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UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
SSIA BELLOMI PATREZI
NA TRILHA DA NARRATIVA POLICIAL BRASILEIRA:
LUIZ LOPES COELHO E RUBEM FONSECA
Araraquara - 2009
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SSIA BELLOMI PATREZI
NA TRILHA DA NARRATIVA POLICIAL
BRASILEIRA: LUIZ LOPES COELHO E RUBEM
FONSECA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Estudos
Literários da Faculdade de Ciências e Letras –
UNESP/Araraquara, como requisito para
obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Karin Volobuef
Bolsa: CNPq
ARARAQUARA SÃO PAULO
2009
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Data de aprovação: ___/___/____
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________________________________
Presidente e Orientador:
____________________________________________________________________
Membro Titular:
____________________________________________________________________
Membro Titular:
____________________________________________________________________
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP - Campus de Araraquara
AGRADECIMENTOS
Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação e da Biblioteca (FCLAr – UNESP);
À Profa. Dra. Karin Volobuef, pela orientação, incentivo e amizade em todos os momentos;
À Profa. Dra. Maria das Graças Gomes Villa da Silva e Profa. Dra. Sylvia Helena Telarolli
de A. Leite (FCLAr UNESP), pelos importantes comentários e sugestões no Exame de
Qualificação;
Aos meus pais, Pedro e Maria Cristina, pelo carinho e apoio a trilhar o caminho
acadêmico;
Ao CNPq, pela bolsa concedida,
A todos aqueles que colaboraram direta ou indiretamente para a conclusão deste trabalho.
The first thing we see about a story is its
mystery. And in the best stories, we
return at the last to see mystery again.
Every good story has a mystery not the
puzzled kind, but the mystery of
allurement. As we understand the story
better, it’s likely that the mystery does
not necessarily decrease; rather it simply
grows more beautiful.
Eudora Welty (1976, p. 164)
1
1
A primeira coisa que podemos ver em uma história é o seu mistério. E nas melhores histórias, nós voltamos
atrás para olhar esse mistério mais uma vez. Toda boa história tem um mistério não do tipo enigmático,
mas o mistério do deslumbramento. Ao passo em que entendemos melhor a história, é provável que o mistério
não seja necessariamente desmistificado; ele simplesmente se amplifica de uma maneira mais bela.
RESUMO
Este trabalho propõe um estudo sobre contos policiais de dois autores brasileiros:
Luiz Lopes Coelho (1911-1975) e Rubem Fonseca (nasc. 1925). A presente dissertação
destina-se a entender um pouco melhor a história e importância do gênero policial no
Brasil. Para isso, busca-se inicialmente subsídios na produção de Luiz Lopes Coelho, um
autor atualmente em processo de reedição (A idéia de matar Belina, Ed. DBA, 2004).
Coelho amparou-se na “fórmula” do gênero policial como estímulo para sua criatividade,
mas sua obra vai além: longe de meramente repetir padrões, o autor construiu narrativas
repletas de humor e sensibilidade, nas quais o crime é apenas mais um dentre os vários
elementos que compõem um quadro rico e sutil das relações humanas. Rubem Fonseca, por
seu turno, é um dos mais expressivos nomes do romance e conto policial brasileiro,
caracterizando-se pela representação da violência dos centros urbanos. A análise dos dois
autores permitiu ressaltar algumas especificidades de suas produções, assim como trazer à
tona elementos que apontam para as possibilidades e transformações da narrativa policial
no Brasil.
Palavras-chave: narrativa policial - Luiz Lopes Coelho - Rubem Fonseca – conto – detetive.
ABSTRACT
The current work proposes a study on the police short stories of two Brazilian
writers: Luiz Lopes Coelho (1911-1975) and Rubem Fonseca (born in 1925). In this text,
we try to understand a bit better the history and importance of the crime story in Brazil. To
reach this goal, on one hand, we primarily search important traces on Luiz Lopes Coelho’s
work, an author whose production is in stage of reedition (A idéia de matar Belina, Ed.
DBA, 2004). Coelho has based his plots on the classic recipe for the crime story as an
impulse for his creativity, but his work goes further: far from merely repeating patterns, this
author has built stories full of humor and sensibility, in which the crime is one element
among many others that compose a rich and fine frame about human relationships. On the
other hand, Rubem Fonseca is one of Brazil’s most significant novel and detective short
stories writer, who deals with the representation of violence throughout the cities. The
analysis of both authors has allowed us to point out some of their characteristics, as well as
to expose elements which demonstrate possibilities and transformations in the history of
Brazilian crime story.
Key words: crime story – Luiz Lopes Coelho – Rubem Fonseca – short story – detective.
Patrezi, Tássia Bellomi
Na trilha da narrativa policial brasileira: Luiz Lopes Coelho e
Rubem Fonseca / Tássia Bellomi Patrezi – 2009.
122 f., 30 cm
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................................9
1. ROMANCE POLICIAL: SEUS MESTRES, SUAS TÉCNICAS E SUA DIVERSIDADE................................12
2. TEORIAS DO CONTO...........................................................................................................31
3. A NARRATIVA POLICIAL BRASILEIRA....................................................................................49
4. ANÁLISE DOS CONTOS DE LUIZ LOPES COELHO...................................................................53
4.1 “Crime mais que perfeito”..........................................................................................53
4.2 “Simte, o irmão de Têmis”..........................................................................................60
4.3 “Um candelabro apaga uma vida”.............................................................................67
4.4 “E o delegado assassinou o assunto”.........................................................................74
5. ANÁLISE DOS CONTOS DE RUBEM FONSECA.........................................................................80
5.1 “Mandrake”................................................................................................................81
5.2 “O Cobrador”.............................................................................................................87
5.3 “Passeio noturno” – partes I e II..............................................................................100
6. LUIZ LOPES COELHO E RUBEM FONSECA ........................................................................106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................115
INTRODUÇÃO
O gênero policial vem atraindo um número cada vez maior de leitores, cuja marca
distintiva não é a faixa etária ou classe social, mas o fascínio pelo crime, mistério e
suspense e, quem sabe, até mesmo por um senso de justiça. Trata-se de um gênero
especialmente atraente às massas, pois permite que aqueles que se sentem em situação
desprivilegiada no cotidiano passem de objeto (vítima) a sujeito (detetive), interessando-se
então por seguir no encalço das pistas para decifrar enigmas. Tal “investigação” acaba
munindo esse leitor tão tolhido no dia-a-dia de um instrumento (a leitura) que viabiliza
alguma autonomia de percepção e julgamento.
Esse tipo de romance está intimamente ligado à psicologia humana: o policial, em
sua forma embrionária e clássica, prende seus leitores pela curiosidade. Temos tanto a
curiosidade dolorosa, criada pela tensão e obscuridade da narrativa (suspense), quanto a
agradável, surgida na esperança de um desfecho satisfatório e na descoberta da verdade. Os
leitores sentem alívio (prazer) ao final da história porque houve a revelação da verdade
sobre a autoria do crime (a curiosidade foi satisfeita). Conforme Lins (1953, p. 11), “A
leitura de um romance policial é uma evasão, uma troca de realidades, é a entrada num
universo de natureza anormal, o do crime, apaixonando os leitores.”
Na presente dissertação, tentamos entender um pouco melhor a história e
importância do gênero no Brasil. Para isso, buscamos os vestígios na obras de dois autores
brasileiros: Luiz Lopes Coelho (1911-1975) e Rubem Fonseca (nasc. 1925), apontando
alguns traços distintos de suas produções e trazendo a lume elementos que demonstrem as
possibilidades e transformações na narrativa policial brasileira.
Organizamos nosso trabalho em seis capítulos, além da presente Introdução e
Considerações finais. O primeiro capítulo da dissertação, intitulado “Romance policial:
seus mestres, suas técnicas e sua diversidade”, traz um discurso crítico sobre o gênero
policial, apontando suas raízes, características estruturais e percurso histórico, desde o
século XIX com as narrativas de Edgar Allan Poe até as variantes mais contemporâneas do
gênero, como o romance negro. No capítulo seguinte preocupamo-nos em elaborar um
estudo sobre as teorias do conto para dar suporte à análise do corpus da pesquisa,
constituído por oito narrativas policiais. Passamos brevemente pelas teorias aventadas para
a gênese da short story e também pelo percurso e composição estrutural dessa forma
literária ao longo dos séculos, baseando-nos em teóricos como Massaud Moisés, Charles
May, Nádia Gotlib, Júlio Cortazar, entre outros. Ao discorrer sobre as teorias do conto,
tivemos em vista estipular e delimitar os pontos teóricos em que devem ser baseadas as
análises das narrativas policiais de Coelho e Fonseca ao final do trabalho.
O terceiro capítulo traz um panorama da literatura policial em território brasileiro,
sendo que o primeiro romance do gênero intitula-se O Mistério (folhetim com 47
capítulos), escrito a oito mãos por Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque
e Viriato Corrêa, publicado em capítulos pelo jornal “A Folha” a partir de março de 1920.
Ainda neste capítulo, voltamos nosso olhar para a produção brasileira atual, uma vez que
nos últimos anos houve um acentuado aumento de autores nacionais que podem ser
considerados como filiados à tradição da literatura policial.
Nos capítulos 4 e 5 chegamos ao ponto crucial da dissertação: a análise dos contos
de Luiz Lopes Coelho e Rubem Fonseca. São eles: “Crime mais que perfeito”, “Simte, o
irmão de Têmis”, “Um candelabro apaga uma vida” (da obra A morte no envelope) e “O
delegado assassinou o assunto” (de A idéia de matar Belina), da autoria de Coelho, e “O
Cobrador”, Mandrake” (O Cobrador), “Passeio noturno parte I” e “Passeio noturno parte
II” (Feliz Ano Novo), escritos por Fonseca. A escolha dos contos teve em vista sua
coerência com os objetivos da dissertação. Assim, esses textos de Luiz Lopes Coelho e
Rubem Fonseca permitem verificar as especificidades de cada autor e, ao mesmo tempo,
colocar em evidência aspectos diferentes da narrativa policial no Brasil. Buscamos não uma
análise exaustiva de cada texto, mas isolar elementos que nos servirão como hipóteses na
análise final (contrastiva) entre os autores, tema que ocupa o sexto e último capítulo da
dissertação.
Iniciemos, portanto, nossa trilha pelos melindrosos caminhos da literatura policial,
coletando as pistas para algumas incógnitas que a pesquisa se propõe a desvendar.
1. ROMANCE POLICIAL: SEUS MESTRES, SUAS TÉCNICAS E SUA
DIVERSIDADE
Segundo Sônia Salomão Khéde (1987, p. 44-47), o discurso crítico sobre o romance
policial apareceu por volta de 1910, podendo ser dividido em três linhas básicas:
a) Obras de erudição que revelam origens remotas da narrativa policial, quer estejam na
Bíblia, nas lendas orientais ou em clássicos da literatura, prendendo-se ainda a obras
esquecidas ou desconhecidas.
Alguns estudiosos, como Raimundo Magalhães Jr., afirmam que as origens mais
remotas do conto policial se encontram na Bíblia. Assim, foram os judeus que o criaram,
em sua forma embrionária, a partir do profeta Daniel, que aparece “como uma espécie de
ancestral de Sherlock Holmes e dos detetives modernos, habituados a solver crimes através
de inspiradas e engenhosas deduções” (MAGALHÃES JR., 1972, p. 209). Um exemplo
seria o episódio do julgamento de Susana, acusada falsamente de adultério por dois anciãos,
que estes não conseguiram fazer com que ela se entregasse a eles. Antes de Susana ser
levada à punição, o profeta Daniel, guiado por Deus, interrogou os velhos separadamente,
para comprovar a veracidade de suas acusações contra a mulher. Como as respostas destes
foram contraditórias, Susana foi considerada inocente e liberta de seu castigo, enquanto os
falsos acusadores sofreram o “mesmo mal que eles tinham intentado sobre seu próximo”
(Evangelho de Daniel, cap. 13, versículo 61). Há, nessa história bíblica, o embrião do
sistema de investigação criminal, ainda hoje utilizado tanto na rotina policial quanto nas
histórias do gênero.
Outros críticos acreditam que as narrativas de enigma tenham raízes no romance de
aventuras, como Paulo de Medeiros e Albuquerque. Segundo o estudioso, “com o advento
do raciocínio e da lógica, o romance de aventuras se transformou, após um longo e algumas
vezes confuso período evolutivo, no que chamamos hoje de romance policial.” (1979, p.
01)
Ainda há outros autores que afirmam que esse gênero tenha emergido dos contos de
terror. Esse é o caso, por exemplo, de Álvaro Lins (1953, p. 14-15), que essa narrativa
como estando contida em um mundo circunscrito, fascinando seus leitores não pelo
extraordinário, mas também pela ligação com o mundo de horrores, que mesmo o
homem mais virtuoso ou o mais pacífico carrega em si o potencial de cometer atos
violentos ou criminosos.
Quanto aos clássicos literários freqüentemente lembrados pelos escritores como
precursores distantes dos romances policiais, podemos citar: Sófocles (Édipo Rei),
Shakespeare (Hamlet), Voltaire (Zadig), Balzac (Maître Cornelius), entre outros. Nesse
sentido, Raimundo Magalhães Jr. chega até a apontar um poeta latino, Públio Virgílio
Maro, que viveu entre os anos 70 e 19 a.C., por sua história de Hércules e o gigante Caco
(situada no oitavo livro da Eneida).
b) A segunda linha crítica baseia-se na visão filosófico-sociológica, pré-textual, tomando as
obras policiais como fenômenos sócio-culturais. Ou ainda, “como metáfora para teses de
cunho ideológico, que pouco têm a ver com as questões textuais propriamente ditas”
(KHÉDE, 1987, p. 45).
Segundo Khéde, esses estudos são relevantes para a localização temporal do gênero,
embora seja problemática uma visão que reduza as narrativas policiais a meras causas
históricas. Obviamente, elas não são independentes das questões culturais e filosóficas que
as cercam, mas cada romance deve ser avaliado a partir de estruturas internas e da dinâmica
que estas estabelecem com estruturas externas, o que possibilitaria a relação da crítica
textual com fatores históricos formadores do gênero.
Ernest Mandel argumenta em Delícias do crime (1988) que as narrativas policiais
constituem um fenômeno vinculado à própria história da sociedade e de suas relações.
Vejamos mais de perto essa teoria: segundo Mandel, o moderno romance policial tem suas
mais remotas origens na literatura popular sobre os “bons bandidos”: de Robin Hood e Til
Eulenspiegel até Die Räuber (Os bandoleiros) e Verbrecher aus verlorener Ehre (O
criminoso da honra perdida), de Schiller. “A tradição das histórias dos bandidos é venerada
no mundo ocidental, começando com os movimentos sociais que contestavam os regimes
feudais e recebendo um poderoso ímpeto com o início da decadência do feudalismo e o
surgimento do capitalismo no século XVI” (MANDEL, 1988, p. 17). A tese de que os
“bandidos sociais” eram ladrões de uma categoria diferente, a quem o Estado e as classes
mais altas encaravam como foras-da-lei e os camponeses veneravam por praticarem ações
dentro dos limites de ordem moral (roubar aos ricos para dar aos pobres...) é, no mínimo,
ambígua. Porém “é óbvio que é mais fácil para um camponês lidar com esse tipo de
bandido do que com nobres e mercadores, razão pela qual os camponeses não apoiavam as
autoridades contra estes antigos rebeldes.” (MANDEL, 1988, p. 17)
E mesmo que os bons bandidos expressassem uma revolta populista e não-burguesa
contra o Feudalismo, a burguesia revolucionária compartilhava o mesmo sentimento de
injustiça do bandido, diante das forças de um sistema tirânico que eles próprios desejavam
subverter.
Desta forma, a tradição de protesto social expressa nas histórias dos bandoleiros,
transmitida por várias décadas através de canções e contos folclóricos, foi consolidada na
literatura por autores de classe média, da burguesia e até mesmo da aristocracia: Cervantes,
Defoe, Fielding, Schiller, Byron, entre outros. Podemos observar que as obras desses
autores foram escritas especificamente para a classe alta sendo a única capaz de comprar
livros naquela época. Ao lado dos romances desses escritores também surgiu uma atividade
literária de maior apelo popular: “os volantes lidos e vendidos nos mercados, o famoso
Images d’Epinal; as grandes tiragens dos complaintes; as crônicas populares como o
Newgate Calendar e o melodrama popular, que atingiu seu auge nos teatros de Paris do
Boulevard du Temple.” (MANDEL, 1988, p. 21).
Mandel defende que, até então, não havia necessidade de serem criados
protagonistas como detetives e policiais, tradicionais ao gênero em questão; uma boa lição
de caridade cristã no epílogo resolveria tudo. Entretanto, no século XIX, o Boulevard du
Temple já era chamado de Boulevard du Crime. Durante dois séculos, o governo impediu o
desenvolvimento do teatro popular, e a imprensa do século XVIII tentava esconder do
público a realidade sobre o aumento da criminalidade nas ruas de Paris. O sentimento de
insegurança, primeiramente instaurado entre a pequena burguesia e as camadas
alfabetizadas da classe trabalhadora, logo se espalhou pela alta sociedade. Criminosos
profissionais, até então desconhecidos no século XVIII, se tornaram uma realidade para a
nova época. Conforme dados de Mandel (1988, p. 22), Balzac relacionou o aparecimento
de tais bandidos com o início do capitalismo e as conseqüentes taxas elevadas de
desemprego.
O crescimento da criminalidade nas ruas da capital francesa não podia mais ser
ignorado. E isso renderia grandes negócios para o teatro popular e para a imprensa, pois
“por que não deveriam tentar aumentar os lucros e acumular capital, suprindo o gosto do
público com histórias de arrepiar os cabelos sobre assassinatos, reais ou imaginários?
(MANDEL, 1988, p. 23). E assim, proliferaram os melodramas que traziam assassinatos a
sangue frio e até mesmo crimes verdadeiramente ocorridos.
Segundo Ernest Mandel indica, Thomas De Quincey, através de um ensaio de 1827
(Do assassinato como uma das Belas Artes”) abriu as portas para escritores como Edgar
Allan Poe, Conan Doyle e Gaboriau, ao insistir nas delícias do assassinato, e da
especulação sobre a descoberta dos criminosos.
A crescente preocupação e interesse das classes mais altas pela criminalidade
chamou a atenção também dos grandes romancistas da época, como Balzac, Victor Hugo,
Charles Dickens, Alexandre Dumas e até Dostoievski. A preocupação social e o incentivo
ideológico existiam de fato nesses autores, mas ainda havia um outro motivo para que eles
se voltassem para as histórias policiais: os motivos materiais, ou seja, a dificuldade
financeira, a procura de um público maior, a possibilidade de lucros ao escrever para novas
revistas populares e folhetins.
Se observarmos o papel dos criminosos nos enredos da época, podemos dizer que há
uma fase de transição entre o bom e o mau bandido. A burguesia, não mais revolucionária,
ocupava o poder. No entanto, “os grandes autores não traíam uma romântica admiração
pelo ‘bom bandido’”. (MANDEL, 1988, p. 24). Balzac, um arquiconsevador, embora
consciente das causas sociais da criminalidade, traz como herói de Os miseráveis o ex-
prisioneiro Jean Valjean. “A bem da verdade, não existem mais ‘bons bandidos’ naquele
antigo sentido. Seus atos criminosos são tratados como ações de patifes, embora possuam
coração de ouro e se redimam através de uma devoção parental para com jovens e mais ou
menos inocentes vítimas da crueldade das classes dominantes ou da perseguição policial.
São figuras de transição: não mais os nobres bandidos de ontem, mas ainda não os vilões
cruéis dos romances policiais do século XX.” (MANDEL, 1988, p. 24-25). Para entender
como se chegou ao fim dessa transição, ou seja, aos cruéis bandidos do século XX, Mandel
examina tanto a função objetiva da narrativa popular quanto suas transformações
ideológicas na última metade do século XIX.
A literatura popular, chamada pelo historiador alemão Klaus Inderthal de “prosaica
reflexão da sociedade burguesa” (conforme lemos em MANDEL, 1988, p. 25), responde a
uma necessidade de distração, de sobrepujar amonotonia crescente e a estandardização do
trabalho e do consumo da sociedade burguesa através de uma inofensiva [...] reintrodução
da aventura e do drama na vida cotidiana.” (1988, p. 26) E, para passar as horas vagas, a
burguesia inconscientemente preferência a uma literatura que traga a ideologia
correspondente à sua realidade e concepção. Nesse ponto, entendemos como o bom
bandido se transforma no cruel vilão: a revolta contra a propriedade privada se torna
individualizada. A burguesia defende a punição daqueles que infringirem a propriedade
particular. “Com a motivação deixando de ser social, o rebelde se torna ladrão e assassino”
(MANDEL, 1988, p. 26). Eis então, em suma, o significado para a ascensão da narrativa
policial no século XIX, em meio ao desenvolvimento pleno do capitalismo, da
criminalidade e da nova posição social ocupada pela burguesia.
Marx, em sua obra Teorias sobre a mais-valia, faz uma interessante aplicação do
papel do criminoso em meio à sociedade burguesa, conforme explicita Ernest Mandel:
O criminoso quebra a monotonia e a segurança cotidiana da vida
burguesa. Desta forma impede a estagnação e margem àquela
tensão e agilidade incômoda sem a qual até o atrito da competição
seria anulado. Desta maneira, o criminoso um estímulo às forças
produtivas. Enquanto o crime ocupa parte desta população. [...]
Assim, o criminoso surge como um daqueles “contrapesos” naturais
que acarretam um equilíbrio correto e abrem toda uma perspectiva de
ocupações úteis. (MANDEL, 1988, p. 29-30)
Quanto ao papel da polícia na primeira parte do século XIX, o aparato do Estado era
ainda, anacronicamente, semifeudal; uma instituição com a qual a burguesia tinha que lutar
para que pudesse consolidar seu poder financeiro e social. “A força policial era tida como
um mal necessário, dedicada à usurpação do direito e das liberdades do indivíduo; quanto
mais fraca, melhor” (MANDEL, 1988, p. 34). Mas tudo isso mudou a partir da revolta das
classes trabalhadoras francesas contra a exploração e a pobreza, entre 1830 e 1848. A
violência dessas rebeliões instaurou o medo na burguesia pela primeira vez: eram
necessários um Estado mais forte e uma força policial que mantivesse vigilância sobre as
classes inferiores, rebeldes, e portanto criminosas, segundo a ideologia burguesa. Além
disso, a realidade das prisões também sofria mudanças. Os índices de roubos e fraudes eram
cada vez mais altos; portanto, devedores evacuavam as celas para ceder lugar a ladrões,
assaltantes e assassinos, o que contribuiu para elevar o status social das autoridades
policiais.
Mas, ao contrário do que se possa imaginar, os primeiros detetives dos contos
policiais não se encontravam em meio aos agentes da lei: eram homens intelectuais,
brilhantes, oriundos da classe alta, e não meros policiais. uma grande distância entre a
realidade da época e os fatos expressos nas narrativas em questão.
De certa forma, podemos dizer que o verdadeiro tema dos primeiros romances
policiais não é o crime ou o assassinato, mas o enigma. O problema é analítico, e não social
ou jurídico.
