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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOLOGIA E LÍNGUA
PORTUGUESA
Análise discursiva dos PCNs de Língua Portuguesa de a série: a
relação documento e o projeto de governo
Cássia Olinda Nunes
Orientadora: Profª Drª Helena Hathsue Nagamine Brandão
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São Paulo
2007
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOLOGIA E LÍNGUA
PORTUGUESA
Análise discursiva dos PCNs de Língua Portuguesa de a série: a
relação documento e o projeto de governo
Cássia Olinda Nunes
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Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filologia e Língua
Portuguesa do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, com vistas à
obtenção do título de Doutora em Letras.
Orientadora: Profª Drª Helena Hathsue Nagamine Brandão
São Paulo
2007
Banca examinadora
Professora Doutora Helena H. Nagamine – Brandão – orientadora (USP)
Professora Doutora Anna Rachel Machado (PUC - SP)
Professora Doutora Raquel Salek Fiad (UNICAMP)
Professor Doutor Valdir Heitor Barzotto (USP)
Professor Doutor Luiz Antônio da Silva (USP)
À memória do meu pai, que acharia tudo muito louco,
mas aprovaria sem restrição, e à Babi, mais novo
membro da família, que, com seus jogos de linguagem,
não os wittgensteinianos, mas aqueles próprios da
liberdade da criança, em fase de aquisição da
linguagem, nos ajudou a “desgavidar” deste projeto.
AGRADECIMENTOS
À Professora Helena pelo aprendizado, que foi intenso, nesses anos de convivência;
À USP, pela acolhida, inclusive no alojamento;
À banca de qualificação, representada pela Professora Doutora Anna Rachel Machado e pela
Professora Doutora Raquel Salek Fiad, pelas críticas pertinentes, que nos ajudaram a
encaminhar a pesquisa, na segunda etapa;
Aos colegas de caminhada, pelos momentos que nos caracterizaram como grupo de estudo;
À companheira de longa data, Virgínia Abrahão, pelo incentivo e pela ajuda, desde que nos
conhecemos;
À Professora Doutora Marildes Marinho pela generosidade em nos enviar, gentilmente,
enquanto fazia curso fora do Brasil, a sua tese, para que pudéssemos ampliar nossas leituras
sobre os PCNs de Língua Portuguesa;
A todos da família, que, como sempre, contribuem para a realização de um grande projeto;
em especial à Lígia, pela ajuda nos detalhes finais de computação;
Ao Tadeu, pela versão do resumo para o inglês, feita generosamente;
À então subsecretária pedagógica do Estado do Espírito Santo, Professora Eliza Bartolozzi
Ferreira, pela facilitação, no que foi possível, para que pudéssemos cumprir com as
obrigações do doutorado;
À Secretaria Municipal de Educação de Vitória (SEME), também por ter nos facilitado no
cumprimento das tarefas do doutorado.
O texto é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro
ao Pai Político. (Roland Barthes)
RESUMO
Este trabalho é uma leitura discursiva dos PCNEFs de Língua Portuguesa cujo objetivo foi
analisar as marcas lingüísticas que poderiam denotar a relação do conhecimento a ser
construído, em linguagem, com um projeto político de governo. Por ser o corpus um
documento que propõe o ensino da linguagem, da àsérie, com enfoque no segundo ciclo
desse nível de escolaridade, detivemos a leitura nesse último nível. Nossa leitura resultou de
inquietações provenientes da relação de um currículo prescrito, originado do poder instituído,
com o sistema globalizado de produção de riqueza. Dessas inquietações levantamos uma
questão: até que ponto os PCNEFs são um documento que estaria atrelado a um projeto de
governo neoliberal (FHC)? Para investigarmos essa questão, tomamos como fundamentos
teóricos pressupostos da Análise do Discurso que trabalha a relação do
sócio/histórico/político com o lingüístico/discursivo, para iluminar, metodologicamente, a
leitura que fizemos do documento. Dividimos a pesquisa em cinco capítulos. No primeiro
capítulo, nos apropriamos dos fundamentos sócio/histórico/políticos, tendo em vista a
construção de uma base teórica que nos garantiria compreender a relação entre o poder
constituído e a educação. No segundo capítulo, fizemos uma síntese da construção do saber,
na modernidade, através de uma leitura das formas de organização do currículo, da reforma
da educação no Brasil, implementada no governo FHC, e, ainda, uma leitura das discussões
pelas quais a ciência lingüística estava passando. Nele, também, levantamos algumas leituras
que se posicionaram a favor do corpus de análise e algumas que se posicionaram contra. No
terceiro capítulo, discutimos os fundamentos da AD, tendo por base, entre outros, os estudos
de Pêcheux, de Courtine, de Maingueneau e de Authier-Revuz. No quarto e no quinto
capítulos, fizemos uma juntura entre o teórico e o prático. Nessa juntura, propusemos,
primeiramente, a conexão entre o discurso e o seu lugar de origem, discutindo a
subjetividade, que perpassa o documento, através da intra/interdiscursividade. Em segundo
lugar, fizemos uma análise do que consiste o conhecimento escolar, ou a ciência lingüística
didatizada, no contexto dos PCNEFs. Nessa análise, estabelecemos a relação entre a ciência
aplicada e os interesses do Estado. Por fim, fizemos as considerações finais, que nos
permitiram estabelecer as relações para a comprovação da hipótese.
Palavras-chave: PCNEFs de Língua Portuguesa, discurso, subjetividade, ciência
lingüística/didatização, ensino de língua materna.
ABSTRACT
The present work is a discursive reading of the legal document named “Curriculum
parameters for teaching Portuguese language in fundamental education” (“PCNEF”), adopted
by Brazilian Ministry of Education. It has the aim of analyzing the linguistic marks which
could denote the relationship between the knowledge to be constructed by language teaching
and a political project of governance. Because the corpus was a document which proposes
language teaching from 1st to 8th grades, but focused on the second cycle of such schooling
level, we limited the reading to such cycle. Our reading resulted from a disturbing view of the
existing relationship between a prescribed curriculum originated from the established power
and the global system of wealth production. Based on such view we raised the question of
analysis: to what extent such PCNEFs are a document which might be intertwined with the
project of a liberal government (President Fernando Henrique Cardoso - FHC)? In order to
investigate such question, our theoretical foundations were the propositions of Discourse
Analysis which deal with the relationship between the social/historical/political realm and the
linguistic/discursive realm. The work is divided into five chapters. In the first chapter, we
expose the social/historical/political foundations for understanding the relationship between
the established power and education. In the second chapter, we present a synthesis of the
construction of knowledge in modernity, by analyzing the modes of curriculum organization,
the educational reforms in Brazil implemented during the government of FHC, and the
discussions involving linguistics. Such chapter also brings out some readings in favor of the
corpus analyzed and some against it. The third chapter discusses the foundations of
Discourse Analysis (DA), including, among others, the studies of Pêcheux, Courtine,
Maingueneau and Authier-Revuz. In the fourth and fifth chapters we made a junction
between theory and practice in which we first propose a connection between discourse and its
place of origin and discuss the subjectivity present in the document, by means of
intra/interdiscursivity. Then we analyze school knowledge, or linguistic science in didatics in
the context of PCNEFs, by establishing the relationship between applied science and the
interests of the State. In the final considerations we establish the relations for proving the
hypothesis.
Key-words: PCNEFs for Portuguese language, discourse, subjectivity, linguistic
science/didatics, teaching of native language
SUMÁRIO
Introdução.......................................................................................................................1
Capítulo I
1.0 Fundamentos teóricos: bases sócio/histórico/políticas..........................................9
1.1 A instituição do poder oficial......................................................................10
1.2 As diferentes formas de organização do poder: a organização do Estado Civil ou
os diferentes modelos de estado de direito............................................12
1.3 A identidade político/econômica do Estado moderno: os modelos de estado
instituídos.............................................................................................................16
1.4 A propósito do Estado neoliberal: a reforma do Estado Brasileiro.............25
Capítulo II
2.0 O saber escolar no contexto histórico da modernidade.......................................29
2.1 As formas de organização do currículo na modernidade...............................29
2.2 A reforma da educação no Brasil: um currículo adaptado.............................43
2.3 O contexto lingüístico de reforma da educação no Brasil: a pré-história dos PCNs
de Língua Portuguesa................................................................................55
2.4 Algumas leituras do documento...................................................................64
2.4.1. Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – olhares a
favor..............................................................................................................65
2.4.2 Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – olhares em
confronto.......................................................................................................67
Capítulo III
3.0 Fundamentos teóricos: bases lingüístico/discursivas...........................................76
3.1 Sujeito e discurso: uma relação com a polifonia...........................................82
3.2 Sujeito e discurso: uma relação com as formações discursivas....................86
3.3 Sujeito e discurso: uma relação com a ideologia......................................... 89
3.4 Sujeito e discurso: uma relação com a escritura...........................................93
3.5 Sujeito e autoria no discurso institucional....................................................95
Capítulo IV
4.0 Os PCNEFs de Língua Portuguesa: a tessitura do enunciado..........................101
4.1 A relação com o gênero do discurso: a definição do gênero.......................102
4.1.1 Voltando o olhar para os PCNEFs de Língua Portuguesa: a relação com o
gênero................................................................................................................108
4.2 A intra/interdiscursividade: os outros no discurso do mesmo.....................116
4.2.1 Interdiscursos e memória discursiva: a polifonia.....................................118
4.2.2 A intradiscursvidade: a construção do ethos............................................127
4.2.2.1 O professor do segundo ciclo do ensino fundamental: quem é ele?.....138
4.2.2.2 O aluno previsto para o ensino fundamental: quem é ele?...................145
4.3 Sujeito e autoria nos PCNEFs de Língua Portuguesa: formas de representação
..........................................................................................................................151
4.3.1 A representação da forma-sujeito: a subjetividade..................................151
4.3.2 A representação da função-sujeito: a autoria...........................................155
Capítulo V
5.0 O processo de didatização nos PCNEFs de Língua Portuguesa: a construção das
propostas de prática.......................................................................................162
5.1 As práticas de oralidade, de leitura e de escrita..........................................163
5.2 A noção de gênero nos PCNEFs de Língua Portuguesa: por onde passa a
didatização desse conteúdo...............................................................................176
5.3 O ensino gramatical: a didatização desse conceito nos PCNEFs de Língua
Portuguesa...................................................................................................183
Considerações finais...................................................................................................192
Bibliografia..................................................................................................................198
Anexos
Anexo I
Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental
Anexo II
Parecer da Câmara de Educação Básica
INTRODUÇÃO
O percurso da tese
A justificativa
Para justificar o motivo pelo qual decidimos penetrar no universo de discurso dos
PCNEFs de Língua Portuguesa, precisamos nos reportar à nossa trajetória pré-doutorado.
Quando a reforma educacional proposta pelo governo Fernando Henrique Cardoso veio para
a discussão, tanto no meio acadêmico quanto na comunidade escolar, estávamos afastada das
nossas atividades docentes, tanto em nível de ensino fundamental quanto em nível de ensino
médio, para cursar o mestrado. Como de praxe, estávamos meio enclausurada por conta da
pesquisa. Isso implica que não participamos, em nenhuma instância, de discussões sobre a
referida reforma, logo, também, não participamos das discussões sobre os PCNEFs de Língua
Portuguesa. Mas, tão logo assumimos nossas funções docentes, em 1998, tanto em nível de
ensino fundamental quanto em nível de ensino médio, os documentos começaram a chegar às
escolas. Os de ensino médio propuseram, de imediato, algumas discussões, já que da reforma
desse nível de educação básica constava algo que precisava ser analisado, que era o fim da
educação profissional, da forma como estava estruturada, o que apontou uma necessidade
premente de reordenação do currículo.
Já a implementação dos PCNs para o ensino fundamental (PCNEFs) seguiu uma outra
trajetória. No final do ano de 1998, mais precisamente em outubro, o MEC escolheu alguns
municípios brasileiros para começar a implementar o documento. O critério de escolha foi o
nível de formação dos docentes. Pelos dados do MEC, a propósito de Vitória (ES), esse seria
um município no qual um percentual elevado de profissionais da educação já teria pós-
graduação lato sensu, o que justificaria começar a implementar o documento pela região
metropolitana da Grande Vitória.
O contato com os representantes do MEC se limitou a uma apresentação dos
documentos, através de um documento suplementar chamado: Parâmetros Curriculares
Nacionais Introdução, que contém orientações teórico/metodológicas que garantiriam a
implementação dos PCNEFs, supondo práticas pedagógicas para além do seu caráter de
tradicionalidade. Tratou-se, portanto, de uma conversa inicial com alguns docentes que, a
critério das redes representadas, seriam, juntamente com outros professores, os continuadores
do processo.
Recém chegada do mestrado, fomos instada a representar a escola onde estávamos
lotada e, por conseguinte, apontada como uma das implementadoras do documento. Mas, por
questões particulares, não aceitamos tal responsabilidade. No final de 1999, nos afastamos
das atividades docentes, tanto em nível de ensino fundamental quanto em nível de ensino
médio. Afastada desses níveis de escolaridade, mas no meio acadêmico, sempre ouvíamos
avaliações de alunos/professores, ou de colegas que estavam implementando o documento.
Nessas avaliações, havia os que se posicionavam contra, dizendo que se tratava de uma
organização textual que continha posições teóricas que não convergiam para o mesmo
conceito, ou seja, havia uma sobreposição de teorias, e os que se posicionavam a favor,
considerando-o sob a perspectiva de que se tratava de uma confirmação da aplicação de
teorias da lingüística, que já vinham sendo implementadas, sobretudo, na rede municipal de
Vitória.
Afastada das atividades docentes, em nível de ensino fundamental e médio, mas ao
mesmo tempo envolvida com elas, já que lecionávamos para cursos de Letras, e as nossas
discussões, enquanto professora de Lingüística, eram permeadas pelas questões referentes ao
ensino de língua materna, tornou-se necessidade iniciar uma aproximação do documento de
Língua Portuguesa. Cabe ressaltar que essa aproximação foi nos mostrando outras questões
que iam além do lingüístico. Por essa razão, foram-nos necessárias muitas leituras do
documento e também muitas leituras sobre o documento, que encaminharam outras
discussões teóricas que não as lingüísticas, suscitando-nos algumas questões, tais como:
seriam os PCNs um projeto de governo que consolidaria uma política de Estado que teria
a marca do poder instituído?
se os PCNs são um projeto de governo que culminaria com uma política de Estado, que
marcas lingüísticas, nos PCNEFs de Língua Portuguesa, deixariam transparecer essa
historicidade?
por fim, se os PCNs são um documento que culmina com um saber a ser ensinado, que
teve sua origem no poder instituído, como se daria o processo de didatização dos
conhecimentos lingüísticos, ou seja, a que pressupostos teórico/metodológico esse
processo estaria submetido, para atender ao que se propunha enquanto documento
oficial?
As questões levantadas nos fizeram supor uma hipótese a ser investigada: os PCNEFs seriam
um documento que estaria atrelado a um projeto de governo, que confirmaria uma política de
Estado, consolidando, juntamente com outras ações, a reforma a que o próprio Estado estava
se submetendo. Se o governo, que propunha os PCNs, fora eleito com um discurso que
preconizava reformas para os vários segmentos da sociedade, inclusive o da educação,
portanto, avalizado pela sociedade para as decisões necessárias para entrar, de vez, no
processo de globalização, que era a sua grande bandeira, a reforma no campo educacional
estaria, também, atrelada a esse movimento. Mediante a hipótese levantada, o problema a ser
investigado foi verificar a forma como as propostas políticas que fizeram parte do projeto de
reforma do Estado emergiriam na tessitura dos PCNs de Língua Portuguesa, ou seja, que
marcas lingüísticas foram responsáveis por fazer transparecer a relação das políticas a serem
implementadas pelo projeto de reforma do Estado com o processo de produção de
conhecimento, no âmbito educacional.
Objetivos da pesquisa
Objetivo geral:
Analisar, no corpus, como as marcas lingüístico-discursivas denotaram a relação do
conhecimento a ser construído, em linguagem, no ensino fundamental, com um projeto
político de governo.
Objetivos específicos:
Reconhecer o gênero de discurso no qual o enunciado (PCNEs de Língua Portuguesa)
está ancorado e, através desse reconhecimento, entender a relação da episteme
pedagógica que serviu de base para a didatização do conhecimento a ser ministrado em
linguagem, dispersa no enunciado.
Reconhecer, na repetibilidade do enunciado e na singularidade da enunciação, a relação
entre o nível do intradiscurso, (da ordem da linguagem, da textualização), e o nível do
interdiscurso, da ordem da historicidade, do sócio-ideológico, da memória, para analisar
como, no espaço do mesmo, se acolhe ou se recusa o outro, em gestos de aliança, de
polêmica, ou de combate.
Discutir o processo de didatização dos conteúdos a serem ensinados, em linguagem,
considerando a relação com o projeto do governo FHC.
Delimitação do corpus
O corpus que foi analisado é constituído pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa, de a série. Por ser um documento oficial, ele está inserido em um
contexto de tantos outros documentos, tanto de ordem nacional quanto de ordem
internacional, que foram, também, tomados como referência, na contextualização do
documento. A começar por aqueles que são de ordem nacional, fizemos menção da
Constituição Federal, do Plano Decenal de Educação Para Todos, da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LDB 9394/96), das Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental,
do Parecer da Câmara de Educação Básica sobre o documento e, por fim, dos Parâmetros
Curriculares Nacionais Introdução. Por documentos internacionais, fizemos referência à
Declaração de Jomtien e à Carta de Nova Delhi.
Por serem os documentos acima levantados aqueles que, de forma explícita ou
implícita, ecoam no documento, por ser, ainda, a hipótese levantada, que é permeada por um
diálogo com todos os documentos, recortamos a discussão em torno da disciplina Língua
Portuguesa, tendo em vista a compreensão do sentido político e ideológico da
interdiscursividade que corta o fio do enunciado. Pelas questões levantadas, e ainda pela
hipótese que foi investigada, nessa interdiscursividade tomamos como pressuposto a. relação
do conhecimento com a reforma a que o Estado brasileiro estava se submetendo.
Etapas da pesquisa
Como toda pesquisa acadêmica nasce de inquietações que fazem parte da vida do
pesquisador, com a nossa não seria diferente. Conforme já consideramos, inicialmente, a
nossa inquietação partiu de uma necessidade de compreender, sob o nosso olhar, os ditos
sobre os PCNEFs de Língua Portuguesa, mas a questão se expandiu para além desse
perspectiva. Levantada a hipótese a ser investigada, no corpus, levantados os objetivos a
serem perseguidos, tomamos um rumo bem determinado, embora muito amplo para a
pesquisa, estabelecendo, como prioridade, algumas leituras. Cabe avaliar que elas
obedeceram a um cronograma com etapas diferenciadas. Na primeira etapa, levantamos
questões relacionadas aos aspectos sócio/histórico/políticos que nos subsidiaram na leitura do
documento. Esse levantamento nos permitiu abrir dois capítulos, que supõem a relação do
poder instituído com a educação, mais precisamente, com o currículo.
No primeiro capítulo, de forma muito sumária, discutimos a instituição do poder
oficial e a sua abstração no corpo social, sempre na relação com a história. Na perspectiva
desse poder instituído, discutimos, também, as suas diferentes formas de organização, a
começar pelo estado de natureza, culminando com a organização do estado civil, ou com o
estado de direito. Nele, também, aprofundamos a discussão da organização
político/econômica do estado moderno, ou os modelos de estado instituídos, que
caracterizaram a sua identidade. Na esteira da discussão do modelo de Estado que tem
marcado a história recente, ainda no primeiro capítulo, discutimos, também, a reforma a que
o estado brasileiro se submeteu, tendo em vista a sua adequação à ordem mundial, que
culminaria com um novo modelo de Estado.
Mas discutir a relação do poder instituído, ou as formas de organização do estado
moderno, fora da relação com a produção de conhecimento não faria sentido para a nossa
pesquisa. Por essa razão, no segundo capítulo, discutimos essa relação, materializando-a em
alguns pontos. Em primeiro lugar, levantamos as formas de organização do currículo e a sua
relação com a sociedade industrial capitalista, tendo sempre em vista considerar a questão
sob o ponto de vista da cadeia produtiva. Em segundo lugar, discutimos a reforma da
educação brasileira proposta pelo governo FHC e a relação dessa reforma com a reforma do
Estado.
A título de enriquecimento da pesquisa, mas tendo, também, como objetivo uma
possibilidade de apropriação, no momento da análise, fizemos, em terceiro lugar, leituras que
nos permitiram situar os PCNEFs de Língua Portuguesa em um contexto de discussão
lingüística, já evidenciado não só na academia, mas também no ambiente escolar, já que essa
foi uma discussão que perpassou os sistemas de ensino no final da década de 1980 e também
na da década de 1990. Em quarto lugar, apontamos, ainda, uma leitura de algumas outras
leituras do documento, tanto sob olhares de conformação quanto sob olhares de confronto.
Isso implica que buscamos a compreensão de quem se posicionou contra o documento ou a
favor dele. Diríamos que esse capítulo teria, entre outros, também o objetivo de situar,
historicamente, a construção do corpus de análise, através da história recente da Lingüística,
no Brasil.
No terceiro capítulo, levantamos os pressupostos teóricos de base lingüístico-discursiva cujos
fundamentos estão ancorados na corrente francesa de análise do discurso, mais precisamente,
a AD. Cabe ressaltar que essa corrente do discurso não prescinde do sujeito enquanto
construção histórico/ideológica. Por essa razão, neste capítulo, discutimos a constituvidade
do sujeito enquanto elemento de discurso, relacionado à polifonia, às formações discursivas,
à história, à ideologia, à escritura e à autoria, enquanto função-sujeito, no discurso
institucional.
Por fim, entramos no corpus de análise. Através não só dos pressupostos de base
histórica e lingüística, mas também das discussões que situaram o documento em relação à
lingüística, nos auxiliando na análise, entramos nele por vias distintas, através de dois
capítulos. No quarto capítulo, fizemos uma leitura discursiva do documento, situando o
enunciado (PCNEFs de Língua Portuguesa) em um gênero de discurso, com base nos
pressupostos de Bakhtin sobre esse conceito. Situado o enunciado em um gênero de discurso,
discutimos, no ponto que se segue, os interdiscursos, ou o outro buscado na verticalidade do
enunciado, e a intradiscursividade, ou o outro, reconhecido no espaço do mesmo. Ao longo
dessa discussão, a subjetividade foi uma questão também averiguada, tanto em nível de
pontos de deriva do sujeito quanto em nível de autoria, embora seja um enunciado de
natureza oficial, com uma pretensão de monofonização. Neste capítulo, portanto, fizemos
uma leitura discursiva do documento, sempre relacionada às suas condições históricas de
produção.
Sendo o enunciado não só de natureza didática, mas que, também, supõe uma
transposição didática, no quinto capítulo, levantamos os conceitos lingüísticos que o
documento sugere como conteúdos a serem ensinados, e a didatização desses conteúdos. Pelo
fato de o corpus de análise ser recortado para a disciplina Língua Portuguesa para o segundo
ciclo do ensino fundamental (de a 8ª série), discutimos essa questão, sobretudo, nesse nível
de escolaridade, tendo em vista reconhecer a relação da reforma educacional com a reforma a
que o Estado brasileiro estava se submetendo. Nessa discussão, levantamos as epistemes de
sustentação que nos permitiram garantir o entendimento da forma como os conceitos são
didatizados, logo, a compreensão de que esse é o lugar possível em que o ideológico se
instala.
Por fim, fizemos as considerações finais, que constam de uma síntese da pesquisa,
confirmando a tese de que os PCNs são um projeto de governo que deveria convergir para
uma política de Estado para a educação, tendo em vista a consolidação da reforma do Estado,
já em construção.
Para concluir esta introdução, gostaríamos de retornar aos dois capítulos de análise. Por
eles, foi-nos possível apontar que o documento, como um todo, propõe inovações que, se
consideradas apenas sob o ponto de vista teórico, com base em fundamentos lingüísticos,
poderia consolidar uma política de inovação, já em construção no trabalho com a linguagem.
O estudo da língua materna sob o ponto de vista discursivo, com base em aspectos da
oralidade, da leitura, da escrita e da reflexão sobre a língua, e, ainda, sob os pontos de vista
sociovariacionista e sociointeracionista, proporia o processo de aprendizagem de forma a
coincidir com o que já estava acontecendo não só na academia, mas também nos sistemas de
ensino, sobretudo, público. Mas, pela nossa visão, o que parecia ser a sistematização de uma
discussão já avançada, se perdeu no processo, à medida em que se apropriou de fundamentos
teóricos de base pedagógica para reproduzir o sistema dominante. Por essa razão,
consideramos que os PCNs funcionaram mais como legitimadores ideais para a sustentação
do modelo de Estado pretendido. O pressuposto pedagógico a ser garantido pedagogia das
competências nos pareceu ser mais importante do que os princípios lingüísticos que
deveriam ser considerados na aprendizagem, haja vista a competência básica a ser
desenvolvida, que aparece de forma intensa no documento, que é a competência discursiva.
Através do pressuposto básico a ser assegurado, a escola, que é um Aparelho
Ideológico de Estado, se caracterizou, de forma explícita, como uma instituição que está a
serviço de um modelo de Estado instituído, e o que o documento parece propor não propõe,
pois está a serviço do sistema, no caso em apreço, o capitalismo constitutivo do modelo de
Estado, na sua organização neoliberal. Dessa forma, não haveria, minimamente, uma
liberdade para se pensar o conhecimento. Nesse contexto, a oralidade, a leitura, a escrita e a
reflexão sobre a língua , propostas sob o ponto de vista discursivo, convergiriam para uma
competência básica a ser desenvolvida, tendo em vista o caráter instrumental da linguagem, o
que confirmou pressuposto básico do princípio pedagógico assumido. Esse pressuposto
confirma a idéia de Bourdieu a respeito do sentido que a pedagogia das competências tomou,
no contexto histórico/político mundial.
Por trás da visão mundialista internacional dos dominantes, há uma
filosofia da competência, segundo a qual são os mais competentes que
governam e que têm trabalho, o que implica que aqueles que não tem
trabalho não são competentes. (Bourdieu, 1998:58)
CAPÍTULO I
1.0 Fundamentação teórica: bases sócio/histórico/políticas
A história “efetiva” faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de
único e agudo. É preciso entender por acontecimento não uma decisão, um
tratado, um reino ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte,
um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus
utilizadores, uma dominação que enfraquece, se distende, se envenena e
uma outra que faz sua entrada, mascarada. (Foucault, 2003:27)
Considerando ser a análise do discurso de origem francesa, ou a AD, uma disciplina
que é, por natureza, interdisciplinar, o que indica que, para tê-la como pressuposto teórico de
análise é necessário que se busquem conceitos para além dela, neste capítulo, pretendemos
discorrer sobre os pressupostos teóricos, de natureza sócio/histórico/política, tendo em vista
levantar fundamentos que nos auxiliarão, juntamente com os fundamentos lingüísticos, na
comprovação da hipótese a ser investigada.
Para começarmos a discussão proposta, gostaríamos de nos remeter para o
fragmento de epígrafe. Nele, Foucault (2003:28) busca estabelecer a diferença entre a história
tradicional e a história efetiva. Tratar da história em seu caráter de efetividade implica uma
ruptura com a própria história, vista sob um caráter de linearidade. Isso significa ir além da
sua natureza narrativa para compreendê-la como algo fundador de identidades, portanto,
portadora de sentido. Isso implica, também, que ela deverá ser considerada, melhor dizendo,
entendida a partir dos conflitos e dos confrontos por ela mesma instaurados, ou, mais
objetivamente, em seu caráter de contradição, implementando formas de vida dela oriundas.
Colocada a questão sob pontos de vista diferenciados, pode-se até entender que há
uma dicotomização da história, mas um olhar mais acurado aponta-nos o que se evidencia, de
fato. Historicamente, está imbricada uma representação simbólica de fundo e de figura, que
se materializa na história efetiva, resultante dos estados de coisa instituídos, ou nas
representações sócio/históricas. Segundo Foucault (1995:1), por trás da história desordenada
dos governos, das guerras e da fome desenham-se histórias quase imóveis ao olhar, história
com um suave declive: dos caminhos marítimos, história do trigo ou das minas de ouro,
história da seca e da imigração, história da rotação das culturas, história do equilíbrio obtido
pela espécie humana entre a fome e a proliferação.
A história, seja vista sob um olhar tradicional, seja vista sob um olhar de efetividade,
é sempre redesenhada, num processo de buscas e de avanços, o que nos permite afirmar dela
que é cíclica. Isso implica que, de ruptura em ruptura, ela vai se reconstruindo, portanto, fora
da linearidade dos fatos. A propósito dessa questão, Foucault (2003:25), dialogando com a
concepção de moral, discutida por Nietzsche, tendo em vista estabelecer a diferença entre a
história da metafísica e a história da genealogia, afirma que a humanidade não progride
lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras
substituiriam para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em um sistema de
regras, e prossegue assim de dominação em dominação. Tratar da história considerando esse
aspecto seria, necessariamente, interpretá-la a partir das relações que se estabelecem. Isso
implica, nas palavras de Marx (1989:40), dar-lhe uma base terrena, de forma a compreender
os seus interstícios, ou a sutileza dos sistemas de regras das violências, instituídos, visando à
dominação a que Foucault faz referência.
Os pressupostos que caracterizam a história não como linearidade, mas como
construção de identidades indicam o que deverá ser discutido neste capítulo. Enquanto
fundamentos teóricos que nos subsidiarão na análise, discutiremos a instituição do poder; as
suas formas de organização, a identidade do estado moderno e, por fim, a adaptação do
Estado brasileiro à ultima identidade do Estado moderno
1.1 A instituição do poder oficial
A propósito das relações de poder estabelecidas, ao longo da história, elas foram
tomando forma a partir dos diferentes modos de convivência. Desses modos de convivência
foram se estabelecendo as relações de hierarquia e, através delas, segundo Rousseau, (1996:
35), estabeleceu-se uma forma de contrato que teve um valor pactual. Esse valor pactual
implica que todos, ao mesmo tempo em que são livres, estabelecem um contrato de
convivência, estabelecendo o modus vivendi dos povos constituídos em comunidade.
Segundo Chaui (1997:400), a organização da sociedade pelo contrato fundou a
soberania, ou a transferência a um terceiro para essa organização, com vistas a legitimar a
teoria do pacto social. Platão (s.d:170), já com uma visão político/científica da questão,
afirmou tratar-se daquele que exerce um poder diretivo, mais especificamente, um poder
autodiretivo, ou, sob o olhar ainda platoniano, o que conhece a essência das necessidades.
Do conjunto de fatores acima mencionado surgiu o político, na essência da
significação, e com ele o poder instituído. Essa idéia se confirma em Rousseau (1996:53),
que afirma que, pelo pacto social deu-se existência ao corpo político, sendo que esse corpo
político se constitui do soberano e de seus súditos. É oportuno ressaltar que, na visão de
Platão, esse soberano, no seu tempo, já se disseminava no exercício do poder, delegando aos
arautos a missão de transmitir decisões a terceiros. Trata-se da abstração do poder que,
segundo Foucault (2003:179), ao avaliar a questão da sistematização das suas origens, afirma
que existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo
social. Essa afirmação traz, na sua essência, uma interpretação da realidade histórica, que
tem, nela mesma, o poder disseminado, ou abstraído nessa realidade, para a dominação.
Em Vigiar e punir (1987), Foucault faz um delineamento do exercício do poder,
dando conta de que ele sempre se deu de forma a ser o resultado de uma visão estratégica
sobre um corpo social a ser administrado por um soberano, “sabedor de todas as coisas”,
capaz de se disseminar na estrutura desse poder, delegando-o a corpos políticos, devidamente
treinados para esse exercício, o que Foucault caracterizou como micro-física do poder. Mas
cabe avaliar que esse exercício precisa ser compreendido a partir da forma como foram
estabelecidas as relações com o trabalho, logo, com o processo de produção de riqueza.
Historicamente, tal como o exercício do poder foi se delineando, o trabalho também cunhou
marcas diferentes de organização, que foram da compreensão do mesmo apenas como forma
de sobrevivência, passando pela mão de obra escrava (Antiguidade Clássica), por uma
relação hierárquica de trabalho, que esboçou o modelo de Estado capitalista (Idade Média),
pela compreensão do mesmo como riqueza, culminando com o trabalho alienado, com valor
de mercadoria, fora, portanto, da relação com o meio de sobrevivência (Modernidade).
A correlação de forças, manifestada no exercício do poder e na relação com o
trabalho, é que tem produzido a história efetiva, ou a figura resultante dessa correlação. É
dela, portanto, que emergem sujeitos históricos
1
, capazes de movimentar a própria história.
Logo, é desse movimento que vão surgir os conflitos e as contradições, manifestadas nos
diferentes tipos de violência. Isso implica que, nas organizações políticas, para além de uma
transferência de poder para o soberano, o que há são coerções histórico/políticas, que
produzem sociedades cindidas, imprimindo modos de vida diferentes, logo, capazes de
produzir classes sociais diferentes, sendo que essas coerções é que são determinantes para a
organização da sociedade. São elas, portanto, a resultante do exercício do poder, responsável
por (re)desenhar a história, em seu caráter de efetividade, ou a que vai emergir dos fatos que
denotam o modo de vida dos povos.
A propósito das questões acima, pode-se remeter para Foucault (2003:29). Em suas
considerações sobre a história, o autor avalia, entre outras coisas, que ela é uma miríade de
acontecimentos entrelaçados, produzindo um universo marcado por contradições, que ele
caracteriza como maravilhosamente colorido e repleto de sentido, que é a própria história. E
Foucault vai se apropriando dessa condição, quando afirma que ela é movimentada por uma
multidão de erros e de fantasmas. Trata-se de pontos de discórdia, que se apagam em meio à
própria movimentação da história. Aqui se impõe a marca da história tradicional, ou a
história contada pela história, que é capaz de dissolver nela mesma os conflitos e as
contradições da história efetiva, materializados nos exercício de poder.
1
A noção de sujeito histórico será retomada, posteriormente, quando discutirmos o conceito de sujeito
assumido na pesquisa.
1.2 As diferentes formas de organização do poder: a organização do Estado Civil ou os
diferentes modelos de estado de direito
As relações de poder, constituídas ao longo da história, tiveram origem nas diferentes
construções sociais do homem. Logo, delas têm emergido as diferentes formas de
organização política e econômica. Isso implica que é na reconstrução constante dessas
organizações que os diferentes modelos de estado foram se instituindo, materializando as
práticas de hierarquização. Essas práticas tiveram início na sua forma
mais elementar, como a instituída no âmbito da família, através do cabeça do casal, passando
por tiranos, por senhores de escravos, por teocracias, por oligarquias, por aristocracias,
culminando com as democracias, que têm constituído as formas de exercício do poder, na
maioria das organizações políticas atuais, a partir das diferentes formas de organização do
Estado.
Interessa-nos, neste ponto, buscar, sinteticamente, a forma como os diferentes modos
de organização do Estado têm sido concebidos, não sem antes buscar, na história, a sua forma
de materialização. Como ponto de partida, os registros mostram uma pré-existência social
como um modelo de Estado de natureza. Chauí (1997:220-223) sintetiza esse modelo de
Estado a partir das proposições de Hobbes e de Rousseau. Segundo a autora, para Hobbes,
em um estado de natureza, os indivíduos viveram isolados e em luta permanente, vigorando a
guerra de todos contra todos. Já em Rousseau, o estado de natureza se caracterizou pela
condição dos indivíduos, que viveram isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a
natureza lhe dá, desconhecendo lutas, se comunicando pelo gesto, pelo grito, pelo canto,
numa língua generosa e benevolente. Ainda segundo a autora, tanto a concepção de Hobbes
como a de Rousseau evidenciaram uma percepção do social como luta entre fracos e fortes,
vigorando a lei da selva, o poder da força. Para o pensamento buscado pela autora, embora
seja um estado social, não se tratou de um modelo de estado propriamente político. Tratou-se
de um estado de vida ameaçador e ameaçado contra o qual os humanos se romperam para dar
lugar à sociedade civil, criando o poder político e as leis.
Mas os registros tem considerado que o conceito de Estado tomou forma só a partir da
modernidade, mas tem a sua origem na organização do homem em sociedade para além dos
laços de família. Aliás, essa constituição política foi a que deu vida à primeira forma de
estado, caracterizada por Aristóteles como República. Desse modo de organização originou o
poder, não mais centrado na família, mas relacionado ao público
Indo além do caráter de privado e de público, no âmbito da família e para além dela,
segundo Bobbio (1987:74), Engels concebe a noção de Estado, na sua origem, a partir da
instituição da propriedade privada, que produziu a divisão social do trabalho, e, por
conseqüência, a divisão da sociedade em classes, dando origem ao poder político, que tem
como objetivo, entre outras coisas, administrar o estado de coisas instituído. Do
entendimento da questão a partir das relações de poder emergiu a necessidade de delimitação
de territórios. Desse pressuposto, retomando Bobbio, (1987:94), o autor busca em Mortati
(1969) uma concepção de Estado que ele considera autorizada: o Estado é um ordenamento
jurídico destinado a exercer o poder soberano sobre um dado território, ao qual estão
necessariamente subordinados os sujeitos a ele pertencentes. A concepção de Estado tomada
pelo autor e por ele considerada autorizada é a resultante das relações entre poder e direito ou
o Estado de direito.
A partir de agora, buscaremos uma compreensão de como o Estado civil,
historicamente, tem se organizado. Segundo Bobbio (1987:104), enquanto resultante das
relações entre direito e poder, ele remete para Aristóteles. Para o conjunto de idéias originado
a partir do pensador em questão, o Estado pode se organizar em forma de monarquia
(governo de um), aristocracia (governo de poucos) e de democracia (governo de muitos).
Mas é Kelsen, segundo Bobbio (1987:94), quem irá propor, a partir da concepção do Estado
como ordenamento jurídico, criticando o princípio aristotélico, uma forma diferenciada de
entendimento da questão. Segundo o autor, para Kelsen não são três as formas de
organização do Estado, mas duas, e elas podem ser compreendidas assim: O ordenamento
jurídico pode ser criado e, continuamente, modificado ou a partir do alto, quando os
destinatários das normas não participam das criações das mesmas; ou de baixo, quando
dela participam. São elas, para Kelsen, segundo Bobbio, que correspondem a duas formas
puras ou ideais de governo, que são a da autocracia e a da democracia. Cabe ressaltar que é
através desses dois pressupostos, que são a síntese das concepções originadas dos
pressupostos aristotélicos, que têm dado origem às diferentes formas de organização do
Estado que, por sua vez, propõem formas diferenciadas de governo, ou para modelos de
estados diferenciados.
Até aqui, temos procurado entender o Estado como uma organização jurídica, que
teve origem na passagem do Estado de natureza para o Estado civil, ou para o poder político.
O Estado, enquanto organização jurídica, tem se constituído de diferentes formas. Para a
história, não há como negar que a sua organização teve origem ainda na antiguidade.
Segundo Rousseau (1996:36), na organização de um corpo moral e coletivo, que se tornou
pessoa pública e recebeu, inicialmente, o nome de cidade, e agora, república, ou corpo
político, chamado Estado, através do qual se exerce o poder simbólico.
Sem deixar de considerar os modelos pré-existentes aos quais já fizemos referência, a
seqüência histórica do Estado, enquanto organização, é a seguinte: o estado feudal,
caracterizado por uma forma de organização dupla. Por um lado, ele pode ser caracterizado
pelo exercício acumulado das diversas funções diretivas, exercidas pelas mesmas pessoas e
pela fragmentação do poder central, em pequenos agregados sociais e, por outro lado, o
Estado burocrático; o Estado estamental, caracterizado por uma organização política na qual
se formaram órgãos colegiados, que reuniram indivíduos possuidores da mesma organização
social. Tratou-se da organização política intermediária entre o fim da idade média e o inicio
da idade moderna, que teve como marca uma gradual institucionalização dos contra-poderes
e pela transformação das relações pessoa-a-pessoa em relações entre instituições; o estado
absoluto é o que foi capaz de eliminar os ordenamentos jurídicos das cidades, concentrando o
poder em um determinado território, na figura do soberano; o Estado representativo se
constituiu, inicialmente, como o poder do príncipe, fazendo valer a tradição e o poder
representativo do povo. Quando se diz inicialmente é porque esse modelo de Estado é o que
perdura, ultrapassando, é claro, a fase inicial.
Segundo Bobbio, nele, houve um alargamento dos direitos políticos, chegando ao
sufrágio universal masculino e feminino, passando pelas organizações partidárias, que
elevaram a questão para além das representações por indivíduos singulares, filtrando as
representações através dos partidos. Interessa-nos, aqui, a forma como o exercício do poder
tem se materializado na compreensão do Estado poder absoluto e enquanto poder
representativo, cujos registros histórico/filosóficos os indicam como os que têm coberto toda
a modernidade, através de diferentes formas de organização desse Estado. Essa compreensão
se faz necessária, uma vez que é dela que emergem os conflitos, que são capazes de produzir
a identidade dos diferentes tempos históricos, logo, a identidade dos diferentes modelos de
estado instituídos na modernidade, portanto o que identifica o estado contemporâneo. Isso
implica que, no ponto que de segue, faremos uma discussão do Estado moderno, na
perspectiva das rupturas.
1.3 A identidade político/econômica do Estado moderno: os modelos de estado
instituídos
O delineamento da modernidade, feito por Silva Jr. (2002), aponta o começo da
Renascença a partir da ruptura com o sistema de produção do modelo de estado feudal, logo,
também, a partir de uma ruptura com a forma de organização do poder. Segundo o autor, os
estudiosos têm concebido o Estado moderno, entre outros aspectos, a partir da semelhança
que ele guarda com o Estado de natureza, já que ele foi capaz, como na pré-existência social,
de produzir as individualidades. A partir desse pressuposto, que caracterizou a modernidade,
gostaríamos de destacar a sua identidade no que se refere ao caráter econômico, que teve
como marca o liberalismo. Segundo Silva Jr (2002:13), essa ruptura histórica teve como
defesa os direitos individuais, que foram a liberdade, a igualdade e a propriedade,
consolidando, entre outras coisas, a acumulação de riqueza como uma verdade a ser
defendida. Dela resultou a consolidação do capitalismo. Segundo Chauí (1997), a teoria
liberal, seguida de alguns fatos históricos, instaurou os instrumentos de um modelo de Estado
capitalista liberal. Ainda segundo a autora, esse modelo de Estado é desenhado a partir de
uma tríplice função, assim distribuída
(i) o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários
privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades
econômicas; (ii) O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da
força, os conflitos da sociedade civil; (iii) O Estado deve garantir a
liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os
governados, e só poderá exercer censura nos casos em que emitam opiniões
sediosas que ponham em risco o próprio Estado. Nessa perspectiva, então,
tem-se uma concepção de Estado fundada no direito do indivíduo, provedor
das liberdades individuais, embora tivesse como meta alcançar a liberdade
para todos. (Chauí 1997:402)
É interessante observar a leitura de Santos (2003) a respeito da modernidade. O autor
considera, sob todos os aspectos que caracterizam os princípios fundadores desse pressuposto
histórico, que foi a partir do século XVI que a relação do Estado com a produção de riqueza
se estabeleceu. Mas, embora essa seja a marca de toda a modernidade, foi no final do século
VXIII que o capitalismo de fato se impôs como modo de produção dominante, nos países da
Europa, por causa da industrialização. Os princípios fundadores da modernidade, na esfera
econômica, considerando as noções referenciadas, deram origem ao capitalismo
institucionalizado, que, por sua vez, deu origem a novas formas para o Estado, para a
sociedade e para a racionalidade econômica, que, ao longo dos séculos XIX e XX, tem
cumprido etapas diferentes, resultantes das correlações de força que emergiram dos contextos
sócio/político/econômicos. Essas correlações de força têm se manifestado no pensamento
histórico/filosófico, que denota a modernidade na sua representação política, constituída nos
diferentes modelos de estado. Ao dividir a modernidade em períodos distintos, a partir da
consolidação do capitalismo, Santos (2003) não só aponta as leituras originadas dos
contextos, como também faz os discernimentos desses contextos, considerando tais relações.
Isso implica as reformulações a que o modelo de estado capitalista se submeteu, a partir da
sua consolidação e para as quais o autor determina as etapas que as caracterizaram.
Santos busca a compreensão do capitalismo na ruptura com o que foi proposto por
Hobbes, por Rousseau, ou por Locke para o Estado, materializado em três períodos
diferentes. O primeiro período diz respeito à ruptura do Estado liberal com ele mesmo, na sua
natureza marcada entre a solidariedade e a identidade, entre a justiça e a autonomia, entre a
igualdade e a liberdade, para dar lugar a um desenvolvimento sem precedentes no princípio
do mercado, na atrofia quase total do principio da comunidade e no desenvolvimento
ambíguo do princípio do Estado
Na concepção de Santos, a ruptura com o projeto inicial da modernidade, fundado nos
duplos acima mencionados, produziu o desenvolvimento de mercado, a industrialização
crescente e a expansão das cidades industriais e comerciais, entre outras modificações. Nesse
contexto político/econômico, a comunidade concreta, suposta por Rousseau, que era formada
por cidadãos livres, se dualizou, reduzindo-se ao composto de dois elementos abstratos, que
são: a sociedade civil, concebida como agregação competitiva de interesses particulares, que
se caracterizou como suporte da esfera pública, e o indivíduo, formalmente livre e igual,
suporte da esfera privada, elemento constitutivo da sociedade civil. Esses elementos abstratos
de materialização do Estado concretizaram a matriz construcional do estado liberal, que foi a
acumulação de capital, tendo o Estado como interventor do processo.
Já o segundo período se fundamentou nos pressupostos do positivismo de Comte, que
discutiu a sociedade na perspectiva do progresso da humanidade, através de diferentes etapas
vividas pela sociedade, chegando ao estado positivo, que seria a possibilidade de explicação
dos fatos sociais. Esses pressupostos supuseram uma reformulação para o estado, que
promoveria transformações profundas e vertiginosas não só na relação com o processo de
produção de riqueza, mas, sobretudo, na relação capital/trabalho. Essa reformulação, que
começou a tomar forma no final do século XIX e boa parte no século XX, se deu a partir de
princípios que foram assim caracterizados por Santos (2003):
Do ponto de vista econômico: O capital industrial, financeiro, econômico e comercial
concentra-se e centraliza-se, proliferam-se os cartéis, aprofunda-se a ligação entre a banca
e a indústria, cresce a separação entre a propriedade e a luta imperialista pelo controle dos
mercados e das matérias primas, as economias de escala fazem aumentar o tamanho das
unidades de produto e a tecnologia de que estas se servem está em constante
transformação, surgem as grandes cidades industriais, estabelecendo os parâmetros do
desenvolvimento em que estão situadas
Do ponto de vista social e político:(...) o desenvolvimento industrial capitalista e a
conseqüente expansão do operariado, por um lado, e o alargamento do sufrágio universal,
inscrito na lógica abstrata da sociedade civil e do cidadão formalmente livre e igual, por
outro lado, contribuíram para a rematerialização da comunidade, através da emergência
das práticas da classe e da tradução dessas em políticas de classe. São os sindicatos e as
associações patronais, a negociação coletiva, os partidos operários burgueses a
disputarem um espaço político, anteriormente, negociado entre os partidos burgueses e
oligárquicos. Este processo de rematerialização social e política é um dos aspectos mais
característicos deste período e o seu dinamismo dava-se, em boa parte, às transformações
na composição das classes trabalhadoras, à sua crescente diferenciação interna, às
mudanças constantes dos setores produtivos privilegiados pela lógica da acumulação do
capital, a importância progressiva do setor dos serviços e à conseqüente ampliação e
fortalecimento social e político das classes médias.
Do ponto de vista do Estado (...) o Estado é, ele próprio, um agente ativo das
transformações ocorridas na comunidade e no mercado e, ao mesmo tempo, transforma-
se, constantemente, para se adaptar a essas transformações. A sua articulação cada vez
mais compacta com o mercado evidencia-se na progressiva regulamentação dos
mercados, nas ligações dos aparelhos de Estado dos grandes monopólios, na condução
das guerras e de outras formas de luta pelo controle imperialista dos mercados, na
crescente intervenção do Estado na regulação e institucionalização dos conflitos entre o
capital e o trabalho. Por outro lado, o adensamento da articulação do Estado com a
comunidade está bem patente na legislação social, no aumento da participação do Estado,
na gestão do espaço e nas formas de consumo coletivo, na saúde e na educação, nos
transportes e na habitação, enfim, na criação do Estado-Providência.
A reformulação proposta, no seu caráter sócio/político/econômico, que elevou a
relação capital/trabalho, dentro da perspectiva produtivo/liberal, caracterizada por um estado
apenas protetor da propriedade, trouxe, no final do século XIX, e em grande parte do século
XX, um modelo de Estado caracterizado como o Estado de Bem-estar. Trata-se de um
modelo de Estado que, segundo Silva Jr. (2002:22), se caracterizou pela operacionalização de
políticas que transformariam o Estado em instituição central para a expansão do mercado,
através das instituições criadas pelo próprio modelo de Estado, conforme as considerações de
Santos.
Segundo Chauí (1997:399), tratou-se de um modelo de Estado construído
intencionalmente, nos pressupostos marxistas, buscados com o objetivo de se fazer emergir
um modelo de estado comunista, passando por um conjunto de reformas, ou de etapas
históricas, através das quais o poder passaria das mãos da burguesia para as mãos do
proletariado, sem a necessidade de uma revolução. Nesse contexto de reformas do Estado, a
etapa socialista seria a principal delas, que, inspirada nos regimes socialistas, já consolidados
na União Soviética e na China, faria com que, entre outros problemas a serem resolvidos, os
trabalhadores encontrassem um contraponto para as desigualdades e injustiças do
capitalismo. Cabe ressaltar que essa reforma foi marcada pela contradição, já que o
desenvolvimento do capital se deu em meio a uma postura diferenciada frente ao trabalho
que, por sua vez, promoveu o fortalecimento da classe trabalhadora, tendo o estado de
assumir uma gestão que atendesse tanto um quanto outro. Segundo Santos (2003: 85), em se
tratando de um outro projeto de Estado para a modernidade, definiu-se o que era possível em
uma sociedade capitalista, atirando para o lixo da história tudo mais.
Para finalizar, a relação com os modelos de Estado instituídos na modernidade, entre
as relações do poder público e o modo de produção da riqueza, para Santos, há o terceiro e
último período, vivenciado pela história, com características que não ultrapassam os limites
do capitalismo, aquele proposto pelo liberalismo, na propriedade privada e na concentração
de riqueza. Esse período, na cronometria de Santos (2003:87), começa a se estruturar na
década de 1960, promovendo profundas e vertiginosas transformações no modelo econômico
vigente. Como marca, é possível caracterizá-lo a partir da pujança do mercado que, na
compreensão do autor, colonizou tanto o principio do Estado como o princípio da
comunidade. Isso tem implicado políticas econômicas adequadas a interesses regulados pelo
capital internacional. Trata-se do modelo de Estado caracterizado como Neoliberal,
exatamente pela forma como as relações com o Estado e com a comunidade têm se
organizado, em ruptura com o modelo de Estado de Bem-Estar, portanto, uma retomada dos
princípios fundadores do liberalismo.
Dado o nosso objeto de investigação, é necessário que se busque, mesmo que de
forma sintética, a caracterização desse último modelo de estado, que a história tem registrado.
Para não perder de vista o raciocínio de Santos (2003), tomaremos do autor o seu
entendimento da questão, a partir dos planos que orientaram a construção do modelo de
Estado proposto.
Para o plano econômico: (...) ocorreu o crescimento explosivo do mercado,
propulsionado por um novo agente criado à sua medida –as empresas multinacionais
torna possível contornar, se não mesmo neutralizar, a capacidade de regulação nacional
da economia, os mecanismos corporativos de regulação dos conflitos entre capital e
trabalho, estabelecidos a nível nacional no período anterior, enfraquecem, e a relação
salarial tornou-se mais precária, assumindo formas que, na aparência pelo menos
representa um certo regresso ao capitalismo liberal; a flexibilização da automatização dos
processos produtivos, combinados com o embaratecimento dos transportes permitem a
industrialização dependente do terceiro mundo e destroem a configuração espacial do
aparelho produtivo nos países centrais com a descaracterização das regiões, a emergência
de novos dinamismos locais, a ruralização da indústria, a desindustrialização, a
subcontratação internacional etc.
Para o princípio da comunidade: Esse princípio, pela sua natureza, no contexto, é
atravessado pelo poder econômico. A leitura de Santos (2003:88) o sintetiza,
considerando a relação capital/trabalho dele emergente. Para o autor, (...) a
rematerializaçao da comunidade, obtida no período anterior, através do fortalecimento
das práticas de classe, parece enfraquecer de novo, pelo menos na forma que adquirira,
anteriormente. As classes trabalhadoras continuam a diferenciar-se da sua base material
como de sua lógica de vida. A classe dos serviços atinge proporções sem precedentes; as
organizações operárias deixam de poder contar com a lealdade garantida de seus
membros (...) e perdem poder negocial face ao capital e ao Estado; as práticas de classe
deixam de se traduzir em políticas de classes e os partidos de esquerda vêem-se forçados
a atenuar o conteúdo ideológico dos seus programas e a abstratizar o seu aspecto eleitoral.
Esses princípios sintetizam as grandes questões que têm caracterizado o Estado
moderno, na sua última forma de representação. Segundo Santos, (2003:88), o Estado
nacional, ou aquele constituído no auge da modernidade, parece ter perdido a vontade
política para regular as esferas da produção, promovendo privatizações, desrregulação da
economia e da produção social, promovendo a retração das políticas, produzidas no Estado-
Providência, ou o Estado de Bem-estar, dando lugar ao modelo de estado neoliberal, cuja
característica maior é a internacionalização do capital, materializada no seu caráter global.
Chauí (1997:403) sintetiza esse modelo de Estado afirmando que, com a teoria e a prática
neoliberais dá-se o encolhimento do espaço público dos direitos sociais e o alargamento do
espaço privado dos interesses de mercado.
O contexto descrito para o último modelo de Estado referido começou a tomar forma
depois da segunda guerra mundial e se fortaleceu a partir dos anos de 1960, mas foi no final
de 1970 e no início da década de 1980 que ele, de fato, se concretizou, através das buscas
para o modo de operação do capitalismo proposto. Nesse contexto político, não se pode
perder de vista os organismos multinacionais que foram criados para sustentar os déficits
originários dessa nova estrutura de poder, tais como: o Banco Mundial, o Banco
Interamericano de desenvolvimento, o Fundo Monetário Internacional, a Organização
Mundial do Comércio, a UNESCO, a CEPAL etc.
Segundo Silva Jr. (2002), os organismos acima referenciados assumiram funções
específicas, voltadas para a consolidação, em nível global, da nova forma histórica do
capitalismo. Em outras palavras, eles se constituíram em organismos que financiariam as
demandas sociais decorrentes do desemprego estrutural. Nesse contexto, deverá, a partir da
relação que se estabelece com o público e com o privado, surgir um conceito de Estado para
além do conceito de Estado de Bem-estar. Tratou-se de um estado nacional forte e pouco
interventor, tanto no caráter econômico quanto no caráter social: forte porque produz
políticas sobre as diversas atividades do Estado, pouco interventor porque impulsiona um
movimento de transferência de responsabilidades de sua alçada para a sociedade civil. Trata-
se, portanto, de um Estado apenas gestor das políticas necessárias à administração do capital.
O modelo de Estado neoliberal se explicitou, para os países periféricos, na década de
1990, através de idéias políticas que já vinham sendo implementadas em países da Europa.
Essas idéias dariam sustentação aos países em desenvolvimento na nova ordem mundial.
Tratou-se do consenso de Whashington, que fez recomendações para que esses países
conseguissem levar adiante o que se propunha para eles. Tomemos de Fiori (2001:85) o que
diziam tais recomendações, apresentadas em três capítulos: O primeiro capítulo, que se
referia às políticas macro-econômicas, recomendava austeridade fiscal e disciplina monetária,
donde se seguia, de forma direta, a exigência de um p
O segundo capítulo tratou da forma como deveriam se dar as relações do capital com
o mercado. Segundo Fiori (2001:85), essa questão se impôs programa de corte de gastos e de
implementação de reformas administrativas, previdenciárias e fiscais, consideradas
indispensáveis para o sucesso de estabilização monetária. a partir do princípio da
desoneração do capital para que houvesse uma competitividade no mercado internacional,
sendo essa a condição para que os países periféricos pudessem entrar no jogo global. A
propósito de explicitação do que consiste esse pressuposto do modelo de Estado Neoliberal,
remeteremo-nos para Chauí, (2003)
2
, que, em uma aula inaugural, na FFLCH, o expõe, de
forma muito didática. Para a autora, tratou-se de um dos pilares que deveria sustentar o
modelo de Estado instituído. Na sua análise, ela conclui que os países periféricos, apontados
por Fiori, se quisessem entrar nessa ordem mundial, teriam de promover uma reforma fiscal,
para incentivar os investimentos privados, para reduzir impostos sobre o capital e sobre as
fortunas, aumentando os impostos sobre a renda individual, portanto, sobre o trabalho, sobre
o consumo e sobre o comércio.
Por fim, no terceiro capítulo, propôs-se um desmonte do modelo de industrialização,
que culminaria com uma mudança radical das estratégias nacionais de desenvolvimento dos
países atrasados. Através da mesma análise de Chaui, pode-se, também, entender essa
proposição no contexto das reformas. Para a autora, trata-se de um Estado que deveria se
afastar da regulação econômica, deixando que o próprio mercado, com sua racionalidade
própria, operasse a desregulação. Pela leitura da autora, trata-se da abolição dos
investimentos na produção, do controle estatal sobre o fluxo financeiro, de drástica legislação
anti-greve e vasto programa de privatização.
Em síntese, a representação da modernidade, na construção do neoliberalismo, tem
sido uma reconstrução constante que chegou a um mundo sem fronteiras econômicas,
impondo, também, um reordenamento na política. Trata-se de um mundo global que tem
retomado a história, nos processos de valorização, decorrentes das conquistas dos períodos
marcados pelas navegações. Segundo Casanova (2000:50), referindo-se ao modelo de estado
vigente, logo à ordenação política neoliberal, é indispensável não só ver o novo da
globalidade, mas também o velho, e no velho se encontra o colonialismo da idade moderna,
um colonialismo global, que hoje é também neoliberal e pós-moderno. A reconversão é em
2
Marilena Chaui: Aula inaugural na FFLCH, proferida em 20 de fevereiro de 2003. Ensaio sobre os
problemas da educação brasileira.
grande parte uma “recolonização”. Segundo Frigotto (2000:221), o presssuposto da
globalização, em sua aparente neutralidade, cumpre um papel ideológico de encobrir os
processos de dominação e as relações imperialistas do capital.
