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UFRJ – Faculdade de Letras
CONOTAÇÕES E CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS NO DISCURSO:
UMA ANÁLISE DO DISCURSO MIDIÁTICO DA BOA FORMA FÍSICA
Jorge de Azevedo Moreira
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
De Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Orientadora: Professora Doutora Maria
Aparecida Lino Pauliukonis
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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2
CONOTAÇÕES E CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS NO DISCURSO:
UMA ANÁLISE DO DISCURSO MIDIÁTICO DA BOA FORMA FÍSICA
Jorge de Azevedo Moreira
Orientadora: Professora Doutora Maria Aparecida
Lino Pauliukonis
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do
Título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Aprovada por:
________________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Maria Aparecida Lino Pauliukonis (Orientadora)
____________________________________________________________
Professor Doutor Patrick Charaudeau (Université Paris XIII)
____________________________________________________________
Professor Doutor André Crim Valente (UERJ)
____________________________________________________________
Professora Doutora Rosane Santos Mauro Monnerat (UFF)
____________________________________________________________
Professora Doutora Angela Maria da Silva Correa (UFRJ)
____________________________________________________________
Professor Doutor Helênio Fonseca de Oliveira (UERJ)
____________________________________________________________
Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa (UERJ)
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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3
Dedicatória
A meus pais, Ary e Raimunda, por terem feito de mim quem sou. Um centroavante
faz um gol porque todo o time participa da jogada!. E esta tese é o gol que dedico a
eles, que me permitiram as condições necessárias para cumprir meus estudos!
À Sandrinha, por sua colaboração nos momentos críticos de anos atrás, por sua
compreensão nos afastamentos forçados para a elaboração desta tese e por seu amor
de sempre!
4
Agradecimentos
À Aparecida Lino, por sua paciente, generosa e brilhante colaboração neste
projeto que, na realidade, começou antes mesmo do Doutorado, e cujos sólidos
conhecimentos em semântica e em análise do discurso fizeram desta pesquisa uma
agradável empreitada;
Ao professor Patrick Charaudeau, por sua imensa contribuição nas ciências da
linguagem, ao estabelecer uma teoria que, em vez de desmerecer conhecimentos
estabelecidos, aglutina-os, proporcionando assim uma visão ímpar do discurso;
Aos professores André Valente e Angela Correa pelas preciosas observações em
meu exame de qualificação;
A meus mestres de francês: Celina, por seus raciocínios (des)construtivos e
meticulosos, sempre suspeitando de todas as definições já estabelecidas; e Marcelo, por
sua inestimável colaboração e incentivo para que eu entrasse na pós-graduação. Je
vous remercie infiniment!;
À querida Ligia Vassallo, orientadora antes, durante e mesmo depois do
mestrado, por sua fantástica (!) ajuda nas mais variadas etapas acadêmicas e cuja
precisão redacional me serve de modelo até hoje;
Aos professores de português que muitíssimo me ensinaram durante meu exercício
como professor substituto da UFRJ e durante o doutorado: Mônica Nobre, Silvia
Brandão, Silvia Rodrigues, Dinah Callou, Maria Eugenia, Ana Flávia e Maria Lucia,
entre outros;
A meus amigos Luciano e Rogério pelo companheirismo de sempre; à Hellem,
pela amizade e pelo abstract desta tese; e à pequena Luísa, pela alegria especial que
irradia a quem a cerca – e quem sabe um dia ela não leia com gosto esta tese?;
A meu tio Antônio por sempre ter participado de minha vida e a meu irmão
Alexandre pelo bom humor e tranqüilidade;
Aos seletos alunos do Colégio Pedro II que reconhecem meu trabalho,
adolescentes que continuam uma lenda hoje, adultos que (re)construirão o mundo de
amanhã; e a meus inesquecíveis alunos da UFRJ, da turma de espanhol a maioria
dos quais, hoje, colegas –, pelo afeto com que sempre me trataram;
À equipe de francês do Colégio Pedro II, da Unidade de São Cristóvão II, em
especial às ‘merveilleuses' Aline e Cândida a quem estimo e admiro profundamente;
Àqueles que desde meu nascimento, onde quer que estejam, sempre me
protegeram;
E agradecimentos especiais a Saussure, sem o qual nada disso teria sido possível,
e também a Mattoso Câmara, o grande ícone da lingüística brasileira!
Esta tese é, humildemente, para todos vocês.
5
Moreira, Jorge de Azevedo. Conotações e construção de sujeitos no
discurso: uma análise do discurso midiático da boa forma física / Jorge
de Azevedo Moreira. Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2008.
xi, 228 f.: il.: 31cm.
Orientadora: Maria Aparecida Lino Pauliukonis
Tese (doutorado) – UFRJ / FL, Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, 2008.
Referências bibliográficas: f.208-213.
1. Análise do Discurso. 2. Semântica 3. Comunicação de massa e linguagem.
4. Ethos. 5. Língua Portuguesa, Tese. I. Pauliukonis, Maria
Aparecida Lino. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. Título.
6
SINOPSE
Revisão crítica dos conceitos de denotação e conotação à
luz da análise do discurso. Denotação e conotação como
efeitos de sentido constitutivos do ethos. A questão do
sujeito na análise do discurso: determinação, estratégias e
desdobramentos. O ethos como imagem do sujeito e
elemento de persuasão nas práticas discursivas.
Levantamento dos mecanismos lingüístico-discursivos nas
estratégias de persuasão das revistas Corpo a Corpo e Boa
Forma.
A vida já é uma cadeia. Mas nós podemos falar, discutir,
contar essas misérias ao maior número possível de amigos e
conhecidos. Um dia é possível que algum sujeito importante
leve a coisa a sério. (Erico Veríssimo, Olhai os lírios do campo)
A linguage
Charaudeau, Discurso das mídias)
E meus amigos parecem ter medo
De quem fala o que sentiu
De quem pensa diferente
Nos querem todos iguais
Assim é bem mais fácil nos controlar
E mentir, mentir, mentir
E matar, matar, matar
O que eu tenho de melhor: minha esperança
(Renato Russo, Aloha)
7
RESUMO
CONOTAÇÕES E CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS NO DISCURSO:
UMA ANÁLISE DO DISCURSO MIDIÁTICO DA BOA FORMA FÍSICA
Jorge de Azevedo Moreira
Orientadora: Professora Doutora Maria Aparecida Lino
Pauliukonis
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Língua
Portuguesa.
Esta tese propõe uma abordagem discursiva de um tema tradicional dos estudos
semânticos: os conceitos de denotação e conotação. Contudo, em lugar de
considerarmos esta como derivada daquela, demonstramos que, no discurso, é a
conotação que assume um papel englobante. Assim, a denotação não constitui um
sentido fora de contexto, mas sim um efeito de sentido específico, entre muitos outros
possíveis, o que caracteriza a natureza conotativa da linguagem. Se há efeitos de
sentido, é porque sujeitos, os quais representam entidades ao mesmo tempo sociais e
discursivas, fonte e produto do sentido. Buscamos, desse modo, mostrar como os
sujeitos se constroem no discurso a partir dos efeitos conotativos, configurando
diferentes tipos de ethos. Escolhemos como corpus textos midiáticos que tratam da boa
forma física (nas revistas Corpo a Corpo e Boa Forma), em razão da sua natureza
persuasiva. O estudo do ethos dentro dos processos persuasivos permite assinalar o
poder de influência da linguagem. Para cumprir esta tarefa, seguimos principalmente os
modelos da análise semiolingüística do discurso, delineada por Patrick Charaudeau.
Palavras-chave: Análise do Discurso; semântica; comunicação de massa e
linguagem; ethos; Língua Portuguesa
8
RÉSUMÉ
CONNOTATIONS ET COSTRUCTION DE SUJETS DANS LE DISCOURS:
UNE ANALYSE DU DISCOURS MÉDIATIQUE DE LA PLEINE FORME
Jorge de Azevedo Moreira
Orientadora: Professora Doutora Maria Aparecida Lino
Pauliukonis
Résumé da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Língua
Portuguesa.
Cette thèse propose une approche discursive d’un thème traditionnel des études
sémantiques : les concepts de dénotation et connotation. Cependant, au lieu de
considérer celle-ci un processus dérivé de celle-là, on démontre que, dans le discours,
c’est la connotation qui joue le rôle englobant. Ainsi, la dénotation ne constitue-t-elle
pas un sens hors-contexte, mais bien un effet de sens spécifique, parmi d’autres
possibles, ce qui caractérise la nature connotative du langage. S’il y a des effets de
sens, c’est parce qu’il y a des sujets, qui représentent des entités à la fois sociales et
discursives, source et produit du sens. On a donc tenu à montrer les manières dont les
sujets se construisent dans le discours à partir des effets connotatifs, en configurant des
différents types d’ethos. On a choisi comme corpus des textes médiatiques sur la pleine
forme, en raison de leur nature persuasive. L’étude de l’ethos dans les processus
persuasifs permet de signaler le pouvoir d’influence du langage. Pour accomplir cette
tâche, on a plutôt suivi les modèles de l’analyse sémiolinguistique du discours, conçue
par Patrick Charaudeau.
Mots-clé: Analyse du discours; sémantique ; média et langage ; ethos ; langue
portugaise
9
ABSTRACT
CONNOTATIONS AND CONSTRUCTION OF SELVES IN DISCOURSE:
AN ANALYSIS OF MEDIA DISCOURSE OF GOOD SHAPE
Jorge de Azevedo Moreira
Orientadora: Professora Doutora Maria Aparecida Lino
Pauliukonis
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Língua
Portuguesa.
This thesis offers a discursive approach of a traditional theme in the semantical
studies: the concepts of denotation and connotation. Nevertheless, instead of
considering this as originated from that, we demonstrate that, in the discourse, it is the
connotation which assumes a globalizing role. Thus, the denotation does not produce a
meaning out of context, but a specific meaning effect, among many other possible
meanings, which characterizes the connotative nature of language. If there are meaning
effects, it is because there are selves, who represent entities which are at the same time
social and discursive, source and result of meaning. We have tried, in this sense, to
show how selves are constructed in the discourse from the connotative effects,
constructing different ethos types. We have selected as corpus midiatic texts which talk
about fitness (in the magazines Corpo a Corpo and Boa Forma), because of their
persuasive nature. The study of ethos in the persuasive processes allows us to point out
the powerful influence of language. In order to work on this purpose, we have mainly
followed the semiolinguistic analytic models of discourse, organized by Patrick
Charaudeau.
Key-words: Discourse Analysis; semantics ; media and language ; ethos ;
Portuguese langage
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 12
2 SIGNO, DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO: VISÕES TRADICIONAIS ............ 22
2.1 A visão do signo no estruturalismo clássico: Saussure e Hjelmslev....................... 22
2.2 Sentido e referente: a visão de Ullmann.................................................................. 26
2.3 Estruturalismo e análise sêmica: Pottier.................................................................. 30
2.5 Sentido e funções da linguagem: Jakobson............................................................ 32
2.5 Sujeito, signo e linguagem: Benveniste................................................................... 35
2.6 Sentido e argumentação: Ducrot.............................................................................. 37
2.7 Sentido de língua e sentido de discurso................................................................... 40
2.8 Sentido e contexto ................................................................................................... 46
3 DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO NUMA VISÃO DISCURSIVA...................... 50
3.1 Crítica à visão referencial da linguagem ................................................................. 50
3.2 Entre o discurso e a língua: a produção de sentidos................................................ 66
3.3 Revitalizando a distinção entre denotação e conotação........................................... 73
3.4 Tipos de conotação.................................................................................................. 75
4 ANÁLISE DO DISCURSO E DEFINIÇÕES TERMINOLÓGICAS ................. 89
4.1 Análise do discurso ou análises do discurso?.......................................................... 89
4.2 Contratos de comunicação e restrições.................................................................. 106
4.3 Texto, cenografia e interpretação .......................................................................... 114
5 DISCURSO, INFORMAÇÃO E PERSUASÃO .................................................. 119
5.1 Discurso e imaginários sociais .............................................................................. 119
5.2 Mídia: entre a informação e a persuasão ............................................................... 124
5.3 – O corpus selecionado .......................................................................................... 130
5.4 – Forma e conteúdo: o que é analisar um discurso?............................................... 132
3.1.1 Conectivos: além do enunciado............................................................................ 55
3.1.2 Sentido x referência: a língua além da lógica...................................................... 58
3.4.1 Conotação associativa.......................................................................................... 75
3.4.2 Conotação inferencial .......................................................................................... 79
3.4.3 Conotação apreciativa ......................................................................................... 82
3.4.4 Conotação identitária e texto ................................................................................ 87
4.1.1 Sujeito e discurso na perspectiva semiolingüística.............................................. 92
4.1.2 Enunciação, sentido e identidade discursiva: redefinições teóricas.................... 96
4.1.3 Texto, discurso e gênero..................................................................................... 102
4.2.1 Dados externos do contrato de comunicação..................................................... 106
4.2.2 Dados internos do contrato de comunicação..................................................... 109
4.2.3 Gênero e leitura: intenção e finalidade no texto................................................ 110
11
5.5 Procedimentos persuasivos de credibilidade......................................................... 140
5.6 Procedimentos persuasivos de aproximação ......................................................... 148
5.6.1.1 Recursos fáticos............................................................................................................................149
5.6.1.2 Recursos lexicais ..........................................................................................................................154
5.6.2.1 Exposição subjetiva......................................................................................................................160
5.6.2.2 Interpelação ..................................................................................................................................162
5.6.2.3 Generalização ...............................................................................................................................164
5.7 Procedimentos persuasivos de motivação .............................................................. 167
5.7.3.1 Depoimento ..................................................................................................................................176
5.7.3.1 Registro em terceira pessoa ..........................................................................................................179
5.8 Um procedimento à parte: a exemplificação de celebridades ................................ 182
5.8.1 Valorização do exemplificado .........................................................................................................182
5.8.2 Identificação com o leitor................................................................................................................186
5.8.3 Formulação de procedimentos.........................................................................................................188
5.8.4 Abertura publicitária........................................................................................................................189
5.9 O contrato de comunicação das revistas analisadas ............................................... 193
5.10 Representações femininas e masculinas nos processos persuasivos .................... 195
6 - CONCLUSÃO ....................................................................................................... 202
7 – BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 208
8 ANEXOS .................................................................................................................. 214
8.1 Capas das edições consultadas ............................................................................... 214
8.2 Apresentação de algumas matérias......................................................................... 217
5.5.1 Conformidade ao gênero: a importância do registro lingüístico ....................... 140
5.5.2 Referências a argumentos de autoridade........................................................... 144
5.6.1 Encenação dialógica ........................................................................................... 149
5.6.2 Estratégias de problematização .......................................................................... 159
5.7.1 Promessas............................................................................................................ 167
5.7.2 Singularização..................................................................................................... 170
5.7.3 Exemplificação .................................................................................................... 176
8.1.1 Revista Corpo a Corpo........................................................................................ 214
8.1.2 Revista Boa Forma.............................................................................................. 215
8.1.3 Revista Men’s Health .......................................................................................... 216
8.2.1 Mostra da Revista Corpo a Corpo ...................................................................... 217
8.2.2 Mostra da Revista Boa Forma............................................................................. 223
8.2.3 Mostra da Revista Men’s Health......................................................................... 227
12
1 INTRODUÇÃO
Este é um trabalho sobre análise do discurso.
Reconhecemos, entretanto, a vagueza de tal afirmação, tanto mais que não nos
furtamos, no decorrer de nossa tese, a tecer comentários sobre o uso indistinto da
etiqueta “análise do discurso” na atualidade, cuja freqüência, longe de marcar um
território bem delimitado, nos leva a uma tremenda diversidade de teorias e
metodologias bastante diferentes entre si. Sobre esse aspecto, é bem ilustrativa a fala da
professora Diana Luz, da USP, especialista em discurso e semiótica, que declarou em
entrevista, com um humor crítico, que “quem não sabe o que faz diz que faz análise do
discurso”
1
. Referia-se ela à multiplicidade de trabalhos que pouco ou nada têm a ver
com os estudos de linguagem, mas que se apresentam como “análise do discurso”.
Não obstante essa perigosa disseminação, é sob a égide do termo “discurso” que
desenvolvemos esta pesquisa do início ao fim.
Ora, se uma diversidade de escolas e de metodologias que se intitulam “análise
do discurso”, obviamente o termo “discurso”, central para todas elas, possui sentidos
diferentes. Cremos haver um traço comum a todas as acepções que este termo
apresenta: o de linguagem em uso, constituindo, portanto, um processo intersubjetivo e
contextualizado.
Talvez seja a palavra “contexto” que, com maior relevância, qualifique o que se
concebe como “discurso”. O contexto deve ser considerado apenas como o entorno
textual que cerca uma dada unidade a ser estudada? Deve referir-se às condições
imediatas em que a comunicação se produz, circunstância em que o estudo dos dêiticos
assumiria uma grande importância? Ou deve se vincular à questão dos imaginários
sociais em circulação, de onde seria necessária uma articulação da análise do discurso
com outras disciplinas, como a sociologia, a psicologia social ou a história?
Situamo-nos dentro de uma problemática que leva em conta essas três dimensões
do contexto, de modo que o discurso, para nós, representa uma atividade ao mesmo
tempo lingüística, situacional e social. Essa opção, que nos leva a abraçar a linha
francesa da análise do discurso, especificamente os trabalhos de Dominique
Maingueneau e, principalmente, de Patrick Charaudeau, se mostra ambivalente: de um
lado, há o aspecto positivo de nos enfileirarmos dentro de metodologias de trabalho que,
1
Entrevista que se encontra em XAVIER, Antonio Carlos & CORTEZ, Suzana (Orgs.) (2007).
Conversas com lingüistas. São Paulo: Parábola. p. 156.
13
embora relativamente recentes, são prolíficas e definitivamente bem delimitadas no
campo das ciências da linguagem. Por outro lado, a vinculação entre o lingüístico e o
social não se faz sem o risco de um retrocesso epistemológico: o de tornar as
apreciações lingüísticas subalternas a uma análise sociológica (ou histórica, ou ainda
psicológica), desfazendo a autonomia que a lingüística, enquanto conjunto de
disciplinas, vem conseguindo desde Saussure.
Aceitamos correr esse risco, principalmente porque não concebemos o discurso
como uma atividade secundária a uma estrutura social ou a um condicionamento
histórico: o discurso, em nosso entender, é uma atividade social, e não pode ser visto
como um reflexo de um certo imaginário social, senão como sua contraparte material,
que lhe é indissociável. A própria língua, considerada como abstração, não pode ser
vista como totalmente à parte de sua concretização discursiva. Por esse motivo, a
presença teórica de Oswald Ducrot é nítida nesta pesquisa, já que sua proposta de
conceber o sistema como voltado à prática argumentativa vem ao encontro de nossos
objetivos.
Naturalmente, essa problemática não pode ser negada, tanto mais que a análise do
discurso é vista com suspeição por outras áreas da lingüística, que constituiriam um
“núcleo duro” dessa disciplina. Todavia, é essencialmente sob o ponto de vista
lingüístico que embasamos nossa análise, razão pela qual nos auto-situamos dentro de
uma área, por assim dizer, periférica da lingüística. Há autores, como Dominique
Maingueneau, que preconizam um status diferenciado para a análise do discurso, que
ela possui uma natureza diversa da lingüística tradicional, pois investiga a materialidade
lingüística através dos efeitos que esta provoca nos intercâmbios linguageiros, e não por
suas regras de formação:
A AD não é, pois, uma parte da lingüística que estudaria os textos, da mesma
forma que a fonética estuda os sons, mas ela atravessa o conjunto de ramos da
lingüística [...] (MAINGUENEAU, 1997, p. 18)
Sendo assim, pode-se concluir que as tradicionais divisões da lingüística
(fonologia, morfologia e sintaxe) até podem despertar um interesse pontual da análise
do discurso, mas seu principal objeto, o discurso, permeia esses níveis, possuindo sua
própria ordem. A área de atuação da análise do discurso se mostra, portanto, bastante
vasta, o que não quer dizer em absoluto que seja indeterminada. Ainda que diferentes
entre si, muitas de suas linhas de pesquisa já se sedimentaram no campo das ciências da
14
linguagem, cada qual com suas filiações teóricas, pressupostos, conceitos operacionais,
metodologias e interesses próprios.
Em termos lingüísticos, a análise do discurso corresponderia a uma espécie de
estudo semântico, embora, como discutiremos ao longo do capítulo 2, a semântica, por
muito tempo, tenha constituído uma zona fugidia da lingüística.
Em todo caso, é um assunto tradicional da semântica que propomos desenvolver
nesta tese: as noções de denotação e conotação. O enfoque dado, no entanto, não é
ortodoxo, pois tencionamos demonstrar de que modo os sentidos denotativos e
conotativos podem se combinar para construir imagens de sujeitos nas atividades
discursivas. Nosso estudo não se limita, pois, a apresentar esses dois conceitos de modo
dicotômico, como se faz na tradição escolar.
Assim, propomos aproximar o conceito de conotação à problemática do ethos,
objeto de estudo que, apesar de datar da retórica clássica, mostra-se revisitado em
diversas pesquisas da atualidade. Em linhas gerais, tencionamos mostrar que o ethos,
isto é, as imagens que o sujeito passa de si mesmo no discurso, representa um grande
efeito de conotação e, mais do que isso, participa de um projeto de interinfluência.
O principal objetivo desta tese consiste, portanto, em levantar mecanismos
lingüístico-discursivos que compõem o processo de persuasão, no qual se constrói um
certo número de imagens do sujeito, acionadas por formas lingüísticas que assumem
conotações específicas, sem perder, contudo, seu sentido referencial. Embora tenhamos
eleito como corpus um gênero particular, que são as matérias midiáticas relacionadas à
boa forma física, acreditamos que a proposta que elaboramos possa servir para a análise
dos mais variados textos de natureza persuasiva.
Teríamos ainda três outros objetivos. Primeiramente, o de redefinir com base nos
estudos discursivos os tradicionais conceitos de denotação e conotação, formulando
uma tipologia que dê conta dos variados mecanismos conotativos.
O segundo objetivo seria o de levantar algumas características dos gêneros aos
quais pertencem os textos que estudamos. Formulamos então duas classificações
sucessivas. Chamaríamos esses textos, que propõem o cumprimento de um certo
número de procedimentos com o intuito de atingir uma finalidade de “supra-
instrucionais”. São “instrucionais” porque, obviamente, expõem instruções a serem
seguidas, mas não se limitam a isso. É seu caráter persuasivo, marcado nas formas
lingüísticas empregadas com conotações específicas, que impele o interlocutor a realizá-
los. Dentro desse gênero supra-instrucional, situaríamos, enfim, nosso corpus, que
15
pertenceria ao gênero midiático da boa forma física, de alcance muito amplo junto ao
público feminino, mas ainda relativamente tímido no tocante aos homens.
E, o quarto objetivo, talvez o mais elementar de todos, seria de o de apresentar a
análise do discurso como uma disciplina devidamente sedimentada dentro do campo
das ciências da linguagem, possuindo suas próprias referências teóricas, sua
terminologia operacional, sua metodologia de trabalho e, o que é muito importante:
estabelecendo seus limites. Seria muito cômodo cairmos na tentação de considerar que
“tudo é discurso”, o que incluiria todas as manifestações semióticas possíveis. Longe
de ser uma vantagem, tal postura, descabidamente ambiciosa, descaracterizaria a análise
do discurso como disciplina e a colocaria, na melhor das hipóteses, dentro da rubrica de
um “enfoque”, algo muito genérico – e pouco produtivo.
Nosso esforço é o de estudar o discurso em seu material de manifestação
privilegiado, no caso, a língua. Especificamente, a língua escrita relacionada a
instituições sociais em nosso caso, o domínio midiático. Tal procedimento se
enquadra, pois, dentro da tradição francesa da análise do discurso. Obviamente, os
recursos visuais, como fotos, ocupam um lugar de importância na formação de sentidos
e na constituição do ethos das revistas analisadas. Não ignoramos tal fato e não
deixamos de trabalhar, mesmo que rapidamente, o material visual, porém subordinando-
o ao texto lingüístico. Desenvolvemos nosso percurso analítico em quatro grandes
etapas, todas ligadas à questão do discurso.
O capítulo 2 de nossa tese, que constitui efetivamente a primeira etapa de análise,
responde, de certo modo, à questão “De onde vem a análise do discurso?”. Discutem-se
as definições tradicionais de “conotação” e “denotação”, ancorando-as a uma questão
central da lingüística, que é o conceito de signo. Desse modo, vemos qual o tratamento
que dão à questão grandes lingüistas como Saussure, Helmslev, Pottier, Jakobson,
Benveniste e Ducrot. Vinculados ao estruturalismo, alguns deles, em maior ou menor
grau, já sinalizavam a importância de um estudo discursivo. Não propomos neste
capítulo uma resenha sobre a obra desses autores. Trata-se, antes, de uma revisão breve,
porém crítica, que propõe uma reflexão da importância do contexto para o estudo do
sentido.
Por seu turno, o capítulo 3 se relaciona à pergunta “Por que existe uma análise do
discurso?”. Tecemos uma crítica ao que chamamos de visão referencial da língua, que
propaga uma espécie de primazia do sentido literal nos estudos semânticos.
Entendemos que a dicotomia entre sentido literal e sentido conotativo tem sua
16
importância, mas rechaçamos a predominância do primeiro nos estudos semânticos.
Partimos da hipótese de que denotação e conotação não se excluem, que uma forma
lingüística pode produzir determinados efeitos (conotativos) ao mesmo tempo em que
mantém seu valor referencial (denotativo). Para demonstrar esse ponto de vista,
propomos uma definição apurada do termo “conotação”, formulando, para isso, uma
tipologia com quatro modelos classificatórios (conotações associativas, inferenciais,
apreciativas e identitárias).
No capítulo 4, discutimos uma série de conceitos que se mostram da maior
importância para a análise do discurso. Por isso, essa seção de nosso trabalho se
relacionaria à pergunta “O que é a análise do discurso?”. É nela, pois, que se encontram
nossos principais pressupostos teóricos. Apressamo-nos a dizer que, atualmente, o mais
cabível é falar de “análises do discurso” e, sem querer estabelecer um retrospecto
histórico detalhado dessa disciplina, filiamo-nos dentro de uma tradição francesa que
vem desde Michel Pêcheux, em fins dos anos 60, mas que é radicalmente alterada nos
anos 80, por conta da influência das teorias da enunciação e das correntes pragmáticas.
É da pragmática que provém a visão do discurso como uma encenação, postura que é
defendida por Patrick Charaudeau dentro dos quadros de sua semiolingüística e que
ecoa de modo insigne em nossa pesquisa. Neste capítulo, ainda, mostramos o que
entendemos por termos de uso tão freqüente como “enunciação”, “texto”, gênero” e
“sujeito”, que não podem ser, todavia, considerados como axiomas, motivo pelo qual
buscamos definições precisas. A questão do sujeito ocupa, aliás, um papel central em
nossa tese. Obliterado por várias correntes lingüísticas, o sujeito na análise do discurso
representa uma das instâncias de produção dos sentidos, representando uma fonte e um
efeito de sentido. Vem daí o notável interesse da análise do discurso pelos processos de
projeção de imagens do sujeito nas comunicações linguageiras. Em nosso enfoque, o
ethos evidencia, conforme assinalamos, um grande efeito conotativo a conotação
identitária –, processo pelo qual não somente o emprego de elementos lexicais, mas
também de certas estruturas gramaticais concorrem para conceder ao sujeito discursivo
uma dada imagem.
no capítulo 5, formulamos aplicações práticas de nossos pressupostos teóricos,
o que seria uma resposta natural à pergunta “Para que serve a análise do discurso?”.
Com efeito, nas seções 5.3, 5.4 e 5.5 encontra-se a metodologia que adotamos, sendo
apresentado o corpus e os instrumentos operacionais de que nos servimos. Debruçamo-
nos, notadamente, sobre textos de caráter persuasivo. A análise do discurso, em geral, e
17
a semiolingüística de Charaudeau, em particular, partem do princípio de que o discurso
não pode ser considerado como uma mera troca de informações, como certas correntes
estruturalistas – aquelas que se abstraem da enunciação – poderiam sugerir. Regido por
um princípio de intencionalidade, o sujeito faz do discurso a materialização de um
projeto de influência, em que entram em jogo diversos mecanismos de persuasão, nos
quais as imagens que projeta de si assumem grande relevância. Admitimos que nem
todo enunciado é persuasivo: embora não acreditemos na neutralidade absoluta do
discurso, achamos que possam existir textos de natureza essencialmente informativa
como bulas de remédio, receitas culinárias e listas telefônicas, entre outros.
No entanto, o número de textos que condicionam a informação a estratégias
persuasivas se mostra bastante significativo, o que nos enseja a analisar um gênero
midiático muito em voga atualmente, aquele relacionado a instruções de como manter a
boa forma física.
Para empreender essa análise, servimo-nos de seis exemplares da revista Corpo a
Corpo e de seis da revista Boa Forma, publicadas num período similar (entre 2006 e
2008). Restringimo-nos às matérias versando sobre exercícios físicos e nutrição, a fim
de não corrermos o risco de trabalhar com uma dispersão temática acentuada. Como
ambas se referem ao público feminino, faremos alguns contrapontos com a revista
Men’s Health, da qual também utilizamos seis edições publicadas entre 2006 e 2008.
Ao longo de nossa tese nos deparamos com diversos problemas, de ordem teórica
e prática, para levar a termo as investigações propostas. Isso nos impulsionou a traçar
um certo número de questionamentos e a levantar determinadas hipóteses:
1) Seria válido afirmar que, na prática discursiva
2
, o sentido denotativo
necessariamente se esvazia, sendo substituído por variados tipos de conotação? Estes,
por sua vez, poderiam se desdobrar indeterminadamente tornando inviável uma análise
semântica?
Antes de mais nada, consideramos que denotação e conotação não representam
conceitos antinômicos. Muitas vezes, uma unidade lexical ou mesmo um enunciado
inteiro pode preservar seu valor referencial ainda que se carregando de conotações. É
verdade que estas podem ser extremamente variadas e atingir um número amplo de
efeitos, que são, no entanto, condicionados por fatores que nos permitem sistematizá-
2
Em nossa tese, o termo “prática discursiva” aparece como um mero sinônimo para discurso. Porém, há
autores como Foucault e Maingueneau que lhe atribuem um sentido mais específico, conforme consta do
verbete correlato no Dicionário de Análise do Discurso.
18
los: a identidade dos sujeitos, a situação concreta do ato discursivo e o gênero do texto
em questão. Além disso, as formas lingüísticas guardam certas constantes semânticas
na prática discursiva, sem as quais o discurso representaria um processo sempre
inovador, tendendo inelutavelmente a falhas de compreensão.
2) Como trabalhar produtivamente, sob um ponto de vista que se pretende
lingüístico, textos que variam enormemente de extensão? Que categorias formais,
afinal, devemos analisar?
Primeiramente, cumpre-nos frisar que a análise do discurso não parte de formas
lingüísticas discretas (como as classes gramaticais) para chegar a uma apreciação de
seus comportamentos nas práticas discursivas; ao contrário, parte-se do reconhecimento
de estratégias e efeitos de sentido no discurso para se chegar ao repertório de elementos
formais que os geram. As estratégias e efeitos variam, evidentemente, conforme a
natureza do texto em questão.
Em nossa proposta, que é a de examinar as imagens do sujeito dentro de textos
persuasivos, aventamos a formulação de três procedimentos funcionais, que dão conta
dos efeitos de credibilidade, de aproximação com o interlocutor e de motivação; cada
um desses procedimentos articula, de modo distinto, funções discursivas específicas a
determinadas categorias lingüísticas.
Dentro destas últimas, achamos que o estudo do léxico se mostra mais proveitoso
que o dos elementos gramaticais, como os conectivos – estes seriam mais úteis, cremos,
em pesquisas que tratassem diretamente da organização argumentativa sob o ponto de
vista lógico. Sendo assim, parece-nos de grande importância apreciar de que modo
classes como substantivos, adjetivos e verbos se revestem de conotações específicas
dentro dos processos de persuasão. Outro aspecto importante, a nosso ver, também
relativo às categorias lingüísticas, é a colocação do sujeito no discurso, o que chamamos
de foco enunciativo isto é, a enunciação em primeira, em segunda ou em terceira
pessoas. Esses diferentes focos possibilitam construções textuais distintas e, portanto,
efeitos de sentido diferentes.
3) Um dos objetivos de nossa tese é, como dissemos, o estudo de mecanismos
persuasivos, dentro dos quais as unidades lingüísticas assumem conotações específicas.
Até que ponto é possível estudar também os imaginários e representações sociais que
essas conotações transmitem?
Certamente os imaginários sociais e suas representações materiais apresentam
grande importância nos processos persuasivos, pois remetem a modelos idealizados a
19
serem atingidos. Contudo, devemos frisar que nosso empreendimento é, antes de tudo,
lingüístico. Assim, não nos importa estudar o comportamento real de pessoas que
tiveram contato com os textos persuasivos que analisamos; embora se trate de uma
pesquisa indubitavelmente rica, ela foge ao escopo de nosso estudo, pois recairia na
chamada análise psicologizante. O que interessa, em nossa concepção de análise do
discurso, é sublinhar as recorrências lingüístico-discursivas nas quais esses imaginários
sociais se materializam, tornando-se elementos privilegiados nos projetos de
interinfluência. Seguindo essa metodologia, as diferenças entre imaginários femininos e
masculinos são apreciadas sob um ponto de vista funcional: não é de nosso âmbito
estudar por que essas diferenças, mas sim de que modo elas são processadas na
atividade discursiva para obter um determinado fim.
Nossa análise pretende ser eminentemente qualitativa, dispensando assim uma
quantificação dos dados examinados. Não cremos que essa opção diminua o rigor
científico de nosso empreendimento, já que seguimos um percurso objetivo: revisão dos
pressupostos teóricos; formulação de problemas e hipóteses; proposta clara de
mecanismos de análise; e delimitação do corpus. Lembramos também que a presença
de dados estatísticos pode até dar uma aparência de maior objetividade a uma pesquisa –
e comentamos sobre efeitos dessa natureza no capítulo 5 –, mas eles não são essenciais
conforme o objeto estudado e a metodologia adotada. Para uma visão mais concreta dos
textos que abordamos, ao final desta tese, na seção dedicada aos anexos, apresentamos
as capas dessas publicações e algumas matérias, uma de cada revista, amostragem que
consideramos bastante ilustrativa de nossas explicações gerais.
Apresentados os objetivos e a estrutura de nossa tese, devemos tecer alguns
comentários sobre o modo como a desenvolvemos, incluindo o aspecto redacional.
Seguimos, como é de esperar num trabalho acadêmico, a norma padrão da língua
portuguesa, embora ressalvando que esta, longe de ser um conjunto de regras
inequívocas, representa um palco de variantes em confronto. Por esse motivo, não nos
preocupamos em deixar de lado formas condenadas por redatores mais conservadores.
É o caso do uso que fazemos da palavra “inclusive”, como sinônimo de “até”, ou da
expressão “através de” com valor de “mediante”.
3
Do mesmo modo, não nos
interessou empreender uma correção apurada de itens como o emprego de infinitivos ou
3
Tais empregos são condenados por Napoleão Mendes de Almeida, entre outros. Para maiores detalhes,
sugerimos a leitura de ALMEIDA, Napoleão Mendes de (1996). Dicionário de Questões Vernáculas.
São Paulo: Ática.
20
a colocação de pronomes oblíquos. Acreditamos, enfim, que certos rigores gramaticais
são de menor importância na elaboração de um texto.
Quanto aos termos estrangeiros, usamos aqueles indispensáveis e tão
consagrados pelos estudos lingüísticos que se tornaram jargões. Em geral, sinalizamo-
los com caracteres itálicos, como é o caso da dupla langue e parole. Outros, como
status e ethos, que constam de dicionários como o Aurélio, grafamos em caracteres
normais. O vocábulo francês “nuance” representa um caso à parte. Embora não se
encontre no Aurélio, preferimos empregá-lo em detrimento de seu correlato em língua
portuguesa “nuança”, por motivos de eufonia. Ademais, “nuance” é uma palavra
devidamente disseminada em nossos hábitos lingüísticos, o que não acontece com
“nuança”, que, embora goze da legitimação do dicionário, causa claro estranhamento.
Ainda especificamente sobre o itálico, utilizamos tais caracteres também para indicar
nomes de livros ou destacar partes transcritas do corpus, relacionando-as com os
assuntos tratados. Nos casos em que a parte a destacar se referia ao nome de uma obra,
preservamos o itálico, porém acrescentando uma sublinha.
As transcrições do corpus aparecem emolduradas, o que garante uma separação
adequada entre elas e o corpo do texto. Por outro lado, as transcrições mais longas das
obras teóricas consultadas seguem um outro padrão, caracterizado por letras de tamanho
menor e espaçamento entre linhas mais estreito.
Outro item que julgamos necessário comentar, e que se relaciona também às
transcrições, são a citações dos autores e suas obras. Objetivamos o maior conforto
possível para a leitura, de modo que tais referências encontram-se logo após o trecho
transcrito, entre parênteses, sendo indicados o sobrenome do autor, o ano da publicação
e as páginas específicas. Julgamos esse procedimento mais cômodo do que a consulta a
uma lista no final do capítulo ou mesmo a uma nota de rodapé. Diferentemente do que
se na maioria dos trabalhos acadêmicos da atualidade, em que o autor sempre é
apresentado por seu sobrenome, adotamos a rotina de, na primeira vez em que é citado
em nosso texto, mostrar seu nome e sobrenome, além de, quando possível, mencionar
no corpo do texto o livro ou o capítulo que estamos abordando. Quanto às notas de
rodapé, as empregamos basicamente em dois casos: quando os livros aos quais elas
remetem não constam de nossa bibliografia, uma vez que não tiveram maior
repercussão na formação de nosso quadro teórico e metodológico; ou então para efetuar
algum comentário realmente breve, cuja presença no fluxo do texto poderia ficar um
pouco deslocada. Também evitamos ao máximo as notações do tipo ibidem, para
21
55indicar que as páginas em questão se referem ao último livro citado. Preferimos, em
vez disso, a repetição das referências.
No tocante à bibliografia, boa parte dos livros consultados foram escritos em
francês. Reconhecemos os problemas e riscos inerentes a traduções, mas não nos
furtamos em efetuá-las quando necessário, que nossa tese se vincula a uma linha de
pesquisa de língua portuguesa.
Um número significativo de obras, contudo, já possuía tradução para o português,
o que, pela maior facilidade de aquisição, orientou nossa escolha. Encontram-se nesse
caso os livros de Dominique Maingueneau, cuja produção intelectual se torna, por
isso, bem conhecida do público brasileiro.
Outros livros teóricos, contudo, nunca tiveram tradução para o português ou
tornaram-se esgotados na França, sendo raros até em bibliotecas. Nessas circunstâncias,
utilizamos versões em espanhol caso do importante L’énonciation: de la subjectivité
dans le langage, de Katerine Kerbrat-Orecchioni.
Finalmente, reconhecemos que a extensão dos pontos teóricos abordados poderia
dar uma aparência de falta de coesão a esta tese. Contudo, procuramos estabelecer um
percurso que não constitui um apanhado histórico da semântica vinculada ao
estruturalismo, mas sim uma reflexão crítica, que apresenta os limites da lingüística
estruturalista dentro da área da semântica e a necessidade de emergência de uma
lingüística voltada para o discurso. Além disso, em todas as etapas focamos os
conceitos de denotação e conotação, o que garante uma unidade temática a esta tese.
Outro ponto que poderia ser discutido seria o uso de frases soltas que utilizamos
como exemplos, nos capítulos 2 e 3. Como se sabe, a análise do discurso de caracteriza
pelo estudo de textos retirados de condições concretas de comunicação. Entretanto,
cremos que a explicação de determinados fatos semânticos pode se dar, sem prejuízo
algum de análise, através de frases independentes. Vários estudos de semântica e
pragmática, aliás, se valem desse expediente. Por outro lado, um estudo de gêneros é
que demandaria o emprego de trechos autênticos, procedimento que seguimos a partir
do capítulo 4, quando então nos servimos dos postulados teórico-metodológicos da
análise semiolingüística do discurso de Charaudeau.
Feitas tais considerações, comecemos por examinar as noções de signo e sentido
de acordo com uma visão estruturalista que, genealogicamente, representa a ancestral
direta da análise do discurso que adotamos como norte teórico.
22
2 SIGNO, DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO: VISÕES TRADICIONAIS
Os conceitos de denotação e conotação, conforme são habitualmente definidos em
livros didáticos, manuais de redação e gramáticas, parecem se alicerçar numa visão
semântica ligada ao estruturalismo, mais ou menos sedimentada no ensino de nossa
língua materna.
Devemos reconhecer, entretanto, que falar de “visão estruturalista” representa uma
posição vaga, devido ao fato de ser esta uma linha teórica multifacetada. Por esse
motivo, certas palavras-chave que figuram amiúde nos domínios da semântica se
revestem de noções nem sempre convergentes: signo, significante, significado,
significação e sentido seriam alguns desses termos tão propalados, mas, ao mesmo
tempo, de definições diversas. Na realidade, a problemática envolvendo denotação e
conotação passa inevitavelmente pela concepção do signo lingüístico, que recebe
enfoques distintos.
Sem desejarmos empreender um levantamento exaustivo das variadas definições
atribuídas ao signo, o que nos levaria a contemplar também os enfoques dados pela
semiótica um estudo da obra de Charles Peirce seria fundamental para este fim
restringimo-nos a um levantamento breve do assunto tendo em conta algumas das
propostas dos principais lingüistas da linhagem estruturalista. Comecemos pelo que
chamamos de “estruturalistas clássicos”, isto é, Ferdinand de Saussure e Louis
Hjelmslev.
2.1 A visão do signo no estruturalismo clássico: Saussure e Hjelmslev
O nascimento da lingüística moderna, no início do século XX com as teorias de
Ferdinand de Saussure, se vincula a uma série de formulações acerca do sistema
lingüístico, que passa a ser apreciado em sua imanência. Isso significa que a língua
deveria ser estudada como uma entidade abstrata, fora de seu contexto sócio-histórico e
como um conjunto dentro do qual as unidades não têm um valor intrínseco, mas sim
relativo – ou seja, uma unidade é o que outra não é.
Das concepções forjadas por Saussure, uma das mais influentes – e por isso
mesmo das mais debatidas na evolução ulterior da ciência lingüística foi a questão do
signo.
23
O lingüista genebrino rompe com uma certa visão metafísica segundo a qual as
palavras corresponderiam às coisas do mundo, como se fossem etiquetas
preestabelecidas. Saussure nega essa perspectiva, ao propor que o signo lingüístico não
une um nome a uma coisa, mas sim uma imagem acústica – impressão psíquica
originada pelo som a um conceito conteúdo que mostra uma visão segmentada e
arbitrária da realidade (SAUSSURE, 1969, p. 97-98).
Nessa perspectiva, o significado não é a coisa em si, mas a interpretação que o
sistema lingüístico faz dela. O mundo é categorizado de modo diferente pelos
diferentes sistemas lingüísticos, conforme se num exemplo banal, que é a descrição
do arco-íris: conforme for a língua, se distinguem seis ou sete cores, não por uma
questão perceptiva, mas tão-somente cultural. O aprendizado de uma língua estrangeira,
desde os primeiros momentos, também nos ensina que o pensamento é condicionado
pela língua, não sendo possível fazer traduções palavra por palavra. Assim sendo, ao
afirmar que a ngua não é uma nomenclatura, Saussure abria espaço para uma visão
segundo a qual não se deve encará-la como uma entidade que reflete pura e
simplesmente a realidade, mas, ao contrário, como uma fonte de interpretação desta.
O elo que une um significante a um significado é, além disso, eminentemente
arbitrário, na medida em que não motivação para que uma dada seqüência fonética
(significante) corresponda a um dado conceito (significado). Esse elo, chamado por
Saussure de "significação", ocupa dentro da lingüística estruturalista um lugar mais
importante do que a questão da referência, uma vez que esta representa uma instância
extralingüística.
Além da significação, outro aspecto da maior importância nos estudos
estruturalistas é a noção de "valor". Do mesmo modo que significante e significado
estabelecem uma relação consubstancial, os signos também se relacionam entre si
dentro de um dado sistema lingüístico, delimitando usos específicos. A esse respeito
Saussure comenta que a palavra francesa mouton apresenta um valor relativamente
amplo, que no inglês é repartido entre dois vocábulos: sheep, o animal correspondente a
"carneiro", e mutton, o prato servido com a carne desse animal (SAUSSURE, 1969, p.
160). Isso explica, ademais, a virtual inexistência de sinônimos perfeitos numa língua,
que determinados matizes semânticos implicam valores e, portanto, usos distintos:
"aterrorizar-se", "ter medo”, "temer" e "recear", por exemplo, sinalizam uma mesma
referência, mas com valores distintos, que expressam graus diversos de um mesmo
sentimento.
24
Sobre esse assunto, Inês Lacerda Araújo declara que "o signo lingüístico é
operacional, não está simplesmente no lugar de algo". (ARAÚJO, 2004, p. 39).
Seguindo esse ponto de vista, a autora comenta que o estruturalismo de Saussure
renuncia à problemática da referência, optando por permanecer radicalmente dentro dos
limites do sistema lingüístico.
Com o avanço das idéias estruturalistas, alguns aspectos semânticos passaram a
ganhar relevo, caso da oposição entre as linguagens denotativa e conotativa, debatida
por lingüistas como Roman Jakobson e, sobretudo, Louis Hjelmslev. Levando-se em
conta o potencial que tem o signo de se desdobrar nas diversas situações comunicativas,
assumiu-se então uma nova dicotomia: enquanto a denotação se ateria a um significado
básico, a conotação constituiria um acréscimo semântico.
Para ilustrar essa concepção, Hjelmslev propõe um esquema que se tornou
recorrente nos estudos de lingüística, semântica e de semiótica posteriores. Num nível
mais elementar, a denotação, teríamos uma relação simples entre significante (chamado
pelo lingüista de “plano de expressão”) e significado (“plano de conteúdo”), o que
constituiria um signo. Ora, na linguagem conotativa, esse mesmo signo se comportaria
na verdade como um outro significante, relacionado, por sua vez, a outro significado. O
esquema que se segue, proposto por Roland Barthes, permite uma melhor visualização
(BARTHES, 1971, p. 96):
Conotação –
Denotação –
Conforme se percebe, a conotação constituiria um uso expressivo do signo
lingüístico, ao passo que a denotação se fundamentaria na associação entre o
significante e seu significado, que apontaria para o elemento extralingüístico que o
signo representa.
A compreensão desse esquema nos permite verificar o potencial polissêmico do
signo, que uma mesma forma seria capaz de ter seus sentidos multiplicados, mas
pouco nos elucida, efetivamente, sobre a natureza de tal polissemia. Evidentemente, o
significado da linguagem conotativa não é totalmente desvinculado do significado
denotativo. Quais seriam, então, seus limites?
Outro problema a ser discutido seria a própria questão da linguagem denotativa,
que ela acarreta considerações sobre os elementos extralingüísticos, os chamados
Significante Significado
Sgte Sgdo
25
referentes, aos quais a lingüística de Saussure não deu maior atenção. O grande
problema da proposta de Saussure é que, por mais que se privilegie uma visão imanente
da língua, na prática não conseguimos desprezar por completo o mundo extralingüístico
em tal abordagem. Tanto é assim que os próprios exemplos dados pelo lingüista, logo
no início de sua explanação sobre o signo, são os substantivos concretos “cavalo” e
“árvore”, cujos referentes são facilmente identificáveis no mundo. Se tivesse optado por
palavras gramaticais ou mesmo substantivos abstratos, Saussure teria certamente
apresentado muito mais dificuldades para expor sua teoria.
Não se trata aqui de criticar seus exemplos, mas sim de demonstrar o quão é
difícil, em termos objetivos, separar a língua do mundo que ela representa. Com enorme
freqüência, aliás, tendemos a confundir as palavras com as coisas que elas designam.
Não é raro encontrarmos em provas de língua materna ou estrangeira questões de
compreensão do tipo “retire do texto uma cidade, uma cor, um esporte...”, como se esses
elementos, extralingüísticos, valessem pelas palavras que os expressam.
Enfim, a formulação dicotômica estabelecida pelo lingüista suíço, e seguida por
Hjelmslev e outros, procura evitar a questão do referente extralingüístico e seus
desdobramentos, no intuito de preservar a própria identidade da ciência lingüística.
Franquear seus limites para o estudo de elementos exteriores ao sistema representaria
um risco à sua autonomia, em virtude da eventual intromissão de outras disciplinas
como a filosofia, a psicologia social, a sociologia, a história e a antropologia. Além
disso, mesmo que se impedisse que a lingüística perdesse sua especificidade, tornando-
se então uma disciplina subalterna a uma das aludidas anteriormente, o estudo dos
significados representaria um fator de complicação a mais na descrição lingüística
que, num período inicial do estruturalismo, se interessava fortemente pela fonologia.
Ilustrando essa recusa pela semântica, André Martinet afirma que o ideal lingüístico
consistiria em
encontrar um método de descrição que o fizesse intervir o sentido das unidades
significativas, o que daria um maior rigor à lingüística por eliminar um domínio em
que a experiência mostra não ser fácil ordenar os fatos. (MARTINET, 1985, p.37)
Embora o próprio Martinet reconheça que, na prática, nenhum lingüista tenha
conseguido descrever uma língua da qual nada entendesse, até porque o reconhecimento
de certos traços semânticos é muito importante para delimitar as classes gramaticais de
uma ngua, a verdade é que a semântica passou anos sendo vista como um campo de
“riscos”, no qual se deve entrar com “precauções” (MARTINET, 1985, p.37), razão que
26
a colocou, como afirma Algirdas Julien Greimas, na incômoda condição de “parente
pobre da lingüística”.
4
Em função da necessidade desse corte operacional, limitando ao máximo a
apreciação semântica das formas lingüísticas, o estruturalismo priorizou, até certo
ponto, o sentido denotativo, considerado como básico, a partir do qual se desdobrariam
sentidos conotativos, de natureza secundária. Os estudos da linguagem conotativa não
foram, entretanto, abandonados, mas efetuados por muitos estruturalistas sob o enfoque
da estilística ou da semiótica, disciplinas, no entanto, mais preocupadas com a literatura
do que com a linguagem “normal” propriamente dita. Uma das provas desse recorte,
que agrupa denotação e língua quotidiana de um lado, e conotação e língua literária
5
de
outro, é a proposta da função poética da linguagem elabora por Roman Jakobson. Nesta,
a mensagem não interessa por informações que possa dar a respeito do mundo, mas por
sua própria forma, na medida em que o trabalho sobre o significante faz aflorar sentidos
diversos – o que confirma o esquema de Hjelmslev mostrado anteriormente.
Alguns lingüistas, contudo, se interessaram a fundo pela questão da semântica,
mormente pela dispersão de sentidos sofrida por uma forma lingüística. Nessas
circunstâncias, faz-se necessário estudar de modo sistemático a relação entre denotação
e conotação, levando necessariamente em conta a questão do referente. Um dos
lingüistas que mais contribui nessa abordagem foi Stephen Ullmann, sobre o qual
teceremos alguns comentários.
2.2 Sentido e referente: a visão de Ullmann
A fim de evitar um formalismo radical e buscando enfatizar a questão do referente
em suas análises, que o signo pode apontar para uma realidade exterior ao sistema
lingüístico, Ullmann substitui a dicotomia significante / significado, proposta por
Saussure, por um esquema tripartido, inspirado na formulação da dupla Ogden &
Richards, lançando mão dos termos "nome", "sentido" e "coisa" (ULLMANN, 1987,
p.119):
4
GREIMAS, Algirdas (1973). Semântica Estrutural. São Paulo: Cultrix. p. 12.
5 Os termos “língua quotidiana” e “língua literária” referem-se não a uma abstração formal, mas a um
conjunto de realizações discursivas específicas. “Língua” aí está num sentido bem amplo, não
correspondendo, pois, à langue estruturalista, conceito que abraçamos na maior parte desta tese.
27
Modelo do signo para Ullmann
sentido
nome ---------------- coisa (referente)
O nome seria a configuração fonética da palavra, ou seja, equivaleria ao
significante proposto por Saussure. o sentido constituiria a informação que o nome
fornece ao interlocutor. Por fim, a coisa seria o referente externo, o elemento de ordem
não-lingüística.
A linha pontilhada enfatiza a idéia, defendida por Saussure, de que não um
laço direto entre um nome e um referente. O esquema tripartido mostra essa relação
indireta de modo mais claro, ao valer-se da noção de sentido, responsável pela mediação
entre nome e referente. Essa relação entre nome e sentido, recíproca e reversível, na
qual um elemento evoca o outro, corresponderia, segundo Ullmann, ao significado.
Assim, ao pensar em uma porta, o locutor pronuncia uma dada seqüência fonética;
inversamente, o interlocutor monta, em sua mente, a imagem de uma porta ao ouvir tal
seqüência.
Desse modo, “significado” e “sentido”, termos que em geral são utilizados como
sinônimos, passam a ter uma sutil diferença para Ullmann. Segundo seu raciocínio, o
significado constitui um elemento semântico básico, capaz de gerar inúmeros matizes
contextuais, que são justamente os sentidos. Com isso, a fronteira entre denotação e
conotação parece mais nítida, de acordo com o que conclui Maria Helena Marques:
O significado básico seria a denotação da palavra. Junto com os demais matizes
associativos de significados da palavra constitui a sua conotação. Em determinadas
situações, o significado sico, descritivo e referencial prevalece. Em outras, o
significado conotativo pode preponderar e, até, esvaziar a denotação de uma
palavra criando-lhes sentidos novos, no que se tem chamado de processos de
hipersemantização (MARQUES, 2003, p.62).
Cumpre fazermos alguns comentários sucintos acerca das idéias de Ullmann. Em
primeiro lugar, parece-nos difícil incluí-lo, ao menos integralmente, no rol dos
estruturalistas. Pelo menos em sua Introdução à ciência do significado, Ullmann recorre
algumas vezes ao saber diacrônico para explicar a evolução de sentido das palavras,
28
como era do feitio da semântica tradicional, de base histórica. É desse modo que
explica o fato de existirem duas palavras de origens distintas para designar um mesmo
referente, sem que elas possam ser facilmente intercambiáveis: sempre algum matiz
mínimo que orienta a escolha do interlocutor uma palavra estrangeira tende a ter mais
prestígio, por exemplo. De qualquer modo, o empreendimento de Ullmann é
essencialmente sincrônico, pois ao explicar os outros fatores que fazem com que não
haja sinônimos perfeitos, o estudioso recorre a uma série de elementos encontrados na
atualidade de uma dada língua: uma palavra pode ter o mesmo significado básico que
uma outra, porém ser mais geral, mais emotiva, mais ligada a jargões profissionais, mais
ligada à língua literária, mais coloquial ou revestida de um maior regionalismo. A esse
respeito, Ullmann comenta que algumas definições de dicionários nem sempre retratam
o uso corrente desses sinônimos (ULLMANN, 1987, p. 294-295). Citaríamos como
exemplo no português a palavra “medíocre”, que o dicionário Aurélio aponta como
sinônimo para “mediano”. Ora, na atualidade, esse sentido se perdeu, e “medíocre”
assumiu um valor negativo, designando aquilo que é de baixa qualidade.
Em segundo lugar, escapando à prática estruturalista, o estudioso reconhece a
importância do contexto em relação ao significado de uma forma lingüística. Embora
ressalte a existência de constantes semânticas, Ullman comenta que o contexto pode ser
determinante na fixação de um dado sentido. Segundo ele, deve-se entender por
contexto tanto o entorno verbal de uma palavra de dimensões variadas, indo de um
parágrafo até um livro inteiro –, quanto à situação em que a palavra é usada o que
inclui o fundo cultural relativo aos interlocutores.
Finalmente, é necessário ressaltar que, apesar de o esquema triangular do signo ser
comum a certas abordagens semióticas, estas se afastam do enfoque teórico de Ullmann.
A terminologia de Charles Peirce, também triádica, que envolve os conceitos de
“representamen”, “objeto” e “interpretante”, é muito mais complexa: o “interpretante”
não pode ser confundido com o intérprete (a pessoa que recebe o signo), aproximando-
se antes “de uma outra representação que se refere ao mesmo objeto” (ECO, 2007, p.
115). Por esse motivo, Umberto Eco fala de uma “semiose ilimitada”, concluindo daí
que
a linguagem seria então um sistema que se esclarece por si mesmo, através de
sucessivos sistemas de convenções que se explicam reciprocamente. (ECO, 2007,
p. 116)
29
Ainda para Eco, o problema do referente nada tem a ver com a semiótica. O que
entra em questão, nesse caso, não é saber, por exemplo, se o ser designado pela palavra
“unicórnio” existe ou não isso seria uma preocupação ontológica, não semiótica –; o
que importa é apreciar a relação entre esse nome e a idéia por ele evocada. Também é
comum, na língua corrente, empregarmos expressões com um mesmo referente, mas
produzindo sentidos diferentes, como se abaixo, em que adaptamos um exemplo
citado pelo próprio Umberto Eco: “A mãe de minha esposa é excelente para ela; mas a
minha sogra é péssima para mim!”.
