Download PDF
ads:
CLAUDIA PASSOS CALDEIRA
Revisitando o ethos indígena e a Nação no caminho da construção
das identidades
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Estudos Literários
da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre em Estudos Literários.
Área de concentração: Teoria Literária
Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural.
Orientadora: Prof
a.
Dr
a.
Haydée Ribeiro Coelho
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE LETRAS DA UFMG
2006
1
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Ao Taka, à Carla e à Fernanda.
2
ads:
AGRADECIMENTOS
O processo que culminou com a escritura dessa dissertação contou com colaboração de várias
pessoas sem as quais esse formato final não teria sido atingido. Nesse sentido, ressalto o viés
coletivo que perpassa a escritura desse trabalho e aproveito para agradecer
à Haydée Ribeiro Coelho que, com sua solicitude, empenho, coerência e amizade, me acompanhou
desde os primeiros momentos de minha Graduação em Letras até a conclusão do Mestrado, ora
instruindo ora confrontando ora revisando, e sempre incentivando e tornando especial minha
formação acadêmica;
à Marli Fantini Scarpelli, professora que primeiro me acolheu na Pós-graduação;
à professora Dilma Castelo Branco Diniz e aos professores Eduardo Assis Duarte e Luiz Cláudio
Vieira de Oliveira pela leitura atenta e pelos conselhos, sugestões e incentivo;
à Isabella Angrisano pela amizade e carinho com que revisou este trabalho;
ao Colegiado de Pós Graduação em Estudos Literários, em especial, às coordenadoras Eliana
Lourenço e Ana Maria Clark Peres e às funcionárias Letícia, Meire, Marta e Rosana que de forma
sempre atenciosa e simpática facilitaram ao máximo os trâmites formais durante o período em que
cursei a Pós-graduação;
enfim, à minha mãe, irmãos, demais familiares e amigos, interlocutores de todas as horas, pelo
carinho e presença sempre reconfortante.
3
SUMÁRIO:
RESUMO-------------------------------------------------------------------------------------------- 6
ABSTRACT----------------------------------------------------------------------------------------- 7
INTRODUÇÃO------------------------------------------------------------------------------------- 8
1 O ÍNDIO NO CONTEXTO DEZENOVISTA
1.1 A nação e o discurso nacional---------------------------------------------------------------- 15
1.1.1 O conceito de Nação------------------------------------------------------------------------- 15
1.2 O discurso sobre o nacional------------------------------------------------------------------- 17
1.2.1 Os índios na formação do discurso da nacionalidade:
uma referência a José de Alencar---------------------------------------------------------- 27
1.3 A sociedade indígena e a nacional: conflitos----------------------------------------------- 30
1.4 Discurso sobre a mestiçagem e a afirmação da identidade nacional-------------------- 36
2 A RENOVAÇÃO DO PENSAMENTO NACIONAL: GILBERTO FREYRE E MÁRIO DE
ANDRADE
2.1 Caráter nacional-------------------------------------------------------------------------------- 45
2.2 Gilberto Freyre e Casa-grande & Senzala-------------------------------------------------- 48
2.2.1 O autor e Casa-grande & Senzala -------------------------------------------------------- 48
2.2.2 A narrativa de Casa-grande & Senzala e a representação indígena------------------ 53
2.2.3 A representação feminina e masculina do indígena em Freyre----------------------- 59
2.2.4 Heranças indígenas: misticismo, gatunagem e luxúria---------------------------------- 62
2.2.5 O discurso da sexualidade e a representação indígena em Casa-grande & Senzala 63
2.3 Mário de Andrade e Gilberto Freyre: Uma interlocução possível?--------------------- 72
2.3.1 Gilberto Freyre e o Regionalismo-------------------------------------------------------- 72
2.3.2 Mário de Andrade: o Modernismo e o Regionalismo--------------------------- 79
2.3.3 Primitivismo Modernista: Representação indígena e sua interface com a Nação-- 83
2.4. O indígena em Macunaíma e em Casa-grande & Senzala------------------------------ 85
4
2.4.1 Uma inversão da hierarquia colonial e contraponto ao modelo social freyriano---- 85
2.4.2 A nacionalização em Macunaíma--------------------------------------------------------- 98
2.4.3 O caráter nacional em Macunaíma ------------------------------------------------------- 106
2.4.4 A construção da nação e o mito de fundação em Macunaíma------------------------ 110
3 ANOS 60 E 70: A CAMINHO DA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES
3.1 Os anos 60 e 70--------------------------------------------------------------------------------- 114
3.1.1 Darcy Ribeiro: o autor de Maíra----------------------------------------------------------- 124
3.1.2 Maíra: o indígena, a nação e a modernização-------------------------------------------- 125
3.1.2.1 O nacional em Maíra---------------------------------------------------------------------- 125
3.1.2.2 A reconstrução das identidades---------------------------------------------------------- 132
3.2 Nação, Nações e Imaginários Cruzados----------------------------------------------------- 135
3.2.1 Kaká Werá Jecupé: o intelectual indígena------------------------------------------------ 135
3.2.2 Oré awé roiru’a ma-------------------------------------------------------------------------- 144
CONCLUSÃO-------------------------------------------------------------------------------------- 144
BIBLIOGRAFIA GERAL------------------------------------------------------------------------ 147
BIBLIOGRAFIA CITADA ---------------------------------------------------------------------- 149
5
RESUMO:
Essa dissertação tem por objetivo fazer um estudo sobre a representação indígena,
relacionando-a ao discurso da Nação. Nesse sentido, procurou-se evidenciar como essas
representações, instituídas em nossa memória cultural, foram apreendidas em momentos e textos
diferenciados.
O século XIX aparece como ponto de partida para o estudo das transformações ocorridas na
representação indígena durante o século XX, uma vez que apresenta dois modelos distintos de
representação, o atinente ao Romantismo e o presente nos textos de viajantes, naturalistas e
cientistas.
Os anos de 20 e 30 do séc. XX constituem um outro momento de intenso debate sobre o
projeto de nação incidindo sobre o contexto cultural. Macunaíma e Casa grande & Senzala
mostram diferentes acepções de nação, revelando representações do indígena, à luz do Modernismo
e do Regionalismo, respectivamente.
Nos anos 60 e 70, durante a disputa ideológica entre a direita e a esquerda, a representação
indígena foi retomada no contexto da discussão sobre o modelo autoritário de Estado-Nação. Em
Maíra, é mostrado o olhar do índio sobre a nação e ainda é revelada a perspectiva do ethos tribal.
Nos anos 90, vive-se um momento de reafirmação das identidades étnicas, período em que o
ponto de vista indígena surge, relacionado ao letramento e à autoria, como em Ore awé roiru a’ma
de Kaká Werá Jecupé, narrativa que aponta para um locus de enunciação ambivalente, propicio à
reflexão sobre a nação e ou nações.
6
ABSTRACT
This thesis aims at studying the Brazilian indigenous representation, relating it to the speech
about Nation. Based on that, we point out how these representations, instituted in our cultural
memory, were perceived in different moments and texts.
The 19th century is the starting point for the study about the transformations that occurred in
the indigenous representation. Throughot the 20
th
century, once it shows two different
representations models, the one according to the Romantism and the one held in the reports of
travelers such as naturalists and scientists.
The 1920’s and 1930’s constitute another moment of intense debate about the project of
nation reflecting on the cultural context. Macunaíma, by Mário de Andrade, and Casa-grande &
Senzala, by Gilberto Freyre, show different ideas of nation, revealing representations of the native
based on modernism and regionalism, correspondingly.
In the 1960’s and 1970’s, during the ideological dispute between right and left, the
indigenous representation was reconsidered within the context of discussion about the authoritarian
model of the national State. Maíra, by Darcy Ribeiro, shows the indigenous look towards the nation
and also reveals the perspective of the tribal ethos.
In the 1990’s we lived a moment of reaffirmation of the ethnical identities, a period in
which the indigenous point of view arose, related to writing and authorship. An example is
Ore awé roiru a’ma, by Kaká Werá Jecupé, a narrative that points to a locus of ambivalent
enunciation that favors a reflection about the nation or nations.
7
INTRODUÇÃO
A elaboração deste trabalho partiu de questões sobre a representação indígena trazidas
pelas leituras de alguns textos, pertencentes à memória crítica nacional, que afloraram de maneira
mais consistente após meu contato com a Literatura Indígena, durante o curso de graduação em
Letras
2
. Apesar de a representação indígena ser um tema muito explorado pela crítica literária, pude
notar que um rearranjo de textos poderia propiciar um estudo interessante. Assim, lançar um olhar
sobre o passado e revisitar algumas representações instituídas sobre a identidade indígena faz parte
do processo de buscar compreender quais são os discursos que permeiam as relações da troca
intercultural na atualidade. Nesse sentido, a indagação que venho a fazer está relacionada com a
forma de como a imagem do indígena foi apropriada pela cultura hegemônica.
Para situar historicamente a representação indígena, é importante salientar que, durante
o século XIX, foram projetadas bases subjetivas para a formação da identidade nacional, a qual teria
por função promover vínculos de pertencimento dos indivíduos entre si e em relação à nação.
Naquele período, um simbolismo novo foi instituído, objetivando construir uma representação
coletiva que refletisse as expectativas e os projetos daquele ente nacional para si mesmo e para o
restante do mundo.
Na sociedade brasileira, a elaboração da retórica da nação ocorreu com os processos de
Independência e formação do Estado nacional brasileiro, o qual enfrentou, naquele momento, o
2 Para elaborar o projeto acadêmico contei com o suporte oferecido pela Faculdade de Letras da UFMG e o
conhecimento adquirido durante o curso Graduação em Letras e a Pós–Graduação Estudos Literários, nesta Faculdade.
Entre as disciplinas que cursei, destaco aquelas oferecidas pelos professores Dilma Castelo Branco Diniz, Haydée
Ribeiro Coelho; Marcus Vinicius de Freitas e Maria Inês de Almeida por terem mais diretamente, com suas exposições,
discussões e bibliografia, influenciado a realização desta dissertação.
8
desafio de conquistar a autonomia política e constituir-se Estado-Nação: governo, povo e território
organizados em torno do princípio da unidade lingüística, política, territorial, em um país pleno de
diversidades, no qual a homogeneidade não era assim tão óbvia.
O processo de construção de uma identidade nacional, objetivando criar amarras
nacionais e estabelecer um sentimento de “povo-nação”, mobilizou a intelectualidade que atuou de
forma a legitimar as instituições nacionais por meio dos discursos literário, histórico e do
pensamento social.
3
Os símbolos e os discursos representativos dessa nova ordem político-social
buscaram nacionalizar representações de toda ordem, propiciando o laço de pertencimento à nação.
O principal fio narrativo desse período foi a ideologia da mestiçagem que, gestada no século XIX,
adentrou o século XX.
Nessa dissertação serão trabalhados alguns conceitos provenientes de outras áreas de
conhecimento. O conceito de “nação” usado nesse texto se fundamenta em Eric Hobsbawm, que o
compreende como unidade política, territorial e lingüística, disposta em um território com
fronteiras claramente definidas e habitada por uma população homogênea que compõe seu corpo
particular de cidadãos,
4
que, para se consolidar, cria seus símbolos e inventa suas tradições. O
emprego de nação será ampliado por Benedict Anderson em Comunidades imaginadas: reflexiones
sobre el origen y la difusión del nacionalismo, para quem a nação é vista de modo essencialista,
sendo apreendida como uma entidade política que promove um laço afetivo compartilhado entre
cidadãos. A simbologia nacional atua consolidando, no imaginário social da respectiva comunidade,
o laço de pertencimento, que é a força motriz para a integração do indivíduo à sociedade e o
alimento do nacionalismo na sociedade moderna. Cabe ressaltar que a manutenção dos laços de
3 CARVALHO, 2003. p. 23-4.
4 HOBSBAWM, 2000. p.273
9
identidade constitui uma das especificidades do nacionalismo e da nacionalidade.
5
Nesse ponto, colocam-se as indagações pertinentes ainda hoje em torno da
“questão indígena”, entre elas sobre como se preserva a identidade étnica, vivendo-se sob o Estado
Nacional. Uma discussão mais contemporânea sobre as fronteiras étnicas é bastante elucidativa, no
sentido de mostrar que tais fronteiras, ethnic boundary,
6
são efetivas na constituição da identidade
étnica, garantindo a sobrevivência dos grupos étnicos da ação deculturadora das sociedades
vizinhas. Nesse sentido, as fronteiras étnicas atuam na preservação da identidade, mais do que o
conteúdo cultural compartilhado. Isso, uma vez que é em relação a elas que são eleitos os traços
culturais e mecanismos de diferenciação entre o “nós” e os “outros”, no contexto intercultural. Elas
determinam a partir de alguns traços culturais identitários o fechamento do grupo.
7
A pertinência da introdução do conceito de fronteira étnica consistirá no fato de que a
emergência e a sobrevivência do ethos indígena estarão estreitamente relacionadas à afirmação e
reconhecimento dessas fronteiras, diante da interação entre sociedades indígenas e a sociedade
nacional. A essas fronteiras deve-se, por exemplo, a discussão sobre o reconhecimento dos direitos
indígenas, das “Nações sem Estado”.
A função da fronteira como barreira é estabelecer limites entre o “nós” e o “outro”,
como seres culturais e impedir o enfraquecimento da identidade do grupo, mediante o trânsito
desmedido entre membros de um e outro grupo étnico. Esta fronteira não é um limite rígido e varia
5 STOLCKE, 2002. p.411-39
6 Ethnic boundary é um conceito cunhado por Barth, que será traduzido por “fronteira”, conforme a disposição do
tradutor Élcio Fernandes. Espaço da emergência da alteridade, onde se afloram as identidades étnicas pelo confronto
entre nós e outros. (POUTGNAT & STREIFF-FENART, 1997. p.152). Também o termo Saliency é traduzido por
“realce”, e se refere ao rótulo étnico pelo qual o indivíduo se exprime, pelo qual se agrupa uma identidade étnica.
(POUTGNAT & STREIFF-FENART, 1997. p.166).Outros termos como Outsider,estrangeiro e in-group e out-group,
membros e não-membros, não foram traduzidos, desta forma, este trabalho, seguirá a conduta do tradutor. Se necessário
utilizá-los, os termos serão mantidos na língua original.
7 POUTGNAT & STREIFF-FENART, 1997. p.152-66.
10
de acordo com as circunstâncias contextuais.
O nacionalismo, no tocante a este trabalho, é visto como um discurso de cunho
ideológico que atua como fator de estabilização das nações modernas e permeia o processo de
afirmação identitária. Como fator de homogeneização cultural e estabilidade política, o
nacionalismo suscita uma relação orgânica com o território nacional, a qual conforma a identidade
coletiva, produzindo um fenômeno de natureza psicológica que reafirma a imagem pretendida de
nação, estabelecendo um viés afetivo. Representação esta que, compartilhada entre os sujeitos
cidadãos, é circunscrita pela temporalidade histórica e sofre modificações na medida que se tornam
distintos os contextos. Como discurso, o nacionalismo expressa as “visões de mundo” presentes na
sociedade, assim como a disputa das forças políticas pelo controle das diretivas do ente nacional.
Para Maria Montserrat Guibernau, a natureza afetiva entre cidadão e Estado permite que, embora o
nacionalismo seja um fator político, ultrapasse a isso, na medida em que se torna um fator cultural e
propicia a criação de uma identidade para os indivíduos que vivem e trabalham nas sociedades
modernas.
8
Dito dessa forma, o nacionalismo constitui uma linha referencial para a estruturação da
identidade nacional, mantida a idéia de pertencimento que proporciona uma comunidade imaginada,
como propõe Benedict Anderson
9
.
O conceito de Ethos” empregado nesta dissertação compreenderá a definição
dicionarizada: expressão de um grupo social ou indivíduo que a partir de seus traços identitários,
roupas, comportamento e cultura indica que seu portador é proveniente de determinado grupo
étnico, ou classe social.
10
.
“Etnia” está ligada à definição oferecida por Paulo Reis, na introdução do livro
8.GUIBERNAU, 1997. p56-60.
9 ANDERSON, 1993. p.23-5.
10 Verbete consultado na Grande Enciclopédia Larrousse Cultural
11
República das Etnias. Assim, na discussão que propõe, o autor evidencia que a dificuldade na
utilização deste termo reside no fato de que por muito tempo ele foi usado indiscriminadamente
para designar povos e / ou sociedades exóticas ou primitivas. Por isso, o termo serviu para designar
povos que estavam à margem das civilizações históricas. Atualmente, a classificação de etnia se
estende a grupos minoritários, que desejam manter seu modo de ser distintos de outros grupos da
cultura hegemônica. Nesta dissertação, a etnia será tomada nessa dupla acepção, das sociedades
tradicionais e de indígenas aculturados que mantêm vínculo identitário com o grupo, reafirmando a
etnicidade, por origem ou por opção.
Titus Benedikt Reidel
11
contribuiu para situar esse estudo em relação ao século XIX, ao
abordar sobre a existência de duas representações acerca do indígena, veiculadas pelo mundo
letrado, cada qual atendendo de maneiras distintas à formação do Estado Nacional Brasileiro,.
Um outro fio concatenador foi propiciado pelo estudo dos prefácios de Darcy Ribeiro,
por Haydée Ribeiro Coelho, o que permitiu uma possibilidade de interlocução entre os trabalhos de
Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre e Mário de Andrade. Também foram importantes para constituir a
estrutura dessa dissertação trabalhos de outros autores como Walnice Nogueira Galvão, Antonio
Candido, Roberto Schwartz, e Candice Vidal e Souza.
Para compor essa dissertação, o tema ethos indígena e nação será enfocado nos
contextos: século XIX, estendendo ao princípio do século XX; as décadas de 20 e 30; os anos 60 e
70 e a década de 90 do século XX. Nesses períodos, situo os textos Macunaíma (1928); Casa-
grande & Senzala(1933); Maíra (1976); e Oré Awé roiru’a ma (1994), cujas autorias são
respectivamente de Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Kaká Werá Jecupé.
Macunaíma, de Mário de Andrade, e Maíra, de Darcy Ribeiro, como textos literários,
trazem representações indígenas produzidas, durante o século XX, em contextos sociais
11 REIDEL,2000. p.206.
12
agitadíssimos e de grandes movimentações políticas, períodos estes nos quais a imaginação da
intelectualidade foi bastante profícua em reler os valores nacionais, instituindo novas representações
sobre a nação.
A representação indígena em Casa-grande e Senzala, mais especificamente “O indígena
na formação da família brasileira”, teve um importante papel para o tratamento do tema sobre a
incorporação indígena, o que permitiu estabelecer o contraponto às visões tanto de Mário de
Andrade quanto de Darcy Ribeiro. Nos anos 90, em um contexto posterior à promulgação da
Constituição Federal de 1988, marcado pela mobilização de minorias étnicas em prol de
reivindicações sociais, Oré Awé roiru’a ma, como uma narrativa indígena, mostra a visão do índio
sobre a sociedade nacional, incorporando sua voz ao discurso sobre a nação pela via do texto
assinado.
Considerando o exposto, nessa dissertação, procurarei estudar a variação da
representação do indígena em textos e contextos diferenciados da vida nacional, durante o século
XX, tomando por base os discursos introduzidos sobre os indígenas em nossa memória cultural
após o Romantismo.
12
A proposta deste trabalho será mostrar que a imagem do indígena foi relida
em múltiplas representações, sendo alterada em função do contexto sócio-histórico, de modo a
atender a distintas maneiras de olhar a nação. Esclareço que, para estudar o tema proposto, realizarei
inúmeros recortes, considerando o vasto corpus escolhido.
Para cumprimento dos objetivos propostos, essa dissertação será composta de três
capítulos.
O primeiro capítulo apresentará a representação do indígena realizada no Romantismo.
Paralelamente a esse aspecto, será enfocado o projeto nacional esboçado pelos textos de viajantes
dezenovistas, apoiados posteriormente pelo Instituto histórico e geográfico do Brasil (IHGB).
12 A respeito do Indianismo, sob uma perspectiva histórica, o artigo de Walnice Nogueira Galvão, O indianismo
revisitado, foi fundamental para o meu percurso.
13
No segundo capítulo desta dissertação, abordarei a representação indígena à luz de dois
movimentos que motivaram a renovação do pensamento nacional (o Modernismo e o Regionalismo
nordestino, nas décadas de 20 e 30 do século XX). Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e
Macunaíma, de Mário de Andrade, foram duas obras representativas, que retrataram as contradições
desse período.
O terceiro capítulo pretenderá estabelecer uma articulação entre representação do
nacional como forma de percepção da nação e sua relação com a sociedade indígena no romance
Maíra, e, ainda, contará com um breve estudo do relato autobiográfico do indígena Kaká Werá
Jecupé, escritor indígena, intelectual e mediador cultural que trará uma visão particular da
sociedade nacional.
Para o primeiro capítulo será realizada uma leitura, relevando aspectos da representação
indígena, advinda do contexto romântico e de alguns dos textos da historiografia nacional do século
XIX e do início do XX.
Para o segundo capítulo tomarei como ponto de partida dois textos considerados
inovadores Macunaíma e Casa-grande & Senzala. Para o estudo do ethos indígena e o nacional,
revisitarei alguns textos que elucidarão aspectos dessas obras, em diferentes áreas do saber: críticas
literária, sociológica e antropológica.
Para o terceiro capítulo versarei sobre Maíra e Oré awé roiru’a ma, mantendo, na
medida do possível, a mesma metodologia utilizada para o segundo capítulo.
14
1CAPÍTULO
O ÍNDIO NO CONTEXTO DEZENOVISTA
1.1 A nação e o discurso nacional
1.1.1 O conceito de nação
Segundo Eric J. Hobsbawm
13
, “nação” é um conceito político datado do século XIX.
Para este historiador, tal termo aparece no vocabulário político após a era das revoluções,
principalmente a partir de 1830, com a consolidação do estado burguês. O historiador salienta que,
embora o termo “nação” remontasse à época clássica e fosse palavra vernácula em muitas línguas
latinas
14
, apenas na modernidade, após a formação dos Estados Nacionais, ganhou a conotação
política, desdobrando-se em torno das noções de unidade política, territorial e lingüística, dispostas
em um território com fronteiras claramente definidas e habitadas por uma população homogênea
que compõe seu corpo particular de cidadãos.
15
Habermas ilumina a questão sobre a constituição do Estado Nacional, mostrando que,
com a criação dele, adveio a idéia de identidade nacional, o que estimulou um novo tipo de
integração social, atuando como uma espécie de “solidariedade” compartilhada entre os cidadãos, o
que permitiu a incorporação de uma consciência coletiva, ativada pelo nacionalismo, e ajudou a
13 HOBSBAWM, 2002. p.31.
14 Marilena Chauí enfocou a idéia de nação como “semióforo”, ou seja, constitui como um objeto de celebração, por
meio da qual representações, instituições e monumentos celebram algo comum a todos, conservando e assegurando
o propósito de comunhão e unidade de comunhão. (CHAUÍ, 2000. p.12-13.).
15 HOBSBAWM, 2000. p.273.
15
promover a organização sócio-política, na forma deste Estado
16
.
Para a cientista política Maria Montserrat Guibernau,
17
o pensamento francês apresenta
as questões de nação, priorizando a relação legal entre Estado e cidadão. Para a socióloga, o novo
contexto pós-Revolução Francesa propiciou que o homem comum, visto como cidadão,
desempenhasse novos papéis sociais, entre eles o de participar ativamente da vida pública nacional,
exercitando certos direitos e deveres políticos em relação à nação, diferentes daqueles até então
praticados no Ocidente. Maria Guibernau ressalta, no entanto, que a vinculação política entre
cidadão e Estado não seria suficientemente estável, na sociedade moderna, sem o cumprimento
dessa legitimação no plano afetivo, instância motivada pelo nacionalismo. Para ela, esta foi a
contribuição do pensamento alemão à concepção legalista francesa sobre as bases de construção da
Nação Moderna.
18
A cientista política, ao procurar definir a nação, concebe-a como grupo humano
consciente de formar uma comunidade e partilhar uma cultura comum
19
, envolvendo um princípio
de unicidade, o qual se afirma em cinco dimensões que são psicológica, cultural, territorial, política
e histórica. A primeira refere-se à consciência de pertencer a um grupo e é expressa pelo sentimento
de nacionalismo; a segunda, relida a partir do nacionalismo romântico, toma a cultura e não o
Estado como ponto primordial, evocando um estilo de vida especial relacionado à idéia de alma ou
vida de povo, (o “volksgeist” hegeliano), inspirador do caráter nacional; a terceira, assinalando o
sentido de pátria e enraizamento, estabelece ligação entre sujeito e território; a quarta dimensão é
relativa ao sistema de representação política e à forma de governo; e, por último, tem-se, na
dimensão histórica, a formulação de um passado coletivo, obtido a partir da seleção e da releitura de
fatos e eventos ocorridos, da construção de monumentos e da sagração de heróis.
16 HABERMAS, 2000. p. 300 -11.
17 GUIBERANU, 1997. p.55-74.
18 GUIBERNAU, 1997. p.64.
19 GUIBERNAU, 1997. p.56.
16
Para Maria Guibernau, a nação se diferencia do Estado pelo fato de este ser uma
instituição legal (e não necessariamente tradicional), por operar o conceito fronteiras (em
substituição da idéia de limites), e por apresentar em seu organismo instituições que o representem,
leis de cidadania, princípio de soberania e, por fim, com base no exercício coercitivo do poder,
criando dispositivos para tratar individualmente os cidadãos nascidos ou habitantes no território
nacional. Desta forma, o nacional fica compreendido como um discurso institucionalizado sobre a
nação e o nacionalismo como expressão de apreço à mesma.
A construção do Estado Nacional Brasileiro, durante o século XIX, fez parte desse
fenômeno que envolveu a formação dos Estados Nacionais, no Ocidente, sendo particularmente
influenciado, como mostra José Murilo de Carvalho,
20
pelos ideais revolucionários franceses e pelo
liberalismo econômico; pelo constitucionalismo inglês de Benjamin Constant, pelo direito
administrativo francês e outras fórmulas jurídicas anglo- americanas como justiça de paz, júri e uma
certa descentralização provincial.
21
1.2 Os discursos sobre o nacional
Os discursos sobre o nacional atendem a uma construção identitária que advém da
necessidade de serem estabelecidos vínculos que tornem orgânica a relação entre cidadãos e nação.
Vários são os elementos que ativam a identidade nacional: o nacionalismo que é a expressão
emotiva sobre a nação; a própria idéia de identidade nacional que se alimenta por aquela de
singularidade e diferença culturais e a nacionalidade que se manifesta a partir de leis de
nacionalidade,
22
colocando questões como ser brasileiro em relação ao ser estrangeiro. Permeando
essa rede ideológico-discursiva, a cultura nacional se estabelece por meio da revitalização de
20 CARVALHO, 2003. p.23-33.
21 CARVALHO, 2003. p.23.
22 STOLCKER, 2002. p.415-6.
17
tradições cristalizadas e, ainda, pelo uso da língua e dos laços de sangue e solo comuns.
23
Sobre tais
tradições Eric Hobsbawm observa que:
(...) as nações modernas apontam ser o oposto do novo, ou seja, estar enraizada na
mais remota antiguidade e o oposto do construí do, ou seja, ser comunidades
humanas 'naturais' o bastante para não necessitarem de nenhuma definição que não a
defesa dos próprios interesses.
24
Nesse sentido, a cultura e a simbologia nacionais criam uma rede constituída de
elementos catalizadores do sentimento de pertencimento à nação, fortalecendo a identificação dos
cidadãos como membros da comunidade nacional, reforçando suas fronteiras. A literatura, a história
e a imprensa assumem importante atribuição nesse sentido.
No Brasil, a literatura romântica abarcou o projeto político da construção nacional e,
folhetinescamente, penetrou nos lares, conquistando a sociedade, ainda, nesse momento, a
historiografia nacional ganhou vulto sob o primado dos institutos históricos e geográficos, entre eles
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
25
Sob a égide desses institutos, muitos textos
científicos e historiográficos, além de crônicas e relatos enfocando o Brasil, foram produzidos e
publicados.
No que se refere ao projeto nacional dezenovista, a narrativa histórica cumpriu o papel
estrutural de dar prosseguimento à fundação originária da nação, aliando a esta a noção de tempo
linear e progresso.
26
A narrativa oficial da nação se cumpre em estreita relação com as criações dos
institutos de História, principalmente o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que
congregou muitos colaboradores importantes. Em 1840, o IHGB ofereceu um prêmio para o melhor
plano de escritura da História do Brasil. Karl Philipp Von Martius, viajante naturalista que estudava
o Brasil, venceu o mencionado concurso, com o texto Como se deve escrever a história do Brasil,
23 GUIBERNAU, 1997. p.65-6.
24 HOBSBAWM, 2002. p.22-3.
25 VENTURA, 1991. p.29-43.
26 ROCHA, 1999. p.43-7.
18
publicado pela Revista do IHGB em 1845
27
.
Nesse texto, Martius preconizava que:
Qualquer um que decidir escrever a história do Brasil, um país que tanto promete,
nunca deve perder de vista os elementos que contribuíram para o desenvolvimento
do homem. Esses elementos diversos vêm das três raças (...) a população atual
consiste em uma mistura nova, cuja história tem portanto uma história muito
particular(...) nunca nos permitiremos duvidar que a vontade providencial tenha
predestinado essa mistura no Brasil
28
Como ressalta José Carlos Reis,
29
para Von Martius, o autor dessa História do Brasil
deveria privilegiar a mescla de raças que singularizava a nação e, também, fazer uma história da
“unidade” brasileira.
30
Com este enunciado, Martius cria as bases para o mito da democracia racial
brasileira.
31
O conteúdo histórico proposto pelo naturalista abrangia os temas mestiçagem e vida
portuguesa no Brasil, esta enfatizando a casa do colono, como viviam e quais eram suas relações
pessoais. O historiador deveria, ainda, mostrar ao leitor a forma de atuação da Igreja, o processo de
escolarização e as circunstâncias que envolviam a introdução das teorias científicas e da literatura
européias no país. Quanto ao estudo descritivo das raças, Martius era vago quanto ao índio e muito
breve em relação ao negro,
32
são palavras de Von Martius:
Enfim mostrar fundamentalmente a vida portuguesa no Brasil. Quanto às demais
raças, o historiador cristão, filantrópico, humano e profundo não poderá deixar de
abordá-las. Deverá defender essas raças desamparadas. Se o português é a raça mais
importante, as raças etiópica e indígena reagiram positivamente.
33
Adolf Varnhagen é o historiador a quem é conferida a tarefa de escrever a proposta
sugerida por Martius.
34
Segundo Manuela Carneiro da Cunha, Martius e Varnhagen, conforme se
depreende de suas obras, eram influenciados pela doutrina de Cornélius de Pauw (1768), a qual
aplicava ao homem americano, a teoria de degenerescência precoce. De Pauw estendeu para o
27 REIS, 2003. p.26-7.
28 MARTIUS, apud SOMMER, 2004. p.179-80.
29 REIS, 2003. p.26-7.
30 REIS, 2003. p.26.
31 Idem.
32 Idem.
33 MARTIUS, apud REIS, 2003. p.29-30.
34 Varnhagen, historiador oficial, foi incumbido de escrever esta história, em História geral do Brasil (1855).
19
homem americano a teoria de Buffon, segundo o qual, na América, a natureza extinguia sem
amadurecer. Sua teoria foi uma das principais linhas ideológicas racialistas que persistiram na
Europa e no Brasil.
Diferenciadamente do que ocorre na literatura, em que a imagem veiculada do Brasil é
esteticamente idealizada;
35
a partir do olhar etnocêntrico de viajantes estrangeiros, naturalistas,
cientistas, artistas e etnólogos vai sendo construído um outro esboço da sociedade que se abre como
laboratório para a ciência. Conforme a observação de Roberto Ventura:
O Brasil é pensado segundo os postulados de uma história comprometida com a
revelação das origens” e com a delimitação de uma identidade própria, capaz de
produzir uma visão homogênea do país, partilhada pelas elites. A nação se constrói,
portanto, no movimento ambíguo entre identidade e diferença, entre a reprodução da
experiência européia e a sua relativa diferenciação nos trópicos. (...) O louvor da
natureza foi central no projeto de construção da nação, ao afirmar a unidade
‘natural’ da pátria, contra as tendências separatistas, posteriores à independência.
36
Neste contexto, as representações produzidas enfocam a singularidade da nação e
tornam-se constituintes da identidade nacional, mas, quanto ao teor, reproduzem o modelo europeu
de sociedade.
A propósito da homogeneização discursiva produzida por ocasião da formação dos
estados nacionais latinoamericanos, Ana Pizzarro, em La emancipación del discurso
37
, trabalho no
qual trata da emancipação do discurso literário na América Latina, afirma que a Literatura, “tendo
assumido o papel de legitimadora” das nações latino-americanas recentes, atuou de maneira a
formalizar certos sentidos para a Nação. Isto se verifica porque a literatura, juntamente com a
historiografia e o mass media,
38
no século XIX, produziram discursos e símbolos, que se
institucionalizaram no imaginário social, visando a incorporar nele representações que
promovessem uma narrativa de nação.
39
Narrativa esta que procurava garantir a crença em um
35 Como assinala Alfredo Bosi,dado ao complexo ideo-afetivo dos românticos, eles não temiam o exagero sentimental,
nem a ênfase em apologizar pátria, pois para eles, tal concepção era estética e resultante da saturação mental de
projeções e identificações violentas. (Bosi, 1974. p.186).
36 VENTURA, 1991. p.43.
37 PIZARRO, 1998. p.21-32.
38 HALL, 2003. p.52.
39 HALL, 2003. p.52-6.
20
passado comum, o sentimento de pertencimento partilhado, uma origem das instituições nacionais,
além de manter a hierarquia social e o domínio do branco naquela sociedade.
Coube à intelectualidade, o papel de instituir uma imagem de nação que inspirasse toda
essa sorte de acontecimentos. Ao compor um quadro sobre a emancipação do discurso literário na
América Latina, Ana Pizarro, crítica literária chilena, ressalta que a intelectualidade latino-
americana obteve sua formação inspirada no “enciclopedismo” europeu, movimento intelectual que
assinalou as diretrizes para a constituição dos projetos nacionais europeus.
A concepção dos projetos nacionais latino-americanos mantém grande aproximação
conceitual em relação àqueles instituídos na Europa. Dessa forma, a idéia do novo, como projeto
político, nasce internacionalizada pela adesão ideológica ao projeto do “branco europeu”, deixando
à margem da representação, no corpo nacional, grupos sociais particularíssimos das sociedades
latino-americanas, compreendendo segmentos numerosos da população alijados do processo de
construção nacional.
Conforme mostra, ainda, Ana Pizarro,
40
por detrás da singularidade que a idéia de nação
inspira e que a identidade nacional requer, há um impulso homogeneizante que reduz a expressão
das vozes dissonantes. Para ela, no contexto latino-americano, tal impulso, além de recalcar a voz
do “outro”, relega as populações indígenas e as camadas populares emergentes para as margens da
representação do nacional.
No caso brasileiro, como assinala o historiador José Murilo de Carvalho, com a
instabilidade política das primeiras décadas após a Independência, a idealização de um Projeto
Nacional foi em princípio postergada. Entretanto, Manuela Carneiro da Cunha comenta sobre um
projeto proposto nos primeiros anos de independência, no qual o indígena aparece contemplado.
Esse projeto, que teve como autor José Bonifácio de Andrada, preconizava a incorporação do
indígena à sociedade nacional e a compra de suas terras pelo Estado. Contudo, em função dos
40 PIZARRO, 1998. p.24.
21
obstáculos políticos, tal projeto foi olvidado.
41
Assim, somente durante o Segundo Reinado, o
indígena aparece integrado ao projeto nacional pelo viés do Romantismo, sobretudo em José de
Alencar.
42
Para João Cezar Rocha, os românticos descobriram na natureza a forma de compensação
para a impossibilidade de se apresentar um modelo de nação pautado na tradição histórica, devido
ao passado colonial.
43
Visto dessa forma, o indígena surge como um dos símbolos dessa
nacionalidade. A ancestralidade indígena, anterior à chegada do branco colonizador, associada à
tradição guerreira, foi ao encontro dos ajustes de que o Romantismo brasileiro necessitava, para
constituir um símbolo neutro, que se difundisse no imaginário nacional. Assim, como aponta
Rocha:
A descrição maravilhada da natureza tropical serviria, portanto, como compensação
pela debilidade das tradições históricas e, em boa medida, explicava a adesão dos
românticos ao indianismo. O índio era o elemento que fornecia o vínculo orgânico
entre a natureza tropical e uma forma de vida determinada. Sobretudo uma forma de
vida propriamente brasileira.
44
A imagem do indígena, representada como símbolo da nacionalidade, se cristaliza nas
narrativas literárias que introduzem uma idéia de fundação. Isto não quer dizer que a representação
indígena tenha surgido na literatura, dita brasileira, naquele momento, mas que, de fato, há uma
datação no sentido da apropriação da imagem do indígena para fins pragmáticos de se instituir um
discurso sobre a nação.
Lilia Moritz Schwarcz ressalta, a propósito da literatura romântica, que muito pouco se
sabia a respeito dos indígenas, naquele momento, mas, na literatura, os romances épicos
apresentavam os indígenas como heróis, mantendo a imagem idílica da natureza virgem como
cenário.
45
A antropóloga mostra que, com o passar do tempo, a imagem mítica do indígena
41 CUNHA, 2002. p.131.
42 CARVALHO,1990. p.23.
43 ROCHA, 1999. p.49-50.
44 ROCHA,1999. p.51.
45 SCHWARCZ, 2003. p.131.
22
ultrapassa as fronteiras do discurso literário e ganha maior amplitude na sociedade, estabelecendo-
se também nos discursos político e de propaganda. No âmbito político, o índio deixa de ser um
modelo estético e para se tornar a própria imagem da realeza.
46
A estudiosa salienta, a propósito da interpretação romântica, que, naquele momento, os
índios eram representados como brancos e a realeza jamais fora tão tropicalizada, o que atendia bem
às aspirações daquela elite que se indagava sobre sua identidade, rejeitando, para efeito de
representação, o negro escravo e o branco colonizador. Nesse sentido, o indígena, lido como o
sujeito rousseauniano, do “Bom Selvagem”, atendeu bem aos interesses da elite. Segundo ainda
Lília Moritz Schwarcz, a pátria sem ser nação, no Brasil os símbolos ‘surgiam’ na mesma
velocidade em que se consolidava a imagem do Império. E, assim, por meio do indianismo,
realizava-se o velamento da colonização.
47
Datam daquele período várias representações iconográficas que estabeleciam a relação
entre as imagens do indígena romantizado e a do imperador.