Dado o nosso corpus de análise, é do nosso interesse buscar a forma como a ciência
deverá se comportar nesse último contexto político e econômico. É de Chauí (1997:403) a
consideração sintética, porém, representativa, da questão. Segundo a autora, a ciência e a
tecnologia tornaram-se forças produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se
converter em agentes de sua acumulação. Conseqüentemente, mudou o modo de inserção dos
cientistas e técnicos na sociedade, porque estes tornaram-se agentes econômicos diretos e a
força e o poder capitalistas encontram-se no monopólio dos conhecimentos e da informação.
Podemos, aqui, nos remeter para Bakhtin (1990:31) e o seu trato do caráter simbólico com o
mundo real. Segundo o autor, a realidade do mundo exterior, retratada nos conceitos, é de
natureza ideológica, ou seja, eles possuem significados que transcendem o aspecto
meramente metalingüístico, próprio da linguagem conceitual
Do que se considerou, anteriormente, não se pode atribuir sentido à história sem que
se entenda a relação com o capital/trabalho, já que essa relação é a responsável pela
identidade da própria história, juntamente com os modelos político/econômicos, dando
origem aos modelos de estado já referenciados. Aliás, o Estado só se caracteriza como tal na
complexidade emergente das relações capital, trabalho e poderes econômico e político, o que
implica que essas relações são fundadoras de identidade. Mas cabe avaliar que o
entendimento dessas relações não passa, necessariamente, por um mesmo olhar, o que
implica conferir sentidos diferenciados para a mesma história. Se é possível atribuir sentidos
diferenciados para a mesma história, a modernidade não fugiu à regra, e os olhares para ela
direcionados produziram efeitos de sentido também diferenciados. Pretendemos, embora de
forma muito sumária, aqui, compreender a questão a partir do trabalho, atrelado aos poderes
político e econômico, considerando pelo menos dois pontos de vista que se contrapõem.
Comecemos pela visão de Marx (2003:49). Grosso modo, para o autor, o trabalho
passou da relação de suprimento das necessidades básicas para a relação com a cadeia
produtiva, através de uma ordem marcada pela divisão social do próprio trabalho, imposta
pelo capitalismo. Mas há de se destacar, dessa cadeia, a força que essa divisão passou a ter,
uma vez que, no movimento do capital, ela passou a ter um valor de referência, passando a
ser considerada, também, como mercadoria, o que, na avaliação do autor, sempre esteve
abaixo do seu valor, permitindo a produção e acumulação da riqueza. Trata-se de processos
de regulação econômica, social e política, que produziram fissuras na estrutura da sociedade.
Essas fissuras são manifestadas, segundo Marx (1978:XII), em virtude de o Estado ter
produzido uma classe desprovida de todos os bens. A propósito desse estrangulamento,
promovido pelo modo de produção capitalista, para se entender tal situação é possível se
apropriar de Gramsci (1991:40) e da sua avaliação a respeito da relação capital/trabalho. O
autor afirma que não é suficiente conhecer o conjunto das relações enquanto existentes em
um dado sistema, mas importa conhecê-lo, geneticamente, em seu movimento de promoção,
já que todo indivíduo é não somente a síntese das relações, mas também da história dessas
relações. Isso implica que não se compreende a história a partir de fatos isolados, mas sim
nas relações que eles estabelecem.
Diferentemente da posição de Marx a respeito da sociedade moderna, há de se
destacar a posição de Durkheim (1999:173). O autor se apropriou de pressupostos que
sustentaram as discussões sobre a sociedade, considerando-a a partir de fatos sociais, que
foram entendidos por ele como coisas e que apresentam ordem anatômica ou morfológica. A
sua leitura sobre a questão lhe permitiu afirmar que os mesmos acontecimentos são
qualificados como salutares ou como patológicos, conforme os sentimentos de quem os
estuda. Sob o ponto de vista durkheimiano, portanto, há um interesse em compreender as
fontes da ordem e da desordem social, e a identificação das forças que regulam ou
desrregulam a sociedade. Desses interesses surgiram, então, ainda segundo o modelo de
análise, uma forma de leitura desses fatos sociais e a caracterização dos mesmos como
funcionalistas, uma vez que uma análise do fato social diz respeito à compreensão das suas
funções, visando a estabelecer a ordem social.
1.4 -A propósito do modelo de Estado Neoliberal: a reforma do Estado brasileiro
O marco das reformas neoliberais, aquelas pretensamente implementadas em um
contexto de desconstrução do modelo de estado pré-existente, tomou forma no final da
década de 1970, e o Estado de Bem-estar foi dando lugar a um novo liberalismo, através de
reformas políticas, tendo como princípio a ser defendido a expansão do capital que, em se
tratando de Brasil, rompeu, também, com o neoliberalismo em construção, que apostava
apenas em um estado mínimo a ser atingido. Segundo Bresser Pereira (2006:1), verificada
essa hipótese, foi necessária uma outra construção, baseada em alguns pré-requisitos, capazes
de dar forma a um modelo de Estado que não se resumisse apenas ao Estado mínimo, mas
que fosse suficiente para garantir, também, os direitos sociais e promover a competitividade
dos países. Tratou-se de um modelo de Estado que pode ser caracterizado como Estado-
Social Liberal, em detrimento do Estado Burocrático que as políticas desenvolvimentistas
implementaram. A reforma do Estado, nessa perspectiva, implicaria não mais a utilização de
burocratas estatais para executar os serviços sociais e científicos, mas contrataria,
competitivamente, organizações públicas não-estatais.
Ainda segundo Bresser Pereira (2006:37), essa forma de conceber o Estado como
Social Liberal, que não foge aos pressupostos liberais, deveria pressupor cidadãos menos
protegidos e mais livres, na medida em que o Estado, que reduz sua face paternalista, torna-
se, ele próprio, competitivo, e assim, requer cidadãos mais maduros politicamente, cidadãos
talvez mais individualistas, porque mais conscientes de seus direitos individuais, (...).
Conforme se considerou, anteriormente, os princípios fundadores do neoliberalismo
se configuraram para os países periféricos na década de 1990. No Brasil, da mesma forma
que outros países caracterizados como tal, essa foi a década da virada, através das reformas
impostas para o modelo de estado que já havia se solidificado em países desenvolvidos. Por
aqui, as reformas começaram a dar sinais de que deveriam acontecer no governo de Fernando
Collor de Mello, tendo o governo de Itamar Franco, segundo Silva Jr. (2002:78), como
transição ou como preparação para uma próxima etapa, que se consolidaria no governo
Fernando Henrique Cardoso. FHC se impôs como candidato tendo como discurso a ruptura
com o estado desenvolvimentista, conforme referência tomada em Bresser Pereira.
A reforma suposta pelo então candidato tomou forma a partir da sua posse no
governo. É nossa intenção, nesse contexto, buscar os pressupostos básicos dessa reforma
naquele que foi o colaborador de FHC para implementá-la, que foi o Ministro Bresser
Pereira. Cabe ressaltar que as propostas coincidiram com os fundamentos de sustentação do
neoliberalismo, materializados no Consenso de Whashington. A reforma que viria ser
implementada teria os seguintes componentes básicos: a) delineamento das funções do
Estado, reduzindo seu tamanho em termos principalmente de pessoal, através de programas
de privatização, terceirização e publicização (esse último implicou a transferência, para o
setor público não-estatal, dos serviços sociais que hoje o Estado presta); b) a redução do grau
de interferência ao efetivamente necessário, através de programa de desregulação que
aumenta o recurso dos mecanismos de controle via mercado, transformando o Estado em um
promotor da capacidade de compreensão do país a nível internacional, ao invés de protetor da
economia nacional contra a competição internacional; c) o aumento da governança do
Estado, ou seja, da sua capacidade de tornarem efetivas as decisões do governo, através do
ajuste fiscal, que devolve autonomia financeira ao Estado, da reforma administrativa rumo a
uma administração pública gerencial (ao invés de burocrática) e da separação, dentro do
Estado, ao nível das atividades exclusivas do Estado, entre a formulação de políticas públicas
e a sua execução e finalmente d) o aumento da governabilidade, ou seja, do poder do
governo, graças à existência de instituições políticas que garantam uma melhor intermediação
de interesses e tornem mais legítimos e democráticos os governos, aperfeiçoando a
democracia representativa e abrindo espaço para o contrato social da democracia.
Desses componentes básicos para a reforma do Estado é que deverão emergir as
noções de público e de privado, que vão além de todas as concepções assumidas pelos
modelos de Estado que a história foi capaz de registrar. Para Bresser Pereira (2006) não se
trata de considerar a questão na tradicional dualidade. Para o autor, o privatizado está
relacionado ao lucro, o público é o que é de domínio do Estado e o publicizado é o que é
capaz de receber recursos públicos sem, contudo, ser órgão público. Trata-se de setores
públicos, porém não estatal. Cabe ressaltar que a compreensão das noções de público e de
privado, nas condições supostas, juntamente com os componentes básicos é que deveriam
sustentar a reforma, dando origem ao modelo político desejado. São eles que deverão propor
o encolhimento do Estado, já que esse é o principio básico do Estado Neoliberal.
Preparado o terreno, a próxima etapa foi a de colocar os instrumentos legais a serviço
da pretendida reforma. Tratou-se de um contexto no qual o público se minimizou, o privado
se ampliou e o publicizável passou a ser lugar, também, de penetração do Estado, sem,
contudo, ser responsável por ele. Essas noções de público e de privado concorreriam para um
modelo de gestão forte, que convergiria para um estado mínimo, segundo Silva Jr. (2002:
43), adaptado às novas condições do capitalismo, tendo em vista o enfrentamento dos
desafios do mundo contemporâneo.
Em síntese, neste capítulo, fizemos uma busca de conceitos sócio/histórico/políticos
que permearão a análise a ser feita. Ponto por ponto, tivemos a preocupação com mostrar,
embora de forma muito sumária, o sentido que o poder instituído foi tomando, sobretudo no
seu caráter de abstração, e como ele se materializou nas organizações políticas do Estado,
com destaque para o Estado moderno. Na construção histórica da relação político/econômica
com os modelos de estado, situamos, na história recente, a reforma a que o Estado brasileiro
se submeteu, tendo em vista se igualar aos países em desenvolvimento, no processo de
globalização.
Considerando ser a análise do discurso de orientação francesa uma disciplina de
natureza interdisciplinar, os conceitos levantados da história, juntamente com os fundamentos
teóricos da AD, nos servirão de base para compreender a relação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais com a reforma a que o Estado brasileiro se submeteu no Governo
FHC. Trata-se dos aspectos histórico/políticos que sustentarão a análise do documento na
intenção de se responder à questão suscitada pela hipótese, ou seja, como o poder instituído,
de forma velada, se presentifica no documento? Mas cabe avaliar que essa questão se juntará
a outra que será levantada no próximo capítulo, que é a relação da produção de conhecimento
com os aspectos histórico/políticos, ao longo da modernidade.
CAPÍTULO II
2.0 O saber escolar no contexto histórico da modernidade
Até aqui, temos assumido uma postura diante da história para além dos fatos por eles
mesmos. Isso tem significado uma compreensão de que as rupturas se confirmam nas mais
diferentes formas de organização política que o homem foi capaz de construir, capazes,
também, de caracterizar os diferentes modelos de estado, ao longo da história. Neste capítulo,
temos a pretensão de levantar as relações que se estabeleceram, sobretudo na modernidade,
entre o poder instituído e a produção de conhecimento escolar, sempre atrelado ao modo de
produção de riqueza.
Na esteira da discussão acima levantada, encaminharemos outras discussões que nos
parecem pertinentes, tendo em vista compreender a relação do conhecimento com a reforma
que o Estado brasileiro promoveu, na década de 1990. Discutiremos a reforma do currículo
no governo FHC e faremos, também, um histórico percorrido pelos estudos da Linguagem,
nas últimas décadas, tendo em vista levantar a discussão que essa ciência já estava
promovendo em relação ao trabalho com a linguagem, na década de 1980, ou mesmo antes
dessa data, tanto do ponto de vista da academia quanto do ponto de vista de outras esferas,
como estados e municípios.
Por fim, levantaremos alguns estudos já feitos sobre o documento, na intenção de se
buscar olhares diferenciados sobre o mesmo. Nesses olhares, buscaremos não só a
compreensão de quem conseguiu separar a história dos conceitos lingüísticos, tratando o
documento como um avanço, pois romperia, de vez, com o ensino da gramática tradicional
por ela mesma, mas também olhares que se confrontam com o documento, levantando as suas
incoerências internas e a relação com as reformas políticas a que o país estava se
submetendo. O nosso objetivo com as discussões que se seguem será, juntamente com as
bases sócio/histórico/políticas, o de nos subsidiar na leitura que pretendemos fazer do corpus.
2.1 - As formas de organização do currículo na modernidade
Começaremos a discutir as formas de organização do currículo, na modernidade, por
uma concepção desse objeto assumida pela ciência didática, não sem antes considerar que se
trata de algo fundamentado em conceitos que têm sido construídos, historicamente,
considerando não só o acúmulo de saber que a humanidade foi capaz de produzir, tendo
origem nas suas indagações, mas também nos princípios histórico/filosóficos que os
determinaram. Segundo a etimologia, a palavra currículo é originária da palavra latina
scurrere, correr, e refere-se a curso, ou ao saber, constituído de forma sistêmica e
organizada, no percurso da história. (Goodson: 1995:31). Portanto, por causa da própria
história, foi necessário a esse saber sistêmico se conformar, melhor dizendo, dar forma ao
conhecimento, segundo Goodson (1995:35), a partir de um conceito de escolarização,
deixando emergir, dele, uma concepção de currículo que se organiza através de um saber
seqüenciado, colocado nas mãos de quem possui o poder de esboçar e de definir o curso a ser
seguido. Cabe ressaltar que, embora não seja seqüenciado, ele ainda está nas mãos de quem
tem o poder de definir o que deve ser ensinado.
Para atender aos objetivos propostos, na modernidade, no período histórico
caracterizado pelo liberalismo econômico, a escola se sustentaria em três princípios, que
seriam o do progresso dos conhecimentos, o da educabilidade das crianças e o da democracia.
Os princípios supostos denotariam o reconhecimento da educação como exercício da
cidadania, materializado na natureza democrática do processo como um todo. Esses
princípios, embora tenham se proposto romper com os pressupostos da idade média, que
perduraram até o século das Luzes, se desviaram nas suas intenções, produzindo uma escola
para atender aos interesses que vigiam política e economicamente. Esses interesses
produziram uma escola adaptada, obsoleta e excludente. Isso implica que a produção de
conhecimento também passou a ser o lugar da segregação. Na análise de Goodson (1995:93),
para atender aos objetivos do capitalismo, a escola propôs currículos diferenciados para
classes sociais diferenciadas. Naquele contexto, a tradição acadêmica esteve reservada ao
aluno da escola secundária, destinada a profissões liberais e aos cargos de direção e de altos
negócios. Já o currículo mais utilitário esteve destinado aos que se preparavam para o mundo
do trabalho.
Na perspectiva levantada, a complexidade exposta, que é produto de uma sociedade
de classes, produziu saberes diferenciados para atender a classes sociais também
diferenciadas. Isso significou, ainda na análise de Goodson (1995:87), que o saber, na
modernidade, foi apresentado e aceito de tal forma que não foram feitas as ligações entre
fatos específicos e fatos contextualizados, as classes inferiores não agiam sobre o
conhecimento, nem generalizavam a partir de dados. Surgiu uma barganha diabólica: as
classes inferiores apreendiam, mecanicamente, fatos específicos e contextualizados, mas a
capacidade de generalizar, através dos contextos, não lhes era proporcionada ou estimulada.
Em contrapartida, as classes superiores podiam incorporar suas percepções, instituições,
informações e conhecimento em sistemas coerentes de pensamento e de inferência.
Na análise de Doll Jr. (1997:36), o século das Luzes viu nascer a nova era industrial
que, com certeza, fez surgir uma relação diferenciada com a produção do conhecimento.
Nesse novo contexto histórico, que se caracterizou pelo desenvolvimento tecnológico, fez
surgir um currículo dicotomizado, ideologizado, para atender às demandas originadas desse
novo momento histórico. Tratou-se de um currículo para as classes mais favorecidas que
“favorecia a cabeça” e um currículo para as classes menos favorecidas, que “favorecia as
mãos”.
O currículo com marcas de segregação que a modernidade instituiu tem perseguido o
processo histórico, supondo escolas diferenciadas para classes sociais diferenciadas, o que
significa que ele é um fato, ainda hoje. Isso prova que a modernidade ainda não se esgotou
em seus conceitos no que diz respeito à educação. Logo, o que começou a se desenhar na
Renascença, se instaurando, de vez, no século das Luzes, ainda hoje é presença marcante. Ou
seja, o modo de produção do conhecimento, atrelado ao modo de produção
industrial/capitalista, que produziu escolas diferenciadas para classes sociais diferenciados,
tem sido o padrão cumulativo da modernidade, representado pelas contradições da história.
Esses saberes instituídos, fundados nas matérias escolares, segundo Goodson (1995:98),
confirmando a posição de Marx (2003), tornou-se produtor de subjetividade Não é sem razão
que Sacristán, discutindo o conceito de currículo na contemporaneidade, afirma:
Por trás de todo currículo existe hoje, de forma mais ou menos explícita e
imediata, uma filosofia curricular ou uma orientação teórica que é, por sua
vez, síntese de uma série de posições filosóficas, epistemológicas,
científicas, pedagógicas e de valores sociais. (Sacristán 2000:35)
A afirmação acima resulta de um entendimento de currículo que o autor assume como
sendo:
projeto seletivo de cultura, cultural, social, política e administrativamente
condicionado, que preenche a atividade escolar e que se torna realidade
dentro das condições da escola tal como se acha configurada. (Sacristán
2000:34).
Da concepção de currículo acima, depreende-se a sua relação com as coerções tanto
interna, passando pela construção da cultura que, segundo o autor, permeia, necessariamente,
a construção do conhecimento sistematizado, quanto externas, passando pelas determinações
históricas, políticas e econômicas, já que a questão precisa ser entendida a partir da
configuração a que a escola está submetida. É essa condição do currículo que lhe imprime um
caráter eminentemente político, portanto, instrumento a serviço do poder instituído. Logo, é
dela, também, que emergem os conceitos necessários à construção do saber que o momento
político/econômico está a exigir.
No que se refere à modernidade, a questão do currículo movimentou os saberes de
forma a torná-los a serviço de uma ordem instituída, que pode ser representada no binômio:
saber e trabalho, o que, na análise de Marx (2003:144) produziu a riqueza, o homem alienado
e a sociedade de consumo. Esse contexto, ao lado de outros fenômenos, gerou uma
concepção de ciência utilitária, que teve como fim precípuo a emancipação da humanidade, e
o saber positivista e disciplinar se organizou na explicitação das estruturas. Marx (2003:184)
avalia que se trata de algo que está fora da relação do conhecimento, constituído da
subjetividade.
É oportuna, aqui, a consideração de Foucault (1987:127) a respeito da escola
resultante dos desvios no contexto histórico/político da modernidade, na ruptura com a idade
média. Para o autor, tratou-se de uma legitimação das penas mitigadas, com vistas à
formação de corpos habilitados para o exercício do poder. Tratou-se, portanto, de corpos
dóceis, domesticados para tal fim. Esse foi o momento das disciplinas no qual nasceu uma
arte do corpo humano, que visou não somente ao aumento das suas habilidades, nem
tampouco a aprofundar sua sujeição, mas à formação de uma relação que, no mesmo
mecanismo, o tornaram tanto mais obedientes quanto fosse mais útil, tendo a escola de
atender a essas necessidades, ou seja, treinar corpos para serem representantes legítimos do
poder, além de estar a serviço dos interesses da demanda político/econômica
Conforme temos considerado, politicamente, a modernidade tem se reconstruído em
seus pressupostos, e, na esteira dessa reconstrução, a produção de conhecimento vai, também,
tomando formas diferenciadas e dando forma aos diferentes modelos de estado. No modelo
de estado caracterizado como de Bem-estar, as suas políticas constitutivas também
perpassaram a educação. Nele, em confronto com o modelo de escola que se configurou para
o capitalismo, ela teria um papel a cumprir. Segundo Sacristán (1999:14), desde o século
XIX, e, especialmente, no século XX, o projeto de uma escola pública igual para todos foi
considerado uma resposta idônea para se alcançar a igualdade, expandir a fé na razão e
proporcionar as competências, as atitudes e os valores para o exercício de uma cidadania
responsável.
No que se refere ao currículo, visando a garantir os direitos da sociedade, embora
tenha se centrado no individualismo, o modelo de Estado de Bem estar, segundo ainda
Sacristán (1999:10), criava um grande aparato escolar, que garantia o acesso à educação, com
ações articuladas que assegurariam a coerência do processo educacional. Dentre essas
articulações estava a dos conteúdos, logo, um currículo igual para todos, que, juntamente
com os outros elementos caracterizadores da educação, no contexto, venceria as dicotomias
que o capitalismo havia produzido não só para o processo educacional, mas, sobretudo, para
a sociedade de forma geral. Nessa perspectiva, a escola deixaria de reproduzir um modelo
político/econômico para reproduzir um modelo social, de forma até ingênua, já que ela
sozinha carregaria a responsabilidade de romper com a história.
A propósito sobretudo da adaptação da escola ao contexto político/econômico,
podemos nos remeter para Durkheim, na intenção de evidenciar a sua concepção sobre a
educação, considerando as concepções que ele teve sobre a sociedade.
O homem que a educação deve fazer-nos ser não é o homem tal como a
natureza fez, mas como a sociedade deseja que ela seja, e a sociedade
deseja que ele seja tal como pede a sua economia interna Essas são as
crenças religiosas, crenças e práticas morais, tradições nacionais e
ocupacionais, opiniões coletivas de todo o tipo. Sua totalidade forma o ser
social. Constituir esse ser em cada um de nós é o fim da educação. (...).
(Durkheim, 1978:81-83).
Se a produção de conhecimento está sempre relacionada à organização do Estado, em
sua natureza político/econômica, se a história se caracteriza por rupturas, interessa-nos, aqui,
compreender, por fim, a forma como a produção de conhecimento, no modelo de Estado
caracterizado como Neoliberal, tem se dado, sobretudo, nos países periféricos. Isso implica
compreender a forma como tem se dado a sua adaptação aos interesses políticos e
econômicos. Se se propôs uma reforma desses estados, com certeza, a educação foi um dos
pontos dessa reforma, uma vez que, para o modelo de Estado proposto, ela também teria um
papel a cumprir. No contexto político global, os organismos internacionais, que Silva Jr.
(2002:33) caracterizou como multilaterais e também como intelectuais coletivos
internacionais, entraram em cena para determinar a forma como a educação deveria se
comportar. De forma estrategicamente organizada, visando a propor uma educação que
estivesse a serviço do novo capitalismo, esses organismos idealizaram a escola necessária.
Para tanto, foram realizados alguns eventos, em nível internacional, com vistas à construção
das bases legais de sustentação de um projeto de educação para todos, com o objetivo de
orientar o que se pretendia.
Entre os eventos acima referenciados, destacam-se: a) Conferência mundial de
educação para todos, em Jomtien, na Tailândia, em 1990, convocada pela UNESCO, pelo
UNICEF, pelo PNUD e pelo Banco Mundial; b), Conferência de Nova Delhi, em 1993, na
qual os países mais populosos do mundo, com índice de analfabetismo acentuado, se
comprometeram com promover a educação para todos, inclusive propondo melhora em todos
os aspectos, entre esses, a proposta de melhoria dos conteúdos educacionais, ou seja, ficou
proposta uma intervenção nos currículos dos países alcançados pelo acordo. Na organização
desses eventos, exercitou-se, de forma sutil, uma manifestação de poder que se constituiu de
forma velada. A conferência de Jomtien deu origem a uma declaração contendo vários artigos
que deveriam encaminhar um processo de educação que satisfizesse o contexto político
mundial. Já a conferência de Nova Delhi deu origem a uma carta que ratificou as propostas
de Jomtien.
Através dos documentos produzidos nos eventos acima referenciados, propuseram-se
os princípios que deveriam orientar o processo educacional nos países que foram alcançados
pelos acordos originados daquelas conferências. O relatório para a UNESCO, orientador
desses princípios, irá propor uma escola adaptada às condições políticas e econômicas
impostas aos países periféricos, a partir do modelo de estado instituído. Delors (1999:72),
juntamente com uma equipe de trabalho, elaborou um relatório que sentenciou o que seria a
educação nesse contexto. Na compreensão dos autores, já não é possível pedir aos sistemas
educacionais que formem mão de obra para empregos industriais estáveis. Trata-se, antes, de
formar para a inovação, pessoas capazes de evoluir, de se adaptar a um mundo em rápidas
mudanças e capazes de dominar essas transformações.
Nesse contexto de educação caberá à escola desconstruir as singularidades dos
sujeitos nas suas constitutividades históricas, para torná-los apenas mobilizadores de recursos
mentalmente construídos. Essa razão leva a uma compreensão da escola enquanto lugar de
uma possível neutralidade ideológica, com funções determinadas, dentre essas, estamos
destacando aquelas propostas por Delors, que deverão atender à educação no contexto global,
sobretudo nos países nos quais haveria um investimento vultoso em educação, com vistas a
formar cidadãos consumidores. A educação, nesse contexto, tem alguns pilares de
sustentação, que são: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, e por
fim, aprender a ser. Esses pilares denotam as competências que os aprendizes precisam
desenvolver na escola para o “exercício da cidadania”. Cabe ressaltar que essas noções têm
permeado o currículo e têm sustentado a orientação do ensino para o uso. Assim sendo, tem-
se produzido uma escola bem dentro do caráter analisado por Foucault, ou a escola útil, mais
especificamente, utilitária, que se presta a interesses que vão além do exercício da cidadania.
Trata-se do papel ou da função que ela exerce, regulado por interesses político/econômicos,
conferindo à escola um caráter funcional.
A produção de conhecimento adaptada ao modelo de Estado Neoliberal deixa
atravessar concepções complexas. Dentre essas, gostaríamos de destacar pelo menos duas
dessas concepções. Em primeiro lugar, estamos nos referindo às noções de público e de
privado, questão que pode, também, ser considerada sob pelo menos dois pontos de vista
diferenciados. Para discutirmos essa questão, nos remeteremos para Macedo (2002:134) e
para as suas considerações, no que se refere à produção do conhecimento, ou seja, o que
significam esses conceitos e a sua relação com a educação, nesse contexto. A autora,
considerando o individualismo que se impôs sobre a sociedade, afirma que a educação, na
contemporaneidade, assume uma natureza de bem privado, já que ela trabalha,
fundamentalmente, as necessidades individuais, com vistas a garantir o status individual
daqueles que a ela têm acesso. Isso implica que a veracidade do saber é substituída por sua
utilidade, o que, num contexto de mercantilização, significa perguntar se tal saber é possível
de ser comercializado.
A compreensão da educação enquanto bem privado sustenta, de fato, o pressuposto
básico da reforma do Estado brasileiro, quando se propôs a individualidade como meta a ser
perseguida, tendo em vista a autonomia dos indivíduos. Nessa perspectiva, não há apenas um
interesse em se implementar os conceitos de público e de privado, dentro do que o
neoliberalismo, em se tratando de Brasil, supôs para esses conceitos, mas também em propor
um processo de mão dupla para a produção de conhecimento, logo, o que se pode esperar do
currículo, nesse contexto. Nele, cabe ao modelo econômico dizer que tipo de escola deseja, e
ao cidadão assumi-la como um bem privado, como uma propriedade que tem valor no
mercado, com vistas a garantir acesso ao trabalho, na condição de vulnerabilidade que a
conjuntura política impõe. Isso implica uma busca constante, individualmente, por
“competências” para atender ao desemprego estrutural, ou aquele. originado não só do
avanço tecnológico, mas também da estrutura econômica a favor do capital.
Um outro entendimento que a noção de público e de privado requer diz respeito ao
afastamento do Estado das políticas não só no que se refere à produção de conhecimento, mas
também no que se refere aos direitos dos cidadãos. Retomando a aula inaugural de Chaui
(2003), para a autora, essa questão passa pelo deslocamento dos direitos sociais, enquanto
conquista, para a condição de serviços prestados à sociedade, dentre esses a educação, sendo
que esses serviços podem ser executados por instituições estatais ou não estatais. A educação,
considerada como serviço, ainda no entendimento da autora, desobriga o Estado de uma
atividade eminentemente política, podendo ser considerada como qualquer outro serviço
público e, como tal, pode ser privatizada, ou terceirizada, enfim, ela pode ser publicizada
para atender a uma característica básica do modelo de estado instituído, que é o estado
mínimo. Trata-se de uma identidade entre o Estado e o capital para atender às demandas
neoliberais. Esse trato com a educação enquanto serviço transforma-a em mercadoria, que o
Estado fornece para aqueles que não podem comprar, apenas para cumprir um papel.
A partir da noção de público e de privado, materializada nos serviços que o Estado
oferece aos cidadãos, as contradições da história se concretizam, já que, através dela, se
visualiza uma estratificação naturalmente posta como resultado de forças coercitivas,
originárias da divisão de classe. Isso implica que há formas diferenciadas de se apropriar do
saber enquanto serviço, cabendo ao Estado prover esses serviços a quem só pode obtê-los
através de uma rígida regulação. Por essa razão, não poderíamos deixar de considerar a
posição de Apple (2002:186) a respeito da mercantilização do conhecimento. Para o autor,
haverá um setor menos regulado e cada vez mais privatizado para os filhos dos mais ricos.
Para o resto – e o status econômico e a composição racial das pessoas que freqüentarem essas
escolas mínimas serão inteiramente previsíveis – são as escolas rigidamente controladas e
policiadas e continuarão a ser subfinanciadas e tendo pouca relação com empregos
remunerados decentes.
Outra concepção, que se origina dos conceitos de público e de privado, diz respeito à
noção de cidadania. Por cidadania entende-se, de forma elementar, conforme o dicionário,
que é o indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de
seus deveres. Pelo conceito levantado, não se pode perder de vista que se trata de algo que é
exercido, sendo o Estado o sustentador desses princípios, portanto, relacionados à esfera
pública. Mas, no contexto histórico, considerando o que tem se proposto para a educação, a
cidadania, segundo Macedo (2002:137), precisa ser deslocada da esfera pública para as
práticas de consumo. Cabe, aqui, tomar, literalmente, o que a autora entende desse conceito,
no contexto político neoliberal. Citando alguns outros analistas da questão, ela afirma que, no
contexto do mundo globalizado, as formas de o sujeito se conceber como participante ativo
de um grupo estão impregnadas do exercício do direito de consumir tanto bens como
informações disponibilizadas pelos meios de comunicação de massa.
O sentido levantado pela autora para o exercício da cidadania seria independente do
acesso a uma base comum de conhecimentos. Tal acesso, no entanto, poderia viabilizar a
construção de uma cultura de trabalho, que facilitaria padrões de comportamento úteis à
participação do sujeito no mercado produtivo e, conseqüentemente, de consumo. “Exercer
cidadania”, portanto, implica ter o direito de consumir. Se o conhecimento é um bem de
consumo, de natureza privada, que pode gerar outros bens de consumo, fica difícil entender a
educação como lugar no qual se exerce a cidadania. Esse conceito, no contexto histórico
contemporâneo, tem relação com o processo de produção de riqueza, logo com a avidez por
enriquecimento que tomou conta do mundo global. Esse contexto político/econômico,
oficialmente, desloca a escola do lugar por excelência das heterogeneidades, portanto, do
lugar do conflito, para o lugar do ajuste das demandas.
A escola adaptada aos interesses econômicos, no contexto de globalização, para os
países periféricos, configurada, entre outros pontos, no currículo, se oficializou a partir da
conferência de Jomtien. A declaração, originada dessa conferência à qual fizemos referência
anteriormente, delineou, ao longo da sua construção, a educação pretendida. Mas foi no
artigo de número quatro que ela se explicitou, tendo como ponto de partida a escola originada
do pressuposto da modernidade. Isso implica que houve uma retomada dos conceitos que
permearam a modernidade na sua fase de industrialização. O artigo referenciado na
declaração traz como objetivo principal da educação, no contexto, a escola útil, configurada
nos conhecimentos úteis para as finalidades políticas e econômicas para as quais ela foi
idealizada. Vejamos:
A tradução das oportunidades ampliadas de educação em desenvolvimento
efetivo para o indivíduo ou para a sociedade dependerá, em última
instância, em razão dessas mesmas oportunidades, as pessoas aprenderem
conhecimentos úteis, habilidades de raciocínio, aptidões e valores.
(Declaração de Jomtien (1990 – grifos meus)
A Declaração de Nova Delhi sobre Educação para Todos, por sua vez, conforme já consideramos, também, ratificou o que
a Declaração de Jomtien propôs, tornando a escola instrumento a serviço do capital. Aqui, também, a escola se tornou útil, tendo em
vista a formação de uma sociedade de consumo. Vejamos:
Nós, os líderes dos nove países em desenvolvimento de maior população do
mundo, reiteramos, por essa Declaração, nosso compromisso de buscar,
com zelo e determinação, as metas definidas pela Conferência Mundial
sobre Educação para Todos e pela Cúpula da Criança, em 1990,
(...).(Declaração de Nova Delhi, 1993).
Os países em desenvolvimento se tornaram alvo dos interesses econômicos, e a escola
teria o papel a cumprir nesse contexto, tornando-se, também, instrumento de
institucionalização da produção de riqueza, portanto, útil para os fins a que se propôs. E a
escola, para ser útil, visando a atender ao contexto de globalização, tem fundado seus
pressupostos em um princípio básico, que é o das competências. Esse modelo de escola já
começou a se prefigurar no primeiro artigo da Declaração de Jomtien, reconhecido no título
que trata da satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, dentre elas, participar
plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões
fundamentadas e continuar aprendendo.
Cada pessoa - criança, jovem ou adulto - deve estar em condições de
aproveitar as oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas
necessidades básicas de aprendizagem. Essas necessidades compreendem
tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a
escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os
conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades,
valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam
sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar
com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a
qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo.
(Declaração de Jomtien –1990).
O ponto levantado na Declaração denota qual é o objetivo da escola, tendo em vista
caracterizar o conhecimento apenas como algo útil para a sobrevivência, tendo uma escala de
degraus a ser alcançada, através do aprendizado constante. Tanto o caráter útil, de utilidade
para finalidades práticas que o conhecimento deverá ter, quanto a necessidade de continuar
aprendendo apontam a escola como o lugar para que competências sejam desenvolvidas,
visando à competitividade no mercado de trabalho. Frigotto (2000:223), reproduzindo, de
forma distanciada, o que significa a produção de conhecimento, quando foram instaurados
esses liames, foi buscar, no seu tecido, o ideário da história em tempos de globalização. A
competição é saudável e necessária e vencem os mais competentes e os que mais se esforçam
A noção de competência, prefigurada nos documentos originados dos organismos
internacionais, segundo Bronckart e Dolz (2004:32), resulta das reformas ocorridas ao longo
do século XX para retomar os princípios da modernidade, ou aqueles propostos para romper
com a idade média. Mas, na concepção dos autores, as reformas perseguidas também se
desviaram das suas intenções, uma vez que elas romperam apenas com a obsolescência,
propondo a produção de conhecimento de forma adaptada aos interesses
político/econômicos. Para os autores, essa contradição fará emergir a lógica que se deseja
para o conhecimento, que é a das competências, entre outras, que parece proceder de um
movimento antagônico neoliberal, indiferente aos objetivos de democratização e de
socialização, o qual busca, na verdade, formar agentes aptos para se mostrarem eficazes em
situação de trabalho em constante mutação.
Cabe ressaltar que a adaptação da produção de conhecimento à qual os autores fazem
referência daria ainda na sala de aula, o que resultaria em uma escola que se preocuparia com
o saber fazer, o que lhe imprimiria um caráter produtivista. Em síntese, as reformas, que
pareciam retomar uma proposta de escola que tinha como meta, entre outras, a
democratização, acabou produzindo escolas adaptadas ao pragmatismo funcional para
atender ao modelo de Estado Neoliberal. Segundo Macedo (2002:134/136), a concepção de
competência, para o conhecimento, na contemporaneidade, parece valorizar os saberes, que
são: agir, falar, relacionar-se, em detrimento do saber científico, o que, para a autora,
presume uma escolarização centrada em habilidades genéricas, com valor de troca, ou seja,
troca por emprego, por prestígio e por conforto. Ser competente, portanto, é estar apto para as
vulnerabilidades do mercado de trabalho, salvaguardando, sempre, a manutenção de uma
sociedade de consumo.
A propósito da noção de competência, pode-se entender tal conceito a partir do que
Perreneaud (2004) supõe para a questão. O autor a entende a partir de duas metáforas
básicas, que são a da transferência, que se constitui em deslocamento do conhecimento para o
lugar de uso, e a metáfora da mobilização, que acentua a atividade dos indivíduos, o que
implica uma busca de saberes compartilhados com os conhecimentos próprios de cada um.
Essa última metáfora supõe uma busca de conhecimentos necessários aos usos, através da
complexidade dos mecanismos mentais. Para o autor, é a metáfora da mobilização que parece
ser a mais fecunda, uma vez que é dela que emerge a noção de competência. Esse conceito
implica, portanto, a condição que cada um tem de mobilizar conhecimentos compartilhados
ou privados, para os usos, cabendo à escola o papel de dotar o aluno dessas condições. Ser
competente implica saber mobilizar conhecimentos para as diferentes situações de uso.
A educação, fundamentada nas competências, na concepção de Bourdieu
(1998:139/141), é a cumplicidade entre a escola e o Estado, que promove um “jogo” capaz
de tirar desse mesmo Estado a responsabilidade da desordem estrutural, originária das
políticas implementadas. O mundo do trabalho, individualizado e competitivo, exige
competências, e a escola, por sua vez, dado o seu caráter institucionalizado, precisa garantir,
oficialmente, as competências que a sociedade tem exigido. Nesse jogo, se materializam, no
processo educacional, as relações com a história, com o poder e com o trabalho,
considerando o modelo de Estado idealizado. Nele, o Estado gestor cumpre seu papel,
dizendo como se deve fazer a educação, com vistas ao exercício da cidadania, logo da
autonomia, o que implica transferência de responsabilidade do Estado para cada um. Esse
pressuposto ratifica o principio básico político e econômico do Estado Neoliberal, que é a
individualidade.
Ao identificarmos a modernidade e a relação da produção de conhecimento com a
produção de riqueza, fizemos isso sem a preocupação de buscar as concepções de currículo
que se instauraram no processo. Cabe ressaltar que esse conceito, segundo Silva (2005: 12),
só passou a ser objeto de estudo na década de 1920, tendo relação com a industrialização e
com os movimentos migratórios, vivenciados pelos Estados Unidos, que intensificaram a
necessidade de escolarização do país. Isso implica que o currículo, até então, se limitou à
tradição, apesar da relação com o mundo produtivo. Mas a questão se fez, a partir da década
referenciada anteriormente, objeto de investigação, logo, também, de concepções, tendo,
sempre, segundo Silva (2005:14), como pano de fundo, a seguinte indagação: qual
conhecimento deve ser ensinado?
A questão levantada mostra mais uma vez a relação do currículo com o papel que a
escola exerce nos contextos nos quais está inserida, ou, como afirmou Sacristán, como ela
está configurada. Essa indagação, tendo como objetivo propor o conhecimento a ser
ensinado, desencadeia outras questões, dentre essas, levantaremos aquela que consideramos
básica para a nossa investigação, a partir dos conceitos relacionados pelo currículo: qual é o
tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? A questão levantada
por Silva (2005: 15), que encontra resposta na visão de Durkheim para a educação, supõe a
adequação dos sujeitos à sociedade idealizada pelo modelo de estado instituído, logo, uma
escola adaptada aos pressupostos políticos e econômicos, entre outros espaços, através do
currículo.
Não nos interessa, aqui, levantar as diferentes teorias que têm permeado as discussões
sobre o currículo, mas sim aquela que sustenta a construção do conhecimento sob o ponto de
vista das competências. Ou seja, o que seria um currículo sustentado nesse pressuposto?
Teoricamente, ele romperia com uma organização curricular puramente disciplinar para se
ancorar em princípios cognitivos e comportamentais, materializados nos objetivos a serem
alcançados. Uma organização didática, fundada nessa lógica, segundo Macedo (2002: 117),
apresenta uma organização curricular associada à idéia de transversalidade e de
interdisciplinaridade, fora de qualquer organização disciplinar. Mas é de Lopes (4/6/2006) a
avaliação do que têm significado esses conceitos nos documentos oficiais. A autora levanta a
questão do significado de um currículo organizado sob essa perspectiva. No contexto, eles
implicam a inter-relação de campos disciplinares, transcendendo a questão disciplinar, para
se alocar em diferentes saberes, com vistas a formar competências. Cabe ressaltar que, na
organização política global, eles estão ligados não só ao mundo produtivo, mas também ao
mundo competitivo, através de uma dispersão do .conhecimento fora de uma organização
disciplinar.
É o espaço de dispersão acima referenciado que possibilita a proposição de conceitos
como interdisciplinaridade e de transdisciplinaridade, com base não na intersubjetividade,
mas na possibilidade de aproximação de conteúdos construídos ao longo das investigações
que a ciência foi capaz de produzir. O currículo por competências e não por disciplina supõe
uma prática pedagógica sob uma outra perspectiva, que seria aquela baseada em problemas a
serem investigados e em projetos a serem desenvolvidos, visando a alcançar os objetivos
propostos. Trata-se do que tem sido caracterizado como pedagogia de projetos.
Do que se considerou até agora a respeito da produção de conhecimento, podemos
assumir, junto com Popkwitz (1994:177), que a história é um modo de raciocínio. Diríamos
que ela é, também, um modo de raciocínio, e esse modo de raciocínio são respostas
construídas sobre princípios de classificação, que são também socialmente construídos. Essa
construção tem dado conta do ordenamento do currículo na história recente. Isso implica que
as rupturas, originadas no seio da própria história, vão produzindo os modos de produção do
conhecimento.
Na referência que se faz ao currículo por competências, buscada a relação com o
capital e com o trabalho, os saberes a serem construídos já se desigualam e já se põem,
originariamente, em desequilíbrio, uma vez que o trabalho não se apresenta como algo
intrínseco da necessidade humana, e sim como o que é tratado como competição, preservadas
as condições do que seja, não só competir, mas, sobretudo, o que ele significa na escala
produtiva, analisada por Marx. Nesse contexto, ele deixa de ser o lugar do exercício da
cidadania para ser, por natureza, o lugar, para muitos, da exclusão, uma vez que, no jogo da
competição, há sempre ganhadores e perdedores. Nele, o poder legitima a história vigente,
tirando do Estado o dever de promover, para o cidadão, o exercício da cidadania, de fato. O
estado mínimo, ideologicamente instituído, coloca sob a responsabilidade do aluno o fracasso
ou a excelência no mundo do trabalho.
2.2 – A reforma da educação no Brasil: um currículo adaptado
As reformas prementes para o contexto político/econômico brasileiro atravessaram os
lugares de atuação do Estado em relação à sociedade civil, visando a tornar todos cidadãos,
conforme já se considerou, anteriormente, aptos para uma sociedade de consumo, inclusive
de saberes necessários, segundo os estudiosos da questão, para o “exercício da cidadania”.
Isso implicou modificações profundas que os estados foram obrigados a realizar, sobretudo,
aqueles caracterizados como periféricos, porém potencializados para a nova ordem mundial.
Cabe ressaltar que todas as reformas foram conduzidas pelo FMI e pelo Banco Mundial.
Esses organismos, conforme têm nos apontado os estudos, passaram a interferir, diretamente,
na formulação da política interna desses países e a influenciar na sua legislação, exercendo
amplo controle em suas políticas domésticas.
Em se tratando de Brasil, em se tratando, também, da reforma educacional, ela
começou a ser construída ainda na Constituição Federal de 1988, quando, no artigo 205, já se
vislumbrou o trato da questão, estabelecendo relação com o mundo do trabalho e com o
exercício da cidadania, a partir da visão do que já estava acontecendo nos países
desenvolvidos, ou seja, seria necessário considerar a competitividade e o individualismo, que
deveria se abater sobre o mundo, de forma acirrada, na década que estava por iniciar.
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família deverá ser
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (CF, 1988, art. 205)
Estando a Constituição Federal assumindo o que seria a educação no contexto político
e econômico no qual o mundo estava inserido, sobretudo com a marca da individualidade,
centrada na pessoa, conforme o artigo citado, estando, também, o Brasil incluído nas
políticas que seriam implementadas pelos organismos internacionais, que dariam as
orientações para as reformas necessárias ao contexto político, a tarefa subseqüente foi a sua
participação na Conferência Mundial, realizada em Jomtien, na Tailândia, em março de 1990.
Essa conferência, que produziu a declaração, contendo os pressupostos que apontariam as
diretrizes para a educação básica para os países convocados, conforme já se considerou,
desencadeou, no Brasil, uma série de ações, que culminaria com uma reforma que seria
suficiente para ir adequando o país ao modelo de Estado que já estava sendo construído. A
primeira etapa a ser realizada foi a construção de um Plano Decenal de Educação para Todos,
que propôs os fundamentos básicos da educação, destinados a cumprir, em um período de dez
anos, as resoluções da Conferência de Jomtien, dentre essas, a universalização da educação
básica.
O Plano Decenal de Educação para Todos, que foi concomitante com o prenúncio das
reformas gerais do Estado brasileiro, foi organizado, segundo o próprio documento,
envolvendo não só as diferentes entidades governamentais para a educação, mas também
entidades da sociedade civil. Em primeiro lugar, foi instituído, pelo MEC, um Grupo
Executivo, constituído por representantes do próprio MEC, do Conselho Nacional de
Educação, de Secretarias Estaduais de Educação (CONSED) e da União dos Dirigentes
Municipais de Educação (UNDIME). A partir do Grupo Executivo originado pelo MEC, foi
constituído um Comitê Consultivo que integrou membros não só do grupo executivo, mas
também de outras organizações, como o Conselho Federal de Educação, o Conselho de
Reitores das Universidades, entre outros. O documento indica, ainda, que a mobilização das
entidades governamentais e não governamentais propiciou uma série de debates em todo
país, sobre os mais importantes problemas educacionais e as alternativas estratégicas para
enfrentá-los. A seqüência dos debates se consolidou na Semana Nacional de Educação para
Todos, realizada em Brasília, do dia 10 ao dia 14 de maio de 1.993. Os debates originados
desse encontro fizeram parte do Plano Nacional de Educação para Todos.
Mas o Plano referido se constituiu, também, a partir de um amplo debate realizado
pela comunidade escolar. Para que esse debate fosse realizado, foi enviado, para as escolas de
todo o país, um roteiro, contendo os pontos que deveriam ser abordados. A discussão a ser
desenvolvida deveria se fundamentar nos artigos 205 e 206 da Constituição Federal e na
Declaração de Jomtien, devendo resultar, dessas discussões, relatório síntese, que conteria
uma visão da escola, a partir das suas necessidades, a começar pelo acesso da comunidade a
ela, passando pelo ensino, pela valorização dos docentes e de outros profissionais da
educação, pela gestão, entre outros.
Dentre os objetivos a serem alcançados, na proposta, em resposta às determinações
legais, às legítimas demandas sociais, ao sistema educativo, ao compromisso firmado na
Semana Nacional de Educação para Todos, e às recomendações e acordos assumidos no
âmbito internacional, gostaríamos de destacar aquele que tem relação direta com a produção
de conhecimento. Faremos, portanto, um recorte desse objetivo, tendo em vista o
levantamento do que se antevia para a educação em um contexto posterior de consolidação da
reforma que estava por vir. Vejamos.
(1) Satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem das crianças,
jovens, e adultos, provendo-lhes as competências fundamentais requeridas
para plena participação na vida econômica, social, política e cultural do
país, especialmente as necessidades do mundo do trabalho:
a) definindo padrões de aprendizagem nos vários ciclos, etapas, e/ou séries
da educação básica, garantindo a todos a aquisição de conteúdos e de
competências básicas:
*no domínio cognitivo, incluindo habilidades de comunicação e expressão
oral e escrita, de cálculo e raciocínio lógico, estimulando a criatividade, a
capacidade decisória habilidade na identificação e solução de problemas e,
em especial, de saber como aprender;
no domínio da sociabilidade: pelo desenvolvimento de atitudes
responsáveis, de autodeterminação, de senso de respeito, ao próximo e de
domínio ético nas relações interpessoais e grupais;
b) estabelecendo, em nível apropriado, os objetivos e metas de
desempenho dos respectivos planos curriculares correspondentes aos
objetivos sócio/culturais, antes mencionados, e que deverão ser alcançados
pelas unidades escolares;
c) adequando, no plano normativo e curricular, as articulações
entre ensino fundamental e médio e entre modalidades escolares e extra-
escolares de educação;
d) revisando e atualizando as concepções e normas de organização e de
estruturação do ensino médio de modo a constituí-lo como continuidade do
processo de educação básica e aprofundamento da aquisição de
competências, cognitivas e sociais, e integradamente, às várias
modalidades de educação no e para o trabalho;
(...) (Plano Decenal de Educação para Todos- 1993: 37-38 – grifos meus)
A partir do objetivo tomado para a questão curricular, pode se concluir que o Plano
Decenal de Educação para Todos (1993) tornou-se a diretriz básica para a reforma curricular
no Brasil, que, por sua vez, segundo estudiosos da questão, foi o lugar onde a reforma do
Estado para a educação, de fato se consolidou. Nas palavras do então Ministro da Educação,
Murílio de Avellar Hingel, em carta dirigida aos professores e dirigentes escolares, quando o
documento foi encaminhado às escolas para implementação, em maio de 1994, o Plano
Nacional foi concebido e elaborado para ser um instrumento guia na luta pela recuperação da
educação básica do país. No que se refere à produção de conhecimento, cabe ressaltar que, ao
longo da sua construção, há um interesse, ora explícito ora implícito, em evidenciar o
fundamento teórico básico que deveria sustentar a discussão que se travaria, posteriormente,
em torno da questão, que foi a noção de competência, já delineada no objetivo levantado, mas
que pode ser confirmado, sobretudo, nas metas globais a serem atingidas. Vejamos:
As metas globais a serem atingidas, nos próximos dez anos, ou em períodos
intermediários, deverão atender aos seguintes escopos mínimos:
Incrementar, em cerca de 50%, os atuais níveis de aprendizagem nas
matérias do núcleo comum, tomando como referência os novos padrões de
conteúdos mínimos nacionais e de competências básicas a serem
nacionalmente determinadas com a participação de ensino. (Plano Decenal
de Educação para Todos. 1993:42 – grifos meus)
A noção de competência, que se evidenciou, explicitamente, na meta global a ser
alcançada, na visão do Plano Decenal de Educação para Todos, faria parte do plano político
para a construção do saber escolar, denotando, implicitamente, as competências a serem
alcançadas, com base na Declaração de Jomtien, que deu origem aos pilares propostos por
Delors. A partir desses pilares, seria possível uma ruptura com o formalismo que sempre
sustentou a transposição da ciência para a aplicação didática
3
, o que permitiria uma formação
para o exercício da cidadania, considerando o individualismo que já se vislumbrava para as
reformas do Estado. Vejamos:
(...) Valores e padrões de conduta requeridos para o aperfeiçoamento
democrático desafiam o formalismo e alienação dos programas escolares,
exigindo processos e modos de relacionamento capazes de formar o
cidadão para o pluralismo, para o senso de tolerância, de solidariedade e de
solução pacifica de conflitos. Trata-se não só de educação para a
democracia, mas também do estabelecimento de ambiente de relações
educativas democráticas, voltadas para a participação societária, para o
engajamento das distintas estruturas de representação e para o exercício dos
direitos da cidadania. (Plano Decenal de Educação para Todos, 1993:
21)
A reforma da educação, no Brasil, foi se construindo por etapas. Aprovado o Plano
Decenal de Educação para Todos, em âmbito nacional, o documento foi submetido à
apreciação da conferência Internacional de Nova Delhi, em dezembro de 1993, na qual os
líderes dos países presentes se comprometeram com buscar, com zelo e com determinação, as
metas definidas pela Conferência Mundial Sobre Educação para Todos e pela Cúpula
Mundial da Criança. Esse compromisso visou a atender às necessidades básicas de
aprendizagem de todos, o que permitiria tornar universal a educação básica e ampliar as
oportunidades para crianças, jovens e adultos.
Dando prosseguimento às etapas subseqüentes, agora todas em âmbito nacional,
vieram os desdobramentos do processo. Estamos destacando, em primeiro lugar, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação LDB 9394/1996, que é o instrumento legal que deu suporte
à educação nas políticas de reforma do Estado, agora já no Governo FHC. Arouca (2003:53),
ao propor uma leitura discursiva dessa Lei, faz um levantamento do tempo de construção de
todas as LDBs que já vigiram no país, mostrando o tempo de construção de cada uma delas e
3
Por transposição didática, segundo DELAMOTE-LEGRAND, citando CHEVELLAR, é a passagem do
saber científico para o saber ensinado – essa questão será retomada posteriormente
a correlação de forças a que estiveram submetidas. Não é sem razão que a autora afirma que
as leis da educação, por natureza, trazem, em seu bojo, os reflexos das lutas partidárias e de
facções hegemônicas, ou não, que, de certa forma, conciliam-se na organização discursiva da
lei, transformando-a em um conjunto ordenado da expressão dos interesses dos diversos
atores sociais. Por essa razão, ainda nas palavras da autora, as leis de diretrizes e bases
dialogam com o sentido que se pretende dar à educação. (Arouca 2003:53/54)
A LDB vigente tramitou oito anos no Congresso Nacional, através de um percurso
acidentado, mas, pelo relato da autora, percebe-se um interesse eminente em que a lei fosse
promulgada, ao que parece, para atender às reformas às quais o Estado estava se submetendo.
Esse caráter da Lei deverá produzir uma educação adaptada aos interesses
político/econômicos. Segundo Sacristán (1999:215), os projetos de educação da década de
1990, são mais para atender ao cliente ou ao consumidor do que a um projeto de um
programa geral.
Na perspectiva levantada, tratou-se de uma ação para atender a uma demanda
específica, ou, mais diretamente, à expansão do capital, tendo a educação como alavanca para
sustentar tal processo. No modo de pensar ainda de Sacristán, tratou-se de um
direcionamento para legitimar, ou, mais especificamente, para regular um projeto, com a
intenção clara de sustentar o Estado pretendido. Tendo a escola o papel que tem nesse
contexto histórico, ela não deixaria de legitimar uma concepção de currículo originária do
universo das competências, ou seja, ela foi planejada para formar “competências” básicas
para atender aos interesses vigentes.
A aprovação da LDB, tendo já um Plano Decenal de ajustes para a educação,
construído a partir dos parâmetros originados da Declaração de Jomtien e aprovados na
conferência de Nova Delhi, consolidou o momento de fato de implementação da reforma da
educação, visando à sua adaptação às normas do modelo de Estado que estava se instituindo.
Aliás, segundo Frigotto (2000:224), para atender a um projeto de reformas, o campo
educativo, da escola básica à pós-graduação, no quadro do ajuste global, foi, então,
direcionado para uma concepção produtivista, cujo papel é o de desenvolver habilidades de
conhecimento, de valores e atitudes e de gestão da qualidade, definidas no mercado de
trabalho cujo objetivo é formar em cada indivíduo um banco de reserva ou de competência.
Isso significou, na perspectiva do relatório de Delors, que todos precisam estar habilmente
preparados para a vulnerabilidade que tem envolvido o trabalho. É nesse contexto de reforma
que surgiu a reforma curricular, tanto em nível de educação infantil, como em nível de ensino
fundamental e médio, através da proposta de Parâmetros Curriculares Nacionais.
Em se tratando dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental,
segundo Lopes (2006), eles já seriam uma preparação para o Ensino Médio, já que
contemplam propostas que visam, também, ao mundo do trabalho, tendo como meta sinalizar
um parâmetro para a educação brasileira. Trata-se de uma proposta para a produção de
conhecimento que, no seu conjunto, pretendeu assegurar, para todos, uma organização
curricular comum, embora permita trabalhar com as diversidades sociais, próprias de um país
com uma cisão de classes, visivelmente marcada, e com múltiplas manifestações culturais.
Esse objetivo seria de grande valia para o país, pois asseguraria uma certa homogeneidade na
produção de conhecimento, sem perder de vista a heterogeneidade própria das condições
sócio-culturais do Brasil.
O estabelecimento de parâmetros curriculares comuns para todo o país, ao
mesmo tempo em que contribui para a construção da unidade busca garantir
o respeito à diversidade, que é a marca cultural do país, por meio de
adaptações que integrem as diferentes dimensões da prática educacional.
(Parâmetros Curriculares Nacionais– Introdução)
Mas, pela natureza política do documento, e ainda mais, pelos pressupostos teóricos
que ele assume, questão que será retomada posteriormente, o que há, nessa intenção, são
interesses velados de assegurar ao país o alcance das metas propostas, que são aquelas que
irão atender aos interesses político/econômicos não só brasileiros, mas, principalmente,
mundiais. Na perspectiva de se compreender esses interesses, antes de chegarmos ao nosso
objeto de investigação, faz-se necessário situar o percurso da construção dos documentos e a
sua relação com o poder central, não sem antes tomar, em Cury (2000), o que sempre
significou a relação do conhecimento, logo com os currículos oficiais e com os poderes
instituídos. O autor faz um levantamento da forma como os diferentes governos e as
diferentes constituições propuseram a construção do saber escolar e concluiu que ele tem se
dado, na maioria das vezes, por iniciativa do poder executivo. (Cury: 2000:251). E é desse
mesmo autor que se pode apropriar para se chegar à trajetória dos PCNEFs, na sua fase
preliminar, aliás, em uma fase ainda concomitante com o projeto da LDB 9394/1996.
Diante da necessidade de se romper com a organização curricular imposta pelo
regime militar, diante, também, da necessidade de se adequar o país às necessidades
internacionais, fez-se necessário, no conjunto das reformas, uma reforma curricular.
Retomando Cury (2000:251), através da sua afirmação de que o currículo nacional mínimo
sempre esteve ligado ao executivo, esse foi, também, o ponto de origem dos PCNEFs. A
Constituição Federal de 1988 e a tradição desse poder abriram caminhos para essa iniciativa.
Tratou-se, portanto, de uma efetivação do art. 210 da Constituição Federal, que afirma que
serão afixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a
formação básica comum e o respeito aos valores culturais e artísticos nacionais e regionais.
Gostaríamos de tomar de Cury (2000:247/248) a sua avaliação sobre a recomendação
da Constituição Federal para fixar conteúdos mínimos. Para o autor, o tom imperativo não
deixa dúvida: E se “serão fixados” conteúdos mínimos, alguém deve ser o responsável. Cabe
ressaltar que a LDB 9.394/1996 no art. 9º, nos parágrafos IV e VI, se encarregou de
sistematizar tanto a relação com os conteúdos quanto a relação com o processo de avaliação
sobre o qual recai o olhar desconfiado de Cury, do qual se pode entender que se trata de um
controle do poder executivo sobre a questão, que deveria criar mecanismos para tal fim. O
artigo 9º afirma que:
A União incumbir-se-á de:
IV –estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino
fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos
mínimos, de modo a assegurar formação básica comum.
