloso Gordilho, a reforma foi feita no aspecto arquitetônico e
também nas condições higiênicas da escola (ASCMB, Relatório..., 1925-1926).
72
O Relatório da Mesa de 1925-1927 informa que o Jornal A Tarde noticiou a
reinauguração da escola, enfatiza a importância da atuação do Cel. Plínio Moscoso, o
Mordomo do Asylo dos Expostos, e relata as presenças ilustres: do representante do
governador, do Prof. Dr. Martagão Gesteira, chefe dos serviços contra a mortalidade infantil,
Dr. Theophilo Falcão, secretário de fazenda, do Prof. Alberto Assis, Delegado Escolar. O
evento teve a bênção do Cônego Marcolino Dantas, que “[...] transmitiu a lembrança que lhe
foi delegada, de se dar a nova escola o nome de Plínio Moscoso, em reconhecimento ao que
se lhe devia para sua instalação.” (ASCMB, Relatório..., 1925-1926, p.29).
Foucault (2007) mostra que as relações de poder que permeiam a vida em sociedade
não estão restritas ao Estado; mesmo nas instâncias menores, elas existem, disseminando-se
nas diversas estruturas organizacionais da sociedade, como na instituição da Santa Casa, onde
os propósitos e interesses determinavam as ações desenvolvidas.
Saltando à frente no tempo, a Escola Externa Plínio Moscoso continuou em
funcionamento. Segundo Costa (2001), em 9 de março de 1968, foi inaugurado novo espaço,
a Escola Jardim Encantado, erguida com recursos da Fundação Calust Gulbenkian, para
cuidar da alfabetização de meninos e meninas com idade entre 4 e 7 anos. Sob a direção da
professora Nellie Scott Franco, nomeada pelo Provedor Erwin Morgenroth, a escola só
atendia crianças externas, pagantes, deixando de fora as crianças do Asilo, o que lhe valia
duras críticas. A situação alterou-se em 1993, quando o Provedor Nilo Simões Pedreira,
enfrentando o preconceito social, determinou a inclusão das crianças do Internato, em iguais
condições de vestuário e material escolar. A reação de 25% dos pais não demorou. Ainda que
muitas matrículas fossem canceladas, o Provedor persistiu em sua determinação e a escola
continuou em funcionamento.
Com o fechamento do Internato em 2001, o ensino passou a ser exclusivamente pago e
deixou de integrar os departamentos que contribuíam com a filantropia. Três fatores
mostraram a tendência de inviabilidade do seu funcionamento: a) queda sistemática da
quantidade de alunos; b) expressivo percentual de inadimplência; c) prejuízos
acumulados ano a ano... O Definitório, na sua reunião de 22 de dezembro de 2003,
apreciou e aprovou por unanimidade o fechamento da escola no dia 31 de dezembro de
2003, ratificando o que a Mesa aprovara. (ASCMB, Relatório..., 2003 p.31).
A Escola Jardim Encantado fechou as portas, encerrando um período de ativa
participação no campo educacional em Salvador.
Diante do exposto, fica evidente que a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, além de
fazer parte do cenário urbano da cidade do Salvador, foi importante instituição na estruturação
da sociedade baiana. Criada para sediar a capital administrativa da colônia portuguesa, a
73
cidade teve sua história estreitamente ligada à Santa Casa de Misericórdia, instituição
composta por homens que, em sua maioria, representavam a classe social dominante e
objetivavam fortalecer o império e consolidar a fé católica.
O pequeno esboço traçado sobre a cidade de Salvador buscou mostrar sua estrutura
social, religiosa, a composição populacional de brancos, negros e mestiços, bem como
aspectos políticos e econômicos que se estabeleceram na relação com o Recôncavo, ao longo
dos períodos colonial, imperial e republicano.
Como instituição que desfrutava de enorme prestígio social e prestava serviços
relevantes à conservadora sociedade baiana, a Santa Casa impunha-se sobre todas as demais
irmandades, desfrutando de privilégios e arcando com responsabilidades que acentuavam seu
status junto a todos os estratos sociais. Tomando como princípio o cumprimento de seu
Estatuto, embasado na prática da caridade cristã, a Santa Casa atuou nos campos da saúde, da
assistência e na área educacional.
Ainda que tenha se destacado pela ação na área da saúde, notadamente pelo trabalho
desenvolvido pelo hospital Santa Isabel, que perdura até hoje, a Santa Casa teve presença no
cuidado com doentes mentais e com o sepultamento de indivíduos brancos e negros. Em
diferentes momentos de sua história, ofereceu abrigo e educação a meninos e meninas pobres
de diferentes etnias, independente de sua origem social.
A Irmandade da Misericórdia, desdobrando-se em diversos segmentos administrativos,
vivenciou as inevitáveis mudanças sócio-econômicas, políticas e culturais (nos âmbitos
municipal, estadual e federal), que se refletiram em sua estrutura organizacional e na
realização de suas obras. Ao longo do tempo foi inevitável que algumas obras da Santa Casa
deixassem de existir, assim como outras permanecessem, sofrendo reformulações para que
pudessem acompanhar as mudanças provocadas e vivenciadas pela sociedade. A mentalidade
dos homens forçou revisões conceituais e operacionais e, ainda que muitas de suas ações hoje
apenas façam parte dos relatos históricos, elas integraram a tessitura da sociedade baiana
desde o século XVI como elemento de peso e significância.
O capítulo seguinte trata do Asylo de Nossa Senhora das Misericórdias, numa
abordagem sobre a ação de acolhimento a crianças enjeitadas, deixadas na Roda dos Expostos, e
o trabalho desenvolvido para educá-las e prepará-las para a realidade social de sua época.
74
Capela de Nossa Senhora das Vitórias, integrante do Asylo
Foto - Antonio Ivo de Almeida
75
2 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA
“Entre as boas obras da Misericórdia está, por
certo, a da administração do pão do espírito aos que tem
sede de saber, mas entre aos fins da pia instituição,
positivados no Compromisso, não estava esse da
manutenção de escolas para a difusão do ensino.”
Provedor Isaias de Carvalho Gomes (ASCMB, Relatório..., 1921-1922, p.67)
Este capítulo propõe-se a abordar o Asylo
1
de Nossa Senhora da Misericórdia,
integrante da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, enfocando os aspectos históricos,
filosóficos e administrativos que se entrelaçavam em seu funcionamento na casa de
acolhimento e nos cuidados com as crianças enjeitadas pelos familiares.
2.1 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA: ABRIGO E EDUCAÇÃO PARA
CRIANÇAS ENJEITADAS
A Santa Casa acolheu muitas crianças abandonadas na Roda dos Expostos que
funcionou no prédio do Recolhimento do Santo Nome de Jesus, localizado no centro histórico
da cidade de Salvador. Por muitos anos, de 1716 a 1862, o Recolhimento, obra da Santa Casa
da Bahia, abrigou a primeira experiência educacional da instituição, ainda que de forma
precária e não sistematizada. Ao se aperceber a necessidade de um local adequado e higiênico
para abrigar condignamente as crianças asiladas, foi iniciada, em 1862, a segunda experiência
protecional e educacional na Santa Casa com a aquisição de um imóvel no Campo da Pólvora.
Este momento é marco inicial deste trabalho de pesquisa, pois, desde então, as ações
educacionais da instituição desenvolveram-se de maneira mais organizada e passaram a ser
exercidas num espaço específico para os asilados.
A área conhecida como Roça do Campo da Pólvora, dispondo de árvores frutíferas e
de um prédio construído em 1840, pertencera ao Conselheiro Joaquim José Pinheiro de
Vasconcelos, Barão de Monteserrat, que a vendeu para o Colégio Nossa Senhora dos Anjos
(escola com internato para meninas pobres), da Associação São Vicente de Paulo, dirigido
1
Serão usadas as grafias Asylo e Asilo, conforme referenciadas nos documentos da época.
76
pelas Irmãs de Caridade. De acordo com Costa (2001), as dificuldades financeiras vividas
pela Associação levaram-na a aceitar a proposta de compra pela Santa Casa. A provedoria de
Manoel José de Figueiredo Leite, devidamente autorizada pela Junta, realizou a compra em 11
de fevereiro de 1862, pelo valor de sessenta e seis contos de réis, além da quitação de débitos
com os credores, que incluíam figuras importantes do cenário político, tais como o Barão de
Cajahiba e o Conselheiro Almeida Couto.
A Ata da Mesa e Junta de 10 de janeiro traz textualmente o registro da compra do
imóvel:
Ao novo asilo se dê o nome de Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia e sobre
proposta do Irmão Definidor Moncorves e Lima - que o seu fim será - crear educar
os Expostos de um e outro sexo, athé se dar a elles o destino, que for determinado
em seu regimento, não podendo ser admitidos senão pela roda, e dos que existem até
a edade de oito anos e sahi até doze, por deliberação da Mesa (ASCMB, Acta...,
1862, p. 95)
O júbilo da instituição não foi superado pelas providências que precisavam ser
tomadas e assim conforme registro:
[...] estão pois satisfeitos os votos ardentes que fazíamos todos, de há muito, para um
edifício que, reunido as condições indispensáveis ao desenvolvimento physico dos
infelizes expostos nos habilitam também a melhor prover a respeito de sua sorte
futura e mais de uma educação em harmonia com sua condição social, mormente no
que respeita as meninas, hoje inteiramente isoladas do antigo Recolhimento, onde
não somente nada tinham que aprender [...] (ASCMB, Acta..., 1862, p. 97).
Em 4 de março de 1862, a Santa Casa tomou posse do imóvel, o qual, devidamente
licenciado pela Prefeitura, foi alinhado com as demais casas da rua, teve um muro erguido
com dois portões e uma pequena casa térrea em cada extremidade. De um lado, ficou a casa
2
destinada à instalação da Roda para receber as crianças enjeitadas; do outro, ficou a casa que
serviria de moradia do Feitor, pessoa destinada a zelar pela roça e garantir a segurança do
estabelecimento. Devido ao fato de ali serem abrigadas crianças enjeitadas ou expostas, o
imóvel inaugurado com o solene nome de Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia, passou a
ser conhecido popularmente por Asylo dos Expostos, chegando a ser assim referenciado em
documentos oficiais da instituição. (COSTA, 2001; ASCMB, Regulamento..., 1914).
A Roça do Campo da Pólvora, então Asylo dos Expostos, passava a abrigar pessoas
movidas pelos mais diversos sentimentos: pela abnegação em atender e cuidar do próximo,
2
Em uma delas foi instalada a Roda e vale o registro que ela lá permanece até a presente data, com quatro
janelas e o emblema da Misericórdia encimando a porta (COSTA, 2001).
77
em conformidade com as orientações cristãs, perpassando pela prática da caridade e do
desprendimento de si mesmo; pela constatação da orfandade e do abandono mesclado no
desejo de evasão, de ser como toda gente que possuía casa, família e aconchego; pelas
vaidades mundanas de pertencimento a uma entidade seleta que também incluía o poder de
mandar, de decidir e de ser obedecido.
No que dizia respeito ao espaço que servia de abrigo para as crianças, a Santa Casa era
o que Goffman (1974, p.22) define por: “[...] ‘instituição total’ um híbrido social,
parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal [...] em nossa
sociedade são estufas para mudar as pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que
se pode fazer do eu.” O conceito de Goffman (1974) indica a instituição total como o local em
que os indivíduos moram e realizam atividades de lazer, corretiva ou terapêutica, de formação
e educação, subordinados a uma equipe dirigente que gerencia o cotidiano do espaço, que
funciona de forma semelhante a um Estado, enfrentando problemas diversos e que precisam
ser administrados.
No dia 7 de junho, o Asylo começou, de fato, a ser ocupado por seus moradores.
[...] foram transferidas 134, que com 26 (menos uma já falecida), que na forma do
contrato, recebera por aquela Associação, perfazem o número de 25, que hoje se
abrigão no mesmo Asylo [...] todas as agraciadas tem sabido manter-se nos
sentimentos de respeito e obediencia às suas superioras patenteando indisível
contentamento em relação a mudança porque acabão de passar. (ASCMB, Acta...,
1862, p. 97).
Assim, de acordo com Costa (2001), que transcreve trechos da escritura de compra e
venda do imóvel, ocorreu a transferência de vinte jovens internas que vieram do
Recolhimento do Santo Nome de Jesus, da própria Santa Casa e também das vinte e cinco
órfãs do Colégio Nossa Senhora dos Anjos, conforme acordado, ficando estas últimas
subordinadas às regras da Santa Casa, a qual nenhuma obrigação tinha de conceder-lhes dote
quando casassem.
A inauguração solene aconteceu no dia 29 de junho. Fazia-se necessário cuidar da
administração e, para tanto, foi contratado inicialmente o serviço de dez Irmãs de Caridade.
Era também imprescindível que se definisse um “[...] regimento acommodado ao seu destino”
e em sessão realizada no dia 21 de junho de 1863, o Regulamento
3
foi aprovado pela Junta.
Dispondo de 49 artigos, ele balizava toda a conduta a ser adotada em todas as ações e
dependências do Asylo. Ao longo do tempo, as necessidades de benfeitorias e de reparos se
3
O recorte cronológico da pesquisa abrange a existência de dois Regulamentos do Asylo: o da sua fundação,
datado de 1863, e o do ano de 1914.
78
fizeram sentir no espaço físico para se tornarem cada vez mais adequadas ao abrigo de sua
clientela, algumas delas, inclusive, solicitadas pelo médico do Asylo, Dr. Salustiano Ferreira
Souto, ao Mordomo Arnaldo Lopes da Silva Lima, como a construção de varanda para evitar
que amas e irmãs se molhassem e fossem acometidas de “frequentes bronquites”. O médico
pediu também instalação de tubos para evacuação de esgotos, de águas pluviais e servidas
(ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p. 32).
Seria exaustivo enumerar todas as providências tomadas, mas algumas delas mereciam
o registro por conta da demonstração de cuidados que a instituição tinha para com os asilados,
mesmo enfrentando dificuldades financeiras. Em 1889, foi concluída a varanda ligando a casa
grande à casa de amamentação das crianças, denominada Asylo São Joaquim, bem como as
benfeitorias nos banheiros, nas latrinas e nos esgotos, além da enfermaria, completando-se
com caiação e pintura. Diz o Provedor João Bernardino Franco de Lima:
[...] autorisei mais a factura de tres latrinas nos dormitórios das meninas, iguais as
que se fizerão no Hospital de Nazareth, com colunas de ferro e cobertura de zinco
[...] latrinas estas há muito reclamadas pela conveniência de alterar-se o serviço de
conduzirem-se canecas de despejo todos os dias, que davão em resultado cahirem
com elles pelas escadas as pobres meninas. (ASCMB, Relatório..., 1889-1990, p.82).
O Mordomo das Obras, Gustavo Adolpho Pereira da Silva, registrou no biênio
administrativo de 1905 a 1906: “[...] com o Asylo dos Expostos, gastaram-se 45:327$483,
tendo-se colocado novo fogão, banheiros, latrinas, beneficiado a Capella, e a casa que serve de
escola para os desamparados.” (ASCMB, Relatório..., 1905-1906, p.5). A instituição, buscando
acompanhar as idéias higienistas que então vigoravam, conforme já relatado no primeiro
capítulo, investiu nas reformas indicadas como necessárias à saúde física dos asilados. O
trabalho do Asylo recebia o aval e a ajuda da Companhia do Queimado, responsável pelo
fornecimento gratuito de água, e foram abertas mais quatro penas d’água. As obras foram
consideradas tão significativas que, em 6 de novembro, o Asylo foi aberto a visitação. Em 1914,
ocorreu a aprovação do novo Regulamento. No ano de 1917, sob a Mordomia de José de Sá, as
reformas foram intensificadas para propiciar o saneamento do corpo central do edifício, que
passou a ser considerado insalubre, devido às emanações da canalização do esgoto, viciando o
ambiente. Além disso, foi construído um novo estábulo para as vacas que forneciam o leite
indispensável à alimentação infantil e nos dormitórios dos expostos foram colocadas bandeiras
para melhorar a ventilação (ASCMB, Relatório..., 1917-1918, p. 117).
Em 1919, a Escola Interna passou a ser chamada Escola José de Sá, em homenagem
ao Mordomo do Asylo, falecido no ano precedente, pelo trabalho realizado (ASCMB,
79
Relatório..., 1919-1920). A cada ano recomeçava uma nova etapa de trabalho para a
instituição e seus dirigentes e, principalmente, para as crianças e jovens que ocupariam
quartos, pátios, alamedas, refeitório e as salas de aulas. Cada um dos segmentos de pessoas
que ali transitavam desempenhava papéis importantes e ocupava uma posição indispensável
ao funcionamento do Asylo. Assim sendo, vale a apresentação da gente que diariamente vivia
e trabalhava nos espaços destinados ao acolhimento das crianças expostas.
2.2 A GENTE DO ASYLO: SONHOS, DORES E PAPÉIS
Como instituição assistencial, de direito privado e sem fins lucrativos, a Santa Casa de
Misericórdia da Bahia buscava materializar os 7 Compromissos Corporais e os 7 Espirituais
que embasavam sua existência. O Asylo era uma das obras mais importantes e mesclava a
ação caritativa e a educativa. Já foi mostrado no capítulo precedente que, para a realização dos
seus fins, a Santa Casa era organizada hierarquicamente, tendo como sua figura máxima o
Provedor, chefe da Administração da Irmandade da Misericórdia, “[...] a quem estão direta e
indiretamente subordinados todas as repetições della” (ASCMB, Relatório..., 1894-1896, p.
21). Cabia-lhe a indicação dos Mordomos nas diversas obras da instituição, inclusive do
Asylo, que teve dois Regulamentos ao longo dos anos de funcionamento.
A figura do Mordomo consta desde o primeiro Regulamento, datado de 1863,
competindo a ele a direção e a inspeção da casa. O Mordomo era pessoa da estrita confiança
do Provedor e exercia sua tarefa com firmeza e dedicação. Alguns deles se destacaram ao
longo do tempo, tais como: Antonio de Lacerda, José de Sá, Plínio Moscoso, dentre outros.
Seus nomes eram inscritos nos anais da instituição, não tanto pelo que conseguiram
concretizar, mas pelo empenho e responsabilidade com que desempenharam suas funções, ao
buscar contribuir para minorar a sorte das crianças expostas. O poder que o Mordomo
dispunha era enorme, proporcional a seu prestígio, e exercido com rigor. As demais pessoas
da instituição, que aqui serão apenas citadas, como feitor da roça, amas, encarregados de
serviços diversos, dispenseiro, entre outros, exerciam a “vigilância hierarquizada, contínua e
funcional” a qual, segundo Foucault (2007, p. 148), “[...] sua insidiosa extensão deve sua
importância às novas mecânicas de poder.” O olhar de todos os funcionários tinha a função
precípua do controle do tempo e das ações dos asilados.
80
O conhecimento do tempo/local do Asylo repleto de pessoas e expectativas pode ainda
ser possível se forem abordados os aspectos legais que davam sustentação ao trabalho
institucional da Santa Casa, sua administração e suas relações com as instâncias do poder
constituído. Abordando de forma mais específica o cotidiano do Asylo, o segundo
Regulamento, datado de 1914, prescrevia nos artigos 16 a 18 todas as normas para o corpo de
pessoal, que era dividido em Administrativo, Médico, Docente e Profissional. Vale a ressalva,
quanto ao corpo Profissional, que não há indicações específicas dos integrantes, constando no
§3º: “[...] haverá também um capellão para o serviço religioso.” (ASCMB, Regulamento...,
1914, p.14). Neste trabalho, foi feita a opção de abordar a ação do Capelão ao lado da
atividade das Irmãs de Caridade.
Quanto ao pessoal Docente, prescrito no Regulamento de 1914, abrange “[...] uma ou
mais professoras para o ensino primário, de uma professora para música e canto e do mestre e
mestras para as escolas profissionaes e officinas de ambos os sexos” (ASCMB,
Regulamento..., 1914, p. 11). Tais profissionais integravam a Escola Interna, objeto do
capítulo seguinte, razão pela qual eles serão lá estudados.
Todas as pessoas que ali viviam em constante processo de interação, estreitando ou
afrouxando laços afetivos e sociais, gravitavam em torno da figura central do Asylo: a criança
exposta. Assim, antes de analisar a atuação do pessoal administrativo e da área de saúde, é
aconselhável começar a apresentação da gente do Asylo pela criança exposta, enfocando sua
chegada, sua permanência e suas condições de vida no espaço asilar, bem como quais
atividades ela desenvolvia ao longo do tempo.
2.2.1 A criança exposta
É no desvelar da infância vivida dentro do espaço destinado pela Santa Casa a
meninos e meninas expostos que pode ser compreendida a atuação do Asylo e sua escola
Interna, parcela do universo educacional de Salvador. Como diz Le Goff (1988), o
conhecimento do passado, que pode estar depositado em mente envelhecida, em livros
empoeirados e esquecidos, pode tornar-se acessível às pessoas se resgatados pela pesquisa.
Ainda que a criança sempre tenha existido, a noção de infância mudou ao longo do
tempo. Numa panorâmica sobre o tema, é imprescindível referenciar o trabalho de Philippe
Ariès (1981), que em sua obra clássica, História Social da Família e da Criança, aponta dois
81
marcos: o primeiro, a ausência do sentido de “infância”, tal como um estágio específico do
desenvolvimento do ser humano, até o fim da Idade Média, acentuado pelo fato de as crianças
viverem integradas no mundo dos adultos. O segundo, o processo de definição da infância
como um período distinto da vida adulta, que abre as portas para uma análise do novo lugar
assumido pela criança e pela família nas sociedades modernas.
O século XVII reconheceu a necessidade de limitar a participação das crianças no
"mundo dos adultos" e, assim, separou o espaço infantil do espaço destinado aos adultos. A
forma de olhar a criança era perpassada pela moral, influenciada pela Igreja e pelo Estado.
Desse modo, a noção de infância apresentou-se oscilando entre duas concepções básicas:
numa, amplamente difundida no século XVII, a infância passaria para dar lugar ao adulto e a
escola seria ambiente de formação e conformação; noutra, com visão mais positiva, a infância
deveria ocorrer e a escola era o ambiente adequado às novas experiências (ARIÈS, 1981).
Numa herança do direito napoleônico, a criança era vista como um ser que não exercia
atividade laboral, sobre o qual não recaíam as responsabilidades dos seus atos e para tudo o
que fosse significativo precisava da companhia de um adulto. Durante o século XVIII, o
Brasil começou a conviver de forma mais intensa com um tipo de assistência individual, que
organizou-se e desenvolveu-se sob o patrocínio e cuidado da esfera individual e religiosa,
destacando-se sobremaneira da assistência pública (KUHLMANN JR, 1998).
A criança era um vir-a-ser que precisava encontrar as condições necessárias para seu
florescimento bio-psíquico e intelectual. De acordo com Del Priori (2000, p.84): “[...] o certo
é que, na mentalidade coletiva, a infância era, então, um tempo sem maior personalidade, um
momento de transição e por que não dizer, uma esperança.” Não havia preocupação com a
superação da condição social pré-institucional. Para as famílias e a sociedade em geral, a
institucionalização significava proteção. O Estado limitava-se a encaminhar as crianças e a
contribuir com subvenções. Para ele e para a sociedade, a proteção de meninas e meninos
representava o cumprimento de regras morais vigentes e delimitação do lugar da mulher e do
homem na sociedade (RODRIGUES, 2003).
As crianças que nasciam e cresciam em núcleos familiares estruturados contavam com
uma rede social a seu redor, possibilitando amparo, educação e inserção no meio social, fosse
pelo casamento ou pelo trabalho. Mattoso ([1988]), em seu livro Família e Sociedade na
Bahia no século XIX, analisou a instituição familiar baiana, o estabelecimento dos laços
familiares, a situação das crianças pobres e ricas geradas ou não dentro de um casamento, e
ainda a miscigenação. Algumas famílias, mesmo pobres, contavam com a solidariedade de
parentes e amigos para a criação de seus filhos, assim como os parentescos criados por
82
“eleição” ou optativos, como os padrinhos e os considerados parentes e a “[...] filiação étnica,
muito importante especialmente para os africanos e seus descendentes, sobretudo numa
cidade onde escravos e libertos de uma mesma etnia podem reunir-se com mais facilidade do
que no campo [...]” (MATTOSO, [1988], p.133).
Tal rede de parentesco e solidariedade podia reduzir os problemas vivenciados pelas
crianças pobres, oriundas de lares desfeitos ou mal estruturados. Se a rede não funcionasse,
para tais crianças cabia o abandono parcial ou total e suas conseqüentes mazelas: morte,
doenças, falta de escolarização, vadiagem e marginalidade. Assim, a estrutura caritativa
voltada para a infância e a juventude pobre constituiu-se sob uma nova perspectiva, na qual o
abandono das crianças era visto como uma forma de infanticídio que precisava ser evitado ou
minimizado (RUSSEL-WOOD, 1991).
A sociedade olhava a criança sob a ótica religiosa do acolhimento e da recomendação
de fazer o bem e, nas primeiras décadas do Brasil Império, a legislação referente à infância
era fortemente marcada pelo recolhimento de crianças órfãs expostas, como medida de caráter
eminentemente assistencial. Neste campo, a Santa Casa destacou-se pelo trabalho de abrigar
crianças, oferecendo-lhes casa, comida, orientação religiosa e educação. Todas ali chegavam
pela orfandade, pela miséria e pelo preconceito, conjuntura que impossibilitava a permanência
no seio familiar, portando fraquezas físicas, doenças diversas e problemas que iam da
desnutrição à condição de quase moribundas. Eram simplesmente colocadas na Roda dos
Expostos, instalada no Asylo, acolhidas pela Rodeira, ou seja, a mulher encarregada da
vigilância do equipamento (MARCÍLIO, 2001).
As Irmãs de Caridade recebiam as crianças e tentavam minorar-lhes sua entrega
anônima. Ao chegarem, havia a realização do batismo das que não traziam indicação de já
terem sido batizadas e, no ato sacramental, recebiam o nome do santo do dia e o sobrenome
Mattos, em homenagem a João de Mattos, benfeitor que doara vultosos recursos para a
entidade, conforme prescrevia o Art. 6º do Regulamento de 1863. Tal procedimento perdurou,
pois, como relata Rodrigues (2003, p. 103): “[...] muitas crianças expostas no período
republicano receberam nomes de santos e sobrenome Mattos, apesar de não haver, no
regulamento de 1914, qualquer determinação quanto a este assunto.”
As crianças cresciam no Asylo sem raiz, sem histórias de família, sem nada ou quase
nada saberem de si e do seu passado, recusadas por genitor(a) ou parentes, como expostas e
enjeitadas. O Asylo as entregava às amas, mulheres-criadeiras que cuidavam delas até a idade
de três anos, mediante o pagamento de pequena ajuda paga pela Santa Casa. Conforme já citado
na seção referente à Roda dos Expostos, no capítulo precedente, as crianças que sobreviviam,
83
retornavam ao Asylo para serem educadas, sempre olhadas e referenciadas nos relatórios, atas e
outros documentos da instituição como seres merecedores do amparo e da caridade.
A criança exposta poderia ser retirada por seus parentes, desde que observado o
Regulamento, que era bastante claro quanto à sujeição à legislação vigente, no que tocava à
entrega do exposto a pessoas que reclamassem seu parentesco, inclusive observando a
aquiescência do Juiz de Órfãos (ASCBM, Regulamento..., 1863; 1914).
As crianças asiladas eram agrupadas de acordo com a idade: meninos e meninas de 0 a
3 anos ficavam na casa de amamentação; de 3 a 7 anos ficavam no chamado asilo inferior;
meninas de 8 a 21 anos eram alojadas no asilo superior e meninos ocupavam um outro
alojamento. Cada espaço era regido por regras previstas no Regulamento. De acordo com os
Relatórios da instituição, a idade limite para a permanência de meninos era 12 anos (ASCMB,
Relatório..., 1884-1885); acima desta idade só permaneciam meninos “[...] anormais e
incapazes de qualquer proveito intellectual.” (ASCBM, Relatório..., 1914, p. IV); em 1921, o
Relatório refere-se à saída dos meninos ao atingirem a idade de 14 a 15 anos, sem maiores
explicações (ASCBM, Relatório..., 1921-1922).
No tocante às meninas, o Regulamento de 1863 (ASCBM, Regulamento..., 1874, p.12)
traz textualmente, no Artigo 31: “As meninas, depois da idade de seis anos, serão educadas no
Asilo, de onde sairão para casar, ou para companhia de alguma família capaz, debaixo de
contrato, ou ainda para viverem sobre si, se o quiserem, depois de completar a maioridade.”
Estes meninos e meninas que cresciam no espaço asilar tinham seu cotidiano perpassado por
regras que demarcavam todas as suas ações: despertar, refeições, estudo, lazer, atividades
domésticas, atos religiosos, saídas, visitas, entre outros. Tais ações, sempre supervisionadas
por pessoas da administração, eram comentadas oportunamente quando enfocada a ação
educativa da Escola Interna do Asylo. Portanto, de acordo com Goffman (1974, p. 48): “[...]
as instituições totais são fatais para o eu civil do internado, embora a ligação do internado
com esse eu civil possa variar consideravelmente.”
O Compromisso da Santa Casa e os Regulamentos do Asylo permitiram o entendimento
de que a Santa Casa, como instituição de princípios cristãos, procurou educar a criança com
ênfase numa educação religiosa, em conformidade com a formação católica, em bases
tradicionais, observando valores morais e disciplinares, ansiando por preparar os jovens para
uma vida produtiva e digna, capacitando-os para a execução de trabalhos que lhes garantissem a
subsistência com a inserção no mercado de trabalho, no âmbito público ou privado.
O final do século XIX trouxe a modernidade da República e a transformação da
estrutura política do país para constituí-lo como nação. Verificaram-se neste momento a
84
separação entre Igreja e o Estado, a secularização de alguns hábitos, as propostas de
mudanças na educação, entre outras alterações. A questão da infância e da juventude pobre foi
considerada como um “problema nacional”, colocando médicos e juristas à frente das batalhas
em prol da infância, assim como as elites políticas, intelectuais e filantrópicas, constituindo-se
num dos focos de análise da intelectualidade que discutia as contradições político-sociais do
país e misturava as inovações do liberalismo europeu às tradições remanescentes do período
colonial (RODRIGUES, 2003).
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia não ficou imune às transformações decorrentes
da República e a própria estrutura do Asylo passou a ser regida pelo novo Regulamento,
datado de 1914, considerado mais adequado às necessidades institucionais.
2.2.2 Corpo administrativo
De acordo com o Regulamento de 1914, o corpo administrativo era composto pela
Superiora, escrituraria, almoxarife, porteira e serventes. O Asylo tinha um cotidiano repleto
de ações econômicas, religiosas, sociais e educativas, com uma rotina própria de uma
instituição total, com toda a “casa” seguindo regras apropriadas nos seus respectivos setores.
O Asylo foi sempre dirigido pela Superiora, subordinada ao Mordomo do Asylo e ao
Provedor da Santa Casa. A figura da mulher para o comando de uma casa de acolhimento de
crianças estava em conformidade com o pensamento vigente de que cuidar de crianças é uma
tarefa feminina, como uma extensão da atitude maternal. Segundo Fagundes (2005, p. 44, grifo
da autora), desde cedo a menina “[...] apreende que ao ser feminino destinam-se certas funções
como cuidar, servir e educar, em campos restritos, pouco (ou não) reivindicados pelos homens.”
Assim sendo, a sociedade estabelecia e considerava perfeitamente natural que coubesse a uma
mulher cuidar de um local onde eram acolhidas crianças enjeitadas e desamparadas.
A primeira superiora no novo prédio foi Irmã Lasnier, que atuou de 1862 a 1905. Vê-
se aqui a conjunção de dois aspectos importantes: mulher e religiosa. O somatório das duas
facetas concorria para uma plena justificação de tal serviço: servir ao próximo, caridosa e
carinhosamente, como uma mãe altruísta e dedicada, zelosa da saúde física, mental e moral de
seus acolhidos. A função de superiora implicava em um papel social marcante, que serviria de
modelo para as demais pessoas que gravitavam em torno dela, espelhando-se em seus
atributos morais. Discorrendo sobre os papéis desempenhados pelos indivíduos, Passos (1999,
85
p.101) diz: “[...] têm grande importância para a assunção de sua identidade, pois vão sendo
estabelecidos por identificações e, ao imitá-los, os indivíduos articulam-se no mundo e
circunscrevem seu modelo.”
Imbuída de sua autoridade e importância, Irmã Lasnier se opôs quando, na sessão de
14 de dezembro de 1898, a Junta, sob proposta do Provedor Manoel de Souza Campos,
resolveu criar uma cadeira mista primária
4
para os expostos, a ser regida por uma professora
diplomada, conforme consta na página 31 do Relatório de 1912. No entender da Irmã Lasnier,
o ensino deveria permanecer sob seu comando, como até então, no que não foi contrariada. A
atitude da Superiora revelava o temor de perda de autoridade e poder com a chegada de outra
mulher, talvez mais preparada intelectualmente, cuja presença poderia quebrar as habituais
conduções da escola.
A Irmã Superiora gozava de muito prestígio e poder, conforme consta no capítulo
terceiro do livro da Administração da Casa da Santa Misericórdia da Bahia (1971, p. 32-35):
Art 55: O serviço do Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia divide-se em
econômico e religioso.
§ Único. O serviço econômico é dirigido pela Irmã Superiora das irmãs de Caridade
- e o religioso dirigido por um dos Reverendos Padres da Congregação da Missão de
São Vicente de Paulo, na qualidade de Capellão
Art. 57º - A Irmã Superiora, como responsável pelo serviço econômico, pela ordem,
policia e moralidade do Asylo....
§ 5º - Dirigir e inspecionar a educação dos expostos ou orphãos, bem como todos os
ramos do serviço do Asylo
Art. 63º- A Irmã Superiora só recebe ordens do Irmão Provedor, cumprindo-lhe
todavia na ausência delle, observar as determinações do irmão Mordomo
§ Único- A mesma Irmã Superiora corresponde-se directamente com o Irmão
Provedor, salvo nos casos em que, a bem do serviço, deva dirigir-se ao irmão
Mordomo ou à Inspectoria.
Cabia-lhe ainda escolher e despedir livremente as amas internas e qualquer outro
serventuário, organizar folhas das amas, sugerir gratificações, cuidar dos expostos dados a
criar, designar os serviços das demais Irmãs de Caridade, colocar as expostas para realizar
trabalhos “[...] proprios ao seu sexo e o producto delles destinado às despezas com o
vestuário.” (ADMINISTRAÇÃO..., 1871, p.34).
Figura feminina marcante na vida do Asylo, a Irmã Lasnier teve destacada atuação de
dedicação às crianças, ao longo de quatro décadas (1862-1905); é digno de registro que ela, ao
lado do Mordomo Antonio Lacerda, assumiu parte das despesas da Escola Externa da Santa Casa
desde sua fundação em 1872 (ASCMB, Relatório..., 1872-1873, p. 2.). É interessante observar
4
A sala de aula mista não foi criada. Alguns autores referenciam o ano de 1898 como a criação da Escola
Interna. Como desde a criação do Asylo existiu a preocupação com o ensino mais sistematizado aos
expostos, neste trabalho é considerado o ano de 1862.
86
que ambos, Superiora e Mordomo, numa aparente igualdade de status e de papéis masculinos e
femininos, uniram-se em torno desta proposta educacional em prol de meninas pobres.
As Irmãs de Caridade, todas subordinadas à Irmã Lasnier, encarregavam-se de
coordenar e supervisionar as atividades desenvolvidas pelas expostas já em idade de trabalho,
fosse no campo da docência, na confecção e exposição dos trabalhos artesanais, nas ações
cotidianas de asseio e manutenção da casa, conforme é exposto na abordagem sobre as
atividades dos asilados. As Irmãs contavam com a importante ajuda do Capelão para a execução
de todas as atividades religiosas, fosse para as aulas de religião, para a organização de missas,
para o ensaio de cânticos e hinos religiosos, para os preparativos da primeira comunhão, crisma,
casamento das expostas, batismo e confissão, além da encomendação dos corpos das pessoas
falecidas. A figura do Padre Mestre Alexandre Saguet, diretor espiritual, foi freqüente em
muitos Relatórios da Mordomia do Asylo. Posteriormente, em 17 de janeiro de 1914, foi
nomeado o Padre Marcolino Esmeraldo de Souza Dantas. (ASCMB, Relatório..., 1914, p. 3).
Sendo o Asylo pertencente a uma instituição católica, além das aulas de catecismo, era
importante poder contar com um local para o culto religioso, onde os expostos a partir dos dez
anos fizessem a primeira comunhão, conforme preceituava o art. 34 do Regulamento. Assim,
na reunião do dia 24 de abril de 1874, a questão foi trazida à baila pelo Mordomo, o Sr.
Antonio de Lacerda, que relatava ter recebido uma doação destinada para tal fim, com a
condição de garantir o anonimato do doador. Lacerda recebeu outras doações e a capela foi
construída sem nada custar aos cofres da Santa Casa, sendo benta em 29 de junho de 1877 e
aberta à visitação pública. Dedicada a Nossa Senhora das Vitórias, nela ocorreram fatos e
celebrações marcantes na vida da comunidade do Asylo. A construção da Capela propiciou as
condições desejadas para a celebração de cultos comemorativos, como a missa de abertura
solene dos exames finais, a celebração do mês de Maria e dias santificados, entre outros,
evitando o deslocamento do pessoal do Asylo para a Capela Central, na Rua da Misericórdia,
no Centro Histórico (ASCMB, Relatório..., 1877-1878, p.6).
Tudo isso favorecia um modo de vida cada vez mais interno, próprio, condizente com
o conceito já apresentado de “instituição total”, definido pela espacialidade que englobava
prédios para abrigo, morada, aulas, enfermaria, capela, área verde para roçados e plantio de
verduras, flores e frutas. Ali a religião e sua prática encontravam espaço, condições e
indivíduos aptos e receptivos às ações fundamentadas na piedade cristã, na obediência e
submissão, elementos próprios de uma instituição que se pautava em regras consolidadas.
A Superiora e as Irmãs de Caridade, exercendo continuamente seu poder de vigilância,
disciplinamento, controle e sanção sobre os expostos, achavam-se no mais pleno cumprimento
87
do dever de reprimir desvios e fortalecer condutas consideradas adequadas. Acreditavam
exercer suas funções para o bem-estar dos asilados e para a manutenção da ordem social
vigente e respeitada. De acordo com Foucault (2007), é o poder exercido sobre a vida dos
outros, o chamado biopoder, que permite o exercício da governabilidade, sujeitando o corpo
do outro para a obediência e a disciplina.
Em 22 de fevereiro 1905, ocorreu a morte de Irmã Lasnier e seu cargo foi preenchido
em 16 de maio pela Irmã Lecomte. A atuação da nova Superiora não foi tranqüila até o final,
tendo o Provedor Theodoro Teixeira Gomes relatado minuciosamente as divergências e
problemas ocorridos entre ambos no tocante à administração do Asylo. Assuntos como a
prestação de contas, a baixa qualidade do ensino e da aprendizagem, a qual ele buscou corrigir
com a contratação de uma professora, desagradou a Ordem religiosa a que a Irmã Lecomte
pertencia (ASCMB, Relatórios..., 1912; 1913). Segundo Rodrigues (2003, p.1530): “O
Provedor Teixeira Gomes queixou-se também que tentou, no ano de 1910, implantar oficinas
para os meninos, não podendo realizar o seu intento por resistência da irmã superiora.”
Novamente o Asylo presenciava a disputa interna pelo poder, reconhecido no conhecimento
formalizado de uma professora, e a Superiora, da qual não se conseguiu identificar o grau de
escolaridade e se tinha prática pedagógica anterior.
O Provedor Teixeira Gomes, além de alegar que “[...] também não vejo em que a
nomeação de uma professora diplomada para o Asylo dos Expostos contrarie as cláusulas de
nossos contratos” (ASCMB, Relatório..., 1913, p. 38), reafirmou a manutenção do Ecônomo
bem como:
[...] a nomeação, como já está feita, de uma professora diplomada do Município,
para ensinar aos Expostos do Asylo de N. Sra das Misericórdias - a língua
portugueza, arithimética, escripta e outras quaesquer disciplinas julgadas necessárias
[...] as asyladas pouco ou nada sabem fazer pois procuravam as irmãs educal-as mais
para freiras que para futuras mães de família e a prova é que sahiam do asylo para se
casarem ou para se empregarem em qualquer mister sem nada saberem, nem mesmo
cozinhar o fim principal era fazel-as rezar quase todo dia! (ASCMB, Relatório...,
1912, p.31).
Fez constar no Relatório o contrato celebrado entre a Santa Casa (sob o Provedor
Manoel José Leite Figueiredo) e a Superiora Geral das Irmãs de Caridade de S. Vicente de
Paulo, com 12 irmãs (número que poderia ser aumentado), a Superiora:
[...] determinará os trabalhos manuaes e os estudos aos quais serão aplicadas as
meninas, para fazer dellas boas costureiras e boas mães de família [...] Vigiará
também sobre a instrução dos meninos que ficarão no Estabelecimento até a idade
de 12 anos, conforme determinarem os Administradores e cada irmã receberá da
88
Administração a quantia de 450 francos, pelo valor de cambio, para seu vestuário.
(ASCMB, Relatório..., 1913, p.40-42).
Em 1º de janeiro de 1914, ocorreu a saída da Irmã Lecomte e sua auxiliar imediata,
permanecendo as demais em serviço. O desacordo entre o Provedor e a Superiora mostrou
como o poder foi exercido, tanto na destituição da Superiora como na contratação da professora.
Isso remete ao pensamento de Foucault (2007) no tocante ao exercício do poder existente nas
relações sociais e nas pequenas esferas das instituições: o poder de decidir, de limitar, de incluir
ou excluir pessoas e comportamentos, visando obediência e sujeição de quem sofre a ação.
A Santa Casa se apercebia de que o Asylo precisava sofrer algumas alterações e assim,
na sessão da Junta de 25 de março de 1914, durante a Provedoria de Theodoro Teixeira Gomes,
ocorreu a aprovação do novo Regulamento do Asylo, apresentado pelo Dr. Antonio Pacífico
Pereira como relator da comissão encarregada de confeccioná-lo. O documento anterior foi
modificado, reduzido a 28 artigos. Nesse mesmo ano, a Superiora Irmã Lecomte foi substituída
pela Professora Amélia Rodrigues
5
, conceituada por seus dotes intelectuais, firmeza de caráter e
amor à educação. Nomeada por Ato de 17 de janeiro de 1914, passava o Asylo a ser administrado
por uma mulher de formação religiosa, mas que era alguém do mundo exterior, de amplas
relações sociais, que atuava como educadora, poetisa, escritora, tendo um olhar sobre o contexto
social mais amplo. Ela revelou sua compreensão da necessidade de melhor educar os expostos,
especialmente as asiladas, promovendo palestras e conferências sobre temas que considerou
relevantes (ASCMB, Relatório..., 1914, p. VI) para que elas pudessem olhar e compreender o
meio social em que viviam, resguardadas pelo Asilo, mas que cedo ou tarde deixariam, movidas
pelo casamento ou trabalho, conforme prescrevia o Regulamento da instituição.