Os termos “A mãe de minha esposa” e “minha sogra” apontam para um mesmo
referente, mas produzem sentidos diversos, ao vincular tais expressões a papéis sociais
diferentes o de “mãe”, visto em geral como positivo, e o de “sogra”, comumente
negativo.
É importante frisar que Eco chama de referência” o que o Ullmann chama de
“sentido” e é a referência o que mais importa nos estudos lingüístico e semióticos.
Entretanto, o conceito de “referência” não necessariamente coincide com o de “sentido”
para outros autores. Segundo rard Petit, no verbete “referência”, do Dicionário de
Análise do Discurso, aqueles que tomam “referência” e “referente” como sinônimos.
Porém, o mais acertado talvez seja considerar a referência como a propriedade que o
signo tem de remeter a uma realidade, ao passo que o referente seria um elemento
específico dessa realidade (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p. 418).
Desse modo, a referência englobaria todo um processo, sendo seu estudo muitas vezes
vinculado à questão da dêixis e da anáfora.
Qualquer que seja a nomenclatura empregada (sentido ou referência), percebe-se
facilmente que a língua não pode ser considerada como um decalque da realidade. Em
primeiro lugar, porque se criam palavras para seres e fenômenos que não
necessariamente existem; em segundo lugar, porque toda uma gama de palavras
gramaticais (conjunções, preposições, advérbios) que não apontam senão para o interior
do sistema lingüístico. Se é relativamente fácil explicar o sentido de um substantivo, o
mesmo não ocorre com uma conjunção: sua existência, na língua, é funcional, não
referencial.
Conclui-se, portanto, que a semântica fica ladeada por duas ordens: uma, a do
mundo social, que a língua estaria encarregada de, pelo menos em parte, representar;
outra, a da própria língua, cujo funcionamento se efetua de modo autônomo. Por esse
motivo, o desenvolvimento da semântica é marcado por tendências priorizando ora o
30
social, ora o imanente, embora tais perspectivas não sejam nem possam ser de todo
interexcludentes.
Uma das tendências que se inclinou para a imanência lingüística foi a chamada
semântica estruturalista, cujos grandes representantes foram Algirdas Greimas e
Bernard Pottier, seguindo caminhos diversos. Greimas vinculou-se mais a estudos
semióticos, tendo obtido grande destaque nos círculos de análise literária, ao trabalhar o
texto com níveis de invariância e sistemas opositivos. Pottier, por seu turno, parece dar
um tratamento mais lingüístico ao assunto, razão pela qual teceremos algumas palavras
sobre sua abordagem.
2.3 Estruturalismo e análise sêmica: Pottier
Herdeiro da tradição estruturalista, Bernard Pottier alicerça seus estudos numa
concepção de signo lingüístico próxima da formulada por Saussure e Hjelmslev. Para
ele, o signo também é formado por significado e significante, mas o primeiro
componente ganha um maior relevo, ao ser decomposto em substância e forma de
modo similar ao que Hjelmslev fizera. A substância do significado diz respeito aos
traços semânticos, enquanto a forma do significado se relaciona aos traços
classificatórios, de natureza gramatical. No esquema abaixo exemplificamos essa
abordagem utilizando a palavra “faca”:
Retomando a idéia de valor, preconizada por Saussure, Pottier afirma que a
substância de significado de uma palavra, dentro de um dado sistema lingüístico, se
define em relação a outras unidades: no exemplo acima, a substância de significado de
“faca” é delimitada por palavras do mesmo campo semântico como “facão”, “estilete”,
“canivete”, “espada” e outros.
Substância de significado
Instrumento de metal, com
cabo, para cortar
Forma de significado
Substantivo comum,
concreto, feminino
Significante
[‘fakϪ]
31
Um aspecto que não fica claro nas lições de Saussure, mas que Pottier aborda, é a
extensão do signo lingüístico. Ocuparia o signo a extensão de uma palavra ou se
relacionaria a unidades maiores ou menores? Pelo que comentamos até aqui, uma
tendência natural de igualar os conceitos de “signo” a “palavra”. Entretanto, Pottier
segue a via aberta por lingüistas como Martinet, que considerava o “monema”, que
poderia ser tanto lexical (“lexema”), quanto gramatical (“morfema”), a menor unidade
lingüística significativa (MARTINET, 1985, p. 113). Utilizando o termo “morfema”
para se referir indistintamente a esses dois tipos de monemas, Pottier o endossa como a
menor unidade significativa dentro do sistema lingüístico, mas ressalvando que o signo
pode ocupar outras dimensões: além de poder se manifestar sob a forma de morfemas
ou palavras, o signo também pode se apresentar como lexia, sintagma ou enunciado. Se
há, pois, uma dimensão mínima para o signo, relacionada aos morfemas, não existe, em
contrapartida, um nível máximo. Pottier cita que, no processo de comunicação, o
elemento formal mínimo é o enunciado, e que além deste se encontra o texto.
Desejando conferir à descrição semântica um status científico, Bernard Pottier se
inspira no modelo de análise estrutural fonológica e propõe um estudo que leve em
conta certos traços distintivos de ordem semântica, os semas.
Para ele, haveria três espécies de semas: os específicos, que expressam as
características semânticas mais relevantes de uma palavra (“cadeira” e “banco” possuem
diferenças que podem ser assinaladas através de semas específicos, como verdadeiros
traços distintivos); os genéricos, que permitem a inclusão das palavras em classes mais
amplas (“cadeira” e “banco” teriam em comum o fato de serem inanimados); e os
virtuais, também chamados de conotativos, que se atualizam no contexto revestindo a
palavra com várias nuances. O conjunto de semas básicos (específicos e genéricos) e
virtuais de uma palavra representa seu semema, ou semantema. O esquema abaixo
sintetiza as relações entre denotação e conotação:
Denotação –
Conotação –
Conforme se nota, também Pottier se preocupa com a questão do contexto, que,
para ele, se refere às adjacências sintagmáticas. Além do contexto, que é encarado aqui
sob um ponto de vista estritamente lingüístico, Pottier considera que a situação de
semas específicos Semas genéricos
semas virtuais
Semema
32
comunicação, isto é, as diversas circunstâncias em que os interlocutores atuam, é outro
fator de grande importância na formação do significado.
Observamos, por conseguinte, que o lingüista, apesar de sua base claramente
estruturalista, trabalha com elementos que se situam além do alcance metodológico
dessa escola: a influência da situação comunicativa no significado e o enfoque
interfrástico que as análises empreendidas pela lingüística estrutural normalmente
se atinham aos limites da frase. Isso significa dizer que a semântica de Pottier se
revestia de uma certa noção de discurso. Contudo, sua teoria carece ainda de um
elemento para ater-se a um enfoque mais concreto da prática do discurso: a presença do
sujeito na língua, ponto teórico evitado pelo estruturalismo em sua fase inicial, mas que
trouxe inúmeras contribuições à semântica. Analisemos como, ainda no interior das
teorias estruturalistas, o sujeito começou a ser considerado, a partir notadamente das
obras de Jakobson, Benveniste e Ducrot.
2.5 Sentido e funções da linguagem: Jakobson
Autor de inestimável colaboração para os estudos lingüísticos do século XX,
Roman Jakobson produziu trabalhos sobre os mais variados assuntos fonologia,
enunciação, poética, teoria da comunicação, problemas na fala, entre outros.
Uma de suas idéias mais influentes para a lingüística se deu com a formulação das
chamadas funções da linguagem. Embora tal estudo não tenha constituído uma
inovação, que outros autores, como o alemão Karl Bühler, tivessem desenvolvido
propostas nesse sentido, a lista de funções elaboradas por Jakobson parece mais
completa. De fato, cada função é associada a um dos seis elementos que fazem parte do
circuito de comunicação estipulado por Jakobson emissor, receptor, contexto, código,
canal e mensagem (JAKOBSON, 1963, p. 214).
Abaixo analisamos as características dessas funções que, é importante ressaltar,
não se apresentam de modo isolado no discurso. Ao contrário, com muita freqüência
elas se combinam entre si. A tipologia estabelecida por Jakobson é a seguinte:
a) Função emotiva (ou expressiva) Centrada no emissor e caracterizada por
expressar as emoções deste. Caracteriza-se, entre outras coisas, pelo uso de marcas
gramaticais de primeira pessoa, de interjeições e de elementos supra-segmentais, como
o prolongamento silábico e a entonação.
33
b) Função conativa – Aponta para o receptor e é marcada por elementos que visam
influenciá-lo a realizar uma dada ação; por isso, vale-se comumente de vocativos,
imperativos e demais marcas relativas à segunda pessoa.
c) Função referencial (ou denotativa) – É aquela orientada para o contexto. Termo
que parece vago aí, “contexto” deve ser entendido como o referente, isto é, o elemento
fora da língua que cabe a esta representar. A função referencial remete, pois, à
informação a ser veiculada. Em sua forma mais canônica, vale-se de marcas
gramaticais de terceira pessoa, o que gera um efeito de objetividade.
d) Função metalingüística Volta-se para o código utilizado na comunicação.
Muitas vezes, o falante tem necessidade de entender elementos do sistema lingüístico
que usa, empregando elementos desse mesmo sistema. A metalinguagem consiste numa
operação que se processa naturalmente na utilização de uma língua, seja ela materna ou
estrangeira. Os dicionários e as gramáticas a ilustram muito bem.
e) Função fática Orienta-se para o canal, isto é, o meio através do qual o código
se propaga. Essa função representa uma espécie de teste, que avalia se as condições de
contato entre emissor e receptor estão satisfatórias. Por isso, é habitual a presença de
elementos que ficam à margem da sintaxe frasal e cuja função pode ser de iniciar,
prolongar ou interromper uma conversa, bem como a de verificar a atenção do
interlocutor (“Oi!”, “Olá!”, “Alô?”). Também se mostra comum, para esse mesmo fim,
o recurso a expressões ritualizadas, esvaziadas de um autêntico valor referencial
(“Tudo bem?”, “Olha só...”, “Vem cá...”).
f) Função poética – Inclina-se para a mensagem. Esta última não deve ser
confundida com a idéia de informação, própria da função referencial. A mensagem não
equivale à informação em si, mas ao modo pelo qual esta é veiculada. As figuras de
linguagem, tanto as conceituais (metáfora e metonímia entre outras) e as formais (rimas,
aliterações) são recursos que captam a atenção do interlocutor para a construção da
mensagem. A função poética, entretanto, não fica confinada aos limites do fazer
literário. Ela se expande pelos mais diferentes domínios discursivos, fazendo parte
inclusive das conversas cotidianas, ao se invocarem ditados populares, que se alicerçam
muitas vezes sobre determinados recursos sonoros, como paralelismos rítmicos e rimas
(“Quem tudo quer tudo perde!”, “Rei morto, rei posto!”, “Olho por olho, dente por
dente!”).
No artigo “Lingüística e poética” (JAKOBSON, 1974, p. 98-117), Jakobson dá um
certo destaque justamente à função poética da linguagem, sintoma de uma das grandes
34
aspirações do círculo dos formalistas russos, do qual participara: entender o que faz de
um texto um elemento estético e, portanto, objeto da literatura. No desenvolvimento de
suas exposições, o lingüista aponta uma das características mais importantes da função
poética: a capacidade de projetar o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o
eixo de combinação. Isso significa que nossa escolha dentro de um paradigma lexical,
por exemplo, é influenciada pela maneira como esse elemento se combinará
sintagmaticamente com outros. Por essa razão, nem sempre a escolha entre duas
palavras sinônimas se mostra gratuita. Além dos motivos relacionados no item 2.2, que
sugerem a virtual inexistência de sinônimos perfeitos, é preciso levar em conta que a
configuração formal de uma palavra pode interferir em seu uso num enunciado.
Observe-se que “posto” e “colocado” podem ser sinônimos, mas a utilização deste
particípio no enunciado “Rei morto, rei colocado” tiraria o poder expressivo que
“posto” lhe confere. Esse raciocínio pode ser estendido ao uso de palavras gramaticais.
Certamente, na língua portuguesa, as conjunções “no entanto” e “porém” têm
rigorosamente o mesmo sentido, mas a escolha de uma ou outra é, muitas vezes,
condicionada a questões estilísticas.
Esse raciocínio, que aponta para interferências de caráter expressivo no uso
regular da língua, se encontra na base de uma importante revisão que Jakobson faz
sobre o signo lingüístico tal como foi definido por Saussure. O caráter arbitrário do
signo sofre, então, muitas críticas, como se no artigo “À procura da essência da
linguagem” (JAKOBSON, 1974, p.118-162). Influenciado por teorias como as de
Peirce, Jakobson entende que o signo lingüístico pode apresentar certos traços icônicos.
O autor ilustra esse ponto de vista ao assinalar que, em certas línguas, o grau dos
adjetivos se intensifica concomitantemente a um acréscimo de fonemas. Comprovam
isso os agrupamentos high, higher, highest do inglês, bem como altus, altior, altissimus,
do latim (JAKOBSON, 1974, p.108). Do mesmo modo, línguas que expressam o
plural através do acréscimo de um morfema específico (-s, no caso do português).
Além disso, Jakobson demonstra que, muitas vezes, afinidades fonológicas se
relacionam a afinidades semânticas. Em inglês, father, mother e brother são vocábulos
primitivos, o que elimina a hipótese de que a terminação ther seja um sufixo.
Contudo, uma inegável identidade sonora entre essas três palavras, que caminha ao
lado de sua semelhança semântica – já que constituem noções ligadas a laços de
parentesco. Em francês, a mesma situação ocorre com as palavras père, mère e frère.
35
A nosso ver, essa discussão poderia ir mais longe, se utilizássemos exemplos em
português. Até que ponto palavras como “sussurro”, “murmúrio” e “impacto”, entre
tantas outras, não apresentariam uma certa motivação, na qual o significante implica,
em certa medida, o significado?
Evidentemente, não se trata aqui de invalidar por completo a tese de Saussure, mas
de relativizá-la. A arbitrariedade do signo – ou sua não-motivação, como prefere
Benveniste representa uma propriedade indiscutível dos sistemas lingüísticos.
Entretanto, indiscutível não quer dizer categórico. Da mesma forma que é possível
inventar instantaneamente palavras, sem o menor traço de motivação, existe uma gama
de vocábulos que não parecem seguir esse princípio.
Discussões teóricas à parte, o fato é que o poder sugestivo dos significantes é
amplamente explorado na função poética da linguagem, seja dentro de textos literários,
altamente rebuscados, seja em diálogos espontâneos.
Muitas das pesquisas de Jakobson apontaram, assim, para as relações entre sujeito
e usos lingüísticos, tornando-se referência para os atuais estudos de análise do discurso.
Esse papel de precursor na área dos estudos discursivos também é compartilhado por
outro eminente lingüista: Émile Benveniste.
2.5 Sujeito, signo e linguagem: Benveniste
Desde seu início, o estruturalismo não ignorava a capacidade que a língua tem de
se comportar como veículo de comunicação. Entretanto, a opção metodológica pelo
estudo da langue, em detrimento das realizações concretas da parole, revelou-se
indubitavelmente necessária para a descrição dos sistemas lingüísticos, embora tenha
acabado por retirar das análises então empreendidas aspectos subjetivos, desnecessários
para apreender as relações opositivas sistêmicas.
Obviamente, as práticas discursivas, apesar de ocuparem um lugar subalterno nos
estudos lingüísticos sendo muitas vezes deixadas a cargo da estilística –, não foram
completamente negligenciadas dentro do estruturalismo. Prova disso é o esquema de
comunicação proposto por Jakobson (conforme mostrado no item anterior), alicerçado
primordialmente sobre a relação entre emissor e receptor, e que serviu para explicar as
funções da linguagem, duas das quais diretamente centradas sobre esses elementos
(função emotiva e função conativa).
36
Porém, talvez seja com Émile Benveniste que a questão dos sujeitos comece a se
tornar mais evidente para a lingüística. Seu artigo Da subjetividade na linguagem”
(publicado originalmente em 1958) mostrou-se fulcral nos rumos que tomariam certas
correntes lingüísticas (como a teoria da enunciação e a semântica argumentativa de
Ducrot) e afins (como a análise do discurso). Deve-se ressaltar que, em seus artigos,
Benveniste emprega os termos “língua” e “linguagem” de modo muito próximo, como o
faz Mattoso Câmara, para o qual a linguagem não é senão a “faculdade que tem o
homem de exprimir seus estados mentais por meio da língua” (CÂMARA JR., 1974, p.
249).
A premissa básica que Benveniste explora nesse artigo é a de que o homem não
está separado da linguagem, uma vez que esta é um elemento natural: a linguagem não é
fabricada, portanto ela preexiste ao homem. Por isso, Benveniste não a como um
instrumento, embora reconheça que ela se assemelha a tal, na medida em que pode
servir como um veículo de troca. Entretanto, instrumentos são fabricados e por isso se
afastam da natureza, enquanto as línguas possuem uma estrutura herdada.
Contudo, Benveniste relativiza alguns pontos do estruturalismo, como a separação
radical entre sujeito e língua. É verdade que o sistema preexiste ao sujeito, mas, por
outro lado, lhe oferece uma série de elementos que permitem sua apropriação, a fim de
ser empregado nas atividades discursivas. Entre tais elementos, os mais óbvios são os
pronomes pessoais, notadamente o eu e o tu.
A subjetividade representa, pois, um processo inerente à linguagem, seja pela
tomada em discurso do pronome eu, seja pelo contraste deste com o tu. Além dos
pronomes pessoais, há toda uma série de elementos lingüísticos voltados para o
exercício da subjetividade: chamados de dêiticos ou embreantes (conforme prefere
Jakobson), os pronomes demonstrativos e alguns advérbios e adjetivos são recursos que
vinculam a língua ao momento da atividade discursiva. O mesmo pode ser dito acerca
dos tempos verbais, uma vez que as línguas naturais, segundo Benveniste, costumam ter
sempre um tempo presente que se opõe ou ao passado, ou ao futuro, ou mesmo a ambos
(BENVENISTE, 1995, p. 289).
Não se deve pensar, no entanto, que a relativa facilidade que o homem dispõe para
transformar-se em sujeito na e pela linguagem lhe confere uma liberdade completa de
manipulação lingüística. Ao contrário, como escreve em outros artigos, o sistema lhe
impõe uma série de coerções. No entender de Benveniste, a língua não é um simples
37
veículo para transmitir um determinado pensamento; ao contrário, ela atua como uma
espécie de molde para este último:
A forma lingüística é, pois, não apenas a condição de transmissibilidade mas
primeiro a condição de realização do pensamento. o captamos o pensamento a
não ser já adequado aos quadros da língua. (BENVENISTE, 1995, p. 69)
A relação estreita entre pensamento e linguagem se deixa transparecer na questão
do signo lingüístico. O significado não é anterior ao significante; ambos constituem
instâncias consubstanciais. É por esse motivo que Benveniste não se contenta com o
adjetivo “arbitrário” para qualificar o signo: este poderia fazer pressupor, erroneamente,
que existiriam conceitos preexistentes, aos quais se associariam significantes por uma
questão de convenção social. O elo entre significado e significante é, no entanto, muito
mais estreito, que um implica o outro, razão pela qual o mestre francês o qualifica
como “necessário”:
Entre significante e significado, o laço não é arbitrário; pelo contrário, é
necessário. O conceito (“significado”) “boi” é forçosamente idêntico na minha
consciência ao conjunto fônico (“significante”) boi. Como poderia ser diferente?
Juntos os dois foram impressos no meu espírito; juntos evocam-se mutuamente em
qualquer circunstância. (BENVENISTE, 1995, p. 55)
Coerções à parte, o fato é que as idéias de Benveniste, ao associarem sujeito e
linguagem, realçam o caráter de interação da linguagem. Tal perspectiva abre caminho
para mostrar que o sistema lingüístico possibilita não a configuração de instâncias
subjetivas no discurso, mas também do processo de influência entre tais instâncias, via
argumentação. É sob este segundo enfoque que o lingüista Oswald Ducrot desenvolve
muitos dos seus trabalhos.
2.6 Sentido e argumentação: Ducrot
Um dos mais prolíficos lingüistas interessados na área de semântica, Oswald
Ducrot desenvolveu várias idéias que influenciaram os estudos de argumentação e a
análise do discurso: a visão polifônica da língua; o estudo de pressupostos e
subentendidos; o potencial intrinsecamente argumentativo da língua; a teoria dos topoi.
O rigor com que revisa sua teses, contudo, faz com que seja uma tarefa complexa
traçar um resumo de sua obra. casos em que, numa mesma coletânea de artigos, um
capítulo se apresenta como revisão de outro. Não é nosso propósito traçar um histórico
de suas teorias, mas sim focalizar alguns pontos-chave que nos interessam, ligados
especificamente às questões do sentido e da significação. Tais conceitos se mostram
38
originais, na medida em que se afastam do estruturalismo tradicional, aproximando-se
muito de um enfoque pragmático da língua.
De fato, no estruturalismo, a língua era vista como um instrumento de
representação e de comunicação mas não de influência. Como já assinalamos em
tópicos anteriores, a semântica foi deixada de lado pela lingüística durante anos, que
tendia a vincular a língua a uma exterioridade. Se pensarmos em termos de
comunicação efetiva, a descrição semântica de uma língua se revela algo tortuoso. Em
seu artigo “Présupposés et sous-entendus” (publicado originalmente em 1969), Ducrot
cita lingüistas como F. Brunot, que renunciaram ao estudo semântico em virtude da
dispersão de sentidos que uma forma lingüística ou um enunciado podem tomar no
discurso (DUCROT, 1984, p.15).
Analisando, por exemplo, um enunciado aparentemente simples como “Que tempo
bom!”, percebemos que ele pode assumir os mais diversos significados: um denotativo,
que informa sobre as boas condições favoráveis do clima; um fático, com o qual se
busca iniciar um diálogo; um irônico, que assinala que o tempo está desagradável.
Para solucionar esse impasse, Ducrot propõe um método de análise baseado na
existência de dois componentes significativos, o componente lingüístico e o
componente retórico. Seria do interesse da lingüística o componente lingüístico,
cabendo a outras disciplinas o estudo do componente retórico como a psicologia, a
sociologia e a história, entre outras. Entra então em cena um dos aspectos inovadores
da concepção ducrotiana: a diferença entre sentido e significação.
Nas formulações de Ducrot, o sentido se relacionaria ao conteúdo veiculado no
discurso através das formas lingüísticas. A significação, por sua vez, consiste num
conjunto de instruções capazes de levar um enunciado a uma dada conclusão,
independente do contexto.
Essa diferença, crucial em Ducrot, pode ser compreendida por intermédio da
dicotomia estabelecida entre “frase” e “enunciado”. A frase representa uma estrutura
abstrata, destacada de qualquer contexto, enquanto o enunciado tem uma realização
discursiva concreta, associada a um contexto.
Torna-se importante ressaltar que a diferença entre frase e enunciado, assim
concebidos, não é de grau, mas sim de natureza (DUCROT, 1984, p. 180).
Diferentemente do estruturalismo tradicional, que operava com um sentido de base, o
denotativo, do qual se ramificariam sentidos conotativos, para Ducrot, a significação
39
não faz parte do sentido. Ela não deve, por conseguinte, ser assimilada à noção de
sentido literal ou denotativo (DUCROT, 1980, p.18-19).
O conceito de significação tem implicações teóricas importantes. As diversas
instruções capazes de participar da significação remetem a uma perspectiva lingüística
não mais representacional, mas sim argumentativa e, portanto, intersubjetiva. O uso de
estruturas parecidas, e que denotam uma mesma informação, pode conduzir a
conclusões distintas. Verifiquemos o par abaixo:
(1) Zezinho conhece pouco da obra de Ducrot.
(2) Zezinho conhece um pouco da obra de Ducrot.
Os dois enunciados acima poderiam muito bem remeter a um mesmo aspecto da
realidade seria possível que tanto (1) como (2) estivessem informando que Zezinho
leu apenas dois artigos de Ducrot. No entanto, os encadeamentos normalmente
possíveis são bem diferentes:
(3)* Zezinho conhece pouco da obra de Ducrot. Ele poderá te instruir sobre a
teoria polifônica.
(4) Zezinho conhece um pouco da obra de Ducrot. Ele poderá te instruir sobre a
teoria polifônica.
Embora muito parecidos, o texto (3) se revela anômalo, pelo menos na maior parte
de contextos possíveis. Essa capacidade que o sistema lingüístico tem de determinar as
conclusões do discurso, independente do contexto, remete a uma visão segundo a qual a
argumentação faz parte da estrutura lingüística – perspectiva que se afasta, por exemplo,
da retórica, preocupada em estudar efeitos lingüístico-discursivos com fins de
convencimento do interlocutor.
Fazendo um balanço parcial do percurso teórico conduzido até aqui, seria possível
afirmar que, com exceção de Ducrot, o chamado significado básico (sentido literal ou
denotativo), parece ocupar um lugar de destaque na produção de sentidos. Esse sentido
corresponderia a uma espécie de regularidade lingüística, a partir da qual derivariam
outros sentidos, os conotativos (ou figurados), no uso discursivo. Sendo assim,
instalou-se um novo tipo de dicotomia, aquele relacionando a denotação ao chamado
“sentido de ngua” e a conotação ao “sentido de discurso”, circunstância que chegou
mesmo a influenciar o ensino desse assunto nos mais variados níveis de escolaridade,
conforme explicamos abaixo.
40
2.7 Sentido de língua e sentido de discurso
As noções de denotação e conotação aparecem desde cedo na escola, sendo
definidas de modo bastante elementar: a denotação seria uma espécie de sentido
“direto”, “real”, enquanto a conotação seria de natureza indireta, associativa.
Evidentemente, não há por que dar ao aluno uma lição teórica completa sobre o assunto:
o mais importante é infundir-lhe uma sensibilidade que o faça perceber o potencial
polissêmico das palavras e, sobretudo, saber fazer uso delas. De qualquer modo, não
deixa de ser interessante perceber o quão lacunosas são e quantas implicações acarretam
noções aparentemente tão singelas. Para isso, apresentamos algumas definições
veiculadas por livros ligados ao ensino de língua materna, escoradas na oposição entre
sentido de língua e sentido de discurso.
Comecemos pela exposição do assunto feita por um livro didático atual voltado
para o ensino médio, Português: de olho no mundo do trabalho (2004), cujos autores
são Ernani Terra e José de Nicola. Eis o que nele se apresenta acerca dos conceitos que
analisamos:
denotação: a palavra apresenta-se em seu sentido básico, tal como aparece no
dicionário.
conotação: a palavra apresenta-se com seu significado alterado, permitindo
diferentes interpretações, sempre dependendo do contexto em que aparece.
(TERRA & NICOLA, 2004. p. 347)
Próximo a essas idéias, às quais talvez tenha mesmo inspirado, Othon Moacir
Garcia, no seu Comunicação em Prosa Moderna, cuja primeira edição data de 1968, faz
considerações mais amplas sobre o tema. O autor discute sobre até que ponto o
significado que consta dos dicionários pode ajudar no entendimento das várias
manifestações de uma palavra, cujas virtualidades semânticas tendem a aflorar nos
contextos comunicativos. Conclui Othon que, indubitavelmente, o dicionário pode
auxiliar na interpretação, mas é imperativo que se conheça o contexto no qual figura a
palavra.
Desse modo, o autor opõe sentido denotativo, que seria aquele mais referencial, de
sentido conotativo (também chamado de figurado ou afetivo), que seria aquele
contextual. Mostrando a influência da semântica estruturalista em seu trabalho, cita a
41
presença exclusiva de semas específicos na linguagem denotativa e a de semas virtuais
na conotação.
Imbuído de um propósito didático, depois de apresentar certos detalhes teóricos
que talvez sejam de difícil compreensão para um leitor não-especializado, Othon Garcia
se propõe, à guisa de um de balanço final, a executar uma definição mais clara:
Quando uma palavra é tomada no seu sentido usual, no sentido dito "próprio", isto
é, não figurado, não metafórico, no sentido "primeiro" que dela nos dão os
dicionários, quando é empregada de tal modo que signifique a mesma coisa para
mim e para você, leitor, como para todos os membros da comunidade sócio-
lingüística de que ambos fazemos parte, então se diz que essa palavra tem sentido
denotativo e referencial [...]
Se, entretanto, a significação de uma palavra não é a mesma para mim e para você,
leitor, como talvez não o seja também para todos os membros da coletividade de
que ambos fazemos parte, e não o é por causa da interpretação que cada um de nós
lhe possa dar, se a palavra não remete a um objeto do mundo extralingüístico mas,
sobretudo, sugere ou evoca, por associação, outra(s) idéia(s) de ordem abstrata, de
natureza afetiva ou emocional, então se diz que seu valor, i.e., seu sentido é
conotativo ou afetivo. (GARCIA, 1996. p. 162).
Em linhas gerais, pode-se dizer que a definição que retiramos do livro didático se
encontra dentro da formulação de Othon, a qual se mostra mais abrangente. Ambas,
contudo, apresentam certos pontos extremamente discutíveis, sobretudo se levarmos em
conta idéias genericamente difundidas pelas análises do discurso, pela pragmática e até
mesmo pela lexicografia moderna. Uma das definições levantadas por Othon Garcia e
seguida pelo livro didático que apresentamos se relaciona à questão do dicionário: o
sentido denotativo estaria presente neste, enquanto o conotativo consistiria no uso
estritamente contextual. Aqui existe pelo menos uma grande falha conceitual, que é a
de considerar o dicionário como uma instância totalmente descontextualizada.
Antes de mais nada, qualquer bom dicionário registra, além do chamado sentido
denotativo, várias acepções, numa escala que atinge até usos mais metafóricos ou
metonímicos e, portanto, mais conotativos. Othon Garcia admite isso, ao relacionar
denotação ao sentido “primeiro”, de onde se pressupõe haver sentidos secundários.
Freqüentemente os verbetes apresentam-se em contextos frasais dos mais variados,
cujas ocorrências se prestam a dirimir as dúvidas dos leitores acerca de seus empregos
específicos.
A esse respeito, José-Alvaro Porto Dapena comenta que para determinados
lingüistas, como Eugenio Coseriu, não haveria exatamente dicionários de língua aqui
entendida aproximadamente como a langue de Saussure –, que esta é vista como uma
virtualidade; seria, antes, mais apropriado falar de dicionários de "norma" ou "fala",
42
porquanto as acepções arroladas num dicionário se referem a usos concretos no discurso
(PORTO DAPENNA, 2002. 196-197).
Em segundo lugar, da maneira como é colocada a questão, dá-se a entender que o
sentido literal preexiste e independe de todo e qualquer contexto, servindo, além disso,
de referência obrigatória para o entendimento dos sentidos conotativos. Tal questão é
atualmente vista com grandes reservas, sem que se tenha chegado a um consenso
absoluto: segundo Luiz Antonio Marcuschi lingüistas que defendem que o acesso ao
sentido conotativo por parte do falante se necessariamente via sentido denotativo;
outros, diferentemente, afirmam que em certas circunstâncias o entendimento do sentido
conotativo é direto, não mediado pelo sentido denotativo (MARCUSCHI, 2007, p. 90).
Até que ponto, quando falamos que uma pessoa é "burra" e é esse um dos exemplos
de sentido conotativo dado pelo livro didático de Terra e Nicola pensamos realmente
no animal quadrúpede? Seja como for, parece ser mais acertado dizer que o sentido
denotativo é também contextual, que não como conceber comunicação sem
contexto.
Outro aspecto extremamente controverso comentado por Othon é a questão da
objetividade do sentido denotativo e da subjetividade do sentido conotativo. De uma
certa maneira, parece aceitável considerar essa divisão, desde que ela seja tratada de
modo contínuo, com nuances, e não radicalmente polarizada. De fato, em termos de
usos discursivos, o sentido denotativo manifesta uma relativa neutralidade, ao passo que
o sentido conotativo expressa degraus variados de afetividade. Contudo, é exatamente
nesses termos que se deve considerar a noção de "subjetividade": como um recurso
estilístico, mais ou menos consciente, capaz de conferir ao texto uma maior
expressividade, e não como uma criação substancialmente individual, como sugere
Othon Garcia.
É verdade que na literatura em geral e na poesia em particular o signo pode ser
conotado de maneiras verdadeiramente originais, em razão da criatividade artística. Mas
é igualmente veraz que grande parte dos sentidos conotativos são regulares nos hábitos
discursivos, pois, se assim não o fosse, não haveria comunicação. O registro desses
sentidos conotativos no dicionário comprova tal ponto de vista. Se cada falante criasse
conotações inusitadas a cada momento, não haveria entendimento mútuo e a língua seria
um amontoado caótico de vocábulos sem valor efetivo de troca.
Ao contrário, numa perspectiva discursiva, a comunicação lingüística é norteada
pela presença do outro, configurando-se assim como uma atividade essencialmente
43
social. Logo, seria mais acertado falar numa escala de conotações, que variaria do pólo
mais corriqueiro até o pólo mais original. Portanto, os sentidos denotativo e conotativo
devem ser vistos como instâncias intersubjetivas, voltadas para fins discursivos
variados.
Costuma-se dizer que o sentido denotativo é aquele referencial, ou seja, ligado
diretamente aos elementos do mundo extralingüístico. Tal noção nem sempre é clara,
entretanto. Como vimos acima, até que ponto o adjetivo "burro", próprio da linguagem
corrente, pode ser considerado uma conotação do substantivo "burro", animal, se ele
acaba se revestindo de um certo valor referencial? Esse valor faz, aliás, com que o
adjetivo possa mesmo atuar como substantivo em frases como “Se eu fosse professor
dava atenção aos inteligentes e aos burros”. Certamente é possível achar semas comuns
entre esses dois vocábulos – ambos têm dificuldades para sair de uma situação de
inércia e praticar uma ação –, mas em que medida o falante tem consciência desses
deslizamentos semânticos?
É importante assinalar ainda que, seja de natureza metafórica, seja de natureza
metonímica, uma referência indireta (ou seja, conotativa) de uma certa época pode
acabar se tornando uma referência direta posteriormente. Lembremo-nos que dois dos
sentidos da palavra "cabo" – "acidente geográfico" e "posto das forças armadas"
apesar de muito diferentes entre si, têm uma mesma origem latina, caput, cujo sentido
literal é “cabeça”. No entanto, seria estranho, em nossa sincronia, considerar ambas
como derivações semânticas de "cabeça" (CÂMARA JR, 1970. p. 18). Trata-se, na
atualidade, de palavras que apontam para referentes distintos, expressando, por isso
mesmo, sentidos denotativos diferentes.
Algo parecido poderia ser afirmado acerca da palavra "quadro", em suas diferentes
acepções:
(5) Ele pintou um quadro renascentista.
(6) O professor passou o dever no quadro.
(7) O técnico verificou o quadro de luz.
(8) O quadro da política atual não é animador.
Em (5), (6) e (7) observamos palavras de sentido relativamente similar, cujo ponto
em comum tem a ver com sua forma geométrica, mas que remetem a três referentes
claramente distintos. A frase (8), por outro lado, apresenta um sentido conotativo, por
não se ligar de modo direto a um referente. Não nos parece pertinente falar, assim, em
44
um sentido denotativo único, mas em sentidos denotativos diferentes com traços em
comum. Com isso, a idéia de equivaler sentido denotativo a significado básico não se
mostra muito apropriada.
Caímos, dessa maneira, num problema de grande relevância, que é o caso de
palavras francamente polissêmicas. Vocábulos como "linha", por exemplo, detêm várias
acepções usuais – linha gráfica retilínea, trajeto de variados meios de transporte, tipo de
tecido, agrupamento de pessoas sob uma mesma idéia ("linha de pesquisa") com
referentes diversos. Como apontar com segurança um sentido denotativo básico?
Destarte, a exatidão de uma fronteira entre sentido literal e sentido figurado
dependeria de uma conceituação definitiva das noções de homonímia e polissemia o
que de fato não acontece, que se trata de uma questão controversa até hoje, pela
existência de vários critérios classificatórios. pelos menos três maneiras de abordar
esses dois fenômenos lingüísticos:
a) Critério semântico diacrônico – É aquele que leva em conta a origem da
palavra, apresentando, eventualmente, associações semânticas que escapam aos falantes
de uma dada sincronia. O verbo “partir”, por exemplo, tem pelo menos duas acepções
muito distintas, que são as de “dividir algo” e de “pôr-se a caminho de algum lugar”.
Apesar dessas diferenças, dicionários como o Aurélio tratam esses dois sentidos como
pertencendo a uma mesma palavra, oriunda do verbo latino partire. Trata-se, nesse caso,
de um vocábulo polissêmico e, ao que parece, essa polissemia se deve ao fato de a
segunda acepção ter a ver também com a idéia de “divisão” na medida em que quem
parte de algum lugar separa-se deste. O Aurélio também trata a palavra “cabo”,
comentada anteriormente, como um caso de polissemia ao designar “posto militar” e
“acidente geográfico”, por terem a mesma origem.
b) Critério semântico sincrônico Se o critério anterior peca pela necessidade de
um estudo apurado da história das palavras, o que nem sempre é possível realizar com
precisão, este tem como problema o fato de ser arbitrário. Em alguns casos, parece ser
fácil determinar quando uma palavra tem vários sentidos afins (sendo, portanto,
polissêmica) e quando há uma coincidência formal de duas palavras com sentidos
francamente distintos (caso da homonímia). Em relação a esta última circunstância,
citaríamos o exemplo de “manga”, que pode designar tanto uma parte da roupa, quanto
uma fruta. Em casos assim, a homonímia também é evidenciada pela própria origem da
palavra (respectivamente latina e malaiaca). Contudo, tomando como base esse critério,
45
certamente admitiríamos homonímia para os significados de “partir” e “cabo”,
apresentados acima.
Palavras como “quadro”, “linha” e “ponto”, com suas inúmeras aplicações
constituem um problema: até que medida pode-se decidir com objetividade, e não
arbitrariedade, que uma acepção é tão distinta de outra a ponto de justificar um caso de
polissemia e, conseqüentemente, gerar uma nova entrada no dicionário? Tal critério
corre o risco, pois, de cair em conclusões subjetivas.
c) Critério distribucional A originalidade deste critério, proposto por Mattoso
Câmara em Estrutura da Língua Portuguesa, reside no fato de oferecer um tratamento
radicalmente morfossintático a um problema semântico. Se anteriormente Mattoso
seguia as noções tradicionais de polissemia e homonímia (como se nota nos verbetes
relativos ao assunto em seu Dicionários de Filologia e Gramática), em Estrutura da
Língua Portuguesa o lingüista propõe que a separação entre essas duas noções seja
determinada pelas possibilidades de distribuição da palavra na frase, o que depende de
sua classe gramatical.
Se houver uma mesma distribuição, trata-se polissemia; caso contrário, estaremos
diante de palavras homônimas. Nessas circunstâncias, cabo”, com as acepções de
“posto militar”, “acidente geográfico” e também de “suporte para ligar dois elementos”
(“cabo de vassoura”, “cabo da tomada”) representa um caso de polissemia. Trata-se,
com efeito, de uma forma lingüística que assume a classe gramatical de substantivo e
que pode ocupar, na frase, distribuições similares (núcleo do sujeito, núcleo de objetos
direto e indireto, núcleo de agente da passiva, etc.), não obstante suas diferenças
semânticas.
Por outro lado, a palavra “canto” receberia duas interpretações: haveria polissemia
entre o “canto” musical e o “canto” espacial formando um certo ângulo, que ambos
são substantivos, e homonímia entre essas duas formas assim consideradas e a
conjugação do verbo “cantar”, na primeira pessoa do singular do presente do indicativo
(“eu canto”). Um aspecto importante é que Mattoso também importância à
distribuição morfológica da palavra. Assim, “pata” fêmea do pato e “pata” membro de
locomoção dos animais não representam um caso de polissemia, apesar de serem
substantivos. O a final da primeira palavra representa um morfema de desinência de
gênero feminino, ao passo que o a final da segunda constitui um morfema de vogal
temática nominal (CÂMARA JR., 1970, p. 17).
46
Sobre esta complexa discussão resta acrescentar que os dicionários variam seus
critérios para determinar os polissêmicos e os homônimos. O prestigioso dicionário
francês Le Nouveau Petit Robert abre duas entradas para o verbo “partir”, enquanto o
Aurélio tem uma. Além disso, dentro de uma mesma entrada, nem sempre é fácil
determinar os sentidos conotativos: o Aurélio, por exemplo, estabelece uma diferença
entre acepções de sentido figurado e acepções de sentido por extensão, cuja diferença
não é muito clara.
Seria de grande utilidade, pois, estudarmos rapidamente de que modo uma
palavra pode receber conotações, enfatizando a questão do contexto.
2.8 Sentido e contexto
Segundo Mattoso Câmara, são estes alguns dos fatores concorrentes na produção
de sentidos conotativos: a configuração fonológica da palavra; a associação com outras
palavras num dado campo semântico; a própria denotação, que pode por si só manifestar
sensações diversas; a relação com subsistemas lingüísticos específicos (gíria, jargão,
língua literária, arcaísmos, neologismos, regionalismos); e impressões emocionais
individuais ou coletivas (CÂMARA JR., 1974, p. 121).
O posicionamento teórico de Mattoso sobre o assunto nos parece de grande
lucidez, não obstante a brevidade de seus comentários. Além de diferenciar os fatores
que geram a conotação, o célebre lingüista minimiza a polaridade entre esse processo e
a denotação, ao sugerir que esta pode por si só evocar aquela. Isso pode parecer
contraditório, mas Mattoso Câmara acaba distinguindo pelo menos dois tipos de
conotação: uma ligada ao sentido figurado, motivada por metáforas e metonímias; e
outra relacionando-se a julgamentos de valor sobre o referente designado por uma dada
palavra. Nessa última acepção, portanto, uma palavra pode ser empregada com seu
sentido denotativo, mas, ao mesmo tempo, gerar sentidos conotativos. Trata-se, aliás,
de uma das idéias que defenderemos mais à frente (no capítulo 3), porém nos
aprofundando mais.
Também se costuma atrelar a produção de conotações ao contexto e Othon
Garcia, conforme mostramos anteriormente, o faz. Resta, no entanto, discutir com mais
precisão o que entendemos por "contexto".
Sem esmiuçarmos por demais o problema, encaramos o contexto sob uma dupla
visão, apresentada ao falarmos de Ullmann (em 2.2) e de Pottier (em 2.3). De um
47
lado, o termo se relaciona às adjacências sintagmáticas de uma unidade lingüística; ou
seja, para um vocábulo simples, seu contexto poderia ser o sintagma do qual faz parte
ou a própria frase. Nessas condições, alguns lingüistas preferem falar de "co-texto"
(MAINGUENEAU, 2000a, p.39-40). Reconhecemos, entretanto, que a noção de co-
texto é relativamente vaga: um vocábulo pode ser definido tanto dentro de um sintagma,
quanto dentro de um capítulo inteiro do qual faça parte.
De outro lado, temos o contexto propriamente dito, que se refere às situações
concretas de comunicação, com seus enunciados, suas circunstâncias empíricas e
implícitos. Aqui, seria possível fazer ainda um desdobramento entre a situação imediata
da enunciação e o contexto sócio-histórico, com suas influências ideológicas, saberes
partilhados e valores veiculados na prática discursiva.
De fato, há termos que ganham conotações específicas ao se propagarem por
determinadas redes discursivas. Enunciá-los pode revelar um posicionamento do locutor
perante um dado grupo social. Por exemplo, para um indivíduo que defende a economia
de mercado e a livre iniciativa, o termo “liberallhe é emblemático; porém, para um
outro indivíduo que faça sérias restrições ao sistema capitalista, “liberal” ganha uma
conotação negativa, ainda que preserve o mesmo sentido referencial de “defensor da
economia de mercado e da livre iniciativa” fato que vai ao encontro do que falou
Mattoso sobre a própria denotação poder gerar conotações.
O percurso que traçamos até aqui mostra, sem dúvida alguma, que o signo
lingüístico pode ter um valor referencial, mas isso não representa uma propriedade
única. É próprio do signo em geral não apenas referir-se a elementos do mundo, mas
também expressar juízos de valor sobre eles.
Tal condição, acrescida das flutuações de sentido que o signo pode estabelecer no
discurso, demonstra indubitavelmente a tendência deste à polissemia e, daí, o seu
caráter indeterminado, que ele não se fecha numa referência exclusiva. Recaímos,
então, numa outra importante discussão lingüística, que envolve as relações entre
situação, forma e sentido. Até que ponto as formas lingüísticas têm autonomia em
relação ao contexto situacional de discurso em que são empregadas?
Em seu livro Discurso, estilo e subjetividade (2001), Sírio Possenti reflete sobre
esse caráter indeterminado da língua: um enunciado nunca informa tudo o que é
necessário na comunicação, tornando-se, entretanto, compreensível embora nem
sempre em virtude justamente da situação em que é proferido. É provável que o
motivo para essa limitação da língua seja de natureza econômica: para que falar à
48
exaustão se os fatores externos podem intervir favoravelmente em nossa investida de
nos fazer compreender? Essa “economia lingüística” também deve estar subjacente ao
fenômeno da polissemia: se fôssemos usar itens lexicais para designar as mais sutis
diferenças do mundo extralingüístico, o esforço de nossa memória seria brutal. Esse
aspecto de economia parece remeter a algum tipo de propriedade hiperonímica que as
palavras possuem. Os exemplos de Saussure que invocamos anteriormente sobre o
signo lingüístico, “cavalo” e “árvore”, podem designar os mais diferentes tipos de
cavalos e de árvores. O signo se mostra, sob esse aspecto, extremamente flexível: somos
capazes de, por exemplo, ao ouvir o significante “casa”, ter em nossas mentes conceitos
que vão desde um casebre até uma mansão fora os sentidos figurados. A situação
comunicativa, contudo, se encarregará de fazer uma “sintonia fina” nessa categorização
ampla.
No entanto, isso não significa que a ngua seja necessariamente um elemento
subalterno às circunstâncias em que é usada. Tampouco se deve concluir que é possível
usar qualquer configuração sintática para expressar um pensamento, na expectativa de
que a situação se encarregará de dar sentido à cadeia significante enunciada. Numa
perspectiva radical, se os enunciados só se revestissem de sentido dentro de uma dada
situação, além de toda a teoria do signo lingüístico se aniquilar, a própria idéia de
língua como sistema semiológico de maior abrangência se mostraria falha afinal, se
quem definisse o sentido fossem fundamentalmente os elementos circunstanciais, por
que a cadeia verbal seria mais eficiente, por exemplo, que a mímica ou os sinais de
fumaça?
Embora seja natural atrelar o sentido às condições gerais em que um discurso se
produz, sejam elas situacionais ou sócio-históricas, um grande esforço, por parte de
alguns estudiosos casos de Dominique Maingueneau e do próprio Sírio Possenti –, em
superar a tradicional oposição entre exterior e prática discursiva, na qual esta
representaria um mero reflexo daquele. Para eles, são as circunstâncias que ganham
sentido ao serem veiculadas no discurso. A forma como a língua é usada, seja na
seleção lexical, nas diferentes maneiras de posicionar o sujeito sintático ou nas
modalidades frasais adotadas (interrogação, afirmação, exclamação), nunca é gratuita na
prática discursiva, podendo suscitar os mais variados efeitos, que devem ser analisados
pelas teorias do discurso. É o que afirma Sírio Possenti:
[...] se é verdade que a situação é essencial, porque a língua é indeterminada no
sentido de não fornecer todos os elementos para a interpretação, este fato não quer
49
dizer que de qualquer enunciado pode-se extrair qualquer significação. É que as
teorias do contexto consideram impotente a lingüística das formas, mas não se
deram conta de que talvez esta impotência não decorra necessariamente (ou só) da
desconsideração do contexto, mas também da desconsideração de numerosos
elementos lingüísticos que lhe pareceram não pertinentes. (POSSENTI, 2001, p.
69)
A posição de Possenti é a de equilíbrio entre essas duas instâncias: as formas
lingüísticas não têm sentido pleno, só o adquirindo, presumivelmente, no momento de
sua enunciação. Elas devem ser, contudo, empregadas de modo criterioso, a fim de
produzirem os efeitos esperados. De fato, o sentido não resulta apenas naquilo que se
diz, mas também no modo como se diz.
Retomando nossa discussão anterior sobre denotação e conotação, é possível
inferir daí que as formas lingüísticas, analisadas em si mesmas, não têm um sentido
prévio específico, nem denotativo, nem muito menos conotativo; não obstante, elas
apontam para certos efeitos, como se possuíssem um potencial semântico que se
desenvolve de diferentes maneiras dentro do discurso.
Prosseguiremos nossa abordagem sobre os fenômenos da denotação e da
conotação explorando justamente a via dos estudos discursivos, para os quais uma
forma lingüística não possui um sentido imanente, mas sim mediado pelo contexto.
Seguiremos preponderantemente alguns dos postulados da semiolingüística,
metodologia criada por Patrick Charaudeau, que explora justamente os modos pelos
quais os sentidos emergem nas práticas discursivas.
50
3 DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO NUMA VISÃO DISCURSIVA
O contexto, conforme vimos, ocupa um espaço importantíssimo na geração de
sentidos, não dos conotativos, mas também daqueles estimados como denotativos.
Na verdade, isso parece óbvio, se levarmos em conta que todo processo de comunicação
lingüística é contextual. A separação normalmente estabelecida entre língua e discurso,
na qual aquela é vista como uma entidade virtual, descontextualizada e regular,
enquanto este é apreciado como concreto, contextualizado e diversificado, só se justifica
para fins analíticos. A língua pode ser concebida como um instrumento
comunicativo enquanto discurso.
Por isso, diferentes correntes teóricas, cada qual a seu modo sociolingüística,
teoria da enunciação, pragmática, lingüística textual, análise do discurso –, empreendem
apreciações nas quais o sistema lingüístico, enquanto virtualidade, pode ser estudado
em suas condições de uso.
Umas das teorias inovadoras que se fundamenta nessa perspectiva, e que aborda a
questão da produção de sentidos, é a análise semiolingüística do discurso, cujos
postulados básicos se encontram no livro Langage et discours (1983), de Patrick
Charaudeau. É a partir dela que pautaremos a maior parte dos conceitos operacionais
não deste capítulo, mas de nossa pesquisa num todo. Evitamos, o quanto possível
num primeiro momento, utilizar o sintagma simples “análise do discurso”, dada a pouca
precisão desse termo, sobre o qual debateremos à frente no capítulo 4.
Ao contrário da visão semântica tradicional, que coloca o sentido literal como
sendo da língua, e o sentido conotativo como produto do contexto portanto discursivo
–, Charaudeau concede ao discurso a responsabilidade máxima na geração de sentidos.
Torna-se importante, desse modo, examinarmos com um pouco mais de atenção
algumas de suas idéias, não sem antes avaliarmos criticamente a influência que uma
certa visão ligada à primazia do sentido denotativo e da função referencial da linguagem
provocou não só nos estudos lingüísticos, mas também nas gramáticas normativas.
3.1 Crítica à visão referencial da linguagem
Conforme observamos ao citar algumas das idéias propagadas pelos estruturalistas
clássicos no item 2.1, a questão do significado das formas lingüísticas causava certos
embaraços para as atividades descritivas, que inevitavelmente se corria o risco de
51
vincular o sistema lingüístico ao mundo biossocial. Na realidade, nas primeiras décadas
do século XX o interesse em torno da fonologia e, posteriormente, da morfologia, fazia
com que a lingüística pudesse tranqüilamente ficar, até certo ponto, à margem do
fenômeno semântico. Contudo, uma vez que a língua era vista como um veículo de
comunicação, tornava-se impossível não atribuir significados às formas lingüísticas.
Tanto é assim que a definição clássica de morfema ou monema, conforme a
terminologia teórica adotada – é a de “menor unidade significativa”.
Mas, nessa altura, o que para os estruturalistas significaria exatamente
“comunicar”? Dado que por muitos anos a lingüística trabalhasse no âmbito da frase,
tratando-a como um corpus normalmente descontextualizado, ou seja, sem levar em
consideração o co-texto e muito menos a situação de discurso, é natural que o estudo do
significado se resumisse ao sentido denotativo. Nessas circunstâncias, a língua se
encarregaria, primordialmente, de referir-se aos elementos do mundo, provocando um
efeito, se podemos dizer assim, de “referencialidade” diferente, convém salientar, da
idéia de língua como nomenclatura, rechaçada desde Saussure.
Mattoso Câmara, em seu artigo “Considerações sobre o estilo”, publicado
originalmente em 1951, comenta sobre a importância dada à questão da referência
dentro da prática estruturalista:
A linguagem, antes de tudo, funciona como um mecanismo intelectivo para
simbolizar e estruturar em nosso espírito o mundo em que vivemos e assim
permitir que façamos desse mundo um assunto de comunicação social. (CÂMARA
JR., 2004, p. 175)
Obviamente, a língua também poderia comunicar outras coisas, possibilidade que
instigou alguns lingüistas a formularem as chamadas funções da linguagem. Para Karl
Bühler, entre outros, a língua, além de ter a função de representação, também poderia
servir para exteriorizar estados anímicos sem um aparente valor de intercâmbio
discursivo (manifestação psíquica) ou para apelar ao próximo, visando cativá-lo durante
o ato comunicativo (apelo). Mattoso Câmara frisa, contudo, que a função de
representação é de tal maneira preponderante que consistiria na própria essência da
linguagem humana (CÂMARA Jr., 2004, p. 175). Tal ponto de vista acarreta uma nova
dicotomia: aquela entre linguagem intelectiva e linguagem emocional.
Por conseguinte, criou-se uma cisão nos estudos da linguagem: seus valores
intelectivos, característicos da língua representativa, ficariam a encargo da gramática;
seus valores afetivos, ligados ao que Bühler denominou manifestação psíquica e apelo,
52
seriam da alçada da estilística. Mattoso Câmara comenta que Saussure limitava seu
conceito de langue a essa função representativa (ou “referencial”, nos termos de
Jakobson). Conforme comentamos no item 2.7, uma certa tendência a assimilar o
termo “estilo” à “subjetividade” ou “individualidade”, noção certamente levada em
consideração por Saussure influenciado provavelmente pelo racionalismo cartesiano.
Porém, partindo de enfoques mais relativistas, é possível encarar o estilo como um
elemento ao mesmo tempo social e individual, na medida em que a criação lingüística
totalmente original é um mito. Essa via foi seguida desde bem cedo por um discípulo
de Saussure, Charles Bally, para quem todo fato de língua podia ser objeto da estilística
(CÂMARA Jr., 2004, p. 175). Esse posicionamento alargaria então os campos dessa
disciplina, tradicionalmente confinados à análise literária.
Cabe aqui efetuarmos uma ressalva dos termos “intelectivo” e “afetivo”,
empregados para designar dois tipos de regimes lingüísticos. Numa visão moderna,
como a da análise do discurso – e que será demonstrada ao longo deste trabalho –, não é
fácil diferenciar o que é intelectivo do que é afetivo. Embora admitamos que possa
haver circunstâncias de predomínio de um pólo ou do outro, na maioria das vezes
elementos referenciais mesclam-se a traços de aparência emotiva, criando efeitos
diversos. A separação dessas duas dimensões, muito interessante para efeitos de
análise, se mostra na prática um procedimento artificial.
Outro ponto importante é o próprio uso de adjetivos como “emocionais” ou
“afetivos” para designar tudo aquilo que se opõe a uma visão referencial da língua. O
próprio Mattoso Câmara critica tais epítetos, indagando-se se não seriam preferíveis
termos como “intuitivo” ou “estético” para tais casos.
A verdade é que associação entre objetivo e intelectivo, de um lado, e subjetivo e
emocional, do outro, cria um modelo de esquematização do qual é difícil escapar, apesar
do esforço de Bally. Na prática lingüística, o que não é considerado como denotativo
acaba sendo chamado de “emocional” ou “afetivo”, embora isso soe estranho na análise
de alguns fatos gramaticais.
Tal tendência se verifica em obras normativas de prestígio, caso da Nova
Gramática do Português Contemporâneo (1985) de Celso Cunha e Lindley Cintra, uma
das mais conceituadas de nossa ngua. Nela se encontram rubricas dedicadas aos
chamados “valores afetivos”, aqueles que, revestidos de conotações, sairiam do uso dito
“normal”, de natureza referencial ou intelectiva. Sem a pretensão de arrolar uma gama
de exemplos, citaríamos apenas o capítulo dedicado aos verbos na supracitada
53
gramática. Depois de desenvolver os tópicos ligados à definição de verbos e seus
modelos de conjugação, Cunha e Cintra apresentam os empregos dos tempos e modos
verbais, ressaltando alguns casos dos chamados valores afetivos. Ao tratar do presente
do indicativo, os autores relacionam quatro usos afetivos: o presente histórico; o
presente com valor de futuro; o presente em lugar do imperativo ou do futuro a fim de
formular pedidos; e o caso específico do verbo “querer” no presente em frases
interrogativas, para substituir o imperativo (CUNHA & CINTRA, 1985, p. 438-439).