VI- assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no
ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com o sistema de
ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do
ensino; (LDB 9394/1996)
É essa teia, tecida no poder central, que deverá encaminhar a construção dos PCNEFs,
que, no nosso entendimento, teve o objetivo de finalizar o projeto de reforma da educação
para o Estado desejado, restando apenas a implementação do documento. Essa legislação
imbricada, ou seja, contendo conteúdos mínimos, e um processo de avaliação assegurado por
lei, permitiria ao poder centralizador dos governos neoliberais um controle do Estado sobre
todo o processo de educação, sobretudo, a pública. A propósito dessa questão, foi a partir
dela que foram construídos todos os instrumentos para um processo de avaliação sistemático,
em nível global, da educação básica aos cursos universitários.
Apesar dessa teia legislativa, que deu origem aos PCNEFs, pode-se afirmar que a
construção do documento não se originou de um marco zero. Segundo Barretto, (2000), a
retomada da democracia, nos anos de 1980, abriu espaço para uma discussão acirrada, na
sociedade civil, visando a debater questões, até então restritas a alguns de seus segmentos. As
discussões abertas tinham em vista recuperar a participação democrática e a descentralização
das discussões. Esse contexto político gerou reformas curriculares em confronto com as
orientações curriculares baseadas em aspectos operacionais, que, segundo as teorias críticas
dos conteúdos
4
em evidência, transformou o currículo em instrumento de dominação.
É interessante, para se chegar à construção dos PCNEFs, observar a forma como a
proposição do conhecimento se deu nos anos de 1980. O percurso feito por Barreto (2000)
nos dá a noção de como se deu tal processo. Em primeiro lugar, a autora destaca a
necessidade premente que se instaurou, após a ditadura militar, de se compreender a
produção de conhecimento como algo de natureza social, portanto, dizendo respeito a toda a
sociedade. Nesse contexto, a pedagogia crítico-social dos conteúdos achou um terreno fértil
4
Teoria crítico social dos conteúdos, que é de base marxista, segundo Aranha (1998: 145) consiste em
valorizar a escola e considerá-la como local de aquisição dos conteúdos acumulados que devem ser
aprofundados de forma crítica e socializados, a fim de servirem aos interesses de toda a população, sem
privilégios, visando á democratização da sociedade.
para propor reformas curriculares, sobretudo nas redes públicas de ensino. Essas reformas,
que se expandiram, principalmente, nos estados da região sudeste, que elegeram governos de
oposição ao regime militar, propuseram as discussões a que a sociedade estava almejando.
No que se refere ao currículo, tratou-se de uma proposição que tivesse preocupação com uma
educação democrática de qualidade, voltada para a necessidade das camadas populares.
Cabe ressaltar que, no contexto referenciado anteriormente, a proposição do
conhecimento se identificou por um alto grau de generalidades, voltadas para a
sistematização de um corpo comum de conhecimentos, possíveis de serem adquiridos. Mas a
autora não deixa de destacar que essa proposição de currículo, embora seja constituída da
forma referida, ora procurou se aproximar da lógica construtivista, ora da lógica interna de
organização do conhecimento, em cada campo do saber. Isso implicou que, apesar das
condições de produção dos documentos, eles sucitaram outras formas de compreender o
processo. Como se percebe, as rupturas da década de 1980 com o modo de produção do
conhecimento abriu espaço para outras formas de compreender a construção do saber.
Segundo Silva, (2005: 36), apesar da crítica feita aos pressupostos das teorias críticas dos
conteúdos, os seus fundamentos abriram espaço para uma mudança radical na teoria
curricular.
No contexto de uma desconstrução do currículo, no seu caráter de tradicionalidade, ou
de ruptura com a proposta originada dos governos militares, no contexto, também, de reforma
do Estado, surgiram os PCNEFs. A construção dos documentos, segundo Bonnamino e
Martinez (2002), se deu, inicialmente, de forma conflituosa entre os poderes representativos e
as competências para o direcionamento das ações. Conforme direcionamento da LDB,
caberia ao Conselho Nacional de Educação, órgão representativo da sociedade, propor as
diretrizes que deveriam sustentar os pressupostos básicos de orientação curricular para todo o
país, através de Câmara de Educação Básica. Mas, segundo as autoras, ocorreu um processo
inverso da construção. Visando a dar forma, imediatamente, às reformas da educação, antes
mesmo de o CNE tomar posse do mandato que lhe conferia tal competência, que foi o biênio
1996/1998, as diretrizes curriculares já estavam prontas, já com um processo longo de
discussão, de elaboração e de detalhamento, contendo diretrizes axiológicas, orientações
metodológicas, critérios de avaliação, conteúdos específicos para todas as disciplinas do
ensino e ainda os temas transversais.
Inversamente ao que propõem os documentos reguladores, os PCNEFs foram
produzidos sem que houvesse diretrizes orientadoras. A narrativa feita pelos próprios
membros do CNE, aqueles que deram o parecer final sobre o documento, coloca, passo a
passo, a sua produção, acentuando a discussão que se travou nos diferentes segmentos da
sociedade, em todas as regiões do país. Essas discussões geraram pareceres que indicariam o
rumo da educação, de forma a garantir uma unidade curricular mínima. Mesmo havendo essa
discussão, a relatoria não deixa de chamar a atenção para o trabalho centralizador do MEC.
Para os relatores, uma das principais reservas constatadas se refere ao processo inicial de
elaboração dos PCNs, centrado nas mãos de determinadas equipes sem a colaboração de
grupos de especialistas e pesquisadores dedicados há muito tempo aos estudos específicos
sobre currículo.
A relatoria do documento se dá, também, o direito de ver com reservas a falta de
consulta prévia ao público alvo, representado, principalmente, pelos professores, o que
significa que o documento para discussão já chegou pronto, tendo a comunidade escolar
apenas de emitir pareceres.
A inversão do processo de construção do documento em relação aos órgãos
competentes para os papéis diferenciados, tendo como resultado um documento contendo
todos os direcionamentos para todas as disciplinas, inclusive com direcionamentos
teórico/metodológicos, levaram os conselheiros, segundo Bonnamino e Matinez (2002), a
não recomendarem a obrigatoriedade dos PCNEFs. Aliás, o parecer final dos conselheiros
sobre o documento contém essa afirmativa.
Os PCN registram uma ação legitima, de competência privativa do MEC, e
se constituem em uma apropriação pedagógica, sem caráter obrigatório, que
visa à melhoria da qualidade do ensino fundamental e o desenvolvimento
profissional do professor (...)
(Parecer final – item 3 – grifos meus).
A considerar as avaliações feitas pelos pareceristas, as diretrizes, que deveriam ser
o documento base para dar origem aos PCNEFs, foram construídas concomitantemente,
dando origem às Diretrizes Curriculares Nacionais que, na avaliação de Bonnamino e de
Martinez, se distanciam dos PCNs. Esse distanciamento, pelo nosso olhar, se configura,
conforme o próprio documento, pela falta de relação do mesmo com qualquer pressuposto
teórico, diferentemente dos PCNs, que assumem um pressuposto teórico com base na
pedagogia das competências. O artigo V das diretrizes aponta os saberes a serem ensinados,
transversalizados por alguns temas que têm feito parte das discussões, na contemporaneidade,
sem contudo, apontar o caminho teórico de construção do saber, transferindo a questão para a
escola .
Estamos, aqui, retomando Macedo (2002), na intenção de buscar o eixo teórico
curricular dos PCNEFs. Quando discutimos as diferentes formas de organização do currículo,
ao longo da modernidade, levantamos a questão na contemporaneidade, que tem sido pelo
princípio das competências. É esse, também, o princípio que orienta os PCNEFs. É em torno
dele que serão propostas todas as ações dos documentos. Para Macedo (2002:118), esse
princípio se materializa de duas maneiras. A primeira que a autora reconhece se origina dos
trabalhos de Piaget e de Perrenoud. É sabido que esses dois teóricos supõem a construção do
conhecimento com base em pressupostos cognitivistas. Segundo Macedo, (2002: 119), o
esquema de mobilização que os sujeitos são capazes de fazer se ancoram no pressuposto
piagetiano de acionamento de esquemas, sem que haja uma percepção de teorias.
Já a segunda tem origem na tradição americana de eficiência social de cunho
comportamental. Para a autora, esse último pressuposto é que predomina, sobretudo no que
se refere às finalidades sociais da escolarização em que conhecimento e mercado parecem
estar fortemente associados. O documento intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais –
Introdução, através de várias observações, traça o perfil do que deve ser a educação nesse
contexto. Dentre as várias observações que o documento levanta como necessárias, na
conjuntura político/econômica, gostaríamos de destacar a última.
o aumento do desemprego e as mudanças no mundo do trabalho é outro
ponto da sociedade brasileira que demonstra a preocupação com o grande
contingente de jovens que, mesmo com alguma escolarização, estão mal
preparados para compreender o mundo em que vivem e nele atuar de
maneira crítica, responsável e transformadora, e, especialmente, para serem
absorvidos por um mercado de trabalho instável, impreciso e cada vez mais
exigente. (PCNs – Introdução:21 – grifos meus).
Confirmando a posição de Macedo, no fragmento tomado, os adjetivos instável,
impreciso e exigente qualificam o mercado de trabalho e resumem o papel que a escola deve
cumprir no contexto político e econômico, propondo o conceito pedagógico que deveria ser
assumido pelo conjunto dos documentos, que é a pedagogia das competências, estabelecendo
relação com o mercado de trabalho.
A segunda questão que precisa ser observada em relação ao currículo é que, segundo
ainda Macedo, a noção de competência, pela tradição americana, se confunde com objetivos,
supondo-os apenas como campos de estudo. Trata-se de uma organização curricular que
propôs romper com a tradição disciplinar, através dos temas transversais, que permitiriam
ministrar o conhecimento com perspectivas interdisciplinares e transdisciplinares. Mas, em se
tratando dos PCNEFs, não é esse o caminho perseguido, pois os documentos propõem a
questão baseada, também, em disciplinas, o que, para a autora, se transforma em uma mescla,
apontando dois modelos de currículo imbricados em um mesmo documento. Com o currículo
por competências teve-se a pretensão de romper com o tradicional, colocando em cena os
objetivos da educação no contexto de produção do documento. Já o currículo organizado por
disciplina sustentaria o mecanismo de controle a que estaria submetido, através dos sistemas
de avaliação.
O desvio de rota provocado pela forma de organização do documento acabou se
constituindo em um espaço de ambigüidades, em todos os níveis dos PCNs, e os documentos
se apresentaram, todos, disciplinarmente organizados. Trata-se do exterior do discurso,
portanto, de natureza ideológica, que produziu o recorte disciplinar, que, por sua vez,
reproduziu a história. Se o currículo organizado por competências tem como meta, entre
outras, “preparar cidadãos” para atender à vulnerabilidade econômica, a organização
curricular por disciplina implicaria a forma concreta de controle das políticas implementadas.
A juntura desses pressupostos atenderia aos interesses do modelo de Estado instituído, logo
ao poder ou às suas formas de organização.
Do que se levantou, até aqui, a respeito do currículo, cabe ressaltar que não se tratou
de uma reforma para atender ao avanço das ciências que sustentam os conceitos da educação
e das disciplinas que organizam o currículo, mas sim de uma ruptura com o “velho”, para
atender aos “avanços da sociedade industrializada”. De pronto, já se pode avaliar que se
tratou de uma reforma curricular que convergiria para atender à reforma a que o Estado
estava se submetendo. Ela fecharia o ciclo de reformas para a educação que a reforma geral
do Estado estava exigindo, restando apenas a sua implementação. De pronto, também, já se
pode avaliar que se trata do poder constituído, disseminado nas estruturas das organizações
governamentais e manifestado no currículo, prescrevendo conteúdos e métodos para a
comunidade escolar, necessários ao contexto político e econômico.
O processo de reforma levantado nos permite confirmar, segundo considerações
anteriores, uma relação com o momento histórico/político/econômico vivido no qual o
documento em análise está inserido. Ela nos permite antecipar, também, que a escola deverá
estar inserida nesse contexto, propondo métodos de trabalho, conteúdos adequados aos
interesses e objetivos a serem alcançados, dentro da proposta de modelo de Estado instituído.
A compreensão dessas relações na construção do conhecimento consolida uma compreensão
de que não há discursos isentos. Isso implica que, de fato, os PCNEFs, logo, também a
proposta para a disciplina Língua Portuguesa, trazem, no seu tecido, um modo de pensar
subjacente, que denota as correlações de força em confronto, materializadas nos interesses
econômicos. Não é sem razão que Silva (2005:150) afirma: O currículo é lugar, espaço,
território. O currículo é relação de poder. A primeira definição do autor incorpora a segunda
e não deixa dúvida de que ele é, de fato, um espaço delimitado para o exercício do poder.
Ainda nas palavras do autor, o currículo é documento de identidade. Isso implica que, na
relação com o saber institucional, é através dele que as identidades se constituem.
2.3 O contexto lingüístico de reforma da educação no Brasil: a pré-história dos PCNs de
Língua Portuguesa
Não se pode falar de postura teórico/metodológica dos trabalhos com Língua
Portuguesa, enquanto objeto de ensino, apresentados nos PCNEFs de Língua Portuguesa, sem
se recorrer a um passado recente, mas que, com certeza, ecoa nos fundamentos de
sustentação desse processo. A efervescência teórica no contexto de produção do documento
era intensa. Para compreendermos a questão, fomos buscar nossas primeiras pistas, ainda na
década de 1970, em Genouvrier e Peytard. Para esses autores, os estudos realizados sobre o
ensino de Língua Portuguesa, enquanto objeto de ensino, centrado nas classificações que a
gramática normativa supõe, submete o processo a um anacronismo que retoma os gramáticos
latinos ou a lógica aristotélica. É necessário observar que essa era uma questão que já se fazia
ecoar, no Brasil, mesmo antes de esses autores trazerem à tona essa discussão. Vejamos, por
eles mesmos.
Resta o facto de que, no nível pedagógico, a crise existe e requer soluções:
quase por toda parte, no Brasil e em Portugal, há vozes que se levantam
para dizer que não se pode continuar vivendo de um ensino gramatical cuja
ineficácia é comprovada, e para pedir aos lingüistas uma intervenção
imediata.(...) (Genouvrier e Peytard, 1973:124).
Essas pistas abriram caminho para algumas buscas desse contexto de rompimento
com a gramática normativa à qual os autores se referem. Em Cunha percebe-se uma vontade
explícita de que a rebeldia dos iluminados de 1922 se fizesse presente, também, no trato com
a gramática em sua natureza purista, intocável.
Presenciamos, hoje, no Brasil, de uma arte nova desenvolver-se em torno
de nós, vemos consolidar-se o ideal dos iluminados de 1922 - a antecipação
do verdadeiro artista à sua época, vemos, tudo isso e sentimos o contraste
entre uns poucos que procuram realizar os recursos intocados do idioma e a
massa opressiva dos que saem dos nossos colégios sabedores de uma língua
que não funciona, prisioneiros de uma gramática que é um código de
impedimentos ao uso dos meios expressivos de que nos servimos na fala
corrente. (...) É, pois, imprescindível mudar tal estado de coisas e juntar
nossas vozes àqueles que clamam contra este ensino inútil.(Cunha,
1964:23)
O apelo de Cunha, ao que tudo indica, já era questão inquietante em Câmara
Jr.(1989). Como exemplo, pode-se tomar do autor a desconstrução/reconstrução que ele faz
da modo/temporalidade dos verbos, considerando-a sob o ponto de vista semântico, a partir
dos rearranjos que os falantes são capazes de fazer, acomodando usos que a gramática, na sua
rigidez, desautoriza. Vejamos a opinião do autor a respeito da questão:
(...) esse estudo semântico referente ao verbo português é sumamente
complexo. É talvez onde melhor se evidencia a incapacidade dos métodos
da gramática tradicional para fazer justiça a uma interpretação adequada do
sistema gramatical do português. (Câmara Jr. 1989:97)
Retomando a questão a partir da década de 1970, não se pode deixar de lado o tempo
histórico, que foi marcado pela ditadura militar. Esse regime impôs, também, uma reforma
curricular e propôs o trabalho com a linguagem a partir da teoria da comunicação. Aliás, a
disciplina Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental passou a se chamar Comunicação e
Expressão e teve, segundo Marinho, (2000:48), a intenção de substituir os conteúdos
gramaticais pelas teorias da comunicação, propostas por Jakobson. Segundo a autora, a
intenção foi a de construir um campo de estudos compatível com o momento de rica
variedade de suportes da escrita, combinando recursos verbais e não verbais, visando à
competência comunicativa.
O contexto político, de fato, não permitiria nada que fosse além do funcionalismo
jakobsoniano, em se tratando de aplicação. Mas isso não significou que as inquietações
fossem de tudo sufocadas. Em meio a um contexto político de cerceamento das vozes, até
mesmo da ciência, algumas rupturas ocorreram, mesmo com o objetivo de indicar um futuro
que um dia chegaria. Entre as pesquisas realizadas, estamos destacando a de Preti (1972), que
traria, segundo Castilho, na apresentação do trabalho de Preti, sopro de vida a uma disciplina
que começava esterelizar-se por excessivo distanciamento do social.
Indo além das estruturas supostas pela gramática, indo além, também, das teorias da
comunicação, sustentado nos pressuposto da Sociolingüística, em se tratando de Brasil, pode-
se, então, começar a discussão por Preti (1972). O autor supõe que a linguagem deve ser
analisada, sobretudo, em seu caráter de oralidade, considerando, sempre, os contextos de uso.
Isso implica que a linguagem deveria ser analisada não só pelos aspectos internos, mas
também pelos aspectos externos ao texto. Logo, nessa perspectiva, deve-se considerar o
falante e a variedade lingüística à qual está circunscrito. Gadet, citada por Preti (1972:4),
afirma que, como a Sociolingüística estuda as relações entre as variações lingüísticas e as
variações sociológicas, o sociolingüista deve tentar mostrar se a variação da linguagem de
um falante para outro está determinado e, em caso positivo, como e por que fator. Aqui, ao
que parece, estava inaugurada uma nova fase de estudos para a linguagem, logo, também,
uma proposta de trabalho com a língua materna poderia fazer parte do currículo da disciplina
Língua Portuguesa.
Mas a Sociolingüística não caminhou sozinha na empreitada de compreender a
linguagem além da estrutura interna, e as pesquisas, no Brasil, também não se opuseram a
enveredar por outros caminhos. Através de Orlandi (1979), pode-se compreender tal questão,
mesmo que de forma muito sumária. Para a autora, além da Sociolingüística, havia outros
pressupostos, levantados de alguns outros fundamentos teóricos, como o da teoria da
enunciação e da análise do discurso. Em síntese, vejamos a sua compreensão sob os
diferentes fundamentos que sustentaram as discussões sobre a linguagem, na década de 1970.
Pelo que podemos concluir, a sociolingüística, a teoria da enunciação, e a
A.D, trabalhando com a exterioridade que envolve a linguagem, o fazem de
maneiras distintas. Na sociolingüística, trata-se de se visar a relação entre o
social e o lingüístico, através do reflexo, desde uma concepção mais
periférica do que seja refletir, até uma concepção mais abrangente
(competência comunicativa). Na teoria da enunciação trata-se da
determinação entre o funcional (enunciação), e o formal (enunciado). A
análise do Discurso procura estabelecer essa relação de forma mais
imanente, considerando as condições de produção (exterioridade, processo
histórico-social) como constitutivas do discurso. (Orlandi, 1979:47)
Dos pressupostos levantados, que impõem uma primazia da Análise do Discurso
sobre as demais correntes lingüísticos, Orlandi (1979:48) chama a atenção para a
Sociolingüístca e para os seus desdobramentos, que recobriram, segundo a autora, trabalhos
diversos, como: a etnografia da comunicação, a variação lingüística, a relação com a
linguagem, ou mesmo com a análise do discurso, entre outros. O contexto teórico
cumulativo, ao lado do momento histórico/político por que passou o Brasil, no começo da
década de 1980, se constituíram em aberturas suficientes para que surgissem, a partir da
própria academia, propostas diferenciadas de se trabalhar com a linguagem, enquanto objeto
de ensino.
Diferentemente dos anos de 1970, a abertura política, que já começou a dar sinais de
redemocratização do país, ainda no começo da década de 1980, abriu caminho para
perspectivas diferenciadas até mesmo para a ciência, que, até então, era feita na conveniência
do poder vigente, apesar das discussões que já vinham se levantando. O ponto de partida para
essas discussões foi, sobretudo, o ensino de língua materna centrado na gramática normativa.
Sendo esse o ponto de partida, e por que não dizer o ponto de desconstrução, a discussão
passou a se travar em torno de propostas de trabalho além das estruturas.
Em Possentti (1996:8) pode-se ver, de forma muito sucinta, mas explicitadora, a
materialização do que já era ponto de convergência ou de divergência na academia. Segundo
o autor, a inauguração de um bacharelado em Lingüística abriu uma questão. Através desse
novo espaço proposto pela academia, passou-se a discutir a necessidade de uma disciplina
que tratasse do ensino de gramática normativa. Essa discussão surgiu em função da
possibilidade de se ensinar gramática a partir de outras teorias mais sofisticadas. Mas, ainda
segundo o autor, ela já chegou superada, pois já havia um entendimento de que ensinar
gramática e ensinar língua se constituíam em coisas distintas, sendo esse último o
aprendizado necessário, já que ensinar gramática tradicional se constituía em algo inútil. Se a
gramática tradicional se constituía em algo inútil, outros modelos de gramática cairiam na
mesma inutilidade.
Dada a necessidade de ruptura com o modelo de ensino da língua materna, sustentada
na pedagogia crítico-social dos conteúdos, foram levantados os conceitos-chave que
deveriam orientar uma proposta de trabalho. O ensino da gramática passou, então, a ocupar
lugar de discussão, não de forma isolada, mas juntamente com a leitura e com a escrita. Esses
conceitos é que deveriam se constituir em elementos de ensino, ao longo do processo de
escolarização. Cabe ressaltar, também, que a oralidade, que foi levantada por Preti, mas que
nunca, de fato, havia sido objeto dessa discussão, passou a ocupar espaço no contexto.
Baseada nas diferentes correntes lingüísticas, aquelas às quais já fizemos referência, ou
mesmo naquelas que buscaram fundamentos nos aspectos cognitivos da linguagem, também
em discussão no momento, as orientações teórico/metodológicas que sustentariam o ensino
de língua materna além do que se fazia antes, emergiram como uma nova perspectiva
O contexto político ao qual fizemos referência, anteriormente, e o contexto teórico
que acabamos de levantar, mesmo que de forma sumária, são suficientes para se entender os
procedimentos para o ensino de língua materna, em nível institucional. O primeiro que
gostaríamos de destacar são as diretrizes propostas pelo MEC, em 1986. Uma comissão
nomeada pelo então presidente da república, José Sarney, formada por pesquisadores de
diferentes correntes lingüísticas deveria propor diretrizes para o ensino de língua materna.
Cabe ressaltar que essas diretrizes continham encaminhamentos não só para a produção de
conhecimento, mas também para outras questões que a comissão julgou necessárias de serem
consideradas, já que elas poderiam influenciar no processo. Dentre elas, destaca-se um plano
de valorização do magistério. Interessa-nos destacar, dessas diretrizes, as propostas de
trabalho com a língua materna.
Visando ao processo de democratização do saber, visando, também, à possibilidade
de que todos tivessem acesso à cultura, o documento, depois de reconhecer as variedades
lingüísticas como um fato, que é originado da estratificação social a que o país sempre esteve
submetido, a comissão sugere que é tarefa fundamental da escola conduzir os alunos ao
domínio da língua de cultura. Por língua de cultura entende-se, segundo o documento, aquela
que é originada da norma padrão. Mas o próprio documento tem o cuidado de ressaltar que
não se trata de solapar a variedade sócio/histórica na qual os alunos foram constituídos.
Trata-se, portanto, de um documento que supôs a variante do aluno como legítima, cabendo à
escola apenas acrescentar-lhe a norma culta. Fazendo menção das classes sociais que, antes,
não tinham acesso à escola, e que, pelas exigências políticas e econômicas, passaram a ter
acesso, fazendo menção, também, das variantes lingüísticas da nova comunidade escolar, e
ainda das correntes lingüísticas que estudaram a questão, a comissão afirma que:
(...) esses estudos e pesquisas ainda não beneficiaram o ensino da língua,
que tem desconhecido a existência e legitimidade das variedades
lingüísticas, e não tem sabido reconhecer que seu objetivo último é
proporcionar às novas camadas sociais, hoje presentes na escola, a
aquisição da língua de cultura, cujo domínio se soma ao domínio das
variedades naturalmente adquiridas. (Diretrizes, 1986:2)
Mediante a posição de reconhecimento das variedades lingüísticas, coube à
comissão supor a forma como deveria se dar o processo ensino/aprendizagem sem, contudo,
orientar pressupostos teóricos. O que houve foram pressupostos metodológicos, que
sugeriram para o então primeiro grau, hoje ensino fundamental, que o ensino da língua
materna deveria ocorrer fundamentado em três práticas, que seriam: a prática de leitura de
textos, a prática de produção de textos, a prática de análise lingüística.
O tripé proposto pela comissão atenderia aos dois princípios básicos que
deveriam ser alcançados, que são: para quem ensinamos e para que ensinamos. É da busca
desses objetivos que deveria emergir a forma como se ensina. Esse tripé contemplaria o que
fosse necessário para alcançar a língua de cultura. Nele estão contidos: a leitura como
processo de interação intersubjetiva, a produção de texto nas suas diferentes formas de
representação, como a oral e a escrita, e a prática de análise lingüística, que deveria cobrir os
aspectos gramaticais necessários ao processo de aquisição da língua de cultura.
As diretrizes para o aperfeiçoamento da língua portuguesa que sustentariam as
tendências em construção do trabalho com a língua portuguesa abriram a discussão do ensino
de língua para além do poder central. Os estados também fizeram propostas pedagógicas que
teriam a intenção de colocar em evidência, de forma particularizada, as discussões que
estavam ocorrendo na academia. Marinho (2000) faz uma leitura atenta de várias dessas
propostas, na intenção não só de descobrir os percalços que permearam a produção dos
documentos, como também os pressupostos de sustentação de cada uma dessas produções, e
o que houve de positivo no seu conjunto. Conforme já se considerou, anteriormente, a
Lingüística contemporânea tem apresentado tendências além das que sempre sustentaram o
trabalho com a linguagem, baseadas em aspectos sociais e políticos. Segundo Marinho (2000:
40), trata-se de uma complexa interdisciplinaridade, marcada pela lingüística textual, pela
pragmática, pelas teorias enunciativas, pelo interacionismo vygotskiano e pelo
construtivismo, através da qual os currículos contemporâneos têm proposto um novo terreno
epistemológico.
Visando a compreender o que foi proposto para o fim da década de 1980 e o
começo da década de 1990, Marinho faz um levantamento das abordagens curriculares em
alguns documentos produzidos, a partir dos conceitos por eles tratados. Sem querer limitar o
olhar a um único leitor das propostas produzidas na década de 1980, mas, ao mesmo tempo,
limitando esse olhar, por entender que ele se ancora em fundamentos teóricos sustentáveis,
tomaremos esse levantamento da autora em apreço, com a intenção, entre outras, de se
entender, pelo menos institucionalmente, o que se considerou necessário fazer para alcançar
os objetivos que estavam sendo propostos. Indo além de uma proposta que ultrapasse a
gramática por ela mesma, já se pode antecipar que todos os documentos analisados
respondem a essa questão de forma homogênea. Ou seja, todos eles trataram dela de forma a
deixar claro que a gramática por si só já se constituía em um trabalho inútil, conforme
consideração tomada em Possenti (1996). A partir de alguns conceitos apresentados sob a
forma de duplos, presentes em todos os documentos, a autora busca os conceitos que
deveriam sustentar uma proposta de trabalho com a linguagem com base nas teorias
lingüísticas em evidência.
Os primeiros conceitos levantados são o de língua e de gramática. Grosso modo,
a autora concluiu que, para o trato desses conceitos, houve uma dificuldade de propor um
trabalho conjunto de regras para o padrão lingüístico considerado melhor pela sociedade e
uma perspectiva que busque as regularidades da língua em seu processo histórico, social e
pragmático. Em síntese, embora houvesse um interesse em romper com os conceitos acima
referenciados, da forma como eles sempre foram apresentados, há uma dubiedade constante
quando se transita neles, ocorrendo, na maioria das vezes, uma dicotomia entre língua e
gramática. Isso se deu, por exemplo, quando a análise lingüística se limitou a procurar
problemas de ordem gramatical nos textos, tornando o processo dissociado dos principais
objetivos a serem alcançados, que seriam um trabalho com a linguagem, a partir da variedade
lingüística a que a comunidade escolar estava submetida e o sentido da ruptura com as regras
gramaticais.
Outro duplo que foi concebido como elemento de currículo foram a leitura e a
escrita. A autora considera que se tratou de questão polêmica, já que, no contexto dos
documentos analisados, reconhecer o papel da escola na formação do leitor e do escritor
significou, na maioria deles, busca de estratégias de formação de habilidades no manejo do
texto, através de orientações para o trabalho de interpretação. Ou seja, ler e escrever, nos
documentos, não iriam além desses processos por eles mesmos. Outra questão, no que se
refere ao ato de ler, diz respeito ao entendimento de leitura como prazer. Para Marinho, a
questão, vista sob essa perspectiva, significa uma falta de entendimento do processo como
atividade cognoscente. Houve, ainda, uma outra questão pendente, no que se refere à leitura e
a escritura, que diz respeito à noção de gênero. Nos currículos analisados, a questão se traduz
por uma lista de tipos de texto que circulam na sociedade, sem que se explicitasse que função
social comunicativa cumpririam na escola.
Mas nem tudo são incongruências. Há documentos em que o processo de leitura
e de escrita pode ser visto sob outra compreensão. Há currículos que sugeriram tais atividades
voltadas para a sistematização da organização do conhecimento escolar, através de objetivos
de leitura, numa perspectiva de pesquisa. Dessa forma, não se pode considerar a escrita como
uma mera atividade de redação escolar, mas como constitutiva do trabalho de construção e de
apropriação do conhecimento.
Os documentos curriculares que supuseram a produção de conhecimento a partir
dos fundamentos até aqui levantados não deixariam de fora a relação língua oral/língua
escrita, ancorado, sobretudo, na questão da variação lingüística. Sendo esses elementos
considerados em todos os documentos, resta saber a forma como a questão é ressaltada pela
autora. Para Marinho, da mesma forma como os conceitos se estabeleceram de forma
confusa, com esses não seria diferente. Levantaremos, então, as dificuldades consideradas
pela autora, tendo em vista as dicotomias que os documentos apontam. Para início, buscou-se
a polarização que existe entre o dialeto padrão e o dialeto popular. Desse desdobramento
ocorre a consideração de que dialeto padrão e escrita são sinônimos, enquanto a oralidade
acontece de formas variadas. Nesse entendimento, então, o dialeto de origem das crianças
passa a ser o ponto de partida, que precisa ser substituído pelo dialeto padrão, para se chegar
às reais condições de língua escrita. Para a autora, o que se faz necessário propor é um
trabalho com as variedades dialetais e não partir de uma para se chegar a outra.
Da dicotomia entre leitura e escrita ocorre o problema básico da questão. Desse
conflito emergiria uma concepção de língua baseada em manifestações distintas que poderia
ser considerada como representação da oralidade, e a oralidade como representação da
escrita, o que implica uma busca das mesmas habilidades para as situações de leitura e de
escrita. Mas a autora ressalta que há também as propostas que entendem o processo de forma
a estabelecer a aproximação entre os mesmos, buscando a diferença entre um e outro.
Em meio a esse universo ambíguo de conceitos teóricos para a leitura e para a
escrita, relacionado com a variação lingüística, há aqueles que supõem a questão, colocando
essas duas manifestações de linguagem em contraponto. Trata-se daqueles, segundo a autora,
que compreendem a realidade da oralidade com a escrita de forma a entender que a escrita vai
ganhando autonomia, na medida em que vai ganhando uma finalidade comunicativa.
Apesar dos atropelos teórico/metodológicos levantados nos documentos, a leitura
de Marinho (2000:84) perpassa a idéia de que o trabalho com a linguagem, enquanto objeto
de ensino, a partir do entendimento do que seja língua e gramática, variação lingüística e
concepções de texto, indica que essa seria uma discussão que deveria orientar o ensino de
língua materna. Tratou se de uma ruptura marcada, mas, para a autora, ainda, os documentos
puderam ser entendidos apenas como uma declaração de intenções de se construir uma
proposta de ensino/aprendizagem da escrita, fundamentada numa concepção discursiva e
pragmática da linguagem, do que uma realização de fato, desses propósitos.
Nossa intenção de buscar compreender esse momento teórico da Lingüística, na
década de 1980, e até antes dela, foi o de colocar em evidência uma tendência que já estava
ocorrendo, antes de os PCNEFs serem propostos. Isso implica que uma proposta de ruptura já
vinha sendo construída, aliás, com bastante ênfase entre os professores de língua portuguesa.
2.4 Algumas leituras dos PCNEFs de Língua Portuguesa
Antes de nos atermos aos pressupostos da análise do discurso de orientação
francesa, gostaríamos de nos antecipar em um pressuposto básico dessa corrente do
discurso. Trata-se, do entendimento do que é a sua base de orientação, que é a leitura
como processo discursivo. Essa compreensão implica a possibilidade de se considerar o
enunciado em sua natureza polissêmica, ou seja, nele circulam sentidos diferenciados, que
devem ser construídos na interlocução. Pela razão referenciada, a leitura não é tida como
um ato interpretativo, mas como efeito de sentidos, tendo o espaço enunciativo como o
lugar em que o discurso se constrói. É por essa compreensão do processo que se pode
produzir diferentes sentidos para um mesmo enunciado, a partir das formações discursivas
nas quais os sujeitos leitores são constituídos.
Antes de nos voltarmos para a descrição do corpus de análise, levantaremos algumas
leituras que foram feitas dos PCNEFs de Língua Portuguesa, sob olhares diferenciados.
Tomaremos a questão sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar, apontaremos em nossa
leitura aqueles que viram, no documento, uma confirmação do que já vinha ocorrendo no
trabalho com a linguagem, enquanto objeto de ensino, portanto, consideraram que ele foi
apenas a sistematização de um processo, em forma de parâmetros. Se o que já vinha
ocorrendo teve a intenção de romper com uma proposta que visava ao meramente formal
da língua, para alguns, eles se constituíram em um avanço.
Em segundo lugar, apontaremos, em nossa leitura, aqueles que viram, no documento,
apenas a confirmação de um currículo feito para atender ao princípio das reformas a que o
Estado estava se submetendo, portanto, idealizado para atender aos interesses políticos e
econômicos, logo, aos meios de produção. Trata-se de leituras que buscaram os percalços
que o documento aponta, muito mais do que uma confirmação dos conceitos que podem
significar avanços.
É claro que não temos a pretensão de esgotar todas os olhares que foram lançados sobre o
documento. Isso nos isenta da responsabilidade de uma revisão bibliográfica que abranja
todas as leituras. Nessa perspectiva, então, mostraremos alguns sentidos, constituídos a
partir de formações discursivas que se aproximam ou que se distanciam, supondo leituras
diferenciadas para o mesmo enunciado. Portanto, tomaremos alguns autores que se
propuseram a debruçar olhares sobre os PCNEFs de Língua Portuguesa, se posicionando
contra ou a favor do documento.
2.4.1 Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – olhares a favor.
Gostaríamos de começar o trajeto dos olhares a favor dos PCNEFs de Língua
Portuguesa a partir do entendimento sintético, mas objetivo, que Costa (2003: 57) faz do
documento. Para o autor, ele se constituiu em um grande avanço, já que provocou uma
quebra no ensino tradicional de Língua Portuguesa, que sempre foi de efeito
predominantemente normativo. Para entendermos o que significou esse processo,
gostaríamos de tomar, em primeiro lugar, a opinião de Rojo (2000:27), que também
sintetiza a opinião de quem considerou o documento um avanço. A autora se junta a outras
tantas opiniões para afirmar que os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino
fundamental representam considerável avanço nas políticas educacionais brasileiras de um
modo geral e, particularmente, para a disciplina Língua Portuguesa, já que ele supõe
práticas lingüísticas contra o iletrismo e a favor da cidadania crítica consciente.
A autora levanta as razões que a levaram a compreender o documento como um avanço.
Em primeiro lugar, está o fato de ele parametrizar referências nacionais para as práticas
educativas, que poderiam fomentar a reflexão sobre os currículos estaduais e municipais.
Esses parâmetros, por um lado, assegurariam uma aproximação da produção de
conhecimento em todo o território nacional, por outro lado, permitiria uma adequação às
necessidades culturais e políticas das diferentes regiões do país, o que permitiria a
elaboração de currículos plurais, originados, também, da pluralidade das vocações
regionais. Portanto, na intenção com que os PCNEFs foram produzidos, numa visão
centrado/descentrada, ele permitiria uma transposição didática dos princípios referencias
do documento para as práticas educativas, assegurando uma unidade nacional, que
sustentaria uma base nacional comum, ao lado das diversidades regionais.
Em segundo lugar, a autora considerou, também, que o documento seja um avanço em
relação aos conteúdos e às práticas supostas para esses conteúdos, que deverão se dar a
partir de dois eixos distintos, que são: o uso da linguagem, manifestado na leitura e na
produção de textos orais ou escritos, e na reflexão sobre a linguagem, materializado na
análise lingüística. Cada um desses eixos guarda aspectos diferenciados. O eixo do uso se
dá na perspectiva enunciativa, considerando a historicidade da língua, as implicações do
contexto em que os enunciados são produzidos e a sua relação com os gêneros textuais e
com os suportes de produção da linguagem. Esses eixos, na visão da autora, se constituem
em um aparato que a leva a concluir que, nos PCNEFs de Língua Portuguesa, o que pode
ser visto como unidade de ensino são os gêneros textuais e, como objeto de ensino, o
texto.
Em outra produção, segundo Rojo (2002:33), o trabalho com a linguagem, suposto sob a
perspectiva acima, está relacionado às manifestações do individual e do social, logo,
relacionado aos contextos de uso. Esse aparato teórico/metodológico levantado pela autora
deverá convergir para a formação de um leitor/produtor de texto, que deverá se
transformar em um usuário eficaz e competente da linguagem escrita, imerso em práticas
sociais e em atividades de linguagens letradas.
Retomando Costa (2002:72), para esse autor, os conteúdos, para serem
ministrados, devem ser organizados e distribuídos sob a perspectiva da noção de
progressão, aliada à noção de gênero discursivo. Isso implica considerar, tomando por
base os pressupostos de Dolz e de Schnewly, a complexificação dos gêneros, que
organizam o currículo em uma progressão discursiva em que todos os tipos de texto
devem ser construídos em suas formas concretas, das mais primitivas e simples para as
mais complexas e tardias
Por fim, em acordo, também, é a posição de Antunes (2003) a respeito dos PCNEFs de
Língua Portuguesa, que confirma o significado do documento nas perspectivas dos outros
autores. Para a autora, que considerou os dois grandes eixos levantados por Rojo, os
PCNEFs de Língua Portuguesa legitimam concepções que privilegiam a dimensão
interacional e discursiva e definem o domínio dessa língua como uma das condições para
a plena participação do indivíduo em seu meio social.
Do que se considerou, centrado nos olhares a favor do documento, o que se pode concluir
é que houve um diálogo com o mesmo, direcionando um entendimento de que ele se
constitui em um avanço. Esse avanço se deu em função de ele estar sustentado em
pressupostos teóricos das correntes lingüísticas que supõem a produção de conhecimento
em linguagem, além da estrutura gramatical, com base na oralidade e na escrita, na leitura
e na reflexão sobre a língua, tendo o discurso, o texto e o gênero textual como objetos
integrados ao ensino. Outro pressuposto que se evidenciou para o ensino, nessas leituras,
foi a noção de progressão discursiva. Esse conjunto de elementos caracterizadores da
aprendizagem da língua materna por alguns olhares, seriam necessários para a vida em
sociedade do cidadão.
2.4.2 Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – olhares em
confronto
Se os olhares a favor dos PCNEFs de Língua Portuguesa transitaram quase que em
uma linha única de abordagem, considerando o avanço que os documentos significaram, o
mesmo não acontece com quem desconfiou de que poderia vê-lo sob pontos de vistas
diferenciados. Os olhares poderão, em alguns pontos, até convergir, mas as travessias se
divergem, fazendo a diferença. Iniciaremos nossa leitura sob esse ponto de vista pela
posição de Suassuna (1998). A autora, depois de historicizar a forma como os PCNEFs
foram elaborados, considerando não só o passo a passo da construção do documento, os
atropelos das etapas que deveriam ser seguidas, mas também o significado político de todo
o processo, faz uma avaliação condensada, porém tensa do documento.
Expostas as suas condições de produção, por um lado, ela faz um quadro sinóptico
dos conceitos que devem ser transportados, didaticamente, para o ensino, dos aspectos
sócio/políticos que envolvem o documento, e os aspectos formais. Por outro lado, ela faz
uma leitura de como foi constituído o ethos, na perspectiva do outro imaginário para a
leitura do documento, no caso em apreço, o professor. Para que se tenha o entendimento
do seu olhar, tomaremos os quadros sinópticos propostos. Eles denotam não só um
confronto com os PCNEFs de Língua Portuguesa, mas também com qualquer
entendimento que se pode ter das propostas para a o ensino de língua materna como um
avanço. Tomaremos, em primeiro lugar, a síntese dos conceitos supostos pelos PCNEFs e
o significado dos conteúdos que deverão ser desenvolvidos ao longo do ensino
fundamental :
Conceito Visão segundo os PCNs
Língua Código estático, homogêneo, acabado, transparente,
instrumento de comunicação eficaz e exterior ao
indivíduo.
Discurso Produto da atividade discursiva: não há noção de processo
ou de historicidade.
Texto Concepção derivada da visão de língua como código:
entidade escrita e verbal.
Dialeto Variedade regional da língua, visão superficial da variação
lingüística e seus fatores; negação do conflito lingüístico,
substituição das noções de certo e de errado por adequado e
inadequado.
Uso da
língua
Competência vinculada à escola, adequação eficácia e
eficiência como metas absolutizadas.
Literatura Abordagem meramente conceitual, centrada na forma do
texto literário, sem nenhum tipo de desdobramento
metodológico.
Leitura Visão utilitarista: ler para saber o que escrever e como
escrever; sacralização do livro e do leitor.
Gramática Confusão com ortografia; limita-se ao trato de questões que
representam dificuldade para a escrita.
Língua oral e
língua escrita.
Confusão conceitual e tipológica, divisão estanque.
Os aspectos conceituais e político/sociais, por sua vez, se sustentam em princípios que
denotam as condições de produção do documento, que se deram em um processo de
reforma da educação, que seriam, na verdade, para atender à reforma do Estado. No que se
refere aos aspectos formais, a autora assume uma posição de que se trata de um
documento cuja organização denota muito mais a pressa com que ele foi produzido do que
uma necessidade de se adotar outra postura teórica para o ensino de linguagem.
Por fim, no que se refere à interlocução, tendo o professor como o leitor por
excelência do texto, depois de fazer considerações sobre a leitura, a partir do ponto de
vista discursivo, Suassuna (1998) supõe a forma como o professor deverá entender a
escola no contexto. Vejamos:
Objetivam uma padronização da escola e das práticas que se dão dentro dela;
Têm, na previsibilidade, uma de suas mais evidentes marcas;
Não apresentam a síntese de um amplo diálogo nacional;
Colocam-se como uma verdade cristalizada, sem a retomada da memória do passado”;
Desqualificam o professor como um interlocutor privilegiado;
Congelam língua, texto e discurso, e fazem da leitura um processo não dialógico, mas de
mera decodificação que implica a aceitação passiva de suas referências.
Os pontos levantados pela autora sugerem que se trata de um documento
engessado em princípios, tanto teóricos quanto metodológicos, que desconsideram os
aspectos reais de ruptura com o processo de ensino de Língua Portuguesa que já estavam
sendo construídos.
Outra crítica feita aos PCNEFs de Língua Portuguesa é a de Santos (2004). A autora,
depois de considerar seus aspectos positivos, a partir dos mesmos pontos de vista dos
leitores que o consideraram um avanço, abre uma crítica direta e, segundo ela,
inquestionável, a respeito da estrutura do texto e dos conceitos, por vezes mesclando
linhas teóricas diferenciadas. Ela chama a atenção para esse último aspecto no qual há um
predomínio das teorias ligadas ao texto, como análise do discurso, lingüística textual,
juntamente com conceitos abarcados pela Sociolingüística, por exemplo. Essa confluência
de teorias diferentes poderia causar problemas para um professor com uma formação
precária em Lingüística. Como se percebe, apesar de a crítica da autora estar voltada para
uma mescla de teorias, a sua leitura parece se preocupar com as possíveis condições de
produção de sentido, logo, com o leitor presumido, na sua condição de falta, ou
desconhecedor dos conceitos circulantes no documento.
Dando prosseguimento à nossa busca por olhares em confronto com os PCNEFs de
Língua Portuguesa, nos remeteremos a Marinho (2001). A autora, em uma leitura que
cobre os documentos do primeiro e do segundo ciclo do ensinou fundamental, busca, de
certa forma, entender as contradições que permeiam esse documento. Podemos buscar a
leitura de Marinho em confronto com os PCNEFs de Língua Portuguesa em dois lugares
distintos. A primeira crítica da autora paira sobre um conceito que permeia não só o
documento de Língua Portuguesa, mas todos os documentos, tanto em nível de ensino
fundamental como em nível de ensino médio. Trata-se do pressuposto básico, que é a
noção de competência, já discutida enquanto fundamento de currículo. Essa noção deverá
sustentar os conceitos que devem fundamentar a prática de linguagem, materializada nos
conteúdos lingüístico e social.
Os conteúdos, baseados no pressuposto das competências, se ajustam à concepção de
produtividade e de controle, relacionados, entre outras coisas, ao progresso da sociedade.
Trata-se, portanto, de uma relação direta da produção de conhecimento com a produção de
riqueza. A crítica feita a esse conceito é que a escola ganha um caráter de redentora, e a
linguagem cumpre um papel especial, que seria o de instrumentalizar o aluno para o
exercício da cidadania, esquecendo-se do jogo político que envolve o discurso e a
linguagem, inclusive no processo de interação.
Já a segunda crítica feita por Marinho perpassa a estrutura do documento, o que implicou
uma leitura das notas de rodapé e das referências bibliográficas, constantes do enunciado.
Em primeiro lugar, gostaríamos de destacar as notas de rodapé e o seu significado no
contexto. Depois de reconhecer esse recurso não só como válido, mas, sobretudo, como de
natureza ideológica, vem a indagação do que ele significa em documentos oficiais, no caso
em apreço, os PCNs. A autora supõe pelo menos duas justificativas. A primeira diz
respeito ao leitor imaginado, que está representado nele. Isso implica que as notas de
rodapé, que são consideradas elemento periférico, podem e devem ser consideradas uma
entrada para o corpo do texto, logo, parte dele, também. Já a segunda justificativa diz
respeito ao lugar de origem do discurso, que é institucional, que tem por meta orientar o
fazer pedagógico, baseado em pressupostos nos quais os novos referenciais teóricos
concorrem com práticas tradicionais de ensino de língua portuguesa, que impedem a
formação do cidadão. Agrupando as notas em duas formas diferenciadas, a autora as
considera sob dois pontos de vista, que são a metalinguagem e/ou a metadiscursiva e a
argumentativa e ou a pragmático/discursiva.
Se Marinho abriu indagação a respeito das notas de rodapé em um documento oficial, que
apenas deveria subsidiar a produção de conhecimento escolar, é essa indagação que se
constitui no lugar tenso, que abre espaço para um olhar conflitante, ou seja, o que significa
lançar mão desses recursos de natureza discursivo/ideológica nesses documentos? No
olhar ligeiro e objetivo da autora, que supõe um leitor, no caso em apreço, o professor, e
uma forma determinada de leitura, em um determinado contexto, é que se nota o
confronto. Trata-se de uma produção endereçada a um leitor carente de conhecimento para
a compreensão dos conteúdos. Em síntese, o documento, através desses recursos
periféricos, conduz, para dentro do enunciado, o leitor imaginário, caracterizado por uma
formação precária, que precisa ser conduzido no processo de leitura. Isso implica que as
notas de rodapé são um discurso controlador do leitor, que se constitui em inculcação
ideológica
Indo além da crítica que se faz às notas de rodapé e da relação desse recurso enunciativo
com o interlocutor, a autora busca compreender as vozes que permeiam esse espaço, que é
marcado pela contradição. Essa contradição se explicita, sobretudo, nas notas
argumentativas, que se organizam de forma ambígua, já que nelas, tanto pode haver
espaço para discurso científico acadêmico como pode haver, também, espaço para o
apagamento dessas vozes, o que levaria a autoria do documento a assumir um discurso.
No que se refere ao discurso acadêmico, creditado à voz da ciência, gostaríamos de
destacar uma questão que a autora acha inconveniente para um documento que tem como
objetivo ser apenas parâmetro para a educação. Trata-se dos conceitos que o permeiam,
em detrimento de outros conceitos. Eles se constituem em um enunciado de dupla face.
Se, por um lado, eles podem significar uma relação direta com o leitor, trazendo-o para o
enunciado, por outro lado, por todos os conceitos que atravessam as notas de rodapé, o
que há é uma “salada ou geléia geral”, que é decorrente da condição de produção do
documento, já que um grupo, originado de instituições e de comunidades discursivas
diferentes, tem de negociar sentidos e estratégias, num quadro de expectativas e pressões
sócio/políticas.
Conforme considerações anteriores, Marinho (2001) passou, também, pelas referências
bibliográficas. Mas, antes de captar o seu olhar sobre os PCNEFs de Língua Portuguesa no
que se refere a essa questão, faz-se necessário compreender o que significa essa relação
com a organização do enunciado. Grosso modo, tal como as notas de rodapé, as
referências bibliográficas também se constituem em elemento periférico do enunciado,
portanto, relacionado ao sentido, se constituindo em um mapa para o leitor. Mas cabe
avaliar que, se há um descompasso entre o enunciado e a bibliografia, segundo a autora,
ocorre uma inundação do que se considera periférico, no caso em apreço, as referências
bibliográficas no enunciado, produzindo uma desarticulação entre o texto e as referências.
Esse efeito de inundação, segundo Marinho, nos PCNEFs de Língua Portuguesa, é o
resultado de aproximação de teorias que têm produzido um movimento diferenciado do
discurso pedagógico para Língua Portuguesa, oficializando as “novas” tendências para o
ensino da disciplina, através, muitas vezes, de teorias que se rejeitam. Isso confirma a
metáfora da salada ou da geléia geral para se referir aos conceitos teóricos, manifestada
nas notas de rodapé.
Não poderíamos deixar de levantar, do texto de Marinho, ainda considerando as
referências bibliográficas, seu olhar intrigante sobre a forma como a natureza política da
língua se dilui no enunciado, que representa o discurso oficial. Segundo a autora, embora
os conceitos nele existentes se aliem ao aprendizado da norma culta como condição
automática para a constituição da cidadania, não se reconhece o conteúdo político ou a
variedade que, supostamente, levaria a essa cidadania. O olhar da autora também não se
desapercebe da competência lingüística ou discursivo/textual para a garantia da
constituição de sujeitos plenos de direito. Essas questões levantadas pela autora, apagadas
nas leituras das referências bibliográficas, denotam uma dissociação dos fatos sociais e
aspectos políticos das gramáticas. Isso confirma que, de fato, há uma preocupação com
colocar para o jogo da discussão as novas tendências lingüísticas, tendo, também, como
alvo o leitor imaginário e o aluno como um aprendiz de uma determinada norma da língua
para o exercício da cidadania.
Por fim, interessante, também, é a leitura de Berenblum (2003) a respeito dos PCNEFs de
Língua Portuguesa. Diferentemente das outras leituras, a autora vai traçando um paralelo
entre o que ela considera positivo e negativo para a disciplina. Em primeiro lugar, ela
considera de caráter positivo o entendimento da língua como sistema de signos histórico e
social, sendo esses elementos os responsáveis pelo sentido. Isso implica algo que vai além
do domínio do código, implica, portanto, a apropriação e a construção de formas
particulares de entender e de conceber o mundo, tendo como ponto de partida a variação
lingüística, que supõe, também, as formas particulares de entender a realidade. Mas,
apesar dessa compreensão que se pode ter dos PCNEFs de Língua Portuguesa, a forma
como ela é abordada se constitui em um problema. Considerando a língua e a sua relação
com os aspectos históricos e sociais, o documento apresenta uma visão não só linear da
questão, mas, sobretudo, perigosa.
A linearidade implica desconsiderar a complexidade que envolve o trabalho com a
linguagem, no que se refere à variação lingüística. Na visão da autora, esse processo
transcende apenas uma passagem para o uso desejável e eficaz da língua, o que levaria ao
uso das falas corretas. A autora vê com desconfiança essa proposta. Partindo do uso
possível, o documento sugere um único uso desejável, ou a norma de prestígio, sem,
contudo, explicitar esse uso. É essa a questão que se constitui no perigo, pois indica a
possibilidade de se compreender que se trata de uma proposta apenas de mudança
terminológica na qual se troca a fala correta por fala adequada.
Considerando o aspecto da língua em sua natureza variacionista, Berenblum chama a
atenção, criticamente, para o despojamento que os PCNEFs de Língua Portuguesa
apresentam, no que se refere às relações de poder, logo, aos conflitos que perpassam o
espaço da linguagem, sobretudo relacionados a variedade de prestígio. Isso implica deixar
de considerar as relações histórico/políticas que subjazem às variantes de uma língua,
portanto, deixando de considerar, também, a variedade de prestígio, indo ao encontro do
preconceito que o documento se propõem atacar, ou a valoração negativa das outras
variações.
Para concluir, a autora levanta uma contradição no interior do documento, no que se refere
à variedade lingüística e a sua consideração como um fato reconhecido. Embora tenha
deixado de abordar as relações de poder, o documento, por um lado, supõe o trabalho com
a linguagem de forma a rejeitar as diferenças, através de atividades que façam sentido para
o aluno, por outro lado, levando em consideração a noção de competência, supõe uma
aquisição progressiva de competências que possibilitem ao aluno resolver problemas da
vida cotidiana. Contraditoriamente, portanto, ao mesmo tempo em que a variante é dotada
de valor, ela já não é suficiente para o enfrentamento do dia-a-dia.
Até aqui, nossas leituras têm perpassado críticas, considerando aspectos teóricos e
ideológicos que atravessam o fio do enunciado, sem, contudo, abordar conceitos que se
explicitam no documento. Mas isso não significa que todos os olhares passaram distantes
dessa questão. Em Brait (2000: 22), depois de um percurso do que significa a concepção
de gênero discursivo, tomada em Bakhtin, a autora assume uma posição de confronto entre
os PCNEFs de Língua Portuguesa e a noção de gênero tomado do autor referido. Em suas
palavras, os PCNs, encerrando o trabalho com o texto em modelos preestabelecidos,
afastam-se das propostas do dialogismo bakhtiniano, diante do texto, do discurso, da
vida, do conhecimento. Ainda que as formas escolhidas para o ensino e a aprendizagem
tenham como fonte, entre outras, o pensamento bakhtiniano, a restrição impede um
trabalho mais aberto e histórico com os textos e com os seus leitores.
Se Brait sugere um distanciamento entre os conceitos de gênero discursivo, originados do
pensamento bakhtiniano, e aqueles que perpassam os PCNEFs de Língua Portuguesa,
Marinho (2003), por sua vez, só confirma essa posição, no seu estudo crítico sobre as
notas de rodapé e sobre as referências bibliográficas. Para a autora, não é a Bakhtin que se
podem ser tributadas as noções de gêneros que perpassam os PCNEFs.
Alguns olhares, algumas leituras, mesmo aquelas por onde caminhamos, não nos
permitiram esgotar a questão. São registros que se conformam ou que se confrontam,
fazendo emergir efeitos de sentido que se distinguem, capazes de denotar, a todo instante,
o quanto o universo discursivo, configurado na natureza polifônica da linguagem, é capaz
de lhe imprimir um caráter polissêmico, sem, contudo, perder de vista o ponto de partida.
É nessa confiança que também penetraremos no universo discursivo dos PCNEFs de
Língua Portuguesa, tendo como suporte um quadro sócio/histórico/político e as
concepções lingüístico-discursivas da AD.
Em síntese, se, no capítulo anterior, fizemos uma abordagem, tendo em vista a
compreensão dos elementos histórico/políticos que foram capazes de denotar a forma de
instituição do poder e a sua forma de abstração, neste capítulo, a sua dispersão conciliou
uma reflexão sobre a educação, ao longo da modernidade, tendo em vista considerar a
relação que a produção de conhecimento estabeleceu com o modo de produção capitalista.
Isso implicou uma compreensão do sentido que o trabalho passou a ter no contexto
histórico. Essa dispersão, que começou por considerar o sentido que o currículo
incorporou, em toda a modernidade, o sentido que a reforma da educação no Brasil teve,
tendo em vista a concretização de uma reforma do Estado, o sentido do ensino de
linguagem antes de os PCNs serem implementados, convergiu para leituras feitas a favor
do documento e para leituras feitas contra ele, supondo, de uma forma ou de outra,
pressupostos relacionados ao poder instituído.
As discussões levantados, até aqui, poderão nos auxiliar, em pontos diferenciados da
análise, a responder à nossa pergunta de investigação, ou até mesmo a confirmar alguns
pressupostos. Por esse capítulo, juntamente com o anterior, reunimos elementos teóricos
de base histórico/políticas que nos ajudarão na análise, podendo nos subsidiar na
compreensão de que o currículo é um lugar de poder, de determinação histórica, de
segregação. Por ele, portanto, pode-se considerar a relação do documento com o projeto
do governo FHC
CAPÍTULO III
3.0 Fundamentos teóricos: base lingüístico/discursiva
Neste capítulo, discutiremos os fundamentos teóricos lingüísticos e discursivos em
que se sustenta a corrente francesa de análise do discurso AD, que, juntamente com os
fundamentos sócio/histórico/políticos, expostos no capítulo I, nos servirão de base para a
análise do corpus, tendo em vista a comprovação da hipótese levantada. Nele, portanto,
levantaremos os pressupostos dessa tendência de estudos da linguagem e o seu marco
fundador, que foi a ruptura com o processo de leitura enquanto interpretação, o que proporia
a questão sob o ponto de vista do sujeito, da história e da ideologia. Para iniciarmos a
discussão proposta, nos remeteremos para Santos e as suas considerações sobre o que seja
ciência na contemporaneidade. A propósito dessa questão, o autor afirma:
De meados do século XIX até hoje, a ciência adquiriu tal hegemonia no
pensamento ocidental e passou a ser socialmente reconhecida pelas
virtualidades instrumentais da sua racionalidade, ou seja, pelo
desenvolvimento tecnológico que tornou possível. (...). A necessidade da
reflexão epistemológica, neste período é, pois, a de mostrar, ainda que de
forma ínvia e mistificatória, que, num processo histórico de hegemonia
científica, as conseqüências são as únicas causas da ciência e que, se é nelas
que se deve procurar a justificação desta, é nelas também que se devem
procurar os limites da justificação. (...). Assim concebida, a reflexão
converte-se numa epistemologia pragmática ou, talvez melhor, uma
pragmática epistemológica. (...). (Santos 1999:28-29).