O ano de 1924 iniciou-se com o afastamento de D. Amélia Rodrigues do posto de
Superiora do Asylo. Assumiu as funções, como Superiora Interina, a Srª. Maria José de Moraes,
por meio da Portaria de 13-11-1924. Ela já vinha auxiliando D. Amélia há algum tempo e, em
função da satisfação com seu trabalho, foi indicada como substituta. Foi nomeada como efetiva,
pela Portaria 76, datada de 1925, e permaneceu no cargo até 1932, quando, conforme
autorização da Junta (Sessão de 17 de setembro), chegaram ao Asylo as Irmãs da Congregação
das Filhas de Santana
6
, ficando como Superiora a Irmã Ângela de Souza.
5
Amélia Augusta do Sacramento Rodrigues nasceu no município baiano de Santo Amaro, em 26 de maio de 1861.
Atuou como professora, colaborou com publicações de jornais e revistas como O Mensageiro da Fé, A Paladina
e A Voz. Também escreveu poemas, obras didáticas, romance e literatura infantil. Escreveu algumas peças
teatrais, entre as quais Fausta e A Natividade. É autora do poema Religiosa Clarisse. Faleceu em Salvador, em 22
de agosto de 1926. Para aprofundamento do trabalho intelectual de Amélia Rodrigues, cf. Passos (2005).
6
Até a presente data as Irmãs da Congregação das Filhas de Santana atuam na instituição.
89
De acordo com o Livro de Actas da Provedoria da Santa Casa, ano de 1925, foram
nomeadas no citado ano várias mulheres para funções importantes ao bom funcionamento da
casa: Maria Izabel de Andrade para o exercício interino de dirigente da Creche e,
posteriormente, como efetiva Anna Danneman Ramelt; Maria Cândida Gultman para auxiliar
de dirigente das meninas do Asylo; Fausta Lucas como Mestra de prendas domésticas;
Zeferina de Matos como enfermeira; Alice de Mattos para auxiliar efetiva da Superiora Maria
José de Moraes. Mulheres para cuidar de meninos que ali permaneceriam até o início da
adolescência e meninas que poderiam ficar por muito mais tempo, mulheres um pouco mães,
amas, mestras e vigilantes constantes.
7
2.2.3 Pessoal médico
Conforme o Regulamento (1914, p. 14), “[...] o pessoal médico constava de um ou
mais médicos, de uma ou mais enfermeiras.” Não seria cabível à Santa Casa descuidar-se da
saúde dos asilados, possuindo, como maior jóia de sua coroa, o tradicional Hospital Santa
Isabel, referência na história baiana e brasileira por sua atuação. Assim, a Santa Casa buscou
cuidar da saúde dos expostos, desde sua admissão pela Roda, fosse providenciando
encaminhá-los para as amas de leite, fosse observando as moléstias ou danos físicos e
mentais. As Irmãs de Caridade eram as primeiras atendentes e enfermeiras das crianças, mas,
como esse trabalho envolvia o processo educacional dos alunos da Escola Interna, que não
incluía apenas e tão somente a educação formal de aprender a ler, escrever e contar, eram
consideradas como partes integrantes todas as ações que envolvessem posturas e
comportamentos sociais, o que vai desde a aquisição de hábitos elementares de higiene
pessoal até o olhar clínico do médico ou de outro profissional da área.
Desde o Regulamento de 1863, que no Asylo constavam referências à presença de um
“facultativo” (médico) e, com o tempo, um dentista passou a contar entre o pessoal
empregado, ficando tais profissionais, médico(s) e dentista, sob a supervisão da Superiora e
do Mordomo, o que foi mantido com o novo Regulamento aprovado em 1914. O médico
deveria visitar diariamente o estabelecimento, cuidar de vacinas, orientar as enfermeiras,
examinar os remédios e as amas de leite, os gêneros alimentícios, entre outros. A cada mês
7
Nos documentos pesquisados não foram encontradas referências sobre tais mulheres além dos salários a que
faziam jus.
90
deveria apresentar à Superiora informações sobre o estado de saúde dos asilados e ao final do
ano elaborava um relatório com as observações sobre higiene da casa.
Todos os expostos eram atendidos pelos profissionais que cuidavam da saúde daquele
microcosmo, contribuindo para amenizar os danos, esforçando-se para a redução da taxa de
mortalidade dos pequenos asilados, criando condições para que chegassem à idade escolar
com a saúde equilibrada, aptos para uma boa aprendizagem que lhes possibilitasse a futura
inserção no mercado de trabalho.
Ao longo de todas as leituras realizadas nos Relatórios elaborados pelos Mordomos do
Asylo, percebeu-se uma marcante preocupação com as condições físicas do abrigo dos
expostos, observando-se as condições de luminosidade, de acesso, de ventilação, de
aquecimento e segurança dos espaços de dormida, do estudo, dos sanitários e banheiros, dos
pátios de lazer e das demais áreas de circulação. Cuidados também são revelados no
deslocamento de alunos por conta de poeiras e germens, no remanejamento para áreas
distantes do risco de contágio de doenças epidêmicas como a cólera e a peste bubônica e
doenças outras como o sarampo e o beribéri. A higiene corporal, os exercícios físicos e os
banhos de mar estavam no rol das prescrições médicas.
Foi muito bom o estado sanitário deste asylo durante o anno.
Há aqui como V. Ex. sabe, meninos e meninas incapazes de receber cuidados
intellectual e educação moral, por atavismos e heranças pathologicas que influem
periodicamente em suas maneiras e costumes, produzindo idiotas e outros
inconvenientes e que demandam estudos e cuidados especiaes.
Somente um profissional poderia guiar com segurança as dirigentes de secções e as
professoras nesta selecção entre indivíduos doentes e os sãos, e prescrever regimens
a seguir e os cuidados necessários para a melhora desejada. (ASCMB,
Regulamento..., 1914, p.V).
Além disso, os documentos revelam os cuidados com a saúde mental dos expostos,
estimulando as atividades lúdicas e os pequenos festejos internos em datas como de realização
de exames, celebrações religiosas, aniversário do Asylo e internando os alienados no Asylo
São João de Deus, administrado pela própria Santa Casa, como no caso do “[...] exposto
Ignacio de Mattos, creoulo, foi encaminhado ao São João de Deus por sofrer de alienação.
(ASCMB, Relatório..., 1890-1891, p. 45).
Ao longo dos anos, vários médicos clínicos e oftalmologistas trabalharam no Asylo
8
e
os expostos contavam também com assistência odontológica prestada por dentistas
9
8
Médicos: Antonio Mariano do Bonfim, Salustiano Ferreira Souto, José Joaquim Ribeiro dos Santos, Manoel de
Sá Gordilho, Eduardo Gordilho Costa, Manoel Bonifácio Costa, Armando de Campos Gordilho...
9
Podem ser citados Antonio Eudoxio Pereira da Costa, Antonio Dinis Gonçalves, entre outros.
91
remunerados e também por voluntários, que visitavam semanalmente os asilados. Em 8 de
novembro de 1930, a Provedoria, mediante Portaria 44, nomeou como Farmacêutica do
Asylo, D. Maria de Lourdes Pereira (Livro de Actas da Provedoria, 1930). Foi a primeira
mulher a ocupar ali tal função.
O Asylo para funcionar requeria braços ativos. Para que tal proposta fosse cumprida, a
instituição dispunha de pessoas que se dedicavam a tal mister, cada uma delas no seu campo
de atuação, exercendo suas funções e observando a hierarquia que regia a vida do
estabelecimento. Assim, além das Irmãs, havia as pessoas que ocupavam outras posições,
gente que desempenhava seu trabalho e, em sua maioria, era para isso remunerada e todas
contribuíam com seu trabalho, sua dedicação e sua ideologia para a composição e manutenção
da estrutura social dos espaços escolares da Misericórdia. Cada uma delas ali estabeleceu
laços, desenvolveu afetos, vivenciou momentos de entusiasmo, preocupação e esperança com
um alunado composto por crianças e jovens sem arrimo familiar, sem raiz e que só poderia
sobreviver dignamente se tivesse na educação seu esteio para formação de caráter,
aprendizagem de ofício e de postura num mundo que lhe era em grande parte desconhecido.
Certamente, muitas pessoas que ali trabalhavam pertenciam a um segmento social
considerado baixo, com pouca ou nenhuma escolaridade, mas necessitadas da remuneração
para assegurar a sobrevivência. Alguns documentos pesquisados indicam naturalidade, cor,
idade, estado civil, mas não especificam escolaridade de tantos que por ali passaram de 1862 a
1934. Seguramente se declaravam católicas e praticantes, dispostas ao trabalho diário e
supervisionado para o cumprimento da proposta pedagógica do Asylo e sua Escola Interna de
ensinar as letras, os números e contas, as prendas, os ofícios e a religião católica romana.
Tabela 3 – Quantidade empregados no Asylo por função - 1914
QUANTIDADE FUNÇÃO OBSERVAÇÕES
1 Administrador Lucio José Vieira, que já exercia o logar de Ecônomo
1 Capellão Padre Marcolino Esmeraldo de Souza Dantas
1 Superiora D. Amélia Rodrigues
6 Professoras Escola Interna - D. Maria de Magdalena Landulpho
Escola Externa - D. Luiza Aboim de Barros
4 Auxiliares
1 Médico Dr. Manoel de Sá Gordilho
1 Enfermeira
5 Amas
92
QUANTIDADE FUNÇÃO OBSERVAÇÕES
1 Encarregada da Creche D. Afra Bricídio
1 Mestra de Prendas D. Maria José de Mattos
1 Porteira D. Maria Belmira
1 Dispenseira D. Julia de Mattos
1 Rodeira D. Maria Pinheiro
1 Feitor Tertuliano de Jesus Pinheiro
2 Cozinheiras
1 Mestre sapateiro
2 Lavadeiras
Fonte: ASCMB, Relatório... (1914).
As tarefas e encargos do Asylo repetiam-se anualmente no cuidado com as crianças
pequenas, futuros alunos da Escola Interna. Assim, o quadro demonstrativo dos empregados,
em 1914, mostra a quantidade de pessoas envolvidas em trabalhos de acolhimento, educação
formal, moral, física e religiosa, além de segurança e saúde. Ainda que não tenham sido
resgatados todos os nomes dos que atuaram na instituição, eles contribuíram com seu trabalho
para a concretização da proposta da Santa Casa de acolher as crianças que chegavam ao Asylo
e de educar as sobreviventes, na Escola Interna.
Partiu da área médica a preocupação com a situação dos expostos, pregando a extinção
da Roda dos Expostos. Entre as considerações, de ser vista por uns como necessária e por
outros como aviltante, o médico Martagão Gesteira, junto a outros profissionais, envidou
esforços para a extinção. De acordo com a decisão da Junta Deliberativa foi instalado um
Escritório de Admissão de crianças ainda a título de experiência, mas em 5 de agosto de 1934
foi oficialmente aberto o Escritório de Admissão, com regras específicas para a entrada das
crianças, ficando suprimida a entrada de qualquer criança que não passasse pelos registros,
feitos às claras (RODRIGUES, 2003; ASCMB, Ata..., 1934).
2.3 ATIVIDADES DAS CRIANÇAS ASILADAS
Dentro da concepção de que as meninas precisavam ser preparadas para a vida prática
no âmbito doméstico, mas também estarem aptas para ganhar seu próprio sustento, o Asylo
investiu no aprendizado de trabalhos domésticos e ofícios que não exigissem maquinários e
93
condições especiais. Desde a instalação no novo prédio são encontradas referências às
atividades, como prescrevia o artigo 32 do Regulamento de 1863:
Já as meninas fabricão flores de panno mui delicadas e perfeitas bordão de muitas
maneiras usadas, prestão-se a cozinhar, a lavar, a engomar suas proprias roupas e
mesmo outras de ganho, estas aprendendo a fabricar calçados de senhora com uma
mestra para isso contratada por 40$00 mensaes, usando já algumas desse calcado; e
tudo fazem, sem mais imaginarem que lhes seja aviltante, como outrora supunhão no
Recolhimento. Com a educação assim dirigida mais fácil será no futuro que tenhão
emprego as expostas maiores, ou Recolhidas, pois além de casamento para aquelas
que o poderem conseguir, estarão habilitadas para ganharem a vida com honestidade
cosendo, bordando, lavando, engomando, cozinhando, fazendo flores e calçado e
finalmente servindo em casa de família. (ASCMB, Relatório..., 1863-1864, p.131).
É significativo atentar para a participação das próprias asiladas nos trabalhos da casa,
fosse nas atividades domésticas, fosse no auxílio às atividades docentes. Ao longo dos anos,
os Relatórios de vários Mordomos registraram a atuação de diferentes quantidades de asiladas
no “ensino aos pequenos”, numa hierarquização de poder evidente: os “pequenos” ensinados
por elas que eram vigiadas pelas Irmãs, subordinadas à Superiora. Constituíam-se, portanto,
como diz Foucault (2007, p.181), “[...] redes hierárquicas precisas”, utilizando sua
multiplicidade para que o controle e a disciplina estivessem sempre presentes.
As meninas eram desde cedo treinadas para a execução de tarefas domésticas,
supervisionadas pelas maiores e pelas Irmãs de Caridade. O cotidiano do Asylo, reforçando e
legitimando as atividades que eram consideradas próprias para meninas, centrava esforços
para que fossem observadas a ordem, a disciplina e a hierarquia, num claro demarcador de
papéis femininos, como alerta Passos (1999 p. 108): “[...] Sua identificação com um
determinado perfil, com os papéis a serem assumidos, comportamentos que deve ter, sonhos,
desejos e expectativas são constructos sociais e históricos.” Meninas na limpeza, na
lavanderia, na enfermaria, ensinando aos pequenos... lugares considerados adequados à figura
feminina, à sua fragilidade e pouca ambição, possibilitando a não visibilidade.
No ano de 1880, as 95 meninas asiladas se ocupavam nas mais diversas tarefas
internas gerais e educacionais, seguindo a idéia da capacitação para o exercício das atividades.
[...] actualmente temos no Asylo 266 expostos, sendo 55 meninos e 211 meninas.
Destas 116, menores de 12 annos, nenhum serviço prestão; as outras, porem, em
número de 95 são do seguinte modo alternadamente empregadas:
4 nas oficinas de sapataria
9 na lavagem da roupa
10 no trabalho de engomar a roupa da casa e da capela
2 na cozinha
8 no ensino de menores
10 no serviço de refeitório e dormitórios
7 no cuidado e asseio das duas capellas,
94
3 no ensino dos meninos
2 no ensino das meninas de tres a dez annos
2 nas enfermarias
38 nas costuras, rouparia e mais artefactos. (ASCMB, Relatório..., 1880-1881, p.7).
Está claro que as meninas asiladas trabalhavam e cumpriam as “obrigações”
determinadas pelas Irmãs de Caridade:
[...] das 219 meninas, 93 estão incumbidas, alternativamente, dos seguintes
trabalhos:
5 na officina de sapataria, 9 lavão roupa, 10 engommam a roupa da casa, 2 ajudão no
serviço da cozinha, 8 são instrutoras das meninas menores, 9 manteem a limpeza do
Estabelecimento, 2 ajudão o ensino dos pequenos a ler e escrever, 2 ensinão as
pequenas da sala do Asylo, 2 servem de enfermeiras. (ASCMB, Relatório..., 1882-
1883, p.50).
É interessante registrar que o número de expostos quase sempre foi maior de meninas
que de meninos. Segundo Rodrigues (2003, p.130), “[...] 80,7% foi abandonada sem nenhum
tipo de justificativa.”, ou seja, crianças eram deixadas na Roda sem bilhetes ou algum indício
das razões do abandono ou que facilitasse seu resgate futuro. Assim pode ser considerado
como um motivo para o número maior de meninas expostas o fato de que elas poderiam
permanecer no Asylo até a maioridade e, ao contrair matrimônio, recebiam um pequeno dote.
Os meninos e meninas expostos eram desde cedo levados à construção da identidade
de gênero masculino e feminino, a qual, segundo Passos (1999, p. 108): “[...] segue o mesmo
processo de identificação em geral [...] vai sendo construída e assumida diferentemente, a
depender das circunstâncias, das associações que fazem com o grupo, das representações
coletivas e da ideologia dominante, entre outros.” Assim sendo, meninos deveriam assimilar e
reproduzir pensamentos, gestual e atitudes consideradas próprias ao universo masculino, tudo
em conformidade com os valores que vigoravam na sociedade que determinava as regras e
posturas adequadas a cada sexo.
No espaço que servia de moradia e escola aos asilados foram elaborados seus
constructos históricos e sociais. Sem outros detalhes, o Relatório (ASCMB, Relatório..., 1879-
1880) cita que 12 jovens consideradas aptas foram empregadas em um estabelecimento de
fiação, sem indicar à localização das fábricas, o valor ajustado do pagamento, a permanência,
a data de saída, entre outros.
A Provedoria da Santa Casa registrou em seu Relatório de 1884, que as
expostas/meninas enjeitadas que atuavam na nova casa de amamentação dos expostos, recém-
construída, recebiam uma gratificação, não especificando o valor, e a presença delas evitava a
atuação de amas externas, contratadas. Assinalou ainda que havia discordância no modo como
se processava a venda do trabalho de costuras, dos bordados e artesanatos executados pelas
meninas e como comprar-lhes roupas.
95
Eu não acho muito regular este modo de dar-se conta deste ramo de serviço; mas,
enfim, é elle de há muito consagrado pelo uso e innovações acham resistência
mesmo quando são em bom sentido. A creação de officinas de trabalho apropriado
aos dous sexos muito deve concorrer para que a irregularidade que venho apenas de
apontar desappareça pela necessidade que haverá de estabelecer-se uma
escripturação regular, e é esta uma razão de mais para que eu sympatise com a idéia
que se sucita. (ASCMB, Relatório..., 1884-1885, p. 19).
O Provedor, o Conde de Pereira Marinho, defendeu e registrou no supracitado
Relatório a idéia de que era necessário criar oficinas de meias, de camisas, de costuras (para o
Hospital Santa Isabel, Asylo São João de Deus, Arsenais da Marinha e outros), e que o
produto do trabalho das asiladas deveria ser dividido em três partes: dedução das despesas
feitas para compra da matéria-prima; uma parte para as eventuais necessidades dos asilados e
a outra depositada na Caixa Econômica. Para ele, era importante que aprendessem um ofício
para futura inserção no mercado de trabalho, que recebessem o estímulo do lucro e, acima de
tudo, um pequeno pecúlio “[...] para quando sahirem do estabelecimento, que puderão viver
honestamente, livrando-se assim da perdição, e nós como protectores que somos dessas
infelizes creanças, não devemos olvidar todos e quaesquer benefícios em favor dellas.”
(ASCMB, Relatório..., 1884-1885, p. 65).
De acordo com Saffioti (1991, p.11), a sociedade investia na “naturalização” do
processo de fazer crer que à mulher cabia o espaço doméstico, algo tão “natural” quanto a
capacidade de dar a luz. Assim, ainda de acordo com a citada autora, “[...] a naturalização dos
processos socioculturais de discriminação contra a mulher [...]” (SAFFIOTTI, 1991, p. 11)
torna mais fácil legitimar a “superioridade” masculina. Meninos e meninas expostos
vivenciaram papéis “naturalmente” masculinos e femininos.
Mesmo com o passar dos anos algumas coisas eram praticamente imutáveis no Asilo,
que contava então com 17 irmãs atuando sob a supervisão de Irmã Lasnier, especialmente no
que se refere às atividades que as meninas asiladas maiores de 12 anos desempenhavam,
conforme se vê.
Atividades desenvolvidas pelas expostas maiores de 12 anos N.
Na oficina de sapataria (fizeram-se 496 pares de calçados para Expostas) 5
Na lavagem da roupa 9
Na salla de engomar 10
Na cozinha 2
Nas enfermarias 2
Na limpeza da casa 17
Nos dormitórios e refeitórios 9
Nas aulas servindo de mestras 6
Nas costuras de roupas da casa e artefactos 44
Total 94
Quadro 1 - Atividades desempenhadas pelas expostas maiores de 12 anos - 1886
Fonte: (ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p.36).
96
O contingente de asilados continuava a ser predominantemente feminino e de cor
parda, conforme Tabela 4:
Tabela 4 – Distribuição de meninas e meninos por cor da pele – 1886
COR MENINAS MENINOS TOTAIS
Branca 28 11 39
Pardas 158 35 193
Creoulas 27 11 38
Total 213 57 270
Fonte: (ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p.36).
Vê-se que as meninas, ao desempenharem tarefas domésticas dentro do espaço do
Asylo, cumpriam suas “obrigações” e isso atendia ao que era considerado como parte do
preparo para a vida prática, fosse como empregadas em serviços diversos, em casas de família
ou na sua própria casa, quando casassem.
O Relatório de 1889 traz, na página 74, que, em 19 de maio de 1889, registrou-se o
pedido formal da Condessa de Pereira Marinho, viúva do ex-Provedor, para retirar do asilo a
“[...] exposta Dyonisia de Mattos para sua companhia, protegida de seu finado marido, a fim
de dar-lhe educação que a ponha a coberto das vicissitudes da vida, sem que tenha a Santa
Casa despeza alguma, a quem dedica amisade de mãe.” Dois anos depois, em 10 de julho de
1891, a Condessa toma aos seus cuidados “[...] o exposto João de Mattos, creoulo, com 12
annos de edade [...] em virtude da autorização da Mesa de 18 de maio.” (ASCMB,
Relatório..., 1891-1892, p. 47). Num universo em que os asilados tinham por opção crescer na
instituição, trabalhar como doméstica ou outros empregos subalternos, casar-se com homem
que muitas vezes apenas cobiçava seu pequeno dote, a saída de Dyonísia e João
10
deve ter
suscitado o desejo em alguns meninos e meninas que almejavam viver no mundo de fora dos
portões do Asylo! Esse caso serve para mostrar como era esporádica a saída do Asylo para
uma condição social aparentemente melhor, que possibilitasse educação, convívio social mais
amplo e um núcleo familiar acolhedor.
A República, que propagava sua preocupação com a educação, tinha nas aulas de
educação moral e cívica a oportunidade de desenvolver no espírito infantil o amor à pátria.
10
Não foi localizado documento que pudesse fornecer dados sobre a exposta, tais como idade, cor, se
permaneceu com a Condessa, entre outros. Também não se localizou informação sobre o que aconteceu a João.
97
De acordo com Matta (1996, p.106), como as pessoas eram regidas pelas mesmas leis,
gozavam de direitos, cabendo a todos trabalhar pelo bem e progresso do país: “[...] a
educação moral e cívica, enquadrava-se no objetivo republicano de fomentar nas crianças
um amor à pátria e uma noção de cidadania ‘universalista’, ou seja, um ideal de cidadania
construído a partir do Liberalismo.” Assim sendo, era importante a alfabetização e o preparo
para o trabalho, metas que a Santa Casa se propunha cumprir, a despeito de suas
dificuldades financeiras.
Mesmo com o passar do tempo permanecia arraigada a idéia de que as jovens asiladas
precisavam aprender o trabalho doméstico. Convencido de tal necessidade, mas olhando o
lado prático e pecuniário da instituição, em 1914, o Provedor Teixeira Gomes, considerou as
informações da Superiora sobre o que ocorria na Sala de Costuras. As jovens trabalhavam a
partir dos 5 anos de idade, algumas delas merecendo referências calorosas sobre a perfeição
dos trabalhos nos bordados brancos, na confecção de flores, nos bordados a seda e a ouro. A
Superiora, D.Amélia Rodrigues
11
, registrou que, devido ao fato de encaminhar semanalmente
as meninas para o aprendizado doméstico, “[...] em obediencia as constantes recommendações
de V. Ex. e de accordo com as boas normas modernas para a educação feminina appliquei ao
aprendizado de trabalhos domésticos diversas expostas, de 12 a 18 annos de edade - cosinha,
copa, engommado e lavanderia, quase nada tendo aprendido as empregadas neste trabalho.”
(ASCMB, Relatório..., 1914, p. III), elas deixavam de produzir as costuras que recebiam de
encomenda, caindo assim a produção e, conseqüentemente, o “resultado pecuniário”, com o
qual se comprava o vestuário das expostas.
Vê-se claramente o que era então pregado, inclusive no Asylo, como “boas normas
modernas para a educação feminina”, em pleno início do século XX, com o mundo
começando a enfrentar as mudanças provocadas pela Revolução Industrial e a primeira
Guerra Mundial: receber uma educação formal elementar e preparar-se para o trabalho
doméstico, remunerado ou não, o que as circunscrevia num espaço de poucas possibilidades
de ascensão social e de melhoria do seu nível intelectual. Tal situação se agrava ao ser
considerado que, segundo Rodrigues (2003, p. 109):
[...] em 1913, a idade mínima para exercer trabalhos dentro do Asilo caiu de 12 para
10 anos e a faixa etária permitida para freqüentar a escola, 7 a 18, foi reduzida para 7
a 16. Fato que reforça o nosso argumento de que a percepção e a compreensão da
infância só pode ser feita se levarmos em consideração o espaço social e a
11
D. Amélia Rodrigues foi contratada em 17-1-1914 e permaneceu como Superiora do Asylo até 1924
(ASCMB, Relatórios..., 1914; 1925).
98
conjuntura histórica em que este segmento está inserido, haja vista que a infância
não é uma categoria definida unicamente pelo biológico e separada das demais fases
só pela idade.
O patente direcionamento precoce das meninas para o mundo doméstico revelava a
concepção da sociedade e da Santa Casa sobre os mundos masculino e feminino, o que se
acentuava quando se tratava de pessoas (adultas ou crianças) que pertenciam aos estratos
sociais mais baixos, desprovidas de riqueza, de prestígio e de poder.
A criança, vista pelo olhar do adulto, era desde cedo tratada em conformidade com seu
sexo, trabalhada na construção de identidade de gênero. Na sala de aula, os processos sociais
associativos de cooperação, acomodação e assimilação podiam acontecer da mesma forma
que os processos dissociativos de competição e conflito: sempre sob o olhar vigilante e
disciplinador, repleto de autoridade da Irmã de Caridade ou da Professora.
Como já referenciado, por meio de suas instituições (escola, família, religião, entre
outros) a sociedade buscava estabelecer o que competia a cada sexo: os modelos sociais
disponibilizados nos diversos espaços públicos ou privados reproduziam e reforçavam o que
era desejado e aceito como forma de ser menino ou menina. De acordo com Passos (1999,
p.104):
O sexo e as características biológicas ganham significados sociais que determinam
as possibilidades físicas de homens e mulheres, delimitam os espaços onde podem
atuar, estabelecem características, enfim, dizem que eles são desiguais.Partem do
suposto que as desigualdades são normais e naturais e correspondem à ‘natureza”
dos homens e mulheres.
Os meninos deixados na Roda e acolhidos no Asylo recebiam abrigo, alimento e
educação, de acordo com o Regulamento:
Art 29- Recolhidos os expostos ao Asylo, se lhes dará a intruccão primária, depois
do qual o Mordomo prescreverá um mestre de qualquer offício, hábil, de boa
conducta, que queira receber qualquer dos rapazes com as condições seguintes:
1º Dar-lhe a casa durante um ano e 2$000 por mez.
2º Não te-lo fora da cidade e apresenta-lo ao Asilo no 1 de cada mês, e todas as
vezes que for exigido.
3º Alimental-o, vestil-o e ensinar-lhe officio.
4º Entregal-o prompto no fim de 5 annos, respondendo pelo fiel cumprimento das
disposições do contracto....
Artigo 30= A Mesa também poderá entregar os expostos ao Collegio dos Órfãos de
São Joaquim com condições acceitaveis, ou dal-os para a Companhia dos
Aprendizes menores de Guerra e Marinha ou para a Companhia de Aprendizes-
marinheiros, uma vez que tenham a idade que a lei exige. Poderá egualmente dal-os
as fabricas estabelecidas na Província. Logo, porém que hajão escollas praticas de
agricultura, envidara todos os esforços para serem admittidos nellas. (ASCMB,
Regulamento..., 1874, p. 11-12).
99
Não havia espaço para dúvida: meninos só poderiam permanecer na instituição até a
idade de 12 anos
12
, quando eram direcionados para o ensino prático de algum ofício, enviados
para outras instituições que aceitassem pessoas do sexo masculino ou para empregos diversos
sob o acompanhamento da instituição, como no caso transcrito: “A Provedoria pede
informações sobre estado de aproveitamento de dois menores João e Thomaz de Mattos,
remetidos em 8 de outubro de 1887 ao Instituto Agrícola” (ASCMB, Relatório..., 1889-
1890, p.82).
O Asilo não estava organizado para administrar a convivência entre meninos e
meninas púberes, considerando que a idade implicava em ameaça à moralidade: a
adolescência e suas mudanças hormonais e o despertar da “temida” sexualidade. Desde cedo,
a identificação do indivíduo se dá com base em seu sexo, em sua configuração biológica. Ao
longo da história tem sido assim e as relações de gênero, que estabelecem as competências
masculinas e femininas, englobam aspectos significativos da vida humana, como valores,
normas e cultura. De acordo com Passos (1999), os meninos são desde cedo levados a
valorizarem sua masculinidade, misturada à virilidade, e adotam comportamentos que
colocam o sexo e o trabalho como pontos centrais em suas vidas, menosprezando sentimentos
e pensamentos que não sejam considerados viris.
No micro-universo da Escola Interna do Asylo, não havia “aparelhamento” para os
comportamentos masculinos, com ênfase sexual. Assim, os questionamentos e a “rebeldia
levavam a instituição a assegurar o distanciamento entre aqueles de sexos opostos e as
temidas conseqüências de envolvimentos amorosos e sexuais, buscando colocação para os
meninos ainda mais cedo, lançando-os no aprendizado de um ofício, conforme a transcrição:
“Os expostos, na idade de 12 annos são entregues a Mestres que lhes ensinão officios ou são
remetidos para os Arsenaes do Estado, ou para a Eschola Agrícola e para outros misteres.”
(ASCMB, Resposta..., 1892).
12
Muitos expostos da Santa Casa foram enviados para lá. Os meninos, órfãos ou desvalidos de qualquer
assistência familiar, eram direcionados a Orfanatos e Casa Pias para receberem abrigo, educação elementar e
aprendizado de um ofício, que lhe possibilitasse a futura colocação no mercado de trabalho para custeio da
sua própria manutenção. O prédio da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim tem sua história iniciada
em 1704, quando é fundado o Noviciado em terreno doado pelo bandeirante Domingos Afonso Sutão. Porém,
só em 1709 é iniciada a construção do Colégio dos Jesuítas, que compreende o colégio, capela e instalação de
captação de água da encosta. Com a expulsão dos jesuítas, é fundada em 1799 a Casa Pia pelo Irmão Joaquim
Francisco do Livramento com o objetivo de educar meninos desamparados, capacitando-os para o trabalho.
Com o passar do tempo a instituição adota o método lencastriano e também começa a ter finalidade
utilitarista, num projeto educacional que, atendendo a classe dominante, transformaria os órfãos em
disciplinados trabalhadores, tementes a Deus e respeitadores da ordem social. Ali entraram meninos brancos,
pardos, negros, todos oriundos da pobreza, para viverem as regras de uma instituição total, que acreditava
livrá-los da marginalidade (MATTA, 1996; RODRIGUES, 2003).
100
Até 1914, os meninos tinham uma carga horária de aula maior que a das meninas,
numa clara reprodução de um mundo patriarcal que privilegiava o indivíduo do sexo
masculino, considerando-o mais apto e socialmente mais aceito para o desempenho laboral
braçal e intelectual. Freqüentavam as aulas obedecendo ao programa oficial das disciplinas e,
como tarefas manuais, ocupavam-se de atividades no próprio espaço do Asylo. O Relatório de
1914, elaborado por D.Amélia Rodrigues, traz várias considerações sobre as atividades dos
asilados, revelando a preocupação da superiora com seu aproveitamento intelectual.
A distribuição do serviço é feita com regularidade, ordem e disciplina; sem prejuiso
de ensino os asylados prestam, segundo suas idades e tendências, serviços compatíveis
com suas forças nas diversas secções: costura, cosinha, copa, creche, enfermaria e
lavanderia, revezando-se [...] (ASCMB, Relatório..., 1917-1918, p. 117).
As dificuldades financeiras para o custeio de estudos fora da instituição foram
exemplificadas no Relatório da Santa Casa, no ano de 1892, que fez referência a um aluno
que entrou para o Seminário, causando alegria em muitos membros da Santa Casa. O
Relatório do biênio seguinte, entretanto, sem citar as razões, informou que o seminarista não
pôde continuar os estudos, voltou para a Santa Casa e foi trabalhar na farmácia do Hospital
Santa Isabel, a fim de praticar e poder ter meio de vida, servindo também como sacristão na
capela do estabelecimento (ASCMB, Relatório..., 1894-1896).
Os Relatórios da Santa Casa apresentados à Mesa e à Junta apontam o descaso de
significativo número de expostos com os estudos, embora lhes coubessem mais horas dedicadas
ao ensino em sala de aula. Com o passar do tempo, os meninos preocupavam a Provedoria, que
expunha no Relatório suas considerações sobre sua falta de empenho para estudar:
Estes adolescentes e adultos alguns existiam refractarios à acção educativa. Pois
bem: a assiduidade do Mordomo no visitar o estabelecimento, os seus conselhos
paternaes, o carinho a todos dispensado e até as guloseimas que distribuiu, tudo isso,
conjugado com o esforço da Superiora e de suas dedicadas auxiliares, veiu
produzindo os seus salutares e admiráveis resultados.
Fomentar o estimulo dos asylados, aconselhar-lhes, premiar os bons, não é pequena
tarefa a obtenção de resultados satisfaz compensando o sacrifício voluntário.
(ASCMB, Relatório..., 1917-1918, p. 117).
No Relatório de 1882, o Provedor Conde de Pereira Marinho achou que conviria
estabelecer oficinas de carpina para os meninos, dirigidas por mestres de bons costumes, sob a
vigilância da Irmã Superiora. Na época os alunos estudavam pelo já citado método de João de
Deus, estruturado em quarenta lições, sua Cartilha Maternal, embasada no método intuitivo,
que fez muito sucesso em Portugal e no Brasil, sendo adotada em muitas escolas. Em 1888, a
101
educação e o destino dos meninos ocuparam boa parte do Relatório do Mordomo Arnaldo
Lopes da Silva Lima, sugerindo:
[...] que se mandasse fazer na entrada do Asylo de N.S. da Misericórdia, ao lado da
Capella, um commodo com dous pavimento onde no primeiro andar fossem
accomodados os expostos que forem attingindo a edade de 12 annos, com a pessoa
encarregada de os dirigir, que deverá ser de reconhecida moralidade, sob a
fiscalização da irmã superiora e do respectivo mordomo, com regulamento especial.
No pavimento térreo se estabelecera uma officina de carpina ou de marcenaria, onde
deverão elles se applicar aos trabalhos dessa arte, preparando peças de obras à
proporção que se forem habilitando. Poderá também haver uma secção de pedreiro,
de onde saião para as obras do mesmo Asylo, de S.João de Deus e do Hospital de
Caridade, devendo ser acompanhados dos respectivos mestres para isso
contractados, tanto na ida como na volta. A comida para elles nestes lugares, deve
ser fornecida pelo estabelecimento em que estiveram trabalhando.
Poder-se-há também crear officinas de sapataria e de alfaiataria, bem como uma
banda de musica, cujos instrumentos pertencerão a Santa Casa, estimulando assim o
gosto dos mesmos expostos para as artes. Logo que tenhão direito a receber qualquer
quantia pelo seu trabalho, será a quantia dividida em tres partes, uma para as
despesas do estabelecimento, outra para indemnizar a importância da ferramenta que
lhes ficará pertencendo, sendo-lhes entregue o restante, e a última será recolhida a
caixa Econômica garantida pelo Governo, para seu pecúlio que lhes sera entregue
quando atingirem a maioridade, epocha em que se poderão retirar do estabelecimento,
caso queirão, e dispor do seu pecúlio. (ASCMB, Relatório..., 1888-1889, p. 46).
Eram proposições eivadas de boa vontade, mas que se repetiam ao longo dos anos,
sem que nada mais efetivo ocorresse que a destinação dos meninos para outras entidades
assistenciais. Nem mesmo com o novo Regulamento do Asylo, aprovado em 1914, a situação
dos meninos se modificou: o estribilho é repetido no Relatório da Mesa de 1918, sob a
Provedoria de Isaias de Carvalho Santos e a Superiora Amélia Rodrigues:
[...] sabido como é que o Asylo é o repositório de todos os enjeitados, qualquer que
seja o móvel inspirador do agente do depósito feito no estabelecimento, o que é fora
de dúvida ´e que ahi recebe-se de tudo, de bom e mão, doentes de todas as espécies,
tarados, defeituosos em grande número; pouquíssimos perfeitamente bons.
Estes adolescentes e adultos alguns existiam refractarios à acção educativa. Pois
bem: a assiduidade do moromo no visitar o estabelecimento, os seus conselhos
paternaes, o carinho a todos dispensado e até as guloseimas que distribuiu, tudo isso,
conjugado com o esforço da Superiora e de suas dedicadas auxiliaes, veiu
produzindo os seus salutares e admiráveis resultados.
Fomentar o estimulo dos asylados, aconselhar-lhes, premiar os bons, não é pequena
tarefa a obtenção de resultados satifaz compensando o sacrifício voluntário.
A distribuição do serviço é feita com regularidade, ordem e disciplina; sem prejuiso
de ensino os asylados prestam, segundo suas idades e tendências, serviços compatíveis
com suas forças nas diversas secções: costura, cosinha, copa, creche, enfermaria e
lavanderia, revezando-se [...] (ASCMB, Relatório..., 1917-1918, p. 117).
A constatação das dificuldades é registrada pelo Mordomo Arthur Newton de Lemos,
que, em seu Relatório referente ao biênio 1923-1924, fez duras críticas à educação dos
102
meninos, carente de aparelhamento necessário ao ensino profissional, assim como aponta as
dificuldades financeiras da Santa Casa e do descaso do Estado:
Confesso a Casa da Santa Misericórdia nada tem feito pelo sexo masculino e, certo,
não o fará, mesmo em futuro remoto, se para tanto houver de contar exclusivamente
com as rendas do seu patrimônio.
(ASCMB, Relatório..., 1923-1924, p. 52).
A constatação de que o resultado desejado não estava sendo alcançado permeia alguns
Relatórios de 1925 a 1934 mais corajosos e críticos. Fica evidente que era grande a
preocupação com os meninos asilados, mal preparados para o exercício de atividades, ao saírem
do Asylo, sem a necessária formação intelectual e laboral. Mesmo com a compreensão de que a
Santa Casa não era a única instituição a vivenciar dificuldades de educar adequadamente e
colocar os meninos devidamente abrigados, preparados intelectualmente para a inserção no
mercado de trabalho e na vida social, a tarefa era mantida: novos expostos chegavam e os
problemas permaneciam com remotas chances de serem equacionados satisfatoriamente.
Outro grande perigo que a instituição temia relacionado aos meninos, era a vida nas ruas
em total estado de desemprego e vadiagem. Segundo Fraga Filho (1996), meninos e jovens
vivendo nas ruas era parte do cenário da Salvador do século XIX. Devido a causas como
abandono familiar e orfandade, a vida nas ruas, sem qualquer perspectiva de futuro, era o
reverso da medalha da vida em instituições ou em funções subalternas nas casas de família ou
de mestres de ofício, que, muitas vezes, os explorava com baixa ou nenhuma remuneração, e
com aplicação de castigos físicos, corroborando a afirmação de Foucault (2007, p. 149) de que
“[...] na essência de todos os sistemas disciplinares, funcionava um pequeno mecanismo penal.”
O ensino visava moldar indivíduos, capacitá-los para algum trabalho condizente com a
classe social do alunado. Para uma sociedade que estava em ebulição e tendo passado da
condição de império para república, defrontou-se com o grande contingente de negros livres e
despreparados intelectualmente e com uma forte conjuntura política internacional
desencadeada pela Primeira Guerra Mundial.
É consenso que a escola não é neutra, mas é campo onde, segundo Bourdieu (1974),
opera em diferenciados níveis, buscando produzir consenso cultural. Neste espaço são
introjetadas e reforçadas maneiras de pensar, por meio de falas, de tarefas e de exames
impostos que levam à criação de traços de cumplicidade entre elementos de uma mesma
classe social. Deste modo, compreende-se que a escola não é um lugar “inocente”, onde
apenas se ensina o conhecimento formal, considerado parte da formação intelectual do
educando, mas sim um local onde ocorre, de forma ostensiva ou velada, em diversos
103
momentos, a ação de ensinar e reforçar os valores e conceitos que são aceitos e pregados pela
classe dominante, baseados na ideologia que os sustenta.
Na educação propiciada pela Santa Casa, as coisas não correram de forma diferente:
era um lócus em que se reproduziam as concepções de classe, remanescentes de sua origem
portuguesa, e também de sua instalação nas terras das colônias, embasada no forte
componente racial, econômico, político e religioso da classe dominante.
O Asylo, com todo seu aparato hierárquico constituído de Provedor, Mordomo,
Superiora, mestras, alunas maiores, médicos, entre outros, ofereceu abrigo, alimento e
educação. Atuou embasado nos princípios cristãos e na reprodução dos valores sociais
vigentes, especialmente no que dizia respeito à formação para o desempenho dos papéis
sociais destinados a meninos e meninas. Nesse universo próprio, em que os internos faziam
pouca incursão ao mundo exterior, a religiosidade, a disciplina, a obediência e a
aprendizagem eram tarefas consideradas úteis para o cotidiano doméstico e a sobrevivência de
meninos e meninas pobres.
Como a preocupação da instituição com as crianças que viviam em seus espaços
englobava a educação formal, a Santa Casa criou, dentro do próprio Asylo, a Escola Interna,
objeto do capítulo seguinte, onde será mostrado o contexto educacional baiano, a criação da
escola e o seu cotidiano vivido por alunos e mestres
104
Prédio principal do Asylo, onde funcionou a Escola Interna
Foto de Antonio Ivo de Almeida
105
3 ESCOLA INTERNA DO ASYLO DE NOSSA SENHORA DA
MISERICÓRDIA
“Em epocha não tardia a sociedade em que vivemos saber-
nos-á reconhecer e louvar a carinhosa missão que
empreehendemos, e que forçosamente fructificará em
abundancia de proventos e benefícios.”