Para Mandel, “a transformação do crime, se não dos próprios problemas humanos
em ‘mistérios’ que possam ser solucionados, representa uma tendência comportamental
ideológica e típica do capitalismo.” (1988, p. 38). Com o progresso científico, o
desenvolvimento da indústria e dos transportes, todas as relações humanas na sociedade
burguesa tendem a ser empiricamente analisadas, mensuráveis, quantificadas e previsíveis.
São divididas e estudadas como se fossem uma matéria química vista em um microscópio,
a mente analítica predominando sobre a sintética, subjetiva. Sendo assim, podemos dizer
que a narrativa policial representa a apoteose do pensamento burguês, que traz em si a
apoteose do pensamento analítico. Os crimes, os assassinatos têm uma lógica, e podem ser
provados através de matérias e fatos concretos, que são as pistas. Tudo está à disposição do
leitor, basta apenas que ele utilize seu raciocínio. O romance policial é uma espécie de
protótipo da máquina moderna, que pode ser composta, montada e desmontada por várias
vezes.
Passando para o século XX, observamos que a Primeira Guerra Mundial pode ser
considerada como um divisor de águas entre o tipo das histórias escritas por Doyle e Poe e
os clássicos que surgiram na década de 20 e 30. De acordo com Mandel, o romance policial
atinge sua idade de ouro no período entre guerras, cujos principais autores são: Ellery
Queen, G. K. Chesterton, Anthony Berkeley, Dorothy Sayers, Agatha Christie, entre outros.
Em suma, podemos dizer que o romance policial entre guerras e pós-guerra representa uma
certa nostalgia no campo da literatura “trivial”, pois
para a massa da pequena burguesia dos países anglo-saxões e da
maior parte da Europa, assim como para partes das camadas mais
amadurecidas da classe dominante, a Primeira Guerra Mundial
marcou um divisor de águas e uma correspondência com o Paraíso
Perdido: o fim da estabilidade, a liberdade de gozar a vida num ritmo
sossegado, a um custo aceitável, a crença num futuro assegurado e
num progresso sem limites. [...] Quando terminou a guerra, a
estabilidade o retornou à pequena burguesia, ainda essencialmente
conservadora, que foi tomada pela nostalgia. (MANDEL, 1988,
p. 56)
Para Ernest Mandel, o gênero policial é uma apoteose do pensamento analítico, ou
seja, do pensamento burguês capitalizado, em que a história do crime no mundo real é a
chave para a evolução da ficção policial, ou seja, o romance policial é a imagem refletida
do espectro da sociedade.
c) A terceira linha crítica liga-se às questões normativas do gênero, definindo-lhe os
elementos básicos. Neste caminho, poderíamos citar os pesquisadores: Tzvetan Todorov
(As estruturas narrativas) e Boileau e Narcejac (O romance policial).
Todorov estabelece uma tipologia para o gênero policial, sendo que o divide em três
categorias: romance de enigma, romance negro e romance de suspense. O primeiro
caracteriza o romance policial clássico, tendo seu auge no período entre guerras. Na base
do romance de enigma encontramos uma dualidade, e é ela que nos vai guiar para descrevê-
lo. Esse romance não contém uma, mas duas histórias: a história do crime e a história do
inquérito. Em sua forma mais pura, essas duas histórias não têm nenhum ponto comum”
(TODOROV, 1969, p. 96). Segundo o estudioso, a primeira história (do crime) conta o que
se passou efetivamente, sendo nomeada como “história de ausência”, pois não pode estar
imediatamente presente no livro. a história do inquérito não tem nenhuma importância
em si mesma, servindo apenas de mediadora entre leitor e história do crime, pois explica
como o narrador tomou conhecimento dos fatos. Essas definições, de acordo com Todorov,
são de dois aspectos de toda obra literária, defendidos pelos formalistas russos: a fábula,
realidade evocada, e a trama, caracterizada pelos processos literários de que se serve o
autor, como o tempo literário (prolepses, analepses, etc.). Desta forma, “trata-se pois, no
romance de enigma, de duas histórias das quais uma está ausente mas é real, a outra
presente mas insignificante. Essa presença e essa ausência explicam a existência das duas
na continuidade da narrativa” (TODOROV, 1969, p. 98).
Em contradição, o romance negro funde as duas histórias, ou, nas palavras de
Todorov, “suprime a primeira e vida à segunda” (1969, p. 98). Esse tipo de narrativa,
criado nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, coincide com a ação; não
mais um crime anterior ao momento dos fatos relatados. “A prospecção substitui a
retrospecção” (TODOROV, 1969, p. 99). Não um mistério, nem mesmo uma história a
adivinhar. Entretanto, o interesse do leitor não diminui, pois a curiosidade do romance de
enigma, que vai do efeito à causa, é substituída pela expectativa do que vem pela frente
durante a leitura de um romance negro, recheado de descrições frias e fatos aterradores,
pois, nessa categoria, Todorov argumenta que “tudo é possível” (1969, p. 99).
Entre as duas formas tão distantes de romance policial, surge uma terceira: o
romance de suspense. Este mescla algumas propriedades dos tipos descritos até agora e
surge como forma inovadora, pois mantém o mistério e as duas histórias, a do passado e a
do presente, mas recusa-se a reduzir a segunda a uma mera detecção da verdade. A segunda
história ganha destaque, sendo que o leitor não está interessado apenas no que se sucedeu,
mas também no que acontecerá mais tarde, havendo o questionamento referente tanto ao
futuro quanto ao passado. Além disso, surge a história do “suspeito-detetive”, pois, para
provar sua inocência, o protagonista (acusado injustamente) deve encontrar por si só o
verdadeiro culpado, mesmo que isso ponha em risco sua vida. “Pode-se dizer que nesse
caso, a personagem é ao mesmo tempo o detetive, o culpado (aos olhos da polícia) e a
vítima (potencial, dos verdadeiros assassinos)” (TODOROV, 1969, p. 103).
Ao finalizar a teoria presente em As Estruturas Narrativas, Todorov pergunta: O
que devemos fazer com obras que não se encaixam na classificação? E afirma:
se entretanto esta forma (ou outra) se tornar o novo germe de um
novo gênero de livros policiais, não será este um argumento contra a
classificação proposta: […] o novo nero não se constitui
necessariamente a partir da negação do traço principal do antigo, mas
a partir de um complexo de caracteres diferentes, sem preocupação
de formar com o primeiro um conjunto logicamente harmonioso.
(1969, p. 104).
Pierre Boileau e Thomas Narcejac, na obra O Romance Policial, defendem que
cometemos um erro duplo quando nos contentamos em explicar o romance policial por sua
história. Para os estudiosos, a raiz profunda do gênero está em nós mesmos: “somos seres
empenhados em extrair, de qualquer jeito, o inteligível do sensível. Enquanto não
compreendemos, sofremos. Mas, desde que compreendemos, experimentamos uma alegria
intelectual incomparável” (BOILEAU E NARCEJAC, 1991, p. 9-10). Segundo os autores,
o gênero em questão tem em sua gênese algumas circunstâncias específicas, inerentes à
própria evolução social, como: o aparecimento de uma civilização urbana, e assim o
surgimento das diferentes classes sociais; o aparecimento e desenvolvimento da polícia
como tipo social; o criminoso, que origem ao duelo entre o bem e o mal; o público que,
apaixonado por tal disputa, fez dos folhetins um sucesso; e finalmente, o positivismo e o
determinismo do século XIX, que impulsionaram as histórias de investigação pelo apreço
às descobertas e ao pensamento analítico. Em relação às narrativas e suas variações,
Boileau e Narcejac, defensores do gênero em sua mais tradicional versão, nomeiam três
tipos de romance a partir da análise das obras de alguns autores policiais: o romance-
dedução, como é o caso de Edgar A. Poe e Connan Doyle, o romance-jogo, como Austin
Freeman e outros autores que seguem as regras de Van Dine, e o romance-problema ou
romance psicológico, como é o caso das obras de Agatha Christie em que temos Miss
Marple como detetive. Mas, em geral, as três peças mestras do romance policial são: o
crime misterioso, o detetive e a investigação. Para os dois estudiosos, tais elementos
permitirão múltiplas combinações e, em todos os casos, haverá um problema, que, por
definição, “o romance policial é um problema” (BOILEAU E NARCEJAC, 1991, p. 19).
Apresentamos até então algumas teorias acerca do gênero policial, com
nomenclaturas e tipologias diversas, mas, na realidade, em qualquer uma dessas linhas
críticas sempre encontraremos pistas que nos permitam identificar o policial como um tipo
de literatura que se caracteriza por ser objetivo, fugindo dos abusos da emoção e dando
espaço ao raciocínio, à inteligência e ao jogo de induções e deduções. Segundo Flávio
Kothe, como novela de massa, o romance policial é constituído de duas estruturas: uma
profunda, que define o gênero, e outra superficial, que define a obra (1994, p. 124). A
primeira engloba os elementos principais e gerais da narrativa, como o crime misterioso e o
trabalho de investigação do detetive. Também poderíamos dizer que, em relação aos
personagens, engloba primordialmente a “santíssima trindade”: detetive, vítima e assassino
(1994, p. 149). A outra estrutura pode definir qualitativamente a obra, a partir da criação do
romancista. Assim, esse tipo de literatura é mais apreciado pela riqueza de invenção do que
pela técnica da escrita.
Mas, como argumenta Sandra Lúcia Reimão, nem toda narrativa em que aparecem
esses elementos (um crime, um delito e alguém disposto a desvendá-lo) pode ser
classificada como policial. “Isto porque além da presença destes elementos é preciso uma
determinada forma de articular a narrativa, de construir a relação do detetive com o crime e
com a narração etc.” (1983, p. 8). Inversamente, como veremos nos próximos capítulos,
alguns contos policias contemporâneos dispensam por muitas vezes os detetives, as
investigações e o mistério, trazendo como narrativa a rotina de um criminoso e explorando
sua psicologia através dos delitos cometidos e descritos minuciosamente a nós, leitores.
O verdadeiro romance policial surge no século XIX, publicado em folhetins, sendo
Edgar Allan Poe seu criador na forma, nos métodos e nos processos psicológicos ainda hoje
vigentes. Além de ser considerado o pai do gênero, Poe cria as bases para vários tipos de
narrativas policiais que surgiriam depois; ele próprio, em seus contos, escreve uma
narrativa tipo policial de enigma ou romance de detetive, o que será detalhado mais adiante.
Na época em que o gênero foi criado, surgiram na Europa os jornais populares de
grande tiragem. Esses jornais, em algumas seções, valorizavam os chamados faits divers
(dramas individuais, crimes raros e inexplicáveis etc). Segundo Sandra Reimão, “o desafio
do mistério aliado a um certo prazer mórbido na desgraça alheia e ao sentimento de justiça
violada que requer então reparos, são basicamente os elementos geradores da atração e do
prazer na leitura desse tipo de narrativa” (1983, p. 12-13). A curiosidade sobre o crime é
uma das formas de cultura popular da época.
Assim, para satisfazer o gosto do público, esses jornais criaram condições para o
surgimento e divulgação de narrativas que articulassem esses mesmos elementos, entre
elas, o romance policial.
Além disso, devemos nos lembrar de que no século XIX o surgimento do
Positivismo, citado quando apresentamos as teorias de Boileau & Narcejac e de Ernest
Mandel. Uma das conseqüências das concepções desse movimento é a crença de que o
espírito humano, ou o funcionamento mental, está submetido a princípios gerais como
qualquer outro elemento; assim, quem dominar esses princípios saberá usá-los em cada
indivíduo, em cada homem particular. Edgar Allan Poe sofre influência do pensamento
positivista na concepção de “homem como máquina desmontável” (REIMÃO, 1983, p. 22).
“The Murders in the Rue Morgue” é considerado o primeiro conto policial do
gênero, escrito por Poe em 1841 e publicado na Graham’s Magazine. As outras narrativas
do autor de mesma classificação são: “The Purloined Letter” (1845), “The Mystery of
Marie Roget” (1850), “Thou Are The Man” (1850) e “The Gold Bug” (1843). Com exceção
da última, a figura que atua nessas histórias é Dupin, o primeiro detetive digno dessa
qualificação. Nádia B. Gotlib afirma que o personagem é um espelho de seu criador, ou
seja, é tão analista quanto o próprio Poe demonstrava ser (1999, p. 38).
Dupin é quase que um tipo, uma caricatura: é a voz da razão, aquele que traz a
verdade à tona. É frio e calculista, tem maneiras esquisitas, não se envolve em
relacionamentos amorosos, e seu senso de justiça está acima de qualquer tentativa de
suborno. A ausência de características e personalidade próprias salienta ainda mais a
capacidade de raciocínio desse personagem, tido como “máquina de leitura de indícios via
intelecto” (REIMÃO, 2005, p. 08). Esses aspectos de Dupin permitem que ele exerça sua
função básica: ser o instrumento esclarecedor do enigma inicial.
Cada conto de Poe apresenta uma faceta diferente. Em “The Murders in the Rue
Morgue” o assassinato violento com navalhadas, facadas, estrangulamento –, cuja
autoria é especialmente misteriosa porque as circunstâncias do crime excluem a autoria de
um ser humano mortal (restando a alternativa de uma interferência sobrenatural). em
“The Purloined Letter” não nenhuma morte violenta, mas uma história de furto
solucionada com muita sagacidade pelo detetive Dupin. “The Gold Bug” não possui a
figura do detetive, mas constitui-se em uma história cheia de mensagens cifradas.
E. A. Poe estabelece assim os parâmetros para o gênero através de suas narrativas
policiais, os quais podem ser resumidos em seis regras descritas por François Fonseca,
reproduzidas por Boileau e Narcejac (1991, p. 22):
1) o caso apresentado é tão misterioso que parece insolúvel;
2) um personagem (ou vários) é considerado culpado (e, mais tarde, inocentado) porque os
indícios superficiais parecem incriminá-lo;
3) minuciosa observação dos fatos (materiais e psicológicos), cuidadosa coleta de
depoimento das testemunhas e, acima de tudo, rigoroso método de raciocínio. O
detetive não analisa, ele raciocina;
4) a solução é totalmente imprevista;
5) quanto mais extraordinário um caso parece ser, tanto mais fácil é resolvê-lo (a partir de
pistas aparentemente inocentes, mas que têm valor decisivo na descoberta);
6) parte-se do princípio de que, ao eliminar todas as impossibilidades, chega-se
necessariamente à verdade, mesmo que esta possa parecer incrível à primeira vista.
Essas regras, entre outros elementos, padronizam a primeira diversidade do romance
policial: o romance de enigma, romance-dedução ou narrativa de detetive. Como
observamos antes, Poe, além de criador do gênero, é o exemplo mais expressivo desta
variação.
A presença do narrador-memorialista como porta-voz das ações do detetive é uma
das características básicas do romance de enigma. Se a narrativa fosse elaborada pela mente
dedutiva do investigador, perder-se-ia o sentido da revelação final ao leitor e a conseqüente
reconstrução da história.
O verdadeiro tema dos primeiros romances policiais não é o crime ou o assassinato,
mas o enigma. Conforme afirma Ernest Mandel, as primeiras narrativas do gênero “não se
preocupavam, verdadeiramente, com o crime ‘em si’. O crime era o arcabouço para um
problema a ser solucionado, um quebra-cabeças para ser montado” (1988, p. 37).
É interessante também notar algo que raramente questionamos: a origem da polícia.
É no mesmo século da criação do romance de enigma que ela surge como instituição. No
início do século XIX, os policiais franceses eram recrutados entre os ex-condenados e, “se
num primeiro momento uma aceitação e até uma louvação da polícia, logo a população
das novas cidades industriais ficará desconfiada e insatisfeita com essa nova instituição.
Para as novas, instáveis e perplexas classes médias, era tênue demais o limite entre um
contraventor e um ex-contraventor” (REIMÃO, 1983, p.14). Nisso talvez esteja a
explicação para o fato de que todos os grandes primeiros detetives não eram policiais.
2
Seguindo a trilha de Edgar Allan Poe, temos: Émile Gaboriau e o inspetor Lecocq,
Conan Doyle e Sherlock Holmes (acompanhado por seu “fiel escudeiro”, Dr. Watson),
Ellery Queen (pseudônimo dos autores Manford Lepofsky e Daniel Nathan), Agatha
2
Vidocq (1775-1857) foi um ex-condenado francês, promovido a chefe de polícia, e lança em 1828 suas
memórias, importantes do ponto de vista dos primórdios da narrativa policial, já que é em oposição a esse tipo
de investigador que Poe cria o detetive Dupin.
Christie e seus investigadores um pouco mais humanizados Poirot e Mrs. Marple, entre
tantos outros.
Ao longo da história da literatura policial, os parâmetros do romance de enigma, ou
seja, aqueles primordialmente criados por Poe, foram modificando-se, dando origem a
outras variações do gênero.
Uma delas é o romance policial noir, ou romance negro, uma literatura policial pós-
guerra, comum nas décadas de 40 e 50, cujos fundadores são Raymond Chandler e Dashiel
Hammett. As narrativas pertencentes a essa variação são sempre construídas no presente,
acompanhando o correr dos fatos, as investigações, ou seja, dando-se no mesmo tempo da
ação e não de forma memorialista (contrariando o romance de enigma).
Para os detetives pertencentes aos romances noir, investigar não é um hobby, eles
trabalham em agências ou têm escritórios de investigação. Mas ainda há uma inconfundível
continuidade com os detetives particulares do tipo tradicional: a romântica busca da
verdade e da justiça pelo que elas representam em si.
Sandra Reimão afirma que “os autores clássicos das narrativas policiais noir tinham
por objetivo propiciar o reencontro da literatura policial com a realidade do mundo do
crime, da qual, eles acreditavam, a literatura enigma estava separada” (2005, p. 12).
Conforme Ricardo Piglia, um modo de narrar nas histórias noir que está ligado a um
manejo da realidade, o qual ele denomina “materialista”:
em primeiro lugar, o que representa a lei é motivado pelo
interesse, o detetive é um profissional, alguém que faz seu trabalho e
recebe seu pagamento […]; em segundo lugar, o crime, o delito, está
sempre apoiado pelo dinheiro: assassinato, roubos, fraudes,
extorsões, seqüestros, o elo é sempre econômico (ao contrário, outra
vez, do romance de enigma, onde em geral as relações materiais
aparecem sublimadas: os crimes são ‘gratuitos’, justamente porque a
gratuidade do móvel fortalece a complexidade do enigma). (PIGLIA,
1994, p. 79)
O romance negro enfoca o crime em seu meio mais freqüente: a marginalidade.
Além disso, não existe verdade final absoluta nessas narrativas, acima de qualquer suspeita,
ou seja, mais um ponto que contraria uma das principais regras do romance enigma: a
interpretação conclusiva e tranqüilizadora do mistério inicial.
Alguns importantes autores do romance noir (além de seus próprios fundadores) são
Donald Henderson Clarke e William Riley Burnett, ambos inspirados em histórias de
gângsteres reais.
Além do romance noir, podemos citar outras curiosas variantes da literatura policial,
como o romance processual, inspirado no advento do crime organizado do mundo real, o
romance de espionagem (tendo como personagem mais representativo o inconfundível
James Bond, o 007 mundialmente famoso agraciado com a divulgação cinematográfica), e
até mesmo o anticonto policial, que Magalhães Jr. define como “aquele em que as coisas
viram pelo avesso e os solenes investigadores são colocados em situação ridícula” (1972,
p. 24). Mark Twain é um dos autores que se divertiu em parodiar as histórias de Poe e
Conan Doyle. Atualmente, podemos encontrar o gênero policial até mesmo fora das
páginas de um livro. Ele ocupa grande parte dos programas televisivos de entretenimento,
como é o caso do seriado Law and Order, que trata do cotidiano das investigações no FBI
norte-americano, exibido no Brasil pelo Universal Channel.
Para melhor fundamentar nosso entendimento do conto policial, consideramos ser
uma etapa essencial a elaboração de um pequeno estudo sobre o conto em si. Tal estudo irá
nos munir das necessárias ferramentas teóricas para empreendermos a análise literária dos
contos de Luiz Lopes Coelho e Rubem Fonseca.
2. TEORIAS DO CONTO
O estudo da gênese do conto, em um primeiro estágio, nos remete primordialmente
ao século XIX, época em que nomes como E. A. Poe, Guy de Maupassant e Tchekhov dão
uma nova acepção a essa forma literária.
Mas, o que muitos críticos e estudiosos não levam em consideração é que a história
do conto, em análise mais profunda, nos leva a tempos remotos, difíceis de precisar. O
conto, do latim computare (contar), é um modo de narrar caracterizado essencialmente pela
própria natureza de sua existência: a de simplesmente contar histórias. E a arte de narrar
histórias é inerente ao próprio início da civilização. Sendo assim, “além de ser a mais antiga
expressão da literatura de ficção, o conto é também a mais generalizada, existindo entre
povos sem o conhecimento da linguagem escrita” (MAGALHÃES JR., 1972, p. 09).
As formas mais primitivas do conto eram transmitidas oralmente. Segundo James C.
Lawrence,
oral tradition begins with the first human family, and it is to the first
oral tradition that we look for the genesis of the short story.
Anthropologists assure us that primitive man was endowed with
substantially the same imagination, pride in achievement, curiosity,
and love of excitement and novelty which characterize the average
man today (1976, p. 64-65).
3
3
A tradição oral começa com a primeira família humana, e é no início da tradição oral que devemos buscar a
gênese do conto. Os antropologistas afirmam que o homem primitivo foi presenteado substancialmente com a
mesma imaginação, orgulho nas conquistas, curiosidade e amor à excitação e à singularidade que
caracterizam o homem comum de hoje.
É impossível localizar quando o Homem começou a contar histórias, que as
narrativas evoluíram primeiramente de uma tradição oral, sem registros históricos. Para
alguns estudiosos, as formas mais primitivas surgiram nos contos egípcios Os contos
mágicos, mais de 4000 a.C. Mas também poderíamos nos lembrar da história de Caim e
Abel, da Bíblia, ou textos greco-latinos clássicos, como a Ilíada e a Odisséia, de Homero,
ou mesmo as histórias d’As Mil e uma noites, que circulavam na Pérsia no século X.
Durante a Idade Média, na França, surgiram os famosos fabliaux, forma
embrionária do conto, constituída por histórias populares, ou fabuletas em verso. Na
Inglaterra, encontramos o mesmo tipo de literatura em versos com o nome de ballad. Nessa
época, não havia ainda uma distinção entre fábula, conto, anedota, parábola, ou outros tipos
de narrativas. Essas histórias, sendo transmitidas oralmente, eram passadas de geração em
geração, de família a família, até que elas se espalhassem por toda a Europa, e a literatura
dos séculos XII e XIII se desenvolvesse a partir dessa literatura oral. O conto popular
evoluiu das formas mais simples e breves para as mais longas, complexas e rebuscadas.
Alguns estudiosos acreditam que exista uma teoria para o conto. Outros, apenas o
enquadram no grupo maior da narração, ou seja, na teoria do romance.