48
As representações variavam em torno
do mesmo tema. Eram índios coroando D. Pedro II, ele próprio vestindo trajes indígenas e até
mesmo o indígena ocupando o lugar do imperador no trono, como é o caso da escultura de Manuel
Chaves Pinheiro, datada de 1872, denominada “Índio simbolizando a nação brasileira.
49
Assim, foi-se constituindo, como simbologia nacional, um índio fabricado pela
imaginação do branco e que, na realidade, é desprovido de voz e de olhar na representação da
nação. Como ressalta o já citado Roberto Ventura, a ‘nação brasileira apresenta um componente
excludente ao estar restrita aos brancos, representantes da civilização no Novo Mundo, o que não
inclui negros e índios.
50
46 SCHWARCZ, 2003. p.148.
47 SCHWACZ, 2003. p.148.
48 SCHWARCZ, 2003. p.132-144.
49 O indígena aparece representado com uma postura semelhante à do imperador, em sua imagem oficial, tal como
fora retratado por Pedro Américo, na sala do trono. Simbolizando a nação, aquele usa o cocar está na cabeça e o
manto imperial encobre a nudez do indígena. (SCHWARCZ, 3003, p.147)
50 VENTURA, 1991. p.43.
23
Ao contrário, no plano simbó lico-discursivo, o indígena apresenta o papel aglutinador
da idéia de nação e seu caráter fundacional encenará uma primeira face do nacionalismo em relação
ao lugar onde se vive. As circunstâncias que tornaram o indígena romântico um símbolo e o retorno
ao universo pré-cabralino um mito de construção identitária da nação brasileira moderna permitiram
que a imagem cristalizada do indígena imaginário rousseauniano fosse também atravessada por
outros discursos como o civilizatório, o hierárquico e o racial. Próprio dessa representação está a já
mencionada hierarquia colonial que confere lugares na sociedade, colocando o indígena a serviço do
branco, promovendo ainda o mascaramento do negro nesta primeira representação da sociedade
brasileira.
O indígena mí tico cria uma representação do índio que adentrará no espaço simbólico
da nação moderna, atuando de forma a encobrir os conflitos, apagando a diferença.
O mito de fundação, como ressalta Marilena Chauí,
51
tem por função oferecer um
repertório de representações que interpretam a realidade, explicando-a e situando-a. O caráter
fundacional relaciona-se ao fato de remeter a um momento imaginário, perene e fora do escopo da
história, que vem a se instanciar em um presente continuado. As representações constitutivas do
mito de fundação, no entanto, são reorganizadas a cada momento do processo de formação histórica
tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna quanto pela ampliação de seu sentido.
52
A relação
entre mito fundacional e a renovação do mesmo, diante da evolução do processo histórico, em uma
sociedade letrada, pode ser vista através da capacidade da literatura em produzir narrativas que
refazem os mitos ao longo de diferenciados contextos históricos, tornando possível ao mito
constituir-se como elemento construtor da identidade e, ao mesmo tempo, um importante
instrumento de investigação da sociedade.
Do ponto de vista da construção das identidades, das nacionais e individuais, Zilá
51 CHAUÍ, 2000. p.9-10.
52 CHAUÍ, 2000. p. 9-10.
24
Bernd,
53
elucida alguns aspectos. A ensaísta ressalta que o processo identitário tanto em relação à
nação quanto ao indivíduo é um processo inacabado, isto por estar se abrindo sempre a novas
interações. Portanto, dessa forma, as identidades devem ser pensadas em um contexto dinâmico.
Para exemplificar esse aspecto, Zilá Bernd parte de dois mitos: o de “Ulisses” e o de
“Jasão” que apontam, respectivamente, para as idé ias de fixidez e de deambulação. No que se refere
ao primeiro mito, Zilá Bernd mostra que Ulisses manifesta o desejo do retorno, o que configura uma
estrutura fixa, de raiz única, que, no caso da nação, significa constituir uma cultura enraizada, coesa
e homogênea.
Ainda segundo a ensaísta, a identidade, relacionada à fundação nacional, acena para
uma cultura e nação homogêneas, sustentadas em uma única raiz. Para a mesma autora, no âmbito
da literatura brasileira, em Iracema (1865), o que se mostra é um olhar obsessivo em relação ao
enraizamento da idéia nação, que por se mirar no modelo europeu, é excludente em relação ao negro
e ao indígena real.
54
Quanto ao mito de Jasão, Zilá Bernd explica que esse mito é tributário do modelo
rizomático, tendo como base a idéia de “rizoma”, segundo Delleuze e Guattari. Nesta abordagem, o
deslocamento é a chave da construção identitária e a errância engendra uma perspectiva de
identidade como processo dinâmico, sempre propenso a novas interações e ao deslocamento.
55
Nesse mito, o espaço originário aparece diluído diante da emergência de novos sítios, abrindo-se à
possibilidade de abertura ao desconhecido, evocando a diluição de fronteiras, se tomado como
contraponto ao de Ulisses.
Segundo Lília Moritz Schwarcz, como representação ainda, a referência mítica do
indígena vai para além da literatura, atingindo outras esferas como aquela do discurso político e de
propaganda. O índio que representava a imagem oficial da realeza apresentou também uma
53 BERND, 2002. p.36-46.
54 BERND, 2002. p.38.
55 BERND, 2002. p.37.
25
caracterização satírica para a contestação do Império. Apropriando-se da mesma simbologia, os
opositores do monarca procuraram nela os motivos para dessacralizar a figura imperial. Em seu
livro, As Barbas do Imperador,
56
(1998) a antropóloga ressalta que Angelo Agostini, na Revista
Ilustrada, mostra o indígena também como símbolo “da nação que é enganada”.
57
A representação indígena, nesse contexto, sofre alterações em função das teorias
científicas vigentes. As noções de evolução e transformação, presentes na concepção histórica,
reiteram o olhar etnocêntrico do europeu e, evocando a idéia de atraso dos povos nativos, permitem
que tais representações se infiltrem nas narrativas históricas que alimentarão o imaginário social
brasileiro. Manuela Carneiro da Cunha comenta que a conceituação de povos primitivos parte desta
confluência teórica, tornando ainda pior a compreensão do indígena do ponto de vista do mundo
ocidental, pois engendrou uma série de equívocos valorativos e práticas preconceituosas.
Há, em Martius, uma perspectiva equivocada em relação aos indígenas, como pode ser
depreendido a partir da crítica presente em História da Literatura, de Sílvio Romero. Neste texto, o
crítico aponta os equívocos presentes nas concepções de Martius, assim: quando os portugueses
aqui se estabeleceram acharam os indígenas em porção tão diminuta e em tão profundo
aviltamento, que nas suas recém fundadas colônias podiam se desenvolver sem se importar dos
autóctones.
58
Além disso, Sílvio Romero ressalta que o bávaro compreendia o estágio social do
indígena brasileiro como sendo o de decadência:
(...) não podemos duvidar que todas as tribos que nela sabem fazer-se inteligíveis
[língua tupi] pertençam a um único e grande povo, que sem dúvida, possuía a sua
história própria, e, que, em um estado florescente de civilização, decaiu para o atual
estágio de degradação e dissolução.
59
Também em Varnhagen, como mostra Manuela Carneiro da Cunha, está presente esta
concepção sobre o indígena, pois, como historiador, afirma a impossibilidade de escrever-se a
56 SCHWARCZ, 2003. p.125-155.
57 Idem. p.149.
58 MARTIUS apud ROMERO, 1980. p.1536.
59 MARTIUS apud ROMERO, 1980. p.1534.
26
História Indígena, alegando que “de tais povos na infância, não há história: há só etnografia.
60
Em
Varnhagen, ainda, conforme José Carlos Reis, os indígenas eram vistos como “nômades”,
“violentos”, mantendo guerras de extermínio entre si. O autor da obra Descrição geral do Brasil
designava os indígenas como “gentes vagabundas” que não nutriam sentimentos de patriotismo,
eram uma só raça e falavam dialetos de uma só língua.
61
Quanto à índole, Varnhagen acrescentava
que, vivendo no estado selvagem, eram “homens-fera”, cercados de feras, uma alcatéia de
selvagens e que, por isso, não desenvolviam determinadas virtudes como a amizade, a gratidão e a
dedicação. Eram “falsos”, “infiéis”, “inconstantes”, “ingratos”, “desconfiados”, “impiedosos”,
“despudorados”, “imorais”, “insensíveis” e “indecorosos.
62
Como mostra a historiadora Manuela
Carneiro da Cunha, Varnhagen, ao citar o senador Dantas de Barros Leite, reitera as palavras do
mesmo:
No reino animal há raças perdidas, parece que a raça índia, por meio de sua
organização física, não podendo progredir no meio da civilização, está condenada a
esse fatal desfecho. Há animais que só podem viver e reproduzir no meio das trevas;
e se os levam à luz sucumbem.
63
Assim, o índio visto de modo tão marginalizado pela intelectualidade e pela ciência, ao
ser tomado como indivíduo primitivo, deixa as elites seguras em relação ao seu aspecto hierárquico
de domínio. Afinal, a convivência entre brancos e índios sempre foi conflituosa, não melhorando
nem mesmo com a publicação da “Carta Magna de 1802”, outorgada pelo rei D. João VI que
conferiu ao indígena o direito sobre a terra tradicional
1.2.1 : Os índios na formação do discurso da nacionalidade uma referência
a José de Alencar
60 VARNHAGEN, apud. CUNHA, 2002. p.11.
61 Fato esse desmitificado dentre outros por Karl Von Den Steinen, cientista que estudou as línguas indígenas durante
as duas expedições que fez ao Brasil. Este cientista montou o esquema de separação dos troncos lingüísticos das
línguas indígenas brasileira, tal como é utilizado ainda hoje. Comparar línguas e culturas era a base metodológica de
seu estudo sobre evolucionismo social.
62 REIS, 2003. p. 35-37.
63 CUNHA, 2002. p. 135.
27
José de Alencar foi um escritor que muito atuou no sentido de construir um projeto
literário conjugado ao nacional.
64
Nesse sentido, ele escreveu textos fundacionais que trataram da
nação, evocando o passado indígena.
65
A trilogia composta por O Guarani (1857), Iracema,(1865), e
Ubirajara, (1875) cumpre a reescrita da história da fundação da nação a partir de uma cronologia
reversa. Em O Guarani, Alencar trata das disputas setecentistas entre indígenas e colonizadores,
enfocando a dicotomia índio manso e índio bravio; em Iracema, há a celebração do “outro” pelo
encontro mítico entre o indígena e o colonizador, e, por fim, em Ubirajara, ocorre o enfoque do
Brasil anterior à chegada do colonizador.
66
Nas narrativas fundacionais alencarianas, como aponta Dóris Sommer, o componente
indígena idealizado foge à dicotomia de heroísmo e auto-sacrifício, como ocorre na obra A
Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, de 1856. A autora mostra que, em
Gonçalves de Magalhães, escritor mais prestigiado da época e queridinho da corte, em seu poema
épico, tece o elogio do valor nativo, ressaltando, em sua representação, o extermínio de seus heróis
indígenas em guerras que providencialmente abrem passagem para a fundação do Rio de Janeiro.
Segundo a autora, Alencar enfrenta as posições de Magalhães que estavam consonantes com
Francisco Adolfo Varnhagen, escritor oficial da História do Brasil financiado pelo IHGB que
preconizava, em seu Memorial Orgânico (1851), que índio bom é índio morto, se não estiver
trabalhando para um europeu.
Em crítica aberta à epopéia de Magalhães, José de Alencar ressalta que a referência à
bravura do indígena guerreiro é anacrônica, pois, naquele contexto, a independência heróica já não
era mais o foco da nação. Além disso, o romancista também defendia que a luta da “civilização
versus a barbárie” era uma história de violência comum a toda América e a diferenciação do
64 José Murilo de Carvalho atenta para o fato que com as dificuldades da Regência, o tema do Projeto Nacional, de
José Bonifácio voltou a ser retomado pela via literária com José de Alencar, em O guarani. (CARVALHO, 2003.
p.22.)
65 DÓRIS SOMMER, em Ficções de Fundação, estabelece uma leitura sobre a literatura de fundação na América
Latina relacionada ao projeto nacional. No caso brasileiro, ela destaca José de Alencar e o Indianismo Brasileiro.
66 ROCHA,1995. p.56-62.
28
processo brasileiro estava na natureza mestiça da descendência de brancos e índios. Tanto em O
Guarani, cuja trama se desenvolve no Rio de Janeiro quanto em Iracema, o encontro amoroso, que
aproxima os protagonistas da história, tem a fundação nacional como a principal temática.
67
Segundo mostra Maria Cecília Boechat, José de Alencar, em Como e porque sou
romancista, respondendo a uma polê mica sobre a “natureza da representação” e a questão da
representação indígena, esclarece que o índio presente em O guarani é um índio ideal, não sendo
sua intenção representar o indígena real ou tampouco o “grosseiramente” mostrado pelos cronistas.
No entanto, o romancista ressalta que a licença para imaginação ficcional não impede o romance de
contemplar uma situação histórica.
68
Silviano Santiago, por outro lado, apresenta o romance alencariano na forma de uma
alegoria, que retrata as questões sociais fundamentais presentes naquele período. Segundo o mesmo
crítico, em O Guarani, o poder, representado pelo fidalgo D. Antônio, é previamente estabelecido
devido à rígida hierarquia da organização social que o estrutura. A esse respeito, o crítico afirma
que:
Como a hierarquização é sólida e inquestionável, pois advém de valores categóricos
tomados emprestados à rigidez da estratificação social européia, cada um sabe o
lugar que ocupa e que é o certo. O imobilismo social congela todos os elementos da
comunidade dos brancos e mestiços.
(...) sem dúvida não existe maior elogio social à figura do indígena que este, maior
isenção de preconceito contra sua figura durante a colonização portuguesa nos
trópicos. Dentro de uma hierarquia sócio-econômica hierarquizada e rígida é o
autóctone o único indivíduo que tem poder de mobilidade.
69
Ao expor a questão, Silviano Santiago mostra que a hierarquização, presente na
sociedade colonial e que está na base da sociedade patriarcal alencariana, coloca o branco no
principal local da hierarquia social. Acrescenta Santiago que a única exceção, naquela sociedade,
feita para um não-branco, era destinada ao indígena. No entanto, é preciso ressaltar os limites dessa
67 SOMMER, 2004. p.16-17.
68 BOECHAT, 2003. p.31.
69 SANTIAGO, 2002. p.31-2.
29
observação porque o indígena alencariano não é o indígena real, este marginalizado socialmente,
sem mobilidade e representado em vias de extinção, mas o indígena imaginado para melhor fundar a
tradição nacional. Fato relevante apontado por Santiago refere-se à ausência da representação do
negro nos romances fundacionais indianistas.
(...) O romance se fortalece com a heroicidade tanto do fidalgo/colono quanto do
autóctone /selvagem, depositário de todos os valores morais de liberdade.
(...) se o romance caracteriza a situação do homem livre na ordem escravocrata, de
que Antônio Candido foi o intérprete mais feliz, se o romance esconde por trás de
um telão ideológico a mancha da escravidão negra, não há dúvida de que ali, naquele
conjunto disparatado, está, apesar de tudo uma imagem escrita de Brasil como uma
comunidade imaginada, para citar a expressão de Benedict Anderson.
70
É possível, a partir desta mirada, ponderar que um imaginário nacional não se
expressa apenas pelas representações que ele produz, mas pelas muitas ausências de representações
que ele deixa de contemplar.
1.3 : A sociedade indígena e a nacional conflitos
Na realidade, como evidencia Darcy Ribeiro, em A formação do povo brasileiro, a
práxis violenta do processo civilizatório, os implantes coloniais e as epidemias concorreram para o
morticínio de milhares de indígenas.
71
Esses fatos não aparecem na representação indígena no
interior dessa sociedade alencariana. A dominação brutal tem, nos “Botocudos”, o contra-exemplo
dessa representação romântica, na interaç ão entre sociedade nacional e indígena. Esses indígenas
constituíram um povo que vivia na região do vale do Mucuri, uma das últimas áreas da Mata
Atlântica a ser ocupada pelo homem dito civilizado
72
. Eram malquistos porque tinham a fama de
70 SANTIAGO, 2002. p.33.
71 RIBEIRO, 1997. p.47.
72 Os remanescentes dos botocudos são os povos Krenac, da região de resplendor em Minas Gerais. São versos de
Márcio Krenak: Esses invasores precisavam de gente para trabalhar/ e não tiveram vergonha de os índios
escravizar. E assim fizeram com os índios, também o que fizeram com os negros/ se os escravos queriam parar, com
o chicote faziam continuar... /E tiveram as missões religiosas que queriam amansar com suas rezas, com seus cantos
fazer os índios trabalhar. /mas os índios revoltados, resolveram se organizar, se reuniram também aos negros e
30
serem antropófagos ferozes, como Regina Horta Duarte
73
evidencia. Em meados do século XIX,
ainda segundo esta historiadora, por ação da “Companhia de Navegação e Comércio do Vale do
Mucuri”, criada por Teófilo Otoni, com o apoio do Imperador, teve início o desbravamento efetivo
da região.
Para contextualizar o que ocorreu, Regina H. Duarte, com base nas considerações de
Manuela Carneiro da Cunha
74
, salienta que, naquele momento, e mesmo antes dele, a sociedade
imperial voltou seu interesse destinado ao aliciamento da mão-de-obra dos indígenas para o da
ocupação de suas terras. Sem qualquer preocupação, os “desbravadores”
75
removiam-nos como
obstáculos, empregando para tanto, soldados e fazendeiros, por meio de práticas de máxima
crueldade.
Teófilo Otoni, consternado com o processo, alegava que a prática vigente era o oposto
do que deveria ser o processo civilizador. São seus os relatos de que os soldados caçavam os índios
como animais e ofereciam suas carnes para os cachorros comerem; chacinavam as aldeias com
estratégias de emboscada armada e, ainda, para promover o extermínio, doavam roupas de pessoas
contaminadas com sarampo. Eram vários os casos de dizimação de tribos inteiras vitimadas dessa
forma. Escravizavam as mulheres e matavam os homens.
76
As atrocidades desse período, aliadas aos interesses do Estado em ocupar as terras
indígenas, promoveram surtos migratórios de populações indígenas. Com isso, a ação civilizatória
suscitou a ação desconfiada, vigilante e violenta da sociedade nacional, o que, para muitos povos,
significou a instituição de uma tradição diaspórica ou um percurso rumo ao hibridismo.
A questão da identidade étnica, focalizada sob a perspectiva da interação entre povos
foram guerrear. Mas os brancos tinham armas de fogo e prendiam as mulheres, crianças, botavam fogo na aldeia.
Com covarde não dá pra lutar. (ALMEIDA,2000. p.56-7.)
73 DUARTE, 2002. p.32-3.
74 Idem
75 Cabe atenção ao nome “desbravar”, que significa civilizar, e, em última instância, refere-se à remoção de indígenas
de seus espaços tradicionais
76 DUARTE,2002. p.32-3.
31
indígenas e Estado Nacional, mostra que a implantação do Estado Nacional significou, para muitos
povos, a ruptura do ethos tribal e a “atualização histórica”
77
. Isto porque a idéia de Estado está
envolvida com o processo de modernização, tecnificação e expansão que, em termos geográficos e
culturais, significa a projeção do ethos nacional sobre as sociedades tribais, ameaçando, com a
pressão aculturadora, a perspectiva de continuidade no tempo e a permanência cultural daquele
grupo.
78
Em relação às sociedades indígenas, engolfadas pelo espaço cultural nacional, é possível
depreender que existe um estado de permanente troca intercultural e que a identidade étnica se
desloca entre padrões culturais internos e específicos e a emergência de uma zona de negociação.
Essa percepção da natureza interacional opositiva entre sociedades indígenas e a sociedade nacional
evidencia que a imagem representacional que a sociedade nacional constrói de si, a partir do outro,
é, em relação a esse outro, sempre excludente, chegando, na melhor das hipóteses, a revelar, com
esta ausência, uma teoria acerca de si mesma, pois como teoriza Oriol, citado por Poutignat e
Streiff-Fenart,
79
a identidade étnica, dado seu aspecto relacional, só pode existir como representação
em um campo semântico, onde funciona um sistema de oposição.
A partir do aspecto de troca intercultural, no contexto de formação do Estado Nacional,
é possível desvelar relações envolvendo sociedades indígenas, nacional e fricção interétnica. Um
exemplo disso é a forma de apreensão da consolidação do estado nacional com a legitimação
popular do imperador D. Pedro II
Lilia Moritz Schwarcz, ilustrando esse processo interacional
80
, atenta para esse
77 A “atualização histórica” é um conceito desenvolvido por Darcy Ribeiro que envolve a incorporação de povos
tradicionais a outros sistemas culturais mais evoluídos tecnologicamente, imprimindo uma modernização reflexa
com risco de perda de autonomia e até de desintegração étnica. Por esse processo ainda podem ser entendidas a
América latina , cujas populações após a independência saíram da condição de áreas coloniais de formação
mercantil salvacionista para cair na condição de áreas neocolonialistas de formações imperialistas industriais.
(RIBEIRO, 1998. p.70.)
78 RIBEIRO, 1998. p. 25-6.
79 POUTGNAT e STREIFF-FERNAT, 1995. p 124.
80 Citado por Roberto Da Matta, em seu livro Ensaio de Antropologia Estrutural , onde constam outras variações do
32
atravessamento na versão do “mito de Aukê dos Índios Jê-timbira, coletada por Nimuendaju e J
Schultz. O mito trata de um índio que, afeito a metamorfosear-se, ameaçava a ordem tribal, sendo
por isso condenado a morrer pelas mãos da tribo. Entretanto, todas as tentativas de eliminá-lo foram
malogradas, e ele sempre reaparecia vivo. Resolveu-se, então, que depois de morto Aukê seria
queimado e, por medida de segurança, o povoamento mudaria de lugar. Assim, o indígena não mais
poderia encontrá-lo. Feito isso, Aukê nunca mais voltou.
Anos mais tarde, Amcukwéi, mãe de Aukê, querendo saber o que lhe tinha ocorrido,
pediu ao seu pai que fosse buscar as cinzas de seu filho. Voltando para o lugar onde ficava o antigo
aldeamento, o pai de Amcukwéi e seus homens descobriram que Aukê e havia se transformado no
“homem branco”.
Tal mito, em uma de suas variações, apresentou uma versão suis generis para o
aparecimento do homem branco, possivelmente para atender aos aspectos relativos interação com a
sociedade nacional, da seguinte maneira:
Algum tempo depois Amcukwéi pediu aos chefes e conselheiros que
mandassem buscar as cinzas de Aukê [...]. Quando os dois chegaram ao lugar, descobriram
que Aukê tinha se transformado em homem branco: construíra uma casa branca e agora
criava negros [...] e cavalos de madeira do bacuri. O rapaz chamou os dois enviados e
mostrou-lhes sua fazenda. Depois, mandou chamar Amcukwéi para morar com ele. Aukê é
agora o imperador D. Pedro II, pai dos brancos.
81
O mito de Aukê está presente na cultura de diversos povos indígenas no norte do país, e
varia relativamente ao papel desempenhado pelo homem branco. Em uma variação, Aukê se torna
fazendeiro e criador de gado e oferece arma de fogo ao seu avô, o cacique, quando este veio
encontrá-lo. O avô recusa a arma, ficando com o arco e a flecha, pelo temor da destruição das armas
de fogo. O mito mostra que a recusa dos instrumentos do branco significava a permanência da
identidade indígena.
Em ambas as versões, tanto a do homem branco imperador quanto a do branco
mito.
81 SCHWARCZ, 2003. p.11.
33
fazendeiro, versa-se sobre o atravessamento intercultural entre brancos e indígenas e a maneira
como, na perspectiva indígena, o homem branco surge a partir de uma figura mágica malquista
pelos indígenas, no caso do imperador os jê-timbira.
Contudo, na primeira variante, recolhida no início do século passado, embora possam
ser depreendidas muitas leituras, fica evidente o entrelaçamento de dois mitos: o da formação do
homem branco e a paternidade da nação associada ao Imperador D. Pedro II. O que parece estar
sendo constituído é o movimento de acomodação de uma nova ordem social, que promove a
reestruturação do mito, mostrando reflexamente como a simbologia nacional se imbricou no interior
do mito indígena de Aukê. Em outra dimensão, essa narrativa revela como a narrativa nacional se
populariza na sociedade, cruzando fronteiras culturais.
Assim, a contrapartida histórica a esse imbricar entre uma cultura e outra é por si
reveladora, no sentido de se procurar detectar a real dimensão da suposta homogeneidade cultural,
promovida pelo processo de nacionalização da cultura, pois a introjeção do imperador no mito foi
uma concessão a um aspecto da realidade histórica, que sem alterar a estrutura do mito, atuou de
forma a atualizá-lo. Esta interface entre a narrativa de nação e o mito de Aukê pode ser melhor
compreendida à luz de Homi K.Bhabha:
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar
além das narrativas de subjetividade originárias e iniciais e focalizar aqueles
momentos ou processos que são produzidos na articulação das diferenças culturais.
Esses “entre-lugares” fornecem terreno para a elaboração de estratégias de
subjetivação singular ou coletiva que dão início a novos signos de identidade, (...) É
na emergência dos interstícios -a sobreposição e o deslocamento de domínios da
diferença que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação, o interesse
comunitário e o valor cultural são negociados.
82
A aproximação do mito de Aukê à figura do Imperador D. Pedro II apresenta uma certa
peculiaridade. Sem aprofundar na questão do sentido, que repercute com a imagem “indígena” do
imperador, o mecanismo que se tem é o da afirmação de uma precedência do ethos indígena em
82 BHABHA, 1998. p.20.
34
relação ao branco, havendo um reconhecimento da estrutura nacional em um mito indígena, que
oferece uma contrapartida reafirmando a identidade étnica.
Ser Aukê não é algo elogioso, a estrito senso, pois esse personagem mítico representa
aquilo que o indígena se nega a ser. É a narrativa de um ente renegado pela comunidade por se
constituir uma ameaça à coletividade. Nesse caso, o mito de Aukê reforça as fronteiras interétnicas e
produz uma demarcação cultural ressaltando os aspectos negativos da sociedade hegemônica.
Ao estabelecer uma leitura sobre a cultura nacional, a socióloga Rovisco reconhece de
Homi K. Bhabha avançou com a idéia de que “todas as culturas nacionais, como formas narrativas
de expressão cultural são híbridas e contêm elementos alienígenas que irrompem como contra-
narrativas da narrativa homogênea da nação” .
83
Segundo ela, para esse autor, as contra-narrativas
relativizam as fronteiras totalizantes da identidade essencialista da comunidade nacional. Assim, é
na emergência das comunidades locais, minoritárias, periféricas e contra-hegemônicas que o
imaginário nacional negocia sua própria representação.
O mito de Aukê insere-se nesse grupo de contra-narrativas à narrativa hegemônica
84
.
Isto porque o mito atua de forma a reforçar as fronteiras etno-culturais, apresentando Aukê, pai do
homem branco, como um descendente degenerado dos indígenas. Aukê é, à luz da narrativa mítica,
uma ameaça ao ethos tribal. Nesse sentido, o que se revela é o homem branco compreendido como
sendo aquele quem o índio deliberadamente não quer ser, ou antes, despreza e condena. Ao citar D.
Pedro II, impõe-se uma falsa homenagem ao imperador, o que se expressa, de fato, é a negação de
uma ordem política, envolvendo Estado, poder e Nação. Cabe-me assinalar que o termo
83 ROVISCO,2002. p.8.
84 Também a obra A lágrima de um caeté de Nísia Floresta Brasileira Augusta, 1849, constitui uma contra-narrativa,
pois traz uma representação dissonante em relação àquela apresentada pelo Romantismo indianista. Citando Maria
José de Queiroz, que tece uma reflexão sobre o indianismo e o indigenismo, Constância Lima Duarte, organizadora
desse livro de Nísia Floresta, define o indigenismo como modelo de representação que mostra o índio como ele é.
Na representação presente nesse poema de juventude de Nísia Floresta, o que se revela é a menção à perda da
liberdade sofrida pelo indígena após o contato civilizatório. Desta forma, a escritora, nascida no Rio Grande do
Norte, em 1810, antecipa a visão indigenista, representando o indígena como sujeito desterritorializado, que se vê
obrigado a fugir para a floresta a fim de garantir sua sobrevivência. (cf. DUARTE, 1997. p. 25-6.)
35
“negociação”, nesse caso, é compreendido no âmbito da troca simbólica, reforçando o caráter de
resistência cultural da minoria étnica como poder de barganha, não sendo esse sentido extrapolado
para as condições históricas.
1.4 Discursos sobre a mestiçagem e a afirmação da identidade
nacional
A teoria sobre o Brasil foi, em parte, tributária das observações empíricas de teóricos
estrangeiros, entre os quais os viajantes dezenovistas naturalistas e cientistas. Data do final do
século XIX, segundo Lilia Moritz Schwarcz
85
, a propagação no Brasil de um certo cientificismo:
positivismo, evolucionismo, darwinismo social que se pautava em padrões raciais, inferindo, a partir
deles, um modelo evolutivo da humanidade. Para tanto, formulavam critérios de vantagens
evolutivas, baseados na diferenciação das raças. Essa antropóloga, a propósito do pensamento da
elite sobre a cultura nacional dezenovista, aponta seu caráter conservador, moldado pelas teorias
científicas calcadas em ideologias eurocêntricas.
No caso brasileiro, a ‘sciencia', que chega ao país em finais do século, não é uma
ciência experimental, como a de Durkheim e Weber. O que aqui se consome são
modelos darwinistas originalmente popularizados, enquanto justificativas teóricas de
práticas imperialistas de dominação. Grandes leitoras da literatura produzida na
Europa e nos Estados Unidos, as elites brasileiras não passariam incólumes aos
ditames que vinham do estrangeiro. Por outro lado, a monarquia brasileira recém-
saída da desastrosa guerra do Paraguai e vivendo, nos últimos anos do Império um
período de relativa estabilidade econômica. (...) A monarquia brasileira tencionava
diferenciar-se das demais repúblicas latino-americanas aproximando-se dos modelos
europeus de conhecimento e civilidade.
86
A idéia de raça, como alternativa para contrapor ao discurso monogenista, difunde-se,
85 SCHWARCZ, 1995. p.47-49.
86 SCHWARCZ, 1995. p.30.
36
no meio científico como parâmetro evolutivo e no discurso social como contraposição entre
civilização e barbárie. São publicados ensaios científicos relacionando raças, criminalidade e
degeneração. Nina Rodrigues, por exemplo, algoz da mestiçagem, utiliza-se do modelo social
darwinista e, ao fazer uma leitura da realidade nacional, aponta o cruzamento de raças como
responsável pelo comportamento degenerado de nossa população.
87
Por outro lado, transformada em paradigma social, a mestiçagem tornou-se, a partir de
um determinado momento fundacional, o denominador comum da nação, o fator identitário
constituinte do povo habitante deste país. Ser brasileiro passou a significar ser mestiço, tema que foi
e é fortemente debatido pelos meios científicos e acadêmicos. Em um artigo sobre a mestiçagem,
Haydée Ribeiro Coelho, ressalta Sílvio Romero, como um crítico da primeira “safra” após a
primeira grande ruptura teórica no âmbito da historiografia brasileira, inspirado nas teorias
positivistas e darwinistas. Ruptura esta apontada, segundo a crítica, pelo historiador Valter Sínder
88
.
Segundo Benjamim Abdala Júnior, para Sílvio Romero, a mestiçagem constitui o ideal
de identidade nacional:
Silvio Romero tem na mestiçagem o ideal da identidade nacional brasileira. Nessa
interação antropológica, procurava aliar determinantes raciais com os de outras
esferas, de ordem psicológica, sociológica, cultural e também política. Vem do
modelo antropológico da mestiçagem a defesa política do unitarismo do país em
oposição ao federalismo.
89
Com base no fragmento destacado, ressalta-se que com o discurso da mestiçagem
buscou-se preservar o princípio da unidade do povo e da nação. Estratégia que em si apaga as
discrepâncias e os antagonismos intrínsecos à sociedade multiétnica, fortalecendo a perspectiva da
unidade nacional. Como decorrência, nos discursos sociológico, histórico e literário, as
diferenciações étnicas e culturais assumiram um caráter transitório diante da inefável instituição de
uma sociedade e tradição nacionais.
87 SCHWARZ, 1995. p.47-9.
88 COELHO, 2001. p.62.
89 ABDALA JUNIOR. 2001. p.207.
37
Como sugere Roberto Da Matta, a apologia da mestiçagem mantém para a cultura
nacional a força de um mito, que ele chama de “fábula das três raças” e que, segundo ele, até a
atualidade, corresponde a maior força cultural do Brasil. Para Da Matta, a ideologia da mestiçagem
difunde a acepção de que, a partir dela, se possa integrar idealmente a sociedade e individualizar
sua cultura. Para ele, esta fábula tem a envergadura de uma ideologia dominante, a que define como
sistema totalizado de idéias que interpenetra a maioria dos domínios explicativos da cultura,
90
e que
tem fornecido as bases para um projeto político e social referente ao brasileiro. As conseqüências
dessa concepção de sociedade são perversas enquanto instâncias discursivas, quando se baseiam no
encontro inter-racial harmonioso. Tal pressuposto apaga os vestígios da violência subjacente a esse
processo.
Por outro lado, não se pode perder de vista que a defesa da mestiçagem foi uma
retórica de resistência, diante de um contexto, onde se estabeleceu a teoria eugenista, criando uma
contraposição discursiva a um modelo que, em última instância, selaria o destino do Brasil como
nação moderna, pronta a progredir, bem ao gosto das inspirações de “ordem” e “progresso” da
época. Nesse sentido, embora não tenha sido uma retórica revolucionária a ponto de romper com
uma hierarquia social eurocêntrica, ou com o etnocentrismo europeu e a superioridade “branca”,
ampliou as frentes para a construção da identidade nacional.
Sobre os interesses envolvidos nesse processo de confrontar teorias sociais envolvendo
as raças, Lilia Moritz Schwarcz, cita Roberto Ventura, ao mostrar que o ideário racial europeu
entrou no Brasil não por sorte, mas de forma crítica e seletiva, transformando-se em instrumento
conservador, para respaldar a hierarquia social já existente.
91
Essas representações discursivas revelaram uma disposição orgânica de recusa da
composição etno-cultural brasileira que, de certa forma, infiltrou-se no discurso social desenvolvido
90 DA MATTA, 1987. p.69.
91 Idem.
38
no Brasil, atendendo aos interesses da elite. No entanto, a idéia de uma unidade política, envolvendo
uma noção de povo, não poderia ser totalmente fundamentada em valores raciais eugenistas, sob
pena de fragmentação desta construção imaginária de nação, uma vez que a eugenia condena a
mestiçagem e o mito fundador do Brasil produziu uma imagem referencial para a comunidade
nacional composta de indivíduos mestiços que se viam como tal. O fulgor da intelectualidade
nacional, em estabelecer discursos afirmativos sobre a mestiçagem, mostra o esforço em constituir
um povo nacional.
Em relação ao indígena, o enfrentamento decorrente do processo civilizatório, desde
os primórdios da colonização até e para bem além do momento de configuração do território
nacional, oscilou em torno de uma ordem social conflitante com a política de ocupação do solo,
pois a existência de uma organização prévia do território pelos ocupantes indígenas em terras
ancestrais constituiu-se como um obstáculo a esse processo.
A classe dirigente, enredada pelo processo de definição e demarcação das fronteiras
externas do território nacional, reorganiza as internas sobrepondo à territorialização existente uma
outra organização arbitrária promovida pela interiorização e o desbravamento.
Seguindo o seu curso na história da nação, a mestiçagem tornou-se uma questão
essencial da nacionalidade, uma expressão de nacionalismo, quando se abriu como chave-
interpretativa para a formação da identidade nacional brasileira, tal como aparece em inúmeros
outros autores além de Silvio Romero: Euclides da Cunha, Manuel Bonfim, Gilberto Freyre e Mário
de Andrade.
Em relação à representação do índio, do ponto de vista literário, a idéia romântico-
idealista foi tomá-lo como símbolo da fundação da nação, conferindo ao nativo e não ao português a
precedência na ocupação territorial, uma questão de raiz. No entanto, não se almejou designar
atributos do índio real a este “símbolo” da identidade nacional, tampouco fazer dele um
39
civilizador.
92
Para esse papel coube o resgate, sob um viés mais folclorista de outras representações
presentes no imaginário popular. Essas representações procuravam reverter, principalmente, a
representação “contaminada” com elementos estrangeiros, valorizando, assim, o autêntico nacional:
o vaqueano, no sul, e o sertanejo, no norte. O mestiço de branco e índio valorizado por sua extrema
coragem. Esboça-se, nessa medida, um entrelaçamento entre o ideal nacionalizante e o elemento
regional, entronizando uma representação regional como a da autenticidade nacional. Dessa forma,
Alencar aproximou-se das fontes regionais,
93
entre as quais figuravam o gaúcho e o sertanejo. O
indígena nesta representação não mais indianista ainda encontra uma participação, mas associada ao
discurso da mestiçagem.
A imagem do sertanejo de Alencar, contemplando o sangue indígena, na apresentação
da mestiçagem, é revisitada por Euclides da Cunha. Deste modelo de representação, incorre o
sertanismo, temática abordada por Haydée R. Coelho e Dilma C.B. Diniz.
94
Nesse trabalho, a
críticas mostram que o sertanismo serve a propósito tanto para a obra alencariana quanto para a obra
euclidiana, e seu propósito é o de valorizar o interior do Brasil
95
. Consta como um estilo narrativo
que se prolonga na literatura brasileira, no século XX.
96
Em Os Sertões, o romance fica como exemplaridade literária da importância desse
pensamento. Em Euclides da Cunha, ocorre uma crítica sobre o modo como a ciência,
principalmente, os antropólogos, conduzem a discussão do tema da mestiçagem:
Ora, a respeito da grave influência destas [capacidades étnicas] e, não a negamos,
elas foram entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma meia-
ciência, difundida num extravasar de fantasias, sobre ousadas, estéreis. Há como que
um excesso de subjetivismo no ânimo dos que entre nós, nos últimos tempos,
cogitam de coisas tão sérias com uma volubilidade algo escandalosa.
97
92 BOECHAT, 2003. p.31.
93 LEITE, 1994. p. 672-3.
94 Esse trabalho trata-se do capítulo “Regionalismo”, presente no livro Literatura e Cultura, em que a conceituação é
revisitada, acenando para novas interações.