Provedor Felipe Daltro de Castro (ASCMB, 1910-11)
Este capítulo tem como objetivo estudar a criação da Escola Interna do Asylo
46
de
Nossa Senhora da Misericórdia, integrante da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Tal
escola, funcionando no espaço interno do Asylo, cuidou do ensino de meninos e meninas
asilados, esforçando-se em propiciar-lhes educação e aprendizado prático. Para que se possa,
de fato conhecê-la, faz-se necessário desvelar aspectos históricos e filosóficos de seu
surgimento, que levaram a Santa Casa a assumir uma instituição de ensino, responsabilidade
não prevista em seu Estatuto.
A Escola Interna, desconhecida de grande número de baianos, funcionou durante 130
anos (1862 a 1992). Na intenção de melhor conhecer sua proposta pedagógica, foi
imprescindível revisitá-la por meio de seus documentos primários, existentes no Arquivo da
instituição, onde estão registrados: sua clientela, administradores e regulamentos que
direcionavam sua ação educativa.
Partindo da lógica de que a Santa Casa era uma instituição observadora das leis em
vigor no país e no Estado da Bahia, sua Escola Interna pode ser aqui apresentada e analisada
como parte integrante do contexto educacional da cidade de Salvador, atendendo a um
segmento específico da sociedade: meninos e meninas enjeitados, os chamados expostos.
Assim, devido ao fato de a Escola Interna existir dentro do Asylo, para atender unicamente às
crianças asiladas, o imbricamento entre ambos é inevitável e indissolúvel. Por esta razão foi
apresentada, no capítulo precedente, a história do Asilo, que tanto influiu na salvaguarda
física e educacional das crianças.
O cotidiano da escola, subordinado ao Compromisso da Misericórdia, ou seja, ao
Estatuto da instituição e às leis educacionais vigentes no Estado da Bahia, buscava atender sua
proposta pedagógica. Esta visava propiciar educação formal e tamm preparar os expostos
de ambos os sexos que estudavam na Escola Interna e transitavam, trabalhavam e viviam no
46
Ao longo do trabalho será mantida a grafia da época em tela: asylo ou asilo.
106
espaço do Asylo Santa Casa de Misericórdia da Bahia, no período de 1862 até 1934, para o
trabalho que garantisse a subsistência, mediante as atividades aprendidas e desenvolvidas.
Para dar conta de tal proposição, o capítulo é iniciado com a apresentação
notadamente no que se refere à educação primária do contexto educacional baiano,
embasado na Educação Tradicional, e o conceito de ser humano; tal contexto possuía suas
leis, reformas, resultados e dificuldades, bem como influência de idéias e questões sociais que
aconteciam no plano nacional e internacional e chegavam à cidade de Salvador. Como é
sabido, na construção dos sistemas educacionais sempre estiveram embutidos elementos
ideológicos, demarcadores de concepções que assegurassem o alcance dos objetivos aos quais
os referidos sistemas serviam na sociedade.
Considerando-se a relação entre Educação e sociedade e as diversas teorias
educacionais
47
que surgiram ao longo do tempo, será abordada apenas a Educação
Tradicional, por ter sido hegemônica no período demarcado para este estudo a segunda
metade do século XIX a meados do século XX e seguida pela instituição.
A cidade de Salvador entrava na segunda metade do século XIX, enfrentando as
alterações econômico-financeiras conseqüentes do fim do ciclo açucareiro, o crescimento
demográfico e mudanças em sua estrutura urbanística. Naquele período, a Santa Casa fincou
um marco duradouro de sua história, o Asylo dos Expostos, localizado no Campo da Pólvora.
Para Kuhlmann Jr. (1998), a assistência à infância é o resultado de uma articulação de
forças jurídicas, empresariais, políticas, médicas, pedagógicas e religiosas em torno de
interesses sustentados por três influências básicas: a médico-higienista, a jurídico-policial e a
religiosa. Cada uma delas possibilitou que a infância fosse vista pela sociedade com olhos
mais atentos, compreendendo as necessidades da criança e também as necessidades sociais
para a construção de um aparato que assegurasse as condições consideradas ideais pelos
poderes públicos e religiosos.
A educação da criança foi vista como uma ação de generosidade. Campos (1994)
afirma que o atendimento baseado no conceito de assistência ajudou a difundir e consolidar a
idéia de que a educação infantil, especialmente a creche, não era considerada um direito, mas
uma dádiva dos filantropos. A Santa Casa, na medida em que acolheu e educou crianças, em
distintos momentos de sua ação vivenciou ambas as óticas: caridade aos desvalidos e
prestação de serviços aos cidadãos.
47
Saviani (1984) analisa a relação entre educação e sociedade e classifica as teorias educacionais em três
grupos: Teorias Não-Críticas (inclui a Tradicional, que perdurou até 1930; a Nova, que durou de 1930 até a
década de 1960, e a Tecnicista, que vigorou durante os anos de 1970); Teorias Crítico-Reprodutivistas que
vigoraram durante o final da década de 1970; e a Teoria Crítica da Educação surgida a partir de 1980.
107
3.1 CONTEXTO EDUCACIONAL BAIANO – 1862 A 1934
Para o delineamento do quadro educacional da Bahia no período de 1862 a 1934, é
adequada uma breve apresentação do período precedente, devido ao fato de que os
acontecimentos ocorridos no Brasil Colônia e Império foram determinantes para o recorte
temporal em tela.
A cidade do Salvador, desde sua fundação, foi marcada pela presença de religiosos
jesuítas que desempenhavam os papéis de sacerdotes e professores, em plena conformidade
com concepções educacionais então em voga no universo europeu, especificamente no
lusitano. A estreita ligação entre educação e catequese no Brasil colonial era marcada por
elementos muito fortes e complementares, tais como os dogmas, a autoridade moral e
religiosa e a tradição escolástica e esses elementos permeavam toda a educação, fechando-a
para qualquer análise ou crítica. A ciência e as artes eram relegadas a um plano inferior e isso
era outra marca considerada passível de crítica na educação jesuítica.
Na Bahia colonial, o primeiro colégio para meninos foi iniciado em 1550 sob o
sistema jesuítico; no Brasil, imperou a Educação Tradicional, com sua metodologia de
transmissão de conteúdo e rigor pedagógico, que será tratada com mais profundidade ao longo
deste capítulo. De acordo com Silva
48
(2004, p.131), na Bahia de 1585, “[...] as escolas de ler
e escrever acolheram 70 alunos filhos de colonos”; com o passar do tempo, não eram os
jesuítas os únicos a ensinar as primeiras letras, conforme atestam recomendações dos Juízes
de Órfãos desde os finais do século XVI.
Ainda que o Gabinete do Marquês de Pombal tenha considerado obsoleta, obscurantista,
rigorosa e passível de críticas, inclusive pela introdução do castigo físico em crianças, é
inegável a contribuição da ação pedagógica da Companhia de Jesus nos anos iniciais do
processo de colonização, apesar das contradições entre suas funções de missionária e
educadora e seu papel de companhia colonizadora, elitista e mercantil. Durante sua permanência
de 210 anos, os jesuítas aqui chegados, sob o comando do Padre Manoel da Nóbrega,
contribuíram para conservar a unidade lingüística e cultural da colônia (WEREBE, 1997).
A expulsão dos jesuítas, em 1759, simbolizou uma ruptura do governo português com
o pensamento escolástico, visando substituir os interesses da fé pela escola útil aos fins do
Estado. A medida foi respaldada por leis reguladoras da instrução pública, inclusive para o
48
A autora cita as informações fornecidas pelo Padre José de Anchieta.
108
Brasil. A secularização do ensino, inspirada no Iluminismo, era almejada pelo Gabinete
Pombalino, o qual desejava a modernização e a laicização na atividade educativa. Assim, pelo
fato de o Gabinete julgar que a Companhia de Jesus detinha um poder econômico que deveria
ser devolvido ao Estado e que ela buscava educar o indivíduo priorizando colocá-lo a serviço
da ordem religiosa em detrimento dos interesses do país, foi decidido que era chegado o
momento de afastá-la do cenário do poder. Segundo Werebe (1997, p.25):
[...] suprimiu-se, é verdade, um ensino bem estruturado, mas que nem por isso era
um modelo de excelência. Ao contrário, caracterizava-se por uma orientação rígida,
dogmática, anticientífica, acanhada, voltada quase que exclusivamente para os
interesses religiosos e políticos da Companhia.
Repentinamente, 600 padres foram expulsos e deixaram de existir no Brasil 18
estabelecimentos de ensino secundário e 25 escolas de ler e escrever. Foi então instituído “[...]
o ensino público, mantido graças a um imposto especial, chamado “subsídio literário
(BELLO, [19--], p.214). Passou então a ser ministrado um ensino precário, sob a
responsabilidade de outras ordens religiosas, em seus conventos e em casas de famílias ricas;
o ensino médio desapareceu como sistema e resumia-se, de maneira irregular, às aulas régias
(cadeiras autônomas). Consoante Werebe (1997, p. 27), estas aulas
[...] só tiveram a vantagem, em relação ao dogmatismo jesuítico, de introduzir novas
matérias, como as línguas vivas, matemática, física, ciências naturais, etc. Os
professores das aulas e escolas régias eram os padres-mestres e capelães de engenho,
nomeados com o acordo dos bispos, e quase todos tinham um baixo nível de instrução.
O quadro descrito alterou-se com a chegada da família real, em 1808, que contribuiu
para que se orientasse a educação da Colônia para a formação das elites dirigentes, com a
criação da Escola Médico-Cirúrgica (futura Faculdade de Medicina da Bahia).
Mattoso (1992) revela que no governo do Conde dos Arcos, interessado na instrução
do povo, foram criadas aulas de primeiras letras e aulas de estudos maiores, constituindo-se
no primeiro movimento nacional em prol da escola. Em 1811, foi criada em Salvador a
primeira Biblioteca Pública, com acervo inicial doado por baianos, que teve um público
usuário muito restrito, freqüentada basicamente por estudantes secundaristas, acadêmicos e,
mais tarde, alunos do Curso Normal. A cidade de Salvador possuía também uma imprensa
ativa, com sete jornais e cinco periódicos.
D. Pedro, na qualidade de Príncipe Regente, baixou um decreto, em 28 de junho de
1821, determinando que qualquer cidadão poderia ter acesso ao ensino e que em qualquer
lugar do reino poderiam ser abertas escolas de primeiras letras, gratuitas ou não, bastando o
109
interesse das partes, sem maiores burocracias. A Independência, em 1822, não incentivou, de
fato, a educação popular. Assim, a primeira Constituição foi outorgada em 25 de março de
1824 e, apesar de assegurar a gratuidade da instrução primária a todos os cidadãos, não
ocorria uma real obrigatoriedade de estudar; desta forma, imensa parcela do contingente
populacional deixava de ser assistido pelo Estado, permanecendo à margem de qualquer
processo educacional.
Nunes (1997, p. 171) informa que no início do império brasileiro “[...] a educação na
Bahia, constituía-se de algumas Aulas Régias, instituídas pela reforma Pombalina, do Colégio
Médico-cirúrgico, Colégio de Órfãos de São Joaquim e alguns colégios privados, geralmente
de inspiração religiosa [...]”. A autora informa ainda que em 15 de outubro de 1827 foi
promulgada a primeira Lei Orgânica de Ensino, estabelecendo a criação de escolas de
primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares populosos com locais indicados pelos
Presidentes de Conselhos Municipais, ouvidas as Câmaras, que tinham papel fiscalizador.
Determinava também, conforme registro na p. 5 do Livro de Decretos Gerais de 1827, citado
por Nunes (2004), que cada capital e vila que tivesse significativo número de alunos e de
imóveis deveriam ter uma escola de primeiras letras, na qual se ensinasse
[...] a ler e escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados,
décimas e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da
língua nacional e os princípios da moral cristã e da doutrina da religião católica
romana, proporcionadas à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a
Constituição do Império e a História do Brasil (NUNES, 2004, p. 53).
A referida lei ainda definia que em cada capital ou vila que abrigasse número
expressivo de crianças em idade escolar (ainda que não indicasse o percentual de alunos)
deveria possuir uma escola de “ensino mútuo” ou Método de Lancaster
49
(NUNES, 2004).
De acordo com Almeida (1989), em 1830, no tocante à educação primária, havia na
província da Bahia quatro colégios de educação, incluindo o dos Órfãos de São Joaquim, e
três particulares, além de 23 aulas públicas e 22 aulas privadas de primeiras letras.
49
Sistema monitorial ou mútuo, em que as classes eram divididas em grupos de dez alunos, ficando cada classe
sob a responsabilidade de um aluno mais destacado ou decurião. Segundo Nunes (2004, p. 55), tal método foi
“[...] de certa forma, esboçado nas escolas monásticas, nas escolas dos Irmãos Vida em Comum e em certas
escolas de caridade no período anterior a Revolução Francesa. André Bell (1753-1832), médico e pastor
anglicano, aplicou princípios do método nas Índias Inglesas, onde dirigiu um orfanato em Madras, de 1878 a
1794 [...] quando retornou a Inglaterra, publicou em 1797, um Ensaio onde relatou sua experiência. Nesta
ocasião, Joseph Lancaster, da seita dos Quackers, criou no ano de 1798, em Londres, uma escola para crianças
pobres (800 meninos e 300 meninas) onde, para instruir gratuitamente muitos alunos sem utilizar muitos
professores, dividiu a escola em várias classes, colocando em cada uma delas, como monitor, um aluno com
conhecimento superior aos daquela classe.” O método teve vida curta na Inglaterra, mas, no Brasil, foi
adotado em escola do Rio de Janeiro, criada por decreto de 1823. Panacéia que não produziu resultados.
110
Durante o Segundo Império, uma reforma na Constituição propiciou o Ato Adicional
de 1834, criando as Assembléias Legislativas Provinciais, as quais deveriam legislar sobre o
ensino elementar e secundário. A descentralização administrativa, que poderia ser um
elemento facilitador da melhoria do ensino público, mostrou-se ineficaz, incapaz de dar conta
dos problemas e interesse localizados, e não considerou o tamanho do país, as variações e os
recursos de cada região, bem como as forças políticas locais, que não tinham interesse em
popularizar o ensino. Não existia uma política educacional que propiciasse uma integração
entre o centro e as províncias e faltava um plano nacional que fiscalizasse e controlasse as
escolas, objetivando o aprimoramento pedagógico e melhor aproveitamento por parte do
alunado (RIBEIRO, 2005).
De acordo com Nunes (1997), o Presidente da Província, Tomás Xavier Garcia de
Almeida, declarou que em 1839 existiam na Bahia 171 aulas primárias, quase todas com o
ensino simultâneo ou Método de Castilho, segundo o qual alunos de diferentes níveis
aprendiam com um único professor, numa mesma sala. Designado de Método Repentino, ou
Português, ou ainda de Método de Castilho, foi criado pelo poeta, escritor e pedagogo
português Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875). Estruturado em 20 lições, iniciava-se
com o conhecimento das letras do alfabeto. Almeida (1989) relata que, no ano de 1840, havia
na Bahia 132 escolas, sendo 124 destinadas a meninos e 8 a meninas e em Salvador havia 26
escolas para meninos (1.415 alunos) e 9 para meninas (252 alunas). Em 1855, Castilho veio
ao Brasil difundir ainda mais seu método, que gozava de boa acolhida. Nesta ocasião o
Presidente da Província da Bahia nomeou “[...] o professor Felipe Alberto para estudá-lo, com
o que ter-se-á de fazer uma despesa de 800$000, quantia insignificante em relação à grandeza
do fim; conto com a aprovação deste ato pelo poder legislativo.”, conforme Relatório da
Província da Bahia de 1854, citado por Primitivo (1936).
A Escola Normal da Bahia
50
iniciou suas atividades docentes em 1842, preparando
alunos de ambos os sexos para o magistério. A prática se dava ali mesmo, com alunos das
escolas primárias. De acordo com Nunes (1997, p. 175):
O curso era de um ano em duas cadeiras: uma de ensino mútuo e outra tratando de
leitura, caligrafia, aritmética, desenho linear, princípios da doutrina cristã, gramática
filosófica da língua portuguesa com exercícios de análise e imitação dos clássicos
[...] A Bahia acompanhava assim as mais progressistas correntes pedagógicas da
época, que preconizavam formação específica para os mestres e educadores.
50
A Assembléia Legislativa da Bahia, pela Lei nº 37, criou, em 14 de abril de 1836, a Escola Normal da Bahia,
instalada em 7 de outubro de 1841, ainda que as atividades docentes tenham sido iniciadas em 1842 (NUNES,
1997).
111
A Escola Normal, com duração de apenas um ano e com duas disciplinas, ampliou seu
curso para dois anos e ainda estabeleceu um curso teórico para mulheres em 1850. Por fim,
em 1881, ocorreu a regularização do curso normal em três anos. Posteriormente, veio a sofrer
alterações, com a finalidade expressa de formar adequadamente homens e mulheres que
deveriam ajudar a resolver o problema educacional ocorrido com a expulsão dos jesuítas.
Verificou-se maior número de mulheres do que de homens como alunos das escolas normais.
Tal fato pode ser creditado à compreensão então vigente de que a mulher era mais adequada
para o exercício “do magistério como extensão da maternidade” aspecto estudado por
Fagundes (2005, p.57), que enfatiza o controle do Estado sobre a atividade docente e os
baixos salários. De acordo com a autora, essas Escolas Normais constituíram-se numa via de
acesso das mulheres à instrução formal.
O ano de 1849 trouxe a lei provincial nº. 378, a qual criou o cargo de Diretor Geral
dos Estudos, numa demonstração de interesse pelo ensino público. Esta função, que poderia
ser de extrema importância, enfrentou dificuldades que iam da real falta de vontade política
para com a educação popular até os entraves de deslocamento, não cumprimento das
observações prescritas por parte de dirigentes escolares, entre outras (NUNES, 1997).
A Província da Bahia seguia seu curso debatendo-se com suas dificuldades
estruturais citadas no capítulo anterior. O Brasil, com sua feição monárquica, fortemente
católica, latifundiária, escravista e conservadora, sofrendo os reflexos do pós-Guerra do
Paraguai e da fundação do Partido Republicano, em 1870, começou a ver que, na realidade,
a sociedade alimentava novas idéias, merecendo destaque aquelas pregadas pelo
positivismo, sistema elaborado pelo francês August Comte (1798 -1857), aqui chegado em
1850 (TAMBARA, 2005).
Comte, como homem de seu tempo, interessou-se por estudos sobre física, química e
biologia e, num contraponto aos cientistas que se dispersavam em pesquisas fragmentárias e
isoladas, acreditava ser imprescindível um estudo de generalidades, que servisse de bússola para
todos os ramos do conhecimento. Para Comte, filosofia significava a filosofia geral das diversas
ciências particulares. Ele esforçou-se por explicar a história e a sociedade segundo leis
científicas, claras e imutáveis (TAMBARA, 2005). A ideologia positivista, segundo este autor:
[...] representou um processo de renovação à ordem monárquica existente. O
positivismo serviu como fator de aglutinação aos setores interessados em uma nova
ordem social e crentes da necessidade de apressar o desenrolar da história [...]
Paulatinamente, setores expressivos da sociedade passaram a incorporar as idéias de
Comte, ocasionando assim o aparecimento de uma corrente ideológica que, com
sucesso, pôde se contrapor ao paradigma dominante o liberalismo. (TAMBARA.
2005, p. 167).
112
O paradigma do positivismo, com o tripé família, pátria e humanidade, ainda que
trabalhando com categorias redutoras da totalidade, foi um elemento presente na evolução das
idéias no Brasil, disseminando-se em clubes republicanos. Por esta razão influenciou na
preparação teórica e na implantação da República.
Emile Durkheim (1858-1917), seguidor de Comte, viu a educação como um fato
social, ou seja, devia ser estudada como coisa. Em sua obra Educação e Sociologia, ele
estabeleceu o quadro teórico no qual devia se inscrever a História da Educação. Consoante
Lopes (1989, p. 19):
Todo o passado da humanidade contribui para estabelecer esse conjunto de
princípios que dirigem a educação de hoje: toda a História aí deixou traços, como
também o deixou a história dos povos que nos precederam [...] Quando se estuda
historicamente a maneira pela qual se desenvolveram os sistemas de educação,
percebemos que eles dependem da religião, da organização política, do grau de
desenvolvimento das ciências, dos estados das indústrias etc. [...]
Tais concepções positivistas atendiam aos interesses e anseios de alguns intelectuais e
pensadores brasileiros e baianos que nelas identificavam a modernização de idéias, a
laicização, a importância dada às tradições, ao progresso, à educação e à formação do futuro
cidadão brasileiro. A educação era vista como meio de controle social. A educação pública
era, então, considerada uma via importante e o meio mais avançado no processo evolucionário
humano (TAMBARA, 2005).
O Brasil ficou definitivamente marcado pelo lema “Ordem e Progresso” nas idéias e
nas ações, inclusive na bandeira nacional, subentendendo-se a Ordem dada pelos militares e o
Progresso advindo das indústrias, do comércio exterior e da educação. A ordem e o progresso
eram essenciais para a evolução da sociedade, a qual, em conformidade com o pensamento de
Durkheim, apresentaria estados considerados normais (saudáveis) e patológicos (doentios).
(NEVES; HEIZER, 1995).
O Positivismo exerceu influência sobre a educação no Brasil, notadamente nos
estabelecimentos de ensino não confessionais e nas chamadas escolas-livres, como a de
Direito e a Politécnica. Enquanto as escolas confessionais ou religiosas optavam por uma
educação mais voltada para o aspecto das humanidades, as escolas que adotavam a ideologia
positivista decidiam-se pelo ensino mais focado na técnica. O ideário positivista exerceu forte
influência sobre a sociedade brasileira e a prática pedagógica tradicional, na medida em que
possibilitou discussões e questionamentos sobre alguns temas, tais como: religião, ciência,
ensino, ordem social etc. (NEVES; HEIZER, 1995). Tais aspectos foram tratados nas décadas
seguintes, num contexto republicano e em suas conduções políticas.
113
O positivismo também teve sua participação no modo de a sociedade ver a formação
da mulher, favorecendo sua inserção nas escolas normais, espaço considerado mais
condizente ao papel feminino que ao masculino. Comte afirmava que as mulheres precisavam
ser cuidadas e que a autoridade e responsabilidades dela no lar precisavam ser limitadas e
vigidas pelos maridos (PASSOS, 1999). Assim, a perpetuação da ideologia dominante fincava
raízes, deixando para o homem a melhor educação, espaços socialmente mais valorizados e
com remuneração mais atraente.
Na Bahia também chegavam os ecos positivistas, notadamente nas escolas técnicas,
contribuindo na formação dos profissionais liberais, muitos deles integrantes da elite social e
econômica, desejosos de reformas diversas, inclusive as educacionais. Em 1856, o Professor
Abílio César Borges
51
foi nomeado Diretor Geral de Instrução Pública. Fundou e dirigiu o
Ginásio Baiano e ajudou a formar uma geração que teve seus expoentes em Ruy Barbosa e
Castro Alves. Condenava o uso da palmatória, preocupou-se com as instalações inadequadas
das escolas, sugerindo que a Província construísse gradualmente novas salas ao invés de pagar
aluguéis por tais espaços, além de escrever livros didáticos
52
e reconhecer a importância de
publicações para dar suporte ao trabalho dos professores, que deveriam contar com uma
biblioteca específica e acesso a jornais europeus. Acreditava na eficácia do método de
Castilho e empenhou-se na melhoria das condições de ensino (NUNES, 1997).
Como citado, ainda que o ensino primário na Bahia continuasse a ser lencastriano ou
Mútuo, em muitas escolas prevalecia o ensino pelo método de Castilho ou Simultâneo, ou
seja, salas multisseriadas, método introduzido por João Maurício Wanderley, na segunda vez
em que ocupou o cargo de Presidente da Província da Bahia, de 1854 a 1855 (NUNES, 1997).
Em 1859, a província da Bahia possuía 242 cadeiras
53
de ensino primário, sendo 202
para meninos e 40 para meninas (NUNES, 1997). A Bahia não fugia à regra e refletia o
pensamento da sociedade sobre as posições e papéis para cada sexo! A Educação Tradicional,
51
Abílio César Borges era baiano de Rio de Contas, médico, futuro Barão de Macaúbas (1881). De acordo com
Assis (1923), o trabalho administrativo do Prof. Abílio César Borges como Diretor Geral da Instrução Pública
foi muito prejudicado pela eclosão do cólera morbus.
52
“Na província da Bahia, como tive ocasião de verificar o ano passado, a proporção de livros distribuídos nos
nove últimos anos foi aproximadamente de 1 para 500 meninos! [...] Vale isso dizer que a maior parte dos
meninos aprendem a ler sem livros, servindo-se, principalmente nas localidades centrais ou pouco
consideráveis, das cartilhas do Pe. Inácio, de bilhetes e cartas (às vezes, oh Deus!, com que letra e ortografia!)
ou de gazetas que seus pais lhes fornecem, ou de velhos autos, pelo comum indecifráveis, que os próprios
mestres alcançam dos tabeliães do lugar! Não pensem os mal intencionados que estou a advogar aqui a causa
deste e dos meus outros livros de leitura. Se os competentes os não acharem com préstimo, neguem-lhes
entrada nas escolas; e, ainda quando adotados, se outros aparecerem melhores, dever é dos pais, dos mestres, e
da autoridades, preferi-los.” (BORGES, 1890, p. XIX).
53
Cadeira pode ser entendida como o contrato e espaço para a atuação do professor; pode também se referir às
disciplinas: cadeira de História, Matemáticas etc.
114
que entendia a relação entre o homem e o mundo como estável e sem maiores possibilidades de
transformações, era integralmente adotada nas escolas, formando mentes e direcionando ações.
O Regulamento Orgânico da Instrução Pública, datado de 1862, buscou normatizar a
questão educacional, extinguindo as antigas Aulas Régias e determinando a composição do
Conselho Superior de Estudos. As cidades interioranas possuíam apenas escolas primárias. No
ano seguinte, 1863, “[...] a Província contava com 166 aulas públicas para o sexo masculino e
42 para o sexo feminino, ficando vagas 21 aulas públicas” (NUNES, 1997, p.185).
Como dito no capítulo precedente, foi no ano de 1862 que a cidade de Salvador
passou a contar com o Asylo da Misericórdia, criado pela Santa Casa da Bahia, que ali
instalou uma escola para o ensino de primeiras letras aos meninos acolhidos.
A Província da Bahia avançava lentamente na instalação de cadeiras: em 1867 existiam
210 cadeiras primárias públicas, com 7.611 meninos e 49 aulas para 1.829 meninas; em 1869
havia 211 aulas públicas de instrução primária para 8.034 meninos e 54 para 1.870 meninas
(NUNES, 1997) Em “[...] 1870 eram 274 escolas primárias públicas com 9.935 alunos e 10
particulares com 411 alunos” (ALMEIDA, 1989, p.120). Continuava inabalável a priorização
de matrículas para meninos, os futuros ocupantes dos postos diretivos na sociedade!
Na segunda metade do século XIX, especificamente nos anos finais do império, muitas
foram as tentativas de realizar reformas na área educacional.
Em primeiro lugar, podemos dizer que ao entendermos a educação como uma
expressão da sociedade, podemos verificar a interferência que a instabilidade
política dos anos finais do império exerceram sobre a instrução pública,
transformando-a num amontoado de reformas sucessivas, sem que se pudesse
realmente avaliá-las, pois nem mesmo chegavam a ser implantadas plenamente.
(DICK, 2002, p. 105).
Assis (1923, p.303) considera que na Corte, no período de “[...] 1860 a 1870, a
instrução passa por uma fase áurea, com internatos normais, modelados por seus congêneres
do velho mundo”. Logo em seguida iniciaram-se as propostas de escolas mistas. Bem
diferente a situação na Bahia, conforme o Relatório da Instrução Pública local, datado de
1870, apresentado por Francisco José da Rocha, ao Presidente da Província, Conselheiro
Barão de São Lourenço, onde constavam informações semelhantes às de Abílio César Borges
do seguinte teor: “[...] a província não tem casa para escolas [...] extraordinária desproporção
na instrução dos dous sexos” (BPE, Relatório..., 1870, p. 12). Este Relatório definia:
[...] a direção e fiscalização do ensino público primário continuou a pertencer ao
director geral, ao conselho superior, ao inspector geral e aos conselhos
115
municipais que se crearam em todos os municípios e dos quais ficaram
dependentes os inspectores parochiales e todos sujeitos à superior inspecçao
do governo [...] exigem-se exames solemnes nas escolas públicas, e da-se
regulamento para o interior das aulas [...] criação do periódico Revista da
Instrução Pública (expediente do governo relativo a IP, nome dos alunos que se
destacam, nome de professora que apresentar melhores resultados em suas
escolas, relatórios anuais dos conselhos municipais [...] método de ensino:
simultâneo, com algumas modificações que quase autorisaram chama-lo de
misto
54
[...] (BPE, Relatório..., 1870, p.10 a 12).
A proposta da escola mista começava a tomar corpo como um campo de convivência
entre crianças de ambos os sexos, ainda que dentro dos limites e vigilâncias impostos. Em 18
de janeiro de 1871, o então Presidente da Província, Francisco Gonçalves Martins, mediante
Ato publicado em 18 de janeiro, adotando o modelo americano, admitiu cursos mistos para
meninos de até sete anos cursar escola de meninas (APEB, Atos..., 1871). A convivência entre
meninos e meninas era considerada com benevolência até sete anos, idade limite para que
fossem apartados, com espaço, brincadeiras e valores diferenciados, conforme prescrevia a
sociedade zelosa de sua ideologia sexista.
O Censo de 1872, citado no capítulo precedente, revelou que havia nas onze
paróquias de Salvador 21.761 homens e 13.490 mulheres alfabetizados (MATTOSO, 1992),
com o percentual proporcional ao número de brancos. Mesmo assim, não é possível deixar de
enfatizar que o número de mulheres não alfabetizadas (31.628) era significativo e, em
conformidade com a mentalidade da época, muitas crianças não aprendiam a ler e escrever,
especialmente as meninas e os escravos.
As crianças negras, de ambos os sexos, não tinham acesso à escola; como filhos de
escravos eram igualmente escravos. Eles eram propriedades dos senhores que os compravam,
que deles queriam o trabalho para o enriquecimento, o gozo sexual ou a revenda para auferir
mais lucros. Ainda que ocupasse o espaço doméstico e desfrutasse de ínfimos privilégios, o
“escravo de dentro” continuava a ser “o negro”, “a peça” e, como tal, era interdito ao universo
de qualificação e respeitabilidade social dos brancos senhores.
A Tabela 5 mostra a quantidade de escravos no país, na região Nordeste e na Província
da Bahia, de 1864 a 1887, revelando que mesmo com a acentuada redução do número de
negros, ela é digna de atenção:
54
Método misto= método criado com o objetivo de unir as vantagens do método simultâneo e do mútuo.
116
Tabela 5 – População escrava no Brasil no século XIX, segundo as regiões – 1864-1887
Regiões 1864 1874 1884 1887
Brasil 1 715 000 1 540 829 1 240 806 723 419
Nordeste 774 000 435 687 301 470 171 797
Bahia 300 000 165 403 132 822 76 838
Fonte: Reis (2000, p. 91).
Com a Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, os nascidos de mãe escrava e
beneficiados por tal lei, oficialmente chamados de “ingênuos”, não poderiam deixar de ser
admitidos na escola, devidamente encaminhados pelos “senhores”, mães ou pessoas
responsáveis por eles até a idade de 21 anos. Por razões claras para os interesses senhoriais,
seria impensável manter um professor em sua fazenda para atender a esse contingente, bem
como mandar diariamente todas as crianças para as aulas num povoado distante alguns
quilômetros. Assim, mais uma vez, os negros enfrentaram dificuldades para o acesso à
educação formal, pois o Estado, mesmo quando legalmente permitia, nada fazia de concreto
para a efetivação da lei, tornando o direito apenas letra morta. Segundo Fagundes (2005, p.51)
“[...] o Censo de 1872 revelou que sob o número de 1.509.403 escravos existentes, apenas
1.403 sabiam ler e escrever; menos de 1 por 1000.”
Vale relembrar que neste período o Asylo da Santa Casa de Misericórdia abrigava
“[...] 272 crianças expostas, sendo 74 meninos e 198 meninas” (ASCMB, Relatório..., 1872-
1873, p.6). Deste total, 29 meninos e 54 meninas de 6 a 14 anos, idade apropriada para
freqüentar a escola, estudavam na Escola Interna, sob orientação das Irmãs de Caridade
(ASCMB, Relatório..., 1872-1873). Ainda que tal número seja muito pequeno diante do
quadro populacional e educacional de Salvador, era uma ação educativa concreta, destinada a
criança de ambos os sexos, independente de sua cor.
Em 1873, a Lei nº 1.335 promoveu nova reforma no ensino da Província da Bahia: a
alfabetização foi tomada mais a sério e “[...] foram criadas escolas noturnas para adultos em
várias paróquias, chegando a ter 648 alunos, número que foi sendo reduzido até a extinção dos
cursos em 1883” (MATTOSO, 1992, p.203). Além disso, estabeleceu que o curso normal
fosse de caráter essencialmente prático. Como decorrência, foram criadas escolas primárias
anexas, nas quais os futuros docentes aprenderiam seu mister.
O governo continuava a fazer tentativas para organizar a educação. A Reforma
Leôncio de Carvalho (Decreto n. 7.247), ocorrida em 1879, tinha por principal objetivo
117
organizar a escola pública e reformar o ensino no país. Propôs o ensino gratuito e obrigatório
dos sete aos 14 anos para ambos os sexos, que poderiam estudar juntos até a idade de dez
anos, a livre freqüência e o ensino religioso facultativo. Visava conceder mais liberdade à
iniciativa particular para abertura de escolas como forma de remediar a situação “[...] de
verdadeiro descalabro do ensino, quando as estatísticas revelavam não ser superior a 2% da
população do país o número de crianças matriculadas nas escolas.” (BELLO, [19--], p. 220).
O texto desse Decreto não explicitava claramente a posição do “ingênuo”
55
: se por ser
livre, ou por temor da pressão exercida pelos fazendeiros, ele não precisava mais ser
referenciado. Como educar este indivíduo que vivenciou as práticas condicionantes da
escravidão, que foi cotidianamente submetido e desrespeitado pelos senhores rurais que
empregavam todos os meios para mantê-lo em estado de inferioridade e da mais absoluta
perda de identidade? Tal questão pesava na Bahia, por seu significativo contingente de
indivíduos negros e mestiços.
O Decreto n. 7.247, que vigorou por apenas três anos, provocou muitas polêmicas
devido a diversos aspectos, inclusive pela prescrição das Noções das Coisas como disciplina
ensino nas escolas primárias e como prática de ensino intuitivo ou Lições de Coisas, como
disciplina nas Escolas Normais do Estado, conforme orientação de Ruy Barbosa. Refletindo e
debatendo sobre a educação brasileira e a configuração do programa, Rui Barbosa escreveu
seus Pareceres
56
sobre a reforma proposta, criticando o método de ensino memorativo e
fragmentário, que dificultava o aprender e automatizava alunos e professores; como liberal da
Ilustração Brasileira, Rui combateu o analfabetismo, a escola leiga e o pensamento católico-
conservador (MACHADO, 2005).
Foi nos Pareceres que ele propôs o ensino da Lição de Coisas
57
, um método intuitivo
que abandonaria as características de abstração, repetição e inércia do ensino até então
adotado. A proposta do ensino de Lição de Coisas veio como conseqüência das discussões
travadas sobre questões políticas que ocorreram com o fim do império e a necessidade de
fazer a educação chegar, de fato, até as camadas populares. Tal método estava em discussão
nas conferências pedagógicas internacionais e era adotado em escolas na Europa e nos EUA.
55
Ingênuos eram os filhos livres de mulher escrava nascidos depois da Lei do Ventre Livre, Lei nº. 2.040, de 28
de setembro de 1871, assinada na mesma data, segundo a qual: “§1º: Os ditos filhos menores ficarão em poder
e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito
anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do
Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos.”
(PEREZ, 2006, p. 31).
56
Pareceres foram escritos por Ruy Barbosa sobre o ensino, datados de abril e setembro de 1882,
apresentados à Comissão de Instrução Pública da Câmara dos Deputados (MACHADO, 2005).
57
Citado no capítulo precedente.
118
O método foi implantado em escolas de educadores baianos conceituados como Abílio César
Borges e Menezes Vieira e também foi referenciado nos Relatórios da Provedoria da Santa
Casa, pois foi adotado na Escola Interna, que seguia o programa oficial de ensino e desejava
oferecer educação de melhor qualidade a seu alunado.
Em 1881, Antonio de Araújo de Aragão Bulcão, Presidente da Província da Bahia, 3º
Barão de São Francisco, determinou uma organização do ensino conhecido como
Regulamento Bulcão. Dentre outras medidas, no que tocava ao ensino infantil, foi criada a
instituição das “Salas de Asylo” ou Jardim da Infância (escola da infância ou maternal,
defendida por Comenius
58
no século XVII), sendo designado um lugar para seu
funcionamento na Escola Normal, que, desde então, teria duração de três anos, constituindo-
se num marco de atenção ao pequeno aluno, até então ignorado.
59
Pelo Regulamento Bulcão, o método de ensino era o já citado misto; as aulas ocorriam
em uma sessão diária das 9 às 14 horas; meninos de até oito anos estudavam nas mesmas salas
das meninas, e os escravos não podiam freqüentá-las. Vê-se mais um dado interessante no que
toca a convivência entre meninos e meninas no espaço escolar: até os oito anos, meninos não
se constituíam em ameaça à “honra” das meninas; o poder controlador que separava os sexos
compreendia que a pouca idade e a conseqüente falta de hormônios sexuais permitia a
freqüência na mesma sala, ainda que, certamente, sentando em filas e bancos distintos.
Quanto aos escravos, mesmo crianças, o impedimento legal da freqüência à escola cada vez
mais os lançava no limbo da sociedade.
Em 1884 foi inaugurado o Instituto do Professorado Público Primário Baiano, visando
promover os interesses da instrução primária. Foi também criada uma revista para divulgar
trabalhos de cunho pedagógico e instalada uma biblioteca especializada, algo defendido por
Abílio César Borges. O final do período imperial foi fortemente marcado pelas discussões
sobre a escravidão, sobre a vida político-partidária e o papel da religião na vida social. Sabe-
se que a Educação Tradicional era mantida para as classes dominantes e a educação voltada
para o povo era considerada desnecessária. Neste período, a educação primária permanecia
58
Jan Amos Komenský, nome original de Comenius, nasceu em 28 de março de 1592, na Moravia, região da
Europa central. Comenius foi o criador da Didática Moderna e é considerado um dos maiores educadores do
século XVII; concebeu uma teoria humanista e espiritualista para a formação do homem e apresentou
propostas pedagógicas até hoje consideradas: construção do conhecimento pela experiência, respeito ao
estágio de desenvolvimento infantil, educação sem punição e com ambiente adequado, interdisciplinaridade,
formação do espírito científico, afetividade e entendimento de propósitos entre escola e família, assim como a
formação do homem social, religioso e político (BELLO, [19--]).
59
Registra-se que só no Regulamento de 1914 foi referida a educação das crianças pequenas do Asylo dos
Expostos da Santa Casa de Misericórdia, no seu Art. 7º: “No jardim de infância a creança de 3 a 5 anos de
edade será educada pelo sistema de Froebel, ‘como a planta débil e delicada que carece de uma cultura
perseverante e atenta’.” (ASCMB, Regulamento..., 1914, p. 6).
119
sob a responsabilidade quase exclusiva dos Estados e nem o governo nem a população viam a
educação como importante, diante da constatação e acomodação com a estrutura
socioeconômica embasada na monocultura e nas grandes propriedades. Todos estes fatos
acentuavam o caráter elitizado e aristocrático da sociedade.
Continuava-se a deixar de lado a educação para negros e mestiços, pobres que eram
de valor aos olhos da sociedade. Num claro desenho de como a cor da pele estava relacionada
ao abandono familiar e social, tem-se o pequeno exemplo do número de expostos abrigados e
educados pela Santa Casa e sua Escola Interna.
Tabela 6 - Asilados com idade entre 1 ano a maiores de 20 anos – por cor de pele e sexo -
Asylo dos Expostos em 1885
Sexo Brancos Pardos Creoulos Total
Masculino 11 41 10 62
Feminino 30 154 29 213
Total 41 195 39 275
Fonte: Baseado no Relatório da Santa Casa (ASCMB, Relatório..., 1884-1885, p.49-50)
Por mais que a educação propiciada pela Escola Interna tivesse deficiências, era, de
qualquer forma, um local destinado ao aprendizado elementar para os 103 indivíduos que se
encontravam entre 7 e 14 anos, sendo 72 meninas e 31 meninos (ASCMB, Relatório..., 1884-
1885, p.49-50).
A proclamação da República, em 1889, não alterou o quadro de centralização do
poder no Brasil, provocando a frustração da população, que apenas constatava a alternância
dos grupos elitistas no poder e, principalmente, das mulheres que acreditaram em mudanças
em relação a suas posições e no tocante à instrução. A primeira Constituição republicana,
proclamada em 1891, referendou a atribuição de descentralização do ensino primário para as
províncias e laicizou o ensino oficial, dispositivo que levou ao abandono do ensino religioso,
o que, na visão de alguns pensadores, comprometia a formação de consciência dos alunos.
Instituições educacionais de bases religiosas, como as Escolas Interna e Externa da Santa Casa
de Misericórdia da Bahia, permaneceram com seus padrões habituais de ensino religioso.
A República herdou do Império a educação em situação muito distante do
considerado satisfatório relativamente a mudanças e melhorias dos índices de escolarização,
já que “[...] tinha 85% de analfabetos” (FREIRE, 1993, p.175). Assim, alçada à frente do
cenário, inicialmente comandada pelos militares da classe média, a República pagou seu
120
tributo à oligarquia, deixando de fora do colégio eleitoral as mulheres, os mendigos, os
analfabetos, os praças e os religiosos sujeitos a voto de obediência.
De acordo com Assis (1923, p.306), a educação na Bahia sofreu, em 1895, a “[...]
Reforma Satyro Dias
60
, que organizava o ensino municipal, e em 1896 é promulgada a lei
municipal 219, que visava assim o ensino do município da Capital”.
No ano de 1897 entrou em vigor a Lei nº. 200, de 10 de agosto de 1897, que
Alterou algumas disposições da lei orgânica de ensino, entre outras extinguindo os
delegados escolares, e passando aos juízes de direito as funções administrativas
exercidas por elles [...] a mais assignalada confiança na magistratura para o serviço
da República, mas surgem dúvidas de que os juizes não se empenhem de bom ânimo
no exercício dessas funções, de caráter estranho à vida judiciária. (BPE, Relatório...,
1898, p. 8).