Na concepção do autor, o modo de lidar com a ciência a partir de meados do século
IX até hoje, afasta-a do seu objetivo, que é o de democratizar e aprofundar a sabedoria
prática, a phronesis (a práxis), o hábito de decidir bem, enfim, ele a destitui das relações do
homem com os outros homens e as suas necessidades para ser transportada para as demandas
prementes. Retomando a questão também a partir da reflexão de Pêcheux (1997:190), a
propósito do discurso científico, para o autor, trata-se de um processo histórico determinado,
em última instância pela própria produção econômica.
O abalo da ciência moderna, na história recente, coincidiu com o que tem
caracterizado a ciência, nas últimas décadas, e a sua relação com o mundo produtivo, cujo
ponto de estrangulamento começou a se dar depois da segunda guerra mundial. No que se
refere à Lingüística, o estruturalismo descritivista saussuriano, desenvolvido na primeira
metade do século XX, foi dando lugar ao descritivismo empiricista e comportamentalista,
iniciado por Bloomfield e aprimorado por muitos de seus seguidores. Cabe ressaltar que o
modo de descrever a língua, originário do constructo teórico proposto, não supôs nenhuma
relação com o sentido exterior. Segundo Kristeva (1969:274), citando Benveniste, o
estruturalismo americano segmenta o todo em elementos constitutivos e define cada um dos
seus elementos pelo lugar que ocupa no todo, pelas variações e pelas substituições possíveis
nesse mesmo lugar.
A compreensão da linguagem, fundamentada
nesse contexto histórico estruturalista, colocou
a Lingüística ao lado das demais ciências,
principalmente as humanas, na condição de
disciplina de natureza instrumental. O
atrelamento da Lingüística às teorias calcadas
na lógica positivista levou Pêcheux a ter uma
compreensão crítica do problema, o que lhe
permitiu estabelecer uma ligação do discurso
científico com interesses econômicos, o que
implica que eles são, portanto, ideologicamente
produzidos.
Esta concepção aristotélica, se atribuindo de facto o monopólio do segundo
espaço (...) permanecia presa, mesmo através da sua inversão “proletária”, à
velha certeza elitista que pretende que as classes dominadas não inventam
jamais nada, porque elas estão muito absorvidas pela lógica do cotidiano:
no limite, os proletários, as massas, o povo teriam tal necessidade vital de
universos logicamente estabilizados que os jogos da ordem simbólica não
os concerniriam. (Pêcheux,1997:52).
O contexto teórico ao qual Pêcheux fez referência se impôs, segundo Courtine
(1981)
5
, pelo confronto entre a lógica formal, cujos interesses eram pesquisar universais
5
A referência a Courtine é a revista Langages, nº 62, de 1981, e foi feita a partir de uma tradução do professor
Sírio Possenti, ainda sem suporte de publicação. Essa é a razão por que não haverá indicação de página, todas
as vezes em que o autor for referenciado.
lingüísticos, fundar uma teoria gramatical e propor autonomia lingüística, e o sociologismo,
que sublinhava a variação e a mudança lingüística e propondo descrições empíricas, teve
como objeto o indivíduo lingüístico concreto. Cabe ressaltar que é nesse contexto que deverá
nascer a análise do discurso, aliás, segundo Maingueneau (1993:12), múltiplas análises do
discurso, que variam em função das disciplinas vizinhas em que se apoiam, ou mesmo da
forma como se aproximam de uma outra ciência. Dentre as múltiplas análises do discurso,
destacaremos a que surgiu na França, no fim da década de 1960, a AD, que marcou a sua
identidade, entre outras coisas, segundo Henry (1997:25), pela recusa à concepção de
linguagem reduzida a um instrumento de comunicação.
Essa corrente do discurso surgiu das inquietações de Jean Dubois e de Michel
Pêcheux. Segundo Maldidier (1997:18), essa ruptura com o caráter estrutural e instrumental
da língua originou de pelo menos duas necessidades prementes, que foram: o sentimento de
uma urgência teórico/política e a proposta de um modo de leitura para além do aparelho da
gramática, rompendo com a prática do comentário literário. E quando se fala em inquietação,
pode, ainda, ancorar-se na leitura de Maldidier (1997:17) para compreender as causas da
ruptura, marcada pelos dois teóricos referenciados. Para a autora, ambos atuaram em um
espaço comum, traçado pelo marxismo e pela política, partilhando idéias sobre as lutas de
classes, sobre a história e sobre o movimento social.
Para romper com um processo de leitura apenas interpretativo, que culminava com
uma análise de conteúdo, ou mesmo com uma análise de texto, restrito ao aspecto formal,
propôs-se uma análise de discurso que fosse além dessa natureza, ou seja, que buscasse a
aproximação com disciplinas que deveriam sustentar um processo de leitura, emergido das
condições de produção do discurso, portanto de natureza histórico/ideológica.
Considerando o caráter político e histórico que se pretendeu dar à questão, o que se
fez, então, foi uma proposta de leitura de arquivo, buscada em corpora de análise
determinados. Cabe, aqui, a necessidade de se entender o que a AD supõe como arquivo. O
conceito é tomado de Foucault que o sintetizou assim:
Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito, no grande murmúrio
confuso de um discurso, longe de ser apenas o que assegura a existência no
meio do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua
existência múltipla e os especifica em sua duração própria. (Foucault
1995:149).
Os pressupostos sócio/histórico/ideológicos, atrelados à Lingüística, fundaram o que
seria uma disciplina que teria como pressuposto básico desvendar o funcionamento da
linguagem, implicado no processo de leitura. Trata-se, segundo Courtine (1981), da
articulação da Lingüística e do marxismo como ciência da história das formações sociais e de
suas transformações. Ainda segundo Courtine, é desse imbricamento entre o lingüístico e o
histórico que emergem os efeitos de sentido. Isso implica que o sentido se constrói não só na
estrutura da língua, mas também na relação com o seu exterior, o que implica, também, que
ele só pode ser constituído nas relações interdiscursivas, ou nas alteridades, ou seja, o outro é
condição para a existência do discurso, e tem relação com a constitutividade do arquivo.
Pêcheux (1997:56/57), ao avaliar a leitura enquanto pressuposto fundador da AD,
levanta uma questão até então desconsiderada, que é a necessidade de se expor, em um
processo discursivo, os conflitos. Para o autor, há fortes razões para se pensar que os
conflitos explícitos remetem em surdina a clivagens subterrâneas entre maneiras diferentes,
ou mesmo contraditórias, de ler o arquivo. Dessa natureza da leitura emergirá a construção
de um espaço polêmico das maneiras de ler, uma descrição do trabalho do arquivo enquanto
relação do arquivo com ele mesmo, em uma série de conjunturas, trabalho da memória
histórica em perpétuo confronto consigo mesma. A leitura, concebida sob o ponto de vista
dos conflitos, segundo Pêcheux (1997:59), tiraria a escola da apreensão de um sentido único,
inscrito nas regras escolares, transpondo-a para a plurivocidade de sentido.
Mas, embora a AD tenha nascido em meio a uma conjuntura teórica diversa, é no
confronto com o constructo saussuriano, considerando as clivagens provocadas pelo teórico
de Genebra, que Pêcheux irá propor uma teoria do discurso. Esse ponto de origem está
centrado na dicotomia língua/fala e nas conseqüências que ela traz. É sabido que, do ponto de
vista de Saussure, só a língua, que é um produto autônomo, homogêneo, social e de natureza
concreta apresenta uma possibilidade de estudo cientifico, contendo, por si mesma, um
princípio de classificação. Esse entendimento a respeito do objeto de estudo da Lingüística
afasta a fala de qualquer possibilidade de se tornar, também, objeto de estudo, já que ela é
avaliada como individual e heterogênea, logo, heteróclita.
Para Pêcheux (1997:71), Saussure, ao supor a língua dicotomizada da fala, autoriza a
reaparição triunfal de um sujeito falante como subjetividade em ato, unidade ativa de
intenções que se realizam pelos meios colocados à sua disposição. Trata-se, segundo o autor,
de se supor que tudo se passa como se a lingüística científica liberasse um resíduo que é o
conceito filosófico de sujeito livre, pensado como o avesso indispensável, o correlato
necessário do sistema. Para esse sujeito livre, a fala deverá ser um caminhar da liberdade
humana.
Indo além desse caráter estrutural através do qual o discurso se organiza, tendo o
sujeito apenas como o guardião das estruturas, Pêcheux (1997:77-79) irá propor, através da
AD, uma análise do discurso não só a partir do fundo invariante da língua, mas também a
partir da relação com as circunstâncias, ou com as condições de produção do discurso.
Entende-se por condições de produção aquelas que dizem respeito às coerções a que o sujeito
está submetido, fundadas, principalmente, nas noções de lugar de onde se fala, nas relações
de sentido, resultante dos discursos engendrados, e também na relação com o outro
imaginário. Só uma compreensão do discurso, originária desses pressupostos, seria capaz de
propor um enfrentamento do processo de leitura, então vigente. Segundo Pêcheux (1997:79),
considerados esses pressupostos, é impossível analisar um discurso como um texto, como
uma seqüência lingüística fechada sobre si mesma, mas é necessário referi-lo ao conjunto de
discursos possíveis, a partir de um estado definido das condições de produção.
Considerando que mesmo o discurso da ciência é atravessado por marcas ideológicas,
interferir em um constructo teórico implica fazer leituras diferenciadas, com vistas a propor
reformulações para esse mesmo constructo em construção. A partir das rupturas com as
teorias lingüísticas vigentes, passou-se, então, a construir uma análise do discurso que levaria
em conta o exterior do discurso. Para o que se propunha, a AD, como outra ciência qualquer,
foi levantando hipóteses e construindo etapas para se chegar a uma teoria da leitura, tendo
como pressuposto básico a compreensão do sujeito. Cabe ressaltar que, segundo Pêcheux,
guardados os princípios de sustentação de cada uma das etapas de construção da ciência
recém-inaugurada, todas elas produziram uma recusa de qualquer metalíngua universal,
supostamente inscrita no inatismo do espírito humano, e de toda suposição de um sujeito
intencional como origem enunciadora do seu dizer.
Apesar da condição acima referenciada para a AD, que foi uma construção por etapas,
na sua fase inicial, buscaram-se os fundamentos nos princípios lingüísticos adotados por
Harris, segundo Maldidier (1997:21), entre outras razões, pelo fato de esses princípios
suporem uma análise que se dava na superfície do enunciado, privilegiando a palavra, sendo
esse um enfoque que já se dava com os estudos lingüísticos na França. Cabe avaliar, ainda
segundo a autora, que esse enfoque se dava em detrimento das abordagens gramaticais que
postulavam o sentido na estrutura profunda. A partir desses pressupostos, propôs-se, então,
uma análise do discurso, em princípio, que reunisse um conjunto de traços discursivos
empíricos, centrado nas palavras-chave, capazes de construir, em torno delas, um tema. Os
recursos lingüísticos, buscados na superfície do enunciado, deixariam atravessar os elementos
constitutivos do discurso, que Pêcheux caracterizou como maquinaria discursiva estrutural à
qual o sujeito estaria assujeitado. Por se tratar de uma teoria que não prescinde do sujeito,
nessa fase, ele foi concebido como o que entende a si mesmo como fonte e origem do seu
discurso.
Considerando que toda ciência é passível de deslocamentos teóricos, ou seja, o
discurso científico pode sofrer alterações, ao longo da sua construção, a disciplina sobre a
leitura que a AD propôs inaugurar não poderia se furtar a esse processo. Rompendo etapas,
enquanto construção teórica, ela supôs um deslocamento para além da maquinaria estrutural,
compreendendo o discurso na perspectiva das formações discursivas. Segundo Pêcheux
(1997:314),
o assujeitamento, agora, se dará na relação com as formações discursivas, ou
seja, ele não se refere à maquinaria estrutural, mas diz respeito ao sujeito e à sua constituição,
a partir da noção de ilusão de subjetividade.
De deslocamento em deslocamento, a AD foi tomando forma e dando forma ao que se
pretendia. No seu processo de construção do discurso, em torno do próprio discurso de
construção da ciência, abriram-se pontos de indagação que foram sendo preenchidos a partir
do propósito da disciplina, com base na noção de sujeito. O constructo proposto levou a
termo a noção de alteridade e as formas de emergência do outro no discurso. Essas formas,
segundo Pêcheux (1997:316), podem se dar através do próprio sujeito que, ou traz para a
materialidade discursiva o outro, através das heterogeneidades mostradas, ou abre espaço
para a desestabilização do eu, colocando o sujeito em pontos de deriva, sem que seja possível
o controle, através das heterogeneidades constitutivas.
Esse último entendimento da AD se aproxima do que Authier-Revuz (1990:26) supôs
para o discurso e para a sua constitutividade. Partindo da natureza dialógica da linguagem,
entendida segundo Bakhtin, a autora entende o discurso, sempre na relação com o outro,
marcado nas fronteiras do enunciado, ou apenas entendido como parte constitutiva do
mesmo: as palavras são, sempre e inevitavelmente, “as palavras do outro.”
Cabe, aqui, a retomada da questão inicial, levantada por Santos, ou mesmo aquela
levantada por Pêcheux, a respeito dos fundamentos teórico/discursivos de qualquer ciência e
a sua relação com a ideologia. Podemos, aqui, até levantar uma questão que seria básica: em
que estaria essa ciência interessada, uma vez que não há discurso desinteressado? Segundo
Gadet (1997:9), para Pêcheux, é impossível a Análise do Discurso fora de uma teoria do
sujeito, e estar interessada no sujeito implica ir além das individualidades, através de um
aporte teórico que sustente a sua constituição.
Compreender o discurso em relação ao sujeito implica compreendê-lo, também, a
partir de uma concepção de linguagem. Essa é a discussão que aprofundaremos a partir de
agora, considerando a proposta da AD, ao longo da sua construção, ou seja, discutiremos a
concepção de sujeito, sempre relacionada ao discurso e aos elementos que lhe dizem respeito.
Essa discussão, ao lado dos fundamentos histórico/ideológicos, já feitos inicialmente, dará o
suporte necessário para uma leitura do corpus que propusemos para a análise, que são os
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de Língua Portuguesa de 5ª a
8ª série.
3.1 Sujeito e discurso: uma relação com a polifonia
Quando trouxemos para discussão as condições de produção nas quais o discurso da
AD começou a ser construído, ou seja, a relação com o momento por que passava a
Lingüística, deixamos de fora da efervescência teórica a proposta de Benveniste. Mas é
necessário retomá-la, minimamente, uma vez que ela também se opôs ao descritivismo
empirista, que se impôs para as teorias lingüísticas. O autor, no contexto mostrado
inicialmente, coloca sob suspeita o que se concebe como linguagem, que seria a sua natureza
instrumental. A sua suspeita remete para a compreensão de que o sujeito se constitui em
linguagem e se faz representar, na leitura de Brandão (1998:44), no interior do discurso que
profere. A forma como Benveniste o supõe se fundamenta na relação entre um eu que fala
para um tu, ambos representados no enunciado. Esse entendimento do autor sobre o sujeito
deixa de considerar os pressupostos que dizem respeito à sua constitutividade.
A língua só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito
remetendo, ele mesmo, como eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra
pessoa, aquela que, sendo exterior a mim, torna-se o meu eco – ao qual digo
tu e que me diz tu. (Benveniste, 1988:286).
A teoria do sujeito inaugurada por Benveniste, idealizada no interior da língua,
juntamente com as limitações deixadas pelos pressupostos saussurianos dos quais se pôde
imaginar um sujeito livre de quaisquer coerções externas à sua existência, abriram espaço
para uma teoria do sujeito para além de uma relação marcada não apenas na língua, mas
também, em disciplinas conexas, que dizem respeito à sua constitutividade, fundada em uma
noção de exterior, portanto, para além da relação eu/tu.
Se se assume que a AD tem como fim precípuo uma teoria do sujeito, através de
Pêcheux pode-se começar, então, a compreender como ela se constitui. A concepção de
sujeito perseguida pela AD explicita, antes de qualquer fundamento, as disciplinas das quais
se avizinha, e a história é a primeira disciplina com a qual se estabelecem relações. É através
dela que se busca aproximação com outras áreas do conhecimento. A propósito da história,
Pêcheux (1998:152), como Foucault, busca compreendê-la não no seu caráter de tradição ou
de linearidade, mas no seu caráter de efetividade, uma vez que ele a supõe como a resultante
da luta de classes, ligada à super-estrutura e à infra-estrutura, sendo essa relação a que produz
a ideologia, interpelando os indivíduos em sujeitos. De fato, então, são as relações
econômicas e as relações de poder, que produzem a história, portanto, as que deverão
produzir o sujeito.
A teoria do sujeito, buscada pela AD, se aproxima, também, da psicanálise. Indo de
encontro ao sujeito livre, constituído fora da história e da ideologia, Pêcheux (1998:154) o
supõe na relação com o inconsciente. Para o autor, esse processo se dá na consciência,
metaforicamente, a partir de um jogo teatral. Nele, o sujeito, ao dizer eu, é observado dos
bastidores, antes que ele “diga eu falo”. Essa metáfora pode ser compreendida a partir de uma
pré-existência ou de um pré-constructo, que se dá no inconsciente, e é nesse jogo teatral que
o indivíduo é interpelado em sujeito. Isso implica que é nesse espaço, entre o consciente e o
inconsciente, que ele passa a existir, o que, segundo Pêcheux (1998:156), pode caracterizar
uma aparente contradição. Diz-se aparente porque, embora o sujeito pré-exista desde sempre,
é nesse espaço que ele constrói a sua identidade, tomando a sua forma-sujeito, que é a
existência histórica de qualquer indivíduo. Cabe ressaltar que esse processo se materializa na
estrutura da língua, no interior de uma rede de significantes o sujeito é preso nessa rede –
“nomes comuns e “nomes próprios” efeitos de shifting, construções sintáticas, etc. (Lacan,
apud Pêcheux, 1998:157) Aqui, a noção de signo proposta por Saussure, dicotomizada entre
significante e significado, se desconstrói para dar lugar ao significante, que se reconstrói, na
perspectiva do sujeito e das suas formações discursivas.
Na metáfora do jogo teatral, realizado entre o consciente e o inconsciente, e nas
formações discursivas é que se pode conceber o sujeito. Segundo Authier-Revuz (1990:28), o
sujeito não é uma entidade homogênea, exterior à linguagem, mas o resultado de uma
estrutura complexa, e só pode ser concebido como efeito de linguagem. Por efeito de
linguagem entende-se o sujeito como produto de uma origem fundamentalmente heterogênea,
portanto, de um sujeito divido, descentrado, constituído pelas relações de alteridades. Por
essa razão, o dizer não está centrado nele mesmo, mas sempre sob as palavras do outro. O
sujeito não pode, então, ser entendido como fonte do seu dizer, uma unidade, embora, na
leitura da autora, ele seja capaz de produzir um centramento, que Pêcheux (1998:164)
caracterizou como uma aparência de autonomia. Mas, apesar dessa condição do sujeito, é
nela que ele emerge no interior do discurso.
A propósito do outro, constitutivo do sujeito, pode se compreender, então, que se trata
de um movimento de ir e de vir, materializando as marcas do eu e do outro, ambos
materializados como o eu do discurso. Nas palavras de Bakhtin (1992:387), essa relação se
atualiza, caracterizando a subjetividade, através da intersubjetividade, que pode se fazer
representar como o eu para mim, o eu para o outro, e o outro para mim. Esse imbricamento
do eu e do outro, ainda na compreensão do autor, produz uma sensação primitiva e natural de
si, o eu e o outro se confundem, e mais, o eu se esconde no outro. Metaforicamente, é como
se o eu e o outro habitassem os mesmos espaços discursivos, passando o outro a ser sempre a
morada do eu, sendo esse eu o que diz eu, ou o que se representa no discurso, ou seja, ele é a
marca da subjetividade. É nesse sentido que Lacan (1985:53) afirma que o eu é uma função
imaginária, sendo essa relação imaginária aquela do inconsciente, ou a que produz o sujeito.
Não é sem razão que Bakhtin (1992:406) entende que o outro vai se tornando anônimo,
familiar, e o resultado disso é o apagamento da palavra do outro, tendo em vista uma
monologização do discurso.
Visto sob tais condições, segundo Brandão, o sujeito, fundamentado no outro, é
constituído nas relações intra/interdiscursivas. Sob esse olhar, entende-se o outro não só
como o que envolve o destinatário para o qual o enunciado é produzido, mas também como
aquele que é buscado na ordenação do enunciado, ou o que diz das formações discursivas do
sujeito, sendo esses pressupostos básicos os que dizem respeito à constitutividade
histórico/ideológica do sujeito.
Para essas abordagens, a noção de história é fundamental, pois, porque
marcado espacial e temporalmente, o sujeito é essencialmente histórico. E
porque sua fala é produzida a partir de um determinado lugar e de um
determinado tempo, à concepção de um sujeito histórico articula-se outra
noção fundamental: a de um sujeito ideológico. Sua fala é um recorte das
representações de um tempo histórico e de um espaço social. (Brandão,
1996:49).
A posição de Brandão a respeito da constitutividade do sujeito confirma a posição de
Maingueneau (1993:115) a sobre a questão. Para o autor, os eixos da discursividade são dois:
o vertical, que diz respeito ao pré-construído, aquele do domínio da memória, e o horizontal,
aquele da linearidade do discurso, que oculta o primeiro eixo, já que o sujeito enunciador é
produzido como se interiorizasse, de forma ilusória, o pré-construído que sua formação
discursiva impõe. No imbricamento do eu e do outro supõe-se a natureza polifônica da
linguagem, que pode ser entendida a partir das heterogeneidades pertinentes ao discurso, que
são a constitutiva e a mostrada. Esses conceitos remetem, ambos, para a complexidade
pertinente ao sujeito, na relação com o inconsciente, logo, remetem para o exterior do
discurso.
O fenômeno da polifonia, relacionado à heterogeneidade constitutiva, segundo
Authier-Revuz (1990:26/29), resulta de trabalhos que tomam o discurso como produto do
interdiscurso, sem fronteiras rígidas, delimitadoras dos discursos. Trata-se da palavra do
outro dispersa no enunciado. A heterogeneidade mostrada, por sua vez, irrompe na cadeia
discursiva, através de diferentes modos de negociação do sujeito com a heterogeneidade
constitutiva do seu discurso. Em outras palavras, de forma delimitada no enunciado, ou não,
altera-se a unidade da cadeia discursiva, inscrevendo o outro no discurso, impondo,
explicitamente, uma alteridade manifestada em diferentes modalidades, como o discurso
relatado, as aspas, o itálico, a ironia etc.
A propósito das inter-relações, ou das alteridade, nas quais o eu e o outro se
constituem no discurso, gostaríamos de chamar a atenção para uma outra questão que remete,
na sua origem, à Grécia Antiga, mais precisamente, a Aristóteles (s.d.).Trata-se da retórica,
que, na perspectiva do filósofo, um discurso comporta três elementos: a pessoa que fala; o
assunto de que se fala; a pessoa a quem se fala, e o fim do discurso refere-se a esse último,
que é chamado de ouvinte, que, na compreensão de Aristóteles, exercia papéis diferenciados,
dados os lugares que ocupava na interlocução. Se estivesse na função de juiz, teria de julgar,
se estivesse na função de expectador, teria de avaliar. Aristóteles centrou a questão no caráter
persuasivo que permeia as inter-relações, centrado na moral e na imagem de cada um, capaz
de produzir alteridades. Trata-se do ethos, centrado no caráter do locutor, capaz de convencer
um auditório.
Mas a noção de ethos, indo além desse caráter retórico da persuasão, que permeou as
discussões, ao longo da história, foi retomada, recentemente, levando em conta o caráter
discursivo da linguagem. Essa retomada se constitui, exatamente, na compreensão da forma
ou das formas como o discurso acontece, que elementos devem ser considerados para sua
realização, indo além do proposto por Aristóteles. Trata-se, segundo Maingueneau (1993:
48/49) da forma como o discurso toma corpo, centrado não só em pressupostos
materializados no enunciado, mas também no próprio corpo, envolvendo o enunciador e o
destinatário. O que tem sido proposto, portanto, diz respeito ao que se diz e como se diz,
sendo que dessa condição é que se pode avaliar a eficácia do discurso e a incorporação do
outro ao mesmo, envolvendo os sujeitos que nele se reconhecem, sendo esse o lugar da
construção do ethos, ou seja, esse é o lugar da construção da imagem que o eu constrói de si e
do outro.
3.2 Sujeito e discurso: uma relação com as formações discursivas
Se se teve como objetivo, anteriormente, buscar uma compreensão do que é o sujeito,
cabe agora a necessidade de se buscar o que se pode conceber como discurso, segundo a AD.
Tomaremos o conceito de discurso em Courtine (1981), que, por sua vez, o remete para
Foucault, que o supõe não como um termo primitivo, mas como um objeto de construção.
Para Foucault, então, segundo Courtine, chamar-se-á discurso um conjunto de enunciados, na
medida em que eles se revelam da mesma formação discursiva. Por objeto do discurso supõe-
se um conjunto de enunciados que consiste nas condições para se descrever a dispersão dos
vários objetos que o constituíram, com vistas a apreender todos os interstícios que os
separam, medir as distâncias que reina entre eles, em síntese, formular sua lei de repartição,
ou a forma como os vários enunciados que caracterizam uma formação discursiva se
dispersam no próprio enunciado.
As considerações de Foucault sobre o objeto do discurso levou-o a levantar pelo
menos duas outras questões. Em primeiro lugar, destaca-se a questão relativa à formação
discursiva. (Foucault, 1995:43). Para o autor, se se pode descrever tal questão, ela deve se dar
a partir de um certo número de enunciados, pertencentes a semelhantes sistemas de dispersão,
a tipos de enunciação, a escolhas temáticas. Considerados esses elementos na relação com o
discurso, se eles constituem uma regularidade, é desse conjunto que emerge a formação
discursiva.
A condição do discurso, no que se refere às formações discursivas, caracterizadas como um espaço de dispersão de enunciados em
torno do mesmo objeto, segundo Courtine, (1981) se constitui de uma contradição entre a unidade e a diversidade, entre a coerência e
a heterogeneidade, no coração das formações discursivas. Essa contradição, da qual se pode dizer que é apenas aparente, remete para
o espaço do discurso, na relação com os vários discursos que o constituem, interdiscursivamente, uma vez que, segundo
Maingueneau (1993:119), uma formação discursiva se constitui, de fato, de várias formações discursivas, sendo essa relação a que
produz a unidade do discurso, logo a sua identidade, construída na relação com o outro. Nas palavras de Brandão (1996:53), o
discurso se tece através de um jogo de várias vozes cruzadas, complementares, concorrentes, contraditórias, sendo essa
complexidade aquela responsável por caracterizar o que é próprio do discurso, que é o seu caráter de polifonia, sendo essa a condição
que faz emergir o sujeito.
A noção de formação discursiva, analisada a partir das complexidades referenciadas,
não pode se afastar de algo pertinente a ela mesma: a ideologia. Atrelado a esse conceito,
Pêcheux (1998:160) entende por formação discursiva aquilo que, sob a dominância de uma
formação ideológica dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e
deve ser dito.
Em segundo lugar, faz-se necessário considerar o objeto do discurso na relação com o
enunciado, uma vez que ele é o lugar da inter-relação, ou dos discursos em confronto, isto é,
da intra/interdiscursividade. A questão pode ser entendida a partir de Bakhtin (1992:293).
Segundo o autor, o discurso se molda, sempre, à forma de enunciado, em oposição à frase e à
oração, e não pode existir fora dessa forma. Trata-se de algo que vai além das estruturas
lingüísticas e que pode ser compreendido como um tecido que é a resultante das relações
interdiscursivas, portanto, intersubjetivo. Isso implica que ele deve ser considerado, sempre,
o lugar da inscrição do outro, ou o lugar da dialogia, buscada não só na materialização do
enunciado, manifestada nas formações discursivas, ou nos pontos de deriva do sujeito, mas
também presumida nas lacunas abertas pelo próprio sujeito para a entrada do outro. Segundo
Bakhtin (1992:293), é a palavra do outro e a palavra com o outro, que sustenta o caráter
dialógico do enunciado.
Se o enunciado é o lugar por excelência do discurso, se Foucault o qualificou como
uma das suas instâncias fundadoras, cabe, aqui, remeter para o próprio autor, considerando a
sua relação com as formações discursivas, com a intenção de se compreender como se dá tal
processo.
(...) o enunciado, ao mesmo tempo em que surge em sua materialidade,
aparece com um status, entra em redes, se coloca em campos de utilização,
se oferece a transferências e a modificações possíveis, se integra em
operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga.
Assim, o enunciado circula, serve, se esquiva, permite, é dócil ou rebelde a
interesses, entra na ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de
apropriação ou de rivalidade. (Foucault, 1995:121)
Mas, apesar de o enunciado ser considerado condição sine qua non para o discurso,
Foucault o caracterizou como um espaço paradoxal. Ao mesmo tempo em que se constitui
em uma unidade, ele é, também, lugar do diverso, da dispersão, da repartição dos enunciados
que constituem as formações discursivas. Nessa compreensão do enunciado como espaço de
dispersão, ele é o lugar das negações, dos conflitos, dos acordos, não aqueles propostos na
horizontalidade do discurso, mas aqueles que resultam do sujeito mesmo, na relação com as
suas formações discursivas, portanto com o inconsciente.
Dada a condição do discurso na relação com as formações discursivas e com o
enunciado, vejamos a compreensão de Foucault (apud Courtine 1981) a respeito da
organização do próprio enunciado e a relação com o sentido. Para o autor, se há alguma
unidade, ela não está na coerência visível e horizontal dos elementos formados; ela reside
bem aquém, no sistema que torna possível a sua formação
Nesse contexto, discursivamente, o que há são vozes constituídas, dialogicamente
conflitantes, nas quais o autor supõe o sentido, não na organização da superfície do
enunciado, mas no que o torna possível, que são as formações discursivas e a relação com os
sujeitos sócio/histórico/ideológicos.
O discurso, entendido na complexidade do eu e do outro, constituído no inconsciente,
tem relação com a memória, não enquanto reserva, até porque, essa perspectiva, segundo
Bakhtin (1992:405), só consegue tocar o fundo e as paredes e não pode ir mais longe, isto é,
fica limitado ao pensamento abstrato. Indo além desse entendimento, a memória está
relacionada ao interdiscurso, logo, com o seu exterior, portanto, com as formações
discursivas. Segundo Maingueneau (1993:115), trata-se de uma memória discursiva não
psicológica, mas aquela constituída de formulações que se repetem, recusam e transformam
outras formulações, sendo que desse processo é que resultará o enunciado. Segundo Brandão
(1998:28), a noção de memória discursiva diz respeito à existência do enunciado no interior
de práticas discursivas reguladas por aparelhos ideológicos. Entendida a memória na
concepção suposta por Maingueneau, ela pode ser caracterizada como o lugar da
historicidade do sujeito, ou o lugar dos discursos em confronto. Trata-se, portanto, de uma
concepção fundada na noção de interdiscurso, que Maingueneau caracterizou como
transversalidade, ou o que atravessa a noção de formação discursiva e de sujeito.
3.3 Sujeito e discurso: uma relação com a ideologia
Para falar do outro como condição para que o discurso aconteça, faz-se necessário
compreender como se dá tal processo, em que condições e quais são as implicações da
interação no seu caráter sígnico. Até aqui, tivemos como intenção buscar fundamentos que
estão diretamente ligados a esse processo. Considerando a questão em seu caráter dialógico,
há de se considerar, nessa inter-relação, a questão ideológica, já que ela é própria do sujeito e
da sua construção, portanto relacionada ao seu lugar de origem. A delimitação desses
espaços, que estão sempre atrelados ao movimento da história, referencia o discurso como o
lugar de circulação da ideologia, ou seja, grosso modo, trata-se de referenciais que remetem,
na sua essência, à gênese do discurso, uma vez que eles são a condição necessária para a sua
existência. Fora da ideologia não há linguagem e, conseqüentemente, não há discurso.
Segundo Bakhtin (1990:34), os signos só emergem, decididamente, do processo de interação
entre uma consciência individual e outra. E a própria consciência individual está repleta de
signo. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico, e,
conseqüentemente, somente no processo de interação social.
Da compreensão de Bakhtin sobre o signo no seu caráter dialético/dialógico
depreende-se que, de consciência em consciência, um universo simbólico vai se construindo,
e as subjetividades vão, também, se constituindo, ideologicamente, no discurso produzido
para os efeitos de sentido que se deseja.
Para se compreender tal questão, iniciaremos pela perspectiva althusseriana. Althusser (1995:43), na intenção de avançar na teoria do
Estado, a partir da proposta marxista, que considera os Aparelhos Repressivos do Estado, não descarta o papel que esses exercem,
que são também de natureza ideológica. Esses estão ligados, diretamente, ao mecanismo de controle que o Estado exerce sobre a vida
do cidadão. Mas, indo além desse caráter, que é, também, burocrático, o autor analisa a questão a partir dos Aparelhos Ideológicos de
Estado – AIE. Trata-se de aparelhos que são mantidos pelo próprio Estado e que estão materializados nas mais diferentes instituições
que a sociedade foi capaz de organizar, ao longo da sua existência. Na concepção althusseriana, esses aparelhos só funcionam pela
ideologia, ou seja, grosso modo, eles são a representação do poder instituído, e mais ainda, fazem emergir deles sujeitos
historicamente determinados e, ideologicamente produzidos, sendo essas as condições através das quais o homem produz linguagem.
Mas a questão da ideologia não diz respeito apenas aos AIE. Chegaríamos ao limite da ingenuidade se tratássemos dela apenas dessa
forma. Nem Althusser a pensou apenas nesse limite. Antes de ela estar ligada aos Aparelhos Ideológicos de Estado, podemos
assumir, com Marx ou mesmo com Althusser, que ela está ligada ao modo de produção da riqueza.
Mas o que é mesmo ideologia? Não estamos pretendendo responder a essa questão ao
alvitre do nosso olhar, mas sim entendê-la a partir de algumas concepções. Eagleton
(1997:39/40) faz um levantamento das diferentes concepções a respeito do que ela seja.
Segundo o autor, há concepções variadas, que vão do entendimento de que se trata de algo
que não passa de produção de idéias, de crenças e de valores na vida social, passando pelo
significado constante do próprio signo, ou das idéias dele decorrentes, pelas noções de falso e
de verdadeiro, contidas no enunciado, culminando, entre outras concepções, com uma
concepção que recai sobre crenças falsas ou ilusórias, originárias da estrutura material do
conjunto da sociedade.
A considerar o sujeito sob o ponto de vista ideológico, é essa última concepção a que
deverá permitir compreender o discurso como algo atravessado pela ideologia cuja tessitura
se dá na relação com as condições de produção da riqueza, ou com o mundo do trabalho, que
produz classes sociais diferentes, portanto, formações discursivas diferentes, já que uma está
para outra, diretamente. É dessa forma que o sujeito constrói sua formação discursiva, e nela
também individualiza o discurso, que traz as marcas do lugar de cada um. Reivindica-se,
portanto, nessa relação, o lugar da gênese do discurso, não o lugar comum, mas o lugar que a
história determinou, materializado na divisão de classes e configurado nos AIE.
Pela concepções acima, sobre a ideologia, ela deve ser compreendida não só como
exterior do discurso, mas também como parte constitutiva dele. Foi essa a razão que levou
Bakhtin (1990:91) a afirmar que os signos são repletos pela ideologia, sendo ela a
responsável por conferir sentido ao enunciado, que reflete e retrata uma realidade exterior.
Do lugar no qual emerge o discurso é que são consideradas as intenções com as quais ele é
produzido. Em se tratando do discurso oficial, ele não tem outra intenção a não ser aquela
originária dos interesses do poder instituído, que é sempre a representação dos interesses das
classes que assumem esse poder. É nesse sentido que o outro é buscado, com a intenção de
trazê-lo para o discurso produzido, visando às práticas que ele supõe.
A compreensão do sujeito e do discurso relacionado à historia e à ideologia impõe a
necessidade de se buscar que concepção de linguagem aí subjaz. Com Bakhtin (1990:66)
pode-se começar a construir tal concepção, que deverá ser compreendida como travessia do
sujeito. Segundo o autor, cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se
entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no
momento de expressão, como produto de interação viva das forças sociais. Para uma
explicitação, embora desnecessária, de como Bakhtin concebe a linguagem, fomos buscar em
Paulo Freire o seu olhar sobre esse elemento do discurso. Do imbricamento dessas duas
vozes emerge o homem humanizado e uma concepção de linguagem resultante da
intra/interdiscursividade. Existir humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O
mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, e
exige deles um novo pronunciar. (Paulo Freire, 1987:78).
Desse ir e vir dialético/dialógico compreende-se a linguagem, portanto, no seu caráter
simbólico, que, retomando Authier-Revuz (1990), se constrói no inconsciente, que é o
discurso do outro, materializado na consciência, ressurgindo, daí, um sujeito, que situa o seu
discurso no discurso do outro, construído na história de cada um, portanto ideológico. Dada
essa natureza da linguagem, entende-se a sua concepção ligada à concepção de sujeito e de
discurso. Isso implica que essa constitutividade só se constrói em uma perspectiva de
cumplicidade, ou seja, um é a prerrogativa do outro. Trata-se de uma concepção de
linguagem capaz de recusar aquelas originárias do seu entendimento como suporte para a
transmissão de informação. Segundo Maingueneau (1993:20), fora dessa concepção, a
linguagem precisa ser considerada como algo que permite construir e modificar as relações
entre os interlocutores e seus referentes. É nela, então, que emerge a
formulação/reformulação dos discursos em movimento
Nesse contexto de consideração da linguagem, sob o ponto de vista da ideologia, gostaríamos de levantar a noção de gênero do
discurso. Essa questão remonta à Grécia Antiga, mais precisamente a Aristóteles, e foi retomada, recentemente, por Bakhtin (1992-
53), que a expandiu para além dos gêneros literários, relacionando-a à esfera de atividade humana e à esfera de circulação. O autor
passou a considerar tal noção sob o ponto de vista de que qualquer enunciado produzido está relacionado a um gênero, constituído,
sobretudo, em elementos que se traduzem em uma estabilidade constante, manifestada no enunciado, tendo em vistas não só os
aspectos que dizem respeito à intra/intersubjetividade, mas também à sua materialidade lingüística. A utilização da língua efetua-se
em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera de atividade
humana. (Bakhtin 1992:279). Pelos elementos constitutivos dos gêneros do discurso, eles estão ligadas a um exterior e têm relação
com o sujeito e com os lugares de origem do discurso, ou com os suportes de sustentação. Logo, elas têm, também, relação com a
ideologia.
3.4 Sujeito e discurso: uma relação com a escritura
Quando nos colocamos em um processo de leitura, estamos sempre correndo riscos, esses riscos são sempre originários das próprias
condições da linguagem. Brandão (1998:19), ao tratar do texto, afirma que a sua superfície lingüística não diz tudo objetivamente. A
autora afirma ainda que um texto, em graus diferentes de complexidade, é sempre lacunar, reticente. Isso implica que ele sempre
apresenta vazios, implícitos, pressupostos, subentendidos. Entrar nos vazios do texto é, de fato, correr riscos, pois, guardados os
níveis de complexidade de cada um deles, entrar nesses espaços vazios é entrar na historicidade do sujeito, ou na sua dispersão no
enunciado.
Pelas considerações anteriores, o leitor se coloca, sempre, em condições de confronto, já que ele é, também, sujeito constituído
historicamente e ideologicamente produzido. Trata-se do processo de produção de sentido, ou de discurso, essencialmente, que
emerge desse confronto. Segundo Orlandi (2000:60), os sentidos não nascem ab nihilo. São criados. São construídos em confrontos
de relações, que são sócio/historicamente fundadas. Portanto, produzir sentido é sempre da ordem do provável, do possível, do
provisório, até mesmo do incerto. Por essa razão, estamos sempre mediando as lacunas, na tentativa de preencher os vazios que cada
enunciado deixa em aberto, e corremos riscos.
A partir dessa condição do processo de leitura é possível supor o signo além da concepção saussuriana. É possível
entendê-lo, segundo Derrida (1973), como escritura, portanto, não dicotomizado, mas como um duplo significante e significante.
Esse duplo constitutivo do signo resultará sempre em outro significante, num processo ad infinitum de escritura.
Tudo que funciona como metáfora nestes discursos confirma o privilégio
do logos e funda o sentido próprio, dado então à escritura: signo
significante de um significante significante ele mesmo de verdade eterna,
eternamente pensada e dita na proximidade pensada de um logos presente.
(Derrida, 1973:18).
Essa concepção de signo supõe, portanto, uma rede de significantes, que deixa permear a história e a ideologia, e são (re)significados
todas as vezes que o enunciado se põe em movimento. Entende-se como escritura, portanto, a produção de linguagem, tanto em nível
de produção escrita como em nível de produção oral. É nesse processo que as formações discursivas concorrentes se põem em jogo,
constituindo a identidade do sujeito, que se manifesta no discurso.
A noção de signo, suposta por Derrida, se sustenta, também, no ponto de vista de Bakhtin a respeito do problema. Segundo o autor,
compreender um signo consiste em aproximar um signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a
compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos. E essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológica, deslocando-
se de signo em signo para um novo signo, é única e contínua; (...). (Bakhtin, 1990:33/34).
Da produção do discurso, vista sob o ponto de vista do duplo significante/significante, pode-se concluir que ler e escrever são uma
escritura, isto é, um se constitui na relação com o outro, já que o que acontece, de fato, é a (re)significação do significante, em
qualquer situação de linguagem. O processo, como um todo, guarda, de per si, as complexidades originárias das condições da
produção da linguagem, que trazem, de fato, as complexidades que dizem respeito ao sujeito, tais como: a história, a ideologia enfim,
a memória discursiva. Trata-se dos elementos que dizem respeito aos sujeitos e são, necessariamente, mobilizados na escritura e
envolvem o sujeito autor e o sujeito leitor, ambos fundadores do discurso, em um processo de desconstrução/reconstrução constante
do significante. Nas palavras de Orlandi (2000:58), não é só quem escreve que significa; quem lê também produz sentidos. Se não se
tem essa concepção de leitura, corre-se o risco de entendê-la como um processo de mão única, ou apenas como um processo de
interpretação.
A compreensão da leitura e da escrita como escritura inscreve o sujeito no seu tempo histórico, sendo essa historicidade, que é
também ideologia, a responsável pela (re)significação dos significantes Esse é o lugar da dialogicidade ou dos discursos em
movimento. É aqui que se pode dizer do sujeito que ele é efeito de sentido. Pode até parecer redundante, mas essa concepção de
leitura e de escrita, considerada enquanto escritura, só pode se dar no universo do sujeito constituído em linguagem, resultante das
formações discursivas. Só esse entendimento da leitura é capaz de abarcar a proposta da AD, para além do comentário, ou da análise
de conteúdo, ou ainda, para além da leitura de texto. Isso implica a possibilidade de concebê-la como compreensão. Segundo Orlandi
(2000:73) a compreensão se instaura no reconhecimento de que o sentido é sócio-historicamente determinado e está ligado à forma-
sujeito que, por sua vez, se constitui pela sua relação com a sua formação discursiva. A partir desse reconhecimento, pode-se levar
em conta o “domínio do saber”, o da constituição do sentido. Compreender, para a autora, é refletir sobre a (e não refletir a) função
do efeito do eu-aqui-agora, (...). (Orlandi: 2000:73)
3.5 Sujeito e autoria no discurso institucional
É sabido que o nosso corpus de análise se constitui de um enunciado que se
caracteriza como discurso oficial, portanto, originado do poder instituído. Dada essa condição
do enunciado, há questões pertinentes a ele que são necessárias de serem levantadas. Em
princípio, levantaremos a da subjetividade em seu caráter de dispersão. Estaria o enunciado
caracterizado como oficial isento de marcas de subjetividade? ou então, seria ele tecido de
forma a estabelecer a relação entre o eu e o outro, compreendidos a partir da
intra/interdiscursividade?
Para se compreender essas questões, vejamos o que Foucault (1995:61) supõe sobre
as condições de produção de qualquer enunciado, em relação ao lugar no qual ele emerge.
Para o autor, as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à síntese ou à
função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão: nos diversos status, nos diversos
lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso na
descontinuidade dos planos de onde fala. Entende-se por esse processo a desconstrução que o
próprio sujeito é capaz de fazer da síntese proposta e a sua reconstrução, se fazendo emergir
quando exerce o discurso, consideradas as posições manifestadas nas suas formações
discursivas.
Dada a condição de produção do enunciado, que está sempre ligado ao lugar em que
emerge, podemos assumir que o enunciado de natureza oficial é também marcado pela
intra/intersubjetividade e traz, no seu tecido, as marcas histórico/ideológicas do sujeito. Essa
foi a conclusão a que chegou Arouca (2003:141), ao analisar uma presença marcada do outro,
na LDB 9.394/96. A autora, ao fazer uma análise discursiva da referida Lei, concluiu que,
mesmo sendo uma enunciação desprovida de traços de inscrição de dêixis há a presença do
outro no fio do discurso do um.
A propósito da representação da subjetividade nos enunciados oficiais ou
institucionais, segundo Foucault (1987), ele está em relação direta com o exercício do poder.
Em se tratando das penas, questão que o autor analisou em Vigiar e Punir, no que se refere à
sua aplicação, elas são, sem dúvida, a representação do poder instituído, manifestado de
diferentes formas, e o castigo corporal foi, ao longo da história, sendo substituído pelas penas
mitigadas, pelo apagamento das vozes oficiais, sendo esse processo a resultante das
reformulações de todo o aparato punitivo, conseqüentemente, a reformulação dos discursos
originários do aparelho repressor do Estado. Segundo Foucault (1987:21), terminada a
tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades
impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que ater-se, incorpórea.” (grifos meus).
No fragmento tomado, gostaríamos de chamar a atenção para as estratégias que os
discursos institucionais produzem, se escondendo atrás de interesses velados, ou se apagando
em estratégias discursivas, capazes de diluir, no enunciado, a responsabilidade das ações
próprias do discurso prescritivo, já que essa é a sua condição. Mas, apesar da condição desses
discursos, entra em cena a intradiscursividade, ou o eu que abre espaço para o outro, que
pode ser buscado na repetibilidade do enunciado, e os sujeitos institucionais emergem no
terreno movediço das leis, dos códigos, dos decretos, enfim, nos documentos que regem a
vida do cidadão, com uma aparente neutralidade e com um pseudo-apagamento das vozes,
colocando o enunciado acima de qualquer suspeita.
E a subjetividade, considerada no interdiscurso, ou o outro presumido na verticalidade
da história, seria também marca do discurso caracterizado como oficial? Para explicitar essa
questão, retomaremos Bakhtin e a sua compreensão a respeito da familiaridade que o sujeito
imprime no discurso, dando a impressão de um apagamento das vozes que permeiam toda e
qualquer discursividade. Esse processo promove o que se pode caracterizar como
monologização, mas ele é, segundo o autor, próprio da linguagem humana articulada. Em se
tratando dos textos oficiais, há uma pretensão de monologização do enunciado, apesar de eles
trazerem, no seu tecido, as vozes do interdiscurso.
Gostaríamos, nesse contexto, de nos remetermos, novamente, para o fragmento
tomado em Foucault (1987). Nele, o autor chama a atenção para o sujeito institucionalizado,
mitigado nas penas que os aparelhos repressores do Estado têm de implementar. Dos
aparelhos da justiça, cujas vozes estão sem rosto, as instituições estão impalpáveis, é que
emergirá o discurso da repressão, sem que “ninguém o assuma”. Por essas características do
discurso oficial, pode-se dizer que ele se constitui através de estratégias, que podem ser
caracterizadas como monofonização. Segundo Brandão (1994:48), essas estratégias são
intencionalmente produzidas, se constituindo em marcas que têm a pretensão de mascarar a
dimensão estrutural do heterogêneo.
Colocadas as condições de subjetividade do enunciado que emerge do lugar
institucional, o que há, segundo Miranda e Cascais (s.d.:19), são figurações históricas do
sujeito e as suas formas de institucionalização e os saberes que os disciplinam, ou o que
regula esses discursos
Compreendida a subjetividade como presente nos enunciados oficiais, ou nos
discursos institucionais, chamamos a atenção para outra questão. Seria possível reconhecer
uma autoria para o enunciado institucional? Foucault, (s.d.:46) afirma que uma certa
quantidade de discursos é provida da função autor, ao passo que outros são dela desprovidos,
o que não significa que aqueles desprovidos desse elemento discursivo não apresentem
signatários para os mesmos. Brandão (1998:134) dá como exemplo de discursos constituídos
dessa condição decretos, contratos, receitas técnicas, manuais de uso etc. Por esses exemplos
entende-se que são enunciados que falam por eles mesmos. Mas a autora continua avaliando
que, para alguns enunciados, a autoria precisa ser observada, já que, através dela, atesta-se o
seu valor assertivo. Mas, apesar dessa condição da autoria relacionada a alguns enunciados,
Orlandi (1988:61), considerando o autor enquanto função discursiva, estende a noção de
autoria para o uso corrente da linguagem, enquanto função enunciativa do sujeito. Por uma e
por outra razão, os documentos originados do poder instituído constituem-se de uma autoria
que confere valor de verdade ao enunciado.
Foucault define autor como uma função e é característica do modo de excelência, de
circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade. Na análise
de Bakhtin (1992:298), o autor é o responsável pela manifestação da individualidade do
sujeito, sua visão de mundo, seu estilo, responsável por criar as fronteiras do enunciado. O
que caracteriza, então, a função-autor? Vejamos, em Foucault (s.d:46), algumas delas:
(i) É, antes, o resultado de uma operação complexa que constrói um certo
ser racional a que chamamos o autor: provavelmente, tentou-se dar a este
ser racional um estatuto realista: seria no indivíduo uma instância
“profunda”, um poder “criador”, um “projeto”, o lugar originário da escrita.
(ii) O autor é igualmente o princípio de uma certa unidade da escrita, pelo
que todas as diferenças são reduzidas pelos princípios da evolução, da
maturação ou da influência. (iii) O autor é ainda que permite ultrapassar as
contradições que podem manifestar-se numa série de textos: deve haver a
um certo nível do seu pensamento e do seu desejo, da sua consciência ou do
seu inconsciente um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os
elementos incompatíveis se encaixam finalmente uns nos outros em forma
de uma contração fundamental ou originária.
Sumariamente, buscando explicitar tal função, os pressupostos foucaultianos supõem
que o autor é o princípio organizador do discurso, unidade e origem de suas significações.
Segundo Orlandi (1988:77), citando Foucault, é do autor a responsabilidade da organização
da subjetividade, considerando os contextos de origem do sujeito. Dele pode-se dizer, então,
que é a racionalidade do discurso. Mediante a condição da autoria, pode-se dizer que o autor
ritualiza a intra/intersubjetividade, ou seja, ele tanto busca as marcas do sujeito no seu caráter
de constitutividade histórica, como deixa frinchas para a entrada do outro no discurso,
buscado na horizontalidade.
Do princípio organizador do enunciado, conferido ao autor, depreende-se que ele é o
responsável pelas lacunas, pelos implícitos, pelos vazios, que os enunciados, materializados
na textualidade, deixam entrever. É dele, portanto, a responsabilidade de colocar em cena o
enunciado, trazendo as dêixis, ou os elementos que situam o discurso no tempo/espaço
determinado. Mas o autor pode, também, promover estratégias de apagamento desses
elementos discursivos, com vistas a promover um distanciamento entre o eu e o outro. É dele,
portanto, a responsabilidade das estratégias de monofonização do discurso, fazendo com que
o enunciado fale por ele mesmo.
A função autor implica a desconstrução/reconstrução do sujeito. Trata-se, portanto, de um
duplo papel, que é o de dispersar o sujeito na materialidade discursiva, ao mesmo tempo em
que promove a sua unidade e coerência, em uma espaço/temporalidade reivindicada. É nesse
processo que o outro se constitui, emergindo dessa relação não só o que deve ser dito, mas
também a forma como se diz. Segundo Maingueneau (1993:46), o que é dito e o tom com
que é dito são igualmente importantes e inseparáveis. É desse imbricamento do que é dito na
forma como se diz, ao lado da espaço/temporalidade, que emergem as intenções discursivas
dos sujeitos.
Dada a função autor, no discurso, cabe aqui a retomada da questão inicial: seria o enunciado
institucional, com função declaradamente prescritiva, provido de autoria? Se nele há o sujeito
que diz, se há discurso em circulação e em funcionamento, deve haver uma autoria que
subsume a subjetividade dispersa no enunciado. Sem vozes marcadas, com uma
espaço/temporalidade mais presumida do que reivindicada, com vistas a promover o
distanciamento pretendido, o sujeito institucional se presentifica no enunciado, assumindo
posições que são aquelas que interessam ao poder.
Para concluir, neste capítulo, encaminhamos uma fundamentação teórica, que,
juntamente com outras discussões, nos servirão de base para a análise pretendida.
Considerando que a análise do discurso de orientação francesa fundou uma teoria para a
leitura que não prescinde do sujeito, essa foi a razão pela qual fomos levantando a construção
dos pressupostos dessa teoria. Pela própria condição da AD, construímos um caminho que foi
sendo traçado pela relação com as interdisciplinaridades que lhe são constitutivas. No
primeiro ponto, fizemos a busca pela historicidade na qual os sujeitos se constituem e a
relação dessa construção histórica com o inconsciente, logo com o exterior do discurso,
materializado em uma polifonia indiscutível. Na esteira dessa constitutividade, relacionada ao
exterior do discurso, discutimos, também, a noção de formações discursivas, que são o lugar
do sujeito e o lugar em que se estabelece sua relação com a ideologia.
Através de todos os conceitos levantados, foram discutidas, ainda, as diferentes
formas de realização da linguagem, numa perspectiva de escritura, concebendo o processo na
complexidade do sujeito. Por fim, ao se considerar que o corpus a ser analisado tem origem
no lugar instituído, pela concepção de sujeito assumida, não poderíamos deixar, ainda, de
discutir a forma como o sujeito emerge nesse enunciado e também o sentido que a autoria
tem nele.
Os elementos constitutivos dos pressupostos discutidos neste capítulo, que giraram em torno
do sujeito, juntamente com as discussões anteriores, encaminharão a análise, tendo em vista a
comprovação da hipótese a ser investigada. As marcas lingüísticas constantes do enunciado
nos permitirão analisá-lo sob o ponto de vista histórico/político/ideológico, que indicam os
saberes a serem ensinados, a didatização desses saberes e com que objetivos eles deveriam
ser ensinados.
CAPÍTULO IV
4.0 PCNEFs de Língua Portuguesa: a tessitura do enunciado
O sentido não pára, ele muda de caminho.
(Eni Orlandi)
Essa é, também, a nossa crença, e é isso que nos dá a garantia de que, por outros
caminhos poderemos chegar a uma outra leitura possível dos PCNEFs de Língua Portuguesa.
Muitos olhares já recaíram sobre o documento, tantos sentidos já emergiram do fio do
enunciado, mas um percurso diferente de leituras, que nos individualiza enquanto sujeito,
incluindo aquelas que perpassaram o nosso corpus de análise, nos permitirá penetrar nesse
universo de discurso, estabelecer com ele um diálogo e propor sentidos, quem sabe ainda não
experimentados. Essa crença decorre por se poder compreender, juntamente com Foucault
(1995: 109), que o sujeito é um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado
por indivíduos diferentes. Trata-se do percurso de análise no qual faremos a juntura entre o
teórico e o prático, o que nos permitirá evidenciar um pressuposto básico da AD, que é a
formulação/reformulação de um enunciado, tendo em vista os efeitos de sentido desejados.
No caso em apreço, procuraremos algumas respostas para as questões levantadas, que deram
origem à nossa hipótese, quando nos interessamos por discutir, discursivamente, os PCNEFs
para a disciplina Língua Portuguesa.
Neste capítulo, portanto, analisaremos o enunciado, na sua repetibilidade, tendo em
vista uma leitura que levantará as marcas lingüísticas que são capazes, discursivamente, de
compreender a intra/interdiscursivade. Nessas inter-relações, analisaremos: a polifonia, que
materializa o outro no espaço do mesmo, perpassando os interdiscursos, e o outro que ocupa
o espaço do mesmo, ou o ethos constitutivo, perpassando o intradiscurso. Logo, nele,
analisaremos, necessariamente, alguns pontos de deriva do sujeito, embora o enunciado, pela
sua natureza genérica, tenha a pretensão de monofonização, questão que também será objeto
de análise. Além dessas marcas, procuraremos compreender quem assume as marcas da
subjetividade e o sentido que pode ser atribuído a essa subjetividade. Analisaremos, ainda, a
autoria, enquanto função-sujeito, e sua relação com a organização do enunciado. Cabe avaliar
que o ponto de partida dessas análises se dará através da localização do enunciado no gênero
discursivo ao qual pertence. Gostaríamos de destacar que toda a análise se dará, tendo em
vista a compreensão do caráter histórico/ideológico que subjaz a todo e qualquer enunciado,
relacionado à hipótese que foi posta para a investigação.
4.1 A relação do enunciado com o gênero do discurso: a definição do gênero
Para começarmos a discussão do gênero de discurso ao qual o enunciado está
ancorado, já propondo uma análise do corpus, retomaremos a discussão feita anteriormente,
que mostra a relação do Estado organizado com a produção de conhecimento, logo, com o
currículo. Embora já tenhamos discutido essa questão, não à exaustão, mas o suficiente para
se entender que ele (o Estado)e o currículo escolar se fundem em uma perspectiva de
representação de um tempo histórico, gostaríamos de retomá-la, ainda, sob o ponto de vista
de Sacristán (2000:107). Segundo o autor, o currículo não pode ser entendido à margem do
contexto no qual se configura, independentemente das condições em que se desenvolve, é um
objeto social e histórico e sua peculiaridade dentro de um sistema educativo é um importante
traço substancial. Isso implica, ainda nas palavras do autor, que o sistema curricular é objeto
de regulações econômicas, políticas e administrativas.
O enfoque que temos dado ao currículo, a partir das condições propostas por
Sacristán, está ligado à sua natureza oficial, portanto, para além de um fazer pedagógico que
emerja do imediato da sala de aula, ou de um programa a ser desenvolvido. Trata-se de um
enunciado de caráter prescritivo, originado dos lugares oficiais, que traz, na sua organização,
as regulações, sobretudo econômicas e políticas referenciadas. Segundo, ainda, o autor, ele é,
por essa razão, um campo ordenador decisivo.