Ora, se é possível admitir algo de afetivo para os dois últimos empregos acima
citados, na medida em que o locutor deseja parecer gentil perante seu interlocutor,
dificilmente podemos fazer tal avaliação acerca das duas primeiras ocorrências. O que
haveria de intrinsecamente “afetivo” ou “emocional” em efetuar uma narrativa histórica
ou em falar de um acontecimento futuro servindo-se do presente do indicativo? Cabe
salientar que o emprego do presente do indicativo em lugar do futuro é, de resto,
normalíssimo no português do Brasil atual. O que justifica a criação dessas rubricas
ligadas a “valores afetivos”, presentes também em outros pontos da gramática de Cunha
e Cintra, é justamente um certo enfoque denotativo da língua, que lhe determinaria usos
mais referenciais e, por isso, mais “normais”, em contraponto a usos “afetivos” e
conotativos, vistos como marginais embora muitíssimo freqüentes nas práticas
discursivas.
Acontece, entretanto, que essa visão referencial da língua conduz a um tipo de
análise que se pretende lógica, mas com resultados práticos, no nimo, incoerentes.
Retomemos o tratamento dispensado ao presente do indicativo por Cunha e Cintra.
Considerando a idéia de “presente” como o tempo da ação concomitante à enunciação,
concluiremos, quase paradoxalmente, que o tempo verbal chamado de presente do
indicativo, dentro da realidade do português brasileiro, praticamente não se destina a
esse fim. Para designarmos uma ação que ocorre no momento exato em que falamos,
preferimos lançar mão de uma perífrase verbal com o verbo principal no gerúndio a
utilizar o presente do indicativo simples: soa muito mais natural entre nós “Estou vendo
televisão” do que “Vejo televisão”, se somos indagados sobre o motivo por que ainda
estamos na sala, por exemplo.
Além disso, as línguas naturais, apreendidas em suas realizações discursivas,
parecem se estruturar em mecanismos que não se deixam reduzir facilmente a
formalizações lógicas. Em entrevista concedida ao professor Heronides Moura e
54
publicada pela revista DELTA em fevereiro de 1998, Oswald Ducrot, corrobora esse
ponto de vista:
Penso que a lógica não serve em nada para descrever a língua natural. Sem dúvida
se reveste de todo interesse a comparação entre as línguas naturais e as linguagens
lógicas, mas tentar encontrar nas línguas naturais estruturas subjacentes
equivalentes às estruturas lógicas, parece-me de fato pouco interessante. (MOURA,
Heronildes, 1998)
Com efeito, se tratarmos alguns dos problemas estudados pela semântica formal
sob uma ótica discursiva, isto é, de comunicação real, daremos razão a Ducrot. Certas
ambigüidades que servem de objeto de estudo para a semântica formal simplesmente
não ocorrem na prática. Pensemos num enunciado como “Todo homem deve se casar
com uma mulher”.
Ora, onde a semântica formal enxerga duas interpretações, os estudos
discursivos encontrariam uma. Aliás, não seriam exatamente os estudos discursivos
que chegariam a essa conclusão, mas os falantes reais. Apenas se parasse para pensar
numa ambigüidade semântica é que o falante poderia encontrar a paráfrase “Todo
homem deve se casar com uma mulher que é a mesma para todos”. Tal sentido
representaria, contudo, algo de anômalo de acordo com seu conhecimento de mundo.
Por outro lado, apenas a paráfrase “Todo homem deve se casar com uma mulher, que
será diferente para cada homem” tenderia a aparecer de modo espontâneo em sua mente.
Isso não quer dizer, porém, que a língua seja ilógica. Ao contrário, um texto deve
se organizar de acordo com os protocolos do gênero do qual faz parte, buscando
geralmente se estruturar sobre relações de causa e efeito. Não é a lógica interna de um
texto que discutimos aqui, mas a tendência redutora de conceber a língua como um
conjunto de códigos formais, explícitos e meramente referenciais.
Na maioria das vezes, essa tendência a encarar a língua como um sistema lógico
não deriva exatamente de uma posição formalista, baseada em sólidos conhecimentos
ligados à matemática ou à filosofia. Trata-se, ao contrário, de um enfoque simplório,
que condiciona as unidades lingüísticas a um valor monossêmico e estritamente
referencial.
A nosso ver, entretanto, existem pelo menos dois grandes conjuntos de fatos
lingüísticos que colocam em xeque uma visão lógico-referencial da língua. Uns se atêm,
evidentemente, à relação entre sentido e referência, já comentada ao longo do capítulo 2
55
(mormente nos itens 2.2 e 2.7), englobando, entre outros aspectos, a questão da
polissemia e dos sentido figurados.
Outros desses fatos se situam na própria dimensão gramatical da língua.
Encontrar-se-iam nesse grupo os conectivos, os quais, segundo Ducrot, não se limitam a
encadear segmentos significantes, ou seja, os enunciados considerados em sua
materialidade lingüística.
Trataremos desses assuntos começando por um exame rápido dos conectivos.
3.1.1 Conectivos: além do enunciado
Muitas vezes, os conectivos assinalam relações entre os enunciados que podem ser
interpretadas sob um ponto de vista lógico. Vejamos os exemplos seguintes:
(9) O chão está molhado porque choveu.
(10) Estou com frio, mas meu irmão sente calor agora.
(11) Ele é inteligente, então fará uma boa prova.
Os três conectivos apresentados acima introduzem relações lógicas entre os
enunciados, respectivamente de causa, oposição e conseqüência (ou conclusão). No
entanto, Ducrot adverte que, na prática discursiva, tais conectivos fazem mais do que
integrar segmentos materiais do texto, que são capazes de articular também
“entidades semânticas que podem ter apenas uma relação muito indireta com tais
segmentos” (DUCROT, 1980, p. 15).
A esse respeito, Dominique Maingueneau, retomando Ducrot, comenta que um
conectivo pode fazer um enunciado se encadear a elementos gerais da própria
enunciação, assinalando todo um “movimento discursivo cujas fronteiras são, por vezes,
indecisas” (MAINGUENEAU, 1997, p. 63).
Um conectivo permite, desse modo, agregar aspectos contextuais ao enunciado,
referindo-se a aspectos da situação imediata em que se processa o discurso ou a sistemas
de valores e crenças partilhados socialmente. Ilustraremos esse ponto de vista
analisando frases com os conectivos que mostramos anteriormente:
(12) Choveu, porque o chão está molhado.
Na frase acima, que faria par com (9), observamos a diferença de comportamento
da conjunção “porque”, que atua, respectivamente, como subordinativa causal e
56
coordenativa explicativa. O primeiro tipo remete efetivamente a uma relação de causa e
efeito; o segundo expressa, antes, uma constatação ou suposição que fazemos a partir de
nosso conhecimento de mundo. Se chegamos em casa e vemos o chão molhado, é nossa
experiência e nosso exame da situação que nos leva a crer que choveu, preferindo essa
explicação a outras possíveis alguém deixou a bica aberta, o vizinho jogou água na
casa, o encanamento estourou, houve um prodígio paranormal.
Assim sendo, embora haja um encadeamento entre dois enunciados, a articulação
efetuada se dá mais num nível de crenças do que numa relação lógica propriamente dita,
constituindo um raciocínio inferencial. Passemos a mais um exemplo:
(13) Pedro está aí, mas isso não diz respeito a João.
Muito já foi estudado sobre o conectivo “mas”, principalmente por lingüistas
como Ducrot, de modo que procuraremos não nos estender em demasia nesse assunto.
Trata-se do conectivo de oposição por excelência, embora não se limite a ligar
enunciados. O exemplo acima, adaptado de Ducrot (DUCROT, 1980, p. 161), pode
receber duas interpretações. Uma delas, a de que o fato veiculado pela primeira oração,
isto é, a presença de Pedro, poderia interessar a João, embora isso efetivamente não
aconteça. Teríamos, nesse caso, uma legítima articulação de enunciados.
A segunda interpretação, por sua vez, concerne na verdade à configuração de um
ato de fala. A intenção do locutor, ao enunciar tais segmentos, seria a de efetuar uma
advertência ao interlocutor: a presença de Pedro não deve ser divulgada por ele a João.
Trata-se, assim, de um ato de fala indireto, introduzido pelo conectivo “mas” (falaremos
mais dos atos de fala em 3.4). Vejamos mais um exemplo ainda com esse elemento
lingüístico-discursivo:
(14) Eu tenho muito dinheiro, mas eu trabalho muito.
À primeira vista, um olhar preso a um enfoque lógico encontraria uma
incongruência semântica. A frase pareceria mal construída, visto que oporia dois
conteúdos que, na verdade, manteriam uma relação de causa e conseqüência: “ter
dinheiro” representa uma conseqüência possível e esperada de “muito trabalho”, pelo
menos de acordo com um senso comum.
Contudo, tal frase não é de modo algum anômala nas práticas discursivas da
língua portuguesa. O “mas”, nesse caso, se situa num nível além da simples articulação
de enunciados. Presumivelmente, o locutor o emprega não para opor as idéias de
57
dinheiro e trabalho; seu intento é, ao contrário, o de reiterar essa relação, opondo-a a
uma possível observação do tipo “Você tem dinheiro, hein? Deve tê-lo ganho de modo
fácil!”, realizada pelo interlocutor e considerada maliciosa.
A oposição, por conseguinte, se efetuaria não entre os dois segmentos presentes na
fala do locutor, mas entre um segmento enunciado por este e um conteúdo não
configurado explicitamente na fala do interlocutor. Desse modo, a oposição pode ser
estabelecida em relação a uma virtualidade, ou seja, a conteúdos implícitos no discurso
do interlocutor.
Continuemos com esse conectivo, analisando o seguinte enunciado:
(15) Mas esta sala de aula está uma bagunça!
O “mas”, nesse caso, recebe de acordo com a Nomenclatura Gramatical Brasileira
a classificação de palavra denotativa de situação, em vez de conjunção, que não há
um enunciado precedente para ser encadeado. No entanto, esse “mas”, marcador
discursivo próprio da língua oral, mantém seu valor de conectivo de acordo com as
formulações de Ducrot, uma vez que integra a própria situação enunciativa ao
enunciado, sinalizando uma relação de adversidade. Ao pronunciar esse enunciado, o
locutor mostra sua contrariedade com aquilo que imagina normal numa sala de aula – ou
seja, a ausência de bagunça. O ambiente que o cerca é visto, assim, como um fato de
oposição à sua própria enunciação.
Possuindo nesse caso uma função fática, ao introduzir um turno de fala, o
conectivo “mas” pode também apresentar valor pragmático, ao demonstrar sua
contrariedade no tocante às circunstâncias de discurso, o que pode ser entendido como
um conseqüente pedido para que se eliminem os fatores que o desagradam, ou seja, para
que a sala de aula seja arrumada imediatamente.
Situação semelhante acontece com o conectivo “então”, na frase abaixo:
(16) – Então vamos começar a aula!
Também no enunciado acima “então” não é classificado pela NGB como
conjunção coordenativa conclusiva, mas sim como palavra denotativa de situação.
Ainda assim, “então” guarda um valor de conclusão quando enunciado nessas
circunstâncias. Dá-se a entender que as condições para a enunciação estão adequadas, o
que permite, por conseguinte, empreendê-la. Também nesse caso teríamos, no entender
de Ducrot, um conectivo associando o contexto a um enunciado.
58
É necessário também observar que operadores do tipo lógico trabalham dentro dos
conceitos de verdadeiro e falso, unindo dois conteúdos descontextualizados e
procurando demonstrar uma conclusão universalmente válida. No campo das línguas
naturais, entretanto, os conteúdos concatenados não são descontextualizados e nem
conduzem a conclusões universalmente válidas. A junção desses conteúdos, na
realidade, pode evidenciar toda uma gama de crenças, ligadas não apenas a uma
determinada ideologia, mas também à própria situação em si. Trata-se dos lugares-
comuns, ou topoi, como prefere Ducrot, remontando aos retóricos. Um mesmo
indivíduo pode, conforme a situação, valer-se de topoi contraditórios entre si:
(17) Comprei esse relógio, mas ele é caro.
(18) Comprei esse relógio, porque ele é caro.
Em (17), é evidenciada a crença segundo a qual o ato de comprar um produto se
opõe ao seu valor alto, ou seja, quanto mais caro, mais difícil se torna comprá-lo. Esse
topos talvez seja o mais disseminado socialmente, mas não é absoluto. Em (18), é
justamente o preço alto que se torna um atrativo para a compra, pois há pelo menos duas
crenças envolvidas aí: a de que produtos caros têm maior qualidade e devem, por isso,
serem adquiridos, e / ou a de que produtos caros conferem prestígio a quem os adquire.
Demonstradas assim as dificuldades que a própria organização gramatical das
línguas naturais suscita para se realizar um estudo lógico, passemos a algumas questões
de ordem léxico-semântica.
3.1.2 Sentido x referência: a língua além da lógica
mostramos ao longo do capítulo anterior que o sentido não pode ser confundido
com o referente ou referência que designa. Além da propriedade que o léxico tem
de ampliar suas referências, por intermédio de conotações, um mesmo sentido
referencial pode por si criar juízos de valor. Nessas circunstâncias, aqueles que
trabalham com a noção de sentido de língua (como mostrado em 2.7), considerado
como a base significativa, empregam o termo “efeito de sentido”, que corresponde a
certos valores conotativos adquiridos no discurso (CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU, 2004, p. 179-180).
Também comentamos que uma lingüística centrada sobre o sentido referencial
encontraria sérias dificuldades ao lidar com fragmentos textuais oriundos de
59
comunicações lingüísticas efetivas – consideramos “texto”, aqui, como um produto
materializado sob a forma de significantes, sejam orais ou escritos, e de dimensões
variadas.
Agruparemos abaixo alguns dos fatores que concorrem para esses problemas, sem
entrar em detalhes na questão da polissemia, bastante explanada no item 2.6.
Adotamos para esse fim uma nomenclatura que pretende ser original, embora alguns
desses fenômenos lingüístico-discursivos tenham sido apreciados em várias obras de
semântica, nem sempre recebendo, contudo, uma denominação específica.
Lembremos, antes de mais nada, que as conotações, oriundas de processos
metafóricos ou metonímicos, são próprias das línguas naturais acreditamos que isso
tenha ficado claro ao longo de todo o capítulo 2. Tal observação, ainda que óbvia, serve
de ponto de partida fundamental para debatermos sobre alguns elementos semântico-
estilísticos que entram, inclusive, no rol das práticas de normatização da língua
portuguesa do Brasil.
Existem dois grandes veículos que servem como monitoração e prescrição
lingüística: as gramáticas normativas e os manuais de redação estes últimos incluem
desde regulamentos sobre a prática redacional de jornais de prestígio até livros de como
“falar e escrever bem”. Nos manuais de redação, além das prescrições gramaticais de
praxe, ligadas à ortografia e à regência verbal ou nominal, costuma-se amiúde sugerir
(impor?) determinados empregos lexicais em lugar de outros.
Tal postura, contudo, acaba gerando verdadeiras hipercorreções, que entram em
circulação sem que se possa lhes dar sequer um argumento de autoridade. Citaríamos, a
título de exemplificação, o hábito que alguns profissionais da área de saúde têm de
evitar a expressão, aliás consagrada popularmente, “tirar a pressão”, substituindo o
verbo “tirar” por “aferir”, “medir” ou “verificar”. Alegam eles, não sem um certo toque
de humor – duvidoso aliás –, que “se tirarmos a pressão de alguém, essa pessoa
morrerá”. Ora, se a construção “tirar a pressão” tem algo de reprovável, igualmente
incorretas se mostram outras como “tirar as medidas de uma roupa”. Trata-se, nos dois
casos, de um processo de metonímia, em que um dado valor é “retirado” do instrumento
empregado para realizar uma medição.
A censura a esses tipos de expressão provém de um enfoque radicalmente
denotativo da língua, a nosso ver descabido, mas que justificaria uma apreciação lógica
dela. Entretanto, devemos lembrar que, se a língua fosse voltada exclusivamente para
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formulações lógicas, não expressaríamos em português uma afirmação por intermédio
de “pois não” e uma negativa através de “pois sim”.
Do mesmo modo, a concordância da expressão “mais de um” com verbos no
singular (“Mais de um aluno leu esse livro”) e de “menos de dois” com verbos no plural
(“Menos de dois alunos leram esse livro”) estariam erradas do ponto de vista lógico,
embora sejam consideradas corretas pela gramática normativa (CUNHA & CINTRA,
1985, p.488).
Ademais, da mesma maneira que é impossível fechar as línguas naturais às
conotações, é preciso levar em conta que nem todo valor denotativo é lingüisticamente
válido. Defendemos esse ponto de vista com os dois exemplos seguintes:
(19) * – Faltam 50 para as duas, ainda temos tempo de almoçar.
(20) * – Minha mesa está ali, sob aquele caderno.
Ambas as frases expressam um estado verossímil de coisas no mundo. Entretanto,
por uma questão de hábitos lingüístico-discursivos, elas são inusitadas em língua
portuguesa. Não se diz em nosso idioma nem em outros, como o francês e o inglês,
por exemplo que faltam 40, 50 ou 55 minutos para se chegar a uma hora exata. Tal
frase, embora legítima do ponto de vista lógico e mesmo gramatical, é semanticamente
anômala. Embora possa até ser compreendida por um falante de língua portuguesa,
causaria imensa estranheza neste.
No que diz respeito à segunda frase, normalmente se assinala que as preposições
de lugar “sob” e “sobre” possuem uma relação de antonímia. Contudo, a frase que
apresentamos acima não é aceitável no português do Brasil, enquanto sua virtual
correlata, “Meu caderno está ali, sobre a mesa”, o é. Se ambas denotam uma mesma
realidade, porque uma é válida? Parece haver alguma regra implícita no uso de
preposições desse tipo na língua portuguesa e em outras que impõe que o termo
antecedente seja de modo obrigatório de menor dimensão física que o conseqüente.
Esses dois exemplos demonstram que nem toda relação logicamente possível pode
ser expressa pelas línguas naturais. Convém agora assinalarmos outros fenômenos
lingüísticos que escapam ao estudo lógico-formal:
a) Graduabilidade Muitas vezes, para fins expressivos, graduamos aspectos da
realidade que, pela lógica, se deixariam descrever em termos polarizados, do tipo
“sim” ou “não”:
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(21) Se o Gastão ficou reprovado? Ele ficou muito reprovado: ficou abaixo da
média em oito matérias!
(22) O juiz roubou ao deixar o lance seguir! O jogador estava impedido demais,
mais de um metro além da linha de defesa!
(23) – Gente, a Margarida não está pouco grávida não! Ela espera trigêmeos!
Fatos como ficar reprovado, encontrar-se em impedimento num jogo de futebol ou
estar grávida, em tese, não podem ser quantificados. Ou se está reprovado ou não se
está, por exemplo. Entretanto, o número de matérias que causaram essa reprovação, a
distância considerada mais do que suficiente para se marcar o impedimento e o número
de filhos numa gestação permitem ao locutor criar tais efeitos. É como se um fato
considerado absurdo ou pouco normal da realidade justificasse uma anormalidade”
lingüística. Trata-se, nesses casos, de expressões de cunho hiperbólico.
b) Ênfase identitária Já apresentamos um exemplo desse tipo ao debatermos a
relação entre signo e referente segundo Ullmann, no item 2.2. Um mesmo elemento do
mundo, real ou imaginário, pode ser expresso por dois signos ou expressões,
acarretando, contudo, sentidos diferentes ou efeitos de sentido diferentes, como
preferem alguns lingüistas:
(24) Luisinho não se interessa pela esposa, mas sim pela filha do patrão.
Em termos denotativos, a frase acima pareceria contraditória se a mulher de que se
fala fosse, a um tempo, a esposa de Luisinho e a filha do patrão deste. Em termos
discursivos, contudo, o que se deseja dizer é que Luisinho não ama verdadeiramente sua
esposa, tendo presumivelmente se casado por interesse financeiro ou profissional. Em
outras situações, a ênfase identitária consiste, denotativamente, em uma redundância
mais do que evidente:
(25) Maradona foi um bom jogador, mas o Pelé foi o Pelé.
Ao enunciar essa aparente redundância, o locutor deseja ressaltar as qualidades de
Pelé como jogador de futebol. No contexto acima, estabelece-se uma comparação,
que tais características são julgadas como superiores àquelas de Maradona.
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c) Hiperprecisão semântica Próxima à ênfase identitária, temos aqui um recurso
que confere a unidades lexicais uma precisão no discurso que se afasta de seu valor
estritamente referencial, na medida em que elimina as noções de acarretamento
semântico. Exemplos da hiperprecisão semântica podem ser encontrados em adjetivos
ou verbos:
(26) Caminhar não é bom para a saúde: é ótimo! Por isso, eu não gosto de
caminhar, eu adoro!
O adjetivo “ótimo” é uma gradação de “bom”: pela lógica, o primeiro acarreta o
segundo, pois, se uma coisa é “ótima”, ela é, obviamente, “boa”. Porém, o enunciado
ressalta que apenas o adjetivo “ótimo” é capaz de expressar convenientemente os
benefícios da caminhada. Do mesmo modo, o verbo “adorar” pressupõe “gostar”: quem
adora algo, gosta dessa coisa. Mas “adorar” apresenta um aspecto mais intenso que não
se encontra em “gostar”, motivo por que se cria uma relação de contraste que não se
mostraria plausível numa leitura denotativa.
A hiperprecisão semântica também recai sobre substantivos, desfazendo relações
de hiponímia:
(27) Eu tenho um meio de transporte sobre quatro rodas: o Peninha, sim, tem um
automóvel! Carro do ano é outra coisa...
A palavra automóvel” é um hipônimo de “meio de transporte”. Pela gica, se
alguém tem um carro, tem, evidentemente, um “meio de transporte”. No enunciado
acima, porém, a palavra “automóvel” aparece de tal modo estimada positivamente, que
não pode ser abarcada pela noção vaga de “meio de transporte”. Esse último caso se
aproxima da ênfase identitátia, descrita anteriormente.
d) Reforço semântico Trata-se aqui também de redundâncias, assim
consideradas sob um ponto de vista denotativo. Todavia, no discurso, seu uso assíduo
oblitera esses traços redundantes junto aos falantes. Não se enquadrariam casos em
que a redundância é óbvia, quando o acréscimo lexical soa como uma repetição do
próprio sentido da palavra: “subir para cima”, “descer para baixo”, “entrar para dentro”,
“sair para fora”, entre outros.
um sem-número de expressões cuja redundância não parece ser tida, sendo
por isso combatidas por gramáticos e revisores de textos: “elo de ligação”, “consenso
geral”, “surpresa inesperada”, além de construções do tipo “tal coisa aconteceu 2
63
anos atrás”, em que a o verbo “haver” denota tempo transcorrido, fazendo o advérbio
“atrás” tornar-se inútil do ponto de vista informativo.
Parece acertado, por parte dos revisores, evitar tais redundâncias a fim de que o
texto se apresente de modo mais conciso, embora certos empregos sejam justificados:
busca-se, no final das contas, clareza na comunicação. É possível que o caráter
inerentemente vago dos signos lingüísticos (comentado no item 2.8) favoreça tais usos.
A palavra “consenso” parece flutuar semanticamente de “acordo geral” para apenas
“acordo”, de modo que o adjetivo “geral” se torna válido na mente do falante como
“parcial” também se justificaria.
Obviamente, esses reforços semânticos não representam escolhas individuais ou
simples “erros”, como apontariam alguns puristas, mas remeteriam a empregos
coletivamente estabelecidos através da cristalização de certas expressões. Essas
cristalizações por vezes se mostram tão fortes que não admitem a supressão do termo
adicional, sem que isso cause um certo estranhamento. A expressão “fatos reais” é tida
como redundante, já que fatos podem pertencer à realidade. A título de comparação,
uma expressão como “fatos fictícios” nos parece descabida. Contudo, a observação
expressa na fórmula “baseado em fatos reais”, para designar certos tipos de livros ou
filmes, não poderia ser reduzida a “baseado em fatos”, sem provocar um efeito de
anormalidade. Pela freqüência dessa expressão em nossa ngua, acreditamos que
“baseado em fatos reais” se tornou uma lexia, estando, pois, além do alcance de
qualquer crítica baseada numa análise lógica. O mesmo caso se observa na combinação
entre “um(a)” e “único(a)”, como mostramos a seguir:
(28) Ele não leu um único livro de lingüística até hoje.
Denotativamente, o adjetivo “único” parece supérfluo, mas adquire um traço de
realce que não pode ser negligenciado. Sua retirada, de fato, provocaria uma nítida
perda de ênfase.
e) Ironia – A ironia talvez represente um dos maiores problemas nos estudos
semânticos. Um enunciado pode sofrer um processo de inversão semântica caso se
invista de um valor irônico, na medida em que um significado tido como habitual é
desconstruído dentro de um contexto discursivo. Assim, é possível enunciar algo para
dizer o contrário do que realmente se pensa:
(29) Adorei este livro! Foi muito bom para a minha insônia...
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No exemplo acima, é fácil perceber a ironia por verificarmos uma aparente
incongruência na articulação dos enunciados. Quando se tece um elogio a um livro,
espera-se que este tenha emocionado, divertido ou instruído o leitor, mas não que lhe
tenha “curado uma insônia” o que significa que, na verdade, provocou sono e não
interesse. Na língua oral, a ironia é marcada por entonações especiais e elementos
supra-segmentais diversos, incluindo aí modificações no timbre normal da voz do
locutor. No texto escrito, não é raro que se assinale a ironia por intermédio de
interjeições, pontos de exclamação, aspas e reticências, recursos que expressam um
certo “tom”. Dominique Maingueneau, aliás, defende a idéia de que todo texto, mesmo
o escrito, possui uma espécie de “voz” (MAINGUENEAU, 1997, p. 46). Tal posição
será vista novamente, em detalhes, ao tratarmos da noção de ethos, nos capítulos 4 e 5.
A ironia traz muitas implicações para os estudos discursivos, pois muitas vezes se
relaciona à apropriação da palavra do outro em nosso texto, com os mais variados fins e,
costumeiramente, com um certo efeito de humor, que pode, todavia, dissimular uma
agressão ao interlocutor.
Sem entrarmos em maiores detalhes sobre o assunto, procuramos explicar a ironia
de modo o mais simples possível, como se fosse operado um desdobramento de si
mesmo que o sujeito realiza no discurso. O locutor enuncia algo a seu interlocutor
fazendo este crer que suas palavras não expressam suas idéias. Ou seja, ao produzir seu
discurso, o locutor cria a imagem de um sujeito enunciador, que se afasta de si mesmo.
Para a ironia ser compreendida, é necessário que o interlocutor perceba esse
distanciamento. No capítulo 4, abordaremos com mais detalhes a questão do sujeito no
discurso e seus desdobramentos.
Em nossa estimativa, dificilmente uma lingüística ligada exclusivamente ao
sistema pode dar conta desse fenômeno, eminentemente discursivo. Isso não quer dizer,
contudo, que a ironia esfacele por completo as regularidades semânticas do signo
lingüístico.
Em primeiro lugar, a ironia costuma ser previsível na medida em que ela veicula
um sentido que é o contrário daquele normalmente empregado:
(30) – Erros de ortografia, entrega atrasada, sem capa, falta de conteúdo e ausência
de capricho... este trabalho está ótimo!
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Em (30) teríamos um contexto em que um professor recebe um trabalho escolar
com diversas falhas, o que justificaria o uso do adjetivo “péssimo”; a ironia reside
justamente na presença do adjetivo “ótimo”, seu antônimo. Reparemos que outros
adjetivos, como “caro”, “sensato”, “bondoso” não teriam nenhum sentido aparente
nessa situação.
Na verdade, em termos lingüísticos a ironia parece se alicerçar sobre o emprego de
palavras de um mesmo campo semântico. No caso em pauta, adjetivos avaliativos como
“bom”, “mediano”, “regular”, “péssimo” e “ótimo” constituiriam um certo campo
semântico. Isso se nota também em enunciados irônicos que não apresentam esse traço
de inversão semântica:
(31) – Isso é um periquito?
– Não, é um gavião...
Imaginemos que o diálogo acima seja efetuado por dois meninos que estejam
diante de uma gaiola com um pequeno pássaro dentro. Um deles pergunta sobre o tipo
de pássaro que nela se encontra, ao que o outro, julgando essa indagação improcedente,
lhe responde com um conteúdo absurdo, dado o tamanho muito maior do gavião.
Observe-se que, de qualquer modo, “periquito” e “gavião” pertencem a um mesmo
campo semântico; muito provavelmente, a ironia perderia um pouco de seu efeito se
fosse citado um outro animal ou, principalmente, um objeto.
Deve-se ressaltar também que empregos irônicos podem alcançar uma amplitude
coletiva, acabando mesmo por serem dicionarizados. A palavra “bagatela”, por
exemplo, corresponde a “preço barato”, “ninharia”; no entanto, a maioria de suas
ocorrências, pelo menos na atualidade, assinala um emprego irônico, que se refere a
quantias financeiras muito elevadas:
(32) Aquele iate custou a bagatela de 3 milhões de dólares.
O mesmo pode ser dito da palavra “pérola”. No sentido denotativo, trata-se de um
material valioso usado para fazer jóias, de modo que algumas de suas conotações
produzem um efeito positivo. Porém, é muito comum seu uso com o fim de demonstrar
um certo sarcasmo em relação a declarações infelizes, ou seja, de pouco valor:
(33) Mais uma pérola do Huguinho: ele jura que o homem nunca foi à Lua!
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Efetuadas essas observações gerais sobre os pontos falhos de uma análise
exclusivamente referencial da língua, vejamos como podemos empreender um estudo
semântico levando em conta o discurso. Para isso, nos serviremos de muitos princípios
teóricos trabalhados por Patrick Charaudeau, presentes, principalmente, em Langage et
discours (1983). Comecemos por sua revisão sobre o signo lingüístico.
3.2 Entre o discurso e a língua: a produção de sentidos
Segundo Patrick Charaudeau, pode-se considerar, de modo bastante simplificado,
a existência de duas grandes linhas de estudos lingüísticos. Uma trata "do que" a língua
fala, caracterizada por uma postura representativa, na qual o sistema lingüístico é
considerado como uma entidade transparente e um enunciado tende a ter um sentido
referencial e preciso. Outra grande linha se preocuparia acerca de "como" a língua fala,
sendo pautada por uma atitude intersubjetiva, no que resultaria uma apreciação da
língua como uma entidade não-transparente, dentro da qual um enunciado poderia
produzir sentidos diversos.
O objetivo da semiolingüística é o de estabelecer uma análise consubstancial
dessas duas visões. Sendo assim, aquilo "do que fala a língua" não tem uma relação de
anterioridade diante do "como fala a língua": este é que se mostra, antes, constitutivo
daquele. O modo de expressar os sentidos constrói, assim, a própria representação
lingüística.
Certamente, as correntes teóricas de base estruturalista, voltadas para um estudo
descontextualizado da língua, e o gerativismo, ilustram bem essa primeira grande linha.
Por outro lado, os estudos lingüísticos relacionados às maneiras de como usar a língua
trabalham com uma visão de contexto. Nessa linhagem se encontrariam a teoria da
enunciação (cujo grande ícone é Benveniste), a semântica argumentativa ducrotiana
(incluindo as diversas teses correlatas) e a pragmática, nascida dentro da filosofia da
linguagem, a partir das obras de John Austin e John Searle.
É importante frisar que uma abordagem discursiva da língua não se caracteriza
apenas por levar em conta a situação de comunicação embora isso seja de bastante
relevo, haja vista os inúmeros trabalhos voltados para os dêiticos, por exemplo. toda
uma linha de estudos discursivos que vão além da situação comunicativa, focando
também a presença dos sujeitos.
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É importante frisar que o termo “discurso” não é uma novidade dentro dos círculos
lingüísticos. Em algumas obras mais antigas, o termo “discurso” era assimilado à
parole de Saussure (CÂMARA Jr., 2004, p. 174). Atualmente, desaconselha-se tal
aproximação: a parole representa um ato individual; o discurso, por sua vez, em que
pese às várias definições que recebe, é visto como uma atividade de interação, ou seja,
intersubjetiva. Por essa razão, algumas disciplinas pensam a língua como um sistema
cujas formas são apropriadas no discurso por parte de um sujeito, que visa provocar
efeitos de influência sobre seu interlocutor. Trata-se de uma visão não apenas
contextual, mas pragmática da língua, concebida como um instrumento de ação.
Essas duas grandes linhas, uma representacional-estrutural, outra comunicativo-
pragmática, justificam, aliás, o nome proposto por Charaudeau para sua própria
metodologia de análise: sua investigação é ao mesmo tempo lingüística, por trabalhar
com a concepção estrutural da língua em nível morfossemântico, e semiótica, por levar
em conta a intersubjetividade na formação de sentidos que essas estruturas assumem no
discurso.
Uma das noções chave para a pragmática são os atos de fala ou sppech acts. Sem
nos preocupar em traçar um panorama histórico desse assunto, limitamo-nos a dizer que
analisar um enunciado sob a ótica dos atos de fala é menos se interessar por seu valor
referencial, explícito, que por seus valores de interação, o que inclui seus conteúdos
implícitos. A língua, numa abordagem pragmática, é mais do que um veículo de
informações: ela representa um sistema de ação, de troca e de interinfluência.
A teoria dos atos da fala foi progressivamente revista e modificada. Nesse
aspecto, aqueles que preferem falar de “atos de discurso” ou “atos de linguagem”
denominação esta empregada por Charaudeau.
O ato de linguagem, ou seja, o contato entre locutor e interlocutor, é considerado
por Charaudeau como o conjunto de instâncias produtoras do discurso e é comparado a
uma mise en scène (representação, no sentido teatral), na qual os atores projetam
imagens de si mesmos, guiados por condições diversas tais como contratos de
comunicação, saberes partilhados, especificidades contextuais, imaginários sociais, etc.
Dentro dessa encenação, os sentidos se constroem a partir de dois processos
interdependentes: o de transformação, em que as formas lingüísticas se semiotizam, isto
é, ganham um sentido; e o de transação, em que as formas lingüísticas assumem um
valor de troca entre os sujeitos (CHARAUDEAU, 2005, p. 14). O processo de transação
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comanda o de transformação, uma vez que o sentido de uma forma lingüística pode
se dar numa instância comunicativa.
Também é importante assinalar que todo ato de linguagem costuma se compor de
"explícitos" e "implícitos". Os “explícitos” seriam as informações ligadas diretamente a
um estado de coisas, ou seja, vinculadas, até certo ponto, a um sentido referencial ou
denotativo do enunciado. Vejamos o enunciado abaixo, inspirado em exemplo
comentado por Charaudeau (CHARAUDEAU, 1983, p.15-19):
(34) A porta está aberta.
Numa análise referencial, o enunciado acima remeteria apenas a um fato
específico: o de que de um objeto (“porta”) que apresenta um estado específico
(“aberto”).
Por outro lado, uma análise contextualizada levaria em conta a situação específica
e os implícitos daí decorrentes, de onde se apresentariam as seguintes interpretações:
(35) Feche-a, pois está frio.
(36) Feche-a, pois há barulho lá fora.
(37) Feche-a, pois alguém indevido pode entrar aqui.
(38) Feche-a, pois podem ouvir nossa conversa.
(39) Entre, por favor.
(40) Queira se retirar, você está sendo inconveniente.
(41) Queira se retirar, já que você assim o deseja.
A lista anterior ainda poderia ser aumentada, mas julgamos que essas sete
inferências sejam mais do que suficientes para provar que uma mesma seqüência
lingüística provoca efeitos de sentido diferentes de acordo com cada situação, efeitos de
sentido estes que se encontram além do valor referencial do enunciado. Isso confirma
também que o processo de transação orienta o processo de transformação, na medida em
que o sentido deve levar em conta uma intenção comunicativa.
De fato, caso o interlocutor não seja capaz de decodificar os implícitos propostos
pelo locutor, o ato de linguagem tende a ser falho. Pode-se dizer, assim, que cada
situação linguageira gera determinadas relações contratuais: o locutor deve formular o
texto de uma forma específica e o interlocutor deve cumprir uma interpretação
pertinente.
69
quem afirme, entretanto, que a frase (34) apresenta um significado
independente de qualquer contexto. Por conseguinte, defende-se que o sentido literal é
aquele que se mantém sem um contexto apropriado. É o caso da semântica formal, que
se interessa em estudar o encadeamento lógico das proposições e suas condições de
verdade, descontextualizando-as. Ora, numa teoria do discurso, como é o caso da
semiolingüística, não se deve falar em sentido descontextualizado. Podem-se estudar,
isso sim, as virtualidades que uma forma lingüística, tomada isoladamente, possui,
dentro de uma série de oposições no sistema. Além disso, trabalhar com frases isoladas,
sem um co-texto elucidativo e sem informações adicionais, não significa
descontextualizá-la radicalmente. Se um professor escreve no quadro-negro a frase (34)
para os seus alunos, ele estará minimamente criando um contexto, na medida em que
eles serão potenciais interlocutores. Logo, o que certas correntes consideram como
“descontextualizar” não passa de um processo de abstração para a semiolingüística.
Tomando como base o enunciado (34) ainda, observamos ser possível traçar
relações sintagmáticas e paradigmáticas de diversas naturezas. Nestas últimas, existe a
possibilidade de troca de alguns termos por outros correlatos: assim, em vez de "porta",
poderíamos evocar "janela" ou "portão", que fariam parte de um mesmo paradigma.
Esse procedimento gera o que Charaudeau chama de "paráfrases estruturais" e permite
um reconhecimento morfossemântico que remete à realidade extralingüística. Tal
processo recebe o nome de “simbolização referencial” (CHARAUDEAU, 1983, p.16-
17).
Por outro lado, o mesmo enunciado (34) é capaz de gerar também implícitos, que
não se situam ao nível da superfície frasal, mas que afloram de modos distintos de
acordo com as condições de produção do discurso. É importante observar que tais
conteúdos poderiam vir explícitos no enunciado, após um conectivo como "porque",
ressaltando assim uma relação causal. Isso evidencia a formação de paráfrases que,
como estão numa configuração de contigüidade e não de exclusão, como no caso dos
explícitos –, são chamadas de "paráfrases seriais". Decorre daí que os signos não
podem mais ser vistos como unidades transparentes, na medida em que comportam um
potencial pragmático, capaz de se manifestar dentro do discurso. Esse elo necessário
entre signo e situação discursiva na determinação de sentidos é chamado por
Charaudeau de “significação” (CHARAUDEAU, 1983, p.18). Notamos, assim, que o
conceito de significação para Charaudeau associado a um contexto–, difere bastante
70
daqueles delineado por Saussure (conforme vimos em 2.1) e por Ducrot (mostrado em
2.6).
Uma das discussões que Charaudeau promove centra-se sobre o fato de a palavra
"porta", ao provocar essas diferenças de sentido, constituir ou não, nesses diferentes
contextos, um mesmo signo. Para o autor, só poderíamos responder a essa questão de
modo afirmativo se partíssemos de uma teoria que promovesse uma definição semântica
a priori do referente ou em que se destacasse sua realidade física – o que, segundo ele, é
discutível. Em quantos desses implícitos é de fato relevante a realidade física da porta?
Numa circunstância em que o implícito fosse, por exemplo, aquele mostrado em (40)
(“Queira se retirar, você está sendo inconveniente”), o valor do referente se encontraria
ainda mais esvaziado do que nos demais casos: de fato, o que se tem em mente, é fazer
com a que a pessoa se retire, mais do que falar de um objeto chamado “porta”.
Os sentidos de “porta” se modificam, então, sutilmente, podendo se referir a um
objeto com as seguintes funções: impedir a entrada do frio, impedir a entrada de
barulho, impedir a entrada de pessoas, impedir que o teor de uma conversa se propague
e permitir a saída de pessoas. Seria possível objetar que o fato de destacar uma ou outra
função, de acordo com cada contexto, não alteraria substancialmente seu sentido. Isso é
inegavelmente válido, mas uma consideração a ser feita: os paradigmas estruturais,
de que falamos a respeito de (34) não seriam os mesmos em todos os contextos.
Se é verdade que "janela" pode ser evocado em alguns desses enunciados, em
outros isso não ocorre. Quando se pede para fechar a porta por causa da temperatura,
como, por exemplo, no contexto formulado em (35), implicitamente se pede para que se
fechem as outras possíveis entradas de ar frio, entre as quais eventualmente a janela.
Logo, faria sentido realizar um intercâmbio entre as duas palavras. O mesmo poderia
ser dito dos contextos (36), (37) (supondo que fosse factível entrar pela janela) e (38).
Porém, nos contextos (39), (40) e (41), essa troca dificilmente seria válida. Enunciar “A
janela está aberta” para que alguém entre ou saia só tem pertinência num contexto muito
específico, como o de uma piada caso em que a intenção desse enunciado seria a de
provocar riso, e não a de solicitar a entrada ou saída de alguém.
Com base em alguns desses casos, Charaudeau comenta a importância extrema
que os implícitos assumem na formulação de sentidos, concluindo que estes é que
acabam por definir os conteúdos explícitos:
Longe de conceber que o sentido se constituiria de início de modo explícito numa
atividade estrutural, sendo em seguida portador de um implícito suplementar
71
quando de seu emprego, diremos que é o sentido implícito que comanda o sentido
explícito para constituir a significação de uma totalidade discursiva.
(CHARAUDEAU, 1983. p. 19)
Numa visão fundamentada na semântica estruturalista, diríamos que o signo
"porta" denotativo enquanto expressa um certo elemento da realidade que seria seu
valor básico recebe no discurso conotações específicas expressando noções como
"entre" ou "saia". Profundamente marcado pelos estudos da pragmática, Charaudeau,
por seu lado, declara que é justamente o discurso que pode fazer ou não que se
determine o sentido referencial do signo em questão.
O fato de o sentido de "porta", nas ocorrências mostradas acima, guardar certos
traços de semelhança seria um meio de impedir ou permitir a passagem de algo ou
alguém não desmente essa visão. Os usos discursivos mantêm entre si certas
constantes semânticas, o que é óbvio – se assim não fosse, não haveria comunicação.
A teoria de Charaudeau mencionada até agora apresenta alguns pontos discutíveis,
mormente na formulação dos exemplos citados. Pode-se refutar o posicionamento do
lingüista defendendo-se a idéia de que não é exatamente a marca lingüística "porta",
mostrada acima, que expressa conteúdos outros como "entre" ou "saia", mas sim o
enunciado num todo, efetuado numa situação específica.
Contudo, no exame de outros casos, as idéias do autor se mostram mais claras. Um
outro exemplo apontado por Charaudeau para confirmar sua teoria discursiva é o da
palavra "olho". Adaptando algumas ocorrências para o português, diríamos que
locuções como "olho mágico" e "olho de boi" mostrariam que "olho" tem pelo menos
dois traços semânticos importantes: a capacidade de fornecer a visão de algo e a forma
ligeiramente esférica. O sentido de "olho" como "órgão da visão", considerado o
principal e denotativo, nada mais seria do que uma acepção consagrada pelo uso e
imposta culturalmente, contendo, além disso, os dois traços semânticos assinalados
anteriormente. Esses traços semânticos constantes, recorrentes no discurso, são
chamados por Charaudeau de "núcleos metadiscursivos".
É importante salientar que esses núcleos metadiscursivos não devem ser
confundidos com o chamado significado lingüístico básico, noção própria da semântica
estruturalista. Para Charaudeau não existem significados virtuais na língua que se
revestem de conotações na prática discursiva. O processo de significação, segundo a
teoria semiolingüística, se produziria justamente no discurso, motivo pelo qual o
autor prefere não falar de "signo", dentro de um estudo de virtualidades semânticas, mas
72
sim de "marca lingüística", porção significante que se relaciona a esses núcleos. No
discurso, os diferentes núcleos metadiscursivos que compõem a marca lingüística
seriam mobilizados de modo distinto.
Do que foi exposto até o momento, percebe-se que os conceitos de denotação e
conotação não assumem grande relevância na análise semiolingüística. Ambos seriam
produtos discursivos, e o alegado valor de base do sentido denotativo nada mais
representaria que uma convenção cultural. As conotações, consideradas pelo
estruturalismo como os valores semânticos secundários, constituem na verdade parte
integrante de determinadas práticas discursivas.
Charaudeau ilustra essa idéia com os termos "intelectual" e "mulher", em frases
similares a estas, às quais acrescentaríamos também exemplos com a palavra "rato":
(42) Aquele homem é um intelectual, possui um elevado grau de instrução.
(43) Futebol não é um jogo para intelectual!
(44) A mulher é mais suscetível à osteoporose.
(45) Chorar à toa é coisa de mulher!
(46) O rato é um mamífero de pequenas dimensões.
(47) Aquele político é um rato!
Em (42), (44) e (46), diríamos, dentro de uma visão tradicional, que se trata de
sentidos neutros e, portanto, denotativos, enquanto (43), (45) e (47) teriam conotações
pejorativas. Para Charaudeau, no entanto, esse matiz pejorativo não é secundário, mas
sim integrante de certos hábitos discursivos. Além disso, percebe-se por que não se
deve dizer, de acordo com a semiolingüística, que cada um desses pares compartilha um
mesmo signo lingüístico: na realidade, cada um apresenta uma mesma marca lingüística
que abre paradigmas distintos. O caso de "rato" talvez seja o mais patente: em (46) ele
evocaria termos como "cachorro", "gato", "coelho", entre outros, ligados ao campo
semântico dos animais; em (47), por outro lado, ele remeteria a qualificações de caráter
como "honesto", "desonesto", "corrupto", entre outras. Nessa circunstância, verifica-se
claramente a influência do discurso no paradigma estrutural.
A partir das explicações e exemplos acima, pode-se concluir que a grande
inovação da semiolingüística em relação aos estudos semânticos tradicionais de base
estruturalista é a seguinte: enquanto no estruturalismo concebia-se o sentido de um
signo como um elemento estável dentro de uma rede de paradigmas que se ampliaria no
discurso tornando-se instável –, na semiolingüística trabalha-se com regularidades
73
discursivas que vão fixar diferentes paradigmas portanto, instáveis dentro de uma
virtualidade lingüística. Ou seja, para Charaudeau, não é a língua, com suas regras e
redes de oposições, que é convocada para dar sentido ao discurso; é o discurso que
acaba por fixar as regras e redes de oposições da língua.
Se pensarmos que o aprendizado da língua materna se faz essencialmente através
do discurso, e é pelas práticas discursivas de uma comunidade que se promovem as
variações e mudanças de uma língua, o ponto de vista sustentado por Charaudeau parece
ter um embasamento pertinente.
De qualquer modo, não vemos maiores razões para que se abandone a dicotomia
entre denotação e conotação. Em primeiro lugar, porque se trata de conceitos
tradicionais e muito conhecidos. Em segundo lugar, porque postular a existência de um
sentido literal não se opõe necessariamente, conforme frisamos, a uma análise
contextual. Vejamos como poderíamos, então, aliar essas noções tradicionais aos atuais
estudos discursivos.
3.3 Revitalizando a distinção entre denotação e conotação
Com o desenvolvimento dos estudos sobre o discurso através de diversas
disciplinas, a tradicional distinção entre sentido literal (denotativo) e sentido figurado
(conotativo) passou a ser vista como algo ultrapassado é precisamente este o caso da
semiolingüística, de acordo com o que foi mostrado anteriormente. Já que o foco de tais
disciplinas é a construção de sentidos na atividade discursiva, não maiores razões
para levar em conta um significado básico dentro da virtualidade do sistema lingüístico,
ao qual se oporiam suas ramificações contextuais.
Isso não quer dizer, contudo, que tal separação seja totalmente indesejável,
sobretudo porque o próprio falante tende a estabelecê-la, ainda que intuitivamente, ao
perceber sentidos mais referenciais e outros mais associativos.
Não faltam, por essa razão, estudiosos do discurso que resgatam uma relativa
validade para a noção de sentido literal. É o caso de Sírio Possenti, que em seu artigo
"Sobre o sentido da expressão 'sentido literal'" (POSSENTI, 2004, p. 227-234) refuta
uma série de problemas apontados por outros teóricos sobre essa noção e a recupera,
dentro de algumas importantes ressalvas.
Possenti admite que o sentido literal pode ser flutuante historicamente, mudando
de acordo com fatores históricos (disputas ideológicas) ou lingüístico-discursivos (usos
74
provocando polissemia). Tal posição é defendida por outros analistas, principalmente os
da escola de Michel Pêcheux, como Eni Orlandi:
O falante não opera com a literalidade como algo fixo e irredutível, uma vez que
não um sentido único e prévio, mas um sentido instituído historicamente na
relação do sujeito com a ngua e que faz parte das condições de produção do
sentido. (ORLANDI, 2003, p. 52)
No entanto, ainda segundo Possenti, a estabilidade semântica não deve ser levada
em conta radicalmente para caracterizar esse tipo de sentido. Tampouco têm razão
aqueles que buscam o "verdadeiro" sentido literal diacronicamente, em pesquisas
etimológicas. A denotação deve ser encarada, pois, numa realidade sincrônica.
Nessas circunstâncias, não se deve dizer que a polissemia inviabiliza o sentido
literal. Conforme comentamos anteriormente, um mesmo vocábulo pode apresentar
mais de uma interpretação literal, de acordo com seu uso, no que concorre para isso o
fato de poderem remeter a referentes distintos. É o caso das palavras polissêmicas,
como “quadro” e “linha”, de que já falamos (em 2.7).
Possenti minimiza também as críticas de que algumas palavras (como "alto”,
“baixo”, “grande”) são vagas demais para que apresentem um sentido literal. Afirma ele
que não é necessário que o sentido literal se revista de precisão, uma vez que as línguas,
pelo princípio de economia por nós aludido, não costumam fornecer todas as
informações possíveis na superfície frasal de seus enunciados. A exatidão desmesurada
resultaria forçosamente em formas lingüísticas muito longas e complexas.
Convém lembrar, ainda, que a referencialidade do sentido literal não repousa em
valores universais, mas sim num tipo de convenção, na qual um significante remete a
uma interpretação específica da realidade, variável de língua para língua. Assim, em
função da arbitrariedade do signo o sentido literal pode ser avaliado dentro de um
sistema lingüístico específico, levando-se em consideração, obviamente, suas práticas
discursivas.
Finalmente, contra aqueles que argumentam não haver um sentido literal em
virtude de o texto produzir inúmeras interpretações, Possenti declara que, na prática, a
divergência de leituras não é tão acentuada assim. O texto faz circular sentidos de modo
controlado, remetendo a discursos existentes, de maneira que suas possíveis
interpretações tendem a ser razoavelmente convencionais e previsíveis. Do contrário,
cairíamos na falência da língua como meio de comunicação.
75
Parece inegável, portanto, que o sentido literal, independente de ser encarado ou
não como uma virtualidade da língua, se mostra um instrumento de estabilidade no
discurso, já que assume uma função de ponto de referência.
Por representar um saber partilhado entre os locutores, o sentido denotativo tende
a ser a garantia, muitas vezes, de uma intercompreensão mínima na atividade discursiva.
Assim sendo, achamos por bem não opor sentido literal a discurso, que de algum
modo ele costuma ser convocado nas inúmeras situações comunicativas. Afinal, um
sentido conotativo, dependendo de sua natureza, pode ser negado; um sentido
referencial, não.
Aludindo mais uma vez à frase “A porta está aberta”, poderíamos ter uma situação
tal que uma pessoa se sentisse ofendida, caso fosse convidada a se retirar do recinto;
mas o locutor poderia se defender afirmando que não disse exatamente que a pessoa
devesse sair, e que seu comentário foi feito meramente em relação ao estado da porta,
tendo sido, assim, mal interpretado. Também é comum, em circunstâncias parecidas,
que o locutor desdenhe de seu interlocutor proferindo a máxima “Se a carapuça
serviu...”, em que se vale da imprecisão semântica da língua para não se responsabilizar
por alguma frase tomada por ofensiva.
Efetuadas essas considerações sobre o sentido denotativo, devemos nos deter
agora no sentido conotativo, que representa uma noção nem sempre muito clara. Isso
nos permitirá compreender quais são as naturezas do sentido conotativo e sua relação
com o sentido denotativo.
3.4 Tipos de conotação
É importante, antes de mais nada, lembrar que o termo “conotação”, em si,
também é polissêmico, de modo que é imperativo que o definamos. Propomos então
uma tipologia tripartida, levando em conta os fatores que a motivam.
3.4.1 Conotação associativa
É este o tipo mais explorado nos livros didáticos. Chamada comumente de
“sentido figurado”, opõe-se ao sentido denotativo de uma palavra, sintagma ou mesmo
de uma frase inteira na medida em que recebe matizes associativos, fundamentalmente
de ordem metafórica ou metonímica. Observem-se os pares abaixo:
76
(48) Havia um leão no zoológico.
(49) Enquanto jogava futebol, Dunga era um leão em campo.
(50) A camisa do Flamengo está muito cara na loja!
(51) Os jogadores têm que respeitar a camisa do Flamengo.
O par formado por (48) e (49) apresenta a palavra “leão”, respectivamente, em
seu sentido denotativo e num sentido figurado, construído através de uma relação de
similaridade, isto é, de um associação metafórica. Em (49) afirma-se que o jogador
Dunga era um “leão”, de onde se supõe que ele tinha em campo a bravura e o ímpeto
que culturalmente se vê nesse animal.
Já em (50) e (51), o sintagma “camisa do Flamengo” aparece respectivamente com
seu sentido denotativo e figurado, este último sendo motivado por uma relação de
contigüidade, ou seja, de associação metonímica. De fato, sob um ponto de vista
rigorosamente referencial, não faz sentido cultuar uma camisa pura e simplesmente, mas
sim o clube que aquela camisa representa.
O sentido conotativo também é visto nas chamadas lexias complexas, o que inclui
frases feitas, ditados populares, provérbios e idiomatismos em geral:
(52) Eu fiz duas vezes o vestibular e não passei. Você acha que devo fazer de
novo?
– Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
Adotando mais uma vez um ponto de vista referencial, a resposta do interlocutor
ao estudante não faz sentido algum. Afinal, o que fariam na resposta vocábulos como
“água” e “pedra” que nenhuma relação têm com a pergunta feita, a qual, aliás, poderia
ser respondida laconicamente com um “sim” ou um “não”? Contudo, o que o
interlocutor deseja é transmitir a mensagem de que é necessário ser persistente, como a
água, que, embora de consistência líquida, consegue provocar erosões na pedra, através
de um processo ininterrupto. Trata-se de uma motivação claramente metafórica, a
qual, somada com o ritmo próprio da frase inclusive com as rimas internas entre
“dura” e “fura” – impede uma interpretação denotativa.
Os exemplos arrolados acima são, indubitavelmente, de domínio público, e podem
muito bem ser dicionarizados, como é o caso de “leão”: o dicionário de Aurélio
Buarque de Holanda reserva, como uma das acepções para esse verbete, a de “homem
valente, corajoso”.
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Contudo, pode-se gerar o sentido figurado através de associações verdadeiramente
criativas:
(53) Que só eu que podia, dentro da tua orelha fria, dizer segredos de
liquidificador.
No verso acima, da música Codinome Beija-Flor, de Cazuza, o sintagma
“segredos de liquidificador” parece se relacionar aos movimentos rotatórios que faz a
língua durante um beijo ardente na orelha do parceiro. O uso do sentido figurado é
justamente o que provoca o efeito de beleza de um poema, ao romper com empregos
cotidianos da língua; no entanto, essas conotações originais podem não ser facilmente
compreendidas pelo interlocutor.
Próximas ao uso literário, temos as parábolas e as fábulas, gêneros textuais
voltados freqüentemente para encerrar lições morais. Nas parábolas do Novo
Testamento, costumava-se empregar um elemento em lugar do outro, numa mobilização
de sentidos que era freqüentemente explicada pelo próprio Jesus Cristo. É o caso da
parábola do semeador, na qual os diferentes tipos de solo que recebem a semente isto
é, a pregação cristã – se referem às variadas maneiras de um indivíduo a ela se
relacionar: os que nela não crêem; os que crêem, mas rapidamente a abandonam; os
que a assumem por certo tempo, mas se deixam vencer pelas ambições materiais; e os
que a seguem fielmente.
Também dentro dessas conotações associativas teríamos os jargões profissionais.
Diferentes profissões lançam mão de termos com sentido figurado, de divulgação mais
pública ou mais restrita conforme o caso:
(54) Vou consertar aquela banheira.
(55) Aquele jogador só vive na banheira.
Em (54), podemos ter uma leitura denotativa e outra conotativa. Se for a fala de
um bombeiro hidráulico, o sentido será denotativo; porém, se for o enunciado proferido
por um mecânico de automóvel, estaremos diante de um sentido conotativo, no qual
“banheira”, talvez por seu tamanho e imobilidade, expressa um carro de funcionamento
bastante precário.
Em (55), a leitura ao pé da letra estará bloqueada se estivermos falando de futebol,
usando um jargão próprio dos comentaristas esportivos: “estar na banheira” significa
ficar em posição de impedimento, de acordo com as regras futebolísticas.
78
Muitas vezes, como é o caso acima, não é fácil perceber a motivação que subjaz à
produção do sentido conotativo, embora este seja, na maioria dos casos, inequívoco,
uma vez que a interpretação literal acaba se revelando improcedente dentro da situação
discursiva.
Uma das razões dessa dificuldade é que certas expressões idiomáticas se
constroem a partir de determinados acontecimentos históricos. Vejamos esta aqui:
(56) Esse papo dele parar de beber é pra inglês ver!
Em 1831, o ministro Diogo Feijó, então regente do Brasil, promulgou uma lei que,
em tese, proibia o tráfico de escravos para o Brasil. Tratou-se de uma medida tomada
para compatibilizar a estrutura social do país com os interesses econômicos ingleses.