95 COELHO e DINIZ, 2003. p.419.
96 Idem.
97 CUNHA, 1994. p. 61.
40
Sem romper com o evolucionismo social, Euclides redimensiona-o, levando em
consideração o valor da educação, deslocando do foco primário da constituição do brasileiro, do
cunho do determinismo das ciências naturais e do racialismo, para o diacronismo da história:
O assunto [a mestiçagem] assim vai derivando multiforme e dúbio. Acreditamos que
isso sucede porque o escopo essencial dessas investigações se tem reduzido à
pesquisa de um tipo étnico único, quando há por certo muitos. Não temos unidade de
raça. Não a teremos, talvez, nunca. Predestinamo-nos à formação de uma raça
histórica, em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma.
Invertemos, sob esse aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica
reclama a garantia da evolução social. Estamos condenados à civilização. Ou
progredimos ou desaparecemos. A afirmativa é segura.
98
(grifo meu).
Essa é uma obra, de caráter fundador, pois traz a vida sofrida do sertanejo para a
cena literária.
Os Sertões revela, em um interior brasileiro miserável, uma realidade adversa, na qual o
homem adaptado sobressai pela tenacidade. Nesse romance, o sertanejo é o mestiço, também
chamado de mameluco ou “curiboca”, fruto da mistura de brancos bandeirantes, desbravadores do
sertão e dos indígenas que viviam no interior do país. Homem à primeira vista fraco de aparência
adoentada e preguiçosa, mas que surpreende diante de um desafio por sua força e coragem. Roberto
Ventura
99
mostra que Euclides revisita Alencar, de O Sertanejo, obra de 1876. Tal texto, que
apresenta um traço regionalista
100
, tem como herói o mesmo ser híbrido de Os Sertões, descrito ora
como titã, ora como um homem virtuoso que traz consigo a força e o espírito de luta dos bravos
guerreiros indígenas e dos ousados bandeirantes.
Como aponta Roberto Ventura, nesse romance, o sertanejo é o vaqueiro, retratado
como o eram os grandes heróis do poema épico ou dos romances de cavalaria, portando um gibão
de couro tal como armadura, indumentária dos cavaleiros medievais. O sertanejo é ainda comparado
à figura do centauro pela familiaridade com a montaria, assim como fizera Alencar em seu
98 CUNHA, 1994. p. 62.
99 VENTURA, 2002. p. 48-50.
100 CASTELO BRANCO e COELHO, 2005. p. 419.
41
romance. A luta, que enaltece esse homem por sua coragem, é resultado de um confronto entre
mestiços: os “curibocas”, do sertão (homens fortes e bravos) e os “mestiços” do litoral, tidos como
“neurastênicos”.
101
O crítico assinala, ainda, que Euclides cumulou de vantagens o híbrido sertanejo,
creditando à ausência de sangue africano associada ao isolamento geográfico o fator de
estabilização da evolução racial e cultural e, dessa forma, ativou a impressão de que os mestiços do
litoral eram emocionalmente instáveis e evolutivamente inferiores porque traziam em sua bagagem
genética também a matriz africana, como se o sertanejo não o tivera.
102
Esse aspecto é criticado por
Gilberto Freyre que considera improcedente a teoria de que, nos mestiços sertanejos, não haveria
presença de sangue africano.
Segundo Walnice Nogueira Galvão
103
, entretanto, o que permanece em Euclides é a
tensão entre o intelectual com a formação teórica e a aceitação das doutrinas sociais correntes no
século XIX e o observador arguto que era. Para ela, Euclides vacila entre sua consciência e as
teorias racistas. A autora, ao explanar sobre Os Sertões , mostra a influência da exaltação do branco
e da denegação da mestiçagem em Euclides. A preferência pelo índio, segundo Walnice, não é
inaugurada em Os Sertões, mas historicamente datada, afirmada no imaginário das elites coloniais e
sobredeterminada pelos movimentos de independência da América Latina. Para Walnice:
Reivindicar ancestrais indígenas significava opor-se ao colonizador europeu
dominante. Na época da independência, era freqüente verem-se os brasileiros
renegarem seu nome português e adotarem um nome indígena. Essa reivindicação
aborígine à qual se soma mais tarde aquela do autoctonismo do índio do ponto de
vista igualmente defendido em Os Sertões constituiu uma primeira manifestação
de nacionalismo, ou nativismo.
104
Manoel Bomfim, outro teórico daquele período, em seu livro América Latina, desloca a
crítica sobre as razões do “atraso” do terreno das explicações de cunho racialista e da
101 VENTURA, 2002. p.48-50.
102 VENTURA, 2002. p.48-50.
103 GALVÃO, 1999. p.162.
104 GALVÃO, 1999. p.162.
42
degenerescência devida à mestiçagem para o plano histórico-social, rebatendo a este emprego da
teoria darwiniana que, para ele, não se aplica aos estudos das sociedades. Para Bomfim, o problema
reside na opção conservadora da elite que trouxe, para a América Latina independente, uma
extensão da forma de pensamento e comportamento políticos próprios do período colonial.
Manuel Bomfim atribui ao indígena um amor violento à liberdade que, para ele, antes
de ser um traço cultural, é uma questão orgânica e vital, uma grande coragem e uma grande
instabilidade de espírito. Acrescenta também que o sucesso das missões e reduções, no processo de
aculturação do indígena, se deveu à preservação da liberdade na medida em que se aplicava à
disciplinarização social. E disciplinar seria direcionar seus instintos e tendências segundo as
exigências de um meio social mais adiantado.
O elogio ao heroísmo indígena na obra de Bomfim constitui ponto do qual divergirá
Gilberto Freyre que, ironicamente, chamará a Bomfim de “indiófilo” em Casa-grande & Senzala.
Adepto do modelo civilizatório, Bomfim busca contemporizar, atribuindo aos povos “primitivos” a
qualidade de promover a renovação dos povos mais adiantados, quebrando-lhes um pouco da dureza
social. O benefício àqueles oriundos da população indígena miscigenada, acrescenta Bomfim,
ocorrerá na medida em que o influxo das idéias e sentimentos for pouco a pouco modificando o
caráter primitivo e, no fim de algumas gerações, o que fica da raça menos adiantada na cultura é
pouco. Exaltando a instabilidade de espírito do indígena como uma qualidade, Bomfim termina por
considerá-la a chave para o ingresso do indígena ao modelo civilizado por torná-los afeitos à
transformação.
Em consonância com Euclides, Bomfim faz o elogio do mestiço entre branco e índio,
enaltecendo-lhes a coragem. Para Bomfim:
O modo como aqueles descendentes de guaranis afrontavam a morte é especial deles
(a propósito da guerra do Paraguai). Resistência comparável só à dos jagunços
brasileiros, em Canudos. Esses jagunços – como a generalidade da massa popular de
43
nossos sertões – são mestiços nos quais predomina o sangue do caboclo indígena.
105
O pensamento de Bomfim reside em descaracterizar as acusações deletérias advindas do
discurso racialista, trazendo à cena o contexto sócio-histórico, na linha do materialismo histórico.
Para Bomfim, a relação de dominação entre senhores e indígenas é responsável pela veiculação dos
discursos que carregam estereótipos como o desinteresse e a indolência, etc. Para ele, pesa sobre a
versão dominante da moralidade indígena um conteúdo ideologicizante:
Os outros traços característicos das raças são os que os acusam as qualidades
negativas: desinteresse, indolência. (...) apontada como defeitos de todos esses que
desejariam ver o caboclo a devorar-se na labuta, para enriquecer o país. (...) Quer
dizer: o intermediário parasita: senhor de engenho, dono de mina (...) acatemos às
louváveis intenções e santas aspirações desses abnegados, mas reconheçamos que
esses defeitos todos são devidos simplesmente á falta de educação social.
106
Quando o Estado Nacional foi instituído, foram retomadas algumas tradições que
tiveram por objetivo afastar o estigma da colonização e criar um sentimento de pertencimento que
unificasse o povo em torno da chamada Nação. Esse ente coletivo, no entanto, ao constituir-se,
funda uma narrativa de nação que orienta a compreensão do passado e as atitudes presentes, bem
como trata da apreensão ou alijamento de certas representações no imaginário nacional.
Nesse sentido, a narrativa da nação muito explica sobre as disposições de poder que
compõem a formação hegemônica da sociedade nacional. No caso da sociedade brasileira, essa
formação teve sua base no século XIX, a partir de representações expressas nas narrativas literárias
e nos relatos de viajantes. O indígena é um caso particular de representação, porque atendeu aos
dois modelos representativos. Enquanto as fontes literárias românticas constituíram-no como
símbolo da nacionalidade, as narrativas de viajantes, salvo algumas, dispuseram-no em um lugar
desprestigiado da hierarquia social. As duas imagens conviveram e estabeleceram linhas de forças
distintas na narrativa da nação. Contudo, ambas as representações trataram de obscurecer a voz e o
ethos indígena, quando o pensaram relacionado ao processo de formação da nação.
105 BOMFIM, 2002. p.794.
106 BOMFIM, 2002. p. 794.
44
2CAPÍTULO
: RENOVAÇÃODO PENSAMENTO NACIONAL GILBERTO FREYRE E MÁRIO
DE ANDRADE
- Paciência, manos! Não! não vou na Europa, não. Sou americano e meu lugar é na América.
A civilização européia
de-certo esculhamba a inteireza de nosso caráter.
(MACUNAÍMA)
2.1 - O Caráter Nacional
As teorias raciais e a mestiçagem constituíram um veio discursivo sobre a nação que
penetrou o século XX, influenciando ainda uma longa série de textos de nossa memória cultural.
Macunaíma e Casa-grande & Senzala, que serão tratados neste capítulo, não fugiram ao escopo
desta discussão.
Nestes dois textos, a mestiçagem foi vista como parte constitutiva da nacionalidade,
reafirmando a identidade do povo brasileiro como um povo mestiço, concebido a partir da mistura
das raças brancas, africanas e indígenas. O ponto revelador é que estas narrativas abordaram o
problema de forma a escapar do estigma racial que, no contexto dezenovista, tornou fecunda a
discussão sobre a inferioridade racial e o atraso social. Estas obras, no entanto, produzidas em um
contexto em que o tema foi fartamente debatido, mantêm uma interlocução com esses discursos
raciais, uma vez que recorrem ao caráter nacional, ora aproximando-se ora afastando-se dessa
teoria, para falar do povo brasileiro. Cabe ressaltar que, em Macunaíma, a idéia de caráter é
descaracterizada, entrada semântica propiciada pelo subtítulo.
Conforme estuda Dante Moreira Leite, em seu livro O caráter nacional brasileiro, o
caráter nacional é um construto que, apoiado no nacionalismo e nas teorias raciais, reafirma
45
interpretações estereotípicas sobre a nação.
Neste referido trabalho, Dante Moreira Leite procura estabelecer a conexão entre a
ideologia que evoca a existência de um caráter nacional e sua manifestação em obras representativas
do pensamento nacional brasileiro. O caráter nacional é definido por traços psicológicos
predominantes em um povo nacional, frente a eles mesmos e também aos outros povos. A gênese
desta teoria, como expõe Dante Moreira Leite, tem suas raízes no Romantismo Alemão e relaciona-
se com o ideal essencialista e subjetivista de instituir o nacional através do enlace entre indivíduo e
nação, mediado por outras formas de expressões identitárias como o nacionalismo, o etnocentrismo
e o racismo.
107
Segundo Dante M. Leite, a acepção de caráter nacional sofreu várias críticas dentro do
meio científico, mas coube ao relativismo de Franz Boas, antropólogo culturalista de quem foi aluno
Gilberto Freyre, o papel de destruir uma das pressuposições básicas do caráter nacional, que é a
existência da relação específica entre raças e características psicológicas. No cenário científico, dos
anos 20 a 40, a idéia de caráter nacional foi abalada, em função da constatação da variabilidade
psicológica das pessoas em função da alteração dos costumes, o que a modernização em ritmo
acelerado pôde demonstrar em curto período. Assim, em se admitindo a existência de mudanças no
comportamento social de uma mesma população, ao longo do processo histórico, não haveria
sentido afirmar a presença de um caráter fixo nessa mesma população.
108
O estudo de Dante Moreira Leite consistiu em identificar, em textos diversos de nossa
cultura, a ideologia do caráter nacional, relacionando-a aos traços psicológicos atribuídos aos
brasileiros. Seguindo uma linha interpretativa, esse autor faz uma revisão deste construto teórico
desde a fase colonial até a década de 40 do século XX. Em suas conclusões sobre a entrada e
permanência da idéia de caráter nacional no Brasil, Dante Moreira Leite mostra que estas idéias
107 LEITE, 1969. p.34- 41.
108 IDEM. p.40- 1.
46
acompanharam os movimentos nacionalistas, em especial os surgidos nos momentos de crise na
Europa. Para esse autor, no Brasil, o esquema das doutrinas européias foi acompanhado bem de
perto, chegando a se constituir uma reprodução do modelo ideológico europeu.
109
Dante Moreira
Leite identificou a ideologia do caráter nacional no pensamento brasileiro diferenciada em três
fases. Uma primeira, nativista, que não é ainda nacionalista, pois não havia sido formada a
consciência de nação. A segunda, após a Independência e com o Romantismo, que revela otimismo
apresentando os traços positivos dos brasileiros, principalmente através do índio romântico. E, a
terceira fase, que vai de aproximadamente 1880 até a década de 50, a qual chama de “fase
ideológica do caráter nacional brasileiro”, período em que a noção de caráter foi instrumentalizada,
de modo a ser utilizada para justificar o poder “das classes mais ricas” e imputar a teoria racista do
determinismo geográfico.
Desta forma, Dante Moreira Leite mostra que o caráter nacional está estreitamente
ligado a uma idéia de raça e nacionalismo, e explicita a forma como esse aspecto está presente e que
é revelado nos textos que compõem nossa memória cultural: Os Sertões, Casa-grande & Senzala e
Raízes do Brasil, entre outros. Em sua leitura, Moreira Leite ressalva Manoel Bomfim como voz
dissonante em relação aos seus predecessores e mesmo aos sucessores, porque procurou
desmistificar a idé ia de caráter, deslocando a questão do “atraso” relacionado ao determinismo
racial para a esfera das condições históricas e econômicas. Nestes textos foram trabalhados os
caracteres psicológicos que procuraram identificar o brasileiro. Assim, este autor evidencia, nestes
textos, a preocupação em se definir um tipo de caráter e, pontualmente, mostra a introjeção do
pensamento racialista.
Finalizando, é importante mencionar Paulo Prado separadamente, não só porque Dante
Moreira Leite assim o fez em seu livro, mas porque este teórico exerceu forte influência tanto em
Macunaíma como em Casa-grande & Senzala. Retrato do Brasil, segundo Moreira Leite, foi o
109 Idem. p.40- 1.
47
primeiro livro que pode ser considerado um tratado de história psicológica do brasileiro. A tese do
povo triste é vista em decorrência das bases em que se deu a colonização: sensualidade desenfreada
e ambição pelo ouro.
2.2 Gilberto Freyre e
- & Casa grande Senzala
2.2.1 O autore
- & Casa grande Senzala
Casa-grande & Senzala, escrito por Gilberto Freyre e publicado em 1933, foi produzido
durante período em que o autor se encontrava exilado por razões políticas impostas pela Revolução
de 1930. Conforme mostra a socióloga Gláucia Villas Bôas,
110
a tendência apresentada por Freyre
em Casa-grande & Senzala já havia sido prenunciada na dissertação de mestrado deste autor, Social
life in Brazil in the middle of the nineteenth century, em 1922. Neste texto, o autor tratou como tema
o passado nordestino, visto através do modo de vida de seus antepassados, durante o século XIX,
enfocando aspectos da vida privada. No entanto, somente no livro publicado 11 anos depois, é que
desponta a intenção de conceber o ethos brasileiro, relacionando-o com a sociedade colonial
açucareira
111
.
Freyre instituiu, com Casa-grande & Senzala, uma narrativa que traz como cerne a tese
da emergência do brasileiro a partir da mestiçagem produzida nos domínios da casa grande e da
senzala, pela transigência do português com povos não brancos. Assim, ainda no prefácio de Casa-
grande & Senzala, Freyre oferece uma primeira idéia de como se constituiu, aos seus olhos, a
sociedade colonial onde se deu esse encontro interétnico:
Os portugueses (...) vencedores no sentido militar e técnico sobre as populações
indígenas; dominadores absolutos dos negros importados da África para o duro
trabalho da bagaceira, os europeus e seus descendentes tiveram ,entretanto,que
110 VILLAS BÔAS, 2003. p.122.
111 VILLAS BÔAS, 2003. p.122.
48
transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais... A
miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de
outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a
casa-grande e a senzala.
112
Enredada por esta perspectiva de aproximação das partes díspares (o branco e o índio e
o branco e o negro), a narrativa que Freyre constrói sobre o Brasil preconiza uma democracia social
advinda das relações de intimidade estabelecidas entre os senhores e as índias; os senhores e as
negras-mina e, ainda, os senhores e as mestiças. Em Freyre, o sistema da “casa-grande” e da senzala
representa, em sua arquitetura, uma sociologia da ocupação do espaço que reproduz a hierarquia e
as instâncias das contradições e dos agenciamentos sociais presentes naquela sociedade. Desta
forma, o sociólogo confere àquele núcleo colonial o valor de ter fecundado o que dali viria a ser o
povo brasileiro, com os seus antagonismos raciais amenizados pelas relações de intimidade entre as
partes.
À “Casa-grande” coube o papel de núcleo originário das relações de sociedade e poder
que culminaram com a gestação do povo brasileiro, propriamente dito. Depara-se com a
constituição de um ethos nacional, incorporando com positividade o mestiço e o negro.
O escritor pernambucano enfrentou politicamente oposições fortíssimas, estas
influenciadas por teorias racialistas, poligenistas e eugenistas que traziam uma visão pessimista do
Brasil. Tanto Roberto Da Matta quanto Roberto Ventura enfatizam o fato de o livro Casa-grande &
Senzala ter sido publicado no ano de ascensão do Nazismo na Alemanha, com Hittler subindo ao
poder. Darcy Ribeiro, no referido prólogo, comenta que esta disposição de enfrentar a má ciência
da época, não se inaugura em Freyre, antes dele, Manoel Bomfim, Roquete-Pinto e alguns outros
fizeram-no, mas não com o vigor e a eloqüência de Freyre.
113
A positividade de Freyre em relação ao passado colonial do Brasil e sua herança mestiça
112 FREYRE, 2003. p.33.
113RIBEIRO, 1979. p. 63-4.
49
conferiu ao livro desde sua publicação uma grande visibilidade. Obtendo grande repercussão,
positiva e negativa, foi tornado desde cedo um monumento no interior do pensamento social
brasileiro. Sobre a recepção, Roberto Ventura
114
mostra que João Ribeiro e Lúcia Miguel Pereira
consideraram o livro definitivo, pois alargou os limites da nação, ao afastar os temores infundados
sobre a inferioridade racial de sua população.
O antropólogo Roquete-Pinto declarou que esta era uma obra que já nascia clássica.
115
E
Darcy Ribeiro comenta que este livro foi uma façanha da cultura brasileira, vista como tal já desde
os primeiros dias. Para ele, o livro Casa-grande & Senzala foi um dos “fundadores”, é claro, no
sentido simbólico, do Brasil, pelo fato de ter mobilizado, com um texto, um sentimento de fundo
identitário, um modelo de nacionalismo. O antropólogo mineiro compara-o a Cervantes na Espanha,
Camões em Portugal, Tolstoi na Rússia, Sartre na França e ainda, no Brasil, compara-o, em termos
de originalidade à obra de Aleijadinho, no passado, à Brasília, de Oscar Niemayer (na
contemporaneidade).
Darcy Ribeiro também enfatiza o caráter insólito de Casa-grande & Senzala, citando
Astrogildo Pereira que afirma ser esta uma obra nova que veio a romper com anos e anos de rotina,
por tratar-se de um livro de Sociologia, escrito em linguagem literária, “atrevida”, que alçou para o
universo acadêmico muita palavra vulgar e tomou por protagonistas não heróis oficiais, mas a
massa anônima.
116
Darcy Ribeiro ainda esclarece que Freyre, como intérprete do Brasil, não foi teórico,
nem quis ser, dada a imprecisão de sua metodologia, da falta de rigor científico em torno das
conclusões a que chega. Para Darcy, Freyre deveu à influência boasiana - o melhor de sua formação
- o ateoricismo e a propensão à etnografia, que o permitiu realizar o estudo aprofundado que foi
114VENTURA, 2000. p.10-11.
115VENTURA, 2000. p.11.
116 RIBEIRO,1979. p.63-4.
50
Casa-grande & Senzala e a reunir uma vasta documentação sobre os temas de que tratou.
117
Haydée
Ribeiro Coelho, ao estudar os prefácios de Darcy Ribeiro, entre os quais o de Casa-grande &
Senzala e o de Macunaíma, ressalta a importância da retomada crítica de tais textos, para a
constituição dos estudos sobre a identidade e a cultura brasileiras.
118
Casa-grande & Senzala foi uma obra que atingiu grande destaque no estrangeiro, sendo
prefaciada por importantes intelectuais, entre eles Fernand Braudel, edição italiana de 1965; Lucien
Febvre, edição francesa de 1952, do livro traduzido por Roger Bastide para o francês; Antônio
Sérgio, edição portuguesa de 1940, prefácios esses que Ricardo Benzaquen de Araújo
119
, em uma
compilação comemorativa do centenário de Freyre, publicou no periódico Novos Estudos do
Cebrap. O historiador Ricardo Benzaquen de Araújo associa a esses três prefácios um quarto, feito
por Frank Tannenbaum
120
, sobre o livro Sobrados e Mucambos (1936), da edição americana de
1963, e que foi a continuação da abordagem de Casa Grande & Senzala.
Todos os prefácios destacam a originalidade de Freyre em sua abordagem sobre o
Brasil. Como Ricardo Benzaquen
121
ainda ressalta, nestes prefácios, fica evidente a compreensão de
que a obra de Gilberto Freyre fez mudar a imagem que o Brasil havia construído para si. Benzaquen
cita o comentário sobre Casa-grande & Senzala de Tannenbaum, pesquisador da mesma
universidade em que Freyre obteve o título de Mestre. Para Tannenbaum, o México precisou de uma
revolução sangrenta, para que fosse invertido na sociedade mexicana o sentido que se empregava
para a mestiçagem e ainda para que fosse obtida a revalorização da cultura tradicional, enquanto no
117 Idem. p.76.
118Nesse artigo, a crítica ressalta aspectos da análise de Darcy Ribeiro sobre os textos prefaciados. Sobre o prefácio de
Freyre ela chama a atenção para o fato de que, apesar do “bom-humor” do texto darcyniano, o antropólogo mineiro
não poupa críticas ao pernambucano. (COELHO, 2000, p.141.)
119 BENZAQUEN, 2000. p.9-12.
120 TANNENBAUM, 2000. p.39-42.
121 BENZAQUEN, 2000. p.12.
51
Brasil, o feito foi realizado por meio de um livro.
122
Benzaquen pontua que tal reflexão envolve um
problema interessante acerca da recepção do pensamento de Freyre e sua influência intelectual no
Brasil, a propósito dessa sua transformação em um quase” mito, fato que, para Benzaquen, foi
construído com a própria e ativa colaboração do sociólogo pernambucano.
Mostrando a relevância das culturas africanas e indígenas para a formação da cultura
brasileira, Freyre discorre sobre os costumes e o comportamento social do brasileiro relacionando
presente e passado. Ao fazê-lo, o antropólogo trata, com originalidade, de temas que estavam fora
do escopo de abordagem da época científica, como a vida privada, a comida, gestos, falas populares,
costumes e comportamentos. Como afirma outro antropólogo, Roberto Da Matta
123
, em Casa-
grande & Senzala, Freyre desenvolve um método que aparenta ter uma ausência de método, mas que
é tão original quanto seu objeto de estudo, o Brasil.
Em seu prólogo à edição de Casa-grande & Senzala, Darcy Ribeiro
124
tece uma leitura
mostrando ser este um livro sem paralelos e o mais importante sobre a cultura brasileira, fato que
não o impede de nele destacar o componente ideológico e conservador. Darcy Ribeiro enfatiza que
Casa-grande & Senzala é um bem sucedido estudo sociológico, compreendendo uma bem
documentada pesquisa histórica e bibliográfica, entremeada por agudas observações, que se
realizam em uma criação deliberadamente literária.
125
Para Darcy, a Antropologia, na formação acadêmica de Freyre, permitiu que o sociólogo
deslocasse seu ponto de vista, de modo a lançar um olhar distanciado sobre a própria cultura. Após
explanar sobre inúmeros aspectos de Casa-grande & Senzala, Darcy afirma que não é fácil
122 Esta é a idéia expressa por Tannenbaum, à qual Benzaquén ressalta o aspecto mitificador. Há que ser ponderado e é
perspectiva desta dissertação que esse papel atribuído a Freyre é fruto de um intenso debate trazido por diversos
textos.
123DA MATTA, 1997. p.2 (Texto obtido através do site da Biblioteca Virtual Gilberto Freyre )
124 RIBEIRO, 1999. p.63-107
125 RIBEIRO, 1979. p.69.
52
generalizar sobre Freyre, uma vez que cada vez que se julga poder fazê-lo, o escritor escapa das
generalizações, como a geléia pelos buracos da rede.
126
Roberto Da Matta
127
, ao escrever sobre os dez anos sem Gilberto Freyre,
128
ressalta que
o antropólogo pernambucano trouxe uma leitura individualizada do Brasil, percebendo-o sob a ótica
de seu próprio sistema cultural, iluminado pelos remanescentes de uma sociedade senhorial, na qual
supostamente se estabelece uma relação de tolerância regendo as relações sociais no âmbito da
intimidade daquele cenário social, composto entre a Casa-grande e a Senzala.
Em Freyre, há uma linha discursiva em que é evidente a adesão ideológica do ponto de
vista da colonização portuguesa, transparecendo o elogio ao ethos do português como colonizador
dos trópicos. Como protagonistas dessa narrativa de nação, figuram, de um lado, portugueses, no
topo da hierarquia social e, de outro, os indígenas e os negros.
2.2.2 A narrativa de
- & Casa grande Senzala
e a representação indígena
É a partir da afirmação da singularidade e da positividade do processo de formação da
sociedade brasileira, originada pela interação das vertentes africana, indígena e branca, tese
pioneiramente defendida por Von Martius, que Gilberto Freyre escapa da armadilha do discurso
antropológico da época, racialista, classificador e universalista. Segundo Roberto Da Matta, Freyre
126 RIBEIRO, 1979. p.66.
127 Antropólogo que se contrapõe teoricamente quanto ao elogio da mestiçagem, como traço fundamental na cultura
nacional, presente tanto em Gilberto Freyre, como em Darcy Ribeiro, porque, segundo ele, este é um traço que
mascara as diferenças e encobre os preconceitos, assumindo o caráter de discurso ideológico dominante.
128 DA MATTA, 1997. p.1
53
foge do discurso totemizante e da fala universal, ao destacar a cultura brasileira, retomando-a pela
sua particularidade :
No caso de Freyre, o texto tem muitos planos. É colonizador e “de fora” (na medida
em que seu autor dialoga com mestres e colegas que produzem nos centros
intelectuais do ocidente onde estudou); mas é uma narrativa sofrida e interessada,
‘de dentro.
129
Roberto Ventura
130
compartilha com a visão de Da Matta, acrescentando que, em Freyre,
se percebe a afirmação de uma postura intelectual focada em elementos extraídos de uma leitura
estabelecida a partir dos vieses da história econômica e cultural do país. Para Ventura, Gilberto
Freyre é uma voz que, em conjunto, se aproxima de outras que passaram a lidar com a questão da
formação da identidade nacional, tomando como princípio a noção de cultura, entre as quais, cita os
antropólogos brasileiros, Artur Ramos e Roquete-Pinto; ou escritores latino-americanos como
Fernando Ortiz, Mariatégui e Arguedas, os quais estiveram envolvidos em uma práxis
experimentalista, culturalista e hibridizante, voltada para o desvelamento das vozes não européias
ocultadas pelo processo de colonização, como formas de representar a cultura latino-americana.
131
Tomado pela influência de sua formação culturalista, assim se expressa Freyre em seu
prefácio:
Foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me
revelou o negro e o mulato no seu justo valor separados dos traços de raça, os
efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a
diferença entre raça e cultura. A discriminar entre os efeitos de relações puramente
genéticas e os de influências sociais, herança cultural e de meio.
132
No início de seu capítulo introdutório, Freyre, para se contrapor ao discurso racialista,
toma como referência o materialismo histórico, embora fosse avesso de maneira convicta ao
marxismo, expressando-se da seguinte forma:
129 DA MATTA, 1997. p.2.
130 VENTURA, 2000. p.24.
131 VENTURA, 2000. p. 24-5.
132 FREYRE, 2003. p.32.
54
Por menos inclinado que sejamos ao materialismo histórico, tantas vezes exagerado
nas suas generalizações principalmente em trabalhos de sectá rios e fanáticos -
temos que admitir a influência considerável, embora nem sempre preponderante, da
técnica de produção econômica sobre a estrutura das sociedades; na caracterização
da fisionomia moral (...) Muito do que se supõe nos estudos de eugenia e de
cacogenia como resultado de traços e taras hereditárias preponderando sobre outras
influências, deve-se antes associar à persistência, através de gerações, de condições
econômicas e sociais favoráveis e desfavoráveis ao desenvolvimento humano.
133
Abstraindo-se de determinismo, Freyre desenvolve uma narrativa, em relação à qual
Ricardo Benzaquen Araújo
134
destacou a estrutura antimônica e paradoxal, por entremear a crítica e
um elogio, a um valor positivo outro que é negativo. Hermano Vianna citado por Haydée Ribeiro
Coelho
135
, reporta a Benzaquen para destacar essa dificuldade em se estabelecer um sentido unívoco
sobre o Brasil, uma vez que esboça “imagens antagônicas do Brasil” apontadas pelo texto de Freyre.
Para Ricardo Benzaquen, a explicação é dada pela expressão largamente empregada por Freyre
“equilíbrio de antagonismos.”
136
O papel social do indígena, apresentado por Freyre nesta sociedade colonial, não escapa,
na sua representação, a este modo narrativo antinômico, para o qual chamou atenção Benzaquen, o
que confere ao texto um caráter “escorregadio”, que não sendo totalmente negativista em relação ao
indígena também não é positivo. Aliás, o tom prevalente no discurso de Freyre, em relação ao
indígena é negativo, no sentido de ser demeritório, além de equivocado em muitos aspectos do
ponto de vista cultural.
A perspectiva sobre a cultura indígena, já de início apresentada por Freyre, pode ser
descrita como uma retórica de afirmação do poder de mando do colonizador, usurpador da terra
indígena, calcada no argumento da irrelevância dos sítios tradicionais indígenas, fato que pode ser
depreendido, por exemplo, quando Freyre mostra a hierarquia colonial do branco, ressaltando uma
133 FREYRE, 2003. p.32.
134 ARAUJO, 2000. p.9-12
135 COELHO, 2000. p.143.
136 COELHO, 2000. p.143.
55
suposta falta de enraizamento cultural do indígena que aparece, entre outros trechos, da seguinte
maneira:
Os portugueses, além de menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis e menos
estritos que os ingleses no preconceito de cor e de moral cristã, vieram defrontar-se
na América, não com um povo articulado em império ou em sistema já vigoroso de
cultura moral e material (...) mas, ao contrário, com uma das populações mais
rasteiras do continente.
137
Ao conceber paralelos comparativos entre culturas, Freyre classifica-as enfocando o
maior ou o menor grau de adiantamento, insistindo no encontro benéfico entre portugueses e
indígenas, argumentação esta defendida a partir da hipótese da plasticidade do português. Segundo
o sociólogo pernambucano, o contato entre indígenas e portugueses constituiu-se em:
(...) um ambiente quase de reciprocidade cultural que resultou no máximo de
aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no
máximo de contemporização entre a cultura adventícia com a nativa, da do
conquistador com o conquistado.
138
O sociólogo reafirma, também, a inferioridade destes indígenas diante de outras
populações ameríndias e, ainda, em relação aos africanos de religião maometana:
As observações deixadas por visitantes e missionários que surpreenderam a vida dos
caboclos ainda virgens do contato europeu,autorizam-nos a generalização de ter sido
a cultura indígena, mesmo a menos rasteira, encontrada na América pelos
portugueses - e da qual ainda restam pedaços em estado bruto inferior à maior
parte das áreas de cultura africana de onde mais tarde se importariam os negros e
puros ou já mestiços para as plantações coloniais de açúcar.
139
O evolucionismo social torna-se explícito nas frases seguintes:
De modo que não é encontro de uma cultura exuberante de maturidade com outra já
adolescente, que aqui se verifica; a colonização européia vem surpreender nesta
parte da América quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e
incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos, nem o desenvolvimento, nem a
resistência das grandes semicivilizações americanas (...)
140
137 FREYRE, 2003. p.158.
138 FREYRE, 2003. p.160.
139 FREYRE, 2003. p.164.
140 FREYRE, 2003. p.158.
56
Freyre destaca a resistência cultural evidenciada pelo repúdio ao estrangeiro usurpador e
a presença da tecnificação, ainda que de modo rudimentar,como indicadores de desenvolvimento de
um povo Esta tecnificação é medida pela capacidade de edificar; pela gestão do solo e da
subsistência, pela capacidade de extrativismo mineral e pelo manejo produtivo (existência de
técnicas de agrícolas e a domesticação de animais para consumo).
Nesse nível de discussão, o grau de desenvolvimento da cultura é concebido pelo grau
de hierarquização dessa sociedade e da capacidade de acumulação obtidos pela cultura em questão.
Os indígenas incas, maias e astecas são vistos como semicivilizações, já bem enraizadas, por
constituírem o que ele chama de um vigoroso sistema de cultura moral, uma vez que dominaram
materialmente o meio, construindo palácios, monumentos, pontes, exploração de minas; enquanto
os indígenas brasileiros, sem a freqüência de práticas de cultivo ou exploração mineral, na maior
parte das ordens tribais, sem propensão ao aprovisionamento de víveres pela prática da agricultura,
eram considerados povos atrasados, sem capacidade de organização ou de estabelecer resistência ao
colonizador português.
Ao falar do indígena da América portuguesa, Freyre ressalta a ausência de uma
organização social mais complexa, comprometendo a capacidade reativa do indígena frente à ação
do colonizador português. Destaca-se, no pensamento freyriano, a incapacidade dos indígenas
habitantes das terras de “pau-de-tinta”, na defesa de seu próprio ambiente.
Para esse autor, as semicivilizações pré-colombianas responderam aos invasores com a
“tenacidade do cobre”, o que suscitou uma resposta cruel por parte dos espanhóis; por outro lado, os
indígenas, da América portuguesa, reagiram com “contratilidade vegetal”, recuando e protegendo-se
no interior da floresta, o que facilitou o projeto de colonização do português e evitou que fossem
exterminados. Para Freyre: o indígena ainda foi vegetal na agressão: quase mero auxiliar da
floresta. Não houve da parte dele capacidade técnica ou política de reação que excitasse no branco
57
a política de extermínio seguida pelos espanhóis no México e no Peru.
141
Vainfas
142
, comentando a necessidade de se fazer uma nova história que contemple a
história indígena no Brasil, aborda a temática interessante de que há um recalque, na história oficial
do papel ativo desempenhado pelo indígena, durante o processo de colonização. A propensão do
pensamento oficial em se criar uma narrativa “assujeitando” o indígena, desautorizando-o como
agente do processo, desconsidera que, no transcurso do ato civilizatório, o indígena tomou sim
posição diante da dinâmica deste processo social motivado pela ação colonizadora. Defendeu-se,
atacou-se, coadunou-se com o colonizador, compondo alianças, associou-se aos negros na formação
de quilombos, guerreou em disputas territoriais contra os negros, contra os hispânicos, com eles
tecendo um mapa político complicado, envolvendo alianças e rupturas, em um esforço que visava,
enfim, à sobrevivência quer do indivíduo, quer de seu próprio ethos, em meio ao encontro cultural
promovido pela colonização, encontro este de múltiplos conflitos e descobrimentos.
143
141 FREYRE, 2003, p.158.
142 VAINFAS, 2000, p.18-20.
143VAINFAS, 2000, p.18-20.
58
2.2.3 A representação feminina e masculina do indígena em Freyre
A representação indígena em Freyre é mediada pelos textos de etnólogos, viajantes,
religiosos, desde os primórdios da colonização, fato já salientado por Darcy Ribeiro e Roberto Da
Matta, o que significa que, embora o seu texto apresente o caráter etnográfico,
144
sua representação
não parte de uma observação direta, constituindo, antes, uma interpretação das representações já
existentes.
Para abordar aspectos da cultura indígena, o autor de Casa-grande & Senzala elege
como traços culturais aspectos referentes às relações familiares e sexuais; à magia e à mítica,
145
e
justifica a seleção da seguinte maneira:
São traços que se comunicaram à cultura e à vida do colonizador português, a
princípio com grande vivacidade de cor, e que embora empalidecidos depois pela
maior influência africana, subsistem no fundo primitivo de nossa organização social,
moral e religiosa, quebrando-lhe ou pelo menos comprometendo seriamente a
suposta uniformidade do padrão católico ou europeu.
146
(grifos meus)
De modo geral, em Casa-grande & Senzala, a imagem, construída em relação ao
indígena, é a de subserviência, no que se refere ao encontro das raças para a formação do povo
brasileiro. O enfoque é dado separadamente a partir da distinção, não por etnias, pois não há uma
abordagem etnológica em Freyre, mas pelo gênero, adotando valores contributivos diferenciados
para o homem e para a mulher indígena na formação da sociedade nacional.
O discurso de Gilberto Freyre procura mostrar a positividade da incorporação do
indígena à sociedade colonial, fato propiciado pela interação entre o senhor da “Casa-grande” e a
mulher indígena, com a qual veio a constituir o primeiro contingente de mães na gestação do povo
144 RIBEIRO. 1979. p.77.
145 FREYRE. 2003. p.167-8.
146 FREYRE. 2003. p.168.
59
brasileiro. Descaracterizando um possível enfoque de abuso do Senhor, Freyre procura mostrar a
adesão solidária da indígena, pela tese da mobilidade social, afirmando que: da parte das índias, a
mestiçagem se explica pela ambição de terem filhos pertencentes à raça superior, pois segundo as
idéias entre eles correntes só valia o parentesco pelo lado paterno. A propósito desta conjunção e
da relação marital do branco com a mulher indígena, Freyre salienta que lograram os seguintes
traços culturais: o lúdico, o anímico, o erótico, o pendor para a limpeza e asseio, o cuidado no trato
dos filhos e com a alimentação. Entre os aspectos, Freyre cita em especial os costumes, a comida, os
brinquedos e os utensílios.