Massaud Moisés, no livro A criação literária (1985, p. 32), expõe um resumo geral
sobre as várias teorias aventadas para a gênese do conto, entre elas:
teoria indo-européia ou mítica, criada por Jacob Grimm e seu irmão Wilhelm
Grimm (mais tarde retomada também pelo lingüista Max Muller), afirmando que a
origem do conto remontaria à forma do mito;
teoria de Theodor Benfey, para quem a Índia deveria ser considerada como berço da
forma literária em questão, de onde os contos maravilhosos teriam migrado para o
Ocidente, já no século X a.C.;
teoria etnográfica, desenvolvida na Inglaterra por Andrew Lang, afirmando que o
conto seria anterior aos mitos, tendo brotado ao mesmo tempo em várias culturas
geograficamente afastadas;
teoria ritualista, de Paul Saintyves, postulando que os personagens dos contos são
caracteres de ritos populares caídos no esquecimento;
teoria marxista, criada por Vladimir Propp, concluindo que o conto maravilhoso é
uma superestrutura cuja análise nos permite reconhecer sinais dos modos de
produção e regimes políticos de sua respectiva época.
Mas tais teorias vêm sendo substituídas por uma visão mais flexível, em que as
raízes do conto são advindas de tradições heterogêneas, imprecisas, porém ricas em
possibilidades.
Nos séculos XVI e XVII, o conto passa a ser uma forma literária altamente
cultivada, sobretudo na Itália, graças ao trabalho de Boccaccio, em Decameron. O autor
seguiu o gênero que os alemães qualificaram mais tarde de Rahmenerzählung (“novela
enquadrada”), ou seja, “eram narrativas apresentadas dentro de um quadro ou moldura, que
geralmente supunha uma reunião de pessoas, por um motivo qualquer, passando cada uma
delas a contar uma história, para deleite dos circunstantes, a fim de matar o tempo”
(MAGALHÃES JR., 1972, p. 27). Outros autores seguiram esse modelo de escrita, como
Antonfrancesco Grazzini ou Giovani Francesco Straparola.
Mas é no século XIX que o conto revigora-se de maneira excepcional, chegando ao
primeiro plano como forma literária através de teorias e trabalhos de vários autores. Logo a
partir da segunda década do século, vão surgindo E. T. A. Hoffmann na Alemanha; Guy de
Maupassant, Honoré de Balzac, Flaubert e Merimée na França; Machado de Assis no
Brasil; Anton Tchekhov na Rússia; Hans Christian Andersen na Dinamarca, Edgar Allan
Poe nos EUA, entre outros.
Devemos dar especial destaque à teoria sobre o conto formulada por Poe, em 1842,
no prefácio “Review of Twice-told tales” à reedição da obra Twice-told tales, de Nathaniel
Hawthorne. Essa teoria baseia-se na relação entre a extensão do conto e o efeito que ele
consegue provocar no leitor. Poe afirma que toda produção literária, seja ela um conto ou
um poema, causa uma reação, um efeito de exaltação ou de excitação da alma, chamado de
unidade de efeito, mas que pode ser sustentado durante um determinado tempo, pois é
transitório. Se o texto for longo demais ou breve demais, esse efeito será perdido. Nas
próprias palavras do escritor, in almost all classes of composition, the unity of effect or
impression is a point of the greatest importance. It’s clear, moreover, that this unity cannot
be thoroughly preserved in productions whose perusal cannot be completed at one sitting
(POE, 1976, p. 46).
4
E explica: All high excitements are necessarily transient. Thus a long poem is a
paradox. And, without unity of impression, the deepest effects cannot be brought about
(POE, 1976, p. 47).
5
4
Em quase todas as categorias de composição, a unidade de efeito ou de impressão é um ponto de grande
importância. Fica claro, acima de tudo, que tal unidade não pode ser plenamente mantida em obras cuja
leitura não seja finalizada em uma sentada.
5
Todas as fortes sensações são necessariamente transitórias. Desta forma, um poema longo é um paradoxo. E,
sem a unidade de impressão, os efeitos mais profundos não podem ser trazidos à tona.
Desta forma, o conto não deve ser nem longo demais nem breve demais, tornando-
se imprescindível que ele sustente uma leitura de uma “sentada”, intencionando atingir o
efeito desejado em cada leitor. Além disso, qualquer frase extra, qualquer palavra
desnecessária deve ser eliminada, trazendo ao mesmo tempo brevidade e coerência ao
texto.
De acordo com Nádia Gotlib, “o fato é que a elaboração do conto, segundo Poe, é
produto também de um extremo domínio do autor sobre seus materiais narrativos. O conto,
como toda obra literária, é produto de um trabalho consciente, que se faz por etapas, em
função desta intenção: a conquista do efeito único, ou impressão total. Tudo provém de um
minucioso cálculo” (1999, p. 34). Ou como definiu Júlio Cortázar, “Poe escreverá seus
contos para dominar, para submeter o leitor no plano imaginário e espiritual” (1993, p. 122-
123).
A totalidade de efeito ou unidade de impressão continuou a ser defendida por E. A.
Poe em outro ensaio, “The Philosophy of Composition”, de 1846. Além de ter contribuído
com essa teoria, Poe também foi o criador de uma nova vertente do conto com The
Murders in the Rue Morgue”, publicado na Graham’s Magazine em 1841, que é
considerado o primeiro conto policial.
Essas concepções sobre a teoria do conto se tornaram muito importantes para a
própria história do gênero, pois além de influenciarem trabalhos de outros grandes autores,
atentam já, sistematicamente, para a característica básica na construção do conto: a
economia dos meios narrativos.
Após o século XIX, de acordo com a teoria de Charles May no ensaio “A Survey of
Short Story Criticism in America” (1976), o conto começou a entrar em decadência como
forma literária, desprezado em face de outra maneira de narrar, o romance, e também pelo
caráter mecânico com que passou a ser praticado por seus cultores.
Segundo May, o problema teve início em 1901, quando o estudioso Brander
Matthews publicou “The Philosophy of the short story”. Tentando criar “regras prontas”
para se fazer um conto, Matthews emprestou algumas idéias sugeridas por Poe em “The
Philosophy of Composition”.
Essas regras não teriam tanta repercussão se, na mesma época, o autor O. Henry,
seguidor de Matthews, não tivesse alcançado tanto sucesso com seus contos. Os escritores
passaram a imitar O. Henry, e os críticos a imitar Matthews, com o mesmo propósito:
sucesso financeiro. Assim, qualquer pessoa estaria apta a escrever contos se soubesse as
regras estabelecidas para o gênero.
Em seguida, várias críticas surgiram para combater e censurar a estrutura
mecanizada da sociedade norte-americana e também a literatura da época como uma
máquina de criar histórias, reflexo da realidade vivida pela população. Até então, o enfoque
dos contos sempre havia se situado no plot, ou seja, no enredo, nos eventos seqüenciais,
lineares e causais, com início, meio e fim, onde ação e conflito passam pelo
desenvolvimento até o desfecho, com crise e solução final.
Enquanto Poe se esmerava na dramatização padronizada da vida (“patterned
dramatization of life” conforme MAY, 1976, p. 7), para a qual ele necessitava de uma
anedota, O. Henry e aqueles que o seguiram fizeram esse padrão dramático tornar-se
mecânico. Os escritores, tentando escapar dessa fórmula, pararam de meramente fabricar
plots, tentando recapturar em seus contos o storyable incident (MAY, 1976, p. 7), ou
seja, o imprevisto, o nunca escrito, o incidente, o novo. Evolui-se então para um enredo
diluído nas sensações, percepções e revelações. Isso aproximou o conto moderno do lírico,
enfatizando a subjetividade e a técnica do artista.
A resposta crítica a essa nova maneira com que os contistas passaram a visualizar as
short stories foi dividida. Alguns estudiosos afirmaram que essa mudança deu origem a
uma grande variedade de formas para os contos, mostrando o que de melhor na
subjetividade literária. Nesse sentido, em lugar da antiga ênfase no enredo, o tom” ou
atmosfera depura-se como elemento central das novas produções. Isso, porém, não impediu
muitos críticos de rejeitarem essa ruptura com o padrão linear dos contistas anteriores,
afirmando que os novos contos apresentavam uma falta de engajamento social, falta de
ideologia, e principalmente, falta de enredo.
Podemos dizer que a partir dessa ruptura é que surge o conto contemporâneo,
fragmentado, inconcluso e às vezes até mesmo vazio, reflexo da própria sociedade que o
acolhe. De acordo com May (1976, p. 5), If the contemporary short story is fragmentary
and inconclusive, perhaps it is because the form is best able to convey the sense that reality
itself is fragmentary and inconclusive. Such a view should be especially pertinent to the
modern world.”
6
O que caracteriza o conto é seu movimento através dos tempos. Nádia Gotlib afirma
que “antes, havia um modo de narrar que considerava o mundo como um todo e conseguia
representá-lo. Depois, perde-se este ponto de vista fixo, e passa-se a duvidar do poder de
representação da palavra: cada um representa parcialmente uma parte do mundo que, às
vezes, é uma minúscula parte de uma realidade dele” (1999, p. 30). Portanto, o conto
6
Se o conto contemporâneo é fragmentado e inconcluso, talvez seja porque a forma é a melhor maneira de
demonstrar que a própria realidade é fragmentada e inconclusa. Tal visão deve ser especialmente pertinente
ao mundo moderno.
moderno não surge apenas de autores que tentaram negar trabalhos anteriores, ou fórmulas
anteriores, mas sim, da própria realidade vivida por eles. Com a complexidade dos tempos,
e principalmente a Revolução Industrial que foi se firmando desde o século XVIII, o caráter
da unidade de vida foi se perdendo. Acentuou-se o caráter de heterogeneidade, de
fragmentação nos valores, nas pessoas e, por extensão, nas obras literárias também.
Tchekhov contrariava as regras de Edgar Allan Poe em seus contos: a seu ver, o epílogo
deveria ser descartado, o desenlace seria não-enigmático, e o clímax, quando existisse,
situar-se-ia em meio à narrativa. O radicalismo do autor russo já se contrapunha à tendência
do conto tradicional.
Mas tanto o conto tradicional, linear, quanto o contemporâneo, fragmentado,
apresenta características estruturais semelhantes. Por mais diferenças que possam ser
apontadas entre as histórias de Boccaccio, Machado de Assis e D. H. Lawrence, trata-se
sempre de textos com características internas comuns, que nos permitem classificá-los
como contos. Em 1938 Mário de Andrade sua definição de conto: “em verdade, sempre
será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto.” (ANDRADE, 1972, p. 5). E,
no fim das contas, a brincadeira de Mário tem fundamento, pois, afinal, o que delimita essa
forma literária, e faz com que ela se diferencie do romance?
Eça de Queirós tentou desdobrar o conto “Civilização” em um romance: A cidade e
as serras. Mas, como afirma Massaud Moisés (1985, p. 37), a obra continua a ser
essencialmente um conto, embora “os vários enxertos e a lentidão narrativa sugiram o
contrário. O núcleo dramático de ‘Civilização’ é o mesmo de A cidade e as serras.”
Júlio Cortázar faz uma boa comparação que nos permite entender melhor o que
diferencia um conto de um romance. O conto se assemelha a uma fotografia, pois
o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar
uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não
valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no
espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento
que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai
muito além do argumento visual ou literário, contido na foto ou no
conto. (1993, p. 151-152).
o romance se assemelha ao cinema, acumulando progressivamente efeitos no
leitor ou espectador, pois “A captação da realidade mais ampla e multiforme é alcançada
mediante o desenvolvimento de elementos parciais, acumulativos, que não excluem, por
certo, uma síntese que dê o ‘clímax’ da obra” (CORTÁZAR, 1993, p. 151).
Podemos também comparar as peculiaridades do romance e do conto através de
seus personagens. Segundo Alberto Moravia, no texto “The Short Story and the Novel”
(1976, p. 150), os personagens do conto são captados em um momento particular, dentro
dos limites do tempo e do espaço, e agem em função de um determinado evento que
constitui o objeto do conto. No romance, entretanto, os personagens têm um amplo
desenvolvimento, que une dados biográficos e ideológicos, movendo-se em um tempo e
espaço que são ambos reais e abstratos, transcendentes e imanentes. De acordo com
Antonio Cândido,
a vida da personagem depende da economia do livro, da situação em
face dos demais elementos que o constituem: outras personagens,
ambiente, duração temporal, idéias. Daí a caracterização depender de
uma escolha e distribuição conveniente de traços limitados e
expressivos, que se entrosem na composição geral e sugiram a
totalidade dum modo-de-ser, duma existência. (1968, p. 75).
Quanto à forma de se narrar contos, por vezes, alguns pontos característicos
coincidem, permitindo a classificação dos contos em vários tipos. Entretanto, devemos
sempre nos lembrar que não uma variação de conto pura: as short stories caracterizam-
se por apresentar múltiplas facetas, embora uma predomine, autorizando e fundamentando
sua localização em determinado grupo.
Várias são as propostas de classificação dos tipos de contos. Conforme nos expõe
Massaud Moisés (1985, p. 75-80), Carl H. Grabo, um pioneiro dos estudos sistemáticos do
conto, sugere uma divisão clara, que ainda nos serve como ponto de referência. Segundo
ele, os contos dispõem-se em cinco grupos:
1) Contos de Ação: grupo mais comum, abrangente desde As mil e uma
noites até os contos policiais e de mistério. Constituem-se como histórias
de entretenimento, caracterizando-se pela linearidade. A predominância
da aventura não significa, porém, a ausência de outros componentes: estes
aparecem, mas em grau inferior.
2) Contos de personagem: grupo menos freqüente, em que o retrato do
protagonista representa o alvo principal do contista. Ao centrar sua
atenção nele, o narrador não perde de vista a estrutura própria do conto,
com ritmo e unidade inerente. Daí o personagem ser, de um modo geral,
sempre plano. A restrição dramática resultante de possuir um único
personagem principal é neutralizada pela sondagem de sua intimidade.
3) Contos de cenário ou atmosfera: grupo menos freqüente ainda que outros
anteriores. A ênfase recai no próprio cenário, no próprio ambiente do
conto, de modo que o transforma no protagonista da narrativa.
4) Contos de idéia: grupo predominante do século XVIII (Voltaire insere-se
nessa corrente). Nesse tipo de conto que é filosófico, crítico –, o autor
procura oferecer uma síntese de suas observações acerca do Homem e do
mundo. A idéia central do texto não existe a priori, separada da história,
mas, sim, emerge das situações e dos personagens. Além disso, o autor
não perde seu objetivo estético. Ao invés de elaborar um ensaio para
expor suas doutrinas, ele cria uma intriga e nela as insere.
5) Contos que transmitem emoção: grupo que geralmente vem mesclado ao
de idéia. Os personagens, o cenário, a ação, tudo tem um único objetivo:
despertar emoção no leitor. Por vezes, os expedientes utilizados nos
lembram as histórias de mistério ou de terror, como as de Poe e
Hoffmann.
Quando realizamos a análise de um conto, seja ele de ação ou de idéia, linear ou
fragmentado, geralmente recorremos ao exame dos elementos constituintes da estrutura
interna das narrativas, como: ação, personagens, tempo, espaço, tom, linguagem, foco
narrativo, verossimilhança, dentre outros. Mas, como Eudora Welty afirma no estudo “The
reading and writing of short stories”, a análise é um modo impossível de nos levar a
entender como ou por que o conto foi escrito pelo autor. Ela é apenas um método, um
processo, pelo qual entendemos um pouco do que o conto nos traz, nos quer transmitir ou
fazer sentir: The fact that a story will reduce to elements can be analyzed, does not
necessarily mean it started with them certainly not consciously. A story can start with a
bird song.” (1976, p. 161-162)
7
Tendo em vista que os contos policiais de Luiz Lopes Coelho e Rubem Fonseca
serão analisados nos próximos itens da dissertação, devemos explicitar um pouco de cada
elemento constituinte do gênero em questão. Para isso, iremos recorrer principalmente aos
conceitos estruturalistas propostos por Gérard Genette em Discurso da narrativa para a
análise de narrativas.
Comecemos pela ação estabelecida em uma diegese. Em geral, do ponto de vista
dramático, o conto é univalente, ou seja, a narração gira em torno de um único conflito.
Assim, uma unidade de ação, tomada como a seqüência de atos praticados pelo
protagonista, ou de acontecimentos de que participa. A ação pode ser externa, quando os
personagens se deslocam no espaço e no tempo, ou interna, quando o conflito se localiza na
mente dos personagens.
Em relação ao espaço, o lugar por onde os personagens circulam no conto é sempre
de âmbito restrito. O contista deve se prevenir de criar um vazio narrativo, ou seja, não
deve substituir o elemento dinâmico da narração pelo descritivismo sem funcionalidade. No
geral, uma rua, uma casa, um quarto basta para que o evento se organize. O espaço ocupado
pelos personagens antes da ação principal é chamado espaço-sem-drama, e o espaço que
retém o ato principal é o espaço-com-drama.
7
O fato de que uma história reduzida a elementos possa ser analisada não significa necessariamente que ela
tenha começado com eles certamente não de forma consciente. Uma história pode começar com o canto de
um pássaro.
Vale a pena ressaltar também a diferença entre espaço e ambientação, defendida por
Osmar Lins em Lima Barreto e o espaço romanesco, retomada por Antônio Dimas: o
espaço é denotado e explícito; a ambientação é conotada e implícita, ou seja,
por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos
ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um
determinado ambiente. Para aferição do espaço, levamos a nossa
experiência do mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde
transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo
conhecimento da arte narrativa. (DIMAS, 1994, p. 20)
Nessa divisão, aparecem três tipos de ambientação: franca (descritiva, feita pelo
narrador), reflexa (feita pelos personagens) e dissimulada (os atos dos personagens fazem
surgir o que os cerca). No conto policial, o espaço tem foco especial na possibilidade de
criar o suspense e a expectativa no espírito do leitor, pois o parêntese descritivo auxilia na
criação do ritmo, sendo que pode precipitar ou reter fatos prestes a se concretizarem. A
alusão aos centros urbanos, becos e lugares escuros faz com que haja uma “cumplicidade
rítmica entre o clima físico e o clima humano”, sendo que o espaço funciona neste caso
como “aparelho auxiliar”, conforme a designação de Nelly Cormeau (apud DIMAS, 1994,
p. 36).
O passado e o futuro, no conto, carecem de significação dramática, não possuem
conflito, ação. Quando muito, o contista nos apresenta em suma o que aconteceu no
passado ou futuro (síntese dramática), através de analepses e prolepses, (conceitos de
Genette), mas desde que isso tenha importância sobre a ação principal. Os acontecimentos
narrados podem dar-se em curto lapso de tempo: que passado e futuro não interessam, o
conflito se passa em horas, ou dias.
Quanto ao tom apresentado pelo autor, os componentes do conto obedecem a uma
estruturação harmoniosa, com o objetivo de provocar no leitor a impressão desejada, única
(medo, pavor, riso, alegria). É a unidade de efeito proposta por Poe em sua teoria.
Em A personagem, Beth Brait escreve sobre os vários recursos que um escritor
encontra para dar vida a pessoas imaginárias ou não:
como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num
mágico caldeirão, o escritor recorre aos artifícios oferecidos por um
código a fim de engendrar suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de
sua vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou das
mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode ser
atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua
presença e sensíveis os seus movimentos. (1987, p. 52).
O esforço inventivo do contista nem sempre se dirige para a criação de personagens
reais, à nossa imagem, redondos, mas para a formulação de um drama em torno de uma
emoção, única, forte, a ponto de gerar uma impressão equivalente no leitor. Todas as outras
impressões possíveis ausentam-se em favor daquela que o contista escolheu para transmitir.
Freqüentemente cometemos o erro de pensar que o personagem é a parte essencial de um
romance ou conto. Pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mas este adquire
significado completo em um contexto. Desta forma, poucos são os personagens que
intervêm no conto. Ainda que umpersonagem atue como protagonista, outro participará,
direta ou indiretamente, na formulação do conflito que sustenta a história.
Segundo Massaud Moisés,
o conto lembra uma tela em que se representasse o apogeu de uma
situação dramática. O convívio com as personagens dum conto dura
o tempo da narrativa: terminada esta, o contato se desfaz, visto que a
‘vida’ dos protagonistas está encerrada no episódio que constituía a
matriz do conto. (1985, p. 51).
Quanto ao ponto de vista em que se coloca o escritor constitui elemento de especial
importância na estrutura de contos, novelas ou romances. Segundo Genette (s.d., p. 187-
188), há três tipos de focalização:
1) Narrativa não focalizada, ou de focalização zero, em que o narrador sabe mais
que os personagens, ou, mais precisamente, diz mais do que aquilo que qualquer
personagem sabe. É o que geralmente chamamos de narrador onisciente.
Segundo Massaud Moisés, este narrador é “onisciente porque a obra nasce dele,
entendendo-se onisciência não como sinônimo de consciência plena, lucidez
crítica, mas como conhecimento amplo, pela memória, pela imaginação e pela
reflexão dos materiais da ficção: o Homem, a Natureza, o Tempo e a História”
(1985, p. 72).
2) Narrativa de focalização interna, em que o narrador apenas diz aquilo que certa
personagem sabe. Ela pode ser fixa (quase nunca abandona o ponto de vista de
um personagem específico), variável (em que o personagem focal começa a ser
um, depois o narrador passa a outro, etc.) ou múltipla (como nos romances
epistolares, onde o mesmo acontecimento pode ser evocado várias vezes
segundo o ponto de vista de vários personagens que escrevem as cartas).
3) Narrativa de focalização externa, em que o personagem age à nossa frente sem
que alguma vez sejamos admitidos ao conhecimento de seus pensamentos ou
sentimentos.
O contista não trabalha com os focos narrativos como se estes fossem meros
recursos, mas, sim, ao compor-se, cada texto, traz implícito o foco: é inimaginável uma
história sem foco, e este sem aquela. Dados os limites específicos do conto, o autor é
obrigado a eleger um foco para cada narrativa.
Podemos distinguir dois tipos de narradores pela relação destes com a diegese, com
a história:
- narrador heterodiegético: narrador ausente da história que conta.
- narrador homodiegético: narrador presente como personagem na história que
conta. Se este narrador for o próprio protagonista da diegese que relata, podemos
denominá-lo autodiegético.
De acordo com a teoria de Genette,todo acontecimento contado por uma narrativa
está num nível diegético imediatamente superior àquele em que se situa o ato narrativo
produtor dessa narrativa” (s.d., p. 227). Assim, podemos distinguir três níveis narrativos:
extradiegético (por exemplo, o nível de um narrador heterodiegético em relação à história),
intradiegético (os personagens de uma história, situados dentro desta) e metadiegético (por
exemplo, o nível de uma narrativa, secundária, que se encontra dentro de outra, primária).
A principal determinação temporal da instância narrativa é, evidentemente, a sua
posição relativa em relação à história. Podemos distinguir, do simples ponto de vista da
posição temporal, quatro tipos de narração:
- ulterior: posição clássica da narrativa no passado, sem dúvida a mais freqüente.
- anterior: narrativa predictiva, geralmente no futuro, cujo investimento literário até
hoje foi muito menor que nos outros tipos.
- simultânea: narrativa no presente, contemporânea da ação.
- intercalada: narração de várias instâncias, ora no presente, ora no passado, entre os
momentos da ação.