Como se acreditava na época que tal medida fora implantada com o intuito único de
promover positivamente a imagem do país, mas sem a intenção real de que fosse
cumprida, toda vez que uma situação similar acontecia no cotidiano era comum se
referir a esta como “coisa pra inglês ver”. É claro que uma motivação metafórica,
que o uso dessa expressão ficaria condicionado a uma semelhança de circunstâncias.
Porém, na atualidade, esse vínculo metafórico se encontra apagado, perdido no tempo.
Efeito similar ocorre naquelas expressões mais ou menos codificadas, quando
um pequeno grupo tem acesso ao sentido real. Imagine-se a seguinte situação: num
certo dia, um funcionário de uma repartição confessa que, durante a adolescência,
faltava às aulas de educação física por pura preguiça, embora alegasse junto aos pais
que ficava lendo o que efetivamente não ocorria: “Mãe, não vou à educação física,
pois prefiro ficar lendo”. Por conta desse episódio, seus atuais colegas de repartição
passam a usar as expressões “ler” e “ficar lendo” no sentido de “não fazer coisa
alguma”. Enunciados como os que se seguem seriam efetivamente compreendidos
apenas se os detalhes acima fossem conhecidos:
(57) Puxa! O hoje entrou uma hora atrasado, ficou duas horas no almoço e
saiu mais cedo! Ele leu muito hoje!
(58) – Meu fim de semana foi péssimo! Fiquei lendo em casa!
A única diferença entre expressões como as acima e as expressões idiomáticas
mencionadas é o grau de amplitude: as primeiras são de uso restrito, ao passo que as
segundas são de emprego corriqueiro. Vale notar que o deslizamento de sentido,
79
presente nessas codificações, pode servir para conferir, muitas vezes, uma certa
identidade a um dado grupo
3.4.2 Conotação inferencial
Chamamos de “inferencial” o tipo de conotação provocada pela presença de
implícitos, aos quais recorremos quando a interpretação literal se mostra insuficiente
para compreender o enunciado. Tais implícitos poderiam figurar na cadeia sintagmática,
sob a forma das chamadas paráfrases seriais, de que trata Charaudeau, as quais são
inferidas pelo interlocutor – como mostramos em 3.2.
Muito se teorizou sobre os modos pelos quais o falante estabelece tais inferências.
Paul H. Grice propõe suas máximas conversacionais, enquanto Ducrot fala de leis do
discurso. Resumidamente falando, trata-se de teorias que estudam os modos pelos quais
os falantes observam certos protocolos de comunicação, demonstrando o que
Maingueneau chama de competência pragmática ou retórica (MAINGUENEAU, 1996,
p. 115).
Não entraremos em detalhes acerca de tais protocolos, ou regras, que de, uma
certa maneira, podem ser resumidos pelo chamado metaprincípio da cooperação,
segundo o qual o falante deve contribuir para a interação verbal buscando dar
informações precisas e relevantes de acordo com o que solicita seu interlocutor.
É importante ressaltar que esses protocolos se definem a partir de uma situação
comunicativa solidária, na qual locutor e interlocutor interagem harmoniosamente. Seu
real entendimento deve se processar, assim, de acordo com o gênero do discurso em que
se desenvolve o ato de linguagem. Cada nero promove contratos de comunicação
próprios, com diferentes protocolos. A quebra de um dos protocolos relativos a
comunicações corriqueiras pode justamente definir um gênero como é o caso das
piadas, em que uma ruptura com as expectativas que haveria num diálogo
harmonioso normal. Retomaremos as noções de gênero e contrato ao longo do capítulo
4.
A competência pragmática se situa muito além da competência lingüística
entendida aqui no sentido clássico que a gramática gerativa lhe dá, relacionado às regras
de boa formação sintática. Associada inevitavelmente a elementos situacionais, a
competência pragmática se comporta como um processo de busca às intenções do
sujeito no discurso.
80
É esse tipo de competência que nos faz deduzir sentidos implícitos em lugar de um
entendimento referencial, que seria descabido em algumas circunstâncias, conforme
mostramos com o exemplo de “A porta está aberta”, no item 3.2, sobre o qual
formulamos várias interpretações possíveis. Em casos assim, estamos diante do que os
pragmáticos, desde Austin, chamam de atos de fala indiretos. Essas interpretações se
afastam, pois, do chamado sentido literal, também conhecido como conteúdo
proposicional do enunciado. Os atos de fala indiretos se relacionam, ao contrário, aos
valores ilocutórios que os enunciados podem veicular isto é, os diferentes modos de
direcionar o discurso, seja uma ordem, um pedido, uma censura (KERBRAT-
ORECCHIONI, 2005, p. 28).
Como esse valor ilocutório assume um papel da maior importância para o
entendimento do enunciado em tais casos, o sentido literal fica em segundo plano ou
talvez até mesmo desapareça em algumas situações, embora não tenhamos como nos
aprofundar nessa questão. Nessas condições, achamos cabível tratar tais enunciados
como um tipo de conotação, que chamamos de “inferencial” por se estruturar sobre
deduções feitas a partir de hipóteses sobre as intenções do locutor.
Assim sendo, quando o interlocutor não encontra um sentido pertinente no nível
explícito, ele deve procurar sentidos outros, de natureza implícita, sob pena de a
comunicação não lograr êxito. Apreciemos o seguinte exemplo:
(59) – O senhor tem horas, por favor?
– Sim.
Uma situação como a descrita em (59) soa estranha ou até risível. O interlocutor
entendeu, ou fingiu entender, apenas o sentido referencial da pergunta que lhe foi
dirigida, e que, sob esse ponto de vista, poderia ser respondida sinteticamente com
“sim” ou “não”. Porém, o que o outro deseja é fazer um pedido, sob a forma de
pergunta, que seria correspondente a “O senhor tem horas? Então, em caso positivo, me
informe que horas são”. Tal situação se mostra ainda mais extravagante se o interpelado
estiver com um relógio à mostra, o que torna o conteúdo denotativo dessa pergunta
praticamente inútil.
O exemplo acima se mostra facilmente compreensível por remeter a fórmulas
linguageiras ritualizadas dentro de circunstâncias previsíveis, representando os
chamados atos indiretos convencionais. Estes se tornaram praticamente lexicalizados,
a tal ponto que, mesmo sem um contexto mais específico, remeteriam a uma resposta
81
em que se transmitisse um dado horário. A simples escuta ou leitura dessa expressão
nos faz entendê-la automaticamente como um pedido, não como uma interrogação.
Nem todos os atos de fala indiretos têm essa particularidade. Os casos que vimos,
baseados no enunciado “A porta está aberta”, admitem várias interpretações, todas
dependendo fortemente de uma situação específica. Trata-se, aí, dos atos de linguagem
não convencionais. (KERBRAT-ORECCHIONI, 2005, p. 28). Não seria absurdo falar,
portanto, de graus de transparência na compreensão de enunciados desse tipo: haveria
transparência maior para os atos indiretos convencionais, e menos para os não
convencionais.
Dentro dessa perspectiva, poderíamos encontrar graus de transparência mínima,
relativos a certos enunciados que seriam compreendidos por grupos restritos. Numa
oficina de eletrônica, por exemplo, um dos técnicos pode mobilizar um colega a fazer o
reparo só falando o seguinte:
(60) – Bios queimado!
“Bios” (Basic operating input / output system) é um chip eletrônico que armazena
um programa elementar para que o microcomputador funcione. Problemas no bios
comprometem o funcionamento do aparelho. Para um leigo, que não conhece esse
termo, a frase acima seria incompreensível tanto no nível referencial, quanto no nível
dos implícitos. Contudo, dentro de um contexto apropriado, seria possível ao
interlocutor, no caso um técnico em eletrônica, entender essa mensagem como um
pedido, que poderia ser explicitado pelo recurso de uma paráfrase serial:
(61) – Bios queimado; portanto, você deve trocá-lo!
Diferentemente da maioria dos exemplos citados no item anterior, as conotações
inferenciais, pela sua própria natureza, oferecem dificuldades para serem dicionarizadas.
Em primeiro lugar, porque se constroem sobre enunciados inteiros e não sobre unidades
lexicais mínimas, e, em segundo lugar, porque sua principal característica reside
justamente no fato de ter seu sentido completado por elementos que estão in absentia.
Tal processo de inventariação se mostra mais fácil com os atos indiretos convencionais.
É isso que costuma acontecer nos modernos cursos de língua estrangeira, em que os
alunos procuram se comunicar através de unidades frasais ligadas a situações
específicas, servindo-se de fórmulas para perguntar as horas, os preços, os endereços e
tantas outras informações de cunho prático.
82
Um fato interessante a notar no que concerne à conotação inferencial é que, como
o sentido denotativo pode ser levado com conta na interpretação, a antinomia entre
denotação e conotação nesses casos não se mostra completa. Fato similar acontece com
a conotação apreciativa, de que tratamos a seguir.
3.4.3 Conotação apreciativa
Conforme explicamos no item 2.7 e no item 3.2, um signo lingüístico pode manter
seu valor referencial e, ao mesmo tempo, expressar um certo julgamento de valor sobre
essa mesma referência. Tal condição demonstra o valor social e ideológico do signo, por
veicular apreciações que, na realidade, agregam valores coletivos. A esse respeito,
Mikhail Bakhtin comenta que não uma oposição radical entre individual e social,
que parte da premissa de que a individualidade só se define em relação ao outro:
Todo produto da ideologia leva consigo o selo da individualidade do seu ou dos
seus criadores, mas este próprio selo é tão social quanto as outras particularidades e
signos distintivos das manifestações ideológicas. Assim, todo signo, inclusive o
individual, é social. (BAKHTIN, 2004, p. 59)
É necessário, todavia, salientar que o termo “ideologia” possui acepções muito
bem delimitadas conforme a área em que é empregado, sobretudo na história e na
sociologia. Numa primeira fase da análise do discurso praticada na França, por volta dos
anos 70, tratou-se de um conceito-chave. Sem pretendermos ser tão rigorosos,
consideraremos, de maneira simples, “ideologia” como sendo um conjunto de valores
sociais que norteiam as crenças e mesmo o comportamento humano. Acompanhamos
bem de perto o pensamento de Carlos Vogt, que a entende como
designando tanto os sistemas de idéias-representações sociais (ideologias no
sentido restrito) como os sistemas de atitudes e comportamentos sociais (os
costumes) e não necessariamente como sinônimo de “má consciência” ou “mentira
piedosa” [...] (VOGT, 1989, p. 130).
Dentro dessa perspectiva, afastamo-nos de uma certa concepção formulada por
Karl Marx, para quem a ideologia era uma espécie de ilusão ou mascaramento da
realidade social (BRANDÃO, 2002, p. 21).
As conotações apreciativas que também poderiam ser chamadas de conotações
ideológicas se referem a certos posicionamentos que o sujeito apresenta em relação
aos enunciados que produz. Palavras como “intelectual”, sobre a qual comentamos
(em 3.2), podem se apresentar no discurso com um valor neutro, positivo ou negativo. A
conotação apreciativa pode ser produzida pela filiação discursiva na qual se insere o
83
locutor ou, principalmente, pela situação específica do momento em que se produz o
enunciado.
A análise do discurso na França, de um modo geral, procura trabalhar com textos
institucionalmente marcados. Em alguns deles, caso dos discursos políticos e
religiosos, é mais fácil averiguar uma dada posição ideológica. Dentro de um programa
de um partido de esquerda, um termo como “privatização” é visto como negativo,
sendo, ao contrário, estimado como positivo dentro de uma linha partidária mais à
direita.
O interessante nesse caso é que o referente é o mesmo, embora suas conotações se
mostrem profundamente distanciadas. Isso só vem comprovar que um sentido
denotativo pode, dependendo do contexto social em que for produzido, gerar os mais
diversos tipos de conotação – como salientamos em 2.8.
No entanto, conforme frisamos anteriormente, o conceito de ideologia que
usaremos vai além do posicionamento político. Ele tem a ver com toda uma sorte de
imaginários sociais e formas de comportamento que atravessam as mais variadas
práticas discursivas, aos quais retornaremos na seção 5.1. Isso quer dizer que a
compreensão exata de uma conotação pode ser dada de acordo com o texto de que
faz parte, e não apenas por causa de um saber prévio.
Pensemos na palavra “água”, em seu sentido referencial. Que conotações ela
poderia assumir? Certamente pensaríamos na importância dela para a vida humana,
acentuada nas recentes discussões acerca de sua escassez, o que nos faria imaginar de
pronto uma conotação positiva, como na frase abaixo:
(62) – A água é a única bebida que mata a sede!
Entretanto, esse valor conotativo muda acentuadamente numa frase como a que se
segue:
(63) – Esse refrigerante parece água, não tem sabor algum!
A palavra “água”, do mesmo modo que no enunciado anterior, está no seu sentido
denotativo, porém produzindo uma conotação negativa. Se em (60) a água é exaltada
por sua característica de matar efetivamente a sede, em (63) ela é apreciada
negativamente, em função de uma outra propriedade: a insipidez.
igualmente casos em que palavras diferentes designam um mesmo referente.
Poderíamos pensar então que se trata de sinônimos perfeitos, o que seria aparentemente
84
lógico. Entretanto, a carga conotativa expressa em uma delas, seja de valor positivo,
seja de valor negativo, impede quase sempre um intercâmbio no texto:
(64) Paulo é alcoólatra.
(65) Paulo é cachaceiro.
Ambos os temos, “alcoólatra” e cachaceiro” podem ter o mesmo referente, mas
seu sentido, ou como preferem alguns, seu efeito de sentido, é bastante diferente. Em
(64) busca-se neutralidade e objetividade; em (65) tenta-se difamar a pessoa em
questão, com um termo pejorativo e de natureza mais subjetiva. É interessante
observar, ainda, que mesmo o substantivo “alcoólatra”, em geral neutro, pode também
se revestir de caráter negativo, conforme for a situação discursiva:
(66) – O Paulo é uma boa pessoa?
– Ele é alcoólatra.
Conforme a circunstância, a resposta do interlocutor sobre a índole de Paulo tende
a ser vista como negativa, apesar do emprego de um vocábulo aparentemente neutro,
mas que encerra uma visão de mundo segundo a qual alcoólatras não costumam ter um
bom caráter. Logo, pode-se dizer que o signo, além do valor lingüístico que assume
dentro de um dado sistema (conforme comentamos em 2.1), possui também um valor
sociodiscursivo, uma vez que pode expressar julgamentos de valor sobre o mundo que
designa.
É importante observar que não são exatamente saberes pré-discursivos que
apontam para o valor de uma conotação: este é dado fundamentalmente dentro do texto.
O diálogo mostrado acima reitera, portanto, o que falamos sobre o vocábulo “água”.
Logo, embora seja muito importante um saber prévio acerca das conduções de
produção do discurso, o sentido deve ser apreendido em sua totalidade dentro da
realidade textual. É importante que disciplinas como a psicanálise, a história, a
psicologia e a sociologia sempre sirvam de esteio à análise do discurso; contudo,
achamos que cabe a uma abordagem lingüística a tarefa de entender de que modo as
formas lingüísticas se revestem de sentido através da atividade social que é o discurso e
de que modo as atividades sociais ganham sentido justamente através das formas
lingüísticas. Em vez de entendermos a língua como um reflexo do social, partimos do
85
pressuposto de que o social – ainda que consideremos tal termo extremamente vago – se
estrutura a partir do discurso e em sua materialização lingüística que é o texto.
Nessa perspectiva, todo exercício de interpretação textual deve mobilizar a
procura desses tipos de conotações que desenvolvemos acima. São elas que darão conta
não de aspectos estilísticos do texto, mas, sobretudo, de suas finalidades dentro de
uma rede de discursos circulando no meio social.
É importante ressaltar que os tipos de conotação que propomos não devem ser
vistos como níveis que se estruturam em unidades hierarquizadas. Também não devem
ser encarados como processos estanques, que se excluiriam mutuamente. Trata-se na
verdade de processos de semiotização de formas lingüísticas que comumente se
entrecruzam.
Analisemos o exemplo abaixo, com a palava “rato”, que utilizamos em outra
oportunidade:
(67) – Você acha que devo comprar o carro do Tonho?
– Ele é um rato.
No diálogo acima, “rato” está claramente no sentido conotativo, na medida em que
há uma associação do comportamento de uma pessoa com o de um rato. Ora, tal
associação, de fundo metafórico, se motiva, por sua vez, por um fator ideológico: em
nossa cultura, é comum qualificar o rato como um animal sujo e traiçoeiro. Além disso,
nota-se que o sentido da resposta se torna completo nessa situação comunicativa se
forem levados em conta seus implícitos. De fato, entendida de modo explícito, não
sentido para a resposta dada. Porém, se o interpelador inferir da resposta obtida uma
paráfrase serial tal qual “por isso você não deve comprar o carro dele”, a comunicação
terá alcançado sucesso.
A título de esclarecimento, devemos tecer algumas palavras sobre noção de
implícito, isto é, daquilo que não se encontra na cadeia significante. Para isso, temos em
vista as lições de Oswald Ducrot, mestre no assunto.
Os implícitos são de duas naturezas: pressupostos e subentendidos. Embora os
pressupostos não estejam na cadeia significante, sua compreensão no discurso é
inevitável, sendo semanticamente compartilhados entre locutor e interlocutor. Os
pressupostos fariam, assim, parte da própria estrutura lingüística de certos enunciados.
Os subentendidos, por outro lado, não fazem parte da estrutura lingüística. Eles
são especulações, empreendidas pelo interlocutor durante o ato discursivo, tendo a ver,
86
assim, com seu conhecimento de mundo e consciência da situação comunicativa
imediata. Ilustraremos essa diferença da seguinte forma:
(68) Juca parou de beber.
Obviamente, pelo próprio sentido do verbo “parar”, pressupõe-se que Juca bebia
antes. Esse é, portanto, o seu pressuposto, o qual, aliás, não pode ser negado – fato que é
de enorme importância na prática argumentativa.
Os subentendidos, por sua vez, são acarretados pelo conhecimento da situação
discursiva. Quem conhece Juca poderia subentender daí as razões pelas quais ele parou
de beber: o preço elevado da bebida; uma briga com a esposa; uma orientação médica.
Assim, uma outra diferença entre pressupostos e subentendidos é que somente os
segundos poderiam figurar no enunciado, sob a forma de paráfrases seriais, sem causar
estranheza:
(69) * Juca parou de beber, porque bebia antes.
(70) Juca parou de beber, porque a bebida está cara.
De fato, enquanto em (69) temos um enunciado redundante e anômalo, em (70)
encontramos uma frase mais aceitável, na qual o subentendido aparece numa forma
explícita. Desse modo, concluímos que os pressupostos podem ser estudados nos
limites do sistema lingüístico como é o caso da semântica argumentativa formulada
por Ducrot –, enquanto aos subentendidos cabe uma abordagem discursiva, que os
considere dentro de uma relação necessária entre formas lingüísticas e comportamento
social.
No estudo das conotações que fizemos, certamente são os subentendidos que mais
nos chamaram a atenção. Eles participam ativamente não das conotações
inferenciais, mas também das conotações ideológicas, na medida em que sempre
tendemos a fazer especulações sobre a intenção e o posicionamento de nosso
interlocutor no discurso.
Deve-se frisar, assim, que a manipulação dos modelos conotativos que propomos
sinaliza desde efeitos estilísticos a posicionamentos ideológicos. Nessas circunstâncias,
diferentes tipos de conotação concorrem para construir uma dada imagem do sujeito do
discurso – o ethos.
Assumimos então que o ethos constitui um efeito conotativo global, constituindo
uma identidade discursiva. Poderíamos, por conseguinte, falar de um quarto tipo de
87
conotação, a identitária, da qual trataremos mais à frente no tópico 4.1.2, quando nos
aprofundaremos nas relações entre enunciação, sentido e discurso. Apresentamos, a
seguir, algumas de suas características, chamando a atenção para o fato de que esse
modelo reúne todos os demais.
3.4.4 Conotação identitária e texto
Observemos o seguinte texto, retirado de uma das revistas que compõem nosso
corpus:
Pense magro e faça as pazes com a balança
Você deve ter ouvido falar que para emagrecer não basta fazer dieta e
exercícios. E é verdade. Antes de tudo, precisamos entender o que nos faz comer sem
vontade e sem controle, comprometendo o regime. O primeiro passo desse aprendizado
é adotar um estilo de vida com novos valores (CC222, p.138)
No trecho acima, temos pelo menos duas conotações associativas, de fundo
metonímico (“pense magro” e “faça as pazes com a balança”). A segunda expressão é
disseminada discursivamente, enquanto a primeira traz um matiz um pouco mais
criativo, e por isso parece menos transparente a princípio: “pensar magro” indica um
esforço mental que devemos empreender a fim de adotarmos uma conduta que nos leve
ao emagrecimento. Por esse motivo, as palavras “magro” e “emagrecer” revestem-se de
uma conotação apreciativa positiva, já que sinalizam uma meta que, atingida, deve levar
o sujeito a uma situação de felicidade.
Uma leitura meramente denotativa diria que esse texto é meramente informativo.
Entretanto, outras interpretações podem ser feitas. Levando em conta o que falamos
acerca das conotações inferenciais, podemos demonstrar que um enunciado
aparentemente referencial como “O primeiro passo desse aprendizado é adotar um estilo
de vida com novos valores” atua, na verdade, como um ato de fala indireto: estaríamos
diante de uma exortação conclamando o leitor a dar esse primeiro passo.
O que nos autoriza essa última leitura? Certamente, ela seria apenas uma
interpretação possível, se considerássemos exclusivamente a cadeia verbal acima.
Porém, sabendo que ela faz parte de um texto mais amplo versando sobre a motivação
em prosseguir os regimes, que foi escrita por um psicólogo (Marco Antonio de
Tommaso) e que faz parte de uma revista em que sobejam procedimentos a serem
88
seguidos, a inferência que fazemos deste enunciado como um ato de fala se mostra a
mais acertada.
Além disso, é inegável que o estilo redacional e o gênero, além de outros fatores
que discutiremos à frente, acabam gerando uma imagem discursiva do responsável por
esse texto. No caso, trata-se de uma imagem, um ethos, que mostra credibilidade e
motivação, ao mesmo tempo. Levantamos, assim, as características de uma conotação
identitária.
Chegar a essas características passa, portanto, por um percurso analítico, que vai
de um nível mais lingüístico até um nível mais discursivo. Logo, para as estudamos de
modo apurado, devemos nos centrar numa teoria que conta do modo pelo qual as
formas lingüísticas se prestam a assumir determinadas funções discursivas.
Por essa razão, nossa escolha operacional para efetuar esta pesquisa recai sobre a
análise do discurso, termo que, contudo, deve ser convenientemente definido, assim
como outros que lhe são correlatos: enunciação, sujeito, texto, gênero e contrato.
89
4 ANÁLISE DO DISCURSO E DEFINIÇÕES TERMINOLÓGICAS
Na atual conjuntura dos estudos lingüísticos, qualquer abordagem teórica que se
intitule “análise do discurso” deve, primeiramente, esclarecer uma série de conceitos
operacionais, entre os quais – obviamente – o de “discurso”.
No estudo que propomos, esclareceremos, além disso, noções fulcrais como as de
“texto”, “contrato” e “gênero”, às quais a todo instante recorreremos, não sem antes nos
situar dentro do universo multifacetado da análise do discurso doravante chamada
apenas de AD.
4.1 Análise do discurso ou análises do discurso?
Atualmente, qualificar um trabalho como pertencendo à AD revela-se mais uma
definição negativa do que positiva: saberemos de antemão, apenas, que o artigo, tese ou
pesquisa em pauta não se atém ao âmbito da lingüística imanente (como o gerativismo,
por exemplo).
Pouco se saberá, contudo, acerca de sua verdadeira posição teórica, de sua
metodologia e mesmo sobre seu real objeto de estudo. A rubrica da AD comporta hoje
em dia linhas de estudos fortemente diversificadas, que se ocupam tanto da oralidade
quanto da escrita: trabalhos sobre coesão e coerência textuais; estudos argumentativos;
análises de gêneros e contratos de comunicação; investigações ideológicas no discurso;
pesquisas sobre atos de fala e embreantes. A esse respeito, Charaudeau declara que
existem três grandes problemáticas de estudos discursivos, que muitas vezes se mesclam
em graus variados (CHARAUDEAU, 1999, p. 32-38). Elas seriam basicamente de
ordem cognitiva (certas correntes de lingüística textual, por exemplo), comunicativa
(estudo dos gêneros entre outros) e representacional (as abordagens que examinam
fatores ideológicos).
Com todas essas ramificações, é necessário, antes de mais nada, rechaçar algumas
crenças correntes sobre o que seria a AD. Procurar significados “secretosno texto,
estudando-o sob um ponto de vista simbólico, através de indicações implícitas e
informações do contexto em que foi escrito, não implica necessariamente uma prática
de análise do discurso, antes aproximando-se da hermenêutica ou da filologia. Um
analista do discurso que se debruçasse sobre a Bíblia, por exemplo, não estaria
interessado em descobrir a interpretação “real” das Escrituras, mas em apreciar os
90
efeitos que essas interpretações, calcadas em diferentes vertentes religiosas,
provocariam na sociedade.
A AD também não se limita a procurar elementos ideológicos presentes nos
textos. Essa tarefa, pura e simplesmente, não precisa de um arcabouço teórico
discursivo, senão de conhecimentos de história ou sociologia. O que algumas correntes
de AD empreendem é a apreciação das formas lingüísticas vinculadas necessariamente a
uma prática social, de onde se produziriam efeitos ideológicos.
Por fim, a AD não deveria ser confundida com a lingüística textual. Empregamos
o futuro do pretérito aqui para salientar uma diferença conceitual que hoje em dia
encontra-se muito tênue. A AD se baseia essencialmente numa visão social da língua,
enquanto a lingüística textual cada vez mais se volta para problemáticas cognitivas o
que é um texto e como este se constrói, seja na produção, seja na interpretação. Na
prática, contudo, os analistas do discurso se valem de muitas noções da lingüística
textual, importantíssimas para estudar os mecanismos lingüístico-discursivos numa
esfera intersubjetiva.
Houve uma época, no final dos anos 60 e em boa parte dos 70, em que o rótulo
“análise do discurso” possuía ainda uma certa rigidez conceitual: falar de AD implicava
então evocar a chamada “Escola Francesa de Análise do Discurso”, grupo reunido em
torno das idéias de Michel Pêcheux, as quais ambicionavam uma articulação teórica
entre lingüística estruturalista, psicanálise lacaniana e materialismo histórico, este
último fundamentado principalmente sobre as idéias de Louis Althusser.
Nessa fase, a AD preocupava-se com a questão ideológica, estudando
sobremaneira a relação de palavras e sintagmas com as chamadas “formações
discursivas”, termo emprestado às teorias de Michel Foucault e adaptado por Pêcheux,
referente a agrupamentos sociodiscursivos que determinam o que neles pode ou não ser
dito, a partir de uma dada circunstância (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004,
p. 241). Uma palavra tem, portanto, seu sentido estabelecido conforme pertença a esta
ou àquela formação discursiva. Nessas formações, o sujeito se submete a toda uma
sorte de restrições e regras, de modo que se torna, paradoxalmente, “assujeitado”.
Nos anos 80, a especificidade do termo AD se estilhaça, ainda que alguns
pesquisadores se mantenham fiéis às idéias de Pêcheux; o termo passa a recobrir então
teorias das mais diversas. Por esses e outros motivos, Maingueneau comenta, não sem
controvérsia, que o modelo teórico de cheux teve suas bases "pulverizadas" no início
91
dessa década, quando as novas correntes de análise do discurso surgiram.
(MAINGUENEAU, 2000. p.70).
O autor ressalta, entretanto, que ainda é possível falar de uma AD francesa, menos
como uma escola formalizada do que como um feixe de tendências gerais, entre as quais
se situariam estas: interesse por textos inscritos dentro de instituições sociais específicas
que determinam sua constituição; fundamentação lingüística associada ainda ao
estruturalismo; e importância do interdiscurso (ou seja, um discurso específico é visto
em consonância com outros). Tais características se contrapõem, até certo ponto, à
chamada AD de tradição anglo-saxônica esta preocupada em geral com situações
cotidianas e textos orais, sendo associada principalmente a uma visão interacional da
linguagem (MAINGUENAU, 1997, p. 13-16).
As novidades dessa segunda geração de AD francesa parecem residir na
introdução de conceitos oriundos da pragmática, que concebe a linguagem como ação, e
da teoria da enunciação, que associa o dito ao próprio ato de dizer. Se, anteriormente,
os enunciados eram estudados sem levar em conta os contextos específicos de sua
enunciação, com essas novas perspectivas a AD passa a integrar de modo indissolúvel
enunciação e enunciado. Além disso, os objetos de estudo se modificam: enquanto na
primeira fase havia uma predileção pelo discurso político, na segunda o foco se
ampliou, pois a questão dos gêneros do discurso passou a ter maior relevância. As
regularidades e restrições dos gêneros acabaram, de certa forma, tomando o lugar de
destaque dado anteriormente ao conceito de formação discursiva.
Embora tenham deixado um pouco de lado essa noção, talvez por parecer
demasiado redutora, e evitem tratar diretamente do processo de assujeitamento, muitos
especialistas inscritos nessa AD renovada tampouco conferem ao sujeito um princípio
de intencionalidade, como o fazem a retórica e a pragmática. Para estas, tendia-se a
acreditar num circuito de comunicação formado por sujeitos unos e transparentes, que
estabeleceriam mensagens inequívocas a partir de um repertório de estratégias
conscientes.
Para certas correntes da AD, contudo, “não é possível definir nenhuma
exterioridade entre os sujeitos e seus discursos” (MAINGUENEAU, 1997, p.33). Desse
modo, o sujeito não é um porta-voz, mas antes parte constitutiva do próprio discurso
que enuncia. Não se pode esquecer, afinal, que a AD trabalha com textos fortemente
regidos por coerções institucionais.
92
Seguindo uma linha similar à dessa AD renovada, porém ainda mais marcada pela
pragmática, temos a chamada semiolingüística de Patrick Charaudeau, das quais já
comentamos alguns postulados teóricos no tópico 3.2. Seu interesse pelos aspectos
comunicacionais e pragmáticos é de tal ordem evidente, que a fazem escapar da
dicotomia exposta por Maingueneau: a semiolingüística, no atual estado de trabalhos e
seguindo uma tradição francesa, realmente dá preferência aos textos escritos e
institucionalmente marcados com grande interesse pelos gêneros midiáticos –, mas
sua visão intersubjetiva pode facilmente levar a uma abordagem interacional. Nessas
circunstâncias, é possível que no futuro a semiolingüística volte suas atenções para a
modalidade oral da língua, estudando a construção do texto em situações de diálogo.
O marco fundamental da semiolingüística, como mostramos, foi o livro
Language et discours, de 1983. Contrariando a tradição da AD, de acordo com a
semiolingüística pode-se falar de uma intenção relacionada ao sujeito, embora isso de
modo algum signifique que ele seja totalmente livre em sua atividade linguageira. O
sujeito continua a ser sobredeterminado por diversas condições, tais como sua bagagem
cultural, os imaginários sociais que o atravessam, a situação imediata de comunicação e,
naturalmente, por sua própria língua. Entretanto, sobra-lhe um certo espaço de
manipulação, uma margem de manobras, nas quais sua individualidade aflora, na
medida em que se torna possível escolher determinadas estratégias em lugar de outras.
É justamente esse traço de intenção, desprezado pelas correntes estruturalistas e
pela AD tradicional, que elegemos como fator preponderante para nossa adesão teórica
à semiolingüística. É necessário, contudo, precisar qual é a natureza desse sujeito,
intencional, dentro da prática discursiva.
4.1.1 Sujeito e discurso na perspectiva semiolingüística
O sujeito de que trata a semiolingüística possui uma dupla face: ele é a um
tempo extradiscursivo e discursivo.
No âmbito extradiscursivo, ele é tomado por uma entidade que se relaciona com o
social sem deixar de lado seu comportamento psicológico sendo, por isso mesmo,
considerado um ser “psicossocial”.
Aproximando-se de algumas que figuram nas obras de Pêcheux e Ducrot, Patrick
Charaudeau concebe esse sujeito psicossocial como fonte de virtuais imagens
discursivas de si mesmo, produzidas em contextos específicos.
93
Desse modo, o sujeito psicossocial se apresenta como se fosse um verdadeiro ator,
cujos vários personagens encarnados seriam suas imagens discursivas. É por isso que
Charaudeau considera o ato de linguagem como uma mise en scène, que pode ser
visualizada no circuito abaixo:
Fazer (mise en scène linguageira)
Relação contratual
Urge que sejam feitas algumas observações sobre a natureza deste circuito e de
seus componentes:
a) Há, na realidade, dois circuitos que se inter-relacionam: um chamado circuito
do Fazer, que é de ordem externa à produção discursiva, e outro, o do Dizer, que é a
própria realização discursiva.
b) Cada um desses circuitos engloba duas espécies diferentes de sujeito. O circuito
do Fazer engloba os sujeitos ditos parceiros (partenaires), seres de natureza
psicossocial, enquanto no circuito do Dizer encontramos os sujeitos protagonistas, seres
eminentemente discursivos.
c) O sujeito psicossocial não pode ser encarado exatamente como um indivíduo de
carne e osso. Não se trata do sujeito empírico, isto é, daquele que, do ponto de vista
físico-fisiológico, é responsável pela produção de sons vocais ou de signos escritos;
trata-se, antes, de uma certa identidade que se fundamenta através de estatutos diversos
(idade, sexo, profissão, prestígio social, conhecimentos em áreas específicas, condição
econômica, relações familares). Logo, esse sujeito psicossocial não é uma entidade
estável, que seus estatutos mudam de acordo com o contexto: um advogado tem um
certo estatuto no tribunal e outro num bar com os amigos. Esses sujeitos são chamados
de Eu comunicante (EUc) e Tu interpretante (TUi) ou apenas sujeito comunicante e
sujeito interpretante; como vimos, possuem existência extradiscursiva. Poderiam servir
Dizer (mise en scène discursiva)
EUc TUi
EUe TUd
94
também de objeto de estudo para a sociologia ou para a psicologia social – mas não para
uma abordagem psicológica individual. Tal conceituação se afasta, pois, da idéia
clássica do sujeito unificado, consciente e transparente.
d) Por sua vez, os sujeitos discursivos Eu enunciador (EUe) e Tu destinatário
(TUd) – são as imagens que os sujeitos comunicantes produzem de si e do outro.
Rompendo com as noções de emissor e receptor de Jakobson, que geravam mensagens
transparentes, nessa perspectiva, oriunda, aliás, da primeira fase da AD, o locutor deve
orientar seu discurso levando em conta a imagem que faz do outro. Do mesmo modo,
ele tenta construir uma imagem que seja aquela que ele julga que o outro uma espécie
de interlocutor ideal, o Tu destinatário espera dele. Essa imagem é chamada de Eu
enunciador. Vemos, assim, que o interlocutor se insere no discurso do locutor, o que
explica por que o tradicional termo “receptor” costuma dar lugar à noção de “co-
enunciador”. A configuração, no discurso, do sujeito enunciador implica
necessariamente, assim, a presença de um sujeito destinatário, numa relação
consubstancial. Ambos podem ser chamados também de sujeito enunciador e sujeito
destinatário. O sujeito enunciador remete ao conceito retórico de ethos, muito estudado
na atualidade pela AD.
e) Um fato importantíssimo a se comentar é que, do mesmo modo que o sujeito
comunicante constrói uma imagem de discurso no processo de produção (sujeito
enunciador), o sujeito interpretante, por sua vez, a reconstrói no processo de
interpretação. Logo, seria lícito falar que o sujeito enunciador na verdade se desdobra,
pois ele é criado e também recriado. Eventualmente, a imagem produzida pelo sujeito
comunicante coincide com aquela que o interlocutor faz dele, circunstância em que a
comunicação é coroada de êxito; contudo, muitas vezes a interpretação não coincide
com a produção, de onde resultam equívocos, hesitações, retificações ou discussões.
f) Dessa última circunstância resulta o motivo pelo qual a mensagem não deve ser
considerada uma instância transparente dentro da atividade linguageira. Ela é sujeita a
toda sorte de mal entendidos.
g) Essa posição é defendida por Charaudeau, que rejeita interpretações
apriorísticas. Um texto, portanto, não deve ser encarado apenas como um produto, mas
antes como um processo, que se inicia em sua produção e que terminará em suas
interpretações as quais, evidentemente, poderão ter graus mais ou menos agudos de
diferença.
95
h) Observe-se, também, a presença de uma seta de sentido duplo entre os circuitos
do Fazer e do Dizer, o que mostra uma relação de interdependência. As relações
psicossociais são mediadas pelo discurso e, ao mesmo tempo, o afetam em níveis
variados.
i) A sobredeterminação dos sujeitos em sua atividade discursiva se atesta, entre
outros fatores, pela relação contratual. Se a comunicação é uma mise en scène, é natural
que haja certos protocolos de atuação: não se conceberia que um ator se comportasse
numa tragédia do mesmo modo com que atua numa comédia. Voltaremos à importante
noção do contrato de comunicação mais à frente.
j) Deve-se atentar também que este circuito se constrói sob a perspectiva da
produção. Contudo, em situação de intercâmbio linguageiro imediato, os papéis dos
sujeitos, tanto psicossociais, quanto discursivos, se alternam.
Diante das observações acima expostas, verificamos que a semiolingüística se
aproxima de alguns preceitos da AD francesa tradicional, mas se distancia de outros.
Sintomaticamente, no seu livro Langage et discours, em raríssimos momentos
Charaudeau usa o termo “análise do discurso”: naquele momento, a vinculação do
sintagma “análise do discurso” ao grupo ligado às teorias de Pêcheux era ainda muito
forte. Em trabalhos posteriores, contudo, Charaudeau não se furta a se inscrever em tal
etiqueta, já que, então, a especificidade desta havia se perdido. Assim, muitas vezes
costumam-se qualificar, sem um maior receio de confusão, as teorias de Charaudeau
como “análise semiolingüística do discurso” ou, pura e simplesmente, como “análise
do discurso”.
Neste trabalho, falaremos globalmente de AD, mesmo que nossa orientação seja
em grande parte do tempo mais marcada pela semiolingüística. Como essa disciplina
se consagrou dentro dos estudos de discurso na França, só vemos razão para diferenciá-
la de correntes mais tradicionais da AD em casos particulares, nos quais realmente se
verifique uma discrepância teórica mais acentuada.
Para que nossos instrumentos teórico-metodológicos se tornem mais claros,
propomos (re)definir alguns conceitos de larga utilização nos estudos lingüísticos e
discursivos, à luz dos postulados da semiolingüística. Comecemos por debater as noções
de enunciação e sentido.
96
4.1.2 Enunciação, sentido e identidade discursiva: redefinições teóricas
Até o momento, não nos esquivamos de utilizar o termo “enunciação”, sem nos
preocupar em predefini-lo de modo preciso. Agindo assim, consideramos
implicitamente que a enunciação se caracterizaria por ser a instância em que se
produzem os enunciados. Desse modo, a enunciação está para o enunciado, assim como
o processo está para seu produto.
Oswald Ducrot, aliás, segue essa linha de raciocínio. Para esse autor, a
enunciação representa “o evento constituído pela aparição de um enunciado”. Segundo
Ducrot, ainda, “a realização de um enunciado é efetivamente um momento histórico”,
na medida em que se trata de um processo efetuado durante o exato momento em que se
fala, não tendo existência nem antes, nem depois dele (DUCROT, 1984, p. 178-179).
Logo, pode-se dizer que a enunciação é da ordem do acontecimento.
Uma posição importante assumida pelo lingüista é que a enunciação não deve ser
assimilada à idéia de ato. Este último pressupõe um autor, e essa noção, tanto para
Ducrot como para os estruturalistas é complexa, pois implica entrar na questão do
sujeito e de seus desdobramentos no discurso. Ademais, falar de autor sugere a noção de
ato, que se liga a um princípio de intencionalidade e a estratégias específicas. Por não
tratar do discurso sob uma ótica social, Ducrot se resume a aceitar simplesmente a
enunciação como o momento em que aparece um enunciado.
Ora, assim considerada, a enunciação traz, de qualquer modo, um problema para
seu estudo. Uma vez que ela representa um acontecimento, ou seja, o é possível
haver duas enunciações iguais, visto que elas necessariamente se sucedem, como é
possível analisá-la?
Muitos lingüistas se ocuparam em pesquisar as marcas que a enunciação deixa no
enunciado através dos dêiticos, por exemplo. Essa postura justifica a definição de
Benveniste, para quem a enunciação seria a colocação em funcionamento da língua por
um ato individual de utilização (BENVENISTE, 1989, p. 82).
Nesse sentido, Catherine Kerbrat-Orecchioni assinala duas tendências gerais para
o estudo da enunciação: uma chamada “restrita”, limitada à apreciação das diversas
marcas da presença do sujeito no enunciado; outra denominada “ampla”, em que se
estudam o papel dos sujeitos e os elementos situacionais canal utilizado,
circunstâncias materiais, contexto social (KERBRAT-ORECCHIONI, 1997, p. 39-41).
97
Basicamente, a grande diferença nesses estudos se define por aceitar a enunciação
do ponto de vista apenas da produção ou, ao contrário, por apreendê-la como o processo
total de comunicação, contemplando também a instância de recepção.
Parece evidente que a AD se interessaria pelo enfoque amplo da enunciação, já
que o discurso é um processo eminentemente dialógico. Vale lembrar, ainda, que o
conceito de enunciação se problematiza diante de certas circunstâncias. Até aqui, a
enunciação foi vista associada a trocas verbais imediatas. É difícil, contudo, estabelecer
ao certo o que é a enunciação nas trocas verbais não-imediatas, caso da maioria dos
textos escritos – salvo os chats e gêneros interacionais similares, de natureza, em
princípio, volátil. Na modalidade escrita, com efeito, o texto passa a significar
depois de sua produção. Uma concepção ampla da enunciação escaparia, assim, a essa
problemática.
Contudo, em termos de definição não veríamos diferença entre os conceitos de
enunciação, assim delineada, e de ato de linguagem, proposto por Charaudeau
(conforme mostrado em 4.1).
Sendo assim, em termos conceituais, preferimos encarar a enunciação pelo ângulo
da configuração de imagens subjetivas no ato de linguagem. Esse processo, numa esfera
discursiva, não pode equivaler à simples emissão de sons articulados ou à colocação
de signos escritos numa folha de papel. Partindo da idéia de que a enunciação
representa o elemento desencadeador do ato de linguagem, e levando em conta o caráter
performático que este último recebe na teoria de Charaudeau, concluímos que é na
enunciação que os sujeitos comunicante e interpretante se revestem de identidade
discursiva.
Destarte, preferimos conceituar a enunciação como o processo de transformação
do sujeito comunicante em sujeito enunciador e da consubstancial instalação da imagem
de um sujeito destinatário, através da produção de segmentos significantes (enunciados),
diretamente ancorados a uma situação e regidos por relações contratuais diversas. O
enunciador apresenta-se como presumível responsável pela enunciação sendo, ao
mesmo tempo, um efeito desta, instalando-se no discurso numa relação de
interdependência com o sujeito destinatário.
A presença do enunciador no enunciado pode ocorrer de modo ostensivo (foco
elocutivo, ou seja, presença de marcas gramaticais da primeira pessoa do discurso),
manifestar-se em função do outro (foco alocutivo, isto é, emprego da segundo pessoa)
98
ou aparentar um apagamento em face do conteúdo transmitido (foco delocutivo, ou seja,
utilização da terceira pessoa).
Uma vez assumindo uma visão intersubjetiva da enunciação, acreditamos que
devemos também reavaliar a noção de sentido, que, conforme vimos ao longo dos
capítulos 2 e 3, muitas vezes se confundia com a própria referência, de onde se
sedimentou um enfoque denotativo da língua. Além disso, o objeto dos estudos
semânticos tradicionais, no que diz respeito às dimensões significantes, eram mais
precisos. Numa concepção estruturalista, os morfemas eram tidos como a menor
unidade significativa, e o alcance máximo de análise era a frase.
Na AD, por outro lado, os limites máximos são indeterminados, pois o texto,
conforme discutiremos a seguir, ocupa dimensões variadas. Quanto aos limites
mínimos, os morfemas podem apenas eventualmente despertar a atenção do analista,
este prefere se concentrar nos enunciados ou nas unidades vocabulares (lexicais ou
gramaticais, como os conectivos), quando se na necessidade de atomizar os textos
examinados.
Não nos deteremos aqui em definir pormenorizadamente o que é um enunciado,
considerando-o apenas como um segmento significante mínimo nas situações reais de
comunicação ou seja, seria um correlato, no discurso, da frase gramatical, ponto de
vista que demonstramos ao falar das idéias de Ducrot em 2.6. O enunciado
representaria para a AD um elemento privilegiado no estudo dos sentidos, na medida em
que daria acesso ao estudo global da unidade mais ampla que o contém, ou seja, o texto.
Mas o que seria o sentido numa visão intersubjetiva, afinal?
que nessa abordagem a comunicação é vista como uma relação de influências
mútuas, consideramos o sentido como a orientação fornecida pelo sujeito enunciador ao
sujeito destinatário para o entendimento dos enunciados produzidos num certo contexto.
O sentido se apresenta, pois, necessariamente influenciado pela situação imediata de
comunicação bem como pelo gênero do texto e seu contrato de comunicação.
Mostra-se necessário, ainda, ressaltar que o sentido é determinante na condução do
fluxo discursivo, uma vez que os enunciados podem manter entre si uma relação de
solidariedade semântica. Tal enfoque remete também às teorias de Ducrot sobre a
significação lingüística.
Diferentemente do mestre francês, contudo, não nos preocupamos com a
dicotomia significação / sentido, já que o primeiro termo se refere a uma abordagem
estrutural da língua. Além disso, a palavra “significação” é polissêmica, sendo utilizada
99
por Charaudeau de maneira quase inversa à estabelecida por Ducrot remetendo a uma
articulação entre explícitos e implícitos, necessariamente contextual, conforme
demonstramos em 3.2.
Tampouco achamos cabível falar em sentido de língua e sentido de discurso, ponto
de vista que desenvolvemos no item 2.7. A nosso ver, não sentido, tal como o
definimos como processo intersubjetivo –, senão no discurso. Na língua, considerada
uma abstração formal, temos não o sentido, mas o potencial para o sentido. Este último
não se define em termos positivos, mas sim negativos: sabe-se, numa análise
radicalmente lingüística, que uma forma X não tem o mesmo sentido da forma Y mas
não é possível afirmar o que X significa realmente, pois seu significado se processa
contextualmente. A partir do momento em que se convenciona a uma forma tomada
isoladamente um significado qualquer, mesmo que seja o seu sentido referencial, já se
começa a sair das fronteiras do que é propriamente lingüístico para ingressar nas áreas
intersubjetivas do discurso. De fato, imaginar o sentido de uma palavra implica
necessariamente evocar suas situações de uso.
Assim sendo, à expressão “sentido de lingua”, designando fragmentos textuais
soltos, preferimos a denominação “sentidos virtuais”. A análise de um enunciado
destacado de um contexto costuma gerar, inevitavelmente, especulações sobre suas
possíveis situações de ocorrência.
Outro ponto importante é que, num enfoque que prime pelo contexto, a diferença
entre denotação e conotação se mostraria atenuada, embora pensemos ser ela ainda
pertinente como demonstramos em 3.3. Aliás, conforme assinalamos ao longo do
capítulo 3, não antinomia absoluta entre denotação e conotação, dependendo de
como se defina esta última.
Ao desenvolver a idéia da conotação apreciativa (em 3.4.3), verificamos que um
dado sentido referencial pode receber conotações de valor subjetivo, sejam negativas,
positivas ou neutras afinal, um enunciado pode mobilizar um conteúdo pretensamente
objetivo. Note-se que, ao se posicionar sobre um aspecto do mundo, o locutor acaba
passando uma imagem de si mesmo.
É claro que, ao examinarmos toda a sorte de intercâmbios linguageiros,
verificamos que nem sempre nos valemos do caráter referencial da língua isto é, não
temos intenção de comunicar a nosso interlocutor um dado da realidade extralingüística.
Em alguns casos, o locutor até se serve de referências exteriores à língua, mas com
claras motivações pragmáticas como vimos em 3.2 com o enunciado “A porta está
100
aberta”. Outras vezes, sequer parece haver referências, como no caso de certas fórmulas
fáticas (“Como vai?”), emotivas (“Minha nossa!”) ou conativas (“Faça isso!”).
Alguns teóricos ficariam inclinados a afirmar que a língua, nessas circunstâncias,
não se serviria de seu potencial de representação, assumindo um conteúdo
eminentemente pragmático. Cremos, contudo, que, mesmo nesses casos, a língua
continua com um certo traço de representação, ainda que não diretamente vinculado a
referências externas: ela é capaz de representar, respectivamente, a vontade do locutor
em parecer polido, um estado anímico ou uma relação de hierarquia. Em nossa ótica,
pois, “representação” não exclui nem o expressivo, nem o pragmático.
Ainda seguindo essa linha de pensamento, parece óbvio que o enunciado,
conquanto não necessariamente se refira ao mundo, pode carregar traços de uma
subjetividade, ou seja, de marcas do sujeito enunciador ou do sujeito destinatário se
uma ordem é dada a alguém, como mostramos acima, é porque se considera o sujeito
interpretante como competente para cumpri-la, ou porque se trata de um mero
subalterno hierárquico.
O sujeito enunciador, ao falar do mundo ou ao se relacionar com seu destinatário,
deixa inevitavelmente marcas de sua identidade no discurso, configurando o que
chamamos, na seção 3.4.4 de “conotação identitária”. Com essa proposta, explicitamos
uma diferença marcante entre as lingüísticas estruturalistas, incluindo tanto as
pesquisas sobre a enunciação quanto a semântica argumentativa de Ducrot, e as linhas
de AD. Nos estudos estruturalistas sobre a enunciação (casos de Jakobson e
Benveniste), o sujeito é uma marca eminentemente lingüística, tendo uma natureza
sintática (por participar dos processos de concordância), situacional (por associar-se aos
mecanismos de dêixis) e textual (por se relacionar a fenômenos como anáfora e co-
referência). Por outro lado, na AD, o sujeito representa uma instância de articulação
entre esses traços lingüísticos e o social. Disso resulta que, no estruturalismo, por mais
que haja um foco na enunciação, o sentido não depende daquele que fala, sendo no
máximo determinado por alguns aspectos contextuais. Já na AD, quem fala vincula-se a
uma dada instância psicossocial que não pode ser negligenciada no processo de
produção de sentido.
Assim sendo, a partir de um enunciado contextualizado torna-se possível, a nosso
ver, montar em nossa mente a imagem não só do enunciador como também do
destinatário. Acrescentamos que o ethos não se refere apenas a um projeto consciente:
101
passar uma imagem é um processo que independe da vontade do sujeito. A este cabe,
entretanto, lançar mão de estratégias a fim de modular essa imagem.
Charaudeau e muitos analistas do discurso nos mostram que saber como, por que e
para que se formula um enunciado são instâncias inseparáveis de sua compreensão num
nível semântico-gramatical. Ora, compreender tais instâncias implica reconhecer o
enunciador e especular sobre suas intenções no discurso. Não há, afinal, texto sem
fonte mesmo que não se conheçam suas condições originais de produção, pode-se
identificar, pelo menos, suas circunstâncias de apropriação. Mesmo uma frase solta,
utilizada por um professor num exercício de análise sintática, pressupõe uma fonte: um
profissional de ensino que deseja passar um dado conteúdo gramatical a seus alunos.
Conseqüentemente, mesmo um texto que prime por uma linguagem neutra, e,
portanto, estritamente referencial, produz certas imagens do enunciador: a de cientista
preocupado com a exatidão de suas observações, a de jornalista imparcial, a de redator
conciso que só se atém aos fatos.
Com isso, estabelecemos não um quarto tipo de conotação, como propomos
uma ruptura no enfoque tradicional dado à matéria: em vez de considerarmos a
conotação como derivação de um sentido denotativo básico, estimamos que todo
enunciado é essencialmente conotativo por sempre transmitir imagens subjetivas, de
modo que a denotação representa apenas um dos possíveis efeitos conotativos.
Poderíamos ainda, no caso em tela, falar de “conotação de referencialidade” para
designar a denotação, termo que seria absurdo, porquanto contraditório, dentro dos
quadros teóricos estruturalistas.
Uma decorrência muito importante desse raciocínio é que a conotação identitária
se encontraria além do léxico, cristalizando-se também nas camadas gramaticais.
Examinando os enunciados abaixo, vemos uma certa diferença no efeito de sentido
provocado pela duas formas gramaticais equivalentes:
(71) Eu vi ele no bar ontem.
(72) Eu o vi no bar ontem.
Num nível que leve em conta apenas a informação (ou seja, o sentido denotativo),
as frases (71) e (72) são similares. Porém, numa esfera discursiva, elas provocam efeitos
de sentido diferentes. A frase (71), embora seja plenamente gramatical no português do
Brasil, é condenada pela gramática normativa, sendo preterida em função de (72). O
uso de (72), portanto, tende a provocar um efeito de maior prestígio – embora, conforme
102
o caso, possa soar pedante. Admitimos não ser fácil delimitar as fronteiras entre o
estritamente gramatical, que faz parte da língua espontânea, e o estilístico, que se
relaciona às estratégias de que se serve o sujeito enunciador para provocar certos
efeitos, conforme a situação de discurso. Contudo, parece fora de dúvida que certos
empregos morfossintáticos raros na fala normal, como a mesóclise (“Vê-lo-ei no bar
amanhã”), se revelam indubitavelmente estilísticos, justificando-se pela busca de certos
efeitos, como o de elegância ou até o de humor – numa paródia, por exemplo.
Resta ainda comentar que, em nossa perspectiva, a expressão “efeito de sentido”
perderia um pouco de sua pertinência. Ela teria razão de ser numa abordagem
semântica predominantemente referencial (conforme debatemos no capítulo 3); porém,
partindo, como fazemos, do ponto de vista de que um enunciado é intersubjetivo e
conotativo, a noção de sentido pressupõe a de efeito. A esse respeito Charaudeau
prefere falar de “efeitos pretendidos” e “efeitos produzidos” (CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU, 2004, p. 180). Resumidamente falando, tradicionalmente, enquanto
o sentido se vincula à questão de referência, o efeito de sentido se refere aos sujeitos
discursivos, tendo a ver com suas possíveis reações simpatia, afronta, temor, respeito,
entre outras. O emprego dessa expressão doravante se justificará para fins de clareza,
quando se for necessário enfatizar uma relação entre sentido e sujeito, e não entre
sentido e referência.
Devemos discutir agora três outros conceitos perigosamente polissêmicos dentro
da AD e que são, de certa forma, fundamentais neste trabalho, já tendo sido
mencionados várias vezes: discurso, texto e gênero.
4.1.3 Texto, discurso e gênero
Atualmente, há um sem-número de definições para os termos “texto” e “discurso”.
Não discorreremos sobre cada uma delas, tarefa que seria demasiado longa, mas
achamos por bem rejeitar algumas noções mais corriqueiras.
Uma delas é a que concebe o discurso ou o texto como as unidades que se
encontram num nível logo acima da frase. Concebemos discurso, antes de mais nada,
como um processo de comunicação e de interação
6
, motivo pelo qual pode ser manifesto
6
Utilizamos “interação” aqui de modo bem amplo, remetendo às variadas modalidades discursivas, e não
apenas às conversações, em cujos estudos esse termo costuma figurar.
103
por unidades lingüísticas relativamente curtas, como uma simples palavra “Fogo!”,
durante um incêndio, por exemplo.
Na mesma perspectiva, é comum associar “texto” especificamente à língua escrita.
Desse modo, não entrariam em consideração aí nem língua oral, nem os demais códigos
semióticos. Charaudeau afirma, entretanto, que nem texto nem discurso se referem
exclusivamente às línguas naturais, embora estas mantenham com esses dois conceitos
uma relação especial (CHARAUDEAU, 1984, p.38).
Finalmente, aqueles que tomam os dois termos por sinônimos. Seguindo, no
entanto, as orientações de Charaudeau, achamos por bem diferenciá-los. No que se
refere a “discurso”, teríamos duas definições que, em realidade, se complementariam.
De um lado, discurso seria a própria encenação (mise en scène) do ato de
linguagem, o contato que se estabelece entre sujeito enunciador e sujeito destinatário no
circuito do Dizer, afetado por relação contratuais específicas. Sob esse ponto de vista, o
discurso se vincula às noções de estratégias, possuindo um caráter intencional, ainda
que sofrendo certas determinações.
De outro lado, discurso pode se referir a “um conjunto coerente de saberes
partilhados, construído na maior parte do tempo de modo inconsciente pelos indivíduos
de um grupo social” (CHARAUDEAU, 1984, p. 40). Nessa definição, o discurso é
visto como uma atividade essencialmente social, que leva em conta ainda os
imaginários sociais de uma certa comunidade. Assim, são válidas expressões como
“discurso fascista”, “discurso socialista”, “discurso liberal”, e outras, para designarem
um tipo de posicionamento social, dentro de um termo, por sua vez mais amplo, que
seria o “discurso político”. Nesse sentido, o discurso corresponderia não a um processo
pontual, mas a um conjunto diversificado de textos.