Em um dos raros trechos, em que valoriza o homem indígena, Gilberto Freyre endossa a
opinião já demonstrada por Euclides da Cunha e Manuel Bomfim sobre a aptidão e a coragem do
indígena como desbravador. Esses autores destacaram que, no processo de interiorização e
conquista dos sertões, o sangue indígena foi de máxima valia para o adentrar da civilização. Na
opinião destes intelectuais, os indígenas como guias, canoeiros, guerreiros, caçadores e pescadores
muito auxiliaram ao bandeirante, este também mameluco.
Quando o que pesa é a reatividade guerreira do indígena, a opinião de Freyre é mais
modesta do que, por exemplo, a opinião de Manuel Bomfim, para quem o indígena brasileiro, em
matéria de caráter, mostrou ser sem igual em coragem e tenacidade, chegando a superar mesmo as
situações mais dolorosas.
Constitui, ainda, ponto relevante pela lucidez da abordagem, a interpretação freyriana
sobre os danos impingidos pelo processo colonizador e pelos jesuítas à cultura indígena. O
sociólogo pernambucano mostrou que os clérigos por meio da ação aculturadora, extirpando os
curumins da vida tribal, para catequizá-los e, ao pregando a moralidade cristã, quebraram a espinha
dorsal da cultura indígena. Darcy Ribeiro salienta, a propósito desta leitura freyriana, que nela
reside a renovação da visão brasileira sobre o processo colonizador:
60
Onde Gilberto Freyre nos dá um painel realmente expressivo, onde ele indaga com
maior liberdade e isenção, onde ele renova corajosamente a visão brasileira, é no
exame do papel desenraizador do jesuíta. É na análise acurada e vivaz de sua obra
de tirar da cultura indígena osso por osso para dissolver o que pouco havia de duro
naquela cultura e capaz de resistir. Para isso o jesuíta teria desenvolvido toda uma
pedagogia fundada na utilização de crianças como agentes de mudança cultural.
147
Sobre a integração indígena à sociedade nacional, na narrativa sociológica de Freyre, o
aceite servil da hierarquia colonial e a adesão voluntária da mulher à supremacia do senhor feudal
são as imagens sobre o indígena que preponderam em Casa-grande & Senzala, vindo a se
constituírem fios narrativos que estruturam a retórica do poder no texto freyriano.
O sociólogo deixa representada, ainda, porém de forma mais modesta, a reação
indígena ao processo colonizador, que é a linha de fuga ao processo de dominação, manifestada
através dos enfrentamentos, rebeliões e fugas para interior.
O texto de Gilberto Freyre não se fecha em uma única perspectiva ao lidar com a
questão intercultural, embora o sociólogo focalize a assimilação do indígena à sociedade, a seu ver,
mais avançada mediada pela adesão feminina, deixa exposto também os efeitos deletérios do
contato. Desta forma, a fuga indígena, diante dos implantes coloniais, vista como resistência, é
concebida como estratégia de sobrevivência. Para o sociólogo ainda, como decorrência do contato,
o evolucionismo natural se perde, e é inevitável a aculturação que gera em resposta um
antagonismo, este constitutivo no processo da formação do comportamento nacional.
(...) não nos esqueçamos, entretanto, de atentar no que foi para o indígena, e do
ponto de vista de sua cultura, o contato com o europeu. Contato dissolvente. Entre as
populações nativas da América, dominadas pelo colono ou missionário, a
degradação moral foi quase que completa, como sempre acontece ao juntar-se uma
cultura já adiantada, com outra atrasada.
Sob a pressão moral e técnica da cultura adiantada, esparrama-se a do povo atrasado.
Perde o indígena a capacidade de desenvolver-se autonomamente tanto quanto a de
elevar-se de repente, por imitação natural ou forçada, aos padrões que lhe propõe o
imperialismo colonizador. Mesmo que se salvem as formas ou acessórios de cultura,
perde-se o que Pitt-Rivers considera o potencial, isto é, a capacidade construtora da
cultura, o seu elã, o seu ritmo.
148
.
147 RIBEIRO, 1979. p.87.
148FREYRE, 2003. p.177.
61
O conflito produzido é perpetuado na sociedade nacional, na forma de uma instabilidade
emocional e selvática do comportamento do brasileiro.
2.2.4 : , Heranças indígenas misticismo gatunagem e luxúria
Gilberto Freyre, citando Sílvio Romero, a quem tratou por arguto observador, atribui à
herança indígena traços manifestos no comportamento do brasileiro, como o medo do
fantasmagórico, a crença ao sobrenatural e ainda, devido a uma suposta fragilidade moral desses
povos, o pendor para o assassínio e para o furto. Para este pensamento pessimista e de natureza
determinista, subsistem, na população brasileira, caracteres herdados dos antepassados indígenas
que ainda necessitariam ser moldados pela civilização. Sobre isso, Freyre expressa-se da seguinte
maneira:
Também são freqüentes, entre nós, os lapsos no furor selvagem ou primitivo de
destruição, manifestando-se em assassinatos, saques, invasões de fazendas por
cangaceiros: raro aquele dos nossos movimentos políticos ou cívicos em que não
tenham ocorrido explosões desse terror recalcado ou comprimido em tempos
normais (...) Os relapsos em furor selvagem observamo-los em movimentos de fins
aparentemente políticos ou cívicos, mas na verdade pretexto de regressão à cultura
primitiva, recalcada porém não destruída.
149
Outro aspecto, que abrange a representação indígena em Freyre, suscitando sua rejeição
conservadora e etnocêntrica, é o coletivismo indígena. Para Freyre, ele comprometeu a noção de
propriedade privada, assim como noções morais mais elevadas, trazendo para a sociedade moderna
o conflito e a propensão ao roubo. O autor mostra também que da justa combinação entre o caráter
privatista do português e a falta de noção de posse individual do indígena se estabeleceu o costume
149FREYRE,2003. p.212-13.
62
entre descendentes europeus de precaverem-se contra o roubo, enterrando o dinheiro, cercando a
propriedade privada com muros coroados com cacos de vidro e, ainda, mantendo as mercadorias
escondidas na casa do vendeiro e não expostas ao público. Para referendar-se, Freyre cita Saint-
Hilaire,
150
por ocasião de sua viagem no interior de São Paulo, no início do século XIX, o qual,
atribui ao mameluco, portanto, ao descendente indígena a mesma tendência à rapacidade.
151
2.2.5 O discurso da sexualidade e a representação indígena em
-Casa
& grande Senzala
O ambiente em que começou a vida brasileira era de quase intoxicação sexual.
(Casa Grande &Senzala)
Gilberto Freyre mantém articulados vários pontos de sua teoria sobre a colonização, que
vão se imbricando, para culminar com o elogio da colonização portuguesa. Nesta perspectiva, o
senhor da casa grande, uma analogia ao senhor feudal
152
, era o centro do poder colonial, o qual nem
a Igreja nem o Estado lhe competiam no exercício do mando. Eram-lhe antes suportes. A força que
emana do senhor da “Casa-grande” é explicitamente, no texto de Freyre, apoiada na sua virilidade.
A sexualidade aparece na narrativa de Casa-grande & Senzala como base na qual se estabelece a
relação entre portugueses e mulheres indígenas e negras. Essa é uma das principais linhas de força
presentes no texto de Freyre e dela derivam-se outras como a da democracia racial: o encontro
harmônico entre as alteridades envolvidas no jogo social do processo colonizador e as da natureza
150 FREYRE, 2003. p.215.
151FREYRE, 2003. p.215.
152
63
híbrida do caráter nacional.
O discurso de encontros de brancos, negros e índios, em Casa-grande & Senzala, em
parte se baseia na combinação de um discurso mais amplo, o da sexualidade, no qual Freyre
enfrenta a moral burguesa cristã, ao falar abertamente sobre o sexo e escancarar as relações privadas
de senhor, índias e negras, presentes no contexto colonial. Para esse antropólogo, o poder senhorial
se manifesta na forma como se constrói a relação de troca entre portugueses e índias, à sombra de
um sadismo/masoquismo “natural”, da poligamia, dos “processos de sifilização” e civilização, da
formação do estereótipo do indígena e, em especial, das mulheres e dos homens representantes dos
pólos de poder tribais.
Em Freyre, a sexualidade parece constituir uma estratégia narrativa bastante complexa,
pois por um lado ela é libertadora, uma vez que parece ser um “contra-discurso” ao da moralidade
burguesa e àquele de segregação social, preconizado pelas teorias eugenistas importadas do
estrangeiro pela elite nacional; por outro, em uma perspectiva interna, o discurso da sexualidade de
Freyre recolhe, em seu domínio, o jogo do poder, na estrutura hierarquizada da sociedade patriarcal,
reproduzindo, como categoria social, a relação senhor/subalterno, a qual desliza para outras
categorias também dualistas como masculino/feminino, sádico/masoquista e civilização/barbárie.
Segundo o filósofo Michel Foucault, durante o século XIX, normas sociais vigorosas de
repressão da sexualidade foram introduzidas na Europa, tornando o “falar sobre sexo” um tema
discursivo proscrito, salvando-se quando era assunto de natureza científica (morbidez e aberração),
policial, ou mantido o caráter confessional
153
.
A vigência de tais normas morais estabeleceu a relação de poder e hierarquia entre
homens e mulheres e condenou ao mutismo qualquer outra manifestação discursiva pública sobre o
153FOUCAULT, 1988. p.62-65.
64
sexo, permitindo, entretanto, como prática discursiva, apenas aquela de caráter confessional.
154
É
importante ressaltar que o discurso instituído sobre o sexo não distinguia ofensa ao casamento de
prazeres estranhos, e os tribunais civis condenavam tanto a infidelidade quanto a homossexualidade
ou a bestialidade, no entanto, o contra-natureza” era marcado por uma abominação particular.
Mas era percebido como uma forma extrema do “contra-lei”. É necessário frisar que tal
procedimento de controle do sexo não foi uma criação do séc. XIX, e nem impediu que
comportamentos sexuais diferenciados se proliferação em um contra-movimento ao legal.
155
A teoria da degenerescência, marcada pelo discurso de controle da sexualidade ainda
segundo Foucault, foi estimulada na Europa dezenovista e, uma vez instituída, foi disseminada e
açambarcada ideologicamente pelo Estado Nacional burguês tanto nos europeus, como naqueles do
chamado “Novo Mundo.” O discurso hegemônico utilizou uma visão pretensamente científica,
aliando-se a um conhecimento biológico visto pelas práticas médicas e de políticas estatais de
controle do sexo.
156
Este “bio-poder”, que engendrou a bio-política, operando como fator de
segregação e hierarquização social(...) garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia,
157
anos mais tarde fomentou a prática nefasta de racismo de Estado, foi indispensável ao
desenvolvimento do capitalismo, e operou como fator de xenofobia, segregação e hierarquização
social, garantindo as relações de dominação e efeitos de hegemonia social.
158
O texto de Freyre evoca uma certa autonomia em relação a esta ordenação social
disposta pelo pensamento hegemônico burguês e cristão. Nela, o controle social sobre o discurso do
sexo encontrou a antinomia pela linguagem quase pornográfica de Freyre em sua interpretação
154FOUCAULT,1988. p.98.
155 FOUCAULT, 1988. p. 39.
156 FOUCAULT, 1988. p.47-49.
157 FOUCAULT, 1988. p.133.
158FOUCAULT,1988. p.128-30.
65
cultural do Brasil, ressaltando um comportamento não menos escandaloso para a moral burguesa
como o hábito da relação sexual não monogâmica e a institucionalização da mestiçagem.
Roberto Ventura, em sua análise de Casa-grande & Senzala, também reporta a
Foucault, ressaltando que Freyre fez de sua obra uma referência autobiográfica em torno da própria
sexualidade, conferindo um viés confessional à sua narrativa sócio-histórica sobre o Brasil. Para
Ventura, Freyre fala de si mesmo, quando fala do Brasil, conforme se verifica no texto:
Freyre faz, portanto, em Casa-grande e Senzala, uma espécie de auto-análise, ao
mostrar como sua fixação nas mulheres 'de cor ' constituía uma autêntica predileção
nacional, já que, desde os tempos de colônia, os colonos demonstravam preferências
quase mórbidas pelas negras e mulatas. (...)a marca da influência negra sobre o
homem brasileiro se estenderia assim da mesa à cama, da cozinha ao sexo (...) Até os
padres e frades mergulhavam fundo nesse 'grande atoleiro de carne' composto de
índias desnudas e negras cativas, 'praticando o livre arregaçar de batinas para o
desempenho de funções quase patriarcais' de multiplicação da espécie.
159
Visto de uma outra forma, o discurso da sexualidade envolve outra perspectiva além da
apresentada por Roberto Ventura, e que remete diretamente à de estruturação de sua representação
do indígena, pois revitaliza, no imaginário social, a representação oligárquica e sua hierarquia social
arcaica, atenuando-lhe as implicações históricas de dominação e, ao fazê-lo, imputa a imagem
estereotípica sobre o “subalterno”.
A dialética da dominação, no discurso freyriano, coloca em relação íntima
senhor/escrava; homem /mulher; português /índia. A linguagem de sexo que procura, de maneira
corajosa, desvelar o recalcado das relações de alcova, o faz trazendo a relação de dominação para a
ordem do suposto “natural”, legitimando as bases desiguais de troca estabelecidas no passado.
O discurso instituído traz, como representações, por um lado, o Estado patriarcal,
dotado de atribuições masculinas na forma de constituir o poder, por outro, o universo primitivo
mostrado a partir de uma natureza elementar feminina. Nesse cenário, o feminino enfatiza a
passividade na relação de mando, mostrando a mulher indígena como principal fator da interação
entre brancos e índios na estrutura patriarcal e formação da família brasileira. A mulher indígena é
159 VENTURA, 2000. p.57.
66
apresentada como aquela que aceita com prazer o domínio do branco.
Pela afirmação recorrente no texto freyriano sobre o gozo das mulheres indígenas e
negras perante o português institui-se como “natural” o pressuposto de dominação na relação entre
portugueses e índias/negras, como pode ser depreendido, em Casa-grande & Senzala, partir de uma
citação de Paulo Prado, cuja fonte foi Capistrano de Abreu
160
, de que as mulheres indígenas elegiam
o português como parceiro pela sua virilidade: o desregramento do conquistador veio encontrar em
nossas praias com a sensualidade do índio. Da índia mais precisamente. Das tais caboclas
priápicas doidas por homem branco.
161
Complementando à situação, apresentada por Freyre, acerca do fascínio exercido pela
virilidade do homem português, a masculinidade é questionada nos homens indígenas e também dos
negros. A representação do homem indígena ocorre pela oposição ao modelo masculino, evocando a
figura do “desviante” feminilizado que Freyre identificará como traço identitário do índio, tese
exaustivamente demonstrada pelo sociólogo e defendida com base em múltiplos aspectos
Freyre ressalta que as mulheres indígenas contribuíram vantajosamente para a formação
social do Brasil da seguinte maneira: ofereciam-se ao branco e realizavam o trabalho regular
doméstico, agrícola e artístico. A essa justificativa provavelmente se concatena a afirmação de
Freyre de que a estabilidade social era um atributo das mulheres nas sociedades indígenas. Entre os
seus, era a mulher índia o principal valor econômico e técnico: Um pouco besta de carga, um pouco
escrava do homem.
162
O primeiro refere-se aos pajés que, para Freyre, nesse sentido, eram daquele tipo de
homens efeminados ou invertidos, que a maior parte dos indígenas americanos antes respeitavam e
temiam do que desprezavam ou abominavam. Uns efeminados pela idade avançada (...) outros,
160 O qual se inspira na obra Cornelius de Pauw (1739-1799): Recherche Philosofique sur les Americains,1768.
161FREYRE, 2003. p.171.
162FREYRE, 2003. p.185.
67
talvez por perversão congênita ou adquirida.
163
Nesse sentido, o sociólogo constrói uma
representação do ethos tribal, relacionando o homossexualismo às formações sócio-culturais de
constituição do poder:
A verdade é que vão para a mão de indivíduos bissexuais ou bissexualizados que
pela idade resvalaram, em geral , os poderes e funções místicos de curandeiros,
pajés, conselheiros entre várias tribos americanas.
164
Nessa linha, os guerreiros são avaliados da mesma forma. Nesse caso sua justificativa,
apresentada a partir de citações de outros estudiosos, destacava uma relação entre raça e
comportamento (no caso “desviante”) dado a uma generalização da ocorrência do homo ou
bissexualismo dos homens indígenas. As implicações maiores estão no fato de relacionar-se o
homossexualismo à estruturação do poder e ao exercício da posição de mando nas sociedades
“primitivas”, pois o outro pólo de poder tribal, ligado à iniciação e prática guerreiras, também é lido
em Freyre sob a perspectiva do homossexualismo:
A freqüência da homomixia entre várias das sociedades primitivas da América são
numerosas – já o dissemos – as evidências; Westermark sugere que o ritmo guerreiro
da vida dessas sociedades talvez favorecesse o intercurso sexual de homem com
homem e mesmo de mulher com mulher. (...) As sociedades secretas de homens,
possível expressão, ou antes, afirmação do prestígio do macho contra o da fêmea, do
regime patronímico ao matronímico, talvez seja melhor estímulo que a vida de
guerra à prática da pederastia. O certo é que nos “baito”, espécie de lojas de
maçonaria dos indígenas só franqueadas aos homens depois de severas provas de
iniciação, pôde surpreender Von Den Steinen, entre os Bororo, os mancebos em livre
intercurso sexual uns com os outros; isto sem ar de pecado mas naturalmente.
165
O fato é que esta tese freyriana do homem indígena se propaga para todo o socius tribal,
enfatizando também a relação entre homossexualismo e as manifestações culturais como o exercício
da ciência, arte e religião. Os costumes também são alvos dessa representação, a “couvade”, por
exemplo, prática na qual o homem indígena acolhe a maternidade ritualisticamente, é mostrada
163FREYRE, 2003. p.186.
164FREYRE, 2003. p.186.
165FREYRE,2003. p.188.
68
dessa forma, pelo sociólogo pernambucano:
A própria “couvade”, complexo de cultura tão característico das tribos brasílicas,
talvez possa alguém arriscar-se a interpretá-la pelo critério da bissexualidade.
Notada entre povos que em geral respeitam, ao invés de desprezar ou ridicularizar os
efeminados, (...) é possível que o costume tenha se originado desses diferenciados
sexuais: indivíduos de forte influência sobre a maioria.
166
Como expõe Freyre, a “couvade”, como rito, remete a um:
(...) complexo de cultura em que são tantas as evidências do mecanismo de
compensação de que serve o invertido: o repouso, o resguardo, a dieta, a
identificação do homem com a mulher. Porque em geral eram os dois que ficavam de
resguardo e de dieta e não só o homem como de ordinário se pensa.
167
A imagem da sociedade colonial, que perpassa o modelo freyriano, elege o homem viril
como representação do poder, discurso observável a partir do enaltecimento do português. Mais do
que uma alegoria, envolvendo deslocamento de sentidos como pátria-pai-senhor, essa representação
entrelaça discursos sociais envolvendo o controle social, o poder e a dominação. A masculinidade
como critério positivo de representação do socius implica na projeção sobre a representação da
sociedade indígena de um valor negativo. Em termos de uma possível recepção do público leitor,
talvez, mereça ser pesquisado, pois não é possível afirmar com os elementos estudados nessa
pesquisa, se o feito de tais afirmações sobre a moralidade da época não produziu uma maior onda de
rejeição ao indígena, reforçando as idéias difundidas pelos viajantes dezenovistas.
Pedro Paulo Oliveira, em seu livro Construção social da masculinidade, desenvolve um
estudo sobre como o ideal da masculinidade foi uma construção social da Idade Moderna e um
valioso instrumento simbólico para constituir um Estado Nacional moderno, baseado na estabilidade
e na competição, e um auxiliar na implantação e expansão do ideal burguês e da sociedade
capitalista.
Nesse sentido, para esse autor, a masculinidade foi utilizada para instituir a identidade
166FREYRE,2003. p.186.
167FREYRE,2003. p.187.
69
nacional, suscitando ideais de bravura, coragem, defesa da liberdade e da soberania, entre outros
ideais identificados com a defesa da pátria e da nação.
168
O estado burguês buscou na imagem do
“pater-familias”, o provedor doméstico, definindo os papéis sociais e a divisão do trabalho colocada
em termos de gênero. À mulher foram atribuídas as atividades do lar e da criação dos filhos. Os
homens vieram a compor o “exército” de trabalho. As decisões eram masculinas e a mulher não
exercia direitos de cidadania. A idéia elevada de nação reforçava o ethos masculino, conforme é
observado no seguinte trecho: o verdadeiro homem viril era aquele que colocasse sua força de
resistência a serviço de uma causa de maior valor, realizando um acoplamento entre o agente e o
‘socius’, através da identificação do varão com os mais altos ideais sociais.
169
A contraface da masculinidade, que funciona como antiparadigma,
170
é apresentada
através da feminilização e a tipologização do comportamento “desviante”.
171
Um dos pontos a ser
observado, como aponta Pedro Paulo de Oliveira, é que seria impossível para o ideal de
masculinidade se consubstanciar sem que se criasse simultaneamente um movimento inverso em
que o feminino fosse, explicitamente ou não, posto em segundo plano, visto como inferior ou
subalterno.
Assim, o gênero feminino, ao ser socialmente diferenciado do masculino, demandaria na
divisão social dos papéis desempenhados por homens e mulheres na sociedade, que é parte do
modus operandi da sociedade patriarcal. No processo de divisão de papéis, caberia ao homem a
produção do novo, as conquistas e o avanço, simbolizando a instituição da ordem e o progresso. À
mulher caberia a dedicação à família, aos heróis e à tradição assim como a submissão ao homem.
Freyre, na concepção de Casa-grande & Senzala, opera com os dois níveis de elaboração metafórica
da sociedade: o da masculinidade para afirmar a sociedade patriarcal e o da feminilização para
168 OLIVEIRA, 2004. p.31.
169 Idem.
170OLIVEIRA, 2004. p.71.
171OLIVEIRA, 2004. p.71.
70
justificar o domínio.
Roberto Ventura, a propósito da encenação sadomasoquista de prazer com que Freyre
apreende a relação senhor / índia ou negra, mostra que, para este autor, o sadomasoquismo
ultrapassa a esfera do privado e passa a se configurar também na ordem social e política. Ventura
afirma que, para Freyre, o gosto pelo mando do senhor da “Casa-grande repercute nos níveis
inferiores da hierarquia social com o gosto pela dominação. Assim, cita o sociólogo que conclui que
o grosso do que se pode chamar de “povo brasileiro” ainda goza é com a pressão sobre ele de um
governo másculo e corajosamente autocrático.
172
Essa passagem da interpretação livre do privado ao público é bem um deslocamento
discursivo encontrado em Freyre. Isso remete a um outro ponto que é a inserção do discurso de
Freyre sobre a formação da família na sociedade brasileira ao discurso maior da masculinidade
como critério de poder.
Pedro Paulo de Oliveira mostra, em sua análise, que há uma relação entre a idealização
da masculinidade, como construção simbólica do estado burguês, e a institucionalização de formas
de dominação sobre aquele “outro”, o antípoda da masculinidade. Conforme mostra o sociólogo, a
masculinidade no transcurso da modernidade aflorou como a simbolização de um ideal de
permanência e de preservação da família e de todas as tradições contra a loucura e as mudanças da
sociedade industrial.
173
A ação conjunta das instituições modernas constituiu, disseminou e garantiu
as bases sociais do modelo viril emergente.
No tocante à representação indígena, pode-se inferir que a fala masculina da
representação portuguesa se opõe à feminina da representação indígena. Baseando-se a estratégia
discursiva nesse modelo, essa comparação simbólica serve ao propósito de compreender como
subalterno o feminino, de referendar dominação e aliciamento da mulher indígena e, por outro lado,
172VENTURA, 2000. p.57-8.
173OLIVEIRA, 2004. p.48.
71
a exclusão do homem indígena presente na narrativa de Freyre repercute com aquela que ocorre nos
moldes do estado burguês em relação ao “homoorientado”. A tipologização do homossexual
baseada em um discurso médico, psicológico e jurídico é também uma face do modelo construído
da masculinidade. Pedro Paulo Oliveira afirma que com os ideais da masculinidade refletindo os
ideais da sociedade burguesa, aqueles que fossem vistos como inimigos desse ideal eram também
vistos como inimigos da sociedade: uma atribuição do lugar simbólico do feminino ao masculino
foi, e ainda é, sinônimo de infâmia, desonra e desclassificação social.
174
A metáfora do masculino/feminino se fortalece socialmente, na medida em que as
atribuições de papéis sociais se definem (Freyre, por exemplo, defendia a educação diferenciada
para a mulher). Como mostra Pedro Oliveira, os ideais assim colocados são inerentes a uma
sociedade em que o gênero masculino é visto como hierarquicamente diferente do feminino, com a
ressalva de que essa é uma construção social que, vinda desde a Idade Média, se consolida como a
ascensão do Estado moderno, da sociedade burguesa e do capitalismo, durante o século dezenove.
Uma releitura da colonização, nesses termos, muito fala sobre os modelos construídos de uma
época, narrada pela voz de um observador inserido no contexto. Quanto à representação do indígena
nesta sociedade é vista pela forma da feminilização, o se que estabelece é a afirmação da
subalternidade, uma vez que, na apologia do patriarcado, há a valorização do ideal de
masculinidade que, por sua vez, estrutura-se mantendo o papel social feminino como auxiliar.
2.3 : ?Mário de Andrade e Gilberto Freyre uma interlocução possível
2.3.1 Gilberto Freyre e o Regionalismo
174OLIVEIRA, 2004. p.73.
72
Para Antonio Candido
175
, nos anos 20 e 30, o nacionalismo consolidou-se tematicamente
na produção de uma significativa parcela da intelectualidade. Naquele período, deu-se um intenso
debate, no qual muito se especulou sobre as raízes da nação. A renovação do pensamento nacional,
nesse contexto, suscitou novas interpretações sobre o Brasil que buscavam, nas manifestações
culturais, populares e eruditas,
176
aspectos marcantes que representassem a “realidade” social
brasileira, fato que engendrou uma polêmica em torno da acepção de nação, encabeçada, por um
lado, pelos modernistas e, por outro, pelos regionalistas.
Neste momento, muitos dos discursos sociológicos e literários foram produzidos com a
intenção de emitir uma interpretação sobre o Brasil, e fizeram - no, dialogando com os discursos já
instituídos, que versavam sobre a questão da nacionalidade. Nesse processo, como assinala
Candido, a literatura manteve-se como ponto de convergência para a renovação do pensamento
nacional, mesmo com o amadurecimento do pensamento social, que se desenvolveu aceleradamente
desde o início do século XX, e a divisão do trabalho intelectual, que propiciou um maior
distanciamento entre o discurso literário e o científico
177
, as grandes narrativas de cunho
sociológico do período, como Casa-grande & Senzala, e ainda Sobrados e Mocambos e Raízes do
Brasil, o fizeram mantendo sua narrativa semelhante a uma literária.
A produção intelectual, nos dois decênios do século XX, tomou consciência da cultura
popular e procurou promover uma guinada na atribuição de valores, revertendo a suposta
inferioridade atribuída ao povo e à cultura nacionais. Para tanto, chegou a inovar no aparato
metodológico de desenvolvimento da pesquisa científica, como aparece em Gilberto Freyre, e, na
literatura, com o Modernismo, a romper com o academicismo normativo da língua, campeando
175 CANDIDO, 1995. p.293-306.
176 CANDIDO,1995. p.298.
177Candido vê Os Sertões como o ponto alto da convergência entre discurso sociológico e literário e afirma que a partir
dessa obra ocorre a separação desses dois modelos de discurso. Para ele, tal livro, situado entre a sociologia
73
maior liberdade do uso da linguagem, a descrever manifestações culturais.
178
Isso feito, muitas vezes
lançando mão de interpretações antropológicas como se vê em Macunaíma e Casa-grande &
Senzala.
Cabe-me salientar que, naquele período dos anos 20 e 30, o nacionalismo era um
sentimento ascendente na sociedade ocidental, com a Europa procurando recuperar-se dos abalos da
“Primeira Guerra Mundial” e os Estados Unidos indo da euforia capitalista à primeira grande crise
econômica e à subseqüente recessão. Neste processo, as indagações identitárias em torno do sentido
de nação propiciaram a emergência de novos valores estéticos com as vanguardas modernistas e
ainda novas formas de nacionalismo, envolvendo questões como identidade nacional, nacionalidade,
caráter social, raça, eugenia e poder.
179
O Brasil vivia um momento de relativo crescimento, conforme explicita a análise de
Celso Furtado, sobre a formação econômica do Brasil.
180
Segundo ele, a pulsão econômica da vida
nacional encontrava-se, naqueles anos, na região sudeste e, embora o setor cafeeiro começasse a
apresentar problemas, a indústria nacional concentrada em São Paulo crescera durante a “Primeira
Guerra Mundial” e continuava ampliando seu parque industrial e constituindo um contingente de
trabalhadores assalariados. São Paulo firma-se como pólo econômico no cenário nacional, com um
moderno centro urbano associado ao setor industrial emergente e ainda mantendo o poder político
alcançado com a cafeicultura
181
. O Nordeste, por outro lado, entre as décadas de 1870 a 1920,
mantivera-se no mesmo patamar sócio-econômico, amargando a estagnação e a decadência
motivadas pelo declínio da cultura canavieira. Pilar da economia nordestina desde o século XVI, o
açúcar de cana-de-açúcar perdera as vantagens comerciais no mercado internacional para a
naturalista e a literatura, assinalou o fim do imperialismo da literatura. (cf.CANDIDO,1985, p.133)
178CANDIDO, 1985. p.133-7.
179 GUIBERNAU, 1997. p.95-101.
180 FURTADO, 1972. p.238.
74
produção cubana e para o açúcar de beterraba europeu.
182
Nos anos 20, as capitais São Paulo e Recife, pólo urbano do presente e do passado
respectivamente, constituíram os núcleos culturais que sediaram os movimentos mais importantes
do período, o Modernista e o Regionalista, no processo de renovação do pensamento brasileiro.
Estes movimentos envolveram, por um lado, o núcleo regionalista nordestino, de cunho histórico-
sociológico, marcado pelo apreço ao passado e às tradições regionais; e, por outro, o Modernista
que, ao debater estética na arte e literatura trouxe para seu interior o discurso da modernidade
urbana,
183
cosmopolita, avessa aos modelos tradicionalistas, que preconizava o futuro, o progresso e
a nacionalização. Isso alé m de pretender, de modo valorativo, a equiparação da arte brasileira à
européia.
José Maurício Gomes de Almeida
184
é enfático na afirmação de que ambos os
movimentos eram faces diferentes de um mesmo processo de luta pelo aprofundamento da
consciência nacional tanto na arte como na cultura. Antônio Dimas, outro crítico acrescenta que:
A rigor, foi um raro privilégio podermos contar a cada lado com figuras poderosas e
emblemáticas, jorrando idéias aos borbotões: no nordeste, Gilberto Freyre; no sul,
Mário. Hoje, mais de meio século depois, fica a certeza de que ambos
desempenharam papel mais complementar que adversário, o que não significa que se
queira pasteurizá-los, extirpando-lhes as diferenças em nome do hábito execrável da
conciliação do nacional, que tanto atravanca a nossa política.
185
Citando Gilda de Mello Souza, Antônio Dimas mostra que também ela compartilha
dessa visão, na qual aponta Mário de Andrade e Gilberto Freyre, muitas vezes tomados por
antagonistas, como personalidades, que representaram em um dado momento da cultura brasileira,
duas das mais importantes e fecundas posições do pensamento nacional.
186
181 FURTADO,1972. p.201.
182 ALMEIDA, 2003. p. 318-321.
183 SOUZA, 2002. p.97.
184ALMEIDA, 2003. p.325.
185DIMAS, 2003. p.335.
186 Idem.
75
No entanto, naquele momento, as duas posições (a regionalista e a modernista) se
confrontavam, e diante do acirramento do debate engendrado pelas partes, Gilberto Freyre chegou a
pronunciar, em resposta a um ataque feito ao Regionalismo do Recife por Guilherme de Almeida,
que: A verdade é que não se repelem, antes se completam, regionalismo e nacionalismo, do mesmo
modo que se completam nacionalismo e universalismo.
187
Assim, reconhecendo a propriedade da
afirmação de Gilberto Freyre, à luz do tempo decorrido, é possível afirmar que tais movimentos, a
despeito da tensão que caracterizou o debate entre ambas as correntes de signatários, eram faces de
um mesmo processo, dialeticamente relacionadas e que, em conjunto, introduziram, no imaginário
sobre a nação, novas imagens da sociedade nacional tanto a partir da visão modernizante e futurista
quanto da memorialística e passadista que contemplam as diversidades regionais existentes, abrindo
novas perspectivas sobre a acepção de identidade nacional e o nacionalismo.
Na década de 20, o movimento do Recife relacionado à valorização da cultura regional
pernambucana vingou, e, com ele, a institucionalização da memória cultural popular e erudita com
a releitura das tradições e a revitalização do passado pernambucano. Gilberto Freyre contava, então,
com aproximadamente 25 anos, era recém-chegado do estrangeiro onde adquirira formação
acadêmica nos Estados Unidos e depois conhecera a Europa. Firmando-se como intelectual neste
percurso, obteve o Mestrado pela Universidade de Columbia, em Nova York, onde tomara contato
com a Antropologia Culturalista, no curso do professor e antropólogo Franz Boas. Ao regressar para
o Brasil, integrou, com apoio de outros intelectuais, de acordo com Antônio Dimas
188
, um projeto de
demarcação cultural contra o avanço da modernização desenfreada, que poderia ofuscar a
originalidade e a autenticidade da cultura nordestina. Nesse sentido, foi feita uma campanha para a
conscientização dos nativos sobre a importância de se rechaçar os modelos culturais estrangeiros,
falsamente modernizantes, segundo o antropólogo pernambucano, para valorizar, sim, os costumes
187 FREYRE apud LEITE, 1994. p.669.
188 DIMAS, 2003. p.334-5.
76
regionais. Valorização essa que, para Freyre, deveria anteceder à modernização do Nordeste, pois,
caso contrário, a cultura nordestina sucumbiria diante do desapreço que as elites cosmopolitas lhe
dirigiam.
189
. Para tanto, como informa o já citado José Maurício Gomes de Almeida, a convite do
“Diário de Pernambuco”, Freyre organiza o livro do Nordeste, que conta entre os colaboradores com
Manuel Bandeira que escreve o poema em versos livres A Evocação de Recife.
190
O enaltecimento do Nordeste agrário e patriarcal, segundo José Maurício Gomes de
Almeida,
191
apresenta, desde o Romantismo, um mecanismo de “racionalização compensatória” em
relação à estagnação econômica do Nordeste. Após o declínio da economia açucareira e o
decorrente decaimento do nível de vida na região, atingindo a parcela antes abastada, a decadência
começa a ser interpretada, no plano cultural, como uma vantagem, evocando um certo conceito de
“pureza” e “autenticidade” culturais sobre o cosmopolitismo decorrente das influências estrangeiras
na região sudeste do Brasil. Essa racionalização compensatória se desdobrará, no decorrer do século
XX, em uma retórica nacionalista, manifestada através da dicotomização interior /litoral, mostrando
o interior como lugar onde é encontrada a autenticidade diante do estrangeiro inautêntico. Os
discursos sobre o nacional e o regional vão se interpenetrando, de modo a reforçar a pertinência das
palavras de Gilberto Freyre de que são o Regionalismo e o Nacionalismo complementares.
O capítulo “Regionalismo”, de Dilma Castelo Branco Diniz e Haydée Ribeiro Coelho
192
,
enfoca o Regionalismo, revisitando alguns textos críticos sobre o tema. É ilustrativa a referência a
um aspecto por elas salientado, que ilumina um aspecto envolvendo a questão da tensão entre o
nacional e o regional. Segundo mostra o artigo, há uma razão histórica que justifica o
atravessamento do nacional pelo regional, que decorre da implantação colonial. No período
189 DIMAS, 2003. p. 334-5.
190 Idem.
191ALMEIDA, 2003. p.320.
192 DINIZ e COELHO, 2005. p. 416-7.
77
colonial, a ocupação era nucleada e as áreas de influência de cada núcleo eram praticamente
independentes, havendo pouca comunicação entre elas. Estes núcleos, no entanto, vieram a
constituir os núcleos regionais e, por ocasião da formação do Estado Nacional brasileiro, foram
integrados a um projeto de nacionalização motivado pela gestão de um governo central.
193
Nesse sentido, quando veio o processo de formação da nação, o esboço de nação foi
compreendido pelo nicho tradicional e histórico composto pelos núcleos regionais e o modelo
político nacional.
A visão do regionalismo nordestino apresentada por Freyre, de certa forma, concilia
essa contradição, em Casa-grande & Senzala, ao interpretar o sistema familiar canavieiro como
núcleo originário da sociedade brasileira, tomando os elementos culturais particulares daquele
sistema social como traços constitutivos da sociedade e do ethos brasileiros. Freyre, intentando
instituir uma narrativa que inculcasse valor positivo ao passado colonial, na contramão do
pensamento social da época, atualiza as relações e os valores sociais da sociedade arcaica,
atribuindo-lhes a envergadura de marco fundacional da identidade nacional.
194
Tendo em vista a integração nacional, o Regionalismo em Freyre procura mostrar que
um Brasil regionalista seria, antes, um Brasil sem divisões, mas respeitado na sua diversidade, e
ainda revitalizado, almejando ser um Brasil livre de tutelas que tendem a reduzir a feudos certas
regiões.
195
. A intenção de transigir com a nacionalização fica bem clara em Gilberto Freyre, anos
mais tarde, com a publicação de seu Manifesto Regionalista, no qual escreve (1952):
São os 'modos de ser' caracterizados no brasileiro, por suas formas regionais de
expressão que pedem estudos ou indagações, dentro de um critério de inter-
relação, ao mesmo tempo em que amplie em nosso caso o que é pernambucano,
paraibano, riograndense, piauiense e até maranhense, alagoano ou cearense em
nordestino, e articule o que é nordestino com o que é geral e difusamente brasileiro
193 DINIZ e COELHO, 2005. p. 416-7.
194 VILLAS BÔAS, 2003. p. 130.
195Este foi o conteúdo de um artigo publicado no dia em que se começava o Congresso Regionalista de Recife, em
fevereiro de 1926 (FREYRE apud DIMAS, 2003. p.337.).
78
ou vagamente americano.