Enfim, por mais que tentemos circunscrever os elementos do conto seus traços
inerentes e literários, as especificidades que o distinguem das outras formas narrativas é
absolutamente problemático querer atribuir-lhe uma definição certa e conclusiva. No caso
do conto e também dos demais gêneros narrativos, resta-nos apenas apreciar essa forma
literária em suas várias possibilidades, e nos trabalhos de contistas de grande renome ao
longo dos tempos. Nesse sentido, vale a pena retomar a afirmação de Eudora Welty sobre a
beleza dos contos:
Where does beauty come from, in the short story? Beauty comes from
form, from development of idea, from after-effect. It often comes from
carefulness, lack of confusion, elimination of waste and yes, those
are the rules. But that can be on occasion a cold kind of beauty,
when there are warm kinds. And beware of tidiness. Sometimes
spontaneity is the most sparkling kind of beauty [...]. (1976, p. 176)
8
Ou então, como conclui Thomas A. Gullarson no ensaio “The short story: an
underrated art”, Like the diamond, the short story throws off glints of meanings”. (1976,
p. 30).
9
8
De onde vem a beleza, no conto? A beleza vem da forma, do desenvolvimento da idéia, do efeito posterior.
Geralmente vem do cuidado, da falta de confusão, e da eliminação dos abusos e sim, essas são as regras.
Mas esse pode ser um tipo de beleza artificial, quando outros mais tocantes. E cuidado com o primor pela
ordem. Às vezes a espontaneidade é o tipo de beleza mais reluzente.
9
Como a diamante, o conto reflete uma gama de significados.
Agora que temos uma breve exposição sobre as teorias do conto, passemos à
narrativa policial brasileira e à análise dos contos policiais de Luiz Lopez Coelho e Rubem
Fonseca, objetos principais da presente pesquisa.
3. A NARRATIVA POLICIAL BRASILEIRA
No Brasil, embora o crime esteja presente na literatura desde os tempos de
Teixeira e Souza (quando a ficção em prosa ainda estava em pleno processo de
germinação), a narrativa policial propriamente dita nasceu uns cem anos depois das
histórias de E. A. Poe, o criador do gênero. O veículo das primeiras histórias policiais
brasileiras, porém, manteve-se o mesmo das precursoras estrangeiras: os folhetins e rodapés
de jornal. O primeiro romance brasileiro intitula-se O Mistério (folhetim com 47 capítulos),
escrito a oito mãos por Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque e Viriato
Corrêa, publicado em capítulos pelo jornal “A Folha” a partir de março de 1920. Não
demorou muito e esse romance veio a lume sob a forma de livro, sendo considerado
best-seller em 1928, somando três edições publicadas.
Devemos observar que escrever em parceria é bastante comum no gênero policial,
como exemplo a dupla de primos norte-americanos Daniel Nathan e Manford Lepofsky,
criadores do autor-detetive Ellery Queen. Mas, segundo Sandra Reimão, “o fato de O
Mistério ter sido escrito em regime de parceria - cada autor escrevia seu capítulo e o
próximo autor devia continuar daí, sem um planejamento detalhado prévio, nem a
possibilidade de uma revisão uniformizada final - confere a essa narrativa um caráter
lúdico, um certo aspecto de ‘irresponsabilidade’, de ‘brinquedo’.” (2005, p. 14)
Quem atua como protagonista na primeira narrativa policial brasileira é o delegado
Major Mello Bandeira. Como o precursor norte-americano, o detetive Dupin, Bandeira
procura ser uma máquina de raciocinar. Mas, ao final do romance, o delegado é
surpreendido namorando uma das moças detidas para investigação do crime, tendo um final
trágico após o deslize: Mello Bandeira suicida-se.
Além disso, O Mistério ironiza a literatura policial clássica de enigma. Tanto o
protagonista quanto a polícia como instituição são alvos do cômico. Seu desfecho é uma
grande ironia: temos uma crítica ao sistema judiciário, que é elaborada pondo em cena um
júri impressionável, a decidir sobre a culpa de um assassinato sem vítima, de certa forma
ironizando o próprio papel do leitor nesse tipo de narrativa.” (REIMÃO, 2005, p. 19). De
1920 para cá, tivemos um número significativo de textos brasileiros que se encaixam no
gênero policial, alguns deles de indiscutível qualidade e originalidade, conforme opinião da
estudiosa.
Apesar de O Mistério ser considerado o primeiro romance policial no Brasil do
ponto de vista histórico, para alguns amantes do gênero, o verdadeiro primogênito desse
tipo de narrativa foi gerado por Luiz Lopes Coelho, cuja obra, alvo de estudo desta
pesquisa, será detalhada mais adiante.
Posteriormente, com a explosão da criminalidade no século XX, sobretudo nos EUA
após a Segunda Guerra Mundial, o romance policial em geral passou a espelhar uma
realidade mais violenta, mais próxima da realidade, e este fenômeno literário foi
transplantado também para a Europa e para o Brasil. Surge então a vertente do romance
noir, ou romance policial negro.
Parada proibida, de Carlos de Souza, publicado em 1972, é, ao que se tem notícia,
o primeiro policial noir brasileiro, pois o narrador do texto é o protagonista, a narrativa
acompanha a investigação e a seqüência cronológica dos fatos, a descrição de atos
violentos e de uma realidade urbana sem disfarces. Alguns exemplos de narrativa noir
contemporânea são: Malditos paulistas (2003), de Marcos Rey, e A região submersa
(2000), de Tabajara Ruas.
Outra vertente originada a partir do romance policial clássico é a literatura
brutalista, centrada nos atos violentos e na realidade urbana. A obra de Rubem Fonseca,
também alvo do atual estudo, que será especificada mais adiante, exemplifica
primordialmente essa vertente do gênero policial.
Voltando-se o olhar sobre a produção brasileira atual, podemos perceber como nos
últimos anos houve um acentuado aumento de autores nacionais que podem ser
classificados como filiados à tradição da literatura policial. Como exemplo, Luiz Alfredo
Garcia-Roza, expressivo autor contemporâneo que escreveu vários romances que se
encaixam no gênero em questão, podendo-se mencionar: O silêncio da chuva (1996),
Achados e perdidos (1998), Vento sudoeste (1999), Uma janela em Copacabana (2001),
Perseguido (2003) e Na Multidão (2007). O protagonista que atua em todas as narrativas é
o delegado Espinosa. Segundo Reimão, “a especificidade do personagem Espinosa consiste
no fato de que, apesar de ser um detetive dedutivo-racional, ele não pode ser classificado
como um gênio ou uma infalível máquina raciocinante. Trata-se apenas de um sujeito de
habilidades medianas esforçando-se para acertar no seu trabalho.” (2005, p. 26) Luiz
Garcia-Roza é sem dúvida um dos nomes de maior destaque da atual literatura policial
brasileira.
Um dos fatores de incentivo à crescente produção do gênero atualmente está
relacionado às editoras. Pelo menos três importantes editoras nacionais publicaram, nos
últimos anos, coleções de literatura policial: Companhia das Letras, Record e Nova
Fronteira. Ao publicar livros em coleções e trabalhar o design de suas capas, as editoras
demonstram o “sintoma de que o perfilar de uma narrativa de um autor nacional em um
gênero da paraliteratura ou da literatura de massa, no caso, o policial, não é visto, pelos
agentes produtores de livros como um elemento desqualificador dessa narrativa; ao
contrário, é visto como um elemento a ser destacado.” (REIMÃO, 2005, p. 47)
Pela trilha que seguimos do romance policial brasileiro até agora, com a crescente
multiplicação de autores adeptos ao gênero e a atenção dada pelas editoras a esse tipo de
produção, podemos deduzir que “a história da literatura policial brasileira ainda terá muitos
outros capítulos” (REIMÃO, 2005, p. 50).
4. ANÁLISE DOS CONTOS DE LUIZ LOPES COELHO
Como já afirmamos no capítulo anterior, para alguns admiradores do gênero
policial, o primeiro brasileiro a praticar efetivamente esse tipo de narrativa foi o advogado
Luiz Lopes Coelho (1911-1975), com três livros de contos: A morte no envelope (1957), O
homem que matava quadros (1961/1962) e A idéia de matar Belina (1968). Há anos longe
das livrarias, a obra do autor torna-se novamente acessível com a reedição dos contos de
seu último livro, publicados em 2004 pela DBA. Trata-se justamente do livro de Coelho
que mais fez sucesso, vendendo cerca de 50 mil exemplares desde o lançamento, em 1968.
4.1 “Crime mais que perfeito”
O conto “Crime mais que perfeito” (do livro A morte no envelope), de Luiz Lopes
Coelho, foge às regras tradicionais do gênero policial em vários sentidos. Em um primeiro
plano, a análise estrutural do texto revela a presença da narração ulterior, ou seja, a diegese
situa-se no passado em relação à narração dos fatos. Quanto à voz que atua no conto, se nos
ampararmos nas classificações de Genette, encontramo-nos frente a uma narração em
terceira pessoa, sendo que o narrador dos acontecimentos é heterodiegético, ou seja, não é
personagem da história que conta. Essas características são comuns no gênero policial
tradicional, mas quando analisamos sob qual perspectiva os acontecimentos do texto nos
são transmitidos, ou seja, quando analisamos a focalização do conto, percebemos que Luiz
Lopes Coelho um novo papel ao leitor. Ou seja, não é mais aquele de simplesmente
recolher as pistas de um crime ocorrido na narrativa, o de detetive, mas o papel de
cúmplice, de acompanhar, lado a lado, os planos do criminoso, seus passos, e até mesmo
seus pensamentos. Segundo Genette (s.d., p. 188), no romance de intriga, policial ou de
aventura, o interesse nasce do fato de haver um mistério: o narrador não revela de
antemão tudo o que sabe; o personagem age sem que o leitor seja informado sobre seus
pensamentos ou sentimentos (o que caracteriza a focalização externa).
Em “Crime mais que perfeito” vemos uma focalização interna fixa, pela qual o
narrador tem tanto conhecimento dos fatos quanto um determinado personagem; neste caso,
quanto o personagem Davi. O assassinato de Jorge é descrito detalhadamente, passo a
passo, desde os preparativos:
Sempre encostado à parede, Davi caminhou até à porta lateral da
casa, onde uma pequena entrada o protegia da visão da rua. Na
soleira de mármore, aproximou os dois litros de leite, trocou-lhes as
tampas de papelão, reajustando as presilhas. Levantou-se, enfiou no
bolso do casaco o que fora deixado para Jorge e, com a mesma
precaução, dirigiu-se ao lugar da espera, perto do tanque. (1962,
p. 14)
Mas não são apenas as ações que o narrador apresenta, pois também esclarece aos
leitores os pensamentos do criminoso ao cometer seus atos: “Evitou, naquela noite, a
companhia de um amigo, temendo revelar, à sensibilidade alerta do íntimo, um gesto mais
nervoso, um silêncio desusado, enfim, um sinal de inquietação.” (COELHO, 1962, p. 12)
Em relação ao tempo, podemos verificar algumas anacronias ao longo do conto, ou
seja, as diferentes formas de discordância entre a ordem da história e a ordem da narrativa.
De acordo com Genette (s.d., p. 38), as anacronias podem ter dois movimentos: de
retrospecção (analepse) ou de antecipação (prolepse). Em “Crime mais que perfeito”, temos
a presença de analepse quando o narrador volta um pouco no tempo para nos contar sobre a
germinação do plano de Davi: dias, por isso, resolvera mudar seu comportamento, não
agravar, com novas rixas, suas relações com a irmã. Recolhera conselhos, reprimira
censuras e ameaças, enquanto o plano diabólico progredia na ardência do cérebro, como o
relógio trabalhando no interior da bomba.” (COELHO, 1962, p. 11). Quanto ao movimento
de prolepse, este é muito sutil, atuando como que um esboço na narrativa, que o leitor
mais desatento, em uma primeira leitura, pode não deduzir com rapidez o que está para
acontecer, ou seja, o crime cometido por Davi: “No tear da razão, urdia o crime original.”
(1962, p. 9)
A narrativa caracteriza-se por demarcar com grande precisão a hora exata de cada
acontecimento. Assim por exemplo, Davi anota em sua caderneta os horários em que o
furgão da “Granja Holandesa” passa por sua casa e pela casa de Jorge, durante vários dias:
“Deitado na cama, leu a caderneta: segunda-feira, 4,08 – 4,15; quarta-feira, 4,05 – 4,12. Na
última anotação: chegada 4,15, saída: 4,20. O furgão parava na Rua Sena do Vale n. 168,
sempre depois das 4 horas da madrugada, ao passo que o leite era entregue em sua casa às 3
horas, mais ou menos.” (COELHO, 1962, p. 11)
Mas não só o protagonista marca o horário exato, chegando à precisão dos minutos.
O narrador também ao leitor informações com precisão temporal: “Sete horas da noite.
Seu plano seria executado a partir das 3 horas da manhã. [...] Voltaram quase uma hora.
A tia disse-lhe boa-noite.” (1962, p.12). Muitas vezes, o narrador nos dá uma temporalidade
exata dos acontecimentos da narrativa através de seu personagem, que sempre ilumina e
olha o relógio de pulso em meio à escuridão da noite: “Apanhando a lanterna, clareou o
relógio do pulso: 3,20.” (1962, p. 13); “Luz sobre o pulso: 3,35. [...] Relógio iluminado: 4
horas.” (1962, p. 14).
Davi é minucioso em seu plano, e faz de tudo para que elecerto, calculando cada
minuto exato de suas ações, além de utilizar-se de outros artifícios, como as botas de
borracha, as luvas, a lanterna, o cuidado na troca dos litros de leite etc. Ele é concebido
pelo narrador como um mágico, que faz seus truques sem que ninguém os desvende, sem
deixar vestígios: “Um mágico verificando o instrumental antes de levantar-se o pano. Um
mágico, porque aqueles objetos o auxiliariam no sortilégio fatal” (COELHO, 1962, p 12).
Mas não Davi é minucioso; o narrador também o é. Ele tem todo o cuidado de narrar os
passos do criminoso, desde seus pensamentos até os mais ínfimos detalhes de suas ações,
além de dar ao leitor uma exatidão temporal dos fatos. Personagem e narrador estão unidos
pela focalização, mas também estão unidos na criação do crime perfeito. Assim como o
leitor, o narrador atua como cúmplice da diegese, e colabora de certa maneira para
explicitar a perfeição da obra de Davi, já que a transmite da melhor e mais detalhada forma
possível.
Sabemos sobre o plano de Davi, suas intenções e os artifícios dos quais se utiliza.
Após o crime” da troca entre leite envenenado e leite saudável na casa de Jorge, o
personagem cai no leito “com um suspiro de alívio” (COELHO, 1962, p. 15). Até então, o
leitor não tem nada do que suspeitar ou duvidar. Não nenhum crime ou charada a
desvendar, como na fórmula clássica do romance policial. Mas ainda o conto de Luiz Lopes
Coelho não perde a característica clássica do gênero: o mistério, que se instala quase ao
final da narrativa; não mais nos deparamos com a curiosidade do “quem”, como durante a
leitura de uma aventura de Sherlock Holmes, mas com uma grande expectativa em relação
a “o quê” acontecerá? Em um rápido diálogo com tia Olga, no dia seguinte ao crime, Davi
fica sabendo que a polícia está em sua casa e quer vê-lo. A partir daí o leitor sente a mesma
angústia que o próprio criminoso sente: “Enquanto as mãos trêmulas lavavam o rosto,
pensou: ‘É impossível. Não cometi nenhum erro. Ninguém me viu.’ Revisou mentalmente
todos os seus atos: não encontrou a menor falha.” (1962, p. 16).
O que deu errado? Um dia perfeito, um plano perfeito, um crime perfeito. Mas por
que a polícia está lá? O narrador voz a seus personagens para transmitir aos leitores a
resposta tão esperada:
Estou aqui em cumprimento de um dever bastante desagradável.
Jorge Antar foi encontrado morto, esta manhã, na casa em que
morava.
— Que horror!
Sua irmã Cláudia... também morta. Ao lado dele. Casamento
contrariado, informou a empregada. Suicidaram-se com veneno
misturado no leite. (COELHO, 1962, p. 16)
O mistério é desvendado rapidamente: a polícia não está na casa de Davi para
prendê-lo pelo crime cometido, mas sim, para avisar que a irmã Claúdia, que supostamente
estaria viajando na fazenda de Doralice Neves, se encontrava na casa do namorado Jorge,
morta por envenenamento, assim como ele.
O crime de Davi é perfeito. A polícia não descobre a verdade, e tudo se passa como
se fosse simplesmente um suicídio, por um casamento contrariado”, como disse a
empregada. O criminoso sai impune, e o crime, ironicamente “mais que perfeito”, além de
não ser descoberto, mata duas pessoas e não apenas uma.
Como se vê, o conto de Luiz Lopes Coelho vai além dos padrões usuais da narrativa
policial. Não se trata aqui de encontrar o criminoso, tampouco a narrativa caminha rumo à
punição do culpado. Trata-se, ao invés disso, do detalhamento do estado emocional, dos
pensamentos, do processo interno vivido pelo criminoso. O conto não prioriza a ação o
crime em si –, mas a experiência de planejar e cometer um crime, tal como percebida
internamente pelo personagem.
Davi não é frio, ambicioso ou experiente. Ele utiliza-se da lógica apenas na
elaboração de seu plano, pois é apresentado pelo narrador como um personagem complexo,
um indivíduo profundo e sutil, para quem o crime representaria a redenção de um ente
querido, Cláudia. Davi revoltava-se com o amor de Cláudia pelo malandro Jorge, que
apenas visava à herança da moça, incauta e apaixonada. O narrador nos deixa bem claro
essa relação de afetividade entre o criminoso e sua irmã: “ergueu o interruptor do abajur e,
antes de comprimi-lo, contemplou a irmã adormecida. [...] Para Davi, ela seria sempre uma
criança. E que prazer divinal é fitar-se uma criança a dormir!” (COELHO, 1962, p. 10)
Nesse momento de exposição de aspectos subjetivos do personagem, o narrador até
cria uma relação irônica muito sutil da figura de Davi com imagens cristãs, como se, ao
redimir a irmã através do assassinato de Jorge, o personagem passasse de criminoso a
santo: “Seus olhos foram ficando mansos, os lábios planejaram um sorriso, a cabeça se
inclinou no êxtase, como a dos santos da Renascença a namorar o Jesus Menino.” (1962,
p. 10). Mas Davi não planeja o crime apenas em amor à honra da irmã, mas também, pelo
amor à mãe, a qual está presente no conto através de um retrato; não sabemos se está
morta ou apenas distante do local em que os personagens se encontram: “Na cômoda, os
retratos de sua mãe e de Cláudia sorriam em idades diferentes. A lembrança súbita de Jorge
Antar dissipou o enlevo deixado em seus olhos pela moça em doce sono. Virou-se para o
retrato: ‘Juro, mamãe, que acabarei com isso.’” (1962, p. 10).
Portanto, Davi não se encaixa no perfil dos criminosos dos romances policiais
tradicionais. E seu fim também está longe de se assemelhar aos dos outros. O personagem
sai impune pela lei dos homens, mas é condenado pelas leis de sua própria consciência.
Davi não consegue conviver com a culpa de ter sido a causa da morte da própria irmã
amada, e o resultado disso nos é descrito pelo narrador em duas linhas ao final do conto,
causando uma súbita e grande surpresa no leitor: “A vida ficou pesada para Davi e, um dia,
ele a jogou no mar.” (COELHO, 1962, p. 16) O conto termina com uma ironia trágica: é
como se os personagens (principalmente Cláudia, a irmã) não pudessem escapar de seu
destino, que se apresenta como algo imutável e acima da lógica humana. E o que era para
ser perfeito, é na realidade “mais que perfeito”, pois o planejamento de uma morte
origem a três. Podemos perceber como o título do conto caracteriza uma grande ironia, que
se descortina para o leitor nas últimas linhas da narrativa.
Como vimos, Luiz Lopes Coelho não tem em vista em seus contos policiais
somente a apresentação de uma intriga e a solução desta, ou seja, não se prende apenas ao
plano temático, ao plano do conteúdo, mas ao plano estético também. Sua linguagem é
esmerada, bem trabalhada, com recursos estilísticos. A própria frase de encerramento, que
acabamos de citar, serve de exemplo: ao invés de simplesmente dizer que Davi se suicidou,
o narrador prefere recorrer a uma imagem com efeito poético. E ao utilizar-se de um
eufemismo, consegue intensificar a dramaticidade do epílogo.
E essa presença de metáforas dá-se ao longo do texto, como na passagem descrita
acima em que o narrador compara Davi a um mágico, ou em: “Depois, apagou a luz; no
cenário negro, seus olhos escancarados denunciavam o felino emboscado.” (COELHO,
1962, p. 13)
“Crime mais que perfeito” é um dos contos que exemplificam um perfil de literatura
policial bastante específico: voltado para os aspectos subjetivos, os efeitos curiosos do
acaso, as nuances sutis da convivência humana. Essa característica provavelmente
acompanha uma tendência do romance moderno em geral, “no rumo de uma complicação
crescente da psicologia das personagens” (CANDIDO, 1968, p. 60). Mas é a primeira vez
que um autor policial se apropria de tal tendência para criar um enredo diferenciado em
solo brasileiro, em um gênero estrangeiro que primordialmente valorizava a lógica e a
objetividade. A partir da análise desse primeiro conto podemos perceber o valor da obra
literária de Luiz Lopes Coelho, que dá um traçado singular à tradicional novela de detetive.
4.2 “Simte, o irmão de Têmis”
“Simte, o irmão de Têmis” é um conto muito peculiar, tanto em relação à sua
composição quanto à temática, motivo pelo qual foi escolhido para integrar nosso corpus de
análise. Temos a presença de narração ulterior e dois tipos de narradores ao longo do texto:
um heterodiegético e outro homodiegético, de acordo com o nível narrativo. O narrador
heterodiegético pertence a uma narração extradiegética, introduzindo a história e dando o
epílogo a esta, enquanto o narrador homodiegético pertence a uma narração metadiegética,
epistolar, que prevalece na maior parte do conto. Quanto à perspectiva, temos a presença da
focalização interna em ambos os níveis narrativos. Fixa-se no personagem Professor
Rodrigues na primeira narração, extradiegética, em que o narrador não pertence à diegese
como personagem. E a focalização interna variável na outra narração, metadiegética, em
que o narrador ora nos traz a diegese sob seu próprio ponto de vista como personagem da
história, ora sob o ponto de vista do personagem Rodrigues.
A narrativa é iniciada com a apresentação do professor, que, numa quarta-feira, ao
abrir a porta de entrada de sua casa, depara-se com uma carta:Desalentado, como sempre,
abriu a porta. Adiante da soleira, a carta originou levíssima variação nos gestos de chegada.