É interessante observar que, nessa última acepção, “discurso” se aproximaria do
conceito de “formação discursiva”, e os termos “imaginários sociais” ou “saberes
partilhados” corresponderiam, até certo ponto, a “ideologia”. Assim, Charaudeau
adapta certas posições mais tradicionais da AD para a sua própria teoria. Lendo essa
definição em consonância com seu artigo “Discurso e Discursos” (1989), acreditamos
poder vinculá-la à idéia de interdiscurso. Um discurso acaba sempre evocando ou sendo
constituído por outros, fato que, de certa forma, enfraquece a idéia tradicional de
assujeitamento: mais do que pertencer exclusivamente a uma formação discursiva, o
sujeito é, isto sim, atravessado por toda uma gama de discursos, até porque vive em
sociedade:
104
Ora, quanto mais uma sociedade multiplica as possibilidades de trocas sociais
(principalmente através da Escola elevação do nível de instrução –, e da
comunicação da mídia), mais os discursos se entrecruzam, se misturam, se
confundem, portanto, tanto mais o sujeito será dividido, pois ele próprio será o
lugar freqüentemente conflituoso, de diferentes discursos. (CHARAUDEAU, 1989,
p. 323-324).
As duas concepções de discurso que abordamos não se excluem. A mise em scène
discursiva (primeira acepção) é, como vimos, determinada em parte pela formação
discursiva em que se situa (segunda acepção). Assim, diante do que expusemos,
podemos resumir a noção de discurso tratando-o como o próprio mecanismo de
interação entre dois sujeitos dentro de um ato de linguagem, porém remetendo a toda
uma gama de outros discursos e imaginários sociais, sendo além disso sobredeterminado
por contratos comunicacionais específicos.
Explicada a noção de discurso que por nós será adotada, devemos fazer o mesmo
agora com o conceito de “texto”. Também inspirando-nos em Charaudeau,
reconhecemos a íntima relação entre discurso e texto, mas consideramos este como a
materialização daquele, por intermédio de códigos semióticos distintos, cujo mais usual
é o lingüístico. Assinalamos também que, embora sua produção gere marcas materiais
(significantes) inalteráveis, seu significado varia de acordo com a interpretação dada.
A interpretação dependerá, conforme vimos nos tópicos precedentes, da situação
em que se desenvolve o discurso e que é influenciada, até certo ponto, por relações
contratuais, ou contratos de comunicação.
É importante ressaltar que o termo “situação” diz respeito não às condições
físicas em que se processa a enunciação, mas também às variadas tipologias de discurso,
que geram contratos distintos. Dentro destas, Maingueneau diferencia cena englobante –
os grandes domínios sociodiscursivos (jurídico, midiático, religioso, administrativo,
didático, literário) – e cena genérica, isto é, os gêneros, que remetem às diversas
configurações formais e relações contratuais comuns a um conjunto determinado de
textos. Na verdade, mesmo a conversa mais descompromissada não deixa de
representar um gênero de discurso, regulado por relações contratuais. Definiríamos tais
relações como um somatório entre as restrições instituídas pelo gênero e as
circunstâncias específicas da mise en scéne discursiva (condições ambientais,
identidades dos sujeitos, tipo de veículo textual, etc).
Usada em várias disciplinas, a idéia de gênero transcende a lingüística e a teoria
literária, embora seja comumente associada a este último domínio. Isso explica por que
105
alguns rótulos – poesia, romance, conto, tragédia – são, por força da tradição, ainda hoje
válidos, conquanto possam se desdobrar em outros subgêneros ou ter algumas de suas
características alteradas com o passar do tempo.
Entretanto, mesmo no domínio literário, não é fácil definir os gêneros. A esse
respeito, Tzvetan Todorov propõe a distinção entre gêneros históricos e gêneros teóricos
(TODOROV, 1970, p. 18-19).
Os gêneros históricos seriam justamente aqueles instituídos no meio social e
reconhecidos pelo público, aos quais um certo número de obras reclamaria a filiação.
Se falamos em tragédia clássica ou em poesias líricas românticas, é porque sob essas
etiquetas veicularam-se, numa dada época, vários textos com características lingüístico-
discursivas similares, seguindo critérios particulares de agrupamento.
Ora, tais critérios, como comentamos, são arbitrários, o que não impede que
surjam novas configurações. É a partir de novas seleções de critérios que temos os
chamados gêneros teóricos, que se ligam à tradição literária em graus mais ou menos
discretos daí termos recortes como o da literatura fantástica, por exemplo, que é
definida de modo diferente segundo vários estudiosos.
Fora do âmbito da literatura, os gêneros se mostram como uma noção corriqueira,
associando-se a outros domínios discursivos (como o midiático, o religioso, o político) e
manifestando-se através dos mais variados recortes. Do mesmo modo que se pode falar
de “revistas de moda” como um nero midiático, também se pode propor uma
subdivisão, como um gênero associado a “seção de cartas dos leitores das revistas de
moda”, entre outras possíveis abordagens.
É em virtude dessa dispersão sociodiscursiva que os gêneros se tornaram um
importantíssimo objeto de estudo para a AD. Busca-se então associar o estudo de textos
à delimitação de agrupamentos discursivos de traços similares. Contudo, a mesma
arbitrariedade encontrada na formulação dos gêneros literários tradicionais também se
encontra nos demais domínios discursivos. Por mais natural que um gênero textual
pareça, ele nada mais é do que uma convenção.
A discussão sobre esse conceito se mostra complexa, começando por sua
qualificação: trata-se, na verdade, de gêneros de textos ou de gêneros do discurso? Não
vemos diferença muito significativa entre essas etiquetas, uma vez que estudamos o
texto em consonância com o discurso. Se preferimos o termo “gênero de discurso” é
por considerar o discurso como virtualidade: somos capazes de identificar um gênero,
uma tipologia e mesmo uma formação discursiva de textos que nunca lemos antes
106
devido a uma espécie de competência discursiva; do mesmo modo, podemos produzir
textos novos inscritos numa dada rede discursiva devido a tal competência. Usar
“gêneros de textos”, por outro lado, poderia indicar apenas um inventário de enunciados
já produzidos e esvaziar, assim, essa concepção de competência.
Visto como atividade discursiva, um gênero não pode se definir apenas por
semelhanças formais, mas também por estabelecer determinados protocolos de leitura e
interpretação, que constituem os chamados contratos de comunicação, de que trataremos
agora.
4.2 Contratos de comunicação e restrições
A noção de contrato se mostra fulcral dentro da teoria de Charaudeau. Em vários
textos o pesquisador a retoma, revisando-a continuamente e introduzindo nela algumas
sutis alterações.
Dentre as várias contribuições que deu ao assunto, reteremos principalmente as
idéias expostas no capítulo 2 de seu livro O discurso das mídias (2006), edição
ampliada e revista de seu Discours d’information médiatique, publicado em 1997.
Optamos por seguir essas orientações pelo fato de as acharmos mais concisas, embora
as idéias básicas sejam as mesmas desde a publicação do artigo “Une théorie des sujets
du langage”, publicado originalmente em 1984 e que também versa sobre o assunto.
No texto de 1984 e em outros, Charaudeau analisa o contrato de comunicação em
três níveis; em O discurso das mídias, sua abordagem se mostra mais sintética,
preferindo trabalhar com apenas dois níveis.
Os componentes do contrato de comunicação se referem, assim, a um nível em
que se situam os dados externos ao ato de linguagem efetivo (o circuito do Fazer), e a
outro nível em que figuram os dados internos (o circuito do Dizer). O esquema do ato
de linguagem segundo Charaudeau, apresentado em 4.1.1, ilustra bem essa proposta.
Comecemos a estudar os dados externos.
4.2.1 Dados externos do contrato de comunicação
No que diz respeito aos dados externos, estes se vinculariam a quatro tipos de
condições, de ordem psicossocial e situacional: identidade, finalidade, propósito e
dispositivo. Resumiremos as características de cada uma dessas condições.
107
A condição de identidade tem a ver com o status psicossocial do sujeito
comunicante, isto é, com os dados referentes a sua posição social, profissão, bagagem
cultural e comportamento, entre outros, como mencionamos em 4.1.1.
Outra condição, a finalidade se estrutura em torno de um objetivo estipulado no
âmbito sociodiscursivo (respondendo à pergunta “para que esse texto foi elaborado?”).
De fato, a comunicação, segundo o enfoque da AD, não é um processo gratuito, em que
se pode falar ao acaso; ao contrário, a fala é determinada por um princípio de
intencionalidade, que opera de acordo com o que Charaudeau chama de “visadas”: são
estas que determinam a expectativa do ato de linguagem do sujeito comunicante e,
conseqüentemente, da própria troca linguageira (CHARAUDEAU, 2004b, p. 23).
Há pelo menos duas tipologias de visadas formuladas por Charaudeau. Uma delas
encontra-se em sua obra sobre o discurso midiático (2006) e possui quatro
agrupamentos; a segunda consta de seu artigo “Visadas discursivas, gêneros situacionais
e construção textual” (2004b) e divide-se em seis itens.
No texto de 2006, Charaudeau sugere a seguinte divisão para as visadas:
prescrição (“fazer fazer”, ou seja querer que o outro aja de uma dada maneira, o que se
justifica em virtude de uma certa legitimação psicossocial); informativa (“fazer saber”,
isto é, fornecer um dado conhecimento a quem em tese o ignora); incitativa (“fazer
crer”, que consiste em levar o outro a acreditar na verdade do que é dito); e patêmica
(ou visada do páthos, caracterizada por buscar provocar um determinado estado
emocional no interlocutor) (CHARAUDEAU, 2006a, p. 69).
A outra proposta é um pouco mais detalhada. Existe uma coincidência de três
termos (prescritiva, incitativa e informativa) e o acréscimo de outros três (solicitação,
instrução e demonstração) (CHARAUDEAU, 2004, p.23-24). A solicitação se
relacionaria ao objetivo de “querer saber”; a instrução corresponderia a “fazer saber
fazer”; finalmente, a demonstração implica o estabelecimento de uma verdade diante da
apresentação de provas e de uma certa posição de autoridade.
A diferença entre as visadas de incitação e demonstração assim concebidas reside
no fato de que, na primeira, o sujeito não ocuparia uma posição de autoridade. Além
disso, nessa proposta, a visada de incitação parece englobar, pelo menos em parte, a
visada patêmica, que se serve tanto de recursos de persuasão (encarada aqui de um
ponto de vista racional), quanto de sedução (tomada por um processo emocional). A
nosso ver, entretanto, o objetivo de conferir emoção a um texto representa um efeito
pretendido, que poderia participar de diferentes visadas.
108
A esse inventário de seis visadas, acrescentaríamos um sétimo tipo: a visada
lúdica, que daria conta dos gêneros literários, entre outros. Lembramos, contudo, que as
visadas na maioria das situações não se configuram isoladamente nas práticas
linguageiras, mas combinam-se das mais variadas formas: com efeito, uma obra
literária, além de entreter, pode informar e até mesmo incitar o leitor a um dado
comportamento – caso das obras engajadas.
Pensamos, ainda, que a visada de informação poderia conter não somente a visada
de instrução, como também a da demonstração: tratar-se-ia de passar um dado
conhecimento a alguém, não entrando em pauta, aí, nem a condição do sujeito
comunicante, nem a natureza da informação (científica ou instrucional). Com isso,
proporíamos um quadro de visadas mais sintético e que daria conta dos mais diversos
gêneros discursivos: os de domínio midiático, didático, literário, acadêmico e político,
entre outros:
Sugestão para um quadro de visadas discursivas
Visadas Conteúdo
de prescrição Expressar uma ordem, legitimada por força de uma lei
institucionalmente válida (exemplos: regulamentos, leis)
de solicitação Expressar um pedido ou solicitação (exemplos: requerimentos)
de informação Transmitir um conhecimento qualquer (exemplos: reportagens,
aulas, manuais de instrução)
de incitação Persuadir, buscando a adesão do outro a um determinado ponto de
vista, instigando-o a uma ação (exemplos: publicidades, obras
doutrinárias)
de ludicidade Entreter (exemplos: textos literários ou lúdicos em geral, como
revistas de quadrinhos)
A terceira condição pertencente aos dados externos do contrato de comunicação é
a do propósito. Trata-se do domínio de saber que será tematizado no discurso. Segundo
Charaudeau, o propósito responderia à questão “do que vamos tratar?
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 69).
Finalmente, temos também a condição de dispositivo, que diz respeito às
circunstâncias físicas em que se processa o ato de linguagem. O dispositivo pode
109
assumir dimensões de grande importância na geração de sentidos, pois se refere à
materialização de espaços cênicos que, por si sós, são elementos significativos. Um
palanque com bandeiras e faixas num comício político, um outdoor publicitário e o
palco de uma apresentação teatral são exemplos patentes da condição de dispositivo.
Passemos agora a uma breve apreciação dos dados internos do contrato de
comunicação.
4.2.2 Dados internos do contrato de comunicação
No que concerne aos dados internos do contrato de comunicação, verificamos que
estes se agrupam em três espaços de comportamento: locução, relação e tematização
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 69).
No espaço de locução, o sujeito enunciador busca construir um efeito de
credibilidade, que torne justificável e válida sua fala. Não basta valer-se da
legitimidade psicossocial que possui enquanto sujeito comunicante; é preciso mostrar
um tipo de competência dentro do assunto desenvolvido no discurso nem que seja
reivindicando aspectos de sua condição de identidade (“Sabe com quem está falando?”;
“Eu sou formado pela universidade X”; “Eu falo em nome da instituição Z”). Nesse
sentido, não é suficiente que uma pessoa entre numa sala de aula dizendo-se professor,
mesmo que tenha sido legitimamente nomeada; ela deve mostrar-se devidamente
competente nas explicações a serem passadas para sua turma.
O espaço de relação é onde se estabelecem as diferentes formas de contato entre
os sujeitos, que podem tomar o caráter de aliança, provocação, indiferença, afeto e
exclusão, entre tantos outros.
Por fim, o espaço de tematização comporta a maneira pela qual o tema, presente
na condição externa de propósito, será conduzido. O sujeito enunciador deve, então,
posicionar-se diante do tema em pauta (aceitando-o, rejeitando-o, sugerindo alterações)
e escolher para tanto um modo de organização do discurso para desenvolvê-lo
(narrativo, descritivo ou argumentativo). Deve-se acrescentar que os modos de
organização podem ser combinados entre si e que Charaudeau também os chama de
“modos enoncivos”. Estes não devem ser confundidos com os modos enunciativos
(elocutivo, alocutivo e delocutivo), que se referem às diferentes manifestações do
sujeito na materialidade textual e os quais, por nosso turno, preferimos chamar de focos,
como assinalamos em 4.1.2 (CHARAUDEAU, 2004a, p. 27).
110
No que foi exposto acima, não fica claro, entretanto, em que espaço devem se
situar as restrições formais, de que Charaudeau fala no seu artigo de 2004 sobre as
visadas e os gêneros. Nesse artigo, elas representam uma categoria à parte.
Entendemos por restrições formais a escolha do código semiótico (língua oral, língua
escrita, ícones, mímica), as dimensões físicas dos enunciados e, no caso das línguas
naturais, o registro lingüístico (coloquial, intermediário, culto).
Parece não haver dúvidas de que tais restrições pertencem ao circuito interno do
ato de linguagem, de modo que proporíamos uma quarta classificação, que
chamaríamos de “espaço de semiologização”, aproveitando um termo já empregado
pelo próprio Charaudeau (CHARAUDEAU, 2004a, p. 27).
Note-se que, embora haja uma determinação do vel situacional sobre o
discursivo, não se pode falar de um paralelismo direto de item para item. É verdade que
a condição de propósito influencia decisivamente no espaço de tematização; porém este
sofre também coerções da condição de finalidade. Nesse aspecto, a condição de
finalidade assume, inclusive, um papel primordial nas determinações contratuais.
A fim de visualizar melhor os componentes do contrato de comunicação,
apresentamos o seguinte quadro, de nossa autoria, adaptando as idéias formuladas por
Charaudeau:
Componentes do contrato de comunicação
Dados Externos (nível situacional) Dados Internos (nível discursivo)
Condição de identidade Espaço de locução
Condição de finalidade Espaço de relação
Condição de propósito Espaço de tematização
Condição de dispositivo Espaço de semiologização
Na seção 5.9 retornaremos a este quadro, preenchendo-o com as características do
gênero da boa forma física. Passemos agora à relação entre gênero e leitura.
4.2.3 Gênero e leitura: intenção e finalidade no texto
Um aspecto importante que advém do ponto de vista segundo o qual o discurso
sofre determinações contratuais, é o de que a leitura não se efetua diretamente sobre a
obra, mas se processa mediada pelo gênero. Não se deve ler uma piada que fale do
assassinato de uma pessoa como se fosse uma reportagem policial; de maneira similar,
111
não se deve comparar o comportamento de um animal numa fábula com o apresentado
num livro de zoologia. Reconhecer um determinado gênero acarreta aceitar, portanto,
certos protocolos de leitura; nesse aspecto, como afirma Maingueneau, “dominar vários
gêneros de discurso é um fator de considerável economia cognitiva”
(MAINGUENEAU, 2000, p. 63).
Do lado da produção textual, a escolha de um gênero não se revela um dado
gratuito. Do mesmo modo que na lingüística a separação entre significante e
significado se mostra artificial, na esfera do discurso conteúdo e gênero se revelam
igualmente consubstanciados. A veiculação de um dado conteúdo deve ser sempre
planejada dentro de condições de produção específicas de cada discurso, o que equivale
a levar em conta o co-enunciador, o tipo de código a ser usado, o suporte físico
adequado e a cena englobante de que faz parte, elementos que levarão à escolha (ou
mesmo imposição) de um gênero em detrimento de outro.
Se desejamos, por exemplo, vender livros usados, não basta que formulemos essa
idéia e a manifestemos de qualquer maneira. É preciso igualmente reconhecer para
quem serão vendidos os livros, qual a situação do vendedor em relação a esses
compradores, qual o tipo de livro, etc. No caso da venda de livros populares para o
grande público, seria suficiente um reduzido panfleto, cuja linguagem poderia até
mesmo conter expressões populares. Tal instrumento, contudo, seria risível se a oferta
se referisse a obras raras e fosse direcionada a um museu, circunstância em que seriam
necessários um relatório mais extenso, o uso de protocolos mais rígidos e uma
linguagem mais padronizada.
Os gêneros desempenham, assim, as mais variadas funções sociais, o que explica
que alguns deles sejam facilmente reconhecíveis, mesmo numa perspectiva diacrônica.
Entre estes incluem-se, conforme mencionamos, certos gêneros literários, dos quais
uma série poesia, romance, conto, tragédia são, por força da tradição, ainda hoje
válidos, conquanto possam se desdobrar em outros subgêneros ou ter algumas de suas
características alteradas com o passar do tempo.
Resta ainda comentar sobre outro conceito fundamental para a semiolingüísitica e
que se relaciona diretamente a gêneros e textos: a intenção. Essa intenção não deve ser
confundida exatamente com os desejos que norteiam o sujeito comunicante. Se assim
procedêssemos, estaríamos especulando sobre a maneira íntima de pensar do sujeito e
cairíamos numa análise psicologizante. A título de comparação, pensemos num
exemplo trivial: no futebol, é comum se discutir sobre certos lances em que a bola toca
112
na mão do jogador, de onde se especula se o toque teria sido intencional ou não. É
impossível que o árbitro o saiba com certeza, que não pode ler o pensamento do
jogador em questão. No entanto, convencionou-se que, se o jogador mantém o braço
junto ao corpo, ele não teve a intenção de cortar a bola com a mão; se, por outro lado,
seu braço está afastado em relação ao corpo, houve tal intenção. O árbitro toma sua
decisão, assim, a partir da materialidade do lance, apreciando como este de fato ocorreu,
e não traçando conjecturas sobre o que o jogador planejou.
De modo similar, dentro de nossa perspectiva, a intenção pode ser aferida no
tocante às marcas lingüísticas efetivamente utilizadas, no interior de um dado contexto
discursivo. A fim de evitar um entendimento psicologizante da intenção, Charaudeau
prefere falar em “intencionalidade”: esta não remeteria exatamente a uma vontade
consciente por parte do sujeito, mas a todo um processo em que concorreriam não
aspectos conscientes, mas também inconscientes, situacionais e sócio-históricos
(CHARAUDEAU, 1983, p. 42).
Convém, outrossim, diferenciar intenção de finalidade. Adotamos um ponto de
vista segundo o qual a finalidade pertence à esfera do texto e é diretamente influenciada
pelo gênero. A finalidade do texto preenche, pois, uma função social demandada pelo
gênero, como mostramos no quadro das visadas. Em resumo: enquanto a intenção está
centrada na relação entre texto e sujeito enunciador, a finalidade se constrói na relação
entre texto e gênero.
Por esse motivo, a finalidade costuma ser mais transparente e menos polêmica que
a intenção. Imaginemos uma situação em que um jornal publique uma reportagem na
qual se denuncie o suposto envolvimento de um ministro numa rede de tráfico de
influências. A finalidade desse texto, determinada pelo gênero de que faz parte a
reportagem é clara: trata-se de informar o público. A intenção do sujeito, entretanto,
se mostra controversa: entre a gama de especulações possíveis, pode-se concluir que se
trata de um projeto que visa desestabilizar o governo, atacando um de seus membros.
Isso pode ser negado pelo próprio sujeito: ele pode argumentar que apenas teve a
intenção de falar a verdade.
Existem, em contrapartida, textos em que a finalidade e a intenção mais ou menos
se equivalem, não havendo preocupação com os posicionamentos discursivos. Trata-se
em geral daqueles de natureza essencialmente informativa. Assim, uma lista telefônica
tem a finalidade de informar números de telefone, e a intenção do sujeito comunicante
113
não é outra senão a de manter seus assinantes informados. A AD não costuma se
preocupar com textos desse tipo.
Segundo dissemos acima, a intenção do sujeito pode ser depreendida a partir do
texto. Iríamos além dessa afirmação, comentando dois pontos importantes.
Primeiramente, tal intenção é diretamente ligada à imagem do sujeito comunicante no
discurso, isto é, ao sujeito enunciador. A compreensão deste, por sua vez, deve levar em
conta as conotações ideológicas de seu texto. Isso significa que o sujeito enunciador
não se constrói a partir de uma interpretação meramente referencial. É verdade que
precisamos sempre ter em conta as marcas lingüísticas, mas, nesse caso, menos pelo que
elas denotam e mais pelo que elas conotam.
O segundo ponto para o qual devemos atentar é que o texto não representa a única
fonte de pistas para encontrarmos a intenção do sujeito comunicante, que representa
tão-somente o produto pontual de uma atividade discursiva. De fato, ao entrarmos no
circuito discursivo, é natural que tenhamos uma série de noções preconcebidas sobre
a situação e nosso interlocutor. Assim sendo, é forçoso reconhecer que o sujeito
comunicante já emite uma imagem de si antes de mesmo de empreender um ato
discursivo opinião admitida, entre outros, por Maingueneau, que fala de ethos prévio
ou pré-discursivo (MAINGUENEAU, 2005, p.71). É fácil verificar isso quando,
durante um programa eleitoral, as pessoas desligam a televisão para não ver um ou
outro candidato antes mesmo que eles comecem seu pronunciamento, justificando tal
ato sob as mais variadas alegações (“Esse é corrupto!”, “Não fez nada!”, “Só sabe
falar”, “Detesto o partido dele!”).
Minimizar mas não ignorar totalmente essa imagem prévia é, entretanto, um
recorte necessário dependendo do tipo de análise a ser feita. Concentrando-nos no ato
do discurso e, portanto, na imagem pontual do sujeito comunicante ou seja, o sujeito
enunciador garantimos uma análise que leva em conta uma situação concreta na qual
se estrutura um texto específico. Direcionamos nosso foco, nesse caso, ao estudo do
discurso verdadeiramente como encenação. Tal conduta vai ao encontro dos modernos
trabalhos sobre o ethos, os quais se interessam principalmente pela imagem do sujeito
em sua emergência discursiva – e não em possíveis hipóteses pré-discursivas.
Feitas tais explicações, chega o momento de apreciarmos de que modo as
conotações irrompem no texto, servindo assim para construir uma imagem discursiva e
atuando como um dispositivo intencional. Assumimos o princípio de que reconhecer
esse dispositivo intencional é de máxima importância para interpretarmos um texto.
114
4.3 Texto, cenografia e interpretação
Retomando algumas das idéias discutidas até aqui, acreditamos que interpretar um
texto seja buscar, em suas marcas formais, elementos que se relacionam às suas
condições de produção. O processo interpretativo deve levar em conta a(s) finalidade(s)
do texto suas visadas e as possíveis intenções do sujeito comunicante. Aventar as
intenções do sujeito comunicante (doravante apenas comunicante) implica examinar
suas imagem no discurso, isto é, a presença do sujeito enunciador (doravante apenas
enunciador) que interpela o sujeito interpretante (doravante apenas interpretante), a
partir de uma imagem construída dele, o sujeito destinatário (doravante apenas
destinatário). Em resumo, o estudo dessas imagens discursivas, atravessadas por
conotações ideológicas, é de suma importância para desenvolver um processo
interpretativo.
Alcançar a intenção do comunicante através da compreensão do enunciador não
representa, entretanto, um processo simples. Há casos em que o enunciador realmente
se assimila ao comunicante, servindo-lhe efetivamente de imagem circunstâncias em
que o conceito de enunciador coincide com a noção tradicional de ethos. Imagine-se
um professor dando aula. Ao expor a matéria durante a aula, ele pode lançar mão de
diversos mecanismos discursivos a fim de transmitir uma dada imagem. Um professor
que queira passar a imagem de amigo da turma ou de mestre jovial entremearia suas
explicações com piadas e um vocabulário contendo gírias familiares a seu público. É
claro que não há garantias de sucesso, uma vez que o professor pode ser encarado por
seus alunos como oportunista, tolo, imaturo ou até mesmo sem uma postura adequada.
O circuito proposto por Charaudeau e mostrado por nós no tópico 4.1.1 é muito
interessante para lidar com casos dessa natureza, em que um vínculo natural entre
comunicante e enunciador, mas enfrenta problemas ao tratar de gêneros que se valem de
estratégias mais criativas, nos quais se lançam mão de cenários e personagens
específicos.
Há gêneros literários, por exemplo, cuja análise dos sujeitos se torna problemática.
Num romance, quem o exatamente o comunicante e o enunciador? Parece acertado
dizer que o autor, com seu status psicossocial de escritor, corresponde ao comunicante.
Como determinar, porém, o enunciador?
115
Seríamos tentados a assimilar o enunciador àquele que enuncia ou seja, à figura
do narrador, ser textual encarregado de contar a história. Deparamo-nos, todavia, com
um problema, pelo fato precisamente de o narrador, freqüentemente, ser uma criatura
ficcional e não a imagem de um ser do mundo extralingüístico. Além disso,
romances em que as vozes narrativas se alternam. Por mais que um determinado
personagem encarne as posições ideológicas de um autor como relacionar essa
multiplicidade de vozes ao comunicante?
A prática de analisar a obra literária e talvez todas as produções textuais
levando em conta a vida do autor se mostra, aliás, comum, e talvez seja mesmo
inevitável. Em muitos casos, é inegável que as interpretações ganham novos matizes de
sentido, a partir do momento em que se confrontam dados biográficos com elementos
textuais. Consideramos válida tal relação, desde que o texto não seja visto como um
suporte psicologizante de um sujeito transparente, ou seja, como se fosse um mero
espelho da vida do autor, circunstância que empobreceria o processo de interpretação.
De qualquer modo, por mais que o comunicante esteja próximo seja do narrador
do romance, seja do eu-lírico do poema, não convém conceder a essas duas instâncias o
status de enunciador. Enquanto este se situa na convergência do discursivo o próprio
processo de comunicação – com o texto – seu produto –, narrador e eu-lírico encontram-
se claramente dentro dos limites da dimensão textual. Eles são da mesma natureza,
portanto, que o restante dos personagens.
Por essa razão, o enunciador deve ser considerado como a imagem que o autor, ser
psicossocial e responsável pelo discurso, passa de si mesmo através do material
lingüístico que ele próprio mobiliza visando os leitores. Diríamos, então, que o
enunciador é o metteur en scène
7
do discurso, o elemento subjetivo que dirige o circuito
interno do ato de linguagem e que, paradoxalmente, parece construir o texto, embora,
na verdade, seja por ele construído.
Assim é que um mesmo comunicante-escritor pode gerar diversas imagens de si: a
de um poeta lírico, a de um contista fantástico de temas mórbidos, a de um romancista
preocupado com a história. Note-se, assim, que a figura do enunciador é, em certa
medida, determinada pelo gênero.
7
Agradecemos à professora Ângela Correia o emprego deste termo, em nosso exame de qualificação
116
Restaria um derradeiro questionamento relativo à literatura: poderíamos
considerar o narrador um sujeito? E os personagens, em gêneros como o conto ou o
romance? Em caso de resposta afirmativa, que status de sujeito eles teriam?
Uma vez que aparecem como fonte fictícia de discurso, fato que lhes confere um
traço de agente, o narrador e o eu-lírico constituiriam, sim, um tipo de sujeito. O
mesmo ocorreria com os personagens da trama, até porque são comuns os casos de
personagens-narradores: além de poderem ter direito à palavra no texto e se tornarem,
assim, seres responsáveis por um circuito discursivo de natureza ficcional, trata-se de
entidades antropomorfizadas, realizando ações compatíveis com as dos homens no
mundo extralingüístico. Evidentemente, tais seres de ficção devem receber uma
classificação à parte. Poderíamos chamá-los de “sujeitos textuais”, por terem sua
existência restrita ao mundo ficcional. Esses sujeitos textuais se aproximam, até certo
ponto, dos “actantes”, nomenclatura consagrada na semiótica greimasiana e que Torben
Vestergaard e Kim Schroder utilizam na análise de peças publicitárias. Nesse sentido,
“os actantes desempenham papéis abstratos que, na narrativa concreta, são
representados por atores concretos” (VESTERGAARD & SCHRODER, 2004, p. 39).
Um outro domínio discursivo com gêneros de difícil análise no tocante ao estudo
dos sujeitos é, aliás, o da publicidade. Em muitos textos publicitários são criados
cenários e personagens que parecem constituir um autêntico circuito discursivo à parte,
mas que efetivamente se direcionam ao interlocutor (o interpretante), isto é, ao sujeito
que, sob uma identidade psicossocial de leitor, tem contato com o texto.
Utiliza-se então o que Maingueneau chama de “cenografia”, um simulacro
enunciativo, construído pelo texto, mas que, ao mesmo tempo, parece ser a fonte do
discurso. Segundo ele, o leitor não se depara diretamente com a chamada cena
englobante (o domínio discursivo), nem com a cena genérica (seu gênero): seu contato
direto é, antes de mais nada, justamente com essa cenografia. Longe de constituir
apenas um cenário que sirva de pretexto para produzir uma mensagem, a cenografia é
uma instância legitimadora do discurso, conforme observa Maingueneau:
[...] a cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário, como se o discurso
aparecesse inesperadamente no interior de um espaço construído e independente
dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-se para constituir
progressivamente o seu próprio dispositivo de fala. (MAINGUENEAU, 2002,p.
87)
A cenografia provoca o apagamento de certos protocolos genéricos que se
esperariam estar presentes no texto em questão. De fato, muitas vezes um texto
117
publicitário se deixa ler em primeiro plano como se fosse uma conversa
descompromissada no bar, um jogo de futebol com os amigos, um jantar em família... a
lista é inesgotável. Essas construções cenográficas, por sinal, são elementos
importantíssimos na transmissão de conotações ideológicas: se um anúncio de
extrato de tomate cuja cenografia é um jantar, com toda a família em volta, há toda uma
série de valores sociais construídos no ato discursivo. É como se fôssemos instados a
não comprar apenas o extrato de tomate, mas também a cordialidade e o aconchego de
uma refeição em família.
As semelhanças entre literatura e publicidade, em virtude de serem domínios que
demandam a criatividade discursiva, são, por esse motivo, notáveis. Ambas têm uma
acentuada preocupação formal, ao produzir seus enunciados. Não por acaso, muitos
livros didáticos, quando ilustram a chamada função poética da linguagem delineada por
Jakobson, lançam mão de poemas e de propagandas.
Não se pode esquecer também que tanto uma como a outra buscam criar
cenografias que saiam do lugar-comum de seus gêneros. Um das maneiras de conferir
ao texto uma aura de originalidade é justamente nublar, junto aos olhos do interpretante,
as fronteiras do gênero a que se filia o texto. Em muitos contos literários, o leitor tem
acesso à narrativa através da conversa entre dois personagens; diante da propaganda de
um produto emagrecedor, pensamos ler uma receita médica, em função dos argumentos
de autoridade lá conferidos e dos detalhes pretensamente técnicos veiculados.
Outro fator de afinidade é que, no fundo, ambos os domínios costumam ter um
caráter fictício. Na literatura, isso se mostra mais evidente. Há certas obras romanescas
ou poéticas que procuram ostensivamente afirmar a independência do fazer literário em
relação ao mundo. Na publicidade, esse efeito se processa de modo mais delicado. Por
mais que se recorra a situações inusitadas – que, afinal, servem para cativar a atenção do
sujeito interpretante –, a finalidade do texto se vincula a uma função social prática, a de
vender um produto – quando não, um comportamento. Por outro lado, a prática
publicitária costuma idealizar os produtos que veicula, como se eles fossem os únicos
realmente eficazes naquilo que se propõem a fazer.
Finalmente, e o que é de maior interesse para nosso trabalho, ambas manipulam
um sem-número de conotações ideológicas. Os romances e poemas de maior prestígio
na literatura são justamente aqueles que discutem a relação dos personagens com os
valores sociais aos quais são submetidos; os textos publicitários, por sua vez, mobilizam
tais valores no sentido de captar seus potenciais consumidores. Em contrapartida, talvez
118
a grande diferença entre literatura e publicidade se dê no emprego de tais conotações: na
literatura, há uma problematização; na publicidade, busca-se a persuasão.
A persuasão, de que trataremos com detalhes no próximo capítulo e que
caracteriza a visada de incitação, não se restringe a anúncios publicitários, nos quais ela
se mostra mais óbvia. Há inúmeros gêneros dos quais ela participa sinuosamente,
mesclando-se às visadas de informação.
Elegemos como centro de nossas próximas considerações um tipo de textos que
poderíamos chamar de “supra-instrucionais”: aparentemente informativos, propondo
instruir o leitor a efetuar determinados procedimentos para atingir um fim específico,
aproximam-se de certo modo também do domínio da publicidade, já que sugerem
(oferecem?) um tipo de comportamento idealizado, que aparece como uma
conseqüência natural de tais procedimentos. Não por acaso, revistas que veiculam
matérias dessa natureza apresentam igualmente diversos tipos de peças publicitárias,
relacionadas aos temas com os quais trabalham. Nossa escolha recai sobre matérias que
abordam a questão da boa forma física feminina, temática de grande repercussão na
atualidade e evidenciada por matérias tratando de exercícios físicos e nutrição. De fato,
essas revistas exploram um ideal de beleza caracterizado, entre outras coisas, pela
obtenção ou manutenção de um corpo magro, visto não apenas como uma condição
orgânica, mas também como um verdadeiro passaporte para a felicidade.
Veremos, portanto, como a manipulação de valores denotativos, da ordem da
informação, e de valores conotativos, da ordem da persuasão, cooptam o leitor a aderir a
um determinado ponto de vista.
119
5 DISCURSO, INFORMAÇÃO E PERSUASÃO
As próximas etapas que pretendemos desenvolver nesta tese tangenciam pelo
menos três diferentes estudos, típicos de análise do discurso: o dos gêneros e seus
contratos; o dos mecanismos de persuasão; e o da construção dos sujeitos do discurso,
marcada pela noção do ethos.
Daremos abaixo algumas explicações de como lidaremos com essas três
problemáticas, relacionando, principalmente, a prática discursiva ao conceito de
imaginários sociais, de uso bastante disseminado dentro das ciências humanas, mas
sobre o qual convém dar uma maior especificidade teórica.
5.1 Discurso e imaginários sociais
Uma das problemáticas nas quais inserimos nossa pesquisa se refere à questão dos
gêneros. Tratamos, afinal, de levantar algumas características de um gênero do discurso
midiático, composto por textos que chamamos de supra-instrucionais, relativos
especificamente à questão da boa forma física. Atendo-nos ao quadro de visadas que
propomos em 4.2.1, tais textos se associariam tanto à visada de informação, quanto à
visada de incitação. É bem verdade que o corpus de que nos servimos e do qual
falaremos à frente talvez se mostre relativamente exíguo para que possamos traçar
conclusões categóricas sobre tal gênero. Acreditamos, contudo, que suas principais
características possam ser apresentadas de modo satisfatório.
Pelos traços mesmos desses textos supra-instrucionais, outro elemento a ser
estudado são os mecanismos lingüístico-discursivos de persuasão. Dentro de nossa
ótica, estudar o amálgama entre informação e persuasão dará continuidade às
formulações que fizemos acerca dos conceitos de denotação e conotação nos capítulos
precedentes.
É inevitável, assim, que nos aproximemos da ampla área da argumentação, tanto
mais que “persuasão” representa, também aí, uma de suas palavras-chave. Em que
vertente da argumentação, contudo, nos encaixaríamos? Seguiríamos as teses de
Ducrot, para o qual a estrutura de uma língua já é direcionada para a argumentação? Ou
defenderíamos, seguindo Charaudeau, que a argumentação, em lugar de ser considerada
uma tipologia textual, deva ser encarada sob o ponto de vista de um modo de
organização discursivo, que participa em graus variados dos mais diferentes textos?
120
Acreditamos que essas duas posições não são exatamente antagônicas, já que
tratar do discurso de acordo com a semiolingüística é, antes de mais nada, tratar de
marcas lingüísticas. Contudo, não trabalharemos a persuasão do ponto de vista
ducrotiano, uma vez que, em geral, suas análises se fundamentam em fragmentos de
textos sobre os quais pouco importa a origem do enunciado posição que o afasta da
maioria das correntes da AD. Tampouco nos dedicaremos exclusivamente a um estudo
voltado para o modo de organização argumentativo, sobre o qual Charaudeau aponta um
determinado número estratégias lingüístico-discursivas, muitas das quais direcionadas
para a conexão das proposições no texto.
O que nos importa é a relação entre sujeito e persuasão, dentro da qual elementos
afetivos e ideológicos se sobressaem. Desse modo, nossa preocupação se revela muito
mais retórica do que gica, pois é do ethos que trataremos. Embora estejamos diante
de um objeto retórico, não recorreremos nem à retórica clássica, nem à moderna cujos
grandes ícones são Chaïm Perelman e Luci Olbrects-Tyteca. Nosso instrumental
metodológico se ancora notadamente na análise do discurso. Sendo assim, focaremos
grande parte de nossas análises examinando o modo pelo qual os textos supra-
instrucionais constroem sujeitos discursivos que se prestam aos processos de
informação e, principalmente, de persuasão.
Conforme vimos ao longo do capítulo 4, a criação de um sujeito se revela um
processo espelhado, que à figura de um enunciador corresponde necessariamente a de
um destinatário. O processo de persuasão ocorre a partir do momento em que sujeito
interpretante se identifica como essas duas figuras, que lhe servem de modelo. Nos
textos que examinamos, o enunciador é a figura do saber, que tem credibilidade e
mesmo status; por sua vez, o destinatário ao qual se endereça se mostra capaz de
realizar os procedimentos recomendados e assumir também um certo status social.
A criação desses sujeitos se situa muito além da informação transmitida pelo texto,
ou seja, não opera somente no nível referencial da linguagem. De acordo com o
panorama teórico que tratamos até agora, um enunciado lingüístico não se limita
necessariamente a representar um dado da realidade, porquanto é capaz de evocar
crenças das mais variadas. Em um enunciado como “Torne-se magra”, comum nas
capas das revistas que estudamos, o adjetivo “magra” se encontra, discursivamente,
numa condição em que não funciona simplesmente como qualificador de um elemento
do mundo. De fato, esse termo se associa a imaginários e crenças segundo as quais ser
121
magro equivale a ser feliz e admirado, condição que o faz atuar, assim, num nível
conotativo.
Achamos importante, por conseguinte, traçar algumas considerações a respeito
desses imaginários sociais, sem o que tal expressão poderia parecer demasiado vaga.
Assim, ao examiná-la, evitamos que ela seja empregada indiscriminadamente, como
uma noção eclética.
Nossas observações remetem diretamente às idéias formuladas por Charaudeau em
seu livro O discurso político (2006b). Na realidade, o conceito de imaginários sociais
se aproxima muito daquele de “representações socais”, sem que seja fácil diferenciá-los
com precisão. Além disso, ambos aparecem com freqüência em trabalhos das mais
diversas disciplinas ligadas às ciências humanas, o que torna suas definições algo
problemático.
Resumidamente falando, os imaginários sociais se referem a construções de idéias
que o homem faz, num âmbito coletivo, sobre a realidade que o cerca, a fim de
caracterizá-la e avaliá-la. A palavra “imaginário”, adverte Charaudeau, é perigosamente
ambígua. No caso em tela, não se deve tratar esses imaginários como aquilo que não
existe, mero fruto do exercício da imaginação humana. Ao contrário, o imaginário deve
ser tomado por uma imagem efetiva da realidade, que a interpreta e a faz significar
(CHARAUDEAU, 2006b, p. 2003).
Por esse motivo, ainda de acordo com Charaudeau, esses imaginários se
manifestam através das diferentes articulações de duas formas de interpretar a realidade,
que são os saberes de conhecimento e os saberes de crença. Diferenciando esses dois
conceitos de modo bastante elementar, diríamos que os saberes de conhecimento
propõem uma visão objetiva do mundo, calcada principalmente na razão científica, ao
passo que os saberes de crença propagam julgamentos que se efetuam acerca do mundo.
Os saberes de conhecimento se baseiam essencialmente na razão, a partir da qual
se produziriam provas irrefutáveis para se abraçar ou rejeitar determinadas teses. Por
outro lado, os saberes de crença fundamentam-se não apenas na razão, mas também na
emoção, representando um processo ao fim do qual o sujeito posiciona-se a favor ou
contra uma determinada tese.
No que tange diretamente às nossas pesquisas, veremos que os textos supra-
instrucionais sobre a boa forma física se constroem sobre esses dois tipos de saber. Há,
de um lado, explicações de cunho técnico-científico, comprovadas por pesquisas e pelo
testemunho de pessoas que experimentaram os procedimentos sugeridos dietas ou
122
exercícios físicos. A essas explicações aliam-se diversos mecanismos de persuasão, que
valorizam positivamente tais procedimentos, evocando crenças que circulam pelo meio
social e que vão desde os argumentos mais lógicos até os mais subjetivos: deve-se,
assim, efetuar esses procedimentos porque fazem bem à saúde, melhoram a auto-estima
e tornam a pessoa mais valorizada socialmente.
Os limites entre esses dois tipos de saber muitas vezes oscilam. No ocidente, até a
Idade Média, prevalecia uma visão metafísica do mundo, ligada principalmente à
religião cristã, mas também ao paganismo, sem falar das doutrinas herméticas. Numa
perspectiva histórica, portanto, é difícil separar, seguindo esse modelo, os saberes que se
transmitiam a antes do desenvolvimento do racionalismo e do cientificismo. Sem
querer desenvolver mais esta discussão, talvez fosse mais apropriado afirmar sobre
aquela conjuntura histórica que os saberes de crença englobavam os saberes de
conhecimento, e que estes passaram a se desvincular daqueles a partir da consolidação
de um modo lógico-racional de apreciar o mundo.
8
Em todo caso, não é mesmo fácil separar o que é conhecimento do que é crença. O
depoimento de alguém que teve êxito ao fazer uma dieta representa, até certo ponto,
uma prova científica, mas, dependendo de como o texto se desenvolve, diversos saberes
de crença são mobilizados. Não raro, costuma-se falar do “antes” e do “depois” das
dietas, empregando-se mecanismos discursivos que transmitam ao leitor avaliações
francamente negativas e positivas, respectivamente.
Conforme veremos, é muito comum que o sucesso desses procedimentos seja
exemplificado através do depoimento de atrizes renomadas, cuja fama, status e beleza
são fatores que, por si sós, operam positivamente no processo de divulgação dessas
matérias.
O caráter conotativo desses textos é claro; e eles são conotativos precisamente
pelo fato de se associarem aos imaginários sociais circulantes. Convém frisar que o
conceito de crença, que acabamos de mostrar, aproxima-se muito da noção de ideologia
que comentamos em 3.4.3. A esse respeito, Charaudeau traça diferenças entre os
chamados sistemas de pensamento, que nada mais seriam que as diversas combinações
entre saberes de conhecimento e saberes de crença, dos quais emergiriam os imaginários
8
Estudamos a coexistência dessas concepções de mundo em nossa dissertação de mestrado sobre os
contos fantásticos de Guy de Maupassant, que consta de nossas referências bibliográficas. Para maior
aprofundamento, sugerimos a leitura de TODOROV (1970), também constante de nossa bibliografia,
além de FABRE, Jean (1992). Le miroir de sorcière. Paris : José Corti e BESSIÈRE, Irène (1974). Le
récit fantastique.Paris : Larousse.
123
sociais e dentro dos quais se inseriria a ideologia. Sem entrar em pormenores, limitamo-
nos a observar que o autor aceita o emprego do termo ideologia em âmbitos fora do
domínio político caso do midiático –, por se tratar de “um sistema de crenças que
respondem a modelos de opinião” (CHARAUDEAU, 2006,b p.202). Sendo assim,
afastamo-nos mais uma vez do conceito marxista de ideologia, entendendo-a, de modo
bem simplificado, como uma crença, evidentemente vinculada à esfera social.
Um comentário de extrema pertinência feito por Charaudeau é o de que esses
imaginários não devem ser encarados como abstrações. Para se propagarem, eles
necessitam manifestar-se materialmente, e são diversas as formas que tomam:
comportamentos, rituais, objetos, símbolos, obras artísticas, etc. Esse diversificado
conjunto seriam as representações sociais.
Dentro desse universo de materializações, Charaudeau propõe uma noção que seja
capaz de associá-las aos interesses da AD: os imaginários sociodiscursivos. Estes se
relacionam às mais variadas práticas textuais, como textos fundadores, manifestos,
slogans, máximas, frases-feitas, provérbios.
Os imaginários sociodiscursivos se aproximam da noção do pré-construído, muito
importante dentro da teoria de Michel Pêcheux, que, trabalhando a seu modo o conceito
de polifonia delineado por Ducrot, considerava que um enunciado poderia remeter a
toda uma massa de produções discursivas, de “já-ditos”. Os imaginários
sociodiscursivos relativizam o conceito de criatividade lingüística, defendido pela
gramática gerativa. É verdade que o falante pode, a partir de regras finitas, gerar
enunciados infinitos; mas, na prática, o número de produções discursivas que efetua é
limitado pelas diversas restrições da situação de comunicação e do próprio contexto
social.
Também é importante salientar que os imaginários sociodiscursivos se inscrevem
no espaço da interdiscursividade. Numa rede de relações sociais complexas, um
discurso não tem exatamente um valor absoluto, mas relativo, que sempre se
contrapõe a outros. Se o adjetivo “magra”, do qual já falamos, é avaliado positivamente
numa dada posição discursiva, ele pode não o ser em outra. Nesse aspecto, aqueles
que atacam violentamente o ideal de “magreza” que se propaga socialmente,
condicionando então o adjetivo em pauta a um valor negativo. Essa postura acaba por
afetar a rede discursiva para a qual ser magro se mostra uma condição importante.
Nesse caso, é feito todo um esforço para se apresentarem procedimentos de como se
tornar uma mulher magra, porém sem exageros.
124
De maneira similar, não se podem esquecer os discursos que sustentam que sofrer
fazendo dieta ou ginástica representa um processo extremamente desagradável. Ora, as
revistas que tratam desses assuntos devem também levar essa rede discursiva em conta,
a fim de ajustar suas próprias produções textuais. Veremos, a esse respeito, que os
resultados prometidos prescindem de esforços e privações consideráveis, podendo ser
obtidos a partir de um mínimo de disciplina. A propaganda, aliás, em seus mais diversos
níveis, se caracteriza comumente por prometer o máximo de recompensa através de um
mínimo de esforço, efeito textual que se configura através dos variados mecanismos de
persuasão.
Convém agora definirmos de uma vez o que entendemos por “persuasão” e como
ela se relaciona com a mídia.
5.2 Mídia: entre a informação e a persuasão
É comum empregar o verbo “persuadir” nas mais variadas situações, ora se
opondo a termos correlatos como “seduzir” ou “convencer”, ora englobando essas duas
noções. Assim, para que não haja ambigüidade no desenvolvimento de nossas idéias,
faz-se necessário especificarmos qual será exatamente nosso conceito de persuasão.
Conforme dissemos anteriormente, a persuasão encontra-se intimamente ligada à
argumentação. É comum, nos estudos sobre essa matéria, delimitar dois elementos
básicos que a compõem: um de ordem racional, outro de ordem emocional.
A esse respeito, Charaudeau fala de razão demonstrativa, caracterizada pelas
relações de causalidade entre as asserções apresentadas, e razão persuasiva, cujo
objetivo é estabelecer as provas que justificam tais relações (CHARAUDEAU, 2008, p.
207). A razão persuasiva, assinala o autor, depende diretamente da chamada encenação
argumentativa, relacionada à maneira como o sujeito se constrói no discurso,
posicionando-se acerca de seus enunciados. Podemos concluir, desse modo, que a razão
persuasiva pode ser estudada consoante a problemática do ethos.
Em nossa pesquisa, não nos ocupamos muito com a lógica demonstrativa, uma vez
que damos preferência justamente à persuasão. Concebemos esta última como um
conceito que se opõe a “convencimento”, como o faz Antônio Suárez de Abreu:
125
Convencer é saber gerenciar informação, é falar à razão do outro, demonstrando,
provando. Etimologicamente, significa “vencer com o outro” (com + vencer) e não
contra o outro. Persuadir é saber gerenciar relação, é falar à emoção do outro. A
origem dessa palavra está ligada à preposição “per”, “por meio de” e a “Suada”,
deusa romana da persuasão. Significava “fazer algo por auxílio divino”. (ABREU,
2004, p. 25)
Reconhecemos que, na língua corrente, é comum tomar por sinônimos “persuadir”
e “convencer”. Entretanto, delimitamos tal diferença assinalando que convencer seria
ligado especificamente a aspectos racionais. Por outro lado, “persuadir” remete à
capacidade de criar no interlocutor uma disposição para agir. Talvez o termo
“conscientizar”, no lugar de “convencer”, fosse mais apropriado a fim de evitar
confusões.
Com efeito, é comum termos êxito em conscientizar alguém de um fato, mas isso
não quer dizer, de forma alguma, que essa pessoa agirá de acordo com o que foi
explanado. Todos sabem, por exemplo, dos malefícios do cigarro, dos perigos de dirigir
sob o efeito do álcool ou das conseqüências negativas de uma alimentação rica em
gordura; contudo, a consciência desses riscos não significa necessariamente que tais
comportamentos deixem de ser seguidos, seja por negligência, auto-suficiência ou
incapacidade de se afastar deles.
Uma vez que defendemos o caráter intersubjetivo da linguagem, dentro do qual o
discurso se constrói a partir de um princípio de intencionalidade, propomos que uma
visada de incitação, isto é, um ato de persuasão, possa se construir tencionando dois
objetivos, um imediato e um transcendente.
O objetivo imediato associa-se aos argumentos de caráter lógico-racional e à
conscientização do interlocutor acerca de um dado tema. Esse objetivo se centra em
metas a serem atingidas num âmbito, por assim dizer, material. Uma reportagem sobre
dietas tentaria comprovar, a partir de informações científicas, sua eficácia na perda de
peso num dado período de tempo, tratando das substâncias a serem ingeridas, do
número de calorias perdidas e dos procedimentos dietéticos a serem adotados.
Por sua vez, o objetivo transcendente, a nosso ver, representa a essência mesma da
persuasão e se caracteriza por mobilizar determinados imaginários sociais, valorizando-
os e tornando-os modelos comportamentais. Examinemos duas reportagem abaixo,
sobre dietas, em que, ao mesmo tempo em que se empregam dados técnicos, também se
apela para certos valores sociais, através dos quais ser magro se revela uma condição de
felicidade:
126
“Como ainda estava tomando antidepressivo, só eliminei 2 kg, mas já fiquei
superanimada. A partir daí, todo fim de semana que eu tinha corria para o spa para
garantir logo meu corpo novo e também para encontrar meu namorado, que conheci lá.
Em 10 meses recuperei minhas curvas e hoje ajudo meu gato a se livrar da obesidade.
CC205, p.99)
Também é importante fugir dos complementos. “Com isso você não corre o risco
de consumir pratos carregados de calorias, acrescidos de cremes ou queijos, como
aquela batatinha gratinada, o risoto regado a azeite ou aquele purê com muita
margarina”, ensina. A especialista garante: só com essas mudanças você fica mais perto
de alcançar as curvas de seus sonhos. (CC205, p.107)
Como se vê, o objetivo transcendente consiste, muitas vezes, numa justificativa
ideológica para se empreender uma determinada ação, ação esta que pode se desenrolar
nos mais variados domínios sociais: na escola, não se aprendem as matérias apenas para
a obtenção do grau máximo, mas sim para ser alguém de sucesso na vida; na
publicidade, não se oferece uma roupa apenas para vestir alguém, mas para essa pessoa
se destacar da grande massa, inserindo-a num padrão de moda vigente; na religião, não
se propõe fazer o bem ao próximo apenas como uma ação pontual, mas sim como a
participação de um grande planejamento metafísico, cuja recompensa pode se dar no
Além; na política, a intervenção militar de um país em outro não se refere apenas a uma
tomada de poder, mas ao combate contra a tirania e à luta pela liberdade; numa dieta,
não se busca só o emagrecimento, mas um corpo idealizado.
Esses objetivos transcendentes manifestam-se em imaginários sociodiscursivos,
que freqüentemente se transformam em palavras de ordem ou frases-feitas,
configurando-se como um importante objeto de estudo para a AD e prestando-se às
variadas estratégias de cunho persuasivo.
quem defenda, como Adilson Citelli, que a persuasão existe em sociedades
que permitam a livre circulação de idéias, o que exclui, portanto, os regimes ditatoriais
(CITELLI, 2000, p. 67). Contudo, não partilhamos dessa idéia. Em primeiro lugar, a
existência de um único discurso oficial não exclui necessariamente a proliferação de
discursos marginais, ainda que sejam usados métodos de intervenção legais, visando à
censura. Em segundo lugar, e por esse motivo, a doutrinação ideológica, persuasiva em
127
sua natureza, se mostra um recurso mais interessante que o uso da força. Certamente
cooptar um espírito, fazendo-o aderir a uma certa posição ideológica, apresenta a
vantagem de, em tese, ser um processo menos desgastante e mais duradouro. Afinal,
fazer aderir traz menos complicações do que combater, mesmo que haja um respaldo
institucional para isso.
E, dentro dos domínios midiáticos, como se processariam os mecanismos de
persuasão? Seríamos tentados a afirmar que a persuasão se mostra mais patente na
publicidade, mas essa posição é, sem dúvida muito simplista. Faz-se necessário, antes
de mais nada, esclarecer o que entendemos como mídia e como publicidade.
Comecemos por esta última, uma vez que em português duas palavras que muitas
vezes são tomadas por sinônimos, mas que convém serem diferenciadas: “publicidade”
e “propaganda”.
Especificamente falando, a publicidade se refere a um tipo de mídia voltada para o
consumo de produtos, o que engloba gêneros tais como jingles, out-doors, folhetos de
divulgação, etc. Por outro lado, um de seus princípios básicos, a persuasão, da qual
trataremos mais à frente, é encontrada nos mais variados domínios e gêneros, sob
diversas manifestações. Um pregador religioso ou um professor não são publicitários no
sentido estrito do termo, mas se esforçam não em captar a atenção do seu público,
como também em fazê-lo agir de modo determinado. Seria mais apropriado nesses
casos falar, então, de “propaganda”. Como afirma Antônio Carlos Sandmann,
“propaganda” tem a ver com aquilo que se deve propagar e, por isso, revela-se um
termo de mais abrangência que “publicidade” (SANDMANN, 2005, p. 9-10). Dessa
maneira, assumimos que “propaganda” é um termo de maior amplitude, que engloba
“publicidade”, relacionando-se a diferentes manifestações discursivas, inclusive não-
midiáticas.
Naturalmente, é nas sociedades livres que as técnicas persuasivas se mostram mais
interessantes para a AD, na medida em que devem buscar a criatividade. Segundo
Verstergaard e Schroder, a propaganda persuasiva começa nas sociedades capitalistas
plenamente desenvolvidas (VERSTERGAARD & SCHRODER, 2004, p. 11). Numa
sociedade que produza o mínimo para sua subsistência, os produtos a serem
comercializados são essenciais e não necessitam de um maior apelo comercial. Porém,
em sociedades em que não excedente, mas também concorrência comercial, a
persuasão é construída a partir dos mais diversos recursos discursivos.
128
Embora a propaganda participe de inúmeras atividades sociais, ela é comumente
associada à mídia, razão pela qual devemos traçar certas considerações conceituais
sobre esta última.