O Relatório da Instrução Pública da Bahia insistia na importância da estatística escolar,
da fiscalização nos estabelecimentos particulares, da higiene e da moralidade, da remessa de
mapas anuais, da sujeição do ensino às instituições afinadas pela Constituição, da comunicação
de programa e da interdição de castigos físicos às crianças. Ainda que citasse 21
estabelecimentos de ensino subvencionados pelo Estado, não fez qualquer referência de ajuda
prestada à Santa Casa de Misericórdia, o mesmo ocorrendo com o Relatório da Instrução
Pública de 1900, que registrou a “[...] fraca fiscalização da Inspetoria no tocante ao envio do
relatório anual a que são obrigados pelo Art.1º da lei Nº. 200” (BPE, Relatório..., 1900, p.7).
A Santa Casa ressentia-se do desrespeito da Assembléia Legislativa Provincial em não
efetuar com regularidade o repasse dos valores acordados pelo trabalho por ela desempenhado
de cuidar das crianças enjeitadas, cuidado este que envolvia o trabalho educativo e seus
conseqüentes custos financeiros.
O Relatório da Instrução Pública do ano seguinte (BPE, Relatório..., 1903), elaborado
pelo Inspetor Geral de Ensino, Octaviano Moniz Barreto, foi enfático ao declarar falhas na
fiscalização do ensino primário, pois, “[...] dentre 58 juizes de Direito, apenas 6 remeteram os
resultados do acompanhamento da vida escolar” e registrou suas críticas:
Ressaltou a importância do ensino pratico e que “não bastava ler e escrever; é
preciso fazer da leitura e da escripta o instrumento ou meio e aprender e gravar for
proveitoso ao trabalho, que é a fonte inexgotável de bem estar... o ideal da escola é a
independência do homem [...] a escola deve ter por fim diminuir o número e
miseráveis, augmentar o número dos fortes, determinar em consequencia o
crescimento do poder da nação. (BPE, Relatório..., 1903, p. 7-8).
60
Reforma Satyro Dias, promulgada pela Lei 117, organizou o Conselho Superior de Ensino, extinguiu as
escolas normais e criou o Instituto Normal da Bahia (ASSIS, 1923).
121
Este Relatório ressaltou a importância atribuída à educação doméstica para “[...]
formar moças desde as escolas primárias elementares até as escolas normais e que deve
figurar no programa das escolas do sexo masculino” (BPE, 1901, p. 19), assim como a
educação ministrada em países como a Suécia, Inglaterra, Rússia, Japão e América do Norte.
No Relatório da Instrução Pública de 1904, elaborado pelo mesmo Inspetor, consta:
o ensino será pelo methodo direto
61
e experimental” fosse nas escolas de 1ª classe
(situadas na capital), de 2ª classe (cidades e subúrbios da capital); 3ª classe (vilas) ou
de 4ª classe (arraiais e povoados), além de trazer modelos e plantas arquitetônicas
para prédios escolares que incluíam a casa do professor. De acordo com o
Regulamento do Governador do Estado, Hermes da Fonseca, o antigo modelo de
classificação pedagógica de Manoel Victorino para a escola primária (Escolas
Infantis, Elementares, Médias e Superiores) foi substituído pelo que estabelecia a
classificação em Escolas Infantis, Primárias e Primárias Superiores. (BPE,
Relatório..., 1904, p. 20).
A busca por um ensino melhor, que pudesse ombrear com a educação ministrada em
outros países, foi certamente o elemento motivador para que ficasse tão explícito que o
método deveria ser o direto e experimental, para que a produção do conhecimento, atividade
própria do homem, fosse pautada pela conjugação entre pensar, sentir e fazer. O alcance de tal
propósito, entretanto, não se verificou, pois o processo educacional conservava fortes traços
da educação tradicional, repleta de memorização e obediência!
Um dado interessante é a descrição da moradia do professor no prédio escolar: ali, o
mestre ou a mestra deveria viver com seus familiares diretos, em espaço definido e gratuito, o
que lhe assegurava economia e o/a fazia perder parte de sua autonomia, residindo muitas
vezes em locais periféricos ou extremamente centrais do núcleo urbano ou rural. Outro
aspecto a considerar, no que se refere ao Inspetor de Ensino, era sua função de cuidar para que
as crianças em idade escolar freqüentassem a escola, impedindo que praticassem a vadiagem e
a mendicância. Infelizmente, a inspetoria não conseguia dar conta de tão grande tarefa! Estava
ainda muito distante a concretização de que todas as crianças freqüentassem a escola e
pudessem, no futuro, participar da vida produtiva e intelectual do país.
No Brasil republicano de 1911, a Reforma de Rivadávia Correia instituiu o regime de
ensino livre e excluiu da alçada do Estado o domínio sobre a educação. Retomando a orientação
positivista, pregou a liberdade de ensino, entendendo-se tal liberdade como a possibilidade de
oferta de ensino de freqüência livre que não fosse por escolas oficiais. Além disso, pregou a
61
Este método objetivava a comunicação na língua materna, propunha-se a desenvolver as habilidades orais e
era regido pelos seguintes princípios: ensinar na língua alvo, ensinar vocabulário e frases do dia-a-dia,
habilidades de fala e compreensão oral, turmas pequenas e a gramática era ensinada indutivamente. Este
método era, na maioria das vezes, ligado ao ensino particular (SAUNDERS, 2008).
122
abolição do diploma em troca de um certificado de assistência e aproveitamento, e transferiu os
exames de admissão ao ensino superior para as faculdades. Os resultados desta Reforma foram
desastrosos para a educação brasileira e foi feita uma tentativa de corrigi-la com a Reforma de
Carlos Maximiliano, em 1915, que reoficializou o ensino no Brasil.
A Bahia vivenciou mais uma reforma educacional em 1918, quando o ensino público
foi dividido em primário a ser ministrado em escolas e grupos escolares e secundário
a ser ministrado no Ginásio da Bahia. Em 1923, de acordo com o Diário Oficial do Estado da
Bahia, comemorativo do centenário da Independência, havia em Salvador 63
estabelecimentos particulares de instrução primária e secundária, abrigando 7.064 alunos
(3.480 homens e 3.392 mulheres). A Santa Casa de Misericórdia, com sua obra educativa,
constou no referido Diário Oficial: o Asylo dos Expostos, entre Escolas Interna e Externa,
abrigava 133 alunos (19 meninos e 114 meninas) e a Escola Eloy Guimarães, igualmente
oferecendo instrução primária, tinha um alunado de 135 crianças (55 meninos e 80 meninas).
(BAHIA, 1923).
De 1924 a 1928, o Diretor Geral da Instrução, Anísio Teixeira, registrou várias
considerações sobre a educação pública na Bahia, “[...] que não possuía uma escola pública
primária organizada e em condições de efficiencia, nem sequer em sua capital [...] Estado tem
larga população analphabeta [...] [sendo necessária uma] reorganização que firmasse uma
concepção legítima da escola primaria” (BPE, Relatório..., 1904, p. 1-2). O ensino primário
foi reorganizado em sete anos de estudo, com currículo definido (incluindo agricultura,
desenho, música, educação física e cívica), novo sistema de medida dos resultados escolares
que extrapolasse as notas mensais e exames, além da necessidade de flexibilidade a
adaptações, revisões e horários. Anísio Teixeira considerou bastante grave a situação
educacional na Bahia, defendendo a necessidade de a criança ir a uma escola que a educasse.
Buscando exercitar nos meninos o hábito da observação e raciocínio, despertando-
lhes o interesse pelos ideais e conquistas da humanidade, ministrando-lhes noções
rudimentares de literatura e história pátria, fazendo-os manejar a língua portugueza
como instrumento de pensamento e de expressão; guiando-lhes as atividades
naturaes dos olhos e das mãos mediante formas adequadas de trabalhos práticos e
manais; cuidando, finalmente, do seu desenvolvimento physico com exercícios e
jogos organizados e conhecimento das regras elementares de hygiene... adaptar o
ensino às particularidades da região e do ambiente bahiano; não basta obrigar a
criança a ir a escola, mas abrir para o interesse da criança uma escola nova (BPE,
Relatório..., 1928, p. 11, p.12).
Assim, a Bahia teve uma reforma na instrução pública, pela Lei 1.846, de 14 de
agosto de 1925, realizada por Anísio Teixeira, quando ocorreu a unificação do ensino
123
primário no Estado, incluindo escolas estaduais e municipais, ficando o ensino primário
elementar com 4 anos e a escola primária superior com 3 anos. Em 1928, Anísio Teixeira
escrevia no supracitado Relatório: “Ora, neste ponto, a situação da Bahia é, ainda, muito
grave. Dobramos o raio de acção do nosso systema escolar, mas que representa isto, si
attentamos que apenas 20 crianças em 100 crianças bahianas têm opportunidades educativas!”
(BPE, Relatório..., 1928, p. 10).
No contexto de tanta carência de crianças na escola, vale registrar que em 1925 a
Escola Interna propiciava gratuitamente a educação a 122 crianças 86 meninas e
36 meninos. As outras duas escolas da Santa Casa, a Externa e a Elementar Eloy Guimarães,
tinham respectivamente 50 e 128 alunos (ASCMB, Relatório..., 1925). O modesto número de
400 alunos era o que a instituição podia oferecer à população, mas o fazia dentro de suas
convicções cristãs de servir ao próximo e eram, de algum modo, crianças que escapavam da
total ignorância.
A década de 1930 trouxe novidades no campo educacional com a Pedagogia Nova, que
surgiu como uma tentativa de equacionar os problemas gerados pela Pedagogia Tradicional.
Nascida das experiências de educação com deficiência física
62
(Decroly e Montessori), foi
estendida como uma proposta para o âmbito escolar. Concebia o marginalizado não como um
ignorante, mas como alguém que foi rejeitado pelo sistema escolar e pela sociedade. À escola
cabia a função de reintegrar o aluno ao grupo, tomando-o como centro do processo de ensino-
aprendizagem, desenvolvendo uma metodologia com atividades de cunho bio-psíquico e que o
estimulassem à participação em um ambiente alegre e criativo.
A ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, e a criação do Ministério de
Educação e Saúde Pública
63
provocam modificações no cenário social, político e educacional.
A Constituição de 1934 estabeleceu a educação como um direito suprimido na
Constituição de 1937 e reafirmado em definitivo na Constituição de 1946 gratuito para o 1º
grau, liberdade de ensino, a responsabilidade solidária da família e dos poderes públicos pela
educação e a reintegração do ensino religioso, ainda que de caráter facultativo e
multiconfessional (HORTA, 1994).
No Brasil, a filosofia da Escola Nova propôs escola para todos e os burgueses queriam
que as crianças e os homens do povo fossem escolarizados, o que os capacitaria para a escolha
62
A expressão deficiente consta na Declaração de Direitos das Pessoas Deficientes, Resolução aprovada pela
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1975 (ONU, 2007). Devido a sua
forte carga de discriminação e preconceito, a expressão tem sido substituída por portadores de necessidades
especiais.
63
Ministério criado pelo Decreto 19.402 (HORTA, 1994).
124
dos governantes nos processos eleitorais. O Estado promoveu o ensino do primeiro grau, mas de
tal forma que as ferramentas pedagógicas fossem usadas sem que a ordem existente fosse, de
fato, alterada. Em 1932, um grupo de conhecidos educadores e intelectuais lançou o “Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova” e nele a escola era definida como uma instituição social
(RIBEIRO, 2005).
O papel desempenhado pela Escola Nova não é aqui abordado, por ter ocorrido em
período posterior ao recorte temporal deste trabalho. O mesmo procedimento vale para a
adoção de currículo único para todo o território nacional, ocorrido na década de 1940,
reconhecidamente uma das ações de grande importância e repercussão na educação brasileira.
Assim sendo, a abordagem sobre o tipo de educação que dominou o recorte temporal em
estudo, ou seja, a Educação Tradicional e que foi a adotada pela Escola Interna do Asylo, são
tratadas na seção seguinte.
3.2 CRIAÇÃO DA ESCOLA INTERNA DO ASYLO: HISTÓRICO, FINALIDADE E CLIENTELA
Conforme referido, a Santa Casa da Bahia pautava suas ações em estrita obediência ao
Compromisso que regia a Misericórdia de Lisboa, atendendo às obrigações espirituais e
corporais. Entre as espirituais estava a de “ensinar aos ignorantes”, mas, em momento algum,
o Compromisso estatuía a criação e/ou manutenção de escolas para a educação formal das
pessoas atendidas pela Misericórdia. Contudo, a Santa Casa da Bahia, no cumprimento da
responsabilidade de cuidar dos expostos que acolhia, empenhou-se firmemente em propiciar
instrução formal, fazendo mais que do que obrigava o Compromisso que a regulamentava.
A história da Santa Casa da Bahia, no que diz respeito à obediência a tal obrigação
espiritual, extrapolou o Estatuto e, neste percurso, passou por três momentos educacionais
64
distintos, vivenciando contextos sociohistóricos determinantes, citados no primeiro capítulo,
na seção 1.3.3 que trata das Obras Educativas. Para compreender tais momentos, plenos de
boas intenções, acertos, avanços e retrocessos, é imprescindível considerar a mentalidade dos
indivíduos, variável e em conformidade com as circunstâncias locais, seus traços de
religiosidade, relações de poder, idiossincrasias e influências de outros segmentos sociais.
64
Escola do Recolhimento; Escola Interna (1862) e Externa (1872) do Asylo; Escola Elementar Eloy Guimarães
(1901).
125
Na base ideológica da Santa Casa estava a ação cristã, o ato caritativo para com o
“irmão” em necessidade; isso trazido para a concretude, para a materialização, enfrentava os
percalços das limitações financeiras, das vaidades e orgulhos humanos e as contingências
sociopolíticas e operacionais. Os problemas sociais nunca foram pequenos na velha Bahia e a
cidade de Salvador, na condição de capital, vivenciava muitos deles. Conseqüentemente, o
Estado e as instituições pias conheciam de perto as dificuldades para minorá-los. Só o desejo
caritativo não bastava, como não bastavam apenas as boas intenções. A conjugação de
esforços entre a filosofia cristã, a condição financeira e a ação planejada constituía-se no tripé
para o sucesso das propostas assistenciais.
Reiterando informações dadas em páginas precedentes, a Santa Casa acolheu crianças
desde a instalação da Roda em 1726. Mesmo considerando o preocupante número de
falecimentos, muitas crianças sobreviveram e a elas cabia bem mais que o simples alimento
do corpo. Assim, o olhar sobre o mundo devia ser acrescido do acesso à leitura e ao
conhecimento e a inserção no mercado de trabalho. Nessa percepção, a Santa Casa
empreendeu esforços para viabilizar a educação a seus assistidos, as crianças da Roda, ou
seja, os expostos ou enjeitados, que tiveram uma história marcada pelo abandono e suas
conseqüentes dores.
A Escola Interna não tem uma data precisa de fundação. Isto se deve ao fato de que as
crianças asiladas recebiam educação com base na idade considerada adequada, desde período
anterior a 1862, quando passaram a viver na roça do Campo da Pólvora. Contudo, como era
na nova sede que se acentuava na Santa Casa a percepção de que o ensino precisava ser
melhorado e sistematizado, ficou considerada tal data para o início dos trabalhos da Escola
Interna. Rodrigues (2003, p.109) relata: “[...] ao que parece, fundou-se uma escola exclusiva
para os expostos em dezembro de 1898. Todavia, este estabelecimento manteve, durante todo
período em que funcionou, um ensino irregular, não sistemático e com vida condicionada às
diretrizes das Superioras.”
Pode-se dizer que a Escola Interna teve três períodos: o primeiro em 1862, quando de
sua instalação no prédio do Asylo, no Campo da Pólvora, dirigido por Irmãs de Caridade. O
segundo momento, a partir de 1913, quando sua administração deixou de ser feita pela ordem
religiosa e, no ano seguinte, passou a ser dirigido por uma professora diplomada. O terceiro
momento, que aqui é apenas citado, refere-se ao período posterior a 1934, quando a Roda
deixou de receber crianças, futuras alunas da citada escola, fechando um ciclo na história da
instituição asilar.
126
Foi no amplo espaço adquirido pelo Provedor Manoel José de Figueiredo Leite que
viveram e foram educadas as crianças oriundas da Roda, independentemente do sexo, cor,
portar ou não doenças, deformidades e limitações e as pessoas alocadas para cuidar de todas
elas. O grande prédio, ali existente até a presente data, foi o local em que as crianças viveram
e freqüentaram aulas. A descrição resumida deste espaço é feita aqui, visando oferecer uma
idéia de sua distribuição, condições físicas e transformações que foram sendo realizadas ao
longo dos anos, buscando adequá-lo às necessidades.
O prédio possuía dois andares: no andar térreo, quatro salas de aula, um quarto de
costura, um refeitório, secretaria, banheiros e área para recreio; o andar superior continha dois
dormitórios, cada um com 51 camas; o quarto de criação ou creche, com 12 berços; cozinha
etc. (ASCMB, Relatório..., 1875-1876, p.1-2).
Nos espaços a eles destinados, meninos e meninas viveriam cercados de pessoas sem
qualquer vínculo familiar, o que, certamente, devia fazer-lhes falta, pois, de acordo com
Passos (2002, p.24): “[...] o ser humano precisa de laços com a cultura e com as pessoas [...]
sem restrições de suas dimensões intelectuais, afetivas e de sua liberdade.” A atenção e a
educação ali prestadas, de acordo com o pensamento da educação vigente e o caráter
assistencialista, visavam moldar as crianças para a sociedade que desejava a perpetuação de
sua estrutura e ideologia.
A Escola Interna foi o espaço escolar de meninos e meninas asiladas, que ali
vivenciaram um cotidiano impregnado de intenções cristãs dos dirigentes da instituição, assim
como de todos os elementos então considerados imprescindíveis ao êxito educacional. Assim
sendo, é relevante tratar do cotidiano escolar vivenciado pelos alunos, alunas e suas mestras.
Em 1919, a Escola Interna passou a ser chamada Escola José de Sá
65
, em homenagem
a um Mordomo do Asylo, falecido no ano precedente, pelo trabalho realizado (ASCMB,
Relatório..., 1919-1920, p.14). O jornal O Imperial, de 28 de janeiro de 1919, registrou:
[...] colocação do seu retrato no salão da escola interna do estabelecimento velada a
tela por uma cortina roxa [...] descerradas pelas crianças Christina e Maria, pedindo o
provedor a exma viuva licença para dar ao salão o nome de “Salão Jose de Sá”, em
attenção a ter sido este o ofertante do custoso mobiliário escolar que serve a referida
escola [...] além de restaurar o piano e fazer mobiliario completo, systema americana
para a escola interna, e tudo à sua custa. (
ASCMB, Relatório..., 1919-1920, p.14).
65
A despeito do novo nome, ao longo do texto será usada a denominação Escola Interna. José de Sá nasceu em
1854, na Vila de Abrantes. Era cirurgião dentista e faleceu em 26 de janeiro de 1918 (ASCMB, Relatório...,
1919-1920).
127
3.2.1 Cotidiano escolar: tempo, espaço, disciplinamento e poder
Com base na obra de Ariès (1981), cabe a afirmação de que a educação infantil surgiu
no contexto de mudanças sociais, políticas e econômicas profundas ocorridas na Europa
Ocidental, culminando nos finais do século XVIII com a demarcação de um momento
decisivo na transformação da família, da infância e do lugar social destinado às mulheres: ou
seja, essas mudanças foram consolidando novos arranjos sociais e encaminhando novas
compreensões acerca dos papéis dos sujeitos e das instituições da sociedade.
O processo de escolarização é assim descrito por Ariès (1981, p.10):
A escola substitui a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que criança
deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do
contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi
separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser
solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou, então, um longo
processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das
prostitutas) que se estenderia até nossos dias; e ao qual se dá o nome de escolarização.
Pela educação, a criança foi colocada “em seu devido lugar”, assim como se fez
com os loucos, as prostitutas e os pobres. Embora com uma função disciplinadora, a
escola não nasceu com uma definição de idade específica para a criança ali ingressar. A
educação tinha uma função prática ora de disciplinar, ora de proporcionar
conhecimentos técnicos , que posteriormente configurariam uma escola para a elite e
outra para o povo (ARIÉS, 1981).
Em todos os tempos e lugares, as escolas foram organizadas em conformidade com os
conceitos políticos ideológicos que vigoravam na instituição e predominavam na sociedade,
servindo de meio de reforço e difusão dessas idéias. A escola era o espaço em que se
reproduziam os valores que a sociedade desejava consolidar e expandir pelo veículo da
educação propiciada aos alunos.
A educação na Santa Casa foi sempre nos moldes da Educação Tradicional e cabem
aqui algumas considerações sobre sua origem, características, adoção no Brasil e,
especialmente, na Escola Interna. Como dito, tal educação, segundo Saviani (1984), abriga-se
no grupo das Teorias Não Críticas
66
e ocupou imensa parte do cenário educacional brasileiro,
seja pela vertente religiosa, originada na Idade Média e influenciada pela teologia católica,
66
Teorias educacionais que não objetivavam formar o senso crítico do educando, com o professor contentando-
se em transmitir expositivamente conceitos e informações aos educandos, que deveriam memorizar os
conhecimentos e se submeter a exames quantitativos (SAVIANI, 1984).
128
seja pela vertente leiga, que nasceu e cresceu com a burguesia e foi poderoso instrumento de
consolidação dessa classe social.
A adoção da Educação Tradicional no Brasil deveu-se à estreita ligação entre
educação e catequese durante todo período colonial. Composta por elementos muito fortes e
complementares, tais como os dogmas, a autoridade moral e religiosa e a tradição escolástica,
esses elementos permeavam toda a educação, fechando-a para qualquer análise ou crítica,
relegando a ciência e as artes a um plano inferior, marca considerada passível de crítica na
educação jesuítica. No Brasil Colônia, em tudo perpassava a religião. A atividade educativa
dos jesuítas seguia sua base intelectual, a Ratio atque institutio Studiorum, que significa
organização e plano completo de estudos, atuando entre a erudição e a religiosidade,
fundamentada no pensamento cristão e clássico (RIBEIRO, 2003).
Segundo Saviani (2004a, p. 127):
[...] as idéias pedagógicas expressas no Ratio correspondem ao que passou a ser
conhecido na modernidade como Pedagogia Tradicional e se caracteriza por uma
visão essencialista de homem, isto é, o homem é concebido como constituído por uma
essência universal e imutável
.
Os jesuítas adotavam sem questionamentos os princípios da Educação Tradicional. Tal
educação sempre foi embasada na Escolástica, doutrina teológico-filosófica dominante na
Idade Média, dos séculos IX ao XVII, caracterizada pelo problema e análise entre fé e razão,
que se resolve pela dependência do pensamento filosófico, representado pela filosofia greco-
romana, da teologia cristã, a mais alta expressão da filosofia medieval cristã. O Cristianismo,
baseando-se na idéia da caridade e do amor na expressão mais elevada, concentra seu ideal
educacional no aspecto moral da pessoa humana (BELLO, [19--]).
Não se pode falar em Educação Tradicional sem mencionar Tomás de Aquino
67
,
considerado por muitos pensadores que analisaram sua obra como o Aristóteles do
pensamento filosófico cristão. A Suma Teologica representa o zênite da Escolástica que era
ensinada nas escolas pelo Escholasticus (professor das artes liberais e, mais tarde, de filosofia
e teologia), oficialmente chamado De Magister. Considerado pela Igreja como Doutor
Universal, Tomás de Aquino foi o grande sistematizador da articulação entre a filosofia de
Aristóteles e a tradição cristã (FONTES..., 2007; SAVIANI, 2004a, p.27). Com base em tal
conceito, Saviani (2004a, p. 127) diz:
67
Ainda sobre Tomás de Aquino, pode-se dizer que, como teólogo, ele personifica para a Igreja Católica a
abertura e a universalidade do cristianismo e defende o ensinamento de que a filosofia e a teologia são, por
natureza, assuntos inesgotáveis (BELLO, [19--]).
129
[...] à educação cabe moldar a existência particular e real de cada educando à
essência universal e ideal que o define enquanto ser humano. Para a vertente
religiosa, tendo sido o homem feito por Deus à sua imagem e semelhança, a essência
humana é considerada, pois, criação divina. Em conseqüência, o homem deve se
empenhar em atingir a perfeição humana na vida natural para fazer por merecer a
dádiva da vida sobrenatural.
Para Tomás de Aquino, Deus é o verdadeiro mestre; o professor ou mestre ajuda o
educando a desenvolver o saber que nele está potencialmente guardado.
Na educação tradicional tomista
68
, o conceito de ser humano está embasado na
premissa de que o indivíduo é criado por Deus a sua imagem e semelhança. A alma, ao ser
criada e infundida no momento da concepção, está enriquecida pelo senso do ser; assim, a
educabilidade humana decorre de características do ser espiritual, tais como a auto-
atividade, liberdade, capacidade de conceber o ideal e a plasticidade. O ser humano pode
aprender coisas novas e essa capacidade o distingue do animal, passível apenas de
adestramento (BELLO, [19--]).
A Educação Tradicional caracteriza-se pelo processo de transmissão de conhecimentos,
enquanto conteúdos culturais (tradição) fixados nos livros, e ainda pela centralização da ação
educativa no professor, elemento propiciador de conhecimento, distribuidor de disciplina,
munido de amplo poder quanto ao conteúdo, metodologia e avaliação. Assim, dentro da
escola, o educador exerce do exterior uma ação formadora e modeladora do aluno. A relação
professor/aluno é embasada na autoridade/subordinação, autoridade do professor que não é
questionada nem discutida pelo aluno (SAVIANI, 1984).
No plano educacional, o aluno é considerado como um “objeto”, tábua rasa, indivíduo
a ser modelado e que passa pelo processo de aquisição de conhecimento ministrado, seja por
desejo pessoal, seja por aceitação da vontade de outrem. Deve participar ativamente de sua
própria formação física e espiritual, submetendo-se aos procedimentos determinados por seus
mestres, e conjugar esforços para alcançar a perfeição na terra e fazer jus a uma vida celestial,
após a morte (BELLO, [19--]).
A Escola Interna, ao pautar-se na Educação Tradicional, incorporou os valores
morais, educativos religiosos e os transmitia a seus alunos no cotidiano da sala de aula e nos
outros espaços. Conforme referenciado, sendo o Asilo da Santa Casa um local de abrigo das
crianças enjeitadas e desvalidas, funcionava como uma instituição total, no pleno sentido
estudado por Goffman (1974), de local em que a vida e a morte podem acontecer. Onde os
68
Educação fundamentada nos princípios de São Tomás. Segundo Rocha (1988, p.15), a expressão "Educação
(Escola) Tradicional" aplica-se de um modo especial à metodologia pedagógica implementada,
nomeadamente, a partir do século XVII.
130
indivíduos encontram uma miniatura de sociedade, com papéis e status definidos, relações de
poder e submissão e onde são reforçados e reproduzidos os conceitos e posturas valorizados e
desejados pela classe dominante na sociedade.
Goffman (1974) mostra que a estrutura social tem grande força sobre o micro
universo das instituições totais, fechadas sobre si mesmas, determinando sua organização e
funcionamento. A Escola Interna, existindo no espaço físico do Asylo de Nossa Senhora da
Misericórdia era parte importante da estrutura asilar, visto que o asilado, submetido a todas as
regras da casa, era também, ali mesmo, na escola do estabelecimento, continuamente
subordinado, vivendo a experiência de habitar numa instituição total. Portanto, de acordo
ainda com o pensamento do autor citado “[...] as instituições totais são fatais para o eu civil do
internado, embora a ligação do internado com esse eu civil possa variar consideravelmente”
(GOFFMAN, 1974, p. 48).
Como citado, a Escola Interna pode ser considerada um local de educação formal a
partir de 1862, quando da instalação do Asylo, num momento sociopolítico singular no país,
pois estavam em pleno curso os movimentos abolicionista e republicano, que se refletiam
nas diversas esferas da sociedade. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, como instituição
composta basicamente por pessoas da classe dominante, enfrentava as novas formas de
pensamento, o empobrecimento dos senhores de engenho e o fortalecimento do homem do
povo enriquecido com o comércio. As mudanças que aconteciam no cenário social
inevitavelmente se refletiam na vida da instituição: dificuldades em manter o patrimônio
físico e financeiro, aumento da população urbana e a redução de legados e donativos para o
auxílio das ações.
A Santa Casa lutava para manter os compromissos espirituais e corporais que
norteavam suas deliberações e ações caritativas na área da saúde e no campo educacional. No
tocante ao aspecto educacional, ela não estava obrigada a constituir escolas formais e o fez
por iniciativa própria, pela compreensão da necessidade de educar as crianças que chegavam a
seu abrigo temporal e espiritual. Crianças que podiam ser órfãs, enjeitadas, doentes, mas,
como “filhos de Deus”, deveriam ser batizadas, cuidadas, alfabetizadas e preparadas o mais
cedo possível para ganharem dignamente seu sustento no mundo exterior, em conformidade
com um projeto assistencial consolidado, herdado do sistema colonial.
A ação educacional da Escola Interna, seguindo uma orientação tradicional, possuía
um forte vínculo com a religiosidade católica e suas noções de formalismo, disciplinamento,
avaliações quantitativas e diferenciação quanto a sexo; ali era um espaço propício a tais
aspectos formativos, de acordo com o momento histórico vivenciado e a mentalidade dos
131
indivíduos da classe social dominante, que traçavam rotas para si, bem como para os menos
escolarizados e menos poderosos.
Como instrumento de reprodução do pensamento vigente quanto à forma de “se pôr no
mundo”, de se colocar no cenário social, a educação propiciada pela Santa Casa buscou
atingir seus objetivos de acolher caritativamente os asilados; pela ótica cristã, ofereceu-lhes o
mínimo para o indispensável reconhecimento da estrutura social, pela leitura, escrita,
realização de operações aritméticas, aprendizagem de um ofício e também pela introjeção de
valores morais e religiosos que possibilitassem uma vida moralmente digna e produtiva. Para
alguns autores, como Marcílio (1998) e Rodrigues (2003), quando a Santa Casa, o Estado e a
sociedade em geral juntaram forças para a execução das ações caritativas, perdeu-se a ótica
exclusiva da piedade cristã e assumiu-se o caráter filantrópico social.
As crianças em idade escolar estavam ali, sob os olhos da Irmandade de Nossa
Senhora da Misericórdia. Ainda que uma parcela da sociedade as olhasse com indiferença ou
superioridade, elas existiam e deveriam ocupar um espaço na sociedade de Salvador,
permeada de preconceito, religiosidade e miscigenação. Os baianos, mesmo convivendo
estreitamente com os negros e mestiços que integravam seu tecido social, atribuíam muita
importância à origem familiar, cor da pele e opção religiosa.
A questão da cor é aspecto importante no período em estudo (1862-1934), que abarca a
escravidão. Educar negros? Como mostrado, isto era algo impensável numa sociedade que os
excluía de si mesmos, já que lhes negava a cidadania, num ato deliberado de privação de
liberdade física e intelectual. Se a sociedade encarava o negro de forma preconceituosa para a
inserção no mercado e na vida social, a criança negra que ficasse desamparada pelos pais ou por
seu responsável teria muito mais dificuldades de ter uma vida minimamente digna. A esperança
de sobrevivência para muitas delas na Bahia foi, sem dúvida, o acolhimento da Santa Casa, que
além do teto oferecia batismo, comida e educação. Assim sendo, sobre uma criança enjeitada,
sem nome de família, mesmo sendo “branca”, pesava o estigma de criança “jogada na roda dos
expostos”, alguém “sem eira nem beira”, estigmatizado aos olhos dos demais.
Goffman (1988, p. 13) ao estudar o estigma, diz: “[...] o termo estigma será usado em
referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma
linguagem de relações e não de atributos.” Este autor, ao estudar o estigma e a identidade
social, diz que ele pode ser de três tipos:
Em primeiro lugar, há as abominações do corpo as várias deformidades físicas.
Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca,
132
paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo,
estas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental,
prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e
comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e
religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual
todos os membros de uma família [...] um indivíduo que poderia ter sido facilmente
recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e
afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros
atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica diferente da que havíamos
previsto.
(GOFFMAN, 1988, p. 14).
Assim, o enjeitado, mesmo perfeito de corpo, sem culpas de caráter ou estigmas
tribais, era estigmatizado por sua “característica diferente”. Assim, a falta de “história familiar
adequada”, a existência de alguma deformidade, e/ou o fato de ser negro/mestiço faziam com
que fosse visto pelas pessoas com mais piedade ou preconceito, considerado inadequado para
o trabalho, para uma convivência social igualitária com seus filhos ou para a celebração de
casamentos. Qualquer característica que se constituísse em alvo de estranhamento poderia ser
motivo de sofrimento para seu portador, que sofria mais ainda por sabê-la parte de sua
história, de sua vida, de seu ser, algo inalienável. Assim, com o apoio de Goffman (1988),
pode-se dizer que o estigma não é definido apenas pelas características que a pessoa porta,
mas sim pela leitura que a sociedade faz delas.
Numa sociedade conservadora e tradicional como era a de Salvador, a Escola Interna
era um local em que as crianças eram acolhidas e educadas, aliviando a responsabilidade do
Estado e de cidadãos que não as queriam abrigar em suas casas, convivendo em igualdade de
condições com seus filhos, e nem gostariam de vê-las na mendicância e no crime. Afinal, o
ideário da sociedade dominante era que todos os indivíduos ocupassem lugares definidos por
raça, gênero e classe social, fortemente dirigidos por cérebros e mãos masculinas,
estratificados, e a criança enjeitada precisava de um lugar seguro e controlado, como um asilo,
onde deveria viver segregada e inofensivamente.
Nesse mundo do Asylo, fechado em si mesmo, como das instituições totais analisadas
por Goffman (1974), o internado está sempre acompanhado, podendo ser visto e ouvido por
outro indivíduo; a ele não é permitida a solidão, o estar fisicamente desacompanhado pelo
tempo que deseje. Ele está sempre ao alcance do olho, da fala e do toque do outro e de nada
adianta reclamar ou discordar da ordem imposta, que tinha em si mesma a função de manter sob
controle os acontecimentos cotidianos. No Asylo e, conseqüentemente, na escola, o exposto
estava, de fato, exposto ao olhar e à palavra do outro que o observava, controlava e dirigia.
Como qualquer instituição total ou local em que as pessoas moram, seja em reclusão,
trabalho e/ou estudo, a Santa Casa tinha métodos para a imposição da ordem desejada, para
133
dar conta de um público infantil de origem desconhecida os enjeitados ou expostos pelo
qual assumia a responsabilidade de educar. Para bem desempenhar esta tarefa, colocava-os
em salas de aula e na aprendizagem de ofícios. De acordo com Foucault (2007, p.118), os
métodos empregados pelas instituições escolares “[...] permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma
relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’.”
A vida do aluno da Escola Interna era de subordinação total às prescrições, desde o
acesso à sala, ao uso do espaço, dos móveis, à postura corporal, cumprimento das tarefas,
memorização do conteúdo, horários para falas e silêncios, prestação de exames
relacionamento com os colegas e a mestra, o recreio e a saída da sala de aula.
Na escola, o fardamento faz do aluno um indivíduo exteriormente semelhante ao
outro. O uso do mesmo traje, sapato, corte de cabelo e a presença ou ausência de adereços ou
símbolos termina por fazê-los ter aparência padronizada. Goffman (1988, p. 28), ao estudar as
instituições totais, alertou para a situação: “Ao ser admitido numa instituição total, é muito
provável que o indivíduo seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e
serviços com os quais as mantém, o que provoca desfiguração pessoal.”
No caso em tela, as meninas e meninos não foram despojados de seus trajes, sapatos,
adereços e aparência: não possuíam uma história anterior, pois, desde que começaram a se
perceber e se reconhecer como indivíduos, estavam submetidos ao controle da instituição que
lhes definia o tipo de roupa, o modelo e a quantidade de peças etc. As identidades dos alunos
iam sendo configuradas no cotidiano da vida asilar e da sala de aula, numa verticalidade
descendente, sob as imposições de quem detinha o poder.
Discorrendo sobre a construção da identidade, Passos (1999) diz que o indivíduo não
nasce pronto, mas é ao longo de seu percurso social que ele vai se constituindo como tal. Sua
identidade vai sendo elaborada na relação com os outros e com a natureza, já que vivem dentro
de molduras sociais e culturais e sofrem as limitações impostas pela natureza. Para a autora:
Também a forma como o indivíduo é pensado pelo coletivo, pelo outro, nutre-se da
mesma seiva que vai sendo alimento para outras gerações, e presentifica-se nos atos
e nas formas de comunicação. O que denota que a identidade tem também uma
dimensão histórica, transferindo matrizes e, ao mesmo tempo, modificando-as.
(PASSOS, 1999, p. 99).
Assim sendo, o indivíduo, vivendo em contato com outros indivíduos dentro de
quadros e espaços socialmente dispostos e aceitos, vai percebendo a existência da alteridade,
podendo ou não com ela estabelecer maior ou menor comunicação e identificação.
134
No espaço do Asylo, meninos e meninas viviam sob o mesmo teto, mas mantinham
distância regulamentar em muitas ações salas separadas, atividades e brincadeiras
distintas sendo levados a se identificarem como seres masculinos e femininos, aptos ou
não para tais ou quais tarefas, comportamentos e metas sociais. No contexto da instituição,
seus administradores atuavam para a formação de meninos e meninas, num trabalho
contínuo de reprodução das estruturas objetivas e subjetivas de dominação. Para Bourdieu
(1999, p. 46), para essa reprodução “[...] contribuem agentes específicos (entre os quais os
homens, com suas armas como a violência física e a violência simbólica) e instituições:
família, Igreja, Escola, Estado”. Naquele espaço, as identidades eram construídas e
desenhadas socialmente, o que, para Bourdieu (1999, p. 63): “[...] se torna um habitus, lei
social incorporada.” Ou seja, o habitus pressupõe um conjunto de noções que precede a
ação dos agentes no interior do campo social.
O tempo na Escola Interna, como em qualquer outra de base tradicional, era algo
precioso: precisava ser otimizado dentro de suas muitas divisões para cada função, codificado
e controlado numa rotina que se impunha rigidamente no processo educativo, evitando
algazarras, devaneios e improdutividade. Cabia ao aluno apenas observar escrupulosamente
essa fragmentação temporal, sem questionar serventia, validade ou mudanças.
O espaço ocupado pelos alunos da Escola Interna, crianças e jovens de ambos os
sexos, era devidamente demarcado pelos usos, atividades e horários, para que tudo
acontecesse conforme o esperado. A sala de aula contava com carteiras presas às mesas,
enfileiradas, e eram ocupadas em dupla, dividindo o mesmo tinteiro e compartilhando a lousa
branca para as tarefas.
Ao entrarem na sala de aula, estavam num espaço regido por regras e uma visão de
mundo que os acompanhava ininterruptamente, num contínuo reproduzir de atitudes
padronizadas e socialmente aceitas. Os desejos individuais ficavam subordinados às regras
coletivas e à convivência inevitável; as tramas das relações que existiam entre as diferentes
pessoas que trabalhavam e viviam no Asylo tinham certamente influência sobre o pensar e o
sentir dos alunos e sobre a construção de estereótipos.
Os meninos e meninas eram levados à introjeção de valores morais e religiosos para a
formação de seu caráter, que estavam em conformidade com os princípios cristãos, repassados
pelo Compromisso da Misericórdia e pelas instruções em sala, herdadas da tradição do Ratio
jesuítico. Ainda que ocorrendo mudanças no Compromisso original, o âmago conceitual
permanecia, atravessando o tempo. Braudel (1990, p.20), ao estudar os ritmos de duração da
história dos grupos e das sociedades, considerou os sistemas culturais prolongados como
135
enquadramentos mentais, ou seja, como prisões de longa duração, pois há uma lentidão das
mudanças, decorrentes da própria consolidação das heranças culturais.
Considerando a especificidade da Escola Interna como instituição total, é importante
ressaltar que seus alunos e alunas cumpriam a rotina asilar desde o acordar com orações, às
refeições em conjunto e à sala de aula regida por uma das Irmãs de Caridade, que eles viam e
conviviam diariamente, incluindo os feriados e períodos de férias. Sob o constante olhar,
quase panóptico
69
das pessoas encarregadas de sua formação moral, educacional e
desenvolvimento físico, os meninos e meninas iam compreendendo as limitações a que
estavam sujeitos, as expectativas que cabiam a cada sexo, a construção de um modelo de
religiosidade e também as formas de aceitação da situação e do espaço socialmente definido
em que transitavam, trabalhavam e viviam.
A relação espaço/tempo concretizava-se nos horários prescritos para as orações na sala
e na capela e no horário das aulas, cujas salas dispunham de carteiras nas quais os alunos se
sentavam em bancos rígidos, que exigiam uma ereta postura corporal, todos enfileirados e
visualizados pela professora. Esta, do alto de seu estrado e fazendo uso do quadro negro, giz,
régua, mapas, globo e outros recursos didáticos, orientava-os a copiarem em seus cadernos, a
lerem em seus livros de leitura e a decorarem a tabuada. Os conteúdos eram transmitidos
como verdades plenas e dogmáticas, conforme o currículo, ou seja, o dispositivo pedagógico
que normalizava as práticas cotidianas de ensinar e aprender.
A mestra, do alto de seu posto privilegiado, de frente para toda a classe, no centro das
atenções, vigiava toda a sala, dificultando as dispersões e infrações, zelando pela mais estrita
observância às normas estabelecidas. Dali as ordens eram emitidas e deveriam ser cumpridas
sem dilações, cabendo aos alunos a absorção, a aquiescência e o respeitoso silêncio. Ali, era
ela a transmissora de um conhecimento inquestionável, numa emblematização da educação
tradicional em que o professor ensina e aos alunos cabe apenas aprender , que consiste
em memorizar e reproduzir.
Na sala de aula, predominavam a hierarquia do saber, controle e regulação de tempo e
atividades tempo, espaço e corpo elementos citados por Foucault (2007) em suas
análises sobre o indivíduo. Ao estudar o ambiente escolar, este autor diz que a disciplina “[...]
exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si
mesmo” (FOUCAULT, 2007, p.122). Nesses espaços, a disciplina era exercida sobre as
69
Jeremy Bentham (1748-1832), o filósofo utilitarista inglês que idealizou o sistema de prisão com disposição
circular das celas individuais, divididas por paredes e com a parte frontal exposta à observação do Diretor por
uma torre do alto, no centro, de forma que o Diretor “veria sem ser visto”. Desta forma, do Panoptico, toda ação
seria vigiada, possibilitando maior controle dos indivíduos: loucos, alunos, doentes etc. (FOUCAULT, 2007).