Abaixou-se, recolheu-a sem interessar-se, mas o tato despertou-lhe curiosidade. Continha
dinheiro.” (COELHO, 1962, p. 65)
Quando o personagem abre a carta, inicia-se a narrativa metadiegética, epistolar, e
com ela, a trama propriamente dita do conto. O narrador homodiegético se autodenomina
“Simte, o irmão de Têmis”, e conta sua trajetória ao Professor Rodrigues (narratário
intradiegético) por meio de uma analepse:
Tudo começou quando assisti ao homicídio. Fui eu a única
testemunha. ‘Sabiá’ matou em legítima defesa. puxou o revólver
quando o ‘Reverendo’ começava a estrangulá-lo. [...] um homem
podia salvá-lo da cadeia: eu. ‘Sabiá’ procurou-me desesperadamente
pelos jornais e pelo rádio, através de apelos patéticos. (COELHO,
1962, p. 67)
Tendo em suas mãos o poder de livrar um homem da prisão (“Sabiá”), o narrador-
personagem sente um prazer imenso, e descobre uma sensação como que divina em decidir
acerca do destino de um homem:
Que volúpia estranha sentir-se a gente divindade lúbrica no pleno
gozo da faculdade de estatuir uma vida humana! Dela dispor, no
entanto, pela vontade pura e simples, sem o ergástulo dos códigos,
sem a férula da justiça organizada. Senti em mim o borbulhar dos
Deuses, como os do gênio sentiu o poeta. (COELHO, 1962, p. 68)
A partir de então, assim como as divindades da mitologia greco-romana possuíam o
poder de interferir no destino da humanidade, o narrador-personagem decide também atuar
no destino da sociedade que o cerca, “renascendo” de uma vida humana para a divindade,
criando sua própria mitologia: ele seria “Simte, o irmão de Têmis”, a deusa que representa
a justiça: “Outras vidas passaram por minhas mãos, não mais aquelas mãos pagãs e
terrenas, porém mãos divinas e sobrenaturais, de um novo e gratuito irmão de Têmis, que
foi filha do céu e da Terra...” (COELHO, 1962, p. 68).
Segundo o Dicionário Básico de Mitologia, de Luis A. P. Victoria (2000, p. 142),
Têmis “é filha do Céu e da Terra; numa das mãos empunha uma espada e na outra sustenta
uma balança. A princípio morou na Terra, porém, envergonhada dos crimes que nela se
cometiam, refugiou-se no Céu, onde foi colocada na arte do Zodíaco que chamamos
Virgem”. Assim como Têmis representa a justiça no Céu, Simte almeja a justiça terrena,
mas segundo leis próprias, que nem sempre são aquelas nascidas sob os auspícios dos
valores humanos da ética. Logo descobrimos que Simte ocupa um dos papéis da
“santíssima trindade” do romance policial, conforme a denominação utilizada por Kothe
(1994, p. 149): Simte torna-se assassino, mas sua trajetória não se esgota nisso. Coelho não
segue o protótipo do assassino, preferindo criar um assassino com uma arguta análise de
sua sociedade, que não mata para sobreviver, ou para vingar-se pessoalmente, mas, sim,
para fazer justiça de alguma forma: Simte mata aqueles que julga maléficos a outros
indivíduos ou à comunidade em que vivem. Mais uma vez, percebemos a peculiaridade dos
personagens de Luiz Lopes Coelho, que são movidos por aspectos subjetivos e complexos,
fugindo assim das figuras que atuam nos romances policiais clássicos e que são
caracterizadas essencialmente pela sua ação e não por seu caráter humano:
Mais um ato de justiça de Simte, irmão de Têmis, que foi filha do
céu e da Terra. Dessa justiça que os tribunais não podem aplicar,
porque os crimes a que ela visa estão capitulados nas leis da bondade,
do amor, da fraternidade universal. Assim foi no caso de ‘Sabiá,
cujas chantagens levaram ao suicídio a jovem do pranto permanente,
assim foi no caso do diretor do orfanato que torturava crianças em
busca da disciplina ideal, assim foi no caso do médico que explorava
as moças cujos filhos não deviam sazonar. (COELHO, 1962, p. 71)
Simte não age sozinho. A seu lado sempre es Sancho, que não é um personagem
humano, mas a consciência do criminoso, a qual sofre no conto uma humanização:
Sancho não é gente de carne e osso. Sancho é o meu espírito. Com
a tenacidade de um iogue, realizei a ubiqüidade espiritual,
conseguindo separar-me completamente de Sancho. Reside ele um
apartamento de meu cérebro, freqüenta circunvoluções próprias e
desfruta de uma autonomia invulgar, mormente no que diz respeito
ao meu comportamento. Penso, mas ao mesmo tempo, escuto
Sancho. Goethe afirmou: ‘pensar é fácil; agir é difícil; agir de acordo
com o pensamento, quase impossível.’ (COELHO, 1962, p. 66)
Por acaso, segundo o próprio narrador homodiegético nos diz, a vida do Professor
Rodrigues entra em seu “oráculo”: “Sua vida, meu caro professor, entrou por acaso no meu
oráculo, que primeiro foi de Têmis e depois de Delfos.” (1962, p. 68). Simte decide
concretizar seus atos de justiça social através da vida do Professor Rodrigues, escolhido ao
acaso, que traz consigo ao mesmo tempo uma carreira brilhante e a sina de um casamento
arruinado, uma esposa ciumenta, desleixada, consumista. O autor homodiegético, ao
mesmo tempo em que tenta mostrar ao professor uma síntese sobre sua própria vida, narra a
nós, leitores, por meio de uma analepse, as etapas da vida deste personagem:
Jovem, recém-formado, vindo de outras terras, estudioso, tímido, a
jejuar de amor porque não lhe apetecia o sexo dos bazares, teria,
realmente, que se casar com a primeira. No começo, as diferenças de
educação compensaram-se com o lar organizado, a vida metódica, o
sexo à mão, viçoso e natural. Mas o tempo, meu amigo, não tem pena
dos erros. (1962, p. 68)
E nos um retrato que chega até a ser irônico de Dona Carlota, esposa de
Rodrigues e fonte de toda sua infelicidade e decadência profissional: “[...] D. Carlota
fechou a portinhola e enveredou pelo atalho, carregando aquelas enxúdias verdadeiramente
obscenas.” (COELHO, 1962, p. 70). E isso depois de ter dito:
Nutria, quem sabe, o diabólico desejo de transformar um professor de
Universidade num escravo sexual. Supôs a estúpida que a flor não
fenecesse; [...] as cenas de ciúme, tão degradantes, tão afrontosas.
[...] Os gastos exagerados, comprometendo seriamente a sua
economia, sob o pretexto de que a ‘outra’ participava de seus ganhos.
[...] O abandono da casa, onde as muitas empregadas mandam e
desmandam; seus livros estragam-se, por falta de conservação, a
roupa se desmantela... Os credores se acumulam: D. Carlota não paga
contas; usa o dinheiro para comprar bilhetes de loteria e para
fiscalizá-lo. (COELHO, 1962, p. 69)
Após tantos detalhes íntimos do cotidiano do personagem, o leitor se pergunta:
como Simte sabe tanto assim sobre a vida do Professor Rodrigues? Surge um sentimento de
incredibilidade: será que tudo o que o narrador homodiegético conta é verdade? Mas Simte
deixa a Rodrigues e a nós mesmos, leitores, um voto de confiança, quando narra sobre a
suspeita de Dona Carlota em relação à outra mulher na vida do professor: “(Segui-o,
Professor, algumas vezes, e assegurei-me da inexistência de outra mulher.)” (1962, p. 69).
Além de conhecer o cotidiano e a vida do Professor, Simte, a todo tempo, mantém um elo
de afetividade com o narratário, como se o conhecesse intimamente: “Mas o tempo, meu
amigo, não tem pena dos erros. [...] Sua vida, meu caro professor, entrou por acaso no meu
oráculo” (1962, p. 68). “Tem o senhor 48 anos e a ciência muito espera, ainda, de seus
conhecimentos e de suas pesquisas.” (1962, p. 70).
Então, quase nos últimos parágrafos da carta, Simte, o narrador homodiegético,
revela o propósito de sua narrativa epistolar: o assassinato de Dona Carlota “com gosto”
(1962, p. 70), e, de acordo com suas próprias concepções, a salvação da vida de Rodrigues
e de sua carreira a partir desse ato: “Molhei com clorofórmio o chumaço de algodão e,
quando ela passou por mim, agarrei-a por trás e comprimi-lhe fortemente a boca e o nariz.
Em poucos segundos, D. Carlota amoleceu. Puxei o corpo, coloquei-o debaixo da
primavera. Cingi o pescoço de D. Carlota com um pedaço de fio elétrico e apertei-o com
gosto.” (COELHO, 1962, p. 70).
Assim como no conto anterior, “Crime mais que perfeito”, em que o assassino Davi
mata por amor à irmã, no conto em questão, Simte mata por piedade pela vida pacata de um
homem que sofre em um casamento corrosivo. Simte faz justiça com as próprias mãos, age
através do crime como justiceiro sanando o que ele considera injusto ou desumano, e, se
cometera algum crime, o único seria o de roubar o prazer que Rodrigues teria em assassinar
a própria esposa: “Reconheço que lhe roubei um prazer, Professor Rodrigues. Mas teria o
senhor coragem para usufruí-lo? Penso que não.” (COELHO, 1962, p. 70).
Se neste conto não temos a presença de um detetive, figura típica dos romances
policiais, temos o sentimento de apreço a um certo senso de justiça, mas expresso pela
figura inversa à do detetive: o criminoso. Como exposto acima, Simte não mata para
roubar ou para se vingar, mas simplesmente movido por aquilo que considera ser seu senso
de justiça, embora este não esteja fundado nas leis humanas. Prova disso é a afirmação a
seguir: “P.S. Simulei um roubo, naturalmente. Restituo-lhe a importância de Cr$ 6.756,00,
encontrada na bolsa de dona Carlota.” (1962, p. 71). E o narrador homodiegético mais uma
vez mostra sua ironia: “Ao senhor Professor, apresentamos, Sancho e eu, as nossas
condolências.” (1962, p. 71).
Após o término da narrativa epistolar, metadiegética, voltamos a nos deparar com o
narrador heterodiegético, trazendo o epílogo do conto: o personagem Professor Rodrigues
recebe o telefonema da polícia avisando-o sobre o ocorrido, e decide queimar a única pista
do assassinato de sua mulher, a carta de “Simte, o irmão de Têmis”, conforme o criminoso
havia lhe sugerido. Temos a presença de dois fatos que fogem novamente às regras do
romance policial tradicional: a impunidade do criminoso e a cumplicidade do Professor em
face ao assassinato de seu próprio cônjuge.
A narrativa é circular, pois termina de forma semelhante à que começou: falando
sobre o modo de andar de Rodrigues. Nas primeiras linhas do texto, esse andar nos
transmite o desânimo do personagem ao voltar para casa: “Nem mais a quarta-feira, melhor
dia da semana para voltar a casa, animava o andar submisso e obscuro do Professor
Rodrigues.” (1962, p. 65). E ao final da narrativa, sentimos a sutileza da ironia do narrador
ao registrar um quê de mudança no estado de espírito desse mesmo personagem: “Saiu.
Havia algo muito diferente no andar do Professor Rodrigues.” (COELHO, 1962, p. 72).
A partir de exemplos citados acima, começa a ficar evidente que Luiz Lopes Coelho
aproveitou elementos do passado cultural e literário para elaborar seu conto. Em primeiro
lugar, os empréstimos tomados à mitologia greco-latina. Além do caso mais explícito de
Têmis, o narrador recorre a outros seres, deuses e até lugares ticos, como Titéia, Júpiter,
Saturno, as Parcas, Urano, Delfos, Apolo, etc. Além disso, também é evidente a referência
ao livro Dom Quixote de La Mancha, pois, tal como no texto de Cervantes, também na
narrativa policial de Coelho, o personagem Sancho atua como “fiel escudeiro” ou auxiliar
de outros personagens principais (de Dom Quixote, no romance de Cervantes; de Simte, no
conto do autor brasileiro). Finalmente, é preciso mencionar também que no conto
referências ao romancista alemão Goethe.
Essa retomada de elementos da cultura literária universal casa-se com a própria
caracterização do narrador-personagem Simte. Por meio da carta enviada ao Professor,
percebemos que estamos diante de um criminoso muito culto e instruído (conhecedor de
mitologia e literatura), e capaz de empregar palavras raras e rebuscadas, como “enxúdias”,
“ergástulo”, “férula”. Como já pudemos perceber na análise do conto anterior, Luiz Lopes
Coelho não dedica seus contos policiais meramente à apresentação de uma intriga e a sua
solução, ou seja, não se prende apenas ao plano do conteúdo, mas tem em vista o plano
estético também. É por essas e outras características que Coelho trilha um caminho próprio
no gênero policial brasileiro, com traços muito peculiares.
4.3 “Um candelabro apaga uma vida”
Em relação aos outros contos escolhidos para a análise da obra de Luiz Lopes
Coelho nesta pesquisa, “Um candelabro apaga uma vida” é aquele que mais se aproxima da
estrutura clássica do romance de enigma.
A narrativa é iniciada com a apresentação de um personagem, Boris Weidman, um
estrangeiro da Rumânia vindo ao Brasil, e sumariamente sabemos que ele será o alvo da
intriga ao longo do conto: Boris fora assassinado. A narração presente no texto é ulterior, o
narrador é heterodiegético, e a focalização varia entre interna e externa. Temos a
perspectiva interna quando o narrador fixa seu ponto de vista no delegado Dr. Leite,
relatando-nos suas ações, seu raciocínio, suas conclusões; e a perspectiva externa em
relação aos outros personagens no início do conto, que agem à nossa frente sem que
tenhamos conhecimento de seus pensamentos ou sentimentos. Desta maneira, o narrador
proporciona ao leitor ao mesmo tempo o suspense e uma certa autonomia, deixando que ele
siga no encalço das pistas descobertas pelo detetive para decifrar a incógnita: quem matou
Boris Weidman?
O conto é repleto de retrospecções, evocando ulteriormente acontecimentos
aleatórios, anteriores ao ponto da história em que nos encontramos e que aos poucos vão
preenchendo espaços da trama principal. A partir de uma analepse, o narrador traz o
passado do personagem Boris à narrativa atual: “Recém-chegado ao Brasil, o heróico e
maneiroso fugitivo encantou a moça. [...] Casaram-se, logo que Boris pôde entender a
pergunta do padre.” (COELHO, 1962, p. 200).
Boris Weidman casara-se com Dulce, a filha do Professor”, instalando-se em sua
residência. Mas logo surgiram os atritos entre a família: “Aos poucos o caráter de Boris foi
perdendo os disfarces. A princípio, meteu-se em corridas de cavalo; depois, no jogo
carteado dos clubes. Largou o emprego, dormia até tarde, pedia dinheiro ao ‘Professor’. [...]
A coisa piorou: Boris passou a maltratar a esposa.” (1962, p. 200).
Logo no início do conto, o narrador nos uma pista, um esboço de que havia
algo de errado com o caráter da vítima: “Pouca gente, muito pouca, lamentou a morte de
Boris.” (1962, p. 199). Em seguida, através de outro movimento de retrospecção, o narrador
nos informa sobre alguns aspectos do passado do “Professor”: “O ‘Professor’ estava lendo
num banco do pátio. Ouviu os gritos das meninas, fugindo às labaredas. O coração pulou
com ele, mas as pernas cederam e o corpo caiu. Repentina paralisia inutilizou-as. Nunca
mais andou.” (1962, p. 200).
A narrativa então retorna ao ponto presente da diegese (após a morte de Boris), e as
investigações acerca do crime são iniciadas. Por meio de um discurso indireto,
conceitualmente chamado por Genette de “discurso transposto” (s.d, p. 169), o narrador nos
apresenta os depoimentos de alguns personagens: “Na noite do crime, contou o ‘Professor’
à polícia, Boris chegou às onze e meia, mais ou menos, e pôs-se a discutir com a mulher.
[...] Havia luta. Acionou a cadeira e atingiu o corredor. Pôde ver, ainda, um homem
transpor, em fuga, a porta da rua.” (COELHO, 1962, p. 201). E ainda:
Depois que a fadiga enxugou as lágrimas, Dulce prestou
esclarecimentos. Confirmou as declarações do ‘Professor’ quanto à
porta fechada e aos fragores da luta. Explicou ter vindo Boris à
procura do dinheiro das despesas que o pai lhe entregara naquele dia.
As manchas roxas nos braços e no pescoço denotavam os argumentos
vitoriosos da extorsão. [...] Rematou o depoimento com lágrimas
retardatárias. (COELHO, 1962, p. 201)
Em cada depoimento, temos novamente a presença de analepses, pois só
conhecemos os antecedentes do assassinato através delas. Mas nem sempre o narrador
utiliza-se de discurso indireto. Muitas vezes ele voz a seus personagens através de
discursos diretos, talvez para que isso contribua com um tom mais realista no conto.
Genette, no livro Discurso da narrativa (s.d, p. 170) afirma que o discurso “relatado ou
reportado” é a forma mais mimética de discurso, em que o narrador finge ceder literalmente
a palavra à sua personagem. Por exemplo, no depoimento de “Garrucha”, o companheiro de
pôquer da vítima:
Seu doutor, não tenho nada com isso. A ‘truta’ não foi comigo.
Estávamos jogando pôquer no apartamento. O Boris entestou com o
Montalban, aquele tratador do Jóquei. [...] Começou o ‘bochicho’. O
Boris xingou em rumeno e avançou. Apartamos a briga. Montalban
abandonou o jogo. Saiu do apartamento, mastigando desaforos.
(COELHO, 1962, p. 202)
Como já exposto acima, “Um candelabro apaga uma vida” é um conto que se
aproxima muito do gênero policial tradicional: temos uma vítima, um assassino, um
mistério a ser desvendado e também a voz que incorpora a razão, o raciocínio lógico: um
detetive. Quem recebe este papel é o delegado Dr. Leite, presente em outros contos de Luiz
Lopes Coelho.
Segundo o narrador, Dr. Leite, “delegado de crimes ‘granfinos’” (COELHO, 1962,
p. 203), recebera as informações do caso de Boris acompanhadas do laudo da polícia. A
partir deste momento, o narrador mantém sua atenção fixa sobre o delegado, e
acompanhamos passo a passo as idéias e os raciocínios deste. Dr. Leite, quando tenta
solucionar os casos, medita em voz alta, como um “artista dramático ensaiando papel”
(1962, p. 203). E o narrador prefere que tenhamos acesso às reflexões do delegado
diretamente, por meio do discurso reportado, direto: “— Duas pessoas da casa do
‘Professor’ podiam ter cometido o crime: Dulce e Arnaldo. Além dessas, Montalban, o
tratador de cavalos. A porta fechada e o homem em fuga poderiam representar
contribuições do ‘Professor’ para acobertar a filha.” (1962, p. 204)
Primeiramente, o detetive investiga a hipótese de Montalban ser o assassino. Mas
esta logo é descoberta como sendo inválida. Depois Doutor Leite pesquisa a trajetória de
Arnaldo, cunhado de Boris. Mas este personagem também não poderia ser o assassino,
segundo testemunhas que confirmaram sua presença em uma partida de xadrez na noite do
crime. Logo o detetive se prende a pistas mais específicas que poderiam levá-lo à resolução
do crime: “— Então, é nos sapatos que está a solução. Os sapatos de Boris Weidman não
estavam bastante molhados. E vocês se lembram da chuvarada daquela noite. Isso prova
que ele não voltou a para casa. Voltou de táxi, provavelmente.” (COELHO, 1962,
p. 205)
Após vinte dias de busca, o taxista que levara Boris até o casarão na noite de seu
assassinato finalmente é descoberto, sem trazer novidades ao acaso. Todos os suspeitos do
crime haviam sido descartados. E o narrador nos informa que mesmo assim “o velho Leite
não se mostrou surpreso. Passou o resto da tarde e parte da noite na Biblioteca Municipal,
lendo e consultando livros.” (1962, p. 207)
Temos, no exemplo acima, a presença de uma alteração na perspectiva da narrativa.
Até então, o narrador acompanhou o Dr. Leite, detalhando-nos suas ações e reflexões, o que
caracteriza a focalização interna. Mas, ao relatar que o delegado não desanimara em suas
investigações e que passara a tarde e parte da noite estudando na biblioteca, não nos conta o
que ele teria em mente para a solução do caso, quem seria o próximo suspeito, o que ele
buscava nos livros, qual seria a próxima medida a tomar. Enfim, há a omissão de certa ação
ou pensamento importante do personagem que o narrador não pode ignorar, mas prefere
esconder do leitor, para gerar assim o suspense na trama. Genette chama esse fenômeno de
“paralipse”, que determina uma omissão voluntária na narrativa (s.d, p. 194).
Na manhã seguinte, após um passeio pela cidade, Leite vai ao casarão em que Boris
fora assassinado e conversa com o “Professor”. Nos últimos parágrafos do conto, e na
conseqüente resolução da intriga principal, o narrador mais uma vez prefere dar voz a seus
personagens, expondo a conversa entre eles em discurso direto. Finalmente descobrimos o
que Dr. Leite havia pesquisado na noite anterior:
Antes de mais nada, quero dizer-lhe que aperfeiçoei ontem meus
conhecimentos sobre as misteriosas relações do corpo e do espírito.
[...] Quando o paciente é assaltado por um choque emotivo e, por
isso, sofre um desequilíbrio físico, pode ser curado, de súbito, por
mecanismo igualmente emotivo. [...] O senhor, pelo que sei, sofreu
traumatismo emocional num incêndio [...]. (COELHO, 1962, p. 209)
Tudo nos indica então que o “Professor”, único personagem que não havia sido
considerado como suspeito pelo delegado devido a um fator de ordem física, ou seja, sua
paralisia e conseqüente necessidade da cadeira de rodas, era de fato, o assassino de Boris. O
diálogo entre ele e Leite nos a entender que, ao ver sua filha ser espancada pelo genro,
levando um choque semelhante ao que lhe causara a paralisia, o Professor recuperara os
movimentos, e decidira agir em legítima defesa de Dulce e acabar com a vida daquele que
os importunava. Nada nos é relatado diretamente, mas subentendemos a conclusão do crime
através das palavras do detetive: Depende exclusivamente do senhor o esclarecimento
do caso. O senhor foi a única pessoa que poderia ter...visto Boris espancar a mulher.”
(COELHO, 1962, p. 209).
Parece que o delegado gostaria de ter dito: O senhor foi a única pessoa que poderia
ter matado Boris Weidman. Em seguida, Leite faz uma crítica ao personagem que nos faz
refletir a própria sociedade em que vivemos:Eu previa isso. O seu silêncio aumenta
o número dos crimes insolúveis. Só cabe à polícia encerrar o caso.” (1962, p. 209).
Em vista de tudo isso, o conto encaixa-se nos moldes do gênero policial: tem uma
vítima, um assassino, um delegado que atua no papel de detetive e um enigma. Ou seja, o
texto desenvolve o tema do crime e da incógnita envolvendo a identidade do criminoso
mas, apesar disso tudo, não se esgota nisso. A vítima não é tão inocente quanto aparenta, o
criminoso sai impune, e o detetive vai até o limite das possibilidades devido ao senso de
justiça que lhe é próprio. Dr. Leite não insiste na denúncia ou na confissão por julgar o
crime como moralmente justificável, e prioriza um julgamento particular a um veredicto da
instituição judiciária. Ele descobre a verdade acerca do crime, mas a guarda para si, tendo a
polícia que encerrar o caso como insolúvel.