Antes de mais nada, é preciso distinguir veículo midiático de conteúdo midiático.
O veículo midiático representa o modo através do qual as informações dos mais
variados domínios discursivos chegam ao público: rádio, jornais, revistas, televisão,
internet. Nesse sentido, um debate televisivo entre dois candidatos a cargo eletivo se
mostra um gênero ligado ao domínio político, porém transmitido por um veículo
midiático.
O conteúdo midiático, por sua vez, se refere aos temas apresentados e ao modo
pelo qual estes são abordados, desmembrando-se em gêneros mais ou menos
estabelecidos socialmente (como editoriais, reportagens, peças publicitárias, etc).
Formulamos, a esse respeito, a divisão de duas classificações básicas para a mídia.
O recorte principal que propomos se entre o que chamamos de mídia
informativa, aquela que se preocupa em informar o público de algo, e mídia
propagandista, cujo intuito é promover, persuasivamente, um dado serviço de interesse
social. Obviamente, a mídia propagandista não deixa de ser informativa, mas, em tese, a
grande diferença entre as duas reside justamente no caráter de persuasão da segunda.
Por sua vez, dentro da dia informativa, seria possível traçar uma nova divisão.
Teríamos de um lado a mídia noticiante, encarregada de transmitir os fatos do
quotidiano, através de jornais diários (O Globo, Jornal do Brasil, O Dia), revistas
semanais (Veja, Época, Isto é), telejornais, programas de rádio e sites da internet; e, de
outro lado, encontraríamos o que denominamos de mídia temática, cujas informações
visam não às notícias do dia-a-dia, mas sim à discussão de assuntos do interesse de
grupos sociais bem segmentados. Nesse segundo agrupamento, diferentes veículos
midiáticos se encarregariam de discorrer sobre assuntos variados como esportes, moda,
temas profissionais diversos, religião, ciência, tecnologia, comportamento,
entretenimento e saúde, entre outros.
Quanto à mídia propagandista, ela seria também de dois tipos. Chamamos um
deles de mídia comercial, formado pelos textos direcionados para a venda de produtos e
serviços; neste caso se encontrariam as publicidades de um modo geral. o outro tipo
seria a mídia admonitora, cuja função seria a de admoestar ou aconselhar o grande
público sobre assuntos de interesse social; aí se encontrariam as campanhas de saúde
129
pública e informes políticos não-partidários avisando sobre as eleições e sua
importância, por exemplo.
O esquema que segue resume visualmente nossa formulação:
Tipologia midiática
Evidentemente, em termos práticos, conforme frisamos, nem sempre é fácil
distinguir os limites dessa tipologia midiática. Muitos gêneros situam-se na
convergência de dois ou mais desses modelos. Além disso, informação e persuasão não
são conceitos que se excluem. Um texto informativo pode, de modo dissimulado, conter
elementos persuasivos visando influenciar o destinatário..
Conceber a informação, aliás, como um processo totalmente neutro e objetivo
representa uma noção idealizada e até mesmo ingênua. Apresentar uma determinada
informação, por mais que se deseje sinceramente parecer imparcial, já implica uma série
de escolhas, que acabam sendo tendenciosas. Não há, aliás, como escapar do
subjetivismo, dada a própria natureza intersubjetiva do discurso. Obviamente, há níveis
de subjetividade, que caminham desde um grau mais ostensivo textos em primeira
pessoa até os de grau mínimo, como as dissertações técnico-científicas, sem que,
contudo, se chegue efetivamente a zero. Charaudeau também salienta a presença de
aspectos subjetivos no processo de informação:
É, pois, inútil colocar o problema da informação em termos de fidelidade aos fatos
ou a uma fonte de informação. Nenhuma informação pode pretender, por
definição, à transparência, à neutralidade ou à factualidade. Sendo um ato de
transação, depende do tipo de alvo que o informador escolhe e da coincidência ou
não coincidência deste com o tipo de receptor que interpretará a informação dada.
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 42)
Os textos que nos propomos a estudar ligam-se, sem dúvida, à mídia temática, por
se voltarem a um público específico, aquele desejoso de obter ou manter a boa
mídia propagandística
mídia noticiante
mídia temática
mídia informativa
mídia comercial
mídia admonitora
130
forma física. Entretanto, aproximam-se da mídia propagandística na medida em que se
valem de diversos mecanismos persuasivos, estruturados no discurso.
É necessário agora tecer alguns comentários sobre nosso corpus.
5.3 – O corpus selecionado
Conforme mencionamos, a escolha de revistas dedicadas à questão da boa forma
feminina para compor nosso corpus se deve à própria natureza discursiva dos textos, ao
mesmo tempo informativos e persuasivos, bem como à grande popularidade desse
assunto. A esse respeito, torna-se importante observar que o número de revistas que
seguem essa linha temática se mostra imenso. Em contrapartida, fora revistas técnicas e
de natureza fundamentalmente informativa (como a Sport Life, da Motor Press), uma
das únicas revistas voltadas para o público masculino que se enquadra no perfil
incitativo é a Men’s Health, da editora Abril. Relacionar boa forma física e beleza
ainda parece encontrar resistência entre os homens, o que impossibilita a formação de
um mercado mais abrangente para esse tipo de publicação, pelo menos na atualidade.
Utilizaremos alguns números da Men’s Health para algumas considerações rápidas
sobre a questão das representações sociais, centrando-nos principalmente nas capas:
trabalharemos com as edições 5,7,11, 17 e 27, valendo-nos da abreviação “MH” para
indicá-las.
É em relação ao universo feminino, entretanto, que mais nos concentraremos.
Como não pretendemos realizar uma pesquisa quantitativa, contentamo-nos em
trabalhar com apenas duas publicações na área, a Corpo a Corpo, inicialmente de
responsabilidade da editora mbolo e atualmente a encargo da editora Escala, e a Boa
Forma, da editora Abril.
Para levantarmos as características desses gênero editorial, fizemos um recorte
cronológico similar, escolhendo seis números de cada revista, publicados entre 2006 e
2008.
No que tange à configuração física, ambas são idênticas, apresentando as
dimensões de 28 cm de comprimento por 20,3 de largura embora a Corpo a Corpo
tenha ganho um centímetro de comprimento ao ser editada pela Escala. As duas são
publicadas em papel cuchê, de excelente qualidade, o que garante, aliás, sua
durabilidade. Elas têm, igualmente, um número parecido de páginas, variando entre 116
e 136. A semelhança também ocorre no preço – atualmente custam R$ 7,90.
131
Sua configuração temática também é idêntica. Versam sobre moda, beleza em
geral (produtos para pele e cabelo principalmente), tratamentos específicos
(lipoaspiração, peeling e cirurgias plásticas), além de exercícios físicos e nutrição. São
estes dois últimos que constituem nosso foco de análise, que, por necessitarem de um
maior esforço e disciplina para serem executados, devem ser apresentados por textos de
forte apelo persuasivo.
Também é importante frisar que esse aspecto persuasivo não se limita às matérias
voltadas para exercícios físicos e dietas. Grande parte de suas páginas é reservada à
publicidade, seja através de páginas exclusivas (às vezes dupla), seja em matérias
aparentemente informativas (descrevendo um produto ou serviço), seja em pequenos
anúncios em matérias informativas ou instrucionais.
Apesar de fora do âmbito textual propriamente dito, os detalhes que levantamos
acima, não são de natureza acessória para a AD. O suporte físico através do qual se
propaga um texto também é capaz de produzir efeitos de sentido. Tanto é assim que o
tipo de suporte representa um dos fatores situacionais que, no entender de Charaudeau,
participam do contrato de comunicação, especificamente na condição de dispositivo
(como vimos em 4.2.1 e 4.2.2).
Maingueneau utiliza o termo “mídium” para designar tais suportes e adverte que,
na atualidade, os analistas do discurso estão cada vez mais convencidos de que eles não
representam um simples meio de transmissão de informações. Ao contrário, os
conteúdos transmitidos pelo mídium produzem determinados efeitos justamente por
causa deste. O autor conclui que a troca de um mídium por outro na transmissão de um
mesmo conteúdo informativo, longe de ser indiferente, pode provocar mesmo uma
alteração no gênero em questão (MAINGUENEAU, 2002, p. 71-72).
Em nossa pesquisa, como os mídiuns que estudamos revelam-se homogêneos,
temos um elemento importante para determinar um dos dados do contrato de
comunicação dessas duas revistas.
Além da escolha de números publicados num mesmo período, outro fator que
buscamos para assegurar a homogeneidade de nossas apreciações é a escolha de textos
encontrados em seções similares nas duas revistas. Sendo assim, examinaremos suas
matérias versando sobre exercícios e nutrição, que se encontram nas seguintes seções:
“Corpo e Forma” e “Magra e saudável”, na revista Corpo a Corpo; eFitness” e
“Nutrição”, na Boa Forma. Também nos deteremos nas matérias de capa relacionadas
às mulheres que servem de modelo – em geral famosas e bonitas.
132
Para efeito de apresentação dos trechos a serem comentados, adotaremos as siglas
CC e BF, respectivamente para a Corpo a Corpo e a Boa Forma, seguindo-se o número
da edição e o número das páginas relativas aos trechos extraídos.
Discutiremos agora nossa proposta de mecanismos de análise para tais textos.
5.4 – Forma e conteúdo: o que é analisar um discurso?
A relativa preocupação formal que um analista de discurso tem se mostra uma
postura necessária, porém problemática. Necessária porque sem um exame das
categorias formais, seu trabalho recairia num estudo conteudístico, ligado a alguma área
específica de ciências humanas história, psicologia, antropologia, sociologia.
Problemática pelo fato de não haver uma correlação plena entre o formal e o discursivo.
Uma categoria discursiva como uma modalização, por exemplo pode se expressar
através de mais de uma categoria formal verbos, substantivos, adjetivos.
Inversamente, uma mesma categoria formal pode gerar variados efeitos de sentido,
conforme o espaço textual que ocupe. Dentro de uma visão semântica referencial, sabe-
se que um conteúdo pode ser expresso por diferentes formas. Numa abordagem
essencialmente gramatical ou em lingüísticas formais, haveria, pois, uma facilidade
maior de procedimentos analíticos. O recorte semântico se realizaria, assim, de modo
bem preciso, valorizando o sentido referencial das unidades lingüísticas em tela e
desprezando, assim, as conotações.
Num estudo discursivo, entretanto, até que ponto as mínimas diferenças formais
geram sutis efeitos de sentido distintos? E, gerando-os, até que ponto tais diferenças são
de fato relevantes dentro do fenômeno que se deseja compreender?
De qualquer modo, apesar da dificuldade em estabelecer uma relação direta entre
forma e conteúdo a ser comunicado através do discurso, certas regularidades e
restrições que convém observar. Um substantivo, sozinho, não pode exercer um papel
de conexão, enquanto uma conjunção jamais se presta a nomear um ser do mundo
extralingüístico. As formas lingüísticas têm, assim, um potencial semântico mais ou
menos amplo, que está longe, todavia, de ser infinito.
Aceitando essa idéia de que regularidades e restrições, devemos assumir ainda
um outro problema. Na gramática tradicional e nas lingüísticas de base mais formal, o
limite máximo de atuação é a frase. Nas lingüísticas de discurso, contudo, esse limite
superior é indeterminado, podendo ocupar tanto dimensões relativas a um único
133
vocábulo, quanto a uma série ampla de enunciados transfrásticos como um romance,
por exemplo. Sendo assim, devemos nos ocupar de aspectos formais relacionados a
diversas extensões significantes se quisermos analisar discursos.
Um aspecto a ser levado em conta é o léxico. Não nos referimos aqui apenas a
dividir as palavras constituintes de um texto em campos semânticos específicos, embora
isso possa ser útil. É preciso levar em conta que muitas unidades lexicais se encontram
dentro de uma rede interdiscursiva, de modo que não podemos estabelecer com certeza
seu valor semântico sem olhar seu funcionamento no texto e em confronto com outras
redes discursivas. Devemos encarar a escolha lexical como um procedimento
estratégico guiado por certas intenções: nesse sentido, o uso de um certo registro
lingüístico e o emprego de neologismos bem como de estrangeirismos não é irrelevante.
É preciso lembrar que ajustamos nosso registro de acordo com a situação e o
interlocutor, a fim de causar nele uma certa impressão. Nas revistas que estudamos, é
comum o uso de expressões lexicais que remetem à fala feminina descontraída, que o
público leitor é composto de mulheres.
Também se faz importante analisar de que modo determinados elementos
gramaticais são empregados para suscitarem efeitos de sentido específicos. Em nossa
análise não nos deteremos muito nesses pontos, apreciando brevemente a utilização de
alguns conectivos dentro dos textos persuasivos. Devemos ressaltar, contudo, que o
estudo dos conectivos representa um amplo campo de pesquisas, assim como o dos
pronomes. Eles se inserem, com freqüência, nos estudos de coesão e coerência textuais,
sendo muito estudados pela lingüística textual. Trata-se de uma problemática
lingüístico-cognitiva, na qual, entretanto, não nos deteremos.
Outro aspecto a ser buscado numa análise discursiva é o reconhecimento dos
modos de organização do discurso, ou seja, a arrumação do material lingüístico
objetivando o cumprimento de certas finalidades. Em sua Grammaire du sens et de
l’expression (1992), Charaudeau propôs quatro desses modos: enunciativo, descritivo,
narrativo e argumentativo. Por participar destes últimos três, acreditamos que o
enunciativo deva ser apreciado num nível específico. Por outro lado, o reconhecimento
dos outros três modos é importante, até certo ponto, para auxiliar na classificação dos
gêneros do discurso, levantando seus traços e estratégias particulares. Devemos lembrar
que, pelo fato mesmo de esses três modos não se excluírem, podendo se articular no
texto, revela-se de grande importância para o analista estudar as diferentes maneiras
134
pelas quais eles podem ser mobilizados, cumprindo ou descumprindo os protocolos de
um gênero.
Cabe, neste ponto, fazermos certas considerações teóricas sobre os modos
descritivo e narrativo. Como adverte Charaudeau, nenhum dos dois pode se caracterizar
exclusivamente pelo inventário de marcas formais. Ao contrário do que uma certa
crença geral pode simploriamente sugerir, não basta a presença de substantivos e
adjetivos para termos uma descrição, nem o acúmulo de verbos de ação para que um
texto se configure como narrativo. A caracterização do modo narrativo é bem mais
complexa e não pode ser restrita a um levantamento de classes de palavras.
Inspirando-se em Claude Brémond, Charaudeau concebe o modo narrativo como
uma seqüência caracterizada por três etapas: o estado inicial, em que a falta de algo;
o estado de atualização, em que se efetua uma busca visando acabar com essa falta; e o
estado final, que é o resultado dessa busca (CHARAUDEAU, 2008, p.169).
Essa proposta relaciona-se aos estudos de semiótica, os quais, por sua vez,
remetem às idéias formuladas pelos formalistas russos no início do século XX,
principalmente por Vladimir Propp, que estudou as narrativas populares russas
determinando nelas rios elementos invariáveis. Há algumas linhas de semiótica,
como as que giram em torno das teses de Greimas, que consideram o texto como uma
fonte de produção de sentidos que se manifestam em três níveis, o profundo, o narrativo
e o discursivo (FIORIN, 2002b, p.17).
Assim, segundo esse ponto de vista, a narratividade é um traço inerente aos textos
em geral o que, é claro, não quer dizer que todo texto seja narrativo. A narratividade
representa uma “transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes”
(FIORIN, 2002b, p.21), característica que assinala sua presença nas mais variadas
produções textuais.
Deliberamos, nesta pesquisa, não nos servir dos pressupostos teóricos da análise
greimasiana – a chamada análise semiótica do discurso –, uma vez que estes nos
levariam a outros mecanismos operacionais. Entretanto, nos textos persuasivos que
apreciamos, foi possível realmente notar essa narratividade de que falam os semióticos.
De fato, esses textos se caracterizam por mostrar uma situação de falta com a qual o
leitor deve se identificar – no caso, a forma física comprometida. Em seguida, é
proposta uma metodologia (exercícios, regimes alimentares) que representa a busca pelo
corpo em forma. O resultado, por sua vez, se apresenta sob a forma de exemplos
citados, sejam de pessoas comuns ou famosas, circunstância em que o código visual,
135
manifesto em fotos, se faz muito importante. Além disso, conforme veremos, os textos
persuasivos são compostos de um sem-número de promessas que apresentam uma
relação custo-benefício tão vantajosa, que dão a impressão de serem os resultados
obtidos.
o modo de organização enunciativo, a nosso ver, deve ser apreciado sob uma
ótica específica. Diferentemente dos demais, que podem se alternar na superfície
textual, o enunciativo se sobrepõe a eles, em razão de suas características, pois se
relaciona às manifestações do sujeito em face dos enunciados que são de sua
responsabilidade. Teríamos, dentro dele, três subdivisões, relativas às três pessoas do
discurso: o elocutivo em que predominam as marcas gramaticais de primeira pessoa–;
o alocutivo centrado sobre as marcas de segunda pessoa –; e o delocutivo girando
em torno das marcas de terceira pessoa. Em sua Grammaire, Charaudeau reserva
apenas cinco ginas para esse modo de organização, mas fazendo remissões que o
apontam para os demais modos de organização e, principalmente, para os diversos
dispositivos de modalização. Sua abrangência real se mostra, portanto, inquestionável,
e seria a partir desse modo que estudaríamos, entre tantos outros fenômenos caros à AD,
a questão da polifonia que as formas de discurso relatado são examinadas, por
Charaudeau, justamente no capítulo das modalizações. Acreditamos que a
especificidade do enunciativo lhe valesse uma classificação diferenciada talvez
constituindo não um modo de organização, mas um feixe de focos enunciativos
(conforme propomos em 4.1.2). Essa peculiaridade já foi revista na edição brasileira de
Langage et discours (Linguagem e discurso), obra em que os modos de organização do
discurso foram incluídos, mas numa seqüência diferente daquela proposta pela
Grammaire. Nessa edição, o enunciativo é apreciado em consonância com as
modalizações, que constituem um capítulo específico da Grammaire.
O derradeiro aspecto formal que poderia ser englobado num estudo
semiolingüístico seriam as recorrências sintático-semânticas. Textos que pertencem a
um mesmo gênero costumam apresentar certos protocolos que acarretam regularidades
tanto ao nível do conteúdo, quanto ao nível de sua superfície lingüística. Isso permite
com que sejam elaborados certos esquemas de caráter preditivo fórmulas similares às
da matemática, com variáveis condicionadas a um contexto de invariância.
Tais esquemas são costumeiramente usados não só em lingüísticas formais – como
na gramática gerativa – mas também em estudos discursivos como a semântica
argumentativa. Podemos ir além e caracterizar certos gêneros a partir de esquemas
136
desse tipo, caso consigamos reconhecer alguns de seus lugares-comuns. Pensemos num
jornal sensacionalista, caracterizado por reportagens sobre a violência urbana. Seria
fácil prever suas matérias a partir de fórmulas como “Morrem X em Y”, “Polícia mata
X em Y” ou “Crime em Y”, em que X marcaria uma quantidade relativamente elevada e
Y uma localidade de baixa renda. Vale lembrar que tais esquemas representariam
abstrações elementares, que poderiam se manifestar na superfície frasal através de
formas mais ou menos variadas, evidenciando os imaginários sociodiscursivos que estão
sendo estudados. Nos textos que pesquisamos, é normal aparecerem enunciados do tipo
“Perca X quilos em Y dias”, em que X e Y são inversamente proporcionais. Esses
enunciados, que se comportam como verdadeiras promessas, constituem um dos
elementos discursivos de maior apelo, razão pela qual costumam figurar nas capas, a
fim de chamar a atenção dos leitores.
Em suma, o estudo desses elementos formais no texto poderiam, por si sós,
constituir o centro de uma análise. Muitas vezes, contudo, eles representam aspectos
parciais de um fenômeno mais amplo a ser apreciado. É nesta segunda condição que
situamos nossa pesquisa.
O estudo do ethos, que propomos, não pode se resumir à mera listagem de
aspectos gerais ligados a um certo número de efeitos de sentido. Dizer que, nas revistas
que estudamos, o enunciador transmite um ethos de jovialidade ou de conhecimento em
educação física e nutrição representa um primeiro passo para a análise, mas não um
aspecto conclusivo, até por conta da obviedade dessa constatação.
A questão do ethos se refere, antes de qualquer coisa, a combinações formais que
concorrem para criar uma dada imagem. Ela é, pois, da ordem não do sentido, como
também da materialidade. Por esse motivo, em inúmeras obras, Maingueneau usa
termos como “tom”, “corpo” e “incorporação”. O texto cria uma imagem corporificada
do enunciador, assumindo um determinado tom de voz, como se chegasse mesmo falar,
e essa imagem serve, muitas vezes, de espelho ao destinatário. O enunciador deve de
fato adequar-se a seu público, como propunha a retórica tradicional; mas, por outro
lado, o enunciador também é capaz, de em certa medida, criar o seu público, ao se
definir dentro de parâmetros que são valorizados positivamente em nossa sociedade e
encontra-se a perspectiva da AD. É preciso lembrar que em gêneros como o
publicitário o enunciador tenta criar carências que não existiam ou existiam de modo
apenas latente no destinatário. Até que ponto comprar um par de sapatos, quando se
137
tem tantos, ou trocar de carro, quando se possui um que funciona com eficiência,
constituem necessidades imperiosas?
Embora nosso estudo não se dirija a um gênero exatamente publicitário, essa
fomentação de carências também é encontrada. Uma pessoa pode estar apenas um
pouco acima do peso, sem que isso jamais a tenha incomodado, seja pelo lado da saúde
física, seja pelo lado dos relacionamentos. Ela pode, contudo, ser impelida a aderir a
um programa de exercícios, que lhe prometa fazer sobressair à média da população.
A produção de um determinado ethos implica, pois, uma materialidade, que
definirá a maneira pela qual o enunciador se relacionará com o destinatário. Essa
materialidade pode ser entendida de modo bem amplo, agrupando as mais variadas
codificações semióticas. Daí propormos a divisão do ethos em dois componentes:
I) Componente semiótico refere-se à maneira pela qual se organizam os
diferentes códigos semióticos para formar uma certa imagem. Numa visão ampla, diz
respeito a tudo o que, materialmente, envolve o sujeito. Um candidato a um cargo
político, vestido com calça jeans e camisa de malha, expressando-se através de gestos
fortes e servindo-se de uma linguagem coloquial tem tudo para passar uma imagem
popular, ligada ao povo; por outro lado, o mesmo candidato, portando terno e gravata,
comunicando-se através de gestos pausados e usando um registro lingüístico mais
conservador, busca, em outras circunstâncias, transmitir uma imagem de estadista, a fim
de convencer os estratos mais elevados da sociedade sobre sua competência.
II) Componente relacional – constitui o modo pelo qual o enunciador se reporta ao
destinatário, instituindo no discurso relações de cordialidade, afeto, provocação e
autoridade, entre outras.
Esses dois componentes concernem à diferença clássica entre forma e sentido,
embora o componente semiótico, formal, determine em boa parte o componente
relacional.
Dentro de nossa perspectiva, o componente semiótico será estudado a partir de
dois códigos principais, o textual e o visual, com predominância do primeiro. Todavia,
vale salientar que o aspecto visual das revistas que analisamos não pode ser
negligenciado: as capas, de forte apelo visual, constituem, por exemplo, seu principal
chamariz. Nela se encontram, freqüentemente, fotos de mulheres famosas, bonitas e em
boa forma física. É interessante notar que essas fotos referem-se a pessoas que serão
citadas no texto, não designando diretamente nem o enunciador, nem o destinatário. Na
prática discursiva, contudo, tanto um quanto o outro acabam sendo determinados, até
138
certo ponto, por tais elementos visuais. A foto de uma mulher cuja beleza e fama sejam
reconhecidas pelo senso comum, acaba servindo de modelo e de alvo a ser atingido
através dos procedimentos e sugestões publicados nessas revistas.
Nossa proposta de estudo do ethos, especialmente formulada para gêneros de
visada de incitação, engloba três mecanismos de análise, os quais chamaremos de
“procedimentos persuasivos”. Cada um desses procedimentos se compõe de diversos
recursos lingüístico-discursivos, constituindo espaços funcionais onde se manifestam as
mais variadas conotações, que engendram, assim, as imagens dos sujeitos. Os
procedimentos enunciativos se constroem a partir de um efeito de sentido pretendido,
razão pela qual podemos dizer que eles estão para uma seqüência de enunciados, assim
como as visadas estão para o texto tomado em sua plenitude. Não deve, contudo
confundi-los com a noção de ethos: este é um efeito acarretado justamente por tais
procedimentos.
É importante assinalar, ainda, que os procedimentos persuasivos não podem ser
associados a formas lingüísticas específicas, numa relação biunívoca. Conforme
comentamos, uma categoria formal pode desencadear variados efeitos semântico-
discursivos. Ademais, pela própria natureza desses efeitos, eles podem ser localizados
em trechos bem delimitados ou se espalhar por todo o texto. Também é comum que um
mesmo enunciado combine mais de um dos recursos lingüístico-discursivos que
levantamos. Esse fato se revela, aliás, um elemento complicador na hora de segmentar
os exemplos propostos.
Examinando os textos que compõem o corpus e avaliando suas principais
recorrências, propomos a análise dos seguintes procedimentos persuasivos: o de
credibilidade, em que o enunciador se apresenta como capacitado para versar sobre o
assunto abordado, justificando assim seu direito à palavra; o de aproximação, em que o
enunciador estabelece contato com o destinatário; e o de motivação, em que
efetivamente se exorta o destinatário a cumprir uma dada ação.
Segue um esquema que possibilita uma melhor visualização dos procedimentos
dos quais trataremos:
139
Quadro dos procedimentos persuasivos
Credibilidade
Aproximação
Motivação
Vejamos agora como podemos utilizar esses mecanismos de análise, com a gama
de recursos lingüístico-discursivos que deles participam, dentro do corpus estudado.
Comecemos pelos procedimentos enunciativos de credibilidade.
Conformidade ao gênero
Argumentos de autoridade
Estratégias de
Problematização
Encenação dialógica
Recursos lexicais
Recursos fáticos
Exposição subjetiva
Interpelação
Generalização
Exemplificação
Promessas
Singularização
Depoimento
Registro em 3ª pessoa
140
5.5 Procedimentos persuasivos de credibilidade
Em nosso entender, o ethos de credibilidade é conseguido por intermédio de dois
mecanismos básicos: a conformidade ao gênero em questão e as referências a
argumentos de autoridade. Os grandes estudiosos em análise do discurso ressaltam que
o processo de interpretação depende justamente da compreensão exata do gênero a que
pertence o texto em questão tratamos disso ao longo do capítulo 4. Vejamos como a
filiação a um gênero produz o efeito de credibilidade.
5.5.1 Conformidade ao gênero: a importância do registro lingüístico
A inclusão deste procedimento dentro de nosso panorama de análise talvez se
mostre algo contraditório. Um de nossos objetivos é ressaltar as características
elementares do gênero midiático da boa forma física. Como, entretanto, caracterizá-lo,
se um de seus traços, o ethos do enunciador, depende em parte da observância dessas
características? Teríamos então um caso de definição circular?
É preciso frisar que pautamos nosso trabalho numa hierarquia de objetivos. Nossa
meta principal se refere ao estudo dos mecanismos persuasivos, os quais transcendem a
questão dos gêneros, já que se encontram nos mais diferentes tipos de textos. Por mais
que sejam conceitos que se correspondam, ethos e gêneros são categorias discursivas
diferentes e podem ser estudados dentro de suas especificidades.
Além do mais, os traços de credibilidade de que tratamos são bastante elementares
e não concernem particularmente ao gênero da boa forma física, relacionando-se
também a muitos outros gêneros. O que nos interessa aqui é, sobretudo, uma questão
pontual, a do registro lingüístico.
De fato, a credibilidade, nos mais variados neros, é obtida com o manejo
conveniente de um certo registro lingüístico. Um tom excessivamente informal se
mostra descabido em algumas situações; em outras, o emprego de um registro
rebuscado pode ser risível.
Dos textos estudados, podemos dizer que uma mistura de registros, pois
encontramos elementos tanto de uma língua culta, quanto expressões coloquiais. Não se
trata, porém, de uma combinação harmoniosa. Há, com efeito, um predomínio da
chamada língua padrão, aquela associada à tradição gramatical. O tom coloquial, que
estudaremos à frente, representa aspectos pontuais dentro do texto, referindo-se
141
principalmente ao uso de certos itens lexicais e expressões típicas da linguagem oral e
que se relacionam à fala tipicamente feminina. Por pretender atingir um público amplo,
as revistas Corpo a Corpo e Boa Forma evitam o uso de itens lexicais rebuscados ou
arcaicos. Do mesmo modo, não utilizam em demasia termos técnicos ou jargões da área
de nutrição ou educação física.
De um modo geral, entretanto, o texto se pauta, no vel morfossintático, por
apresentar estruturas tidas como conservadoras. Não nos referimos aqui a construções
frasais de sabor literário, com períodos longos e inversões, nem a colocações
pronominais raras não nos deparamos com nenhuma mesóclise nos textos estudados,
por exemplo.
O conservadorismo ao qual nos referimos se caracteriza por uma resistência à
introdução de traços morfossintáticos próprios da fala espontânea do brasileiro nos
textos escritos mesmo que esses traços, ainda que destoantes da língua padrão, façam
parte do linguajar das pessoas consideradas cultas. É importante ressaltar que muitos
sociolingüistas estabelecem uma diferença entre norma padrão (ou “purista”), aquela
vinculada à tradição gramatical, e norma culta, aquela que é objetivamente falada pelas
pessoas cultas de uma dada comunidade lingüística e cujos eventuais desvios no tocante
ao padrão não são estigmatizados (CALLOU, 2004, p.19).
Nesse aspecto, as redações de Corpo a Corpo e Boa Forma se mostram mais
ligadas à norma padrão. Seus redatores não costumam, por exemplo, usar os pronomes
“ele” e “ela” como acusativos (em frases do tipo “eu escutei ele”):
Só não se esqueça: inspire o ar pelo nariz e solte-o pela boca. (CC232, p. 89)
Será que seus braços, ombros e costas estão prontos para encarar esses modelitos?
Para deixá-los torneados invista no programa [...] (BF252, p. 108)
Ocasionalmente, contrariando a prescrição gramatical, os pronomes retos de
terceira pessoa aparecem como sujeitos acusativos no lugar de seus correlatos átonos:
O rosto expressivo com um colorido ímpar, o corpo desenhado por curvas sutis e o
sorriso doce com certeza fizeram ela aparecer. (CC225, p.56)
Tais empregos são, contudo, esporádicos e justificados pela própria função
sintática de sujeito de verbos no infinitivo exercida pelos pronomes em questão,
142
geralmente junto aos verbos causativos e sensitivos. Essas formas, diga-se de
passagem, são as espontâneas no português falado do Brasil.
Outro fator que mostra um certo conservadorismo dos redatores é a preferência do
verbo “haver” em relação ao “ter” para denotar sentido existencial:
O módulo 2 trabalha pernas e bumbum. No 3, movimentos que malham o
abdômen. Ao final, tem o alongamento, para ajudá-la a ganhar flexibilidade.
bons motivos para você não deixar a peteca cair e continuar mexendo o corpo
[...] (CC232, p. 98)
Fique esperta também com as gorduras trans – empresas que ainda substituem a
manteiga de cacau por essa inimiga para baratear o produto. (BF251, p. 94).
Mas motivos de sobra para você curtir esse sabor, certo? (BF251, p. 95)
Existem, obviamente, algumas exceções a essa tendência, observadas mormente
em certas expressões cristalizadas como “tem mais” e “tem gente”:
[...] tem gente que ainda não consegue correr. (CC225, p.102)
[...] uma queda na taxa de glicose no sangue (hipoglicemia), que traz uma
vontade louca de comer. Tem mais: “Além da redução da leptina, o hormônio da
saciedade, a carência de alimentos aumenta a produção de grelina [...] (CC225, p124)
Um delicado problema no ensino gramatical de hoje no Brasil diz respeito aos
pronomes pessoais, que no português de nosso país houve uma reestruturação no
quadro pronominal. Entre tantas outras implicações, é sabido que o pronome de
tratamento “você” apresenta, muito, uma freqüência de emprego compatível com a
de um pronome pessoal. No entanto, seu uso na fala espontânea da maioria dos
brasileiros também foge às regras gramaticais, uma vez que é comum, conforme o
dialeto, combiná-lo com os clíticos “te”, de segunda pessoa, e “lhe”, de terceira.
Ora, segundo a norma padrão, “te” deveria ser usado apenas com o pronome
pessoal “tu”, e jamais com pronomes de tratamento como o “você”, embora isso
143
aconteça em vários dialetos brasileiros em frases condenadas pela gramática
normativa, como “Se você precisar, eu te ajudo”.
Por sua vez, o pronome “lhe”, associado à terceira pessoa, teria segundo a
gramática a função exclusiva de dativo (objeto indireto); entretanto, em certos dialetos,
acumula também a função de acusativo (objeto direto), em frases do tipo “Se você
precisar, eu lhe vejo semana que vem”, tidas como erradas no tocante à língua padrão.
Assim, as redações de ambas as revistas se mostram conservadoras também nesse
ponto, preferindo o uso dos pronomes pessoais átonos “o”, “a”, “os”, “as”, para marcar
a função de acusativo quando se interpela o leitor, que a forma de abordar a segunda
pessoa se o tempo todo pela utilização do pronome de tratamento “você” e não do
pronome pessoal “tu”:
Está difícil comer menos pão e pizza? Sem problema: um bloqueador de
carboidrato vai ajudá-la a se livrar dos excessos estocados na barriga. (BF251, p.78)
Se ele [o namorado] é gordinho e não faz planos para emagrecer, dificilmente vai
incentivá-la a enxugar os excessos. (CC216, p. 103)
Outros assuntos de sobejo interesse para a sociolingüística e que poderiam
igualmente ser abordados seguindo essa linha de estudos seriam as concordâncias verbal
e nominal, o emprego da partícula “se”, o uso dos infinitivos pessoal e impessoal, a
questão da regência (incluindo o emprego dos pronomes relativos com preposições),
além do problema da colocação pronominal. Tais abordagens, contudo, sairiam do foco
desta pesquisa, centrada na discussão sobre o ethos.
Nessas revistas verifica-se, além do apuro gramatical, um cuidado óbvio com a
ortografia. Embora esta não constitua realmente um item gramatical, já que nada mais é
do que uma convenção, sem dúvida um erro dessa natureza provocaria grande
descrédito dessas revistas junto ao público. Toda essa preocupação em seguir um certo
modelo lingüístico faz parte de uma complexa rede de relações sociais, em que um
discurso que não segue, pelo menos minimamente, esses padrões, sequer tem o direito
de se manifestar. Sírio Possenti destaca o quão é importante o domínio do registro
padrão, sem o qual o sujeito sofre não só a indiferença, mas também a zombaria:
A história secreta e silenciosa de um povo, se fosse escrita, não revelaria maiores
crueldades com os que nem sequer falam em certas circunstâncias por serem
considerados (até por si mesmos, como fruto de uma ideologia da forma lingüística
[o grifo é do autor]) incapazes de falar. E quando falam, o preço que pagam é alto
144
em chacotas, perda de oportunidades de trabalho e de certos espaços sociais,
reservados aos que dominam a “boa linguagem”. (POSSENTI, 2001, p. 164)
Desse modo, verificamos que o emprego de estruturas gramaticalmente tidas como
“corretas”, longe de remeter a um traço de neutralidade, representa um grande efeito
conotativo, já que influi na composição da imagem do sujeito.
Certamente, a credibilidade não se resume ao uso da língua padrão. Ela varia de
gênero para gênero, e, nos casos em que estamos estudando, o uso excessivo de uma
linguagem culta, tendendo ao rebuscamento ou à precisão científica, poderia até ter
conseqüências negativas, segundo explicamos. A conformidade ao gênero deve ser
obtida também com outros fatores; no gênero da boa forma física, é imprescindível que
o enunciador se adapte a uma série de protocolos, incluindo um tom coloquial (do
qual falaremos ao tratar dos procedimentos de aproximação) e apresentação de fotos
específicas (que estudaremos nos procedimentos de motivação). Contudo, o respeito à
língua padrão parece ser o fator primeiro para a obtenção de credibilidade, sem o qual
os demais não surtirão efeito.
Obviamente, não basta escrever bem” para conquistar o público; é preciso saber
trabalhar o tema em questão, fazendo o leitor crer que as informações expostas têm uma
procedência confiável. É por esse motivo que, com freqüência invocam-se os mais
variados argumentos de autoridade, que detalharemos agora.
5.5.2 Referências a argumentos de autoridade
É importante salientar que, nas revistas estudadas, o enunciador, isto é, a imagem
discursiva do sujeito responsável pelo texto, não representa uma instância de autoridade
nos assuntos tratados. O efeito de credibilidade, portanto, não advém de um saber
próprio do enunciador, mas sim de uma referência apresentada e atribuída a um terceiro.
Este pode se configurar de diversas formas, das mais genéricas às mais específicas.
Nos textos que apreciamos, muitas vezes o ethos de credibilidade se constrói por
referências vagas ao domínio científico. Relacionar a reportagem à ciência, ainda que
sem muita especificidade, representa um dos itens básicos para conquistar a confiança
do leitor:
Descubra o que essas garotas fazem (e a ciência aprova) para conservar os efeitos
da dieta e viver em paz com a balança. (BF224, p.82)
145
A ciência comprovou que o tipo amargo [de chocolate], consumido em doses
moderadas, tem o efeito de saciar a fome. (BF251, p.92)
Na maioria das ocasiões, entretanto, essas referências são mais específicas. Por
essa razão, freqüentemente são citadas autoridades no assunto; no nosso caso, trata-se
de profissionais das áreas de medicina, nutrição ou educação física, entre outras:
Para derrubar esse conceito, a nutricionista Márcia Regina Del Medico, do Spa
Jardim da Serra (SP) elaborou um menu acessível, no qual você vai gastar cerca de R$
10,00 por dia. (CC216, p. 92)
O professor de ginástica Ronaldo Martinelli, da [academia] Bio Ritmo (SP),
explica como é a aula [...] (CC216, p. 92)
“A idéia é de que o índice glicêmico (nível de açúcar) da refeição seja alto para
manter a pessoa saciada por mais tempo”, explica Alessandra Rodrigues, nutricionista
da Clínica Filippo Pedrinola, de São Paulo. (CC206, p.102)
O mix dos exercícios físicos deve ser bem bolado pra dar o máximo de resultado,
como nesta aula que Eduardo Costa, personal trainer da academia Cia. Atlhetica, em
São Paulo, montou para você. (BF226, p.56)
“Estar consciente de que haverá momentos de fraqueza, mas que eles podem ser
superados nos torna mais decididas e fortes para não desistir”, diz Yvogmar Palau,
psicóloga clínica da equipe de cirurgia da Clínica Bariátrica de Piracicaba (SP).
(CC222, p.114)
Deve-se atentar, nos exemplos acima, para uma configuração frasal particular.
Além de o nome da pessoa ser acompanhado de sua função ou cargo profissional,
também se destaca o lugar em que ela atua. Tais informações não podem ser encaradas
exclusivamente do ponto de vista denotativo. É claro que elas guardam
inequivocamente seu valor referencial, mas, igualmente, produzem efeitos de sentido
que não podem ser descartados num estudo discursivo.
146
Numa análise radicalmente referencial, típica de lingüísticas formais ou mesmo da
gramática tradicional, termos como “nutricionista”, “professor de ginástica”, personal
trainer e outros arrolados acima assumiriam a função de aposto, ao passo que as
indicações de local desempenhariam os papéis de adjuntos adnominais locativos ou
adjuntos adverbiais de lugar. Estaríamos, pois, diante de funções consideradas
acessórias, sob uma perspectiva exclusivamente sintática. Na esfera discursiva, porém,
o poder de conotação desses elementos é crucial no processo de persuasão, nada tendo
de acessório. Desse modo, é fácil observar o hiato que existe entre função sintática e o
que poderíamos chamar de função discursiva. Note-se, ainda, que o valor de tais
conotações é fomentado por toda uma rede de relações sociais. Tanto na revista Corpo
a Corpo quanto na Boa Forma, os topônimos “Rio de Janeiro” e “São Paulo” são
citados inúmeras vezes , já que são as duas metrópoles de maior destaque do Brasil.
Outra importante referência a argumentos de autoridade é a menção a pesquisas,
quase sempre pontuadas com dados estatísticos:
Estudos revelam que mais de 95% das pessoas recuperaram o peso pouco depois
que as dietas acabam. (BF224, p.82)
Nas gramáticas tradicionais, afirma-se que os numerais representam a classe
gramatical que indica uma quantidade exata de pessoas ou coisas (CUNHA & CINTRA,
p. 358). É justamente graças a essa característica de exatidão que os numerais, sob a
forma de dados técnicos, revestem os enunciados dos quais participam de um valor
conotativo de credibilidade.
É importante acrescentar que, geralmente, essas pesquisas são atribuídas a
determinadas instituições, o que torna o efeito de credibilidade mais evidente do que nos
casos de referências mais vagas:
Prova disso é uma pesquisa realizada justamente pelo Ambulatório de
Ginecologia da Adolescentes do Hospital das Clínicas da USP (SP), que mostrou que
75% das 45 meninas entrevistadas, que tinham entre 10 e 20 anos, fazem somente uma
ou, no máximo, duas refeições por dia quando querem secar. (CC205, p.122)
147
As linhas light e diet cresceram – pasmem! – 800% nos últimos dez anos. Segundo
a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos Dietéticos (Abiad), só no ano
passado, a oferta de produtos light e diet aumentou em 20% em relação a 2004 e
movimentou 4 milhões de dólares (BF226, p.69)
Ocasionalmente, as matérias trazem, além de dados percentuais, informações
técnicas:
Assim, você vai trabalhar na freqüência cardíaca ideal para a queima de calorias,
ou seja, entre 60 e 75% (BF228, p.44)
Em outras circunstâncias, mais raras, emprega-se uma terminologia científica,
incomum na fala corrente. Observe-se que o fato de serem palavras complicadas”
certamente confere ao texto uma aparência de cientificidade:
O cacau tem uma quantidade incrível de polifenóis e flavonóides o dobro que o
vinho tinto e cinco vezes mais que o chá verde (BF251, p.95)
Além disso, o cacau concentra vários componentes que melhoram o humor, alguns
de nomes complicados: teobromina (um primo mais fraco da cafeína), triptofano,
feniletilamina e magnésio [...] (BF251. p.93)
Também são citadas obras específicas, sejam periódicos ou livros, sempre sendo
apresentadas informações técnicas:
Lucyanna Kalluf, farmacêutica especialista em fitoterapia e nutricionista funcional
do Instituto Alpha, também em São Paulo é mais otimista: “O chá verde aumenta em
4% o ritmo do metabolismo, segundo pesquisa publicada na conceituada revista
American Journal of Clinical Nutrition, dos Estados Unidos. O branco pode acelerar em
até 8%, de acordo com resultados clínicos” (BF252, p.103)
148
“Nós temos observado que em muitos pacientes a depressão na pele está
relacionada à alergia provocada por determinados itens colocados no prato”, afirma
Denise Madi Carreiro, nutricionista funcional e autora dos livros Entendendo a
Importância do Processo Alimentar e Alimentação – Problema e solução para Doenças
Crônicas. (BF 252, p.89)
Por fim, até mesmo determinados eventos servem para contribuir na formação do
ethos de credibilidade:
No ano passado Vânia resolveu desenvolver o equipamento aqui. Ele será um dos
destaques da 18ª Fitness Brasil, a principal convenção do setor neste país [...] (BF251,
p.83)
Destacados esses recursos, abordaremos agora os procedimentos ligados à
aproximação, isto é, às maneiras pelas quais o enunciador aborda o leitor, chamando-lhe
a atenção para os problemas a serem tratados.
5.6 Procedimentos persuasivos de aproximação
Textos como os que estamos estudando propõem soluções a serem alcançadas
mediante o cumprimento de certos procedimentos, como exercícios físicos ou dietas
específicas. Portanto, além de o enunciador ter que mostrar credibilidade, ele deve
transmitir também um ethos de cordialidade, envolvendo-se com o leitor e com ele se
identificando, pelo menos até certo ponto.
Os procedimentos de aproximação referem-se, desse modo, à maneira pela qual o
enunciador tenta abordar o destinatário, buscando criar determinados efeitos de empatia,
como os de jovialidade ou de sofisticação. Segmentamos dois tipos básicos desses
recursos discursivos. Um é a encenação dialógica, em que o enunciador lança mão de
um certo número de expedientes que dêem a impressão de uma conversa com o leitor,
apesar de o mídium em questão uma revista impossibilitar uma troca verbal
imediata. O outro tipo consiste na problematização em si, isto é, no modo pelo qual o
enunciador relaciona o problema a uma pessoa do discurso, seja interpelando
diretamente o destinatário, ou apresentando, em primeira ou em terceira pessoa, um
149
actante com o qual ele se identifique, O foco enunciativo, evidentemente, acarreta
efeitos distintos.
Comecemos por examinar a encenação dialógica.
5.6.1 Encenação dialógica
Um texto persuasivo, por sua própria natureza de incitação, tende ao foco
alocutivo, uma vez que sua finalidade consiste em exortar o destinatário a cumprir uma
determinada ação. Por esse motivo, o problema muitas vezes é tratado através de uma
espécie de conversa com o leitor, uma cenografia de diálogo em que se utilizam
variados recursos expressivos que evocam aspectos típicos da língua oral e remetem à
chamada função fática, proposta por Jakobson. Vamos a eles.
5.6.1.1 Recursos fáticos
Desde Saussure, entende-se que as comunicações verbais humanas constroem-se a
partir de elementos lingüísticos (fonemas, morfemas, sintagmas) e o-lingüísticos
(certas modulações fonéticas, gestos, olhar, etc). A lingüística tradicionalmente não se
importa com os elementos não-lingüísticos, mesmo quando eles fazem parte da própria
configuração fonética dos enunciados. A estes costuma-se reservar o termo “supra-
segmentais”, já que não podem ser segmentados em elementos discretos, como acontece
com os fonemas. Existem, é bem verdade, elementos supra-segmentais que apresentam
valor gramatical, sendo, portanto, da alçada da lingüística. Isso, contudo, varia de língua
para língua. No português, o traço de intensidade constitui um elemento lingüístico,
que a sílaba tônica representa um fator de distinção entre palavras (por exemplo,
“secretaria” e “secretária”, ou “fabrica” e “fábrica”). Em outras línguas, a altura
(modulação das palavras) e a duração silábica (acento de quantidade) é que assumem
valor distintivo. É inquestionável que todos esses recursos prosódicos têm grande
relevância nos intercâmbios conversacionais, sendo utilizados pelo falante com extrema
freqüência. Apesar disso, são tradicionalmente relegados à chamada linguagem
“afetiva” ou à estilística, e é só esporadicamente que interessam ao lingüista.
Na AD, contudo, esses elementos não podem passar ao largo, que sua inserção
no texto colabora na elaboração de certos efeitos, como o de coloquialidade. Nas
150
revistas analisadas, não é raro o emprego de elementos que simulam certos trejeitos
fonéticos. Muitos se referem a interjeições de base onomatopaica:
U-hu! Você sobreviveu à corrida durante um mês inteirinho! (CC206, p.86)
Ok, você tem o direito a mais um pedacinho (só um, hein!) quando estiver triste,
cansada ou estressada. (BF251, p.93)
[...] para fazer uma subida íngreme, longa e que parece não chegar nunca ao topo
de uma rocha, ops! de uma parede [...] (BF251, p.91)
Ah, correr não é tão difícil assim, vai! (CC206, p.77)
Graças a isso, o corpinho esquálido de modelo está totalmente fora neste verão
ufa! (CC216, p.82)
É importante assinalar que nem toda interjeição representa uma onomatopéia,
podendo ser também de base lexical:
Depois que aprendi a mastigar, consegui pôr em prática todos os princípios de boa
alimentação e, aleluia!, emagrecer. (BF228, p.95)
Vendidas em cápsulas [...] têm efeito parecido aos da nova geração de
medicamentos convencionais, que reduzem a fome, aceleram o metabolismo e
(maravilha!) impedem parte da absorção do carboidrato. (BF251, p.78)
Devemos, neste ponto, tecer mais algumas considerações sobre a relação entre
gramática e discurso. A classe das interjeições é habitualmente pouco estudada.
Mesmo entre os gramáticos tradicionais, há aqueles que sequer consideram a interjeição
como uma classe de palavras, posição defendida por Celso Cunha e Lindey Cintra, para
quem as interjeições representam vocábulos-frase (CUNHA & CINTRA, 1985, p. 77).
Opinião similar é compartilhada por lingüistas como José Lemos Monteiro
(MONTEIRO, 1992, p. 204).
151
O fato é que a definição técnica das interjeições deixa muito a desejar, o que é
compreensível, que, como afirmamos em 3.1, a gramática tradicional se alicerça
sobre uma visão referencial da língua. Nesta, prioriza-se o sentido literal, que se situaria
além de qualquer emprego contextual. As interjeições, por outro lado, são apresentadas
pela gramática como tendo apenas sentido contextual, razão pela qual são consideradas
como verdadeiras “frases de situação”. Ora, na análise do discurso todo sentido é
contextual, de modo que essa distinção cai por terra.
Além disso, a definição tradicional, de acordo com a qual a interjeição representa
“a expressão com que traduzimos os nossos estados emotivos” (BECHARA, 2004,
p.330) se mostra, no mínimo, incompleta. Qual o aspecto “emotivo” que elementos
como “ops!” ou “hein” realmente expressam? Reitera-se aqui o que foi comentado na
seção 3.1: o que escapa ao chamado domínio intelectivo da língua é considerado,
indiscriminadamente, como “emotivo”, termo que se mostra, portanto, impreciso.
Mesmo na gramática de Cunha & Cintra, autores que definem a interjeição como “uma
espécie de grito com que traduzimos de modo vivo nossas emoções” (CUNHA &
CINTRA, 1985, p.577), uma tipologia que comporta itens como “invocação”,
“silêncio” e “suspensão”, que dificilmente podemos considerar como emoções. Deve-se
lembrar ainda que, na prática discursiva, as palavras lexicais também podem demonstrar
“emoções”, seja por sua própria carga semântica, seja pela entonação que recebem no
contexto comunicativo.
Aliás, parece-nos ser mais acertado afirmar que não é a interjeição em si que
expressa um estado de alma, mas sim a entonação que se ao enunciado num todo e
que, eventualmente, pode consistir na emissão de uma única interjeição.
Seja como for, na prática, as interjeições, mesmo as de base onomatopaica, como
“ah”, “oh” e “hein”, se encontram inscritas nas trocas linguageiras habituais, sendo
inclusive dicionarizadas. Outras palavras e mesmo frases feitas possuem um emprego
interjeitivo cristalizado, caso de “Ai de mim!”, “Deus me livre!”, “Cruz credo!”.
Mas, o que seria afinal esse uso interjeitivo?
Descartamos, pelos aspectos mostrados acima, que a interjeição deva se definir
exclusivamente como a classe de palavras que expressa emoções, embora ela possa
também se prestar a essa função. No discurso, a interjeição representa um elemento
convencionalizado, que, por conta de um princípio de economia lingüística, expressa
diversas apreciações subjetivas, eventualmente chamando a atenção para o próprio
enunciado do qual fazem parte.
152
Em vez de falar de “emoções”, vocábulo que, antes de qualquer coisa, tem
implicações psicológicas, preferimos tratar, pois, de “apreciações subjetivas”, expressão
mais de acordo com a AD. Pode-se objetar dizendo que essa expressão é igualmente
vaga, mas a defendemos por dois motivos: em primeiro lugar, porque, justamente por
ser vaga, ela não induz a incoerências, como acontece com a palavra “emoção”; em
segundo lugar, as interjeições, como já salientamos, representam uma classe fechada, de
fácil reconhecimento por seus falantes, de modo que essas apreciações subjetivas
constituem um repertório que não tende à indeterminação, já devidamente descrito pelas
gramáticas normativas. A nosso ver, o problema de definição das interjeições poderia
ser resolvido se fosse adotada uma divisão delas em dois tipos fundamentais: um
associado realmente à expressão de sensações emotivas e sensoriais (“oh”, “ai!”, ah!”);
o outro se referindo ao contato com o interlocutor, ou seja, relacionado a um valor
fático (“olá!”, “oi”, “alô”).
A interjeição, por suas próprias características, representa, de fato, um elemento de
realce do discurso, motivo pelo qual participa com destaque da função fática da
linguagem. Chegaríamos, inclusive, a uma dúvida conceitual: seriam todas as
expressões de valor fático, de emprego cristalizado, interjeições? Essa questão foge
ao escopo de nosso trabalho, mesmo porque se volta para estudos da língua oral.
Acreditamos, contudo, que seria mais sensato considerar certos tipo de interjeições
mas não todas como parte de um universo mais amplo de elementos fáticos, o
conjunto dos “marcadores conversacionais”, que Ingedore Koch considera como
verdadeiros “pontuadores” do texto, capazes de fornecer determinadas pistas de
interpretação ao interlocutor (KOCH, 2003, p.123).
Em Corpo a Corpo e Boa Forma, o que não faltam são essas expressões fáticas,
que conferem ao texto uma aparência de informalidade. Elas se constroem a partir das
mais diversas configurações morfossintáticas, perdendo, ocasionalmente, seu sentido
referencial:
Mas, calma , porque enfrentar na cara e na coragem as ondas e a maré é
muito arriscado (CC216, p.92)
E aí, vai encarar? (CC216, p.91)
153
Por exemplo, faça caminhos diferentes ao malhar perto de casar e alterne a
velocidade e inclinação na esteira. Fácil, não? (CC206, p.87)
Fala sério, você merece se dar um abraço, foi fantástica! (CC222, p.118)
Pois é, quando degustamos os alimentos e não apenas os empurramos para o
estômago, estamos vencendo a batalha contra a gula (BF228, p.96)
Sim, vale a pena tentar descobrir o prazer do chocolate [...] (BF251, p.94)
[...] e o segundo [treino] que tonifica a musculatura, precisa ser feito por mais 15
dias. Olha só: (CC, n.225, p.104)
O emprego das expressões acima se justifica por sua natureza intersubjetiva no
discurso. Expressões como “calma lá” exortam o leitor a uma dada atitude; outras como
“sim” e “pois é”, parecem enfatizar uma idéia que ele possui. Também se empregam
estruturas interrogativas, que servem para captar a atenção do leitor, como o “não?”, que
tem seu valor convencional de negação profundamente alterado, assumindo uma função
que é a de sinalizar a passagem do turno de fala para o interlocutor. O estudo desses
marcadores é extremamente importante nas análises conversacionais, seja do ponto de
vista cognitivo, a fim de determinar como um texto se constrói no processo interacional,
seja do ponto de vista pragmático, em que se estuda a interação através dos atos de fala.
Em nossa pesquisa, que não se desenvolve sobre a troca verbal imediata, esses
marcadores interessam por ajudar na configuração de um ethos de cordialidade e de
informalidade.
As fórmulas interrogativas de valor fático muitas vezes se compõem de um único
adjetivo no feminino, pois esta é a imagem que se constrói do destinatário: a de uma
leitora preocupada com sua forma física e disposta a investir em métodos que a
assegurem ou a mantenham:
[...] comece agora o programa de cinco estrelas e ganhe nota 10 no quesito
gostosura! Preparada? (CC205, p.74)
Animada? Então reserve o melhor horário na sua agenda e vamos lá. (CC232,
p.90)
154
Surpresa? Nós também ficamos! Mas é fato: o tipo amargo chocolate com
maior concentração de cacau – aumenta a sensação de saciedade (BF251, p.92)
Os três adjetivos acima acabam valendo por frases completas, do tipo “Você está
preparada?”. Desse modo, acabam, na prática discursiva, aproximando-se da definição
de alguns gramáticos e lingüistas sobre as interjeições.
Muitas vezes, como vimos acima, essas interrogações são respondidas com frases
exclamativas, sugerindo ao leitor uma dada reação motivadora:
Ficar de fora do almoço em família ou com os amigos? Nem pensar! (BF231,
p.93)
Está pensando em desistir? Pára com isso! (CC205, p.102)
O gasto calórico? Cerca de 700 calorias por aulas! (BF226, p.85)
Finalmente, outro elemento típico da conversação, particularmente das interações
femininas, é o prolongamento silábico, encontrado algumas vezes:
Você sua muuuito e detona nada menos que 900 calorias por aula. (CC225, p. 91)
Apresentados esses recursos ligados à fonética e à interação verbal, devemos
examinar os recursos lexicais utilizados para participarem, também, desse ethos de
cordialidade e informalidade.
5.6.1.2 Recursos lexicais
O aprendizado do léxico de uma língua não pode se limitar à questão da
referência. É necessário prever os possíveis efeitos de sentido que seu uso implicará
ofensa, simpatia, carinho, sofisticação, autoritarismo, complacência, entre tantos outros.
As nguas naturais têm a seu dispor uma série de itens lexicais destinados a um
uso coloquial. Seu emprego, por parte do enunciador, pode lhe conferir um ar de
informalidade e mesmo de jovialidade. Nas revistas estudadas, conforme já
155
destacamos, à sintaxe conservadora costumam-se articular elementos lexicais mais
inovadores e menos formais:
Você tem certeza de que não tem alergia ao pãozinho com farinha de trigo?