196
O enfoque da obra Casa-grande & Senzala tal como sugere seu subtítulo, “Formação da
família brasileira em relação no regime da economia patriarcal”, acena para a origem da nação, a
partir da constituição da sociedade brasileira colonial, privilegiando o núcleo familiar e patriarcal.
Nessa forma de perceber o passado, o texto invoca as interações étnicas presentes no ambiente
familiar colonial, explicitando, neste contexto interacional, a mestiçagem como força atuante na
formação da sociedade e identidade nacionais e altera o paradigma da discussão racialista para a
cultural.
197
Em Casa-grande & Senzala, a singularidade da cultura é mostrada enfatizando valores
presentes na sociedade colonial, na qual o patriarca, no caso, o senhor de engenho, exercia o poder
de mando. Neste texto, Freyre enfocará a sociedade nordestina, no período colonial, como
precursora do ethos nacional. Segundo Gláucia Villas Bôas, os argumentos de Freyre em ‘Casa-
grande & Senzala levam notadamente à construção de uma identidade nacional, mas não abrem
caminhos para a construção de uma sociedade moderna, isto porque as idéias de Freyre reafirmam
valores supostamente brasileiros espraiados pela sociedade patriarcal que é, na sua estrutura,
autoritária e antiigualitatária. Assim, para a socióloga:
Se a interpretação de Freyre tem a seu favor o juízo positivo do passado, complica-se
quando associa o ethos brasileiro ao poder de mando do patriarca, atribuindo
positividade a uma relação tradicional de mando e obediência que longe está de
favorecer a visão democrática da sociedade moderna, e, menos ainda sua dimensão
conflitiva. Na interpretação de Freyre, aliás, os conflitos são superados pela força de
um convívio social harmônico, que o ethos brasileiro se encarrega de restaurar a
cada dia, equilibrando antagonismos e diferenças.
198
2.3.2 : Mário de Andrade o Modernismo e o Regionalismo
196 FREYRE apud MARQUES. 2004. p.8.
197 COELHO, 2001. p.62.
198 VILLAS BÔAS, 2003. p.131.
79
O movimento modernista teve como mérito fazer uma revisão dos valores estéticos que
até então predominavam no cenário artístico e literário brasileiro. Seus membros pertenciam a uma
geração cosmopolita que preconizava a modernização e a ruptura com os modelos passados,
inspirando-se, para tanto, nas vanguardas européias do pós-guerra. Buscando enveredar por novos
caminhos e estabelecer novas fronteiras culturais, esse movimento debateu com afinco questões
como a identidade, o caráter e a cultura nacionais. Fato que para o espírito modernista, de liberdade,
se desdobrava em um nacionalismo crítico, favorável à afirmação da cultura popular, da tradição
oral, do abrasileiramento no emprego normativo e lexical da língua portuguesa. Como vanguarda,
os modernistas ainda invocaram o experimentalismo na arte, na poesia e na literatura com o objetivo
de desvelar a consciência nacional, mantendo em sua praxis, o diálogo entre literatura e outros
discursos como o psicanalítico, o etnográfico e o sociológico.
199
José Maurício Gomes de Almeida comenta que, nos anos 20, São Paulo era uma cidade
para a qual a herança colonial e imperial praticamente estava apagada, e diante do dinamismo da
vida urbana e do processo de industrialização acelerada, aquela jovem geração de intelectuais e
artistas, acercou-se da idéias de nação e renovação, aproximando-se para tanto das vanguardas
européias. Segundo o crítico, a realidade sócio-econômica impelia à idéia de renovação, exigindo
uma arte a ser construída em consonância com o momento pulsante de edificação de uma nação
moderna.
200
O que reiterava uma oposição ao tradicionalismo regional.
A aversão que os modernistas sentiam pelo Regionalismo ficou expressa na carta escrita
por Mário de Andrade para Câmara Cascudo, em novembro de 1925, data em que, como bem
esclarece Humberto Hermenegildo de Araújo
201
, já havia sido criado o “Centro Regionalista do
199 CANDIDO, 1985. p.123.
200 ALMEIDA, 2003. p.319.
201 ARAÚJO, 1997. p.203.
80
Nordeste” (1924), que antecedera em dois anos o “Congresso Regionalista do Nordeste”. Eis um
trecho desta carta de Mário de Andrade :
(...)em tese sou contrário ao Regionalismo. Acho desintegrante da idéia de nação e
sobre este ponto muito prejudicial para o Brasil, já tão separado. Além disso,
fatalmente o regionalismo insiste sobre as diferenciações e as curiosidades,
salientando não propriamente o carácter individual psicológico de uma raça, porém
seus dados exóticos. Pode-se dizer até exótico do próprio país, não acha? É certo, no
entanto, que o regionalismo bem compreendido traz grande benefício sobre o ponto
de vista da própria discriminação dos caracteres gerais, psicológicos e outros de um
povo.
202
O conteúdo da carta não deixa dúvidas quanto ao posicionamento do escritor em relação
ao Movimento Regionalista do Recife, pois a missiva se insere no contexto em que, procurado por
pessoas do grupo do Recife, Câmara Cascudo pedira conselhos a Mário de Andrade sobre o
movimento. A opinião contundente de Mário de Andrade sobre o regionalismo, este visto como
modelo estético e político, apareceria, em público, em 1928, em um artigo intitulado
“Regionalismo”, no qual o escritor dissera considerar tal estilo uma “praga antinacional”,
encontrada de maneira absurdamente constante no trabalho do artista genérico brasileiro.
203
É, no
entanto, necessário ponderar que o Regionalismo, a que se referia Mário, era o sem imaginação,
caricaturesco, sempre voltado para sua própria realidade. A esse regionalismo Mário tachava de
comadrismo que não sai do beco, ou pior: se contenta com o beco.
204
Ressalvando que:
(...)Porém ,quando o artista é deveras criador, pode parar no beco toda vida, feito
Lasar Segall, que nas obras brasileiras dele, tira do elemento regional um conceito
mais largo, alastra o documento humanizando-o.
205
Acenando para um hiato cultural, a explicação para essa divergência não se restringe ao
cenário brasileiro, repetindo-se também em outras partes da América Latina. Tratando desta
temática, em Transculturación narrativa en América latina, Ángel Rama
206
acredita que depois da
202 ANDRADE apud ARAÚJO, 1997. p.203.
203 ANDRADE apud SCHUWARZ, 1995. p. 484.
204 ANDRADE apud SCHUWARZ, 1995. p. 484.
205 ANDRADE apud SCHUWARZ, 1995. p.484.
206RAMA, 1989. p.29.
81
primeira guerra mundial, uma nova expansão econômica e cultural das metrópoles repercutiu na
América Latina, em todos os processos da vida americana, instituindo um desenvolvimento advindo
da modernização. Tal incluía os processos de urbanização e, na medida em que se consolidou,
estimulou a produção da homogeneidade cultural ao país, o que, por outro lado, incitou uma tomada
de posição das regiões provincianas diante da expansão dos valores culturais trazidos pela
modernização. Os regionalistas responderam com uma reafirmação dos conteúdos culturais
regionais, embora lançando mão de algumas influências da cultura modernizada. Eram movidos
pelo interesse de prosseguir com a herança passada recebida sem promover uma fenda cultural no
país.
Os modernistas, por outro lado, vinham com a proposta de modificar o conceito de arte,
rebatendo o tradicionalismo: uma arte “sem regionalismos ou pudores parnasianos”. Mário de
Andrade assim escreveu em “Modernismo e Ação”, publicado no “Diário do Comércio”, em 24 de
junho de 1925.
207
Estamos com o espírito totalmente voltado para o Brasil. E cada um realiza o Brasil
segundo nossa própria observação. Assuntamos, matutamos e realizamos. O nosso
atual movimento se caracteriza, sobretudo nisso. Abandonou o idealismo e é
prático
208
O poeta Oswald de Andrade evidencia que o papel desempenhado pelo Movimento
Modernista seria o de firmar o compromisso de promover uma Nação moderna, rompendo com as
representações passadas. Essa concepção está expressa no Manifesto Pau Brasil, de 1924, no qual
declara: o trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura
nacional.
209
. Em seu manifesto libertário, esclarece o que seria uma nação moderna, apresentada
para o mundo, do ponto de vista periférico:
207 ANDRADE, 1995. p.475-8.
208 ANDRADE, 1995. p.477.
209 ANDRADE,1995. p.138.
82
Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de
economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos.
Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio.
Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos.
Leitores de jornais. Pau Brasil. A floresta e a Escola. O museu nacional. A cozinha,
o minério e a dança. A vegetação. Pau Brasil
210
Nesse texto, Oswald acena para a diretriz estética da produção artística e literária que
Alfredo Bosi
211
chamaria de “primitivo-modernista” e que constitui uma forma de exploração
imaginária, em cujo movimento se busca desvelar as raízes culturais e com elas traços identitários,
como é visto em Macunaíma.
2.3.3 : Primitivismo modernista nova forma de representar o indígena
em sua interface com a nação
O primitivismo modernista foi um artifício estético criado pelas vanguardas européias
procurando desvelar aspectos inconscientes na cultura européia a partir de traços culturais correntes
nas culturas africanas e indígenas. Para Alfredo Bosi, no “primitivismo modernista”, a criação
artística da vanguarda européia buscava desvelar as formações culturais primitivas presentes no
imaginário ocidental como forma de atingir uma auto-consciência recalcada. Em nosso caso, sendo
o primitivismo, como conjecturou Oswald de Andrade,
212
um elemento naturalmente constitutivo de
nossa cultura e presente no nosso imaginário social, notado a partir da presença do índio e do negro,
seu desrecalque remeteria à revelação de traços identitários obnubilados pelo processo de
colonização. Dessa forma, a partir do primitivismo, desenvolveu-se uma proposta literária de se
constituir uma representação de nação que apreendesse o moderno, afirmando a cultura local, esta
aberta aos ecos emitidos pelos símbolos primitivos da cultura, embora ainda fiel ao modelo
210 ANDRADE, 1995. p.139.
211 BOSI, 1988. p.173-4.
212 SCHWARZ, 1995. p.135.
83
parisiense de uma civilização industrial em franca expansão.
As vanguardas, principalmente a surrealista e o expressionismo, que entreviam, no
primitivismo estético, como aponta Bosi, a forma de criação de uma autoconsciência (trazida pelo
desvelamento de processos inconscientes e influenciados pela teoria de Freud), buscavam o
encontro onírico de elementos extraídos do simbolismo ocidental, associados àqueles oriundos de
culturas não-européias. Assim, o primitivismo, como “topos” modernista, foi um elemento estético
usado para liberar a consciência artística e social dos modelos sócio-culturais arcaicos, próprios da
sociedade lusófona.
213
Pretendia-se uma expressão mais autêntica da consciência cultural, a qual Mário já se
referira, anteriormente, em seu Prefácio Interessantíssimo (1920). A introdução foi feita na forma de
versos livres, para seu livro Paulicéia Desvairada:
Não quis também tentar o primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os
primitivos de uma era nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipóteses feitas por
psicólogos, naturalistas e críticos sobre os primitivos das eras passadas, expressão
mais humana e livre da arte.
O passado é lição para se meditar, não reproduzir (...)
214
A representação primitivista, em um texto como Macunaíma, é um instrumento de
reflexão sobre a cultura nacional, que transfigura o primitivo intentando espelhar o moderno. Para
Candido, o primitivismo, no contexto modernista, é visto como fonte de criação e beleza e não um
empecilho à afirmação de uma cultura moderna, expressando-se na literatura, na pintura, na música
e nas ciências do homem. Na visão do crítico, o primitivismo modernista interveio na apreensão do
nacional, atuando sobre o problema da negação do indígena como parte integrante da cultura
nacional e garantindo que, na representação literária, tais componentes recalcados da representação
nacional fossem a ela incorporados :
213BOSI, 1988. p.173.
214ANDRADE, 1995. p.126.
84
Mário de Andrade, em Macunaíma , (a obra mais central e característica do
movimento) compendiou alegremente lendas de índios, ditados populares,
obscenidades, estereótipos desenvolvidos na sátira popular, atitudes em face do
europeu, mostrando como a cada valor aceito na tradição acadêmica e oficial
correspondia, na tradição popular, um valor recalcado que precisava atingir estado
de literatura.
215
Diante do exposto, o que se busca aqui salientar é que, por detrás da representação
indígena modernista, na qual se destaca o herói Macunaíma, do livro homônimo, o que está
representado é um indígena estético dedicado a produzir pelo olhar primitivista o desvelamento de
componentes recalcados na vida nacional.
2.4 O indígena em
Macunaíma
e em
- & Casa grande Senzala
2.4.1 Uma inversão da hierarquia colonial e contraponto ao modelo
social Freyriano
O retrato da sociedade brasileira de Mário de Andrade evidencia uma hierarquia social
que remete ao passado colonial, evocando não a casa senhorial, mas o mato virgem. Para melhor
introduzir o tema da hierarquia colonial, a teorização de Roberto Da Matta, em seu livro
Relativizando, é um ponto de partida que permite mostrar que o esboço social talhado por Mário de
Andrade em Macunaíma é bastante inovador. Em sua narrativa, Mário entroniza, como herói, um
cafuzo, e, ao fazê-lo, inverte o paradigma social da sociedade colonial.
Com a introdução do cafuzo no mito de fundação da sociedade brasileira, o escritor
modernista problematiza o aspecto da representação, introduzindo o negro como partícipe no
processo originário da nação, relendo a representação romântica de Alencar e, ao mesmo tempo,
215CANDIDO, 1985. p.120.
85
instaura a ruptura com a hierarquia social, racialista e determinista que vigorava até o momento.
Dessa forma, Macunaíma apresenta o nascimento mítico do homem brasileiro, fora do idealismo
romântico:
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto
retinto, filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande
escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia Tapanhumas pariu uma criança
feia. Essa criança é que chamavam Macunaíma. Já na meninice fez coisas de
sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Se o incitavam a falar
exclamava: __ Ai! Que preguiça!...
216
Nessa história, Mário lança um olhar diferenciado sobre a questão da mestiçagem, pois,
no mito, Macunaíma, um cafuzo, é aclamado “o herói de nossa gente”. A significação de
“Tapanhumas”, variante de tapanhuna, vem de Tapuy-una, vocábulo que, em tupi-guarani, significa
negro africano, conforme mostra o Vocabulário Tupi -Guarani / Português, de Silveira Bueno
217
, ou
ainda cafuzo, como está no Dicionário da Língua da Língua Tupy, por A. Gonçalves Dias
218
.
Cabe uma pequena digressão acerca do sentido em que o termo “herói” é tomado neste
trabalho. A heroicidade de Macunaíma aparece, nessa leitura, contemplada em duas dimensões, à do
herói e à do anti-herói. Como herói, Macunaíma estabelece um percurso positivo, ao cabo do qual, o
personagem desvela uma identidade particular originada a partir da interação com os múltiplos
elementos culturais presentes naquela sociedade nacional, naquele momento de transformação
histórica. É mediante a esse processo de interação, aglutinação e incorporação cultural que o
personagem ultrapassa a condição de out-sider para tornar-se um herói, refletindo, no seu processo
de construção, as próprias contradições da sociedade em toda sua ambivalência marcada pelo desejo
de ser universal ao mesmo tempo nacional.
Para esclarecer, retomo a discussão apresentada por Alfredo Bosi, em “Situação de
Macunaíma”, na qual o autor mostra que a designação “herói” apresenta um deslocamento no
216ANDRADE,1997. p.9.
217 BUENO, 1998. p.333.
218 DIAS, 1998. p.527.
86
decorrer da narrativa. Assim, no início da obra andradiana, “Herói” é um termo que se apresenta
acompanhado pela definição “sem nenhum caráter” e ao final é qualificado “como herói de nossa
gente”.
219
Neste trajeto, para o crítico, é mostrada a disposição autoral de celebrar uma figura
lendária presente no repertório de mitos indígenas e pensar o povo brasileiro à luz do primitivismo,
ou seja, percorrendo as trilhas cruzadas ou superpostas de sua existência selvagem, colonial e
moderna, à procura de uma sociedade que de tão plural que é, beira a surpresa e a
indeterminação; daí ser o herói sem nenhum caráter.
220
A formulação do herói, na leitura exposta por Bosi, é construída na medida em que o
autor, ao retomar a história do lendário Macunaíma, reafirma os atributos do personagem arrolados
na narrativa originária, o mito recolhido por Koch-Grümberg. O termo “herói”, na narrativa de
Mário de Andrade, é utilizado, como propõe Bosi:
(...) no senso mais lato possível, de um ser entre humano e mítico, que desempenha
certos papéis, vai em busca de um bem essencial, arrosta perigos, sofre mudanças
extraordinárias, enfim vence ou malogra.
221
A faceta de anti-herói, no entanto, é dada pela inversão do modelo galante ao mesmo
tempo em que critica os valores sociais e estéticos procedentes da sociedade tradicionalista, na qual
o herói aparece, senão um homem virtuoso, um aspirante a isso
222
. Na análise feita por Gilda de
Mello e Souza e presente em O Tupi e o Alaúde,
223
a questão da paródia aos contos arturianos é
primeiramente colocada. A carnavalização apresentada em Macunaíma engendra um percurso que
se equipara ao rito de passagem dos heróis medievais, no qual a busca do bem essencial, geralmente
trazendo um vínculo amoroso, projeta o herói rumo aos desafios do desconhecido. Essa perspectiva
mostra o herói como:
219 BOSI, 1988. p.171.
220 BOSI, 1988. p.171
221 Idem.
222 SOUZA,1979. p89.
223 SOUZA,1979. p.73-97.
87
(...)um vencido-vencedor, que faz da fraqueza a sua força, do medo a sua arma, da
astúcia seu escudo; que vivendo em um mundo hostil, perseguido, escorraçado, as
voltas com a diversidade, acaba sempre driblando o infortúnio.
224
Para a crítica, a faceta ambivalente do herói evoca uma dupla afirmação, a da eleição do
modelo europeu como universal e a da fidelidade ao Brasil, traduzindo a dicotomia universal e
nacional.
225
Em Macunaíma, a inversão, com efeito, promove a ruptura com o modelo social e
disciplinar eurocêntrico, desvelando e afirmando o lado primitivista, o pensamento selvagem ainda
não disciplinado pelas normas sociais e que naturalmente se antagoniza àquele modelo. Nesse
sentido, as duas facetas se interagem de modo a delinear o aspecto da resistência cultural, na medida
em que insinua e afirma uma cultura de viés popular, remetendo-a ao tema da identidade nacional.
Alfredo Bosi, ainda em seu estudo “Situação de Macunaímaprocura mostrar que, para
o escritor paulista, a cultura brasileira era um vasto sistema que incluía o popular e o não letrado,
visão que permitia contemplar o indígena e, ainda, o caipira, o sertanejo, o negro, o mulato e o
cafuzo. Para Bosi, na rapsódia andradiana, o entrelaçamento de fios culturais enseja um todo mais
importante que cada fio isoladamente. Uma mistura cultural com a qual se reconhece o brasileiro.
226
Tratando-se de uma totalidade, mas não de uma síntese harmônica, uma vez que o autor insiste no
caráter incoerente e desencontrado.
Na leitura apresentada por esta dissertação, entretanto, há um aspecto muito revelador
apresentado por Mário ao instituir um herói de natureza cafuza. O escritor enfatiza confere o
estatuto de herói a um elemento de natureza mestiça, posição que por si não é inovadora, pois a tese
da mestiçagem era um discurso difundido nos meios hegemônicos nacionais, mas ainda assim
importante para o desrecalque do brasileiro. No entanto, a inovação em Macunaíma ocorre ao
apresentar como herói do povo brasileiro o mestiço de negro e índio, fato que constitui uma
224 SOUZA, 1979. p.89
225 Idem. p.93.
226 BOSI, 1988. p.176.
88
representação positiva do segmento mais desprestigiado na escala de valores sociais daquela
sociedade freqüentada por ideais racialistas.
O antropólogo Roberto da Matta apresenta uma teoria sobre a sociedade colonial,
mostrando que no Brasil-Colônia vigorou um modelo de interação racial suis generis e, ainda
assim, conservador. Nele, as dinâmicas sociais, no que tange às diferenças raciais, permitiram uma
certa troca de intimidade entre os grupos étnicos, isso porque em função da hierarquia social rígida
do sistema colonial, a elite não se sentia ameaçada em sua estrutura de poder pela camada mestiça.
A hierarquia não era instituída apenas em torno da atribuição racial, mas, como sociedade
escravagista, era principalmente social, uma vez que os papéis sociais, nesse modelo de sociedade,
praticamente não se alteram.
O antropólogo esclarece que, nos modelos sociais em que prevalecia o pensamento
eugenista, todas as “raças humanas” teriam a sua relevância e seriam passíveis inclusive de serem
comparadas lado a lado, pois a diferença era dada de acordo com o grau de desenvolvimento. O
ponto primordial desse pensamento não se contrapõe ao fato de as raças existirem, mas de se
relacionarem umas com as outras. O mal, para o racismo de cunho arianista, não está no fato de
existirem diferenças raciais, mas de, em havendo estas diferenças, elas serem “desconsideradas”
pelo relacionamento inter-racial.
A construção identitária de Macunaíma dialoga com o conhecimento da época. Em seu
texto, a referência à mestiçagem e ao caráter nacional fica evidente. O sujeito insurgente, o anti-
herói da retórica nacionalista ufanista, vive um intenso processo de transformação, promovido pelas
múltiplas influências culturais a que se expõe ao viajar para São Paulo. Na cosmovisão
macunaímica apresentada pelo narrador, permanecem presentes os elementos oriundos de sua
cultura original como alguns mitos, costumes e vocabulário aos quais vão se incorporando novos
elementos. Dessa forma, o texto de Mário de Andrade rompe com a representação estática, ao
89
compor um personagem que se desloca em universos identitários distintos do modelo imobilista
colonial.
A pluralidade das influências culturais vai conferindo complexidade às relações sociais
estabelecidas, ensejando um processo identitário interacional. Nesse sentido, observa Schwartz que
o surpreendente é que na tentativa de definição deste herói brasileiro ele já venha desde o início
com a marca da ausência de definição.
227
É de fato paradoxal essa tensão no texto, pois há um
subtítulo que liberta o herói da “camisa-de-força” da leitura racialista, que está implícita na
ideologia do caráter nacional, e, no entanto, o texto reafirma no seu personagem os caracteres, como
a preguiça e a luxúria, que acabam por determinar a condenar o herói a voltar para o seu recanto, e
que provocam sua morte. Nesse sentido, o do regresso, o indígena volta derrotado ao plano do mito,
por ter malogrado sua incursão no plano da história. Por não ter ele encontrado nela uma saída.
Sem desconsiderar o aspecto burlesco do personagem andradiano e do tom parodístico
do texto, há um efeito transformador na inversão do paradigma social em Macunaíma que avança,
sobretudo, em relação ao pensamento social da época, e, certamente, em relação a Gilberto Freyre,
mesmo tendo-lhe antecedido, em termos de publicação, em 5 anos. Do ponto de vista da afirmação
de uma identidade nacional, isso traz implicações sobre a forma de representar a sociedade
brasileira, à luz de uma história da dominação colonial. A intencional estranheza provocada pelo
herói identificado com o povo, que peca tanto por suas características físicas (que o literal “banho”
de civilização tentou ocultar), é passível de ser compreendida dentro da ótica de outro conceito
proveniente dos estudos étnicos atuais
228
, o “realce”.
O realce trata-se de um subterfúgio do outsider em manipular sua identidade étnica, a
fim de decidir não mostrá-la, diante de da sociedade hegemônica.
229
Funciona, na verdade, como
227SCHWARTZ, 1995. p.543.
228 POUTGNAT & STREIFF-FENART 1998. p.166-7.
229 POUTGNAT & STERIFF-FENART, 1998. p.124.
90
mascaramento das características étnicas. Dessa forma, o texto de Mário de Andrade rompe com a
representação estática do modelo identitário, ao compor um personagem que se desloca em
universos identitários distintos.
Nesses termos, o conflito de origem e a busca do prestígio social, fatos decisivos que
determinam algumas das atitudes do herói, trazem à tona, na obra, determinadas verdades sociais
que, lidas à luz das informações apresentadas pelo antropólogo Roberto Da Matta, por exemplo,
tocam na ferida da constituição e perpetuação do preconceito racial no Brasil.
No Brasil, para Da Matta, o processo de interação entre as raças ocorreu colocando-as
frente a frente no sistema social, de forma que a relação estabelecida entre elas foi de
complementaridade. Dessa forma, ocorreu uma maior mobilidade de indivíduos no conjunto da
posição de mando, deslocando, nessa sociedade, a razão do preconceito racial da origem para o
social, o que não quer dizer que não houvesse as duas formas de discriminação ou que a estrutura
fosse flexível.
230
O esquema que o autor utiliza para representar a hierarquia social no Brasil aponta para
uma triangulação, que apresenta, no vértice superior, o branco e, nos vértices que compõem a base,
o negro e o índio. Nesse triângulo que mostra as três matrizes da constituição étnica nacional se
superpõe outro, invertido, que apresenta o resultado da relação entre as raças, a mestiçagem. Entre o
branco e o negro está o mulato; entre o branco e o indígena, o mameluco, ambos compondo a base
desse triângulo. No ápice do segundo triângulo, que está colocado diametralmente oposto ao
primeiro, encontra-se o cafuzo, fruto do cruzamento entre negros e índios. O resultado final do
diagrama conduz a uma figura na forma de uma estrela de seis pontas. A hierarquia depreendida a
partir desse diagrama coloca o branco no pólo superior; o branco mestiçado na posição
intermediária superior; o negro e o índio na posição intermediária inferior; e no pólo inferior o
cafuzo.
230DA MATTA,1987. p.80.
91
Mário de Andrade, ao entronizar um indivíduo como herói nacional, em Macunaíma,
elege justamente aquele que representava, na hierarquia social colonial, o mais baixo componente
hierárquico, de acordo com o diagrama de composição social apresentado por Da Matta, o cafuzo. É
verdade que a ascensão do cafuzo termina em tragédia e o herói termina vencido pela sociedade,
mas, ainda assim, é a grande resposta às teorias racistas e ao racismo da época. A interlocução de
Mário de Andrade com Gilberto Freyre, nesse sentido, ocorre pelo antagonismo dos movimentos
Modernista e Regionalista.
Do ponto de vista do discurso racial presente em Macunaíma, reafirma-se a precedência
do caráter social sobre o indivíduo. No caso de Macunaíma, o branqueamento do herói, não lhe
altera as características “primitivas”, continuando ainda escravo do instinto preguiçoso e sensual
que foi o ponto de conflito para sua inserção no mundo moderno, visto metaforicamente dentro do
cenário de construção da nacionalidade e do todo nacional.
Em Macunaíma, não há a afirmação de uma identidade indígena propriamente dita,
trata-se de uma representação estereotipada do indígena, tomando como modelo representações
outras, enfatizando a mistura de raças. No enfoque deste texto, a representação do indígena, presente
na narrativa, é traçada a partir do relato de mediadores culturais, portanto com certo grau de
distanciamento. Seu papel na narrativa é concatenar sua existência como uma das matrizes do povo
nacional, além de oferecer um ponto de vista “exterior”, de outsider, como artifício narrativo.
A expressão cultural indígena é valorizada no enredo e resgatada principalmente em seu
imbricar com a tradição oral, tomando como horizonte o aspecto constitutivo daquela cultura em
relação à cultura nacional, a qual é concebida como legatária das tradições indígenas, como as
crenças, narrativas e vocabulários. Nessa narrativa, o enredo trabalha a tensão entre indivíduo e
sociedade, mostrando que a sociedade indígena se mescla a outros elementos no processo de
formação do nacional, mas que é organicamente estranha e antagônica ao mundo moderno e ao
92
processo de nacionalização.
O que prevalece na imagem do indígena apontada pela narrativa de Mário é a condição
de errância e deculturação. O texto apresenta a consciência da permanência de aspectos culturais
destas sociedades ameríndias no interior da sociedade brasileira através de traços culturais que,
partilhados com a comunidade nacional, tornam possível a elaboração de um novo constructo
cultural fomentada também pelas representações nativas. Isso foi feito notadamente a partir de uma
facção criativa contínua que transfigura e atualiza as representações imaginárias provenientes dessas
culturas, vistas não como só folclore, mas como massa cultural “viva”, o que, de certa forma, é
exemplificado pelo próprio romance Macunaíma
231
.
Na construção textual de Mário de Andrade há, no trecho em que o herói é criança, uma
representação que sugere o ocultamento da voz indígena no transcurso do processo civilizatório e de
nacionalização do Brasil. A representação primeira de Macunaíma, na forma de uma criança, sugere
um imbricar entre a narrativa mítica da origem e o nascimento do herói brasileiro e o início do
processo civilizatório. Esse processo, quando lido à luz de teorias eurocêntricas, como o
evolucionismo social, concebe as sociedades ditas selvagens como vivendo em um estágio
primordial da civilização, comparável ao período correspondente à infância do homem. Analogia
que não dispensa as formulações discursivas constitutivas da pedagogia tradicionalista nas quais a
criança, como sujeito do aprendizado, figura como “tábula rasa”.
A articulação das duas imagens, em que o indígena, através da manifestação do
pensamento selvagem, corresponde à infância da civilização, é reforçada pela mudez do personagem
que nasce e permanece sem falar até os seis anos de idade. A ausência de sua fala remete à vacância
da voz do indígena durante o processo de transculturação, este intrínseco à formação da sociedade
no contexto colonial. A fala do indígena se constitui na narrativa a partir da visão hegemônica e as
primeiras palavras articuladas reproduzem o discurso colonialista de viés totalmente eurocêntrico:
231 FONSECA,1988. p.291-2
93
Ai! Que preguiça!
Mário, em seu discurso parodístico transforma o “tom” da mal falada “preguiça” dos
brasileiros, tão claramente expressa nos textos de viajantes, em traço lúdico e diferencial nacional.
Schwartz, a propósito da preguiça como traço constitutivo do caráter do brasileiro,
salienta que, em 03 de setembro de 1918, Mário de Andrade, no jornal A Gazeta”, de São Paulo,
escreve o artigo A Divina Preguiça”, texto mencionado por muitos críticos dessa obra literária. No
referido artigo, o escritor faz uma apologia do ócio criativo, mostrando que, na Antigüidade
Clássica, para gregos e romanos, ele era motivo de apreciação, sendo abjurado, somente na Idade
Média, com o advento do cristianismo. Mário professa, neste artigo que, em consonância com os
antigos, a preguiça também apresentava um significado especial para nossos indígenas que
acreditavam terem, após a morte, suas almas libertadas do corpo, indo viver nos Andes, em um
grande ócio.
232
Um exemplo da forma como foi elaborada textualmente a confluência de culturas em
Macunaíma é mostrado por Maria Augusta Fonseca, ao revelar que Mário de Andrade funde
preguiça e herança indígena, através de um jogo de linguagem, conectando o vocábulo tupi “aig” ao
“preguiça”, ambos nomes remetendo animal da fauna brasileira,
233
produzidos por esta frase
coloquial : “ai que preguiça” [aigpreguiça], celebrizada por Macunaíma. Nesse sentido, esclarece
Maria Augusta Fonseca, a expressão pode se comportar como um artifício que incorpora a
mestiçagem presente em sua formação, apontando para o dilaceramento das línguas originárias.
234
Em Macunaíma, a preguiça é problematizada como um traço do comportamento social
do brasileiro. Maria Augusta Fonseca ainda sugere que há uma posição marginal do herói em
relação ao mundo moderno e às exigências da sociedade burguesa.
232 SCHWARTZ, 1995. p.543
233 FONSECA,1988. p.288-291
234 FONSECA,1988. p.289
94
Para Paulo Prado, um teórico contemporâneo dos modernistas estudioso sobre o Brasil e
para quem Macunaíma foi dedicado, a preguiça é uma decorrência do vergonhoso passado colonial
e da escravidão, mas que se tornou constitutivo do caráter nacional do brasileiro. É uma atribuição
que já se assinala na epígrafe de seu livro Retrato do Brasil (1926): ensaio sobre a tristeza brasileira,
trecho extraído de uma carta de Capistrano de Abreu, historiador, amigo e mestre de Paulo Prado, ao
historiador português João Lúcio de Azevedo:
O jaburu (...) a ave que para mim simboliza a nossa terra. Tem estatura avantajada,
pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste,
triste, daquela 'austera e vil tristeza'.
235
Vainfas
236
acrescenta que a analogia apresentada na citação com que Paulo Prado inicia
seu Retrato do Brasil condena o país, por vocação e origem, à estagnação paralisante. Assim, sob a
metáfora do pecado, o Brasil é entendido por Paulo Prado, o qual descreve a constituição
psicológica do brasileiro como melancólica, devido aos excessos da luxúria e da cobiça, e ao pendor
para o “o romantismo”, conforme mostram os títulos dos capítulos A luxúria”, A cobiça”, A
tristeza.
Sintetizando o pensamento de Paulo Prado, no Post-Scriptum de seu livro Retrato do
Brasil
237
prevalece o tom pessimista, no qual o autor tece algumas conjecturas sobre o caráter
nacional do brasileiro, emitidas sob a perspectiva histórico-sociológica. Segundo Paulo Prado:
Hoje é quase um lugar comum falar-se no melting pot em que se fundem as três
grandes contribuições étnicas de nosso passado, representando três continentes, às
quais se juntaram mais tarde as imigrações européias de vários sangues que deverão
ter profunda influência no brasileiro do futuro. A fusão foi iniciada desde a
descoberta e diariamente continua a evolução em que se prepara a consolidação da
raça e da sua estrutura social. Na ordem psicológica, o problema é igualmente
complexo. Sugerimos nessas páginas o vinco secular que deixaram na psique os
desmandos da luxúria e da cobiça
238
, e em seguida, na sociedade já constituída, os
235 PRADO, 2002. p.26
236 VAINFAS, 2002. p.9-10
237 PRADO, 2002. p.86-98.
238 Em Retrato do Brasil, as desvirtudes dos colonizadores portugueses, aliadas à falta de religiosidade e ao
individualismo ofereceram aspectos relevantes do consciente social que em conjunto responderiam pela imensa
melancolia que se firmou, a seu ver, no caráter do brasileiro. Contudo, quanto à lascividade cooperaram as índias e
95
desvarios do mal romântico. (...) Como reagentes nos faltaram, na nossa crise de
assimilação, o elemento religioso, a resistência puritana da Nova Inglaterra, a
hierarquia social dos pioneiros americanos, o instinto de colaboração coletiva. Ubi
bene, ibi pátria diz o nosso profundo indiferentismo, feito de preguiça física, de
faquirismo, de submissão resignada diante da fatalidade das coisas
239
.
Alfredo Bosi,
240
em sua historiografia da literatura brasileira, estabelece uma análise
entre a teoria do brasileiro desenvolvida por Paulo Prado, a quem concebe como incentivador das
idéias modernistas e patrocinador da “Semana da Arte Moderna”, e sua relação com a constituição
do personagem Macunaíma, ressaltando que há em Mário uma outra disposição em torno do
diferencial do brasileiro, este visto sob um prisma mais favorável, relacionando primitivismo e
modernidade.
241
Há em Paulo Prado a condenação dos costumes coloniais, enfatizando o caráter
luxurioso das indígenas e o desregramento do português. Sua teoria sobre a entrega sensual e
espontânea da indígena à virilidade do colonizador é a mesma tese de Gilberto Freyre em Casa-
grande & Senzala, mostrada no capítulo que é dedicado aos indígenas no processo de construção da
sociedade brasileira. Nesse sentido, Vainfas
242
afirma que Paulo Prado condenava o concubinato
existente entre colonos e indígenas durante o processo de colonização e o atribuía à má índole dos
colonos aventureiros, violentos e desabusados, motivados pelo clima e pela nudez indígena. Para
ele, o que imperava naquele contexto era a ausência de regras sociais de acordo com a moralidade.
243
Segundo Vainfas, ainda, em Paulo Prado, há uma retomada dos textos históricos que
as negras, assim como as mulatas e mamelucas.
239PRADO, 2002. p. 91.
240BOSI, 1987. p.277.
241 BOSI, 1987. p.277.
242 VAIFAS, 2002. 16-17.
243 VAINFAS, 2002. p.16-7.
96
trazem uma visão sensualista do indígena, fato em que ele se baseia para falar da luxúria do
brasileiro. Paulo Prado destaca, por exemplo, a passagem de Gabriel Soares ao descrever o costume
indígena que mostrava a luxúria dos povos observados. Ele conta que os indígenas faziam inchar o
pênis passando pêlo de um bicho peçonhento. Esse costume reaparece em Macunaíma. A passagem
é recuperada no interlúdio entre Macunaíma e Ci, mãe do mato:
“-Então, herói ?
-Então o quê?
-Você não continua?
- Com o quê?
- Pois, meu pecado, a gente está brincando e você vai e pára no meio!
-Ai! Que preguiça...
(...)Então, pra animá-lo , Ci empregava o estratagema sublime, buscava no mato a
folhagem do fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói
e na nalachíti dela. Isso e Macunaíma ficava um lião querendo. Ci também. E os dois
brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso.
244
Em Paulo Prado, encontra-se ainda a tese de Anchieta, de que as mulheres indígenas,
mais sensuais que os homens de sua etnia ,se ofereciam aos homens brancos, em razão de
considerações priápicas.
245
Teorias estas aproveitadas por Gilberto Freyre em Casa-grande &
Senzala.
A respeito do indígena, pode-se dizer que, com a renovação do pensamento nacional,
houve uma revisão de muitas das representações que haviam sido construídas no passado,
principalmente sob a égide do Romantismo. Macunaíma e Casa-grande & Senzala são dois textos
exemplares desses anos e renovaram a representação indígena, ainda que mantendo a visão
assimilacionista, ou seja, tomando-a sob o viés da mestiçagem. Ainda assim, nesses textos há uma
abertura para a representação da cultura indígena, porém, as representações nas duas narrativas
situam o indígena como vetor cultural para a composição da cultura brasileira. Os aspectos das
sociedades e da cultura indígenas não são enfocados como organismo social em seu próprio locus,
244 ANDRADE, 1997. p.19-20.
245 VAINFAS, 2002. p.16-7.
97
considerando o olhar do índio, aparecem, no entanto, ressaltadas as suas contribuições para a
formação da cultura nacional.