E o conto termina com uma grande ironia do delegado, que recomenda ao
“Professor” “com um sorriso cheio de bondade” (COELHO, 1962, p. 209): “— Daqui a uns
dois anos, o senhor deveria fazer uma viagem à Europa e ir especialmente a Lurdes...”
(p. 209).
Lourdes é uma cidade da França com uma história ligada à religiosa. Diz a lenda
cristã que em 11 de fevereiro de 1958, nessa localidade francesa, às margens do rio Gave,
Nossa Senhora manifestou de maneira direta e próxima seu amor pela humanidade,
aparecendo a uma menina de 14 anos, Bernadete Soubirous. A partir de então, vários fatos
inexplicáveis foram registrados na cidade, sendo Lourdes conhecida na França e na Europa
como a cidade dos milagres. Imaginamos que Dr. Leite tenha recomendado ao “Professor”
uma viagem especial a Lourdes para encenar o milagre repentino que acontecera: a volta
dos movimentos de suas pernas, o que traz a conseqüente solução de ser ele o criminoso
por ter matado Boris em defesa da filha. O comentário de Dr. Leite esclarece nossas
dúvidas e torna-o cúmplice do crime, pois até uma dica ao “Professor”: que ele realize a
viagem, mas dali a uns “dois anos”, provavelmente para não gerar maiores suspeitas.
4.4 “E o delegado assassinou o assunto”
O conto “E o delegado assassinou o assunto” é construído pela junção de duas
narrativas: a primeira traz a história do crime cometido pelo personagem Demóstenes
Calado, objeto principal do discurso, e a segunda narrativa, interligada à primeira por um
texto metadiegético, uma notícia descrita nos jornais, traz a figura do delegado Doutor
Leite, que à distância reflete sobre o caso do crime, cena que dá epílogo ao conto.
A narrativa caracteriza-se por ser ulterior, e o narrador é heterodiegético, ou seja,
não atuante como personagem da história. Dessa forma, a perspectiva da diegese recai
sobre o personagem Demóstenes, o que caracteriza uma focalização interna fixa. Assim
como no primeiro texto analisado, “Crime mais que perfeito”, Luiz Lopes Coelho um
novo papel ao leitor, mais denso do que aquele de simplesmente presenciar a coleta de
pistas e decifrar quem é o autor de um crime. O leitor não tem o papel de detetive, e sim, o
papel de cúmplice, que acompanha, lado a lado, os passos do criminoso, seus pensamentos,
tendo uma minuciosa descrição do assassinato proporcionada pelo narrador.
A diegese é iniciada com a descrição da trajetória de Demóstenes Calado,
personagem principal do conto, que, ao sair do trabalho, decide tomar um chope no bar
Três Dados. Ao mesmo tempo em que acompanhamos as ações do protagonista, temos
também a descrição de seu cotidiano e sua personalidade:
[...] usinava idéias, mas raramente as transmitia: era de pouco falar.
Aproveitava-se das idéias o seu patrão, na empresa de publicidade; os
amigos, os conhecidos, os eventuais serviam-se de seu silêncio, da
sua qualidade de bom ouvinte, para desovar problemas afetivos,
coisas de amor, tropeços de negócios, com o fito de recolher um
conselho, um lenitivo, um impulso. (COELHO, 2004, p. 63)
Por analepses retrospecções ao passado do protagonista que se efetuam no texto
através de suas próprias memórias –, o narrador nos conta sobre alguns encontros curiosos
que Demóstenes tivera no bar Três Dados com alguns colegas:
O encontro emocional com um companheiro de colégio, por
exemplo. Nervoso, presumido, pusera-se a falar de assunto incerto,
com frases curtas e sincopadas. [...] De quando em quando, indagava
se Demóstenes não lera a notícia. [...] Pois é: caíra um avião no
Jabaquara, não sabia? Tratava-se de especialidade muito difícil.
Afinal, revelou: era agora técnico em recompor cadáveres.
(COELHO, 2004, p. 63)
E o narrador volta ao momento presente, relatando o encontro de Demóstenes no
bar com um velho amigo, o personagem Caxambu, que chamara o protagonista para contar-
lhe sobre um plano que vinha elaborando: o assassinato de Lúcia, a própria esposa.
então a presença de um fenômeno narrativo mencionado nas análises dos contos
anteriores: a paralipse, ou seja, a omissão intencional dos fatos. O narrador, que vinha até
esse momento acompanhando os passos, as lembranças e os diálogos do personagem
Demóstenes, relata sumariamente que o protagonista e o amigo conversaram por algum
tempo sobre o plano de Caxambu, mas não nos revela todo o conteúdo da conversa: “E os
dois amigos conversaram, entremeando as intervenções com o delicioso chope do Três
Dados.” (COELHO, 2004, p. 65)
Em seguida, o narrador volta a relatar detalhadamente a trajetória e as reflexões de
Demóstenes Calado, que vai para casa após a saída de Três Dados. Temos novamente a
presença da focalização interna: Ao sair do elevador e antes de entrar no apartamento,
avaliou a quentura que andaria por dentro. De nada adiantara salientar, na época da
compra, a inconveniência de ser o apartamento voltado para o poente. Ela quis, insistiu,
prescreveu.” (COELHO, 2004, p. 65)
Imediatamente, percebemos a presença de um novo integrante do conto: “ela”, a
qual o personagem lembra com uma sutil irritabilidade, através de verbos consecutivos que
indicam o caráter autoritário do personagem o qual se refere: “querer”, “insistir”,
“prescrever”.
Logo descobrimos quem é o novo personagem: Nadir, a esposa de Demóstenes. O
narrador deixa de lado o discurso narrativizado para dar voz a seus personagens através de
discursos diretos, que, como analisamos no conto “Um candelabro apaga uma vida”, talvez
contribuam para dar um tom mais realista ao conto. É como se o narrador preferisse nos
mostrar a caracterização de Nadir a partir de suas próprias falas, deixando que o leitor tire
conclusões próprias, sem que ele, narrador, tenha alguma participação ativa nisso:
Atrasado outra vez, hem, seu burro velho! Esqueceu de que hoje
é o pior dia da minha asma?
[...]
— [...] Trouxe meu remédio?
— Que remédio?
Intrometeu-se a pausa.
— Ah! É verdade. Hoje não pedi nada.
[...]
Arroz? Não, não tem. Sei que você adora, mas nessa semana não
vamos comer nem arroz, nem pimentão, nem outras coisas de que
você tanto gosta. Preciso descobrir a causa da minha asma. Agora
estou decidida. Fiz um menu para cada dia. (COELHO, 2004, p. 66)
Ao nos depararmos com tais palavras, podemos traçar um perfil do personagem em
questão: Nadir é uma mulher autoritária, rabugenta, egoísta, que gosta de criar intrigas e
ganha até uma veia cômica com suas manias de doença e o modo com que trata
Demóstenes, seu marido.
Em seguida, o diálogo entre o casal é interrompido por um acontecimento externo,
uma batida entre carros, que não nos é precisamente descrita, apenas servindo de amparo
para algo mais significativo: o assassinato de Nadir por Demóstenes, fato que ocorre
subitamente, sendo descrito passo a passo, mas sem rodeios, em uma linguagem direta:
Nadir levantou-se, no que foi imitada por Demóstenes. Enquanto
seguia a mulher, o marido viu, num relance, o janelão grande,
pesado, de vidro grosso. Assim que ela baixou a cabeça para ver o
desastre, Demóstenes soltou o trinco e o janelão despencou sobre a
cabeça de Nadir. (COELHO, 2004, p. 68)
E o narrador nos torna cúmplices ao relatar minuciosamente as medidas tomadas
pelo protagonista para que ninguém desconfiasse de seus atos: Ao passar pela sala,
apanhou a espátula de prata, envolveu-a no lenço que trazia, e com ela destorceu um dos
parafusos do trinco do janelão. Solto de um lado, o trinco pendeu para o outro. Recolocou a
espátula no lugar, repôs o lenço no bolso e fez a ligação.” (COELHO, 2004, p. 68)
Tudo acontece rapidamente, e o que contribui para o choque que a morte de Nadir
nos proporciona é a caracterização que havia sido feita do personagem Demóstenes até esse
momento, como um sujeito calmo, amável, incapaz de cometer algum crime, que
recomendara ao próprio amigo Caxambu: “Na despedida, Demóstenes reiterou a
recomendação de calma, aludindo às quadras desfavoráveis por que passam as mulheres, a
pedir mais compreensão e menos violência.” (COELHO, 2004, p. 65)
Tal como as outras figuras presentes nos contos de Luiz Lopes Coelho, Demóstenes
Calado não se encaixa no protótipo dos assassinos dos romances policiais clássicos.
Observamos que o homem, nas obras desse autor, é representado como um indivíduo
profundo e sutil, para quem o crime ou o desvio é apenas uma das múltiplas nuances
possíveis.
Ao terminar a primeira narrativa, cujo objeto é o assassinato de Nadir, o narrador,
por meio de uma notícia que havia sido divulgada nos jornais, nos uma informação
muito importante, que completa a lacuna deixada pela paralipse no início do conto:
No dia seguinte, os jornais, com notas de relevo, anunciavam a mais
notável coincidência na história dos acidentes: duas mulheres mortas,
sendo uma pela queda de um janelão e outra pelo desabar de uma
persiana. Ambas com fratura na base do crânio. Tratava-se de dona
Nadir e da mulher do Caxambu. (COELHO, 2004, p. 69)
Nada nos é dito diretamente, mas a coincidência dos fatos nos leva a crer que a
conversa omitida intencionalmente pelo narrador entre Caxambu e Demóstenes continha o
modo como o assassinato de Lucia seria concretizado pelo marido: por meio de uma
persiana. Demóstenes, farto das reclamações de Nadir, subitamente decide fazer uso do
mesmo plano: por meio do janelão de seu apartamento.
É a partir do metatexto em questão, ou seja, da notícia que circulava nos jornais, que
o autor introduz no conto uma narrativa secundária, e com ela, a presença de um
personagem importante para o gênero em questão: a voz da razão, incorporada na figura do
delegado, o Dr. Leite. Deitado na rede, esse personagem acha estranha a coincidência entre
os “acidentes”. Mas, confrontado pela companheira, Marília, decide deixar o assunto para
outro dia: “— Está bem, Marília de Dirceu, está bem. Mas, se qualquer dia tiver uma folga,
vou ver isso de perto. Agora, desisto.” (COELHO, 2004, p. 70)
Portanto, não é somente a figura do criminoso que se distancia de seus precursores
no gênero policial tradicional. O delegado, que incorpora a figura do detetive, também tem
suas peculiaridades. Como percebemos em outros contos em que o personagem de Luiz
Lopes Coelho está presente, Dr. Leite não é alienado socialmente, mas, ao contrário, é
afável e zombeteiro. Casado com Marília, tem uma firme posição social e adora beber
uísque deitado na rede. Muitas vezes, como no conto em questão, tenta solucionar os
crimes à distância – um aspecto que faz lembrar do método de desvendamento do crime em
“The Murders in the Rue Morgue”, de E. A. Poe. Seu senso de justiça, seu faro para os
crimes que muitas vezes são tidos como meros acidentes, passando assim despercebidos,
nunca falha. Mas desta vez, o delegado decide deixar a busca pela verdade para depois. E
como o narrador nos relata ao final do conto, o delegado assassina o assunto, frase que
também dá título ao conto, deixando que o criminoso mais uma vez saia impune.
outros aspectos da narrativa que devem ser levados em consideração, como
aqueles referentes à linguagem. O autor, utilizando-se de uma metáfora, confere sutileza e
poeticidade a algo que nada tinha de agradável, ou seja, as brigas entre Nadir e
Demóstenes: As agulhas de crochê deixavam na o rastro do permanente atrito.”
(COELHO, 2004, p. 67)
Além disso, o autor introduz no conto um neologismo que vem expresso entre
aspas, tentando caracterizar precisamente o caráter do personagem Dr. Leite. Nas palavras
de Marília: “— Mas que coisa! Você só pensa ‘homicidamente’.” (COELHO, 2004, p. 70).
5. ANÁLISE DOS CONTOS DE RUBEM FONSECA
Rubem Fonseca estreou na literatura em 1963, com o livro de contos Os
Prisioneiros, desafiando os poderes da censura existente no Brasil ao trazer para a prosa de
ficção uma narração pautada no tema da violência. Seus livros apresentam a luta armada
como forma de solução dos conflitos, tratam dos problemas sociais e psicológicos gerados
nas grandes concentrações urbanas, e abordam a sexualidade explícita e, por isso mesmo,
chocante do ponto de vista do moralismo tradicional. Sendo assim, o escritor é um dos
grandes renovadores da moderna ficção urbana brasileira.
Rubem Fonseca não é exclusivamente autor de policiais. Sua extensa obra abrange
desde romances como O caso Morel, que trata da degradação humana e da luxúria –, até
crônicas, como no recente O romance morreu, que reúne textos publicados na internet e
relatos do dia-a-dia do autor mineiro. Dentre a vasta gama de significados de sua obra,
deparamo-nos com romances e contos que roçam o tema policial, como Agosto, A grande
Arte, entre outros. Como veremos a seguir, Fonseca contraria as regras clássicas do gênero.
Segundo Sandra Reimão “a produção de Rubem Fonseca propiciou uma certa ‘retomada de
fôlego’ do gênero policial no Brasil e se tornou referência para os escritores posteriores”
(2005, p. 43). Duas das narrativas de Fonseca foram incluídas na coletânea Os cem
melhores contos de crime e mistério, de Flavio Moreira da Costa; e pelo conjunto de sua
obra, o escritor foi laureado com o Prêmio Camões de 2003, o mais importante entre os
países de língua portuguesa.
5.1 “Mandrake”
O conto “Mandrake”, do livro O Cobrador, é caracterizado estruturalmente por uma
narração ulterior e por um narrador em primeira pessoa, autodiegético, ou seja, um narrador
que atua como protagonista da história contada. O narrador-personagem em questão é
Mandrake, cujo nome título ao conto, incorporando a tradicional figura do detetive na
obra de Rubem Fonseca, sendo moldado por seu criador desde A grande arte (1983).
Segundo Vera Lúcia F. de Figueiredo,
em conseqüência da identificação detetive/narrador, a busca da
verdade resvala do plano da história para o plano do discurso, do
enunciado para a enunciação: o processo de ‘desvendamento’ dos
crimes se confunde com o próprio fazer literário, porque a explicação
final é produto do diálogo entre diversos textos, não coletados,
mas interpretados e criados pelo narrador/autor. (2003, p. 47)
O fato de deixar que o leitor acompanhe as investigações passo a passo com o
detetive não é novidade na ficção policial brasileira. Como analisamos em relação a “Um
candelabro apaga uma vida” no capítulo anterior, Luiz Lopes Coelho utiliza-se também da
técnica de colocar a focalização do personagem que incorpora a voz da razão na história,
fazendo com que o leitor tenha acesso direto às reflexões do delegado Dr. Leite. Mas
Rubem Fonseca vai além, deixando que o detetive conte sua própria história e a de outros
personagens, através da homodiegese.
A narrativa inicia-se com o telefonema do personagem Rodolfo Cavalcante Méier
ao advogado Mandrake, que jogava xadrez com a amante, Berta. Um crime nos é
apresentado: a secretária Marly havia sido assassinada. o enigma principal que perdura
durante todo o conto: Quem matou Marly? Mas o advogado não é convocado
primeiramente para solucionar essa incógnita, não se envolve no caso com a ideológica
função de desvendar mistérios, mas sim, com o papel de livrar um homem pertencente à
alta sociedade das ameaças de outro personagem e do conseqüente envolvimento com o
assassinato. Méier havia sido amante de Marly, e recebera desta uma carta intimando-o a
separar-se da esposa doente e a assumi-la como parceira. Dias após enviar a carta, Marly
foi assassinada. E a carta, pista primordial, havia sido furtada por Márcio, um motoqueiro,
que então ameaçava entregar a carta à polícia se Méier não lhe desse uma certa quantia em
dinheiro.
Percebemos como esta narrativa se encontra distante dos modelos policiais clássicos
em vários aspectos. O detetive não é chamado para o esclarecimento da verdade, mas
simplesmente para negociar com o motoqueiro o preço do silêncio, o preço que Rodolfo
Méier pretendia pagar para não ter sua posição social destruída, que sua relação íntima
com a secretária era guardada em segredo: “Gostaria que você procurasse essa pessoa para
mim, visse o que ele quer, defendesse os meus interesses da melhor maneira. Estou
disposto a pagar para evitar o escândalo.” (FONSECA, 2001, p. 82). E Mandrake assume
sua posição profissional, como advogado: “Meu negócio é tirar as pessoas das garras da
polícia, não posso fazer o contrário.” (2001, p. 99)
o retrato “nu e cru” da realidade urbana no conto, com valores distorcidos pela
modernidade: não há mais a busca ideológica do que é justo e verdadeiro, mas, sim, a busca
por uma boa posição social, os relacionamentos envolvendo interesses próprios, a
supervalorização do que é material, a supremacia da aparência e do status social contra a
essência humana, etc.
O próprio advogado Mandrake está longe de seguir a caracterização dos detetives
clássicos. Ele é culto, refinado, adora beber vinho Faísca e fumar charutos, e é viciado em
jogar xadrez, elemento que está presente no conto do início ao fim. Segundo o protagonista,
as partidas auxiliam-no na profissão: “Sou muito nervoso, jogo xadrez para me irritar,
explodir in camera, lá fora é perigoso, tenho que manter a calma.” (2001, p. 83).
No entanto, se no esporte o advogado opta por um jogo que privilegia o raciocínio,
na execução de seu trabalho mais ações do que reflexões. Ele não segue o método de
detecção de seus precursores, como Dupin, Sherlock Holmes ou mesmo o próprio delegado
Leite. Mandrake busca a verdade, e recolhe muitas informações acerca do crime, faz muitas
perguntas a todos os personagens envolvidos, porém, a solução final da incógnita não
provém de um raciocínio lógico, de uma dedução, mas simplesmente da confissão
voluntária de um dos personagens.
Mandrake também tem uma característica contundente ao longo do conto: é
mulherengo, ligado mais aos prazeres carnais do que a algum sentimento elevado. Essa
característica é comum aos personagens de Rubem Fonseca. Segundo Figueiredo, “o amor
a que os personagens se referem nada tem a ver com o ideal romântico do amor. Trata-se do
gozo do corpo através de relações efêmeras, porque o sexo acaba se configurando como a
única espécie de troca possível entre as pessoas” (2003, p. 115). A própria figura feminina
está longe de ser idealizada na narrativa. Mandrake tem uma amante, Berta, que por vezes é
descrita pelo narrador de forma grotesca, acompanhando o tom realista e a linguagem direta
do conto:
Berta, os braços levantados, começou a prender os cabelos. O sovaco
de uma mulher é uma obra-prima, principalmente se ela é magra e
musculosa como Berta. O sovaco dela também cheira muito bem,
quando não tem desodorante, é claro. Um cheiro agridoce e que me
deixa muito excitado. Ela sabe disso. (FONSECA, 2001, p. 83)
Berta roncava. Estranho, numa pessoa tão suave. (2001, p. 96)
E o advogado não se limita a dividir seus prazeres com ela. Mandrake se apaixona
facilmente por outras mulheres, e várias são as passagens que nos demonstram o caráter
sedutor do detetive: “Fiquei andando de um lado para outro no hall de mármore. Havia uma
larga escadaria que levava ao andar superior. Uma jovem desceu as escadas acompanhada
de um cão dálmata. Tinha cabelos louros, vestia jeans e uma blusa de malha justa. Eu não
podia despregar os olhos dela.” (2001, p. 86)
Por vezes, o narrador até pára a narrativa para relatar, através de analepses, fatos
que afirmam sua masculinidade e a atração pelo sexo oposto:
Era verdade, eu tinha uma alma de sultão das mil e uma noites;
quando era menino me apaixonava e passava as noites chorando de
amor, pelo menos uma vez por mês. E adolescente comecei a dedicar
minha vida a comer as mulheres. Como as filhas dos amigos, as
mulheres dos amigos, as conhecidas e as desconhecidas, como todo
mundo, só não comi minha mãe. (FONSECA, 2001, p. 103)
Mas, Mandrake, no papel que lhe cabe, ainda segue a tradição de seus precursores
em um aspecto: apesar de trabalhar para bandidos e criminosos como advogado, ele é o
único que tem instinto para a essência da verdade do crime, por mais inverossímil que esta
seja. O advogado suspeita de todos (“Sozinho no carro eu disse, mais tarde, para o espelho
retrovisor, está todo mundo mentindo.” FONSECA, 2001, p.90), e, mesmo após ser
despedido por Méier, Mandrake passa a atuar no papel de detetive, trabalhando na busca da
resolução do crime, movido tanto pelo sentimento de justiça que ainda lhe é inerente, como
também pelo interesse e paixão nascidos nos encontros com Eva, filha de Cavalcante.
Mandrake apaixonara-se por Eva, e pensava nela até nos momentos de intimidade com
Berta:
Eu te amo, Bebê, eu disse pensando em Eva.
Então fomos para a cama, eu pensando o tempo todo em Eva.
(FONSECA, 2001, p. 96)
Como demonstra a passagem acima, até o detetive acaba sendo envolvido por um
tipo de corrupção, uma corrupção passional. E, se por um lado Mandrake tem o senso da
busca pela verdade, por outro, nem sempre se mantém persistente naquilo que busca: “Isso
não me interessa mais, que todos se fodam, o senador canalha e sua filha dedetizada, a
sobrinha pálida, a secretária morta e seus pais falantes, o motoqueiro, o Guedes, o raio que
o parta, pra mim chega.” (2001, p. 98)
A corrupção atinge a própria instituição policial. O motoqueiro Márcio também
havia sido assassinado, e Guedes, o delegado que estava no caso de Marly, descobrira a
carta da secretária deixada no bolso do defunto. Ele tentava reunir as pistas com afinco, e o
próprio narrador assume o valor profissional do delegado: Ali estava na minha frente um
homem decente fazendo o seu trabalho com dedicação e inteligência.” (2001, p. 99)
Mas Guedes, ao tentar precipitadamente incriminar Méier pelos assassinatos e
descobrir a verdade, é afastado do caso. O poder e o dinheiro de Rodolfo falaram mais alto
que a tentativa de justiça do detetive, o que nos mais um exemplo da corrupção humana
que nos é exposta ao longo do conto: “Guedes não queria se promover. Acreditava na culpa
de Cavalcante Méier e queria botar o préstito na rua antes que abafassem tudo. Um crente,
na imprensa e na opinião pública, um ingênuo, mas muitas vezes esse tipo de pessoa realiza
coisas incríveis.” (2001, p. 102).
Finalmente, os assassinatos são desvendados. Mandrake sai vitorioso em ambos os
papéis que tenta exercer, o de detetive e o de advogado: livra um homem das garras da
polícia, provando a inocência de Cavalcante Méier, e descobre o verdadeiro assassino, ou
melhor, a assassina de Marly e Márcio: Lili, sobrinha e atual amante de Cavalcante, que
matara por ciúmes e para proteger o companheiro. Mas, como exposto anteriormente,
não uma dedução lógica por parte de Mandrake, ou uma reflexão que o levasse à
verdade. Lili, ao perceber que o amante seria incriminado, decide confessar tudo a
Mandrake, que pretende nada esconder da polícia:
Tenho que encontrar o Guedes. Pega um táxi. É bom contratar logo
um advogado.