136
menores ações e comportamentos cotidianos e rotineiros, que iam dos hábitos de higiene à
aprendizagem dos conteúdos repassados. Muitas crianças, juntas no mesmo espaço, deviam
vivenciar muitas expectativas de saída para um possível convívio em ambiente familiar, a
curiosidade e o medo do mundo exterior. Tudo isto sob regras que precisavam ser impostas
para a obtenção do controle de corpos e mentes imaturos. Assim, era necessário impor
disciplina, já que ela “[...] fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2007, p. 119). A
exigência da disciplina era real e, certamente, fabricava indivíduos, na perspectiva proposta
por Foucault (2007). Para este autor, a disciplina “[...] fabrica indivíduos; é a técnica
específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 2007, p. 143).
A instituição, como as casas congêneres
70
, dispunha de mecanismos disciplinares para
situações de desobediência, insubordinação, desvio de conduta, práticas sexuais, fuga, entre
outras, mas não foi localizado documento que indicasse castigos físicos infligidos aos
educandos da Escola Interna. Como sabido, o aluno da Escola Interna estava submetido às
normas comportamentais prescritas pelo Regulamento do Asylo e isto podia permear o
imaginário de muitos cidadãos. A questão disciplinar, entretanto, algumas vezes, extrapolava
os muros da casa:
A 20 de março do mesmo anno, “O Diário de Notícias” em seção paga inseria uma
notícia anonyma sobre castigo applicados no Asylo dos Expostos, noticia que só
podia emanar de uma ex-empregada pouco antes demittida a bem da ordem e
disciplina do estabelecimento (ASCMB, Relatório..., 1917-1918, p.47).
Tal matéria não seria inócua para a instituição, se ficasse sem resposta igualmente
pública. Para anular a acusação, o Provedor Isaias de Carvalho Santos convidou diretores de
jornais da cidade para uma visita e livre sindicância. Convencidos da falsidade da acusação
externaram suas impressões favoráveis à boa ordem e disciplina, poupando a imagem da
instituição de um desgaste.
O castigo físico, elemento presente na educação tradicional dos jesuítas e seus
seguidores, era visto pela sociedade como “correção”, pois, de acordo com Del Priori (2000)
70
No Colégio das Órfãs do Santíssimo Coração de Jesus, em Salvador, a Regente das internas podia aplicar
penas “[...] para a glutoneria - diminuição de comida; para o desalinho e estrago de roupa, privação do
recreio e a obrigação de lavar e consertar a própria roupa e das companheiras; inércia e preguiça, privação de
recreio e trabalhar em qualquer serviço da casa; distração, falta de estudo e turbulência, reclusão ou privação
de recreio e lições dobradas [...]” (APEB, Estatuto..., 1852, grifo nosso).
137
era considerado uma forma de amor com as crianças, que não deveriam ser tratadas com
excesso de carinho para evitar atitudes de preguiça, birra e maus modos. A famosa palmatória
e o ajoelhar sobre grãos de milho foram introduzidos como recursos punitivos quando ocorreu
a Reforma Pombalina
71
e perdurou extra-oficialmente até meados do século XX.
Para que pudesse ter tal controle sobre a classe, a Mestra tinha o poder de obrigar os
alunos a fazerem o que muitas vezes eles não desejavam realizar. Nas instituições totais,
como o Asylo, leia-se a Escola Interna, o poder era algo vital, disperso em vários lugares
particulares. Numa casa de ensino, ele deveria ser exercido nos menores detalhes.
É indiscutível que o senso comum percebe o poder em sua faceta mais óbvia: a
capacidade do indivíduo de agir e produzir efeitos. É algo que se possui ou não, mas,
inegavelmente, existe na relação social, produzindo dominação entre pessoas que entre si
mantêm alguma espécie de ligação. Vale lembrar que o poder não é só repressivo e se mantém e
é aceito porque ele também possibilita, produz e permeia muitas coisas na vida social. Assim,
no espaço do Asylo, o poder era exercido na determinação de elementos que os alunos/asilados
deveriam obedecer: horários para oração, aula, recreio, serviços, lugares na sala de aula, tempo
definido para cada atividade e a maneira desejada de como ela devia ser cumprida.
A sala de aula, com lugar definido para cada escolar, tomando como referência o
pensamento de Foucault (2007, p.123), era “[...] o espaço disciplinar que tende a se dividir em
tantas parcelas quantos corpos ou elementos há a repartir”. Ali, com um grande quadro-negro
e um crucifixo na parede, havia divisão de alunos com grau de instrução semelhante e para
cada grupo. A Mestra ministrava o ensino considerado indicado ao nível intelectual dos
diferentes grupos, já que a classe não era homogênea; simultaneamente, os demais grupos
ocupavam-se das tarefas pré-determinadas por ela e todos deveriam se achar em processo de
aprendizagem. Como dito, ociosidade, desatenção, preguiça e conversas eram coisas passíveis
de censura da Mestra.
Foucault (2007, p.143; 140), ao estudar a vida dos indivíduos submetidos a controle e
vigilância permanentes, afirmou: “[...] o poder tem a função de adestrar para retirar e se
apropriar ainda mais e melhor [...] é no ensino primário onde o aluno deverá aprender o
código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles.O toque da sineta, o menear
de cabeça da mestra, as pancadas sobre a mesa, palmas, ordens etc., são “sinais” que
precisam ser entendidos e atendidos pelo aluno. Sob o constante olhar do disciplinador,
existia o que Foucault (2007) chamou de “biopoder – o poder sobre a vida”, sob as mais
71
A Reforma política realizada em 1759 pelo Marques de Pombal, ministro da coroa portuguesa.
138
variadas formas. Este poder determina as relações entre as pessoas, dividindo-as entre
dominantes as que detêm o conhecimento e aquelas para quem o saber é um templo
lacrado. Na Escola Interna, como em muitas outras instituições escolares que adotavam a
Educação Tradicional, o quadro descrito corresponde a uma realidade vivenciada pelos
indivíduos que a integravam.
Sabe-se que o poder é uma relação de forças e as pessoas são “atravessadas” por essa
relação. Sabe-se também que as relações de poder são imanentes e não externas à educação e
suas práticas e discursos. Na Santa Casa, o poder se materializava nas ações ocorridas em seus
espaços diversos. Foi mostrado como o poder (do Provedor, do Mordomo e das Mestras)
existente na instituição chegava ao asilado, traçando normas, ações e resultados, assim como
ficou evidente que alunos e mestres, como sujeitos do poder e do saber, estabeleciam uma
relação de dominação e sujeição na prática educativa.
A obediência era um requisito indispensável na educação da época e não poderia ser
diferente dentro de uma instituição total, com forte conotação religiosa e disciplinadora, que
não se descuidava de lembrar a condição socioeconômica dos asilados e buscava também
propiciar-lhes um pouco de calor humano. O aluno devia obedecer sem reclamações, de forma
submissa, provando a aceitação da condição de subordinado à mestra ou a sua auxiliar.
A Escola cumpria seu rígido sistema disciplinar, que passava pela observação do
horário, chamada diária para acompanhar a freqüência do aluno, observação das condutas
individuais, estímulo e cobrança de estrita obediência à Mestra, incentivo a atitudes de
humildade, reconhecimento e gratidão ao benfeitor João de Matinhos e ao Provedor vigente.
A alocução da exposta Maria da Soledade de Mattos, de 13 anos, dirigida ao então Provedor,
Conde de Pereira Marinho é ilustrativa:
A nós que morreríamos de dor e desamparo, à mingoa de affectos e cuidados neste
terreno estéril de afagos e ternura, si não achássemos um protetor nosnossos
primeiros annos, e hoje a vós que com elle representaes o nosso digno e venerado
pae. Oh, Ex. Sr, não nos desampareis agora, nem em tempo algum, antes attendendo
a nossa fraqueza e fazendo d’ella mesma o escudo de nossa força, rorejando as
nossas frontes com o orvalho de vossa compaixão, e vivificando-nos com o calor de
vossa caridade, deixae-nos a honra de sempre vos venerarmos como nosso digno
protetor. E Deus vos dará a recompensa que desejam para V.Ex. todos deste Asylo.
(ASCMB, Relatório..., 1883-1884, p.48).
Ainda que seja improvável que uma criança de 13 anos tenha escrito tal discurso, o
fato de ela ser levada a pronunciá-lo em público, diante de autoridades, visitantes e colegas,
mostra o quanto o processo educativo não permitia o esquecimento das condições de
admissão de cada uma delas, bem como reforçava a idéia de aceitação de condição social e do
139
sentimento de reconhecimento e gratidão. O incentivo à humildade, bem como a publicização
e a consciência da pobreza e dos favores recebidos é constante em outros discursos proferidos
pelos expostos durante as comemorações e exames.
Outro exemplo significativo de como eram estimulados os comportamentos pautados
na obediência, no reconhecimento à própria condição social e no sentimento de gratidão pelo
Provedor da instituição pode ser encontrado na fala de uma aluna, durante a festa de 14 de
junho de 1885, quando da exposição dos artefatos executados pelas alunas e exames:
Em seguida apresentou-se a intelligente e sympathica Exposta Mathilde de Mattos,
que recitou a seguinte allocução, que vae tambem publicada por ter sido
merecidamente applaudida:
Ilm. e Exm. Sr Provedor
Peço-vos permissão por mim, e como interprete de minhas companheiras de
infortúnio, dirigir- vos as seguintes palavras:
Exm. Sr. ei-nos aqui, segundo determinação de V.Ex., dirigida a nossa boa mãe,
para dar-vos conta do que fizemos durante o ano que está prestes a findar.
Não sabemos se o que apresentamos satisfará a vossa espectativa [...] até onde chega
o interesse do nosso actual benfeitor pelo futuro bem estar de tantas creaturas que
uma sina fatal roubou-lhes o direito de se aquecerem no ninho paternal [...]
(ASCMB, Relatório..., 1885-1886, p. 60).
Assim uma aluna “ganhava” visibilidade sobre o grupo para efetuar a “prestação de
contas”, louvar e agradecer, num processo considerado natural por todos. A educação prestada
visava transmitir normas e modelos sociais de comportamento, considerando a classe social
do alunado, que deveria despender o esforço necessário para a fixação, aprendizagem e
posterior prestação de exames de conhecimentos. Era naquele micro-universo que os meninos
e meninas asilados aprendiam e desempenhavam seus papéis sociais.
3.2.2 Pessoal docente: professoras e outras mestras
Nóvoa (1995, p.15), ao estudar o nascimento da profissão de professor, afirma que
surgiu “no seio de congregações religiosas” que terminaram por configurar “[...] um corpo de
saberes e de técnicas e de valores específicos da profissão docente”. Não se pode menosprezar
a importância de tal arcabouço de conhecimentos, utilizado inicialmente pela Igreja e depois
pelo Estado em espaços destinados a tal fim. A escola, como local estabelecido para a
educação das crianças, onde os saberes são difundidos de forma predominantemente escrita, é
também o espaço em que elas aprendem as normas sociais ligadas ao corpo: higiene, controle
das necessidades fisiológicas, entre outras.
140
Mostrou-se que no espaço asilar e sua Escola Interna a criança exposta mantinha o
primeiro contato com as mulheres encarregadas de sua formação intelectual e moral. Foram as
Irmãs de Caridade
72
, em sua maioria de nacionalidade francesa, que desempenharam tal papel,
vistas e aceitas como referenciais femininos para crianças sem mães. Tais crianças poderiam
também contribuir com uma parcela de oportunidade de afloramento de um amor materno não
realizado na carne.
A relação estabelecida entre as crianças e as Irmãs e Caridade era constante, com
destaque para a que se estabelecia na sala de aula. Foucault (2007, p. 155), ao estudar o
espaço escolar, afirmou que “[...] a escola torna-se o local de elaboração da pedagogia”. No
espaço da Escola Interna, como em outras instituições similares, a “elaboração da pedagogia”
estava concentrada nas mãos dos dirigentes e professores, que compunham o grupo dos
controladores. No caso das Irmãs de Caridade, as primeiras professoras por tão longos anos,
eram as zeladoras das crianças pequenas, mestras dos escolares, orientadoras da formação
moral de todos os meninos e meninas que viviam da caridade institucional e precisavam ser
preparados para o mundo, para a execução de tarefas nas lavanderias, cozinhas, oficinas de
artesanato, carpintaria, entre outros locais.
Ainda que nunca tenha atuado na Escola Interna, vale o registro de que a primeira
professora da Santa Casa que não era Irmã de Caridade foi Maria d’Assumpção Lessa,
nomeada pelo Provedor Manoel de Souza Campos para a Escola Elementar inaugurada em 21
de fevereiro de 1901, na sede da Repartição Central, na Rua da Misericórdia, no centro
histórico de Salvador.
A primeira professora a atuar na Escola Interna do Asylo e segunda contratada pela
Santa Casa, foi Maria Magdalena Landulpho
73
. No dia 5 de março de 1913, por deliberação
da Junta, foi criada uma cadeira mista primária para os expostos e assim, conforme relatou o
Provedor Teixeira Gomes: “[...] por acto de 13 de março nomeei para reger a cadeira mixta
primaria, criada pela Junta, no Asylo, a alumna mestra D. Maria Magdalena Landulpho.”
(ASCMB, Relatório..., 1913, p. 43).
Com tal medida, ele esperava corrigir a educação propiciada aos expostos, considerada
deficiente em escrita, leitura e aritmética, conhecimentos considerados indispensáveis na
formação intelectual e na futura ocupação de espaços no mercado de trabalho. Desta vez não
houve repetição de oposição da Superiora, como em 1898. Sinal dos tempos e do pulso firme
72
Não foram obtidos informes sobre grau de escolaridade, idades e idiossincrasias das Irmãs de Caridade.
73
Maria Magdalena atuou até o ano de 1924, quando solicitou exoneração concedida pela Portaria nº 9, de 18
de fevereiro de 1924 (ASCMB, Livro..., 1925).
141
do Provedor, que não tergiversava no que compreendia como benéfico e necessário para o
êxito da instituição.
É fato que o Provedor exercitou o poder que dispunha, já que este somente existe nas
relações de poder, pois, como diz Foucault (1998, p.91), “[...] onde há poder há resistência e,
no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade
em relação ao poder”.
As resistências presentes na trama social, de que trata Foucault (1998),
revelaram-se na vida do Asylo no momento do desacordo entre o Provedor e a Superiora,
figuras representativas da instituição.
A professora Magdalena permaneceu atuando com as aulas para os meninos no turno
da manhã e para as meninas pela tarde, esforçando-se para prepará-los para os exames finais
em 1914; nenhum menino sequer foi considerado apto, enquanto as meninas foram
submetidas a exame de conhecimentos das matérias que seguiam o programa oficial de ensino
e lograram aplaudidas aprovações. Em 1919 a Professora Luiza Aboim de Barros
74
passou a
servir na Escola Interna, onde atuava Maria Magdalena Landulpho.
A Santa Casa priorizava a mulher para a função docente e tal fato estava em perfeita
consonância com a concepção de que ela era talhada para educar e cuidar. De acordo com
Carvalho (1998, p. 213):
Uma vez que o modelo bipolar das relações de gênero pressupõe uma associação
entre feminilidade e mulheres, de um lado, e masculinidade e homens, de outro, há
uma pressuposição de que as mulheres estariam mais à vontade para lidar com as
pressões emocionais da docência e para estabelecer vínculos afetivos com os alunos.
Seria incompatível com o pensamento do final do século XIX e início do XX imaginar
um homem com condições financeiras e socioculturais consideradas satisfatórias se interessar
em lecionar para crianças. Isto cabia aos homens com pouco prestígio social e poucas
possibilidades de ocupar posições destacadas. Uma possível causa da desvalorização do
magistério pode estar ligada ao fato de que, cada vez mais a atividade estava se popularizando
e atendia a pessoas de baixa renda e de condição social considerada inferior.
Olhando por tal prisma, existia a demarcação de competências entre o que era
atividade adequada para homens e para mulheres nas esferas pública e privada, pois, como
escreve Passos (1999, p.119): “[...] a distribuição desses papéis por sexo, explicada conforme
uma lógica da naturalização de situações sociais, serve para demarcar os limites da
masculinidade e da feminilidade.” Eram mulheres cuidando das crianças expostas, num
74
A Professora Luiza Aboim de Barros foi nomeada em 1914 para ministrar aulas na Escola Externa (ASCMB,
Relatório..., 1914, p.3).
142
espaço “fechado”, subordinadas às figuras masculinas do Mordomo e do Provedor, detentores
de poder superior ao delas, mesmo da Superiora e das professoras diplomadas. Conforme
registrado, a vida no Asylo incluía a educação formal tradicional e também, conformando-se
aos ideais republicanos, propunha-se a preparar os asilados para a vida prática. Ainda que
enfrentasse dificuldades desde a falta de pessoal profissionalizado até a carência de
recursos financeiros , a instituição dispunha sempre de mestras dos ofícios e das prendas
para meninos e meninas.
Contando inicialmente apenas com as Irmãs de Caridade no desempenho desta tarefa,
com o passar do tempo outras personagens ajudaram a compor o cenário da vida
escolar/asilar, tais como Maria José de Matos, mestra de prendas domésticas, Maria José de
Moraes, dirigente da sala de costuras e encarregada da disciplina, vigilância e asseio geral
(auxiliar e futura substituta de Amélia Rodrigues) e que contou com o auxílio de D. Marta
Ramos; Judite de Morais, auxiliar de D. Amélia; D. Maria da Gloria Mattos, que dirigiu a
secção de meninos crescidos de 6 a 14 anos, “[...] alguns dos quais anormais e incapazes de
qualquer proveito intellectual” (ASCMB, Relatório..., 1914, p. IV) e a senhorinha Noélia
Lanat que, gratuitamente, ministrava aulas de pintura e desenho.
A posição e o papel de cada uma das mestras de prendas, costuras, artes, assim como
das demais encarregadas estavam em pleno acordo com a organização social de um
estabelecimento que pretendia fornecer uma educação “acomodada à situação” social dos
expostos: cada uma dessas pessoas, a seu modo e de acordo com suas concepções de mundo,
contribuiu com o processo educativo das crianças, ainda que muitas delas talvez não tivessem
formação intelectual destacada. Certamente, pertenciam a camadas sociais que precisavam
trabalhar para viver, buscando ganhar dignamente seu sustento. Tem-se também o exemplo da
professora que ministrava gratuitamente as aulas de pintura e desenho, talvez em razão de seu
espírito altruísta somado à condição financeira confortável.
De acordo com Passos (1999, p.147): “[...] a sociedade baiana até os anos 60 não
aprovava o trabalho feminino, vendo nele uma forma de desvalorização da mulher e de
desrespeito às suas ‘tendências naturais’.” Contudo, como a citada autora reflete, a profissão
de professora era aceita e reconhecida; afinal, como mulher “combinava” com maternagem,
cuidado com crianças, idosos e doentes, as Irmãs, professoras e outras mestras que povoaram
o universo do Asylo cumpriam tarefas educativas e cristãs para o bem-estar de crianças
expostas e por isso mereciam a aprovação social.
A sociedade que as aplaudia, reconhecia seu trabalho educativo, mas também, por
acreditar que elas eram inferiores aos homens, as confinava aos espaços não ameaçadores
143
como o lar, a escola, o convento, o hospital. Em todos eles sua posição era de subordinação,
invisibilidade, emudecidas e operantes, servindo a uma ordem social demarcadora e
definidora de status e papéis.
3.2.3 Comemorações, lazer, saídas e visitas
Ao longo do processo civilizatório, o homem celebrou a vida e a morte. No universo
da Escola Interna também ocorreram momentos festivos e eram esperados com ansiedade e
alegria pelo contingente de asilados. Eram ocasiões de celebrações, festejos alegres e bem
organizados, que deveriam levar um pouco mais de calor humano e espontaneidade a todos
daquele micro universo.
As festas religiosas eram comemoradas infalivelmente: mês de Maria, Natal, Páscoa,
entre outras. Afinal eram momentos em que o ensino religioso, parte visceral da Educação
Tradicional, materializava-se em cânticos, orações em grupo, decoração festiva para louvar e
agradecer a Deus, ouvir a pregação do capelão exortando todos às boas ações, à gratidão, aos
pensamentos puros, amor ao estudo, à pátria e à obediência. A celebração da primeira
comunhão era uma ocasião de regozijo religioso e social: era o solene acontecimento do
primeiro contato com Jesus no sacramento da Eucaristia. A preparação para este momento se
dava na catequese, que era também o momento de contactar com outras pessoas. As crianças,
ao viverem aquele momento tão singular e esperado, deveriam sentir-se de fato cristãs, com
toda a carga de compromisso e responsabilidade pregada por suas catequistas.
O aniversário do Asilo era uma data marcante, comemorada com solenidade. Como
instituição católica, o festejo começava com celebração religiosa e com a presença de
autoridades, como se constata nos Relatórios, a exemplo do transcrito a seguir:
[...] a presença de Exm.Sr. Cons. Teodoro Machado Freire Pereira da Silva, MD
presidente da Província, do Exm Sr Marechal Hermes da Fonseca, MD
comandante das Armas, Mesários, Definidores e outras pessoas gradas de nossa
sociedade. O sacerdote que officiou foi o Rvmº. Cônego Dr. Romualdo Maria de
Seixas Barrozo.
Finda a cerimônia religiosa, o Exmº. Sr Presidente da Província procedeu, a meu
pedido, a distribuição dos prêmios concedidos às meninas pelo Jury d’exames, sendo
este acto abrilhantado pela Banda de Música da Polícia, que se achava presente.
A meza trocaram-se vários brindes, sendo o último levantado em honra da Irmã
Lasnier, MD Superiora do estabelecimento e suas não menos dignas companheiras.
(ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p.32).
144
Apenas motivos de força maior, como realização de obras no imóvel, ocorrida em
1890, impediam a comemoração do aniversário da instituição. Outras comemorações também
ocorriam na Escola Interna, como a de 26 de janeiro de 1919, primeiro aniversário de morte
de José de Sá, antigo Mordomo e patrono da escola.
As crianças do Asilo receberam um presente em 15 de novembro de 1923, com uma
festa a elas especialmente dedicada pelo Colégio Soteropole, da Professora Semirames
Barbuda, cuja programação segue descrita:
Discurso = Helena Tavares
Hymno Nacional = todos alumnos
Mamãe não deixa = Days Couto
A casa = Athayde Madureira
A boneca = Clotilde Ferreira
Um pensamento = Ithamar Barbuda (ASCMB, Relatório..., 1925-1926, p. XI)
Ainda que o programa não indique se algumas apresentações foram de música ou
poesia, as crianças certamente gostaram de um dia fora da rotina, do convívio com outras
crianças, dos doces, bombons e brinquedos oferecidos.
Uma comemoração bastante detalhada foi a que ocorreu quando da inauguração da
Sala de Estudos e Biblioteca, em 1924, com a participação dos alunos em manifestações
artísticas, conforme o Programa da Festa de Inauguração:
I Parte: “Toast”- Hetter piano: Adriana; Discurso: Lindaura
A melindrosa (cançoneta): Esmeralda; A mão do sacerdote (poesia): Maria
O Batalhão: por um grupo de meninos
II Parte: “Lê rêve d´une jeunne fille” Charles Acton, piano: Adriana
Tolice? (poesia): Hercelina; Os três mosqueteiros (cançoneta): Balthazar, Agricio e
Francisco;
Na esparella (poesia): Higina; O almofadinha (canto): Maria
Hymno Nacional, piano: Adriana (ASCMB, Relatório..., 1925, p. XII)
Algo que deve ter sido cercado de muita expectativa foi o casamento, em 18 e abril de
1925, de uma asilada “Eusebia de Mattos com o Sr. Raimundo Meira Magalhães, abastado
fazendeiro em Jequié, deste Estado”, assim como, em 10 de abril de 1926, o de “Lyndaura de
Mattos com Joaquim Nunes de Silveira, músico do primeiro corpo de Polícia do Estado”
(ASCMB, Relatório..., 1925-1926, p.38). Não foram localizados documentos que indicassem
detalhes das cerimônias.
A vida dos asilados era controlada com atenção pela Superiora, fosse ela Irmã de
Caridade (até 1913) ou não. Ela não permitia saídas das crianças sem um rigoroso sistema de
vigilância e segurança e era imprescindível saber com quem iam, local, data e hora para o
145
retorno, ainda que a criança saísse com parentes. Havia o prazo para que não faltassem às
aulas e a suas atividades rotineiras, visando à manutenção dos hábitos e da postura que lhes
eram ensinados.
As visitas de pessoas estranhas só eram possíveis mediante autorização expressa da
Superiora. Ainda que a visita tivesse um caráter de estudo, ela podia ser negada, conforme
pode ser lido:
Havendo requerido o Dr. Ezequiel C. de Souza Britto autorisação da provedoria para
visitar diariamente a uma hora certa o asylo dos Expostos afim de colher maior
numero de observações clinicas, visto ter de se submeter a concurso para a
especialidade, em março ou abril, ouviu a Provedoria à Irmã Superior, que, em sua
informação de 16 de janeiro, diz que acha este pedido incompatível com a ordem do
estabelecimento, que não é um hospital, e completamente opposto ao regimem
interno das meninas, que tem sido sempre rigorosamente respeitado; em vista do que
a Provedoria, por despacho de 22 do dito mês, indeferiu o pedido. (ASCMB,
Relatório..., 1889-1890, p. 82).
O que certamente era esperado com alegria pelas crianças era o período de férias
passado à beira-mar, numa evidente compreensão da instituição dos benefícios físicos e
emocionais para elas:
A casa grande situada na enseada de São Tomé de Paripe, subúrbio desta cidade,
tem sido utilizada para o veraneio dos meninos no período de férias escolares. O
desenvolvimento que apresentam depois da estação de férias à beira-mar é tão
animador, que a referida propriedade nos parece ter recebido aplicação acertada
(ASCMB, Relatório..., 1933-1934, p.29).
Bem vindas eram as visitas de familiares, professores e autoridades durante as
exposições, realização de exames, celebrações, enfim, em situações previamente definidas,
que não alterassem a rotina de atividades e pudessem atestar a limpeza, a ordem, a disciplina
da casa e o aproveitamento dos alunos. Pode-se afirmar, em concordância com o
entendimento de Goffman (1974), ao estudar as instituições totais, que tais visitas, mesmo
benéficas, tinham o condão de lembrar aos alunos da Escola Interna que eles ali estavam
confinados e que “lá fora” existia um outro modo de vida diferente do seu. A Provedoria
preocupava-se com as visitas feitas sem data marcada e para corrigir tal situação a Superiora
propôs a regulamentação “[...] de modo que se evite a freqüência que havia, e que pode
prejudicar a ordem e a disciplina indispensáveis ao estabelecimento” (ASCMB, Livro..., 1877,
p.12). A situação ficou ainda mais definida com a determinação da visita ser autorizada pelo
Provedor (ASCMB, Livro..., 1891-1895)
75
.
75
Livro nº 22, Ata da Mesa de 20 de dezembro de 1892.
146
Para melhor contextualização do que ocorreu nas décadas seguintes com a Escola
Interna e seu alunado, vale relembrar que o Asylo continuou com suas atividades de receber
crianças pela Roda e abrigá-las. Apesar dos esforços empreendidos pelas sucessivas
Provedorias, a situação sanitária da casa foi duramente questionada em 1924, por Dr. Joaquim
Martagão Gesteira, diretor da Inspectoria de Hygiene Infantil, que considerou inadequadas
várias ações dentro do espaço para as crianças pequenas e criticou o desaparelhamento e
irregularidades. O então Provedor Newton de Lemos tentou corrigir, com reforma dos espaços
e serviços (ASCMB, Relatório..., 1924-1925). No bojo de sua crítica às instalações, Dr.
Joaquim Martagão Gesteira propôs uma radical alteração: a extinção do sistema da Roda e a
abertura de um escritório de admissão das crianças, além da criação de uma pequena creche,
já que ele considerava como um serviço altamente necessário às mães pobres, que precisavam
trabalhar e não tinham com quem deixar os filhos pequenos.
Na concepção de Dr. Martagão, com a extinção da Roda haveria uma significativa
redução do abandono das crianças, que não mais seriam ali depositadas no anonimato e
clandestinidade, mas sim levadas à luz do dia por seus parentes, que deveriam informar os
dados de registro da criança, as razões do abandono etc. Em 31 de março de 1925, foi
inaugurada a creche, que contava com a participação dos médicos da Liga Contra a
Mortalidade Infantil
76
fundada por Dr. Martagão Gesteira (RODRIGUES, 2003, p.118). A
participação dos médicos e dos Governos Estadual e Federal não bastou para que se
modificasse o preocupante panorama da mortalidade infantil na instituição, o que levou Dr.
Martagão e seus colegas a um grande empenho na extinção da Roda. Isto preocupava a Santa
Casa, temerosa de que aumentasse a população de crianças pobres no Asilo.
O ano de 1934 foi marcado pelas discussões na Junta sobre o problema, conforme a
Ata de 25 de julho, que chegou a aprovar a instalação do Escritório Aberto de Admissão,
devidamente orientado por um Regulamento e inaugurado em 5 de agosto, mas ainda
funcionando paralelo à Roda. O Regulamento definia idade (6 meses), peso e tamanho da
76
As constatações do alto índice de mortalidade infantil em Salvador 227 por 1000 levou Dr. Martagão
Gesteira, com o apoio de médicos como Prof. Alfredo Magalhães, Álvaro Bahia, Álvaro Rocha, Durval Gama
Hélio Ribeiro e o comerciante português Carlos Levindo Pereira, a criar a Liga Baiana Contra a Mortalidade
Infantil, oficialmente fundada no salão nobre do Liceu de Artes e Ofícios no dia 17 de junho de 1923, no andar
térreo do Liceu de Artes e Ofícios, então Freguesia da Sé. O evento contou com a presença de 30 pessoas. Em
15 dias, a contar da data de publicação do estatuto em Diário Oficial, cerca de 200 adesões somavam-se à
instalação da instituição filantrópica, que começou efetivamente as atividades no dia 12 de outubro do mesmo
ano, dando origem à comemoração do Dia das Crianças na Bahia e no Brasil (CARVALHO, 2006, p.4).
Segundo Rodrigues (2003, p. 105): “No ano de 1925, a Liga Contra a Mortalidade Infantil começou a agir
dentro do Asilo, impondo ao mesmo não apenas reformas físicas como também uma participação mais efetiva
dos profissionais de saúde na vida cotidiana dos asilados.”
147
criança e estipulava estrita observação à situação econômica do Asilo e sua capacidade de
acomodação das crianças, a saber: por mês só poderiam ser admitidas até doze.
Rodrigues (2003, p. 120) define a situação vivenciada com as mudanças:
A modernização do Asilo, efetuada através de modificações no sistema de admissão,
possibilitou o oferecimento de uma assistência mais eficiente, porém, paralelamente,
restringiu o alcance social. A filantropia e não a caridade guiava os passos da
administração da instituição. A partir desta data, a assistência filantrópica da
Misericórdia procurou selecionar os seus assistidos.
Com a desativação da Roda, em 1934, conforme a Ata do mesmo ano, encerrou-se um
capítulo que remontava ao passado. Novos espaços foram inaugurados para o recebimento das
crianças que não mais perdiam o vínculo e o contato com suas famílias. As crianças expostas
remanescentes continuaram na casa até a colocação em empregos, ainda que menores de
idade, numa clara exploração do trabalho infantil, ou até o alcance da maioridade ou
casamento.
Mesmo reconhecendo sua imensa importância, a questão da Liga Baiana Contra
Mortalidade Infantil, extrapola o objeto desta pesquisa. Assim, com o fechamento da Roda do
Asylo da Misericórdia, fecha-se o ciclo desta pesquisa, que não tem a pretensão de dar conta
do que aconteceu com todos os meninos e meninas que ali estavam em 1934, no que se chama
de “terceiro momento da Escola Interna”, em que condições viveram, se freqüentaram a
escola, teceram ou tiveram tecidos os novos rumos de suas vidas.
De acordo com Costa (2001), a Escola Interna José de Sá continuou funcionando no
formato tradicional ao longo dos anos, nas salas do pavimento térreo do edifício principal. Na
penúltima década do século XX foi conveniada com o Estado e oficialmente criada pela
Portaria 8.787, publicada dia 28 e 29 de setembro de 1985 no Diário Oficial do Estado da
Bahia. Funcionou em onze salas no prédio da Pupileira, no Campo da Pólvora: no turno
matutino funcionavam as turmas de Alfabetização I e II, e da primeira a terceira séries; à
tarde, funcionavam as turmas de quarta a oitava séries. Pelos termos do Convênio, as vagas
foram preenchidas eqüitativamente com alunos internos do Asylo e externos, com as aulas
ministradas por onze professoras do Estado e uma da Santa Casa. A escola foi extinta
29
pela
Portaria 3.206/92 (BAHIA, 1992).
29
Infelizmente, o Setor de Escolas Extintas, que funcionava na Secretaria de Educação do Estado, no Centro
Administrativo, sofreu profundos estragos com o incêndio ocorrido em 2003, razão pela qual os funcionários
Aurélio e Genebaldo, do referido Setor, reinstalado no prédio do Instituto do Cacau, no bairro do Comércio,
pouca coisa tiveram a oferecer para esta pesquisa.
148
Pelo exposto, fica evidente que a compreensão do histórico da Escola Interna exige
que se leve em consideração a base filosófica da Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
pautada na caridade cristã, extrapolando seu Estatuto, que não previa escolas formais. A
Escola Interna teve significativo papel na vida de meninos e meninas enjeitados que eram
abrigados no Asylo dos Expostos, onde eram educados dentro dos conceitos católicos e sob o
rigoroso controle da Santa Casa de Misericórdia. No contexto educacional baiano, a Escola
Interna contribuiu, com sua ação, para reduzir o analfabetismo e ali, em seus espaços, buscou
disciplinar, moldar caráter, propiciar lazer e princípios morais às crianças, visando prepará-las
para o trabalho e para a formação de famílias adequadas à condição social a que pertenciam.
O capítulo seguinte vai descortinar a prática pedagógica da escola Interna e as suas
conseqüências na formação de meninos e meninas que viveram no Asylo da Misericórdia
149
SALA DE AULA DA ESCOLA INTERNA
Acervo do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia
Foto - copiada por Valdicley Vilas Boas
150
4 PRÁTICA PEDAGÓGICA DA ESCOLA INTERNA
“Absolutamente desconhecida do maior número, que
são, justamente os que della não carecem, conta com a
indiferença de uns e a falta de justiça de outros,
especialmente de muitos daquelles de quem devia
recolher só e somente reconhecimento e gratidão.”
Provedor Isaías de Carvalho Santos
(ASCMB, Relatório..., 1923-1924, p. 54)
Este capítulo visa conhecer a prática pedagógica da Escola Interna do Asylo de Nossa
Senhora da Misericórdia, obra da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, começando pela
proposta pedagógica: objetivo, currículo, metodologia, avaliação dos conhecimentos formais
e do aprendizado de ofícios.
Os meninos e meninas que freqüentavam a Escola Interna ocupavam as salas de aula
para lições e deveres ministrados pelas Irmãs de Caridade e depois pelas professoras
diplomadas. Também freqüentavam as oficinas para a aprendizagem profissional. Na
proposta pedagógica da instituição, ao lado da formação religiosa, perfeitamente compatível
com o ideário que norteava suas ações, os alunos e alunas deviam ser capacitados para
ocuparem um lugar no mundo do trabalho e para formarem uma família, especialmente as
meninas. Assim sendo, busca-se mostrar como a educação sofreu o impacto das mudanças
sociais, políticas e econômicas ocorridas no final do segundo Império e República Velha e
como elas atingiram a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, mais especificamente sua
Escola Interna. Também é mostrado como os sujeitos da educação atuavam, as
conseqüências da prática pedagógica e como meninos e meninas desempenhavam seus
papéis sociais, numa sociedade que definia com clareza o que esperava de cada sexo e
traçava os possíveis caminhos a serem percorridos.
Como todo projeto pedagógico é um projeto político e a Santa Casa de Misericórdia
ocupava uma posição social de destaque no contexto da cidade de Salvador, ela colocava-se
como entidade autônoma que buscava cumprir os objetivos de seu Compromisso (Estatuto) e
também atender aos interesses que determinavam suas relações com as demais instituições
sociais, como o Estado e a Igreja.
151
4.1 PROPOSTA PEDAGÓGICA DA ESCOLA INTERNA
1
Ao longo da história, a escola é parte do amplo organismo social. Ao fazer parte da
estrutura de um contexto social e para cumprir seu papel a contento, ela define propostas
pedagógicas e assume posições, enfim, ela elabora um projeto educativo. A proposta
pedagógica, como o nome está a dizer, constitui-se na definição de modelo proposto pela
instituição para o alcance de seu objetivo educacional. Assim sendo, dentro dela encontra-se o
método de ensino e o caminho de aprendizado que o aluno deverá trilhar durante sua
permanência na instituição.
Partindo do ponto principal que é definir o tipo de aluno que se quer formar, a
proposta pedagógica traça e tece suas considerações e estabelece seus pressupostos ou
princípios norteadores da ação educativa, definindo tarefas dos sujeitos envolvidos e etapas de
trabalho, reconhecendo limites e possibilidades do contexto escolar.
É indiscutível que as tendências pedagógicas sofrem as influências dos movimentos
sociais e filosóficos dos respectivos momentos históricos. No Brasil, especificamente no
meado no século XIX até as décadas iniciais do século XX, o quadro socioeconômico estava
em efervescência. Permeavam as discussões sobre a educação que deveria ser propiciada às
crianças do povo, sobre a questão da abolição da escravatura, as idéias republicanas e a
mudança do modelo econômico-produtivo, como mostrado em capítulo precedente, bem
como os interesses políticos, ideológicos, religiosos e culturais.
A Escola Interna tinha uma função social a ser cumprida e, como integrante de uma
instituição dirigida por indivíduos da classe dominante, pautava suas diretrizes na
conformidade com os princípios e valores que satisfaziam a referida classe. Como instituição
conservadora e de forte caráter religioso, sua proposta pedagógica pautava-se numa linha
afinada com os valores e princípios formais da Educação Tradicional, numa clara herança da
pedagogia que moldou a educação na cidade de Salvador desde o período colonial. Esta
pedagogia, no Brasil, foi marcada pela presença de religiosos jesuítas que desempenhavam os
1
Não foi localizado documento específico sobre a proposta pedagógica da Escola Interna. Toda a pesquisa está
lastreada em diversos documentos primários referentes a seu funcionamento, tais como: Regulamentos do
Asylo, Atas, Relatórios, Livro de Registro de Empregados, Correspondências manuscritas trocadas entre a
Provedoria, Superiora e Mordomo do Asylo e autoridades de outras instituições e dos poderes públicos. O
agrupamento e análise de tais documentos permitiram delinear-se a formatação da Escola, que possuía muitos
pontos de semelhança com a Escola Externa, também integrante da Santa Casa, que atendia a meninas pobres
residentes no entorno do Campo da Pólvora, em Salvador.
152
papéis de sacerdotes e professores, em plena conformidade com concepções educacionais
então em voga no universo europeu, especificamente no lusitano (SAVIANI, 2004a).
A proposta pedagógica da Escola Interna era bem definida: ministrar os
ensinamentos do curso primário, moldar o caráter e o temperamento, tornar os alunos bons
cristãos, futuros adultos aptos para o trabalho digno que assegurasse a sobrevivência. Para
isso a instituição contava com o imenso peso da religião e da vida quase reclusa, buscando
tornar, cada uma das crianças e jovens, seres tementes a Deus, servidores da Pátria, bons
trabalhadores e donas de casa, quando transpusessem os portões do Asylo para a vida fora
de seus muros. Baseava-se nos princípios cristãos, pautados no bem e na caridade de
acolher a criança desvalida, incutindo-lhe os valores da bondade, humildade, obediência e
temor a Deus. Os princípios políticos da instituição expressavam-se na preparação para o
exercício do trabalho, evitando o desperdício de energias e comportamentos sociais
indesejados como a marginalidade, o ócio, a prostituição e os vícios. Os princípios
religiosos vigentes na Escola Interna estavam em conformidade com o preceituado pela
Igreja Católica, desde o início do processo civilizatório no Brasil, e foram plenamente
alcançados após a queda do Império e a proclamação da República. De acordo com Horta
(1994), mesmo com a separação entre a Igreja e o Estado, oficializada pelo decreto de 1890
e a Constituição republicana de 1891, a influência da Igreja se faz sentir nas discussões
sobre o ensino religioso nas escolas.
Já foi dito que a Santa Casa, como instituição de princípios cristãos, procurou
educar a criança com ênfase numa educação religiosa, em conformidade com a formação
católica, em bases tradicionais, observando valores morais e disciplinares. O final do século
XIX trouxe a modernidade da República e a transformação da estrutura política do país para
constituí-lo como nação. A questão da infância e da juventude pobre, dentre outras, foi
considerada um “problema nacional”. Médicos e juristas colocaram-se à frente das batalhas
em prol da infância, assim como as elites políticas, intelectuais e filantrópicas, constituindo-
se num dos focos de análise da intelectualidade, que discutia as contradições político-sociais
do país e misturavam as inovações do liberalismo europeu e as tradições remanescentes do
período colonial.
Na Escola Interna, como parte integrante de uma instituição de base católica, os
princípios religiosos não sofreram qualquer alteração. No tocante aos princípios políticos,
estes refletiram as mudanças defendidas e pregadas pela República, a preparação do
indivíduo para o trabalho, lastreados no civismo e nos bons costumes. Como o país entrava
no século que se iniciava sob uma nova forma e governo, com sua própria ideologia e
153
desejo de modernização, prevalecia a “[...] crença no poder da escola como fator de
progresso, modernização e mudança social” (SOUZA, 2000, p. 11). A situação acentuou-se
na terceira década do século XX, com o ideário do governo de Getúlio Vargas, em 1931, na
fala de seu Ministro da Educação e Saúde, Francisco Campos (1931, p.312): “O fim
essencial da escola é não só instruir, mas educar, não só habilitar técnicos senão também
formar homens que, na vida doméstica, profissional e cívica, sejam cumpridores fiéis de
todos os seus deveres.”
Na Escola Interna havia a preocupação com a educação dos meninos e meninas que ali
viviam sob o abrigo do Asylo. Ainda que as práticas de cuidado sempre tenham existido em
diferentes espaços sociais, a condição de expostos já os colocava em baixa posição na
hierarquia social vigente e, por conta disso, deveriam ser preparados para a ocupação na vida
social extramuros. Inquestionavelmente, havia uma relação direta entre a Pedagogia
Tradicional, as desigualdades de classe, a organização social, bem como as várias formas de
dominação material e simbólica. Mesmo sob a suspeição de que alguns expostos eram
oriundos de famílias aparentemente estruturadas, certamente a origem espúria, ilegítima e
comprometedora da criança havia determinado seu destino. Como já foi mostrado, o estigma
de ser exposto existia de forma velada ou ostensiva.