Em relação ao nosso corpus de análise, cabe uma questão: é possível os PCNs serem
validados como um enunciado prescritivo? a princípio, pode se afirmar que não, já que ele
transita entre os conceitos científicos a serem assegurados, em nível nacional, e os conceitos
culturais, que precisam ser preservados, em nível regional e até local, sempre relacionado à
necessidade do aluno. Portanto, tratar-se-ia apenas de parâmetros que assegurariam uma
unidade nacional mínima. Mas, se se busca uma relação com a história, tanto a do Estado
brasileiro, que foi capaz de determinar a produção dos documentos, quanto aquela que está
para além das fronteiras, através dos organismos internacionais, é possível que se busque
uma leitura que permita um outro entendimento da questão.
Conforme busca histórica, as conferências de Jomtien e de Nova Delhi, que
originaram da determinação dos organismos internacionais, citados anteriormente,
fomentadores de políticas para os “países em desenvolvimento”, propuseram mudanças na
educação desses países, dentre essas, a mudança no currículo escolar. Se o Brasil foi
signatário dos princípios originados dessas conferências, se a reforma da educação coincidiu
com as determinações originadas dos organismos internacionais, pode-se considerar que os
PCNs, não só de Língua Portuguesa, mas de todas as disciplinas, inclusive as do ensino
médio, trazem um pressuposto implícito, que os caracteriza como enunciado prescritivo, ou o
que prescreve ações, através de objetivos implícitos e explícitos a serem alcançados, tendo
em vista a relação com as políticas a serem implementadas. Por essa razão, mais do que
parâmetros, o que há é um enunciado prescritivo, perpassando um currículo prescrito.
Mas, quando se considera um enunciado sob esse ponto de vista, ou, conforme
entendimento de Bakhtin, como prescritivo, de natureza normativa, não significa
desqualificar esse sentido. O que pretendemos considerar é o significado das prescrições, nos
contextos de origem, ou as regulações que subjazem a ele. Apple (1999:80), a propósito das
reformas curriculares, ocorridas na década de 1990, afirma que o currículo nacional é um
mecanismo para o controle político do conhecimento, através de um sistema massificado de
avaliação. Esse controle resultaria, a médio prazo, em um rearranjo na sociedade capitalista
neoliberal, promovendo a igualdade social e, conseqüentemente, a sociedade de consumo. É
nesse sentido que se pode considerar os PCNEFs como um enunciado prescritivo. E o que
significam tais prescrições no contexto? Já na carta de apresentação que o então Ministro da
Educação Paulo Renato Souza endereça ao professor, convocando-o para um papel a ser
exercido, é possível buscar o que significariam tais prescrições.
Vivemos numa era marcada pela competição e pela excelência, em que
progressos científicos e avanços tecnológicos definem exigências novas
para os jovens que ingressarão no mundo do trabalho. Tal demanda impõe
uma revisão dos currículos, que orientam o trabalho cotidianamente
realizado pelos professores e especialistas de nosso país. (Carta do Ministro
da Educação aos professores – grifos meus).
Nesse fragmento da carta, há dois pontos que precisam ser observados em relação ao
contexto histórico e às prescrições feitas. Num primeiro plano, o Ministro se junta a um
ponto de vista comum, que pode ser compartilhado com seus interlocutores, através de um
nós que, discursivamente, segundo Maingueneau (2002:127), não representa um sujeito
coletivo, mas é um eu expandido, difuso, para trazer à tona o momento histórico/econômico
mundial. Intencionalmente, ele parece querer sensibilizar o interlocutor para o grande projeto
de educação que o governo estava colocando não só à disposição da comunidade escolar,
mas, sobretudo, do país. Trata-se de um discurso conciliatório no qual governo, escola e
sociedade precisam se unir em torno de um grande projeto de governo que consolidaria um
projeto de nação que estava sendo implementado. Isso significa que esse nós difuso, no
contexto da carta, é a representação do sujeito no tempo e no espaço históricos referenciados,
tendo a forma verbal vivemos como denotação de um presente que atualiza o discurso para a
contemporaneidade, alargando o seu sentido para além de um espaço determinado, indo se
alocar no contexto mundial recente.
Num segundo plano, há uma ruptura com uma formação discursiva que se institui
como uma voz que se caracteriza como um consenso geral, para dar lugar à voz de
autoridade, que mostra a necessidade da reforma curricular, marcada na forma presente do
verbo impor, que, no contexto, tem, mais do que um caráter de datação presente, um caráter
imperativo. Essa alternância de vozes vai dando lugar ao discurso institucional, e também o
tom de autoridade que lhe pode ser conferido, de forma a prescrever as ações dentro do
contexto. Isso implica que o Estado está propondo um currículo para atender a uma
necessidade demandada.
Pelo que se avaliou, até aqui, então, sobre o currículo, já é possível avaliar que, ao
longo do documento, a história não será vista na relação com o sujeito, menos ainda, na
relação com a luta de classes, mas sim como um deslocamento para o que Foucault
caracterizou como mascaramento das forças em confronto, ou a história tradicional, tendo a
escola um papel a cumprir nesse contexto. O que deveria ser, em se tratando da produção de
conhecimento, uma construção, ou seja, os sujeitos irem se constituindo, para a autonomia,
deverá se inverter, dando lugar a uma determinação histórica, ou, para tomar o termo de
Althusser, a uma interpelação histórico/político/econômica.
Enquanto enunciado oficial prescritivo é possível enquadrar o currículo em um
gênero do discurso? Bakhtin (1992:303) fala dos gêneros discursivos de natureza oficial e os
caracteriza como padronizados, apresentando um estilo elevado e uma estabilidade constante
na sua organização. Isso implica que é possível enquadrar o currículo, enquanto enunciado
oficial, em um gênero particularmente seu, já que ele se apresenta, na sua organização
enunciativa, sempre, através de um conteúdo temático, que são os conteúdos didáticos e
metodológicos das diferentes disciplinas que o compõem, de um estilo particularizado,
organizado através de objetivos, de metodologias, de conteúdos e de avaliação, sendo esses
elementos os que deverão propor uma construção composicional adequada. Enquanto
enunciado oficial, cabe ressaltar que ele é, também, representado em um suporte, que
demonstra uma correlação de forças que o sustenta, materializando a sua natureza ideológica.
Pelos PCNs, esse suporte se materializa na referência do documento, que, por sua vez,
materializa o poder central, através dos órgãos legítimos de representação: MEC (Ministério
de Educação e do Desporto), SEF (Secretaria de Educação Fundamental), assumindo as
posições teórico/metodológicas dos documentos.
Dada a organização do enunciado, portanto, pode-se assumir que o currículo,
enquanto dito de natureza oficial, explicita uma organização que o ancora em um gênero
discursivo. Mas a pergunta que se faz é: em que gênero estaria o currículo, enquanto
enunciado prescritivo, de natureza oficial, enquadrado? De forma objetiva, poder-se-ia
caracterizá-lo como curricular. Mas, do que temos observado, as organizações enunciativas
que podem ser caracterizadas como tal, tem se desviado da sua forma canônica de
representação. O conceito de gênero discursivo que temos tomado como parâmetro remete
para os pressupostos levantados por Bakhtin (1992). Retomando as considerações do autor,
para ele, os elementos que constituem um gênero discursivo se constituem, também, em uma
organização constante, que é o que permite a possibilidade de situar um enunciado em um
gênero discursivo. Mas o próprio autor, referindo-se ao estilo, afirma ser possível um gênero
encampar outros gêneros, produzindo, às vezes, a sua destruição, o que provoca a sua
renovação. (Bakhtin:1992:286).
Em se tratando do currículo, segundo Marinho (2001:213), a propósito das notas de
rodapé, que têm sido parte da estrutura dos enunciados caracterizados como tal, citando
Moirand, esse discurso tem se mostrado de forma a parecer querer maximizar uma tendência
de discurso didático, que se caracteriza pela integração de determinadas noções, sem
nenhuma referência histórica, apresentada como uma evidência ou como uma necessidade. A
caracterização desse enunciado se daria a partir de estratégias interdiscursivas, tais como:
divulgação, transmissão, vulgarização, ou transposição didática de um conhecimento. Essa
interdiscursividade marcada se encarrega de dizer a forma como esse enunciado periférico se
organiza, ancorando-o como gênero de divulgação científica.
Mas, apesar da classificação do currículo, na sua natureza genérica, em um gênero de
divulgação científica, Machado e Bronckart (2005: 187), ao analisarem os documentos
produzidos no Brasil e na Suiça, no caso em apreço, os PCNs e Les objectifs d’apprentissage
de l’ecole primaire genevoise, afirmam que os enunciados prescritivos apresentam uma certa
dificuldade de delimitação e de classificação do gênero a que pertencem. Ainda segundo os
autores, Garcia-Debanc (2001:67) afirma que os textos que prescrevem ações constituem um
conjunto menos homogêneo e menos bem definido que os textos de relatos. Já Adam (2001)
diz tratar-se de enunciados que se constituem de uma “nebulosa genérica”. Cabe ressaltar
que, por essas considerações, sempre que falarmos em gênero de discurso de divulgação
científica, relacionado ao corpus de análise, na medida do possível, ressaltaremos a
complexidade que lhe diz respeito.
Mas o que define o um gênero como sendo de divulgação científica? Segundo
Authier-Revuz (1998), o gênero de discurso de divulgação científica opera as representações
do discurso científico de produção de conhecimento e do discurso pedagógico de transmissão
institucional de conhecimento. Na sua característica, ele reformula um discurso fonte, de
natureza científica, transformando-o em discurso segundo que, em relação ao enunciador,
dialoga tanto com a ciência, portanto, na verticalidade da construção de um determinado
conceito, quanto com o interlocutor, na sua horizontalidade, buscando um receptor diferente
daquele originado da comunidade científica. Não é sem razão que a autora afirma que o
gênero de divulgação científica abre lugar para uma configuração de papéis que o qualifica
como uma representação de três lugares com duas extremidades. De um extremo a outro, em
primeiro lugar, está a ciência, caracterizada pela polifonia que lhe é própria, em segundo
lugar, o leitor presumido, e, por fim, o divulgador que, na concepção da autora, ocupa um
estatuto de ambigüidade. Essa ambigüidade se constitui no espaço mesmo da transposição,
pois, ao mesmo tempo em que esse divulgador precisa lidar com a originalidade do autor, ele
precisa, também, primar pela clareza do enunciado, o que o qualifica como comentador, que
se apaga no discurso, para colocar em cena os dois pólos em contato, sendo esse o espaço do
leitor presumido.
Não se pode perder de vista que a passagem do discurso científico para o de
divulgação científica se constitui em um espaço discursivo, já que ele é capaz de retratar, nos
intervalos, as intenções, sejam elas quais forem, com as quais se deu o processo. Outro ponto
para o qual Authier-Revuz (1990) chama a atenção diz respeito à sua natureza
metalingüística. Por essa razão, o enunciado de divulgação científica deverá se caracterizar,
sempre, como uma metalíngua do enunciado fonte, que materializa a reformulação de um
discurso científico para um discurso cotidiano, mais coloquial, com o objetivo de produzir
discursos que se caracterizam como transmissão de conhecimento, o que lhe dá uma
característica de gênero didático.
Do discurso de divulgação científica, segundo Leibruder (2000:234), pode-se dizer
que ele é atravessado por dois outros gêneros discursivos, que seriam o científico e o
jornalístico, sendo esse o espaço de transmissão de um conhecimento de forma didática. Mas,
se se considera que as organizações curriculares têm, também, se organizado através do
gênero de discurso de divulgação científica, resta saber se existem marcas de distinção entre
um e outro. No nosso entendimento, existem marcas que os qualificam de forma distinta. No
que se refere ao gênero de divulgação científica, ancorado no gênero jornalístico, a
transposição didática ritualiza um saber ensinado, que veicula conceitos que visam a um
público desprovido deles e que se torna um leitor em potencial.
Diferentemente do gênero de divulgação científica que se ancora no jornalístico, se se
considera o currículo como um gênero de divulgação científica, a sua ancoragem se daria no
próprio currículo, ultrapassando a noção apenas de transmissão de conhecimento, no
processo em si, já que nele não há só um saber ensinado. Essa condição do enunciado o
aloca, também, em um saber a ser ensinado, o que o caracteriza como sendo de natureza
prescritiva. Por essa razão, o público visado, nesse contexto, não é virtual, mas é real e se
materializa na comunidade escolar, que determina a forma como o discurso da ciência deve
ser reformulado. A diferença suposta para o gênero de divulgação científica, subsumida pelo
currículo, se constitui em uma interdiscursividade que denota a forma como deve se dar a
transposição didática, que transforma a ciência em um saber ensinado e também em um saber
a ser ensinado. Trata-se de um percurso que transpõe uma ciência para um campo didático,
transformando a ciência em objeto de ensino, no espaço escolar. Esse percurso, que, para um
olhar leigo, pode parecer simples, segundo Delamotte-Legrand (2002:133), envolve múltiplas
relações, considerando a ciência em questão. Segundo a autora, essas relações se constituem
em um espaço no qual se elaboram, entram em conflito e modificam as relações com os
saberes, tanto dos aprendizes como dos professores.
As considerações sobre a transposição didática em um enunciado prescritivo
implicam um espaço de tensão no qual vão sendo agregadas ao campo da ciência valorações
que perpassam outras concepções, como as políticas, as histórico/ideológicas, as econômicas,
ou mesmo as epistemológicas, que sustentam as concepções didático/científicas, enfim, os
valores desejados para os campos nos quais os “saberes devem funcionar”. Essas
considerações a respeito do currículo implicam que, muito além de se considerarem os
conceitos tomados da ciência, didatizando-os, estão o modo de organização desses conceitos
e a intenção com que eles são levantados de um determinado campo científico. Se se
considera que não há discursos isentos, mesmo aqueles que resultam de reformulações de
conceitos científicos, já que a eles subjaz um olhar, o espaço da transposição didática se
constitui em espaço ideológico.
4.1.1 Voltando o olhar para os PCNEFs de Língua Portuguesa: a relação com o gênero
Se há uma tendência recente de ancoragem do currículo em um gênero de divulgação
científica, conforme considerações anteriores, que se constitui em uma interdiscursividade,
marcada entre o didático e o prescritivo, resta saber se essa é, também, a condição do nosso
corpus de análise. Para focalizarmos o nosso olhar em busca dessa questão, começaremos
fazendo uma síntese da forma como estão organizados os PCNEFs de Língua Portuguesa. A
sua estruturação se constitui de interdiscursos: em primeiro lugar, através de uma série de
objetivos para o ensino fundamental. Isso já determina que ele está inserido em um conjunto
de tantos outros documentos, assegurando-lhe uma relação com conceitos básicos que estão
dispersos no enunciado, tais como: as noções de competência, de transversalidade, de
transdisciplinaridade, de interdisciplinaridade, de individualidade, de cidadania, entre
outros. Cabe ressaltar que os objetivos são um elemento constitutivo do gênero de discurso
de natureza curricular, logo, de natureza prescritiva.
Em segundo lugar, há uma apresentação da área de Língua Portuguesa, contendo os
conceitos que deverão sustentar o trabalho com a linguagem, ao longo de todo o ensino
fundamental, da 1ª à 8ª série, juntamente com orientações metodológicas para a disciplina,
sem nenhuma referência a autores da lingüística ou da didática. Nesse ponto de organização
do enunciado, há uma interdiscursividade, através da qual assumem-se os pressupostos tanto
de natureza lingüística quanto de natureza pedagógica. Mas, antes de se chegar à proposta de
trabalho propriamente dita para a disciplina Língua Portuguesa, no segundo ciclo do ensino
fundamental, há, ainda, uma fundamentação teórica de base psicológica, que considera as
condições comportamentais do “sujeito adolescente”.
Por fim, em terceiro lugar, há o que se pode compreender como “parâmetro” para a
disciplina Língua Portuguesa para o segundo ciclo do ensino fundamental. Trata-se da
organização final do documento, que apresenta conteúdos em discursos que podem ser
caracterizados como de orientação teórica e metodológica, portanto, de natureza científica e
curricular.
O aparato organizacional acima, que engloba os conceitos das ciências lingüística e
pedagógica, indicam que há conceitos transpostos para um saber ensinado e também para um
saber a ser ensinado, impondo ao enunciado um caráter didático e prescritivo. Por essa
organização, pode-se começar a entender que se trata de um enunciado que se ancora na
tendência recente para o currículo, que é o da divulgação científica. Dentre os vários
conceitos que permeiam o enunciado, dada a presença marcante do conceito de competência,
originado das ciências didáticas, que, de certa forma, deverá dar o tom do discurso,
confirmaremos essa questão em torno dele.
A razão pela qual estamos optando por esse conceito não é aleatória. Conforme
consideração já tomada em Lopes (2006), anteriormente, ele foi o marco teórico fundador
dos PCNs, tanto em nível de ensino fundamental como em nível de ensino médio, se
constituindo no grande objetivo a ser alcançado, e, quem sabe, na novidade a ser difundida,
já que, em se tratando do ensino da linguagem, os conceitos a serem desenvolvidos já faziam
parte das discussões por todo o país. O estudo de Marinho demonstrou o status que a
lingüística já estava ocupando, na década anterior, nos currículos desenvolvidos na maioria
dos estados e em alguns municípios brasileiros, após a ditadura militar. A grande necessidade
a ser considerada diz respeito ao atrelamento do conceito de competência aos conceitos
lingüísticos que permeiam a proposta de trabalho com a linguagem. Portanto, as
considerações feitas sobre o marco teórico firmado nas competências estão para além do
lingüístico e remetem para um conceito pedagógico, guardando relação com a produção de
riqueza e com o processo industrial/tecnológico e consumista que se instaurou no mundo
globalizado.
As avaliações, feitas anteriormente, indicam que, além de o conceito de competência
fundar uma outra episteme, que não a lingüística, ele delimita o papel da educação no
contexto. Haja vista a consideração de Chauí (1997) a respeito da ciência e a sua relação com
o modelo de Estado Neoliberal. Retomando a posição da autora, ela considerou como forças
produtivas, que deixaram de ser mero suporte do capital para se converter em agentes de sua
acumulação. Esse percurso da ciência e da tecnologia mudou o modo de inserção de
cientistas e de técnicos na sociedade, transformando o conhecimento e a informação em
monopólio do capitalismo. Esse pressuposto tem como causa fundadora uma ciência útil para
os usos necessários. Quando fizemos uma reconstrução histórica, mesmo que elementar, dos
modelos de estado, na modernidade, o fizemos na intenção de recuperar a relação que a
educação sempre ocupou nos contextos, sobretudo econômicos. O percurso feito, à exceção
do modelo de Estado caracterizado como de Bem-estar, que teve a pretensão de propor uma
outra relação com a educação, mostrou a produção de conhecimento ligada à produção de
riqueza e à divisão social do trabalho
Em se tratando dos PCNEFs de Língua Portuguesa, o documento reúne interdiscursos
que são permeados por esse conceito chave, que é o das competências, que deverão conduzir
o trabalho com a linguagem. Trata-se de uma metalinguagem dispersa no enunciado, que
deveria sustentar os conceitos teórico/metodológicos, ou até mesmo a forma em que deve se
dar as informações julgadas necessárias para a implementação do projeto educacional que se
materializou no conjunto dos documentos. Tomada a questão das competências a serem
desenvolvidas como uma epistemologia, se o trabalho com a linguagem deverá se dar sob um
pressuposto discursivo, as competências a serem desenvolvidas deverão ser fundamentadas
no princípio da competência discursiva, sendo esse um conceito a ser divulgado.
Toda educação comprometida com o exercício da cidadania precisa criar
condições para que o aluno possa desenvolver sua competência discursiva.
Um dos aspectos da competência discursiva é o sujeito ser capaz de utilizar
a língua de modo variado, para produzir diferentes efeitos de sentido e
adequar o texto a diferentes situações de interlocução oral e escrita.
(PCNFFs:23 - grifos meus)
Essa concepção de competência discursiva, que se confunde com o objetivo do ensino
da linguagem, se constitui em interdiscursos que arregimentam conceitos didáticos, que
deverão traçar os parâmetro para a disciplina Língua Portuguesa. Cabe ressaltar que esse
objetivo deverá sintetizar o parâmetro para o estudo da linguagem, tendo em vista a
competência a ser desenvolvida. (...) a aula deve ser o espaço privilegiado de
desenvolvimento da capacidade intelectual e lingüística dos alunos, oferecendo-lhes
condições de desenvolvimento de sua competência discursiva. (PCNEFs:30 - grifos meus).
Cabe, no contexto de análise, retomar Maingueneau (2005) e suas considerações a
respeito desse objeto do discurso. Para o autor, a linguagem precisa ser considerada como
algo que permite construir e modificar as relações, portanto, deve ser compreendida como
lugar de formulação/reformulação de discursos em movimento. Por esse entendimento da
linguagem, dialeticamente, ela é lugar de alteridades, logo, por natureza, do ideológico. Mas,
a considerá-la a partir do conceito de competência, que se traduz em competência discursiva,
ao ser transportada para um campo didático, como objeto de ensino, ela é entendida como
discursividade, se deslocando para um campo concreto de uso, porém, concebida apenas
como aprendizado e não como constitutividades. Isso implica que o trabalho com a
linguagem, que deve se dar em torno da produção de textos orais e escritos, em torno da
leitura e da reflexão sobre a língua, ao se sustentar nesse conceito pedagógico, encaminha o
ensino de língua materna para além das regras abstratas da gramática, porém, com o mesmo
objetivo, pois a construção do conhecimento, sustentada nesse pressuposto, se enquadra em
um caráter de utilidade, logo, ssupõe o conhecimento de forma utilitária.
Em discussão anterior, buscamos as definições existentes para o conceito de
cidadania. Dentre esses, levantamos aquele que se adequa ao momento político/econômico
mundial, que é a cidadania para o consumo. Ao se relacionar a produção de conhecimento
escolar, atualmente, com esse conceito, prescrevendo os seus objetivos, sob o ponto de vista
utilitário, politicamente, a escola terá cumprido o seu papel, atendendo ao que se concebe
para a educação, no contexto histórico não só mundial, mas, sobretudo, brasileiro. Nesse
contexto, pode-se compreender a forma como as relações de poder se estabelecem, e, de que
forma elas são exercidas. Cabe retomar Foucault (2003 ) e a sua consideração sobre essa
questão. Segundo o autor, as relações de poder são múltiplas, atravessam o corpo social e se
constituem nele. Trata-se do que o autor chamou de micro-física do poder. Os PCNEFs de
Língua Portuguesa encaminham, no seu tecido, de forma velada, um processo de produção do
conhecimento que perpassa os objetivos que a educação deve ter no contexto histórico de
globalização, relacionado a esse exercício, logo, nele, exerce-se, de forma velada, o poder,
dispersos nos objetivos da educação. Vejamos essa questão no fio do enunciado.
(...), nas inúmeras situações sociais do exercício da cidadania que se
colocam fora dos muros da escola – a busca de serviços, as tarefas
profissionais, os encontros institucionalizados, a defesa de seus direitos e
opiniões – os alunos serão avaliados (em outros termos, aceitos ou
discriminados) à medida que forem capazes de responder a diferentes
exigências de fala e de adequação às características próprias de diferentes
gêneros do oral (...). (PCNEFs:25).
No fragmento acima, ao serem levantadas as diferentes situações de uso concreto da
língua - da busca de serviço, as tarefas profissionais, os encontros institucionalizados, a
defesa de seus direitos e opiniõespropõe-se a produção de conhecimento em linguagem,
não para a autonomia, mas para o exercício da cidadania, na perspectiva suposta para esse
conceito, no contexto histórico, através de um uso concreto, porém de natureza utilitária.
Trata-se, portanto, de um poder exercido, que, de forma velada, direciona a escola para o que
se deseja, materializada, sobretudo no currículo, prescrevendo os objetivos da educação para
o contexto.
O caráter utilitário da linguagem que permeia todo o enunciado, se materializa nas
diferentes etapas da produção do conhecimento, sobretudo nos objetivos a serem alcançados.
Mas, sobre a oralidade, enquanto objeto de ensino, pareceu recair maior ênfase. Aliás, trata-
se de uma situação já prevista, conforme fragmento analisado anteriormente. Essa ênfase está
marcada também no objetivo a ser alcançado, ao se propor a oralidade como conteúdo a ser
ensinado. Vejamos:
na produção de textos orais, espera-se que o aluno:
Planeje a fala pública, usando a linguagem escrita em função das exigências da situação e
dos objetivos estabelecidos; (PCNEFs: 51 - grifos meus).
Cumulativamente, esse objetivo articula interdiscursos que devem precisar o discurso
da ciência lingüística com o discurso didático/pedagógico, propondo a oralidade como um
aprendizado necessário, constitutivo do espaço escolar, para situações de uso concreto, de
natureza instrumental. Trata-se, portanto, de um lugar de tensão ideológica no qual a forma
como se dá a proposição do saber a ser ensinado está relacionada aos interesses políticos, que
desincompatibilzam o Estado do seu compromisso com uma formação para a autonomia. O
caráter prescritivo do enunciado se encarrega de dizer o objetivo da oralidade no segundo
ciclo do ensino fundamental. Aliás, essa é uma questão que será discutida, posteriormente, de
forma mais aprofundada. Aqui se confirma o pressuposto do processo de didatização da
ciência. Conforme consideração de Delamotte-Legrand (2002), o processo é complexo. Pela
nossa observação, ele deixa perpassar olhares diferenciados para o mesmo conceito,
transformando esse espaço em tensão ideológica.
Mas o conceito de gênero de divulgação científica, conforme considerações de
Authier-Revuz, (1998), entrecruza discursos da ciência em apreço com discursos que cortam
o fio do enunciado, sob o ponto de vista do próprio divulgador, que ocupa o papel de
comentador. Esse papel visa a dar visibilidade ao conceito ou aos conceitos a serem
divulgados, sem, contudo, perder de vista o caráter científico do enunciado ou dos
enunciados fonte. É nesse espaço que se estabelece a ligação entre os pólos discursivos,
marcado pelos interdiscursos que atravessam o enunciado, dando lugar ao objeto científico da
divulgação, transpondo-o para um caráter didático e, no caso do currículo, .também
prescritivo. Trata-se dos comentários dispersos, numa linguagem coloquial, que colocam
enunciador e co-enunciador em um espaço de discurso, mais precisamente, o da ciência, de
forma a instaurar nele um novo discurso.
Enquanto gênero de discurso de divulgação científica, estariam os PCNEFs de Língua
Portuguesa em acordo com essa forma de representação desse gênero? ou seja, eles
apresentam comentários que são a voz do divulgador, tendo em vista a explicitação do
conceito levantado da ciência? As muitas idas ao texto já nos autoriza a começar a avaliar
que, além de o enunciado remeter para o discurso da ciência, através de conceitos que
emergem de discursos fonte, buscados nas ciências lingüística e pedagógica, ele também se
constitui através de comentários. Mas cabe ressaltar que os comentários, no contexto do
documento, parecem ir além de uma linguagem cotidiana, para dar lugar a uma linguagem,
tomando de empréstimo o termo de Marinho (2001), professoral, que deixa permear outros
conceitos que ajudam a traduzir o conceito ou os conceitos chave necessários aos objetivos
pretendidos, ao longo da construção do enunciado. Tal como fizemos com o conceito de
competência, aqui, também, levantaremos comentários que se traduzem em elementos
discursivos para o gênero de divulgação cientifica, também com base no conceito de
competência.
(...) É o que aqui se chama de competência lingüística e estilística. Isso, por
um lado, coloca em evidência as virtualidades das línguas humanas: o fato
de que são instrumentos flexíveis que permitem referir o mundo de
diferentes formas e perspectivas; por outro lado, adverte contra uma
concepção de língua como sistema homogêneo dominado ativa e
passivamente por toda a comunidade que o utiliza. (PCNEFs:23 – grifos
meus).
O fragmento de texto acima remete para o que tomamos, anteriormente, com a
intenção de se levantar o conceito de competência discursiva. Isso implica que, na
organização do enunciado, esse fragmento em questão deve ser caracterizado como um
comentário, originado do conceito levantado. Enquanto comentário, chamou-nos a atenção as
vozes que dialogam entre si, tanto na sua verticalidade quanto na sua horizontalidade. Apesar
de o enunciado, como um todo, se caracterizar por uma quase ausência de elementos
marcadores de polifonia, no fragmento, há vozes em conflito, que denotam formações
discursivas que traduzem inter-relações que se constituem nos discursos das ciências
lingüística e didática.
Em primeiro lugar, pelo fato de o fragmento remeter para outro fragmento, que define
o que se pode compreender por competência lingüística, gostaríamos de destacar o locus
discursivo, representado pelo dêitico aqui. Através desse elemento discursivo, denotam-se
vozes que dialogam entre si, através de comentários implícitos ou de argumentos que são a
recusa dos conceitos de competência, assumidos pela lingüística. Isso implica que, nesse
fragmento, há discursos concorrentes, do domínio das ciências lingüística e pedagógica nos
quais há a sobreposição do pedagógico em relação ao lingüístico, coberto pelo princípio da
pedagogia das competências.
A sobreposição do pedagógico sobre o lingüístico indica que as poucas vezes em que
o dêitico aqui corta o fio do enunciado, ele parece querer fincar uma marca, chamar a atenção
do leitor para os argumentos que podem emergir dele, legitimando posições a serem
asseguradas. Isso indica, ainda, que ele produz uma espécie de barragem no discurso da
ciência a ser ensinada, confirmando um pressuposto teórico que não pode se perder no
ensino, no caso em apreço, da linguagem. Nesse, como em tantos outros pontos de deriva do
sujeito, instaura-se uma horizontalidade do discurso, já que ele traz, para a repetibilidade do
enunciado, um outro, que precisa compreender de que competência se fala. Essa
interdiscursividade, que parece remeter para o próprio enunciado, ultrapassa os seus limites,
deixando vazar a história oficial recente, que tem proposto o currículo com o objetivo de
tornar o aluno competente, discursivamente, preparando-o para o exercício da cidadania.
Em segundo lugar, prosseguindo com o comentário, ainda no mesmo fragmento, a
voz do divulgador abre espaços na horizontalidade do enunciado, reformulando conceitos que
articulam formações discursivas que remetem para um conflito instaurado entre o novo e o
velho da ciência lingüística. Essa ruptura, que pode parecer transparente, guarda na sua
construção, a complexidade do processo enunciativo. Através de uma heterogeneidade
marcada, as vozes que emergem do comentário ocupam espaços discursivos diferenciados.
Apesar de termos mostrado, anteriormente, que os discursos em confronto permeiam os
campos da pedagogia e da lingüística, havendo sobreposição do primeiro sobre o último, a
seqüência do comentário é marcada por fissuras que captam o discurso da lingüística. Nessa
captura, busca-se, através do demonstrativo isso, um comentário que evidencia a voz do
divulgador que, alternada entre os pólos por um lado/por outro lado, mostra a dinamicidade a
que a língua humana está submetida, em detrimento de uma língua homogênea, que pode ser
dominada por todos, de forma também homogênea. Por essa polaridade, por mais que se
considere uma proposição interessante, em função do que tem significado o ensino de língua
materna, ela denota uma subjetividade fraturada, que transita entre o lingüístico e o
pedagógico, acabando por deixar sobrepor, nesse contexto, o lingüístico, em detrimento do
pedagógico.
Para finalizar, do conceito traduzido da ciência para o campo didático, ao comentário
articulado entre o lingüístico e o pedagógico, o que há são propostas que indicam o saber a
ser ensinado, a partir de uma “ruptura com o velho” e a forma de trabalhar com a linguagem,
enquanto objeto de ensino, considerando não só a discussão que a lingüística, nas suas mais
diferentes vertentes, passou a implementar, mas também o caráter histórico e político a que o
ensino sempre esteve submetido. Esse trânsito entre o lingüístico e o pedagógico, que capta,
também, o histórico, vai determinando, na organização do enunciado, entre outras coisas, o
que justifica uma proposta curricular, em nível nacional. É esse trânsito, também, que
justifica um enunciado ancorado no gênero de divulgação científica, já que, por essa
organização, apresentam-se os conceitos necessários aos objetivos a serem alcançados na
educação. Cabe ressaltar que essa questão será retomada quando, no próximo capítulo,
discutirmos o processo de didatização que os PCNEFs de Língua sugerem para a disciplina, e
a relação desse processo com o projeto do governo FHC.
4.2 A intra/nterdiscursividade: os outros no discurso do mesmo
Conforme discussão anterior, o discurso se constitui em uma representatividade que
se organiza em dois eixos, que são o horizontal, buscado na linearidade do enunciado, e o
vertical, buscado no pré-construído. Por essa condição, ele é sempre lugar tenso, de discursos
em confronto, que constitui a intra/interdiscursividade, caracterizando-o como
dialético/dialógico. Materializando a questão, trata-se, segundo Brandão (1998:129), da
repetibilidade dos discursos, que se dá na repetição dos elementos na construção do
enunciado, que atualiza as formações discursivas do sujeito, sob o ponto de vista sincrônico,
e da memória discursiva, que remete para as formações discursivas, que constituem,
historicamente e ideologicamente, as subjetividades. Por um e por outro elementos do
discurso, pode-se perceber o comprometimento entre a interdiscursividade e a
intradiscursividade, o que implica dizer que uma é a prerrogativa da outra.
Mas, apesar dessa tensão constitutiva, há enunciados que se pretendem monofônicos,
conforme já considerado, ou seja, dão a impressão de falar por eles mesmos, através de uma
pretensão de “transparência” na sua organização. Os discursos oficiais são eivados dessa
pretensão, provocando, naturalmente, um distanciamento do seu lugar de origem, tendo em
vista uma isenção dos enunciadores. Mas essa não é condição apenas do discurso oficial. O
discurso de divulgação científica também se constitui nessa condição.
Pelas razões discutidas anteriormente, cabe, aqui, retomar Leibruder (2000:241) e o
que a autora avalia a respeito dessa organização discursiva. Através de mecanismos
lingüísticos, no discurso de divulgação científica, o espaço reservado ao sujeito é
preenchido pela voz dos objetos e idéias tratados pelo texto, que passam a falar por si sós.
Por uma dupla razão, então, pode-se dizer que o enunciado que está posto para análise pode
ser caracterizado por uma pretensa monofonização. Mas, pelo que já consideramos, quando
caracterizamos o corpus de análise como gênero de divulgação científica, essa é uma questão
que não se sustenta. Isso implica que, por todo o enunciado perpassa uma
intra/interdiscursividade, capaz de supor o outro, possível de ser materializado nos
interdiscursos, e o outro, também possível de ser materializado nos intradiscursos.
Neste ponto de discussão, através de algumas marcas lingüísticas, pretendemos
levantar as relações intra/interdiscursivas que permeiam o enunciado, na tentativa de
aproximar as vozes que emergem tanto na sua verticalidade quanto na sua horizontalidade,
capazes de denotar a sua relação com a hipótese a ser investigada. Se o enunciado, pela sua
natureza genérica, tem uma pretensão de monofonização, em algum ponto, discutiremos as
estratégias discursivas através das quais ela se dá. Começaremos essa discussão pela
interdiscursividade, ou pelas vozes em conflito, capazes de remeterem o enunciado ao seu
ponto de origem. Embora já tenhamos feito menção à polifonia, no ponto anterior, quando
tratamos da noção de gênero ao qual o enunciado está ancorado, aqui, temos como objetivo a
aproximação da hipótese levantada com os discursivos concorrentes, capazes de fazer
emergir o discurso desejado.
4.2.1 Interdiscursos e memória discursiva: a polifonia
Para a discussão proposta nesse ponto, remeteremo-nos, inicialmente, aos objetivos
gerais do ensino fundamental, da primeira à oitava série. Essa discussão deverá se dar sob
dois pontos de vista tomados como fundamentos para a questão. Isso indica que faremos uma
análise sustentada não só nas considerações supostas por Authier-Revuz (1990), buscando
uma leitura que se sustenta nas heterogeneidades, sobretudo, constitutivas, dada a condição
de produção do enunciado, mas também sob o ponto de vista de Maingueneau (2005:37).
Esse autor considera o problema também a partir dos discursos recusados no discurso
segundo, que podem ser identificados no discurso primeiro.
A interdiscursividade, vista sob o ponto de vista de Maingueneau, é concebida a partir
da relação do discurso com o seu outro, em um caráter de recusa desse outro, que pode ser
compreendido como indesejado. Em outras palavras, trata-se da negação de discursos,
resultante de conflitos que se instauram, denotando a sua natureza dialético/dialógica, que faz
emergir o discurso, a partir das formações discursivas nas quais os sujeitos se constituem.
Esse espaço de tensão, que é ideológico, remete para um dos elementos fundadores do
discurso, que é a memória discursiva. Trata-se de um espaço do qual se pode falar em direito
e em avesso. O primeiro remete para as formações discursivas nas quais o sujeito se constitui,
representado na repetibilidade do enunciado, já o segundo impõe as rejeições ou a negação
dos discursos conflitantes.
Antes de tomarmos a discussão que deverá tratar da interdiscursividade, retornaremos
ao sentido que o currículo passou a ter quando a escola se tornou laica e de responsabilidade
do Estado. Essa escola laica, que, como se sabe, produziu escolas diferenciadas para classes
sociais diferenciadas, coincidiu com algumas questões, que também têm feito diferença, ao
longo de todo a modernidade, dentre essas, destacam-se a forma disciplinar de organização
do conhecimento e a racionalidade que se abateu sobre o mesmo, tendo como pressuposto a
lógica matematicista, sobretudo, a partir do iluminismo, que acompanhou o desenvolvimento
das ciências, nesse contexto.
A questão acima retomada se confirma em Foucault (1992: 139), que afirma que a
história das idéias ou das ciências imputaram ao século XVII e, sobretudo, ao século XVIII,
uma curiosidade nova, que foi, se não descobrir, pelo menos dar uma amplitude e precisão às
ciências da vida. Cabe avaliar que é nesse espaço que a diferença se fez, aquela produzida
para classes sociais diferenciadas, já que o conhecimento se dicotomizou entre saber
científico e saber empírico. Mas a lógica matematicista, que permeou o conhecimento até
meados do século XX, começou a ser questionada na década de 1960. Segundo Silva
(2005:29), os grandes acontecimentos que se traduziram em ruptura com a própria história,
nesse período, foram suficientes para colocar em xeque o pensamento e a educação
tradicionais.
A desconfiança originada da tradicionalidade abriu espaço para alguns outros
modelos diferenciados de currículo, o que indica que a sua desconstrução/reconstrução tem
se fundamentado em alguns interesses distintos para a educação. Ao se propor romper com a
lógica matemática, a partir da década de 1960, os modelos de currículo foram construídos,
primeiramente, sob o princípio da pedagogia crítico social, já definida anteriormente, e,
atualmente, têm se fundamentado em princípios cujos pressupostos são
sócio/histórico/culturais
6
. Esses princípios têm sugerido a produção de conhecimento fora das
organizações disciplinares, levantando, para estudo, as grandes questões que dizem respeito à
sociedade contemporâneas.
No corpus que está sendo analisado, no ponto em que se materializam os objetivos do
ensino fundamental, a discursividade se sustenta em uma interdiscursividade que denota
formações discursivas que concebem o conhecimento de forma integrada. Através dessa
discursividade, então, pode-se identificar uma proposição de currículo que se apresenta sem
nitidez entre as diferentes disciplinas. Mas essa é, de fato, a forma através da qual se
constituem os PCNEFs? Politicamente, essa forma de organização atenderia aos interesses?
Haveria um outro, interlocutor, capaz de compreender o currículo nessa complexidade? Essas
são questões que serão discutidas, posteriormente. Por enquanto, vejamos pelos próprios
objetivos, o sentido primeiro do currículo de natureza integrada.
6
Teorias sócio/histórico/culturais são, segundo Paraíso (2004), correntes teóricas conhecidas sob os rótulos de
pós-estruturalismo e de pós-modernismo, que influenciaram, sobretudo, as ciências sociais e humanas. Em
educação, segundo a autora, elas têm se caracterizado pelo rótulo de teorias pós-críticas. Grosso modo, essas
teorias têm produzido, no campo educacional brasileiro, substituições, rupturas e mudanças de ênfase em
relação às teorias críticas. Suas produções e invenções têm pensado práticas educacionais, curriculares e
pedagógicas que sugerem a construção do conhecimento com base na abertura, na transgressão, na subversão
e na diferença.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como objetivos do ensino
fundamental que os alunos sejam capazes de:
compreender a cidadania como participação social e política, assim
como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no
dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação, repúdio às injustiças,
respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito;
posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas
diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como uma forma de
mediar conflitos e de tomar decisões coletivas;
conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais,
materiais e culturais como meio para construir progressivamente a
noção de identidade nacional e noção de pertinência ao país;
conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio cultural brasileiro,
bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações,
posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças
culturais, de classe social, de crença, de sexo, de etnia, ou outras
características individuais e sociais;
perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente,
identificando seus elementos e as interações entre eles, contribuindo,
ativamente, para a melhoria do meio ambiente;
desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de
confiança em suas capacidades afetivas, física, cognitiva, ética, estética,
de inter-relação pessoal e de inserção social para agir com perseverança
na busca de conhecimento e no exercício da cidadania;
conhecer o próprio corpo e dele cuidar ; valorizando e adotando hábitos
saudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida e agindo
com responsabilidade em relação à sua saúde e à saúde coletiva;
utilizar diferentes linguagens verbal, musical, matemática, gráfica,
plástica, corporal – como meio de produzir, expressar e comunicar suas
idéias, interpretar e usufruir das produções culturais em contextos
públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de
comunicação,
saber utilizar diferentes fontes de informação e recurso tecnológicos
para adquirir conhecimentos;
questionar a realidade formulando-se problema e tratando de resolvê-
los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição,
a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e
verificando a sua adequação. PCNEFs: 7-8 - grifos meus).
Em torno do objetivo que supõe os conhecimentos científicos como linguagem e não
como disciplina - utilizar diferentes linguagens – verbal, musical, matemática etc. - a rigidez
disciplinar seria rompida para dar lugar às grandes questões contemporâneas que têm sido
objeto de interesse, fazendo emergir uma voz que não é de ninguém e, ao mesmo tempo, é de
todos, já que ela capta a voz da história recente, materializada em conceitos abrangentes que
se tornaram discussão comum na educação, tais como.
Cidadania
Compreender a cidadania como participação social e política. (...)
Cultura
Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como
aspectos socioculturais de outros povos e nações, (...)
Meio ambiente
Perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, (...)
Saúde
Conhecer o próprio corpo e dele cuidar, (...).
O discurso que se materializa nos objetivos do ensino fundamental está fundado numa
interdiscursividade que constitui um modelo de currículo que se organiza a partir de
diferentes ciências, fazendo também emergir interdiscursos que se convergem, apontando
questões que, até então, estavam restritas a outras áreas do conhecimento cuja presença não
se justificava em um currículo, como a antropologia, a política, a saúde, o meio ambiente,
entre outros. A interdiscursividade, portanto, nessa questão, faz emergir a voz da ciência
didática, que levanta os conceitos que precisam tomar parte na discussão da educação, ao
lado de outras disciplinas, supondo um currículo intolerante com o desrespeito a questões
como: diferenças culturais, sociais, crenças, sexo, etnia, meio ambiente, entre outros.
Mas cabe ressaltar que as questões acima levantadas seriam importantes de serem
discutidas se elas não tivessem ocupado um lugar meio perverso para a produção de
conhecimento. Segundo Moraes (2001:13), o envolvimento do currículo com essas questões
tem provocado um esvaziamento teórico para dar lugar a questões que se traduzem em um
apagamento de uma compreensão das causas dessa ocorrência. Para a autora, esses
pressupostos convergem para um apaziguamento da sociedade civil, para o esvaziamento das
diferenças, reduzidas a menos diversidades culturais. A ênfase nesses processos implica a
aceitação –a-crítica da lógica do capital, da violência econômica e da destruição social e
cultural efetiva por essa vanguarda.
Pelo que temos considerado, um currículo que teria como meta, entre outras, atender
aos objetivos dos organismos internacionais, que, retomando o entendimento de Silva Jr.
(2002), podem ser considerados intelectuais coletivos, não deixaria de dispersar, nos
objetivos, formações discursivas originadas das orientações desses organismos. O relatório de
Delors, que é a síntese dos documentos produzidos nos eventos de Jomtien e de Nova Delhi,
interdiscursivamente, se faz presente através dos quatro pilares, que devem orientar os
pressupostos da educação, na contemporaneidade, que, retomando, são: aprender a
aprender, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser. Esses pilares
denotam vozes que ancoram, conforme temos considerado, ao longo de toda a discussão, os
objetivos que devem sustentar a educação para enfrentar a vulnerabilidade do trabalho. Esses
pontos de vista estão dispersos em pelo menos dois objetivos:
Aprender a conhecer/aprender a fazer
Saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e
construir conhecimentos. (grifos meus)
Aprender a viver com os outros/aprender a ser
Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais,
utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas. (grifos
meus)
Os dois objetivos levantados dialogam, interdiscursivamente, com os pilares
propostos pelo relatório de Delors para a educação. O primeiro, através do verbo utilizar,
modalizado pelo verbo saber, encaminha a produção de conhecimento como fonte de
informação. Mas ele traduz, também, o caráter utilitário que deveria se abater sobre o
conhecimento, em tempos de vulnerabilidade no mundo do trabalho. Para garantir essa
determinação histórico/política sobre o conhecimento institucional, o objetivo dialoga com
fundamentos teóricos que possam lhe dar tal sustentabilidade. Trata-se da pedagogia das
competências que propõe o conhecimento sob o ponto de vista da mobilização dos mesmos
para os usos necessários: saber utilizar fonte de informação,(...).
Nos discursos primeiros, que fundam um discurso que dialoga não só com um
pressuposto teórico, que é a pedagogia das competências, mas também com a história, ao se
propor escola para todos, dicotomizam-se os saberes. Para uns, há um saber acadêmico a ser
ensinado, para outros, há o saber pragmático, ou para os usos. Essa posição de currículo
dicotomizado para classes sociais diferentes confirma a relação que a escola, ao longo de
toda a modernidade, tem tido com o processo de produção da riqueza. A condição da
educação para esse contexto histórico se confirma na posição também de Moraes (2001:3). A
autora cita o grupo krisis, que afirma.
A escola tradicional, a educação formal, as antigas referências educacionais
tornaram-se obsoletas. É preciso, agora, elaborar uma nova pedagogia, um
projeto de outra natureza. O discurso é claro: não basta apenas educar, é
preciso assegurar o desenvolvimento de “competências” (...), valor
agregado a um processo que, todavia, não é o mesmo para todos. Para
alguns, exigem níveis sempre mais altos de aprendizagem, posto que certas
competências repousam no domínio teórico-metodológico que a
experiência empírica, por si só, é incapaz de garantir. Para a maioria,
porém, bastam as “competências” no sentido genérico que o termo adquiriu
hoje em dia, que permitem a sobrevivência nas franjas do núcleo duro de
um mercado de trabalho fragmentário, com exigência cada vez mais
sofisticadas e níveis de exclusão jamais vistos na história. Como se sabe, o
capitalismo tornou-se um espetáculo global para a minoria.
Já o segundo objetivo é a negação de discursos primeiros, originados de uma
subjetividade constituída não só pelos Aparelhos Ideológicos de Estado, aqueles previstos por
Althusser, mas também pela divisão da sociedade em classes, decorrentes do modo de
produção capitalista, prevista por Marx. Ter posições críticas, responsáveis e construtivas, no
objetivo, traduz um jeito de ser, aliás, o adjetivo construtivas, mais do que os outros, denota
bem essa relação, negando a possibilidade do conflito, da ruptura, portanto, negando
discursos que consideram as inter-relções sob uma outra perspectiva.
A capacidade de utilizar diálogos para mediar conflitos em decisões coletivas, por
sua vez, traduz um modo de conviver. Esse objetivo transfere para a escola a construção de
um aprendizado que não é de responsabilidade só dela, mas de todos os aparelhos através dos
quais se constitui a subjetividade, ou das classes sociais nas quais os sujeitos se constituem.
Mais uma vez, esse objetivo confirma a posição de uma subjetividade que não se constitui
pela ideologia, pela história, mas pela individualidade de cada um. Mais uma vez, também,
esse objetivo dialoga com a história recente para que a escola garanta uma formação
necessária, que possa se traduzir em preparação para uma convivência não só com a
vulnerabilidade do mundo do trabalho, mas também com a competitividade estabelecida por
esse mundo.
Pelas razões acima levantadas, o objetivo, na sua repetibilidade, está mais para uma
recuperação da concepção de sociedade, prevista por Durkheim (1978), ou aquela que
considera as questões sociais como salutares ou patológicas. Para esse pensador, ao se cuidar
das patologias, recupera-se a “saúde” da sociedade. Considerando que, ainda para esse
pensador, a educação guarda um papel importante na relação com a sociedade que se deseja,
o objetivo, que transfere para a escola um aprendizado que é entendido como sendo de
responsabilidade apenas dela, concebe, em torno de si, uma educação que deverá “enformar”
o aluno para o que se deseja.
Essas vozes conflitantes, que foram possíveis de serem captadas dos objetivos, vão
ecoar no documento de Língua Portuguesa, cujos pressupostos estabelecem ligações com as
necessidades históricas a que o processo de produção de conhecimento está submetido.
(...) Pode-se dizer que hoje é praticamente consensual que as práticas
devem partir do uso possível aos alunos para permitir a conquista de novas
habilidades lingüísticas, particularmente daquelas associadas aos padrões
da escrita, (...). (PCNEFs: 18 - grifos meus).
O fragmento de texto acima, levantado da apresentação dos PCNEFs de Língua
Portuguesa, na sua totalidade, denota o significado do conhecimento em linguagem,
relacionado ao que se propôs para o ensino fundamental, através dos objetivos gerais. Mas
cabe avaliar que a totalidade do fragmento converge para um único ponto, que é a dêixis hoje.
Essa dêixis direciona o trabalho com a linguagem, supondo a sua relação com a
temporalidade que, por sua vez, remete para a atualidade histórica. Esse direcionamento
deverá conduzir um saber a ser ensinado cuja característica primeira é o pragmatismo,
materializado, sobretudo, nas organizações sintáticas uso possível e conquista de novas
habilidades lingüísticas.
O pragmatismo reconhecido no fragmento acima coloca em situação de confronto,
por um lado, o saber como uma construção histórica e a linguagem como lugar de
subjetividade, por outro lado, o saber originado dos usos, que encaminha uma condição
utilitária para o conhecimento em linguagem, visando a aumentar as habilidades lingüísticas.
Esse conflito velado expurga o conhecimento e a linguagem do lugar do confronto,
dialogando, na verticalidade, com a história, com a intenção de se colocar o conhecimento a
serviço dela. É até interessante observar o grau de comprometimento do enunciado com a
história. Ele próprio se encarrega de produzir a sua auto-explicitação, sugerindo um currículo
que atenda às demandas.
A importância e o valor dos usos da linguagem são determinados,
historicamente, segundo as demandas sociais de cada momento.
Atualmente, exigem-se níveis de leitura e de escrita diferentes dos que
satisfaziam as demandas sociais até há bem pouco tempo e tudo indica que
essa exigência tende a ser crescente. A necessidade de atender a essa
demanda obriga à revisão substantiva dos métodos de ensino e à
constituição de práticas que possibilitem ao aluno ampliar sua competência
discursiva. (PCNEFs:23 – grifos meus).
Tal como o fragmento anterior, esse último, também, na sua totalidade, converge para
o entendimento do saber a ser ensinado em um comprometimento com as demandas
históricas e sociais. Como no outro fragmento, ainda, a demanda histórica se centraliza,
também, na dêixis temporal atualmente, sendo ela a responsável por justificar a reforma
curricular, já cobrada por tais demandas. Portanto, a sua função discursiva seria a de situar os
PCNEFs de Língua Portuguesa numa interdiscursividade em acordo, que justifica uma
revisão dos métodos de ensino e das práticas para a produção de conhecimento, tendo como
fim precípuo a competência básica a ser desenvolvida, que, em se tratando de linguagem,
seria “’a ampliação da condição discursiva do sujeito”.
Enquanto saber a ser ensinado, relacionado à demanda histórica, o discurso não
possibilita a sua compreensão na relação com o outro, conforme o prevêem os teóricos da
questão, portanto, um efeito de sentido, que se constrói na inter-relação, mas ele é
aprendizado e, enquanto tal, é apenas representação. Isso indica que, por esse entendimento,
ele nega, também, a relação com a história, com a ideologia, enquanto construção da
subjetividade, tornando-se apenas um aprendizado para o uso, de natureza utilitária.
Pela polifonia, que capta, entre outras, as vozes da história recente, atualizam-se as
formações discursivas que, na superfície do enunciado, atendendo aos objetivos do ensino
fundamental, orientam a produção de conhecimento, de forma a tornar o processo
comprometido com a realidade histórica, através de uma heterogeneidade constitutiva.
Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade
de ensino, e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o
falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua
Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma
prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de
produção de textos orais e escritos, que devem permitir por meio da análise
e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção
de instrumentos, que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar a sua
competência discursiva. (PCNEFs:27 – grifos meus).
O fragmento acima, que encaminha, nos PCNEFs de Língua Portuguesa, o ponto que
trata da reflexão sobre a língua, vai traçando o caminho que demarca a aprendizagem. Ponto
por ponto, os conteúdos a serem ministrados, no ensino fundamental, vão se constituindo,
através da compreensão da linguagem e do discurso como atividade, do texto como unidade
de ensino, da noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem da
linguagem. Essa proposta de ensino atualiza formações discursivas que podem ser vista sobre
pontos de vista diferenciados.
Em primeiro lugar, há uma interdiscursividade que se constitui em um confronto com
o caráter de tradicionalidade do ensino de língua. Trata-se de discursos concorrentes,
originados da ciência, que, em detrimento de outras concepções, têm em vista dizer a forma
como deverá se dar o ensino. Em segundo lugar, sem uma ruptura marcada, a ciência
lingüística, através dos conceitos lingüístico/pedagógicos de expansão, de construção de
instrumentos e de progressão, esse último atravessado pela noção de gênero enquanto família
de texto, produz uma juntura entre o pedagógico e o histórico/político, supondo o objetivo
primeiro do conhecimento lingüístico, que é ampliar a competência discursiva.
Pelas considerações acima pode-se compreender que o documento negocia formações
discursivas que deverão propor o saber a ser ensinado, que é de natureza instrumental,
comprometendo-o com as políticas do Estado. O comprometimento dos PCNEFs de Língua
Portuguesa com essa historicidade, atualizada ao longo de toda a superfície do enunciado,
deverá se confirmar no objetivo geral para o ensino da linguagem no ensino fundamental.
No processo ensino-aprendizagem dos diferentes ciclos do ensino
fundamental, espera-se que o aluno amplie o domínio ativo do discurso,
nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de
uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção no efetivo mundo da
escrita, ampliando a sua possibilidade de participação social no exercício
da cidadania. (PCNEFs:32- grifos meus).
4.2.2 A intradiscursividade: a construção do ethos
Se, por alguns pontos do enunciado de análise, foi possível compreender uma
interdiscursividade marcada, gostaríamos, agora, de perseguir a intradiscursividade. Para
iniciarmos essa discussão, remeteremo-nos para Authier-Revuz (1998) e a sua consideração a
respeito do enunciado de divulgação científica. Em seus estudos, conforme consideração
anterior, a autora concluiu que, para esse gênero de discurso, que pode ser considerado na
complexidade levantada anteriormente, há três lugares que precisam ser considerados, que
são, de um lado, a ciência, de outro o divulgador e, entre um e outro, está o leitor presumido.
Isso implica que o leitor ou aquele que, na concepção de Maingueneau (2005), deverá ser o
que irá consumir o discurso, deve estar previsto no próprio enunciado. Se se considera, ainda,
o caráter prescritivo de enunciado, por conta da sua ancoragem no currículo, essa é, de fato,
uma questão que se pode antecipar, no enunciado. Por essa via, então, buscaremos a forma
como o mesmo se estabelece no discurso, como ele abre espaço para o outro e como o outro é
assimilado no espaço do mesmo. Logo, buscaremos a compreensão de como se dá a
construção do ethos no enunciado.
Maingueneau (2005:141), ao discutir as práticas discursivas, sob o ponto de vista do
discurso institucional, afirma que o modo de difusão vai de mãos dadas com o modo de
consumo do discurso, isto é, com o que se faz dos textos, como eles são lidos, manipulados.
O fragmento tomado, se contextualizado, capta um pressuposto essencial do princípio
bakhtiniano para a noção de gênero discursivo, que é a esfera de circulação do enunciado,
qualquer que seja. A propósito dessa questão, o autor assume que o discurso perpassa um
modo de difusão, ou a forma como o outro irá estabelecer relação com o eu, sendo esse o
espaço de caracterização de um público que não se separa do sentido que se deseja atribuir ao
mesmo. Trata-se, portanto, de amarras que unem o eu ao outro, tendo em vista os efeitos de
sentido que se desejam, marcados nos espaços que se abrem no fio do discurso, resultante de
uma negociação que se instaura no enunciado, seja ela através das heterogeneidades
mostradas ou constitutivas. Esse espaço é o da circulação do discurso. Ele se caracteriza,
conforme Bakhtin, como esfera de comunicação, que, por sua vez, remete, para as esferas de
atividade humana, ou para os lugares de funcionamento desse discurso.
O discurso oficial ou o discurso de divulgação científica, ao promoverem o
apagamento da subjetividade, promovem, também, o ocultamento do outro, embora ele esteja
sempre previsto na intradiscursividade. Isso implica dizer que o que acontece é uma
aproximação do objeto do discurso e do outro, permitindo que eles se igualem nas suas
posições no enunciado. Em se tratando do nosso corpus de análise, procuraremos
compreender como se dá essa inter-relação. Grosso modo, pela sua condição de produção e
pelo gênero do discurso, já se pode afirmar que o objeto do discurso se iguala ao outro,
representado em um tripé cujos elementos se entrecruzam como variáveis que deverão
sustentar todo o processo de ensino. Esse tripé se materializa na seguinte estrutura:
O aluno;
Os conhecimentos com os quais se operam na prática de linguagem;
Professor - mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento.
(PCNEFs:23).
A ordem de apresentação desses elementos discursivos não se deu por acaso. Essa
questão será retomada à medida em que for necessário. Por enquanto, tomaremos a
explicitação do próprio documento sobre o significado não desse ordenamento, mas o que
cada elemento significa, indicando, já de pronto, a forma como se daria a produção do
conhecimento, questão que será, também, retomada, à medida em que for necessário.
O aluno - sujeito da ação de aprender;
Objeto – conhecimentos discursivos textuais e lingüísticos, implicados nas
práticas sociais de linguagem;
Professor – mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento.
(PCNEFs:23).
Esse tripé, num primeiro olhar, pode parecer fazer parte de uma teia única em torno
da qual se teceu o enunciado, fazendo com que o professor, o conhecimento e o aluno
ocupem o mesmo lugar no interior do enunciado. Mas um olhar mais acurado deverá apontar
as inter-relações que se estabelecem, ou a forma como cada um se aproxima do objeto do
discurso, já que é nele que o eu se oculta. Isso implica que é na leitura desse tripé que será
possível destrinçar não só as estratégias de monofonização, mas também cada um dos
elementos discursivos, através da intradiscursividade. Do professor ao aluno, passando pelo
objeto do conhecimento, faremos uma leitura de quando se dá a negociação entre o eu e o
outro, ambos apagados no enunciado, mas que emergem de forma velada, promovendo o
preenchimento dos espaços discursivos.