Está tudo perdido, não é?
Infelizmente. Para todos nós, respondi. (2001, p. 108)
E a narrativa termina curiosamente relatando a paixão de Mandrake por Eva: [...]
Pensei em Eva. Adeus minha querida, longo adeus. O grande sono. Não havia ninguém
dentro do meu corpo, as minhas mãos no volante pareciam ser de outra pessoa.”
(FONSECA, 2001, p. 108).
5.2 “O Cobrador”
Edu Otsuka afirma que o modelo narrativo aproveitado por Rubem Fonseca em
seus romances corresponde ao romance policial hard-boiled, que converge com a
representação brutalista da violência” (2001, p. 61). Mas muitos estudiosos do gênero em
questão surpreender-se-iam com a escolha dos contos em presente análise, ou mesmo
rejeitariam a idéia de classificar “O Cobrador” ou “Passeio Noturno” dentro do gênero
policial.
Flávio Moreira da Costa, na introdução da coletânea Os cem melhores contos de
crime e mistério da literatura universal (seleção que inclui “O Cobrador”), argumenta que
a antologia se estrutura em dois eixos correlatos: as “histórias criminais” e as “histórias
policiais”. Segundo o autor, a primeira antecede a segunda, enem toda história de crime é
uma história policial, embora toda […] história policial seja uma história criminal”
(COSTA, 2002, p.15).
Mas propomos aqui uma reflexão. Em nosso percurso dissertativo nos detivemos
várias vezes nas inúmeras mutações sofridas pelo romance policial, desde Poe até os
autores contemporâneos. Vimos como a “santíssima trindade” defendida por Kothe (1994,
p. 149) tem mesclado e descartado algumas de suas peças para dar lugar às inúmeras
combinações e possibilidades de enredo. contos e romances sem detetive e, assim, sem
o mistério da investigação; e histórias sem cadáveres (no caso de um furto, por
exemplo). Mas, levantamos então uma pergunta: histórias policiais sem um crime,
cometido pelo vilão, malfeitor ou qualquer outra designação que represente a força
maquiavélica no duelo entre o bem e o mal? Acreditamos que não.
Primordialmente, mata-se, ou comete-se algum delito que infrinja as leis humanas
no romance policial, por incontáveis motivos. Toda a ambientação e estrutura dentro de
uma história policial conspiram a favor do crime. É verdade que o simples relato de um
crime nas páginas de um jornal não caracteriza uma história policial. Mas o que dizer das
histórias ficcionais minuciosamente elaboradas, que exploram a psicologia de um assassino,
estruturando em toda sua extensão o efeito final desejado para surpreender, chocar, ou
simplesmente entreter seu leitor, e tudo isso em torno de um tema específico: um crime?
Não seriam essas também histórias policiais, que fazem do público cúmplice das peripécias
de um vilão? Não seria o leitor de Poe e Fonseca munido de um mesmo instrumento que
assombra e satisfaz ao mesmo tempo? Não estaria presente na história do cobrador o
mesmo elemento encantatório de que todos os autores policiais clássicos se utilizaram, ou
seja, o medo daquilo que não conseguimos compreender: a morte, planejada pelo mesmo
semelhante que nos daria bom dia em alguma manhã de domingo?
Poderíamos enquadrar O Cobrador” e Passeio Noturno” dentre as “histórias
criminais”. Mas por que não classificá-las dentro de um gênero que lida com os limites da
razão humana? Como vimos, talvez as origens mais remotas do gênero estariam nas
histórias dos “bons bandidos” no século XVI. Não estariam nossos autores contemporâneos
retomando a arcaica estrutura do policial, fazendo com que seu público se deleite com
assassinatos e crimes de arrepiar os cabelos? Segundo Boileau e Narcejac, o policial é “uma
macieira que diferentes variedades de frutas, mas sempre são maçãs” (1991, p. 88). E
poderíamos complementar: a essência das maçãs está no crime original.
Escolhemos o conto “O Cobrador” para demonstrar como Fonseca extrapola as
possibilidades do gênero, sendo que este é um dos vários exemplos na obra do autor que se
destacam por colocar luz sobre o universo marginal, valendo-se do ponto de vista do
criminoso. Temos assim uma narrativa policial às avessas, que mostra o espelho do
cotidiano urbano brasileiro numa atmosfera de suspense, subversões, revelações e
adultérios, que nem sempre estão de acordo com leis divinas ou preceitos éticos humanos.
O narrador autodiegético do conto, que se autodenomina “O Cobrador”, é um bandido com
perfil revolucionário que sai desvairado pelo mundo cobrando uma impagável dívida
social: Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de
mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.” (FONSECA, 2001,
p. 16)
Segundo Deonísio da Silva, “acima e além da moral, na ficção de Rubem Fonseca
está uma ética que preside a todos os atos de seus heróis problemáticos, sobretudo quando
se trata do narrador, o mais problemático deles” (1996, p.70), que, assim como “O
Cobrador”, a maior parte dos contos do autor têm o foco narrativo em primeira pessoa.
A cobrança feita pelo narrador é concretizada através de assassinatos e estupros de
pessoas da alta classe social. Ele tem ódio e “cobra” dos ricos e dos bem sucedidos aquilo
que lhe foi negado desde a infância, e sente um prazer imenso ao concretizar os crimes:
“Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me
vontade de dançar dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos
da música do que da poesia...” (FONSECA, 2001, p. 23).
Segundo Boris Schnaiderman,
esta ‘cobrança’ adquire toques de uma violência extrema, parecendo
que não pode haver nada mais brutal e desmedido. No entanto, fora
desses momentos de exaltação e crueldade, que atinge verdadeiros
requintes, é um rapaz sensível, sofredor, que chega a dizer de si
mesmo ‘Sou uma pessoa mida, tenho levado tanta porrada na vida’.
Uma árvore, uma sombra no parque despertam-lhe a veia
contemplativa. (1998, p. 774)
“O Cobrador” é o anti-herói que reúne a mistura da barbárie com a pura
humanidade. Ao mesmo tempo em que ele mata pessoas pelo simples fato de pertencerem a
uma classe social mais alta ou de terem um bom status, “absolve” outras pelo mesmo
critério: não mata pobres, desdentados ou velhos. Ao contrário, ele tem misericórdia e
compaixão pelos que estão na mesma situação econômica ou social que ele:
Essa fodida não me deve nada, pensei, mora com sacrifício num
quarto e sala, os olhos dela já estão empapuçados de beber porcarias
e ler a vida das grã-finas na revista Vogue. (FONSECA, 2001, p. 17)
Sento suado ao lado do campo, junto de um crioulo lendo O Dia. A
manchete me interessa, peço o jornal emprestado, o cara diz se tu
quer ler o jornal por que não compra? Não me chateio, o crioulo tem
poucos dentes, dois ou três, tortos e escuros. Digo, tá, não vamos
brigar por isso. Compro dois cachorros-quentes e duas cocas e dou
metade pra ele e ele me dá o jornal. (2001, p. 26)
O Cobrador não mata para sanar uma dívida social particular, mas uma dívida que
toda a sociedade tem com aqueles imersos na miséria e pertencentes às classes sociais mais
baixas. Ele não sente qualquer culpa ao matar, ao contrário, autodenomina-se justiceiro, e
tem a convicção de que, se todos agissem como ele, o mundo seria melhor: “Sou justo.”
(2001, p. 18); E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, assim
mudaremos o mundo.” (2001, p. 29)
Ao mesmo tempo em que o protagonista realiza atos de violência extrema, em
outros momentos ele é capaz do maior carinho, da maior ternura com os semelhantes.
Podemos perceber como essas reações opostas se reúnem no mesmo personagem
comparando duas situações muito distintas no conto. A primeira retrata como o Cobrador
experimenta seu facão ao matar um casal na Barra:
A cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se
fosse uma galinha tonta nas mãos de uma cozinheira incompetente.
Dei-lhe outro golpe e mais outro e outro e a cabeça não rolava. Ele
tinha desmaiado ou morrido com a porra da cabeça presa no pescoço.
(2001, p. 20)
A outra situação mostra a relação do Cobrador com Dona Clotilde, a dona de
sobrado de quem aluga um quarto. O protagonista cuida da velha, limpa a casa, faz as
compras e lhe dá remédios:
Quer que eu passe o escovão na sala?, pergunto.
Não meu filho, queria que você me desse a injeção de trinevral
antes de sair.
Fervo a seringa, preparo a injeção. (FONSECA, 2001, p. 23)
Isso não impede, porém, o Cobrador de pensar, ao ver o sofrimento da velha:
“Qualquer dia dou-lhe um tiro na nuca.” (2001, p. 23) Algumas vezes, ele não deseja matar
somente para fazer a “cobrança social”, mas também por atos de misericórdia”, conforme
exemplifica a passagem: “E porque o branco dos olhos dele era azulado eu disse você vai
morrer, ô cara, quer que eu te dê o tiro de misericórdia?” (2001, p. 15)
As duas faces do narrador tanto aquela fria, violenta, sanguinária, quanto a
atenciosa, passional –, são demonstradas não somente no plano temático, mas também no
nível da própria linguagem do texto. O léxico usado nas cenas que descrevem os atos
brutais do assassino é carregado com termos chulos, obscenos, cujo efeito é justamente
contribuir com essa violência, ampliando seu impacto. O Cobrador ameaça o dentista: “que
tal enfiar isso no teu cu?” (2001, p. 14). o narrador contrasta com essa forma de
expressão, pois usa termos infantis quando se refere à Dona Clotilde, que “só se levanta
para fazer pipi e cocô...” (2001, p. 23). Ou quando confessa a Ana: “Eu te amo”. (2001, p.
27)
O Cobrador não é um bandido qualquer. Além de almejar ser um “justiceiro” social,
ele também livros de poesia e é poeta. A metadiegese, ou seja, os versos criados pelo
narrador são mesclados com o próprio relato dos fatos:Ela me pede que recite um poema
meu. Eis: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que
dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser
diferentes:...” (FONSECA, 2001, p. 17).
Segundo Boris Schnaiderman, “no meio da maior rudeza, ele se detém às vezes e
seu monólogo passa da prosa ao verso, surgindo até uma nota erudita” (1998, p. 774). A
nota erudita a que o teórico se refere é “palindrômico”, adjetivo que o narrador utiliza para
caracterizar o nome do personagem Ana.
O autor não nos uma seqüência de fatos que permitissem motivar
esta expressão, como seria de esperar numa ficção do século XIX. O
toque erudito surge de modo não menos brusco que o dos momentos
de violência, o que obriga o leitor a conjecturar mais sobre aquela
personalidade estranha e perturbadora. (Schnaiderman, 1998, p. 774)
O conto é caracterizado estruturalmente por ter uma narração simultânea, ou seja, há
uma coincidência entre o tempo da história e o tempo da narrativa. Os verbos no presente
denunciam essa estratégia: “leio”, “faço”, “quero”, “vejo”, “ando”, “pareço” (FONSECA,
2001, p. 18). Mas, mesmo que a narração seja simultânea, isso não quer dizer que ela seja
linear. Os fatos da narrativa não seguem uma seqüência pontual, os acontecimentos são
concatenados sem ligação temporal ou espacial, e o narrador raramente nos informações
sobre datas ou horários. Em muitos momentos o narrador recorre a fatos passados, ou a
memórias por meio de analepses, relatando ao leitor certos episódios de sua trajetória:
“Ontem eu fui ver o cara que tinha uma Magnum com silenciador para vender na Cruzada,
e quando atravessava a rua um sujeito que tinha ido jogar tênis num daqueles clubes
bacanas [...]” (FONSECA, 2001, p. 14).
A que o Cobrador se apaixona por uma moça da mesma burguesia de cujos
representantes se vingava implacavelmente. O personagem é Ana, que o narrador conhece
na praia. Ana revoluciona a vida do Cobrador, e torna-se sua parceira no crime e na vida
amorosa, fazendo com que ele aperfeiçoe os métodos de “cobrança” e que descubra sua
verdadeira missão: “Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma
missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu
o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos” (2001, p. 28). O
plano dos personagens é explodir a festa do Baile de Natal, pois assim, o Cobrador poderia
adquirir “prestígio”, e não seria apenas o “louco da Magnum” (2001, p. 28). Segundo o
próprio narrador nos relata: “Fecha-se um ciclo da minha vida e abre-se outro.” (p. 29).
Uma característica presente no conto que merece ser ressaltada é a diversidade dos
recursos cômicos, estrategicamente utilizados para amenizar o impacto que os atos e
obsessões do protagonista nos causariam. Mas é importante notar que esses recursos são
utilizados de modo a não nos fazer soltar altas gargalhadas. Afinal, Rubem Fonseca
trabalha com um tipo específico de comicidade: o humor negro, que nos proporciona um
sorriso contido, angustiado, incomodado. Vale a pena ressaltar alguns pontos teóricos
acerca desse assunto. O universo do cômico abrange distintas categorias, desde o cômico
mais ingênuo, despretensioso, tradicionalmente associado ao gosto popular e denominado
“cômico baixo”, até a comicidade mais sutil, mais refinada, indireta, que não provoca
necessariamente o riso espontâneo da gargalhada, pois, por muitas vezes, agrega em sua
configuração elementos trágicos. O humor é uma dessas modalidades mais sofisticadas de
riso, abraçando ao mesmo tempo elementos do trágico e do cômico.
O cômico é definido por Pirandello (apud ECO, 1989, p. 253) como a “percepção
do contrário”. Este conceito está certamente associado à idéia de vários estudiosos de que,
para rirmos, devemos nos sentir superiores ao objeto que está sendo alvo de riso. Bergson
afirma exaustivamente em sua obra que o riso é uma forma de correção social aos vícios,
aos defeitos alheios. Portanto, para que possamos rir de algo que está violando uma regra
(implicitamente imposta), devemos nos sentir superiores a esse algo, ou seja, precisamos
acreditar que não cometemos os mesmos erros sociais. no cômico o distanciamento, o
não envolvimento afetivo como componente indispensável da comicidade, que resultaria
com freqüência de um olhar de superioridade diante de falhas alheias.
Ainda segundo Pirandello, passamos do cômico ao humorístico quando a
“percepção do contrário” transforma-se em sentimento do contrário”, isto é, quando
procuramos, por qualquer razão, entender a razão do inusitado comportamento que provoca
o riso, renunciando ao distanciamento e ao sentimento de superioridade. De acordo com
Hegel, ao contrário, parece necessária certa identificação, um sentimento de empatia,
cumplicidade ou complacência para que se instaure o humor (HEGEL, 1993, p. 335). A
reflexão também é outro elemento que acompanha o humorismo, e é ela que nos faz passar
da “advertência do contrário” para o sentimento do contrário”, transformando a risada
relaxada em sorriso de desagrado ou tristeza. Para Freud,
a atitude humorística não importando em que consista é possível
de ser dirigida quer para o próprio eu do indivíduo quer para outras
pessoas; é de supor que ocasione uma produção de prazer à pessoa
que a adota, e uma produção semelhante de prazer vem a ser a quota
do assistente não participante. (1996, p. 165)
Portanto, o humor pode se dirigir a quem fala ou a um outro, de quem se fala. Pode
expressar a crítica, mas pode também ser uma forma de lidar com os afetos dolorosos.
Freud explica que “a produção do prazer humorístico surge de uma economia de gasto em
relação a um sentimento” (1996, p. 165). E daí surgem as diversas gradações de humor, de
acordo com a natureza da emoção economizada: compaixão, raiva, dor, ternura, etc.
O ouvinte esse outro (o humorista) numa situação que o leva a
esperar que ele produza os sinais de um afeto, que fique zangado, se
queixe, expresse sofrimento, fique assustado ou horrorizado ou
talvez, até mesmo desesperado; e o assistente ou ouvinte está
preparado para acompanhar sua direção e evocar os mesmos
impulsos emocionais em si mesmo. Contudo, essa expectativa
emocional é desapontada; a outra pessoa não expressa afeto, mas faz
uma pilhéria. Gasto de sentimento, que é assim economizado, se
transforma em prazer humorístico no ouvinte. (1996, p. 165-166)
Desta forma, podemos dizer que o humor é rebelde, reside no “triunfo do
narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego”. (FREUD, 1996, p. 166). O
ego do humorista se recusa a ser atingido por aflições e traumas do mundo externo,
demonstrando, através do humor, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para
obter prazer.
O humor negro, seguindo a linha de pensamento freudiano, também surge da
economia de uma emoção, sendo esta o medo, o horror, o choque diante do grotesco.
Segundo o estudioso A. Ziv, no livro Le sens de l’humour (apud SCHNEIDER, 2003,
p. 12), o humor negro não se refere exclusivamente à morte, mas pode tratar de diversos
assuntos mais ou menos angustiantes, como as guerras, as catástrofes, os acidentes, etc.
Todos esses temas provocam o temor, e a utilização do humor negro permite ao homem se
defender contra situações cujos elementos lhe causam medo. O riso aparece como vitória
sobre este sentimento, dando a impressão de domínio sobre a situação.
No século XIX este tipo de humor era muito utilizado como estratégia discursiva
por alguns autores importantes, como Hoffmann e Edgar Allan Poe, no grotesco fantástico.
“Onde há riso em tudo isso?” questiona-se Georges Minois (2003, p. 535), que rapidamente
conclui: “Parece que no choque entre a fantasia e o medo.”
E em pleno século XXI, para Minois, o ser humano, infelizmente, teria domesticado
o poder derrisório do riso. No atual mundo do “politicamente correto”, o seu componente
agressivo estaria desvitalizado. Embora pareça estar por toda parte na publicidade, na
televisão, nos jornais e nas transmissões esportivas - o riso não passaria agora de uma
máscara para esconder a profunda agonia do existir. O humor negro é apenas uma das
modalidades dessa máscara que esconde, ou pelo menos disfarça, as angústias vividas pelo
homem moderno.
Em relação às obras de Fonseca, Deonísio da Silva ressalva:
o humor não está muito longe dessas narrativas, mesmo em situações
onde ele não é esperado. Nem a ironia. Nem o sarcasmo. Se as armas
pesadas de suas personagens são metralhadoras, pistolas, jornais etc
as armas de Rubem Fonseca com que falqueja a burguesia, a classe
média brasileira, são extraídas do próprio estilo, de seu modo de
narrar que é irônico, sarcástico, mordaz, violento. (SILVA, 1983,
p. 77)
Esses aspectos da teoria do humor negro guiaram nossa leitura do conto O
cobrador”. Assim, logo no início do texto, o Cobrador nos conta sobre sua ida ao dentista:
“Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está
podre, vê? Disse com pouco caso. São quatrocentos cruzeiros.” (FONSECA, 2001, p. 13).
O automatismo com que o dentista faz seu trabalho, com pouco caso”, gera uma
comicidade que alivia a tensão do texto. E o cobrador responde: “Só rindo. Não tem não,
meu chapa, eu disse.” (FONSECA, 2001, p. 13)
A expressão “só rindo” também é outro elemento que faz com que o texto se torne
cômico, pois a todo o momento ela é repetida pelo cobrador para debochar das palavras de
outros personagens. É como se o riso fosse a maneira encontrada pelo protagonista de
insurgir-se. O recurso da repetição das palavras é justamente referido por Bergson, que o
investiga em seus estudos sobre o cômico.
Em Fonseca, vejamos outros exemplos de repetição daquela frase:
Tirava o facão de dentro da perna quando ele disse, leva o dinheiro
e o carro e deixa a gente aqui. Estávamos na frente do Hotel
Nacional. rindo. Ele estava sóbrio e queria tomar um último
uisquinho enquanto dava queixa à polícia pelo telefone. Ah, certas
pessoas pensam que a vida é uma festa. (FONSECA, 2001, p. 19)
Abri a boca e disse que meu dente de trás estava doendo muito. Ele
olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado
os meus dentes ficarem naquele estado. (FONSECA, 2001, p. 13).
Rubem Fonseca também apela para os aspectos corporais dos personagens para
gerar o efeito de comicidade em seu texto, que se aproximam muitas vezes do grotesco:
Tenho pensado nisso ultimamente. Ela tinha tirado a roupa: peitos
murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado;
coxas flácidas com nódulos de celulite, gelatina estragada com
pedaços de fruta podre. (FONSECA, 2001, p. 18)
Na praia somos todos iguais, nós, os fodidos, e eles. Até que somos
melhores, pois não temos aquela barriga grande e a bunda mole dos
parasitas. (FONSECA, 2001, p. 22)
É interessante notar como muitas vezes nos deparamos com uma menção ao sorriso
das vítimas, aos dentes, como se isso metaforizasse seu status social frente à inferioridade
sentida pelo Cobrador. Os dentes, na forma de metonímia, nos dão uma idéia de
superioridade. Afinal, imaginemos um animal que desafia seu opositor: a primeira reação
física é mostrar os dentes ao inimigo. O riso traz consigo essa idéia de superioridade, de
desafio. A imagem de uma dentadura na porta do consultório odontológico do Dr. Carvalho
nos é descrita no início da narrativa. A dentadura representa a falta de dentes, a supressão
do riso natural, a inferioridade daqueles que necessitam dela. Sendo assim, o consultório é
o primeiro local em que o cobrador inicia suas peripécias na trama, gerando a ambientação
das diferenças sociais entre o cobrador e a vítima inicial, no caso, o dentista. O sorriso
perfeito da classe elevada incomoda o protagonista:
Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma
loura reluzente […] os dentes dele são certinhos e verdadeiros, e eu
quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até
as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num
sorriso de caveira vermelha (FONSECA, 2001, p. 16)
Bergson constata que “é cômica toda combinação de atos e de acontecimentos que
nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão de vida e a sensação nítida de arranjo mecânico”
(2001, p. 51). Esse automatismo também está presente no conto “O Cobrador”, gerando
certa comicidade. Por vezes, o Cobrador esquece de seu ódio e então liga a televisão para
reanimá-lo:
Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando
minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o
que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco
tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz
anúncio de uísque. (FONSECA, 2001, p. 16)
O comercial, explicitando o abismo que divide as classes sociais, funciona como um
golpe ao espectador. Sendo voltado para um público específico, mas veiculado para todos
os que o vêem, o anúncio é considerado como zombaria na visão de pessoas como nosso
protagonista em questão. A frase “sou uma pessoa tímida” (FONSECA, 2001, p. 22), dita
por um assassino como o cobrador, gera em nós um estranhamento que não chega a ser
cômico, mas que poderíamos classificar como uma inversão.
O Cobrador é um indivíduo que se choca com a realidade inflexível, cruel,
capitalista e corrupta, que mina as chances de plena realização das classes sociais mais
baixas. Indignado com a sociedade que o cerca, que “não é difícil verificar na ficção
desse Autor, mergulhado nas profundezas da sociedade de seu tempo, o trauma da
compaixão e o desespero diante da impotência de alterar a realidade” (SILVA, 1996,
p. 104), Rubem Fonseca tem em sua obra o espelho da atualidade urbana brasileira. Temos
a representação angustiante dos homens que enfrentam a vida nas metrópoles.