As crianças asiladas, de ambos os sexos, com idade acima de seis anos, freqüentavam
a chamada Escola Interna para receber instrução primária, que era ministrada em quatro salas
de aulas localizadas no pavimento inferior. O mundo escolar, descortinado na idade de 7 anos,
ocupava parte do tempo diário do asilado e ele aprenderia os signos para a vida social e o
discurso adequado a seu status de criança pobre, oriunda da Roda.
É importante relembrar que os alunos que freqüentavam as salas de aula eram os
mesmos meninos e meninas que ocupavam os demais espaços do Asylo; todas as crianças em
idade escolar transitavam pelas alamedas, pátios, refeitórios, capela, lavanderia, dormitório,
oficinas de sapataria, salas de costura, cozinha e outras. Cada um desses espaços constituía-se
no mundo que era desde cedo conhecido dos asilados. Tais espaços eram a casa, a habitação
de muitos meninos e meninas que ali aprendiam por imitação a viver um cotidiano de muitas
rotinas, em constante obediência.
A concretização desta proposta pedagógica era de responsabilidade de todos os
profissionais que compunham a estrutura da Escola (Superiora, professores e funcionários),
mas, sem dúvida, cabia ao professor a tarefa substantiva de conduzir o processo de
aprendizagem, cuja prática será abordada mais adiante.
154
4.1.1 Objetivo, currículo e metodologia da escola interna
A Escola Interna tinha por objetivo educar os expostos com base nos pressupostos da
caridade cristã, já referenciados. Ela reconhecia a importância da instrução elementar, básica,
e o aprendizado de uma atividade para que meninos e meninas internos pudessem enfrentar o
mundo do trabalho, assegurando a capacidade de subsistência, fosse em atividade dentro do
espaço doméstico, fosse no espaço público.
No bojo da prática educacional estava a educação de caráter religioso. Não bastava
fazer o aluno aprender a ler e escrever; não bastava ajudar em seu preparo para o mundo do
trabalho; era indispensável torná-lo bom cristão, temente a Deus, observador dos preceitos e
valores morais católicos. Esses valores permeavam toda a ação na sala de aula, no discurso
das mestras, da Superiora e demais pessoas que interagiam com os alunos.
A Escola Interna tinha sua prática embasada na Educação Tradicional, com todos os
seus princípios conteudistas, memorativos, quantitativos, centrados na figura do mestre
transmissor de conhecimentos. Sob tal ótica, como o sujeito não se separa de seus atos, as
ações das mestras e outros educadores eram repassadas pelos valores considerados
socialmente aceitos. É sabido que toda manifestação humana, seja um gesto, uma fala, um
silêncio, um objeto construído, entre outros, contém implicitamente um valor que se coloca
como realidade evidente e confiável para quem o produz e para a sociedade que o cerca. Nesta
linha de pensamento, as mestras da Escola Interna deveriam educar as crianças com amor,
mas com firmeza e clareza nos direcionamentos, para que elas não se desviassem da rota de
bons cidadãos obedientes ao Estado, futuros pais e mães de família e de criaturas com boa
formação moral.
A Escola Interna, criada numa extrapolação do Estatuto da Santa Casa, oferecia à
Irmandade da Misericórdia momentos de satisfação, pela oportunidade de propiciar educação
primária cristã e de preocupar-se com a qualidade do ensino, com as dificuldades financeiras
para adequação de espaço físico, contratação de mestres de ofício e docentes, avançando no
esforço de não deixar as crianças “[...] à falta desse recurso, com que ficariam com o espírito
para sempre mergulhado nas trevas da mais supina ignorância” (ASCMB, Relatório..., 1883-
1884, p. 24).
A Escola Interna, como qualquer outra, integrava a sociedade, com sua ideologia e
objetivos definidos. Criada nas bases da caridade cristã, extrapolando o Estatuto da
Misericórdia, a Escola Interna reproduzia a ideologia e os interesses do grupo dominante.
155
Assim sendo, não se pode conhecê-la sem pensar em seu currículo, que organizava suas
funções, integrante que era de uma instituição autônoma, católica, com atuação marcante no
contexto da cidade de Salvador.
Etimologicamente, a palavra Currículo vem de Curriculum, ou pista de corrida,
simbolizando a idéia de que os indivíduos percorrem caminhos e se modificam, mas, como
palavra polissêmica, ela possui sentidos elaborados em diferentes tempos e espaços sociais.
No tocante à realidade escolar, a palavra normalmente remete à idéia de um conjunto de
dados relativos ao ensino e à aprendizagem, organizados com a finalidade precípua de definir
e orientar as atividades educativas (RIBEIRO, 2005).
Para uma melhor compreensão do currículo adotado pela Escola Interna serão
tomados como referências dois períodos: o período imperial, no qual se inclui o primeiro
Regulamento do Asylo, datado de 1863, e o período republicano, no qual se insere o
Regulamento de 1914.
O Regulamento do Asylo, datado de 1863 não referenciava o conteúdo estudado pelos
meninos e meninas, constando apenas no Art. 29: “Uma vez completada a idade acima (seis
anos) e recolhidos os expostos ao Asylo, se lhes dará a instrução primária; depois da qual o
Mordomo procurará um mestre de qualquer ofício, hábil, de boa conduta, que queira receber
qualquer dos rapazes [...]” (ASCMB, Regulamento..., 1874, p. 11). Quanto às meninas
expostas, o Art.32 rezava: “[...] as meninas serão, depois da idade de seis annos, educadas no
Asylo, d’onde sahirão para casar, ou para companhia de alguma família capaz, debaixo de
contracto, ou ainda para viverem sobre si, se o quiserem, depois de completada maioridade.”
(ASCMB, Regulamento..., 1874, p. 12). Não constam informações sobre a carga horária de
aulas, bem como sobre o conteúdo e a metodologia de ensino.
Como todo currículo é um processo de seleção do que será ou não legitimado pela
escola, a omissão dos conteúdos curriculares adotados pode ser considerada um indicativo
do que de fato estava sendo enfatizado na educação oferecida às crianças. O formato da
educação tradicional, rigorosa e moralista, permeava o programa oficial de ensino baiano e
levava meninos e meninas a viverem de acordo com costumes e valores estabelecidos pela
sociedade, propalados nas escolas e no material didático. Como em todas as épocas, no
período em tela, a sociedade também se apoiava em valores e em sua difusão e
consolidação, esperando desempenhos que estivessem diretamente relacionados com as
capacidades de cada um, que deveriam ser “descobertas” e vivificadas no período de
permanência na escola e no convívio social.
156
Considerando-se que o currículo contribui para o processo de construção da
identidade do indivíduo, a escola era o espaço social em que isto acontecia. No caso das
crianças asiladas, este local era repleto de especificidades. Tal consideração remete ao
pensamento de Forquin (1993, p. 167) e sua análise sobre a instituição escola: “[...] a escola é
também um ‘mundo social’, que tem suas características de vida próprias, seus ritmos e seus
ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de transgressão, seu
regime próprio de produção e de gestão de símbolos.”
Em 1880 a Escola Interna recebeu livros fornecidos pela Província, o que
possibilitava aos alunos asilados conhecerem e manusearem o mesmo material utilizado nas
escolas públicas. A Escola prestava contas de sua ação pedagógica à Diretoria da Instrução
Pública. No ano seguinte, chegou a Santa Casa o ofício datado de 27 de julho de 1881,
expedido pelo Cônego D. Romualdo Maria de Seixas, Diretor da Instrução Pública na Bahia,
solicitando informações, até o fim do mês de outubro, sobre “[...] quaes as disciplinas que se
ensinão, qual a matricula e freqüência das aulas, em uma palavra, tudo quanto interessa à
instrucção”. (ASCMB, Correspondência..., 1881). Era o controle externo, do Estado, que se
repetiu ao longo dos anos, numa demonstração inequívoca do exercício de poder sobre as
ações da Santa Casa, a qual, como integrante do sistema social, não podia eximir-se do
cumprimento de leis e regras vigentes. Neste período, segundo Mattoso (1992, p. 200), o
currículo do curso primário na Bahia contava com: “leitura, escrita, gramática portuguesa,
aritmética, desenho, ciências naturais, religião, educação física e artes decorativas.”
Em conformidade com a análise de Foucault (1996), o Estado, como instância de
autoridade, fiscalizava e vigiava, ainda que ficasse aquém do necessário frente às carências
educacionais do país. Na obra A Ordem do Discurso, o autor afirma: “Todo sistema de
educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação de discursos, com
os poderes que eles trazem consigo.” (FOUCAULT, 1996, p. 44).
Alguns anos depois, na resposta do Mordomo
2
do Asylo, em 6 de outubro de 1884, ao
ofício enviado pela Associação Protectora da Infância Desamparada do Rio de Janeiro,
verificou-se que os 41 meninos expostos aprendiam leitura, escrita, catecismo, História do
Brasil, gramática, aritmética e noções de desenho linear. No tocante às 124 meninas e jovens
expostas, que podiam permanecer no Asylo até casarem ou serem alocadas para trabalhos em
casa de família, fábricas, entre outros locais, aprendiam leitura, escrita, catecismo, história
sagrada, gramática, aritmética, história do Brasil e trabalho manual. Este currículo era um
2
À época, Arnaldo Lopes de Lima ocupava aposição de Mordomo (ASCM, Relatório..., 1883-1884).
157
substrato reforçador de um sistema socioeconômico e político da instituição social, em cujo
interior ocorriam interações de natureza pessoal e interpessoal, demarcadoras de status e de
papéis de meninos e meninas pobres que precisavam aprender o elementar.
Ao longo do período em questão, nota-se que a especificação das disciplinas
estudadas revela a intencionalidade da educação propiciada, indicando o conjunto de
competências relacionadas ao ensino-aprendizagem e os objetivos a serem alcançados. Dentro
do sistema social em questão, fica evidenciado que as disciplinas estudadas eram consideradas
suficientes para a formação intelectual das crianças que, por sua própria condição
socioeconômica, dificilmente ocupariam posições sociais de destaque e que necessitassem de
grande cabedal intelectual.
A Escola Interna procurava seguir o programa oficial de ensino, ou seja, um currículo
das práticas cotidianas educacionais condizentes com o ensino oferecido na rede pública. Como
já citado, seguia a linha da Educação Tradicional, vigorando a concepção de que o aluno
precisava saber ler, escrever, contar e atividades outras, diferenciadas para meninos e meninas.
O ensino na Escola Interna merecia a preocupação dos membros da Mesa
Administrativa que, reconhecendo a importância da língua pátria, discordava que fosse
ministrada por uma Irmã de Caridade de origem estrangeira. Assim, conforme consta na Ata
de 20 de dezembro de 1892:
O Irmão Dr Daltro propõe: “proponho que se estabeleça uma eschola mixta primária
para educação dos expostos até 9 anos, visto que a experiência vae mostrando a
desvantagem de serem professoras da lingoa pátria as Irmãs de Caridade, que
ordinariamente nenhum conhecimento tem para ensina-lo.” O Irmão Dr. Menandro
apresenta a seguinte proposta: “Considerando que no Asylo dos Expostos é
descurado o ensino primário já por não ser dado o tempo preciso que é ocupado com
outros assumptos, já por não estar esse serviço confiado a pessoa habilitada,
proponho que a Provedoria entenda-se com a Superiora d’aquele Asylo e estudando
o assumpto, fique autorisado a resolver no sentido de ser esse serviço confiado a
uma Irmã brasileira, de habilitação na lingoa portuguesa, e tenha ela o tempo
necessário”. (ASCMB, Livro..., 1891-1895, p. 39).
O fato de a Mesa ter autorizado o Provedor a deliberar sobre o assunto não excluiu do
currículo as horas que eram dedicadas às tarefas de cada exposto e que o privavam de mais
tempo em contato com os livros e de desenvolver outras ações educativas.
No fim do Império e início da República, a política educacional concentrava-se no
fortalecimento do Estado, que vivenciou uma fase de mudança na estrutura política,
modernização na estrutura produtiva e diversificação no trabalho. Já foi mostrado como a
Constituição de 1891 determinou que aos estados coubesse a educação elementar e
profissional e assim, durante o período republicano, a Bahia, como os demais estados, teve a
158
instrução pública municipalizada. De acordo com Matta (2005, p.20), na Bahia, “A situação
da educação quase não mudou se compararmos com aquela oferecida na época do Império”.
No tocante à educação primária, continuou desvinculada dos segmentos sociais mais pobres.
Contudo as novas tendências da sociedade exigiam mudanças no problema do analfabetismo e
a escola passou a ser mostrada como fator de progresso e mudança social, tornando-se parte
das disciplinas estudadas aquelas que contribuiriam com conhecimentos de ordem social,
moral e cívica (MATTA, 2005).
A Escola Interna da Misericórdia não ficou imune às mudanças. O novo Regulamento
do Asylo, datado de 1914, trazia quatro artigos especialmente voltados para o ensino
ministrado em sua Escola, com o currículo definido e determinação de prazos e obrigações
para a atividade educativa.
Art. 8: O curso da escola primaria ou elementar constará de:
a) leitura, escripta e calligraphia;
b) ensino prático da língua nacional e grammatica;
c) arithmética até a regra de três; systema de pesos e medidas; systema métrico e
decimal, systema monetário brasileiro e dos principaes paizes;
d) instrução moral, civica e religiosa, cantos patrióticos;
e) gymnastica, exercícios physicos;
f) trabalhos manuaes.
Art. 9 - A escola elementar funcionará em todos os dias úteis em uma só sessão, das
9 às 2 horas, com intermissões de descanso e recreio com gymnastica e canto.
Art 10 - Os trabalhos escolares começarão a 2 de fevereiro e terminarão a 30 de
novembro.
Art 11- A Santa Casa dotará a escola com mobilia hygienica, material technico para
o ensino objectivo e o mais necessário à vida escolar. (ASCMB, Regulamento...,
1914, p. 7).
Observa-se que a educação básica ministrada possuía enfoques religioso, cívico e
higienista, como convinha a uma instituição católica, obediente às prescrições legais do
Estado e preocupada com as questões de saúde de seu alunado. Dentro desses preceitos,
buscava-se formar jovens e adultos que acreditassem que a sociedade dispunha de mesmas
regras para todos, que a pátria precisava do trabalho de cada um, e que Deus era um pai
equânime e justo.
Os alunos da Escola Interna estudavam matérias que visavam ao fortalecimento de
vínculos com a nação brasileira, adquirindo noções de civismo, tais como instrução moral e
cívica. Vale ressaltar que, mesmo o país vivenciando a secularização no ensino, a instituição
manteve sempre o ensino religioso e as práticas de devoção católica.
Com relação à educação física, de acordo com Souza (2000, p. 17): “A educação
física das crianças no Brasil emerge atuando na preparação do corpo feminino para a
159
reprodução dos filhos da pátria e na preparação do corpo do soldado tornando-o útil à pátria e
ao capital.” A ginástica passou a ser importante, em plena consonância com a concepção da
indissociabilidade de corpo e espírito.
A música passou a fazer parte do currículo, que pretendia melhorar a educação
primária, como elemento considerado cultural. As crianças aprendiam hinos patrióticos,
religiosos, cançonetas de cunho moral, freqüentemente executados nos festejos escolares e
momentos solenes, como nos exames realizados ao final do ano letivo.
O Regulamento traz indicações de Ensino Profissional, de caráter prático, para “[...] dar
aos asilados elementos de instrucção technica necessários para o desempenho de profissões em
que possam encontrar trabalho remunerador” (ASCMB, Regulamento..., 1914, p.7). O Artigo
12 era voltado para os meninos, que deveriam aprender: “[...] pintura mural a fresco, a colla e a
óleo; pintura de letras e taboletas marcenaria, sapataria, tornearia tipografia, brochura e
encadernação; música e canto, datilografia, jardinagem e horticultura, cultivo e conservação de
hortas, jardins, estufas e pomares.” (ASCMB, Regulamento..., 1914, p. 8).
Ainda em conformidade com o citado artigo, se fosse julgado conveniente, a
administração da Santa Casa poderia contratar o ensino técnico e profissional de outro
estabelecimento que possuísse oficinas aparelhadas e oferecesse “[...] as garantias
indispensáveis, no ponto de vista da instrucção profissional, e da educação physica e moral”
(ASCMB, Regulamento..., 1914, p. 8). Ficava evidente a importância que a instituição atribuía
ao conhecimento técnico e ao aspecto físico e moral que desejava garantir aos asilados,
mesmo quando aprendiam o ofício em outra casa de educação.
Os artigos 13 a 15, dedicados às meninas, estabelecia atividades consideradas
femininas:
Artigo 13. Os cursos profissionaes para o sexo feminino comprehendem:
A) serviço doméstico, asseio e arranjo de casa, trabalhos de cosinha, lavar e
engommar;
B) costura à mão e à machina, cortes e confecções de roupas, especialmente de
creanças e senhora;
C) bordados e rendas, à mão e à machina;
D) fabrico de flores e suas applicações;
E) preparo e ornamentação de chapéos;
F) desenho e pintura em setim;
G) musica e canto;
H) dactylographia. (ASCMB, Regulamento..., 1914, p. 8-11).
O Regulamento detalha o que se desejava das educandas no tocante a asseio pessoal e
do espaço físico, do trato dos afazeres da vida doméstica, numa clara demonstração de que
tais atividades contavam no currículo das aprendizagens para a vida futura no espaço
160
doméstico e profissional. O fato de incluir o conhecimento de datilografia sinaliza a
conformidade com a vida prática, de inserção no mercado de trabalho, que absorvia mulheres
em posições de subordinação em firmas e escritórios na cidade de Salvador, urbe orgulhosa de
seu porto e seu comércio.
O Regulamento previa no Art. 15: “Haverá annualmente uma exposição dos trabalhos
feitos nas diferentes officinas” (ASCMB, Regulamento..., 1914, p. 11). Esta exposição anual
possibilitava a venda dos produtos, sendo 20% para depósito em nome de cada uma na Caixa
Econômica. Como um sinal de mudança, a carga horária de aula ficou sendo a mesma para
meninos e meninas, corrigindo a distorção do Regulamento anterior. No Relatório da
Provedoria de 1914, apresentado à Mesa e à Junta, o método intuitivo, Lição de Cousas, já
citado, foi referenciado no ensino ministrado pela instituição (ASCMB, Relatório..., 1914).
Em sintonia com o pensamento republicano e as idéias contidas nos Pareceres de Ruy
Barbosa, o Regulamento traz a especificação dos móveis escolares, visando o conforto e a
higiene. Quanto ao material técnico, era considerado como valioso suporte na prática
pedagógica.
Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a educação foi alvo de novas discussões
e mudanças. Segundo Horta (1994, p. 145): “[...] a educação moral e cívica não aparecerá na
versão definitiva da Constituição promulgada em 1934”; contudo Vargas relacionou a “[...]
educação do povo com a glorificação da Pátria [...]”, em afirmação feita em agosto de 1933
“[...] num discurso pronunciado em Salvador” (HORTA, 1994, p.146), referendando a
necessidade de educar o indivíduo e capacitá-lo para o trabalho. Em conformidade com a
legislação educacional que reintroduziu o civismo e colocou como obrigatório o canto
orfeônico e a educação física, a Escola Interna, que buscava manter-se afinada com as
disposições legais, manteve-as em seu currículo e continuou a ensiná-las a seus alunos.
A Educação Tradicional, adotada pela Escola Interna do Asylo da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, pode ser definida como uma proposta educacional centrada no
professor que ensina a seu aluno. A palavra tradicional, derivada do latim tradere, significa:
entregar, passar para outro, transmitir (NOT, 1988, p. 23). De acordo com este autor, quando
aplicado à educação, o termo pode ter três significados: referindo-se ao processo, significa
transmissão do conhecimento, podendo falar-se de transmissão ativa, em oposição à
construção do saber pelo aluno; se a referência é o conteúdo, designa a utilização da tradição
constituída (obras constitutivas do patrimônio cultural) em oposição ao recurso aos materiais
do mundo moderno; se diz respeito à origem, designa o recurso a métodos que são antigos.
Estes três sentidos podem combinar-se de vários modos. Assim, considera-se uma
161
determinada atuação metodológica como tradicional se contiver pelo menos um destes três
pontos de vista.
No contexto da metodologia de ensino tradicional, o aluno seguia um modelo formal de
aquisição de conhecimentos, no qual se priorizava a memorização. A aula expositiva era o
momento de demonstração dos conhecimentos do mestre para a classe que, passivamente,
deveria ouvir e gravar os conteúdos. Todo e qualquer contexto escolar deveria seguir passos
pré-determinados e fixos, com sobrecarga de informações transmitidas ao aluno, tornando o
conhecimento pouco significativo e burocratizado. Nesta relação com o saber, aluno e professor
sustentam uma ação educativa repleta de autoridade versus subordinação, fornecimento e
seguimento de modelos comportamentais, morais, religiosos e sociais, não reconhecendo ao
educando o estatuto de sujeito, fonte de iniciativas e de ações, comprometendo o
desenvolvimento do processo de personalização do que aprende (SAVIANI, 2004b).
Ao mestre cabia ensinar o currículo, centralizado e rígido, que era apresentado na
modalidade de unidades isoladas. O processo didático enfatizava a repetição e a memorização
dos conteúdos, dentro de um tempo definido, o que muitas vezes dificultava o pleno
processamento da aprendizagem, com articulação e criticidade dos conteúdos. Os materiais
didáticos utilizados eram predominantemente os livros de texto, com conteúdos conceituais e
informativos, os quais o aluno memorizava para prestar contas durante o exame de avaliação
da aprendizagem, com forte conotação quantitativa. Ao professor cabia verificar os conteúdos
memorizados, valendo-se de exames orais e escritos na sala de aula ou em momentos solenes,
como será mostrado ainda neste capítulo (SAVIANI, 1984).
Como exposto, no Brasil, no século XIX, estiveram em voga os seguintes métodos de
ensino: o Individual, muito adequado à educação doméstica, em que cada aluno era atendido
individualmente enquanto os demais permaneciam sem controle; o método Castilho ou
simultâneo superou o método Individual e um só professor atendia vários alunos em
diferentes graus e aprendizagem, ou seja, uma classe multisseriada; o método Lencastre ou
mútuo, uma forma de ensino coletivo com um professor e os alunos mais capacitados
servindo de decuriões para os demais colegas. Posteriormente, foi adotado o método intuitivo
ou Lição de Cousas (NUNES, 1997).
A Escola Interna adotava o ensino baseado no Método Simultâneo ou de Castilho.
Assim, numa sala multisseriada, alunos de diferentes níveis aprendiam com um único
professor, como referenciado em capítulo precedente, com o apoio de alunas maiores,
consideradas aptas para o auxílio da prática docente. Para propiciar uma educação adequada,
em 1884, a Provedoria
162
Mandou a Irmã Superiora entregar ao professor Manoel Portugal duas turmas de 10
meninos a escolha d’elle para ensaiar o méthodo de João de Deus assistindo as
lições uma das Irmãs de Caridade que por sua inteligência possa aproveitar e depois
estabelecer na casa o sobredito méthodo, sendo nessa ocasião authorisada a mesma
Provedoria a fazer qualquer despeza com semelhante melhoramento. (ASCMB,
Relatório..., 1884-1885, p. 74).
O método João de Deus
3
, destinado a ajudar a aprendizagem da leitura, começou a ser
difundido em Portugal a partir de 1877; a Cartilha Maternal
4
, por ele publicada, foi
precursora de muitas outras cartilhas, e teve boa aceitação tamm no Brasil. Com a
decrescente aceitação do método de Castilho, o método de João de Deus começou a ser
divulgado no Brasil pelo positivista militante e professor de português Antonio da Silva
Jardim, despertando acalorados debates.
A Escola Interna adotou o método de João de Deus, tendo à frente o professor Manoel
de Portugal Castro; contudo ele permaneceu pouco tempo lecionando. No Relatório da
Provedoria de 1885, encontra-se uma carta datada de 28 de setembro de 1884:
Ilmº e Exmº
De dia para dia se vão agravando os meus padecimentos, portanto vejo-me forçado a
pedir a V.Ex. que me dispense de continuar a leccionar no Asylo dos Expostos.
Estou certo que a minha falta ali nenhum transtorno causará, tanto mais que há uma
Professora que já sabe perfeitamente o methodo. Confessando-me grato a todos os
favores que de V.Ex. tenho recebido, tenho a honra de assignar-e.
De V.Ex. venerador, criado e muito obrigado,
(Assignado) Manoel de Portugal Castro
A Mesa na sessão de 4 de janeiro e a Junta na de 1º de Março ficarão inteiradas.
Assim, aqueles 20 alunos da Escola Interna deixaram de contar com a atividade
docente do professor e também de um referencial masculino, voltando ao convívio quase
exclusivo com mulheres, que desempenhavam diversas funções.
A Escola Interna continuava a manter o método simultâneo na sala de aula e o novo
Compromisso da Santa Casa, datado de 1896, enfatizava, no parágrafo 5º do Art. 57, referente
ao Mordomo do Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia: “Ter o maior cuidado em que a
instrucção dada aos expostos e orphãs seja sólida e prática, e que as expostas e orphãs se
applique, segundo as suas aptidões aos misteres da vida doméstica” (ASCMB, Compromisso...,
1947, p.27). Não havia, portanto, uma referência a estudos formais e regulares.
3
João de Deus, poeta e professor, português (1830-1896), propôs um método de leitura na Cartilha Maternal,
adotada obrigatoriamente em Portugal em 1882 (A CARTILHA..., 2007;
MOTA, 2007).
4
Em Houaiss (2004, p. 638) encontramos a seguinte definição para o vocábulo cartilha: “livro que ensina os
primeiros rudimentos de leitura; carta do abc” e, por extensão, “qualquer compilação elementar”, como
também “livrete que contém rudimentos da doutrina cristã.” Etimologicamente, a palavra é formada por
‘carta’ + ilha, pelo espanhol cartilla, significando “pequeno caderno que contém as letras do alfabeto e os
primeiros rudimentos para aprender a ler; diminutivo de carta” (HOUAISS, 2004, p. 638).
163
A Educação Tradicional vigente não abria espaço para discussões sobre o indivíduo e
sua relação com a história; aliás, a história era apenas um conjunto de datas e fatos, oficial e
socialmente aceito e registrado como verdadeiro e imutável nas páginas dos livros didáticos e
documentos oficiais, não merecedor de olhar mais aguçado. A instituição, mesmo tendo
conhecimento de que a República pregava o ensino laico, continuou com sua educação em
bases religiosas, em conformidade com seus princípios. Ela também compreendia que o
processo educativo necessitava do equilíbrio físico e mental e mostrou-se preocupada com o
aspecto recreativo das alunas.
Outra necessidade chama agora por mais um sacrifício vosso, felizmente menor que
tantos outros a que, n’estes últimos annos, com tão philantropico atrevimento, vos
tendes abalançado.É o calçamento do pateo reservado à recreação das educandas, obra
que em nome da hygiene, tem-me iterativamente reclamado a mordomia da casa e seu
facultativo. Está orçado em 2: 600$.
Gastarão- se com o Asylo Rs 39:290$489. a sua
receita foi de Rs 2: 296$000. (ASCMB, Relatório..., 1875-1876, p. 8).
Em 1902 as atitudes da instituição continuavam diferenciadas para meninos e meninas,
consoantes com o pensamento de “superioridade” masculina, vigente na sociedade: enquanto
eles freqüentavam as aulas durante 5 horas por dia, empregando o restante do tempo em
trabalhos domésticos e no jardim, as meninas freqüentavam apenas 3 horas por dia, podendo
as mais aplicadas aprender desenho e pintura nos dias de domingo, assim como a tocar piano
e harmonium. Afinal, à mulher cabia o papel de esposa e mãe, abrigada na sombra do homem,
provedor de assistência para a família. De acordo com Passos (1999, p.116): “Sob o véu da
proteção e do zelo, estabelecem para elas características que são antagônicas às masculinas,
impostas ‘através da relação de força que os une e os opõe’.” Assim, meninos e meninas,
futuros homens e mulheres, eram desde cedo direcionados à aceitação e reprodução dos
papéis sociais.
A espacialidade do Asylo foi colocada a serviço do processo educativo com a
unificação de dois salões do pavimento superior. Em um deles, a sala São José, em 6 de junho
de 1924, ocorreu a inauguração da Sala de Estudos e da Biblioteca, inegavelmente
equipamentos que podiam contribuir com a formação dos alunos
5
. Ao longo de todo o período
pesquisado, a Santa Casa investiu no imóvel, visando adequá-lo às necessidades das crianças
que ali viviam e que ela se propunha a educar.
A criança, enquanto aluna, é o ator social que ocupa o centro das reflexões aqui
tecidas, pois todos os demais indivíduos que povoavam o mini-universo do Asylo ali estavam
5
Não foram localizados documentos indicando acervo bibliográfico e a rotina de utilização.
164
por conta dela, criatura que necessitava de cuidados físicos, morais, intelectuais e espirituais.
Meninos e meninas, predominantemente estas últimas, em sua maioria pardas, escolares da
Santa Casa de Misericórdia, fizeram parte da sólida estrutura social de uma cidade tradicional
e conservadora, ao mesmo tempo desejosa de progresso e da eliminação de mazelas sociais
como o desemprego, a mendicância, a vadiagem e a prostituição. Estes escolares, aos
cuidados de professoras diplomadas e mestras de saberes práticos, percorreram caminhos nas
salas de aula e de oficinas da Escola Interna do Asylo dos Expostos que os prepararam para a
vida fora de seus muros.
4.1.2 Avaliação de conhecimento
Como em qualquer estabelecimento de ensino, os alunos da Escola Interna eram
submetidos a exames, que se constituíam em momentos solenes, aparatosos, com argüições,
durante as quais o aluno mostrava seu conhecimento. Era um momento repleto de expectativa
e ansiedade para alunos, mestres da casa e os da banca examinadora, familiares, convidados
de várias representações de segmentos sociais e os dirigentes da Santa Casa.
A Educação Tradicional, com sua aprendizagem mecânica e receptiva, tinha na
avaliação uma de suas premissas básicas. Na Escola Interna, a avaliação, sendo tradicional,
pautava-se nos resultados da aprendizagem e o sistema de avaliação constituía-se de argüição
feita pela banca de exames diante do público convidado. Pode ser tomado como exemplo do
processo de exames anuais o que ocorreu no dia 27 de junho de 1886, conforme consta no
Relatório apresentado à Mesa e Junta da Santa Casa da Misericórdia, na presença do Provedor e
de sua esposa, membros da Irmandade da Misericórdia e a Comissão Examinadora, formada
pelos Irmãos da Misericórdia: Conselheiro Dr. Cincinato Pinto da Silva, Major Antonio de
Souza Vieira, Dr. Manoel de Assis e Souza e o Padre Mestre Alexandre Saguet. Entre os
problemas de saúde e pedidos de desculpas, os três primeiros afastaram-se, sendo substituídos
pelos Irmãos Comendador Manoel Joaquim Alves, Professor Joaquim José da Palma, Mordomo
do Hospital, Victorino Jose Pereira Junior, Padre Saguet e a Irmã Superiora, Irmã Lasnier.
Fica a pergunta: quais os critérios que a Provedoria usou para incumbi-los da tarefa de
realizar o exame de classificação? Excetuando Joaquim José da Palma, identificado como
professor e da Irmã Lasnier, que era a Superiora do Asylo, não constam indicações sobre
prática docente dos demais. Em momentos futuros, a banca de exames seria integrada por
165
professoras da casa e da municipalidade, numa clara demonstração da articulação entre as
esferas pública e privada e da priorização de avaliadores com formação docente.
As apresentações literárias precediam o exame e era um momento que sempre
mereceu referências em todos os Relatórios da Provedoria. Em 1886 não foi diferente:
Antes de ter começo a argüição em grammatica, em religião, aritmética, desenho
linear, cosmografia, etc., apareceram 3 expostas, menores de 6 annos, mais ou
menos, de nomes Dyonisia de Mattos, Tereza de Mattos e Benedicta de Mattos, e
dirigindo-se para a Provedoria seguiu-se um dialogo entre ellas de um facto da vida
de Santa Rosa de Lima, que muito agradou, recitando depois uma allocucao a
Exposta Josephima, de 14 annos, dirigida ao Exmo Sr Conde Provedor, que foi
também bastante aplaudida [...] (ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p. 83).
O Relatório registra que a Irmã Margarida Labanne argüiu as 20 alunas, que
responderam “sem discrepância”, o que causou satisfação a todos.
Findo os exames passou-se ao julgamento pelo jury sobre as provas apresentadas
pelas examinadas; o qual, depois de acordarem entre todos os seus membros,
apresentaram ao Exmo. Conde Provedor os nomes das 19 expostas que mais se
distinguiram, e por tanto com direito aos prêmios concedidos pelo mesmo Exm. Sr.
e são ellas as seguintes: Responderam satisfactoriamente em todas as matérias em
que foram argüidas: Josephina de Mattos, Flora de Mattos, Escholastica de Mattos,
Joanna Baptista de Mattos e Maria Francisca de Mattos. (ASCMB, Relatório...,
1886-1887, p. 82-83).
Isso se articula com o que diz Foucault (2007, p. 154) sobre a essência do exame:
O exame combina técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É
um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.
Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são
diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina,
o exame é altamente ritualizado.
A preocupação maior e mais evidente era alcançar o padrão demonstrativo dos
conhecimentos ministrados pelas mestras e adquiridos/assimilados pelos alunos, os quais,
devidamente disciplinados, sabiam da importância do exame. Segundo Foucault (2007, p.
143): “O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o
olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é
específico, o exame.”
Os exames escolares, descritos em diversos Relatórios da Santa Casa, trazem o
registro da satisfação com a festa, que incluía missa, exame público, torneio literário,
premiação, comidas, bebidas e doces para todos. Para Goffman (1974), em seu estudo sobre
instituições totais, os momentos festivos, após os exames, significavam um pouco de
166
liberdade e solidariedade, quando alunos, mestres e visitantes aproximavam-se e
comunicavam-se de forma mais natural que no rígido cotidiano. Ainda que se preservasse da
opinião pública constante, o Asylo não desejava o isolamento, até porque a sociedade podia
ser colaboradora, parceira e sustentáculo.
Durante o exame, o aluno provava igualmente seu autocontrole, sufocando o
nervosismo diante de uma platéia que também o examinava, aplaudia ou desaprovava.
Principalmente para os meninos, a demonstração de controle era importante, pois a sociedade
dizia que “homem não chora”, tinha que ser forte. As meninas, ao contrário, eram
consideradas “fracas” e podiam chorar sem maiores censuras sociais.
Fica evidente que o exame era uma forma de verificar se o aluno reteve o
conhecimento repassado pelo professor e não um momento de reelaboração do conhecimento;
serve até hoje para a escola controlar seus alunos, de uma maneira que extrapola o contexto
didático-pedagógico, medindo e quantificando a aprendizagem, mas alcança também o
aspecto político, já que seu resultado provoca sensação de vigilância e sanções.
O exame não se contenta em sancionar um aprendizado; é um de seus fatores
permanentes: sustenta-o segundo um ritual de poder constantemente renovado. O
exame permite ao mestre, ao mesmo tempo em que transmite seu saber, levantar um
campo de conhecimentos sobre seus alunos. Enquanto que a prova com que
terminava um aprendizado na tradição corporativa validava uma aptidão adquirida
a ‘obra-prima’ autentificava uma transmissão de saber já feita o exame é na
escola uma verdadeira e constante troca de saberes: garante a passagem dos
conhecimentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno um saber destinado e
reservado ao mestre. A escola torna-se o local de elaboração da pedagogia. E do
mesmo modo como o processo do exame hospitalar permitiu a liberação
epistemológica da medicina, a era da escola ‘examinatória’ marcou o início de uma
pedagogia que funciona como ciência.
(FOUCAULT, 2007, p.155).
Após o exame, devidamente registrado com notas e desempenho, o rendimento do
aluno estava documentado, sujeito à vistoria, manuseio e considerações. Era o documento que
ficava para a posteridade, como indicador do brilho ou insucesso do aluno, como também do
sucesso ou fracasso da mestra em prepará-lo para a avaliação.
O ano de 1887 ocorreu sem a cerimônia dos exames das expostas e exibição de seus
trabalhos em virtude do falecimento do Conde de Pereira Marinho. Além de Provedor desde
1881, o conde era figura importante no cenário social e político da Província, homem enriquecido
com o comércio e o tráfico de escravos (ASCMB, Relatório..., 1887-1888). Como as atividades
festivas não cabiam num ano de luto para a instituição, o exame dos alunos foi adiado e,
certamente, realizado de forma menos pública, privando os asilados de uma oportunidade de
contatos externos e, ao mesmo tempo, moldando-os para as conveniências sociais.
167
Um importante elemento do processo de avaliação era a premiação dos alunos. O Art.
48 do Regulamento do Asylo de 1863 observava: “[...] a Mesa estabelecerá prêmios que
deverão ser distribuídos por aquelas das Expostas que sobressaírem em qualquer ramo de ensino
e trabalho, ou por seu exemplar comportamento.” (ASCMB, Regulamento..., 1874, p. 16). Tal
determinação foi cumprida ao longo dos anos, conforme as transcrições:
[...] ainda mais, desejando V. Ex. de qualquer maneira animar o desenvolvimento da
educação das Expostas, e tendo em vista a disposição dirigiu-se em ofício de 4 de
agosto a respectiva Mordomia, recomendando a efetivação de tão proveitosa
disposição, empregando para isso toda a sua solicitude afim de ter lugar todos os
anos a exposição de que trata o referido artigo, e propondo a Meza competente a
natureza dos prêmios.
[...]
Assim, a Provedoria (e não pela Santa Casa) em 29 de agosto de 1882, premiou 10
meninas “com uma medalha e o seu competente cordão de ouro, tendo cada
medalha, em número de dez, a letra inicial do nome de batismo da respectiva
premiada”. (ASCMB, Relatório..., 1883-1884, p. 49).
Mesmo com o novo Regulamento do Asylo, em vigor a partir de 1914, a Escola
Interna seguia seu padrão de exames e premiação:
Procedemos no dia 21 de novembro, a exames severos de classificação, presididos
por Marcolino Dantas e João de Barros, capellães deste Asylo e do Hospital Santa
Isabel, os quais ficaram satisfeitíssimos e declararam não ter esperado tanto dadas as
aprovações. (ASCMB, Relatório..., 1914, p. III
).
A premiação sempre despertava sentimentos: expectativa, alegria, plenitude, sensação
de meta alcançada ou dever cumprido; também podia despertar o temor, a angústia, a sensação
de fracasso ou de exclusão. Foucault (2007), em sua obra Vigiar e Punir - História da Violência
nas Prisões, aborda exaustivamente a temática de como as já citadas disciplinas atuam em
instituições “completas e austeras”, moldando e determinando as ações dos indivíduos.
Para os alunos e alunas da Escola Interna, que viviam sob estrito e permanente controle,
o momento do exame e da premiação era um instante em que os premiados destacavam-se,
sobressaíam-se da massa, eram vistos pelos da casa e pelos visitantes como pessoas capazes,
inteligentes e obedientes. Funcionando como reforçador do comportamento desejado para o
aluno e pela instituição, o prêmio tinha a significação de fazê-lo ocupar um lugar especial, pois,
como diz Foucault (2007, p.151): “A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das
promoções que permitem hierarquias e lugares, pune rebaixando ou degradando.”
Os exames eram realizados anualmente. Se o aluno(a) não se saísse bem, não
participava nos torneios literários seguintes, para fazer uma alocução a qualquer autoridade,
168
enfim, para realizar uma ação significativa diante de seus pares e visitantes; ele(ela) poderia
sentir-se excluído do seleto grupo que executou música, cantou, declamou, proferiu discursos
e orações ou encenou peças de cunho moral. Assim, a sensação de exclusão poderia ser
acentuada pela percepção de que, “não sendo especial”, não desfrutaria de nenhum privilégio
quando a festa acabasse e a rotina se impusesse, implacavelmente.
No tocante à punição por mau desempenho nos exames, não foi localizado nenhum
documento no qual constasse a regulamentação de penas ou sanções para o aluno da Escola
Interna. Contudo, como em qualquer instituição que se disponha a educar, a prática pedagógica
contava com princípios disciplinares. Já foi exposto no capítulo precedente o cotidiano da
Escola Interna, com toda a sua carga de disciplinamento, poder e saber que perpassavam a
prática pedagógica. No dia-a-dia da sala de aula, na relação com colegas, professoras e
serventes, os alunos estavam sob a vigilância permanente que lhes moldava as ações. Como
parte do Asylo, na Escola Interna, todas as professoras, mesmo as que viviam fora dos muros da
instituição e chegavam para as aulas formais e de prendas e ofícios, estavam imbuídas das
regras do Regulamento. Nem o Regulamento de 1863, nem o de 1914 explicitavam a questão
disciplinar, ou seja, em que código de conduta as Irmãs, professoras e mestras baseavam-se para
classificar as condutas indesejadas e qual a punição correspondente a cada uma.
Como na maioria das instituições similares, a ritualização do processo disciplinar na
Escola Interna existia baseada no que era o lastro filosófico da instituição: a caridade cristã.
Sendo assim, deveriam estar excluídos os castigos físicos, a agressão verbal, a humilhação e a
afronta ostensivas, não usando o corpo como objeto de sofrimento. Foucault (2007, p. 79-80),
ao estudar as punições, argumenta com toda a propriedade:
A punição não precisa, portanto, utilizar o corpo, mas a representação. Ou antes, se
ela tem que utilizar o corpo, isto o será na medida em que ele não é tanto o sujeito de
um sofrimento, quanto o objeto de uma representação: a lembrança de uma dor pode
impedir a reincidência, do mesmo modo que o espetáculo, mesmo artificial, de uma
pena física pode prevenir o contágio do crime [...] É a representação da pena que
deve ser maximizada, e não sua realidade corpórea.
O aluno deveria ser educado pela fala, pela repreensão, pelo olhar vigilante, pela
exigência à observação de regras comportamentais, tais como ordem, asseio, modéstia,
humildade, silêncio, honestidade, cumprimento dos deveres escolares, religiosos, domésticos,
entre outras. Como citado, não foi localizado documento que indicasse as punições para as
infrações, independente de seu grau de gravidade; tomando por base as sanções de instituições
similares, certamente, elas poderiam variar desde a saída da fila, à repreensão em particular ou
em público, privação de recreio, passeios, jogos, entre outras.
169
O estabelecimento de limites de circulação certamente existia, como em toda casa
asilar: locais interditos aos expostos/alunos, tais como a ala reservada às Irmãs de Caridade,
despensa, almoxarifado, entre outras, havendo dias e horários específicos para a circulação em
espaços a eles destinados como a Capela, a sala de costuras, as oficinas, dentre outros.