Mário de Andrade e Gilberto Freyre possuíam visões de mundo completamente
distintas, mas marcadas por uma aproximação, eram nacionalistas e gostavam do Brasil. Ambos
refletiram de modo diferenciado sobre o país e, sendo contemporâneos, estiveram sujeitos às
mesmas teorias, apropriando-se delas de maneira diferenciada. Nesse sentido, a interlocução entre
esses escritores ocorre também na medida em que compartilham e atuam sobre o mesmo imaginário
social, e estão sujeitos ao mesmo universo de indagações sobre identidade cultural e nação, questões
essas que fruíam com intensidade naquele contexto. Fato assinalado também por Alfredo Bosi, ao
comentar sobre aqueles anos:
O que chamo de cruzamento de perspectivas, tão fecundo na hora da criação
artística, deixa irresolvida a tensão fundadora. Coexistem e alternam-se na gangorra
ideológica, o otimismo e o pessimismo, em face do destino do povo brasileiro. Creio
que tal irresolução é afetiva e cognitiva: Macunaíma se inscreve no quadro de
perplexidades que tem por nomes Retratos do Brasil, Casa-grande & Senzala,
Raízes do Brasil, todas obras pensadas em um tempo dilacerado pelo desejo de
compreender o país, acusar as suas mazelas, mas remir a hipoteca das teorias
colonizadoras e racistas que havia tantos anos pesava sobre a nossa vida
intelectual.
246
No sentido exposto por Alfredo Bosi, Macunaíma e Casa-grande & Senzala podem ser
vistos como textos que constroem uma imagem afetiva do Brasil, trazendo com esse processo um
alargamento da representação indígena.
247
2.4.2 A nacionalização em
Macunaíma
Macunaíma trata-se de uma narrativa experimentalista
248
, um fazer rapsódico que
aborda, segundo o próprio autor ,pela via literária, questões como consciência nacional,
246 BOSI, 1988. p.179.
247 Em Maíra, a passagem será vista pelo olhar testemunho, pelo narrar, e ainda pela voz e pelo lugar do índio de
dentro de sua própria cultura.
248 BOSI, 1988. p. 173.
98
nacionalização, formação étnica do brasileiro no Brasil moderno e caráter nacional. Isso feito, por
meio de um nacionalismo programático e um bosquejo pela cultura popular, acolhendo expressões
regionais e populares e, ainda, como afirma Alfredo Bosi, vozes e sentidos variados, estabelecendo
uma contraposição de olhares que revela a tensão emanada pela diversificação dos pontos de vista:
“civilizado, moderno e racional” e “primitivo, arcaico e mitopoético.
249
Mário de Andrade chegou a expor, em seu prefácio para Macunaíma, 1926, que ao
escrever esta narrativa,
250
o seu interesse foi o de conceber oBrasil como entidade homogênea, um
conceito étnico, nacional e geográfico.
251
Telê Ancona Lopez ressalta, a propósito da concepção de
nacionalismo presente, que, em Mário de Andrade, a representação da identidade nacional criticava
o que oficialmente se entendia por Brasil, buscando incorporar no texto, o povo.
252
Macunaíma também apresenta um mito fundacional para a sociedade brasileira no
contexto da modernização (tecnização). Esse mito originário funciona como um mito de transição,
uma vez que permite ao herói atravessar o mundo mítico do “trickster”, na selva, e vivenciar um
processo de historicização (tomar contato com a sociedade moderna, histórica, fato se conjuga com
a proposta de nacionalização), ao se deslocar para a cidade, contemporizando os dois mundos.
Nessa leitura, processo de historicização é circunstanciado pela viagem a que se obriga
o herói, com o objetivo de reaver seu amuleto perdido, a Muiraquitã, presente da companheira Ci,
Mãe do Mato , antes de morrer. A necessidade de recuperar o amuleto obriga o herói a deixar o seu
“Império” e a contatar o mundo moderno promovendo, nesse sentido, o contato com o tempo
contínuo, a sociedade industrial e a consciência do estrangeiro. Fato também revelado pelo fato de
que levou consigo, para o mato dentro, elementos emblemáticos da cidade, ou seja, do mundo
249 BOSI, 1988. p.179.
250 LOPEZ, 1988. p.271.
251 ANDRADE, 1995. p.552.
252 LOPEZ, 1988. p. 269
99
histórico: um casal de galinhas exóticas, uma arma e um relógio, que referenciam respectivamente o
contato com o estrangeiro, a sociedade industrial e o tempo contínuo. Telê Porto Ancôna Lopez
associa esse episódio ao processo de aculturação que sofreu Macunaíma.
253
O rito de passagem do herói remete pelo menos a duas dimensões: à do sujeito que se
constrói e destrói no contato com a civilização e à da nação que se redefine à luz das novas
interações promovidas pela nacionalização. Na enunciação, como afirma o próprio autor Mário de
Andrade, cumpre-se o nacionalismo programático do Modernismo, que manteve como ideal o
espírito de nacionalização e também de desregionalização do país e que aparece como sentido
profundo no texto. Já, no plano do enunciado, o rito conduz a uma série de interações culturais e
aprendizados, mas gerando, ao retorno do herói, o desfecho trágico. Afinal, Macunaíma volta
derrotado, doente e sozinho, para encenar uma triste e solitária apoteose final.
M. Cavalcanti Proença,
254
em Roteiro de Macunaíma (1955), ilumina a enunciação
colocando em perspectiva o sentido de deslocamento e nacionalização no texto de Mário de
Andrade. Proença atenta para a forma como aparece em Macunaíma a representação dicotômica do
Brasil em sertão e litoral, citando Florestan Fernandes. Segundo esse sociólogo, o texto apresenta as
contradições representando um sertão desprotegido, primitivo e caboclo e um litoral europeizado
255
.
Nesse sentido, também moderno com máquinas e multidão, com monumentos e imigrantes, com
cultura popular e sincretismo religioso, todos elementos com os quais o herói vai interagir ao longo
do percurso e que se opõem e se completam em contato com os traços oriundos do mundo selvagem
cheios de magia e erotismo.
A retórica nacionalista apresenta pelo menos duas estratégias bem definidas no texto: o
discurso mostrado a partir dos dísticos envolvendo a formiga e a doença, “pouca saúde e muita
253 LOPEZ, 1988. p.269.
254 PROENÇA,1988. p.34.
255 Idem.
100
saúva os males do Brasil”, que aparecem com algumas variações em determinados momentos na
narrativa, e a desconstrução da fala nacionalista oficial, com o episódio do “Pauí Pódole”, mostrado
mais à frente.
As formigas e a pouca saúde podem ser lidas como elementos que integram a relação
sujeito / mundo nas duas fases do herói na mata e na cidade. São dois elementos textuais do
discurso sobre a nação que estão amalgamados ao texto literário.
As formigas constituem um topos importante no mundo do herói do Mato Virgem, onde
ele impera e que carregará consigo durante toda a viagem. Por outro lado, a doença assume um
papel cada vez maior na narrativa, na medida em que se acentua o contato com o mundo civilizado,
acelerando o processo após ser iniciado o rito de retorno.
No que tange às formigas, dois episódios no Mato Virgem e um na cidade são
emblemáticos acerca dessa aproximação entre o herói e estes seres. O primeiro episódio ocorre
durante o período em que o herói goza uma relativa estabilidade na narrativa e que antecede a um
momento de ruptura de seu mundo perfeito. Nesse mundo, as formigas aparecem como elemento
dissonante (um incômodo na verdade para o sossego do herói)e são alvos de seu antagonismo.
Assim, há um trecho da narrativa em que, após conseguir dominar e possuir Ci, a
icamiaba mãe do mato, e tornando-se seu amante, Macunaíma é consagrado Imperador do Mato
Virgem. Nessa sociedade, onde os papéis sociais (guerreiro/cortesã) encontram-se invertidos em
relação à sociedade medievalista do branco europeu, a Ci, chegava de noite rescendendo resina de
pau, sangrando das brigas, trepava na rede que ela mesma tecera com fios de cabelo. Os dois
brincavam e depois ficavam rindo um para o outro.
256
Macunaíma, por outro lado, desfrutando da
posição de imperador na sociedade das icamiabas, inicia uma vida de ócio. Como é observado no
seguinte trecho:
O herói vivia sossegado. Passava os dias marupiara na rede matando formigas
256 ANDRADE, 1997. p.19.
101
taioca, chupitando golinhos estalados de pajuari e quando agarrava cantando,
acompanhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com doçura
adormecendo as cobras ,os carrapatos ,os mosquitos, as formigas e os deuses ruins.
257
(grifo meu)
Fica dessa forma exposta a vida idílica do herói imperador, passando o dia entretido a
bebericar pajuari e a matar formigas. O poder do herói sobre esses seres é expresso não só pela
força, mas também pelo canto, pois quando agarrava cantando vencia as formiga, que adormeciam.
Com a força encantatória do canto, o herói fazia adormecerem os vilões de sua realidade, que eram
os deuses ruins e, ainda, a cobra, o carrapato, os mosquitos e as formigas.
Uma outra menção às formigas, ocorre quando Macunaí ma procura consolar-se pela
perda de Ci. Neste importante trecho, Macunaíma recebe o colar com a Muiraquitã de Ci que, em
seguida, sobe no cordão ao céu e torna-se estrela. Ao criar a imagem apoteótica de Ci, o narrador
assim se refere: É lá que vive Ci agora, nos trinques, passeando, liberta das formigas, toda
enfeitada ainda, toda enfeitada de luz, virada numa estrela(...)
258
Um segundo episódio ocorre quando, já tendo perdido a companheira e incomodado
pela saudade, Macunaíma, imperador sai, acompanhado pelos irmãos e pelo séqüito de araras e
jandaias, a vagar errante pelo império, onde recebia homenagens de seus súditos. Nessa andança,
encontra Naipi, uma índia filha de tuxaua, em apuros, transformada em pedra (que de tanto chorar
vira também cascata) pela cobra boiúna “Capei” que morava embaixo dela e que tinha como
companheiras as saúvas. Como herói vingador, Macunaíma mata a cobra Capei decepando-lhe a
cabeça. Durante a luta, uma personagem, a formiga tracuá, procurando ajudar a boiúna, morde o
calcanhar do herói, que ao agachar por causa da dor, escapa ao golpe da vilã, ganhando vantagem na
luta. Na seqüência, Macunaíma mata a cobra e torna-se um herói de fato. Nesse episódio, o herói
perde o amuleto, fato que dará origem ao rito de passagem, partir para o mundo “civilizado”,
recuperar seu amuleto e retornar.
257 ANDRADE, 1997. p.19.
258 Idem. p.21.
102
No universo de representações macunaímicas, as formigas integram ativamente o
mundo selvagem, cruzando de muitas maneiras o caminho do herói, mantendo uma relação ambígua
de atratividade e repulsão, assumindo um traço de identificação entre Macunaíma e as formigas,
traço que necessariamente não é harmônico. Há uma aproximação semântica entre Macunaíma, o
grande mal, as formigas, o mal do Brasil apontado pelo dístico e a imagem corroborada pelo lugar a
elas destinado na narrativa, uma vez que coabitam o mesmo campo semântico que as cobras, os
carrapatos e os deuses ruins.
O terceiro episódio, envolvendo as formigas e sua relação estreita com Macunaíma,
ocorre na cidade, local onde o herói ainda apresentava o hábito de matar o tempo esmagando
formigas. No capítulo “Tequeteque, chupinzão e a injustiça dos homens”, após ter sido enganado
pelo macaco mono, Macunaíma é envenenado e morre. Mas é resgatado com a ajuda acidental das
formigas, conforme mostra o trecho:
Daí a pouco veio a chuvarada e refrescou o corpo verde do herói, impedindo a
putrefação. Logo se formou um poder de correições de formigas guajuguajus e
murupetecas pro corpo morto. O advogado fulano atraído pelas correições topou
com o defunto.
259
O advogado leva Macunaíma para a pensão e Manaape, irmão de Macunaíma, que era
feiticeiro, o ressuscita. Macunaíma toma o guaraná e mata sozinho as formigas que o estavam
mordendo.
A doença, por outro lado, foi uma das aquisições do herói durante sua permanência na
sociedade tecnizada, e que leva consigo, ao regressar para o Uraricoera. A partir do capítulo XI “A
Velha Ceuci”, começam a ser definidas, no enredo, as circunstâncias do retorno de Macunaíma. A
partir desse momento, a doença aparece como traço recorrente na rotina do herói. Uma hora o herói
está constipado, noutra febrento, depois tem erisipela, depois tosse por causa da laringite, “que todo
259 ANDRADE, 1997. p.86.
103
mundo carrega quando sai de São Paulo,”
260
teve impaludismo (mas Manaape achou que era
tuberculose), Jiguê morre de lepra e vira sombra. A sombra de Jiguê contamina Macunaíma, que
transmite a doença para as formigas, para que elas contaminem todo o mundo.
Dessa forma, constituem traços representacionais recorrentes em Macunaíma, as
formigas e a doença, males do Brasil, reafirmados pelo dístico “pouca saúde e muita saúva, os
males do Brasil”, que é a entrada semântica para o discurso social da época e que se tornam
constitutivos do rito do herói, e são, por conseqüência, estruturais na narrativa de Mário de
Andrade.
Esses dois elementos remetem a uma retórica nacionalista, que identifica o país como
atrasado do ponto de vista da produção econômica, tendo sua inserção no mundo moderno
estrangulada pela falta de saúde do povo (mão-de-obra), pois a doença diminui a força do
trabalhador; e das condições de meio, pois as formigas cortadeiras sacrificam a lavoura. Esses dois
elementos juntos, doença e formiga, são, no enredo, incriminados pela desistência do herói de lutar:
Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí, por causa da
perna só da Ursa maior que ela é o saci... Não é não! Saci inda pára nesse mundo
espalhando sujeira e trançando crina de bagual... A ursa maior é Macunaíma. É
mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem a saúde e com muita saúva
se aborreceu de tudo e foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu.
261
Cabe-me comentar que o traslado heróico de Macunaíma envolve não somente
recuperar a Muiraquitã, mas sobrepor-se às formigas e às doenças que o vitimam. A sua verdadeira
luta consiste superar os tais males. Em meio ao conflito, é passível de surpreendermos de uma voz
que, mesmo aprisionada e contraditória, revela um sinal de uma recusa.
O fato é que o índio de Mário de Andrade sai de seu sítio originário, para então
descobrir o Brasil, que não é interior nem mítico. E essa descoberta deixa como registro uma carta
260 ANDRADE, 1997. p.109.
261 ANDRADE, 1997. p.124.
104
que revela para os seus supostos súditos, habitantes do Mato Virgem, as maravilhas da cidade
cosmopolita, uma inversão parodística das missivas de viajantes.
262
A carta pras Icamiabas é bastante reveladora do processo da mediação cultural, tema
que perpassa a obra. Como aponta Eneida Maria de Souza,
263
a carta é o único momento em que a
perspectiva da narrativa se desloca do narrador culto para o índio. O que reforça a percepção de que
é o olhar indígena sobre a sociedade nacional que está sendo representado. Nessa carta, escrita em
São Paulo para as Icamiabas no Amazonas, o herói Macunaíma, na fala do viajante, relata os
costumes que testemunhou na cidade de São Paulo:
Como vedes temos assaz aproveitada esta demora na ilustre terra bandeirante, e se
não descuidarmos de nosso talismã.(...) por que iniciemos quando for de retorno ao
nosso Mato Virgem, uma série de melhoramentos, que muito nos facilitarão a
existência. (... )E por isso vos diremos algo sobre essa nobre cidade, pois que
pretendemos construir uma igual nos vossos domínios e Império nosso.
264
A figura do viajante é importante, pois remete ao papel de aproximação de dois mundos
revelando sociedades escondidas. Visto dessa forma, o olhar do índio neste texto não revela a si
mesmo, do ponto de vista de um ethos indígena, mas esboça um olhar para fora, enfocando a nação
que encontrara. Esse indígena, pode-se dizer, nasce como representação, transformado pela dupla
tradução, onde se deixa entrever um pouco do imaginário do alemão Grümberg,(um europeu
traduzindo culturalmente o ethos indígena americano); um pouco do imaginário paulista de Mário
de Andrade, em que o ethos bandeirante desbravador é visto pelo avesso, revelando a perspectiva
do Mato Virgem, e também o olhar de viajante e etnólogo de Mário de Andrade, que traz para o
escopo da narrativa a experiência de observador empírico de indígenas, que quer também traduzir
262 Sobre a “Carta pras Icamiabas”, Eneida Maria de Souza fez uma análise tomando como bases a paródia da carta de
Caminha e o jogo lingüístico. Em um texto homônimo ao da carta, Maria Augusta Fonseca, também enfocou os
aspectos lingüísticos, assim como sobre intertexto com outras obras, inclusive a Carta de Caminha e a de Padre
Anchieta, da qual a crítica cita um trecho que pode ter servido de inspiração para a frase Ai! Que Preguiça.
263 SOUZA, 1999. p.122.
264 ANDRADE, 1997. p.59.
105
um pouco do universo indígena, língua, costumes, mitos, vocabulários.
2.4.3 O caráter nacional em
Macunaíma
Mário de Andrade, em seu Prefácio para Macunaíma, de 1926,
265
comenta:
Ora ,depois de pelejar muito, verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro
não tem caráter. (...) e com a palavra caráter não determino apenas uma entidade
moral não (...) entendo a entidade psíquica permanente se manifestando por tudo,
nos costumes, na ação exterior,no sentimento, na língua, na história da andadura,
tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem
civilização nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim o jorubas e
os mexicanos. Seja porque têm civilização própria, perigo iminente, ou consciência
de séculos, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro (não) (...) Dessa falta de
caráter psicológico creio otimistamente que deriva nossa falta de caráter moral. Daí
nossa gatunagem sem esperteza (a honradez elástica e a elasticidade de nossa
honradez), o desapreço à cultura verdadeira, a falta de senso ético nas famílias (...)
266
O trecho aponta para o fato de que Mário de Andrade, ao referir-se à ausência de caráter
do herói, tomava-a no sentido de caráter nacional, associando ainda a ausência desse caráter à
indefinição identitária no brasileiro. Na narrativa, ao tomarmos como norte a leitura de Macunaíma
feita pelo seu autor, tem-se que devido à ausência de caráter e, principalmente, à natureza volúvel do
herói, ele não conclui sua missão. A quase recuperação e a perda subseqüente do precioso objeto
concorrem para dar a mostra da inevitabilidade do fracasso, conferindo assim maior tragicidade do
relato. Mário de Andrade, em carta a Álvaro Lins, como nos mostra Alfredo Bosi
267
, revela que
Macunaíma é um livro que o faz chorar, pois considera tristíssimo que, diante da derrocada, o herói
desista de lutar.
A negação do caráter do herói talvez seja o traço mais intrigante do relato. O subtítulo
relativo ao herói sem nenhum caráter remete à idéia de que Macunaíma não tem o caráter formado,
265 ANDRADE, apud SCHWARZ. p.550-1.
266 idem, p.551.
267 BOSI, 1988. p.180.
106
aparentando ser, dentro de uma leitura psicológica, uma criança que desconhece os limites impostos
pela sociedade e as regras sociais, havendo neste caso um eco do evolucionismo social, que enxerga
as sociedades indígenas do Brasil como se vivessem na “infância da humanidade”.
O texto de Mário ainda remete à superação desses estereótipos pela sua afirmação
festiva. Leitura consonante com a de Telê Porto Ancôna Lopez que enumera e comenta, no artigo
“Rapsódia e Resistência”, os caracteres psicológicos presentes em Macunaíma, os quais considera
importantes traços para a constituição da resistência cultural.
268
A rapsódia, segundo a crítica, traz,
na poesia, a dimensão da resistência cultural, na medida em que introduz a polifonia, não se
fechando a uma única fala, pois, como gênero, busca representar o mundo pela palavra na sua ambi/
plurivalência.
269
Motivo pelo qual, ainda segundo a crítica, a rapsódia é fecunda na representação da
sociedade que se indaga sobre a identidade nacional. Isto porque ela, historicamente, ela “finca uma
raiz” em torno da existência de um povo , de uma nação e, bem mais do que isso, o de resistir a
condições adversas.
270
No Modernismo, expõe a crítica:
Em nosso modernismo literário, os anos que vão de 1924, 25 a 1929 são
caracterizados pelo acirrar das discussões em torno do nacionalismo, dividindo
águas até então fraternas. Mário assim como Oswald de Andrade ou Antônio
Alcântara Machado escolhem uma direção nacionalista de cunho mais crítico (...).
não discutem apenas a criação artística como expressão brasileira; discutem e põem
em cheque o que oficialmente o que se entendia (e ainda se entende por Brasil). E
não reconhecem o povo abstratamente. Trazem-no para dentro do texto. Procuram
ficar com ele. (...).
271
Quanto ao caráter, Telê coloca-o como ponto importantíssimo da resistência, pois
através dele é dada duas dimensões do romance: a satírica, do anti-herói que afirma o caráter pela
preguiça, astúcia, magia, erotismo, mentira e fantasia; e a trágica, do herói, onde impera a solidão de
quem rompe a ordem das certezas e dos tabus.
272
268 LOPEZ, 1988, p.273.
269 LOPEZ, 1988. p.269.
270 LOPEZ, 1988. p.269.
271 LOPEZ, 1988. p. 269.
272 LOPEZ, 1988. p. 273.
107
Alfredo Bosi,
273
por sua vez , afirma que o tom satírico produz mecanismos que
atenuam a negatividade trazida pela idéia de caráter, permitindo que a acrimônia em relação aos
aspectos do caráter nacional, mostrados em Macunaíma, seja relativizada pela natureza lúdica e
simpática com que o herói é apresentado. O crítico ressalta que, no texto de Mário de Andrade, a
idéia de contestação do caráter nacional não é dúplice, aparecendo expressa da seguinte forma:
No entanto, não há em Macunaíma a contemplação serena de uma síntese. Ao
contrário, insiste no modo de ser incoerente e desencontrado desse ‘caráter’ que, de
tão plural resulta em ser ‘nenhum’. E aquele ‘otimismo, que era amor às falas e aos
feitos populares, ao seu teor livre e instintivo, esbarra na constataç ão melancólica de
uma amorfia sem medula nem projeto. O herói de nossa gente é cúpido, lascivo,
glutão indolente, covarde mentiroso, ainda que por seus desastres mereça a piedade
do céu que o abrigará entre as constelações. É a Ursa Maior.
274
Seguindo essa linha, o crítico literário mostra o contraditório, ressaltando, por um lado,
gosto pela cultura e tradição orais, buscando resgatá-las no imaginário nacional, estabelecendo uma
“antologia do folclore”, mas, no plano dos valores sua representação corrobora o modelo
determinista de Paulo Prado.
O escritor, no Prefácio de Macunaíma de 1926, revela a leitura de Retrato do Brasil de
Paulo Prado, comentando para o público que lera tal livro inédito e que este fora importante
influência na constituição de Macunaíma. Para Paulo Prado, a quem o livro é dedicado, a tristeza
do brasileiro é devida aos excessos de erotismo e ganância do colonizador, traços que estes que se
incorporaram ao padrão psicológico do brasileiro.
No entanto, é válido ressaltar que o mecanismo compensatório está presente na narrativa
de Mário e é muito revelador que o autor também tenha afirmado nesse mesmo prefácio que:
quando matutava sobre essas coisas (fato de o brasileiro não possuir caráter, nem constituir uma
civilização) topei com Macunaíma no alemão Koch-Grümberg. E Macunaíma é um herói
surpreendentemente sem caráter (gozei). Nesse sentido, a irreverência do personagem em relação às
273 BOSI, 1988. p.171-81.
274 BOSI,1988, p.178.
108
suas “falhas morais” não seria somente a forma de palatabilizar o mal feito, mas mostrar alternativas
ao determinismo que elas embutem, pois há que se notar que, em Macunaíma, o que se rompe é o
modelo estático da representação, e o que oprime não são os caracteres indesejáveis do herói, mas o
aprisionamento do determinismo, como é o caso da “doença”, cujo papel é vencer o herói.
Marli Fantini explicita que, por trás da negatividade exposta no subtítulo: “O herói sem
nenhum caráter”, há um jogo de oposições presentes no discurso e no rito de passagem do
personagem, pois Macunaíma responde positivamente a essa chamada negativa do herói. Esse jogo
reflete a emergência de um conflito que obriga o herói a posicionar-se afirmativamente diante da
própria falta de caráter. O “tornar-se herói” mostra uma dimensão da formação do sujeito, no caso,
relacionado à afirmação do hibridismo exposto em seu corpo e caráter, que remete metaforicamente
ao ato da constituição da nacionalidade brasileira. Para Marli Fantini:
Tendo em vista a própria natureza da hybris, (Hollanda,1999), nossa hipótese é a de
que o adjetivo sem nenhum caráter presta menos a sugerir a falta de identidade ou de
caráter do que a de formular a metáfora da constituição identitária em aberto de
nosso herói fundador bem como o seu parentesco com o processo deslizante e
híbrido de que serve de matriz à formação da identidade brasileira, cujo trágico,
mas não menos farsesco caráter (...) estaria em contrapartida sempre franqueando
novas interfaces.
275
(grifo meu)
Nessa perspectiva, o herói é visto a partir de uma identidade em processo de
transformação, remetendo à indefinição da própria identidade nacional, esta também cambiante e
inspiradora de novas interações.
Posto isso, a idéia de ambigüidade mostrada quando a noção “caráter” é contraposta
pelo subtítulo “sem nenhum caráter” é que a ideologia do caráter começa a ser descaracterizada, e
atravessa o texto pela força da paródia, que faz uma troça da seriedade trágica do discurso psico-
social do brasileiro. A natureza parodística do texto coloca em jogo a força afirmativa desse caráter
como pensamento social.
Assim, a imagem de nação, encontrada em Macunaíma, é dada pela ruptura com o
275FANTINI, 2004. p.164.
109
discurso oficial e o nacionalista ufanista, relativizando o aspecto determinista do caráter nacional. O
texto literário coaduna com o sentido de arte expresso no artigo “Modernismo e Ação”
276
de Mário
de Andrade, em que versa sobre uma arte nacionalizante, sexual e de pândega.
Em Macunaíma, embora a perspectiva traga sempre o olhar da sociedade do branco,
cria-se o espaço da ambivalência, uma vez que as representações hegemônicas são confrontadas
pelo olhar artificiosamente não “condicionado” de Macunaíma, o que permite o deslizamento entre
pontos de vista não interétnicos, mas culturalmente distintos.
2.4.4 A construção da nação e o mito de fundação em
Macunaíma
Em Macunaíma, o herói em permanente mobilidade oferece mostras de um imaginário
em transformação, no qual as representações, presentes no cotidiano da coletividade, ultrapassam o
espaço sócio-cultural originário e superam as descontinuidades regionais, para, a partir disso, serem
reinventadas em um todo nacional. Nesse sentido, a construção identitária e mítica da nação, na
narrativa de Mário de Andrade, aponta para o já referido “mito de Jasão”, descrito por Zilá Bernd.
Neste mito, a identidade do sujeito se consubstancia através de um modelo de construção identitária
rizomática, constituindo um dinâmico sistema relacional. Nele, a construção do sentido efetiva-se na
medida em que ocorre o deslocamento, mais do que no ato da chegada ou da partida. Para o herói, a
partida do Uraricoera.
277
A respeito do deslocamento em Macunaíma, explicita Mário:
276 ANDRADE, 1995. p. 478-82.
277 BENRD, 2002. p.37.
110
(Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia, a fauna e a flora
geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que
conseguia o mérito de conceber literariariamente o Brasil como entidade
homogênea, um conceito étnico nacional e geográfico.)
278
Em seu traslado ritualístico, Macunaíma comanda os irmãos, que o acompanham em
empreitada para o sul em busca de seu amuleto, a Muiraquitã. Durante o percurso, o herói
problematicamente vai se ocidentalizando e aprende a língua do branco (colonizador), muda de pele
e quer tornar-se um branco. Sua presença na cidade seria como a de um outsider, que almejasse de
alguma forma inserir-se no universo que observa, no entanto, se deparando com as fronteiras
interculturais que ainda assim necessitam serem transpostas.
O herói, sujeito híbrido, permanece deslocado em meio de duas culturas. Sua disposição
em apreender o mundo civilizado o torna um mediador cultural, um viajante, que vai deixando, com
seus rastros, elementos de sua própria cultura, ao mesmo tempo em que incorpora a cultura do
“outro”. Como exemplo, a narrativa apresenta o herói que altera seus padrões culturais, encarnando
seu desejo pelo “outro” civilizado, presentificado pela preferência por mulheres de ascendência
européia para o ritual amoroso, incitando com isso a fúria das nativas, que é a chave de sua
perdição. Há ainda a adoção da linguagem do colonizador na “Carta para as Icamiabas”
e o desejo
de partir para a Europa, mostrados pelo herói.
O episódio “Pauí Pódole”, poeticamente, reconstrói o hiato entre as duas culturas e o
inevitável impasse estabelecido entre as conflitantes visões de mundo postas pela sociedade
hegemônica, marcada pelos valores do branco e pela sociedade indígena.
O acontecimento que ilustra essa disputa refere-se à participação do herói como
espectador em uma manifestação popular sobre o dia do cruzeiro, um feriado cívico. Na noite desse
feriado, Macunaíma fora assistir ao festival de fogos de artifício no Parque do Ipiranga, cenário
histórico, quando um “mulato da maior mulataria” subiu em uma estátua e começou a discursar para
278ANDRADE, 1995. p.552.
111
o herói explicando aos ouvintes o significado simbólico do dia do cruzeiro.
O mulato mostrava o céu e explanava sobre o Cruzeiro do Sul, repetindo o discurso
oficial que o concebia como o símbolo... mais su-sublime e maravilhoso de nossa amada pátria
279
,
bem ao gosto do positivismo e patriotismo emblemáticos de Olavo Bilac, na forma como aparecem,
por exemplo, em seu texto Oração à Bandeira. A fusão dos discursos oficiais do mestiço como
representante da identidade nacional e do discurso acadêmico e oficial de Bilac mostra a sanha
modernista de desprogramatizar o modelo nacional herdado das gerações passadas. Para tanto,
interpõe-se à fala do mulato, a visão indígena:
No céu estampado da noite não tinha uma nuvem nem capei
280
. A gente enxergava os
conhecidos, os pais-das-árvores , os pais-das-avesos, pais-da-caça e os parentes
manos pais mães tias cunhadas cunhãs cunhatãs, todas as estrelas piscando bem
felizes nessa terra sem mal.
281
Indignado, Macunaíma percebe ser o Cruzeiro do mulato as quatro estrelas, que ele
sabia ser o “Pai do Mutum”, morando no campo do céu. Contradiz, prontamente, a fala do mulato,
expondo a sua versão sobre a constelação;
- Não é não! Meus senhores e minhas senhoras! Aquelas quatro estrelas lá é o Pai do
Mutum... Isso foi no tempo que os animais já não eram mais homens e sucedeu no
grande mato fulano...
282
Nesta cena, se estabelece um jogo entre as representações simbólicas e os imaginários
conflitantes, mostrando Macunaíma, como representante da fala indígena, e o mulato, como
representante do discurso nacional. A narrativa do indígena, no entanto, ao seu final, reintroduz o
discurso da sociedade nacional:
279ANDRADE, 1997. p.66.
280Proença, em Roteiro de Macunaíma traduz “capei” por “Lua”, termo extraído do texto de Koch Grumberg. Lenda é
apresentada pelo texto em um momento, após a morte de CI, no qual Macunaíma assume a postura de um herói
positivo e intervém a favor um casal enfeitiçado. Ação que o leva a perder a “Muiraquitã” e iniciar sua viagem,
dando prosseguimento à narrativa.
281ANDRADE, 1997. p.66.
282 ANDRADE,1997. p.67.
112
‘Pouca saúva e muita saúde , os males do Brasil são’.
Já falei... no outro dia Pauí Pódole quis ir morar no céu para não padecer mais com
as formigas aqui da nossa terra, fez. Pediu pro compadre vagalume alumiar o
caminho na frente com as luzes verdes bem acesas.
283
Eneida Maria de Souza, em “O discurso Patrioteiro”
284
, faz uma abordagem
diferenciada, ao analisar no plano profundo da linguagem o discurso parodístico de Macunaíma, à
luz concatenadora do discurso escatológico presente nessa obra de Mário de Andrade. Ela salienta
que, ao insurgir contra o discurso político do mulato, o herói emprega os artifícios retóricos do
poder, estabelecendo um jogo de substituição com o qual introduz a fala indígena, isso com a
intenção de apresentar uma simbologia outra para significar a constelação “cruzeiro do sul”, a
pretexto de contar a verdadeira história desta, a história do Pai do Mutum. Dessa forma, segundo a
autora, os símbolos nacionais glorificados pelo mulato são desmetaforizados pela narração de
Macunaíma que, assim o fazendo, denuncia a retórica nacionalista crivada de imagens artificiais,
engendrando uma visão metafórica da realidade brasileira.
283 ANDRADE,1997. p.67.
284 SOUZA, 1999. p.108-11.
113
3Capítulo
60 70: ANOS E a caminho da construção das identidades
3.1 60 70Anos e
A década de 60 trouxe uma revitalização para o cenário intelectual e cultural brasileiro,
tornando-se um momento ímpar, em que muitas formas diferenciadas de pensamento confluíram
para repensar o Brasil. A partir do acirramento da discussão sobre a sociedade brasileira, em termos
de uma busca da autonomia política e cultural, é possível aventar que, nesse período, se consagrou,
do ponto de vista nacional, a afirmação de uma perspectiva ideológica-cultural, contra-hegemônica,
advinda das reivindicações dos movimentos populares e da produção intelectual. Falar dos anos 60
envolve um certo desafio, pois foi uma época marcada por uma reviravolta no curso da vida social
brasileira, que foi o golpe militar de 1964.
A esquerdização que marcou a vida intelectual e política nas décadas anteriores à de 60 na
sociedade nacional mediou a insurgência de novos atores sociais nos campos político e cultural, os
quais mantiveram estreita relação com as reivindicações de transformações sociais e os debates
políticos engendrados nas décadas anteriores e que persistiram como forma também de resistência
ao Regime Militar e à ideologia conservadora, nas décadas subseqüentes, principalmente na de 70.
Assim, a sociedade nacional conviveu, nos anos 60, com uma intensa movimentação política das
camadas populares e com a polarização das posições ideológicas, nos termos de “direita” e
“esquerda políticas, fatos que proporcionaram a abertura para a afirmação de novos valores
identitários, trazidos, por exemplo, pelo “Cinema Novo” e o Tropicalismo” e ainda pela “Bossa
114
Nova”. Enquanto o cenário nacional apresentava-se marcado por essas contradições, a geografia
política mundial acomodava uma cartografia que compreendia o mundo dividindo-o em blocos
socialista e capitalista, ou em primeiro, segundo e terceiro mundos. Fato cabível de se ressaltar é
que mundialmente o imaginário político, neste período, conviveu com os desdobramentos da
geopolítica do pós “Segunda Grande Guerra”: “Guerra Fria”, militarização do planeta, corrida
armamentista, a vigilância por meio de agências sobre os processos políticos, a fixação dos pilares
da corrida espacial e os processos de descolonização dos países na Ásia e na África. Esses anos
ainda conviveram com a experiência revolucionária cubana, as guerras do Vietnã e da Coréia, a
Primavera de Praga. Houve também uma intensificação do debate político, com o destaque para as
vozes dissonantes em relação ao sistema capitalista, como o movimento negro e o da contracultura
nos Estados Unidos, as rebeliões em Paris de 1968, entre outras.
285
Acompanhando as transformações sociais, as culturais ocorriam vertiginosamente,
acompanhando um processo de internacionalização. Já na década de 50, a cultura de massa, trazida
pelo cinema hollywoodiano e a mídia, incitou a introdução de uma série de novos ícones na cultura
nacional pela internacionalização dos costumes. Wander Mello Miranda
286
analisa a singularidade
desse momento, a partir de dois poemas escritos sobre o refrigerante Coca-Cola, um de Silviano
Santiago, outro de Décio Pignatari. Em Silviano Santiago, a Coca-Cola é introduzida no imaginário
do poeta através das telas de cinema. Em Décio Pignatari, há uma desconstrução do discurso da
propaganda, envolvendo o slogan beba Coca-Cola”.
Diante desse cenário de transformações e questionamentos, e até em resposta a estes, houve
uma intensa movimentação no sentido político, influenciando a intelectualidade a desenvolver uma
postura inquisitiva sobre a sociedade em determinados setores da comunicação de massa, como o
285 Tais fatos são amplamente conhecidos e já se encontram registrados em livros escolares. Todos os dados
conjunturais foram extraídos do livro História das cavernas ao terceiro milênio de Miriam Becho Mota & Patrícia
Ramos Braick.
286 MIRANDA, 1999. p.266-8.
115
cinema e a ainda incipiente televisão nacionais e sua mídia eletrônica. Foi neste momento em que,
no Brasil, a intelectualidade, buscando externar as contradições sociais, revia os valores da
sociedade burguesa em pleno processo de expansão da modernização, que era incrementada pela
difusão da cultura de massa, veiculada principalmente pelo cinema hollywoodiano e pelos
magazines.
Entre o final da década de 50 e início da seguinte, o Cinema Novo irrompe a cena cultural,
reagindo à espetacularização da sétima arte e propondo sua descolonização. Nos festivais
internacionais e entre os cinéfilos, o Cinema Novo significava a busca da representação de imagens
e temas de países de terceiro mundo, buscando a própria história. Uma das constantes deste cinema,
dito direto, foi a militância ou o ensaio político, motivo pelo qual foi usado como denúncia e
instrumento de expressão, reflexão e intervenção da realidade. Glauber Rocha, por exemplo,
expoente dessa modalidade de fazer cinema, fiel à práxis de representar o ethos nacional, trouxe
para a tela o imaginário popular e a voz do povo. A propósito da filmagem de seu filme Câncer, em
1968, o cineasta experimentalmente buscou criar novos efeitos de produção, como o uso direto de
som e a quase eliminação da montagem.
287
Nesse filme, mantendo o improviso como recurso
estético, o cineasta utilizou além dos atores, Odete Lara e Hugo Carvana, tropicalistas e pessoas
simples, buscando através do ato de revelar suas vozes, desvelar a do povo: todas as vezes que
filmava o povo Glauber deixava que as pessoas inventassem suas próprias cenas, como faziam em
sua vida, enquanto ele registrava essas manifestações.
288
Ele abordava temas da realidade brasileira,
do final dos anos 60, como racismo, desemprego, repressão policial, adultério, maconha e
gangsterismo.