Mas, não podemos dizer que haja no conto uma crítica direta à sociedade. No
tratamento dado ao tema não podemos encontrar qualquer didatismo; a realidade sem
máscaras é exposta, deflagrada, e cabe ao leitor tirar ou não conclusões próprias. Isso
decorre também da estratégia do autor de colocar um narrador-protagonista em seu texto,
complexo, que, vivendo seus problemas, está distante do propósito de dar lições de moral
ou de condenar. Antônio Candido trata da relação entre a complexidade do personagem e a
sociedade em que ele está inserido: “se es interessado menos no panorama social do que
nos problemas humanos, como são vividos pelas pessoas, a personagem tenderá a avultar,
complicar-se, destacando-se com a sua singularidade sobre o pano de fundo social.” (1968,
p.74). Rubem Fonseca indiretamente toca nas dores mais profundas de uma sociedade,
desvela o que incomoda, o que agride, seja através de uma linguagem chula, seja pela
narração detalhista de atos brutais, sem pudor algum.
5.3 “Passeio noturno” – partes I e II
Os contos “Passeio noturno parte I” e “Passeio noturno parte II” serão
analisados em conjunto devido à seqüência narrativa proposta pelo próprio escritor no livro
Feliz Ano Novo, sendo que também vários indícios da coincidência de enredo, de
narrador, de composição estrutural, elementos que serão detalhados mais adiante.
Os dois contos se destacam pelo fato de que novamente Rubem Fonseca enfoca o
universo marginal, valendo-se do ponto de vista do criminoso. Porém, “Passeio noturno”
torna-se muito mais ambíguo, que o crime não pode ser explicado apenas pelas
desordens sociais, como no caso de “O Cobrador”. O narrador autodiegético é um sujeito
comum de classe média alta que se distrai atropelando pessoas pelas noites do Rio; os
assassinatos que ele comete nada têm a ver com fatos imediatos. Segundo Boris
Schnaiderman:Os costumes bárbaros não são privilégio do submundo mais sujeito à ação
da polícia. E as vozes que os expressam localizam-se inclusive entre ‘gente de bem’”.
(1998, p. 775)
O protagonista parece ser movido por uma obsessão momentânea, e talvez esteja
a senha para desvendar tanta crueldade. Ele é tomado por um anseio súbito, atropelando
pessoas para se acalmar, e não escolhe de acordo com sexo, idade ou classe social de suas
vítimas, que podem ser pegas desprevenidas em qualquer local, em qualquer hora da noite.
Parece uma “vontade que e passa”, ou seja, uma violência que seria justificada como
escolha inerente ao instante. Assim, talvez o que agrade ao leitor de Rubem Fonseca seja
uma identificação subjacente com suas obras: nelas ele encontra a possibilidade de
satisfazer, através do crime cometido por um personagem, anseios (de vingança, por
exemplo) e desejos que o pudor, o medo ou a sociedade o impedem de realizar na sua vida
cotidiana.
Em “Passeio noturno parte I”, o narrador autodiegético relata um fato de seu
cotidiano que nos parece ser habitual, como se fosse uma noite como todas as outras. Ele
chega em casa, janta com a família, e sai para dar um volta de carro. Mas o automóvel não
é um veículo comum: “ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial
duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia.” (FONSECA, 1993a,
p. 62)
A arma do crime, o carro, é equipada especialmente para a função que lhe é mais
atribuída: o assassinato de pessoas pelas noites. E o personagem-narrador não sai com um
destino definido, mas com uma intenção que não nos é relatada diretamente: “Saí, como
sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais
gente do que moscas.” (1993a, p. 62). E, como exposto acima, o criminoso também não
escolhe suas vítimas: “Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não
aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até
gostava, o alívio era maior.” (1993a, p. 62).
A palavra “sempre”, da citação acima, nos indica que atropelar pessoas fazia parte
do cotidiano do personagem-narrador, e que este era experiente nesta atividade, pois, além
de possuir um carro todo equipado, também tinha uma metodologia para atropelar suas
vítimas: “havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a
exigir uma dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei.” (1993a, p. 62).
O atropelamento nos é descrito friamente, com detalhes; e, após ter finalizado, o
assassino se mostra indiferente diante do que acabou de fazer, orgulhoso da potência de seu
carro: “Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para
ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima
de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio” (FONSECA, 1993a, p. 62). Após o
assassinato, o narrador volta para casa, mais calmo, e, examinando o automóvel na
garagem, relata-nos não sobre o orgulho que tem de seu carro, mas do orgulho de si
mesmo, dizendo-nos: “Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no
uso daquelas máquinas” (FONSECA, 1993a, p. 63).
Várias passagens nos indicam que é o mesmo narrador autodiegético que atua nos
dois contos de “Passeio noturno”, como quando ele diz na Parte II: “À noite, saí, como
sempre faço” (FONSECA, 1993a, p. 67), frase que, para ser entendida, exige que o leitor
tenha lido a Parte I. Desse modo, parte-se do princípio de que os leitores sabem sobre os
atropelamentos que ele comete à noite. Outro exemplo pode ser a filha do criminoso, que
nos dois contos é estudante de impostação de voz. Os dois contos são tão semelhantes que
até os epílogos são iguais, repetindo-se a mesma frase: “amanhã vou ter um dia terrível na
companhia” (FONSECA, 1993a, p. 63 e p. 71).
Em “Passeio noturno parte II”, o criminoso relata um assassinato de tipo bem
diverso dos demais, pois conhece e janta com a vítima antes de matá-la. O novo
personagem chama-se Ângela, uma atriz falida que dera seu telefone ao assassino na
Avenida Atlântica. Finalmente descobrimos qual é a arma do crime: um Jaguar preto. Após
o jantar e uma leve discussão entre o personagem-narrador e a atriz, temos sinais de que ela
seria a próxima vítima, através de esboços, quando o criminoso a aconselha: “Eu se fosse
você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir de mim, na hora em que for
preciso.” (FONSECA, 1993a, p. 70). Ou, quando a atriz diz ao narrador:
Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá errado, disse
Ângela.
O azar de um é a sorte do outro, eu disse. (FONSECA, 1993a, p. 70)
O azar de Ângela era o de ter sido escolhida como vítima do criminoso naquela
noite, e a sorte do personagem-narrador estava em ter encontrado alguém a quem matar. Ao
mesmo tempo em que ele ansiava pelo momento de atropelá-la, temia pelo fato de que ela
poderia sobreviver e entregá-lo à polícia: “Tinha que bater e passar por cima. Não podia
correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que
havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia também o meu carro.” (1993a,
p. 71). Mas, com deboche, o criminoso avalia: “Mas qual era o problema? Ninguém havia
escapado.” (1993a, p. 71).
Surge em “Passeio noturno parte II” uma curiosa mudança no tom da narrativa. O
personagem-narrador, inspirado pelo crime que estava para cometer, reflete poeticamente
sobre o reflexo da lua no carro, lembrando-se do tempo em que era criança (analepse): “A
lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e
viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro
corresse” (1993a, p. 70).
O tom poético descrito envolve um objeto, o carro. Poderíamos dizer que o Jaguar
do assassino sofre quase que uma humanização, pois se iguala ao criminoso. Sem o carro, o
assassino perde sua identidade, e sem o motorista, o carro perde sua razão de existir, que
ele é equipado para matar, com o pára-choque reforçado para atropelar, mais do que para
qualquer outra função.
Quando o narrador descreve o corpo de Ângela sendo atropelado, a linguagem
direta, brutalista atua novamente, e com ela, a descrição minuciosa do método empregado
pelo criminoso:
Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o seu
corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente e
senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando e
logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela
estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de
dor e perplexidade. (FONSECA, 1993a, p. 71)
Percebemos em alguns protagonistas de Rubem Fonseca um tom demisericórdia”
perante vidas que foram quase eliminadas por eles mesmos. Assim como o Cobrador
oferece um tiro na cabeça a alguém que ele próprio acabara de balear, o narrador de
“Passeio Noturno” também passa “misericordiosamente” em cima do corpo de Ângela com
o Jaguar para certificar-se de que ela morreria imediatamente. Esses protagonistas não se
abalam com o ato de matar, atividade que realizam sem nenhum escrúpulo, mas ficam
tocados ao presenciar o sofrimento alheio, talvez porque eles próprios tenham nos
assassinatos uma forma de aliviar sofrimentos pessoais.
A segunda parte de “Passeio noturno” termina da mesma forma que a primeira: o
assassino volta para casa, encontra a mulher assistindo à televisão e vai dormir, agora mais
“calmo”.
6. LUIZ LOPES COELHO E RUBEM FONSECA
Luiz Lopes Coelho e Rubem Fonseca, conforme procuramos mostrar nos capítulos
anteriores, são escritores com características muito distintas. Suas obras recorrem a técnicas
diversas e têm objetivos específicos. Mesmo assim, a análise em paralelo da obra de Luiz
Lopes Coelho e Rubem Fonseca justifica-se porque permite destilar possibilidades e
transformações da narrativa policial no Brasil.
As histórias de Coelho retomam elementos que tradicionalmente foram a essência
do gênero: o mistério, um crime a ser desvendado, e a perspectiva racional de investigação,
corporificada na figura do detetive, Dr Leite. A despeito disso, porém, muitas vezes esses
elementos servem apenas de pretexto para chegar a algo mais complexo e repleto de
significados. A obra de Coelho desenvolve traços bastante inusitados no âmbito da
literatura policial, debruçando-se sobre a psique e os aspectos subjetivos, os efeitos curiosos
do acaso, as nuances sutis da convivência humana. Não pretendemos afirmar que o uso da
psicologia dos personagens ou o manejo de suas relações seja exclusivo ao autor, mas, a
combinação de todos esses elementos é que resulta na obra singular de Luiz Lopes Coelho.
Sendo assim, seu texto não é monopolizado pelo detetive e sequer pelo crime; seu
traçado revela uma nova tendência para o romance policial brasileiro, que não se preocupa
em seguir rigorosamente as fórmulas do gênero clássico. Os parâmetros estabelecidos por
Poe e descritos por François Fonseca (cf. BOILEAU e NARCEJAC, 1991, p. 22), que
citamos no primeiro capítulo, não se aplicam ao romance policial de Luiz Lopes Coelho.
Prova disso é que muitos dos criminosos de suas histórias saem impunes, como em “Um
candelabro apaga uma vida”, “E o delegado assassinou o assunto”. Nesse sentido, vale
lembrar que, segundo Sandra Lúcia Reimão,
a temática do crime impune que pode ser vista como um espelho
ficcional da descrença de todos nós, brasileiros, na eficácia de nosso
sistema judiciário-penitenciário se torna mais complexa e a função
que acabamos de atribuir-lhe é reforçada se atentarmos para a
presença de textos em que temos como desfecho a ‘justiça com as
próprias mãos’. (2005, p. 39)
O objeto nas histórias do advogado nem sempre é a investigação em si, podendo
muitas vezes ocupar-se de aspectos secundários: as sensações e pensamentos da vítima ao
perceber que está sendo perseguida, o impacto sobre personagens (inocentes) que, por
acaso, são favorecidos pelo assassinato, etc.
No caso de Rubem Fonseca,
a opção pelo gênero policial vem reiterar o ângulo de visão que
prioriza a violência como princípio básico da vida humana. [...] A
dissolução dos valores humanos, a generalização do crime, que se
estende ao mundo dos negócios, às esferas institucionais, o
romantismo nostálgico do detetive, que perde a imunidade, o enfoque
pirandelliano da verdade são traços presentes na obra do autor e que
podemos encontrar crescentemente no romance policial de 30 para
cá, em oposição ao romance enigma (FIGUEIREDO, 2003, p. 44).
Os autores afastam-se cada vez mais da narrativa de enigma clássica, para trilhar
caminhos próprios: Coelho com um panorama complexo de emoções e comportamentos de
seus personagens, e Fonseca com o espelho da realidade urbana brasileira, sem rodeios,
enfocando um cenário da marginalidade nas ruas do Rio de Janeiro, seguindo nesse ponto
seus precursores, talvez porque a ambientação das histórias policiais em cidades grandes
facilite o anonimato dos criminosos ou porque, na realidade, é nas cidades grandes que a
maioria dos crimes violentos ocorre.
Em relação à figura clássica do detetive, os personagens dos dois autores em
questão são absolutamente distintos de seus precursores. Em algumas histórias de Coelho,
não a presença do investigador, como em “Simte, o irmão de Têmis”, e, quando esta
figura existe (no caso, o Dr Leite), nos faz lembrar muito pouco de Dupin ou Sherlock
Holmes. Ele não é alienado socialmente, mas, ao contrário, tem amigos e família casado
com Marília). Seu gosto por deitar na rede e tomar uísque pode, é claro, fazer-nos pensar na
utilização de drogas (injeção de cocaína) por Sherlock Holmes. Mesmo assim, o contexto e
o papel que esses hábitos têm nas vidas do detetive britânico e do brasileiro são muito
diferentes.
Vale ainda lembrar que no contoo crime estava na biblioteca”, que não integra
o corpus deste estudo, o detetive até desvenda o crime à distância, estando imobilizado no
hospital com uma perna quebrada (aproximando-se muito mais de Alfred Hitchcock, por
exemplo, com seu filme A janela indiscreta). Ou seja, enquanto na narrativa policial
tradicional o personagem é imune aos perigos e tentações, Leite, ao contrário, entra em
cena sujeito a todos os desastres – o que, inclusive, lhe dá uma certa veia cômica.
O detetive de Rubem Fonseca, Mandrake, também foge às regras clássicas para o
papel. Segundo Vera Lúcia Figueiredo (2003, p. 44), o escritor retoma na trajetória de seu
detetive a tradição do romance policial, mas para imprimir-lhe uma marca própria.
Mandrake, presente também em outras obras de Fonseca, é culto, refinado, amante de
lindas mulheres e apreciador de vinhos e charutos. Porém, Mandrake não faz o serviço de
investigação apenas por puro prazer ou pelo simples amor à justiça e à verdade, como era o
costume de seus predecessores. Ele também é pago pelo que faz e dá grande importância ao
dinheiro e ao valor de seu trabalho.
Mas tanto Leite quanto Mandrake ainda seguem a tradição do romance clássico em
um aspecto: nas narrativas eles se distinguem dos demais personagens por serem os únicos
com faro ou “instinto” para chegar à verdade dos crimes, para ir além das meras aparências
e perceber a mentira por trás de despistamentos e falsas desculpas. É o caso de Leite, no
conto “E o delegado assassinou o assunto”, que fareja algo de estranho na coincidente
morte acidental das mulheres, e Mandrake, no conto de mesmo nome, que vai até às últimas
conseqüências para provar que sua hipótese está certa, e que a verdadeira assassina de
Marly é Lili, e não Cavalcante Méier, como todos os outros personagens pensavam. Com a
presença dos detetives, os escritores recolocam “um pouco de ordem em nossos espíritos.
Logo, o terror muda de caráter” (BOILEAU E NARCEJAC, 1991, p. 27).
Em relação aos criminosos dos contos de Fonseca e Coelho, essas figuras também
são absolutamente distintas de quaisquer outras do romance de enigma clássico. Muitas
vezes os criminosos não são tão culpados assim, ou pelo menos criam uma empatia com
seu leitor, como no caso dos assassinos criados por Luiz Lopes Coelho. Tanto Davi, de
“Crime mais que perfeito”, quanto o Professor do conto “Um candelabro apaga uma vida”
cometem crimes que até poderíamos julgar como sendo compreensíveis e justificados,
que são cometidos não por dinheiro ou poder, mas para salvar a vida e a dignidade de entes
queridos. Vários personagens matam, assim, não em causa própria, mas pelo bem da
sociedade como um todo. É o caso de Simte, no texto de Coelho, e do Cobrador, na obra de
Fonseca, que agem como justiceiros “sanando” as mazelas da sociedade através do
assassinato daqueles que a corrompem.
Devemos também levar em consideração o papel da vítima nos contos de nosso
corpus, a qual não se apresenta tão inocente como poderíamos esperar. Nadir, a esposa de
Demóstenes Calado em “E o delegado assassinou o assunto”; Carlota, esposa de Rodrigues
em Simte, o irmão de Têmis”; e Boris Weidman, marido da filha do Professor em “Um
candelabro apaga uma vida”, todos personagens de Luiz Lopes Coelho possuem
características que os transformam em culpados, em pessoas que até que mereciam” um
certo castigo, pois eram um peso e até uma ameaça para seus semelhantes. Nessa mesma
linha, encontramos em Fonseca casos como o de Marly, a chantagista em “Mandrake”, e
como os grã-finos exibicionistas mortos pelo Cobrador, que, em meio ao luxo e ao alto
poder aquisitivo, contribuem para a imensa desigualdade social.
Há, portanto, em boa medida uma relativização dos papéis clássicos detetive,
criminoso e vítima que aos personagens mobilidade psicológica, especificidade social
e complexidade estética. A relativização mostra-se cada vez mais acentuada no romance
policial brasileiro, sendo sutil e bem-humorada nas histórias de Luiz Lopes Coelho, e
chocante no realismo escancarado de Rubem Fonseca. As diferenças das funções
designadas para os personagens se diluem, e, aos poucos, o resultado se torna oposto ao
imaginado pelos genitores da narrativa policial: o romance de Fonseca é um romance
policial às avessas, em que os holofotes estão voltados para o mundo marginal, perdendo-se
o referencial da ordem, dos valores progressistas e da moral estabelecida. Em Fonseca, os
crimes são produto simplesmente da imaginação do escritor, mas são espelho da própria
realidade social do mundo contemporâneo em que ele está inserido.
E inclusive a função do leitor distancia-se daquela perceptível em “A carta
roubada”, de Edgar Allan Poe, por exemplo. Ao lermos certos contos de Luiz Lopes,
passamos de detetives a cúmplices do crime. sabemos quem é o criminoso, já sabemos o
que o levou a cometer seus atos, mas ainda assim temos a curiosidade de saber se ele será
descoberto, se seu plano dará certo. Curiosamente, enquanto o romance enigma tradicional
provê seus leitores da satisfação de ver revelado o culpado, Coelho consegue transformar
seu público em cúmplice: a punição do criminoso, longe de satisfazer, pode até produzir
reação de angústia no leitor, que torcia” pelo protagonista. Como exemplo poderíamos
mencionar o conto “Crime mais que perfeito”, em que a sensação ao final da narrativa se
assemelha àquela presente nos finais de tragédias gregas: sente-se pena do criminoso e, por
isso, o súbito suicídio de Davi é desconcertante, incômodo.
E isso não acontece apenas nas histórias de Coelho. Muitas vezes tornam-se
engraçadas as idéias do protagonista sanguinário de Fonseca em “O Cobrador”, e
testemunha-se com muita tranqüilidade os atropelamentos de “Passeio Noturno”. Ou seja,
não só os papéis da “santíssima trindade” de Kothe se diluem, mas também a própria reação
clássica dos leitores do gênero, que se colocam a favor do criminoso e contra a instituição
policial sem resquícios de culpa, atos violentos são testemunhados passivamente, e põe-se
em dúvida a justiça humana. O romance policial brasileiro, na obra dos autores em estudo,
despreza regras estrangeiras do gênero para seguir um caminho peculiar, específico, que vai
do enfoque subjetivo e complexo de personagens (Coelho) até a exposição da
marginalidade sem máscaras, “a vida brasileira como ela é” (Fonseca).
Além disso, não podemos nos esquecer do tom brasileiro que nossos autores
incorporam ao gênero clássico. Um detetive que adora solucionar seus casos deitado na
rede poderia ser uma criação de autoria verde-amarela, assim como os cenários das ruas
do Rio de Janeiro poderiam ser descritos por alguém que andou por lá. A
ambientação, os personagens, os problemas, os diálogos, enfim, inúmeros aspectos
presentes nos contos analisados estão imbuídos de um inegável caráter nacional. Luiz
Lopes Coelho e Rubem Fonseca não aderem ao gênero policial de forma subserviente e
acrítica. Seus contos, ao contrário, atestam uma aguda preocupação em retratar e
problematizar aspectos de nossa cultura, de nossa forma de ser e pensar. O traçado
diferenciado de Luiz Lopes Coelho marcou a narrativa policial contemporânea. Não temos
a informação se as obras do autor foram lidas por Rubem Fonseca, mas o último poderia
confiar seus textos a um gênero que tivesse bases concretas e êxito em solo nacional, tarefa
consolidada pelo primeiro escritor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O panorama do romance policial é vastíssimo, compondo um múltiplo de
tonalidades e temas. Seriam incontáveis as páginas necessárias para a exposição dos autores
mais marcantes nas histórias de detetive, desde Poe até os tempos modernos, descrevendo o
perfil de cada criador com sua singularidade e capacidade inventiva. Acreditamos que nos
últimos anos esse gênero venha ganhando maior destaque entre críticos e teóricos literários,
apesar das barreiras ainda decorrentes do preconceito frente à chamada literatura de massa,
estigmatizada como menor. O policial cativa e entretém, mas nem por isso seus criadores
deixam de investir na qualidade de escrita e na originalidade do enredo. Aproveitando as
palavras de Flávio Moreira da Costa, “o crime, a despeito de ser uma tragédia diária da
nossa sociedade que vem desafiando e derrotando os nossos quase nunca eficientes
dirigentes, é também criação literária, manifestação cultural  e diversão.” (2005, p. 11).
Porém, quando passamos para o âmbito nacional, à primeira vista parece que os
nomes fogem à memória, o que se deve a duas possibilidades: ou nossos autores
detetivescos ainda formam uma ínfima parcela de toda massa cultural brasileira, ou eles são
numerosos, mas, vivos ou não, permanecem às escondidas, com seus nomes impressos em
livros guardados em prateleiras empoeiradas e solitárias, esperando que alguém os
(re)descubra e ilumine suas pegadas (queremos dizer, suas palavras...).
Acreditando na segunda opção, surgiu então a idéia e o interesse pela presente
dissertação. Não negaremos o apreço ao gênero, pois mesmo os estudiosos precisam de
diversão ao mesmo tempo em que se concentram em seu trabalho. Mas, acima disso, nossa
pesquisa foi guiada, de um lado, pelo interesse da descoberta, ou melhor, redescoberta de
um autor há anos longe das vitrines mercadológicas; e, por outro, pelo fascínio pela obra de
um autor de renome. Nosso objetivo era que a escrita de um autor iluminasse a de seu
precursor.
Esperamos que a dissertação desperte a atenção daqueles que se interessam pelo
assunto, e que estes se sintam seduzidos e instigados a folhear as páginas da obra de
Coelho, se desconhecido, e de Fonseca, à luz de uma significação que vai além da
classificação “realista” ou “brutalista”. Outros importantes escritores surgiram no cenário
da literatura policial brasileira, como Garcia-Roza, Patrícia Mello, Marçal Aquino, Cláudia
Mattos, e até mesmo o jornalista e apresentador Soares. Mas, não podemos falar em
romance policial brasileiro sem mencionar a obra de Luiz Lopes Coelho e de Rubem
Fonseca. Esperamos que nossa pesquisa venha a contribuir de alguma forma a esse
processo de redescoberta, mostrando que o gênero criou raízes em solo brasileiro
justamente pela fertilidade das páginas dos autores estudados.
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