Conforme já citado, os alunos eram levados a adotar um código de conduta com
valores e regras socialmente aceitos. A explanação de Foucault (1998, p. 28) sobre moral é
útil para o entendimento do que acontecia na Escola Interna:
Por ‘moral’ entende-se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação
às regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual
eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta; pela
qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles
respeitam ou negligenciam um conjunto de valores; o estudo desse aspecto da moral
deve determinar de que maneira, e com que margens de variação ou de transgressão,
os indivíduos ou os grupos se conduzem em referência a um sistema prescritivo que
é explicita ou implicitamente dado em sua cultura, e do qual eles têm uma
consciência mais ou menos clara.
Assim sendo, meninos e meninas, desde cedo eram educados para a estrita observação
das regras e valores que permeavam todo o cotidiano da sala de aula e do Asylo, visando o
cumprimento de papéis e a introjeção de valores, e também para o exame do sucesso de seus
desempenhos cotidianos de observância ou resistência às regras adotadas pela instituição.
Na intenção de educar suas crianças, a instituição também buscava preservá-las da
imoralidade que atingia as crianças e os moleques que viviam sem educação, aspecto
analisado por Ariès (1981) em sua obra sobre a criança e a família. Na sociedade de
Salvador, do final do século XIX e início do XX, crianças que viviam à toa, sem abrigo
familiar ou institucional, eram consideradas menores vadios, perigosos para a tranqüilidade
pública e a segurança social. Rodrigues (2003) relata que o aparato policial era usado para
capturar os menores e dar-lhes destinação apropriada: Escola de Aprendizes Marinheiros e
mesmo a Casa de Correção destinada aos adultos, já que só em 1927 foi criado o Código de
Menores.
O ano de 1914, com D. Amélia Rodrigues à frente do Asilo, trouxe a constatação de
que nem tudo era tranqüilo e significava sucesso na prática educativa da Escola Interna,
principalmente na antiga questão do aproveitamento escolar dos meninos:
[...] é de justiça deixar aqui um voto de louvor às zelosas professoras [...]
Não tendo elas podido, apezar de seus esforços, apresentar alumnas promptas para
os exames finaes em todas as matérias do ano primário, que segue o programa
oficial [...] Dos 23 meninos matriculados, nenhum foi capaz de prestar exames
(ASCMB, Relatório..., 1914, p. III).
170
A aprendizagem dos meninos preocupava a Superiora, visto que nenhum dentre os
23 matriculados nesse ano foi considerado em condições de prestar exame, situação
frustrante para qualquer educador. As professoras tiveram o reconhecimento de seu esforço
e dedicação registrados pela Superiora no Relatório, mas é sabido que tais elementos não
são suficientes para assegurar o êxito da atuação docente. Nóvoa (2002, p.23), ao analisar o
trabalho docente, diz: “Ninguém ensina a quem não quer aprender [...] o problema torna-se
mais complicado se atentarmos à circunstância de a presença do aluno na escola não ser
produto de um acto de vontade, mas sim de uma imposição social e familiar.” Tal
consideração, válida para a análise de qualquer unidade escolar, em qualquer recorte
cronológico, deveria merecer atenção mais acurada das instituições de ensino, devido às
conseqüências acarretadas para docentes e discentes.
Será que em algum momento a Inspetoria de Ensino percebeu que o exame, incidente
sobre corpos e produtos, era um mecanismo capaz de observar a capacidade de cada corpo e
de cada mente sujeita às disciplinas, assunto posteriormente tão estudado por Foucault?
Meninos e meninas eram examinados para a medição do conhecimento dos conteúdos
formais, mas na Escola Interna do Asylo eles também eram avaliados quanto à execução das
prendas artesanais que faziam parte do currículo.
4.1.3 Avaliação das prendas artesanais
Tão importante quanto avaliar a memorização dos conteúdos disciplinares, era
indispensável a avaliação do que as meninas aprenderam a executar no campo das prendas
artesanais, num contexto em que a mulher deveria estar apta ao desempenho das tarefas
domésticas em seu futuro lar ou como empregada em casa de família, ou mesmo executar os
trabalhos para viver dignamente com o lucro auferido.
Os exames de conhecimento dividiam a cena com a exposição dos trabalhos manuais,
apresentados para a admiração de todos. Fazia parte do primeiro Regulamento do Asylo que
os trabalhos artesanais confeccionados pelas meninas fossem exibidos.
Art. 48: A Mesa estabelecerá prêmios que devão ser distribuídos por aquellas das
expostas que sobresahirem em qualquer ramo do ensino e trabalho, ou por seu
exemplar comportamento.
No dia 8 de Setembro de cada anno, terá logar uma exposição de todos os objectos
executados ou fabricados pelas expostas que concorrerem aos ditos prêmios,
171
declarando-se em rotulo pendente de cada um delles o nome e idade de quem o tiver
produzido.
Ao Provedor cabe especialmente ordenar e promover a referida exposição, e distribuir
com solemnidade os prêmios que, a juízo de peritos devão ser conferidos. Os prêmios
por comportamento exemplar serão dados pelo Provedor, sobre informações do
Mordomo e da Superiora. (ASCMB, Regulamento..., 1863-1864, p. 16).
Os Relatórios da Santa Casa podem bem expressar o quanto o cumprimento do citado
artigo era marcante para alunas, mestras e demais pessoas envolvidas nos exames. Como
forma de estimular os comportamentos desejados, em 1884, a Provedoria do Conde de Pereira
Marinho instituiu uma premiação a suas expensas pessoais.
No anno de 1884 a 1885 a Provedoria estabeleceu um premio de 1:000$000 a
expensas suas, em favor de 10 meninas que dessem prova de real adiantamento em
trabalhos de costuras e nos estudos escholares, prêmios que deverão ser entregues
em uma Caderneta da Caixa Econômica, garantida pelo governo em 29 de junho, dia
em que são expostas as obras de artefacto dos Asylados. (ASCMB, Relatório...,
1889-1890, p. 79).
No ano de 1885 constam no Relatório os nomes das alunas que se distinguiram nos
bordados a ouro, flores, bordados em tecidos, sapataria, costuras, serviço doméstico:
No ano econômico próximo passado foram 20 as Expostas que fizeram exames de
instruccão primaria e prendas, e entre elas algumas em tradução de francês e
geografia; obtendo 10 o premio de 100$000 para cada uma e a distinção da cruz azul
ferrete que ornam as opas da Irmandade, que as mandou collocar sobre o peito
esquerdo das mesmas; e 10 com menção honrosa e mais tarde com 50$000 cada
uma; quantias estas que foram recolhidas a Caixa Econômica garantida pelo
Governo, sendo todos estes prêmios expontaneamente oferecidos pela Provedoria de
seu bolso, a fim de executar a salutar disposição do art. 48 do Regulamento de 21 de
marco de 1863. (ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p. 82).
O Relatório da Provedoria do citado ano de 1886 mostra, na página 84, como eram
conduzidas tais avaliações: a tudo isso se seguia um “[...] lauto jantar aos expostos, ao som do
vasto repertorio da musica do corpo policial”.
No salão de aulas onde estavam em exposição os trabalhos feitos pelas meninas:
compunham-se elles de bordados brancos e a ouro, crochets, tecidos, tapetes,
almofadões, flores, calcados, etc. etc.
Pelos trabalhos de prendas que apresentaram Maria Bernarda De Mattos, Emilia
Luiza de Mattos, Maria Paula de Mattos; Pelos serviços de sapataria, Honorina de
Mattos; Pelos serviços domésticos: Lydia de Mattos. Alem destas, a Comissão
julgou merecedoras de menção honrosa Mathilde de Mattos, Elisa Maria de Mattos,
Josephina de Mattos, Helena de Mattos, Gertrudes de Mattos e Maria Epiphania de
Mattos que no anno anterior foram premiadas e que agora mostraram-se com
bastante desempenho e habilitações; bem como Antonia Fausta de Mattos e Victoria
de Mattos a cada uma das quais também offereceu S.Ex. um medalhão com seu
competente cordão de ouro, pelos trabalhos que apresentaram. De tudo isso lavrou-
se uma acta,que adiante vae transcrita, a qual foi assignada pelo Exm Provedor e
pelos Membros da Comissão. (ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p. 83).
172
Relatórios de anos subseqüentes trazem o registro dos rendimentos auferidos nas
vendas dos produtos confeccionados pelas expostas, que eram revertidos na “[...] compra de
vestuários e aviamentos para os artefactos” (ASCMB, Relatório..., 1901-1902, p. 26). No
Relatório de 1914 (ASCMB, Relatório..., 1914, p. IV) também são encontradas referências às
produções artesanais das asiladas no Art. 15: “Haverá annualmente uma exposição dos
trabalhos feitos nas diferentes officinas”. E ainda:
[...] do valor realisado pela venda de cada trabalho, caberá, depois de deduzida a
despeza do material empregado, 20 para as educandas que tomarem parte na
execução, devendo essa quantia ser depositada na Caixa Econômica, numa caderneta
em nome das mesmas, pela Provedoria. (ASCMB, Relatório..., 1914, p. 11).
A premiação em dinheiro para as expostas, devidamente comunicada à Superiora,
foi concedida como forma de incentivar aquelas que se destacassem no estudo, nas costuras,
bordados e outras prendas domésticas. Por mais que agradasse à argüida receber um valor a
ser depositado em seu nome, a simbologia de colocar sobre o peito a distinção da “[...] cruz
azul ferrete ornam as opas da Irmandade da Misericórdia” (ASCMB, Relatório..., 1886-
1887, p. 82) funcionava como uma marca pública do merecimento, que poderia ser
transportada no próprio corpo, exibido em sala, pátio, refeitório, enfim, funcionava
explicitamente como indicativo do valor a ela atribuído. O mesmo se aplica para o
recebimento do medalhão de ouro com a letra inicial do nome de batismo. A cruz e o
medalhão eram peças adornativas, simbólicas, que as colocavam visíveis naquele universo
pouco visto pelos de fora.
Fica evidente que o sistema de premiação funcionava como estímulo para reforçar as
atitudes consideradas proveitosas e desejadas pela instituição. Este sistema, segundo Foucault
(2007, p. 155), faz da escola “[...] uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que
acompanha em todo o seu comprimento a operação de ensino”. Certamente, como em
qualquer instituição semelhante, o sistema de premiação e castigo fazia parte do cotidiano,
como forma de anular ou minimizar os comportamentos indesejáveis e reforçar os
considerados socialmente válidos e apreciados.
Para Foucault (2007), o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera
simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo, que é
uma realidade biopolítica. A sociedade capitalista, numa clara compreensão e desejo de
controle, fez investimento sobre o biológico, disciplinando os indivíduos para a observação
das normas e padrões sociais desejados.
173
Ao longo dos anos, algumas alunas destacaram-se nos exames e nas comemorações
pela inteligência, voz melodiosa, habilidade manual, chegando a ser nominalmente citadas
nos Relatórios:
Seguiu-se um gracioso torneio literato-comico, em que, mais uma vez, os gentis
alunos deram mostras de sua inteligencia e de sua muito e proveitosa applicação.
Merecedes interessante criança de 5 anos, cantou com voz de ave canora e meiga a
linda cançoneta - a Boneca. Maria da Conceição Cavalcante, com gestos educados e
dicção boa e disciplinada, recitou a poesia ‘O meu dever”. Poz remate a estes
festejos
uma interessante comedia intitulada “O anjo da Terra [...] (ASCMB,
Relatório..., 1913, p. 8).
O Asilo interessava-se pelas expostas que revelassem alguma aptidão especial, como
evidencia o relato a seguir:
[...] Adriana, reconhecida vocação para a música, e já com bons princípios,
matriculada na “Escola de Música Deolindo Fróes”, acaba de conseguir, no exame
final, agora em 1922, colocação entre as classificadas em primeiro lugar, e, na festa
do enceramento, deu prova pública, perante os convidados, do seu aproveitamento,
executando diversos números do programa litero-musical. (ASCMB, Relatório...,
1923-1924, p. 49).
Em 14 de janeiro de 1924 foi dirigido oficio à direção da Escola Remigton de
datilografia, solicitando uma vaga para a asilada Regina de Mattos, “[...] para aproveitar as
pequenas que se mostram capazes de receber educação profissional [...] Não tendo as
professoras podido, apezar de seus esforços, apresentar alumnas promptas para os exames
finaes em todas as matérias do ano primário, que segue o programa oficial [...]” (ASCMB,
Relatório..., 1923-1924, p.XXII). Em 1925 a citada escola acolheu outra exposta, registrando-
se que o Asylo já tinha duas alunas diplomadas em datilografia, conhecimento importante na
época para os trabalhos no mundo exterior.
Vale lembrar, em relação aos meninos, que não exibiam suas prendas, pois a
instituição não dispunha de oficinas para os trabalhos artesanais. No Relatório de 1884
encontra-se o registro referente a esta lacuna: “[...] conviria fazer o mesmo com os meninos;
carpina, dirigido por mestres de bons costumes, sob a vigilância da Irmã Superiora”
(ASCMB, Relatório..., 1884-1885, p. 66). De forma mais detalhada, dois anos depois,
Arnaldo Lopes da Silva Lima, então Mordomo do Asylo, fez o registro de sua preocupação
com a falta de tal aprendizado por parte dos meninos:
[...] para complemento do renome de que goza o Asylo, converia tomarem-se medidas
no sentido de garantir aos expostos do sexo masculino um futuro para sua subsistência,
como é garantido aos do outro sexo, que vivem e envelhecem debaixo do manto da
Santa Caridade de Nossa Senhora da Misericórdia, visto serem todos filhos desta Santa
174
Instituição creada pelo immortal João de Mattos de Aguiar, ampliando por assim dizer a
idéia do art. 24 Regulamento respectivo. Não lembraria a acquisição de um prédio
apropriado para estabelecer-se um Lyceo de Artes e Officios, por que acarretaria
despezas, mas sim para um ensaio, que se mandasse fazer na entrada do Asylo de n.S. da
Misericórdia, ao lado da Capella, um commodo com dous pavimento onde no primeiro
andar fossem accomodados os expostos que forem attingindo a edade de 12 annos, com
pessoa encarregada de os dirigir, que deverá ser de reconhecida moralidade, sob a
fiscalização da irmã superiora e do respectivo mordomo, com regulamento especial.
No pavimento térreo se estabelecera uma officina de carpina ou de marcenaria, onde
deverão elles se applicar aos trabalhos dessa arte, preparando peças de obras à
proporção que se forem habilitando. Poderá também haver uma secção de pedreiro,
de onde saião para as obras do mesmo Asylo, do de S.João de Deus e do Hospital de
Caridade, devendo ser acompanhados dos respectivos mestres para isso
contractados, tanto na ida como na volta. A comida para elles nestes lugares, deve
ser fornecida pelo estabelecimento em que estiveram trabalhando.
Poder-se-há também crear officinas de sapataria e de alfaiataria, bem como uma banda
de musica, cujos instrumentos pertencerão a Santa Casa, estimulando assim o gosto
dos mesmos expostos para as artes. Logo que tenhão direito a receber qualquer quantia
pelo seu trabalho, será a quantia dividida em tres partes, uma para as despesas do
estabelecimento, outra para indemnizar a importância da ferramenta que lhes ficará
pertencendo, sendo-lhes entregue o restante, e a última será recolhida a caixa
Econômica garantida pelo Governo, para seu pecúlio que lhes sera entregue quando
atingirem a maioridade, epocha em que se poderão retirar do estabelecimento, caso
queirão, e dispor do seu pecúlio. (ASCMB, Relatório..., 1888-1889, p. 46).
Nos Relatórios da Provedoria dos anos seguintes (1890 a 1923) continua o estribilho
da necessidade das oficinas. Em 1914, a Superiora do Asylo, D. Amélia Rodrigues, cita a
existência de uma “[...] sapataria mal situada e não apropriada e conveniente. Nessa officina
aprendem somente 4 meninos, dois dos quais tem aproveitado bastante, já podendo fazer, por
si sós, um par de sapatos completo, com quanto que não muito bem acabado” (ASCMB,
Relatório..., 1914, p. IV). Diante do exposto, as boas intenções da construção de oficinas para
atividades artesanais, bem como para a formação da banda musical, não chegaram a ser
efetivadas e os meninos continuaram a ser encaminhados para instituições congêneres e casas
dos mestres de ofícios que os quisessem acolher.
Ao longo dos anos, a atividade educacional da Santa Casa continuou acompanhada
pela Inspetoria Geral do Ensino do Estado da Bahia, mediante a solicitação de mapas de
freqüência e aprovação de alunos para a elaboração da estatística escolar do estado. Em 10 de
abril de 1923 e 21 de julho de 1924 a Escola Interna foi vistoriada pelo Delegado Escolar do
1º Distrito do Estado, Dr. Alberto de Assis que assim se expressou: “Com meus applausos
pela obra do Bem, que se cultiva nessa casa, ficam também os preitos de admiração pelo zelo
e asseio que são apanágio da actual direção [...]” (ASCMB, Relatório..., 1925-1926, p. IX).
Os alunos da Escola Interna obedeciam à rotina escolar de aulas, tarefas, exames
quantitativos dos conhecimentos, bem como ao que era parte da programação educacional da
instituição: aprendizagem e execução de ofícios condizentes a cada sexo, reproduzindo o
175
comportamento de todos os que os antecederam, pois a maioria das regras escolares
permanecia solidamente estruturada.
4.1.4 Os sujeitos da educação
Todo o processo educacional pressupõe uma relação de aquisição de conhecimentos
de qualquer natureza: erudito, técnico, científico, religioso, do senso comum ou cotidiano. A
aprendizagem contínua faz parte do viver humano que sofre os impactos das constantes
mudanças desde a infância até a velhice, e pode se dar em momentos de solidão e também de
intensa interação social. Segundo Ariès (1981), a concepção de que a criança deveria ser
criada e educada no espaço escolar fazia com que ela deixasse de estar “misturada” aos
adultos; contudo, seriam os adultos que estariam encarregados de seu processo educacional.
A figura do professor ou mestre-escola era a representação da pedagogização dos
conhecimentos, aquele que ensinaria à criança o que fosse julgado importante e necessário a
sua formação intelectual. Assim sendo, aluno e professor são as figuras centrais no mosaico
da educação, mesmo que não lhes caiba a escolha do conteúdo a ser ensinado/estudado e a
forma como essa prática deveria acontecer.
Na Escola Interna os sujeitos da educação eram os alunos, as mestras de classe, mas
também as outras pessoas que contribuíam ativamente para que o trabalho acontecesse a
contento. Assim sendo, podem ser incluídos nesta relação: o Mordomo, a Superiora, o
Provedor, os integrantes da Irmandade da Misericórdia, as Irmãs de Caridade, porteiros e
serventes, jardineiros, enfim, todas as pessoas que direta ou indiretamente, de forma constante
ou intermitente, influíssem na educação dos alunos.
Partindo da idéia de que as falas, os gestos, os olhares e mesmo a postura corporal
possuem uma intencionalidade e que as pessoas agem embasadas em uma ideologia, no
espaço da sala de aula da instituição asilar estava pronto um cenário para que cada uma
delas, a seu modo, desempenhasse seu papel. A moldura estava posta e os atores sociais
sabiam como se conduzir e interagir em consonância com os valores explícitos e implícitos
naquele micro-universo.
As crianças, em sua maioria meninas e pardas, sem história nem lastro familiar, assim
como os meninos, que tinham tempo limite para permanecerem na instituição e na escola,
vivenciaram os dois momentos sociopolíticos que aconteceram no país. Ao iniciar o século
176
XX vigorava a concepção de que o conhecimento a ser ministrado pelos sujeitos da educação
deveria ser voltado para a capacitação para o trabalho; afinal, no mundo burguês e capitalista,
os conhecimentos deviam ter utilidade real.
Os alunos e alunas da Escola Interna, ao se relacionarem cotidianamente com todos os
demais sujeitos citados eram levados à organização de suas personalidades, marcados pela
religiosidade e pela caridade, mas também pelo controle, disciplina e vigilância, elementos
estudados por Foucault (2007). Como a idéia central da instituição era a caridade e esta
pressupõe bondade para com o outro, mesmo as pessoas hierarquicamente mais colocadas,
deviam atuar, no exercício do poder, com afabilidade e cuidado. Tomando por base as
considerações de Passos (1995, p. 262), ao estudar o exercício do poder numa instituição
educativa católica, pode-se transplantar suas palavras para o processo educativo que ocorria
na Escola Interna: “O poder que perpassa a prática educativa não visa supliciar os indivíduos
nem impedir o exercício de suas atividades, e sim controlar suas ações de modo a aproveitar
suas potencialidades.”
4.2 CONSEQUÊNCIAS DA PRÁTICA PEDAGÓGICA: MENINOS E MENINAS E SEUS
PAPÉIS SOCIAIS
De um modo geral, durante muito tempo, as escolas fizeram separação entre os sexos,
cada um ocupando salas, entradas e saídas distintas e até horários diferentes. Também
desigual era o tempo destinado à educação dos meninos e das meninas, pois a educação situa
o sujeito no âmbito social, onde as relações de poder determinam status e papéis. Assim, o
cuidado com o modo de vida dos meninos e meninas que viviam no Asylo e freqüentavam a
Escola Interna era ditado pelo Regulamento, a lei da Santa Casa de Misericórdia, que tratava
desde a admissão, batismo e cuidado com a infância até a saída, além da oferta de dotes e
enxovais para as noivas dali oriundas.
Ao longo de toda a pesquisa ficou evidenciado que a educação propiciada pela
Escola Interna tinha definido com clareza o que desejava incutir nas mentes de meninos e
meninas, que comportamentos desejava que ambos os sexos tivessem na vida social. O
controle constante sobre comportamentos (gestual, fala, relações sociais, entre outros),
somado ao processo de imitação, identificação, aprovação ou reprovação social terminava
por produzir a introjeção de valores nos meninos e meninas, moldando-lhes a forma de
177
compreender o mundo, de dar significado às coisas, terminavam por levar à reprodução sem
questionamentos.
No contexto de uma sociedade em que posições sociais são baseadas na cor da pele,
sexo, origem familiar, situação econômica e religião, o pequeno universo do Asylo dos
Expostos, mais especificamente sua Escola Interna, funcionava sob todos esses reflexos, de
forma quase automática e natural. Ela vivia de acordo com a mentalidade da classe dominante
da cidade de Salvador e, assim sendo, considerava importante adotar um método de ensino
que estivesse em voga e não contradissesse a Educação Tradicional.
As atitudes sexistas sempre existiram nas sociedades, tendo como foco as diferenças
biológicas. No Brasil, o modelo de colonização foi embasado em premissas demarcadoras de
espaços, ações e valores. A distinção do que era considerado adequado para cada sexo,
evidenciado na educação ministrada, em consonância com os valores sociais vigentes, servia
para reforçar as diferenças biológicas e morais, moldando concepções e desempenho de
papéis. O comportamento dos indivíduos terminaria por demarcar as diferenças sexuais, num
claro produto da cultura. Para obter o resultado desejado, a vigilância era exercida
continuamente e a disciplina era exigida sem delongas, nos diversos espaços escolares:
refeitório, dormitório, pátio, sala de aula e capela.
A sociedade prezava a perpetuação das diferenças comportamentais e utilizava-se de
suas instituições, notadamente a escola, para ali, de forma implícita e explícita, expor e
inculcar seu modelo desejado, reforçando estereótipos, maquiando desigualdades e atitudes
discriminatórias entre os sexos, a ponto de tudo ser aceito pela imensa maioria, sem
questionamentos e reflexões.
O primeiro Regulamento do Asylo, datado de 1863, definia, no artigo 32, que as
meninas e meninos freqüentariam a escola do estabelecimento, onde receberiam “[...] uma
educação accommodada à sua condição, pela qual se tornem boas mães de familias, e se
habilitem a passar a vida com o resultado do seu honesto trabalho” (ASCMB, Regulamento...,
1874 p.13). A Ata de 21 de março de 1863, página 3, considera as meninas “[...] bem
aproveitadas na leitura e na escripta [...]”, sem maiores informações sobre o conteúdo
curricular, metodologia e sistema de avaliação.
A aluna da Escola Interna recebia uma educação que influía na formação de sua
personalidade, inculcando os valores socioculturais e religiosos que influíam fortemente em
seu caráter. Meninas e pobres, necessitadas do amparo da Santa Casa para a aquisição de
conhecimento formal que as ajudasse a transitar no mundo, deveriam ser dóceis, obedientes,
disciplinadas, cumpridoras de todas as tarefas escolares e práticas de piedade religiosa, desde
178
cedo estimuladas e adestradas para o espaço e a vida doméstica, com as opções e
revezamentos nos diversos serviços cotidianos do Asylo.
A Educação Tradicional vigente conservadora, conteudista, memorativa,
respaldada na autoridade do mestre e subordinação do aluno não abria espaço para
discussões sobre o indivíduo e sua relação com a história; aliás, a história era apenas um
conjunto de datas e fatos, oficial e socialmente aceitos e registrados como verdadeiros e
imutáveis nas páginas dos livros didáticos e documentos oficiais, sem merecerem olhar mais
aguçado. Nesse contexto, as meninas da Escola Interna recebiam uma educação que
valorizava mais os atributos manuais, circunscrevendo-as ao ambiente doméstico,
incentivando a futura maternidade e estabelecendo o lar como seu domínio.
No processo educativo da Escola Interna, havia a preocupação em oferecer a educação
elementar, é certo, mas, no tocante às meninas, fosse pela maior permanência na instituição
asilar, fosse pela suposta fragilidade atribuída culturalmente a seu sexo, eram-lhes dirigidos
maiores esforços para a introjeção de valores religiosos e morais considerados importantes na
vida social. No futuro elas os reproduziriam como mães, na educação de seus filhos,
disseminando tais valores em seu círculo familiar e social.
As meninas eram modeladas ao longo do processo de socialização, vivenciando
cotidianamente os mecanismos de disciplinamento. A sala de aula constituía-se em local
propício para o estabelecimento da dicotomia entre posturas e papéis de professoras e alunas,
com toda carga de poder versus submissão, transmissão versus recepção de conhecimentos.
Era, como mostrado, a herança da educação jesuítica que fundou a primeira escola para
meninas (FAGUNDES, 2005).
Um dado a ser considerado nas relações entre meninos e meninas asilados é a
solidariedade. O pensamento de Goffman (1974) sobre as relações de lealdade/solidariedade
que podem surgir entre pessoas internadas ou confinadas ajuda a compreender o que,
certamente, acontecia com os alunos da Escola Interna. Consoante o autor, como forma de
ajuda e proteção mútua, elas se preservavam e distanciavam os que poderiam romper com tal
contexto com a delação e a intriga. Tais relações, certamente, existiram entre os asilados, seja
nas ações rotineiras, seja na vida escolar, visto que todos eles tinham em comum o
distanciamento da vida cotidiana além dos portões do estabelecimento, sem maiores vínculos
afetivos e sociais.
Um pouco da vida escolar do Asylo está explicitada em duas correspondências
trocadas entre a Santa Casa e o Governo da Província da Bahia e constam no Relatório da
Provedoria de 1885-1886. Em 28 de novembro de 1885, o Mordomo do Asylo, Arnaldo
179
Lopes da Silva Lima, foi comunicado pela Provedoria da Santa Casa, que o Governo da
Província solicitava informações sobre o número de alunos das escolas do estabelecimento
durante os anos de 1883 e 1884. A resposta, datada de 3 de dezembro de 1885, elaborada pela
Superiora, Irmã Lasnier, informou oficialmente ao Mordomo que a Escola Interna foi
freqüentada sem qualquer referência aos meninos.
Em outra correspondência, de 19 de junho de 1892, o Diretor do Arquivo Público do
Estado da Bahia, Francisco Vianna, endereçou um ofício manuscrito ao Mordomo do Asilo,
solicitando informações para integrar um trabalho histórico-geográfico-estatístico do Estado
“[...] para ser remettido e distribuído em Chicago, durante a exposição Columbiana do
próximo anno seguinte de 1893, e precisando para este fim de esclarecimento acerca do Asylo
de Expostos” (APEB, Correspondência..., 1892.). O questionário com onze perguntas
enfocava a fundação do Asylo, a que associação se achava subordinado, patrimônio,
finalidade, em que condição recebia crianças, quantas escolas possuía e a freqüência,
aleitamento, número de crianças recebidas nos últimos dez anos, taxa de mortalidade,
destinação das crianças, local do estabelecimento e suas dimensões. A resposta, também
manuscrita, elaborada por Irmã Lasnier, datada de 5 de agosto de 1892, foi encaminhada pelo
Mordomo para o Provedor Manoel de Souza Campos com as seguintes palavras:
O Estabelecimento do Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia foi fundado em 29
de junho de 1862
O Asylo dos Expostos, com a denominação de Nossa Senhora da Misericórdia é
dirigido por 17 irmãs de caridade.
Não tem patrimônio. O asylo é uma dependência da Santa Casa.
Seu fim é amparar a Orphandade desvalida
Recebem-se creanças pela roda
Tem duas aulas para o sexo masculino, são 55 expostos e quatro para o sexo
feminino que são frequentadas por 106 meninas. São as irmãs que lecionam.
São aleitadas no mesmo estabelecimento
Receberão-se estes dez annos 418 expostos [...] As expostas, depois de attingirem a
maior idade, deixão o estabelecimento para casarem-se e por locação de serviço
domestico [...] (APEB, Correspondência..., 1892, f.1).
Assim, uma rápida análise das correspondências (de 1885 e 1892) evidencia que o
número de “aulas”, ou seja, as salas de aula para meninas era maior devido apenas à
quantidade de alunas.
Ressalte-se que a carga horária de estudo em sala era de 5 horas para meninos e 3
horas para meninas de 7 a 18 anos, conforme atestam os Relatórios da Mesa dos biênios 1889-
1890, 1901-1902; já o Relatório do biênio 1907-1908 registra a mesma carga horária de aulas,
180
mas com alteração da idade das meninas: as de 7 a 10 anos de idade freqüentariam a sala de
aula por três horas diárias. Afinal, de acordo com o pensamento vigente, elas eram orientadas
para as atividades práticas, corte e costura, trabalhos de prendas domésticas numa clara
herança escravista, e a idade de 12 anos significava o fim da infância e o ingresso no mundo
adulto, cheio de trabalho e responsabilidade. Ficavam sob os cuidados da instituição até 18
anos e cumpriam uma rotina similar à de outras instituições femininas para as quais, de
acordo com Passos (1995), a rotina era um elemento que contribuía para que as meninas
aprendessem o que delas se esperava em termos de pensamentos, sentimentos e ações.
Constam, em muitos Relatórios, referências sobre a relação de poder e a atividade
designada para as jovens: algumas asiladas maiores ajudavam as alunas menores no processo
da escolarização, atuando nas salas de aula ao lado das Irmãs, como no exemplo:
8 no ensino de menores
3 no ensino dos meninos
2 no ensino das meninas de tres a dez annos (ASCMB, Relatório..., 1880-1881, p.7).
Dez anos depois, em 1890, a mesma história se repete com “[...] quatorze meninas nas
salas servindo de mestras” (ASCMB, Relatório..., 1890-1891, p.21). Tal fato implica numa
reflexão: até que ponto as satisfazia o cumprimento de tal tarefa? Foi por elas escolhida ou
apenas a acataram? Não foram localizados documentos com uma resposta, mas,
considerando-se a estrutura da instituição, não causa surpresa serem as alunas maiores e
consideradas mais bem preparadas escolhidas para tal função pelas Irmãs que lecionavam.
Mas estavam, de fato, preparadas para o exercício docente? Certamente não podem ser
ignorados os aspectos da disciplina a que estavam submetidas e o fato de que ensinar era
atividade considerada feminina perfeitamente condizente com o que socialmente se esperava
das jovens (PASSOS, 1995).
A tarefa de ensinar, colocada como algo a ser executado por quem sabia um pouco
das letras, número e escrita, foi algo constante no Brasil, notadamente na zona rural, onde
“professores leigos”, ou seja, sem formação docente, ensinavam a meninos e meninas,
reproduzindo o mesmo formato educacional que receberam.
Durante o período deste estudo (1862-1934), a Santa Casa não contratou homens para
o trabalho docente regular, em sala de aula das meninas; eles podiam apenas ensinar ofícios
aos meninos, como o mestre sapateiro (ASCMB, Relatório..., 1914). O único registro
encontrado de um professor em sala de aula foi Manoel de Portugal Castro, como citado.
181
Na Escola Interna, onde as Irmãs de Caridade eram as mestras, alguns aspectos
podem ser levados em conta para a atuação das expostas maiores como professoras dos
menores: princípios da instituição, custos, concentração de poder e controle das religiosas
sobre o processo educacional, já que a função educativa sempre coube às Irmãs que
trabalhavam no Asylo e, posteriormente, a alunas-mestras e professoras diplomadas. Isso
corrobora o entendimento de Fagundes (2005) quanto ao fato de que o exercício da prática
docente por mulheres estava em plena consonância com o pensamento vigente de que cuidar/
ensinar a crianças era algo próprio para a mulher, ser maternal por excelência, capaz de
cumprir sua função profissional de mestra e, ao mesmo tempo, não trazer qualquer problema
de ordem sexual em sua relação com os/as alunas, observando a conduta moral desejada pela
instituição. O Relatório da Instrução Pública do Estado da Bahia, datado de 1870 traz:
[...] não se pode contestar a aptidão da mulher para a educação e a instrucçao das
crianças; e, neste paiz, onde os horizontes são ainda muito acanhadas para as
aspirações genuinas, onde se pode dizer que a mulher não tem outra carreira
honrosa, alem da do professorado, a instituição de tal systema pode ser uma solução
para muitas famílias que destina suas filhas a elevada e respeitável posição de
educadoras, n’ella achão com certeza abrigo contra as exigências da vida social, com
vantagem para a moral, para os costumes e para o futuro de nossa sociedade. (BPE,
Relatório..., 1971, p. 69).
Não obstante a concentração do ensino na Escola Interna nas mãos das Irmãs, o
Relatório de 1909-1910, tendo na Provedoria o Dr. Felipe Daltro de Castro, revelou a
preocupação com a qualidade do ensino ministrado:
Assim também a educação das meninas está reclamar a nossa attenção para que se
preparem de tal modo que possam prover, amanhã, quando atingida a maioridade, a
propria manutenção e subsistência, independentemente de serem tomadas a serviços
domésticos, em casas de família, ou solicitadas em casamento. (ASCMB,
Relatório..., 1909-1910, p. 9-10).
Poucos anos depois, sob o olhar crítico do Provedor Theodoro Teixeira Gomes, ficou
registrado o quanto a educação no Asylo ficou comprometida em sua qualidade, bem como os
prováveis motivos para tal situação:
[...] este estabelecimento, porém, ainda o chegou a altura que deve chegar, quanto
a educação dos expostos.
A irmã superiora que o dirige e bem assim as suas companheiras procuram mais
educar as meninas para freiras do que para futuras mães de família, e aprova é que
d’ali saem ellas para se empregarem sem qualquer mister sem quase nada saberem,
nem mesmo escrever! [...]
No anno passado pretendi ali montar officinas para os meninos aprenderam diversos
officios e a Irmã Superiora pediu-me que tal não fizesse, afim de não desnortear as
182
meninas! [...] A orientação das expostas em escripta, leitura e arithmética é péssima:
a maior parte dellas não sabe escrever e tem letra má; todo o tempo ali é, pelo que
parece, empregado em rezas [...]
O fim principal é faze-las rezar quase todo o dia! (ASCMB, Relatório..., 1912, p.34).
O “desnortear meninas” passava por dois aspectos: pelo desejo e risco de as meninas
adquirirem conhecimentos no contato com pessoas que não fossem Irmãs de Caridade, e sim
alguém “do mundo”, que vivia fora do Asylo e, vivendo no mundo, de lá trouxesse vícios,
pecados e novos desejos; segundo, a competitividade pela sobrevivência dependeria do
preparo intelectual aliado ao desenvolvimento das alunas que, pelo exposto, as Irmãs não
estavam dando a necessária atenção, priorizando o lado religioso sobre o intelectual.
A religião, enquanto instituição social já em si um inegável mecanismo de controle,
era um forte pilar neste modelo pedagógico: da infância à idade adulta, todos os alunos
passavam pela prática da oração diária, observação dos dias santos e sacramentos (batismo,
comunhão, crisma, casamento ou ordenação e extrema-unção). Tal prática religiosa era
acompanhada pelo padre capelão encarregado da assistência espiritual a meninos e meninas,
pela Superiora da casa e pelo Mordomo do Asylo. Assim, religião e educação, funcionando
conjuntamente nesta instituição total, promoveram um acentuado processo de domesticação
e/ou adestramento das crianças e jovens que ali foram abrigados.
Num ambiente de educação católica, era exigida a observação de posturas que não
atentassem contra a pureza do corpo, como relações amorosas e atos homo e heterossexuais,
fosse entre os alunos, fosse entre eles e pessoas outras que transitavam no espaço escolar. Isso
remete à determinação de que os meninos deveriam deixar a instituição tão logo a adolescência
se apresentasse, não podendo permanecer no Asylo após os 12 anos. A preocupação com seu
comportamento é explicitada no Relatório da Provedoria do Conde de Pereira Marinho: “[...]
urgente necessidade, apoiada em motivo até de ordem moral, de dar-se destino aos expostos que
fossem attingindo a uma certa idade, cujo contato com os mais pequenos não pode ser senão
nocivo, por maior que seja a vigilância que haja [...]” (ASCMB, Relatório..., 1883-1884, p.24).
Isso significava a saída para o aprendizado de ofício com algum mestre ou a ida para
outra instituição que os acolhesse, educasse e preparasse para a vida prática. Enquanto
estavam na instituição, dentro da idade apta, deveriam freqüentar a Escola Interna. Pelos
dados obtidos, a preocupação não se materializou em intervenções, em ações concretas para
que a educação ministrada alcançasse melhor qualidade.
Ainda durante a Provedoria de Theodoro Teixeira Gomes e seu propósito de “[...]
montar officinas para os meninos aprenderam diversos officios e a Irmã Superiora pediu-me
183
que tal não fizesse, afim de não desnortear as meninas!” (ASCMB, Relatório..., 1912, p.31),
fica evidente que os meninos, ainda que acolhidos, eram vistos pela Superiora com
parcialidade: qualquer benefício para eles era subordinado ao interesse em manter a ordem e a
disciplina local. Uma década depois, persistiam as mesmas dificuldades em relação aos
meninos, cuja saída não era algo que ocorresse sem causar desconforto, conforme relato do
Provedor Isaías de Carvalho Santos e do mordomo do Asylo, Arthur Newton de Lemos:
Nada tem feito, não, tem feito o que mandam as suas leis, mas tanto importa nada
fazer. Importa mesmo que nada fazer, sim senhores, pois, tanto vale manda-los
embora, se muito tarde aos 15 anos de idade incompletos. Manda-los embora devo
dizer, dando-os a particularidades, à soldada: é a porta que se lhes abre, de par em
par, caminho da ociosidade e da vagabundagem perniciosas, especialmente pela
brusca transição do meio onde viviam para o em que vão viver.
Se o Estado estivesse provido de uma Colonia para abrigo e aproveitamento dos
menores, maos, por índole ou por tara, orphãos uns e outros da proteção de pais e
parentes, certo, podiam os daqui seguir caminho das escolas profissionaes alli installadas.
Não o está, porém. Restava appelar, segundo as aptidões physicas de cada qual, para
a Escola de Aprendizes Marinheiros. A limitação das matriculas nos arsenaes, impõe
condições prohibitivas à admissão, e não exagero dizendo que os candidatos nem
sempre escapam da razão de 1 para 100.
Assim ficavam os orphanatos da cidade: o Collegio dos Salesianos e o de São
Joaquim. As tentativas feitas junto às direções foram inúteis. Esses estabelecimentos
também vivem a vida de dificuldade de seus congêneres.
De mim, devo dizer-vos, doe-me a consciência quando lembro-me que o Asylo
recolhe o engeitado mas não o integra à sociedade habilitado e apto para as luctas
fecundas do trabalho.
É tanto mais funda é a minha mágoa quando lembro-me também que, no geral, não
faz-se justiça à grande obra que a Casa da Santa Misericórdia realiza. (ASCMB,
Relatório..., 1923-1924, p.52).
Parece claro que a boa vontade não era o bastante para, de fato, educar os meninos na
sala de aula e no aprendizado de um ofício. O reconhecimento da importância da integração à
sociedade e de que tal coisa só ocorreria mediante a atividade laboral é a tônica da
constatação dos diversos fatores responsáveis pelo quadro exposto: a omissão do Estado, a
carência de políticas sociais efetivas para o menor e a escassez de recursos em entidades afins.
Assim, os meninos continuariam a ser recebidos e cuidados, mas as meninas receberiam o
benefício da segurança asilar por mais tempo, merecedoras de mais atenção por sua suposta
fragilidade. A concepção de que a instituição devia cuidar das meninas com muito zelo e
empenho estava enraizada na mentalidade dos indivíduos, conforme a transcrição sobre a ação
educativa da casa: “[...] continuar a prestar esse abençoado serviço de cultivar intelligencias
da infância infeliz, ainda mais digna de piedade por pertencerem ao sexo mais fraco.”
(ASCMB, Relatório..., 1874-1875, p. 7).
184
A mesma sociedade que fragilizava as meninas, relegando-as ao espaço privado e em
condição de subordinação, reforçava tal condição ao pregar as virtudes consideradas próprias
das mulheres, tais como docilidade, beleza, modéstia, entre outras, conforme a transcrição da
Gazeta Idade do Ouro 1813, n. 14, acerca de um colégio feminino existente em Salvador, em
1813: “Queira o Céu que tal estabelecimento prospere e que a civilização e as luzes sejam o
ornato do sexo que faz as delicias da vida.” (SILVA, 2005, p. 247).
A sociedade que começava lentamente a mudar em função da necessidade de consolidar
cada vez mais os ideais republicanos, tomava consciência de que a mulher precisava estar
preparada para a participação na vida social, extra-doméstica, em ações condizentes. As
mulheres das classes sociais mais baixas, muitas vezes as únicas responsáveis por sua própria
sobrevivência, precisavam ser alfabetizadas. As meninas, alunas da Escola Interna,
minimamente precisavam saber ler, escrever e contar para o futuro enfrentamento do mundo lá
fora, pois o dinheiro que receberiam da Santa Casa como pequeno dote e a Caderneta de
Poupança com o pecúlio proveniente de prêmios ou serviços não lhes garantiriam o futuro.