Quando a TV entrou no ar pela primeira vez no Brasil , com a TV Excelsior, em
1962,Glauber ligou para o Fernando Barbosa Lima e disse “Fernando, a televisão vai ser a grande
287 MOTA, 2001. p.42-3.
288 MOTA, 2001. p.55.
116
guardiã da democracia”
289
. Nos anos 60, o telejornal Vanguarda foi premiado em vários festivais
internacionais, chegando a ser tema de aula de McLuhan. O telejornal passou por várias emissoras,
ao longo dos anos 60, durando de 1962 até o AI-5, quando a equipe decidiu encerrar a produção do
programa, devido à interferência da censura. Para Fernando Lima Sobrinho, durante a ditadura, a
televisão brasileira cristalizou-se de forma negativa no meio intelectual. Os intelectuais não apenas
criticavam, mas ainda repudiavam qualquer produto televisual, pois a televisão passou a representar
nos meios intelectuais como um instrumento de alienação da classe média, que assistia à Rede
Globo e acreditava no Milagre Brasileiro de Médici.
290
Dessa forma, a mídia ,envolvendo cinema e telejornalismo, no período que antecedeu àquele
de “mão de ferro” da censura, destacava aspectos da realidade nacional consonantes com a
radicalidade retórica do momento presente nos meios intelectuais. Assim, aquele foi um período em
que foi procurado apresentar, como representação de nação, também a visão de mundo dos
segmentos sociais da camada popular, que eram dotados de pouca visibilidade. Aspecto este, da
popularização da cultura, produzido por uma intelectualidade engajada que, como linha
programática, buscou consolidar, na sociedade nacional, representações outras que não as da
sociedade burguesa.
Tratava-se de expor realidades múltiplas e subalternas, incorporadas ao imaginário das
letras, a partir do ethos popular, e inseri-las na representação de uma sociedade em vias de
transformação, processo que se constituiu ao longo das várias etapas de formação da consciência
social e nacional da intelectualidade brasileira, ao longo da primeira metade do século XX.
291
Dessa
forma, neste período, destacou-se uma práxis artística engajada, utopista e visionária, que se
289 MOTA, 2001. p.78.
290 MOTA,2001. p.79-80.
291Candido atribui primeiramente a Sérgio Buarque de Holanda esse papel, que, em 1936, rompe com a tradiç ão de
fazer uma leitura da sociedade sob a perspectiva dominante. Segundo esse crítico, Sérgio foi o primeiro intelectual
de peso a fazer uma opção pelo povo no terreno político.Por outro lado,a literatura regionalista de Graciliano Ramos,
por exemplo, incorpora ao imaginário das letras a figura desterritorializada do retirante nordestino. (CANDIDO,
1995. p. 290-1.)
117
apresentava falando a partir de uma perspectiva popular. Tal movimento, ao assim proceder, revisou
os valores sociais e se contrapôs, vigorosamente, àqueles que remetiam à ideologia burguesa,
representada pela classe média conservadora e pelas elites.
Heloísa Buarque de Holanda, em seu livro Impressões de viagem: CPC, vanguarda e
desbunde, aponta como havendo três momentos distintos que os movimentos culturais populares
perfazem durante as décadas de 60 e 70. Ela aponta o período da participação engajada e da arte
revolucionária; o do tropicalismo e sua desconfiança em relação ao discurso da tomada de poder da
esquerda, mas transgressor em relação à ordem burguesa; e o do realinhamento político que, após a
escalada da repressão, deslocou a contestação, antes constituída através do debate político, para a
ativação das massas através dos movimentos de mobilização cultural: arte pública, teatro e eventos
musicais, por exemplo, os festivais. Segundo a crítica, nos anos 60, a relação imediata entre arte e
sociedade era tomada como palavra de ordem e a intensa mobilização favorecia a adesão de artistas
e intelectuais ao projeto revolucionário.
292
Para ela, os anos 70 fizeram-se em uma sensação de
“vazio cultural”.
No plano intelectual, vindo desde as décadas anteriores, o Marxismo é sem dúvida , nos
anos 60, um importante paradigma teórico, que se manifesta em múltiplas áreas do pensamento
econômico, político, social e cultural. Há a revitalização do nacionalismo de esquerda, já presente
nas décadas anteriores que, tomado como linha programática, manteve estreito relacionamento com
o discurso de soberania e o envolvimento com os movimentos populares.
Do ponto de vista da reflexão sobre a nação brasileira, a intelectualidade, meio onde sempre
fecundaram importantes debates sobre a sociedade nacional, manteve em evidência, como tema, a
preservação da cultura brasileira frente à dependência cultural, partida lançada desde o
Modernismo, mas que nos anos sessenta e setenta atinge um patamar ideológico de reflexão.
293
292 HOLLANDA, 2004. p.19.
293 CANDIDO, 1995. p.303-4.
118
Prevaleceu a discussão sobre a defesa do território nacional, também tomado como território
cultural, o combate ao imperialismo político, econômico e cultural e a defesa das causas populares
como universalização da educação, da saúde e a reforma agrária.
294
Dessa forma, durante a década de 60, a América Latina fala do “lugar” de sua condição
periférica, revelando, em múltiplos setores, um desenvolvimento histórico e cultural próprio,
destacando pontos de vista emergentes:
Os anos 60 abrem, como dizíamos, um novo período na medida em que se voltam
com evidente interesse para a expressão dos imaginários sociais, àquela altura
ligados a uma mudança de sensibilidade, à emergência de diferentes estruturas,
conteúdos e atores, a novas formas de enunciação, à abertura para novas
configurações de futuro.
295
Tendo em vista o nacionalismo como um constructo intelectual, difundido na sociedade em
conformidade com as idéias que nela se veiculam, Antonio Candido afirma que no final do Governo
Vargas e na abertura política de João Goulart, década de 60, o nacionalismo se consubstanciou, no
imaginário intelectual, como uma decorrência da fusão do ideário da luta de classes com o
antiimperialismo, perspectivas que apresentaram grande impulso neste momento. Para esse autor, os
discursos nacionalistas, neste período, preconizavam a defesa da soberania do Estado, dos interesses
econômicos e da cultura nacional diante da ameaça da aculturação estrangeira, principalmente das
ações imperialistas dos Estados Unidos
296
.
Essa compreensão acerca do nacional, na América Latina, decorreu do processo histórico de
lutas iniciadas nas décadas anteriores, principalmente após a Segunda Grande Guerra, período a
partir do qual floresceu o combate às oligarquias latino-americanas. Neste processo de confrontos, a
teorização política ligada à esquerda intelectual compreendeu as elites oligárquicas na perspectiva
do alinhamento ideológico destas ao imperialismo norte americano. Assim, o nacionalismo, visto
294Concepção de nacionalismo extraída de Antônio Cândido e discutida mais a frente.
295PIZZARRO, 2004. p.21-35.
296 CANDIDO, 1995. p.303.
119
como defesa do patrimônio econômico e cultural da nação, tornou-se uma expressão da esquerda e
um contraponto ao conservadorismo e servilismo aos interesses e ditames estrangeiros atribuídos à
direita brasileira. O servilismo, assim, passa a ser visto como antimodelo do nacionalismo.
Esta compreensão do servilismo da direita como antinacionalismo não é unânime. Tal
questão é também discutida por Celso Lafer
297
, que assinala a existência do nacionalismo de direita.
Nacionalismo este, constituído sob o viés militarista, e que mais tarde será fortalecido durante os
governos autoritários do regime militar e veiculado, em grande parte, pela mídia controlada e pelas
agências de Estado. Tal nacionalismo, que satisfaz aos anseios da classe média conservadora e das
elites conservadoras, é impregnado pelos interesses da burguesia internacional. Entretanto, ele é
constituído a partir de uma imagem da Nação sustentada nas idéias de grandeza nacional e
territorial, do crescimento econômico e da afinidade de bloco, incentivando o internacionalismo
político alinhado aos países capitalistas.
Na visão de Antonio Candido, no transcorrer do século XX até a década de 60, o vincular do
nacionalismo com as aspirações da sociedade civil sofreu uma série de transformações, assim como
também o próprio modo de compreender a cultura nacional. Nesse ínterim, o ingresso das esquerdas
no universo ideológico nacional, manifestado a partir de discursos incisivos sobre a necessidade da
proteção da soberania do Estado Nacional e dos interesses nacionais e populares, significou à
intelectualidade deixar de se manifestar em consonância com as elites servis e buscar no povo a
inspiração para seu trabalho. Fato que, como aponta Candido, já tivera como precursora a
abordagem de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil
298
. Assim, o processo de
“esquerdização” da imagem requerida para a construção afetiva da nacionalidade se manifesta não
297 LAFER, 2001. p.99-100.
298Antônio Cândido comenta que mesmo os intelectuais brasileiros mais liberais viam a solução dos problemas
nacionais como tarefa das elites conscientes do seu papel social, devendo elas, por isso, educar o povo. Sérgio B. de
Holanda foi o primeiro intelectual de peso a fazer franca opção pelo povo no terreno político. Devendo ser ele o
responsável pelo próprio destino, rompendo discretamente, em 1936, com a tradição elitista do pensamento social no
Brasil. Sergio mantém, segundo Candido, em seu horizonte de reflexão a necessidade de uma revolução cujos traços
não sugere. (CANDIDO, 1995. p.290.)
120
pelo fato de a esquerda tornar-se hegemônica no processo de formação da nação, mas por suas
representações motivarem a intelectualidade no exercício de seu papel de pensar esse conceito.
Celso Lafer, ao tratar sobre a identidade internacional do Brasil, desde sua formação como
Estado Nacional até os dias atuais, afirma que a implantação do regime militar de 1964 ocorreu no
contexto de uma significativa batalha ideológica entre direita e esquerda e fez reverberar
internamente o mesmo conflito existente no plano internacional. Ele ressalta que no primeiro
governo militar, o de Castelo Branco, o posicionamento, predominantemente em relação à política
internacional, era o de arrefecimento diante de uma intervenção estrangeira, uma vez que em termos
de um nacionalismo já posto na sociedade a questão da soberania nacional era premente. O
distanciamento da posição do governo brasileiro, no plano das relações exteriores, no que tange à
influência estrangeira, foi principalmente em relação a Cuba, país com o qual os governos anteriores
de Jânio Quadros e João Goulart mantiveram relações estreitadas. Nos governos posteriores a
Castelo Branco, o alinhamento à política americana se fortaleceu e se constituiu uma linha de força
para a ação pragmática do governo.
299
Inserindo melhor a questão das formas de expressão do nacionalismo como baliza para o
discurso sobre o nacional, é interessante reportar a uma crítica elaborada, nos anos 80, “Nacional
por subtração”, de Roberto Schwarz
300
que distingue duas as correntes nacionalistas existentes no
Brasil, uma de direita e outra de esquerda, no transcorrer do século XX, que, embora divergentes
permaneciam unidas pela mesma crença de recusa ao modelo estrangeiro, como condição para se
alcançar o “nacional genuíno”. Desta forma, bastaria não repetir o modelo estrangeiro,
proscrevendo a idéia de cópia cultural.
301
Ao longo do século XX, ainda segundo Schwarz, a recusa do modelo estrangeiro reapareceu
como tema e representação no pensamento dos críticos da descaracterização romântico-liberal,
299LAFER, 2001. p.100.
300 SCHWARZ, 1987. p.32-33.
301 SCHWARZ, 1987. p.32-33.
121
entre eles, Antônio Callado, autor de Quarup, escrito ao final da década de 60. Neste romance, o
interior, longe dos contatos estrangeirizantes presentes no litoral, é tido como depositário da nação
autêntica.
A história envolve um grupo de personagens que parte em expedição, procurando o centro
geográfico do país
302
e, ao encontrá-lo, descobrem que nele há um formigueiro. Neste caso, há uma
ritualização do adentramento no território nacional, como chave para o discurso da nacionalidade.
Exposta desta forma, a percepção de que o verdadeiro nacional seria encontrado no interior do país,
em um local longe de contatos alienígenas, revela a dicotomia litoral e interior (sertão) que se
consolidou em nosso imaginário social, perpassando muitos textos que versaram sobre construção
do nacional.
Em A Pátria Geográfica, um estudo bastante representativo nesta mesma abordagem,
Candice Vidal e Souza mostrou a persistência dessa concepção de nacional nos anos anteriores à
década de 60, em textos como os Sertões, de Euclides da Cunha (1902); O fator geográfico na
política brasileira (1921) de Elísio de Carvalho e Marcha para o Oeste, de Cassiano Ricardo
(1941). Em todos eles, em alguma medida, o enfoque discutido remete à representação do nacional
colocado ao lado do ideal de interiorização e do litoral, visto como local de contaminação do
nacional genuíno.
Segundo Candice Vidal e Souza, em Os Sertões, Euclides introduz a leitura do sertão a
partir da concepção de atraso social, contrapondo-se às teorias deterministas da degenerescência.
Nesse pensador, o problema do atraso no sertão seria superado com a implantação do processo
civilizatório.
Com base em Elísio de Carvalho, em O fator geográfico na política brasileira, Candice
mostra que, para ele, as características nacionais no litoral se degeneram com o permanente contato
das influências exteriores. Diante disso, a alternativa que se estabelece é buscar no sertão, longe das
302SCHWARZ, 2002. p 33.
122
influências estrangeiras, o substrato genuíno para a constituição do novo Brasil.
303
Em Cassiano Ricardo, Marcha para o oeste, texto da década de 40, ainda de acordo com
Candice, está ressaltada primordialmente a figura do bandeirante e o deslocamento para o interior
está associado à idéia de construção da nacionalidade e sua re-escritura, enfatizando a Nação como
sendo o espaço da mobilidade.
Do ponto de vista da história indígena nos anos 60 e 70, Manuela da Cunha Carneiro ressalta
que o Estado ateve-se a uma política indigenista atrelada às suas prioridades, mantendo a conduta
assimilacionista e deslocando a forma de exploração do indígena para a exploração do subsolo a ele
pertencente. Nos anos 60, o ciclo do serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, encerra-se
sob acusações de corrupção. Em substituição ao SPI, entre 1966 e 1967, foi criada a fundação
nacional do índio (FUNAI), que substituiu a instituição anterior, sem alterar, no entanto, o foco de
atuação.
Os anos 70 foram marcados por uma nova onda de interiorização, induzindo a investimentos
pesados em infraestrutura, como a construção da rodovia “Transamazônica” e das barragens
Tucuruí e Balbina. Diante desse novo ciclo, foi vivenciado mais um implante civilizatório na selva
Amazônica. As ações de ocupação da região amazônica forçaram o contato com os grupos isolados.
Em seguida, vinham os tratores e depois a estrada e o realocamento dos povos indígenas, afastando-
os de suas terras tradicionais. A historiadora Manuela Carneiro da Cunha comenta que, em
decorrência desse projeto desenvolvimentista do Estado e em contraposição a ele, ao final dos anos
70, multiplicaram-se as organizações não governamentais de apoio aos índios e, no início da década
de 80, pela primeira vez, era organizado um movimento indígena de cunho nacional.
304
Tal fato
culminou com a mobilização social, envolvendo tanto as comunidades indígenas organizadas, como
partidos políticos e organizações da sociedade civil pró-indígenas.
303 VIDAL E SOUZA,1997. p.105.
304 CUNHA, 1998. p. 16.
123
3.1.1 : Darcy Ribeiro autor de
Maíra
Como intelectual engajado que era, Darcy Ribeiro, mesmo após ter deixado de trabalhar
diretamente com os índios, como etnólogo, atuou como mediador dos interesses indígenas na
sociedade nacional, e compreendia ser necessária a intervenção do intelectual na vida política do
país. O antropólogo mineiro, segundo declara em Confissões,
305
seu livro autobiográfico, iniciou
sua atuação política ainda na mocidade, como militante do Partido Comunista, tendo deste se
afastado, por ocasião da morte de Getúlio Vargas, período em que se aproximou politicamente do
modelo nacionalista e trabalhista, legado do estadista gaúcho. Darcy declarou ter encontrado na
morte de Vargas, mais precisamente em sua “Carta-Testamento”, uma outra perspectiva de atuação,
que o aproximou de Leonel Brizola e de João Goulart, de quem foi chefe da Casa-Civil de 1963 até
o golpe militar em 31 de março de 1964
306
:
Desde 1954 eu me alinhei com os que retomam essa questão para levá-la adiante,”
refere-se à tradição getulista, “lutando a partir de duas posturas. O trabalhismo
sectariamente pró-assalariado, tanto quanto as correntes contrárias são sectariamente
pró-patronais. E o nacionalismo, que é um compromisso de lutar pelo Brasil..
307
O nacionalismo declarado de Darcy Ribeiro se expressa em suas obras acadêmicas e literárias,
remetendo à construção de um país mais inclusivo, socialmente mais equilibrado, incluindo aqueles
que estão à margem da nação. Aspiração que fica bem clara em sua atuação como educador:
Depois dos índios fui trabalhar com política, com educação, uma coisa muito rica.
Trabalhei com educação primária, média e superior. Criei a universidade de Brasília.
Depois disso fui Ministro da Educação, fui chefe da Casa Civil e tentei fazer uma
série de reformas para passar o Brasil a limpo, para o Brasil dar certo e fui cair no
exílio.
308
305 RIBEIRO, 1997. p.279.
306 COELHO, 1997. p.63.
307 RIBEIRO,1997. p.279 (a)
308 RIBEIRO, 1997. p.43 (b)
124
O romance Maíra de Darcy Ribeiro, publicado em 1976, Segundo comenta o próprio autor,
Maíra teve três versões. A primeira versão foi escrita no Uruguai, quando o antropólogo pretendeu
refazer-se do esgotamento provocado pela escritura do primeiro texto de sua teoria antropológica, O
Processo civilizatório. A segunda versão, em 1969, enquanto estava preso no Rio Janeiro. E, por
fim, a terceira versão, escrita durante o exílio no Peru.
309
O texto mostra as fraturas no modelo hiperbólico de nação, expondo, como contraponto ao
modelo de país grandioso, do milagre brasileiro, outra de uma indianinidade emudecida desde os
primeiros contatos com o “branco”, já em vias de se perder. É uma narrativa que mostra a tensão
entre a finitude e a sobrevivência, deixando entrever a questão conjuntural daquele momento
político conturbado, permitindo uma leitura da nacionalidade trazida na circunstância enunciativa
da exclusão, do índio e do intelectual.
3.1.2 : , Maíra o indígena a nação e a modernização
3.1.2.1 O nacional em
Maíra
A história apresentada em Maíra, propriamente dita, inicia-se com a descoberta feita por um
cientista ecólogo-entomologista dos corpos de Alma e seus gêmeos nascituros na beira de um rio no
Iparanã encobertos pelas formigas. O fato de haver no corpo da mulher áreas com hematomas
suscitou, no cientista, a suspeita de que poderia se tratar de um homicídio, o que o levou a prestar
queixa do ocorrido à polícia em Brasília. Da investigação do evento, conforme mostrou Haydée
Ribeiro Coelho, é que se propiciou o desenvolvimento da narrativa em Maíra.
310
309 COELHO, 1996. p.19-20. e RIBEIRO, 1997. p 43-44(b)
310 COELHO, 1989. p.55-66.
125
As formigas, na narrativa, constituem uma entrada que, do ponto de vista semântico, remete
a toda uma “família” de textos que problematizaram o Brasil. A presença destas, nesta narrativa, não
mais se relaciona com a visão positivista de progresso e higienismo, como no dístico macunaímico.
Do ponto de vista figurativo, elas conduzem à narrativa, uma vez que foi seguindo-as que o cientista
descobriu os corpos de Alma e dos gêmeos, estes repletos de significado e simbolismo, pois são a
chave para a representação do encontro entre o “universo branco” e o indígena. Tendo sido metáfora
do discurso de empreitada civilizatória, tais espécimes, que eram um dos males do Brasil, segundo
cantilena presente em Macunaíma, no romance Maíra, tornam-se indicadores concretos de um
desses males, pois ao mostrarem junto aos corpos, revelam a iminência do fim do mundo indígena,
mostrado através da trágica história da arquetípica aldeia mairum. Ainda como intertexto, as
formigas, conduzindo o cientista Peter Becker ao corpo de Alma, remetem à cena de Macunaíma,
em que, encontrado morto, o protagonista é resgatado pelo advogado para depois ser ressuscitado
pelo irmão.
Em Maíra, a leitura do nacional é produzida, por um lado, pelo questionamento do indígena,
em relação à identidade étnica; por outro, é problematiza o mito do nacional genuíno encontrado no
interior do país.
O primeiro enfoque é mostrado pela voz do índio aculturado e binominado Isaias/ Avá que,
vivendo no Vaticano, e estando prestes a ordenar-se padre, indaga-se quanto à sua identidade frente
ao mundo ocidental. O indígena relembra, na forma de reminiscência, um debate com o padre
Ceschiatti que o tutora. Reportando-se à fala do padre, Isaías afirma a impressão de exclusão da
nacionalidade a que é submetido por ser indígena:
Ser brasileiro, como ser congolês ou mairum não é a mesma coisa? Você é mairum
como eu poderia ser congolês. Mas não é assim. Ele não diz: você é mairum (e sou),
tal como eu sou genovês, como nossos irmãos de ordem são italianos, alemães,
brasileiros. Diz que eu sou mairum, como aquele congolês a quem ele se refere tem
a desgraça de ser de certa tribo do Congo. Ele não sabe como eu sei, bem que no dia
em que houver uma nação congolesa mesmo, os mairuns de lá continuarão a ser
126
mairuns, quer dizer não-congoleses, ninguém.
311
Avá tem a consciência de pertencer a uma nação indígena ( a um povo culturalmente
enraizado, compartilhando língua, religião, costumes e tradições) diferenciada do território nacional
brasileiro:
Ele gosta de dizer que só deseja me devolver o orgulho mairum... fincapé em que eu
nada tenho de extraordinário: cada homem, diz ele, tem sua raiz seja em uma aldeia
de Gênova, num bairro de Nova Iorque ou numa tribo no interior do Brasil. O que
ele não sabe é que eu tenho raiz demais... A aldeia dele é parte de uma nação, é vila
ou bairro ou subúrbio, e como tal pode até ser esquecida porque é parte de um todo.
Conosco, os mairuns é diferente. Minha aldeia não é parte de coisa nenhuma. É um
povo em si, quer dizer uma tribo com sua lingüinha, sua religiãozinha, seus
costumezinhos destinados a desaparecer.(grifo meu).
312
O nacional, sendo representado a partir da dicotomização entre interior (sertão) / exterior
(litoral), fato que coloca este texto darcyano em diálogo com toda uma tradiç ão que o precede,
incluindo àqueles a que me reportei com base nos textos de Roberto Schwarz e Candice Vidal e
Souza.
Na representação darcyniana, rompe-se o pressuposto de que exista um local da nação em
que se encontre a “autenticidade” cultural. Em uma aldeia remota, no interior da selva, onde quer
que se esbarre no Iparanã a presença estrangeira é encontrada. Lá estão os americanos missionários
que querem converter a caboclada e também a aldeia Mairum, difundindo a Bíblia em língua
indígena. Antes deles, os padres italianos desenraizados, há muito lá se encontravam:
Padre Vechio: - (...)Estou com 78 e você passou dos 70, não é? Esses prédios tão
bonitos, obra nossa. É a nossa marca no mundo. Melhor que a primeira palhoça que
levantamos. Melhor do que a segunda. Melhor que todas. Melhor também que a
aldeia toscana em que nasci.
Padre Aquino: - Melhor que a aldeia mairum que encontramos aqui?
Padre Vechio: - Deixa disso, irmão. Eu queria dizer que meu maior temor na vida
era ser mandado para Toscana para envelhecer e morrer entre os meus...
Padre Aquino: -Também o meu. E foi por isso que decidimos escrever a Etnografia
Mairum. Nos agarramos naquilo para fugir da condenação de voltar, não foi?
313
Para lá se deslocaram as irmãs francesas, junto às quais Alma queria tornar-se missionária.
311 RIBEIRO, 1989, p.30.
312 Idem.
313 RIBEIRO, 1989. p.391.
127
De fato, o que se tem com a representação proposta pelo texto é um processo de releitura do
nacionalismo ingênuo e do processo civilizatório, no contexto do processo histórico. Tal releitura
envolve expor a internacionalização das relações sociais, de modo a mostrar que a aldeia Mairum,
como qualquer aldeia, está inserida em um contexto global, destacando, neste aspecto, que a
perspectiva estrangeira atravessa de forma constitutiva o ethos nacional. Nesses termos, o romance
acrescenta mais elementos para essa leitura da nacionalidade, criando outros desdobramentos que
trazem uma releitura do processo histórico e ainda acena o ponto de vista hegemônico mostrado
pela empreitada neocivilizatória. Esta empreitada vista através da ação missionária de Bob e
Gertrudes, das irmãs francesas e ainda pelo ponto de vista oficial evidenciado pela opinião de
Nonato e a pela presença da agência da FUNAI.
Outro estrangeiro, que se encontra no Iparanã, é o cientista, cujo papel é o de revelar, senão
para mundo, para o Estado brasileiro, a tragédia mairum. Assim, sua atuação encerra-se quase no
momento em que começa a narrativa, com relato à polícia da descoberta do corpo de Alma e dos o
gêmeos.
314
Esse deslocamento do exterior para o litoral e de lá para o interior do país, no caso de Avá; e
do litoral para o interior do país, no caso de Alma, no fundo mimetizam um processo de busca da
identidade do sujeito. Haydée Ribeiro Coelho em sua tese de doutorado A exumação da memória
trabalhou o deslocamento em Maíra, mostrando sua influência no processo de reencontro com a
identidade indígena. Em sua análise, a crítica mostra as transformações propiciadas pela viagem de
regresso, tomando o fio da memória, em que na primeira parte da viagem Roma /Brasília constitui
um reavivamento da ordem ritualística e na segunda parte, de Brasília para o Iparanã , são
mostrados os mitos.
Em Maíra, na leitura aqui apresentada, a questão do deslocamento aparece como uma forma
314 Haydée R. Coelho mostra como a investigação policial permite, ao escrutinar os fatos do Iparanã, a revelação da
trama que constituiria a narrativa Maíra, e que será discutido mais a frente.
128
de situar o nacional, em termos de uma construção da nacionalidade, esta mostrada pelas vias do
conflito presente entre sociedade tribal e nacional.
No romance darcyniano, o interior do Brasil evoca não um centro simbólico da riqueza cultural
(que remeteria à depuração da cultura nacional), mas à problematização da cultura tomando como
pontos antagônicos dois centros distintos, dois núcleos narrativos que passam a sediar os
acontecimentos em detrimento dos núcleos cosmopolitas Roma e Rio de Janeiro, deixados para
trás.
O nacional, a espacialidade, e o contato com o universal são representados no deslocamento
dos personagens, tendo como referências Roma, Rio de Janeiro, Brasília. Desta forma, a viagem de
Avá e Alma conflui para um mesmo sentido, que no texto é marcado pelo encontro dos dois no
traslado de Brasília para a aldeia Mairum.
O Rio de Janeiro é a referência litorânea da narrativa e remete a uma localidade que funciona
como ponto de partida. Para Alma, a personagem desencadeadora da trama, o Rio de Janeiro
constitui um espaço a ser superado, ligado ao passado, pronto a ser deixado para trás. Essa
personagem age como desbravadora ao deslocar-se para o Iparanã, em uma missão isolada,
almejando, ainda que inconscientemente, descobrir a si mesma e acaba por encontrar nesta busca a
alteridade indígena.
Como uma metáfora política, o Rio de Janeiro se relaciona com o poder central de Brasília,
por anteceder a este como sede do poder nacional, desde que a corte portuguesa se instalou no
Brasil, infringindo a hierarquia do pacto colonial. Assim, o Rio de Janeiro é a etapa anterior ao
processo de construção da nação modernizada e o ponto de partida do itinerário de Alma.
Também esta é a situação de Roma, sede do poder católico, espaço exterior da nacionalidade
brasileira, que participou ativamente no processo de colonização na América, que é o primeiro a ser
apresentado e deixado na narrativa. Roma é, assim, o ponto de retorno do índio convertido Avá ao
129
buscar reintegrar sua identidade indígena.
No Vaticano, em que os sujeitos religiosos são designados também por sua nacionalidade, é
onde o Avá se conscientiza de sua fragmentação identitária, pois se sente destituído de sua
identidade indígena, abortada pelo processo de aculturação, e da nacional, que lhe parece
incompleta, uma vez que relativizada pela origem indígena. Disposto a superar a dualidade de ser
indígena e civilizado, retorna à aldeia Mairum, buscando reencontrar a identidade étnica e cumprir
seu papel ritualístico na vida da aldeia.
No contexto que antecedeu a escritura desta obra de Darcy Ribeiro, Brasília era o espaço
geográfico da modernização, simbolizando o poder nacional e metaforizado a fundação da nação.
Não se trata da fundação em termos de um retorno mítico, como no Romantismo, nem nos termos
de uma historicização como em Macunaíma. A síntese desta fundação é envolvida pela idéia da
cidade-monumento à semelhança de uma pedra fundamental que lança as bases da reescrita da
história e da construção da nação, aspecto este que inclusive é mostrado em Confissões, pelo
próprio Darcy Ribeiro: Era enorme a quantidade de engenheiros com os chapeuzinhos-de-coco
dirigindo candangos vindos de todo o Brasil para plantar no chão a cidade inventada por Lúcio.
315
Nesses termos, Brasília de certa forma, como espaço simbólico, evocaria a idéia do
centro/interior como local diferenciado da construção do nacional e a nacionalidade, partindo de um
projeto de concepção arrojada. Nesse sentido, Brasília, projeto grandioso, como mostra Darcy
Ribeiro, foi ainda assim singular,dada a concepção de Lúcio Costa, que a transformou em um
memorial descritivo, que é um dos textos de fundação mais importantes do Brasil, tal como a
Carta de Caminha ou a Carta-Testamento de Getúlio Vargas.
316
O texto de Darcy evidencia as fissuras contidas no processo de interiorização do país,
mostrando que esta modernização, ao se constituir o faz indiferente à destruiç ão e alheia ao universo
315 RIBEIRO,1998. p.238.
316 RIBEIRO,1998. p.235.
130
cultural de seu entorno. Nesses termos, pouco ou nada se fez para intervir no processo do
extermínio indígena que a nova onda de interiorização engendrava. Fato exemplar é narrado no
último capítulo do livro “Indez”, que coloca o homem público, o senador, como agente do processo
de grilagem das terras indígenas. :
Pois é Pio, estamos acabando de construir o casarão da fazenda para receber os
hóspedes do senador. O campo de pouso já está no ponto, hoje será estreado. Você
há de ver, esses Campos dos Epexãs, vão estar povoados de um gadão azebuado, de
dar gosto. Já está vindo a primeira boiada (...) estão vindo de Uberaba, por esses
estradões de boiada. Com mais um mês estarão chegando aqui. E os Epexãs, mal o
pergunte, seu Tonico. O que é que você fez com eles? Ah! Os marginais, os
marginais como diz o senador: uns desgraçados. Não quiseram colaborar, safados.
Com o trabalho não querem nada. O jeito foi chamar um batalhão do terceiro
regimento para escorraçá-los como invasores da fazenda do senador.
317
O que se tem Maíra é o questionamento da empreitada civilizatória e o que se coloca em
questão é a visão da nação totalizante, oferecida pelo fato de que na narrativa Brasília (a sede
política da nação) se vê “limitada” pelo centro mítico, local de onde a história é ocorreu. No
confronto entre personagem e romance, a nação está atravessada por forças civilizatórias e o
indígena está dividido entre pertencer a essa Nação indígena e também a brasileira.
Nonato, o investigador da causa mortis de Alma, é quem emitirá a interpretação oficial sobre
o mundo indígena
318
e mostrará o olhar da oficialidade nacional sobres os índios e o conflito
resultante da convivência entre indígenas e brancos no Iparanã, distanciada de qualquer viés
indigenista ou antropológico. É o olhar de um leigo, que remete à perspectiva hegemônica e que
encara o conflito no Iparanã como falha na execução do processo civilizatório. Para Haydée Ribeiro
Coelho, a visão de Nonato é a do neocolonizador, que enxerga o índio no seu contexto social como
um elemento exótico:
O caráter autoritário da história de Nonato está em conformidade com sua forma
autoritária do seu contar. As poucas falas presentes em seu texto servem para
demonstrar ao narratário intradiegético (Ministro de Estado, dos Negócios e da
Justiça) a veracidade de suas informações e revelar o exercício de sua força. (...)
Nonato escreve uma história que busca manter a verdade objetiva do discurso
317 RIBEIRO, 1996. p.376.
318 COELHO, 1989. p.61-2.
131
histórico oficial.
319
Nonato, como narrador oficial, atém-se a elementos periféricos, produzindo uma narrativa
equivocada. Sua figura no Iparanã altera a cartografia do poder local, enchendo de demé ritos a
figura do representante corrupto que deveria zelar pela ordem e implantar o processo civilizatório
para os indígenas. No relato do policial, que se quer verdadeiro em sua função investigativa,
permanece encarnada a percepção dos fatos de maneira dualista opondo branco e índio, bem e mal,
limpo e sujo e certo e errado, creditando o fracasso da ação civilizatória no Iparanã à inépcia do
agente estatal, ressalvando, nesse sentido, a ação da Igreja no local.
3.1.2.2 : A reconstrução das identidades
Em Maíra, a relação entre minoria étnica, sujeito aculturado e sociedade expressam a
agonia da cultura indígena, que em parte é circunstanciada pelas ações polêmicas promovidas por
um Estado-Nação incapaz de lidar com a diferença em suas peculiaridades, ou de proteger as
minorias tuteladas pelo Estado da ação dos setores predatórios e aliciantes da sociedade civil.
A propósito desses últimos, o escritor evidencia, entre as principais linhas de força que agem nesse
processo de transformação da sociedade mairum, a religiosa que, através de sua ação secular
catequista e evangelizadora, atinge a organização social mairum por dentro, desagregando-a
estruturalmente.
Isso é colocado pelo enredo através da lacuna deixada no processo sucessório do comando
tribal que é interrompido, pois Avá, o sucessor do clã do Jaguar, em criança, apartado do convívio
tribal pelos padres, é marcado pela cultura ocidental. Desta forma, a preservação da cultura mairum
se vê desarticulada, pois o sucessor atende a dois universos conceituais distintos, o mairum e o
319 COELHO, 1989. p.61-62.
132
ocidental judaico-cristão.
A Igreja Católica, a principal linha de força do processo civilizatório apresentado pelo texto,
se caracteriza pela sua atuação catequista intensiva e é, na narrativa, a responsável pela formação
cultural do personagem principal, Avá/Isaías que vive o dilema de sentir-se permanentemente
discriminado no mundo civilizado.
320
Esta é a dimensão reveladora que marca o retorno do indígena
para o seu universo, e que de certa forma conforma o conflito existencial e identitário do
personagem:
Todo o dia e toda noite já longa revivi meus idos. Os de menino na Aldeia, os de
rapaz no convento de Goiás, os de homem feito e desfeito em Roma. Eles me
marcaram duramente. É como se eu tivesse perdido minha alma, roubada pelos
curupiras e vivido por anos a fio como bicho entre bichos. Volto, agora que volto de
verdade, me perguntando qual é o ser que levo ao meu povo. Sei bem que não sou o
anjo sem mácula que um dia quis ser, a ingenuidade mairuna submetida a todas as
provações, mas intocada. Não sou inocente. Não sou culpado. Sou um equívoco
.Quem volta não é a forma adulta do menino ignorante, que os mairuns, na sua
inocência, mandaram, um dia, com um padre para aprender a sabedoria dos caraíbas.
Quem volta não é também o catecúmeno esforçado de quem os missionários
quiseram fazer a glória da ordem. /quem volta sou apenas eu. Fui ovelha do senhor.
Volto tosqueado: sem glória sarcerdotal, sem santidade, sem sabedoria, sem nada.
Tudo o que tenho são duas mãos inábeis e uma cabeça cheia de ladainhas. E este
coração aflito que me sai pela boca.
321
(grifo meu)
O capítulo “Isaías” marca o princípio do rito de retorno de Avá a sua origem cultural:
Eu que sou o Isaías da ordem missionária e ao mesmo tempo o Avá do Clã Jaguar,
do povo Mairum? Não, jamais, longe de mim essa ambigüidade. Afinal tudo está
claro. Apenas representei e represento um papel, segundo aprendi. Não sou, nunca
fui nem serei jamais Isaías. A única palavra que sairá de mim, queimando minha
boca é que sou Avá, o tuxauarã, e que só me devo a minha gente Jaguar da minha
nação Mairum.
322
Um aspecto que singulariza a revelação do ethos indígena, nesse romance, é que cabe à Alma, a
mulher branca, revelá-lo:
Para mim esses Mairuns já realizaram a revolução em liberdade. Não há ricos nem
pobres; quando a natureza está sovina, todos emagrecem; quando está dadivosa,
todos engordam. Ninguém explora ninguém. Não tem preço essa liberdade de
trabalhar ou folgar ao gosto de cada um. Depois a vida é variada, ninguém é burro,
320 A ação aculturadora produzida pela Igreja Católica foi, conforme mostrou de Darcy Ribeiro, a grande contribuição
de Gilberto Freyre acerca da leitura sócio cultural sobre o indígena na sociedade brasileira. Aspecto relacionado no
capítulo 2.
321 RIBEIRO,1989. p.67.
322 RIBEIRO,1889. p.34-5.
133
nem metido a besta. Para mim a Terra sem Males está aqui mesmo...
323
Haydée Ribeiro Coelho mostra em seu texto “Representação feminina, travessia e memória”, a
importância do papel de Alma na revelação do Ethos indígena:
“Quando Alma chega à tribo Mairum, compreende o outro, a diferença existente
entre a cultura do branco e a cultura indígena. Ora, Darcy Ribeiro, participando da
tradição indigenista e não indianista , acena para a mudança de olhar realizada pela
personagem feminina , num processo de busca de deslocamento. A diferença entre as
duas culturas só se revela para a passagem feminina pela travessia. Na medida em
que descobre o outro se descobre, tem a revelação de sua própria identidade. A
descoberta de si revela a face oculta da identidade nacional
324
O percurso de Alma é o da descoberta do indígena pelo branco, instanciado pela admiração
e respeito ao ethos indígena. Sua presença como heroína é dessacralizada e a inserção dessa
personagem na narrativa remete de maneira analógica a uma aproximação com a ordem mítica
cosmogônica comum a vários povos indígenas no Brasil. Trata-se da afirmação do mito de Maíra da
criação envolvendo a progenitura dos gêmeos, os filhos de “Jaguar”.
Nesta narrativa, a analogia ao mito cosmogônico é dado pela figura da gemelaridade e pela
paternidade de Jaguar, que retoma a ordem mítica no contexto da desagregação dos ritos presentes
naquela sociedade. No mito, os filhos de Jaguar o matam para virem daí se constituir criadores das
coisas do mundo e da existência humana, tal como ela é no mundo real. Este mito confere um
princípio à existência.