Começaremos a nossa busca pelo terceiro elemento do tripé, ou seja, pelo professor,
por entendermos que é nele que o outro vai sendo constituído, a partir não só da imagem que
se faz dele, mas, sobretudo, do que ele significa no contexto da educação. Essa conjectura
começou a se formar, a princípio, da nossa busca sobre a questão, no próprio enunciado, que
se confirmou na leitura de Machado e de Bronckart (2005:189). Esses autores, em estudos
realizados nos documentos produzidos no Brasil e na Suiça, já citados anteriormente, citam
Paveau (1999), que, em uma abordagem discursiva, a propósito dos textos prescritivos
educacionais, faz a seguinte afirmação: A diz a B para agir para C.
Pela hierarquia apresentada no estudo de Machado e de Bronckart, pode-se considerar
que a posição de B deve ser preenchida pelo professor, ou o que deverá implementar o
currículo proposto. Esse a priori confirma a idéia de que é nessa inter-relação que se
estabelece a intradiscursividade. É dele, (o professor) portanto, que o eu, preenchido pela voz
dos objetos e das idéias, vai se aproximando, constituindo-o como o outro, que habita,
também, o espaço do discurso. É nossa tarefa, aqui, traçar esse perfil, não só para se chegar à
imagem desse outro, mas, sobretudo, compreender as alteridades que se esperam, já que já
antecipamos que o professor deveria ser o leitor em potencial do documento. Usando uma
metáfora de Maingueneau (2005:140), nesse percurso, faremos o rio abaixo dessa história,
tendo em vista chegar a uma foz cujo nascedouro já foi detectado, quando levantamos a
construção do documento. Começaremos a nossa leitura, tendo em vista perseguir o ponto de
encontro entre o eu e o outro, detectando o momento desse encontro.
Antes de se chegar à intradiscursividade, remeteremo-nos para Benveniste (1988:251)
e as suas considerações a respeito das pessoas do discurso. Para o autor, a terceira pessoa se
caracteriza como uma não pessoa. Por que essa preocupação? Ela se dá em função da própria
condição do enunciado, já que, nele, conforme consideramos, o objeto do discurso, que
esconde a marca da subjetividade, se iguala ao mesmo e ao outro. Isso implica que aquele que
irá se caracterizar, em algum momento, como o outro, percorre um caminho distanciado, se
confundindo com o próprio objeto. A propósito dessas questões levantadas e também da
organização do nosso corpus de análise, o que há é um ele, que pode ser caracterizado como
uma estratégia de monofonização, já que materializa uma não pessoa, segundo Benveniste,
mas que deverá se tornar a pessoa do discurso, portanto, totalmente pessoalizado, tendo em
vista as ações a serem desenvolvidas.
Ao professor cabe planejar, implementar e dirigir as atividades com o
objetivo de desencadear, apoiar, orientar o esforço de ação e reflexão do
aluno, procurando garantir a aprendizagem efetiva Cabe também assumir o
papel de informante e de interlocutor privilegiado, que tematiza aspectos
prioritários em função das necessidades dos alunos e a suas possibilidades
de aprendizagem. (PCNEFs:22 – grifos meus).
O fragmento acima delimita dois espaços que caracterizam o professor como o outro
que entrecruza o discurso do mesmo, e os papéis que ele deve ocupar nesse contexto. O
primeiro limite caracteriza as ações que ele deve assumir no ensino. A série de ações
denotada nas seqüências verbais assinaladas é responsável por ir explicitando o lugar de
discurso que ele ocupa naquele tripé referenciado anteriormente. Essa condição o constitui
como o que se aproxima dos ditos e dos não-ditos que permeiam a discursividade do
enunciado. É ele, portanto, para usar o termo de Maingueneau (2005), o que deve consumir o
discurso proposto para o outro, tendo, entre ele e o aluno, o conhecimento a ser ministrado. É
com ele, portanto, que devem estabelecer as relações de alteridade, ou o responsável por
colocar em funcionamento os discursos para a educação.
Tendo suposto, na nossa leitura, que o outro do discurso se materializa no professor,
deve haver um lugar em que essa materialidade discursiva se instaura, constituindo, de fato, a
intradiscursividade. De dentro para fora do enunciado, é lá na carta endereçada ao professor,
pelo então ministro de educação, Paulo Renato Souza, que esse encontro deverá se dar.
Esperamos que os Parâmetros sirvam de apoio às discussões e ao
desenvolvimento do projeto educativo de sua escola, à reflexão sobre a
prática pedagógica, ao planejamento de suas aulas, à análise e seleção de
materiais didáticos e de recursos tecnológicos e, em especial que possam
contribuir para sua formação e atualização profissional. (Carta do Ministro
da Educação – Paulo Renato Souza – grifos meus).
Esse último fragmento da carta atualiza a intrasubjetividade de todo o enunciado,
promovendo a interação entre o eu e outro, constitutivos do discurso. A palavra dirigida ao
professor, ainda de forma distanciada, ao longo de toda a carta, nesse último parágrafo, irá
configurar a presença do outro como o interlocutor previsto. O nós difuso, que representa, no
contexto, o poder constituído, atualiza a presença desse outro, através do possessivo sua(s),
que, no contexto, tem característica dêitica, ou seja, ele indicia o professor, trazendo-o para o
projeto de educação do Estado. Esse é, portanto, o lugar do encontro no qual o objeto sai de
cena para dar lugar ao dizer oficial, que considera os Parâmetros como um direcionamento
para a educação, através do envolvimento que o professor deverá ter com ele.
Se se levar em consideração o que já avaliamos sobre o que significaram,
politicamente, os PCNEFs, a forma verbal presente esperamos, que modaliza o discursivo,
pode marcar, implicitamente, uma subjetividade que determina o valor que o documento
deverá ter. Isso implica que, mesmo sendo um modalizador de caráter polêmico, que pode
denotar um enunciado não prescritivo, por toda a sua contextualização histórica, ele convoca
o professor para ser o protagonista do processo. Os possessivos dêiticos vão arregimentando,
em torno de si, a comunidade escolar, através do projeto da escola, do planejamento das
aulas e da sua formação pessoal. Mas é o conjunto das ações que pode significar a
importância que precisa ser dada ao que está sendo entregue a toda a comunidade escolar,
finalizando a sua importância para a formação do professor, portanto, é ele o leitor previsto,
retomando um termo de Maingueneau (2005), para a manipulação do enunciado.
Transcorrido o caminho para a identificação do outro que corta o fio do discurso, já se
pode fazer o caminho de volta, na intenção de se buscar a forma ou as formas como esse
outro entra no espaço do eu, de que forma está disperso nele e, ainda, que sentidos emergem
dessa dispersão. Segundo Maingueneau (2005:91), cada discurso define o estatuto que o
enunciador deve conferir-se e o que deve conferir a seu destinatário para legitimar o seu
dizer. É na construção da identidade que cada um faz de si e do outro, que são construídos os
modos de dizer e o que dizer. É na construção desse estatuto, portanto, que se constrói o
ethos, a partir do lugar de cada um no discurso. Isso implica que, agora, de fora para dentro, o
outro vai se alocando no discurso, tendo em vista a delimitação do espaço que se deseja que
ele ocupe.
Pela organização do enunciado pode-se antecipar que a forma-sujeito, que, retomando
Pêcheux (1998), é a existência histórica de qualquer indivíduo, no caso em apreço,
representada pelo professor, portanto, sujeito da interlocução, se apresenta com uma dupla
face, criando um espaço de ambigüidades. Tomemos o caminho dessa duplicidade. Em
primeiro plano, há um eu que se identifica com o outro de forma positiva, ou seja, ele deve
reconhecer esse outro como aquele que está apto para desenvolver um projeto de educação
que foi construído em função do conceito de Estado assumido pelo próprio Estado, e o
sentido que a escola deveria ter nesse contexto. Os objetivos amplos, propostos para o ensino
fundamental, que já foram levantados inicialmente, materializam uma correlação de forças
que denotam a história recente, idealizando o aluno para essa história, logo, o professor está,
também, neles idealizado.
A interdisciplinaridade e a transversalidade, no contexto dos objetivos, sob o ponto de
vista das competências, constroem um imaginário de um professor que se reconhece na
proposta de educação que está sendo feita, que é, a princípio, uma ruptura com uma
organização curricular, configurada nas diferentes disciplinas da ciência moderna, propondo
temas que ajudarão o aluno a conviver tanto com a vulnerabilidade do mundo do trabalho,
quanto com as demandas constitutivas do modo de vida originados dessa sociedade.
Voltemos aos objetivos gerais para o ensino fundamental, tendo em vista a comprovação das
questões levantadas.
Para além do conhecimento das especificidades disciplinares, pressuposto num
currículo por competências, conforme análise de Lopes (2006), os objetivos propostos para
os aluno são construídos a partir da imagem de um professor que tem a obrigação de transitar
por todas as áreas do conhecimento, fazendo aproximar conteúdos construídos ao longo das
investigações que a ciência foi capaz de produzir. Cabe avaliar que esses conteúdos devem
estar atrelados aos grandes temas que passaram a fazer parte da vida da sociedade
contemporânea, que foram caracterizados como temas transversais. Retomando a questão, os
PCNEFs traçaram esse caminho através dos seguintes temas: Ética, Pluralidade Cultural,
Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo, que estão materializados
nos objetivos. Em torno do objetivo que levanta os conceitos científicos com os quais a
escola sempre trabalhou, utilizar diferentes linguagens – estão aqueles que deverão
transversalizar o conhecimento, conforme já se caracterizou, que são: cidadania, ética,
cultura, meio ambiente, sociedade, sexualidade, idealizando um super-professor para o
ensino da linguagem.
Os discursos dos objetivos gerais propostos para o ensino fundamental constroem um
ethos que supõe um professor capaz, autônomo, conhecedor das transversalidades que
atravessam os diferentes saberes a serem ensinados, capaz também de desenvolver trabalhos
em equipe, tendo em vista a aproximação de conteúdos. Ainda hoje, depois de alguns anos de
implementação do documento, não é possível avaliar se essa proposição caracteriza avanços,
ou se forjou uma postura impraticável, pois, enquanto política, ela não se efetivou.
Até aqui, temos feito críticas aos PCNEFs de um modo geral e, particularmente, aos
de Língua Portuguesa, mas essa ruptura com a estrutura disciplinar por ela mesma, se fosse
assumida, teria méritos a serem considerados, que resultariam em ganhos para os processos
de formação escolar. Essa postura frente ao saber a ser ensinado levaria a uma compreensão
de que todos têm responsabilidade diante da leitura e da escrita, embora aponte para a noção
de competência a ser desenvolvida. Trata-se de um saber a ser ensinado que é de
responsabilidade de todos. O documento afirma que a tarefa de formar “leitores e usuários
competentes” da escrita não se restringe à área de Língua Portuguesa, já que todo professor
depende da linguagem para desenvolver os aspectos conceituais da sua disciplina.
(PCNEFs:31 – grifos meus)
Ao assinalarmos, no começo dessa discussão, as formas de representação do outro no
fio do discurso, antecipamos que se tratava de uma constitutividade caracterizada por uma
dupla face. Por razões políticas, que identificaram a necessidade de uma reforma educacional
da qual deveria constar um processo de avaliação também sistêmico, os PCNEFs, que
deveriam se organizar apenas por objetivos, fizeram prevalecer uma tradição, que é o
currículo por disciplinas, tornando o documento parâmetro para esse processo. Essa forma de
organização do documento foi a porta de entrada para que pudéssemos começar a
compreender a duplicidade na qual se dá a representação do outro no espaço do eu, nos
Parâmetros para a disciplina Língua Portuguesa. Se, para os objetivos gerais para o ensino
fundamental, há um professor capaz, que deve ter conhecimentos suficientes para uma
transversalidade diversa, o mesmo não parece ser o que caracteriza o professor de Língua
Portuguesa. A estrutura do documento, marcada, entre outras coisas, pelos conceitos
lingüísticos e didáticos, que permeiam o documento, foca o outro do discurso sob uma outra
perspectiva.
Frente às diferentes teorizações que têm permeado as discussões sobre a linguagem, o
professor parece ser visto como quem não tem a real superioridade que lhe é conferida. Aliás,
essa foi também a compreensão de Marinho (2001), conforme considerações anteriores,
quando estudou as notas de rodapé e as referências bibliográficas, constantes dos
documentos. Na visão da autora, esses recursos constroem a imagem de um professor carente
de um saber específico para uma única disciplina. Essa é uma razão, a princípio, que justifica
um enunciado curricular, que é sobreposto pelo gênero de divulgação científica. Na intenção
de se atender a um interlocutor real, carente de saberes, o documento, através de uma
metalinguagem e de comentários que perpassam todo o enunciado, sintetiza conceitos
amplos, alguns até sobre pontos de vistas diferenciados, ao que parece, tendo em vista
colocar em evidência a vitrine da lingüística contemporânea, sem uma preocupação com os
confrontos, para atender à limitação do professor.
As metalinguagens colocadas à disposição do professor perpassam as discussões
tomadas da ciência lingüística, tendo em vista consolidar, oficialmente, uma ruptura com os
modelos tradicionais de ensino de Língua Portuguesa que já vinham sendo construídos, desde
a década de 1980. Com a intenção de se estabelecer o objeto de ensino para além da língua
por ela mesma, marcado pela estrutura, eles passam pela linguagem como objeto discursivo e
cognitivo, pela língua como sistema simbólico, pelo discurso e as suas condições de
produção, pelos gêneros discursivos e textuais e pelo texto. Esse é um lugar que, por mais
que se apresente de forma distanciada, é um espaço também de polifonia, já que são
metalinguagens que presumem um conceito em detrimento de outro, ou a negação
constitutiva da própria metalinguagem.
Na esteira dos conceitos levantados, o documento, em forma de comentário, em
linguagem professoral, vai apontando os conteúdos a serem ensinados, que são: a oralidade,
a escrita, a reflexão sobre a língua, levando em consideração, sempre, o caráter
sócio/variacionista da linguagem. Esses conceitos trazem, na sua proposição, a forma como
deve ser implementado o trabalho com a disciplina Língua Portuguesa. Trata-se do caráter
didático do enunciado, que vai construindo um ethos, através de um locutor que vê o outro
como carente do saber lingüístico de que a ciência da linguagem tem se ocupado e do saber
didático/pedagógico, que, conforme os objetivos gerais, indica a construção do conhecimento
sustentado na pedagogia das competências.
Da 1ª à 8ª série, esses são os conceitos que devem sustentar o trabalho com a
linguagem, no ensino fundamental. Nossa intenção, aqui, é buscar um dos sentidos que pode
perpassar essa forma de organização do enunciado, que é a de apresentar conceitos que
podem ser novos para quem ainda não conseguiu romper com uma prática tradicional. Se a
linguagem se constitui em objeto de ensino, tendo a língua como um sistema simbólico,
portanto, para além dos elementos de estudos estruturais por eles mesmos, faremos um
recorte em torno desse conceito, tendo em vista a discussão do(s) seu(s) significado(s) no
contexto do documento.
Linguagem, aqui, se entende, no fundamental, como ação interindividual,
orientada para uma finalidade específica, um processo de interlocução que
se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos em
sociedade. (PCNEFs:20 – grifos meus).
Esse fragmento abre alguns pontos que precisam ser analisados, tendo em vista o
outro que se alinha ao eu, mas que, mesmo apagado, irrompe na discursividade.
Começaremos essa análise pelo locus aqui, que, de imediato, pode parecer se localizar no
próprio enunciado, portanto, para o objeto do discurso. Aparências à parte, essa marca
dêitica, que corta, de súbito, o fio do enunciado, abre pelo menos duas possibilidades de
leitura. Em primeiro plano, ela legitima o discurso de um enunciador que precisa se impor
como quem fala de um lugar que o autoriza a negar conceitos concorrentes, legitimando o
conceito que se deseja assumir, logo, o discurso do eu. O caráter metalingüístico do
fragmento, através da forma verbal entende, com um sentido quase de cópula, mas que
também encaminha complementos de natureza modal: como ação interindividual (...) induz o
interlocutor a compreender de que concepção de linguagem se trata. Em segundo plano, o
fragmento reforça um nexo teórico que identifica o outro como o que é desprovido das
concepções necessárias para o projeto de currículo a ser implementado, imprimindo ao
conceito um caráter argumentativo, que visa a convencê-lo da sua valoração teórica
A concepção de linguagem assumida no fragmento acima considera esse objeto de
ensino a partir da sua natureza social, mas, numa intenção de se explicitá-lo, dadas as
condições de produção do enunciado, é possível que ele seja captado, também, sob o ponto
de vista individual, sobretudo, quando ele é concebido como expressão do pensamento. (...)
pela linguagem se expressam idéias, pensamentos e intenções (...) (PCNEF: 20 - grifos
meus). A concepção de linguagem constituída pelo social e pelo individual convergiu para
uma concepção síntese, que afirma que: pela linguagem se expressam idéias, pensamentos e
intenções se estabelecem relações interpessoais, anteriormente inexistentes, influencia o
outro, alterando suas representações da realidade e da sociedade e o rumo das suas
(re)ações. (PCNEF:20 - grifos meus). A compreensão da linguagem por esse caráter duplo,
ou seja, por um lado o seu aspecto social e, por outro lado, o seu aspecto individual, se ancora
nos pressupostos vygostskyanos, que chegaram à seguinte conclusão em relação ao
pensamento e à linguagem:
Nas partes que coincidem, o pensamento e a fala se unem para produzir o
que se chama pensamento verbal. (...).O pensamento não é uma forma de
comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo
histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas, que não podem ser
encontradas nas formas naturais do pensamento e da fala.
(Vygotsky:1993:41-44).
A partir da compreensão da linguagem sob o ponto de vista social/individual,
fundamentada nos pressupostos vygotskyanos, em se tratando do ethos, a construção das
relações intrasubjetivas se constituem em função de um outro que deve se reconhecer
desconhecedor dos conceitos em torno dos quais têm girado as discussões sobre a linguagem.
Mas ele pode ser considerado, também, incapaz de assumir, autonomamente, uma concepção
de linguagem, com vistas a dar um outro direcionamento ao trabalho com a Língua
Portuguesa, no documento, para além da estrutura pela estrutura. O dêitico aqui, no
fragmento tomado, parece reforçar esse ponto de vista, o que significa querer dizer que o
enunciado não assumiria outras concepções de linguagem, mas só aquelas que o atravessam
os conceito vygotskyano ou são os desdobramentos deles.
Quando discutimos o gênero de discurso de divulgação científica, o fizemos sob o
ponto de vista da ciência a ser divulgada, do leitor presumido para o texto e do divulgador,
que é também o comentador. Retomando Authier-Revuz (1998), esse último, de um pólo a
outro, ou seja, entre a ciência e o enunciado de divulgação científica, é o divulgador que
coloca em cena os dois pólos em contato. Isso implica que ele faz, também, o papel de
comentador, traduzindo para o leitor presumido as metalinguagens levantadas da ciência em
apreço, caracterizando, portanto, o aspecto didático do gênero de divulgação científica.
O retorno ao pressuposto acima significa a necessidade de se compreender o sentido
dos papéis que esse enunciador, desdobrado em divulgador e em comentador, cumpre no
enunciado. No primeiro papel, a nossa leitura mostrou um divulgador que busca uma
intradiscursividade fundada na imagem que foi possível fazer do professor de Língua
Portuguesa do ensino fundamental. Mas a imagem que se faz do outro não é uma via de mão
única. O ethos só se materializa em um duplo processo ou o retorno ao eu que, por sua vez, o
remete para uma interdiscursividade, ou para as formações discursivas que o constituem,
levando-o a fazer também uma imagem de si. Vejamos como se dá esse processo, no corpus
de análise.
Isso aponta para outra dimensão da atividade da linguagem que conserva
um vínculo muito estreito com o pensamento. Por um lado, se constroem,
por meio da linguagem, quadros de referências culturais – representações,
“teorias” populares, mitos, conhecimento científico, arte, concepções e
orientações ideológicas, inclusive preconceitos – pelos quais se interpretam
a realidade e as expressões lingüísticas. Por outro lado, como atividades e
símbolos e representações, a linguagem torna possível o pensamento
abstrato, a construção de sistemas descritivos e explicativos e a capacidade
de alterá-los, reorganizá-los, substituir uns pelos outros. Nesse sentido, a
linguagem contém em si, a fonte dialética da tradição e da mudança.
(PCNEFs: - 20 grifos meus).
Esse fragmento de texto se segue à concepção de linguagem assumida, o que implica
que o possessivo isso a recupera no sentido de explicitá-la. Enquanto enunciado de
divulgação científica, o divulgador, no seu papel de comentador, em forma de modalização
autonímica, coloca os pólos em contato, traduzindo para o interlocutor o que significa
compreender a linguagem a partir do conceito assumido. O par discursivo por um lado/por
outro lado embréia nele a compreensão do objeto, fundamentado nos pressupostos
vygotskkyanos, traduzindo as suas naturezas individual e social. Nesse espaço de tradução, o
eu vai construindo uma imagem positiva de si, que confirma um ethos positivo/negativo, ou
um eu que sabe, que traduz, e um outro que necessita desse saber.
O tom professoral do comentário constitutivo do fragmento acima aproxima o outro
dos conceitos e das posições teórico/metodológicas que se desejam, desconstruindo a posição
de igualdade que se estabelece entre o objeto e o outro. Por esse caminho, abre-se espaço
para o eu, no enunciado, embora as estratégias de monofonização não sejam desfeitas. Mas é
interessante avaliar que esse eu comentador parece ter rompido com um contrato, que,
diríamos, de trabalho, ao assumir a posição vygotskyana de linguagem, denotando, mais uma
vez, uma subjetividade fraturada. A noção de competência, sob o ponto de vista pedagógico,
parece ter sido deixada de lado para dar lugar ao seu caráter dialético. Essa ruptura não deixa
de ser uma posição de subjetividade, que faz parte da imagem que o eu faz de si, que é a de
compreender a linguagem para além da noção de competência ligada ao caráter pedagógico
do enunciado.
Mas esse eu, seguro de si, parece abrir mão dessa postura para dar lugar a alguma
incerteza. As aspas, conforme considerações de Authier-Revuz (1990), se constituem em uma
heterogeneidade mostrada, ou em vozes que devem se constituir na intradiscursividade, ou
entre sujeitos, sugerindo uma reescritura que deverá acontecer no processo de interação,
portanto, dizem respeito ao caráter polifônico da linguagem. Delas pode-se dizer que o eu
transfere para o outro a construção da heterogeneidade que, diríamos, está apenas assinalada
no fio do enunciado, abrindo espaços para discursos concorrentes. Em se tratando do
fragmento anterior, ao colocar entre aspas o substantivo teorias, modificado pelo adjetivo
populares, é possível fazer pelo menos duas leituras desse recurso discursivo. Em primeiro
lugar, pode-se entender que ele suscita, no contexto, uma dúvida se é possível considerar os
saberes empíricos e os mitos como ciência. Em segundo lugar, diante da dúvida, pode-se,
também, entender a questão como uma transferência de responsabilidade sobre o saber
empírico que o aluno já domina, ou mesmo sobre os conceitos populares que geralmente
invadem o seu saber.
4.2.2.1 - O professor do segundo ciclo do ensino fundamental: quem é ele?
O direcionamento teórico/metodológico do trabalho com a linguagem, nos PCNEFs
de Língua Portuguesa, na primeira parte, encaminha a questão para todo o ensino
fundamental, da 1ª à 8ª série. Em se tratando do outro assimilado, no documento, ele é
traçado, no fio do enunciado, no nível dessa escolaridade. Mas, sendo o nosso corpus de
análise aquele que é direcionado, também, ao segundo ciclo do ensino fundamental, resta-nos
saber a forma como o outro irrompe nessa segunda parte do enunciado, que relações se
estabelecem e que imagem o eu faz de si nessa relação. Pelo gênero do discurso no qual o
enunciado está ancorado, pela forma como a sua primeira parte assimila, por sua vez, o outro,
pela imagem que o eu faz de si, ou ainda, pelas suas condições de produção, já se pode
antecipar que há uma assimilação daqueles pressupostos para o trabalho com a linguagem,
em nível de 5ª a 8ª série.
Recortando o gênero de divulgação científica, gostaríamos de retomar essa questão,
inicialmente, pelo gênero de discurso curricular, que, pela sua natureza, se organiza de forma
não só interdisciplinar, mas, sobretudo, transdisciplinar, isto é, ele é atravessado por algumas
outras disciplinas, que, no seu conjunto, formam o currículo. Essa coerção desse gênero
discursivo, atrelada à tendência recente, que já foi discutida, inicialmente, propõe gêneros de
divulgação científica diferenciados, atravessando um único enunciado. Mas, quando outros
conceitos perpassam o currículo, em forma de divulgação científica, considerando que, o que
há, nesse gênero de discurso, é um saber ensinado, isso implica que há um outro assimilado
que precisa se reconhecer com necessidade de se apropriar de alguns conceitos, para que o
aprendizado se dê de forma sistematizada, ou para que o saber escolar se constitua.
Para os PCNEFs de Língua Portuguesa, no segundo ciclo do ensino fundamental, a
primeira transdisciplinaridade que se dá ocorre em um campo que atravessa a ciência da
educação, na contemporaneidade. Não se pode falar do aprendizado, hoje, desarticulado da
sua psicogênese, ou seja, da forma como se dá o processo de construção do conhecimento,
principalmente, a partir dos estudos de Vygotsky e de Piaget. O documento que está sendo
analisado começa trazendo, para o interior do enunciado, em forma de divulgação científica,
uma síntese que reelabora concepções a respeito daquele que encabeça o tripé em torno do
qual deve ser pensada a educação. Essas concepções começam por assimilar o outro no
interior do enunciado, que precisa de “tomar ciência” da identidade do aluno desse nível de
escolaridade.
Os alunos do terceiro e do quarto ciclo do ensino fundamental, idealmente,
apresenta-se na idade entre 11 e 15 anos, (...). Trata-se de um período da
vida em que o desenvolvimento do sujeito é marcado pelo processo de
(re)constituição da identidade para o qual concorrem transformações
corporais, afetivo-emocionais, cognitivas e socioculturais. (PCNEFs:45).
Essa síntese, que supõe, identitariamente, o aluno do segundo ciclo do ensino
fundamental, supõe, também, identitariamente, o outro da interlocução, aproximando-o do
objeto do discurso, através das marcas que constituem o aluno. Situado o aluno adolescente
na sua condição de aprendizagem, trazendo a questão para a disciplina Língua Portuguesa, o
interlocutor se reconhecerá em um saber que precisa ser considerado para que, dele, emerjam
os efeitos de sentido desejados.
No caso do ensino de Língua Portuguesa, considerar a condição afetiva,
cognitiva e social do adolescente implica colocar a possibilidade de um
fazer reflexivo, em que não apenas se opera concretamente com a
linguagem, mas também se busca construir um saber sobre a língua e a
linguagem e sobre os modos como as opiniões, valores e saberes são
veiculados nos discursos orais e escritos. (PCNEFs:47 - grifos meus)
Pelo fato de que o texto de divulgação científica se constrói, entre outras formas, de
argumentos que são o lugar do divulgador, que ocupa um lugar, também, de comentador, é
nesse espaço discursivo que o eu vai abrindo espaço para o outro, no caso em apreço, o
professor, caracterizando o aspecto didático, próprio desse gênero. O fragmento de texto
acima contém um saber ensinado, assimilando, no seu interior, um outro que precisa se
reconhecer nas formas de como deve se dar o trabalho com a linguagem, no segundo ciclo do
ensino fundamental, ou com o aluno pré-adolescente e adolescente.
As condições de aprendizado das faixas etárias que freqüentam o ciclo referenciado,
fundadas nas suas condições afetiva, cognitiva e social, deverão orientar a aprendizagem. Os
argumentos do par sintático não apenas/mas também, que se igualam, semanticamente, nas
suas proposições, assimila o outro sob o ponto de vista do saber a ser ensinado, recuperando,
em ambos, a natureza individual e social da linguagem. Mas cabe avaliar que o aspecto
social, considerado no fragmento, passaria apenas pelo reconhecimento de linguagens de
grupos, reconhecendo os modos, as opiniões e os valores que veiculam nos “discursos” do
adolescente. Por essa proposta, o fazer reflexivo culminaria com uma compreensão da língua
em seu caráter sócio/variacionista, que perpassa um entendimento da leitura como
compreensão e como interpretação, assumindo, sobretudo, o caráter individual da linguagem,
questão que será retomada quando discutirmos os processos de didatização dos conceitos
lingüísticos a serem ensinados.
Pela coerção do gênero de divulgação científica, conforme já consideramos, o eu e o
outro se apagam no enunciado, embora sejam totalmente previstos. Por essa previsão, no
corpus de análise, mediante a condição do aluno do segundo ciclo do ensino fundamental,
o eu, mesmo apagado, disperso ao longo da segunda parte do enunciado, abre um diálogo
com o outro, através de heterogeneidades constitutivas, tais como: modalizadores
discursivos, negação, notas de rodapé etc. São esses elementos discursivos que trazem para o
fio do enunciado um outro, que vai sendo traçado pelos efeitos de sentido que se desejam. Os
conceitos da lingüística e os da didática, articulados com os argumentos constroem uma trilha
que deverá ser a sua orientação. Começaremos a traçar a trilha que mostra o caminho a ser
seguido, trazendo o professor para o discurso, nos pontos em que ele deve se reconhecer no
papel que ocupa no ensino, no caso em apreço, da linguagem. Nas situações de ensino de
língua, a mediação do professor é fundamental : (...) (PCNEFs:47grifos meus). Chamou-
nos a atenção, nesse fragmento, o papel que o professor deverá cumprir, já que ele introduz o
parágrafo do primeiro ponto que começa a orientar o trabalho com a linguagem, no segundo
ciclo do ensino fundamental.
O papel indicado para o professor, no fragmento, pareceu querer abrir um diálogo
com ele sobre a desconstrução que se estabeleceu para o trabalho com a linguagem, tendo em
vista a ruptura com o caráter tradicional. Foi público e notório que essa desconstrução, para
alguns, significou o esvaziamento do seu papel, no ensino, sobretudo, ao se considerar que a
gramática tradicional não ocuparia o espaço privilegiado que sempre ocupou, e também o
lugar de destaque que a variedade lingüística passou a ocupar. O predicador fundamental, de
natureza modalizadora, nesse contexto, intensifica a necessidade de que ele compreenda que
o que parecia estar esvaziado precisa ser reconstruído, considerando, sobretudo, a condição
do aluno. (...), cabe a ele mostrar ao aluno a importância que, no processo de interlocução,
a consideração real da palavra do outro assume, concorde com ela ou não. (PCNEF:47)
Reconhecido como mediador do ensino, reconhecidas as suas condições frente ao
saber a ser ensinado, mesmo que de forma opaca, abre-se um diálogo intenso com o
professor, através de elementos discursivos demarcados, sobretudo, em modalizadores, que
não só dão o tom do enunciado, mas também determinam o caminho a ser seguido, em forma
de orientação. Recortaremos essas orientações, que guardam a característica de um manual
didático, em torno desses direcionamentos para o professor do segundo ciclo do ensino
fundamental. Começaremos esse caminho por reconhecer a novidade conceitual da
Lingüística que deverá fazer parte do saber a ser ensinado, reconhecendo as limitações do
professor para lidar com tal questão. Trata-se da noção de “gênero discursivo”. A grande
diversidade de gêneros (...) impede que a escola trate todos eles como objeto de ensino;
assim, uma seleção é necessária. (PCNEFs:53 grifos meus).
Na esteira da orientação para esse macro-conteúdo, que é de natureza polifônica, pois
capta o interdiscurso da compreensão do gênero enquanto família de texto, há orientações
para todos os pontos que se deseja que sejam alcançados com a linguagem. Vejamos.
No tratamento didático dos conteúdos
Considerando que o tratamento didático não é mero coadjuvante no processo de
aprendizagem, é preciso avaliar sistematicamente seus efeitos no processo de ensino,
verificando se está contribuindo para as aprendizagens que se desejam alcançar. (...)
(PCNEFs:65 - grifos meus)
Nos conteúdos:
(...): não se forma um leitor e um escritor em um ano escolar. Assim sendo, é necessário dar
coerência à ação docente, organizando os conteúdos e seu tratamento didático ao longo do
ensino fundamental, (...). (PCNEFs:66 - grifos meus)
Na prática de escuta de textos orais
É condição fundamental para que o trabalho possa ser realizado a constituição de um
corpus de textos orais correspondentes aos gêneros previstos, a partir dos quais as
atividades de escuta (...) sejam organizadas, (...) .(PCNEFs:68 – grifos meus).
Na prática de leitura
(...) as atividades organizadas para a prática de leitura devem se diferenciar, sob pena de
trabalharem contra a formação de leitores. (PCNEFs:70 - grifos meus)
Na prática de produção de texto orais e escritos
(...) o olhar do educador para o texto do aluno precisa deslocar-se da correção para a
interpretação; do levantamento das faltas cometidas para a apreciação de recursos que o
aluno já consegue manobrar. (PCNEFs:77 - grifos meus)
Na refacção da produção de texto
(...). Um texto pronto será sempre produto de sucessivas versões. Tais procedimentos devem
ser ensinados e podem ser aprendidos. (PCNEFs:77 - grifos meus)
Na prática de análise lingüística
Além da escuta, leitura e produção de textos parece necessária a realização tanto de
atividades epilinguísticas, (...) como de atividades metalinguísticas, (...) (PCNEFs:78
grifos meus).
Na postura frente à variedade lingüística
Frente aos fenômenos da variação, não basta somente uma mudança de atitude; a escola
precisa cuidar para que não se reproduza, em seu espaço, a discriminação lingüística.(...)
(PCNEFs:82 - grifos meus)
Nas atividades com o léxico
A escola deve, portanto, organizar situações didáticas para que o aluno possa aprender
novas palavras e empregá-las com propriedade.(PCNEFs:84: - grifos meus).
Na avaliação
A avaliação deve ser compreendida como conjunto de ações organizadas com a finalidade
de obter informações sobre o que o aluno aprendeu, de que forma e em quais condições.
(PCNEF:93 – grifos meus)
Essas e algumas outras marcas discursivas, presentes em todo o enunciado, que são
pontos de deriva do sujeito, vão abrindo, de forma constitutiva, espaço para a entrada do
outro, no discurso. As marcas lingüísticas levantadas, que são modalizadores discursivos,
caracterizando o gênero de discurso em análise, no seu caráter prescritivo, funcionam como
orientações metodológicas. Alguns modalizadores, de natureza polêmica, outros nem tanto,
mas, sejam quais forem as características, eles guardam, como sentido, o lugar do fazer
pedagógico. É por essa condição do outro, no enunciado, que Suassuna (1998:180) avalia o
professor como executor de propostas e planos e não como um problematizador da prática,
pesquisador, criador de métodos e materiais, inovador.
Gostaríamos de retornarmos a Maingueneau (2005) e a sua consideração a respeito do
discurso institucional e a relação desse discurso com o seu processo de difusão e de consumo,
logo, a forma como ele deve ser manipulado. Os vários conceitos difundidos prevêem o que
se pretende com a linguagem. Mas os entendimentos que materializam o eu e o outro
prevêem um professor desqualificado para um processo de leitura, logo, para um outro que
precisaria, ainda, de um processo de formação continuada para que as alteridades sejam
possíveis. O próprio documento reconhece essa limitação.
Muitas das sugestões oferecidas neste documento não pretendem ser
originais; traduzem o esforço de registrar o que foi possível construir na
reflexão didático pedagógica sobre o trabalho no terceiro e no quarto ciclos.
Entretanto, sabe-se que muitos de seus pressupostos, quer de natureza
didática, quer de natureza lingüística não fizeram parte da formação inicial
de muitos docentes. A formação de professores se coloca, portanto, como
necessária para que a efetiva transformação do ensino se realize. (...).
(PCNEFs:67).
Pode parecer estranho, mas esse é um lugar histórico e para a história. Nele, o que há
é uma polifonia que busca, de forma velada, as vozes dos organismos internacionais,
supondo, para os países em desenvolvimento, a necessidade de processos de formação
continuada a que os professores teriam de se submeter, tendo em vista a implementação do
currículo idealizado para a sociedade de consumo. Pelo que já se considerou da reforma da
educação, no contexto político/econômico, os conceitos lingüísticos e pedagógicos é que
deverão sustentar as práticas que são esperadas. O predicador necessário, juntamente com
verbo colocar, que, no contexto, tem função de cópula, modalizam o discurso, atrelando a
transformação da educação ao processo de formação continuada do professor,
caracterizando-o como necessário de um saber que ainda precisa ser construído. Segundo
Freitas (2004:91), trata-se de recomendações do Banco Mundial, que visa, sobretudo, a elevar
os níveis de educação nos países subdesenvolvidos, qualidade determinada por vários fatores,
entre os quais se situa (...) a melhoria do conhecimento dos professores, privilegiando a
capacitação em serviço, sobre a formação inicial e estimulando as modalidades à distância.
4.2.2.2 O aluno previsto para o ensino fundamental: quem é ele?
Compreendido o espaço do outro, materializado na forma-sujeito professor,
retomaremos o tripé no qual os PCNEFs estão fundamentados, sob a perspectiva do aluno e a
sua constitutividade. Conforme consideramos, inicialmente, desde que a educação se tornou
laica, sempre esteve relacionada ao modo de produção da riqueza. Isso indica que os modelos
de estado, que têm ocorrido na modernidade, se constituíram, também, sob esse ponto de
vista, suscitando, de forma sutil, as relações de poder implícitas no processo. Em se tratando
da contemporaneidade, em se tratando, também, da reforma educacional a que alguns países
periféricos foram obrigados a se submeter, nesse contato, vai se explicitando a leitura de
Machado e de Bronckart (2005) que, citando Paveau (1999), conforme consideração já
tomada, propõem uma hierarquia que indica, politicamente, o processo de produção do
conhecimento: A diz a B para agir para C.
Na hierarquia proposta, o poder constituído, materializado nas instituições oficiais,
mostra o papel que a escola deverá cumprir no contexto político/econômico atual, mostrando,
também, como deverá se dar a constitutividade do aluno. É nesse espaço que o poder é
disseminado, em se tratando dos PCNEFs, quando o documento assume pressupostos
teóricos, metodológicos, históricos e políticos, que deverão orientar a construção do saber a
ser ensinado e os objetivos que se desejam alcançar. Cabe ressaltar que é nessa inter-relação
que se constrói a identidade do aluno que a escola deverá produzir.
Para a disciplina Língua Portuguesa, qual seria o aluno idealizado? Em primeiro
lugar, ele deve ser identificado como um ele que não vai, em nenhum ponto do enunciado, se
alinhar ao eu, já que o objeto do discurso é para ele, portanto, sem diálogo estabelecido,
mesmo que disperso, o que o caracteriza, diferentemente do professor, como uma não pessoa.
Reconhecido como tal, o documento tem a preocupação com supor, para esse aluno, em
primeiro plano, o conhecimento lingüístico, relacionado à cidadania.
Assim, um projeto educativo (...) atribui à escola a função e a
responsabilidade de contribuir para garantir a todos os alunos o acesso aos
saberes lingüísticos necessários para o exercício da cidadania. (PCNEFs:19
grifos meus).
Por tudo que se considerou a respeito do conceito de cidadania para a política
contemporânea, o fragmento tomado dos PCNEFs de Língua Portuguesa é ponto de partida
para se entender, de forma explícita, a relação do conhecimento sistematizado com o poder,
que se dissemina, de forma velada, nas instituições. Cabe, aqui, retomar Chaui (1997) e a sua
consideração a respeito desse conceito, relacionado ao momento histórico, político e
econômico vivido. O modelo de Estado assumido pelo Brasil, na última reforma a que o
Estado foi submetido, no governo FHC, desloca-o para um vivência fora de sua natureza
política, portanto, marcado pela individualidade de cada um. Essa forma de conceber a
cidadania, da à série do ensino fundamental, se constitui em um conjunto de pré-
requisitos que deverá “formatar subjetividades” para conviver com a sociedade
contemporânea.
O conjunto de elementos que identifica o aluno para o contexto referido o supõe
como um produto que deverá estar apto para, lingüisticamente, exercer a cidadania. Esse
conceito, tomado por esse entendimento, consolida o ensino da linguagem, considerando-o
sob o ponto de vista dos usos, materializada na noção de competência discursiva, portanto, de
natureza utilitária. Trata-se de um conceito esvaziado, politicamente, que confirma o seu
exercício em um processo de mão única, caracterizado no direito que cada um tem. Mas, se
se pode dizer que o conceito de cidadania se constitui de forma esvaziada, politicamente, o
mesmo não se pode dizer do seu sentido, no contexto, ou seja, ideologicamente, não se pode
vê-lo de forma distante, ingênua, mas sim como uma mescla que disfarça uma realidade
histórico/política, relacionada, sobretudo, ao modo de produção de riqueza, logo ao mundo
do trabalho e à sociedade de consumo.
A individualidade própria da identidade do aluno vai se caracterizar, sobretudo, na
concepção de sujeito que, muito distante de ser uma construção histórico/ideológica, se limita
a uma pessoalidade, que pode ser levantada em vários pontos do enunciado, marcando
algumas representações, que seriam aquelas fundamentadas no indivíduo concreto. Conforme
adverte Courtine (1981), por indivíduo concreto entende-se o sujeito como fonte e origem do
seu dizer, portanto, centrado na pessoa. O outro não é o outro da alteridade, mas é o que
capta o discurso e produz um sentido para ele, portanto, como um destinatário passivo, como
prevê Bakhtin. (1992:289)
Pelo pressuposto acima, a diferença não diz respeito às formações discursivas às quais
o sujeito está submetido, resultante da luta de classes, mas do modo de pensar de cada um.
No corpus de análise, o sujeito deve ser visto de forma a concluir o que se pretende com a
produção de conhecimento, nesse contexto. O destaque que se dá à linguagem no seu caráter
instrumental/utilitário deverá encaminhar para uma concepção de sujeito como simples
usuário da Linguagem, portanto, se funda justamente naquela contra a qual a AD se opôs, que
é a que o concebe como pessoa empírica, fora da sua construção sócio/histórico/ideológico.
Em nível de ensino fundamental, da àsérie, enquanto pessoa empírica, a
subjetividade é concebida a partir de um objetivo a ser alcançado, como aquele que será
capaz de desenvolver a competência discursiva para usos devidos, sendo esse, com certeza,
um papel a ser desenvolvido pela escola. (...) um dos aspectos da competência discursiva é o
sujeito ser capaz de utilizar a linguagem de modo variado (...) (PCNEF:23). A partir da
compreensão do sujeito enquanto pessoa concreta no discurso, ao lado do princípio norteador
do documento, que é a pedagogia das competências, cujo fundamento básico, sob o ponto de
vista de Perrenaud, é a metáfora da mobilização de conhecimentos, ele é pensado a partir de
alguns pontos de vista. Ele é apresentado como pessoa empírica, nos PCNEFs de Língua
Portuguesa:
no processo de interação:
(...) quando um sujeito interage, verbalmente, com o outro, o discurso se organiza a partir
das finalidades e intenções do locutor, dos conhecimentos que acredita que o locutor possua
sobre o assunto, do que supôs ser as suas opiniões e convicções, simpatias e antipatias, da
relação de afinidade e de grau de familiaridade que tem, da posição social e hierárquica que
ocupa (...) (PCNEFs:21 – grifos meus)
no processo de aquisição do conhecimento, capaz de agir sobre esse processo:
O primeiro elemento dessa tríade - o aluno – é sujeito da ação de aprender, aquele que age
com e sobre o objeto de conhecimento. (PCNEFs:22 –grifos meus)
na forma como aprende
Ao tomar a língua materna como objeto de ensino, a dimensão de como o sujeitos aprendem
e de o como os sujeitos desenvolvem sua competência discursiva não pode ser perdida.
(PCNEFs:34 – grifos meus)
na sua condição de aprendiz
A complexidade de determinado objeto deve ser considerada em relação ao sujeito aprendiz
e aos conhecimentos por ele já construídos a respeito. (PCNEFs:38 – grifos meus)
na sua condição de mobilizador de conhecimento
O grau de exigência da tarefa refere-se aos conhecimentos de natureza conceitual e
procedimental que o sujeito precisa ativar para resolver o problema proposto pela
atividade. (...). (PCNEFs:38 – grifos meus)
O conceito de sujeito enquanto pessoa concreta para o ensino fundamental, da à
série, supõe, também, um sujeito como pessoa concreta para o segundo ciclo do ensino
fundamental.
Em relação à construção da sua identidade:
Trata-se de um período da vida em que o desenvolvimento do sujeito é marcado pelo
processo de reconstituição da identidade, (...) (PCNEFs:45 – grifos meus).
Em relação ao respeito pela individualidade e pelas diferenças que marcam a
identidade de cada um na interação
A escola deve assumir o compromisso de procurar garantir que a sala de aula seja um espaço onde
cada sujeito tenha o direito à palavra reconhecido como legítimo e essa palavra encontre
ressonância no discurso do outro. Trata-se de instaurar um espaço de reflexão em que seja
possibilitado o contato efetivo de diferentes opiniões, onde a divergência seja explicitada e o conflito
possa emergir em um espaço em que o diferente não seja melhor nem pior, mas apenas diferente, e
que, por isso mesmo, precisa ser considerado pelas possibilidades de reinterpretação do real que
apresenta; um espaço em que seja possível. (PCNEFs:48 – grifos meus).
A concepção de sujeito assumida pelos PCNEFs de Línguas Portuguesa não tem
relação com a subjetividade suposta pela AD, que, retomando Pêcheux (1998:183), seria a
existência histórica de qualquer indivíduo, que, por sua vez, é uma construção
histórico/ideológica. Esse é também o entendimento de Bakhtin (1992:291) a respeito da
questão, que fala em sujeito falante, que polemiza com enunciados pré-existentes aos quais o
enunciado produzido está ligado. Isso implica que a concepção de sujeito fundada na noção
de pessoa concreta não se constitui dos elementos que lhe dizem respeito, tais como a história
e a ideologia, logo, não pode ser entendido na relação com as formações discursivas e com a
memória discursiva, menos ainda com a noção de classe. Por essa razão, ele não é uma ilusão
de subjetividade, constituída no espaço entre o consciente e o inconsciente. Um olhar
discursivo o aponta como aquele que fala um discurso, e o conflito não decorre da
interdiscursividade na qual é constituído, ou de atitudes e representações que se opõem por
posições de classe, mas decorre das divergências ou convergências entre discursos.
A constitutividade do sujeito entendida fora de uma perspectiva histórica apontaria
uma intradiscursividade fora, também, da noção de formulação/reformulação dos discursos
em confronto, portanto, fora da relação com as formações discursivas. Para os PCNEFs de
Língua Portuguesa, essa questão se daria em forma quase de decalque, ou seja, no
documento, o outro não se traduz, também, por uma subjetividade constitutiva, mas, por uma
compreensão que perpassa os aspectos de valoração e, juntamente com a linguagem, ele é
traduzido como pessoa concreta, que precisa ser compreendida como tal, cabendo essa tarefa
ao professor.
( ...).o professor pode-se constituir em referência para o aluno. Além de ser
quem ensina os conteúdos, é quem ensina, pela maneira como se relaciona
com o texto e com o outro, o valor que a linguagem e o outro tem para si.
(PCNEFs:66).
A concepção de sujeito que os PCNEFs de Língua Portuguesa assumem está fora de
uma construção histórico/ideológica. Apesar da natureza social que Vygotsky dá às questões
relacionadas à linguagem, ele a trata, também, sob o ponto de vista cognitivista, originada das
pesquisas que acompanharam o desenvolvimento mental de crianças em linguagem. É nesse
espaço que o autor traz para a discussão, a noção de sujeito, portanto, não histórico, não
ideológico, mas cognoscente, logo, o que constrói conhecimento.
(...) A introdução gradual dos meios para a solução permite-nos estudar o
processo total de formação de conceitos em todas as suas fases dinâmicas.
A formação dos conceitos é seguida por uma transferência para outros
objetos: o sujeito é induzido a tomar os novos termos ao falar sobre outros
objetos que não os blocos experimentais, e a definir o seu significado de
uma forma generalizada. (Vygotsky, 1993:49 – grifos meus).
Pelo fragmento acima, baseado no princípio cognoscente de Vygotsky, portanto,
pode-se concluir que é dos princípios defendidos por esse autor que emerge o conceito de
sujeito que permeia os PCNEFs de Língua Portuguesa, compreendido a partir do processo
mental, que ele é capaz de acionar para o “aprendizado” da linguagem. E o próprio
documento se encarrega de assumir, de forma explícita, essa condição da subjetividade,
quando trata da reflexão sobre a linguagem sob o ponto de vista da análise lingüística.
(...) não se pode desprezar as possibilidades que a reflexão lingüística
apresenta para o desenvolvimento dos processos mentais do sujeito, por
meio da capacidade de formular explicações para explicitar as regularidades
dos dados que observam a partir do conhecimento gramatical implícito.
(PCNEFs:78 – grifos meus).
Outra questão que não se pode perder de vista é a constitutividade do sujeito na sua
natureza ideológica. Quando levantamos essa questão, a partir da análise de Eagleton (1997),
foi possível mostrar algumas diferentes compreensões que o autor levantou para o mesmo
problema. Dentre essas, gostaríamos de destacar aquela que a considera apenas como ponto
de vista ou como modo de pensar de cada um. Discursivamente, essa forma de tratar da
ideologia tira a linguagem do seu lugar de conflito, supondo-a apenas como representação do
pensamento, fora, portanto, das coerções externas que constituem as subjetividades. Os
PCNEFs de Língua Portuguesa, coerentemente, considerando a concepção de sujeito
assumida, assume, também, uma concepção de ideologia que se sustenta no mesmo
pressuposto. Uma única abordagem da questão está relacionada aos temas transversais que,
por abrirem discussões diversas sobre os grandes problemas contemporâneos, abrem,
também, espaços para diferentes opiniões a respeito dos mesmos, tendo a escola a
responsabilidade de fazer garantir opiniões diferentes a respeito da mesma questão.
Por tratarem das questões sociais contemporâneas, que tocam
profundamente o exercício da cidadania, os temas transversais oferecem
inúmeras possibilidades para o uso da palavra, permitindo muitas
articulações com a área de Língua Portuguesa como:
(...)
A convivência com outras posições ideológicas, permitindo o exercício
democrático. (...) (PCNEFs:40).
Pelas condições de construção da subjetividade, assumida pelos PCNEFs de Língua
Portuguesa, e ainda pela relação que se estabelece com a ideologia, no que diz respeito à
aprendizagem, pode-se afirmar que o “sujeito”, no documento, é compreendido como
necessitado de um aprendizado de discursos, como se esse conceito só fosse possível de ser
construído nas relações pedagógicas. Discursivamente, o documento nos dá a idéia de que o
aluno é quase uma tábula rasa que precisa ser treinado para exercer competências
discursivas. Nesse contexto, a escola, que é um Aparelho Ideológico de Estado, parece ser
vista apenas como um lugar de aprendizados, inclusive de discursos, e não como lugar de
discursos em confronto.
Ainda que a reflexão seja constitutiva da atividade discursiva, no espaço
escolar reveste-se de maior importância, pois é na prática de reflexão sobre
a língua e a linguagem que pode se dar a construção de instrumentos que
permitirão ao sujeito o desenvolvimento da competência discursiva para
falar, escutar, ler e escrever nas diversas situações de interação.
(PCNEFs:34).
Gostaríamos, agora, de retomar a nossa consideração inicial a respeito da
intra/interdiscursividade. Para o enunciado em análise, ela significa uma realidade discursiva
que se interpõe, na medida em que o eu e o outro se encontram no interdiscurso, constituído
pela história e para a história. Pela origem do enunciado e ainda pelos fins para os quais ele
foi produzido, pode-se concluir que a interdiscursividade é a representação do poder
instituído, que dialoga com os conceitos que lhe convém, impondo-os para a realidade que se
deseja, no caso em apreço, a comunidade escolar. Já a intradiscursividade, por sua vez, se
constitui na relação que se estabelece com o outro do discurso, trazendo-o para o interior do
enunciado, e o compromete com as políticas a serem implementadas para a educação.
4.3 Sujeito e autoria nos PCNEFs de Língua Portuguesa: formas de representação
4.3.1 A representação da forma-sujeito: a subjetividade
Para iniciarmos a discussão a respeito da subjetividade, retornaremos ao gênero ou
aos gêneros discursivos através dos quais os PCNEFs de Língua Portuguesa se organizam. Só
para retomar, o gênero ou os gêneros nos quais o documento se ancora, que são o curricular,
que imprime, no documento, um caráter prescritvo, e o de divulgação científica, que imprime
um caráter didático, e ainda a sua natureza oficial, conforme consideramos, promovem, na
sua estrutura, um apagamento da subjetividade no enunciado, através de estratégias de
monofonização. Essa forma de organização, embora não seja neutra, tem a pretensão de
produzir uma isenção, tendo em vista a produção de um enunciado “transparente”, que fala
por ele mesmo. Essas características o levariam a uma super-valorização do objeto, fazendo
com que os efeitos de sentido desejados emerjam de uma constitutividade “desideologizada”,
já que, no caso em apreço, o que deve se destacar é a ciência, transformada, didaticamente,
em objeto de ensino.
É interessante observar que a pretensão de uma neutralidade possível nos PCNEFs,
logo, também, nos Parâmetros para Língua Portuguesa, começa a se constituir já na
introdução dos objetivos para o ensino fundamental, de certa forma, usando estratégias
lingüísticas que, se tomadas apenas na sua superfície, podem parecer tratar-se do estilo
próprio do currículo. Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como objetivos do
ensino fundamental que os alunos sejam capazes de: (...). Chamou nos a atenção, nessa
introdução dos objetivos, o sentido que Parâmetros Curriculares Nacionais pode ter, no
contexto. Pelo nosso olhar, através dele, pode-se recuperar um elemento discursivo, de
natureza performativa, que, por sua vez, recupera um eu que se constitui na voz do discurso
oficial. Trata-se de um termo que pode passar desapercebido, distanciado, portanto,
possibilitando uma leitura apenas de um documento prescritivo, que sugere um fazer
didático/pedagógico. Ideologicamente, essa forma de apresentar os objetivos impõe,
pretensiosamente, um desejo de se supor uma neutralidade que pode resultar em um
enunciado de natureza transparente.
Apesar do distanciamento propositado, capaz de promover a “transparência” do
enunciado, ao longo do processo de análise não pudemos deixar, em muitos pontos, de
perceber uma subjetividade dispersa. Portanto, não cabe mais discutir se há uma
subjetividade que corta o fio do enunciado, já que ela é um fato inegável, mas sim de buscar,
pelo nosso olhar, quem preenche o lugar vazio do sujeito, ou de que forma ele é preenchido.
Começaremos a questão levantada acima pela última necessidade de comprovação, já
que é através dela que se captam os discursos repetidos no tecido do enunciado, logo, é
através dela, também, que se capta a subjetividade dispersa. Essa questão pode ser vista pelo
próprio percurso de análise já realizado, através de algumas marcas lingüísticas, como: os
dêiticos, que irrompem no fio do enunciado, situando historicamente, as questões que
atenderiam a uma demanda, os modalizadores discursivos, que são, entre outras marcas,
responsáveis pela intradiscursividade, os discursos recusados, que deixaram transparecer, na
superfície do enunciado, a interdiscursividade, capaz de denotar não só as vozes em
confronto, mas também os acordos discursivos, produzindo os efeitos de sentido desejados.
Pelas marcas lingüísticas levantadas e por tantas outras que perpassam o documento,
levantadas, ao longo da análise, que não seria necessário repeti-las todas aqui, é possível
entender que se trata de um enunciado que, por mais que tenha a pretensão de ser
transparente, carrega, no seu tecido, uma opacidade, capaz de demarcar uma subjetividade.
Trata-se da intra/interdiscursividade, materializada em estratégias lingüísticas, que dispersam
a subjetividade, embora mantenha o afastamento do seu lugar de origem.
Mas o que significa a subjetividade presente nos discursos das institucionalidades
oficiais? Para responder a essa questão, retomaremos a avaliação de Miranda e de Cascais
(s.d) sobre a questão. Conforme já se considerou, anteriormente, para esses autores, trata-se
de figurações históricas do sujeito, suas formas de institucionalização e os saberes que os
disciplinam. Por essa concepção, depreende-se que ela representa uma marca de autoridade
constituída, originada de uma autoridade delegada, representante legítima do poder, portanto,
atravessada pelas configurações históricas, que laçam os interesses do próprio poder,
disciplinando o saber que se deseja, no caso em preço, o saber escolar. A propósito dessas
figurações históricas, por mais que já tenhamos levantado do corpus de análise essa questão,
pode-se, ainda, recorrer a ela para que se explicite, ainda mais, uma subjetividade
institucionalizada, que está a serviço dos interesses que emergem do poder instituído.
A nova realidade social, conseqüente da urbanização crescente, da enorme
ampliação da utilização da escrita, da expansão dos meios de comunicação
eletrônicos e da incorporação de contingentes cada vez maiores de alunos
pela escola regular colocou novas demandas e necessidades, tornando
anacrônicos os métodos e conteúdos tradicionais. (...) (PCNEFs:17 – grifos
meus)
O fragmento acima, através da forma verbal do pretérito perfeito colocou, que pode
ser substituída por uma forma de presente contínuo, que situa a contemporaneidade - tem
colocado –, atrela o conhecimento à realidade social, logo, à realidade histórica. No avesso
desse fragmento pode-se captar o discurso negado da evolução da ciência, no caso em apreço,
a lingüística e a didática, colocando acima dessa questão os interesses de uma realidade
histórica, política e econômica, que demanda saberes especiais. Grosso modo, pode-se dizer
que a questão não se impõe pela necessidade da própria ciência, mas pela necessidade do
modus vivendi instituído, que foi capaz de inverter os papéis. Ao invés de a ciência estar a
serviço do homem, através de saberes a serem ensinados, ele é que está a serviço dela,
através desses mesmos saberes a serem ensinados, na escola, sugerindo uma forma de
construção do conhecimento de natureza utilitária. Em se tratando da linguagem, ela deixa de
fora toda a complexidade político/ideológica que diz respeito à discursividade.
Gostaríamos, agora, de retomar a primeira parte da indagação, na intenção de se
perseguir, para a nossa leitura, quem preenche o lugar vazio do sujeito. Para essa questão,
retornaremos a Bakhtin (1992:294) e parte da sua compreensão do que seja o enunciado
concreto, que são as fronteiras através das quais o enunciado se limita, ou através do lugar no
qual o locutor passa a palavra para o outro. Nossa busca por essa compreensão passa pela
necessidade de se situar a forma-sujeito que assume as marcas da discursividade que perpassa
o enunciado de análise. Para essa compreensão, faz-se necessário considerá-lo na sua
totalidade, portanto, sob uma abrangência, também, para além da organização textual que
perpassa a subjetividade.