No que se refere à preocupação do Provedor Teixeira Gomes quanto à falta de
conhecimento da escrita (ASCMB, Relatório..., 1912), é interessante lembrar que, segundo
Sampaio (1992) mesmo nas primeiras décadas do século XX, significativa parcelada população
baiana (82%) não sabia ler nem escrever. Eram pessoas analfabetas que, pela legislação vigente
desde o regime monárquico, não podiam votar e, conseqüentemente, participar da vida política
do estado e do país.
O Provedor, que não aceitou a opinião da Superiora Irmã Lecomte, quanto à educação
ministrada e a administração do Asylo, agiu conforme suas convicções:
Tomei, pois, a deliberação definitiva procurando melhorar a sorte do estabelecimento,
introduzindo-se-lhe o verdadeiro ensino, prendas domésticas, o trabalho lucrativo e
costumes regrados; taes e tão inveterados são os defeitos de educação deste
estabelecimento que todas as providencias da administração tem resistido e burlado.
(ASCMB, Relatório..., 1913, p. 25).
Tal fato evidencia que é dentro das próprias relações de poder que ocorrem as lutas de
resistência, as quais podem se distribuir por vários pontos da estrutura social, como admite
Foucault (2007). A luta entre os pensamentos divergentes da Superiora e do Provedor ocorreu
na própria rede de poder, num confronto de idéias e comando sobre algo de suma importância
na vida da instituição. Num ato que contrariou o interesse da Ordem das Irmãs de Caridade de
manter em suas mãos todo o controle do Asylo, o Provedor decidiu contratar a “[...] professora
diplomada para a escola por acto de 13 de março [...] nomeei para reger a cadeira mixta
185
primaria, criada pela Junta, no Asylo, a alumna mestra D. Maria Magdalena Landulpho”
(ASCMB, Relatório..., 1913, p. 43), a primeira professora diplomada e que não usava hábito
religioso, para corrigir “[...] a orientação dos expostos em escripta, leitura e aritmética era
péssima, como vos fiz ver no ano passado [...]” (ASCMB, Relatório..., 1913, p. 24).
Uma professora diplomada, alguém egressa da Escola Normal, era algo inusitado
naquele ambiente marcado pela religiosidade. Contudo, como lembra Fagundes (2005),
mulher ser professora já não chocava, pois a inserção profissional era aceita como necessária
à sociedade, que precisava de mestres habilitados para educar o cidadão republicano, futuro
eleitor e trabalhador de um mundo industrializado. Havia também um outro dado a analisar: a
chegada de uma mulher comum, não vestindo hábito religioso, significava uma novidade, um
bafejo de outros ares sobre aquele ambiente tão fechado sobre si mesmo.
Persistem algumas indagações: como era essa mulher, aluna recém-diplomada, que
assumia o trabalho docente em uma unidade asilar? Que visão de mundo ela possuía e,
seguramente, iria influenciar seu trabalho educacional? Quais os percalços que ela enfrentaria
tendo em vista sua concreta profissionalização? Nóvoa (1991, p. 91), assim se coloca em sua
análise sobre a prática docente e a transição do aluno à condição de professor;
Este fato acentua um dos traços sociológicos da profissão docente: um professor
primário passa de um papel (o de estudante) para seu oposto (o de professor). No
processo de sua entrada na profissão, os docentes efetuam uma roletransition em
vez de um role-reversal e, no início de sua atividade profissional, utilizam
freqüentemente referências adquiridas no momento em que eram alunos: num
certo sentido, pode-se dizer que o crucial da profissionalização do professor não
ocorre no treinamento formal, mas em serviço.
Com a contratação da professora e a mudança da direção do Asylo para as mãos da
também professora Amélia Rodrigues, implementada pelo Provedor Teixeira Gomes, a
educação das meninas sofreu um benéfico impacto com a capacidade profissional da mestra e
Superiora, esta muito louvada pela competência, responsabilidade, sensibilidade e virtudes
morais, tão desejadas para servir de modelo às educandas. D. Amélia, como educadora, estava
atenta aos detalhes que poderiam favorecer ou prejudicar o funcionamento do Asylo e,
conseqüentemente, da Escola Interna. Almeida (1989, p. 116-117) traz em seu trabalho o
Relatório do Conselheiro Paulino, Ministro do Império em 1869, no qual está registrado o
reconhecimento da importância do professor que passou por um considerável processo de
aprendizado: “Não pode haver escolas sem professores que saibam ensinar e ninguém pode
ensinar bem sem ter aprendido, não só as matérias do ensino, mas também a maneira de ensinar.
Diz-se, geralmente, que para chegar a ensinar um pouco, é preciso aprender e muito [...]”
186
D. Amélia demonstrou interesse em acompanhar o currículo prescrito pelo governo: em
seu Relatório de 1914, enviado à Provedoria, ela citou as matrículas em salas separadas de 22
alunos para aulas no turno matutino e 43 alunas para o turno vespertino, bem como o material
didático enviado pelo Provedor: “[...] mappas mundiaes (geographicos a do corpo humano),
colleções de pesos e medidas, etc., poude o ensino ser dado mais intuitivamente” (ASCMB,
Relatório..., 1914, p. III). Leia-se aí a lição de coisas, seguindo o programa oficial de ensino.
Outro aspecto significativo do trabalho educacional desenvolvido por Amélia
Rodrigues foi sua disposição em proferir palestras e conferências para as asiladas, conforme
registrou em Relatório:
Pode essa Provedoria ficar certa de que envidei e envido todos os esforços para
corresponder à confiança em mim depositada pela Santa Casa de Misericórdia,
buscando orientar a educação das expostas para os fins colimados e empregando
para isso os meios que me suggerem a leitura, a pratica e a experiência de assumptos
pedagógicos. Assim tenho fallado em conferencias e palestras às asyldas sobre
diversos themas procurando ampliar-lhes as idéias ainda estreitas e limitadas,
chamando a sua atenção para a vida real, a vida de trabalho e virtude, concitando-as
a aprender tudo o que uma mulher deve saber para fazer carreira na vida. (ASCMB,
Relatório..., 1914, p. VI).
Mesmo com todo o seu empenho, D. Amélia vivenciou a falta de implementação de
equipamentos para a profissionalização dos alunos, devido a dificuldades financeiras da
instituição. Ela lastimou tal situação no Relatório, afirmando: “[...] certas reformas [...]
melhoramentos materiais imprescindíveis aos ensinos práticos que tanto importa introduzir
aqui.” (ASCMB, Relatório..., 1914, p.VI).
A Superiora preocupava-se com o desenvolvimento intelectual e aperfeiçoamento dos
asilados e como um dos estímulos importantes, sugeriu a construção de um pequeno palco, no
qual os alunos pudessem representar pequenas peças, declamar versos, enfim, algumas
manifestações artísticas. Na ótica educacional cristã, havia a necessidade do “pão para o
espírito”, ou seja, conceitos e valores considerados válidos e educativos que contribuíssem
com a formação moral e espiritual dos expostos de ambos os sexos.
Ainda analisando a fala de D. Amélia, mesmo considerando-a uma mulher instruída, à
frente da grande maioria das mulheres de seu tempo, reconhece-se que ela possuía a clareza
de que estava a serviço de uma instituição com princípios filosóficos definidos e com os quais
ela, certamente, comungava. Era esperado que educasse as meninas no amor à virtude e à fé,
no empenho ao cumprimento futuro de seus papéis de esposas e mães, aptas para lidar com o
universo doméstico e suas ações cotidianas, necessárias ao conforto do lar e, caso fosse
necessário, prestar tais serviços para a subsistência honesta. No contexto da instituição, seus
187
administradores atuavam para a formação de meninos e meninas, num trabalho contínuo de
reprodução das estruturas objetivas e subjetivas de dominação e de estratégias educativas num
“[...] trabalho constante de diferenciação a que homens e mulheres não cessam de estar
submetidos e que os leva a distinguir-se masculinizando-se ou feminilizando-se.”
(BOURDIEU, 1999, p. 122).
Como na grande maioria de casas congêneres, os meninos e as meninas da Escola
Interna recebiam de suas mestras a atenção considerada adequada no cumprimento de seu
papel quase sagrado de vigilantes dos considerados bons costumes, trazendo para o espaço da
sala de aula seus próprios componentes sociais, culturais e emocionais, pois, como diz Nóvoa
(1995), não se pode separar o eu profissional do eu pessoal.
Com o afastamento de D. Amélia em 1923 e a substituição interina por Maria José de
Matos, não foram encontradas notas significativas no tocante a mudanças na condução dos
trabalhos do Asylo nos Relatórios da Mesa e Junta. Com referência à Escola Interna, foram
atendidos 122 alunos (86 meninas e 36 meninos) em 1925 e 83 meninas e 44 meninos em
1926 (ASCMB, Relatório..., 1925-1926, p.31). Certamente as mudanças chegaram com a
supressão da Roda e a abertura do escritório de admissão dos enjeitados, conforme proposta
encampada por vários médicos, tendo à frente Dr. Martagão Gesteira, fato que pode ser
conhecido com mais profundidade com a leitura de autores como Costa (2001) e Rodrigues
(2003), dentre outros.
Assim, a prática pedagógica da Escola Interna permanecia dentro dos parâmetros da
Educação Tradicional, embasada na autoridade da professora, no repasse de conteúdos a
serem assimilados pelos alunos, aos quais restava a obediência, a submissão e o aprendizado
sem questionamentos. As demais ações que ali ocorriam, tais como celebrações religiosas e
cívicas, continuavam a fazer do Asylo um espaço em que os alunos viviam vidas paralelas,
ignorando suas origens, ansiando por uma possível mudança de vida pela adoção, trabalho ou
casamento. Ao mesmo tempo conviviam com as Irmãs de Caridade, o capelão, as professoras,
mestres de ofícios, serventes e Mordomo, eventualmente recebendo a visita do Provedor e de
pessoas não pertencentes ao quadro administrativo da Santa Casa.
O ano de 1934 trouxe a grande mudança proveniente da extinção da Roda dos
Expostos e a modernização para o recebimento às claras das crianças abandonadas. Para
aquelas que lá se encontravam, estudando na Escola Interna, a mudança de nome de Asylo
para Internato pouco deve ter representado. Para as meninas, o agora Internato continuava a
significar abrigo, proteção, garantia de alimentação e cuidados médicos, religiosos e também
estudo, tarefas domésticas, execução de prendas para venda, obediência, orações e uma vida
pautada na modéstia. Para as mestras de classe e as mestras de prendas e ofícios, os meninos e
188
meninas expostos eram os alunos e alunas da Escola Interna que as aguardavam diariamente
para o ensino, com toda a sua carga de poder, controle e disciplinamento.
Na sala de aula, as mestras executavam suas atividades, num contexto onde deveriam
ocorrer as interações entre elas e seus alunos e estes entre si, sendo tudo isso permeado por
hierarquia, sentimentos, valores, símbolos e normas. Os alunos, no cotidiano, as fariam
desempenhar o papel de professoras, transmitindo-lhes o conhecimento formal que eles, como
tabula rasa deveriam receber, assimilar e prestar contas ao final de cada ano letivo da Escola
Interna do Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia, na cidade de Salvador da Bahia.
Assim, a Escola Interna esteve sempre em plena consonância com os princípios
católicos que lhe deram origem: a caridade, amor ao próximo, piedade e elevação do espírito.
Desde o instante em que, vivenciando dificuldades estruturais e financeiras, firmou-se como
um núcleo de formação elementar para crianças enjeitadas, ofereceu a educação formal a
meninos e meninas, os quais, sem o acolhimento inicial e sem a educação estariam certamente
fadados à morte e à ignorância.
As mestras que ali atuaram, reproduzindo a prática pedagógica que aprenderam em
sua vida estudantil, buscaram desempenhar seu papel social de transmissoras do
conhecimento e de zelosas guardiãs dos princípios morais e religiosos que integravam a
Educação Tradicional adotada pela instituição. Também foram as examinadoras de seus
alunos, que deveriam demonstrar com precisão e clareza o grau de domínio sobre os
conteúdos memorizados e práticas aprendidas. A elas coube a tarefa de torná-los bons
cristãos, futuros cidadãos produtivos e ordeiros, respeitadores da lei e da ordem e
observadores das práticas de piedade cristã.
Na sala de aula, onde a disciplina era exercida sem contemporizações, o poder da
mestra se materializava na distribuição espacial dos móveis, carteiras e alunos. Meninos e
meninas, educados de acordo com seu sexo, seriam futuros pais e mães de família que em
seus espaços domésticos iriam reproduzir os valores morais, religiosos, cívicos e higiênicos
que aprenderam na sala de aula, onde não tinham espaço para expressarem idéias e
indagações sobre o mundo e sobre si mesmos.
A sociedade de Salvador, que via a escola com olhos de admiração ou indiferença,
contou com os serviços educacionais que muito pouco lhe custaram, já que cabia à própria
Santa Casa o ônus cotidiano de manutenção de pessoal docente, administrativo e de apoio, já
que os repasses financeiros do poder público eram escassos e incertos. Contudo a Escola
Interna funcionou, adequando-se às mudanças curriculares, aos novos métodos de ensino, ao
surgimento da datilografia como uma oportunidade de inserção das meninas no mercado de
trabalho e à direção de uma Superiora que não era Irmã de Caridade, sem que deixasse de
189
lado a Educação Tradicional que permeou toda a sua prática educativa. Até o final do
período estudado, ela cumpriu seu objetivo de educar, de buscar transformar crianças
enjeitadas em indivíduos capazes de ler, escrever, contar e também de bem desempenharem
seus papéis sociais de homens e mulheres que viviam em uma sociedade profundamente
estratificada e desigual.
190
CONCLUSÃO
Partindo da premissa de que a Educação é um tema muito amplo e que é imprescindível
ao indivíduo para que se torne parte da sociedade humana, fez-se necessário eleger um objeto
de estudo dentro de tal temática. Assim, este trabalho de pesquisa teve como objeto a prática
pedagógica da Escola Interna do Asylo da Misericórdia, durante o período de 1862 a 1934.
Cientes dos estreitos vínculos entre a Santa Casa de Misericórdia da Bahia e a formação e
história da cidade de Salvador, seria inconsistente qualquer consideração sobre a instituição que
se descolasse de seu contexto sociohistórico e cultural para compreender sua prática
pedagógica na educação de meninos e meninas enjeitados na Roda dos Expostos que viviam na
instituição total que era o Asylo.
O principal objetivo deste trabalho consistiu em conhecer a prática pedagógica que a
instituição adotava e os papéis sociais que ela defendia para meninos e meninas que acolhia e
educava. Definiu-se como objetivos específicos: reconstruir a história da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia no contexto sociohistórico de Salvador, enfocando suas obras e sua
estrutura administrativa; conhecer o Asylo dos Expostos; conhecer a Escola Interna, no
contexto educacional baiano; identificar e analisar o modelo pedagógico seguido pela Escola
Interna; conhecer o tipo de educação oferecida na Escola Interna; analisar a prática
pedagógica da Escola Interna; saber o que a instituição considerava e defendia como papéis
sociais para homens e mulheres durante os anos que lá permaneciam.
Ao longo da pesquisa ficou evidenciado o quanto a religiosidade católica, com seus
valores morais, estava na base filosófica da Santa Casa de Misericórdia, instituição que se
pautava na Caridade como virtude básica e era norteada pelo Compromisso de Lisboa, ou
seja, pelo estatuto que regia a casa-mãe, em Lisboa, que prescrevia 14 ações. Dentre estas,
sete eram corporais (resgatar os cativos e visitar prisioneiros; tratar os doentes; vestir os nus;
alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres; sepultar os
mortos) e sete espirituais (ensinar aos ignorantes; dar bom conselho; consolar os infelizes;
perdoar as injúrias recebidas; suportar as deficiências do próximo; orar a Deus pelos vivos e
pelos mortos).
A Santa Casa se corporificava em sua Irmandade, exclusivamente masculina. Sua
estrutura administrativa inicial era constituída pela Mesa Administrativa, composta por
irmãos das duas classes sociais (a considerada superior, integrada por pessoas com boa
condição econômica e prestígio, e a inferior, composta por pessoas sem grandes recursos
191
financeiros e projeção política) e dirigida por um Provedor, sempre escolhido entre a classe
superior. A ele cabiam decisões, tais como a escolha dos Mordomos os administradores da
instituição. A instituição tinha uma forte atuação na cidade, servindo como ponto de
referência para o suprimento de muitas carências vividas pela população, notadamente a
população pobre.
A Santa Casa destacava-se no campo da saúde, com seu hospital, inicialmente
chamado Hospital da Caridade, que prestou serviços desde a fundação da cidade. Na área dos
serviços sociais, a instituição abrigava mulheres desejosas ou obrigadas a uma vida de recato,
as chamadas “recolhidas”, abrigava as crianças enjeitadas pelos pais ou responsáveis,
prestava assistência jurídica aos presos, amparava a mendicidade e enterrava os mortos,
fossem ricos, remediados ou escravos. No tocante ao enterramento, este era um dos maiores
privilégios da Irmandade, já muito agraciada pela Coroa portuguesa, pois rendia prestígio e
destaque sobre as demais irmandades existentes na cidade.
A obra educacional da Santa Casa é a menos conhecida dentre suas ações. Sem
referenciar a relação da Santa Casa com a Faculdade de Medicina, pode-se considerar a
ação educacional tendo quatro momentos, sendo o primeiro iniciado ainda no antigo
Recolhimento (1716 a 1862), onde, de forma elementar, procurou educar as meninas que
estavam sob sua guarda; o segundo momento ocorreu com a criação da Escola Interna
(1862), dentro do Asylo da Misericórdia; o terceiro com a criação da Escola Externa (1872)
para meninas pobres da vizinhança; o quarto momento (1901) ocorreu com a criação da
Escola Elementar Eloy Guimarães, no prédio sede da instituição, na rua da Misericórdia, na
área do centro histórico de Salvador. A riqueza de dados em cada um dos quatro
estabelecimentos e em diferentes momentos históricos tornou impraticável estudá-los num
único trabalho acadêmico; assim, optou-se pela Escola Interna, talvez a menos conhecida,
por ter existido em condições peculiares de funcionamento, revelando-se significativa para
a formação educacional de seus alunos.
A Escola Interna do Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia foi criada pela Santa
Casa de Misericórdia da Bahia.. Sua história iniciou-se com a aquisição do imóvel no Campo
da Pólvora, na cidade do Salvador, em 1862, e ali funcionou até 1992. Durante 130 anos
educou meninos e meninas, em momentos distintos da história educacional baiana. Contudo,
este trabalho acadêmico cobre apenas o período compreendido entre 1862 e 1934, ano em
que se encerraram os serviços da Roda dos Expostos, de acolher as crianças enjeitadas, os
chamados expostos ou enjeitados. A Roda dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia da
Bahia, anonimamente, recebia crianças de ambos os sexos, independente da cor da pele e da
192
classe social, como uma providência cristã para evitar o infanticídio movido pelo desespero,
miséria, descaso ou vergonha materna, bem como descompromisso e irresponsabilidade de
seus genitores ou parentes.
A Escola Interna do Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia tinha como objetivo
propiciar educação a meninos e meninas asilados desde os seis anos de idade. Fazia parte da
proposta da instituição prepará-los para a ocupação de um espaço na sociedade, condizente
com as condições por eles vivenciadas: crianças pobres, sem famílias que garantissem a
sobrevivência e inserção no mercado de trabalho para os meninos, ou casamentos vantajosos
para as meninas, muitos deles carregando o estigma da mestiçagem, numa época em que a
cor de pele podia abrir portas e aplainar caminhos, estigmatizados pelo sobrenome Mattos,
que usavam em homenagem a João de Mattos, grande benfeitor da instituição.
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia refletia a sociedade de seu tempo, patriarcal,
conservadora, permeada de religiosidade e de valores morais. Não se pode compreender o
trabalho da Escola Interna se ele for dissociado do que ocorria no contexto educacional
baiano, no período de 1862-1934, com os reflexos socioeconômicos, culturais e políticos dos
períodos colonial, imperial e republicano e com os significativos traços da educação jesuítica.
Pelo exposto nesta tese, ficou evidente que o contexto educacional baiano vivenciou
dificuldades da própria conjuntura sociopolítica dos governos central e local. As influências
de idéias européias, como a escravatura, a abolição, o Positivismo, a República e sua
instabilidade, são fatores que não podem ser desconsiderados numa análise do quadro social
da cidade de Salvador e, de alguma maneira, atingiram a Santa Casa.
Concluiu-se que as propostas da instrução pública no século XIX consistiam em
projetos que objetivavam definir regras gerais para uma sociedade em transformação, com
questões importantes como a escravidão, o positivismo, a campanha abolicionista e por fim a
queda do império e a proclamação da República. Cada proposta tinha sua concepção de
educação e a divulgava fazendo intenso uso de discursos de cunho moral, civilizatório,
religioso, patriótico ou científico.
O Compromisso de Lisboa, que regia a instituição baiana, ao recomendar “Ensinar
aos ignorantes” não estabelecia escolas. A Santa Casa, numa resolução que extrapolou sua
obrigação compromissal, ao criar o Asylo, deu-lhe um Regulamento, datado de 1863, e este
documento ditava todas as normas da instituição, controlada pela Superiora, uma Irmã de
Caridade, que acompanhava toda a movimentação de pessoal de serviço, as demais Irmãs
de Caridade, o Capelão e o pessoal da área de saúde. A Superiora estava estreitamente
ligada ao Mordomo do Asylo, ou seja, o administrador geral da casa, o qual estava
193
subordinado ao Provedor, dirigente máximo da Santa Casa, secular entidade assistencial no
cenário baiano.
As crianças expostas que viviam no Asylo eram alunas da Escola Interna. Tais
crianças, que em sua imensa maioria desconhecia a própria origem e não contava com laços
familiares, vivia, estudava, crescia e se tornava adulta sob a égide do Asylo. Neste local as
pessoas viviam integralmente suas etapas, posições e papéis sociais, estudando, trabalhando e
se relacionando apenas com as outras pessoas que também estavam nesse espaço e em
condições semelhantes.
A Escola Interna e o Asylo muitas vezes se misturam e não sem motivos: como o
nome está a dizer, a Escola funcionava dentro do espaço do Asylo; as Irmãs de Caridade que
atuavam no Asylo eram as professoras de sala de aula e também de prendas e ofícios; as
regras comportamentais e valores sociais que vigoravam no Asylo eram repassados durante o
período escolar. Enfim, meninos e meninas da Escola Interna estavam absolutamente imersos
na vida asilar, num cotidiano repleto de definições, ordens, deveres e religiosidade.
Meninos e meninas sabiam desde cedo que as regras eram para ser obedecidas e uma
delas era que meninos deveriam sair da instituição quando completasse doze anos: deveriam
ter uma ocupação, estabelecer-se numa casa pia ou particular onde fossem preparados para a
aprendizagem e execução de um oficio que lhes permitissem ganhar seu sustento. Contudo,
enquanto estivessem no Asylo, deveriam freqüentar a escola, ser obedientes e bons cristãos.
No esforço de propiciar a educação elementar, a Escola Interna lançou mão de seu
próprio corpo de pessoal, inicialmente formado pelas Irmãs de Caridade. Com o passar do
tempo e a constatação de que o processo educativo precisava ser melhorado, contratou
mestras diplomadas para o ensino formal e buscou ajustar-se ao que era ensinado na rede
pública do estado, observando as determinações relativas a informações e adequações às
necessidades sociais, higiênicas e educacionais para o sucesso do empreendimento.
Vale considerar que a despeito de a Escola Interna ser regida por mulheres, o controle
geral da instituição estava em mãos masculinas: o Mordomo e o Provedor. As mulheres
envolviam-se em atividades docentes que podiam confundir-se com uma extensão da
atividade maternal, considerada natural, em pleno acordo com a “fragilidade” de seu sexo.
Assim, o controle ficava em mãos masculinas, aptas ao comando e à natural aceitação da
subordinação das mulheres a seu papel diretivo. Nada diferente da sociedade exterior ao
micro-universo onde as crianças asiladas viviam e estudavam!
Como muitas outras escolas do Brasil Imperial, a Escola Interna ofereceu a Educação
Tradicional, em acordo com a linha teórica adotada nas escolas do período aqui estudado.
194
Calcada na religiosidade, na tradição e em valores, esta educação pautava-se numa
metodologia de transmissão de conhecimento pela mestra para meninos e meninas que nunca
deveriam questionar autoridade, informação e regras.
No espaço da sala de aula, formal e tradicional, conforme a educação em vigor,
meninos e meninas conheceram o universo das letras, palavras, algarismos, números,
desenhos e mapas, enfim, os recursos pedagógicos então disponibilizados. Ali também foram
estimulados ao estudo memorativo, submetidos a exames, despertados para a necessidade de
aprender a ler e escrever, executar um ofício, aprender um instrumento musical e realizar
tarefas domésticas essenciais no espaço asilar, obrigações que envolviam as atividades na
rouparia, cozinha, jardim, lavanderia, entre outras. A vida cotidiana no espaço escolar estava
permeada pelas normas e valores que direcionavam o funcionamento da casa e os meninos e
meninas que ali estudavam e viviam estavam permanentemente sob o olhar dos adultos que
administravam seu cotidiano de aulas, preces, aprendizagem de ofícios, hábitos de higiene e
introjeção de conceitos morais, sociais e filosóficos.
Quanto ao método aplicado, inicialmente foi o individual, em que o professor atendia
individualmente cada aluno por alguns instantes enquanto os demais se expandiam,
quebrando a almejada disciplina. Tal método foi depois substituído pela novidade do Ensino
Mútuo ou Lancaster, aqui chegado no início da segunda década do século XIX, o qual foi
suplantado pelo Método Simultâneo ou de Castilho.
Ambos os métodos (mútuo e simultâneo) apresentavam vantagens e desvantagens aos
olhos dos professores e, nos meados da década de 1840, criou-se o ensino misto, com o
objetivo de unir as vantagens do método simultâneo e do mútuo. Ao final do século XIX, a
Escola Interna seguia o método intuitivo ou Lição de Coisas, como uma solução para o
problema da qualidade da educação, propiciando o acompanhamento da novidade pedagógica
oriunda de outro país. Vale relembrar que, mesmo tendo adotado os métodos aqui citados, a
Educação Tradicional direcionou toda a proposta e prática educativa da Escola Interna do
Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia.
O currículo da Escola Interna era pautado pelo modelo adotado nas escolas públicas
da província depois estado da Bahia, como forma de possibilitar aos alunos um cabedal
de conhecimento elementar, que servisse como uma equiparação mínima. Desde 1842,
quando foi criado na Bahia o Conselho de Instrução Pública, que incluía o cargo de Diretor-
geral dos Estudos, o ensino oficial era passível de acompanhamento e vistoria. A Escola
Interna buscava seguir as orientações da Inspetoria da Instrução Pública e, posteriormente, da
195
Secretaria Estadual de Educação, como forma de equiparar o ensino ali ministrado ao
adotado nas escolas públicas do Estado.
Além do currículo formal das disciplinas, no intuito de prepará-los para o futuro,
fazia parte do processo educativo da Escola Interna o ensino de ofícios específicos para cada
sexo, com Mestras para as meninas e Mestres de ofício para os meninos. Os produtos
sapatos, bordados, flores, entre outros além de expostos ao final de cada ano aos olhos dos
visitantes, poderiam ser vendidos e parte do dinheiro apurado revertia-se em benefício dos
próprios asilados.
Foi mostrado ao longo deste trabalho o quanto meninas e meninos estavam sob a
constante vigilância dos administradores Superiora, Irmãs de Caridade, Capelão,
professoras , enfim, permanentemente sob os olhos disciplinadores dos que estavam ali
cumprindo seus papéis de adestrá-los para o modelo de vida desejado pela instituição e pela
sociedade. O cotidiano da Escola era perpassado pelo rigor administrativo e moral da vida
asilar, com um quadriculamento do espaço da sala de aula, o uso do tempo para o
cumprimento das tarefas, os momentos de recreio, orações e exames. O habitus estabelecido
ao longo do processo de socialização de meninos e meninas era a pura expressão do estado
costumeiro do corpo e da mente, refletindo a introjeção de valores e regras desejados pelos
indivíduos que exerciam o controle em todas as instâncias: uso de espaço, formas de ensino,
regras de convivência, dentre outros.
A religiosidade era um ponto muito importante na Escola e não poderia ser diferente,
tratando-se de uma instituição católica. Como as meninas poderiam permanecer por muito
mais tempo na instituição asilar e, conseqüentemente, na escola, elas eram muito mais
expostas aos modelos que deveriam imitar. As virtudes marianas (pureza, modéstia,
humildade, obediência, entre outras) eram propaladas para serem apreciadas e seguidas pelas
asiladas nas diversas fases da vida: infância, juventude, ao se casarem e ao se tornarem mães.
As práticas religiosas eram exigidas (a exemplo do batismo, primeira comunhão, freqüentar a
missa, novenas, mês de Maria e casamento religioso) e eram constantemente lembradas da
importância de cada uma delas, bem como do sentimento de gratidão pelo benefício recebido
da instituição que as acolhia, alimentava o corpo e o espírito.
As alunas da Escola Interna tinham também modelos femininos vivos e presenciais
em seu cotidiano vivenciado com as Irmãs de Caridade e com a professora Maria Magdalena
Landulpho, contratada em 1913, pelo Provedor Teixeira Gomes. Em 1914, a educadora
Amélia Rodrigues assumiu o cargo de Superiora no Asylo. No período de sua gestão as
196
alunas da Escola Interna tiveram contato com uma mulher que vivia fora dos muros da
instituição, trazendo novos e bons propósitos para o processo educativo, como palestras e a
criação de palco para representação de peças teatrais.
A Escola empenhava-se na realização dos exames, ao final de cada ano letivo. Eram
momentos precedidos por recepção a convidados ilustres, autoridades, professores e familiares,
celebração religiosa, jogos e torneios literários, realização da argüição pela banca examinadora,
atribuição de prêmio para as alunas que mais se destacassem. O sistema de premiação, já
referenciado ao longo do trabalho, servia para estimular e reforçar as atitudes desejadas.
A estrutura da vida asilar refletia-se na Escola Interna: organização, pontualidade,
asseio, respeito, submissão e posturas de docilidade eram conceitos incutidos, estimulados e
esperados dos alunos de ambos os sexos. Os papéis sociais destinados a meninas e meninos
eram nitidamente demarcados e a Escola era um elemento reprodutor dos conceitos do que
era adequado para cada sexo, na sala de aula, nos momentos de lazer, nos objetivos de vida,
nas pretensões de espaços sociais a serem ocupados na vida pública ou privada. Desde cedo
meninos e meninas eram levados a introjetar as expectativas que a sociedade tinha sobre cada
sexo e como eles deveriam se comportar para o cumprimento de tais papéis.
A passagem do tempo trouxe as inevitáveis mudanças. A própria Santa Casa de
Misericórdia, em 1934, quando foi fechada a Roda e aberto o Escritório Aberto de Admissão
das crianças, mudou significativamente sua maneira de receber as novas crianças, ali
chegadas de forma transparente e em sistema de externato. Mesmo no que diz respeito às
crianças que permaneceram em fase de criação e educação, no chamado Internato, após o
período de fechamento da Roda, a mentalidade e a visão de mundo dos dirigentes do Asylo e
da Escola Interna condiziam com os novos tempos.
A Misericórdia continuou como instituição católica, filantrópica e buscou adequar-se
às mudanças ocorridas no seio da sociedade baiana da primeira metade do século XX,
pautando suas ações em seus Compromissos, os quais, forçosamente, tiveram que ser revistos
devido à impossibilidade de atender indiscriminadamente ao contingente populacional com
carências de alimentação, vestuário, enterramento, saúde, assistência a presos. Para novos
tempos, algumas novas medidas organizacionais, reorganização de espaços e suas funções.
Assim, a Escola Interna sofreu as modificações decorrentes da alteração da sociedade
que acolhia crianças enjeitadas para educá-las de acordo com seu sexo e classe social e
buscou propiciar a suas crianças uma vida menos fechada. Mas isso extrapola o propósito
deste estudo e merece um trabalho específico, que revele o teor e a intensidade das mudanças
para que não se repita a frase do Provedor Isaías de Carvalho Santos, citada na epígrafe do
197
capítulo 4. Dentro dos muros do Asylo e da Escola Interna, em estreito imbricamento de
disciplina, ordem, obediência e religiosidade, as crianças estudavam o programa oficial de
ensino, introjetavam valores e conceitos considerados adequados aos respectivos sexos e
eram preparadas para a vida extramuros.
Ainda que ocorressem transformações no país, no cenário baiano, nos Estatutos da
Santa Casa e no Regulamento do Asylo, a Escola Interna permaneceu fiel à Educação
Tradicional, condizente com sua proposta pedagógica de transmitir conteúdos, superioridade
do professor e subordinação do aluno que abrigava, salvando-o do infanticídio e da
ignorância intelectual.
Conclui-se que a proposta e a prática pedagógica da Escola Interna refletiam a
ideologia patriarcal quanto à ocupação de espaço público ou privado pelos alunos, assim
como espelhava as relações de classe e de poder que imperavam e as relações sociais tecidas
entre a Santa Casa (Asylo e Escola) e a comunidade baiana.
A Misericórdia cumpriu um importante papel social, no tocante ao amparo e
educação das crianças expostas, reconhecido pelos governos provincial e posteriormente
estadual, mas, como dito, sem a contribuição monetária contínua e regular do Estado para o
custeio das sempre crescentes despesas. As crianças deveriam ter suas necessidades básicas
assistidas, entre elas a educação gratuita, direito assegurado nas diversas Constituições
promulgadas no país.
Todo processo educacional possui uma teoria, uma cosmovisão que o sustenta.
Pensando a educação como um fator importante para melhorar a vida social, os países e suas
instituições buscam estabelecer suas práticas educativas. No século XIX até meados do XX, a
Escola Interna obteve um lugar destacado como espaço adequado à transmissão dos saberes e
conhecimentos desejados e a sala de aula era espaço utilizado pelos professores, leigos ou
formados, para aplicação da ação pedagógica.
Como entidade autônoma da jurisdição eclesiástica, mas a ela afeta pelo fato de estar
assentada em bases católicas, a Santa Casa acolheu as crianças e as educou. Mesmo que se
diga que as intervenções institucionais com caráter funcional de características religiosas têm
em suas ações uma forma de encobrir ou mascarar a realidade histórica, e que a criança
asilada era educada de maneira impositiva a ajustar-se a valores e princípios morais para
assim ser integrada à sociedade, é inegável que essa foi uma alternativa de sobrevivência para
grande número delas. O que é inquestionável é que a Escola Interna estava no cenário social
para cumprir um papel social repleto de dificuldades de várias ordens e buscou fazê-lo com
dignidade durante todo o seu período de funcionamento.
198
A Escola Interna, posteriormente (1919) denominada Escola Interna José de Sá, em
homenagem ao Mordomo que lhe foi muito dedicado, continuou funcionando no formato
tradicional. Na penúltima década do século XX, em 1985, foi conveniada com o Estado,
conforme publicação no Diário Oficial do Estado da Bahia, tendo sua extinção publicada no
citado jornal oficial em 1992. Serviu à comunidade baiana por 130 anos.
Espera-se que esta pesquisa auxilie a reflexão sobre a problemática educacional e
provoque novos e mais aprofundados estudos sobre a educação na Bahia, especialmente
sobre o papel da Escola Interna do Asylo dos Expostos e das demais casas de ensino que
estão indelevelmente marcadas na história da Santa Casa de Misericórdia da Bahia e da
cidade de Salvador.
199
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Folha de Ordenados dos Empregados do Asilo 1920-1924 - Nº. de Tombo D 439.
Folha de Ordenado de Empregados da Santa Casa:
De 1916-1952 I 1679
De 1934 D 453
De 1935 D 454
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Livro de Registro de Empregados do Asilo 1915. Nº. de Tombo D 434.
Registro de Empregados do Asilo de N. Sra. da Misericórdia 1929-1942. I 1682.
Livro de Ponto dos Empregados da Santa Casa
1928-1930 180B
1930-1932 181B
1932-1935 182B
Regulamentos
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Estatutos
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Compromisso (Estatuto) da Santa Casa de Misericórdia da Bahia - 1896 (CSCMB). Salvador-
Bahia: Imprensa Vitória, 1947.
Manuscritos
Correspondências
Resposta manuscrita emitida em 26 de agosto de 1892 assinada pelo Mordomo do Asylo ao
ofício do Gabinete da Directoria do Archivo Público do Estado da Bahia, em 19 de junho de
1892.
Correspondência manuscrita expedida em 27 de julho de 1881 pelo Cônego Dr. Romualdo
Maria de Seixas, Diretor Geral da Instrucção Pública na Bahia ao Conde de Pereira Marinho,
solicitando informações sobre a instrução no Asylo.
201
Livro 1º - Registro de Correspondência com o Mordomo do Asylo dos Expostos 1871 -1899
B 150
Relatórios
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de Figueiredo Leite (2 de julho de 1863 a 1º de julho de 1869).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Francisco
Mendes da Costa Correia (2 de julho de 1869 a 1 de julho de 1872).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Bernardo de
Castro Brum (2 de julho de 1872 a 1 de julho de 1873).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Manoel Pinto
de Souza Dantas (2 de julho de 1873 a 1 de julho de 1876).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Antonio
Carneiro da Rocha (2 de julho de 1876 a 1 de julho de 1877).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Francisco
Rodrigues da Silva (2 de julho de 1877 a 1 de julho de 1881).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Conde de
Pereira Marinho (2 de julho de 1881 a 1 de julho de 1887).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Barão de
Guahy (26 de abril de 1887 a 1 de julho de 1891).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Evaristo
Ladislao e Silva (2 de julho de 1891 a 1 de julho de 1893).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Manoel de
Souza Campos (1º de janeiro de 1894 a 31 de dezembro de 1908).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Felipe Daltro
de Castro (1º de janeiro de 1909 a 31 de dezembro de 1910).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Theodoro
Teixeira Gomes Souza (1º de janeiro a 31 de dezembro de 1914).
202
Relatório dos principais acontecimentos da Santa Casa de Misericórdia da Bahia de 1914 a
1918.
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Isaías de
Carvalho Santos (1º de janeiro de 1915 a 31 de dezembro de 1924).
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentados pelo Provedor Arthur
Newton Lemos (1º de janeiro 1925 a 31 de dezembro de 1928).
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Paraíso Jorge (1º de janeiro de 1933 a 31 de dezembro de 1934).
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Relatório da Província da Bahia apresentado ao Ilmo e Exmo Sr. Conselheiro Barão de São
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216
APÊNDICES
217
APÊNDICE A – RELAÇÃO DOS PROVEDORES DA SANTA
CASA - 1861- 1934
PERIODO PROVEDOR OBS
2 de julho 1861 até julho
1869
Manoel Jose de Figueiredo Leite
Posse em 2 de julho
1870
Francisco Mendes da Costa Correia
2 de julho de 1871
Ladislao de Figueiredo Rocha
1872
Bernardo de Castro Brum
1873 a 1876
Manoel Pinto de Souza Dantas
1877 Antonio Carneiro da Rocha Interino: Dantas foi para Câmara
1878 a 1880
Francisco Rodrigues da Silva
1881 a 26 abril 1887 Conde Pereira Marinho
A partir de 1894, o ano compromissal
passa a coincidir com o civil. Assim a
admin. de 1893 foi até 31 de dezembro, 6
meses a mais.
1887 a 1891
Joaquim Elisio Pereira Marinho
Barão de Guahy
Renunciou em 6 de março 1892
1892
Evaristo Ladislao e Silva
Interino
1º de abril a 1º julho
1892 a 1909
Manoel de Souza Campos Adm bienal
Em 1909 posse em 1º de janeiro
1910
Felipe Daltro de Castro
1911 a 1914
Theodoro Teixeira Gomes Relatórios anuais
1915 a 1923 Isaías de Carvalho Santos
1924 a 31
Arthur Newton de Lemos
1932
Francisco Eloy Paraíso Jorge
1933
Arthur Newton de lemos
218
ANEXOS
219
ANEXO A - COMPROMISSOS DA MISERICÓRDIA
ESPIRITUAIS
Ensinar aos ignorantes
Dar bom conselho
Consolar os infelizes
Perdoar as injúrias recebidas
Suportar as deficiências do próximo
Orar a Deus pelos vivos e pelos mortos
CORPORAIS
Resgatar os cativos e visitar prisioneiros
Tratar os doentes
Vestir os nus
Alimentar os famintos
Dar de beber aos sedentos
Abrigar os viajantes e os pobres
Sepultar os mortos
Fonte: Estatuto da Misericórdia de Lisboa
220
ANEXO B – FOTOGRAFIAS DE IMÓVEIS DA SANTA CASA
DE MISERICÓRDIA DA BAHIA
Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia – Santa Casa de Misericórdia da Bahia
Foto: Antonio Ivo de Almeida
221
Prédio principal do Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia, onde funcionou a
Escola Interna
Foto: Antonio Ivo de Almeida
222
Capela de Nossa Senhora das Vitórias, integrante do Asylo
Foto de Antonio Ivo de Almeida
223
ANEXO C – FOTOGRAFIAS E ASSINATURAS DE
PROFESSORAS DA ESCOLA INTERNA
Amélia Augusta do
Sacramento Rodrigues
Superiora do Asylo de 17-1-
1914 até 1924.
Luisa Aboim de Barros
Nomeada em 1913 para a
Escola Externa. Passou a ser vir
na Escola Interna em 1919
Maria Isabel de Oliveira
Freitas
Mestra de Corte e Costura
Admitida em 24-4-1914
224
ANEXO D – PATRONO DA ESCOLA INTERNA
JOSÉ DE SÁ
Mordomo do Asylo de N. Sra. da Misericórdia
Homenageado com a denominação da Escola Interna em 1919
Fonte: Acervo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
Foto: Antonio Ivo de Almeida
225
ANEXO E – ASSINATURAS DA GENTE DO ASYLO
1
Maria Magdalena Landulpho – 1ª professora diplomada da Escola Interna,
contratada em 1913
Maria de Lourdes Pereira Souza – Farmacêutica interina do Asylo,
nomeada pela Portaria nº 44, de 8 de novembro de 1930
Padre Amilcar Marques – Capelão do Asylo em 1930
1
Fonte: Arquivo da Santa Casa de Misericórdia – Folhas de vencimentos dos Empregados da Santa Casa
226
Padre Gleizer – Capelão do Asylo, 1876
Irmã Lasnier
Superiora do Asylo – de 1862 até 1905
227
ANEXO F – RECIBO DE PAGAMENTO DE SERVIDORES DO
ASYLO /ESCOLA INTERNA
Folha de pagamento das Irmãs de Caridade que atuavam no Asylo – 1863
(ASCMB - Livro D 394, p. 22 verso)
Foto - Valdicley Vilas Boas
228
ANEXO G – RODA DOS EXPOSTOS
Roda dos Expostos
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
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Baixar livros de Astronomia
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Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
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Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
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