Mesmo assim, maneire com esse item e em todos com alto índice glicêmico (BF252,
p.91)
O legal é que, como o equipamento é pequeno, para levar para qualquer lugar.
(BF251, p.83)
Experimente, pois enquanto você está curtindo a sua trilha sonora predileta nem
vê o tempo passar... (CC206, p.86)
Nos trechos acima, “maneirar”, “legal”, “dar para” e “curtir” são típicos do
registro coloquial, e deveriam ser substituídos em textos mais formais respectivamente
por “moderar”, “interessante”, “é possível”, “apreciar”. Obviamente, “maneirar” e
“moderar” têm uma mesma referência, mas dentro da perspectiva da AD não se pode
dizer que possuam o mesmo sentido, pelo simples fato de que produzem efeitos de
sentidos diferentes. Também é importante frisar que “coloquial” não significa
necessariamente “inovador”: uma palavra como “legal”, por exemplo, é coloquial, mas
seu uso já é bastante duradouro na língua portuguesa do Brasil.
Alguns desses lexemas coloquiais acabam por funcionar como uma espécie de
jargão dessas revistas, visto que são muito empregados na área de educação física. É o
caso dos verbos “detonar”, “turbinar” e “secar”, que aparecem com freqüência nas capas
e matérias dessas publicações:
Detone 400 calorias em 30 minutos (BF251, p.84)
Bem, nós acreditamos em você e para turbinar seu potencial, elaboramos as dicas
a seguir, que vão ajudá-la a superar suas próprias barreiras. Leia, coloque-as em ação e
pé na tábua.
Quem não quer secar as gordurinhas extras, ficar com o corpo mais firme e livre
do calor? (BF224, p.79)
156
Outros elementos coloquiais são próprios da linguagem feminina e seu emprego
soaria estranho por parte de um homem. Nas revistas analisadas, contudo, eles vêm bem
a calhar, já que evocam diálogos tipicamente femininos:
Sua amiga fez uma dieta, emagreceu horrores. (BF231, p.108)
É importante forrar direitinho a barriga, especialmente se vai arrasar na pista de
dança, para não passar mal. (CC206, p.104)
Nesse aspecto, as derivações associadas à noção de grau, e que as gramáticas
normativas tratam como flexões, ocupam um lugar à parte na fala feminina. Como se
pôde notar nos trechos anteriores, os diminutivos, por fazerem parte de uma linguagem
que se pretende mais delicada e até carinhosa, são muitos freqüentes. Apresentamos
abaixo mais alguns exemplos, que poderiam se estender indefinidamente:
Montamos uma festa gostosa, levinha e fácil de fazer (BF228, p.44)
É o delicioso gostinho de vitória pessoal em testar e superar os próprios limites
que tem levado centenas de mulheres a praticar esportes radicais. (CC216, p.91)
Você vai usar muita coisa que tem em casa. E a comidinha vem em porção
individual, para facilitar na hora de servir. (BF228, p.75)
[...] combine-o com uma dieta leve para detonar as gordurinhas ainda mais
rapidinho (BF252, p.103)
Para esculpir a sua cinturinha, você tem que trabalhar os músculos abdominais
oblíquos mais profundos (BF226, p.67)
Além do diminutivo, outro tipo de derivação de grau próprio da linguagem
feminina coloquial são os superlativos com o sufixo érrimo(a), de caráter mais
moderno:
157
Resultado: somando todos esses recursos à sua firmeza, a bela passou na prova e
ganhou a personagem magérrima. (CC225, p.117)
Ao contrário do que se poderia prever, se o diminutivo é marca típica do falar
feminino, o aumentativo não se mostra um recurso exclusivo do falar masculino.
Abaixo, vemos como certos aumentativos podem ser tranqüilamente empregados na fala
feminina, contribuindo também para criar um ethos de informalidade:
Não importa o motivo de você fazer uma boquinha noturna: porque sente fome
mesmo, precisa se abastecer pra balada ou só consegue jantar tardão. (CC206, p.102)
De olho no filão que cresceu, muitas academias trataram rapidinho de adaptar
para seu espaço várias modalidades outdoor. Um golaço! (CC216, p.91)
Além das derivações relativas ao grau de elementos nominais, existem outras, de
teor também coloquial, que figuram nos textos estudados. Um caso interessante é o das
derivações com os chamados neo-afixos. Trata-se de radicais, em geral gregos e latinos,
que, dada à extrema produtividade no processo de formação vocabular, assumem um
comportamento gramatical de prefixos e sufixos. Entre os neoprefixos, destacaríamos
“super”, “ultra” e “mega”, que aparecem nos trechos abaixo:
Para quem gosta de nadar, poder dar braçadas na praia é uma mega desafio
(CC216, p.92)
[...] Meses antes de entrarem na avenida, entregam-se a um ritmo superintenso de
exercícios (CC205, p.74)
Tudo bem que não é superanimador trocar lugares exóticos e de natureza
exuberante por quatro paredes [...] (CC216, p.91)
Ou seja, quando você transgride as regras básicas da boa alimentação para tentar
emagrecer ultra-rápido, o corpo e a mente reclamam [...] (BF228, p.85)
158
[...] as receitas são rapidinhas de preparar, lindas de ver, supersaborosas e pouco
calóricas, para não oferecer perigo às suas curvas (BF228, p.72)
Na verdade, esses elementos, na língua coloquial, talvez tenham até superado a
produtividade dos prefixos, alcançando uma freqüência de uso de advérbios de
intensidade: essa configuração sintática, na qual aparecem junto a adjetivos, pode ser
vista nos três últimos extratos acima.
Os neologismos também conferem ao texto um caráter coloquial. A título de
exemplo, destacamos a derivação parassintética “engordativas”, acarretada pela inclusão
simultânea de prefixo e sufixo, que mostramos abaixo:
Encontramos maneiras de driblar essas gorduras e outras situações ‘engordativas’
(CC216, p.91)
Não poderíamos nos esquecer também de outro importante recurso de produção
lexical, os estrangeirismos. Os efeitos produzidos por eles não são exatamente os de
coloquialidade. Seu emprego por parte do enunciador busca a obtenção de um ethos de
modernidade e sofisticação, conforme o caso:
Bike parada, cabeça a mil. (CC216, p.94)
Importante mesmo é se mexer e dar start ao treino o quanto antes (CC225, p.102)
[...] preparando esses órgãos para fazer seu serviço, ou seja, triturar o alimento no
ponto certo para ser assimilado pelo intestino e daí enviado para o sangue que faz o
delivery para as células [...] (BF228, p.96)
make só à noite
Como cada um de nós, ela não dispensa uma maquiagem. (CC225, p.58)
No entanto, quando mal tinha acabado com os últimos gramas, um convite abalou
o sucesso com novo shape. (CC225, p.117)
159
Se esse é o seu caso, no problem, não precisa se achar a última das malhadoras
por causa disso (CC225, p.102)
Observe-se que, se empregássemos os termos correlatos do português, como
“bicicleta” por “bike” ou “entrega” por “delivery”, não teríamos alteração de sentido
quanto à referência, mas perderíamos no aspecto conotativo. Os estrangeirismos
tendem a produzir uma aura de status no enunciador, fato destacado por Mikhail
Bakhtin:
Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira palavra que transporta
consigo forças e estruturas estrangeiras e que algumas vezes é encontrada por um
jovem povo conquistador no território invadido de uma cultura antiga e poderosa
(cultura que, então, escraviza, por assim dizer, do seu túmulo, a consciência
ideológica do povo invasor) fez com que, na consciência histórica dos povos, a
palavra estrangeira se fundisse com a idéia de poder, de força, de santidade, de
verdade, e obrigou a reflexão lingüística a voltar-se de maneira privilegiada para
seu estudo. (BAKHTIN, 2004, p.101)
9
Os recursos relativos à encenação dialógica, tanto fáticos como lexicais,
correspondem, segundo o que vimos, a uma adequação da linguagem do enunciador à
do destinatário. Não se trata, contudo, de um procedimento passivo, mas sim de um
processo de mão dupla: ao mesmo tempo em que o enunciador se adapta a uma
linguagem aparentemente jovial e descontraída de seu interlocutor, ele também cria uma
imagem de jovial e descontraído deste último, com a qual o leitor real (o sujeito
interpretante) poderá se identificar.
Esse vínculo entre enunciador e destinatário, criado por dispositivos lingüísticos,
se mostra de grande importância nos mecanismos gerais de persuasão, e abre espaço
para que o problema a ser solucionado no caso, a forma física abaixo do esperado –,
figure no texto.
Vejamos agora de que forma esses problemas, que os esquemas narrativos
chamam de “falta”, são apresentados, de modo a causarem interesse no leitor.
5.6.2 Estratégias de problematização
Até o momento, mostramos que para o enunciador persuadir o destinatário, ele
deve apresentar credibilidade seja pelo uso da língua padrão, seja pelas referências a
9
Os grifos em itálicos já se encontram no texto em questão.
160
autoridades no assunto e empatia, através de recursos discursivos que visem a uma
cenografia de conversação. Entretanto, é necessário também que haja um procedimento
que apresente um problema que seja do interesse do leitor, para que este busque uma
solução.
Assim sendo, dentre os procedimentos persuasivos de aproximação, formulamos
as estratégias de problematização, na qual as diferentes configurações do modo de
organização enunciativo desempenham importante papel. Em nossa proposta, o
problema pode ser apresentado de três formas: em primeira pessoa, na qual uma voz que
se assimila à do leitor expõe seus problemas e dúvidas; em segunda pessoa, na forma de
interpelação, freqüentemente através de interrogações diretas ao leitor; e, por fim, em
terceira pessoa, em que se constrói um efeito de generalização que sofre, contudo,
inúmeras nuances.
Comecemos nossas ponderações pelo que chamamos de exposição subjetiva.
5.6.2.1 Exposição subjetiva
O procedimento de exposição subjetiva também constrói uma cenografia de
conversação, porém mais específica. Na maioria das vezes, assemelha-se a situações
dialógicas nas quais o leitor se consulta com um especialista, mostrando-lhe suas
dúvidas e apresentando seus problemas. Os trechos em primeira pessoa servem de
pretexto para o enunciador minimizar os problemas apresentados e propor soluções:
sozinha não vou
Muitas academias oferecem aulas de corrida indoor, em que o aluno se exercita
dentro da sala de aula, nas esteira, lado a lado com outras pessoas [...](CC206, p.86)
sinto tédio
Nada mais simples e eficaz para alegrar um programa entediante do que música
[...] (Idem)
meu corpo dói
Dores são um sinal de qual algo foi feito errado [...] (CC206, p.87)
161
não sei a técnica
Ah, correr não é tão difícil assim, vai! Como a caminhada, a corrida é um
movimento natural do corpo [...] (Idem)
me falta lugar
Sabe a máxima de que para correr só é preciso um par de tênis e força de vontade?
[...] (Idem)
sinto calor
É normal a temperatura corporal subir durante o exercício [...] (Idem)
Caso 1 “Morro de fome de madrugada”
Para afastar a vontade louca de comer muito, o certo é fazer um jantar rico em
fibras [...]
Caso2 “ Como muito antes da balada”
Já que você vai gastar muita energia, faça uma refeição completa [...]
Caso 3“ Janto tarde e vou para cama em seguida”
Deixe os alimentos pesados para o almoço [...] (CC206, p. 102-104)
Em outras circunstâncias, o enunciador vai além e começa por analisar as causas
desses problemas, antes de formular possíveis soluções:
1 Fico mal humorada e irritada
Causa: você deve estar comendo pouquíssimo carboidrato [...]
2 Sinto muita dor de cabeça
Causa: quem se alimenta mal ou faz intervalos muito longos entre as refeições
passa por episódios de hipoglicemia [...]
3 Já no terceiro dia de dieta estou exausta
Causa: falta de ferro no cardápio [...]
4 Não consigo me concentrar
Causa: pode ser carência de vitaminas do complexo B [...] (BF228, p.85-87)
O emprego da primeira pessoa demonstra a importância do interdiscurso na
elaboração dos textos. Inúmeros foram os estudiosos que pesquisaram a influência do
162
discurso do outro na formação de um texto específico, seguindo linhas teóricas distintas:
Bakhtin, Pêcheux, Ducrot, Kerbrat-Orecchioni, Jaqueline Authier-Revuz, Maingueneau,
para citarmos alguns. Faz-se necessário, aqui, diferenciar interdiscurso de intertexto:
este refere-se a uma citação de um texto específico; aquele consiste na utilização
genérica de certas idéias cuja fonte nem sempre é associada a um autor ou texto em
particular.
Nos exemplos acima, busca-se a identificação do leitor com os enunciados em
destaque por se acreditar que eles circulam, ainda que sob outras formas, junto ao
público consumidor da revista.
Passemos agora à apresentação do problema através do foco alocutivo, que
denominamos de interpelação.
5.6.2.2 Interpelação
De um modo geral, “interpelar” é sinônimo de “perguntar”. É realmente sob a
forma de perguntas diretas ao leitor que o emissor destaca um dado problema a ser
resolvido. O pronome “você” se mostra, por isso mesmo, muito freqüente. Mais do que
denotar uma segunda pessoa, o que nos importa é seu poder conotativo de criar um
vínculo com o leitor das revistas:
Você malha pra quê? São muitas as razões que levam as mulheres a fazer
ginástica [...] (CC222, p.102)
Você sonha com um chá que tenha os poderes do verde, mas sem o sabor
amargo? (BF252, p.102)
Às vezes o pronome “você” não aparece, mas a desinência verbal de terceira
pessoa, própria dos pronomes de tratamento, e o contexto se encarregam de sinalizar o
foco alocutivo:
Está passada com as curvas da apresentadora Daniela Freitas? Nós também
ficamos! (CC222, p.98)
Em algumas circunstâncias, os determinantes que se relacionam ao pronome
“você” é que marcam o foco alocutivo, caso dos possessivos. Deve-se lembrar que os
163
redatores seguem a norma padrão, utilizando os possessivos de terceira pessoa (“seu”,
“seus”, “sua”, “suas”) e não os de segunda (“teu”, “teus”, “tua”, “tuas”) como ocorre em
alguns dialetos:
Promessas de emagrecimento existem aos montes, mas como encontrar uma que
funcione e atenda às suas expectativas? (CC232, p.108)
Em muitos casos, a interpelação é seguida de uma exortação ou de uma expressão
de caráter promissivo:
Com a chegada dos dias frios, sua disposição para continuar se exercitando está
com o termômetro, despencando?
Segure firme! bons motivos para você não deixar a peteca cair e continuar
mexendo o corpo sem parar, até o próximo verão. (CC232, p.108)
Só de pensar em musculação você faz careta? Ama piscina? Ou não resiste a uma
novidade? Sem problemas: para malhar feliz da vida seja qual for seu estilo.
(BF231, p.98)
Segundo Charaudeau, a interpelação pode se apresentar sob várias formas, não se
resumindo às interrogações. Trata-se, na realidade, de uma modalidade alocutiva que
“destaca a pessoa dentre um conjunto de interlocutores possíveis, designando-a por um
termo de identificação mais ou menos específico” (CHARAUDEAU, 2008, p. 86). É
por isso que, além de se apresentar em enunciados interrogativos, a interpelação muitas
vezes se estrutura sobre frases afirmativas. É comum, nesses casos, encontrarem-se
descrições que, mesmo sendo breves, assinalam determinadas situações recorrentes os
frames, de que falam os cognitivistas (FÁVERO,1997, p. 63). Vejamos o exemplo
abaixo, em que se observa uma situação comum a quem deseja praticar a corrida, mas
não suporta os esforços iniciais:
Você bem que tenta: apressa o ritmo da caminhada, força as pernas um
pouquinho mais, respira fundo e um pique. Mas 20 segundos depois se sente exausta
e pára, com a língua de fora, sem fôlego e chateada consigo mesma por não conseguir
manter a velocidade por um único e mísero segundo sequer. (CC206, p.86)
164
Também se costumam combinar interrogações a frases afirmativas, de modo que o
problema exposto ganhe um contorno de particularização:
Caprichou nos exercícios para pernas e bumbum para desfilar maravilhosa no
biquíni? Ótimo. Você não é a primeira nem será a última a ter se esforçado nos
agachamentos outros exercícios para os glúteos e coxas. Mas a gente não pode
esquecer que verão também é sinônimo de regatinhas e vestidos decotados. Será que
seus braços, ombros e costas estão prontos para encaixar esses modelitos? (BF252,
p.108)
Esse processo de particularização é visto inclusive em procedimentos de aparente
generalização, conforme vemos a seguir.
5.6.2.3 Generalização
Uma das maneiras mais óbvias de tratar um assunto junto a um público amplo,
ainda que segmentado, é apresentá-lo como se fosse uma generalização. Não faltam,
por isso, exemplos de generalizações, que muitas vezes apontam para lugares-comuns
bem conhecidos dos leitores. Uma das maneiras de generalizar consiste no emprego dos
infinitivos impessoais, classe que se situa entre o verbo e o substantivo, responsável por
expressar um processo verbal puro, sem ser conjugado em pessoa, número ou tempo.
Acompanhar à mesa a amiga magricela, o namorado e os filhos ou sobrinhos pode
significar muitas calorias a mais. (CC206, p.94)
Acordar cedo, trabalhar, estudar, malhar... Tudo parece mais difícil na segunda-
feira! Imagine então começar uma dieta? (BF231, p.91)
Outro expediente é a utilização de pronomes indefinidos, cuja referência é
bastante ampla:
Quem não quer secar as gordurinhas extras, ficar com o corpo mais firme e se
livrar do calor? (BF224, p.78)
No que se refere aos modos de organização do discurso, o descritivo assume um
papel de grande relevância, já que os lugares-comuns, de que falamos acima, são
165
marcados por um dado número de qualificações, obtidas o mediante a
concatenação entre substantivos e adjetivos, mas também com o recurso de certos
verbos, que, além de denotarem uma ação, conotam um processo rotineiro:
Todo ano é a mesma história: o calor vai se despedindo e leva junto um pouco de
nosso pique. Os dias frescos, o céu nublado, a cama quentinha e aquela chuva fina que
não pára são um convite para que nossa vontade de treinar para o espaço [...]
(CC232, p.98)
Ocasionalmente, o simples acúmulo de substantivos basta para evocar um dado
lugar-comum:
Cansaço, dor, monotonia, solidão... seja qual for o motivo que a fez desistir, saiba
que essa história pode ter um final feliz. (CC206, p.86)
Em alguns textos, há uma indicação aparentemente em terceira pessoa que poderia
denotar um caso particular. Porém, na esfera discursiva, essa particularização também
aponta para um problema de alcance amplo, o que cria um efeito conotativo de
generarização, dentro do qual o leitor pode se inserir:
Por falta de tempo, Carina prefere se exercitar em casa, sozinha. Até tudo bem.
O problema é que a falta de orientação profissional, pelo menos no início do programa,
pra que o professor instrua a correta execução dos exercícios, aumenta muito as chances
de não se conquistar o resultado esperado. (CC206, p.84)
Em outras circunstâncias, a generalização se por intermédio não da terceira
pessoa, mas do par nós / a gente. Como se sabe, o pronome “nós”, além de designar um
grupo dentro do qual se encontra a primeira pessoa do singular, tem vários empregos,
entre os quais o chamado plural de modéstia (no qual vale pela primeira pessoa do
singular) e o de indeterminador (em que é usado em lugar de expressões com a partícula
“se”, por exemplo). Nem sempre é fácil, contudo, diferenciar com nitidez esses
empregos dentro da cadeia textual.
No exemplo abaixo, os pronomes “a gente” e “nós” têm efetivamente um certo
valor de generalização, mas não se pode dizer que são totalmente indeterminados.
Ambos acabam produzindo uma conotação específica, a de enlaçamento com o leitor:
166
Melhor ainda que conquistar um corpo bacana é conseguir manter tudo no lugar.
Mas a gente sabe que a segunda parte dessa história não é tão fácil de se tornar
realidade. (BF224, p.82)
Exclusivo! Os furinhos que aparecem teimosos nas coxas e no bumbum da
maioria de nós podem ser o resultado de uma alergia provocada por alimentos [...]
Toda mulher sabe que não é fácil acabar com a celulite. E também ouvimos falar
de todas as possíveis causas genéticas. (BF252, p.88-89)
A cena é comum, todos nós presenciamos, mas, convenhamos, é constrangedor.
Estamos falando do comportamento de quem faz dieta. Para essa turma que controla
calorias, participar de eventos sociais perde o sentido verdadeiro (de estar bem com
quem se gosta) e vira uma tortura. Nessas horas é normal comer mais e por motivos que
nada têm a ver com a necessidade básica de sentir fome. (CC206, p. 94)
Os trechos acima acabam por apresentar um ethos de cumplicidade, que o
enunciador parece partilhar com o leitor do problema sobre o qual pretende traçar
comentários.
Cumpre ainda fazermos algumas considerações sobre as estratégias de
problematização. Em muitos textos, esses processos acabam colaborando na instalação
de actantes que assumem um papel de antagonista. No casos examinados, poderíamos
considerar como antagonistas elementos que demonstram uma forma física precária,
como “gordura”, “flacidez”, “cansaço”, entre outros, que aparecem no texto como os
inimigos a serem combatidos. Em certos gêneros discursivos, mormente nos domínios
religioso e no político, as problematizações se radicalizam e tendem a levar a uma
espécie de maniqueísmo discursivo: constrói-se, então, uma linha polarizadora que
divide de um lado termos positivos e, de outro, termos negativos. Assim, numa dada
configuração discursiva religiosa, aquilo que não pertence a uma crença determinada é
demonizado; do mesmo modo, no discurso político sectário, tudo o que não se situa
numa certa concepção de direita é estimado como “comunista”, assim como, para certos
partidos de esquerda, aquilo que não se enquadra em determinadas doutrinas é estimado
como sendo “de direita” ou “fascista”.
167
Finalizadas essas considerações sobre os procedimentos de aproximação, é
chegado o momento de nos debruçar sobre aquele que talvez seja o conjunto de
procedimentos mais evidentes dos textos persuasivos: a motivação.
5.7 Procedimentos persuasivos de motivação
É possível que falar de procedimentos de “motivação” em textos persuasivos
pareça redundante, afinal não é possível pensar em persuadir sem motivar. Contudo,
pelo trajeto metodológico que propomos, a motivação representa um dos mecanismos
particulares de persuasão, que tende a ser tanto mais eficaz quanto os outros
(credibilidade e aproximação) o forem.
Ademais, convém salientar que nosso empreendimento foca o ethos e, portanto, o
aspecto de encenação do texto. A rigor, para persuadir, bastaria utilizar imperativos e
outras expressões de valor exortativo. Entretanto, em gêneros de discurso que visam
uma eficácia maior no processo persuasivo, utilizar tais elementos lingüísticos, com
seus valores denotativos, é muito pouco eficiente. Por isso, o que chamamos de
motivação nesta tese se situa além da simples exortação. Esta se encontra do lado da
denotação; aquela, configuradora de um certo ethos e de variados efeitos de sentido, é
da ordem da conotação. É verdade que o simples uso de imperativos basta para criar
uma imagem no discurso, como ocorre nas exortações, mas o que entendemos como
“motivação” representa um processo muito mais rico, que mobiliza, além de tudo,
outros recursos.
Examinemos de que modo as formas lingüísticas, com suas devidas conotações,
atuam no discurso, instigando o destinatário a aderir aos métodos propostos.
Comecemos pelas promessas.
5.7.1 Promessas
O que entendemos por promessa não tem relação direta com o fenômeno estudado
pelos pragmáticos a partir de verbos performativos na primeira pessoa do singular como
“eu juro” e “eu prometo”. Em nossa concepção, a promessa se aproximaria do conceito
de modalidade alocutiva de sugestão, embora formalmente lembre uma injunção.
Contudo, nesta última, segundo Charaudeau o enunciador “atribui a si um estatuto de
poder (autoridade absoluta)”, ao passo que, na sugestão, ele “atribui si um estatuto de
168
saber” (CHARAUDEAU, 2008, p. 87-89), o que deriva dos procedimentos de
credibilidade, explicados anteriormente.
As promessas assinalam a obtenção de um determinado resultado às custas de uma
relação custo/benefício extremamente vantajosa para o leitor. Conforme já comentamos
(em 5.4), as promessas presentes nos textos estudados se caracterizam em geral por
enunciados do tipo “Perca X quilos em Y dias”. Por isso, é normal o uso das chamadas
orações independentes optativas, com verbos no subjuntivo, ou mesmo de frases
imperativas, principalmente com a relação custo/benefício ressaltada, muitas vezes
sendo anunciada na capa:
Perca 4 kg em 7 dias (CC205, capa)
Seque 2 kg por semana (CC232, p.108)
Aperte o cinto e seque 4 kg em 7 dias (CC205, p.102)
Diga adeus a 6 quilos em 6 semanas sem alterar sua rotina de almoçar no
restaurante por quilo. (BF231, p.90)
Não é muito fácil diferenciar as frases optativas, com verbos no presente do
subjuntivo, das imperativas. Didaticamente, diríamos que as primeiras expressam um
desejo do enunciador para com seu interlocutor, ao passo que as segundas denotariam
uma ordem. Há, porém, dois fatos que problematizam essa distinção: primeiramente, é
sabido que o imperativo não se limita a denotar ordens, servindo também para expressar
exortações, conselhos e convites (CUNHA & CINTRA, 1985, p.465); em segundo
lugar, no português culto do Brasil, uma tendência à neutralização entre o presente
do subjuntivo e o imperativo, que este é formado a partir daquele quando se emprega
o pronome “você”.
Seja como for, o que importa nos casos acima é que o verbo conota realmente um
valor exortativo, a partir do qual o enunciador, revestido de um ethos de motivação,
conclama o leitor a adotar um certo procedimento seja no âmbito da atividade física,
seja no âmbito da nutrição. Deve-se observar, além disso, que o uso de numerais, pela
sua propriedade mesma de denotar quantidades exatas, enfatiza a conotação de
promessa.
169
Há, ainda, outras configurações morfossintáticas através das quais as promessas se
manifestam. Uma delas é a frase nominal, curta e direta:
Corpo malhado em 30 minutos (2 vezes por semana) (BF251, p.83)
6 kg mais magra em 2 semanas (BF252, p.83)
Também se emprega o presente do indicativo, o que confere ao enunciado um
matiz de certeza e, portanto, de confiabilidade:
Temos um plano alimentar especial para cada situação que, além de ajudá-la a
comer direito, emagrece 3 kg em 14 dias (CC206, p.102)
30 minutos e basta! [...] você queima gordura e fica com corpo firme em tempo
recorde (BF226, p.85)
Outro recurso é o uso do verbo “ir” formando perífrases verbais com o infintivo e
assumindo valor de futuro:
Com apenas R$10 por dia é possível seguir um cardápio nutritivo e variado com
ingredientes simples e fáceis de preparar. Melhor: Vai ajudá-la a eliminar até 3 kg em
10 dias. (CC216, p.114)
O futuro do presente simples foi igualmente encontrado; do mesmo modo que o
presente, temos aqui também um efeito de certeza, sobretudo porque há um prazo
explícito no enunciado:
Em um mês, a diferença aparece no espelho e, em menos tempo que isso, você
estará apaixonada pela malhação. (CC232, p.90)
O mesmo ocorre com futuro do presente composto, que tende a tornar
equivalentes promessa e resultado:
Para ajudá-la a passar uma semana toda light, elaboramos um verdadeiro raio-X
do que uma pessoa comum costuma pensar e sentir em cada dia – e o que ela deve fazer
para superar dificuldades. Ao final você terá perdido 3 kg e ganhará ferramentas
indispensáveis para continuar emagrecendo [...] (CC, n. 222, p. 114)
170
Passemos agora a outro procedimento de motivação, voltado para ressaltar as
qualidades do método a ser apresentando ao leitor: a singularização.
5.7.2 Singularização
Em seu estudo sobre os processos de intensificação no discurso publicitário,
Rosane Monnerat desenvolve o conceito de singularização, que se refere basicamente
aos recursos argumentativos que destacam um produto dentre seus concorrentes
(MONNERAT, 2003, p.103). A autora investiga especificamente o emprego dos
adjetivos, como elemento lingüístico capaz de gerar tal efeito.
De nossa parte, propomos um conceito de singularização mais amplo e extensível
a outros domínios que não o publicitário. Chamamos de singularização o processo pelo
qual uma determinada atitude, considerada corrente dentro da sociedade ou de um
determinado círculo social, é negada ou retificada em prol de outra, estimada
geralmente como inovadora. Reconhecemos que o termo “atitude” se mostra bastante
vago, motivo por que o entendemos como uma série de crenças, posicionamentos
discursivos e comportamentos direta ou indiretamente ligados ao interlocutor.
Como este não representa um indivíduo concreto, antes constituindo um público
virtual, é necessário que se evoquem certas atitudes de caráter geral que deverão ser
objeto de críticas, abrindo-se então espaço para a divulgação de uma alternativa. É
comum nos textos persuasivos, principalmente na publicidade, encontrarmos fórmulas
do tipo “Se você fez A e o teve sucesso, tente B”, em que A pode representar um
método ou um conjunto de métodos ineficientes e B aparece como uma inovação eficaz.
Separamos essas críticas em dois grandes agrupamentos. Um deles efetua uma
negação de caráter total a uma atitude e corresponde à seguinte fórmula: costuma-se
pensar, falar ou fazer A; mas A está errado, por isso você deve fazer B. Teríamos,
portanto, uma crítica absoluta.
O outro tipo de crítica não é tão radical, apresentando-se, pois, matizado.
Reconhece-se uma certa validade da atitude A, porém ressaltam-se suas limitações. Tal
movimento discursivo poderia ser expresso por esta fórmula: costuma-se pensar, falar
ou fazer A; mas A apresenta certos problemas que deverão ser corrigidos por B.
Teríamos então uma crítica relativa.
Nos trechos estudados, são poucos os exemplos de crítica absoluta.
Provavelmente, isso se deve ao fato de que uma argumentação eficiente busca ressaltar
171
os pontos positivos da tese que se deseja combater, para, em seguida, desvalorizá-los.
Ademais, críticas de caráter absoluto podem se aproximar de um discurso autoritário, o
que poderia gerar rejeição por parte dos leitores.
A crítica absoluta se alicerça sobre um paralelismo discursivo: nega-se alguma
coisa para se afirmar outra. Por esse motivo, é natural encontrarmos o advérbio “não”,
participando dela:
Pedalar uma hora na bicicleta estacionária pode parecer chato e cansativo, mas
não é. Acredite! A gente esquece que está fechada numa sala e o pensamento voa longe,
indo até montanhas e trilhas. (CC216, p.94)
Esse movimento de negação, contudo, também é obtido através de outros recursos
lingüísticos. Mesmo em frases afirmativas, o sentido de uma palavra ou expressão pode
assumir um valor de negação no texto:
Foi-se o tempo que o chá era coisa da vovó. Nos últimos anos ele virou bebida de
mulher inteligente, preocupada com a boa forma e a saúde (B252, p.103)
No trecho acima, a expressão “foi-se” representa algo que não mais existe, o que
nega, assim, a atitude daqueles que menosprezam as propriedades do chá, considerando-
o um elemento arcaico da cultura brasileira. Devemos ressaltar que a negação de que
tratamos aqui é um fato do discurso, não da língua, de modo que não pode ser restrita a
um certo número de elementos gramaticais. E o que é mais importante: em nossa
perspectiva, a negação não recai exatamente sobre um conteúdo proposicional, já que se
relaciona também a aspectos que se encontram implícitos, relacionados a crenças e
lugares-comuns disseminados socialmente. Tanto é assim que, em cada um desses
trechos, é possível perceber pelo menos duas vozes antagônicas, uma que apresenta
esses lugares-comuns, outra que os combate, apresentando uma tese específica abraçada
pelo enunciador.
De fato, no primeiro trecho há uma voz que afirma que pedalar na bicicleta
estacionária é “chato e cansativo” e que vai se contrapor à idéia defendida pelo
enunciador; no segundo, nota-se uma outra voz que proclama que “chá é coisa da
vovó”, também rejeitada pelo enunciador.
As considerações acima se baseiam numa visão polifônica da língua, estudada por
inúmeros autores, entre os quais Ducrot. Ressalvamos que as vozes apresentadas não se
172
referem a um indivíduo específico, fazendo parte de uma ampla rede discursiva.
Portanto, mais uma vez se comprova a importância do interdiscurso na formação de
sentidos de um texto.
O interdiscurso também aparece de modo notável no que chamamos de críticas
relativas. Estas não se constroem através de movimentos negativos categóricos. Assim,
em vez de haver uma polarização, observa-se uma ponderação. Por esse motivo, as
críticas relativas encontram-se próximas do que Charaudeau denomina “restrições”:
trata-se de articulações de caráter lógico
10
que, em lugar de concatenar dois termos
explicitamente antagônicos, apresentam um conteúdo que diverge de uma possível
conclusão apontada por um outro segmento (CHARAUDEAU, 1992, p. 514-515).
Assim, em enunciados do tipo “Hoje faz sol, mas amanhã choverá”, estamos
diante de uma oposição propriamente dita, que “fazer sol” e “chover” são estimados
como processos antagônicos. Por outro lado, em “Hoje faz sol, mas ficarei em casa”, as
ações “fazer sol” e “ficar em casa” não se opõem realmente. Entretanto, “fazer sol”
sugere certos lugares-comuns, como “sair”, que, embora não apareçam explícitos, se
opõem, estes sim, ao segmento posterior. A restrição, portanto, opera sobre os
implícitos lingüístico-discursivos, fato que retoma a discussão que empreendemos na
seção 3.1.1, ao tratarmos da natureza dos conectivos.
Outra maneira habitual de obter o efeito de singularização é negar o próprio
discurso do outro, restringindo sua validade:
Chega de usar o dia-a-dia agitado como desculpa para deixar a ginástica em
segundo plano. Não importa quanto tempo você tem disponível: para usá-lo a seu
favor em uma aula que mexe o corpo inteiro (CC232, p.90)
Observe-se que a carga semântica do verbo “chegar”, denotando o final de um
processo e conotando uma atitude de exortação do enunciador, assume uma função de
negação em relação ao discurso alheio. uma voz que costuma usar como
“desculpas” para não fazer ginástica o “dia-a-dia agitado”. Esse ponto de vista é
negado, que, segundo o enunciador, embora haja realmente pouca disponibilidade de
tempo para praticar exercícios físicos, esta é considerada suficiente.
10
Em sua Grammaire, Charaudeau adverte que tais relações lógicas resultam de um laço que não é
formal, mas sim conceitual (CHARAUDEAU, 1992, p.495). Estamos fora, portanto, dos quadros de uma
semântica formal.
173
Em algumas circunstâncias, o discurso do interlocutor é textualmente formalizado,
através de citações, para então sofrer a restrição:
Por isso não venha com aquele discurso batido: “Já ando o dia inteiro no
escritório” ou “Vivo passeando com meu cachorro”. Nada disso vale. É essencial
manter o ritmo forte, sentir a musculatura sendo exigida, o corpo suando, e reservar um
tempo do seu dia para se concentrar nessa tarefa [...] (CC225, p.103)
Note-se que, tanto neste caso quanto no outro imediatamente anterior, não se está
negando a ausência de tempo. Ela existe, reconhece o enunciador. O que se está
negando é o emprego dessa falta de tempo como alegação para não seguir um
procedimento de exercícios físicos. Ou seja, a negação não recai sobre o conteúdo em
si, mas sobre o ato de fala que movimenta esse conteúdo. A escassez de tempo também
é admitida no extrato abaixo de modo bem claro, o que, aliás, cria um certo efeito de
solidariedade com o leitor:
Musculação em 15 minutos?
Falta de tempo nem sempre é uma desculpa para não malhar. Às vezes o dia
fica mesmo curto. Mas, 15 minutinhos, fala a verdade, dá para encaixar na rotina.
Parece pouco, é verdade, mas nesse tempo é possível tonificar os músculos e
queimar calorias. (BF228, p.44)
O conectivo “mas” não se opõe ao conteúdo que expressa essa falta de tempo, mas
à conseqüência que pode advir daí, a inatividade total. Por conseguinte, esse conectivo
abre espaço para que se apresente uma metodologia diferenciada, fundamentada em
exercícios físicos que duram apenas 15 minutos.
Em outros exemplos, são certas representações sociais, crenças e lugares-comuns
que sofrem uma espécie de desconstrução discursiva. Colocam-se em pauta
determinados lugares-comuns que são discutidos e retificados. Nessas condições, os
conectivos de oposição como o “mas”, ou mesmo outros, assumem esse papel de
restrição, caso de “pelo menos”:
Ninguém duvida que o exercício aeróbico emagrece. Mas, para sustentar a perda
de peso, o ideal é correr ou caminhar com regularidade. (BF224, p.83)
174
Nem de roupa larga, fala mansa e incenso vivem as amantes de ioga. Pelo
menos, não na aula que reúne mais famosas por metro quadrado no Rio de Janeiro, dada
por Katia Dacosta [...] a turma pega pesado e, além do bem-esta que a prática
garante, conquista pernas fortes e postura de rainha. (BF231, p.84)
Nos casos acima, a voz indeterminada e de caráter geral que diz que “exercício
aeróbico emagrece” e que a ioga se caracteriza por “roupa larga, fala mansa e incenso”
não tem seus conteúdos negados, mas sim sutilmente retificados: o exercício aeróbico
emagrece quando feito com regularidade; a ioga, além desses traços estereotipados
ligados a uma certa passividade, pode proporcionar também atividades dinâmicas. A
regularidade dos exercícios aeróbicos e o dinamismo da ioga representam, pois,
aspectos de restrição às asserções iniciais.
Como é de esperar, os procedimentos físicos ou de dieta também são diretamente
afetados por esses mecanismos de restrição:
Não é de hoje que a ioga serve de inspiração pra uma série de exercícios de
ginástica localizada. Mas a grande sensação das academias americanas no momento são
os movimentos tirados dessa atividade milenar com o único objetivo de colocar o
bumbum para trabalhar. (BF251, p.110)
Também no exemplo acima o “mas” efetua a restrição, sem negar totalmente a
asserção anterior. De fato, não se nega que “a ioga é inspiração para a ginástica
localizada”, mas se ressalva que, no momento, há uma inovação nessa tendência.
Algumas vezes, estabelece-se um tipo de comparação entre o procedimento a ser
singularizado e outros:
Essa é a grande diferença do treinamento funcional: você não malha o músculo
isoladamente, como na musculação ou na localizada, mas reproduz um movimento do
dia-a-dia durante o exercício [...] (BF251, p.82)
No trecho acima, ressalta-se uma característica do treinamento funcional, a
reprodução de movimentos rotineiros, que o faz sobressair a duas práticas tidas como
concorrentes, a musculação e a ginástica localizada.
175
também outros dispositivos lingüísticos que se prestam ao procedimento de
singularização. Tendo por base as idéias formuladas por Rosane Monnerat, defendemos
que uma simples adjetivação de caráter negativo abre espaço para que se insira no texto
uma alternativa mais valorizada:
Deixar de comer o que você gosta é a pior maneira de começar um regime. Para
garantir os resultados e sua felicidade enquanto conta calorias, é preciso escolher uma
proposta que respeite seu paladar e hábitos e não acabe com o prazer à mesa. (CC232,
p.108)
No caso acima, admite-se que um regime deva ser efetuado através de restrições
alimentares. O que se nega, porém, é a severidade desse método, que pode privar o
destinatário de comer até seus pratos favoritos. Logo, a proposta que aparenta ser a
mais atraente é aquela que leva em conta também os gostos do leitor.
Em outras situações, basta uma única palavra de base adverbial para que o sentido
do enunciado se altere, apontando para a singularização:
Elas descobriram que dieta certo se a gente souber adaptar o cardápio às
nossas preferências e estilo de vida. Aprenda este truque. (BF231, p.108)
No exemplo acima, verificamos que haveria uma mudança substancial de sentido
se a palavra “só” fosse retirada: sua presença garante um efeito de restrição que aponta
para a necessidade de seguir uma dada perspectiva (“saber adaptar o cardápio”) a fim de
se obter dela o resultado desejável (“a dieta dar certo”). Sem o “só” essa necessidade
não pareceria tão imperiosa.
Conquanto apresente inequívoca importância discursiva, “só” recebe pouca
atenção das gramáticas tradicionais. Comprova-se isso pelo fato de ser classificado pela
NGB como uma palavra denotativa de exclusão, figurando numa reduzida seção à parte
do capítulo dedicado aos advérbios. As palavras denotativas (como “até”, “também”,
“aliás”) podem desempenhar importante papel na prática discursiva, sobretudo nos
textos argumentativos, mas a gramática tradicional pouco tem a dizer sobre elas. Como
trabalham numa perspectiva referencial da língua, as gramáticas têm certos embaraços
na hora de classificar tais palavras e pouco ressaltam seus empregos discursivos. Seja
como for, as palavras denotativas constituem elementos gramaticais de enorme
176
importância dentro das pesquisas de pragmática e AD, que se revestem de funções
discursivas estratégicas.
Nossas observações sobre os recursos de singularização mostraram que a
apresentação de certas metodologias, valorizadas positivamente nos textos, se constrói
através da ruptura de alguns lugares-comuns, propagados discursivamente. Essa ruptura
representa por si só um fator de motivação, pois busca fazer o leitor esquecer de
insucesso anteriores.
Passemos agora ao derradeiro procedimento de motivação: a exemplificação.
5.7.3 Exemplificação
Um dos fatores de motivação mais empregados em qualquer atividade humana, a
exemplificação representa o resultado vivo do procedimento sugerido ao interlocutor.
Exemplificação e promessa possuem funções discursivas muito próximas, que
trabalham com resultados a serem atingidos pelo leitor, mas apresentam uma diferença
notável: enquanto a promessa apresenta uma virtualidade, a exemplificação mostra
resultados já obtidos, com êxito, por determinadas pessoas.
Com certa freqüência, os exemplos utilizados nas revistas que apreciamos são de
mulheres famosas, em geral atrizes ou apresentadoras de televisão. Elas figuram na capa
e em matérias específicas. Trataremos desse tipo de exemplificação à parte. No
momento, faremos um apanhado geral dos recursos lingüístico-discursivos que
instauram as exemplificações no texto. Do mesmo modo que na problematização, os
focos enunciativos são cruciais na produção de sentidos específicos. Também cabe
ressaltar a importância que os elementos visuais assumem nesse procedimento. As
fotografias de mulheres famosas, bonitas e bem-sucedidas servem de importante
elemento motivador para as leitoras.
Comecemos por analisar as exemplificações que se desenvolvem em primeira
pessoa, as quais chamamos de “depoimento”.
5.7.3.1 Depoimento
O uso do discurso direto em primeira pessoa produz vários efeitos. Do mesmo
modo que legitima os procedimentos expostos, motiva o leitor a se inspirar num
determinado exemplo. Como acontece na promessa, na exemplificação também se
177
explora uma relação custo/benefíco favorável. Nos textos examinados, costuma-se
ressaltar a perda de peso, motivo pelo qual os numerais desempenham interessante
papel conotativo:
“Há um ano comecei a malhar uma hora por dia, mas não satisfeita, em 7 meses
dobrei o tempo que dedico à ginástica: agora são duas horas. É uma delícia. Emagreci
4 kg em 6 meses e quero enxugar mais 4. Tenho certeza de que vou conseguir” (CC222,
p. 104)
[...] depois de uma semana, estava 5 quilos mais magra. Foi um estímulo e
tanto para recuperar a auto-estima. [...] Animada com meu próprio sucesso, de
sedentária convicta passei a caminhar, até conseguir correr todos os dias.” (BF224,
p.83)
“Hoje aprendi que mastigar bem é a melhor forma para saciar a fome com uma
quantidade adequada de alimentos [...] Essa foi uma das formas que encontrei para
manter meu peso (depois de perder 20kg). Eu pesava 75 kg e agora estou com 55 kg
(BF228, p.97)
Como não curto academia nem musculação, resolvi caminhar [...] Desde que
comecei a atividade, há 1 ano e meio, emagreci 3 kg e estou conseguindo manter o
peso. Minhas pernas estão bem torneadas e o funcionamento do meu intestino melhorou
muito. (CC225, p.104)
O depoimento de pessoas famosas também é importante. Deve-se observar que os
nomes próprios, que particularizam um indivíduo, se revestem de conotações
específicas, entre as quais a de sofisticação e a de motivação, que buscam influenciar o
leitor:
“O iyengar é uma prática de perseverança, é muito dura, mas é muito libertadora.
Aprendi a ter força e leveza ao mesmo tempo. No começo, achava desesperador ficar 25
respirações de cabeça para baixo. Hoje, consigo ficar 100, mil, não importa.” Fernanda
Torres, atriz [...](BF231, p.89)
178
“Com o yvengar, cheguei ao meu alinhamento ideal. Aprendi a mover partes do
corpo que eu nem sabia que existiam e passei a usar o alinhamento das aulas da Katia
nas outras práticas também faço ashtanga e vinyasa e na vida” Cynthia Howlett,
apresentadora
“É impressionante como a ioga muda o nosso comportamento. Na aula, trabalho
posturas de peito aberto e vejo que levo esse padrão de força, de coragem, para a minha
vida. A prática me uma sensação de força física e de vontade”. Beth Goffman, atriz
(BF231, p.89)
Um aspecto importante é que muitos desses depoimentos organizam-se em torno
de um esquema narrativo, com a seqüência falta-busca-resultado. Mais do que traçar
um histórico exaustivo, esse recurso busca criar um vínculo de identificação com o
leitor. Observe-se que o procedimento de problematização, sobre o qual
comentamos, também faz parte desses modelos de depoimento. As fotos são ilustrativas
da etapa de resultado, causando um maior impacto junto ao leitor:
Meu drama com excesso de peso começou na infância e, na adolescência, eu
tinha feito várias dietas malucas sem sucesso. Aos 19 anos, fui para o Canadá e, quatro
meses depois, voltei 20 quilos mais gorda. As pessoas não me reconheciam e isso me
deixou deprimida [...] [FALTA]
Com 79 quilos, a falta de coragem de pôr o biquini fez com que eu reunisse força
para mudar minha vida. O primeiro passo foi começar a fazer hidroginástica e me
obrigar a comer mais verdura e fruta. [...] [BUSCA]
Minha vitória contra a balança me ensinou a mudar hábitos errados sem ver isso
como um sacrifício. [RESULTADO] (BF224, p.84)
Sempre fui magra. Mas, aos 18 anos, morei um ano nos Estados Unidos e
engordei 10 quilos. Me entupia de chocolate para compensar a falta da minha família e
dos meus amigos. De volta ao Brasil, continuei abusando dos doces e ganhei mais 2
quilos. [...] [FALTA]
Minha mãe me levou a uma nutricionista, que me orientou a comer proteína e a
mastigar devagar – hábitos que mantenho até hoje. [BUSCA]
Recuperada e com a energia a mil, comecei a fazer exercício todos os dias e
enxuguei os últimos sete quilos. [RESULTADO] (BF224, p.85)
179
Meu corpo sempre foi ok. Mas um ano e meio tive um bebê e tudo mudou:
fiquei gordinha e superflácida. Minha auto estima despencou. [FALTA]
Aí não pensei duas vezes: comecei a fazer exercícios [...] [BUSCA]
Meu corpo está mais durinho e definido, especialmente bumbum e pernas. Estou
mais segura e confiante. Sinto liberdade na hora de conquistar por estar bem comigo
mesma. A diferença realmente foi incrível.” [RESULTADO]
Jennicer Heyworth, 27 anos
(CC222, p.106)
Como se vê, são as etapas de resultado que desencadeiam um efeito de motivação,
embora este seja tanto mais efetivo quanto mais verossímil for a problematização
apresentada nas seqüências de falta e busca.
Vejamos agora como funcionam as exemplificações em terceira pessoa.
5.7.3.1 Registro em terceira pessoa
As referências em terceira pessoa também são muito utilizadas pelas duas
publicações, fornecendo registros a partir dos quais os leitores podem se sensibilizar e
iniciar a prática de exercícios ou de dietas. O emprego de adjetivos e substantivos que
descrevem positivamente as pessoas que servem de exemplo se mostra um recurso bem
interessante, muitas vezes também acompanhado de fotos:
Boa Forma foi atrás de quatro mulheres vitoriosas Erika, Maíra, Paula e Paola.
Elas emagreceram e estão com o corpinho enxuto até hoje, ultrapassando o período
crítico de um ano e meio [...] (BF224, p.83)
180
E como o estímulo para malhar vem do resultado, nosso programa vai ajudá-la a
emagrecer, ficar menos ansiosa e muito mais satisfeita como as leitoras da foto.
(CC225, p.102)
Danny Sá, a dona do corpão que você vê ao lado segue para a aula de Ioga [...]
(BF231, p.85)
Não faltam referências a pessoas famosas, que possuem outras qualidades como a
beleza e a jovialidade. Inserem-se no texto, portanto, representações que são motivo de
admiração do leitor. Mais do que gerarem um efeito de precisão descritiva, adjetivos e
nomes próprios conotam efeitos que constroem um ethos de status. Deve-se acrescentar
também que os verbos de ação, erroneamente vistos como pertencendo apenas à esfera
das narrativas, também contribuem na composição de um quadro descritivo que seduz o
leitor:
181
Danny encontra uma turma de alunos jovens, fortes e bonitos como ela. No fã-
clube dessa prática estão atrizes como Priscila Fantin, Carolina Dieckman, Vanessa
Gerbeli e Fernanda Torres.
Toda essa turma busca consciência corporal, alinhamento, tonicidade e
alongamento muscular. Resultado? Uma aula forte que esculpe as formas, fortalece as
pernas e aumenta o pique. (BF231, p.85)
Certamente os verbos “buscar”, “esculpir”, “fortalecer” e “aumentar” denotam
ações, mas seu funcionamento no texto não promove uma mudança de estados, como
deve acontecer na narrativa. Ao contrário, trata-se da composição de características que
ajudam a montar um cenário idealizado.
Em algumas ocasiões, os registros são feitos sobre pessoas famosas, que servem
de modelo com os quais o leitor se identifica:
Para viver diferentes personagens, a atriz Fernanda Souza vive uma relação de paz
e turbulência com o próprio peso. Num momento precisa deixar a vaidade de lado e
engordar. No outro, se enche de coragem e prova que é capaz de perder os quilinhos
adquiridos. E você também pode ser assim, inspire-se!
(CC225, p.116)
A utilização do exemplo de pessoas famosas transforma-se numa meta a ser
atingida pelo leitor. Se, de um lado, colocar um anônimo no procedimento de
exemplificação concede ao texto uma maior verossimilhança, que a identificação do
leitor com o texto é mais fácil, as matérias com mulheres famosas mobilizam
imaginários de beleza e até poder que não podem ser descartados. Na realidade, esse
expediente representa uma das principais fontes de apelo dessas publicações, conforme
veremos a seguir.
182
5.8 Um procedimento à parte: a exemplificação de celebridades
Uma revista não capta a atenção do leitor apenas com seu conteúdo. Ela deve
atraí-lo logo de seu primeiro contato, que se faz, evidentemente, pela capa. Esta última,
nas publicações que estudamos, é ilustrada por mulheres de bela aparência, em trajes
sumários, que exibem sua forma física apreciável. Mais do que isso, as capas anunciam
matérias específicas sobre essas mulheres, transmitindo ao leitor os métodos de que elas
se serviram para alcançarem seu padrão de beleza.
Das doze revistas que compõem nosso corpus, todas traziam mulheres famosas em
suas capas, as chamadas celebridades, a maioria das quais, atrizes. Verificamos mesmo
um fato interessante: a presença da professora de ginástica Solange Frazão, que trabalha
freqüentemente em programas televisivos, tanto na revista Corpo a Corpo (na edição
205, de janeiro de 2006) quanto na Boa Forma (na edição 251, de março de 2008).
Solange e algumas outras personalidades têm um perfil ligado ao gosto pelos exercícios
físicos, o que possibilita essa recorrência em capas e matérias.
As matérias com essas mulheres famosas seguem certos protocolos que convém
analisar. Trata-se uma estrutura que, em geral, contempla quatro blocos funcionais: a
valorização do exemplificado; a identificação com o leitor; a formulação de
procedimentos; e a abertura publicitária. Vejamos como cada bloco funcional se
constrói no texto.
5.8.1 Valorização do exemplificado
Geralmente, as matérias de capa iniciam seus textos descrevendo positivamente as
mulheres que servem de modelo. O emprego de substantivos e adjetivos de conotação
positiva se mostram, então, recursos muito interessantes. Observe-se que os adjetivos
podem se encontrar também sob forma de oração subordinada adjetiva, introduzida por
pronome relativo:
Disciplina militar e um pique de dar inveja. Essas duas características, somadas
ao jeito doce e à voz tranqüila, fazem de Solange [Frazão] uma mulher diferente, que
atrai todos os olhares por onde passa. (CC205, p.38)
183
Pele clara, cabelos escuros, olhos azuis. É raro essa combinação não resultar em
uma beleza fora do comum. Por isso, dificilmente a atriz Luli Miller, que interpreta a
Gilda na novela Paraíso Tropical, da Globo, passaria impune pela maior cidade do país.
Sim, foi em São Paulo que tudo começou. Seus traços perfeitos e o corpo definido, que
a princípio seriam seu cartão de visitas para enfrentar o disputadíssimo mercado
paulistano da moda, acabaram por levá-la ao horário nobre da maior emissora de
televisão do país. (CC225, p.58)
Essas descrições buscam uma idealização, motivo pelo qual freqüentemente
remetem a certos arquétipos. Isso foi mostrado acima e também é visto no trecho
abaixo, que trata da atriz e modelo Fiorella Mattheis, loira de olhos verdes, que é
comparada a uma princesa, fato que deriva de um certo imaginário de origem européia:
Nada é por acaso. O rosto lindo e marcante que seduz o espectador em Malhação
com a personagem Vivian, é uma promessa de talento e beleza. O corpo escultural,
sem 1g a mais (nem a menos) é resultado de muito esporte e dos seus cuidados à
mesa:[...]
O rosto de princesa, evidenciado pelos olhos verdes, e o corpo perfeito marcado
por curvas, somados à sua personalidade forte e decidida, jamais passariam
despercebidos por quem mais entende de beleza. (CC222, p.56)
Um aspecto importante a ressaltar se refere à questão da idade. Normalmente, a
juventude costumava se associar a pessoas de até 30 anos, idade estimada como um
limite daí um ditado comum nos anos 60, “não confie em ninguém com mais de 30
anos”. Com as diversas mudanças ideológicas sofridas a partir daquela época, em que
vários paradigmas foram quebrados, e, principalmente, com as melhores condições de
saúde proporcionadas pela ciência o que elevou a expectativa e a qualidade de vida –,
o conceito de juventude mudou significativamente. É claro que a velhice ainda
representa um espectro temido, mas uma das maneiras de enfrentá-la consiste
justamente no binômio exercícios físicos-dietas alimentares, linha temática das duas
publicações estudadas. Personalidades que já passaram dos 30 anos, como a atriz
Claudia Raia, têm sua beleza e boa forma física atribuída justamente a esses dois
procedimentos, que são evidenciados por descrições positivas de sua aparência:
184
Ela tem quase 40 anos, dois filhos e um corpo que deixa para trás muita
menininha de 20 anos. E não é para menos: em 1,80 metro de altura (1,10 de
pernas), a atriz exibe coxas malhadas, barriga dura e braços torneados. (BF228, p. 89)
As informações ténicas de altura e peso se mostram, aliás, freqüentes nas duas
revistas, pois esses dados, além de sua precisão denotativa, conotam um biotipo que se
mostra invejável.
Outro exemplo que desafia o lugar-comum da idade é o de Solange Frazão, que
conta com mais de 40 anos:
Olhe para a mulher ao lado: você diria que, com esta barriga desenhada, ela tem
45 anos e é mãe de três filhos adolescentes? Entra ano, sai ano e Solange continua
sendo a musa da boa forma.
(BF251, p. 65)
185
Ivete Sangalo, cantora de 35 anos, também é outra personalidade que se notabiliza
por sua boa forma física, não obstante sua idade:
É impossível ficar imune à presença dela. Com 1,75 metro de altura, uma estatura
que comporta curvas exuberantes e voz grave e firme, Ivete não chega, invade. Ela
conversa de perto e olha fixamente nos olhos, dando a certeza, para quem ainda ousaria
duvidar, de que está diante de uma mulher segura, que sabe o que quer e que não vai
deixar de ser ela mesma para agradar ninguém. (BF252, p. 79)
Quatro quilos a menos, músculos mais definidos, gula dominada. Aos 35 anos,
Ivete decidiu pegar firme na malhação, mergulhou numa reeducação alimentar e chegou
à sua melhor versão (BF252, p. 79)
Certamente, a alusão da idade representa um dispositivo para forjar um público
leitor mais amplo, que se situe além da casa dos 20 anos de idade. Dentro das
descrições apresentadas, costuma-se salientar a perda de peso, o que é uma estratégia
para anunciar métodos a serem seguidos pelo autor. Isso também se no trecho
abaixo, que fala da atriz Júlia Almeida:
Mais madura e com um corpo de arrancar suspiros, a atriz curte o sucesso de sua
primeira personagem mais ousada na telinha e conta o que fez para enxugar 6 kg em
menos de 2 meses (CC232, p. 45)
A apresentação desses modelos poderia suscitar um questionamento delicado: uma
vez que essas mulheres são descritas de uma maneira tão idealizada, elas não estariam
além da faixa de interesse do público leitor? Realmente isso poderia acontecer, já que o
destinatário, sentindo-se tremendamente inferiorizado, poderia ter seu interesse em
adquirir essas revistas arrefecido.
Contudo, um dos blocos funcionais que aparecem nessas matérias se encarrega
exatamente de apontar certos problemas que essas celebridades têm, tornando-as, por
assim dizer, mais “humanas” e mais próximas do leitor. Examinemos como isso
acontece.
186
5.8.2 Identificação com o leitor
Ao estudarmos os procedimentos de problematização e singularização,
verificamos que uma das principais causas de desânimo por parte daqueles que
tencionam se engajar em atividades físicas é a falta de tempo. Esse problema se estende
também às mulheres famosas, segundo as duas revistas. A rotina dessas mulheres é
descrita como extremamente atribulada, ressaltando-se o dinamismo da mulher
moderna, que deve abdicar de várias coisas, mas que, ao mesmo tempo, não deve
descuidar de sua forma física:
Meu dia é muito cheio, então infelizmente não consigo fazer todas as refeições que
deveria [Entrevista com Adriane Galisteu]. (BF216, p. 44)
Como sua agenda é supercorrida, pelo menos duas vezes por dia a moça [Lavínia
Vlasak] reserva alguns minutos para cuidar do corpo e faz de tudo para não furar esse
hábito (CC206, p.38)
Com certa freqüência utiliza-se o pronome “nós” que, conforme mencionamos nos
procedimentos de problematização, cria um vínculo com o destinatário. Neste caso, o
leitor compartilha ao mesmo tempo das dificuldades que uma mulher famosa sofre, mas
também de seu status de dinamismo:
Mas, como todas nós, a namorada do ator Rodrigo Santoro [Ellen Jabour] também
sofre com a falta de tempo e andou surfando numa agenda lotada, bem longe das ondas.
Teve de abrir mão até de suas atividades queridas: sair com os amigos. (BF231, p.74)
O trecho abaixo, que fala de Solange Frazão, enfatiza seu quotidiano intenso com
uma sucessão de ações expressas por substantivos e formas nominais do vebo, como
gerúndios e particípios. É esse ritmo rápido, produzido pela leitura, que o enunciador
quer comunicar a seu destinatário, buscando um efeito de identificação:
187
A Solange [Frazão] que você vai conhecer nesta reportagem encara o corre-corre
diário como qualquer uma de nós: divide seu tempo entre a gravação do programa
Corpo e Mente, na UOL, a administração de produtos que levam a sua marca, como
roupas de ginástica e DVDs, os cuidados com os filhos Bruna, 21 anos, Tábata, 19, e
Luca, 15, a atenção com a alimentação, o treino na academia... Tanto é verdade que no
dia da entrevista encontrei Solange chegando do supermercado, cheia de compras, já
atrasada para uma sessão de drenagem linfática, que costuma fazer uma vez por
semana. (BF251, 65)
Também se costumam mostrar certas tendências naturais do corpo, como a
facilidade em ganhar peso, traço que o pronome “nós” estende ao público leitor:
E, como qualquer uma de nós, [Ivete Sangalo] se incomodava com a oscilação de
peso, sempre em torno de 3 quilos. (BF252, p.79)
A tendência ao ganho de peso é observada também em outros extratos,
representando um problema generalizado, mas contra o qual é possível lutar, desde que
haja disciplina – como as famosas demonstram:
Ela [Giselle Itié, atriz] tem tendência a engordar, mas antes perdia peso sem muito
esforço. “Hoje, com 24 anos, não é tão fácil. Vejo no meu corpo e, principalmente,
nos quadris, as formas generosas das mulheres da família. Hora de me cuidar”.
(BF224, p. 54)
A família da mãe de Claudia [Raia] é de obesos, todos com problemas de
diabetes. Por isso a preocupação em se exercitar e ficar de olho no que coloca no prato
é tão grande. (BF228, p. 91)
Outros problemas de ordem orgânica que prejudicam a auto-estima, como
celulites, verdadeiro tormento no imaginário das mulheres, também são relatados pelas
celebridades:
“Passei a me ver e me respeitar como uma pessoa única. Não sou perfeita, tenho o
peito pequeno, a coxa grossa e até umas celulites mas é meu corpo. Continuo me
cuidando para manter o que tenho, não busco uma beleza inatingível”, diz a cantora
[Wanessa Camargo]. (BF224, p.53)
188
As mulheres famosas, apesar de lindas, aparecem, portanto, com variados
problemas, assemelhando-se ao público leitor. A beleza delas, como a de qualquer outra
mulher, corre riscos e deve ser preservada à custa de procedimentos específicos, sobre
os quais falaremos rapidamente.
5.8.3 Formulação de procedimentos
Os dois protocolos analisados anteriormente abrem espaço para que as famosas
transmitam aos leitores os métodos que seguem para manter sua boa forma.
indicações técnicas bem precisas sobre o número de séries e repetições a serem feitas,
que se situam num nível denotativo da língua, e expressões que remetem à singularidade
dessas práticas, o que confere uma dimensão conotativa de motivação a esses
enunciados:
Quatro vezes por semana pratico corrida na esteira por cerca de 50 minutos. Em
seguida faço os abdominais [...] Para finalizar, faço uma série de 50 agachamentos. Por
isso meu treino é tão pesado. Malhar é sagrado pra mim. [Adriane Galisteu] (CC216,
p.44)
São 30 minutos de musculação, seguidos de 30 minutos de corrida, de segunda a
sexta. É um treino diferente: apesar de exercitar cada grupo muscular uma vez por
semana, os outros músculos acabam sendo solicitados secundariamente durante todos os
exercícios. [Solange Frazão] (BF251, p. 58)
Do mesmo modo que os exercícios físicos, os regimes alimentares também são
destacados:
Ela [Ellen Jabour] anda com uma marmita para cima e para baixo. “Não é tão
fácil encontrar soja nos restaurantes e, quando acho, são pratos que não têm gosto de
nada”, diz ela. (BF231, p.75)
Muitas vezes, há textos que figuram como introdução para um maior detalhamento
dos exercícios apresentados, os quais são comentados minuciosamente, à semelhança de
189
um manual, com fotos e informações precisas sobre sua execução. Nesses textos,
sempre uma descrição quase superlativa, para valorizar o treinamento ou a dieta:
Solange selecionou os melhores exercícios da série que pratica para que você
também construa um corpo cheio de curvas e músculos definidos (CC205, p.40)
Recorre-se amiúde aos procedimentos de credibilidade, como a referência a
especialistas no assunto:
Para acompanhar o pique da bela, nada melhor do que um professor à altura.
Tonhão, personal trainer de Claudia seis anos, é campeão sul-americano e quarto
melhor do mundo em levantamento de peso [...] O treino, que ela realiza três vezes por
semana, é de resistência, com bastante repetição. (BF228, p. 93)
Vic [Vicência Cheib, nutricionista], como Ivete [Sangalo] a chama, passou um mês
na casa da cantora em Salvador, de olhos nos hábitos dela e preparando um cardápio
de 1800 calorias que trazemos com exclusividade para você (veja quadro Cardápio
com gostinho baiano). (BF252, p.81)
Desde novembro do ano passado, [Ivete Sangalo] faz exercícios de segunda a
sexta-feira, sempre sob os olhos cuidadosos de Lucas Oliveira [personal trainer], de São
Paulo. Agora, não falta de estrutura que a faça ficar parada. dois tipos de treino,
um nos aparelhos de musculação para quando ela está em Salvador e outro, que
Lucas chama de funcional, usando halter, caneleiras, elástico e bola (veja o treino
funcional nas páginas seguintes). (BF252, p.82)
A citação a esses especialistas, contudo, não provoca somente um efeito de
crebilidade. Por estarem associados a pessoas famosas, esses profissionais acabam
ganhando um espaço publicitário importante, que será discutido no próximo item.
5.8.4 Abertura publicitária
Ao estabelecermos uma tipologia midiática, proposta na seção 5.3, salientamos
que nem sempre era fácil definir seus limites. No caso das duas revistas que estudamos,
nosso comentário foi o de que elas se enquadravam dentro da chamada mídia temática –
190
aquela de natureza informativa, voltada para assuntos específicos e não para notícias
quotidianas.
Entretanto, sua classificação é problemática justamente por conta do caráter
persuasivo que apresentam ao formular os exercícios e dietas alimentares. Além disso,
essa persuasão aparece nos inúmeros anúncios publicitários que fazem parte de tais
publicações. Na realidade, o número de publicidades é tão amplo que parece acertado
considerar Corpo a Corpo e Boa Forma numa interseção entre mídia temática e mídia
comercial.
Os anúncios publicitários se configuram das mais variadas maneiras: ora possuem
grande destaque ocupando página dupla, ora se limitam a uma página inteira, ora são
marginais, restringindo-se a um canto da página. Há também anúncios publicitários que
acompanham matérias pretensamente científicas sobre um produto que é anunciado. E,
finalmente, um claro espaço publicitário nas matérias com as mulheres que posam
para as capas. Tais textos são aqueles que tendem a ser lidos em primeiro lugar e com
mais atenção, pois trazem pessoas que se cercam de uma aura diferenciada, em razão de
sua fama. Essa aura, que atua diretamente no imaginário do público leitor, somada a
citações de especialistas na área ligada aos produtos oferecidos, legitima tais anúncios.
Esse espaço publicitário criado se presta a toda sorte de produtos de beleza, como
cremes diversos, filtros solares, perfumes e sabonetes:
Não tenho muita paciência para passar creme para isso, para aquilo”, conta
Claudia [Raia], que não abre mão do filtro solar. “O Linea Telle FPS 30 para peles
oleosas é um dos que costumam utilizar no dia-a-dia. Quando vai para o sol,
Helioblock, FPS 60, sempre!”, diz a dermatologista da atriz, Gisele Torok, do Rio de
Janeiro[...]
Ela utiliza o Hidrashower, da Dermage, com polifenol de uva, aloe vera e
vitamina E [...]
Mas nunca sem seu perfume favorito, Beautiful, da Estée Lauder [...]
Quem cuida das madeixas de Claudia é o cabeleireiro Wanderley Nunes, de São
Paulo. (BF228, p. 91)
191
Não existe um produto para celulite que eu não tenha experimentado. No
momento uso o Lipocure, da Vichy. Depois do banho tomo outro banho de cremes.
Gasto um pote por semana! uso sabonete Dove, que adoro! Depois passo o
hidratante com DMAE, da Anna Pegova, que alterno com um à base de DMAE, do
Perricone.
No rosto, após lavar com o gel Cleanenser, da Avène, aplico um tônico
manipulado por minha dermatologista, a Adriana Vilarinho (SP), e hidrato com o
Retinox, da Roc, que alterno com o hidratante de DMAE da Perricone. [Entrevista com
Adriane Galisteu] (CC216, p.46)
Convém sempre lembrar que, em tese, nenhuma informação é gratuita. Conforme
comentamos, a menção de certos profissionais desempenha uma dupla função
discursiva no texto: proporcionar um efeito de credibilidade e, ao mesmo tempo, servir
de publicidade. Verificamos isso nos extratos abaixo:
O emagrecimento da atriz [Júlia Almeida] não tem segredos, nem fórmulas
mirabolantes. Ela exterminou 6kg com a velha receita: reeducação alimentar e
atividade física. Com o acompanhamento da endocrinologista Silvia Bertz (RJ), a
transformação começou na época em que a estrela morava nos Estados Unidos [...]
De acordo com sua fisioterapeuta e professora Paula Sarti Bruno (RJ), as
posições nos aparelhos visam a melhora postural [...]
Para desfilar com microshorts e belos saltos como a Fernanda, de Duas Caras, e
não fazer feio, aposte na seqüência de exercícios da atriz, elaborada pelo personal
trainer Marcos Ayala (RJ). (CC232, p. 48)
um ano e meio, [Solange Frazão] é fiel à geriatra Marcia Franckevicius, da
Clínica Life Extension, em São Paulo. (BF251, p.66)
Wanessa [Camargo] é apaixonada por massagem de todos os tipos. Ama
reflexologia nos pés, adora os toques do shiatsu e não vive sem uma massagem
localizada seguida de drenagem linfática feita por suas massagistas prediletas, Fanny
Muñoz de Esteves, que atende na clínica da dermatologista Adriana Vilarinho, em São
Paulo. [...]
192
Nos exercícios a seguir, ela foi orientada pelo instrutor Walter de Oliveira dos
Santos, da academia Competition, em São Paulo. (BF224, p.56)
Nesse aspecto, pelo que nos foi possível apurar, a revista Boa Forma tem uma
tendência maior a citar em detalhes o local de trabalho desses profissionais.
Concluídas essas observações sobre a presença de mulheres famosas nas páginas
dessas duas publicações, fica inegável o poder que as práticas discursivas têm de
manipular certas representações sociais.
Passemos agora ao levantamento das características do contrato de comunicação
do gênero midiático da boa forma feminina, etapa na qual nos serviremos do quadro
apresentado na seção 4.2.2.
193
5.9 O contrato de comunicação das revistas analisadas
Apresentamos abaixo, de forma sucinta, os traços que caracterizam tanto o nível
situacional quanto o nível discursivo. O nível situacional engloba as identidades
psicossociais dos parceiros do ato de linguagem, as circunstâncias materiais de
comunicação e as expectativas gerais:
Dados Externos (nível situacional)
Condição de identidade
a) Da parte do sujeito comunicante: jornalistas especializados na temática da beleza e
boa forma física femininas.
b) Da parte do sujeito interpretante: leitoras preocupadas com beleza, saúde e forma
física.
Condição de finalidade
a) Promover conselhos e orientações sobre questões estéticas, médicas, fisiológicas e
de moda (visada de informação).
b) Apresentar métodos a serem seguidos pelo leitor (visadas de informação e
incitação).
c) Vender produtos ligados à estética feminina (visada de incitação)
Condição de propósito
Detalhamento de toda uma gama de recursos visando à melhora ou manutenção da
aparência física, conforme comentado na condição de finalidade.
Condição de dispositivo
Revistas formato tablóide, impressas em papel cuchê, utilizando diversos recursos
visuais, principalmente fotos de mulheres de boa aparência.
Já o nível discursivo refere-se à encenação criada através do texto; por esse
motivo, remeteremos à questão do ethos insistentemente, conforme se pode apreciar a
seguir:
194
Dados Internos (nível discursivo)
Espaço de locução
O emissor justifica seu direito à palavra apresentando, no discurso, ethos de
credibilidade e empatia para com o leitor (parecendo-lhe sempre cordial, muitas vezes
jovial e eventualmente sofisticado).
Espaço de relação
A relação entre emissor e destinatário se processa através da cordialidade e da
motivação.
Espaço de tematização
Emprega-se, como é de esperar em textos persuasivos, principalmente o foco
alocutivo, seja para se dirigir ao leitor apresentando-lhe um problema, seja para
exortá-lo a um dado procedimento. Também se usam focos elocutivos e delocutivos
ocasionalmente, para efeitos de sentido específicos.
Espaço de semiologização
Utilização de dois códigos principais: o verbal e o visual.
a) Código verbal pautado morfossintaticamente na norma padrão da língua
portuguesa, o que conota um efeito de crebilidade, mas utilizando recursos lexicais e
fáticos associados a um registro mais coloquial, o que provoca uma conotação de
informalidade.
b) Código visual diversificado, mas enfatizando as fotos de mulheres com boa
aparência, sejam anônimas, sejam famosas.
Sobre o quadro acima, devemos observar que a distinção entre os códigos verbal e
visual não é absoluta. De fato, o código verbal adotado aparece em sua modalidade
escrita, de modo que seus significantes são, obviamente, visuais. Além disso, costuma-
se explorar tais significantes de várias maneiras, quer através da forma das letras, quer
através das cores empregadas. O estudo dessa articulação entre o verbal e o visual pode
sinalizar a possibilidade de trabalhos nos quais a AD se associe à semiótica.
No tocante ao espaço de relação, notamos que a interação entre emissor e
destinatário se processa cordialmente; em alguns momentos sobretudo com o uso dos
pronomes “nós” e “a gente”–, cria-se um efeito de solidariedade entre esses dois sujeitos
discursivos.
Um dado interessante é que, em determinadas situações discursivas, é comum
motivar o outro provocando-o, até mesmo com certas ironias do tipo “Duvido que seja
195
capaz de fazer isso”. Em nenhuma das duas revistas, contudo, apreciou-se tal
procedimento, o que se explica pelo risco que o enunciador correria de ser mal
interpretado: em vez de incutir ânimo no leitor, poderia desencorajá-lo ou mesmo
indigná-lo.
Os dois quadros acima se mostram bastante interessantes por promoverem a
articulação entre o social e o discursivo. Para complementá-lo, entretanto, achamos por
bem fazer alguns comentários sobre as representações sociais que preexistem a esses
textos e que neles se manifestam. Aproveitaremos o ensejo também para efetuar uma
brevíssima comparação entre as imagens feminina e masculina num certo segmento de
mídia.
5.10 Representações femininas e masculinas nos processos persuasivos
Nosso percurso teórico-metodológico não poderia terminar sem tratarmos, ainda
que minimamente, de uma das condições que Charaudeau recomenda para que se efetue
uma análise do discurso: a contrastividade (CHARAUDEAU, 2005, p.21). Uma vez
que as duas revistas que estudamos são muito parecidas entre si, a busca por elementos
contrastivos se revelaria pouco producente. A que iríamos, então, contrapor os dados
que levantamos acerca do contrato de comunicação dessas duas publicações? A
resposta parece natural. Como ambas destinam-se ao público feminino, seria natural
que as comparássemos com obras desse gênero voltadas para o universo masculino.
Existe, todavia, um problema sobre o qual comentamos ao apresentar nosso corpus,
em 5.3. São raros os textos supra-instrucionais relativos à boa forma física dedicados
aos homens.
As publicações abordando essa temática costumam ser técnicas e, portanto,
situam-se muito mais nos limites instrucionais. Além disso, voltam-se, em geral, para
ambos os sexos. Isso não quer dizer que os elementos persuasivos estejam de todo
ausente nelas. Ao ler um depoimento de como o esporte melhorou a saúde, a aparência
ou a auto-estima de alguém, o leitor inevitavelmente trava contato com um processo de
exemplificação, que não pode ser tomado como mero item informativo. Além do mais,
a simples exibição de fotos de atletas, com seus corpos exibindo uma incontestável boa
forma física, representa, por si só, um mecanismo persuasivo. Assim, configura-se, na
mente do leitor, um objeto que assume a condição de resultado a ser alcançado através
de uma busca – busca esta representada pelos exercícios físicos descritos.
196
Contudo, essas publicações carecem de uma maior variedade de representações
sociais. De fato, Corpo a Corpo e Boa Forma trabalham com a questão da beleza de
modo global, de maneira que a questão da boa forma física se associa também a
imaginários de estética, de moda e de estilo. Além disso, os mecanismos persuasivos
apresentados por essas duas publicações são mais amplos, constituindo uma encenação
discursiva mais abrangente. Diferentemente das revistas mais técnicas, os
procedimentos de aproximação são muito freqüentes nas publicações que estudamos,
apresentando uma riqueza de recursos lingüísticos que muito interessa à AD.
Assim sendo, não nos foi possível encontrar um correlato masculino perfeito às
revistas Corpo a Corpo e Boa Forma. A revista que mais se aproximou desse estilo foi
a Men’s Healht, da Editora Abril. Do mesmo que as duas revistas voltadas para o
público feminimo, Men’s Health não se limita às práticas esportivas ou às orientações
dietéticas, pois aborda vários outros assuntos, possuindo, todavia, uma diversidade
temática mais ampla que Corpo a Corpo e Boa Forma.
Não pretendemos efetuar uma análise pormenorizada dos procedimentos
persuasivos que se encontram em Men’s Health. Eles são basicamente os mesmos
levantados nas duas publicações femininas, com algumas poucas diferenças. Talvez a
distinção mais notável se refira à encenação dialógica, dentro dos procedimentos de
aproximação: Men’s Health também apresenta um tom coloquial, porém,
evidentemente, não emprega certos elementos típicos da fala feminina, como os
diminutivos, por exemplo. Nesse ponto, sua linguagem é menos marcada.
Na seção 5.2, comentamos que os textos persuasivos operam em torno de dois
objetivos, um imediato e um – ou mais de um – transcendente. Nesse aspecto, os
objetivos transcendentes dessas duas linhas de publicação diferem sutilmente.
Enquanto o objetivo imediato é comum, apontando para a obtenção de uma melhor
aparência, os objetivos transcendentes divergem, sendo marcados por imaginários
distintos. Nas publicações femininas, a boa forma física conduz a uma melhor
aparência, à auto-satisfação e a um certo destaque social. É como se essas revistas, no
conjunto de suas matérias e anúncios publicitários, produzisse a seguinte mensagem:
faça os exercícios e as dietas sugeridos, torne-se mais bela, melhore sua auto-estima e
sobressaia à grande massa feminina. Não se pode esquecer que uma crença
disseminada entre as mulheres brasileiras de que estas se vestem não para parecerem
belas aos homens, mas para competir entre si, provocando inveja umas nas outras.
197
Em Men’s Health, por outro lado, a boa forma física é associada aos imaginários
de virilidade e poder de sedução. Ilustramos esse ponto de vista com o trecho abaixo,
retirado de uma matéria sobre exercícios físicos:
direto ao ponto: músculos maiores e força significam mais testosterona,
disposição e tesão. (MH5, p.67)
Também é comum o emprego da seqüência narrativa falta-busca-resultado na
exemplificação, processo em que fica claro esse imaginário de virilidade. Note-se que o
conteúdo descritivo provoca um efeito de vínculo com o leitor, o qual pode se
identificar com os problemas citados:
J.C. Kelleher estava cansado. Cansado de se sentir mal em relação a seu corpo, da
barriga flácida e dos pneus que carrega desde a infância [...] e o pior, estava cansado de
sentir vergonha de deixar as luzes acesas quando ficava a sós com a mulher que ama.
Basta! [...] [FALTA]
Felizmente para Kelleher, ele e outros 15 homens estavam entre os primeiros a
testar um programa com dieta e exercícios que impulsionam a testosterona. [...]
[BUSCA]
Hoje Keelleher, que tem 1,78 metro de altura, pesa 78 quilos e sua cintura mede
81 centímetros. Consegue jogar futebol com seu filho de 11 anos e não tem de desistir
por falta de fôlego. Sua esposa gosta de olhar para ele quando está sem roupa.
[RESULTADO]
(MH7, p.76)
Esses imaginários de virilidade não são tão freqüentes nos textos dedicados
diretamente à questão dos exercícios e dos regimes alimentares, mas emergem de modo
claro na revista apreendida globalmente. Se pudéssemos estipular a mensagem que a
publicação, num todo, passa a seus leitores, ela seria a seguinte: faça os exercícios e as
dietas sugeridos, torne-se mais belo e seduza as mulheres que quiser. Desde criança
um certo imaginário entre os homens que associa a força física ao respeito que dela
advém, o que explica que grande parte dos super-heróis infanto-juvenis tenham uma
aparência atlética, mesmo quando seus principais poderes não são a força física sobre-
humana. Comumente, essa sensação de respeito se confunde com a admiração e, daí,
com a sedução.
198
Na verdade, esse imaginário segundo o qual o físico atlético impressiona as
mulheres parece justificar a própria existência da revista junto ao público masculino. O
fato de Men’s Health ser, até onde se pôde apurar, a única em seu gênero provém de
uma resistência que os homens têm em cuidar de sua beleza. De fato, a preocupação
com a aparência em determinados níveis é vista em geral com preconceito por grande
parte deles, relacionando essa postura à homossexualidade. Esse imaginário, pelo
menos no Brasil, é tão arraigado que dificilmente um homem se refere a outro de boa
aparência qualificando-o como “bonito”, muito menos como “lindo”. No máximo,
empregam-se certas expressões coloquiais como “bonitão” ou “pintoso”. Com as
mulheres, isso não ocorre: é normal uma considerar outra como “bonita”, “bela” ou
“linda”, sem que isso provoque observações preconceituosas.
A revista Men’s Health representa, portanto, uma resposta a essa visão
conservadora, relacionando-se a um comportamento rotulado como “metrossexual”:
trata-se do homem heterossexual que se preocupa tanto (ou quase tanto) com sua
aparência quanto uma mulher. Obviamente, os metrossexuais são vistos com profundas
reservas – pelo menos ainda – pela maior parte dos homens.
A divisão temática das três revistas que analisamos já é anunciada na capa. Ela nos
uma idéia de como a forma física se alia às demais representações sociais, conforme
se verifica no quadro abaixo:
TABELA DE ASSUNTOS TRATADOS NAS CAPAS
Corpo a Corpo
Forma física
51,2%
Beleza
41,5%
Moda / Estilo
2,4%
Comportamento
4,9%
Boa Forma
Forma física
65,7%
Beleza
31,4%
Moda / Estilo
2,9%
Comportamento
0%
199
Men’s Health
Forma física
29.6%
Saúde
25,0%
Relacionamento
18,2%
Moda / Estilo
13,6%
Carreira
9%
Outros
4,6%
Naturalmente, Corpo a Corpo e Boa Forma são semelhantes, embora a primeira
tenha uma grade temática um pouco mais ampla nas capas, que em nossa pesquisa
apuramos duas chamadas relativas a comportamento, ou seja, à questão psicológica. O
que chamamos de “forma física” se refere tanto a exercícios quanto dietas, sendo o
campo majoritário em ambas. Em segundo lugar, aparece a rubrica “beleza”, que
engloba as chamadas para cremes diversos, tratamentos específicos e cirurgias plásticas.
a Men’s Health tem suas chamadas de capa mais diversificadas. Predominam
também os anúncios ligados à forma física, conforme é evidenciado nos enunciados
abaixo:
Perca a barriga já!
Você só precisa de 3 semanas (MH7)
Projeto verão 2007!
Enxugue 1kg por semana
um plano fácil e infalível (MH5)
Entre em forma agora!
3 planos rápidos (MH17)
Num patamar bem próximo situa-se a rubrica que denominamos de “saúde”
doenças, tratamentos diversos, remédios e medicina preventiva –, a qual, inclusive,
justifica o nome da revista (“health”, cujo título, em inglês por si provoca um
efeito de sofisticação, como mostramos em 5.6.1.2). Eis alguns extratos que sinalizam
essa temática:
200
Proteja o seu coração do colesterol assassino (MH7)
Saúde sem chabu
Os exames que vão deixar você blindado! (MH24)
6 saídas para você se livrar do estresse (MH5)
O número de chamadas para o tema “relacionamento” também se mostra bem
significativo. Na realidade, deve-se entender “relacionamento”, nessa revista, por
“poder de sedução”, voltado especificamente para o desempenho sexual, como se pode
notar nos trechos que seguem:
Sexo
Mire e seduza: 19 truques para jamais errar o alvo (MH24)
Sexo! Sexo! Sexo!
Ela vai pedir bis!
12 táticas para deixá-la babando (MH25)
Mais sexo! Sexo melhor!
Ela vai derreter na sua mão!
E dar o que você quer (MH11)
Também se anunciam assuntos ligados à moda, mas normalmente sob a
denominação de “estilo” ou “visual”, uma vez que a palavra “moda” parece ser muito
associada ao universo feminino:
Afie o visual com a camisa perfeita (MH11)
Guia do estilo: 20 págs. + 182 idéias= visual a mil (MH25)
Num nível de freqüência mais baixo, alguns enunciados sugerem orientações
profissionais:
6 formas de jogar no time do chefe (MH24)
201
28 modos de subir na vida (MH25)
Logo, o perfil do leitor de Men’s Healht associa-se ao homem moderno,
ambicioso, preocupado com sua saúde e inquieto por seduzir o sexo oposto.
ainda um último aspecto a ressaltar sobre as duas linhas de publicação que
estudamos. Em nenhuma das 18 revistas analisadas utilizaram-se modelos negros na
capa embora eventualmente estes figurassem em matérias no interior das revistas.
Sabemos que em certas edições de Corpo a Corpo e de Boa Forma, que não fizeram
parte de nosso corpus, realmente havia mulheres negras ou mulatas nas capas, mas essa
não parece ser a regra. Também se observa tal restrição em Men’s Health, talvez por
ser uma revista de inspiração estrangeira, licenciada pela editora norte-americana
Rodale – editada em mais de 40 países–, na qual determinados imaginários sejam
incorporados à prática editorial. Seria, aliás, um estudo interessante comparar as
edições dessa revista em países diferentes.
Muitos outros aspectos relativos às representações sociais de mulheres e homens
apresentadas nessas revistas poderiam ser explorados, promovendo uma articulação da
AD à antropologia, à sociologia, à psicologia social ou à semiótica. Como nosso
empreendimento pretendeu um enfoque lingüístico-textual, damos por encerrada essa
etapa, mas reconhecendo os possíveis desdobramentos que esta pesquisa poderá
proporcionar.
Esforçamo-nos, assim, por provar que a AD se revela uma disciplina de enorme
valor operacional. Ao mesmo tempo em que nos servimos de inúmeros conceitos que
lhe são próprios, apontamos para outras direções que, em vez de descaracterizar a AD
enquanto disciplina, torna-a um lugar de possíveis interseções metodológicas.
202
6 - CONCLUSÃO
Finalizado nosso percurso metodológico, torna-se possível evidenciar algumas
observações gerais acerca dos sentidos conotativos e de sua influência na construção de
sujeitos no discurso.
Antes de mais nada, buscamos rechaçar certas crenças já bastante disseminadas no
meio escolar e até mesmo acadêmico. Uma delas é a tradicional dicotomia entre
denotação e conotação. Tendo como base nossa proposta de quatro modelos
conotativos, que representa uma das contribuições mais importantes desta tese aos
estudos do discurso, apenas no tocante ao tipo associativo seria pertinente falar em
oposição entre esses conceitos. Nos outros níveis (inferencial, apreciativo e identitário)
o sentido referencial se manteria preservado, em graus diversos. Logo, denotação e
conotação representam efeitos discursivos que não se excluem: mesmo a linguagem que
se pretenda a mais denotativa possível acaba gerando determinadas imagens do
enunciador, ou seja, provocando conotações identitárias. Mais do que isso: rompemos
com uma tradição semântica segundo a qual a conotação seria um efeito secundário da
denotação, defendendo, ao contrário, que a denotação é que se configura como um
efeito específico da conotação. Em nosso entender, pois, a imagem do sujeito no
discurso, ou seja, seu ethos corresponde a uma conotação de alcance global,
construindo-se em diferentes graus a partir fatores inconscientes, mas também a partir
de um projeto de intencionalidade.
Nossa visão se alicerça, pois, numa concepção intersubjetiva da linguagem, na
qual o sentido, denotativo ou conotativo, pode se dar no discurso. Isso nos leva a
rejeitar as assimilações que se fazem costumeiramente entre denotação e “sentido de
língua” ou “sentido de dicionário”. De um lado, o que chamamos de “língua” é uma
abstração estrutural, fora do intercâmbio linguageiro real; de outro, um dicionário nada
mais faz do que inventariar acepções consagradas pelo uso, algumas até de sentido
claramente figurado – não costuma haver, pois, “um” sentido de dicionário, mas vários.
Embora o discurso não possa ser examinado como um nível da língua, que
seria, na verdade, sua contraparte concreta, isso não quer dizer que ele seja
assistemático, nem que as formas lingüísticas tendam a uma dispersão semântica
irrefreável.
fatores que podem ser estudados a fim de determinar o processo de produção
dos sentidos: a identidade psicossocial dos sujeitos envolvidos, a situação imediata em
203
que se desenrola o discurso, o gênero do texto em questão com seu contrato específico,
e o mídium em que o texto figura. É bem verdade que esses itens não são efetivamente
lingüísticos, mas, num estudo que se proponha a analisar o valor social do sentido das
formas lingüísticas, é imprescindível que eles sejam levados em conta. Entretanto,
um outro elemento que também concorre na formação de sentidos e que não se encontra
pontualmente ligado ao texto: trata-se do interdiscurso.
De fato, um estudo discursivo não pode se limitar ao exame de marcas formais
bem segmentadas. Muitas vezes é necessário aproximar o texto que estamos analisando
de outros discursos, que, por sua vez, se materializam através das mais variadas
produções textuais. Não é por acaso que uma das idéias mais recorrentes na obra de
Maingueneau seja a importância que ele dá à questão do interdiscurso.
O sentido, conforme sugerimos acima, se presta à formação de imagens no
discurso, situando-se, pois, além da simples designação de uma referência. Essas
imagens associam-se ao enunciador e, por extensão, também ao destinatário, uma vez
que o discurso, repetimos, constitui uma atividade intersubjetiva. Deve-se tomar
cuidado, entretanto, com o emprego da palavra “imagem”. Embora a tenhamos
vinculado ao conceito de ethos, isto é, dos modos pelos quais enunciador e destinatário
se apresentam na prática discursiva, muitas vezes se confunde “imagem” com
“representações” e estas últimas não correspondem diretamente a nenhum sujeito
discursivo.
Nos textos midiáticos produzem-se representações que constituem verdadeiros
arquétipos, modelos a serem seguidos. Esses arquétipos materializam-se através de
fotos e de textos relativos a pessoas bem-sucedidas, reputadamente de boa aparência,
com corpo atlético e, muitas vezes, famosas. Embora esses modelos não coincidam
exatamente com os sujeitos, mantêm como eles indissociável vínculo. O enunciador é a
entidade que detém o conhecimento para aproximar o destinatário de tais modelos; e o
destinatário representa uma entidade que compartilha dos valores sociais veiculados
pelo enunciador e é potencialmente apta para encarnar essas representações.
Demonstramos que o enunciador dos textos ligados à boa forma física apresenta
variedades de ethos tais como credibilidade, motivação, cordialidade, jovialidade e
sofisticação, noções que obviamente se ligam também ao destinatário e às
representações sociais apresentadas. Estas últimas se desencadeiam a partir de
elementos lingüísticos: cremos que nossa formulação de três tipos de procedimentos
persuasivos (credibilidade, aproximação e motivação) constitua, no âmbito deste
204
trabalho, outra importante contribuição no que concerne à análise de textos dessa
natureza, pelo fato de sinalizar de que modo a materialidade lingüística manifesta as
diversas representações sociais.
Assim sendo, nesses procedimentos operacionais que formulamos, as
representações importam enquanto efeitos de sentido. Em contrapartida, investigar
como se desenvolveram ao longo tempo em nossa cultura ou como afetam
empiricamente os indivíduos é tarefa de outras disciplinas, tais como a antropologia, a
psicologia social e a sociologia.
Neste ponto, salientamos os limites de nossa pesquisa, apontando possíveis
articulações disciplinares. O registro lingüístico das revistas analisadas,
morfossintaticamente conservador e discursivamente coloquial, poderia ser estudado
mais a fundo através da sociolingüística. A linguagem da mídia escrita, em geral,
muitas vezes segue um modelo de redação similar; mesmo os jornalistas de veículos
conceituados concedem a seus textos um ar de informalidade variável.
A própria questão do texto em si poderia receber outras abordagens, como a da
lingüística textual de base cognitiva, interessada nos processos de referenciação.
Acreditamos que as maneiras pelas quais um elemento é retomado no texto podem ter
várias implicações na questão do ethos.
O aspecto visual, de grande apelo nessas publicações, poderia ser aprofundado
com auxílio da semiótica. Já o impacto efetivo dessas publicações junto aos leitores se
situaria no âmbito da psicologia social, como já comentamos.
Nossa proposta restringiu-se, conforme assinalamos, ao estudo dos efeitos de
sentido no discurso: a persuasão foi tomada como um processo textual, não como uma
conseqüência empírica. Sendo assim, não nos importou descobrir quantas pessoas se
animaram a fazer os procedimentos físicos e as dietas propostos; buscamos, antes,
entender as condições discursivas que poderiam desencadear tais ações.
Tampouco nos ocupamos de apurar o número de leitores que de fato tiveram
algum êxito nos exercícios e regimes propostos. Aliás, investigar a possibilidade de
sucesso ao segui-los demandaria um interessante estudo baseado em disciplinas fora da
área das ciências humanas, como a medicina, a nutrição e a educação física, por
exemplo.
Os limites a que nos impusemos, longe de constituírem algum tipo de falha
metodológica, mostraram-se essenciais para circunscrever um objeto específico de
análise. Além disso, em nossa perspectiva, a AD não se situa ao lado das semânticas
205
verocondicionais, que estudam as condições de verdade de uma sentença. O que
importa para um analista do discurso são, isto sim, as estratégias que permitem ao texto
se revestir de verossimilhança, ou seja, sua capacidade de parecerem verdadeiros e
não sua verdade em si.
Por outro lado, isso não quer dizer que o discurso construa o real pelo menos se
tomarmos o verbo “construir” ao da letra. Sem entrarmos no complexo e
interminável debate filosófico sobre o que é o real, assumimos que existe algo exterior à
linguagem. Esse “algo”, porém, não é um elemento estável ou imutável, pelo simples
fato de que é traduzível pela linguagem. O discurso, portanto, interpreta o real e o
impõe. Neste processo de imposição, os mecanismos de persuasão freqüentemente
assumem grande destaque.
Sobre o caráter impositivo do discurso, comentamos na seção 4.2.1 que
persuasão se houver uma espécie de encenação. A imposição através de uma
legitimação social qualquer, pura e simplesmente, não pode ser considerada persuasiva.
A seguir (em 5.2), também mencionamos que, embora possuíssem tal legitimação,
regimes autoritários buscavam cooptar as pessoas através de propagandas específicas.
Na verdade, o discurso persuasivo autoritário participa não apenas da propaganda de
governos institucionalizados, mas também dos mais variados grupos fundamentalistas,
sejam de ordem política ou religiosa (ou político-religiosa).
Fugiria do cerne desta tese estabelecer uma discussão mais longa sobre os
discursos fundamentalistas, mas apontamos em sua formação dois elementos que
citamos ao longo de nosso estudo: o maniqueísmo discursivo (5.6.2.3) e a
singularização (5.7.2).
O maniqueísmo discursivo consiste em operar uma divisão polarizada entre os que
seguem uma dada linha discursiva e são os “bons”– e os que não a seguem e são os
“maus”. Já a singularização instaura um processo de ruptura com um dado discurso,
que pode se desenvolver e representar um verdadeiro movimento de desconstrução de
saberes preestabelecidos do tipo “Tudo o que você conhece sobre o assunto X está
errado”.
A singularização base às chamadas “teorias da conspiração”, que negam todo
um saber histórico: este talvez seja um dos motivos do imenso sucesso do livro O
Código da Vinci, que reescreve a história de Jesus Cristo a partir de um ponto de vista
que destoa irreparavelmente do cristianismo oficial. É verdade que o termo “teoria da
conspiração” incorpora uma certa conotação pejorativa, pois se associa a uma série de
206
idéias que pouco crédito recebem junto à população, sendo vistas quase que como
insanidades o homem nunca foi à Lua, Paul McCartney morreu em 1966 e um sósia
atua em seu lugar até hoje, extraterrestres guiam o destino da Terra, entre outras.
Entretanto, esse modelo discursivo é usado também pelo poder institucional, que
através dele fundamenta algumas de suas ações: a invasão do Iraque pelos EUA, sob o
pretexto de que havia um arsenal de armas químicas, que, contudo, nunca foram
encontradas, é um exemplo recente.
Essas observações, que certamente assumiram um ar digressivo, são da maior
importância para justificar a aplicabilidade de nossa tese em outros domínios textuais,
porque tanto o maniqueísmo discursivo, quanto a singularização se encontram, em
níveis variados, nos textos supra-instrucionais que pesquisamos. Esses textos não
parecem autoritários, antes se servindo de um ethos de cordialidade, muitas vezes
enfatizado por nós. Mas certamente há um esboço de maniqueísmo discursivo, baseado
nas representações sociais formuladas, que separa o que é “bomdo que é “ruim”: é
bom ser magro(a), atlético(a), impressionar as amigas (no caso das mulheres), seduzir as
mulheres (no caso dos homens); é “ruim”, por outro lado, ser gordo, ser flácido, ser
sedentário, em suma, estar fora de forma.
Além disso, as revistas estudadas com freqüência propõem métodos diferenciados
para que o leitor atinja este lado “bom”, operando variados tipos de desconstrução, que
podem ser resumidos na fórmula “Tente o método X, que é diferente de todos os outros
e que, portanto, o levará ao êxito”.
A conclusão a que chegamos é que os mecanismos que as revistas usam para
persuadir os leitores são, em essência, os mesmos empregados pelos fundamentalistas.
Trata-se, pois, de uma diferença de grau, e não de natureza.
Isso não quer dizer, contudo, que os conteúdos das revistas analisadas são
necessariamente negativos. É possível mesmo que elas tragam algum benefício a seus
leitores, pois, inegavelmente, a prática esportiva e a alimentação regrada representam
condições importantes para manter a saúde. Aliás, conforme enfatizamos, está além da
AD traçar tais veredictos.
O objetivo de nossa disciplina, mais do que propor uma interpretação única para
um texto, tida como a “verdadeira”, é assinalar as maneiras pelas quais esse texto
influencia o interlocutor. Ou seja, talvez a grande contribuição da AD dentro do
processo de leitura seja o de formar leitores críticos, para os quais a linguagem deve ser
encarada como um sinuoso – porém fascinante – território de artimanhas e surpresas.
207
Encerramos nossas ponderações destacando que essa visão crítica pode recair não
apenas sobre textos particulares, mas sobre a própria questão da língua, em geral. Ao se
trabalhar na esfera discursiva, verificam-se o quão lacunosos são os ensinamentos da
gramática tradicional. No discurso, não apenas adjetivos, mas também substantivos e
verbos podem apresentar um matiz qualificativo, veiculando determinadas conotações
apreciativas; funções sintáticas ditas “acessórias” assumem papéis estratégicos na
produção de sentidos, caso dos adjuntos; conectivos chamados de “oposição” fazem
mais do que ligar enunciados, pois se prestam a minimizar toda uma posição discursiva
em detrimento de outra.
Além disso, demonstramos que as estruturas gramaticais também conotam e que
nem sempre aquela que é tomada pela mais “correta” se torna a mais eficaz na produção
de um determinado sentido.
Apesar de suas falhas, reconhecemos que o ensino da gramática tradicional é
importante, embora várias de suas posições devam ser revistas. De qualquer modo,
consideramos que a gramática não pode corresponder exatamente ao ensino de ngua:
este é que deve englobar aquela. Por “ensino de língua”, em sentido lato, pensamos,
sobretudo nos trabalhos de produção e interpretação de textos.
E, nessa perspectiva, estamos certos que a AD poderá fornecer valiosas e
críticas – colaborações.
208
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214
8 ANEXOS
Esta seção dedica-se a apresentar as capas das revistas que fizeram parte de nosso
corpus, bem como trazer exemplos das matérias que estudamos. Comecemos pelas
capas.
8.1 Capas das edições consultadas
Apresentamos a seguir capas das três revistas que estudamos nesta tese.
Ressaltamos sua importância estratégica, uma vez que elas normalmente constituem o
primeiro contato dos textos supra-instrucionais com o leitor.
8.1.1 Revista Corpo a Corpo
a) Edição 205 b) Edição 206 c) Edição 216
d) Edição 222 e) Edição 225 f) Edição 232
215
8.1.2 Revista Boa Forma
a) Edição 224 b) Edição 226 c) Edição 228
d) Edição 231 e) Edição 251 f) Edição 252
216
8.1.3 Revista Men’s Health
a) Edição 5 b) Edição 7 c) Edição 11
d) Edição 17 e) Edição 24 f) Edição 25
217
8.2 Apresentação de algumas matérias
A seguir mostraremos algumas matérias publicadas nas três revistas analisadas.
Retiramo-las de sua versão da internet, razão pela qual tivemos que processar uma nova
formatação. Por esse motivo, sua aparência geral é um pouco diferente da versão
escrita. O conteúdo textual, contudo, é rigorosamente o mesmo, salvo o da matéria da
revista Men’s Health, que está reduzido em comparação com sua publicação na revista
que foi às bancas. Entre parênteses encontram-se as páginas relativas à matéria em sua
versão impressa.
8.2.1 Mostra da Revista Corpo a Corpo
Magra com curvas
Ossos à mostra estão totalmente out. A onda agora é ficar fininha e toda curvilínea,
como as belíssimas Letícia Birkheur, Lavínia Vlasak e Stephany Brito. Se você é
enxuta,veja como aderir
MARCIA DI DOMENICO. FOTOS: PEDRO RUBENS
Você levanta a bandeira do ‘‘quanto mais magra, melhor’’? Então cuide-
se! Os padrões de beleza finalmente estão sendo revistos e o bonito
agora é respeitar seu corpo do jeito que ele é. Graças a isso, o corpinho
esquálido de modelo está totalmente fora neste verão – ufa! Este
movimento está ganhando ainda mais força graças a algumas beldades
que, sem abrir mão da magreza, adaptaram sua rotina de ginástica e
conseguiram curvas de arrasar. Como? Caprichando na musculação e,
claro, sem descuidar da dieta. É o caso das atrizes Letícia Birkheuer,
Lavínia Vlasak e Stephany Brito, que se negam a fazer o tipo
esquelético das passarelas. O público aprova e vai ao delírio a cada
passo delas.
Quilos do bem
Quem pensa que um shape bem torneado e com curvas acentuadas é
sinônimo de aumento dos ponteiros da balança, está muito enganada. É
verdade que muita gente que começa a treinar musculação percebe que
em pouco tempo o peso corporal subiu. “Isso acontece porque a
atividade estimula o ganho de massa magra (músculos), que também
pesam, o que não quer dizer que você está mais gorda”, avisa Rogério
Delegredo, personal trainer e professor de musculação da Runner (SP).
218
Uma alternativa para quem quer equilibrar a queima de gordurinhas ao mesmo tempo
em que desenha as formas, é combinar exercícios aeróbicos (corrida, caminhada,
natação) à musculação. Porém, se o seu peso está ok e o objetivo é definir a
musculatura, o ideal é ficar só na puxada de ferro.
Lavínia Vlasak
Magra desde a adolescência,
malhar foi a melhor saída
para Lavínia encorpar. E
para conservar as curvas, a
bela puxa ferro de segunda a
sexta-feira combinado com
atividade aeróbica.
Stephany Brito
Ela adotou a musculação 3
vezes por semana com
ênfase para coxas, bumbum
e barriga. Resultado: pulou
dos 44 kg para os 50 kg,
deixou para trás o visual de
menininha e virou um
mulherão.
Treino sob medida
Já que o objetivo é transformar você numa mulher de curvas, Rogério Delegredo
elaborou um programa infalível. Para ganhar massa muscular sem bombar, o ideal é
realizar séries longas, com intervalos curtos entre elas, e pouca carga. Assim o corpo
trabalha mais, sem precisar tanto de descanso e consegue uma hipertrofia leve e gradual.
Por isso ele caprichou na seleção de movimentos para coxas, bumbum e barriga, as
partes femininas mais valorizadas.
Nos movimentos com caneleiras e halteres, Rogério sugere começar com carga
adequada ao seu grau de condicionamento físico e ir aumentando aos poucos. “É
possível iniciar com 2 kg ou mesmo sem peso. À medida que perceber que consegue
chegar ao fim da série sem esforço é hora de acrescentar peso, que pode ser 1 kg por
vez. Treinando 3 vezes por semana em dias alternados, para perceber o aumento
do tônus muscular em 15 dias”, garante ele. Tudo de bom, não?
219
Circuito turbinado
Para garantir uma aula dinâmica e com resultados, o professor Rogério Delegredo
montou um plano dividido em cinco estações, com 2 exercícios combinados, que devem
ser feitos em três séries de 15 repetições cada um, alternadamente. “Como cada um
solicita um segmento muscular diferente, não é necessário fazer pausa entre eles. Ou
seja, malhando sem parar, de quebra a aluna vai ter um gasto calórico maior”, diz.
Vamos lá!
Você vai precisar de:
•1 cadeira
•1 colchonete
•1 par de caneleiras de 2 kg ou 3 kg
•1 par de halteres de 2 kg ou 3 kg
•1 bastão ou cabo de vassoura
Estação 1
PEITO E BRAÇOS
Em seis apoios (mãos, joelhos e pés no chão), braços afastados na linha
dos ombros. Flexione os cotovelos até formar um ângulo de 90o e
volte.
220
COXAS E BUMBUM
Em pé, perna esquerda à frente, bastão apoiado no chão.
Flexione os joelhos a um ângulo de 90º (o de trás deve quase
tocar o chão e o da frente não pode ultrapassar a linha da
ponta do pé). Volte sem estender totalmente as pernas e
repita para o outro lado.
Estação 2
COSTAS
Em pé, pernas afastadas na
linha dos quadris, joelhos
semiflexionados, tronco
inclinado à frente, mãos
segurando halteres. Flexione
os cotovelos para trás,
aproximando os pesinhos do
abdômen. Volte ao início.
BUMBUM E COXAS
Em pé, joelhos
semiflexionados, abdômen
contraído, bastão no chão.
Faça um agachamento sem
deixar que os joelhos
ultrapassem as pontas dos
pés e volte ao início.
221
Estação 3
TRÍCEPS
De costas para uma cadeira, pés
paralelos, joelhos flexionados,
mãos no assento. Flexione os
cotovelos levando o bumbum em
direção ao solo e volte. Atenção:
ponha o peso do corpo nos braços,
não nas pernas.
PARTE DE TRÁS DAS
COXAS
Em pé, mãos segurando o
bastão à frente do corpo, pés
no chão. Flexione o joelho
direito levando o calcanhar em
direção ao bumbum e volte.
Depois, repita com a perna
esquerda.
Estação 4
BUMBUM
Em seis apoios
(mãos, cotovelos e
joelhos no chão),
abdômen contraído.
Estenda a perna
direita para trás e
para o alto, um pouco
além da linha dos
quadris, e volte sem
deixar a ponta do
tocar o chão. Depois,
faça o mesmo com a
outra perna.
222
ABDÔMEN
Deitada de costas, joelhos flexionados, pés próximos ao
bumbum, mãos na nuca. Leve os joelhos em direção ao
tronco elevando um pouco os quadris. Volte à posição
inicial.
Estação 5
ABDÔMEN
Deitada de costas, pernas unidas, joelhos flexionados, pés
próximos ao bumbum, mãos na nuca. Suba o tronco ao
mesmo tempo em que leva os joelhos em direção a ele.
Volte ao início e repita.
BUMBUM
Em seis apoios
(mãos, cotovelos e
joelhos no chão)
abdômen contraído.
Eleve a perna direita
com o joelho
flexionado até a linha
dos quadris e volte.
Em seguida, repita
com a perna
esquerda.
(CC216, p.82-84)
Fonte: http://corpoacorpo.uol.com.br/
223
8.2.2 Mostra da Revista Boa Forma
Musculação em 15 minutos por Renata Menezes | fotos Dulla
Parece pouco, é verdade, mas em 15 minutinhos é possível tonificar os músculos e
queimar calorias. rcio Barone, coordenador de musculação da academia Reebok
Sport Club Morumbi, em São Paulo, montou este treino para você. O circuito inteiro,
passando por todos os equipamentos, é feito três vezes. As cargas ficam mais altas a
cada volta, enquanto as repetições diminuem (exceto para os glúteos e o abdômen).
“Assim, você vai trabalhar na freqüência cardíaca ideal para a queima de calorias, ou
seja, entre 60 a 75%. para gastar até 110 calorias em 15 minutos, além de deixar os
músculos firmes”, diz o instrutor. Encontre um tempinho e rume para a academia!
224
1. leg press
Alvo: coxas
a. Sentada com o tronco apoiado no encosto, pernas paralelas flexionadas e pés na
plataforma. Segure os apoios de mãos que ficam ao lado. b. Estenda os joelhos e volte à
posição inicial. Volta 1: 15 repetições Volta 2: 12 repetições (com aumento de uma
carga) Volta 3: 10 repetições (com aumento de mais uma carga)
2. chest presss
Alvo: peito e tríceps
a. Sentada, pernas flexionadas, braços estendidos na linha dos ombros e mãos
segurando o apoio (barra). b. Flexione os cotovelos e volte para a posição inicial. Volta
1: 15 repetições Volta 2: 12 repetições (com aumento de uma carga)
225
3. leg curl
Alvo: posterior de coxa
a. Sentada, joelhos estendidos e pés no apoio, com a proteção abaixo do calcanhar.
Segure com as mãos o apoio acima das coxas. b. Flexione os joelhos até 90 grau e volte
para a posição inicial. Volta 1: 15 repetições Volta 2: 12 repetições (com aumento de
uma carga). Volta 3: 10 repetições (com aumento de mais uma carga)
4. lat pull down supinado
Alvo: costas e bíceps
a. Sentada de frente para o equipamento, joelhos flexionados a 90 graus e os dois pés
apoiados no solo. Braços estendidos e segurando a barra com a palma da mão “voltada
para trás”. b. Deixe o tronco levemente voltado para trás e traga a barra até a linha do
peitoral, volte à posição inicial. Volta 1: 15 repetições Volta 2: 12 repetições (com
aumento de uma carga) Volta 3: 10 repetições (com aumento de mais uma carga)
226
5. glúteos na máquina
Alvo: bumbum
a. Em pé, deixe um pé no solo e o outro apoiado na plataforma com o joelho flexionado.
O tronco deve ficar encostado no apoio e os antebraços e cotovelos sobre o apoio. b.
Empurre a plataforma para trás estendendo o joelho, volte à posição inicial. Repita com
a outra perna. Volta 1: 20 repetições Volta 2: 20 repetições (com aumento de uma
carga) Volta 3: 20 repetições (com aumento de mais uma carga)
6. abs cadex
Alvo: abdômen
a. Deitada com os pés apoiados, joelhos flexionados e tronco encostado no apoio.
Segure as alças e deixe o cotovelo apoiado. b. Flexione o tronco à frente, mantendo a
lombar apoiada durante todo o movimento. Volta 1: 20 repetições Volta 2: 20
repetições (com aumento de uma carga)
(BF228, p.44-46)
Fonte: http://boaforma.abril.com.br/
227
8.2.3 Mostra da Revista Men’s Health
Ganhe um novo corpo na capoeira
Aposte nesse jogo para definir os músculos e deixar seu corpo ágil e flexível
Você quer colocar movimento na sua rotina de exercícios e deixar seu corpo ao
mesmo tempo forte e flexível, resistente e relaxado? Então a capoeira é sua opção
de treino. A arte marcial tipicamente brasileira nasceu como uma técnica de luta
dos negros escravos. Ao longo do tempo, foi se difundindo entre as raças e classes
sociais até se tornar um esporte praticado hoje em pelo menos 132 países,
segundo a Federação Internacional de Capoeira (Fica). Jogar capoeira é uma
alternativa para quem não gosta de treinos com pesos e da rotina de academia e
quer construir um corpo sarado.“É uma atividade excelente para ganhar força
muscular localizada. Os golpes movimentam grupos musculares que raramente
exercitamos”, afirma o presidente da Fica, Sergio Luiz Vieira, mestre de capoeira e
antropólogo especializado no esporte. A prática nasceu nas rodas de escravos que
se reuniam nas clareiras em volta das fazendas. Tanto que o nome foi emprestado
do termo que designa o terreno roçado para o plantio capoeira, em língua tupi.
Um dos diferenciais dessa arte marcial, a música (cantos e palmas embalados por
berimbau, atabaque e pandeiro) ajudava a disfarçar o caráter agressivo, fazendo a
luta parecer uma dança aos olhos dos fazendeiros brancos. Quando escravos
fugitivos começaram a usá-la em assaltos e arruaças, ela criou vínculo com a
bandidagem e foi proibida no século 19. voltou a ser legalizada na década de
1940. Hoje o 5 milhões de praticantes no Brasil e mais 3 milhões no mundo. A
calça branca usada ainda hoje o abadá –, único acessório necessário para a
prática, é reminiscência das roupas dos escravos, feitas de sacos de farinha.
Por: Tarso Araújo e Wilson Weigl
Foto: Rogério Albuquerque
Publicado 30/08/2007
228
GINGA
É A FASE INICIAL DA CAPOEIRA, COM ÊNFASE NOS MOVIMENTOS DE
BRAÇOS E PERNAS. OS GOLPES DA LUTA PARTEM DELA.
EXERCITA: coxas, pernas, abdome e ombros.
COMO FAZER:
comece executando os movimentos devagar, em
frente ao espelho, para pegar o ritmo. Em pé, posicione-
se com a
perna direita à frente e à esquerda atrás, ambas flexionadas, e o braço
esquerdo flexionado na altura do queixo. Traga a perna esquer
da para
a frente, na linha da direita, invertendo os braços. Jogue a perna
direita para trás, assumindo a posição inicial , que do lado
contrário. Repita o movimento todo de trás para a frente, sempre
trocando pernas e braços. Quando pegar o ritmo, alte
rne os dois lados
sem parar, fazendo a “ginga”. Execute três séries de dez repetições de
cada lado.
(MH17, p. 100-104)
Fonte: http://menshealth.abril.com.br/home/
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