Nesse espaço discursivo, portanto, buscaremos as representações, simbólicas ou não,
do eu que deve assumir uma discursividade, já que, segundo Orlandi (1996:68) por sujeito
pode-se entender um lugar, uma posição discursiva. Em se tratando do corpus de análise,
essas representações, simbólicas, começam a se constituir através da representação do poder,
materializada no Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, no Ministro da
Educação e do Desporto, Paulo Renato Souza, e no Secretário Executivo, Luciano Olívio
Patrício, que dão legitimidade aos pressupostos nele circulantes, autorizando, enquanto
nação, um modelo de currículo, que deveria servir de parâmetro para os fins a serem
alcançados, conforme já se considerou.
Mas é necessário observar que as representações simbólicas, que podem passar quase
desapercebidas, foram recortadas por uma voz que toma a dianteira, falando para o
interlocutor presumido, assumindo a subjetividade dispersa no enunciado. Trata-se do então
Ministro da Educação, Paulo Renato Souza, que, através da carta endereçada ao professor,
pode ser caracterizado como a forma-sujeito, que assume a representação do eu no
enunciado. Segundo Ducrot (1987:186), que concebe um autor empírico para alguns tipos de
enunciados, ou o que, anonimamente, o constrói, não é esse autor o que se responsabiliza
pelo dito, mas o locutor que, tão logo o tenha assinado, é dele a responsabilidade das marcas
da primeira pessoa.
No nosso entendimento, a condição considerada anteriormente é a que sustenta a
noção de subjetividade nos PCNEFs, consolidando a legitimação do discurso oficial. Ainda
para Orlandi (1996:64), subjetividade implica, também, dar sentido a qualquer objeto
simbólico. Em se tratando do sentido que emerge do enunciado em análise, ela não só dá
sentido a esse objeto simbólico, que é a produção de conhecimento, mas também assume o
sentido dado, subsumindo uma posição discursiva dispersa, que perpassa conceitos, posições
teórico/metodológicas, intra/interdiscursividades, ideologias, entre outras. Enfim, ela legitima
um discurso.
Para os PCNEFs de Língua Portuguesa, não se pode dizer que se trata de uma
subjetividade que confirma os conceitos lingüísticos assumidos, ou mesmo os pedagógicos,
mas ela pode ter um valor de referendo do dito. Remetendo, para Maingueneau (2005) e para
a sua consideração a respeito da institucionalização dos discursos e da conexão que o
discurso é capaz de fazer com o seu lugar de origem, é aqui que essa conexão se dá,
estabelecendo a relação com o poder instituído. É aqui, também, que a hierarquia suposta por
Machado e por Bronckart (2005), tomada em Paveau (1999) se consolida, através do
preenchimento do lugar de A: A diz a B para agir para C. Trata-se da relação que o currículo
sempre estabeleceu com o poder central, conforme avaliação de Cury (2000), impondo os
conceitos necessários aos saberes a serem ensinados.
4.3.2 A representação da função-sujeito: a autoria
Assumida a subjetividade como uma condição inegável para os PCNEFs de Língua
Portuguesa, levantada em alguns lugares de deriva do sujeito, ao longo do processo de
análise, gostaríamos de discutir a outra questão pertinente a esse ponto. Trata-se do autor, não
enquanto escritor, não, também, necessariamente, como aquele que teria de assumir a fala do
eu, mas como o que organiza o discurso, conforme consideramos anteriormente, portanto, de
natureza discursiva. Pelo que se considerou da sua constitutividade, é dele a responsabilidade
da construção do eu discursivo, o que indica que ele é, também, uma construção histórica,
que se impõe como uma função-sujeito. Enquanto tal, segundo Orlandi (1996:71), ele deve
ser considerado como interpretação, ou como construção do já dito. Isso indica que é dele a
condição de produzir as rupturas, através dos vazios, dos implícitos, dos pressupostos, dos
subentendidos, ou seja, ele é o responsável pelos espaços discursivos, que se materializam na
superfície da textualidade. Por essa razão, é dele, também, a responsabilidade de captar um
gênero por outro gênero, de reformular um gênero para produzir outro gênero, enfim, ele é
capaz de interpretar o já dito, para dizer o que deseja de forma conveniente. Em síntese, se a
subjetividade assume o dito, a autoria assume a forma como se diz, denotando, conforme
considerações anteriores de Bakhtin, a visão de mundo do sujeito.
Em se tratando das condições de produção do enunciado que está posto para análise,
a assinatura ou a forma-sujeito que assume o eu não coincide com a autoria do enunciado.
Enquanto função, então, como se deu essa autoria? Identificada na borda posterior como
elaboração e como consultoria, ela foi constituída, conforme avaliação dos relatores que
elaboraram o parecer final sobre os PCNs, através de um processo que não era uma
representação de pesquisadores sobre currículo. Mesmo assim, ela assumiu diretrizes
axiológicas, orientações metodológicas, critérios de avaliação, conteúdos específicos para
todas as disciplinas do ensino e, ainda, os temas transversais. Retomando Orlandi (1988),
coube a essa autoria interpretar uma construção em linguagem, sobretudo, assumindo o
conceito básico que deveria sustentar todos os documentos, da 1ª série do ensino fundamental
ao 3º ano do ensino médio, que foi a noção de competência. Para os PCNEFs de Língua
Portuguesa, o caminho a ser perseguido perpassou todo esse trajeto, produzindo, de fora para
dentro do enunciado, as concepções que lhe eram convenientes.
Quando levantamos, no início da discussão deste ponto, a questão da subjetividade,
fizemo-lo a partir da sua dispersão na organização do enunciado, ao longo do processo de
análise, mostrando alguns pontos de deriva do sujeito. Mas, diferentemente da subjetividade,
sendo o autor o responsável pela organização do enunciado e até por essa dispersão do
sujeito, discutiremos a autoria sob essa perspectiva, a partir do eixo teórico assumido por
todos os documentos, a partir do gênero ou dos gêneros através dos quais o documento de
Língua Portuguesa está organizado e, ainda, a partir de alguns possíveis desencontros na
organização do enunciado.
Começaremos a discussão sobre a autoria pela organização do enunciado e a sua
relação com o eixo teórico assumido. Tomemos essa questão pelas rupturas propostas para o
ensino, não só com a gramática tradicional, como também com a teoria da comunicação, que
foi assumida na década de 1970. Esse último pressuposto teórico teve como objetivo
desenvolver a comunicação e expressão do aluno, conforme consideração anterior, a partir da
concepção de linguagem como competência comunicativa. Essa concepção de linguagem
atenderia ao interesse dos governos militares e ao caráter desenvolvimentista que esses
governos implementaram no país. Mediante os avanços que a Lingüística promoveu, nas
últimas décadas, a autoria para os PCNEFs de Língua Portuguesa afirma que são esses
avanços que deveriam orientar o trabalho com a linguagem. A questão, na superfície do
enunciado, pode parecer assegurar esse pressuposto, de fato. Nesse contexto, para o
documento, a gramática, na sua natureza descritivo/prescritiva, assumiria um caráter sígnico
para a língua. (...) língua é um sistema de signos específicos, histórico e social, que
possibilita a homens e mulheres significar o mundo. (PCNEFs:20).
O entendimento da língua como sendo de natureza sígnica conceberia o ensino da
linguagem fundamentado em uma base discursiva, sustentado no avanço das teorias
lingüísticas, ocorridas nas décadas de 1970 e de 1980. Mas, ao que parece, o avanço que
essas teorias alcançaram pareceu se perder no caminho do enunciado. Esse desvio teórico se
deu através do conceito de competência, tomado, agora, não da linguagem, mas dos
fundamentos da pedagogia, se mesclando aos conceitos da lingüística, e o que já parecia
vencido ressurge com objetivos que se aproximam.
A competência comunicativa, que tinha como meta atrelar o conhecimento ao
processo desenvolvimentista que a ditadura militar implementou, nos PCNEFs de Língua
Portuguesa, se caracteriza como competência discursiva, tendo em vista uma adaptação da
escola a uma outra ordem econômica, mundial. Toda educação comprometida com o
exercício da cidadania precisa criar as condições para que o aluno possa desenvolver a sua
competência discursiva. (PCNEFs:23 – grifos meus). Pelo sentido que o conceito de
cidadania assumiu, no contexto de elaboração dos PCNEFs, a autoria do documento foi se
comprometendo com o conceito de competência, atrelando-o a todos os conceitos
lingüísticos, dando suporte a uma educação cuja finalidade seria atender a esse conceito.
Enquanto pressuposto teórico a ser assegurado, sob formas de representação
diferenciadas, o conceito de competência cobriu todos os conceitos que dizem respeito ao
ensino da linguagem, sob o ponto de vista discursivo, lingüístico, estilístico, do leitor, e
ainda da proficiência. Apesar de não haver nenhuma preocupação com um levantamento
estatístico rígido, cabe ressaltar que o atrelamento da noção de competência aos conceitos
lingüísticos ocorreu pelo menos 16 vezes, o que indica que ele é um conceito assumido e
transformado no objetivo maior a ser alcançado no ensino de língua materna.
O entendimento da linguagem como competência sufocou o conceito vygotskyano,
assumido logo no início do documento, e o que antes tinha um caráter social, acaba por
assumir um caráter individual e de aprendizado e não de constitutividades. Cabe à escola
ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no planejamento e realização de apresentações
públicas. (PCNEFs:25 - grifos meus). Aliás, essa questão se materializou, conforme análise,
no conceito de sujeito que o documento assume, que é apenas cognitiva.
Tomada a noção de competência como objetivo a ser alcançado, com ênfase na
competência discursiva, que ocorre, no enunciado, oito vezes, sob a prática de análise
lingüística pareceu recair a atividade que deverá ampliar a competência discursiva,
instrumentalizando o aluno para o fim que se deseja. Em outras palavras, ela teria como meta
“acertar” a variedade lingüística do aluno, adequando-a aos usos.
Ainda que a reflexão seja constitutiva da atividade discursiva, no espaço
escolar está revestida de maior ou de menor importância, pois é na prática
de reflexão sobre a língua e a linguagem que pode se dar a construção de
instrumento que permitirão ao sujeito o desenvolvimento da competência
discursiva para falar, escutar, ler e escrever nas diversas situações de
interação. (PCNEFs:34 – grifos meus) .
Se o sujeito, na função-autor, é o responsável por assegurar ao enunciado o seu
sentido interno, logo, a sua coerência, pelo fragmento acima, a análise lingüística, centrada
no caráter de instrumentalização, se constitui em uma incoerência. Ao considerar que o
ensino deve ser uma tarefa que instrumentaliza o aluno para o domínio da linguagem,
destitui-se essa atividade da possibilidade de ele ser considerado como discurso, apontando
para um deslize interno. O mesmo documento, que supõe o ensino da linguagem sob o ponto
de vista discursivo, tanto nos aportes teóricos como nos metodológico, o limita a uma
instrumentalização, tornando a questão ambígua.
Mas o problema levantado acima não seria o único que o fragmento apresenta. O
entendimento da análise lingüística, que, no documento, chega a polemizar com um discurso
concorrente a refacção que se opera não é mera higienização de texto, mas profunda
reestruturação do texto – (PCNFEs:77), acaba por chegar a um outro ponto de conflito
interno, pois, enquanto conteúdo, tendo em vista a instrumentalização, assume-se uma
discussão sobre o certo e sobre o errado, na linguagem. Se se tem o objetivo de
instrumentalizar o aluno para usos, a reflexão sobre as possibilidades de diferentes formas de
se realizar uma língua se limita, conforme o entendimento de Berenblum (2003), à passagem
de uma norma à outra, ou, conforme o entendimento de Marinho (2001), ao aprendizado de
uma norma para o “exercício da cidadania”. As incoerências marcadas na superfície do
enunciado podem ser vistas como perigosas, pois são sutis. Ao mesmo tempo em que supõem
a ruptura, parametrizam o ensino de linguagem, apontando formas de uso adequadas para um
contexto e não para o outro.
Nos pontos acima, falamos de incoerência a partir da organização interna do
enunciado, mas gostaríamos de abrir essa questão sob o ponto de vista de todo o enunciado.
Do que já se considerou, até aqui, sobre os conceitos assumidos, evidenciou-se que o que
sustenta os princípios da educação, no contexto político, está relacionado à noção de
competência, tomada da pedagogia. Mas cabe avaliar que o entendimento do ensino da
linguagem, sob esse ponto de vista, abriu um precedente de incoerência para todo o
documento. Ao propor romper com o “velho” para assumir as teorias lingüísticas que
consideram a linguagem, o discurso e o sujeito como pontos de partida do processo,
retroagiu-se, de forma até inconsciente, buscando formações discursivas, através de conceitos
já vencidos, recuperando até o discurso da ditadura militar, que seria o pressuposto que teria
de ser vencido, de imediato, pois a ruptura com a gramática por ela mesma já estava em
caminhos de construção. Lá e aqui, a ditadura econômica foi dando o tom do discurso, que
impôs a forma como deveria ser apresentado o saber a ser ensinado.
Mediante o exposto, cabe até uma indagação: qual a diferença entre ser competente
comunicativamente e ser usuário competente da linguagem, já que esse último é um objetivo
constante do documento. Se o que se busca é que o aluno seja um usuário competente da
linguagem no exercício da cidadania. (...), (PCNEFs:24: grifos meus). Isso indica que a
ruptura, até mesmo com as teorias da comunicação se perdeu. Se o interdiscurso entre a
ciência didática e a ciência a ser transposta, didaticamente, para o ensino, é um processo
tenso, de natureza ideológica, conforme considerações anteriores, em se tratando dos
PCNEFs, aqui é o lugar da tensão, pois ele deverá indicar o sentido que os conceitos devem
ocupar discursivamente. Essa questão será retomada no próximo capítulo, quando
discutirmos a forma como deverá se dar o ensino, no segundo ciclo do ensino fundamental, a
partir do atrelamento dos conceitos lingüísticos à noção de competência.
A propósito das práticas sugeridas, que foram consideradas incoerentes, esses não
seriam os únicos pontos problemáticos no enunciado, sob esse ponto de vista. O texto
apresenta outros lugares que podem ser considerados como tal, o que levou Marinho (2000:
215) a considerá-lo como colagens, constituídas de rupturas, ao longo da tessitura do
enunciado. Por essa razão, cabe aqui retomar uma questão levantada pela autora, referente à
autoria do enunciado. Em um processo de assinatura individual do documento, aqueles que
foram caracterizados como elaboradores ou como consultores assinariam esse documento tal
como foi publicado? Mas, ainda na visão da autora, essa condição do enunciado seria
resultado das suas condições de produção, que, entre outras coisas, teve de assumir uma
autoria diversa, que teve de negociar sentidos para os conceitos circulantes no documento, e,
diríamos mais, de fazê-los convergir para o conceito didático assumido, que seria o das
competências, pois esse seria um pressuposto que não poderia se perder.
Em síntese, neste capítulo, levantamos o gênero ou os gêneros do discurso no qual o
enunciado está ancorado. Através da sua ancoragem ao gênero de divulgação científica,
buscamos alguns dos conceitos nele circulantes, as marcas lingüísticas que foram capazes de
denotar uma intra/interdiscursividade e, ainda, quem assume as marcas de subjetividade e de
autoria que perpassam o enunciado. Por esses levantamentos, foi possível concluir que, de
forma estratégica, o documento foi assumindo um pressuposto teórico, que é a pedagogia das
competências, em sobreposição aos conceitos lingüísticos, tendo em vista levantar os
conceitos necessário para atender às demandas sócio/histórico/políticas. No próximo
capítulo, discutiremos os processos de didatização que o documento sugere para a disciplina
Língua Portuguesa, a partir dos pressupostos teóricos, metodológicos e também políticos que
devem sustentar o saber a ser ensinado no ensino fundamental, com ênfase no segundo ciclo
desse nível de escolaridade.
CAPÍTULO V
5.0 O processo de didatização das ciências lingüísticas nos PCNEFs de Língua
Portuguesa: a construção das propostas de prática:
Neste capítulo discutiremos o processo de didatização dos conceitos lingüísticos a
serem ensinados, nos PCNEFs de Língua Portuguesa. Neste ponto da análise consideraremos
as concepções assumidas pelo documento para os objetos não só os lingüísticos, mas também
os didático/pedagógicos. O nosso objetivo será o de buscar as práticas pedagógicas que o
documento propõe para o ensino de língua e a relação dessas práticas com a hipótese
levantada.
Para começarmos a discussão proposta nesse capítulo, retomaremos Delamotte-
Legrand (2002) e a sua consideração a respeito da transposição de uma ciência para o campo
do saber a ser ensinado, ou a transposição didática que considera a ciência no espaço escolar.
Conforme considerações já tomadas da autora, esse processo envolve múltiplas relações,
perpassando conflitos originados de diferentes razões, que traduzimos como sendo o lugar de
tensão no qual se agregam valorações histórico/ideológicas, econômicas e epistemológicas,
capazes de sustentar as concepções didático/científicas da aprendizagem. Até aqui, a nossa
discussão tem levantado o comprometimento da produção do conhecimento em linguagem,
no corpus de análise, com a pedagogia das competências e o que tem significado assumir
esse pressuposto teórico para o ensino. A partir do sentido que o ensino pode ter, atrelado a
esse pressuposto, é nossa tarefa, aqui, mostrar em que se sustenta o conhecimento em
linguagem, não o lingüístico por ele mesmo, mas o lingüístico sustentado pelo pedagógico,
enfim, como se daria o processo de didatização dos conceitos lingüísticos nos PCNEFs de
Língua Portuguesa.
Para a discussão proposta, neste capítulo, faremos, inicialmente, levantamento dos
conteúdos que são considerados pelos PCNEFs de Língua Portuguesa como objetos de ensino
da disciplina, que, conforme fragmento já analisado, são: a linguagem como atividade
discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática permeada pelas práticas
de refacção e de análise lingüística, identificando o trabalho com a linguagem fundamentado
em uma abordagem discursiva. Pelo documento, é a condição do objeto de ensino enquanto
discursivo que deve orientar a transposição do saber científico para o saber escolar. Cabe
lembrar que o documento assume, também, como conteúdo a ser ensinado a noção de gênero.
Essa é uma questão que será retomada, posteriormente, quando tratarmos da didatização
desse conteúdo.
O processo de didatização dos conteúdos levantados deve se dar pelas seguintes atividades: prática constante de produção
de textos orais e leitura de textos escritos, produção de textos escritos e análise e reflexão sobre os processos anteriores, que devem se
constituir em instrumentos para que o aluno amplie a competência discursiva
(...), os conteúdos de língua e de linguagem não são selecionados em
função da tradição escolar (...), mas em função das necessidades e
possibilidades do aluno, de modo a permitir que ele (...), se aproprie de
instrumentos que possam ampliar suas capacidade de ler, escrever, falar e
escutar. (PCNEFs:37).
Até aqui, temos considerado a relação que o conhecimento escolar sempre teve com a
história oficial. Nessa inter-relação, em se tratando dos PCNEFs de Língua Portuguesa, os
conteúdos acima levantados são os que devem ser transpostos, didaticamente, tendo em vista
os objetivos a serem alcançados, ao longo do ensino fundamental. São eles, portanto, aqueles
que devem sustentar a discursividade do saber a ser ensinado, indicando a forma como deve
se dar a construção do conhecimento em linguagem. Começaremos a discussão dos
conteúdos propostos para a didatização pelas práticas da oralidade, da leitura e da escrita. Na
esteira dessa discussão, buscaremos compreender, no documento, o ensino dos conceitos de
gêneros de discurso e de análise e de reflexão sobre a língua. Gostaríamos de destacar que
essa seqüência não é a aleatória. Ela diz respeito à própria organização do enunciado, que vai
levantando, passo a passo, os conteúdos as serem ministrados, ao longo do ensino
fundamental. Essa questão será retomada, posteriormente, tendo em vista uma explicitação
das causas dessa organização.
5.1 As práticas de oralidade, de leitura e de escrita
Antes de buscarmos a compreensão do processo de didatização da oralidade, da
leitura e da escrita para o segundo ciclo do ensino fundamental, gostaríamos de retomar
nossas considerações a respeito dessas práticas, assumidas, anteriormente, sob o ponto de
vista da análise do discurso. Cabe avaliar que, quando tomamos essa discussão, a fizemos
sob o entendimento de que ler e escrever são processos que se constituem de forma
imbricada, tendo como fim precípuo a (re)significação de significantes, e podem ser
caracterizados como escritura. Isso indica que, quando se lê, faz-se escrita e quando se
escreve, faz-se leitura, em um processo ad infinitum de construção, convergindo para um
processo de escritura, sempre.
Entender os processos de oralidade, de leitura e de escrita, sob o ponto de vista
discursivo, é também compreendê-los a partir do conjunto dos elementos do discurso, que
são: a linguagem, o próprio discurso e o sujeito. Esses processos não se individalizam, se
constituindo em momentos distintos para a sua realização, já que a escritura é um processo
de discursividade, que se dá na oralidade, na escrita e na leitura, que culmina com o que
Maingueneau (1993) caracterizou como formulação/reformulação de discursos em
movimento.
Pelo que temos levantado, até aqui, do corpus, a leitura, a oralidade e a escrita se
constituem em objeto de ensino, e, trazendo o problema para a aprendizagem, esses
conceitos também não se dicotomizam. Pelo contrário, em qualquer forma de realização
da linguagem, eles devem ser considerados, e um é sempre prerrogativa para que o outro
aconteça, e todos perpassam a noção de sentido, na escritura. Seria a concepção de
escritura a que os PCNEFs de Língua Portuguesa contemplam? Ou seja, falar, ler e
escrever fazem parte de um mesmo processo que atualiza formações discursivas, sendo a
questão, sempre, apresentada sob o ponto de vista da discursividade? Pelos temas
transversais, pode-se até entendê-la como escritura. Eles abrem a possibilidade de um
trabalho transdisciplinar, que contempla o conhecimento no complexo universo do sujeito.
Vejamos:
(...) Um texto produzido é sempre produzido a partir de determinado lugar,
marcado por suas condições de produção. Não há como separar o sujeito, a
história, o mundo e as práticas de linguagem. Compreender um texto é
buscar as marcas do enunciador projetadas nesse texto, é reconhecer a
maneira singular de como se constrói uma representação a respeito do
mundo e da história, é relacionar a outros textos que traduzem outras vozes,
outros lugares. (PCNEFs:40-41).
Para a questão levantada, a partir dos temas transversais, através do fragmento
acima, gostaríamos de retomá-la pela autoria do enunciado, enquanto função-sujeito.
Quando fizemos essa discussão, no capítulo anterior, considerando, entre outras coisas, as
condições de produção do documento, discutimos, também, as condições de produção da
própria autoria, já que ela se constituiu sob uma diversidade, que teve de negociar
sentidos, originados de diferentes conceitos, tanto lingüísticos quanto pedagógicos ou
históricos. Pelo fragmento tomado, que traduz uma compreensão do processo de leitura e
de produção de texto, evidencia-se uma negociação de sentidos, capaz de ultrapassar o
entendimento da linguagem enquanto instrumento de comunicação, portanto, além da
noção de competência discursiva, que, pela nossa leitura, até aqui, é o principal objetivo a
ser alcançado. Para tanto, recupera-se uma formação discursiva que se põe em conflito
com outras formações discursivas concorrentes, constantes do próprio enunciado, o que
pode se constituir em uma incoerência.
Através do fragmento acima, portanto, recuperam-se marcas que indicam o sujeito
na sua historicidade, fora, portanto, do que se considerou dele, no capítulo anterior. O
presente indicativo do verbo haver, modificado pela negação - não há – que se constitui
em uma negação polêmica, modaliza o discurso, negando qualquer outra possibilidade de
compreensão da linguagem fora da complexidade do sujeito, na sua condição histórica.
Não há como separar o sujeito, a história, o mundo e as práticas de linguagem. Cabe
observar que a compreensão da linguagem sob esse ponto de vista cobre tanto a escrita:
um texto produzido é sempre produzido de algum lugar, marcado por suas condições de
produção,(...), quanto a leitura: compreender um texto é buscar as marcas do enunciador,
(...). Nessas partes do fragmento e nas que se seguem, o verbo de cópula liga os processos
de leitura e de escrita à complexidade do sujeito, constituindo metaenunciações que se
traduzem em uma intra/interdiscursivdade, capaz de levantar uma polifonia que sustenta a
compreensão da linguagem para além do processo em si mesmo, aproximando a questão
do pressuposto discursivo. Mas, como consideramos anteriormente, essas não são práticas
apontadas, no documento, para a aprendizagem. Começaremos a discussão dos conteúdos
a serem didatizados pela oralidade, conforme a organização do enunciado.
Oralidade
Sem uma preocupação, a princípio, explícita com uma concepção do que significa essa
forma de realização da linguagem, o documento, de forma velada, a concebe não como
uma construção, dizendo respeito à subjetividade, mas como algo que está relacionado a
um aprendizado, a partir do uso concreto, porém de caráter utilitário, sendo essa a
orientação para a didatização. Vejamos:
(...,) se o que se busca é que o aluno seja um usuário competente da
linguagem, no exercício da cidadania, crer que essa interação dialogal que
ocorre durante as aulas dê conta das múltiplas exigências que os gêneros do
oral colocam, principalmente em instâncias públicas, é um engano. (...).
Dessa forma, cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no
planejamento e realização de apresentações públicas:
(...). Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas atividades façam
sentido, de fato, pois é descabido treinar um nível mais formal da fala,
tomado como mais apropriado para todas as situações. A aprendizagem de
procedimentos apropriados de fala e de escuta, em contextos públicos,
dificilmente ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la.
(PCNEFs:24-25 – grifos meus).
Os fragmentos acima, que são parte do ponto que trata da oralidade, em todo o
ensino fundamental, abrem uma polêmica sobre o que consiste esse conteúdo, enquanto
objeto de ensino. A primeira observação que gostaríamos de fazer é que, no contexto, esse
conceito se desarticula daquele que é compreendido como construção de subjetividade.
Através desses fragmentos, portanto, recuperam-se formações discursivas que concebem a
oralidade de forma dialogada, sem uma preocupação com o caráter dialógico da
linguagem.
Vejamos a questão levantada acima, através do fragmento inicial. Da
condicionante [se o que se busca...], que recupera uma voz recorrente no enunciado, que é
a noção de competência discursiva para o exercício da cidadania, à cópula [é um
engano], é possível compreender, através da organização sintática usuário competente da
linguagem, de que forma o documento reconhece esse conteúdo de ensino, ou seja, de que
oralidade se trata. O modalizador discursivo, de natureza autônimica, assinalado no
fragmento, ao emergir no fio do enunciado, confirma a natureza desse conteúdo, que deve
ser apreendido para os usos, para além dos muros da escola. Portanto, ele confirma não só
uma relação com o conceito pedagógico que deverá sustentar a didatização dos conteúdos,
mas também o objetivo da educação no contexto sócio/histórico/político, de forma a
compreender o ensino da oralidade como sendo de natureza instrumental e utilitária. A
condição para o ensino da linguagem, no seu caráter de oralidade é que justifica a ênfase
dada à forma como deve se dar o ensino desse conteúdo. Trata-se de propor situações
didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato, (...).
Pela compreensão da linguagem, em seu caráter de oralidade, através dos fragmentos
acima, estabelece-se uma polêmica, instaurando conflitos, capazes de sugerir os discursos
recusados para o ensino desse conteúdo. Discutiremos essa questão, embora de forma
sumária, pelo entendimento de Maingueneau (2002:73-74). Segundo o autor, a oralidade,
que sempre foi considerada como enunciado instável, haja vista a posição de Saussure
(1916) a respeito da sua proposição para o objeto de estudo da Lingüística, não pode ser
vista sob essa perspectiva. O autor chama a atenção para as diferentes formas de
realização da linguagem em seu caráter de oralidade e começa abordando a questão pelos
enunciados que são proferidos dessa forma, mas não se perdem com o tempo, e dá como
exemplo as máximas, os ditados, os aforismos, os lemas, algumas canções, fórmulas
religiosas etc. O autor chama, ainda, a atenção para enunciados que, mesmo se
apresentando na escrita, trazem para o seu interior, marcas de oralidade, como alguns
textos publicitários, por exemplo. Mas, fora dessa representação mais formal, não se pode
deixar de considerar, ainda, a oralidade, em seu caráter apenas de língua realizada.
Maingueneau chama a atenção para a complexidade que envolve esse processo. Nele, para
que se construa o sentido, não basta observar os elementos textuais. Os elementos
paratextuais, ou paralingüísticos, também são responsáveis pelo sentido, inclusive o co-
enuciador, que participa do processo, sempre.
Como se percebe, a oralidade se constitui em uma complexidade, envolvendo enunciador
e co-enuncidor. Mas, quando se considera a questão pela via do ensino, ela tem ficado nos
limites do senso comum, portanto, o destaque que se dá é à oportunidade que o aluno deve
ter de expor pensamentos. A compreendê-la nesse limite, provoca-se uma degradação de
um conteúdo, que engloba gêneros discursivos diferenciados, com as complexidades
próprias de qualquer forma de realização da linguagem.
A propósito do corpus de análise, esse é um dos lugares de conflito, que faz emergir não a
voz da ciência, que coloca conceitos em confronto, mas a voz do senso comum, o que
implica um entendimento apenas dialogal da linguagem:
A escola deve assumir o compromisso de procurar garantir que a sala de
aula seja um espaço onde cada sujeito tenha o direito à palavra reconhecido
como legítimo, e essa palavra encontre ressonância na palavra do outro
(PCNEFs:48).
Mas não é esse apenas o lugar do conflito para a concepção da linguagem no seu caráter
de oralidade. Ele, (o conflito) emerge, também, do objetivo primeiro que o conhecimento,
nos PCNEFs, deve ter, no contexto histórico. No fragmento tomado anteriormente, o
predicador engano concentra, nele, o discurso recusado e o sentido que a oralidade deve
ter no contexto de ensino. Além do conceito de oralidade, enquanto discurso do senso
comum, o que há é uma proposição de construção de uma subjetividade assujeitada às
exigências político/ideológicas do ideário neoliberal, encaminhando a aprendizagem para
um caráter de natureza instrumental.
Através dos fragmentos acima, pelos ditos e pelos não-ditos, a oralidade, enquanto
conteúdo a ser didatizado, já começa a propor o sentido que o conhecimento sistematizado
deve ter nos PCNEFs de Língua Portuguesa. Tendo em vista o entendimento do ensino da
linguagem para o uso, em sua natureza instrumental e utilitária, vai-se construindo, por
essa via, a relação do conhecimento com o “exercício da cidadania”. A considerar o
sentido que esse último conceito tem encampado, e ainda, a vulnerabilidade que o trabalho
passou a ter no contexto político e econômico mundial, o aprendizado da oralidade só faria
sentido se estivesse ligado a esse contexto, portanto, ligado a um aprender para utilizar.
A organização do enunciado, que diz quais são os conceitos gerais para todo o
ensino fundamental, propõe, também, para o segundo ciclo do ensino fundamental, o
ensino da oralidade. E essa é a questão a ser perseguida, ou seja, discutiremos a forma
como o documento propõe o ensino desse conteúdo, nesse nível de escolaridade. O ponto
que indica essa forma de manifestação da linguagem como um saber a ser ensinado se dá
através de uma intra/interdiscursividade na qual o outro é trazido para o interior do
enunciado, tendo em vista uma explicitação do que é o processo de ditatização da
oralidade, ou seja, em que consiste transformar esse conteúdo em algo a ser ensinado
nesse nível de escolaridade. Vejamos:
Ensinar língua oral não significa trabalhar a capacidade de falar em geral.
Significa desenvolver domínio do gêneros que apoiam a aprendizagem
escolar de Língua Portuguesa e de outras áreas (exposição, relatório de
experiências, entrevistas, debate etc) e também os gêneros da vida pública
no sentido mais amplo do termo. (PCNEFs:67-68)
No fragmento de texto acima, a proposta de didatização da oralidade, perpassada por
uma polêmica instaurada na repetibilidade do enunciado, através da negação e da afirmação,
não significa/significa, traduz uma polifonia, que mostra o discurso negado, definindo o que
não é e o que é oralidade, enquanto objeto de ensino. Trata-se de vozes em conflito, através
das quais sustenta-se o discurso de como deve se dar o ensino desse conceito, no segundo
ciclo do ensino fundamental. Atrelado a uma noção de gênero que capta a noção de famílias
de texto, as metalinguagens, materializadas no presente do verbo que instaura a polêmica,
concebe esse processo sob o ponto de vista dos usos, relacionado ao caráter utilitário da
linguagem, portanto, de natureza instrumental. As atividades delimitadas pelos parênteses
explicitam esses interdiscursos, deixando emergir o sentido que a oralidade deverá ter no
segundo ciclo do ensino fundamental.
Pelas considerações feitas, até aqui, a oralidade não pode ser considerada escritura, ou
algo relacionado à discursividade, na complexidade apontada por Maingueneau (2002), mas
sim uma prática que propõe um aprendizado, tendo em vista instrumentalizar o aluno para
melhorar seu desempenho (PCNEFs:74). Isso implica uma compreensão do processo fora da
questão histórico/ideológica, portanto, fora da subjetividade, o que, ideologicamente, guarda
sentidos velados de um aprender apenas para um fazer, tendo em vista atender aos objetivos
da escola no contexto histórico/político.
A leitura
Se a oralidade, nos PCNEFs de Língua Portuguesa, se constituiu em um processo de
aprendizagem para usos, configurado na concepção assumida do objeto, em que consiste a
leitura de textos escritos? Em forma, também, de metaenunciação, o documento se encarrega
de definir tal processo, enquanto objeto de ensino para todo o ensino fundamental. Vejamos:
A leitura de um texto compreende, por exemplo, pré-leitura, identificação
de informação, articulação de informações internas e externas ao texto,
realização e validação de inferências e antecipações, apropriações das
características do gênero. (PCNEFs:38 – grifos meus).
O fragmento acima, que se constitui em uma metalinguagem, não convergiria para uma
compreensão da leitura enquanto efeito de sentido. Embora o documento tente assumir essa
posição, ao longo da sua construção: As práticas de linguagem são uma totalidade
(PCNEFs: 36), a seqüência de ações, caracterizando o processo, caracteriza, também, a
didatização desse conteúdo, que não se dá através da sua compreensão como efeitos de
sentido, mas de sentidos buscados no próprio ato de leitura. Portanto, pelo fragmento, a
leitura está relacionada a uma atividade. Essa compreensão do objeto didatizado vai ditar, de
forma explícita, em que consiste a leitura, no segundo ciclo do ensino fundamental.
A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de
compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu
conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo que sabe sobre a
linguagem. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra,
palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de
seleção, antecipação, inferência e verificação sem as quais não é possível
proficiência. (...).(PCNEFs:69- grifos meus).
Através de uma intra/interdiscursividade, o fragmento acima concebe a leitura como
uma explicitação do que consiste esse conteúdo, nos PCNEFs de Língua Portuguesa. O verbo
de cópula, próprio da linguagem conceitual, liga esse conceito ao que ele deve significar no
contexto. A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e
interpretação do texto. Por essa concepção de leitura assumida estabelecem-se relações
interdiscursivas, que polemizam com outras concepções de leitura, que tanto pode ser aquela
que a limita a uma decodificação, quanto aquela que a entende como efeitos de sentido, com
a intenção de se compreendê-la como um processo que se constitui no ato de ler, marcado
pelos objetivos do texto, pelo conhecimento do leitor sobre o assunto, sobre o autor, do que
se sabe sobre a linguagem. Enfim, trata-se de ações que encaminham um processo.
Mediante o entendimento acima, já cabe, aqui, uma indagação: em que consiste a
compreensão e a interpretação no fragmento? Enquanto enunciado de divulgação científica,
esse é o espaço em que o divulgador coloca em contato a ciência a ser divulgada e o outro do
intradiscurso, que visa a explicitar as nominalizações, denotando o sentido da leitura,
enquanto objeto de ensino. Através da negação polêmica - não se trata de tirar
informação/trata-se de uma atividadea voz do divulgador traz para a repetibilidade do
enunciado, o discurso negado, abrindo a discussão sobre o que consiste a leitura, e em
detrimento de que ela se dá, ou seja, em que consiste o processo de compreender e de
interpretar. Para o fragmento, que considera a leitura como atividade, uma série de ações,
perpassando a seleção, a antecipação, a inferência, a verificação, é responsável por
considerar o sentido da leitura apenas como um ato em si. Através dessas considerações,
pode-se compreender a leitura não como efeitos de sentido, capaz de produzir uma
reescritura, mas como um sentido, construído na estrutura do enunciado.
Pelo que se levantou, do fragmento, a concepção de leitura ganha o contorno de base
da pedagogia das competências, materializada, sobretudo, no caráter de proficiência,
orientando o seu sentido no contexto dos PCNEFs de Língua Portuguesa. Formar
proficiência, portanto, significa formar leitor competente. E em que consiste esse processo?
O próprio documento se encarrega da sua explicitação. O leitor competente é capaz de ler as
entrelinhas (...) (PCNEFs:70). Por esse fragmento, a leitura consiste em uma busca de
compreensão e de interpretação, limitada ao próprio texto, sem que se instaure um diálogo,
fazendo emegir não efeitos de sentido, mas um sentido constituído, buscado nas entrelinhas
do enunciado, através da seqüência de ações, levantadas anteriormente.
A forma como o processo de leitura é encaminhado, nos PCNEFs de Língua
Portuguesa, é a responsável por produzir “leitores competentes”, para quê? A leitura de
Suassuna (1988), que tem coincidido com a leitura que temos feito do documento, responde a
essa questão. Para a autora, conforme já se considerou, a leitura, no documento, consiste,
entre outras coisas, em uma visão utilitarista do processo. A noção de proficiência confirma
esse objetivo a ser perseguido,
Da concepção de leitura proposta pelos PCNEFs, então, pode se dizer que se trata de
uma atividade, e mais, uma atividade de natureza utilitária. Pelo que se considerou sobre o
que consiste a leitura e a sua relação com os contextos verbal e extra-verbal, o documento
limita a questão ao verbal e diz respeito à organização textual e ao conhecimento de mundo
partilhado. Esses elementos é que são os responsáveis pelo sentido. Lidar com a leitura, sob
as perspectiva levantadas implica considerá-la fora das clivagens que dizem respeito ao
sujeito. Compreendida fora dessa complexidade, ela deverá ser compreendida, também, fora
das clivagens subterrâneas, aquelas que, para Pêcheux (1997), promovem formas diferentes
ou contraditórias de ler o arquivo, destituindo do processo, por essa razão, o espaço da
polêmica, próprio da leitura enquanto discurso.
A escrita
Compreendido o processo de oralidade e de leitura dos PCNEFs de Língua
Portuguesa e a sua concepção enquanto objeto de ensino, nessa primeira parte da discussão,
resta-nos tomar para análise a compreensão do que consiste o processo de escrita. Se, ao
longo da primeira parte do enunciado, houve uma preocupação com definir os processos
anteriores, o mesmo não acontece com a escrita. Há, sim, uma preocupação com relacioná-la
às questões que dizem respeito à variação lingüística e a relação com uma adequação aos
diferentes níveis e registros da linguagem. Onde ocorre, então, o processo de didatização da
escrita e em que ele consiste? Se não há, inicialmente, uma preocupação com definir o que
ele seja, o documento irá apenas apresentá-lo, didaticamente, sob dois pontos de vista. Por
um lado, pelo menos três direcionamentos orientam o caminho do fazer pedagógico no que se
refere à escrita. Em primeiro lugar, sem deixar claro o que significa o ensino desse conteúdo,
o documento parece querer recuperar uma prática já ultrapassada, que são as transcrições
ipisis litteris, ou as tradicionais cópias, que já fizeram parte do processo de escrita, através de
transcrições de textos.
Atividades de transcrição exigem do aluno que as realiza atenção para
garantir a fidelidade do registro e o domínio das convenções gráficas da
escrita. O que dizer e o como dizer já estão determinados pelo texto
original. (PCNEFs:76).
Esse fragmento, que é uma espécie de objetivo a ser alcançado, mostra um modo de
lidar com a escrita, didaticamente, que sugere uma compreensão de que ela é um produto e,
como tal, pode ser adquirido por repetição. As ações: garantir fidelidade do registro e o
domínio das convenções gráficas, considerando que o que dizer e o como dizer já estão
postos, significam uma limitação desse processo. Esses objetivos, marcados pelo verbo
significar, ao que parece, dando início às várias etapas que fazem parte da construção da
escrita, recuperam uma memória discursiva que parece já perdida no ensino desse conteúdo,
provocando a recusa da questão como uma construção.
Na esteira do processo anterior, há, ainda, dois outros, que, segundo o documento,
teriam como objetivo levar o aluno a trabalhar, didaticamente, a estrutura do texto. Trata-se
das diferentes formas de reelaboração de um enunciado, tendo em vista a garantia do
aprendizado da escrita, levando em conta a sua organização interna.
Atividades que envolvam reproduções, paráfrases, resumo permitem que o
aluno fique, em parte, liberado da tarefa de pensar sobre o que escrever,
pois o plano do conteúdo já está definido pelo texto modelo. A atividade
oferece possibilidades de tratar de aspectos coesivos da língua, de aspectos
do plano da expressão – como dizer. (PCNEFs:77).
Pelo fragmento acima, o documento concebe as reproduções, as paráfrases e o
resumo como processos livres de escrita, o que indica que eles não podem ser caracterizados
como reformulação do dito. Didaticamente, portanto, não se trata de um processo de escrita
que reelabora discursos, mas são recursos utilizados para garantir o aprendizado dos aspectos
estruturais do texto, que devem, por sua vez, garantir a sua coesão interna, ou o sentido,
materializado na textualidade, fora, portanto, de uma concepção de escritura, capaz de
produzir outras escrituras.
A propósito das ações levantadas, no fragmento, para essa etapa de construção da
escrita, gostaríamos de considerá-las todas sob um ponto de vista, que é a paráfrase, que pode
traduzir as três sugestões de atividades, pois, teoricamente, convergiriam para a reelaboração
de outros discursos. Fuchs (1985:134), ao discutir as diferentes concepções de paráfrase, trata
da questão, entre outros, sob o ponto de vista discursivo. Isso implica, nas palavras da autora,
considerá-la, sempre, a partir dos sujeitos, representados, sobretudo, na
intra/interdiscursividade. Por esse entendimento, as atividades sugeridas no fragmento não
podem ser vistas como processos livres de produção de escrita, mas como discursos,
originados da plurivocidade que atravessa todos os enunciados. Segundo Fuchs, o que há,
nesse processo de reelaboração de discursos, é um processo de leitura, materializado no
caráter polifônico da linguagem. As considerações da autora indicam a paráfrase e, por
conseguinte, as outras produções de texto sugeridas no fragmento, para além de um produto.
Por fim, há uma terceira forma do processo de aprendizagem da escrita, que considera
a questão sob os mesmos pontos de vista anteriores, que é a de decalque, que implica o
preenchimento de lacunas, nada mais que isso.
As práticas de decalque funcionam quase como modelos lacunados: as
questões formais já estão em parte definidas pelo caráter altamente
convencionalizado dos gêneros, como nos requerimentos ou cartas
comerciais. Em suas aplicações mais criativas – paródias – preservam boa
parte da estrutura do texto modelo, permitindo que o aluno se concentre no
que tem a dizer. (PCNEFs:76)
Pelo fragmento acima, a “produção de texto” caracterizada como decalque se
apresenta por, pelo menos, duas perspectivas. Por um lado, supõe-se uma possibilidade de se
trabalhar com a linguagem, a partir de enunciados prontos, originados de lugares
institucionais, que os modelizam. No sentido real, sob o ponto de vista de Foucault (s.d),
trata-se de enunciados desprovidos de autoria, ou que, às vezes, a autoria não coincide com
quem diz eu, conforme entendimento de Ducrot (1987).
Por outro lado, chamou-nos a atenção, no mesmo fragmento, o fato de que a paródia é
considerada um processo de decalque. A começar pelo que pode ser definido como paródia,
mesmo que de forma elementar, como aquela que pode ser buscada no dicionário, trata-se de
um conceito que só pode ser entendido como um processo de leitura. O dicionário o traduz
como sendo uma imitação cômica, burlesca. Pelos adjetivos cômica e burlesca compreende
um processo que não se traduz por um decalque, mas por uma reformulação de enunciados,
visando a efeitos de sentido que transcendem o discurso primeiro, portanto, de cunho
ideológico. Quando se parodia, o discurso primeiro capta um discurso segundo, visando,
sobretudo, a efeitos de sentido, buscados na ironia, que as paródias deixam entrever. Pelo
fragmento acima, a considerar a paródia como um decalque, há, de fato, uma recusa por se
compreender o que significa a paródia, minimizando o seu sentido, sobretudo, ao se afirmar
que se trata de um aprendizado no qual preserva-se a estrutura do discurso primeiro,
permitindo ao aluno concentrar-se no que tem a dizer.
Por fim, há um direcionamento para um aprendizado de escrita, que o documento
assume como sendo a autoria. Isso implica considerar que os aprendizados inicias estão
destituídos desse princípio discursivo da linguagem. A título de indagação, cabe até uma
pergunta. Como compreender, por exemplo, a paráfrase fora da função-sujeito autor, ou seja,
como recortar a didatização da escrita para esse conteúdo, sem entendê-lo como uma função
discursiva? Por esse entendimento, há apenas o conteúdo a ser observado, que se resume no
conteúdo a ser dito, com o objetivo de se propor atividades que melhorariam a relação do
aluno com a escrita.
Retomando a discussão sobre a noção de autoria, que, segundo o documento, articula
o plano inicial, que caracteriza o da expressão, ou a forma como se diz, e o segundo plano,
que caracteriza o do conteúdo, ou o que dizer, no que se refere à escrita, esse último pode ser
caracterizado como um segundo momento. Por esse entendimento, o aprendizado vai se
constituindo por etapas, através da articulação entre um processo mais livre de escrita e um
processo de autoria, de fato.
Nas atividades de produção que envolvem a autoria ou a criação, a tarefa do
sujeito torna-se mais complexa, porque precisa articular ambos os planos: o
do conteúdo – o que dizer – o da expressão – como dizer. (PCNEFs:76).
Tal como ocorre com a oralidade e com a leitura, também ocorre com a escrita. De
forma estanque, ela faz parte do ensino, tendo em vista os mesmos objetivos a serem
alcançados. Pelo que se considerou, até agora, no documento de Língua Portuguesa, os
objetivos a serem alcançados dão conta de que a produção de texto não é a resultante dos
conflitos próprios de sujeitos sócio/históricos. Ela diz respeito ao que precisa ser cuidado
para que o sentido não se perca. Portanto, é da organização textual que deverá emergir a
forma como deve se dar o encaminhamento da organização do enunciado/texto, com a
intenção de se produzir enunciados coesos e coerentes. O sentido, pretendido na estrutura
do texto, se distancia daquele que diz respeito ao sujeito. As atividades a serem
desenvolvidas, seguidas dos objetivos a serem alcançados, denotam a forma como se deve
dar o ensino, no que se refere à produção de textos.
Espera-se que o aluno produza textos, procurando garantir a relevância das
informações com relação ao tema e aos propósitos do texto; a continuidade
semântica; a explicitação de dados ou premissas indispensáveis à
interpretação; a explicitação de relações entre expressões pela utilização de
recursos lingüísticos apropriados (retomadas, anáforas, conectivos).
(PCNEFs:97)
Por tudo que se discutiu, nos PCNEFs de Língua Portuguesa, sobre a oralidade,
sobre a leitura e sobre a escrita, pode-se concluir que esses conceitos, enquanto objeto de
ensino, não se constituem em um processo único, portanto discursivo, mas como
processos distintos. Isso implica considerá-los apenas como aprendizagem e não como
lugares de conflitos, que se constituem em pontos de deriva do sujeito, através das
formações discursivas nas quais são constituídos. Ao que parece, o processo como um
todo, não é lugar de polêmicas ou de discursos recusados, que podem emergir na
dialogicidade marcada pela intra/interdiscursividade. Ele é apenas o lugar de aprendizados
mecânicos.
As concepções que foram consideradas para a oralidade, para a leitura e para
escrita estão fora da escritura, portanto, não discursivas, e individualizam cada um dos
momentos, colocando-os a serviço das demandas e das necessidades históricas dos
“sujeitos”, confirmando o caráter instrumental que o documento imprime na linguagem,
para o ensino, e são todos perseguidos a partir da concepção de competência discursiva,
tendo sempre em vista “formar sujeitos competentes” para o uso da linguagem. As
considerações sobre os conceitos analisados nesse ponto afastam o documento da
possibilidade de se entender a língua realizada, ou a linguagem, de forma implicada, logo,
enquanto alteridade.
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Não poderíamos deixar de fazer um alerta sobre a forma de encaminhamento de construção da leitura e da
escrita. Por ser um documento que orienta a aprendizagem de a série, não houve proposição desses
conceitos enquanto aquisição. As etapas perseguidas pela escrita denotam esse distanciamento entre um
momento e outro.
5.2 A noção de gênero nos PCNEFs de Língua Portuguesa: por onde passa o
processo de didatização desse conteúdo?
Tornou-se lugar comum, hoje, nas discussões sobre o ensino de linguagem, tratar da noção
de gênero. Aliás, os PCNEFs de Língua Portuguesa, que parecem ser o ponto de origem
dessa discussão, no Brasil, considerando não ser possível tratar da linguagem fora da
organização textual, portanto, da língua realizada, propõem o ensino, também, desse
conteúdo. O discurso, quando produzido, manifesta-se lingüisticamente por meio de
textos. (...). Todo texto se organiza dentro de determinado gênero, (...). (...) a noção de
gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. (PCNEFs: 21-
23). Se os PCNEFs de Língua Portuguesa assumem, na sua organização, esse conceito
como conteúdo a ser ensinado, resta saber como se dá a sua didatização, no documento.
Conforme já se considerou, através da análise de Brait (2000) ou de Marinho (2003), não
são os pressupostos bakhtinianos os que sustentam a noção de gênero, assumida pelos
PCNEFs de Língua Portuguesa. Enquanto objeto de ensino, se o tributo não pode ser dado
ao filósofo russo, a quem se pode tributar os pressupostos teóricos que fundamentam a
didatização desse conteúdo, no documento de análise, e de que didatização se trata?
Antes de chegarmos às questões a serem investigadas, levantaremos,
sumariamente, a forma ou as formas como a noção de gênero tem sido discutida. Rojo
(2005) faz uma análise comparativa desse conceito, na intenção de mostrar a diferença
entre gêneros discursivo e textual e em que consiste compreender essas diferenças, tanto
sob o ponto de vista discursivo quanto textual. Grosso modo, segundo a autora, os que
assumem esse conceito através do pressuposto bakhtiniano tratam-no, discursivamente,
através da análise das marcas lingüísticas, capazes de permitir uma leitura que considere
aspectos sociais, logo, sócio/histórico/ideológicos. Mas há, também, os que se ancoram
nessa herança do filósofo, mas têm por base a lingüística textual. Portanto, através do
tema, da forma composicional e do estilo, trabalha-se com as diferentes formas de
organização dos enunciados/textos, que são originados de um mesmo gênero, tratando a
questão na sua textualidade.
Pelas razões levantadas por Rojo (2005), quando se fala em gênero textual, não se trata de
um uso aleatório do termo, que pode ser tomado, também, por gênero discursivo, mas de
algo que trata da questão sob fundamentos teórico/filosófico que se confrontam. Para os
gêneros discursivos, há de se considerar os elementos internos e externos ao enunciado,
conforme prevê Bakhtin (1992), já para os gêneros textuais consideraram-se os elementos
que traduzem a organização do enunciado, deixando de fora os elementos externos.
Vistas as noções de gênero, sob o ponto de vista discursivo e textual, discutiremos, mesmo
que de forma muito sumária, o sentido que cada um desses conceitos pode ter enquanto
objeto de ensino. Através não só da leitura de Rojo (2005), mas pela discussão levantada
pelo próprio Bakhtin, pode se chagar a algumas conclusões sobre o que pode consistir o
trabalho da linguagem, através dos gêneros discursivos. Pelas marcas lingüísticas, que são
as responsáveis por demarcarem o conteúdo temático, a construção composicional e o
estilo de um enunciado, aliadas aos elementos exteriores ao discurso, pode-se
compreender as formas de representação da subjetividade, enquanto construção histórica e
ideológica, a linguagem enquanto lugar de construção do sujeito e o discurso como efeito
de sentido. Portanto, trata-se de uma compreensão do processo centrado em todos os
elementos que constituem os gêneros discursivos, ou no enunciado e no seu exterior.
Pelas considerações anteriores, que caracterizam os gêneros discursivos, tendo esse
conceito como objeto de ensino, as marcas lingüísticas não podem ser consideradas
elementos através dos quais se assegura o sentido do enunciado, mas são os lugares de
deriva do sujeito, ou o lugar de construção do próprio sentido, marcado pela
intra/interdiscursividade. Com esse conjunto de elementos pode-se conceber a oralidade, a
leitura, a escrita e a reflexão sobre a língua como processos discursivos, ou como lugar de
se compreender os discursos em movimento, portanto, uma forma dialético/dialógica de
se lidar com o conceito para o ensino.
Já a forma de entendimento do gênero, não como discursivo, mas como textual, propõe
uma didatização do conteúdo, abrindo pelo menos duas possibilidades de entendimento do
problema. Em primeiro lugar, enquanto objeto de ensino, por haver uma infinitude de
gêneros através dos quais a língua se realiza, é necessário que haja uma delimitação dos
gêneros que podem ser considerados objeto de aprendizagem. Delimitados esses gêneros,
o objeto de estudo são os textos, que, embora se caracterizem pelo mesmo tema,
apresentam composições e estilos diferenciados. Cabe ressaltar que é nesse espaço,
segundo os estudiosos, que se pode avançar para além da postura que a escola sempre teve
diante do processo de escrita, que foi a de limitar o problema aos tipos de texto:
narrativos, descritivos e dissertativos. Delimitados os gêneros a serem ensinados, a
abordagem desse conteúdo pode se dar através das famílias de texto que um único gênero
engloba, permitindo trabalhar a noção de tipos textuais sob uma esfera ampliada, fora da
tradição escolar.
Em segundo lugar, segundo Dolz e Schnewly (2004:62), a delimitação dos gêneros,
enquanto objeto de ensino, permite um acompanhamento da progressão do aluno aprendiz
na oralidade, na leitura e na escrita. A abordagem tradicional que sempre se deu a esses
conteúdos se constitui em processos estanques, fundamentados apenas em tipos textuais,
desarticulados dos gêneros, o que não permite um olhar para a aprendizagem. Essa
questão, vista apenas sob o ponto de vista didático, pode ser considerada positiva, pois
cria parâmetros para uma avaliação da aprendizagem, tradicionalmente necessária ao saber
escolar, o que lhe assegura uma avaliação qualitativa, através de um acompanhamento da
construção do conhecimento que o aluno é capaz de fazer, ao longo da sua vida escolar.
Mas, em se tratando do corpus de análise, a questão não pode ser vista apenas sob o olhar
da progressão do gênero, já que, até aqui, temos considerado a relação do documento com
o projeto do governo FHC. Se se toma a didatização desse conteúdo fora dos pressupostos
histórico/políticos, apenas considerando-os sob o ponto de vista textual, pode-se dizer que
há um comprometimento do aprendizado, pois levaria em consideração apenas o caráter
instrumental dos processos de oralidade, de leitura e de escrita, o que implica que ele pode
estar também relacionado a um controle que o Estado precisa e deseja ter sobre o
conhecimento. Haja vista a posição de Apple (1999), considerada anteriormente, a
respeito das reformas curriculares ocorridas na década de 1990. Haja vista, também, a
posição de Delamotte-Legrand (2002) a respeito dos elementos ideológicos que subjazem
ao processo de transposição do saber científico para o saber escolar.
Pelo entendimento das noções de gênero que perpassam as discussões, já se pode remeter
para o corpus de análise, buscando os elementos discursivos que podem demarcar a
didatização desse conteúdo, no ensino fundamental. Para essa etapa da análise,
investigaremos qual será a concepção de gênero assumida pelos PCNEFs de Língua
Portuguesa: discursiva ou textual? Por essa questão, chegaremos aos pressupostos que
devem sustentar o trabalho com a linguagem, no Ensino Fundamental, mais precisamente,
de 5ª a 8ª série. Comecemos por investigar o problema pelo fragmento que se segue.
Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza
temática, composicional e estilística, que os caracterizam como
pertencentes a este ou àquele gênero. Desse modo, a noção de gênero,
constitutiva do texto precisa ser tomada como objeto de ensino. Nessa
perspectiva, necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade
de textos e gêneros, e não apenas em função da sua relevância social, mas
também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são
organizados de diferentes formas. (PCNEFs:23)
Para começarmos a discutir a questão levantada, por esse fragmento, tomaremos, em
primeiro lugar, o caráter metalingüístico que ele apresenta. O presente indicativo do verbo
organizar encaminha uma definição do sentido da língua, vista como objeto de ensino,
estabelecendo uma intradiscursividade na qual o eu abre espaço para o outro, trazendo-o
para a compreensão de uma ruptura a noção de gênero, constitutiva do texto deve ser
tomada como objeto de ensino. A locução verbal deve ser, de caráter modalizador,
portanto, de valor prescritivo, assume o texto como a unidade básica de ensino,
assumindo, também, a relação com o gênero, o que, didaticamente, implica um
comprometimento do texto com o gênero no qual ele está ancorado. Trata-se, portanto, de
um processo que assegura o atrelamento de um conceito o outro.
Se o ensino da linguagem se dá sob a condição acima, resta saber, para a questão base a
ser respondida, qual é a concepção de gênero assumida pelo documento, ou seja, em que
consiste esse conceito, nos PCNEFs de Língua Portuguesa. Por ele, através de uma
interdiscursividade marcada, recuperam-se formações discursivas que dialogam com
pressupostos que se constituem no conceito de gênero que deverá ser a proposta para esse
conteúdo, no documento. Essa dialogicidade, que, a princípio, parece se estabelecer com o
pressuposto bakhtiniano, através dos tipos estáveis de enunciado, que marcam as noções
de tema, de conteúdo e de estilo, em forma de comentário, desvia a questão para um outro
entendimento. O par sintático com o mesmo valor semântico não apenas/mas também
traduz uma polifonia que se centra, em primeiro lugar, nos usos, através da organização
sintática relevância social que, no contexto, por tudo que já se discutiu do enunciado,
confirma o papel que a escola terá frente ao conhecimento, assumindo o caráter
instrumental que a linguagem tem.
Em segundo lugar, através da organização sintática diferentes gêneros são organizados de
diferentes formas, através da cópula, liga-se o nome a um modo de organização, que
traduz uma interdiscursividade constitutiva, que indica uma posição conceitual para a
noção de gênero, assumida no enunciado. Por ela, supõe-se o problema pela organização
genérico/textual, retomando formações discursivas que centram a questão na textualidade,
negando o caráter social da linguagem, ou o exterior do discurso, como elemento também
fundador, para se alocar no próprio texto, entendendo-o como discurso.
Tal como no procedimento de análise para a didatização da oralidade, da leitura e
da escrita, levantaremos também a discussão da didatização para a noção de gênero no
segundo ciclo do ensino fundamental. Vejamos, pelo fragmento abaixo.
Além dos novos conteúdos a serem apresentados, a freqüentação a
diferentes textos de diferentes gêneros é essencial para que o aluno construa
os diversos conceitos e procedimentos envolvidos na recepção e produção
de cada um deles. Dessa forma, a reapresentação dos conteúdos é, mais do
que inevitável, necessária, e a ela se devem corresponder sucessivos
aprofundamentos, tanto no que diz respeito aos gêneros textuais
privilegiados quanto aos conteúdos referentes às dimensões discursivas e
lingüística que serão objeto de reflexão. (PCNEFs:66-67).
O fragmento acima sugere uma necessidade de aproximação da leitura e da escrita com a
noção de gêneros. Nele, através de uma intradiscursividade marcada, o eu supõe um outro
e o envolve no processo de produção da linguagem, tendo em vista a compreensão da
forma como deve se dar o aprendizado desse conteúdo enquanto objeto de ensino. O
predicador essencial, que modaliza o discurso, através da cópula, estabelece relação com
toda essa construção sintática e confirma em que consiste o processo, referindo-se,
também, aos lugares próprios de produção e de circulação dos gêneros e os conceitos neles
envolvidos
Enquanto objeto a ser didatizado, na seqüência do fragmento, estabelece-se um diálogo no
qual, na repetibilidade do enunciado, o outro ocupa o espaço do mesmo, que marca,
através dos predicadores inevitável e necessária, o sentido do ensino, fazendo referência a
todos os conteúdos que perpassam o conhecimento em linguagem. Recortaremos desses
conteúdos, através de marcas lingüísticas, não só a noção de gênero que os PCNEFs de
Língua Portuguesa assumem, como também a sua didatização para o nível de escolaridade
previsto. Construções como sucessivos aprofundamentos e gêneros textuais privilegiados
recuperam formações discursivas que remetem para os estudos que compreendem a
questão, conforme já se considerou, assumindo o ensino desse conteúdo através da
possibilidade de progressão que o trabalho com o gênero textual deve implementar, e
ainda, a delimitação de gêneros com os quais a escola deve trabalhar. Essa delimitação se
impõe pelo adjetivo privilegiados, que, no contexto, suscita implícitos que são o recorte
dos gêneros que devem ser ensinados. Cabe considerar que, para os PCNEFs de Língua
Portuguesa, a limitação dos gêneros para o segundo ciclo do ensino fundamental se
apresenta como: literário, de imprensa, de divulgação científica e de publicidade, e as
famílias deles decorrentes.
Enquanto objeto de ensino, o trato com a noção de gênero para o segundo ciclo do ensino
fundamental, nos PCNEFs, se inicia pela necessidade de se compreender esse conceito a
partir da coerção que cada gênero impõe. Cabe ressaltar que é por esse caminho que se dá
o processo de didatização, que deve levar em conta:
não só as regularidades de cada um deles, como elementos a serem descritos, mas
também as suas particularidades:
(...) ainda que a unidade de trabalho seja o texto, é necessário que se possa dispor tanto
de uma descrição dos elementos regulares e constitutivos do gênero quanto das
particularidades do texto selecionado, dado que a intervenção precisa ser orientada por
esses aspectos discretizados. (...) (PCNEFs:48);
a adequação do ensino dos gêneros aos usos concretos, considerando os aspectos
pragmáticos, semânticos e gramaticais da linguagem.
No trabalho com os conteúdos previstos nas diferentes práticas, a escola deverá
organizar um conjunto de atividades (...) e selecionar, a partir disso, os gêneros
adequados para a produção do texto, operando sob as dimensões pragmática, semântica
e gramatical. (PCNEFs:49);
a noção de gênero textual relacionado à família de texto;
Antes de apresentar os conteúdos a serem desenvolvidos (...), são sugeridos alguns
gêneros como referência básica de ensino (...). (PCNEFs:53);
a noção de progressão;
Já que os alunos têm menos acesso a esses usos espontâneos da linguagem oral, é
fundamental desenvolver, na escola, uma série de atividades de escuta orientada, que
possibilitem a eles construir, progressivamente, modelos apropriados ao uso do oral nas
circunstâncias previstas. (PCNEFs:68);
a referência modelizadora (modelos de textos).
É condição fundamental para que o trabalho possa ser realizado a constituição de um
corpus de textos orais correspondentes aos gêneros previstos, a partir dos quais as
atividades de escuta (...) sejam organizadas, de modo a possibilitar aos alunos a
construção de referências modelizadoras.(...) PCNEFs:68)
Para concluir esse ponto, a noção de gênero, enquanto objeto de ensino, assumida pelos
PCNFs e o seu processo de didatização, a considerar as restrições impostas para esse
conteúdo, conforme consideramos nesses últimos pontos, é desviada sobretudo, para um
entendimento do caráter instrumental que a produção de conhecimento em linguagem tem
assumido. Portanto, didatizar a noção de gênero no documento implica, pelos pressupostos
teóricos e metodológicos, um aprendizado de modelos de gêneros para a aplicação,
instrumentalizando o aluno para os usos, através da noção de gênero textual.
5.3 O ensino gramatical: a didatização desse conceito nos PCNEFs
Conforme considerações anteriores, principalmente em relação às inquietações ocorridas
com o ensino de língua materna, romper com a forma de se trabalhar com esse conteúdo,
ancorado nos princípios que remetem para os pressupostos da lógica aristotélica tornou-se
questão obrigatória não só no meio acadêmico, mas também nos espaços de formação do
professor. A abertura política, na década de 1980, caminhou nessa direção, juntamente
com as discussões pedagógicas, que propuseram tendências diferenciadas para o ensino de
língua materna. Cabe analisar que essas discussões se fizeram a partir da sustentação que a
própria Lingüística encampou, tendo em vista aspectos até então desconsiderados,
juntamente com as tendência pedagógicas que estavam sendo levantadas.
Pelo contexto teórico levantado, pode-se concluir que estava-se propondo uma ruptura
com o ensino da gramática, ou com a estrutura lingüística por ela mesma, e uma inserção
de conceitos até então desarticulados da disciplina Língua Portuguesa, que são: a
oralidade, a leitura, a escrita, o discurso, a variação lingüística, entre outros. Nesse
contexto de inserção, a gramática se inseriu no ensino, através do seu imbricamento com
os outros conceitos. Essa retomada é uma aproximação dos procedimentos lingüísticos
pré-PCNEFs, que se justifica, tendo em vista que todo processo já tinha lugar comum nas
discussões sobre a linguagem. Mas, se a leitura, a oralidade e a escrita se constituíram em
um espaço de inserção, a gramática, por sua vez, se situou numa via de desconstrução de
um processo, que se deu por um enfrentamento da situação de ensino desse conteúdo,
incorporando a discussão que já incomodava a academia. E essa mesma academia,
aproveitando o momento político fértil para tantas outras discussões, até então cerceadas,
saiu do seu espaço de privilégio e foi, se não totalmente para dentro da escola, pelo menos
para dentro das redes educacionais, sobretudo públicas.
Mas cabe avaliar que, para a ruptura com a gramática tradicional, teve-se como referência,
através de uma dialogicidade estabelecida, os estudos de Geraldi (1991), que, por sua vez,
remetem para outras discussões, como as de Cullioli, por exemplo. O autor discute a
questão a partir de uma compreensão de que, para os estudos gramaticais, em nível de
educação básica, ela deveria se dar em três momentos imbricados, tendo como princípio a
ser observado a língua realizada. Esses momentos, caracterizados como ações com a
linguagem, se apresentam como atividades lingüísticas, que são praticadas nos processos
interacionais, atividades epilingüísticas, que são a resultante de uma reflexão que toma os
recursos expressivos como seu objeto e, por fim, as atividades metalingüísticas, que
constroem uma matalinguagem sistemática com a qual se fala sobre a língua.
Segundo Geraldi (1991), as ações lingüísticas, epilingüísticas e metalingüísticas se dão em
um processo, que ele caracteriza como análise lingüística, que, de forma inversa,
sistematiza as questões referentes aos conceitos próprios da linguagem, tendo em vista a
compreensão do seu funcionamento, sobre ponto de vista discursivo. Pela trajetória do
teórico que se tem como referência, por discurso entendem-se efeitos de sentido, que
emergem do enunciado, portanto, o lugar da intra/intersubjetividade, ou o lugar de
discursos em movimento. Isso implica uma compreensão de que o discurso transcende a
estrutura, cabendo à análise lingüística uma reflexão, também, sobre os elementos
discursivos ou os pontos de deriva do sujeito no enunciado, sendo esse o processo de
ditatização dos conteúdos gramaticais, considerados pela ruptura.
Em se tratando do corpus de análise, se, antes da sua organização, já havia
proposta de ruptura com a lógica aristotélica, que se abateu sobre o conhecimento, até
recentemente, ou ainda, se há uma proposição de trabalho com a linguagem, em seu
caráter discursivo, resta saber se essa ruptura, de fato, se sustenta no modo de organização
do ensino da linguagem, no que se refere à reflexão sobre a língua. Nessa busca,
procuraremos saber por onde deve passar a didatização desse conteúdo nos PCNEFs de
Língua Portuguesa. Tomemos, do documento, a forma como ele concebe essa ruptura,
aliás, através de um fragmento já analisado em outro momento, para discutir uma outra
questão.
(...) as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem,
principalmente, a atividades discursivas, (...), que devem permitir, por meio
de análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e
construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente,
ampliar suas competências discursivas. (PCNEFs:27)
Esse fragmento, que guardou, em um outro momento, outra possibilidade de leitura, nos
permitirá, agora, compreendê-lo a partir de um outro ponto de vista. Através da discussão
levantada, analisaremos, nele, algumas questões que podem ser fundadoras, já que elas
guardam pontos de deriva do sujeito, sendo que é nesses pontos que se pode começar a
compreender em que consiste a ruptura com o “velho”, ou com o ensino da gramática. Em
primeiro lugar, começaremos essa discussão pelo sentido que o ensino de Língua
Portuguesa deve ter, nos PCNEFs. A repetibilidade do fragmento vai recuperando
formações discursivas que dialogam com posições teóricas que sustentam uma forma de
trabalho com a linguagem para além da estrutura por ela mesma, sinalizando a ruptura
pretendida. O presente indicativo do verbo corresponder, que centraliza, em torno dele, a
questão, implica uma postura frente ao objeto de ensino, deixando irromper, no fio do
enunciado, uma marca de subjetividade, que traz para o interior do fragmento, o outro,
que ocupa o espaço do mesmo, através de uma interdiscursividade que deverá confirmar
uma ruptura, já constituída para o ensino da linguagem, conforme discussão anterior.
Através da dialogicidade levantada, portanto, recupera-se uma polifonia, marcada por uma
heterogeneidade constitutiva, que traduz a ruptura com o modelo de ensino da estrutura da
língua, indicando o ensino da linguagem, discursivamente.
Em segundo lugar, se se pôde caracterizar a primeira parte do fragmento por um polifonia
constitutiva, o mesmo não se pode dizer do que se segue. Por uma heterogeneidade
mostrada, que denota uma polifonia que irrompe no fio do enunciado, através do discurso
autonímico, manifestado na relativa explicativa, assume-se o sentido dado ao ensino da
gramática, no contexto do enunciado: que devem permitir, por meio de análise e reflexão,
sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos (... )que
permitam ao aluno ampliar a competência discursiva. Por essa parte do fragmento,
enquanto voz de explicitação, o modalizador discursivo devem permitir, pela sua natureza
de autoridade, carateriza o sentido da gramática, logo, o sentido do discurso no contexto
do documento, que é de natureza instrumental, relacionado à competência básica a ser
desenvolvida, que é a competência discursiva, e o que significa esse conhecimento para o
contexto histórico/político.
Cabe, portanto, avaliar que a análise e reflexão da língua, no seu interior, que, de imediato,
pelo fragmento, parece propor uma ruptura com a estrutura, acaba por assumir uma
postura, frente ao objeto de ensino, que o supõe como lugar de construção de
instrumentos, portanto, pela sua natureza instrumental, próximo da gramática normativa,
logo, um lugar de tensão ideológica. O discurso autonímico, que mostra, em síntese, o
sentido da reflexão sobre a língua, recupera, através dos substantivos expansão e
construção, as construções teóricas, tanto de natureza lingüística quanto pedagógica,
capazes de sustentar o ensino da linguagem a partir do que tem sido proposto, ao longo do
enunciado, que é o caráter instrumentalizador do conhecimento, assumido pelo
documento.
Por fim, o fragmento tomado trata, também, da compreensão do que significa a
ruptura com a gramática tradicional. A oração de natureza restritiva, na parte do fragmento
que se segue, através do presente indicativo do verbo supor, busca fundamentos teóricos
tanto de base lingüística quanto de base pedagógica, que interpelam uma
interdiscursividade, que deverá sustentar os objetivos a serem alcançados, logo, em que
consiste a didatização desse conteúdo, confirmando, de forma explícita, o seu sentido na
educação básica.: ampliar a competência discursiva. Aqui, também, se confirma a posição
de Dellamote-Legrand (2002) no que se refere às questões que perpassam todo e qualquer
processo de didatização do conhecimento. O levantamento de um pressuposto teórico em
detrimento de outro, sustentado em outros pressupostos, implica o sentido de cada um
deles para o ensino.
Levantada a forma como os PCNEFs de Língua Portuguesa, da à série, propõem o
ensino da gramática, remeteremos a discussão desse conteúdo para o segundo ciclo do
ensino fundamental. A princípio, pelo que se considerou, esse processo se dá, no
documento, a partir de um diálogo com os teóricos que tratam da questão, através da
língua realizada, logo, a linguagem enquanto atividade. Portanto, o que será objeto de
análise são as relações que se estabelecem com esse conteúdo, teoricamente. Inicialmente,
gostaríamos de destacar a relação que ele estabelece com o sentido, melhor dizendo, com
o discurso. Aliás, cabe, aqui, antes de se buscar compreender em que consiste a sua
didatização, reconhecer o que o documento concebe como discurso.
Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade discursiva: dizer
alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado
contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução. Isso
significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso não são aleatórias
– ainda que possam ser inconscientes - mas decorrentes das condições em
que o discurso é realizado.(...) (PCNEFs:20-21)
Por esse fragmento, como em contextos anteriores, através de uma negociação de sentidos,
encaminha-se uma metaenunciação, através do presente indicativo do verbo significar,
que pode conceber o discurso sob o ponto de vista da subjetividade. A série de ações
desencadeada - dizer alguma coisa a alguém, de algum lugar, numa determinada forma,
num determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução,
recupera, na sua repetibilidade, formações discursivas que concebem o discurso na
complexidade do sujeito, caracterizado pela sua horizontalidade, pelo seu lugar de
legitimação, pelo gênero ao qual está ancorado, pelas esferas de circulação, que
determinam as circunstâncias de interlocução.
Pelo fragmento levantado, portanto, a forma de compreensão do discurso o concebe como
produto do interdiscurso, podendo ser compreendido como lugar de ideologia. Na
seqüência, que pode ser caracterizada como um comentário, coloca-se em cena o
divulgador, que recupera a compreensão do discurso como algo que está além do sentido
na superfície do enunciado. Trata-se de uma síntese, que coloca os pólos em contato, ou a
ciência e o leitor. Essa explicitação se dá através da recuperação do conceito divulgado,
que é a noção de discurso, encaminhada pelo demonstrativo isso.
Ainda pelo fragmento acima, através da organização sintática de natureza argumentativa -
não são aleatórias/mas são decorrentes das condições em que o discurso é realizado,
construída por uma polifonia que, mesmo representando vozes em confronto, apresenta
enunciadores que se igualam, pois negam, na repetibilidade do fragmento, o que não se
pode entender e o que se pode entender como discurso. A organização do fragmento,
através da construção - condições de produção - pode deixar desencadear implícitos que
são uma compreensão do discurso, atrelado ao sujeito, portanto, efeitos de sentido, que se
constroem no momento mesmo da interlocução. E o próprio enunciado se encarrega de
explicitar essa compreensão do discurso.
O discurso não acontece no vazio. Ao contrário, todo discurso se relaciona
de alguma forma, com os que já foram produzidos. Nesse sentido, os
textos, como resultantes da atividade discursiva, estão em constante e
continua relação uns com os outros, ainda que, em sua linearidade, isso
não se explicite. A esta relação entre o texto produzido e os outros textos é
que se tem chamado intertextualidade. (PCNEFs:21)
Mas, tal como a questão discutida anteriormente, seria essa a concepção de discurso que
os PCNEFs de língua Portuguesa assumem, de fato? Ou ela seria apenas um lugar de
negociação de sentido para que a função-sujeito, na sua diversidade, se presentifique no
enunciado? Essa é uma questão que será retomada, posteriormente. Por enquanto,
retomaremos a discussão da reflexão sobre a língua, tendo em vista reconhecer o papel
que ela representa, no contexto de ensino dos PCNEFs de Língua Portuguesa, no segundo
ciclo do ensino fundamental, ou seja, o que significa tratar desse conteúdo, didaticamente,
nesse nível de escolaridade?
Enquanto processo de didatização, pelas nossas leituras, pode-se ver a reflexão sobre a
língua, sob dois pontos de vista diferenciados. Em primeiro lugar, pelo que se pode
compreender da análise lingüística, ela se dá sob pontos de vista convergentes, ou seja,
para esse processo, não houve disputa de espaços teóricos. O conflito se estabelece,
mesmo, com o ensino tradicional e com as teorias de comunicação, vigentes no período da
ditadura. Por essa condição da autoria frente ao objeto de ensino, a questão se apresenta no
processo de escrita, nas etapas que encaminham as atividades, assim materializada:
a refacção na produção de texto
(...) Graças à mediação do professor, os alunos aprendem não só um conjunto de
instrumentos lingüístico-discursivos, como também técnicas de revisão (rasurar,
substituir, desprezar).(PCNEFs:78)
prática de análise lingüística
(...) além da escuta, leitura e produção de textos, parece ser necessária a realização
tanto de atividades epilingüística, que envolvam manifestações de um trabalho sobre a
língua e suas propriedades, como de atividades metalingüísticas, que envolvam o
trabalho de observação, descrição e categorização, por meio do qual se constroem
explicações para os fenômenos lingüísticos característicos das práticas discursivas.
(PCNEFs:78)
Pelos fragmentos tomados, que tratam da análise lingüística como um pressuposto que
pode significar uma ruptura com a gramática tradicional, pode-se compreender a questão,
conforme já se considerou, sob o ponto de vista discursivo. Por eles, entrecruzam-se
formações discursivas que propõem esse conteúdo como sendo lugar de discursividade,
portanto, recupera-se, do próprio enunciado, a compreensão da língua realizada como
sendo, por natureza, sígnica. (PCNEFs:20). As atividades lingüísticas, epilingüísticas e
metalingüísticas propõem o ensino da linguagem ancorado no discursivo. Mas, pela
interdiscursividade, buscada em outras áreas do conhecimento, como a pedagogia das
competências, assumida ao longo de todo o enunciado, a análise lingüística vai retomando,
por outras vias, o caráter instrumental que o ensino da linguagem guardou, ao longo de
todo o enunciado.
Ao organizar atividades de análise lingüística, para possibilitar aos alunos
a aprendizagem de conteúdos, (...) o ensino deve centrar-se na tarefa de
instrumentalizar o aluno para o domínio cada vez maior da linguagem.
(PCNEFs:79)
Pelo fragmento acima, o sentido da análise lingüística, no contexto do PCNEFs para
o segundo ciclo do ensino fundamental, retoma a negociação de sentido, fazendo-se impor
o pressuposto das concepções que dizem respeito à construção do conhecimento, ao longo
do enunciado. Cabe avaliar que, por essa negociação de sentido, o próprio enunciado vai
construindo uma tessitura do que seria a relação desse conteúdo com o ensino dos
conceitos gramaticais. O que pareceu, anteriormente, encaminhar proposições para uma
compreensão do ensino da linguagem, sob o ponto de vista da análise lingüística,
discursivamente, sendo o discurso considerado como efeitos de sentido, começa a
convergir posições que dizem respeito ao enunciado na sua totalidade: o ensino deve
centrar-se na tarefa de instrumentalizar o aluno para o domínio cada vez maior da
linguagem.
Pela parte do fragmento recortada, busca-se uma síntese do que deve ser a análise
lingüística. Pela locução verbal deve centrar-se, que modaliza o discurso em um tom de
autoridade, situa-se o seu objetivo, que, enquanto tarefa, converge para o que se pretende
com o conhecimento, no contexto, que é o de instrumentalizar o aluno para o uso. Trata-
se, portanto, de um conhecimento de natureza utilitária. Através dele, dialoga-se com a
história recente, que foi objeto de discussão, propondo a análise lingüística como um
instrumento para ampliar a competência discursiva. Pela didatização desse conteúdo,
ainda, pela relação que o documento estabelece com o conhecimento em linguagem, resta
saber qual é, de fato, o conceito de discurso assumido.
O discurso, quando produzido, manifesta-se, lingüisticamente, por meio de
textos. O produto de atividade discursiva oral ou escrita que forma um
todo significativo, qualquer que seja a sua extensão, é o texto, uma
seqüência verbal constituída por um conjunto de relações que se
estabelecem a partir da coesão e da coerência. Em outras palavras, um
texto só é um texto quando pode ser compreendido como unidade
significativa global. (PCNEFs:21)
Embora já tenhamos discutido o que é discurso para a AD, antes de buscarmos, no
fragmento, em que consiste esse conceito, retornaremos à questão pelo ponto de vista de
Orlandi (1988:58). Para a autora, a relação entre texto e discurso não é biunívoca. O texto
é uma unidade de análise, um conceito mediador, imprescindível para a construção do
discurso. Por isso, é necessário tomá-lo enquanto estado determinado no processo
discursivo, sendo o discurso o conceito teórico que corresponde aos efeitos de sentido
entre locutores. Essa idéia se confirma em Bakhtin (1992:330), que afirma que o texto é o
ponto de partida para se chegar às reminiscências históricas. Esse só pode ser concebido
como efeito de sentido, produzido entre sujeitos. Aliás, conforme considerações de
Pêcheux (1969:79), já citadas anteriormente, texto não é discurso.
Pelo fragmento tomado, essa não parece ser a compreensão da questão levantada.
Pelo ponto de vista inicial, pode-se até pensá-la por essa perspectiva, já que o texto é a
travessia do discurso, e não se pode imaginá-lo fora dele, mas pela seqüência que se
segue, na repetibilidade do fragmento, pelo seu lugar teórico de origem, o discurso é
concebido, não só por esse fragmento, mas por tantos outros, no enunciado, como
constitutivo do próprio enunciado. Por essa compreensão, ele recupera formações
discursivas capazes de concebê-lo como produto, que pode ser identificado na própria
textualidade, através da sua organização interna, marcada pelos mecanismos de coesão e
de coerência. Essa razão supõe o sentido da análise lingüística, no fragmento analisado
anteriormente, considerada a relação que ela tem com o saber a ser ensinado, logo, com o
discurso: instrumentalizar o aluno para o domínio cada vez maior da linguagem. Se, pelas
práticas de análise lingüística, levantadas dos teóricos que discutiram a questão, pode-se
compreender que o enunciado é o lugar da intra/interdiscursividade, esse deve ser o objeto
de observação para a reflexão sobre a língua. Mas, para o PCNEFs, o que se propõe é que
ele é a constitutividade do próprio discurso, marcado na textualidade. Por ela, portanto,
salvaguarda-se o discurso na construção do enunciado.
Para concluir este capítulo, gostaríamos de retornar ao primeiro capítulo de
análise. Se lá, através das marcas lingüísticas levantadas, foi possível levantar, no fio do
enunciado, alguns pontos de deriva do sujeito, que nos permitiram relacionar os conceitos
levantados às demandas sócio/histórico/políticos, neste capítulo, através de uma
compreensão do que consiste a didatização dos conteúdos, em linguagem, e os conflitos
emergentes desse processo, foi possível complementar o sentido que a produção de
conhecimento deveria ter, sobretudo para as camadas mais baixas da sociedade. Por meio
do que consiste a produção de textos orais e escritos, a leitura e a reflexão sobre a língua,
de forma sistematizada, fomos apontando, também, no documento, um pressuposto capaz
de relacionar o conhecimento às necessidades históricas, que é o seu caráter instrumental.
Por esse pressuposto, conforme entendimento de Maingueneau (2005), estabelece-se a
relação do enunciado com a institucionalidade, ou com o lugar de origem do discurso,
determinando os conhecimentos necessários, ou os saberes necessários de serem
ensinados, e o objetivo primeiro a ser alcançado em linguagem: ampliar a competência
discursiva do aluno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para as nossas considerações finais, pela discussão ampla que foi implementada,
poderíamos começar por um sem-número de lugares de deriva das nossas inquietações, mas,
quando estamos diante de mais de uma opção, pela lei natural da racionalidade, somos
forçados a decidir. Optamos por tomar como ponto de partida o entendimento de
Maingueneau (2005) a respeito dos discursos institucionalizados. Conforme considerações
anteriores, o autor afirma que esses discursos fazem, sempre, uma conexão com o seu lugar
de origem. Por essa razão, por mais que o sentido de um discurso tenha tomado caminhos
diferenciados, produzindo sentidos, também, diferenciados, a conexão se estabelece em
forma de acordos, ou de confrontos, fazendo emergir efeitos de sentido, desejados, ou não,
sem perder de vista o discurso fundador.
A considerar os discursos pela relação com os Aparelhos Ideológicos de Estado,
supostos por Althusser, todos eles podem e devem ser também considerados como discursos
institucionalizados, já que emergem das organizações instituídas pelo homem, na sua
constitutividade histórica. Em se tratando dos discurso oficiais, cabe avaliar que o próprio
Estado se institucionaliza, através dos órgãos de representação, que legitimam o discurso do
poder. Para o corpus de análise, pode-se afirmar que ele se conecta, pela via
institucionalizada, ao Ministério da Educação, que, por sua vez, é uma representação
delegada do poder legítimo. Na perspectiva da hipótese a ser investigada, que levantou a
possibilidade de os PCNEFs serem um projeto de governo que deveria se tornar uma política
de Estado, o caminho a ser perseguido, nessas considerações finais, perpassa, de forma
sumária, pelas investigações que nos permitiram compreender a forma como se
estabeleceram as conexões com o lugar de origem do discurso e as possíveis intenções com
as quais ele foi constituído.
Fizemos a conexão suposta através das categorias analisadas, representadas nas
marcas lingüísticas, capazes de estabelecer relações entre o outro e o mesmo dos discursos
em movimento, em primeiro lugar, materializadas no percurso da interdiscursividade. Esse
percurso abriu espaço para que pudéssemos compreender as inter-relações, nos permitindo
chegar a uma subjetividade, que assumiu o eu do discurso, portanto, que assumiu as
prescrições do enunciado e que prescrições foram traçadas. Por essa via, captamos alguns
ditos e não-ditos, capazes de recuperar uma polifonia dispersa, que relaciona o documento
com posições não só teóricas e metodológicas, mas também com as perspectivas
sócio/histórico/políticas, logo, com a pretensão ideológica que subjaz ao enunciado. Através
da interdiscursividade, portanto, foi possível levantar os conceitos a serem transpostos,
didaticamente, para o campo do saber escolar, ou os que deveriam ser transformados em
objeto de ensino e o objetivo dos conceitos supostos para esse processo.
A leitura, a produção de textos orais e escritos e a reflexão sobre a língua seriam os
conteúdos a serem desenvolvidos, não só sob um princípio lingüístico/discursivo, mas
também sob um princípio pedagógico, esse último se sustentando na pedagogia das
competências. Os conteúdos a serem didatizados, ao lado dos pressupostos teóricos
convergiriam para o objetivo básico do ensino de língua materna, que seria o de formar
competências para o “exercício da cidadania”. Se esse ensino teve como fim trabalhar a
discursividade, a competência básica a ser alcançada seria a discursiva.
Na esteira da interdiscursividade, traçamos, também, a intradiscursividade. Através
do gênero ao qual o enunciado está ancorado, que permeia, no seu interior, uma natureza
didático/prescritiva, procuramos compreender a forma como o eu abriu espaço para o outro,
o que nos permitiu levantar um ethos constitutivo, através do qual o mesmo constrói uma
imagem de si e do outro e a relação dessa imagem com a produção de conhecimento. Por
essa inter-relação, foi possível a construção de um ethos positivo/negativo, ou um eu que
sabe e um outro que deve se reconhecer carente dos conceitos a serem implementados no
ensino de linguagem, tendo em vista os objetivos a serem alcançados.
Nas inter/intrarelações que permeiam o corpus de análise, levantamos o processo de
didatização dos conceitos científicos a serem transpostos para o campo do saber escolar,
considerando a questão sob o ponto de vista de Delamotte-Legrand (2002). Conforme busca,
ao longo da pesquisa, a visão da autora supõe esse processo como um lugar de tensão. Isso
implicou considerar, na nossa compreensão, que ele não pode ser visto apenas como um
espaço no qual a ciência se transforma em objeto de ensino, mas também como um lugar de
pretensões, ou seja, um lugar do ideológico.
Pelas razões levantadas, gostaríamos, agora, de avaliar que, no processo de análise,
foi tão necessário considerar os conteúdos lingüísticos a serem ensinados, quanto os
pressupostos teóricos de base pedagógica, já que esses últimos foram os que ditaram o
discurso da educação no contexto, ao assumirem os fundamentos da pedagogia das
competências. Cabe ressaltar que foi nessa interdiscursividade que foi possível recuperar os
discursos sócio/histórico/políticos subjacentes ao enunciado.
Através da proposta de trabalho com a linguagem, o objetivo a ser alcançado, nos
PCNEFs, atrela o conhecimento ao projeto de reforma do Estado, apresentado à nação pelo
governo FHC, idealizado pelo então Ministro Bresser Pereira. Esse projeto teria, entre outras
metas, sinalizar uma orientação para a sociedade civil, com base no individualismo, com a
intenção de “formar sujeitos competentes” para enfrentar a vulnerabilidade que o mercado de
trabalho passaria a configurar, tendo em vista colocar em prática as políticas econômicas,
originadas da suposta reforma do Estado. Nesse contexto de reforma o discurso circulante
passou a ser o das competências, para que todos tivessem oportunidades, não iguais, mas que
tivessem oportunidades de trabalho. Em linguagem, para ser competente, teria de ter um
domínio das discursividades, aliás, essa foi uma questão manifestada de forma intensa, no
corpus de análise.
Mediante o que temos considerado, pode-se concluir que os PCNEFs são um projeto
de governo, que, por sua vez, consolida um projeto de poder, hegemônico em suas intenções,
já que ele dispersa, no enunciado, de forma velada, as pretensões de um governo que foi
legitimado pela sociedade, através de um discurso que foi construído com base nas reformas
de que o Estado necessitava para entrar, de vez, na nova ordem mundial. Esse pressuposto
materializa a intenção do documento, logo, a sua natureza ideológica, ou as forças em
confronto, com vistas à legitimação de uma política para a educação, principalmente para as
camadas mais baixas da sociedade, o que lhe garante uma base pragmático/funcional. É essa
natureza do ensino de língua materna que, embora se apresente na forma concreta de uso da
linguagem, deverá concretizar um ensino de caráter utilitário.
Retomando Moraes (2001), para a autora, o conhecimento entendido como
competências caracteriza um espaço de segregação, pois elas não se igualam em seus valores.
Para uns, exigem-se níveis mais altos de aprendizagem, enquanto para a maioria, bastam as
competências, no sentido genérico que o termo adquiriu, permitindo a sobrevivência nas
franjas do núcleo duro do mercado fragmentário. Pela proposta, então, pode-se confirmar a
conexão do discurso com o seu lugar de origem, já que, nele, estão dispersos os objetivos da
educação a serem alcançados, no contexto político que o Estado brasileiro estava vivenciando
No espaço de discurso referenciado, através de uma intra/interdiscursividade
marcada, o sujeito institucional interferiu no currículo, dizendo ao professor quais são as
competências que são esperadas do aluno para que ele possa “exercer a cidadania”. Nessa
inter-relação, o conhecimento escolar deverá refletir uma leitura da história e um fazer para a
história. Trata-se do Estado gestor, materializado no modelo de Estado Neoliberal, que é
máximo quando precisa ser máximo e mínimo quando precisa ser mínimo. A discussão de
Apple (1999) colocou, de forma sumária, porém clara, o sentido da educação para esse
modelo de Estado, nas diferentes classes sociais.
No contexto até agora considerado para a educação, o que houve foi uma retomada da
história, tendo em vista supor o conhecimento da forma como se faz necessário que ele se dê.
Aliás, segundo Gentili (2003:103), o modelo de Estado configurado na reforma brasileira é,
simultaneamente, original e repetitivo, cria uma nova forma de dominação e reproduz as
formas anteriores. Portanto, ainda segundo o autor, a história não se repete, nem produz
fissuras por ela mesma, mas, como afirma Foucault (2003), resulta de uma miríade de
acontecimentos, que deixa emergir não uma repetibilidade da história, mas uma
reorganização da própria história, perpassando os conceitos provenientes dos modelos de
Estado instituídos. A propósito da reforma do Estado, a relação com o conhecimento, ainda
segundo Gentili (2003:104), idealiza uma escola que serve para o desempenho do mercado, e
sua expansão potencializa o crescimento econômico, portanto, atrelada ao poder econômico,
logo, hegemônica em seus princípios.
O papel conferido à educação, no contexto histórico ao qual temos feito referência,
que impõe ao conhecimento um caráter instrumental e utilitário, esvazia a escola do lugar do
conflito. É como se todos os conteúdos nela discutidos fossem verdades absolutas, com lugar
certo para a aplicação. Por essa razão, ela parece não se constituir em um Aparelho
Ideológico, mantido pelo Estado, que interfere na constituvidade do sujeito, mas sim o lugar
determinado pelo próprio Estado para que todos que por ela passarem estejam plenos para o
“exercício da cidadania”. A escola, enquanto pragmática, cumpre o papel que o filósofo
Durkheim (1978) apresentou para ela, que seria o de produzir o homem de que a sociedade
está necessitando. Vista sob esse olhar, ela passa a ser o lugar real de melhoria das condições
de vida de todos, passando a ser o lugar por excelência das possibilidades de que todos
“exerçam a cidadania”
Cabe retomar, no contexto de discussão, conforme se considerou, que cidadania não
pode ser entendida como algo que se caracteriza por um exercício que garanta igualdade de
direitos e de deveres para todos, relacionado à autonomia, tendo o Estado o seu papel a
cumprir, mas sim como direito que cada um tem, deixando de fora desse exercício os
deveres. Pela via única do conceito de cidadania, conforme considerações de Chauí (2003),
em sua aula inaugural, o Estado se desloca do seu campo de responsabilidades para se tornar
o Estado gestor, que deverá garantir o direito de que todos tenham acesso à escola, por
exemplo.
Para concluir, gostaríamos, aqui, de remeter para a relação com os corpos dóceis aos
quais Foucault (1987) faz referência. Se a escola está a serviço de um processo de produção
do conhecimento que atenda ao modelo de Estado instituído, ou, mais especificamente, que
seja a representação dos interesses do poder, é nesse processo que se estabelecem as relações
com o trabalho. Isso implica que ela deverá treinar “corpos” para ocupar os lugares na cadeia
produtiva. É nessa relação, também, que se deve buscar compreender o discurso circulante
que está sendo proposto para o trabalho com a linguagem. Pelas considerações feitas até aqui,
a linguagem, enquanto objeto de ensino, deixa de ser vista como lugar de subjetividades para
guardar “lugar de prestígio” no exercício da cidadania, fundamentada nos pressupostos das
competências.
Através das discussões feitas, pode-se fechar o círculo em torno da conexão que o
enunciado pode fazer com o seu lugar de origem. O poder legítimo, constituído com o aval da
sociedade, legitima, também o discurso da educação, dizendo para a escola que
conhecimento ele espera que seja desenvolvido. Ou seja, que conteúdos são necessários, que
pressupostos teóricos devem sustentar tal processo e através de que metodologias ele deve se
dar, configurando, de forma plena, a hierarquia levantada por Machado e Bronckart (2005),
em Paveau (1999): A diz a B para agir para C. Nessa síntese, o Estado diz ao professor como
o aluno deve se relacionar com o conhecimento, tendo em vista formar o cidadão desejado.
Mediante o processo de análise, não poderíamos deixar de passar, finalmente, por
uma consideração de Foucault (2003:236) a respeito do sujeito e a sua relação com o poder
instituído, sobretudo na modernidade. Segundo o autor, a modernidade montou uma
estratégia de organização da sociedade sem sujeito. Diríamos que se trata de um sujeito
disseminado, apagado nas estruturas sociais e que só faz sentido na massa e é para ela que o
olhar se volta. – o poder burguês pôde elaborar grandes estratégias, sem que por este motivo
se precise supor um sujeito. A considerar o sujeito da forma como o supõe os PCNEFs de
Língua Portuguesa, no que se refere à sua relação com o discurso e com a linguagem,
historicamente, ele é disseminado na estrutura da sociedade, tornando-o, como diz Ferrero
(1945:37), confirmando a posição de Foucault, matéria plástica do poder. São essas
condições que permitem entradas estratégicas em lugares sutilmente planejados para serem o
lugar do exercício do poder, como o currículo, por exemplo.
A maioria dos homens compõe-se de seres tímidos,
modestos, passivos, que são a matéria plástica do
Poder, porque nasceram para obedecer. A raça dos
senhores é uma minoria de mais intensa força vital:
os ambiciosos, os ativos, os imperiosos, que, pela
ação ou pelo pensamento tem necessidade de se
afirmar a sua superioridade.
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ANEXO I
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO / DF
Parecer sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais.
CEB-Par. 3/97, aprovado em 12/3/97 (Proc. 23001.000102/97-16)
I - RELATÓRIO
Em 10 de setembro de 1996, o Senhor Ministro de Estado da Educação e do
Desporto, Prof. Paulo Renato Souza, endereçou ofício ao Conselho Nacional de Educação
(CNE), solicitando a apreciação do Colegiado sobre o documento
denominado Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) - versão agosto 1996.- Esse conjunto,
de mais de mil páginas, apresentado a partir de um Documento Introdutório, contém
orientações e sugestões pare o ensino fundamental em dois
ciclos equivalentes às quatro primeiras séries, nas áreas de: Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências, assim como nos chamados Temas Transversais - Convívio Social e Ética, Meio
Ambiente, Saúde, Orientação Sexual.
Por se tratar de questão de suma importância e de abrangência nacional, convém
historiar sumariamente a origem e a evolução dos PCN.
No final de 1995, antes da constituição do CNE, a Secretaria de Educação
Fundamental (SEF) havia divulgado, pare todo o Pais, a primeira versão dos PCN elaborada
por equipes especialmente contratadas pela SEF/MEC compostas por
professores com exercício no ensino fundamental, contando com a assessoria de professores
especialistas. Essa primeira versão foi enviada a cerca de 400 consultores: professores
universitários de todo o Pais, especialistas das diferentes áreas e
representantes das principais associações cientificas ligadas à educação. Foi solicitado a cada
consultor e a cada entidade um parecer a respeito do documento em geral ou da parte
referente à sue especialidade.
Ao propor e desencadear um processo de formulação de objetivos, metas, estratégias
e metodologias pare o ensino fundamental o MEC estava, por certo, procurando responder a
uma exigência premente de melhoria desse nível de ensino, cuja importância é
inquestionável. A natureza da proposição do MEC provocou, em todo o país, um debate
muito produtivo sobre a questão curricular. Disso resultou uma série de reuniões e
publicações de dezenas de artigos sobre o assunto.
Talvez estejamos vivendo um dos períodos de major intensidade de debates sobre
temas educacionais dos últimos tempos, com a participação altamente interessada de
professores de vários níveis de ensino, assim como das associações que os representam.
O próprio MEC, através de sues Delegacias Estaduais, promoveu nos estados da
federação reuniões com professores, com a finalidade de dar conhecimento e provocar o
debate sobre os PCN.
Não obstante a constatação de uma reação de grande interesse por parte da
comunidade educacional, é preciso distinguir importantes nuances no interior dessa reação.
Uma das principais reserves constatadas se refere ao processo
inicial de elaboração dos PCN, centrado nas mãos de determinadas equipes sem a
colaboração de grupos de especialistas e pesquisadores dedicados há muito tempo aos
estudos específicos sobre currículo. Há que se observar entretanto que, se a
própria orientação geral do processo teve no MEC seu centro emissor, este em fase posterior
submeteu o resultado à contribuição de uma rede muito mais ampla de especialistas, pela via
de pareceres. Até agora, foram apresentados cerca de
700 pareceres, com muitas sugestões incorporadas nas sucessivas versões dos PCN. Outra
reserve observada foi a ausência de uma consulta prévia ao público alvo, representado
principalmente pelos professores do ensino fundamental, embora a
equipe inicial de elaboração tivesse sido formada, basicamente, por professores deste mesmo
nível de ensino.
O CNE começou a acompanhar o movimento em torno dos PCN muito antes de ser
oficialmente convidado a fazê-lo, pelo Senhor Ministro da Educação e do Desporto, em
10/09/96. Logo ao iniciar sues atividades, em março de 1996, os
Conselheiros que compõem a Câmara de Educação Básica (CEB) tornaram conhecimento do
trabalho que estava sendo realizado pela SEF. De fato, alguns dos Conselheiros já tinham
recebido o conjunto de PCN e tinham sido convidados a emitir parecer sobre os mesmos na
qualidade de consultores.
Desde o inicio dos trabalhos na Câmara, havia a consciência da responsabilidade
sobre o assunto, de modo especial porque os PCN constituem tema sobre o qual o CNE
exerce função de assessoria, de acordo com o artigo 9° da Lei 9.131/95 e com a atuai Lei de
Diretrizes é Bases da Educação Nacional (LDB). Esse tema não se confunde com a definição
de diretrizes curriculares e de conteúdos mínimos pare o ensino fundamental, nos termos dos
artigos 9°, parágrafo 1 ° e 26 da LDB.
Enquanto o debate em torno dos PCN corria por todo o pais, especialmente dentro do
ambiente universitário, no interior da CEB prosseguiam os estudos individuais e as
discussões coletivas a seu respeito. Os Conselheiros preocuparam-se também em levar o
assunto pare discussão nas respectivas instituições de trabalho, buscando a palavra
qualificada de especialistas em cada uma das áreas contempladas pela versão dos PCN de
agosto de 1996.
Constatou-se a necessidade de ouvir a opinião de professores dos diferentes níveis de
ensino, em especial os do ensino fundamental, pois a primeira etapa da proposta dos PCN
corresponde a esse nível. Buscava-se, assim, abrir um canal que permitisse uma major
proximidade entre o CNE e os professores, em cada uma das cinco grandes regiões do Pais.
Realizaram-se, então, seminários regionais, em Recife pare a região nordeste, em Cuiabá pare
a centro-oeste , em São Paulo pare a sudeste e em Belém pare a região norte. Na região sul
haviam sido realizadas, à época, várias reuniões promovidas pelo
MEC e pela SEE pare o mesmo fim, o que levou à suspensão, ali, do seminário regional. Os
quatro seminários foram organizados sob a coordenação do CNE e contaram com a
colaboração dos Conselhos Estaduais e Municipais de Educação, das Secretarias de Educação
dos Estados e Municípios sedes dos eventos. Contaram também com a participação de
universidades, associações cientificas e culturais e entidades representativas de profissionais
da educação. Ainda que por meio de soluções locais diferentes, os seminários
proporcionaram oportunidades pare manifestações de idéias, sugestões e criticas.
Todos os que participaram desses seminários regionais constataram a riqueza das
discussões, criticas e sugestões produzidas. Alguns resultados desses encontros acham-se em
via de publicação na revista Documenta, veiculo oficial de divulgação do CNE. Para a CEB,
interessada em conhecer diretamente o pensamento dos principais envolvidos com uma
possível aplicação dos PCN, ou seja, os professores do ensino fundamental, as informações
recolhidas foram preciosas. Deixaram bastante claro o interesse que cerca a discussão sobre
currículo, como aliás sobre qualquer tema ligado ao trabalho do professor e da escola.
Constatou-se, igualmente, entre os professores, uma viva satisfação com o interesse
demonstrado pelo MEC sobre as questões do ensino fundamental. Alguns professores
chegaram a afirmar que, com os PCN, finalmente surgiu uma nova iniciativa voltada para
problemas próprios do trabalho nas escolas e suas soluções a partir de sugestões trazidas pela
discussão teórica recente no campo educacional. Houve, entretanto, dúvidas sobre a
viabilidade de aplicação das soluções sugeridas, umas questionando a exigüidade dos prazos
para discussão e outras decorrentes da falta de preparação adequada dos próprios docentes,
ou pela falta de condições de trabalho e de assistência pedagógica sofrida pelas escolas da
rede pública. A solução destas questões depende de uma política nacional de valorização e de
formação inicial e continuada do professor.
Parte dos documentos obtidos nos seminários regionais foi encaminhada à SEF,
exercendo, assim, a CEB, sua função de assessoria ao MEC e contribuindo para o
aprimoramento da proposta dos PCN. A par disso, a Câmara continuou
refletindo sobre os PCN, à luz das discussões havidas nos seminários, bem como de análises
e contribuições individuais dos conselheiros. Com esse trabalho, a Câmara alcançou um nível
de entendimento sobre o significado, os propósitos e o alcance
dos PCN, atingindo uma compreensão adequada sobre o seu papel a respeito desta matéria.
O documento enviado pelo Senhor Ministro da Educação e do Desporto ao CNE é fruto de
importante programa do governo na busca de soluções para os problemas que afligem o
ensino fundamental, base para qualquer política educacional
de âmbito nacional e de longo prazo. Sua proposição causou grande impacto na comunidade
educacional brasileira, estimulando um debate muito produtivo, não apenas sobre questões
curriculares, mas sobre todas as questões que dificultam a vida das escolas.
II - VOTO DO RELATOR
Após análise do documento e das reações por ele provocadas na comunidade educacional,
conclui-se:
1. Os PCN apresentam princípios educativos e uma proposta de articulação entre objetivos,
conteúdos, orientações didáticas e critérios de avaliação, buscando contribuir pare o
aperfeiçoamento da prática pedagógica, sem criar novas disciplines ou se revestir de caráter
de obrigatoriedade.
2. Os PCN, como referencial nacional, apontam pare um horizonte de aperfeiçoamento da
qualidade no ensino fundamental, e sue aplicação pressupõe o "pluralismo de idéias e de
concepções pedagógicas" e a gestão curricular autônoma, tanto das Secretarias Estaduais e
Municipais, quanto das escolas, respeitando, desta forma, a estrutura federativa do Pais. Ao
serem utilizados, deverão estimular o desenvolvimento do projeto educativo de cada escola e
envolver a atuação dos professores e equipes pedagógicas das Secretarias de Educação e das
unidades escolares, não apenas na discussão e redefinição curricular, como também
incorporando as experiências diferenciadas da população em respeito à pluralidade cultural
brasileira.
3. Os PCN resultam de uma ação legitima, de competência privativa do MEC e se
constituem, em uma proposição pedagógica, sem caráter obrigatório, que visa à melhoria da
qualidade do ensino fundamental e o desenvolvimento profissional do professor. É nesta
perspective que devem ser apresentados às Secretarias Estaduais, Municipais e às Escolas.
4. Os PCN não dispensam a necessidade de formulação de diretrizes curriculares nacionais,
que deverão fundamentar a fixação de conteúdos mínimos e a base nacional comum dos
currículos, em caráter obrigatório pare todo o território nacional, nos termos do artigo 26 da
Lei 9.394/96 (LDB).
Tendo em vista os dispositivos constitucionais e legais pertinentes, a CEB exercitará a
sue função deliberativa, formulando as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN).
Ainda no exercício de sue competência, ao MEC caberá a avaliação permanente e a
revisão periódica dos PCN.
É nosso o voto.
Brasília-DF, em 12 de março de 1997.
Conselheiros Relatores
Edla de Araújo Lira Soares
Fábio Luiz Marinho Aidar
Hermengarda Alves Ludke
Regina Alcantara de Assis
III - DECISÃO DA CÂMARA
A Câmara de Educação Básica acompanha o voto do Relator.
Sala das Sessões, em 12 de março de 1997.
(aa) Carlos Roberto Jamil Cury - Presidente
Hermengarda Alves Ludke - Vice-Presidente
ANEXO II
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO / DF
Parecer sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais.
CEB-Par. 3/97, aprovado em 12/3/97 (Proc. 23001.000102/97-16)
I – RELATÓRIO
Em 10 de setembro de 1996, o Senhor Ministro de Estado da Educação e do
Desporto, Prof. Paulo Renato Souza, endereçou ofício ao Conselho Nacional de Educação
(CNE), solicitando a apreciação do Colegiado sobre o documento denominado Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) - versão agosto 1996.- Esse conjunto, de mais de mil páginas,
apresentado a partir de um Documento Introdutório, contém orientações e sugestões pare o
ensino fundamental em dois ciclos equivalentes às quatro primeiras séries, nas áreas de:
Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, assim como nos chamados Temas Transversais -
Convívio Social e Ética, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual.
Por se tratar de questão de suma importância e de abrangência nacional, convém
historiar sumariamente a origem e a evolução dos PCN.
No final de 1995, antes da constituição do CNE, a Secretaria de Educação
Fundamental (SEF) havia divulgado, para todo o Pais, a primeira versão dos PCN elaborada
por equipes especialmente contratadas pela SEF/MEC compostas por professores com
exercício no ensino fundamental, contando com a assessoria de professores especialistas.
Essa primeira versão foi enviada a cerca de 400 consultores: professores universitários de
todo o Pais, especialistas das diferentes áreas e representantes das principais associações
cientificas ligadas à educação. Foi solicitado a cada consultor e a cada entidade um parecer a
respeito do documento em geral ou da parte referente à sue especialidade.
Ao propor e desencadear um processo de formulação de objetivos, metas, estratégias
e metodologias pare o ensino fundamental o MEC estava, por certo, procurando responder a
uma exigência premente de melhoria desse nível de ensino, cuja importância é
inquestionável. A natureza da proposição do MEC provocou, em todo o país, um debate
muito produtivo sobre a questão curricular. Disso resultou uma série de reuniões e
publicações de dezenas de artigos sobre o assunto.
Talvez estejamos vivendo um dos períodos de major intensidade de debates sobre
temas educacionais dos últimos tempos, com a participação altamente interessada de
professores de vários níveis de ensino, assim como das associações que os representam.
O próprio MEC, através de suas Delegacias Estaduais, promoveu nos estados da
federação reuniões com professores, com a finalidade de dar conhecimento e provocar o
debate sobre os PCN.
Não obstante a constatação de uma reação de grande interesse por parte da
comunidade educacional, é preciso distinguir importantes nuances no interior dessa reação.
Uma das principais reserves constatadas se refere ao processo inicial de elaboração dos PCN,
centrado nas mãos de determinadas equipes sem a colaboração de grupos de especialistas e
pesquisadores dedicados há muito tempo aos estudos específicos sobre currículo. Há que se
observar entretanto que, se a própria orientação geral do processo teve no MEC seu centro
emissor, este em fase posterior submeteu o resultado à contribuição de uma rede muito mais
ampla de especialistas, pela via de pareceres. Até agora, foram apresentados cerca de 700
pareceres, com muitas sugestões incorporadas nas sucessivas versões dos PCN. Outra reserve
observada foi a ausência de uma consulta prévia ao público alvo, representado
principalmente pelos professores do ensino fundamental, embora a equipe inicial de
elaboração tivesse sido formada, basicamente, por professores deste mesmo nível de ensino.
O CNE começou a acompanhar o movimento em torno dos PCN muito antes de ser
oficialmente convidado a fazê-lo, pelo Senhor Ministro da Educação e do Desporto, em
10/09/96. Logo ao iniciar suas atividades, em março de 1996, os Conselheiros que compõem
a Câmara de Educação Básica (CEB) tomaram conhecimento do trabalho que estava sendo
realizado pela SEF. De fato, alguns dos Conselheiros já tinham recebido o conjunto de PCN e
tinham sido convidados a emitir parecer sobre os mesmos na qualidade de consultores.
Desde o inicio dos trabalhos na Câmara, havia a consciência da responsabilidade
sobre o assunto, de modo especial porque os PCN constituem tema sobre o qual o CNE
exerce função de assessoria, de acordo com o artigo 9° da Lei 9.131/95 e com a atuai Lei de
Diretrizes é Bases da Educação Nacional (LDB). Esse tema não se confunde com a definição
de diretrizes curriculares e de conteúdos mínimos pare o ensino fundamental, nos termos dos
artigos 9°, parágrafo 1 ° e 26 da LDB.
Enquanto o debate em torno dos PCN corria por todo o pais, especialmente dentro do
ambiente universitário, no interior da CEB prosseguiam os estudos individuais e as
discussões coletivas a seu respeito. Os Conselheiros preocuparam-se também em levar o
assunto pare discussão n as respectivas instituições de trabalho, buscando a palavra
qualificada de especialistas em cada uma das áreas contempladas pela versão dos PCN de
agosto de 1996.
Constatou-se a necessidade de ouvir a opinião de professores dos diferentes níveis de
ensino, em especial os do ensino fundamental, pois a primeira etapa da proposta dos PCN
corresponde a esse nível. Buscava-se, assim, abrir um canal que permitisse uma major
proximidade entre o CNE e os professores, em cada uma das cinco grandes regiões do Pais.
Realizaram-se, então, seminários regionais, em Recife pare a região nordeste, em Cuiabá pare
a centro-oeste , em São Paulo pare a sudeste e em Belém pare a região norte. Na região sul
haviam sido realizadas, à época, várias reuniões promovidas pelo MEC e pela SEE pare o
mesmo fim, o que levou à suspensão, ali, do seminário regional. Os quatro seminários foram
organizados sob a coordenação do CNE e contaram com a colaboração dos Conselhos
Estaduais e Municipais de Educação, das Secretarias de Educação dos Estados e Municípios
sedes dos eventos. Contaram também com a participação de universidades, associações
cientificas e culturais e entidades representativas de profissionais da educação. Ainda que por
meio de soluções locais diferentes, os seminários proporcionaram oportunidades pare
manifestações de idéias, sugestões e criticas.
Todos os que participaram desses seminários regionais constataram a riqueza das
discussões, criticas e sugestões produzidas. Alguns resultados desses encontros acham-se em
via de publicação na revista Documenta, veiculo oficial de divulgação do CNE. Para a CEB,
interessada em conhecer diretamente o pensamento dos principais envolvidos com uma
possível aplicação dos PCN, ou seja, os professores do ensino fundamental, as informações
recolhidas foram preciosas. Deixaram bastante claro o interesse que cerca a discussão sobre
currículo, como aliás sobre qualquer tema ligado ao trabalho do professor e da escola.
Constatou-se, igualmente, entre os professores, uma viva satisfação com o interesse
demonstrado pelo MEC sobre as questões do ensino fundamental. Alguns professores
chegaram a afirmar que, com os PCN, finalmente surgiu uma nova iniciativa voltada para
problemas próprios do trabalho nas escolas e suas soluções a partir de sugestões trazidas pela
discussão teórica recente no campo educacional. Houve, entretanto, dúvidas sobre a
viabilidade de aplicação das soluções sugeridas, umas questionando a exigüidade dos prazos
para discussão e outras decorrentes da falta de preparação adequada dos próprios docentes,
ou pela falta de condições de trabalho e de assistência pedagógica sofrida pelas escolas da
rede pública. A solução destas questões depende de uma política nacional de valorização e de
formação inicial e continuada do professor.
Parte dos documentos obtidos nos seminários regionais foi encaminhada à SEF,
exercendo, assim, a CEB, sua função de assessoria ao MEC e contribuindo para o
aprimoramento da proposta dos PCN. A par disso, a Câmara continuou refletindo sobre os
PCN, à luz das discussões havidas nos seminários, bem como de análises e contribuições
individuais dos conselheiros. Com esse trabalho, a Câmara alcançou um nível de
entendimento sobre o significado, os propósitos e o alcance dos PCN, atingindo uma
compreensão adequada sobre o seu papel a respeito desta matéria.
O documento enviado pelo Senhor Ministro da Educação e do Desporto ao CNE é
fruto de importante programa do governo na busca de soluções para os problemas que
afligem o ensino fundamental, base para qualquer política educacional de âmbito nacional e
de longo prazo. Sua proposição causou grande impacto na comunidade educacional
brasileira, estimulando um debate muito produtivo, não apenas sobre questões curriculares,
mas sobre todas as questões que dificultam a vida das escolas.
II - VOTO DO RELATOR
Após análise do documento e das reações por ele provocadas na comunidade
educacional, conclui-se:
1. Os PCN apresentam princípios educativos e uma proposta de articulação entre objetivos,
conteúdos, orientações didáticas e critérios de avaliação, buscando contribuir pare o
aperfeiçoamento da prática pedagógica, sem criar novas disciplines ou se revestir de caráter
de obrigatoriedade.
2. Os PCN, como referencial nacional, apontam pare um horizonte de aperfeiçoamento da
qualidade no ensino fundamental, e sue aplicação pressupõe o "pluralismo de idéias e de
concepções pedagógicas" e a gestão curricular autônoma, tanto das Secretarias Estaduais e
Municipais, quanto das escolas, respeitando, desta forma, a estrutura federativa do Pais. Ao
serem utilizados, deverão estimular o desenvolvimento do projeto educativo de cada escola e
envolver a atuação dos professores e equipes pedagógicas das Secretarias de Educação e das
unidades escolares, não apenas na discussão e redefinição curricular, como também
incorporando as experiências diferenciadas da população em respeito à pluralidade
cultural brasileira.
3. Os PCN resultam de uma ação legitima, de competência privativa do MEC e se
constituem, em uma proposição pedagógica, sem caráter obrigatório, que visa à melhoria da
qualidade do ensino fundamental e o desenvolvimento profissional do professor. É nesta
perspective que devem ser apresentados às Secretarias Estaduais, Municipais e às
Escolas.
4. Os PCN não dispensam a necessidade de formulação de diretrizes curriculares nacionais,
que deverão fundamentar a fixação de conteúdos mínimos e a base nacional comum dos
currículos, em caráter obrigatório pare todo o território nacional, nos termos do artigo 26 da
Lei 9.394/96 (LDB).
Tendo em vista os dispositivos constitucionais e legais pertinentes, a CEB exercitará a
sue função deliberativa, formulando as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN).
Ainda no exercício de sue competência, ao MEC caberá a avaliação permanente e a revisão
periódica dos PCN.
É nosso o voto.
Brasília-DF, em 12 de março de 1997.
Conselheiros Relatores
Edla de Araújo Lira Soares
Fábio Luiz Marinho Aidar
Hermengarda Alves Ludke
Regina Alcantara de Assis
III - DECISÃO DA CÂMARA
A Câmara de Educação Básica acompanha o voto do Relator.
Sala das Sessões, em 12 de março de 1997.
(aa) Carlos Roberto Jamil Cury - Presidente
Hermengarda Alves Ludke - Vice-Presidente
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