Na narrativa Maíra, a renovação é mostrada pela morte dos gêmeos ao nascimento,
remetendo ao impedimento do prosseguimento das tradições. Assim, o que a narrativa
metaforicamente ressalta é a iminência do fim, marcando o comprometimento da sobrevivência do
povo mairum, como já evidenciou Walnice Nogueira Galvão.
Nessa linha, ao recorrer à ordem mítica, Darcy Ribeiro associa ao ethos indígena a idéia de
morte
325
, esta promovida pela ação progressiva da aculturação, como alternativa, no entanto, reitera
323 RIBEIRO,1989. p.268.
324 COELHO, 1994. p.62.
325 Maria Luiza Ramos desenvolveu este tema em seu ensaio “Maíra Leitura / Escritura”, mostrando a presença da
134
a sobrevivência do ethos mediada pelo ato de narrar.
3.2 , Nação nações e imaginários cruzados
326
3.2.1 : :Kaká Werá Jecupé o intelectual indígena
Kaká Werá Jecupé é um escritor indígena e mediador cultural, cuja trajetória é marcada pelo
hibridismo cultural. Nascido txukarramãe (guerreiro sem arma), como seu pai, relacionou-se com
diversas outras etnias. Sua mãe era de Minas Gerais e foi designada, pelo narrador, genericamente
como “tapuia”. Passou a infância e a adolescência entre os guaranis, em São Paulo, período em que
foi alfabetizado, fora do aldeamento, em uma escola pública, na região paulistana. Na escola foi
despertado para a escrita, a qual achava fascinante e que, por certo, o vem acompanhando, como
aliada na luta em prol da afirmação identitária indígena. Escreveu três livros até agora, Oré Awé
roiru’a ma, Terra de mil povos e Tupã Tenondé
Atualmente, adota duas identidades ocupacionais: é um “pajé”, que trabalha através dos
espíritos da natureza, das plantas medicinais e dos espíritos-guia ancestrais, e é, ainda, um “pathi”,
um difusor do saber indígena, no Brasil e no exterior.
3.2.2
Oré awé roiru’a ma
A narrativa, Oré awé roiru’a ma: todas as vezes que dissemos adeus, é de cunho
autobiográfico e o narrador expõe o percurso vivido entre o esvaziamento de sua identidade étnica
até seu reencontro com a cultura ancestral. Como texto indígena, essa é uma narrativa diferenciada,
Morte como leitmotiv, tomada a partir a idéia de sacrifício trazido pelo ritual católico da missa. (RAMOS, 2000.
p.141-63.).
326 Vali-me do termo “Mundos Cruzados” utilizado por Antonio Candido em seu artigo publicado sobre Maíra, por
ocasião dos seus vinte anos. (Cf. CANDIDO, 1996. p.381-5.)
135
pois apresenta a autoria assinada, o que constitui uma particularidade na produção escrita indígena,
em que prevalece a escrita coletiva.
Neste texto, Kaká Werá Jecupé narra sua própria história desde a infância até o momento em
que assumiu o papel de emissário da cultura indígena frente à sociedade brasileira e comunidade
internacional.
Quando foi publicada a primeira edição desse livro, em 1994, a cultura indígena
brasileira era até então apresentada sempre na voz do antropólogo, ou de um
indigenista, ou então sob a visão de um cientista social. Este trabalho foi o início da
própria voz indí gena, em meio a sociedade envolvente, de se fazer escrita.
Mostrando suas iniciações interiores, suas percepções deste mundo, que se
desmorona e busca se reconstituir a cada dia. A busca de raízes mais profundas do
ser. Por isso ele foi escrito no ritmo das inquietações do ser. No ritmo das memórias
fragmentadas que lutam para formar uma coesão.
327
A idéia, que perpassa este texto é a da empunhadura da escrita como arma, cuja ação é
garantir a permanência do ethos indígena, na sociedade nacional, invertendo a lógica civilizatória:
Meus pais não são guaranis (...) ficaram conhecidos no passado como ‘tapuia’. No
entanto, minha família se auto denomina ‘guerreiros sem armas ou como eu gosto
de me apresentar: txukarramãe
328
. (...) Apresento-me como txukarramãe pelo fato de
ser um guerreiro sem armas (...) comecei uma tarefa , a partir dos ensinamentos que
me foram passados, de difundir a tradição, plantando agora, para o próximo ciclo da
natureza cósmica, nesta terra chamada Brasil, sementes ancestrais para o
florescimento de uma nova tribo.
329
Nele é mostrado os descaminhos que permeiam a interação entre comunidades indígenas,
outras minorias étnicas e a sociedade nacional e o narrador relata como foi processo de aculturação
e a violência simbólica aos quais foi submetido.
O primeiro contato negativo com a sociedade nacional que é narrado, decorre de uma
situação de violência provocada pela posse da terra. Durante a década de 60, quando o narrador
estava ainda na infância, sua família viu-se obrigada a abandonar suas terras, diasporicamente,
327 JECUPÉ, 1994. p 6
328 Alusão ao sentido e não à origem étnica, uma vez que como esclarece o autor , eles nada têm a ver, em termos de
origem com o tuxukarramãe, do alto Xingu
329 JECUPÉ, 1998. p.12.
136
fugindo do perigo de morte. O núcleo familiar dividiu-se, ele e seus pais deixaram Minas Gerais
rumo à São Paulo e a avó de Kaká, a quem era muito apegado, foi para o norte, onde vivem os
Txukarramãe.
O segundo conflito foi na fase de escolarização. A violência, nesse caso, se deu no patamar
simbólico. Nessa ocasião, sua família já estava capital paulista, agregada ao aldeamento guarani
“Krukutu” (Represa Billings). Como viviam em uma área urbana, Kaká Werá foi escolarizado e, em
virtude disso, obrigado a mudar seus costumes: a vestir uniforme e sapatos, a adotar um nome não
indígena e a tirar fotografia, fatos que contrariavam disposições paternas.
A regularização do indígena era uma disposição do Estado e a própria aldeia “Krukutu”
passara pelo mesmo problema antes da chegada da família de Kaká. Naquele período, houve a
exigência de que os indígenas viessem a se registrar com nomes ocidentais :
Ao chegarmos entre os guaranis, em São Paulo, a cidade acabou pedindo o nome do
pai e dos guaranis em troca de sobrevivência. Disseram que sem nome e número não
se existia. (...) Ficamos muito tempo sem existir até faltar água e recursos da mata e
precisarmos trocar com os civilizados meios para sobreviver. Uma das coisas
trocadas foram os nomes.
330
Apesar da institucionalização do indígena, mostrada pela exigência do registro, a situação
miserável a que estavam expostos persistia. Tal fato, segundo conta Kaká Werá arruinou sua família
e, com a morte da mãe e o alcoolismo do pai, revoltou-se em relação à situação de marginalidade do
índio, entrando em processo de recusa identitária, que o levou a deixar o povo guarani: foi a partir
daí que empunhei a lança da revolta. Munido de flechas de ódio. Eu era assim uma árvore só
casca, sem árvore por dentro. Meu povo um vago fantasma na minha cabeça
331
.
Mergulhando no mundo do branco, Kaká Werá parte da aldeia com um amigo e vai chegar
em Florianópolis, onde encontra alguns interlocutores receptivos que pluralizam a percepção de
mundo de Kaká Werá, e reaproximam-no de sua identidade étnica. O primeiro contato que narra foi
com pescadores descendentes de açoreanos, os “barrigas-verdes”, com os quais fez muitos
330 JECUPÉ, 1994. p.16-7.
331 Idem.
137
arrastões. Depois, mais inserido socialmente, atuou como mediador cultural na ilha:
Com o tempo mudei-me para um vilarejo chamado Canto da Lagoa, mais perto da
mata. Caminhava quilômetros de manhã até o local onde passei a trabalhar, uma casa
de atividades de arte (...) Ensinava algumas danças indígenas e história da nossa
cultura. Os artistas respeitavam e se interessavam em saber, as crianças também.
332
De sujeito desterritorializado à militante da causa indígena, Kaká parece haver encontrado a
identidade étnica ao afastar-se do mundo indígena. O ato de viajar foi determinante para sua
formação intelectual, outro fator foi a sua amizade com Gike, uma gaúcha, descendente de alemães,
jornalista e professora na Universidade Federal de Santa Catarina, residente na região da “Lagoa da
Conceição”. Com essa nova amizade, Kaká aproximou-se de um estrato da sociedade mais
intelectualizado. Sendo a gaúcha jornalista e ativista ambiental, ela mostrou ao kaká o sentido de
lutar por uma causa social como alternativa para a violência e a ignorância presentes na sociedade.
E foi participando de uma comemoração oferecida por Gike aos amigos, que kaká começou a
vislumbrar um projeto coletivo, o qual se propusesse a despertar a sociedade nacional para os
problemas ambientais e a questão indígena.:
(...) Gike sugeriu que ensinasse uma dança ritualística a todos. Foi a primeira vez
que me dei conta que nossa dança poderia ser sagradamente feita com qualquer
pessoa. Pois no lugar onde eu ensinara outras vezes estavam interessados da técnica.
E ali senti interesse pelo vôo que ela fazia. Dançamos a dança Txukarramãe da
terra.
333
Ao retornar para o aldeamento, ao final dos anos 80 (nas últimas luas), Kaká encontrou
algumas transformações no lugar: a implantação da educação indígena; a disposição da tribo
guarani em conhecer mais sobre a sociedade nacional e outras culturas; e a renovação do conselho
tribal, composto também pela juventude, que incorporava elementos novos a comunidade indígena
(haviam estudado com o branco).
Nessa narrativa, o reencontro com a etnicidade é mostrado através dois de eventos narrados
332 Idem.
333 JECUPÉ, 1994. p. 36
138
em seqüência. O primeiro, referente ao retorno para aldeia e a participação da cerimônia de
“nomeação” guarani (uma espécie de “batismo” não pela lavagem, mas pela fumaça soprada). Nesse
processo, Kaká Txukarramãe torna-se Kaká Werá Jecupé, o nome guarani “soprado” pelo pajé dos
pajés guaranis, Werá de Parati.
Kaká é um apelido, um escudo (...) Werá Jecupé é o meu tom, ou seja, meu espírito
nomeado. De acordo com esse nome, meu espírito veio do leste, fazendo um
movimento para o sul, entoando um som, uma dança, um gesto do espírito para a
meteria que nos apresenta ao mundo como uma assinatura. Essa assinatura
registrada na alma me faz algo como neto do trovão, bisneto de Tupã.
334
A nomeação é o ato simbólico do retorno. Após o rito afirma o narrador que O sol encheu
meu novo corpo.
335
Até agora fico me dourando ao sol nesse rio da minha lembrança. Pelas aldeias do
litoral, ouvia história de séculos, ouvia tristes cantigas guaranis, rememorando
descaminhos. Um labirinto de saudades que os caciques contavam da terra sem
Males. ”
336
(...)com o tempo , passei a andar pelas largas trilhas chamadas avenidas. Percorri
suas florestas de aço e comi de seus frutos artificiais para descobrir os brasis. Nos
asfaltos por onde andei nada se dá. Conheci uma qualidade de caciques, que põem
gravatas (...)eles têm requinte de fala, vivem dela. E o jaguar no coração(...)E acabei
de descobrir que muitos deles eram a causa do extermínio do meu povo”
337
O segundo evento é atinente à participação de Kaká Werá Jecupé, como mediador cultural,
em uma comemoração de natureza interétnica, com forte inserção religiosa, o Anhagabaú-Opá”.
Tal evento foi realizado no vale do Anhagabaú em São Paulo, em 1992, e evocava a harmonização
dos povos. O objetivo social proposto pela confraternização foi expor para a sociedade brasileira a
sua diversidade étnica a partir da perspectiva das minorias:
Fomos parar na Câmara do Comércio e indústria de São Paulo, onde fui apresentado
ao senhor Eduardo Elchemer e o babalorixá Cássio Ogun. / -De que tribo você é?
/-Sou Tuxukarramãe, de um povo que habitava o norte, mas minha tribo foi destruída
e criei-me entre os Guaranis de São Paulo.
334 JECUPÉ, 1998. p.11.
335 JECUPÉ, 1994. p. 13.
336 JECUPÉ,1994. p.27.
337 Idem.
139
(...)/- Mas você fala bem o português? / - Foi necessário para sobreviver. /- Então já
começamos de um ponto comum. Sou árabe. Meu pai foi um xeque, mas que devido
a guerras imigrou para o Brasil. Para sobreviver tivemos que aprender essa língua e
cultura. / - É. Somos estrangeiros; a diferença é que sou considerado estrangeiro em
meu próprio lugar, e, quando me visto das roupas civilizadas sou considerado dentro
da cultura de meu povo, mas de acordo com a roupa que visto.”
338
Tal evento partiu de um projeto coletivo:
Aqueles dias tumultuados e trágicos (massacre dos Yanomani no Pará) nos colocou,
luas depois, num encontro entre índios, negros, judeus, militantes ecológicos, no
escritório de um certo guerreiro chamado Lazlo Krauz, que tinha um sonho... O
sonho da igualdade entres os povos. Esse guerreiro colocou-se à disposição para unir
tanto a luta indígena... como a luta de outras etnias... Então através dele passamos a
somar sonhos...e foi ali no seu escritório que fincamos uma bandeira de várias
cores.
339
A última parte da narrativa é apresentada entrelaçando o evento à representação de uma
dança ritual, cujo ritmo e os passos simbolizariam a celebração das diferenças em uma sociedade
nacional. A palavra “descompasso” apareceu como um alerta contra a fragilidade que permeia as
relações entre a cultura hegemônica e indígena. O “Descompasso do Brasil” é uma alusão ao
conflito, no qual pereceram trezentos yanomanis, e que foi motivado pela invasão do território
indígena por um grupo de garimpeiros armados.
Ao longo de narrativa Oré Awé Roiru A’má há uma certa recursividade em torno de alguns
temas: a incompreensão do branco e sua incapacidade de lidar com a natureza; a superioridade do
índio e, nesse aspecto, a necessidade do índio intervir no processo e ajudar o branco a salvar a
natureza.
Kaká Werá, ao incluir o “branco” como receptor de seu discurso, evoca representações
hegemônicas com o claro intento de sensibilizar e estabelecer interlocução. No texto, fica evidente o
cruzamento de imaginários.
A visão que perpassa concepção de Kaká Werá Jecupé, relacionando a sociedade nacional e
as indígenas, é a do conflito. O cruzamento dos mundos indígena e civilizado é mostrado
338 JECUPÉ,1994, p.69
339 JECUPÉ,1994p.88
140
historicamente. Nesse sentido, a história do encontro das sociedades nacional e indígenas ressalta a
precedência do ethos indígena em relação ao do branco, isso relativamente ao contato com a terra e
a natureza nacionais. Em decorrência, no texto, o saber indígena sobre a natureza é mostrado como
superior ao do “branco”, mas, diante da dificuldade de unilateralmente se preservar o ambiente
natural e da inevitabilidade da modernização no entorno das terras indígenas, o narrador apresenta a
necessidade de uma negociação entre os povos indígenas e a sociedade nacional para evitar o
extermínio do mundo indígena e do ecossistema.
Assim, o ponto de vista apresentado por Kaká Werá envolve a reunião de forças entre
sociedades nacional e indígenas, para conservação do meio ambiente. O sujeito que se apresenta
acena para instituição do laço de solidariedade entre os povos.
A negociação apresentada em termos simbólicos é percebida na narrativa de Kaká Werá
Jecupé a partir de dois elementos textuais presentes na primeira edição do livro, porém excluídos na
segunda. Esses elementos são os marcadores temáticos que entrecortam a narrativa e mostram um
aspecto revelador da linguagem de negociação, que transparece do ponto de vista da enunciação.
São imagens acompanhadas de títulos que constituem por si uma entrada semiótica para o mundo
dos “brancos”.
Os títulos “Pátria amada esquartejada” e o “Rio de Ceci e Peri” substituídos por “O Lugar
onde se vive” e “Rio de Janeiro”, respectivamente, revelam que a seleção temática para composição
do texto revisitou o Romantismo, colocando uma contra perspectiva trazida pelo olhar indígena, a
qual estabelece a chegada do branco como início da derrocada indígena.
Essa construção discursiva relacionando a ruptura do ethos tribal à chegada do branco é
acompanhada de outras duas: a da natureza harmônica antes do branco e a dos indígenas como os
verdadeiros sábios e guardiões da natureza. É possível pensar essas imagens e representações
aproximando-as dos mitos da “Idade do Ouro”, o do “Bom Selvagem; e o do “Paraíso Terreal”.
141
Nesse aspecto, o discurso de Kaká, em última instância, busca sua base de negociação com a
sociedade nacional, evocando o ideal de autenticidade e genuinidade amplamente utilizados na
retórica romântica (por enfatizar o enraizamento na terra Brasil) e a utiliza em favor do indígena.
Uma peculiaridade é que o título “O Rio de Ceci e Peri” apresenta uma dupla significação,
por um lado ele articula o discurso da aproximação em relação ao branco, por outro acena para um
fato ocorrido, a filmagem da minissérie “O Guarani” para a rede Manchete. Produção que contratou
indígenas como figurantes para conferir autenticidade à tradução intersemiótica do romance para o
texto visual.
Vista pela perspectiva da intertextualidade, esta narrativa reafirma elementos da ordem
mítica fixada no Romantismo ao procurar estabelecer interlocução, o que, em alguma medida,
demonstra o grau penetração que os símbolos instituídos no século XIX alcançaram na sociedade,
como narrativas de nação. Acena ainda para uma outra ordem de interação, que é o atravessamento
da representação hegemônica sobre representação étnica produzida pelos próprios indígenas. Fato
inerente à aquisição da escrita, este processo que é, notoriamente, uma das formas de disciplinar o
pensamento humano.
A citação ao Romantismo foi revista pelo narrador por ocasião da segunda edição, ainda
assim permite a observação de que a escrita como instrumento de poder é ambivalente, pois ao
mesmo tempo que confere autonomia, permitindo a revelação do ethos indígena, é um traço cultural
exterior à cultura. A escrita em um contra-movimento à apropriação indígena introduz novas regras
sociais pela via do discurso na sociedade indígena. O que diante disso deve ser enfatizado é a
impropriedade em adotar-se uma posição simplória tomando a escrita indígena, como
essencialmente indígena, posto que ela é híbrida e um instrumento de negociação. E, ainda,
referentemente ao processo de aquisição da escrita, tomá-lo como sendo o principal fator para o
resgate tradição oral indígena, e não como um instrumento auxiliar. Preservar a cultura indígena é
142
um papel a comunidade indígena, com seus recursos humanos, já vem fazendo há mais de 500 anos,
e a escrita é marco valioso, porém apenas recentemente acrescido ao processo.
143
CONCLUSÃO
Em suas mais variadas formas: histórica, literária, de jornais e propaganda, a escrita teve um papel
preponderante no processo de constituição da nação, fixando a língua, instituindo símbolos no
imaginário nacional, veiculando o nacionalismo, constituindo narrativas que fundaram algumas das
bases do sentimento de pertença entre os cidadãos. Nesses termos, narrar foi e tem sido um
poderoso instrumento agenciador de valores e comportamentos do que é compreendido como
identidade nacional.
O revisitar algumas narrativas que tematizaram a nação, literárias, antropológicas, sociológicas,
historiográficas mostrou que a representação indígena se entrelaçou em múltiplos aspectos com a
representação do nacional, reafirmando o caráter simbólico de autenticidade cultural que lhe foi
conferido no Romantismo.
Nesse percurso, o índio sistematicamente apareceu e sua imagem foi ressignificada e atualizada
pelos discursos literário, político, e ainda científico e antropológico. Refazendo os passos desta
dissertação, fica observado que os vários tempos e contextos a que me reportei foram marcados por
intensa disputa pelo imaginário social.
Dessa forma, foi procurado mostrar que, no século XIX, com a constituição do Estado Nacional,
foram introduzidos, na memória cultural, discursos que tiveram por objetivo afastar o estigma da
colonização e criar um sentimento de pertencimento que unificasse o povo em torno da chamada
nação. No caso brasileiro, o indígena constituiu um caso particular de representação da nação, pois
enquanto as fontes literárias românticas o constituíram como símbolo da nacionalidade, nas
narrativas históricas, etnológicas e sociológicas, salvo algumas, ele era disposto em um lugar
144
desprestigiado da hierarquia social. As duas imagens conviveram e estabeleceram linhas de força
distintas na narrativa da nação, contudo, ambas representações trataram de obscurecer a voz do
indígena no processo de formação da nação.
Nas décadas de 20 e 30, a imagem do brasileiro como povo mestiço já havia sido bastante
propalada, sobretudo a partir do viés do “branqueamento”. Houve, nesse momento, uma renovação
do pensamento e muitas das representações que haviam sido construídas no passado, principalmente
envolvendo as questões raciais e o caráter nacional, foram debatidas. A representação indígena
aparece ressignificada nas narrativas oriundas dessa renovação do pensamento intelectual que a
depreendem não como símbolo de uma natividade ancestral, mas predominantemente como sujeito
empírico, visto a partir do olhar dos mediadores culturais (muitos deles estrangeiros).
A publicação de Casa-grande & Senzala, e Macunaíma são provas da importância do debate como
demarcação cultural e da conformação do nacionalismo no pensamento brasileiro. A representação
indígena, nesses dois textos, é vista a partir do locus da cultura hegemônica. No entanto, é partir
dessas primeiras formas de sobreposição do sujeito empírico em relação ao simbolismo romântico
que se produziu, no pensamento nacional e no imaginário social, a ruptura com a representação
romântica, com o determinismo racialista do século XIX, e, no caso de Macunaíma, com o modelo
social colonialista. Cabe a ponderação de que, em Macunaíma, pela força do texto parodístico em
revitalizar construções discursivas consolidadas, houve a ruptura de fato com o modelo social
colonial,pela instauração do cafuzo como herói do povo brasileiro. Nesse ponto, revela-se a
sociedade brasileira em bases modernas. Casa Grande & Senzala rompe com o pensamento racial
passado para introduzir o aspecto cultural, fato que deixa claro no prefácio, mas elege como
representação da nação a mesma hierarquia social colonial.
Nas décadas de 60 e nos anos subseqüentes, o Estado Nacional centralizado passou a ser
revisto e modificado, assim como o próprio entendimento de identidade. Ocorreu, nesse momento,
145
a abertura para a compreensão multiplicidade de papéis sociais e a emergência do sentido de
múltiplas identidades. Nesse sentido, Maíra novamente altera a representação do indígena e do
sujeito na sociedade nacional, ao trazer os conflitos identitários e ao contrapor-se ao ideal de estado
totalizante, a partir da afirmação do ethos tribal e da crise identitária do indígena.
Assim, com a emergência da voz do marginalizado, o indígena, o sujeito empírico torna-se visível
para a vida nacional, atuando como protagonista de um drama existencial, tanto no discurso social
quanto no literário. E, por fim, como ponto de finalização para essa dissertação, a narrativa Oré
awé roiru’ a ma introduz a emergência do ethos, com o indígena, como sujeito da enunciação de
narrativas, trazendo o domínio da escrita e tendo acesso a publicação de seus textos.
146
Bibliografia Geral
ALMEIDA, Maria Inês de. Na captura da voz: as edições da narrativa oral no Brasil. Belo
Horizonte: Autêntica; FALE/UFMG, 2004.
ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 1995.
BRANDER, Elsa Cristina de L. Amorim. Índios araucanos, costanos e tlingit: alteridade e ciência
na América no século das luzes. Disponível em: http;//www.discurso.aau.dk/elsa20%_ef.os.pdf.
Acesso em: 15/05/2006.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1981.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2000.
COELHO, Haydée R. Guimarães Rosa: interlocuções críticas e metacríticas. In: SEMINÁRIO
INTERNACIONAL GUIMARÃES ROSA. Belo Horizonte: PUC Minas, CESPUC, 2001.
COELHO, Haydée R. O jogo dos sentidos e a memória. In: CONGRESSO ABRALIC, 2., 1990,
Belo Horizonte. Anais. Belo Horizonte: ABRALIC, 1991.
COELHO, Haydée R. A produção literária de Darcy Ribeiro. Presença Pedagógica, Belo
Horizonte, v. 2, n. 8. mar./abr., 1996. p 14-17.
COELHO, Haydée R. A recepção crítica de Maíra. Vertentes, São João Del-Rei, n. 1, 1993.
COELHO, Haydée R. A recepção crítica de Maíra na América Latina. In: PEREIRA, Maria
Antonieta; REIS, Eliana Lourenço de Lima. Literatura e estudos culturais. Belo Horizonte: FALE/
UFMG, 2002.
DINIZ, Dilma Castelo Branco. Monteiro Lobato: o perfil de um intelectual moderno. 1997. 336 f.
Tese (Doutorado) Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
1997.
GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso: um estudo sobre ambigüidade no Grande Sertão:
Veredas. São Paulo: Perspectiva, 1975.
IANNI, Octavio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
JUNQUEIRA, Carmen. Antropologia indígena: uma introdução. São Paulo: EDUC, 1999.
147
LEITE, Lígia Chiappini Moraes. Velha Praga? regionalismo literário brasileiro. In: PIZZARRO,
Ana (Org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. Campinas: UNICAMP, 1994. v. 2.
MATTA, Roberto da. Dez anos depois: em torno da originalidade de Gilberto Freyre, 1997.
Disponível em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/português/critica/artigos/art-cient/dez.htm>. Acesso
em: 15 fev. 2005.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos. 4. ed. Campinas: UNICAMP,
1996.
RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: etapas da evolução sócio-cultural. Petrópolis: Vozes,
1978.
ROSENFIELD, Kathrin H. Gilberto Freyre no imaginário de Guimarães Rosa. Monada, v. 3, n. 4, p.
59-75, ago./dez., 2000.
SÁ, Lúcia Regina de. Literatura entre o Mito e a História: Uma literatura de Maíra e Quarup.
Universidade de São Paulo, 1990. (dissertação)
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: SANTIAGO, Silviano. Uma
literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectivas, 1978.
SCRAMIM, Susana Célia Leandro. A utopia em Darcy Ribeiro. Universidade de São Paulo, 2000.
(tese)
WALTY, Ivete Lara Camargo.Narrativa e imaginário social: uma leitura das histórias de Maloca
de Antigamente. Universidade de São Paulo, 1991. (tese)
148
Bibliografia Ci t ada
ABDALA JUNIOR, Benjamim. Silvio Romero: história da literatura brasileira. In: MOTA,
Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: SENAC, 2001.
ALMEIDA, José Maurício Gomes. Regionalismo e modernismo: duas faces da renovação cultural
nos anos 20. In: KOSMINSKY, Ethel V.; LEPINE, Claude; PEIXOTO, Fernanda Arêas (Org.).
Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
ALMEIDA, Maria Inês de. Ensaio sobre a literatura indígena contemporânea no Brasil. Pontíficia
Universidade católica de São Paulo, 1999. (tese)
ALMEIDA, Maria Inês de. Os índios, seus livros, sua literatura. In: ESCOLA indígena: índios de
Minas Gerais recriam a sua educação. Belo Horizonte: SEE-MG, 2000. p. 45-67.
ANDERSON, Benedict R. O’G. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión
del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Economica, 1993. 315 p.
ANDRADE, Mário de. Modernismo e Ação. In SCHWARZ, Jorge. Vanguardas latino americanas:
polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EDUSP: ILUMINURAS, 1995.
ANDRADE, Mário de. Regionalismo In:SCHWARZ, Jorge. Vanguardas latino americanas:
polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EDUSP: ILUMINURAS, 1995.
ANDRADE, Mário de. Prefácio de Macunaíma. In:SCHWARZ, Jorge. Vanguardas latino
americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EDUSP: ILUMINURAS, 1995.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Florianópolis: UFSC, 1988.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 30. ed. Rio de Janeiro; Belo
Horizonte: Villa Rica, 1997.
ANDRADE, Oswald. Manifesto antropofágico In:SCHWARZ, Jorge. Vanguardas latino
americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EDUSP: ILUMINURAS, 1995.
ARAÚJO, Humberto Hermenegildo. In: AYALA, Maria Ignez Novais; DUARTE, Eduardo Assis.
Múltiplo Mário: ensaios. João Pessoa: UFPB/UFRN, 1997.
ARAÙJO, Ricardo Benzaquen. Leituras de Gilberto Freyre. Novos Estudos CEBRAP, n. 56, p. 9-12,
mar., 2000.
AUGUSTA, Nísia Floresta. A lagrima de um Caeté. Natal: fundação José Augusto,1997
BERND, Zilá. Enraizamento e errância: duas faces da questão identitária. In: SCARPELLI, Marli
Fantini; DUARTE, Eduardo Assis (Org.). Poéticas da diversidade. Belo Horizonte: FALE/UFMG,
149
2002.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
BOECHAT, Maria Cecília. Paraísos artificiais: o romantismo de José de Alencar e sua recepção
crítica. Belo Horizonte: FALE/ UFMG, 2003.
BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. In: Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2002. v. 1.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1974.
BOSI, Alfredo. Situação de Macunaíma. In: ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum
caráter. Florianópolis: UFSC, 1988.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
BRAUDEL Ferdnand. Casa-grande & senzala. Novos Estudos CEBRAP, n. 56, p. 13-15, mar., 2000.
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. ed. São Paulo:
Companhia Nacional, 1985.
CÂNDIDO, Antônio. Mundos cruzados. In: RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro: Record, 1991.
CANDIDO, Antônio. Radicalismos. In: CANDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 1995. p.265-292.
CANDIDO, Antônio. Uma palavra instável. In: CANDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo:
Duas Cidades, 1995. p.293-305.
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2000.
COELHO, Haydée R. América Latina como alteridad: memórias de um campo identitário”. In:
MACHÌN, Horácio; MORAÑA, Mabel. Marcha y América Latina. Pittisbourg: Instituto
Internacional de Literatura Latinoamerica, 2003.
COELHO, Haydée R. A crítica cultural de Darcy Ribeiro. QUADRANT, Montpellier, França, n. 16,
1999.
COELHO, Haydée R. Exumação da Memória. Universidade de São Paulo,1991. (tese)
150
COELHO, Haydée R. Darcy olho índio. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.
55, jan., 2000.
COELHO, Haydée R. (Org.). Darcy Ribeiro. Belo Horizonte: Centro de Estudos Literários/UFMG,
1997.
COELHO, Haydée R. Representação feminina, travessia e memória. In: FUNCK, Suzana Bornéo
(Org.). Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis: UFSC, 1994.
COELHO, Haydée R.; DINIZ, Dilma Castelo Branco. Regionalismo. In: FIGUEIREDO, Eurídice
(Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
COELHO, Haydée R. Na escuta dos textos. Via Atlântica, São Paulo, n. 4, p. 141-7, 2000.
CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
DIMAS, Antônio. Um manifesto guloso. In: KOSMINSKY, Ethel V.; LEPINE, Claude; PEIXOTO
Fernanda Arêas (Org.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
DUARTE, Constância Lima. Lagrima de um Caeté: uma nova imagem do indianismo brasileiro. In:
AUGUSTA, Nísia Floresta. A lagrima de um Caeté. Natal: fundação José Augusto,1997.
DUARTE, Regina Horta (Org.). Notícias sobre os selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2002. 184 p.
FANTINI, Marli. Águas turvas, identidades quebradas: hibridismo, heterogeneidade, mestiçagem &
outras misturas. In: ABDALA JUNIOR, Benjamin (Org.). Margens da cultura: mestiçagem
hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
FEBVRE, Lucien. Brasil, terra de história. Novos Estudos CEBRAP, n. 56, p. 15-25, mar., 2000.
FONSECA, Maria Augusta. Carta pras Icamiabas. In: ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem
nenhum caráter. Florianópolis: UFSC, 1988.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução: Maria Tereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: GRAAL, 2003. v. 1.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sobre o regime da
economia patriarcal. 47. ed. São Paulo: Global, 2003.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 11. ed. São Paulo: Nacional, 1971.
GALVÃO, Walnice Nogueira. O indianismo revisitado. Cadernos de Opinião, n. 13, p. 36-43, 1979.
GALVÂO, Walnice Nogueira. Os sertões. In: MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao
Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: SENAC, 2001.
151
GUIBERNAU, Maria Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século
XX. Tradução: Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Realizações e limites do estado nacional europeu. In: BALAKRISHNAN,
Gopal. Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
HOBSBAWM, Eric J. Etnia e nacionalismo na europa hoje. In: BALAKRISHNAN, Gopal. Um
mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde. 5. ed. Rio
de Janeiro: Aeroplano, 2004.
JECUPÉ, Kaka Werá. Oré Awé Roiru’a Ma: todas as vezes que dissemos adeus. São Paulo:
Fundação Phytoervas, 1994. 97 p.
JECUPÉ, Kaka Werá. Oré Awé Roiru’a Ma: todas as vezes que dissemos adeus. São Paulo:
Triom,2002. 119 p.
LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil e a política externa: passado, presente e
futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
LAFETÁ, João Luiz; LEITE, Lígia Chiappini M.; ZILIO, Carlos. O nacional e o popular na
cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1982.
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências
Sociais, 1969.
LEITE, Lígia Chiappini Moraes. Velha Praga? regionalismo literário brasileiro. In: PIZARRO, Ana
(Org.). América Latina: palavra, literatura, cultura. Campinas: UNICAMP, 1994. v. 2.
LOPEZ, Telê Porto Ancôna. Rapsódia e resistência. In: ANDRADE, Mário Macunaíma: o herói
sem nenhum caráter. Florianópolis: UFSC, 1988.
MARQUES, Helena Maria de Barros. Manifesto regionalista de 1926: proclamação e sagração da
“autocritas” gilbertiana. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/teses/manifesto.htm>. Acesso em: 25 out. 2004.
MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: ROCCO,
1987.
MATTA, Roberto da. Dez anos depois: em torno da originalidade de Gilberto Freyre. Disponível
152
em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/.Notre Dame>. Acesso em: 15/02/2005.
MONTERO. Paula et al. Direitos indígenas no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, n. 69, p. 9-12, jul.
2004.
MIRANDA, Wander Melo. Emblemas do moderno tardio. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
p.265-273
MOTA, Regina. A épica eletrônica de Glauber: um estudo sobre cinema e tv. Belo Horizonte:
UFMG, 2001.
OLIVEIRA, Pedro Paulo. Construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG;
Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004.
PIZARRO, Ana (Org.). América Latina: palavra, literatura, cultura. Campinas: UNICAMP, 1994.
v. 2.
POUTGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo:
UNESP,1998.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. In: SANTIAGO, Silviano (Coord.). Intérpretes do Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1987.
RAMA, Angel. Transculturación narrativa en América Latina. Montevidéo: Fundación Angel
Rama, 1989.
RAMOS, Maria Luiza. “Maíra: leitura /escritura”. In: RAMOS, Maria Luiza. Interfaces: literatura,
mito, inconsciente, cognição. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 141-163.
REIDEL, Titus Benedikt. Da tutela, de tutores e tutelados: índios, brancos e estrangeiros, numa
perspectiva de desencontros. In: REIS, Paulo (Org.). República das etnias. Rio de Janeiro: Museu
da República, 2000. p. 195-210.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 6. ed. Rio de Janeiro: FGV,
2003.
REIS, Paulo. Uma república além das etnias. In: REIS, Paulo (Org.). República das etnias. Rio de
Janeiro: Museu da República, 2000. p. 6-9.
RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras,1997.
RIBEIRO, Darcy. Gilberto Freyre. In: RIBEIRO, Darcy. Ensaios insólitos. Porto Alegre: L&PM,
1979.
RIBEIRO, Darcy. Liminar: Macunaíma. In: ANDRADE, Mário Macunaíma: o herói sem nenhum
153
caráter. Ed Crítica/ Telê Porto Ancona Lopez (coordenadora). Florianópolis: Editora da UFSC,
1988.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
RIBEIRO, Darcy. Uirá sai a procura de Deus: ensaios de etnonologia e indigenismo. 3. ed. Rio de
Janeiro, 1980
RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro: Record, 1989.
RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro: Record, 1991.
ROCHA, João César de C. História. In: JOBIM José Luís (Org.). Introdução ao romantismo. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 1999.
ROMERO, Silvio. A história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1980.
SANTIAGO, Silviano. Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. Introdução.
SCHWARZ, Roberto. ”Nacional por subtração”. In: SCHWARZ, Jorge. Que horas são? Companhia
das Letras,
2002. p. 29-48.
SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São
Paulo: EDUSP: ILUMINURAS, 1995.
SCHWARCZ, Lilia Moritz, As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SCHWARCZ, Lilia Moritz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SÉRGIO, Antônio. O mundo que o português criou. Novos estudos CEBRAP, n. 56, p. 26-38, mar.,
2000.
SOMMER, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais na América Latina. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2004.
SOUZA, Eneida Maria. Estéticas da ruptura. In: SOUZA, Eneida Maria. Crítica cult. Belo
Horizonte: UFMG, 2002. p. 95-109.
SOUZA, Eneida Maria. Macunaíma: filho da luz. In: MOTA, Lourenço Dantas; ABDALA
JÚNIOR, Benjamin. Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: SENAC,
2001.
SOUZA, Eneida Maria. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 1988.
154
SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas
Cidades, 1979.
STOLCKE, Verena. A “natureza” da nacionalidade. In: MAGGIE, Yvonne; REZENDE, Cláudia
Barcelos (Org.). Raça como retórica: construção da diferença. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
TANNEBAUM, Frank. Sobrados e mucambos. Novos Estudos CEBRAP, n. 56, p. 39-42, mar.,
2000.
VAINFAS, Ronaldo. O descobrimento do Brasil: da história oficial à história pelo avesso. In: REIS,
Paulo (Org.). República das etnias. Rio de Janeiro: Museu da República, 2000.
VAINFAS, Ronaldo. Introdução ao Retrato do Brasil. In: SANTIAGO, Silviano. Intérpretes do
Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
VENTURA, Roberto. Casa grande & senzala. São Paulo: Publifolha, 2000.
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
VENTURA, Roberto. Os sertões. São Paulo: Publifolha, 2002.
VIDAL E SOUZA, Candice. A pátria geográfica: sertão litoral no pensamento social brasileiro.
Goiânia: UFG, 1997.
VILLAS-BÔAS, Gláucia. Casa Grande, terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In:
KOSMINSKY, Ethel V.; LEPINE, Claude; PEIXOTO Fernanda Arêas (Org.). Gilberto Freyre em
quatro tempos. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
ROVISCO, Maria Luis. Reavaliando as narrativas de Nação: Identidade Nacional e diferença
cultural . ACTAS IV CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA. L isboa: Associação
portuguesa de sociologia. Dez/2003 http://aps.pt.IVcong-actas/acta057pdf . Acesso; 03/2004
155
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo