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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS
RODOLFO JOSÉ ROCHA RACHID
A INVENÇÃO PLATÔNICA
DA DIALÉTICA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras Clássicas, do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientador Prof º Drº José Antônio Alves Torrano
São Paulo, Novembro de 2008
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS
RODOLFO JOSÉ ROCHA RACHID
A INVENÇÃO PLATÔNICA
DA DIALÉTICA
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ABSTRACT
This work investigates the constitution of philosopher’s portrait and its opposition
from others discourses’ produtors genders living in athenian classic polis, such as
the rethor, the sophist and the poet. The main purpose is to underline the
substancial differences between the real science of dialectic and its opposites.
The term ‘philosophy’ was employed by Plato on IV century b.C. in a strict sense
of an accurate knowledge, which aprehend the inteligible, incorporeal and
invisible Forms. Plato’s written activity points out the coexistence between
figurative and rational discourses, in which he conceives the mythical and
philosophical nature of being and no-being, of opinion, described as an
intermediate of unmixed being and absolute no-being, and science. Dialectic is
determinated as the art originated from the supreme Muses, being a psicagogic
wisdom, not merely a method, but the highest science, which articulates unity and
phaenomenic plurality, and the philosopher as Muses’lover, analysing the nature
of idolopeic art and its political and epistemological consequences. Dialectic is the
proper science of a dianoetic and mnemonic soul. If the sophist and the rethor
begget a doxastic imitation, based on antilogic art, if poet realizes an imitation of
appearances, the philosopher produces a wisdom imitation, based on the science
of truth, knowledge and being. The meaning and explicitation of this thesis try to
redefine and rethink the significance of dialectic on the Dialogues, in which this
term appears. This research avoids to use modern categories of thought to
understand the Dialogues. This study focuses precisely on Meno, Phaedo,
Republic V, VI, VII, Phaedrus, Sophist and Philebus
KEY-WORDS
Philosophy Dialectic Rethoric Sophistic - Poetry
4
RESUMO
O trabalho investiga a constituição da figura do filósofo e sua oposição aos
outros produtores de discurso existentes na pólis clássica ateniense, como o
retor, o sofista e o poeta. O propósito principal é salientar as diferenças
substanciais entre a real ciência dialética e suas artes opostas. O termo filósofo
foi empregado por Platão no século IV a.C. no estrito senso de um saber
privilegiado, que apreende as Formas inteligíveis, incorpóreas e invisíveis. A
atividade escrita de Platão ressalta a coexistência entre os discursos figurativo e
racional, pela qual ele concebe a natureza mítica e filosófica do ser e do não-ser,
da opinião, descrita como um intermediário entre o ser imiscido e o não-ser
absoluto. A dialética é determinada como a arte originada da elevada Musa,
sendo um saber psicagógico, o meramente um todo, mas a elevada ciência
que articula a unidade e a multiplicidade fenomênica, e o filósofo o amante das
Musas, analisando a natureza da arte idolopéica e suas conseqüências políticas
e epistemológicas. A dialética é ciência própria da alma dianoética e mnemônica.
Se o sofista e o retor elaboram uma imitação doxástica, fundamentada na arte
antilógica, se o poeta realiza uma imitação de aparências, o filósofo produz uma
imitação sábia, baseada na ciência da verdade, do conhecimento e ser. O
sentido e explicitações desta tese tenta redefinir e repensar o significado do
termo dialética nos Diálogos em que esse termo aparece. A tese evita usar
categorias modernas de pensamento para entender os Diálogos. A pesquisa se
concentra precisamente em Mênon, Fédon, República V, VI, VII, Fedro, Sofista e
Filebo
PALAVRAS-CHAVE
Filosofia Dialética Retórica Sofística - Poesia
5
SIGLA DE ABREVIATURAS
Mênon Men
Fédon Fed
República Rep
Fedro Fedr
Sofista Sof
Filebo Fil
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SUMÁRIO
Proêmio pág. 7
I. Reminiscência e dialética no non e Fédon pág.25
II. O saber dialético e o filósofo em República V, VI e VII pág.57
III. A crítica platônica da retórica no Fedro pág.91
IV. O poder da comunidade e a dialética no Sofista pág.120
V. A bela ordem incorpórea no Filebo pág.156
Epílogo pág.184
7
Proêmio
Revelar os temas caros ao autor Platão nos exige um paciente e acurado
trabalho de limpeza das categorias longamente sedimentadas em nossos quadros de
pensamento. Coexistem na obra platônica duas linhas de pensamento, consideradas
inconciliáveis por parte de sua fortuna crítica, a reflexão política e a experiência do
sagrado. o se trata de entender os Diálogos nem por uma suposta metafísica, que
separa os reinos do sensível e do inteligível nem por um pretenso materialismo, que
circunscreve Platão à crítica das instituições políticas, mas trata-se de entendê-los por
um indissociável liame entre suas dimensões cultual e política. O nascimento da
retórica, dos discursos antilógicos e de seu registro logográfico permitem a Platão
compreender os limites e os efeitos dos discursos persuasivos para a pólis ateniense
clássica. Se, de um lado, a antilogia, opondo discursos antitéticos, atestados tanto na
deliberação política quanto na eloqüência judiciária, produz a doxosofia, o saber
8
aparente, e a doxomimética, imitação aparente, de outro, a filosofia, retomando o
horizonte cultual, promove a dialética. A dialética se constitui como a mais consumada
retórica e a mais elevada ciência, projeto, concomitantemente, epistêmico e retórico,
cultual e político, mítico e lógico. A dialética se constitui como saber psicagógico, pelo
qual compreende a unidade mítica entre o ser, conhecimento e verdade, revelando a
estrutura fundamental do mundo. Se o discurso antilógico aceita ser o mundo
fenomênico apenas pluralidade aparente, o discurso filosófico intenta antes pensá-lo
por sua participação na inteligibilidade. A conspícua ontologia platônica originar-se-ia,
então, da compreensão das complexas relações instituídas entre os produtores de
discurso na pólis e de suas concepções do mundo fenomenal. A tese busca, a partir do
nexo evidente entre os horizontes político e cultual, retórico e epistêmico, mítico e
lógico, definir a constituição da figura do filósofo em face dos outros gêneros produtores
de discurso, existentes na pólis ateniense clássica, o retor, o sofista, o poeta, porquanto
ele instaura uma originária relação com o divino e imortal, cuja congeneridade se
explicita por uma cuidadosa afeição pelo conhecimento da natureza do todo e das
partes que o compõem.
Ressalta-se nos Diálogos platônicos a elaboração de um discurso filosófico,
constituido no entorno da figura do filósofo e de sua apreensão de mundo. O
nascimento deste discurso, que é a dialética, pois para Platão a filosofia é a própria
dialética, provém da necessidade de superar tanto a especulação natural de seus
predecessores jônicos e megáricos, baseada no estudo da gênese de todas as coisas,
quanto o discurso tornado verossímil dos sofistas, fundamentado, com efeito, na
convenção, adversa à natureza, e na mera persuasão. A dialética não é simples
método, mas a própria filosofia, inspirada pelas Musas supremas. O filósofo produz,
mediante o conhecimento anamnésico e pela contemplação da essência, o discurso, a
opinião e a imaginação verdadeiros enquanto o sofista, pela rejeição do que se mantêm
idêntico e imutável, e o retor, por sua admissão apenas da pluralidade fenomênica,
produzem o discurso, a opinião e a imaginação falsos. O filósofo privilegiaria tanto a
natureza do discurso oral e seu registro escrito quanto as suas presumíveis afecções na
alma do ouvinte e leitor. A invenção platônica da dialética é resultante da emulação com
9
seus coetâneos. Os termos dialética e dialético, atestados nos Diálogos, evidenciam um
sentido estrito, explicitados nas quatro premissas seguintes:
1) A dialética é formulada mediante o reconhecimento da diferença entre o
filósofo e os outros gêneros produtores de discursos, existentes na pólis
ateniense.
2) A dialética é o gênero por excelência do discurso filosófico e o filósofo o
crítico das formas aparentes da realidade na qual existe e pensa.
3) A dialética é poder e ciência necessários para o conhecimento da verdade do
ser e, à medida que o filósofo participa destas noções, mais se torna dialético.
4) O dialético, por causa da participação e comunidade com o conhecimento,
com a verdade e com o ser, possui a posse e a presença da justiça,
sabedoria, temperança e virtude.
A dialética é, portanto, a ciência súpera que, elevando-se dos aspectos
meramente sensíveis e verossímeis do mundo, pelos quais o discurso antilógico se
movimenta, busca compreendê-lo nos aspectos essenciais a partir de quatro
modalidades do conhecimento e suas quatro correlatas afecções de alma, entendidos
pela comunidade e participação, em maior ou menor grau, na medida, na verdade e na
beleza, elementos constituintes da idéia e poder do Bem, congêneres ao divino. O
entendimento da dialética nos Diálogos se efetua por meio do emprego de específica
hermenêutica dos textos platônicos, propondo, portanto, a circunscrição da figura do
filósofo por oposição aos outros gêneros produtores de discurso, o retor, o sofista e o
poeta, considerados imitadores de aparências. O estudo hermenêutico relativiza as
categorias internas de pensamento, sedimentadas pela história da filosofia, ressaltando
o nascimento de um discurso filosófico que, todavia intimamente ligado aos quadros de
pensamento de seu tempo, formula uma concepção original de existência pela
utilização de novas palavras e de uma sintaxe hipotática.
Não é possível entender a dialética, nos Diálogos, a partir de categorias
epistemológicas modernas e a intenção de compreendê-la segundo um sistema é um
evidente anacronismo. Richard Robinson defende que a dialética, atestada nos
Diálogos, não é simples todo, ou como diz Rosen, “protótipo da ‘mathesis
universalis’ cartesiana” (Rosen,1995:15), mas a filosofia mesma, expressa por uma
10
linguagem laudatória, sublime arte protegida das Musas. O filósofo dialético aspira à
excelência tanto intelectual quanto moral (Robinson,1962:71) e neste impulso ao
melhor, revelado na tríplice caracterização da verdade, conhecimento e ser, residiria a
suprema dialética, cuja meta é mais divina do que humana (Robinson, 1962:73). Assim,
é mister salientar que a dialética, não obstante seja um saber exercido na esfera
humana, é ela mesma divina, não um mero instrumento da filosofia, mas um Dom
divino. Por causa da experiência sagrada da dialética, é preciso entender os Diálogos a
partir de uma hermenêutica específica, pondo entre parênteses as categorias universais
de pensamento, baseadas em uma lógica da identidade e não-contradição. Deste modo
podemos entender os limites do saber humano, proferidos por Sócrates, referente à
indeterminação da supra-essencialidade do Bem. Não raro são os estudiosos que
menosprezam o caráter divino da dialética, defendendo a hipótese de um Sócrates
racionalista, nos termos de uma razão moderna, sem atentar para a dimensão
hermenêutica do “lógos” grego. Se a filosofia é protegida das Musas, sua inspiração é
divina e o filósofo o possuidor de uma espécie particular e magnânime de imitação, a
imitação sábia, a historikè mimetikè. A constituição do discurso filosófico se efetua por
um reconhecimento e apropriação dessa arte sublime mimética, diferindo o filósofo dos
outros gêneros produtores de discurso, imitadores de simulacros. A dialética é a
suprema ciência da verdade, conhecimento e ser e não a arte baseada na mera empiria
dos doxomimetas. Charles H.Kahn anui que “a forma dialektikos é provavelmente uma
invenção de Platão, porque o adjetivo não é atestado antes do Eutidemo e do Crátilo; o
advérbio comparativo dialektikôteron é registrado em non (75d). A noção de dialética
é explicada apenas nos livros VI e VII da República (Kahn,2001:213). A noção de
dialética que, conforme Richard Robinson, atestamos nos Diálogos foi inventada pelo
próprio Platão (Robinson,1962:88) e, por noção de dialética, entendemos o privilegiado
método de compreensão da verdade súpera a partir da contemplação de essências ou
formas, efetuado pelo poder do diálogo e não pelo poder antilógico ou erístico. Richard
Robinson defende que Platão introduz a idéia de dialética no momento em que não
reproduz meramente seu mestre, aparecendo primeiro nos diálogos Mênon, Fédon,
sem mencioná-la, e então em República, Fedro, Sofista, Político e Filebo (Robinson,
1962:89). A dialética, na leitura de Robinson, não possui um estrito senso, podendo
11
aparecer tanto como privilegiado método de hipóteses no Mênon, Fédon, República,
Parmênides quanto como eminente todo de divisão por formas no Fedro, Sofista,
Político, Filebo (Robinson,1962:71). A dialética requer, contudo, ser pensada não como
mero método extrínseco ao seu próprio escopo, mas como ciência filosófica repousada
no nexo necessário entre ser, dizer e pensar, adversa à pura retórica antilógica e à
prática erística. A dialética platônica nasceria do reconhecimento de que o discurso e a
argumentação praticados na pólis ateniense precisam sintetizar os âmbitos político,
epistêmico, cultual e retórico por meio de uma reavaliação do estatuto da opinião e da
verdade. Neste prisma, o estudo da dialética, à medida que, por causa da recente
especialização, torna-se adstrito a ramos específicos da filosofia, perde o liame
substancial entre lógica, ontologia, epistemologia e mítica. As categorias modernas de
pensamento correlatas à tese da historicidade das estruturas mentais, cindindo o
campo da reflexão em estágios evolutivos da consciência filosófica, referentes à
transição de um discurso figurativo arcaico para um discurso conceitual clássico, dum
pensamento mítico para um pensamento que se quer unicamente filosófico, descuram
da tecidura entre os âmbitos simbólico e conceitual, cultual e político. Restituir a
participação da imagem e da imaginação é uma das metas precípuas do pensamento e
da linguagem platônicas, haja vista que a dialética filosófica se opõe à doxosofia e à má
logografia na construção da imagem. A crítica platônica à retórica precisa ser aduzida,
de um lado, de sua própria invenção como registro escrito dos discursos orais (Guthrie,
1971:178), como mera logografia, tornando a escrita, pelo prisma pedagógico, deletéria,
e, de outro, do elogio retórico da presunção e da verossimilhança ante a verdade e o
conhecimento defendidos pela dialética. A forma literária dos Diálogos platônicos seria
“um meio de proteger a classe de conhecimento filosófico da ilícita e capciosa crença
na possibilidade de sua apropriação pela difusão por escrito das formulações
proposicionais” (Mié,2004:26). A forma dialógica, portanto, com seus discursos breves e
não longos efetuados pela prática reiterativa do elenchos, longe de induzir o leitor à
imediata anuência de suas premissas, a exemplo da retórica logográfica, permite-lhe
aferir as teses propostas em um exercício realmente dialético, no qual sintetizam-se a
imaginação, o pensamento e a linguagem.
12
O presente estudo circunscreve a análise dos diálogos Mênon e Fédon, nos
quais a dialética ainda não se apresenta em estrito senso, e República V, VI, VII, Fedro,
Sofista e Filebo. Cabe-nos entender como se origina a dialética pensada em estrito
senso, a sua relação com os pretensos saberes instituídos na cidade, a retórica, a
sofística e a poesia, definindo assim seu escopo supremo ante essas artes miméticas.
Os Diálogos exigiriam uma hermenêutica que privilegiasse os complexos quadros de
pensamento da pólis ateniense clássica, resultantes da coexistência de seus aspectos
sagrado e político, mítico e racional, logográfico e epistêmico, priorizando também o
modo pelo qual Platão compõe seu prisma dos retores, poetas e sofistas históricos. A
atividade compositora do autor Platão formula essa relação dialógica, pela qual constrói
sua noção precípua de dialética, a partir da
1) evidência da congeneridade do filósofo com o divino e com a natureza do
todo.
2) assunção do aprendizado e conhecimento como anamnese, privilegiando a
alma racional mnemônica.
3) anuência de um saber pré-natal, cuja reminiscência é possível pela dialética.
4) definição do discurso dialético como o mais elevado saber psicagógico e
como a consumada retórica.
O reconhecimento da dialética como eminente saber platônico põe-nos a
questão de comprovar a sua originalidade e invenção em face da herança socrática e
da prática erística. Gregory Vlastos anui que “o interesse principal de Platão, bem
diferente da meta definida por Xenofonte em seus escritos socráticos, não é preservar a
lembrança da prática filosófica de Sócrates, mas de recriá-la, de reavivá-la nas cenas
dramáticas” (Vlastos,1994:76). Charles Kahn defende que o ‘lógos sokratikós’ não é
senão um gênero fictício, pois mesmo a caracterização xenofôntica da definição
socrática tem como fonte precípua os Diálogos (Kahn,2001:209). Kahn rejeita, adverso
a Vlastos, a pretensa leitura evolucionista do ‘corpus’ platônico, segundo a qual os
diálogos prolépticos reconstituiriam o estilo inquisitório socrático, recusando uma
diferença radical, como supõe Vlastos, entre diálogos iniciais elênticos e diálogos
maiêuticos intermediários, efetuada pela anuência da alma racional remêmora. Na
leitura de Nightingale (Nightingale,1995:14), Platão inventou, portanto, o discurso
13
filosófico na Atenas do séc. IV, à medida que define certos modos de discursos e
esferas de atividades como anti-filosóficas, de sorte que a filosofia surge em um
contexto histórico bem determinado e em oposição aos muitos gêneros produtores de
saberes, como o poeta, o sofista e o retor. Precisamente, com Platão, o termo filósofo
adquire o sentido de gênero específico em face de seu lato senso atestado no século V
(Nightingale,1995:14). A construção da figura do filósofo é efetuada em face das
múltiplas artes miméticas operadas na pólis ateniense, particularmente em reuniões
privadas e nas diatribes, nas reuniões públicas, assembléias populares e tribunais, e na
tradição poética, evidenciadas nos Diálogos. O filósofo difere dos vários imitadores,
porquanto elabora seu discurso, portanto, sua mimética, considerando não certa ordem
verossímil da aparência, mas o ordenamento real das essências. A crítica de Platão à
poesia, por exemplo, requer ser entendida a partir de sua crítica geral aos produtores
de imitações. A constituição da personalidade do filósofo depende do estabelecimento
de sua figura na lis, revelada pelo distanciamento em relação às práticas persuasivas
e encantatórias de seus êmulos, o retor, o sofista, o poeta. O filósofo se afasta dos
citados imitadores, pois realiza uma arte mimética específica, a imitação sábia. Ainda
que o procedimento inquisitório socrático repouse no estilo interrogativo e refutativo, ele
se diferencia de seus oponentes históricos por certos critérios que devem nortear o
processo de discussão. Se Aristóteles atribui, por meio dos testemunhos de Diógenes
Laércio e Sexto Empírico, a invenção da dialética a Zenão de Eléia, Platão atribui a este
pensador não o exercício dialético, que depende dos critérios previamente enunciados
neste proêmio e discernidos no desenvolvimento da tese, mas sim a arte antilógica. O
escopo deste trabalho não é reconstituir o panorama histórico das formas discursivas
existentes na pólis ateniense clássica, mas circunscrever o entendimento platônico da
dialética em estrito senso por meio dos Diálogos nos quais a dialética é apresentada de
modo mais efetivo.
A oposição do filósofo aos outros imitadores não se limita, como presume
Nightingale, à sua orientação política, mas baseia-se na evidência de que o filósofo é,
em seu tempo, reservatário de uma tradição mnemônica, todavia submetida ao domínio
do ‘lógos’. Platão propõe uma hermenêutica do sagrado, transposta para o território
político, para o horizonte do homem. Os Diálogos privilegiam esta anamnese dos
14
valores arcaicos, trazendo-os à luz das originais concepções psicológicas registradas
na pólís e essenciais para a constituição da vida justa e feliz no território do homem
político. Além da ruptura e de uma continuidade, duma oposição e de uma
complementaridade, entre o pensamento mítico e o pensamento lógico, entre a
linguagem simbólica e a linguagem conceitual, podemos atestar uma relação dialógica
pautada na clareza de que o filósofo detém um saber privilegiado, sintetizando razão e
memória, respectivamente, experiência política e experiência sagrada, unicamente
separadas pela nossa consciência moderna, por nossos mecanismos universais de
espécie, produzidos na história da filosofia pelas categorias aristotélicas de pensamento
e linguagem. A leitura atenta dos Diálogos nos afasta, assim, de esquemas mentais
iterativos de concepções ontológicas multi-seculares, como se houvesse uma pretensa
teoria das Formas regendo a atividade compositora de Platão.
A interpretação dos Diálogos dá primazia à dimensão política e à dimensão
cultual, porquanto o filósofo é detentor de um saber adverso ao de seus detratores,
praticantes da persuasão política e da eloqüência judiciária, e, sobretudo, possuidor de
um caráter não meramente humano mas divino, pois sua vida intelectiva busca
compreender o ingênito e o incorruto, diferente dos outros gêneros miméticos,
sujeitados ao metabólico e perecível. O parentesco entre o filósofo e divino permeia o
entendimento da mentalidade platônica, de sorte que, se uma suposta leitura
esoterista dos Diálogos, esta deve ser observada no próprio texto e não em uma
presumível doutrina não-escrita, que subordina o tecido nocional clássico às categorias
metafísicas aristotélicas de pensamento, sintetizadas, destarte, no substrato material
indeterminado, correlato à díada indefinida do grande e do pequeno, e no princípio
formal, relativo ao um, natureza definida e pretenso limite de todas as coisas. A
interpretação aristotélica do pensamento platônico, fonte principal da leitura esoterista,
é, com efeito, sujeitada às próprias categorias metafísicas do Estagirita. Charles H.Kahn
diz que “Aristóteles não se interessa em reconstituir a dialética histórica do quinto
século, compreendida como uma resposta à ontologia parmenideana. Aristóteles
concebe seus predecessores como interlocutores em uma discussão fora do tempo”
(Kahn,2001:214). Autores conspícuos como Ingemar Düring, Harold Cherniss e Luc
Brisson corroboram a premissa de Charles Kahn, para quem o testemunho aristotélico é
15
antes a interpretação de seus predecessores mediante suas categorias de pensamento
do que a reconstituição fidedigna da doutrina daqueles. O hipotético saber esoterista
não residiria no testamento ágrafo, empregando uma cesura apriorista entre o sensível
e o inteligível, o fenômeno e o númeno, propugnando uma concepção de Bem interdita
à cognição humana, mas antes na percepção de que os Diálogos expõem a relação do
filósofo com o seu meio existente, sendo ao mesmo tempo cidadão e êmulo, ateniense
e extemporâneo, mítico e racional.
A mencionada dupla condição, não obstante aparentemente contraditória, revela-
nos o interesse de Platão em efetuar uma crítica das instituições democráticas
atenienses e de seus principais atores, mostrando-nos a prevalência do filósofo e a sua
condição divina em face de seus principais vituperadores. Mediante este quadro
histórico, que unifica os horizontes político e cultual, podemos entender a elaboração de
um pensamento que privilegia este duplo aspecto da realidade, este duplo movimento
do devir, representados pelo sensível e pelo inteligível, evidenciando, por suas
semelhanças e dessemelhanças, a possibilidade do discurso e opinião falsos ou do
discurso e opinião verdadeiros. As noções ontológicas do ser e do o-ser manifestam
esta dupla exigência, mítica e política, pois nos remetem simultaneamente aos
pródromos do pensamento grego e a seu entrelaçamento no âmbito institucional da
pólis, à medida que a vida onírica e hipnótica, horizonte do não-ser, exprime o território
do homem, sujeito à dominação viciosa dos muitos, e a vida desperta e sábia expressa
o consumado saber filosófico, representado pela dialética, desprovida dos prazeres
impuros, sentidos na tragédia e comédia, na poesia, na retórica e sofística. O dialético
elabora o seu discurso, respeitando a tríplice caracterização do conhecimento, da
verdade e do ser, cujos procedimentos refutativo, sinóptico e de divisão por formas são
importantes para o desvelamento da tecedura do real, sintetizada seja na participação e
semelhança, seja na mistura e comunidade entre o sensível e o inteligível, a imagem e
seu paradigma. Harold Cherniss, por esse prisma, defende a concepção de que Platão
tencionou reunir, pela hipótese das idéias, num mesmo nexo comum os âmbitos
ontológico, epistemológico e ético ante os discursos antilógicos que não intentaram
interpretaram a complexidade do reino fenomênico. Para H.Cherniss, ao relativismo dos
raciocínios erísticos opor-se-ia a constituição de uma ética própria baseada na hipótese
16
das idéias (Cherniss,2003:165). H. Cherniss rejeita a presumida duplicação platônica
dos dois mundos, eixo interpretativo da leitura aristotélica de Platão, porquanto a
comprovação platônica de uma inteligibilidade adviria da observância de uma requerida
necessidade permeando o tecido fenomenal. O plano metafenomênico apresentar-se-
ia, na leitura de Cherniss, menos como um mundo separado da realidade sensível,
corolário da interpretação aristotélica, porém mais como a expressão inteligível da
harmonia oculta dessa mesma realidade, reportando-nos, com efeito, às preocupações
tanto do pensamento jônico heracliteano quanto da especulação democriteana,
circunscritas à idéia de uma lei universal regendo a pluralidade fenomenal. Notórios são
os autores que, realizando a hermenêutica dos textos homérico, hesiódico e arcaico,
reconstituem o liame da filosofia platônica com a tradição mitopoética, rejeitando uma
hipotética passagem da consciência mítica pré-racional para a consciência filosófica.
Não podemos, então, aceitar a tese proposta por Havelock, para quem os
Diálogos atestam a transição do discurso figurativo arcaico para o discurso conceitual
clássico, pois anui-la, compele-nos a rejeitar a atividade compositora do autor Platão e
a sua tarefa de emulação. A arte dialética surge da crítica precípua às artes poética,
retórica e antilógica. A arte dialética se constitui em face das outras artes miméticas,
pois essas não elaboram uma teoria do conhecimento do gênero imitativo. A opinião,
imaginação e discurso falsos ou verdadeiros se originam da presença ou ausência do
pensamento, intelecto, sabedoria e memória, porque a privação dessas afecções da
alma carreia a dominação não violenta mas persuasiva. A crítica à deleteriedade da
linguagem persuasiva e verossímil no âmbito privado, político e judiciário e a
proeminência da memória constituem tópicos essenciais para a compreensão original
da invenção da dialética, atestada na leitura dos Diálogos platônicos.
O poeta, o retor e o sofista são hábeis e admiráveis imitadores e não demiurgos,
pois produzem não os entes verdadeiros mas aparentes, efetuados não por uma
imitação da verdade, mímesis aletheías, mas pela imitação do simulacro, mímesis
phantásmatos. Os referidos imitadores o possuem nem ciência nem opinião
verdadeira do que imitam, ainda que manifestem tudo saber. O filósofo, em oposição a
esses imitadores aparentes, produz a imitação verdadeira e sábia. O dialético se afasta
dos mencionados imitadores, pois reconhece na multiplicidade fenomênica a
17
estabilidade e evidência de suas formas correlatas. A assertiva de uma suposta teoria
das Formas não pode ser pensada por uma apriorista teoria metafísica dos princípios,
relativos ao um, princípio formal, e à díada indefinida do grande e pequeno, nos moldes
definidos por Aristóteles e Teofrasto, mas deve ser aduzida do complexo quadro das
relações políticas efetuadas na pólis ateniense, horizonte político nomotético e âmbito
da parecença e persuasividade.
A dimensão nomotética, escopo da reflexão filosófica, é confrontada, pois, com
os elementos primaciais da conduta humana, sabedoria, virtude, justiça, beleza, de
sorte que os valores implicados na constituição da melhor cidade, escopo da mimética
socrática, têm sua origem não na voluntariedade humana imediata, como para a tese
sofística, mas no caráter venerando do saber. o se trata de entender os Diálogos
como a transição de uma consciência coletiva para uma consciência individual, como
se houvesse no tempo do autor Platão uma reflexão sobre as estruturas mentais e
psicológicas do sujeito, separada da totalidade existente, como se se apresentasse
perante um suposto sujeito um objeto a ser conhecido. Sensação, opinião, imaginação,
entendida como mescla de opinião e sensação, pensamento e discurso constituem um
mesmo processo de aferição epistêmica da semelhança ou não dum determinado ente
sensível ao seu correlato inteligível.
O alvo supremo de Platão, na leitura de Havelock (Havelock,1963:258) é
converter a alma sábia do múltiplo para o um, do devir para o ser, o que equivale dizer,
do discurso figurativo arcaico para o discurso conceitual clássico, “da conversão do
mundo figurativo da épica para o mundo abstrato da descrição científica, e do
vocabulário e da sintaxe dos eventos narrados no tempo para a sintaxe e o vocabulário
das equações, leis, fórmulas e tópicos que são atemporais”. Mesmo anuindo que o
estabelecimento de duas Formas distintas porém complementares de realidade seja o
centro da renovação platônica ante seus predecessores, não é plausível supor que haja
nos Diálogos a transição de um entendimento figurativo para um entendimento abstrato
da realidade. A teoria das Formas, para Havelock, é resultado de complexos processos
mentais abstratos, isolando-as de seus múltiplos aparentes. O escopo do platonismo
surge da “urgente compulsão de romper com a tradição poética e com o estado mental
poetizado(Havelock,1963:255). A poesia homérica não teria ainda, para Havelock, as
18
condições mentais e disposições lingüísticas necessárias à compreensão da realidade
inteligível, dos entes abstratos.
Não podemos, contudo, aceitar que a crítica platônica à tradição mitopoética, e
em sua acepção geral, ao gênero mimético, repouse na substituição do âmbito
figurativo pelo âmbito abstrato, à medida que a invectiva contra a imagem, a
verossimilhança e a aparência dependem do recurso ao visível. A relação entre o
sensível e o inteligível não pode, pois, ser explicada nem em termos kantianos, pela
diferença entre fenômeno e númeno, nem em termos hegelianos, pela distinção entre
concreto e abstrato, porquanto descuram do intercâmbio entre horizonte político e
horizonte cultual. O horizonte humano intermediário entre o ser puro imiscido, i.e., não
misturado, e o não ser absoluto remete-nos às concepções primevas das oposições
complementares, atestadas nos pensadores pré-platônicos.
O filósofo dialético, no estrito senso definido por Platão, realiza uma mimética
sábia e verdadeira, pois imita as Formas em si correlatas aos paradigmas convenientes
e não os multifários aspectos da realidade fenomênica, como o pintor, o poeta, o retor,
o sofista os imitam, os quais se afastam triplamente da natureza. O filósofo, em
oposição ao poeta e ao pintor, hábeis e admiráveis imitadores de aparências, realiza
uma imitação sábia e verdadeira, pois, conforme seu caráter divino, evidencia, pelo
discurso dialético, as Formas inteligíveis originadas de uma demiurgia de natureza
divina. As poesias homérica e trágica não apresentam nenhum paradigma de legislação
ou modelo de virtude, haja vista não possuirem arte apropriada desses temas. Os
poetas, e propriamente a poesia homérica e trágica, o imitadores de imagens da
virtude e de outros temas congêneres, não apreendendo a verdade. A imitação sinistra
de imagens produz simulacros, pois seu imitador não compreende o ser, mas o
meramente aparente. A poesia limita sua arte ao âmbito fenomênico, enquanto a
dialética, todavia, é ciência do ser, do conhecimento e da verdade. A dialética, pelos
métodos sinótico e de divisão, desvela a tessitura do real, não se aprazendo com o
simplesmente manifesto. A experiência política compele o homem a adequar a
linguagem outrora sagrada ao contexto racional, mas o filósofo mantém traços de
caráter divino, haja vista que o pensamento filosófico é o único alado, observando as
Formas presentes na natureza do deus e na região supraceleste, horizonte luminoso. A
19
imitação, na leitura de René Schaerer (Schaerer,1938:157), constituiria, assim, “um dos
princípios fundamentais do platonismo”, de sorte que a dialética filosófica platônica
seria uma espécie de idolopéica da demiurgia divina, na medida em que revelaria no
discurso as Formas sempiternas e inteligíveis produzidas pelo demiurgo, atestadas, por
exemplo, no discurso verossímil sobre a gênese do cosmos. O filósofo dialético realiza
a idolopéica icástica, porquanto se empenha em reproduzir adequadamente o modelo,
efetuando, por esta arte, “uma interpretação racional do paradigma(Schaerer,1938:
164).
A condenação platônica da mimética repousaria, pois, no lado sinistro da
imitação relativo à produção do simulacro e não no seu lado destro referente à
produção da cópia, à fidedigna e adequada reprodução do paradigma. O filósofo se
opõe ao doxósofo, àquele que apenas aparenta ser sábio, sem realmente sê-lo, pois se
esse opera uma imitação de simulacros, mímesis phantasmáton, o filósofo realiza uma
imitação da verdade, mímesis alétheias. O discurso filosófico se evidencia, portanto, na
imitação não do sensível mas do inteligível, pois a dialética almeja à tríplice
caracterização do conhecimento, da verdade e do ser. A dialética filosófica, na medida
em que se revela diálogo vivo e animado, escreve na alma do ser discursos
verdadeiros, porquanto lhe propicia a anamnese das idéias, opondo-se à simples
doxosofia. Platão opera em seu texto uma permanente relação de afastamento entre o
filósofo e os outros gêneros produtores de discurso, que empregam a mera aparência
ausente do nexo inteligível. Os Diálogos, constituindo um original gênero do discurso
surgido na tradição escrita do mundo grego, correlato sensível da dialética inteligível,
requerem uma apropriada hermenêutica isenta de pré-juízos. O intérprete de Platão
deve atentar para a relação especulativa que se estabelece entre o plano dialógico
inteligível e o plano textual sensível, entre a imagem sensível, que é a escrita, e o
modelo inteligível, correlato à oralidade, rejeitando, com efeito, qualquer formulação
extrínseca ao próprio elemento textual a partir de uma hipotética leitura esoterista da
obra, pois a escrita para o filósofo ateniense não é um mero sucedâneo da oralidade.
Platão diferencia, previamente, o poder do dialogar do poder do rivalizar, e, com
efeito, a dialética da erística, afastando a indistinção entre o filósofo e os outros gêneros
erísticos. Nos diálogos iniciais ditos socráticos estabelecer-se-ia o tópico precípuo,
20
presente nos diálogos ditos intermediários e finais, relativo à possibilidade mesma de
haver um espaço discursivo propício à elegante confrontação e desejável resolução de
temas adstritos à conduta moral. Platão reconstitui, assim, o panorama intelectual que
opõe Sócrates aos sofistas históricos, Hípias, Górgias, Protágoras, expondo o escopo
socrático “essencialmente interrogativo e aporético” (Dixsaut,2001:17) de dirimir as
certezas propostas pelo raciocínio sofístico. Se não se evidencia o termo dialética ou
suas variantes nominais nos diálogos iniciais, todavia podemos aferir nesses textos seu
procedimento fundamental. A dialética não se baseia na mera disputa argumentativa,
limitada à habilidade das palavras, em que os semelhantes se confundem com os
dessemelhantes, porém no poder de distinção das Formas constitutivas do devir,
conjugando no lugar fenomênico os âmbitos natural e político. A dialética é a ciência da
verdade, do conhecimento e do ser, examinando as disposições mentais necessárias à
apreensão da tríplice caracterização. Mais precisamente, Platão inventou a ciência
dialética, privilegiado saber que interpreta as estruturas fundamentais do mundo, haja
vista que a experiência dialética dos opostos complementares estava presente quer
nos pensadores que lhe precederam quer em seus coetâneos tanto nos filósofos
naturais quanto nos poetas e retores. Pormenorizando, a mentalidade grega arcaica e
clássica formulou sua concepção de mundo, privilegiando quadros antilógicos de
pensamento, registrados tanto nos filósofos arcaicos da natureza quanto nos oradores
coetâneos a Sócrates e a Platão. A dialética platônica, opondo-se a certas formas
argumentativas e evidenciada a partir da constituição de sua denominada teoria das
Formas, realizaria a passagem da antilogia para a homologia, haja vista que busca
superar o mero pensamento elêntico, portanto, refutativo, atestado na arte erística.
A tese, assim, privilegia a hermenêutica dos textos platônicos, na medida em que
constituem um original e particular vocabulário das relações entre os horizontes político
e cultual, impondo uma sintaxe hipotática ante a sintaxe paratática da épica. Rejeitando
os discursos antilógicos que priorizam apenas a persuasão e a prestidigitação, Platão
elabora, adverso a seus coetâneos erísticos, mestres do discurso agonístico, uma
ciência filosófica perfeccionada pela dialética, privilegiando a imaginação, a opinião e o
discurso verdadeiros. A dialética nasceria não da invectiva das aparências que
participam das essências, mas da crítica a uma certa ordem verossímil das aparências
21
que rejeita o nexo com a inteligibilidade. Se aceitássemos as categorias diacrônicas de
análise, não poderiamos efetuar o real entendimento dos textos, porquanto Platão
concebe o âmbito político como o território no qual precisam coexistir ao mesmo tempo
as dimensões cultual e racional em face das concepções puramente agonísticas e
antilógicas dos retores e dos sofistas clássicos. Por economia de exposição,
apresentamos os diálogos considerados relevantes para nosso escopo, prioritariamente
determinado pela observância da dialética como saber psicagógico, conhecimento
anamnésico e ciência filosófica. Os capítulos foram, assim, ordenados no intuito de
evidenciar a crítica platônica aos neros imitativos produtores de discurso, adversos
ao gênero filosófico, imitador de discursos verdadeiros.
A tese tem como escopo circunscrever a concepção platônica, em estrito senso,
de dialética, porque a atividade compositora do autor Platão se propõe em diferenciá-la
dos usos meramente erísticos do eleatismo zenoniano. Se a dialética adquire para as
categorias aristotélicas de pensamento a proponência argumentativa enquanto arte do
verossímil e do contingente, opondo-se à ciência do universal e do necessário, revela-
se, todavia, nos Diálogos como ciência master do ser e da inteligibilidade. A dialética
não se subordinada às regras da oratória antilógica correlatas à persuasão e às
opiniões aparentes, ajuizando-as deletérias para o território político.
Se nos diálogos iniciais ou aporéticos a perquirição acerca do aspecto, do
‘definiendum’, tencionando exprimir realmente o ser de certa pluralidade visada, como
no caso da piedade no Êutifron, não podemos ainda nesses textos entender o aspecto,
o ‘eidos’ como uma forma inteligível em relação à sua multiplicidade sensível, pois a
concepção ontológica de dois gêneros distintos, visível e invisível, aparece previamente
no Fédon, persistindo nos diálogos finais, sendo atestada no Timeu. Ainda que o don
revele os fundamentos ontológicos da chamada teoria das Formas, é no Mênon que se
apresentam as linhas teóricas possíveis para tal exposição correlatas ao emprego do
método de hipóteses, à tese da imortalidade da alma assegurando a teoria da
reminiscência. No Mênon, com efeito, a dialética é preliminarmente apresentada como
forma argumentativa mais apropriada que à da erística. A escolha de iniciar o estudo
com o Mênon se deve menos à reiteração do método estilométrico, que o estipula como
intermediário entre os diálogos socráticos aporéticos e os diálogos intermediários e
22
mais à concepção original de verdade como não-esquecimento, reportando-a à questão
da memória e à da reminiscência. No primeiro capítulo analisar-se-á a emergência da
dialética nos diálogos Mênon e Fédon. No Mênon se afere previamente a exigência de
uma definição ética de virtude repousar em rígidos parâmetros epistemológicos,
adstritos à noção fundamental de que o aprendizado é anamnese (mathesis
anamnesis), enquanto se atesta no Fédon a premência de haver um princípio da
causalidade, uma causa inteligível o sensível regente da pluralidade fenomênica.
Reúnem-se, pois, nesses diálogos os tópicos precípuos que ulteriormente constituirão
estrito senso a dialética, como a assunção da imortalidade da alma, do saber pré-natal
e do aprendizado como anamnese, o método de hipótese, a congeneridade entre idéia
e alma, compondo os pródromos da invenção platônica da dialética. O nexo
fundamental entre dialética e aprendizado remêmoro deve ser ressaltado neste primeiro
capítulo.
A anuência, evidenciada no Fédon, de que a pluralidade sensível participa da
idéia permite a Platão interpretar, no prisma lógico e ontológico, a lógica de oposição
complementar registrada na mentalidade grega arcaica e clássica por meio da relação
entre gênese e essência, aparência e idéia, fenômeno e ser. No segundo capítulo é
desenvolvida a constituição da figura do filósofo e sua oposição aos muitos amantes de
espetáculo e produtores de imagens, empregando como fonte primária República V, VI
e VII. Salienta-se, primeiramente, em República V a crítica àqueles que supõem ter o
poder de dialogar, quando têm, todavia, o poder de rivalizar, correlatos aos erísticos. O
poder de dialogar e a sua ciência, a dialética se opõem, pelo método de hipóteses e de
divisão por formas, ao poder de rivalizar e à sua arte, a erística, afastando o dialético do
erístico. A filomatia dialética é apresentada em vista da crítica dos aspectos aparentes
da realidade, em que a filosofia se contrapõe à mera filodoxia. As imagens conspícuas
da linha, do Sol e da caverna constituiriam uma original teoria do conhecimento,
formuladas por meio do paradigma da semelhança entre imagem e modelo, sensível e
inteligível, no qual se estabelecem os quatro modos de conhecimento correlatos às
quatro afecções de alma.
Se a dialética é conceituada em República VI como superna ciência, no Fedro é
descrita como consumada retórica, manifestando o liame platônico entre epistemologia
23
e retórica por meio de uma acurada reflexão sobre a natureza divina do ‘lógos’. No
terceiro capítulo, analisam-se, destarte, a crítica à retórica verossímil e a prevalência do
discurso e pensamento filosófico como saber congênere à vida divina. A ciência
dialética se torna logografia filosófica, cujo poder é apreender a verdade e o ser real,
afastada, portanto, do gênero produtor de discursos verossímeis. O filósofo é
considerado possuidor da alma alada dianoética e mnemônica, opondo-se ao mero
retor. O discurso encomiástico sobre a natureza divina do amor e sua congeneridade à
alma filósofa permite-nos evidenciar o caráter divino do filósofo logógrafo, de sorte que
a filosofia é entendida como a mais sublime psicagogia, à medida que conduz as almas
magnânimes, difíceis de persuadir, ante a retórica, condutora de almas frívolas, fáceis
de persuasão. O discurso filosófico é concebido como a imagem do cosmo vivente,
constituído de articulações bem definidas e ajustadas e a dialética é considerada a arte
suprema das divisões e agrupamentos, pela qual o filósofo, consumado retor, elabora o
reto discurso e o pensamento apropriado.
Se os diálogos supracitados instituem a relação entre o sensível e o inteligível,
seja por participação seja por semelhança, cabe ao diálogo Sofista estabelecer a mútua
relação entre as formas inteligíveis por meio da determinação da comunidade de
gêneros. No quarto capítulo examina-se a comunidade dos gêneros supremos, exposta
no Sofista. Não há, evidentemente, em Platão a rejeição do mundo fenomênico, da
atividade genesíaca, mas sim a observância da possibilidade sensível da opinião e do
discurso falsos, manifestada no estudo deste diálogo, pelo qual se esmiuçam as
relações entre gênese e essência, não-ser e ser, antes figurativamente confinadas em
República às regiões da luminosidade e obscuridade. Os gêneros ôntico e meôntico,
i.e., os gêneros do ser e do não-ser, são expressões de uma ontologia fundada na
mútua imanência entre linguagem, pensamento e realidade, na qual o discurso, a
imaginação e opinião tanto podem revelar o verdadeiro quanto o falso. Retirando o não-
ser da região obscura na qual habita e atribuindo-lhe determinada existência, o diálogo
defende o poder de comunidade recíproca entre o ser e a sua forma de alteridade e,
particularmente, entre outras formas nascidas dessa comunidade, como os gêneros do
Mesmo e do Outro, do movimento e do repouso, realizando uma contundente crítica
tanto do eleatismo ortodoxo quanto do pensamento jônico, que se reportam meramente
24
à incorporeidade e à corporeidade, ao imobilismo e ao movimento, respectivamente. A
perquirição do gênero sofístico permite ao Estrangeiro de Eléia propor o esclarecimento
tanto da arte idolopéica quanto de sua divisão em arte icástica e em arte fantástica.
Retoma-se, por fim, no diálogo Filebo a concepção, previamente minudenciada
no livro VI da República, da forma do Bem. A forma do Bem, assegurando os critérios
dianoéticos de medida, proporção e beleza, por eles é pensada. O entendimento da
dialética como ciência discricionária dos gêneros e das Formas é, assim, reiterado no
Filebo por meio do esclarecimento dos gêneros constituintes da vida mista feliz. No
quinto capítulo circunscrevem-se, no Filebo, a alma mnemônica e as afecções de alma
advenientes da harmoniosa mistura entre vida sábia e vida hedonista, opinião,
imaginação, memória, raciocínio. A crítica aos prazeres e dores ilimitados, oriunda da
divisão dos prazeres em bons e maus, nos remete à invectiva contra as poesias épica,
trágica e cômica, pois os poetas produzem, tanto pela comiseração provocada na épica
e na tragédia quanto pela derrisão efetuada pela comédia, prazeres impuros e
indefinidos. O filósofo desvela a tessitura do real pelo poder dialético, diferindo, na
mescla comum da vida desejável, seus gêneros constitutivos, o limite, o ilimitado, a
mistura e a causa da mistura. O poder dialético é estudado tendo como fim a forma do
Bem, a mais perfectiva de todas as formas e causa de sua cognoscibilidade, podendo
ser apreendida pelo poder noético. No Filebo se apresenta a figura de crates como
um filósofo especializado nos procedimentos dialéticos.
25
I. Reminiscência e dialética no non e no Fédon
Mênon e Fédon apresentam os tópicos fundamentais que constituirão em estrito
senso a dialética, correlatos à concepção do saber pré-natal, às noções do aprendizado
anamnésico e da alma imortal mnemônica e à suprema congeneridade entre o filósofo
e o divino. Salienta-se no Mênon o escopo do dialético em oposição ao erístico,
revelando o empenho socrático em reportá-lo não ao gênero agonístico, mas ao gênero
filosófico, pois o dialogar se refere não apenas ao refutar, porém ao aprender. Se a
dialética incorpora procedimentos da antilogia, como a refutação, e da agonística, como
a prevalência do discurso perfectivo, ela as supera, porque o seu fim não é o verossímil,
mas o verdadeiro, de sorte que constitui tópico precípuo dos Diálogos a aparente
indistinção entre a dialética e a erística, entre a figura do filósofo Sócrates e do sofista
refutador. Se o aprender não é ensinável, mas rememorável, o conhecimento é
congênere não da opinião aparente e da persuasão, mas da reta opinião e da ciência,
26
não da pura fenomenalidade, mas de sua participação no divino e imortal. No Mênon
evidenciam-se os elementos precípuos que delinearão, nos diálogos intermediários,
República V, VI, VII e Fedro, e nos finais, Sofista, Político e Filebo, a dialética stricto
senso, como a oposição do filósofo dialético ao erístico refutador, o antagonismo do
poder dialético ao poder antilógico, a primazia da definição ante a pluralidade
fenomenal e a relevância do aprendizado anamnésico. A circunscrição do sentido de
virtude é essencial para diferenciar o dialético dos mestres da erística, pois esses
proclamam serem prevalentemente professores da virtude. A dialética, entendida como
invenção platônica em face dos raciocínios meramente erísticos, cuja finalidade é
refutar o opositor, supõe, em Mênon e Fédon, a assunção do saber pré-natal e da alma
remêmora. Poder-se-ia afirmar que a teoria platônica da anamnese surge do engenho
de seu autor para superar a aporia sofística acerca da impossibilidade da opinião e do
discurso falsos, estabelecendo critérios epistemológicos, lógicos e ontológicos, pois se,
segundo Sócrates, o aprendizado é anamnese, torna-se preciso discernir as opiniões
verdadeiras das opiniões falsas, os discursos verdadeiros daqueles falsos. Buscamos,
primeiramente, definir como a dialética se constitui no Mênon e no Fédon, sem, porém,
detalharmos se a teoria da reminiscência é ou não uma herança pitagórica.
Mênon interpela Sócrates, inquirindo-o se a virtude é ensinável (aretèn didaktòn)
ou se se obtém pelo exercício (asketón) ou se advém aos homens por natureza (phýsei)
ou se é de algum outro modo (Men.70a). Contudo, antes de se perguntar se a virtude
pode ser aprendida, se é natural ou se se adquire pelo exercício, perguntas que podem
ser reduzidas à estrutura proposicional “X é Y?”, deve-se, para Sócrates, indagar o que
é a virtude, logo, “o que é X”?
1
As indagações de Mênon se originam de seu convívio
com as diatribes sofísticas, proclamando responder todas as coisas sobre as quais se
indagam. O posicionamento socrático se difere do da sofística, pois se não se sabe o
que algo é (estin), sua característica, o se poderia saber qual coisa algo é (hopoion
ti) (Men.71b), i.e., sua qualidade, de forma que não se pode, pela perspectiva socrática,
1
Ao inquérito das pretensas qualidades de algo (X é Y?) antecede a perquirição sobre o que é esse algo
(O que é X?). V.Robinson (1962:50): “Socrates frequently asserts that the question What is X? is prior to
certain other questions about X, in the sense that we cannot find sure answers to those other questions
until we have found sure answers to this one. You cannot, he says, know what sort of thing X is until you
know what X is. Thus you cannot really know whether virtue is teachable until you know what virtue is
(Men.71)”.
27
confundir o definiendum com o definiens. Mênon não diferencia entre o definiendum e o
definiens, definindo haver certos tipos de virtudes, como a virtude do homem, relativa à
capacidade de gerir bem os assuntos da cidade, fazendo bem aos amigos e mal aos
inimigos, a da mulher, correlata tanto à boa administração da casa, salvaguardando seu
interior quanto à obediência ao marido, dizendo haver a virtude da criança, a do ancião,
a do homem livre e a do escravo. Sócrates, buscando uma única virtude (mían aretèn),
afirmou descobrir um enxame pousado junto a Mênon, referindo-se à multiplicidade de
virtudes, proferidas pelo tessálio. Relativa a essa imagem do enxame, se perguntamos
sobre a essência da abelha (mellítes perì ousías), o que ela é (óti pot’ estín) (Men.72b),
inferimos que essas se diferem pela beleza, pelo tamanho ou por outra coisa, mas não
se diferem por serem abelhas, sendo sempre idênticas. Para toda pluralidade aparente,
é preciso discernir entre as presumíveis qualidades de algo e o ser idêntico desse algo.
Não obstante haja múltiplas e multiformes virtudes, todas têm um único e mesmo
aspecto (hén ti eîdos
2
tautòn) pelo qual são virtudes, de sorte que coragem (andreía),
temperança (sophrosýne), saber (sophía), magnanimidade (megaloprépeia) (Men.72c),
todavia sejam uma pluralidade de virtudes, devem possuir um único e mesmo aspecto,
uma única e mesma característica essencial, sendo mister examinar uma única virtude,
que as perpasse, delimitando-as, evitando confundir o definiendum com uma de suas
espécies, pois quando se se pergunta o que é a figura, não se pode responder que seja
o redondo ou então o reto. Pormenorizando, a pergunta se a virtude é ou não ensinável
permite a Sócrates indagar pelo aspecto único que perpasse todas as multiplicidades
que nos parecem ser virtudes. Se e, nos limites da argumentação, o problema da
relação entre a pluralidade sensível e o seu aspecto correlato, no qual o inquérito
socrático se institui em termos de uma ontologia. Não nessa asserção a defesa da
análise histórico-evolutiva dos Diálogos platônicos, para a qual a teoria das Formas,
apresentada preliminarmente no Fédon, representaria uma ruptura em relação aos
2
O registro do termo eidos no Mênon tem o mesmo significado daquele atestado em Êutifron, correlato à
característica essencial, mas o ainda transcendente, que permite àquelas coisas que a possuem,
possam por causa dela serem homonimamente assim chamadas; no Êutifron, se as coisas possuem a
característica essencial de piedade são chamadas de piedosas, no Mênon se possuem a característica
essencial de virtude são chamadas de virtuosas. V.Dixsaut (Dixsaut,2001:32): Comme dans le Phédon,
l’ousia est donc dans l’Euthyphron et dans le Ménon ce qui centre sur elle la question de savoir ce que
c’est, et l’eidos est ce par quoi les choses multiples acquièrent leur nom et leurs propriétés”. Sobre a
ausência de um sentido propriamente ontológico de eidos e idea no Êutifron V. Mié (Mié,2004:21)
28
diálogos primeiros. Os diálogos iniciais estabelecem a possibilidade mesma de haver
um espaço discursivo propenso à elegante confrontação que, pelo exercício refutativo e
purificatório, busca-se estabelecer uma noção comum, o definiendum, do que é
investigado. Conceber, por hipótese, uma cesura epistemológica entre diálogos
elênticos prévios e diálogos maiêuticos intermediários levar-nos-ia a supor que os
diálogos iniciais também denominados socráticos seriam meramente um exercício
imitativo platônico do estilo inquisitório socrático. Consideramos, adverso à
hermenêutica histórico-evolutiva, haver o desenvolvimento natural de questões
propostas nos primeiros diálogos
3
. Harold Cherniss, em seu importante texto relativo à
economia filosófica da teoria platônica das idéias (Cherniss,2004), afirma ser
precisamente no non que Platão demonstrou a premência de haver uma teoria ética
coerente, apoiada numa epistemologia (Cherniss, 2004:163), reunindo no mesmo nexo
comum os âmbitos ontológico, epistemológico e ético. Harold Cherniss defende que a
economia filosófica da teoria platônica das idéias supõe a subordinação ontológica,
epistemológica e ética dos fenômenos aos critérios de existência, conhecimento e valor,
na terminologia platônica, ser, conhecimento e verdade. A hipótese das idéias permitiria
a Platão unificar a pluralidade fenomênica, assegurando à certa multiplicidade aparente
sua participação na inteligibilidade. Para Harold Cherniss, os diálogos de juventude
evidenciariam o compromisso platônico com as suas questões éticas coetâneas,
registradas tanto nos Díssoi lògoi, que discutiriam concepções antilógicas sobre temas
morais, quanto nos fragmentos do papiro de Antifonte, no qual se contrapõe à justiça
convencional a justiça natural. Os diálogos aporéticos, denunciando a insuficiência
teórica das práticas erísticas e antilógicas, expressariam, discernindo o definiendum do
definiens, a necessidade de definições distintas da pluralidade fenomenal,
possibilitando, pela ética normativa, compreendê-la sem, todavia, se sujeitar ao
raciocínio erístico, circunscrito ao entendimento verossímil da multiplicidade aparente.
Mênon institui os princípios de uma ontologia complexa que, sintetizando ontologia,
ética e epistemologia por meio de um inquérito moral sobre a essência ou o aspecto da
virtude, empregando hipóteses, retoma elementos da mitopoese arcaica, como as
teorias da reminiscência e da palingenesia, redefinindo-os a fim de firmar as balizas
3
V.Kahn (Kahn,2001:209).
29
conceituais precisas ao quadro político de seu tempo, composto por muitos gêneros
produtores de discursos.
Sócrates sugere a Mênon, para melhor compreender a virtude, o inquérito da
figura (Men.75c), de modo que se observa o privilégio do pensamento mediado pela
forma sensível da figura como condição para a conseqüente apreensão das idéias
morais. A geometria nos proporciona os procedimentos para obtenção da definição,
podendo ser aplicados às questões de natureza moral. Porém, Mênon não se persuade
com tal propósito, pedindo a Sócrates a definição da cor, o qual lhe responde que se
aquele que o interroga fosse um desses sábios, erísticos e agonísticos (sophôn kaì
eristikôn te kaì agonistikôn), responderia que lhe caberia, se porventura não tivesse
corretamente falado, proceder ao exame do argumento e também refutá-lo (lambánein
lógon kaì eléngchein) (Men.75d). A expressão socrática revela os fundamentos da arte
erística. O processo refutativo não é em si próprio reprochável, porquanto o próprio
Sócrates refuta argumentos fracos dos oponentes, purificando-os de suas ignorâncias,
contudo condenável é o seu uso nefando com fins erísticos. A arte erística compreende
indiscriminadamente a opinião e o discurso, não se sujeitando aos critérios da verdade
e conhecimento, entendendo numa mesma perspectiva axiológica tanto as opiniões e
os discursos verdadeiros quanto os falsos, causada pela recusa da possibilidade do
falso e, assim, da contradição, cujo fundamento ontológico é a própria negação do não-
ser, pois dizer, para o raciocínio erístico, é sempre dizer algo, ou seja, se houver uma
presumível contradição, significa que os supostos discursos contraditórios implicam
referentes distintos. A refutação, procedimento precípuo do debate, compartilhada tanto
pela erística quanto pela dialética, precisa, para o raciocínio dialético, ser acompanhada
do processo do dialogar, permitindo aos demandantes superar a possível aporia. A reta
argumentação requer dos interlocutores uma postura dialética a fim de inquirir sobre a
essência ou aspecto de algo, sobre uma característica intrínseca que possa explicar
determinada pluralidade tanto fenomênica quanto moral, como coragem, temperança,
justiça, virtude. Sócrates explora, pela refutação, as confusões do sensível e da opinião,
existentes na pluralidade aparente, compelindo seu interlocutor à contradição sobre um
mesmo assunto, impelindo-o à aporia. “No entanto, a própria aporia será a condição de
seu progresso para a opinião verdadeira e daí para a epistéme” (Trindade,1987:62)
30
Sócrates defende que se pretendem mutuamente dialogar (dialégesthai), dever-
se-ia responder de modo mais suave e mais dialético (praióteron kaì dialektikóteron)
4
(Men.75d). Sócrates se posiciona na interlocução, por meio do emprego tanto da forma
verbal dialégesthai quanto de sua forma adverbial dialektikóteron, não como erístico
refutador nem como um agonista (Dixsaut,2001:35), mas como dialético, respeitando as
regras do diálogo. O mais dialético necessita, pondera Sócrates, não apenas responder
as coisas verdadeiras, mas, sobretudo, sendo inquirido, reconhecer, por meio delas,
saber (Men.75d), saber, com efeito, a ser adquirido por anamnese, de sorte que a
argumentação cujo escopo é a mera refutação é reprochável ante o raciocínio cuja
meta é a verdade, à qual é aspirada não pelo erístico ou agonista mas pelo dialético. O
gênero dialético se constitui pela afinidade o com a mera refutação, mas com a
verdade. crates tenciona escapar da indistinção, compartilhada por seus coetâneos,
entre o mero refutador e o inquiridor dialético, pois a esse se refere o próprio Sócrates e
àquele os mestres erísticos. O escopo de Platão é impor as diferenças entre as práticas
argumentativas, defendendo seu mestre de uma suposta indistinção. Se a prática
inquisitiva socrática parece a seus contemporâneos ser semelhante ao ardil erístico,
“com as suas infindáveis cadeias de perguntas, entremeadas com curtas expressões de
aquiescência da parte do interlocutor” (Trindade,1987:59), cabe ao próprio Sócrates
mostrar que “a refutação não é um fim em si mesmo, mas um meio para convencer o
respondente da sua ignorância, confrontando-o com a contradição” (Trindade,1987:63).
Mênon anui ser a virtude o poder de obter coisas boas com o auxílio da justiça
(Men.79b), sendo um meio para adquirir um fim que lhe seria externo. A virtude seria,
por essa presumível definição, toda ação acompanhada de uma parte da virtude (pâsa
prâxis metà moríou aretês) (Men.79c). A definição correta necessita contemplar não as
4
Cf. Kahn (Kahn,1996:305): “In Meno 75d we find what may well be the first occurrence in Greek of the
nominal stem dialektik* that will (in the Republic) provide dialectic with its name. The contrast here is not
with rethoric but with eristic, that is to say, not with speechmaking but with a different mode of
argumentation by question-and-answer”. Cf. Robinson (Robinson,1962:85): “In the Meno (75c,d) the
technical adjective ‘dialectical’ is opposed to ‘eristical’; and the content there given to the opposition is that
dialecticians are gentle and friendly to each other, that they try to say the truth, and that they answer by
means of things of which the questioner admits a knowledge”. Cf.Dixsaut (Dixsaut,2001:35): “La pratique
de la discussion (le dialegesthai) appelle ici la formation de l’adjectif, dialektikoteron, au comparatif
puisque l’éristique emploie le même mode d’argumentation par questions et réponses. Pour se distinguer
de lui, il ne suffit donc pas d’opposer la brachylogie à sa macrologie,comme c’était le cas quand il
s’agissait de se distinguer du rhéteur. Il faut, dit Socrate, discuter d’une manière plus conforme à ce que
discuter veut dire. Une discussion n’est en effet ni une querelle (eris) ni une lutte (agôn)”.
31
partes do definiendum, mas o definiendum no todo, não tomando o definiendum pelo
definiens, não confundindo o aspecto de algo com uma de suas supostas qualidades. A
virtude, de acordo com o paradigma fornecido por Sócrates, não pode ser definida por
uma de suas partes, mas pelo todo, de sorte que a definição não pode ser efetuada
pelas partes do definiendum, parecendo a Mênon ser a busca da definição uma aporia.
A aporia, originada tanto da impossibilidade de conhecer o que não se sabe quanto da
interdição de reconhecer o que se sabe, parece a Sócrates ser um raciocínio erístico
(eristikòn lógon) (Men.80e), propiciando-lhe expor a teoria da anamnese, pela qual
tenciona superar o raciocínio aporético. A dialética, entendida como uma prática do
discurso, se institui pelo conflito entre os amantes do saber, de fato os filósofos, que
admitem uma presumida ignorância e ausência de presunção sobre todas as coisas, e
os mestres da erística que afirmam tudo saber, ensinando tanto artes marciais quanto a
eloqüência, necessária aos argumentos forenses e à deliberação política.
Sócrates afirma ter ouvido de homens e mulheres sábios palavras belas e
verdadeiras correlatas a coisas divinas. A oposição entre o dialético e o erístico se
realiza pela posse e presença da sabedoria numinosa, evidenciando ao filósofo o poder
anamnésico da alma imortal, por causa da palingenesia. Os sacerdotes e sacerdotisas
professam ser a alma humana imortal (tèn psychèn toû anthrópou athánaton), pois
quando advém o término, o que denominam morrer, renasce, não sendo jamais
corrompida (Men.81b), de sorte que, tendo muitas vezes nascido e tendo contemplado
múltiplas coisas aqui e no Hades, não nada que não tenha outrora aprendido. O
saber pré-natal nos permite a reminiscência da virtude e de suas partes supracitadas,
porquanto sendo a natureza toda congênere (s phýseos hapáses syngenoûs oúses)
(Men.81d), tendo a alma aprendido todas as coisas a ela aparentada, nada lhe interdita
que, tendo rememorado apenas uma coisa, reconheça vigorosamente todas as outras,
examinando-as sem se desencorajar. A afirmação da alma remêmora determina a
existência do método, possível pelo raciocínio da causa, pois a anamnese de algo
determinado permite à alma instituir um nexo epistemológico, sintetizando as
lembranças. O procurar ( zeteîn) e o aprender ( manthánein) são em sua totalidade
uma rememoração (anámnesis) (Men.81d). A invectiva à erística consistiria na recusa
de que a virtude possa ser ensinada. O filósofo se distancia do erístico pela prevalência
32
da alma mnemônica, de uma alma capaz de anamnese de um saber pré-natal. A tese
de que o conhecimento é reminiscência e de que a virtude o é ensinável, pois é
adveniente da rememoração realizada pela alma, revela uma etapa original na
elaboração do diálogo
5
, relativa à teoria da imortalidade da alma, de sorte que saber
não é aprender, mas sim rememorar opiniões verdadeiras (aletheîs dóxai) adormecidas,
que, sendo despertadas pelo questionamento, se tornam ciências (epistêmai) (Men.86
a), mediante o nexo efetuado pelo raciocínio. A opinião não é em si mesma reprochável
nem deletéria para as diatribes e ponderações públicas, contudo seu opróbio provém
da opinião falsa, cujo exame ocorre no Sofista pela prova de sua existência, adveniente
do escrutínio do gênero do não-ser. As ciências surgiriam do reto encadeamento das
opiniões verdadeiras, cujo liame, realizado pela alma remêmora, torná-las-ia estáveis,
de modo que é preciso discernir as opiniões verdadeiras das falsas. As ciências
adviriam da premência do não-esquecimento, portanto, da gênese da reminiscência,
pela qual a alma desvelaria a realidade inata. A apreciação da atividade mnemônica
acentua o caráter ingênito e não ensinável do conhecimento, ao passo que a geração
do esquecimento se refere ao êxodo da memória, ao não-saber, logo, à não capacidade
de desvelar o real. A natureza não-empírica do aprendizado é propugnada pela teoria
da alma imortal e por seu conseqüente poder remêmoro. Se a verdade dos entes (he
alétheia tôn ónton) ou então o não esquecimento dos entes, das coisas que são, reside
sempre em nossa alma, a alma é concebida imortal, pois se não conhecemos algo num
presente momento, porque não o rememoramos, torna-se, pois, preciso, encorajando-
se, se empenhar em procurá-lo e rememorá-lo (epicheireîn zeteîn kaì anamimnésthai)
(Men.86b), zetésis essa realizada pelo reto emprego do processo de refutação, do
elénchos, permitindo ao interlocutor, que tem a presunção do conhecimento, purificar-
se dos falsos saberes. Segundo Monique Dixsaut (Dixsaut,2003:114), a anamnese, no
Mênon, provém do reconhecimento do não-saber, pelo qual a alma almeja se apossar
5
Vlastos afirma que a concepção do aprendizado anamnésico não remonta aparentemente ao
pitagorismo, pois se atesta nesse apenas a doutrina da transmigração, o havendo um nexo evidente
com a teoria da reminiscência. Se o pitagorismo defende a imortalidade da alma e a metempsicose, não
podemos, por esse prisma, anuir o saber rememorativo, sendo um tópico essencialmente do pensamento
platônico. Cf.Vlastos (1971:101,104): “This doctrine, the only one that would deserve mention in a history
of the theory of knowledge, let alone mention as a milestone in this theory, is the product of Plato’s genius
and of his alone. (...) The theory of recollection in the Meno is the work of a profoundly religious spirit
united with a powerful philosophical mind”.
33
do saber e do aprendizado. O esquecimento não significa “a perda de um conteúdo,
pois o esquecido não é a soma de conhecimentos, mas o poder da alma de apreender
a verdade do ser” (Dixsaut, 2003:114). A verdade se revela como não-esquecimento.
Se saber é rememorar, uma homologia de que é preciso procurar o que não
se conhece, perguntando, conjuntamente, o que é a virtude, remetendo-nos à questão
inicial. Mênon indaga se a virtude é ensinável, se é por natureza ou se é de algum outro
modo (Men.86c,d). Pormenorizando, Mênon questiona, respectivamente, se a virtude
pode vir a ser adquirida, semelhante a um ensinamento qualquer, se é por natureza e
não por convenção ou se é de outro modo. Contudo, a indagação acerca das supostas
qualidades da virtude é um raciocínio capcioso, se não for previamente procurado o que
é a virtude, seu eidos ou ousía, de sorte que à pergunta “X é Y?” é preciso prevalecer a
pergunta “O que é X?”. Modificando a natureza da questão, o filósofo almeja empregar
hipóteses para tentar respondê-la, explanando que a busca da essência ou do aspecto
de algo permite-lhe propor um método de hipóteses. Sócrates solicita o consentimento
de Mênon para que, a partir de hipóteses (ex hypothéseos), se examine (skopeîsthai)
se a virtude é ensinável (didaktón) ou se é como quer que seja (hoposoûn) (Men.86e).
Por a partir de uma hipótese (ex hypothéseos), Sócrates se refere ao modo como os
geômetras freqüentemente examinam (skopoûntai) (Men.86e). O dialético, definido pela
posse e presença da alma remêmora, utiliza hipóteses para obter a definição. Sócrates
as utiliza, indagando se a virtude é ou não ensinável, se é ou não ciência, rejeitando a
agonística baseada em meras refutações, apropriando-se do método de hipóteses dos
geômetras. A anuência de que as hipóteses auxiliam na possibilidade de compreensão
de algo estabelece uma nova conduta epistemológica à investigação socrática. Assim,
torna-se mister investigar, previamente, se a virtude é ciência ou algo diferente da
ciência, à medida que se afirma ser a virtude um bem (agathòn) (Men.87d), reportando-
nos ao escrutínio daquilo que é relativo à alma, como temperança (sophrosýne), justiça
(dikaiosýne), a coragem (andreía), o bom aprendizado (eumathía), a memória (mnéme),
magnanimidade (megaloprépeia) e todos os congêneres (Men.88a). A virtude é, pois,
reconhecida como um bem pertinente à alma, realizável pela posse da sabedoria. A
sabedoria é o bem hegemônico, de sorte que no que concerne às empresas e
sofrimentos da alma, se a sabedoria os conduz, acarreta a felicidade. Mas, se a
34
ausência de sabedoria os guia, carreia seu contrário, de modo que todas as coisas
relativas à alma não são em si mesmas nem proveitosas nem deletérias, mas tornam-
se proveitosas ou deletérias se lhes advier a sabedoria (phrónesis) ou, então, a sua
ausência (aphrosýne) (Men.88d). Se, por esse raciocínio, a virtude é algo proveitoso, é
mister que seja, então, uma sabedoria. Os bens relativos às ações humanas, como
temperança, coragem e justiça, são subordinados ao bem majestoso que é a sabedoria,
cuja natureza é racional. A sabedoria, sendo a parte hegemônica da alma, torna as
coisas que lhe são correlatas úteis e proveitosas, enquanto a sua ausência, sendo a
sua parcela hegemônica, torna-as inúteis e deletérias. A posse e presença da
sabedoria pela alma remêmora proporciona a vida eudemonista, de modo que a
felicidade é o resultado da atividade rememorativa, i.e., da capacidade de investigação
e de anamnese da alma. A phrónesis possui o sentido de um saber natural e não de um
aprendizado adquirido. A racionalidade prática é, por esse prisma, sujeitada à
racionalidade teórica, pois a ação correta depende da presença da sabedoria. O
inquérito da virtude precisa ser efetuado o por uma arte aquisitiva, praticada pela
sofística, mas pelo estudo das capacidades, disposições e fins da alma.
Se a virtude é ensinável, torna-se preciso haver mestres e discípulos. Sócrates
se reporta a Ânito, filho, para o remetente, de um pai rico e sábio, Antêmion, que, no
parecer do povo ateniense, o alimentou e o educou bem, expondo-lhe que muito
Mênon lhe dissera desejar essa sabedoria e virtude (taútes tês sophías kaì aretês) pela
qual os homens administram de modo belo as casas e as cidades (tás te oikías kaì tàs
póleis), cuidando também de seus progenitores, assim como sabem receber os
cidadãos e estrangeiros e deles dignamente se despedir (Men.91a). Sócrates lhe
pergunta para quem deveriam enviá-lo para que aprendesse e se porventura não seria
para os mestres de virtude chamados sofistas. Ânito reprova os sofistas, afirmando ser
evidente que são uma ignomía e a ruína para seus conviventes, porém não justifica o
seu opróbio, pois não lhes cabe revelar aqueles com os quais Mênon tornar-se-ia
ignóbil, mas atestar os reais mestres da virtude. Ânito aquiesce que dentre os
atenienses belos e bons, estimados por seus concidadãos, o há nenhum que não
fosse melhor do que os sofistas, permitindo a Sócrates lhe indagar se esses homens se
tornam belos e bons por si próprios, ensinando àqueles o que não aprenderam de
35
ninguém. Ressalta-se a tese do saber anamnésico e da alma mnemônica, porque
Sócrates não anui que tais homens tenham aprendido com seus progenitores nem que
o saber seja, destarte, ensinável
6
. Se homens bons em assuntos políticos, não é
manifesto poder havê-los em termos do ensino da virtude, haja vista ser prevalente
antes saber se a virtude é ou não ensinável para então aferirmos a existência de seus
mestres. Se Temístocles e Lisímaco foram pródigos em ensinar a seus filhos, Cleofanto
e Aristides, a arte da cavalaria, não puderam ensinar-lhes a ser melhores homens,
portanto, virtuosos, de sorte que a virtude não se ensina, sendo inata, realizada pela
sabedoria, nem se adquire de seus progenitores. Ânito reprova crates, pois
considera seu juízo, objetando ser a virtude matéria didascálica, ofensivo aos bons
atenienses. A asserção do não didatismo da virtude nos compele a reconhecer que o
aprendizado é reminiscência. Salientam-se os pródromos da dialética, relativos ao
aprendizado pela alma mnemônica e a oposição do dialético ao erístico e a uma de
suas formas mais precípuas, correlata ao sofista, mas a dialética não aparece ainda
como ciência filosófica, como gênero produtor de discursos verdadeiros, pois suporia a
relação ontológica fundamental entre o sensível e o inteligível, entre o fenômeno e o
númeno, não evidente ainda na relação entre a aquiescência de uma pluralidade de
virtudes e a procura de seu aspecto correlato. Contudo, à constituição de uma original
teoria do conhecimento se associaria um estudo profundo sobre a natureza e as
disposições da alma. Jean Pierre Vernant, em seu conspícuo estudo sobre os aspectos
míticos da memória, afirma que a anamnese em Platão não se refere mais ao passado
primordial nem a existências anteriores, constituindo-se como princípio propriamente
epistemológico, tendo previamente “como objeto as verdades cujo conjunto constitui o
real. Mnemosyne, força sobrenatural, interiorizou-se para se tornar no homem a própria
faculdade do conhecer” (Vernant,1990:127). Jean Pierre Vernant afere que o
pensamento mítico, para Platão, “perpetua-se do mesmo modo que se transforma”
(Vernant,1990:127), expressando a permanência do discurso mitopoético no discurso
6
Cf.Vlastos (Vlastos,1994:5): “In the Socrates of this passage Plato has already taken a giant step the
doctrine of recollection’ – in transforming the moralist of the earlier dialogues into the metaphysician of the
middle ones. The interrogation is laid on to support that doctrine to help Meno ‘recollect’ it”. Cf.Dixsaut
(Dixsaut,2003:116): “Il reste bien encore quelque chose de ‘mythique’: la représentation d’un savoir total
que l’âme aurait possédé et perdu. Ce qui est mythique est l’idée même d’un savoir total”.
36
filosófico. Por meio de um conhecimento associando o dado sensível ao saber
anamnésico, o discurso filosófico se diferencia do raciocínio sofístico.
Os sofistas apregoam serem mestres da virtude, defendendo ser preciso tornar
os homens hábeis (Men.95c). O poeta Teógnis exprime ser a virtude ora ensinável ora
não. Se nem poetas nem sofistas são capazes de evidenciar se a virtude é ou não
ensinável, cabe-nos revelar se porventura homens bons, educados por seus
pretensos mestres. A prevalência do dialético ante o poeta e o erístico residirá na posse
e presença tanto da ciência quanto da opinião verdadeira, pelas quais se torna capaz
de conduzir o discípulo pela reta via, correlata à via da verdade. Se se homologa que os
homens bons, sendo proveitosos, mantêm a hegemonia de nossos assuntos, não se
anui que alguém possa conduzí-los, se não for sensato (phrónimos) (Men.97a). Se
alguém tiver a reta opinião (orthèn xan) sobre as coisas do que o outro tem a ciência,
presumindo com verdade, mas não compreendendo, não será em nada um guia inferior
àquele que compreende isso (toû toûto phronoûntos), de sorte que a opinião verdadeira
(dóxa alethès) em relação à ação correta (pròs orthóteta práxeos) não é em nada um
guia inferior à sabedoria (phronéseos) (Men.97b). A opinião, se corretamente
empregada, pode propiciar a quem a utiliza, a felicidade. Assim, tanto a reta opinião,
epistemologicamente reconhecida, quanto a sabedoria acompanhada de ciência são
capazes de guiar a ação correta. A reta opinião precisa ser concatenada para se
manter, pois se não tiver um liame estável, não se torna opinião verdadeira. Se as
opiniões verdadeiras perduram, produzem belas obras e todos os bens. Se não,
escapam da alma do homem, sendo preciso concatená-las por meio do raciocínio de
causa (aitìas logismô), e isso é a reminiscência (anámnesis) (Men.97e,98a). A ciência
é, com efeito, considerada mais meritória do que a reta opinião, porquanto essa requer
previamente ser concatenada para tornar-se ciência
7
e, por conseguinte, estável. A
anamnese surgiria do esforço de reconstituir o liame necessário à reta opinião, nexo e
estabilidade sempre contemplados na ciência e, fundamentalmente, na ciência súpera.
As retas opiniões, conquanto pareçam ser firmes, precisam ser interligadas pelo
7
Cf.Kahn (1996:309): “The early dialogues also employ the term hypothesis for the position or thesis that
the interlocutor seeks to defend. But the Meno is the first text, to my knowledge, to distinguish sharply and
clearly between the truth of the premiss and the validity of the inference. It is in this sense that Plato’s
method of hypothesis initiates the theory of deductive inference”. V.Cherniss (2004:164); Dixsaut
(2003:114); Mié (2004:38); Vlastos (1971:104).
37
raciocínio da causa. A reminiscência, para Cherniss (Cherniss,2004:164), consiste no
reconhecimento dessa relação causal, de sorte que a apreciação do saber anamnésico
permite a Platão estabelecer novos critérios epistemológicos para a resolução das
contendas antilógicas. A opinião, entendida como uma modalidade do conhecimento
ulteriormente relativa à persuasão como afecção da alma, é sujeita à alternância dos
pontos de vista sobre um mesmo tema, assemelhando-se cognitivamente ao fenômeno.
A reta opinião não é nem inferior à ciência nem menos proveitosa no que
concerne às ações, de modo que um homem que tem a reta opinião não é nem inferior
nem menos proveitoso do que aquele que possui ciência (98c). A opinião não é em si
mesma réproba, mas precisa ser sujeitada, por causa de sua natureza metabólica, ao
raciocínio da causa. Assim, tanto a reta opinião, firme pelo nexo manifesto por
reminiscência, quanto a ciência guiam, para crates, retamente as ações humanas. A
reminiscência permite, com efeito, à alma remêmora a concatenação de opiniões
verdadeiras para que se tornem ciências e, portanto, estáveis, de sorte que a virtude,
porquanto não ensinável, seria correlata não à ciência, ensinável, mas sim à boa
opinião, própria a quem rege corretamente as cidades, aos adivinhos divinos e aos
vaticinadores, tornando-se meritório denominá-los divinos, haja vista que, não
possuindo nem o intelecto nem a ciência, efetuam, pela reta opinião, coisas valorosas.
A boa opinião, eudoxía, partilhada tanto por cidadãos participantes do âmbito político
quanto pelos vaticinadores e adivinhos divinos, evidencia o liame, atestado no
pensamento platônico, entre o horizonte político e o horizonte cultual. A virtude não é
nem por natureza nem ensinável, mas concedida como uma parcela divina sem
intelecto aos homens bons, àqueles que regem corretamente as cidades, aos adivinhos
divinos e aos vaticinadores (Men.100a). Se houvesse, porém, entre os cidadãos,
alguém capaz de tornar outrem cidadão, esse seria entre os viventes, no que se refere
à virtude, uma coisa verdadeira em relação às sombras (Men.100a). A virtude, auxiliada
pela ciência, tornaria os homens despertos. A virtude, acompanhada de intelecto e
sabedoria é concedida à alma filósofa e mnemônica. O filósofo, professando o reproche
aos supostos mestres da virtude, privilegia o saber anamnésico em face dos defensores
da erística, haja vista que tem a sabedoria pré-natal, manifestada pela alma remêmora.
A memória, cuja figuração mitopoética é Mnemosyne, genitora das Musas, é entendida
38
como potência intelectiva, pela qual a alma comporia o liame entre as retas opiniões,
tornadas, pelo firme nexo, ciência. A compreensão de que o conhecimento é anamnese
impõe a reflexão sobre os limites da aplicação das modernas categorias lógicas de
pensamento no estilo inquisitório socrático, haja vista que o recurso à memória permite
a Sócrates realizar a síntese intelectual entre mito e razão, entre o discurso mitopoético
e o discurso filosófico. O processo dialético revelar-se-á fortemente imbricado com o
saber anamnésico, de modo que o non prenuncia esse nexo. Mnemosyne pondera e
arbitra entre o ocultamento do Oblívio, âmbito meôntico, e a fulgência da Presença,
território ôntico. O entendimento dos atributos e funções da potestade olímpia explicita
a herança platônica da tradição teogônica, pois a função epistemológica da memória,
análoga à função simbólica da deusa, é propiciar a anamnese.
Não no diálogo a referência evidente à dialética, mas a remetência ao termo
dialético em sua oposição ao erístico. Não obstante, podemos evidenciar os pródromos
da concepção platônica da dialética, atestada, primeiro, na crítica ao gênero agonístico
correlato à mera contenda elêntica, logo, refutativa, segundo, na assunção de um saber
pré-natal, rememorado pela alma humana em seu estado entusiástico, terceiro, no uso
de hipóteses, retirado da geometria, em vista de assegurar, pela reta opinião e ciência,
a via da verdade, quarto, a congeneridade da alma magnânime ao divino, ressaltando o
nexo entre os horizontes político e cultual. Não se observa, porém, a relação com o
método de divisão por formas, precípuo à invenção platônica da dialética, haja vista que
ainda não se apresenta a concepção ontológica relativa à homologia entre o visível e o
invisível, entre o âmbito fenomênico e o âmbito numênico. Salientam-se, com efeito, no
Mênon os tópicos fundamentais que constituirão a dialética em senso estrito. Não o
entendimento, ainda, de uma ontologia referente à relação entre o sensível e o
inteligível, entre o fenômeno e o númeno, porquanto não se constitui ainda a crítica das
aparências, do que se apresenta à visibilidade. A referência, portanto, ao aspecto ou
caráter da virtude, ao seu ‘eidos’, não tem a acepção ulterior de forma inteligível relativa
a suas imagens sensíveis, atestada nos textos posteriores, de sorte que não podemos
aduzir a formação da dialética em senso estrito como ciência filosófica, como
consumada retórica e como psicagogia. Se não se apresenta o problema da forma,
porque supõe a lógica da oposição complementar entre imagem e forma, não se
39
evidencia muito menos a questão da essência, porquanto supõe sua oposição com a
gênese. Se no Mênon se anui que a concepção ética de virtude deve precisamente se
apoiar em exigências epistemológicas legítimas, pelas quais se rejeitaria tanto o
sensualismo de Protágoras quanto o niilismo psicológico de Górgias por meio da noção
de anamnese, cabe ao Fédon delimitar os fundamentos dessa nova epistemologia.
A constituição da dialética platônica está indissociavelmente ligada à construção
de sua ontologia, relativa à relação entre os âmbitos fenomênico e numênico e à
participação dos entes sensíveis nas formas inteligíveis. Ressaltam-se no diálogo
Fédon os tópicos precípuos à invenção platônica da dialética, correlatos tanto à teoria
da reminiscência quanto à tese da imortalidade da alma mnemônica, de sorte que esse
diálogo intermediário revela as linhas fundamentais do que se convencionou denominar
a teoria platônica das Formas.
8
O diálogo entre Símias e Cebes, apresentados como
pertencentes à hetairia de Filolau
9
, e crates sobre a natureza da alma, realizado
prestes à execução desse filósofo, relatado por Fédon a Equécrates, explicita a
parênese da filosofia e a preparação socrática para a sua morte. A preparação para a
morte produz no filósofo a admirável mescla de prazer e dor, de modo que a afecção
provocada pela mistura indistinta de prazer e dor remete crates a uma provável
fábula esópica, a qual narraria que se um deus presenciasse o combate entre o prazer
e a dor, tentando, porventura, apartá-los, o poderia. Assim, a fim de puní-los,
amarraria as suas cabeças em um único corpo, de sorte que os dois permaneceriam
indefinidamente inseparáveis. O exercício esópico do filósofo nos revela a mescla
8
Cf. Kahn (1996:313): “The Phaedo does not refer to dialectic as such. But what it says about ‘the art of
argument’ (he peri toùs lógous techne) at 90b, the art which is contrasted with antilogic or arguments that
aim at contradiction (antilogikoi logoi), is rightly regarded as equivalent to a mention of dialectic”.
9
Brisson (2002) reivindica a aplicação de um método histórico prudente e lúcido para elucidar os
hipotéticos nexos entre Pitágoras, o pitagorismo e Platão, prevalentemente firmados pela doxografia
aristotélica, sem o qual a especulação platônica da palingenesia revelar-se-ia meramente um decalque
pitagórico. Brisson indaga se Símias e Cebes são, de fato, discípulos do pitagórico Filolau de Crotona
pela insuficiência mesma de dados precisos fidedignos sobre o Filolau referido no Diálogo, pois “é
impossível saber de onde Filolau é originário, quando viveu, se era coetâneo de Pitágoras ou de
Empédocles, se era de Sócrates, porque e como esteve em Tebas” (Brisson,2002:30). Cf.Brisson
(2002:29): “C’est à Thébes en Béotie que Simmias et Cébès ont rencontré Philolaos. Mais de quel
Philolaos s’agit-il? Il est impossible de le dire en raison de l’invraisemblance historique des différentes
pièces du dossier: on ne peut en effet faire de Philolaos à la fois un disciple de Pythagore et un
condisciple d’Empédocle, et prétendre que Simmias et Cébès, encore vivants en 399 av.J.C., lui ont prêté
l’oreille à Thèbes”. Referente à impossibilidade de definir verdadeiramente a influência do pitagorismo
nos Diálogos platônicos e da dívida desse suposto liame ao legado aristotélico Cf. Cherniss (2004), Kahn
40
comum entre prazer e dor e sua natureza congênere, prenunciando a invectiva à mera
sensação e ao nexo com as cadeias corpóreas. Cebes se espanta com o Sócrates
fabulista, inquirindo-o porque resolvera exercitar-se em versos, compondo em metros
os discursos esópicos, relatando-lhe, também, a surpresa de Eveno sobre sua possível
conversão à poesia (Fed.60c). Sócrates exprime a Cebes que os sonhos o interpelaram
a se dedicar à música, considerando ser a filosofia, a mais sublime de todas as
músicas. Os sonhos, protelada sua morte, parecem exortá-lo a exercer o modo comum
de composição musical, induzindo-o a compor o hino em louvor a Apolo, cujo deus a
pólis honrava. O filósofo, porém, se julga incapaz de tornar-se poeta, à medida que,
para sê-lo, é preciso produzir mitos e o discursos, não se considerando um mitólogo,
metrificando, em compensação, as fábulas esópicas (Fed.61b). O filósofo não se
concebe mitologista, pois privilegia os discursos ante os mitos, mas mitologizará a
respeito da jornada purificatória a ser principiada no poente. O filósofo mitologista do
rito purificador, da jornada rumo ao ser puro imiscido, opor-se-á ao então simples
fabulista, metrificador dos ditames esópicos.
Ressalta-se a acurada oposição entre o privilegiado filósofo e o mitologista
popular, pois o cultor da filosofia revelar-se-á teófilo, aspirando ao convívio dos deuses
benfazejos. A defesa socrática da morte evidencia a aspiração filósofa à relação
convival com o divino e com o imortal. A teoria da transmigração das almas nos
apresenta um forte componente ontológico, permitindo a Platão interpretar a tradição
poético-religiosa numa perspectiva epistemológica. A conspícua teoria das idéias
freqüentemente é interpretada como oriunda da hermenêutica filosófica dos mistérios
órficos
10
. Se o filósofo é amado dos deuses, urge expor porque a supressão da vida
causar-lhe-ia bilo, em face do ditame de Cebes, para quem a maior graça consistiria
em viver plenamente sob a tutela divina, rejeitando a morte, de modo que se deve
(2001), Vlastos (1971). Carl Huffman, porém, anui ser evidente que o Filolau do Diálogo é, de fato,
membro do pitagorismo do V º século. Cf.Huffman (1999:16).
10
Brisson afirma ser comum considerar a transmigração das almas um dogma do Orfismo e do
Pitagorismo, tendo Platão o assimilado. A transmigração das almas constitui o fundamento da teoria da
reminiscência, a qual “implica a noção de forma inteligível separada, podendo ser contemplada pela alma
purificada do corpo” Cf.Brisson (Brisson,2002:42): “Devant tant de confusions et tant d’incertitudes, la
seule hypothèse valable à l’heure est la suivante. Pindare, Empédocle, Hérodote et Platon connaissaient
l’existence de mouvements religieux qui soutenaient la doctrine de la transmigration. Il semble que ces
mouvements eurent une influence sur le Pythagorisme et sur le Orphisme. Dans cette perspective la
question de savoir lequel, du Pythagorisme ou de l’Orphisme, a pu influencer l’autre n’a pas de sens”.
41
provar o apenas a excelência do rito purificatório, no qual a alma se aparta do corpo,
libertando-se, mas também a suprema congeneridade entre o filósofo e o divino. Se o
filósofo aceita não ser capaz de produzir discursos mitopoéticos, mitologizará a respeito
da imortalidade da alma, dado o seu parentesco com o divino. Mediante a tese da alma
imortal, aludida no Mênon, e de sua natureza congênere ao ingênito e incorruto, atesta-
se a superveniência das idéias. A filosofia se revela por causa da anuência da alma
imortal, como elevado saber anamnésico, desvelando as idéias sempiternas e
imutáveis, relativo à concepção de que o aprendizado é anamnese. Se a dialética ainda
não aparece explicitamente no diálogo Fédon, apresentar-se-ia nas linhas fundamentais
que, em estrito senso, a constituirão.
A concepção de que os mortais o uma parte do que é próprio à divindade
(Fed.62b), revelando-nos ser nossa melhor tutora, evidencia o nexo entre os horizontes
político e cultual, pois os homens providos de sabedoria e intelecto são congêneres ao
divino. A suprema congeneridade permite a Sócrates o encômio da preparação para a
morte, pois a morte é considerada separação da alma e do corpo. O filósofo, libertando
a alma de sua comunidade com o corpo (tèn psychèn apò tês toû matos koinonías),
diferencia-se dos outros homens (Fed.64e,65a). O corpo é impedimento à própria
aquisição de sabedoria (autèn tèn tês phronéseos ktêsin) (Fed.65a), de sorte que as
sensações corpóreas não são nem exatas nem evidentes. Se a alma se empenha em
escrutinar algo com o auxílio do corpo (metà toû matos), é por ele ludibriada. A alma,
apartada do corpo, não tendo com ele nem comunidade nem contato, concentrando-se
em si mesma, sem a ajuda de sensações corpóreas, raciocina melhor e aspira ao ser
(orégetai toû óntos) (Fed.65c), ao ser puro imiscido. A alma filósofa almeja, recusando o
corpo, agregar-se em si mesma, compreendendo, pelo raciocínio e o pela sensação,
os entes em si, como o justo em si (díkaion autò), o belo e o bom em si (kalòn kaì
agathòn). A apreensão do verdadeiro, do justo em si, do belo e do bom em si, se realiza
sem a miscibilidade corpórea, i.e., sem o apoio da visão e de outros sentidos, pela qual
originar-se-iam em nossas almas amores, desejos, temores, ciúmes e fantasias
multifárias. A pureza adviria o do auxílio das sensações, mas do emprego do
pensamento em si e imiscido (autê kath’autèn eilikrineî dianoía), empenhando-se na
caça dos entes imiscidos e em si (autò kath’autò hékaston eilikrinès tôn ónton) (Fed.
42
66a). A etiologia das guerras residiria no recrudescimento das afecções corpóreas, pois
por intermédio tanto do corpo e de suas concupiscências quanto da propriedade de
bens surgem guerras, combates e dissensões, de sorte que o conhecimento puro se
torna interdito ao liame entre alma e corpo. A comunidade entre a alma e o corpo a
impede de atingir verdade e sabedoria e de contemplar o verdadeiro. Assim, a fim de
obter o saber, é preciso evitar tanto sua comunidade quanto seu comércio com o corpo.
A alma filósofa, arrefecendo, pela sabedoria, o nexo e a comunidade com o corpo,
apartando-se da insensatez e das cadeias corporais, esforça-se para atingir, por meio
da purificação, o ser puro imiscido, o verdadeiramente real. A purificação (kathársis)
consiste em separar a alma do corpo ( chorízein a toû sómatos tèn psychèn),
habituando-se, de todo o corpo, a se condensar e a se agregar em si mesma (Fed.67c),
de modo que a morte seria a liberação e separação da alma do corpo (lýsis kaì
chorismòs psychês apò sómatos) (Fed.67d). O exercício da filosofia se constitui na
concentração da alma em si e por si mesma, separando-se das afecções desiderativas
e sua meta superna se refere justamente às citadas liberação e separação. A alma
filósofa se opõe à filotimia, aos amantes de corpos e de riquezas, para os quais as
virtudes nasceriam do temor da privação dos prazeres, haja vista que, para esses, o
desregramento (akolasía), por causa de sua simples temperança, adviria de ser
dominado pelos prazeres (hypò n hedonôn árchestai) (Fed.68e,69a). A reta troca
correlata à virtude não consiste em intercambiar prazeres com prazeres, dores com
dores, maior com menor, como se fossem moedas, pois a única moeda correta (mónon
nómisma orthón), pela qual todas as coisas devem ser intercambiadas é a sabedoria
(phrónesis) (Fed.69a). A coragem, justiça, temperança, o verdadeiro, virtude verdadeira
acompanhada de sabedoria são meios de purificação de todas as afecções. A vida
sábia e filósofa se constitui no entorno da prevalência da alma racional e remêmora e
de seu poder e sabedoria para comandar o corpo e seus múltiplos padecimentos. O
filósofo, verdadeiro iniciado no rito purificatório, correlato à preparação para a morte,
habitaria, após sua vida, o Hades junto com os deuses. Se o verdadeiro saber surge da
concentração da alma em si mesma, do pensamento sem mistura com o apoio do
raciocínio, é mister provar a subsistência da alma depois de sua separação do corpo.
Se no diálogo entre crates e Mênon se afere que o aprendizado é reminiscência
43
efetuada pela alma mnemônica, é preciso atestar no diálogo com Símias e Cebes, tanto
a suprema imortalidade da alma, a natureza de suas propriedades quanto sua função
epistêmica
11
, adversa à sensação, utilizando-se do método por hipóteses para
apreendê-las. O emprego de hipóteses, acompanhado de raciocínio, acribia e exatidão,
possibilitar-nos-ia compreender a imortalidade da alma e seu parentesco das idéias,
causadoras da geração, pois ambas, alma e idéia, participam do divino e incorruto.
Cebes interpela Sócrates, exortando-o a conceder uma considerável persuasão
e prova de que a alma, tendo o homem morrido, subsiste e tem um certo poder e
sabedoria, não vindo a se dissipar e tornar-se sopro ou fumaça, o qual lhe responde
pelo argumento dos contrários. Se dos mortos renascem (pálin gígnesthai) os viventes,
então as almas residem no ínfero, pois se não existissem, não poderiam devir, de
modo que é evidente que os viventes advêm dos mortos (Fed.70c,d). Se se inquire não
meramente acerca do homem, mas também acerca de todos os animais e vegetais, de
tudo que tem gênese, observar-se-ia que todas as coisas devêm porque os contrários
surgem dos contrários, de sorte que se houver um contrário, é preciso que esse se
origine do seu próprio contrário, como o maior do menor, o melhor do pior, o justo do
injusto. Se pares de opostos, então dupla geração, pois crescimento e
diminuição, composição e decomposição, aquecimento e resfriamento manifestam esse
duplo movimento do devir, em que um contrário origina seu próprio contrário e assim
reciprocamente. O processo de geração dos viventes se reporta ao entendimento da
palingenesia, do retorno à vida, porquanto o princípio geral de toda gênese se baseia
na evidência de que das coisas contrárias se originam as coisas que lhe são contrárias
(Fed.71a), a vida da morte, o maior do menor, o grande do pequeno. O sono e a vigília,
a vida e a morte, são estados que se engendram mutuamente num processo
palingenésico, num sempiterno retorno à vida, numa eterna compensação recíproca e
cíclica de gerações (Fed.71a,b). A atividade palingenética, o ciclo eterno da geração,
nos remete, portanto, à comprovação do saber anamnésico, de que o aprendizado é
11
A anamnese, no Fédon, tem o poder de fundar a epistéme necessária à consecução da dialética,
desenvolvida nos diálogos intermediários e nos finais. Cf.Mié (2004:37): “En el Menón se explica el
aprendizaje (manthánein) como rememoración (anamimnéskesthai) (Men.84a); en el Fedón se avanza
tomando la rememoración para dar cuenta no sólo del aprendizaje, sino también del conocimiento en
general (epístasthai, ennoeîn) (Phd.73d-75e). En ambos diálogos, la prioridad de una ‘visión de las ideas’
se distingue de la percepción sensible, de la ‘visión de los objetos’ (75b,c)”.
44
anamnese (máthesis anámnesis) (Fed.72e), pois o aprendizado por anamnese surge
por causa da alma imortal e remêmora, sendo preciso que tivéssemos anteriormente
aprendido o que num presente momento rememoramos (Fed.72e). A anamnese seria
impossível, se a alma não existisse antes de devir numa forma humana, parecendo ser,
por isso, a alma algo imortal (athánaton ti he psychè) (Fed.72e,73a). Se rememoramos
algo, é necessário que já o tivéssemos outrora conhecido, de sorte que, quando surge a
ciência, é, de certa forma, anamnese (epistéme paragígnetai anámnesin) (Fed.73c). A
ciência é apreendida pela alma remêmora, pois se contemplamos, se ouvimos ou temos
outra sensação de algo, não apenas o reconhecemos, mas temos o pensamento de
algum outro, pois o rememorar consiste na apreensão da idéia de algo. A anamnese
permite unificar no pensamento a pluralidade pelas semelhanças e dessemelhanças. A
anamnese, por exemplo, dum hábito, de um utensílio, duma lira de um ente desejado
propicia-nos a memória e a imagem do amado, de sorte que as coisas mutuamente
dessemelhantes podem promover a recordação do dessemelhante. A mútua relação
entre os entes sensíveis, entre o amado e a lira, entre Símias e Cebes, propicia aduzir
suas supostas semelhanças e dessemelhanças, revelando-nos sensações outrora
experimentadas. A aferição sensível de presumíveis igualdades ou desigualdades entre
os entes visíveis, por exemplo, entre duas pedras ou troncos iguais ou desiguais,
provém da anamnese do igual em si e do desigual em si, contemplados antes pela alma
imortal e remêmora em suas vidas primevas. Assim, é preciso, previamente ao tempo,
prever, i.e., conhecer anteriormente o igual (proeidénai íson), de modo que
contemplando, pela primeira vez, as coisas iguais, pensariamos que todas essas
almejam ser semelhantes ao igual em si, sendo-lhe inferiores (Fed.74e,75a). O ato de
pensar não nasce nem da visão, nem do tocar, nem de outra sensação. A visão, a
audição e outras sensações de algo acarretam a lembrança do conhecimento ingênito
das formas imutáveis, do igual, do maior, do menor em si, do justo, do belo e bom em
si. Ainda que a epistéme pré-exista à génesis, a apreensão cognitiva de algo perfaz as
várias etapas do processo epistêmico, relativas ao pensamento (diánoia), à sensação
(aisthésis), à imaginação (phantasía) e à opinião (dóxa), integradas pela psýche no seu
ato de cognição. A percepção e seus modos afins não podem ser interpretados apenas
como um dado sensorial separado do percurso epistêmico, mas justamente como sua
45
parte integrante. Contudo, se possuimos ciência, infere Sócrates, adquirimo-la antes da
gênese, cabendo à reminiscência associar a percepção vivida ao seu correlato ideal. A
contemplação sensível de um belo jovem nos proporciona auferir, pela rememoração, a
idéia incorruta do belo em si, assim como a visão da cidade justa permitiria reconhecer,
por anamnese, a idéia inata do justo em si, havendo, portanto, a mútua participação das
imagens sensíveis em suas formas inteligíveis, ou seja, da pluralidade fenomênica em
suas respectivas unidades numênicas. A assunção de que o correlato inteligível de
determinada realidade sensível é apreendido pela relação que essa mesma realidade
estabelece com determinados outros visíveis explicita o esquema platônico duma mútua
comunidade tanto entre os sensíveis quanto entre os inteligíveis. Se a multiplicidade
aparente se apresenta como um amplexo, em que uma inter-relação de entes, entre
o amado e a lira, entre Símias e Cebes, afere-se também uma comunicação recíproca
inter-eidética, entre o igual em si e o desigual em si.
Se não houvesse a imortalidade da alma e de seu poder remêmoro, não haveria
o reconhecimento das idéias, pois a apreensão das ciências de todas as coisas surge
antes do nascimento. O saber consistiria na apreensão pré-natal da ciência, em sua
retenção e não abandono. A ‘epistéme’ procurada se revela como conhecimento pré-
natal adquirido pela alma remêmora, de sorte que o esquecimento (léthen) nada mais
seria do que a perda da ciência (epistémes apobolén) (Fed.75d). O não-esquecimento
se revela como presença do saber mnêmico, como atualização de idéias rememoradas,
do conhecimento ingênito existente na alma imortal. Se se supõe que, ao nascermos,
perdemos o saber pré-natal e a fim de apreendê-lo, empregamos os nossos sentidos, o
que denominamos aprender (manthánein) nada mais seria do que apreender uma
ciência particular (oikeían epistémen analambánein) (Fed.75e). Ainda que o
esquecimento seja a perda da ciência, esse se revela importante para o processo de
aquisição epistêmica, pois é por meio dele que a possibilidade da reminiscência. Se
o aprendizado é anamnese, a sua privação é o critério que lha permite reavivar-se. Os
opostos olvido e anamnese mantêm assim uma relação de complementaridade.
A percepção de algo pela visão, pelo ouvido ou por um outro sentido, possibilitar-
nos-ia pensar em um outro que, porventura, haviamos esquecido e do qual aquele
manteria afinidade, sem lhe ser semelhante (Fed. 76a), de sorte que não nascemos
46
conhecendo as coisas em si e, por toda vida, conhecemo-las, mas, depois de
nascermos, o aprender seria sobretudo rememorá-las, o aprendizado seria anamnese
(máthesis anámnesis) (Fed.76a). O reconhecimento de determinado ente não se realiza
pela experiência sensível imediata, porém a empiria nos propicia a anamnese do olvido,
de modo que não o opróbio da sensação, mas a anuência de sua subordinação à
reminiscência. A diferenciação entre o filósofo e outros gêneros produtores de discursos
reside no fato de que aquele sujeita, pela rememoração da alma, seu campo perceptivo
à inteligibilidade. As almas existiriam previamente à forma humana, antes do devir,
separadas do corpo e tendo sabedoria (Fed.76c). Se há, originariamente, o belo, o bom
e todas as essências congêneres, reportando-lhes todas as coisas que se originam dos
sentidos, então a alma existiria anterior às nossas sensações, sendo mister evidenciar a
congeneridade entre a alma e as essências, à medida que ambas existem previamente
aos sentidos e às coisas percebidas, ou seja, antes do devir. A alma e as essências
são, por um lado, realidades idênticas a si mesmas (aei katà tautà), imutáveis (hosaútos
échei) e também incompósitas (axýntheta), as sensações e as coisas percebidas, por
outro, não o idênticas a si mesmas (medépote katà tau), sendo mutáveis (
állot’állos) e compósitas (sýntheta) (Fed.78c); essas são compreendidas pelos sentidos
(taîs aisthésesin), enquanto aquelas pelo raciocínio do pensamento ( tês dianoías
logismô), de sorte que duas espécies de entes, de um lado, o invisível ( mèn
aidès) e imutável e, de outro, o visível (horatòn) e mutável; este se reporta ao
corpo, aquele à alma (Fed.79a). O corpo compósito possui mais semelhança e
congeneridade (homoióteron kaì syngenésteron) à espécie visível, enquanto a alma
incompósita à espécie invisível. O corpo assemelhar-se-ia ao mortal, ao ser escravizado
e ser comandado (douleúein kaì árchestai), ao passo que a alma aparentar-se-ia ao
divino, ao dominar e comandar (árchein kaì despózein) (Fed.80a). A alma, congênere
às essências, é ingênita, incorruta e incompósita, não podendo nem se alterar nem se
decompor. A assunção da natureza incompósita da alma e das essências sempiternas
evidencia sua congeneridade ao invisível, haja vista que não se altera, sendo sempre
idêntica a si mesma, enquanto o corpo pertence ao gênero visível, pois tanto se altera
quanto se decompõe, nascendo e morrendo. A alma, por causa de sua natureza
imperecível, é um princípio divino e imiscido. A alma, cuja natureza é oposta a da
47
corporeidade, é uniforme e indissolvível, mantendo-se inalterada. Mas, se a alma se
sujeitar aos prazeres, desejos e temores corpóreos, torna-se, por esse processo, densa
e terrenta, misturando-se ao sensível e ao visível, aparentando-se ao mutável e
metabólico. A realidade invisível se mantém sempre idêntica a si mesma, sendo súpera
e imiscida, ingênita e sempiterna, enquanto a realidade visível é metabólica e ínfera
àquela, miscível e nita. A récita socrática se apropria, pois, da relação mítica
enantiológica entre deuses olímpios e deuses ctônios para manifestar a prevalência da
alma incorpórea em relação à corporeidade. Porém, essa referida proeminência pode
apenas ser pensada por meio de uma lógica de oposição complementar, sintetizando o
visível e o invisível, o sensível e o inteligível, corpo e alma. O discurso filosófico
retomaria, então, os princípios fundamentais do discurso mitopoético. Platão se insere
numa tradição de autores, adstritos às filosofias jônica e itálica da natureza, Heráclito e
Parmênides precipuamente, que pensa o discurso, o âmbito do ‘lógos‘, conexo à
sabedoria numinosa, de sorte que às Musas da Jônia e da Sicília se justapõem as
Musas veneradas pela sapiência socrática, iterando o nexo entre mito e filosofia. A
própria argumentação socrática, efetuada por hipóteses, correlatas aos argumentos da
palingenesia, da anamnese, da congeneridade e da causalidade necessária se constitui
pelo recurso à estrutura mitopoética dos opostos complementares.
O argumento da congeneridade entre a alma, o pensamento e as essências e
entre o corpo, as sensações e as coisas sensíveis, subseqüente ao argumento da
palingenesia e da anamnese, precede e prepara o argumento da causalidade
necessária, porquanto a espécie invisível se revelou ser o princípio hegemônico e o
comando da espécie visível.
12
O argumento da causalidade necessária estabelece o
12
Cf.Bostock (1999:422): There are essentially four arguments, namely the Cyclical Argument (69e-72d),
the Recollection Argument (72e-77d), the Affinity Argument (77e-80b), and the Final Argument (95e-
106e). But between the third and the fourth there comes an Interlude (84c-95e)”. Fabián Mié considera
haver três provas precípuas sobre a imortalidade da alma no Fédon, correlatas à (a) equiparação entre
aprendizagem e reminiscência, (b) afinidade ontológica entre a alma e os objetos concebidos
indissolvíveis e imperecíveis do conhecimento, (c) causalidade da idéia em relação à gênese e
corrupção. Cf. Mié (2004:31): En la última demostración de la inmortalidad del alma que desarrolla el
Fedón, Sócrates introduce la hipótesis de las ideas de manera más decidida de lo que lo había hecho en
el ofrecimiento anterior de una prueba basada en la equiparación entre aprendizaje y rememoración o, a
continuación de ello, en la segunda prueba, demostrando que el alma, en razón de su afinidad ontológica
con lo que son sus objetos de conocimiento, no pertenece al tipo de entidades que se descompone o
disuelve. Pero en la tercera prueba las ideas son postuladas como las únicas causas que pueden explicar
lo que algo es cuando eso se genera o se corrompe”.
48
princípio da hipótese das idéias. Sócrates diz ser preciso examinar com acuidade a
causa da geração e da corrupção (perì genéseos kaì phthorâs tèn aitían) (Fed.95e,
96a), expondo a Cebes que se interessara, quando jovem, entusiasticamente com o
saber ao qual denominam exame da natureza (pephýseos historían), parecendo-lhe
ser esplêndido, porque conheceria as causas de cada coisa, sabendo por meio de que
cada um nasce, morre e existe (Fed.96a). O filósofo afirmou ter aprendido dum livro de
Anaxágoras que o intelecto (Noûs) é o organizador e o causador de todas as coisas
(diakosmôn te kaì pánton aítios) (Fed.97b,c). Porém, disse adeus à maravilhosa
esperança, pois reconheceu que Anaxágoras não se utilizara do intelecto para entender
a organização das coisas, mas do ar, do éter, da água e de muitas outras coisas
também absurdas (Fed.98b,c), de modo que se deve separar a verdadeira causa de
qualquer outra suposta, iniciando-se a segunda navegação. Sócrates busca explicar a
Cebes o exame da causa (epì tèn tês aitías zétesin) realizada em sua segunda
navegação (tòn deúteron ploûn) (Fed.99d). Sócrates temera que sua alma se tornasse
inteiramente cega se contemplasse as coisas com os olhos, tocando-as apenas com os
outros sentidos. Pareceu-lhe, pois, ser preciso refugiar-se em raciocínios (eis toùs
lógous) e examinar a verdade dos entes (tôn ónton tèn alétheian) (Fed.99e), de sorte
que, tendo estabelecido como fundamento o raciocínio (hypothémenos lógon) que
ajuiza ser o mais sólido, julga ser verdadeiro aquilo que lhe for consoante, concernente
à causa e a todas as outras coisas, e não verdadeiro aquilo que não lhe for, todavia,
consoante (Fed.100a). crates previamente demonstrou em Mênon 97e que a ciência
se sobrepõe às opiniões verdadeiras pelo recurso ao raciocínio da causa.
A segunda navegação almeja superar a compreensão puramente fenomênica,
realizada pelos pensadores naturalistas, examinando, destarte, a causa não na espécie
visível, mas na espécie invisível, admitindo a hipótese de duas espécies de entes, de
um lado, a sensível, fenomênica, e, de outro, a inteligível, metafenomênica. O
reconhecimento socrático de que Anaxágoras não considerou retamente o intelecto
como o causador de todas as coisas, põe-lhe a premência da segunda navegação, pela
qual intenta superar as concepções dos investigadores da natureza. O modelo
anaxagoreano ainda está intimamente ligado às explicações naturais, logo, fenomênica.
49
Se anuirmos com a tese defendida por Charles Kahn (2001) de que a influência
precípua de Platão não é nem o pitagorismo nem o heracliteanismo, mas o eleatismo,
entendemos a prevalência da inteligibilidade na explicação da gênese de todas as
coisas. Porém, à influência do eleatismo se associa a reavaliação da escola siciliana de
medicina e retórica, circunscrita à noção de ‘eidos’. A concepção de ‘eidos’, proferida no
contexto da locução socrática, não tem somente o caráter definitório e epistemológico
de aspecto ante uma pluralidade de coisas, conforme atestado tanto no Êutifron quanto
no Mênon pela indagação acerca respectivamente da piedade e da virtude, mas se
apresenta ontologicamente como forma inteligível em relação à multiplicidade sensível.
A alteração no sentido de ‘eidos’ provoca uma revolução na filosofia platônica, causada
pelo próprio influxo, segundo Charles Kahn (2001), da ontologia eleata, de sorte que ao
inquérito epistêmico acerca do aspecto definidor de algo se justapõe a investigação
ôntica acerca da forma metafenomênica de algo. Sócrates se esforça para explicar a
Cebes a forma da causa (epideíxasthai s aitías eîdos) que vigorosamente
pesquisara, estabelecendo como fundamento, logo, como hipótese haver um belo em si
(ti kalòn autò kath’autò), um bom, um grande e todos outros (Fed.100b). Para assegurar
a apologia da imortalidade da alma, a lide propôs previamente três argumentos
correlatos à palingenesia, à anamnese e à afinidade ontológica para provar sua
prioridade ontológica em relação à corporeidade. Se Cebes aceitar essas formulações,
Sócrates lhe propõe mostrar e explicar-lhe a causa da imortalidade da alma, porque se
consentiu haver a congeneridade entre a alma e as idéias. Se há um outro belo que não
o belo em si (autò kalón), é porque aquele belo participa do belo em si (metéchei toû
kaloû), porquanto o que torna algo belo seria ou a presença (parousía) ou a
comunidade (koinonía) com o belo (Fed.100d). Assim, é necessário que cada coisa
participe da essência particular (tês idías ousías) daquilo do qual ela participa, pois as
coisas belas se tornam belas porque participam do belo em si. As coisas que participam
do belo receberiam a sua própria denominação, sendo o seu epônimo. O filósofo,
adverso ao antilógico, ao mero contraditor erístico, busca, portanto, estabelecer os
fundamentos de sua investigação, indo de um para o outro, de hipótese para hipótese,
almejando o princípio. Porém, se de algo contrário se origina um outro algo que lhe é
contrário, como a vida da morte, a vigília do sonho, a vida desperta sábia da vida
50
onírica hipnótica, como no argumento palingenésico, não podemos aduzir que o
contrário em si, entendido como forma inteligível, possa devir em seu próprio contrário.
O contrário em si, não sendo forma epônima, mas a forma em si, não pode jamais nem
se alterar nem se corromper, pois se mantém sempre idêntico a si próprio e incorruto.
A alma filósofa, mediante seu poder e sabedoria, tendo o dom divinatório
apolíneo, aspira ao divino e ao ser real inteligível. O nexo e a comunidade da alma com
o corpo são pensados por meio da relação enantiológica, entendidos como termos
antitéticos e como opostos complementares. A alma existe pela relação de oposição e
complementaridade ao corpo, pois esse contém em si a idéia de mortalidade e sua
idéia contrária e aquela a de imortalidade e a idéia contrária. Se a alma, porventura,
aceitasse a idéia do mortal em si, ou se modificaria ou morreria, do mesmo modo que o
fogo, aspecto sensível do quente em si se, porventura, recebesse a idéia do frio, ou se
alteraria ou se corromperia. A neve, aproximando-se do fogo, ou cederia lugar ou se
destruiria. O fogo se se aproximasse da neve, ou se retiraria ou se corromperia.
Sócrates entende que tanto a alma quanto o fogo precisam conter em si não apenas as
idéias respectivas que lhes conformam, como divino e quente, mas as idéias que lhes
são contrárias, como o mortal e o frio. A alma mantém em si tanto o imortal quanto o
contrário de mortal, tanto a identidade quanto a alteridade, o fogo mantém em si tanto o
quente quanto o contrário de frio, o três contém em si tanto o ímpar quanto o contrário
do par, de sorte que a totalidade do real, reunindo os âmbitos visível e invisível,
sensível e inteligível, fenomênico e metafenomênico, precisa ser permeada por uma
unidade enantiológica, sintetizando os opostos complementares. O metabolismo dos
opostos é sujeitado pela relação de participação na idéia e de oposição complementar à
idéia contrária, assegurando ser e inteligibilidade ao tecido fenomenal. Se se atribui
comumente ao Fédon a instituição da ontologia canônica, freqüentemente descura-se
da relação de inclusão e exclusão entre as próprias formas, promovendo a comunidade
inter-eidética, em que o contrário não é uma simples privação mas o seu exato oposto
complementar, acarretando a ulterior relevância do escrutínio da natureza não apenas
do ser mas também do não-ser. A multiplicidade aparente, âmbito doxástico, participa
da comunidade eidética.
51
A noção de que as coisas sensíveis participam de suas respectivas idéias assim
como de idéias que lhe são contrárias configura para o pensamento platônico a unidade
enantiológica
13
, rompendo com a presumível lógica da identidade e da não-contradição.
A mesma relação de oposição complementar, presente nessa enantiologia, é atestada
na relação antitética entre a alma invisível e o corpo visível reportada à relação entre
imortal e mortal, entre a essência e a gênese. O humano precisa conter em si não
apenas a sua respectiva idéia, a do mortal em si, mas também a sua idéia contrária, a
do imortal em si, reportando-nos à lógica de oposição complementar, unificando, pelo
raciocínio, os pares de opostos. A percepção dessas enantiologias permite aferir o
princípio de diacosmese, permeando todo o processo metabólico de geração, adverso à
alternância indistinta dos contrários, propugnada pela arte erística. A dialética originar-
se-ia do esforço de sínteses e divisões das oposições constitutivas. O entendimento
dessas enantiologias constituintes do processo fenomênico provém da observância da
participação do sensível no inteligível. A constituição da teoria das Formas supera a
concepção, tanto da ontologia eleata quanto da sofística, de que a realidade
fenomênica é composta pelos verossímeis, por uma ordem verossímil das aparências,
ausentando-lha, pois, a possibilidade da inteligibilidade. A realidade aparente não pode
ser meramente concebida como perpétuo devir, em que o dessemelhante se torna
semelhante, o grande pequeno, o maior menor. A alma, por ser imperceptível e
antitética ao corpo, é congênere às idéias incorpóreas, contendo em si também sua
idéia antitética. Os belos visíveis, por esse prisma, existiriam por participação na idéia
invisível do belo em si, sendo-lhes o seu causador, assim como haveria as ações justas
por meio da participação na idéia do justo em si, sendo-lhes também a sua causa, de
sorte que as coisas sensíveis precisam ser apreendidas pelo raciocínio não por
intermédio de suas relações recíprocas perceptíveis, haja vista que turvam o reto
pensar, todavia requerem ser compreendidas mediante suas idéias correlatas,
13
Cf.Mié (Mié,2004:42): “El Fedón cuenta, entonces, con la posibilidad de articular la uniformidad del
eidos en relaciones ideales, lo cual significa que la unidad de cada idea envuelve una multiplicidad y que
esa estructura de unidad y multiplicidad, que constituye la estructura de la determinación e identidad de
cada forma, está implicada en el contenido específico de cada idea. La conexión y exclusión (implicación
y no implicación) entre las ideas es el fundamento de la episteme en su diferencia respecto de la doxa,
según lo marca el Menón (98a) con la fórmula aitías logismô”. Para Mié, a conclusão sobre a imortalidade
da alma apoiar-se-ia “nas inclusões e exclusões eidéticas correspondentes à determinação própria dessa
entidade que é a alma” (Mié,2004:42).
52
salientando a relação entre imagem visível e idéia invisível. Se se aceita, com efeito, a
pré-existência da alma, é mister admitir sua permanência depois da morte física, na
medida em que participa da idéia do imortal, subsistindo nela a educação e nutrição
recebidas em seu liame com o sensível. A alma, purificada do nexo corpóreo, é
conduzida para o julgamento pela mesma divindade numinosa que a teria guiado em
sua então comunidade com o corpo, de sorte que o deus se manifesta como nume se
compreendido por sua relação com um destino particular, de uma coletividade ou de um
mortal, por ele regido. A alma filósofa, amante do verdadeiro e do ser real e congênere
às idéias, tem a sabedoria numinosa como hegemônica, pela qual pode participar do
divino, do imortal e do ser puro imiscido, libertando-se das cadeias corpóreas referentes
a todas as afecções irascíveis, aos prazeres e dores ilimitados, aludidos por Sócrates
no proêmio de sua exposição. “Se a filosofia consiste no constante exercício que a
antiga tradição denomina ‘purificação’, o filósofo é o verdadeiro iniciado, consistindo a
sua verdadeira iniciação na purificação pela qual se eliminam do pensamento todos os
elementos sensíveis” (Torrano,2004:151).
O elogio da alma purificada
14
, cuja natureza é congênere a das formas, se revela
antes como tanatomeléte, exercício reiterativo para a morte, como paradigma expositivo
da unidade enantiológica, precípua para a invenção platônica da dialética.
A posse de uma sabedoria numinosa permitiria à alma filósofa um bem-
aventurado percurso ao Hades, de sorte que, tendo permanecido por um certo tempo
nessa região invisível, seria reconduzida pela palingenesia, pela regeneração, à sua
união com o corpo sem padecer dos infortúnios sentidos por uma alma misturada às
injustiças e sedições corpóreas. Se a alma se revelar, em seu nexo corpóreo, racional e
magnânime, manter-se-á acompanhada sempre de um bom nume, mas se se mostrar,
porém, inepta e frívola, padecerá errática no Hades sem a presença numinosa. A
descrição do rito purificatório, da conversão anímica ao Hades e de sua reconversão à
vida propicia ao filósofo e cultor das Musas expor a sua concepção cosmográfica, à
14
Cf.Kahn (1996:317): The doctrine of recollection and the immortality of the soul are not presented as
logical consequences of the assertion that the Forms exist. The epistemology of recollection and the
concept of the eternal psyche have their place in a larger philosophical scheme of things, whose most
fundamental component is the ontology of Forms”. V.Dixsaut (Dixsaut,2003:115): L’interprétation de la
réminiscence en terme d’innéité des Formes introduit une hypothèse dont Platon fait l’économie: les
53
medida que as almas habitam tanto as regiões ínferas, dominadas pelo esquecimento,
quanto as súperas, contempladas pela fulgência. A cosmografia explicita haver, por um
lado, o lugar terrento, o lugar celeste e o lugar supraceleste correlato ao éter, onde
residiriam templos e deuses, contemplando o sol, a lua e os astros, imiscivelmente, em
si e por si mesmos e, por outro, o lugar ínfero, referente ao Tártaro, âmbito abismal que,
de acordo com os poemas homéricos, permeia todo o território terreno, perfurando-o
em seu centro para promover o processo de fluxo e refluxo da água, ar e sopro,
movimento análogo ao processo respiratório de inspiração e expiração, causando o
nascimento dos rios Oceano e Aqueronte, que precipita-se no lago Aquerúsia. As almas
dos mortais comuns permanecem no Aquerúsia para se purificarem, esperando suas
sentenças, proporcionais a seus feitos e às ações. As almas incuráveis, causadoras de
grandes males, homicídios e roubos em templos, precipitar-se-ão no Tártaro
eternamente, interditando-lhes a palingênese. As almas, cujo comportamento se
revelou irascível para com seus progenitores, serão arremessadas do Tártaro para o rio
flâmeo Periflegetonte, donde serão conduzidas ao lago Aquerúsia, suplicando
reparações aos seus imolados por suas transgressões. As almas pías e teófilas,
evidenciadas pelas almas filósofas, serão libertadas dessas regiões ínferas e
arrebatadas para os lugares súperos, onde habita a morada pura dos deuses, residindo
por todo o tempo, purificadas dos corpos, nesse âmbito sublime. As almas
magnânimes, por fim, residiriam no lugar supraceleste, contemplando as idéias
imiscidas, enquanto as almas abjetas povoariam, aprisionadas, os recônditos das
regiões infernais. Platão desenvolve, para Mattéi (Mattéi,1996:146) uma geografia
subterrânea, opondo aos habitantes da terra ínfera, residentes em cavidades, para
onde confluem neblina, água e ar, a terra pera e o céu verdadeiro. A cosmografia
mítica, retomando elementos tanto da cosmogonia hesiódica quanto da épica homérica,
segundo Mattéi (1996), opondo divindades primordiais antitéticas, tenebroso Tártaro e o
benevolente Oceano no eixo vertical do mundo invisível do Hades, Styx glacial e
Periflegetonte flâmeo no eixo horizontal do lago Aquerúsia, explicita a lógica de
oposição complementar entre os gêneros visível e invisível. Platão impõe a premência
Formes sont posées par l’élan de l’âme quand elle se ressouvient de sa puissance de saisir ce qui est
véritablement, par elle seule et sans le secours des sens”.
54
da disposição tetrádica dos rios, exposta nas quatro correntes citadas, Oceano celeste
e Aqueronte terrento, por um lado, Styx glacial e Periflegetonte flâmeo, por outro.
A récita mítica sobre o cortejo das almas manifestaria o que o discurso lógico
não pode evidenciar. O mito cosmográfico se apresenta não como um discurso
subordinado à ordem lógica das razões, mas como narrativa que contém uma
homologia estrutural com o pensamento lógico, potencializando-o. Jean François Mattéi
(Mattéi,1996:138) propõe a classificação dos mitos platônicos em mitos genealógicos e
mitos escatológicos. Os mitos genealógicos “expõem o nascimento do mundo, dos
homens e também dos deuses, ou remontam à origem do conhecimento”. Os mitos
escatológicos exprimem “o destino final das almas e o seu ulterior renascimento”
15
.
Segundo Mattéi, a fim de ensinar o destino final das almas e sua palingênese posterior,
a prédica socrática apresenta o trajeto das almas no decurso temporal no âmbito de
uma topografia infra-terrenta e supra-celeste, exprimindo a justiça cósmica. A récita
mítica é, para Mattéi (Mattéi,1996:145), dividida em quatro partes: (a) a analogia entre
as regiões terrenhas, as terras ínfera e súpera (108c-111c); (b) a descrição do sistema
hidrográfico subterrâneo, distribuido a partir de quatro rios (111c-113c); (c) as sanções
póstumas e o destino final das diversas espécies de almas (113d-114c); (d) uma breve
conclusão acerca do ensinamento do mito (114c-115a). A inspiração platônica da
composição do mito seria o relato órfico do descenso ao Hades (Mattéi,1996:146), pois
Orfeu, com a ajuda de Hermes, desce ao Hades para retirar Eurídice do reino
umbrático. Platão empresta da escatologia órfica tanto a imagem da boa rota, a via reta,
e da rota a ser evitada, a esquerda, quanto a figura de labirintos e encruzilhadas, nos
quais a alma se arrisca perder-se (Mattéi,1996:146). À descrição do reino do Hades
com sua distribuição cardinal tetrádica de quatro rios, Oceano, Tártaro, Stix e
Periflegetonte, se associa o mito do Julgamento Final, impondo o lote de cada alma
15
V. Mattéi (Mattéi,1996:138). Para Mattéi, os mitos genealógicos são o mito da humanidade primitiva no
Protágoras, o dos filhos da terra no livro III e VIII da República, o mito aristofânico dos homens primitivos
no Banquete, o mito da idade de ouro e do reino de Cronos no Político, no livro IV das Leis, o mito do
nascimento de Eros no Banquete e o das cigarras no Fedro, também o mito de Theuth sobre a origem da
escrita no mesmo diálogo, o mito da antiga Atenas e de Atlântida no Timeu e Crítias, assim como todo o
Timeu por ser um discurso verossímil (lógos eikóta) sobre a gênese do cosmos. Os mitos escatológicos
são o mito do Julgamento Final no Górgias e no don, o mito de Er no livro III da República, o mito da
atalagem alada no Fedro, aos quais se pode associar o mito do Crítias, porque se trata não apenas da
origem dos Atlantes, como também de seu fim, narrando da fundação da ilha por Poseidon até a sua
destruição por Zeus.
55
perante seus numes correspondentes. A região súpera, âmbito supraceleste, onde
habitam os deuses e as formas inteligíveis, se reportaria ao ser puro imiscido, enquanto
a região ínfera, domínio infernal e território do esquecimento e antitética ao lugar
uraniano, referir-se-ia, portanto, ao não-ser absoluto, de sorte que às topologias
cosmográficas corresponderiam os âmbitos ontológicos do ser e do não-ser. Os lugares
ôntico e meôntico se relacionariam à plenitude do inteligível e à sua degradação
absoluta no sensível, concernentes à alma filósofa e à alma abjeta. Ressaltar-se-ia o
nexo evidente entre a hermenêutica política e a hermenêutica cultual, à medida que à
reflexão sobre a condição do filósofo na esfera da pólis se associaria a especulação
palingenética. Se no campo político, o saber verdadeiro produz a supressão da vida,
pelo modelo socrático, no campo mítico promove a bela morte e a eternidade jubilosa.
A segunda navegação assinala o reconhecimento socrático da hermenêutica dos cultos
órficos, pois as idéias são concebidas depuradas do sensível. O elogio socrático da
alma purificada salienta, pela experiência do sagrado, a congeneridade entre o filósofo
e o divino e a conseqüente participação da alma filósofa e remêmora nas idéias.
O mito escatológico do destino das almas explicita, portanto, as ações
necessárias para que o homem participe, em vida, da virtude e da sabedoria (aretês kaì
phronéseos) (Fed.114c), pois belo é o prêmio e magnífica é a expectação se regermos
nossa vida pelo mito. A récita socrática, pertinaz em seu encômio à sabedoria, supera a
mera mitologia popular ou exercício de fabulação, porquanto, hineando a tanatomeleté,
Sócrates exprime uma nova compreensão da função intelectiva da alma humana. “Na
teoria de Platão, o pensamento mítico perpetua-se do mesmo modo que se transforma”
(Vernant,1990:127). Com efeito, não convém, pondera Sócrates, a um homem dotado
de intelecto sustentar firmemente a veracidade do relato mítico, mas belo é o risco se
supormos a imortalidade da alma e a palingenesia, pois tais suposições produzem um
encantamento. A narrativa mítica reitera os elementos deontológicos necessários à
constituição da vida justa e feliz. O reconhecimento socrático do mito escatológico das
almas, ratificada sua natureza não verdadeira, verossímil, demonstra o equívoco de se
pensar uma relação antitética entre mito e filosofia ou a prevalência dessa em relação
àquele. A prédica mítica nos instrui a reger a vida com temperança, sabedoria e justiça,
56
magnanimidade e verdade, indicando-nos, assim como a um herói trágico, ligado à sua
possessão numinosa, o nosso fabuloso destino.
A evidência de que o aprendizado é reminiscência permitiu-nos, portanto, atestar
a natureza ingênita e incorruta da alma, reportando-nos à concepção da existência das
idéias imutáveis, de sorte que podemos discernir no diálogo três tópicos precípuos
relativos à invenção platônica da dialética: a teoria do saber pré-natal, a tese da alma
imperecível e a compreensão das idéias incorpóreas, com os quais Platão constituirá o
discurso verdadeiro, opondo-se aos gêneros produtores de discursos antilógicos, aos
imitadores fantásticos e doxásticos. A concepção do aprendizado remêmoro, registrado
no Mênon e no Fédon, evidencia a prevalência do discurso verdadeiro em face de um
presumível discurso persuasivo porém falso. A dialética surgiria do elevado saber
anamnésico ante a concepção de uma ordem verossímil das aparências, na qual
haveria apenas a mútua alternância dos contrários e o devir cambiante, em que o
dessemelhante mantém comunidade com o semelhante. A alma mnemônica, por meio
da posse da reta opinião e da ciência, discerne as formas ingênitas, das quais os entes
visíveis, imitando, pela presença numinosa, o divino e imortal, participam. Se a
realidade fenomênica é, de acordo com a segunda parte do poema parmenídeo,
composta de fogo etéreo e noite escura, torna-se mister aferir suas formas constitutivas.
57
II. O saber dialético e o filósofo em República V, VI e VII
O reconhecimento do ofício do filósofo e a reta apreciação de seu poder
dialético, diferenciando-os de outras artes e de outros gêneros produtores de discursos,
são tópicos centrais para a interpretação dos Diálogos. A dialética é apresentada nos
livros VI e VII da República como o procedimento filosófico por excelência e o filósofo é
entendido como dialético. A constituição da figura do filósofo realizar-se-á em República
V pelo discrime de seus gêneros dessemelhantes, pela consideração dos muitos
amantes de imagens e espetáculos. A apreciação das identidades de funções e
diferenças de natureza entre a comunidade de mulheres e a dos guardiães depende
sobretudo da correta aplicação do método de divisão por formas, empregado em
República V, consistindo na atribuição de semelhanças e dessemelhanças a
determinados gêneros. Mediante a referida divisão, entender-se-ia a multiplicidade
fenomênica não como um mero amálgama de partes indistintas, mas como um todo
58
compósito e completivo, pluralidade aparente, organizado entre gêneros que tanto
podem combinar-se quanto se excluirem mutuamente. Sócrates utiliza o método de
divisão, precípuo ao poder dialético, dizendo que a gênese e a educação das mulheres
assemelham-se às do homem, pois as fêmeas dos cães vigiam, caçam e fazem todas
as coisas em comum com os machos, não obstante sejam mais frágeis que eles. Se as
mulheres devem exercer as mesmas funções dos homens, é mister atribuir-lhes a
mesma educação e formação. O método de divisão por formas é preliminarmente
empregado a fim de detalhar as naturezas e as ocupações semelhantes e
dessemelhantes dos varões e mulheres no plano costumeiro, portanto, no âmbito
sensível, particularmente nas relações sociais instituídas na pólis clássica,
manifestando a premência de ser consoantes ao plano da natureza, respeitada a
homologia socrática entre natureza e convenção, não se reportando ainda à relação
entre formas inteligíveis no horizonte numênico.
Sócrates afirma que lhes parece haver, se efetuassem o que foi dito, muitas
coisas risíveis acerca dos temas falados, que seriam alheias ao costume (parà tò éthos)
(Rep.V 452a). Para muitos, é manifesto ser risível as mulheres exercitando-se nuas em
palestras na companhia dos homens, não apenas as jovens, mas também as anciãs,
assim como os velhos que se aprazem em exercitar-se em ginásios, o sendo
agradáveis de se ver. Porém, não é preciso temer os escárnios dos zombadores,
advinda uma mudança na ginástica, na sica, no manuseio de armas e na equitação,
sendo necessário avançar na rudeza dos usos, pois não muito tempo o que parecia
aos helenos ser sobretudo vil e risível, assim como parece ser aos bárbaros, que os
homens fossem vistos nus, fora principiado nos ginásios primeiro pelos cretenses e
depois pelos lacedêmonios, quando, exercitando-se, pareceu-lhes ser melhor
desnudar-se do que vestir-se. O risível aos olhos foi retirado pelo que se revelou ser o
melhor ao raciocínio (Rep.V 452d). O filósofo se opõe ao aparente imediato, referente à
filodoxia, pois quem se empenha antes em fazer rir, observando como risível algum
outro espetáculo do que é insensato e nocivo, ocupa-se ativamente de uma outra meta
do que a meta do Bem (n skopòn toû agathoû) (Rep. V 452d,e). A análise socrática
esmaece a oposição entre natureza e convenção, phýsis e nómos, reportada na
tradição sofística a Hípias de Élis e a Antifonte, revelando, pois, que a derrisão se
59
origina do não reconhecimento desse nexo precípuo. O escopo socrático intenta
superar a aparente oposição sofística entre a lei natural não convencional e a lei
convencional não natural, originada do desconhecimento do poder dialético que sustém
o método de divisão por formas, escrutinando semelhanças e dessemelhanças
aparentes e reais. O liame, rejeitado por Hípias de Élis e por Antifonte, é necessário à
consecução da melhor pólis. O livro V da República prepara o interlocutor para as
questões ontológicas atestadas nos livros VI e VII, onde se apresentam os gêneros
sensível e inteligível, visível e invisível.
Se se homologa haver para as naturezas diferentes as ocupações
respectivamente diferentes e se a natureza da mulher é diferente da natureza do varão,
não seria reprochável atribuir às diferentes naturezas ocupações semelhantes? O poder
da arte antilógica (he dúnamis tês antilogikês chnes), ironiza Sócrates, é nobre,
afirmando que muitos lhe parecem se lançarem inadvertidamente à antilogia, supondo
não rivalizarem, porém dialogarem (ouk erízein, allà dialégesthai)
16
, não sendo capazes
de examinar o que se diz ( legómenon episkopeîn) e diferir pelas formas
(diairoúmenoi kat’eide), mas apegando-se meramente ao nome mesmo (kat’autò
ónoma), utilizam-se uns contra os outros da contradição do que foi dito pela disputa e
não pelo diálogo (éridi, ou dialékto) (Rep.V 454a). Assim, fixando-se vigorosamente
apenas no nome, pela erística, rejeitando que naturezas diferentes tenham as mesmas
ocupações, não se examinou a forma da diferença e identidade naturais (eîdos tês
hetéras te kaì tês autês phýseos), quando se atribuiu as ocupações diferentes às
naturezas diferentes e as ocupações semelhantes às mesmas naturezas (Rep.V 454b).
Sócrates diz que não foram anteriormente instituídas em seu conjunto a natureza
idêntica e a natureza diferente (ou pántos tèn autèn kaì tèn hetéran phýsin), mas
privilegiou-se as formas da alteração e da semelhança (eîdos s alloióseos te kaì
homoióseos), correlatas às ocupações semelhantes (Rep.V 454c,d). Não se pensou na
16
Cf.Kahn (1996:326): “So a reader (who may or may not be familiar with the Meno and Euthydemus) will
recognize in the notion of dialegesthai mentioned in Republic V, and characterized there as the ability to
drawn relevant distinctions by ‘dividing according to kinds’, a reference to Plato’s own conception of
serious philosophical discourse. Such a reader is prepared, then, to give dialegesthai its new, more potent
meaning when it reappears in the context of the Divided Line at the end of Book VI”. Cf.Robinson
(1962:85): “The more detailed connotation of ‘eristic’ and ‘antilogic’ tends to be whatever Plato happens to
think of as bad method at the moment, just as ‘dialectic’ is to him at every stage of his thought whatever
he then considered the best method”.
60
identidade e na diferença absolutas, mas na identidade e diferença relativas, nas
formas particulares de semelhança e alteridade, atendo-se ao particular e
desconhecendo o todo, procedimentos próprios à antilogia erística, restrita às palavras
e a seus usos apenas argumentativos e refutativos.
17
A natureza do filósofo, pelo
contrário, se manifesta pelo cuidado com a natureza do todo, respeitando não as
identidades e diferenças absolutas meramente, mas também as relativas.
O médico e quem possui alma médica têm a mesma natureza, mas o carpinteiro
e o médico têm naturezas diferentes, todavia sejam em ambos os casos identidades e
diferenças apenas relativas. Se o gênero dos homens e o das mulheres parecem diferir
em relação a alguma arte ou à outra ocupação, é preciso atribuir-lhes certa diferença.
Se parecem diferir unicamente porque a mulher procria e o varão engendra, o foi
revelado que a mulher difere do homem a respeito do que foi dito. Se o gênero feminino
se difere do masculino relativamente, não significa que se diferenciem absolutamente,
pois se no plano biológico existe alteridade entre eles, no plano dos costumes, todavia,
existe entre ambos o gênero de identidade, podendo ambos, porventura, se
assemelharem. Portanto, é preciso que as fêmeas dos guardiães se desnudem,
vestindo-se de virtude em vez dos hábitos, devendo, com efeito, associar-se a eles na
guerra e na guarda da cidade (Rep.V 457a). O homem, ridicularizando ostensivamente
a nudez das mulheres, que se exercitam tendo como meta o melhor, colhe o fruto não
maduro do risível, parecendo não saber do que ri nem o que faz (Rep.V 457b). Carece-
lhe, infortunadamente, o poder dialético, pois diferindo o gênero humano em varões e
mulheres, apreende diferenças apenas parciais, não atentando, de modo algum, para a
relação recíproca entre o todo e as suas parcelas.
A dialética se difere da arte erística, pois esta se atém em convenções,
apartando o nome do ser, e aquela, distinguindo os gêneros, não é alheia à natureza e
ao costume. Privilegiando o poder dialético em face do poder antilógico, torna-se mister
diferenciar o dialético daqueles que exercem a mera antilogia. Sócrates propõe
17
Cf.Kahn (1996:298): “This passage is all the more interesting in that it is not thematically connected with
the central account of dialectic in the Republic, but it looks both backwards and forwards: backwards to
the contrast between dialectic and eristic that we will find in the Meno, Euthydemus and Phaedo, and
forward to the conception of dialectic as Division (dihairesis) according to kinds that is conspicuous in the
Phaedrus and later dialogues (Sophist, Statesman and Philebus) but otherwise scarcely noticed in the
Republic.
61
distinguir o filósofo dos muitos amantes de espetáculos, visando à natureza e função do
paradigma. O paradigma propicia ao homem retirar-se da vida hipnótica e onírica para a
vida desperta e sábia. Um bom pintor, tendo desenhado o mais belo dentre os
paradigmas humanos e concedendo-lhe traços adequados, não seria menor se não
provasse se tal homem seria ou não capaz de existir, pois o paradigma possui realidade
autônoma, não precisando de uma evidência empírica. Sócrates teria anteriormente
produzido, pelo discurso, o paradigma da boa cidade, o sendo pior, se não
conseguisse enunciar mediante indícios e provas se esta poderia ou não efetivar-se.
Sócrates busca estabelecer pelo método de hipóteses se é possível que algo seja
executado como se fala ou se é próprio à natureza que a execução aproxime-se menos
da verdade do que o discurso (Rep.V 473a). A necessidade de que as palavras e os
discursos se aproximem do verdadeiro constitui um tópico central dos Diálogos
platônicos, revelando a principal diferença entre o filósofo e os outros muitos produtores
de imagens e espetáculos, o poeta, o retor e o sofista, pois enquanto esses produzem
imitações de simulacros, doxásticas e fantásticas, o filósofo realiza a imitação sábia e
verdadeira, observando em sua arte o paradigma, sintetizando ‘práxeis’ e ‘léxeis’.
O paradigma é, por intermédio da grafia, tanto escrita quanto pictórica, impresso
na alma do ser. Se o reto discurso sobre a melhor cidade é mais verdadeiro do que a
sua presumível consecução, por causa de sua natureza paradigmática, cabe
unicamente ao filósofo produzir o discurso verdadeiro, distinguindo-se dos meros
produtores de imagens, o retor, o poeta e o sofista, imitadores de simulacros. O
dialético, afeiçoado à filosofia e à filomatia e oposto à mera filodoxia, é o demiurgo de
imagens verdadeiras. Se os filósofos, diz Sócrates, não reinarem nas cidades ou se os
atualmente denominados reis e dinastas (hoí nûn legómenoi basilês kaì dynástai) não
se tornarem pois legitima e adequadamente filósofos, conjugando no mesmo poder a
política e a filosofia (dýnamis te politiké kaì philosophía), não cessação nem para os
males das cidades nem para os do gênero humano (Rep.V 473c,d). Se o filósofo não
pode ser constrangido a mostrar em ato, tendo detalhado apenas em palavra, que é
necessário fazer as formas da justiça e do homem perfeitamente justo nascer, isto
provém da própria relação de afastamento entre a ação e a palavra, experimentada em
seu tempo de degenerescência política, impondo ao filósofo aproximar, pelo discurso
62
verdadeiro, a melhor cidade de seu paradigma, do verdadeiro, mesmo que uma grande
onda o inunde no risível e no descrédito da multidão. O filósofo, por sua postura e
afeição à verdade e ao conhecimento, afasta-se da opinião dos muitos.
Sócrates ressalta que é preciso diferenciar quem são os filósofos, deferindo-lhes
notoriamente o princípio, expondo que lhes cabe, apreendendo a filosofia, comandar na
melhor cidade, diferentemente dos outros que não a apreendendo, apenas obedecem a
quem comanda. Quem ama, não se afeiçoa por uma parte, mas pela completude do
desiderado. Porém, todos, na flor da idade, excitam, com sua beleza, e movem o
amante de jovens e ávido de amor, parecendo-lhe serem dignos de seu cuidado e
afeição. Os amantes de vinhos também deleitam-se com todos os vinhos. O filósofo
distancia-se dos amantes da honra, pois o que deseja, deseja-o em sua completude.
Os amantes da honra, não sendo capazes de comandar a armada, governam apenas
um terço e não sendo honrados pelos venerados e magnânimos, satisfazem-se em
serem honrados pelos medíocres e vulgares, sendo completamente desejosos de
honra. O desiderante, todavia, deseja todo o aspecto e não uma parcela, assim como o
filósofo é desejante da sabedoria, não em uma parte mas em seu todo completivo (Rep.
V 475b), pois quem quer degustar despreocupado toda a ciência, dedicando-se jubiloso
ao aprendizado e revelando-se insaciável, é com justiça chamado filósofo (Rep.V 475c).
Porém, aquele que, sendo jovem, suporta penosamente os estudos, não discernindo o
que é útil ou nocivo, não pode ser denominado filômata e filósofo
18
. O filósofo ama a
natureza do todo, não descurando da relação entre o todo e suas partes, de suas
relações recíprocas, tornando-se, por sua arte e seu ofício, verdadeiramente dialético.
A apreciação do ofício do filósofo se realiza pelo exame das muitas outras
espécies de habilidade, exercidas no nível da aparência, ou seja, da multiplicidade
fenomênica e da verossimilhança. O esforço socrático em definir o filósofo perante os
muitos amantes do espetáculo e do ouvir se efetua no próprio âmbito da parecença,
18
Cf. Brisson (Brisson,2002:45): “Jusqu’à Platon, le terme sophía peut recevoir n’importe quel contenu
dans la mesure la sophía n’est, dans le monde sensible, liée à aucun contenu particulier. (...) Peut
donc être qualifié de philósophos quiconque fait l’apprentissage d’une sophía, quelle que soit la nature de
l’activité impliquée (...) C’est aussi dans ce sens large qu’Isocrate utilise les termes philósophos et
philosophía. Mais pour Platon, le terme philosophía ne désigne plus l’apprentissage d’une sophía
humaine (...) Elle devient aspiration à une sophía qui dépasse les possibilités humaines, car son but
ultime est la contemplation d’un domaine d’objets, le monde des formes intelligibles, dont le monde des
choses sensibles n’est qu’un reflet”. Cf. Dixsaut (1994), Nightingale (1995).
63
pois esses não superam, com suas artes, a esfera dos verossímeis. Os amantes de
espetáculos, considerados ávidos de honra, se aprazem em aprender, porém é penoso
colocar os amantes do ouvir como filósofos, pois esses não pretendem voluntariamente
dirigir-se para as discussões e para a diatribe, mas, tendo emprestado os ouvidos para
escutar todos os coros, correm para as dionísias, não se ausentando nem nas festas
das cidades-estado nem nas das vilas (Rep. V 475d). Os amantes do ouvir dedicam-se
em aprender as artes medíocres, não sendo filósofos, mas símiles a filósofos. Os
verdadeiros filósofos amam o espetáculo da verdade (philotheámonas tês aletheías)
(Rep. V 475e). O discrime entre a aparência e a verdade possibilitaria a diferenciação
entre os amantes de espetáculos e da verdade. A aparência, posta a sua natureza
variegada, se manifesta numa comunidade recíproca de atos e corpos, cabendo ao
filósofo, amante da verdade, discriminar as formas em si que a constituem, discernindo
o real de suas imagens multifárias. O belo e o feio, entendidos como contrários, são, de
fato, dois, mas cada um é um, apreendido isoladamente, assim como o justo e injusto,
bem e mal e todas as espécies. Mas, aparecendo por toda a parte em comunidade de
ações, de corpos e reciprocamente, cada um parece ser muitos (pollà phaínesthai
hékaston)
19
(Rep.V 476a). A pluralidade sensível é sujeitada à co-presença dos
opostos, ora algo parece ser grande ora parece ser pequeno, ora alto ora baixo, pois os
visíveis, em sua totalidade aparente, mantêm mútua comunidade. Sócrates evidencia o
discrime entre, por um lado, os amantes de espetáculo, os amantes da técnica e
homens de ação e, por outro, os filósofos, haja vista que os amantes do ouvir e de
espetáculos deleitam-se com as belas vozes, belas cores e figuras e todas produzidas
a partir delas, todavia seu pensamento (diánoia) é incapaz de observar e também
deleitar-se (ideîn te kaì aspásasthai) com a natureza do belo em si (n phýsin autoû toû
kaloû) (Rep. V 476b). Assim, os homens capazes (hoí dunatoì) de ascender ao belo (
kalòn) e de observá-lo em si (horân kath’autò) são verdadeiramente raros (Rep. V 476
c). O filósofo possui a capacidade dianoética de contemplar o belo em si, não se
aprazendo com o meramente belo, com a simples aparência de beleza, passível de
turvar o julgamento e a opinião dos muitos. A circunscrição da figura do filósofo se
19
Cf.Irwin (1985:264): “In Book V Socrates describes the philosophers as lovers of truth, in contrast to the
‘lovers of sights’ who are interested only in sensible things and properties (475d1-e4). The just and the
unjust, for instance, are two, and each is one, but each is combined with different bodies and actions”.
64
realiza em oposição aos supracitados amantes de imagens e de parcelas, operando
uma cesura radical em relação àqueles.
O ofício filosófico consiste em discriminar, pelo pensamento, os múltiplos
sensíveis de suas formas inteligíveis correlatas, de sorte que o mundo fenomênico pode
ou não revelar o inteligível por meio do sensível. Se contemplamos algo belo, é porque
possui a aparência do belo, não sendo realmente belo. A realidade fenomênica, dada
sua natureza compósita manifesta na comunidade de corpos e ações, pode induzir os
amantes do ouvir e de espetáculos ao erro. A relação de afastamento entre esses e o
filósofo é evidenciada na relação figurativa entre o sonho e a vigília, entre, portanto, a
vida onírica hipnótica e a vida desperta sábia. Se o homem reconhece apenas belas
ações, haja vista que se atém meramente ao sensível, mas não reconhece nem o belo
em si nem é capaz do mesmo modo de dirigir-se para o que lhe concede o
conhecimento, ele vive em sonho. O sonhar o é outra coisa senão, tanto em sono
quanto desperto, conduzir-se para o símile, acreditando ser este o o símile, mas o
próprio modelo, confundindo o paradigma com suas múltiplas imagens, o inteligível com
os seus ltiplos sensíveis. Mas, quem dirige-se retamente para o belo em si, sendo
capaz de contemplá-lo em si e em seus participantes, não pensando o belo nem por
meio de seus participantes nem esses mediante o belo, parece viver desperto e não em
sonho. Assim, o pensamento (diánoia) daquele que conhece (gignóskontos) é
retamente denominado juízo (gnómen), enquanto quem opina (doxázontos) é nomeado
opinião (dóxan) (Rep.V 476d). Se o conhecimento (gnôsis) incide sobre o ser (tò ón) e a
nescidade (agnosía) sobre o não-ser (ón), há, precisamente, um intermediário entre
o ser e o não-ser, entre os horizontes ôntico e meôntico, entre a luz diurnal e a noite
escura, entre a ciência (epistémes) e a ignorância (agnoías) que é a opinião
20
(Rep.V
477b). A opinião é entendida como um intermediário entre a plenitude do ser e de sua
inteligibilidade, revelada pela posse da ciência e da intelecção, e o recôndito lugar do
esquecimento, partilhado pela ignorância. A opinião é considerada um poder diferente
da ciência (állen dúnamin epistémes) (Rep.V 477b), não podendo ser confundida com a
20
Cf.Kahn (2002:83): Between immutable Being and unknowable Not-Being he (Plato) has admitted the
mixed realm of Becoming, which both is and is-not. Plato has thus accepted the derivative, inferior reality
of the phenomenal realm the realm that Parmenides’ goddess seems to regard solely as a region of
error and falsehood”. Cf. Irwin (1985:265).
65
própria ciência, haja vista que possui gradação ontológica inferior ao ser puro imiscido e
superior ao não-ser absoluto. O sofista habita, pois, essa região intermediária correlata
à opinião e descrita alegoricamente no livro VII.
A opinião, residindo no intermediário entre o ser e o não-ser, pode ser ou falsa
ou verdadeira, de sorte que a teoria platônica da ‘dóxa’ repousaria na evidência do
caráter dicotômico e dúplice da opinião ante a perspectiva erística da impossibilidade
da opinião falsa e do discurso antilógico. Se a multiplicidade fenomênica aparece numa
comunidade de corpos e ações, urge discriminar suas formas constitutivas para que
não se confunda o belo com o feio, o justo com o injusto e todas outras formas. A
opinião falsa adviria do não reconhecimento da pluralidade sensível na forma inteligível.
A opinião reta e verdadeira, a fim de se tornar ciência, deve ser concatenada pelo
raciocínio da causa. Se a via da opinião se manifesta na ontologia parmenídea
incompatível à via da verdade, ela aparece no livro V da República como intermediário
entre as regiões meôntica e ôntica, como percurso necessário ao desvelamento do
conhecimento, da verdade e do ser. A crítica ao estatuto epistemológico da opinião se
reporta à obtusidade daqueles que não aceitam superar o campo da visibilidade,
imersos apenas no mundo fenomênico. O filósofo, ultrapassando o âmbito doxástico,
pode compreender a participação ou não da esfera aparente na esfera numênica, do
que é em si, e as múltiplas manifestações do ser no território sensível.
A asserção de que a opinião é um poder diferente da ciência nos põe a questão
de saber o que é o poder. Os poderes (dynámeis) são um gênero dos entes,
propiciando-nos efetuar aquilo que nos é próprio, por exemplo, a visão e a audição. O
poder da visão seria um análogo sensível do poder dialético. A ciência é considerada
de todos poderes o mais ativo (pasôn dynámeon erromenestáten) (Rep. V 477d),
adquirida pelo reconhecimento da relação ontológica entre a pluralidade fenomenal e
seus paradigmas correlatos. A opinião, relacionando-se tanto com o ser quanto com o
não-ser, nos possibilita opinar. A opinião é diferente da ciência, tendo ambas poderes
distintos. Porém, em que consiste esta diferença? Se o conhecido (gnostón) é o ser (
òn), dado o liame entre conhecimento e ser, seria o opinado (doxastòn), por causa de
seu poder diverso, algo diferente dele ou, então, seria o próprio ser (òn) (Rep.V 478
b)? Sócrates procede à avaliação do estatuto epistêmico da opinião, inquirindo se
66
podemos opinar sobre o não-ser ( mè òn) ou se é impossível que o não-ser (tò mè ón)
porventura seja opinado. Quem opina (ho doxázon) tem a opinião de algo ou sobre
nada opina (doxázein medén)? Assim, é preciso entender de que modo a opinião,
mesmo mantendo o nexo com o não-ser, pode ter uma condição ontológica, podendo
tanto participar da existência quanto ser proferida. A ponderação socrática do provável
estatuto epistemológico do não-ser nos reporta ineludivelmente à reflexão eleata acerca
da rigorosa antinomia entre ser e não-ser. A aferição ontológica da opinião permitiria ao
inquiridor socrático assegurar, ante a via parmenídea da opinião, o campo fenomênico.
Se aquiescermos com a idéia propugnada por Charles Kahn (2001) de que o eleatismo
constitui importante influxo para a elaboração da teoria platônica das Formas,
entenderiamos a premência de proteger, pela opinião, os limites epistemológicos da
pluralidade fenomenal correlata ao território político, porquanto a lógica eleata suprime,
pela rejeição absoluta do não-ser, o fundamento epistêmico do verossímil e da imagem.
As leituras redutoras do platonismo à teoria dos dois mundos descuram da relevância
da esfera opiniática como resposta à inflexível antinomia parmenídea, baseada na
supressão do não-ser. Se o âmbito doxástico é proferido como intermediário entre as
regiões ôntica e meôntica, entre o ser puro imiscido e o não-ser absoluto, a análise
minudente das relações entre o ser, o não-ser e a opinião, entre a opinião, o discurso e
a imaginação verdadeiros ou falsos, realizar-se-á no Sofista, de sorte que esse texto
não corresponde à suposta ruptura em relação à presumida teoria canônica das
Formas, mas o refinamento dos tópicos implicados e anunciados em República V
21
A vida onírica e hipnótica mantém o ser na nescidade, na privação de ciência, no
não-ser, correlato ao âmbito do esquecimento. A ignorância, concebida privação do
poder da visão, o compele a compreender a imagem como paradigma, o símile como
21
A opinião habita entre as regiões ôntica e meôntica, podendo tanto devir, por sua participação no ser,
reta opinião quanto, por sua participação no não-ser, falsa opinião. Cf. M (Mié,2004:67): La doxa
representa un uso de la razón que, estando vinculado com la falsedad, articula ser y no-ser. La doxa
combina ambos factores en la aprehensión de sus objetos propios: las imágenes. En este horizonte se
inscribe la discusión sobre la opinión en República V. Éste es el mismo punto que se propone destacar el
Sofista y ese acceso a la cuestión de lo falso viabiliza, en este último diálogo, la solución al problema
eleático de la falsedad, que había sido tocado ya en el temprano Eutidemo, donde los erísticos negaban
que exista discurso falso. La relación entre ser y no-ser se presenta en República V con ocasión del
tratamiento de la pseudès dóxa”. Cf. Casertano (2002:72). Se o não-ser não pode ser, de acordo com o
poema parmenídeo, nem dito nem pensado, pois pensar e ser são uma única e mesma coisa, Protágoras
e Górgias teriam, para Casertano, inferido dessa equação o caráter veritativo de todo discurso possível,
mesmo daqueles que, porventura, afirmam coisas contrárias a respeito de um mesmo tema.
67
modelo, confundindo-os, ocasionando a indistinção entre a gênese e a essência, o devir
e a idéia. A opinião é um intermediário (metaxù) entre a ciência (epistéme) e a
ignorância (agnoías), entre o mais elevado poder e o lote ínfero de conhecimento, pois
aquele que opina, opina sempre acerca de algo (Rep.V 478b). A opinião não é nem
ignorância (ágnoia) nem conhecimento (gnôsis), não a sobrelevando, portanto, em
obscuridade nem o superando em clareza, parecendo ser, por sua natureza
intermediária, tanto mais obscura que o conhecimento quanto mais evidente que a
ignorância (Rep.V 478c). A opinião é um intermediário entre o ser puro imiscido (toû
eilikrinôs óntos) e o não-ser absoluto (toû pántos óntos) (Rep.V 478d), participando
de ambos, do ser e do não-ser (toû eînai kaì eînai) (Rep.V 478e). A opinião não é
mero contraditório do conhecimento, não é o não-saber, mas a mescla comum entre o
obscuro e o luminoso, entre o não-ser e o ser, entre os territórios ôntico e meôntico,
entre a nescidade e o conhecimento, entre o sono e a vigília. Sócrates defende que os
múltiplos usos costumeiros dos muitos sobre o belo e acerca das outras espécies
percorrem o intermediário entre o não-ser e o ser imiscido (metaxú toû mè óntos kaì toû
óntos eilikrinôs), sendo por causa da opinião, poder intermediário ( metaxù dunámei),
que o intermediário é apreendido (Rep.V 479d). O opinado reside no intermediário entre
o ser imiscido e o não-ser absoluto. Os admiradores das belas coisas não observam
nem o belo em si (autò tò kalón) nem são capazes de dirigir-se para quem poderia
conduzi-los e, opinando sobre coisas justas, não conhecem o justo em si, porque
requer ser apreendido isoladamente, enquanto os admiradores do que é em si, do que
se mantêm sempre idêntico e imutável, conhecem e não opinam (Rep.V 479e).
Portanto, estes deleitam-se e amam o que incide sobre o conhecimento, enquanto
aqueles o que incide apenas sobre a opinião reportada apenas ao horizonte
fenomênico, amando e contemplando belas vozes, belas cores e congêneres, e não
suportando o belo em si como um ser sem mistura, são retamente nomeados amantes
da opinião (philodóxous), nunca denominados amantes do saber (philosóphous) (Rep.V
480a). A opinião o é em si mesma objeto de opróbio, mas reprochável é aprazer-se
meramente com sua posse, pois seu escopo limita-se ao território fenomênico relativo à
multiplicidade aparente. A referência à filodoxia prepara o argumento para a exposição
de sua natureza antitética, a filosofia, considerando que o filósofo, por seu poder,
68
desvela na pluralidade complexa do sensível o ser real. A filosofia, por causa da
comunidade e participação no ser idêntico e imutável, portanto, na natureza
paradigmática, se constitui ante a filodoxia, por causa da comunidade apenas com o
múltiplo, com a verossimilhança. A multiplicidade sensível requer, porém, ser entendida,
para o filósofo, como a manifestação do tecido das formas inteligíveis.
A filosofia é determinada em oposição à filodoxia, o amante do saber em
oposição ao amante de opiniões e espetáculos, a vida desperta e sábia em oposição à
vida onírica e hipnótica, portanto, a vigília ao sonho, de sorte que constituem termos
antitéticos, cujo despertar se realiza pela conversão da alma do ínfero para o súpero.
Somente a dialética é capaz de dirigir o olhar do filósofo para o verdadeiro, propiciando-
lhe superar a esfera das aparências, do meramente verossímil. Sócrates pergunta a
Glauco quem deveria ser o melhor condutor das cidades: os filósofos que possuem o
poder de apreender o que se mantém sempre como tal (aeì katà tautà), ou os não-
filósofos que erram tanto no múltiplo quanto no multifário, assegurando-lhe que se
devem instituir como guardiães aqueles que lhes pareceria ser capazes de guardar as
leis e os costumes das póleis (mous te kaì epitedeúmata póleon) (Rep. VI 484c), haja
vista que a guarda deve ser concedida àqueles que vêem e não aos cegos, não
havendo, porém, diferença entre esses e aqueles que se privam do conhecimento do
ser (tês gnóseos toû óntos), pois não têm em suas almas nenhum paradigma evidente
(enargès parádeigma) e nem são capazes de dirigir os seus olhares para o mais
verdadeiro (alethéstaton), do mesmo modo que na pintura (graphês) (Rep.VI 484c).
Mediante o termo graphê que pode designar tanto o ato de escrever quanto o de pintar,
pois ambos se referem ao gênero visível, segundo Brisson (1990:52), a crítica da
poesia é indissociável da crítica das artes plásticas, particularmente, da pintura e da
escultura, haja vista que a performance oral dos poetas produziria no ouvinte uma
aparência sensível, materializando os mitos em imagens, ou seja, o poeta assim como
o artista plástico é um produtor de imagens: o poeta, por intermédio de uma magia
simpática, aliena o seu ser sensível, devindo um taumaturgo e, por uma espécie de
animismo, identifica-se aos “deuses, aos numes, aos habitantes do Hades, aos heróis e
aos homens antigos” (Brisson,1990:50). A poesia escrita, reservatária da tradição oral-
mnemônica dos séculos obscuros, apresenta-se, para Sócrates, como reminiscência de
69
uma cultura puramente mítica, sagrada, cujo critério de evidência residiria na
“autoridade das Musas, filhas de Zeus e Mnemosyne e por um testemunho visual,
indireto ou direto” (Brisson,1990:52). A crítica da poesia e da pintura residiria, assim,
não na imitação sábia e verdadeira, mas na imitação de simulacros, pois tanto o poeta
quanto o pintor produzem suas artes não a partir de um paradigma evidente, mas por
intermédio de simulacros.
Havelock, em seu estudo sobre a psicologia da declamação poética, atesta o
poder do poeta relativo à transmissão do saber imemorial, pois em uma cultura
prevalentemente baseada na oralidade, o poeta domina não apenas a memória
individual, mas a memória coletiva. A sua poesia consistia num mecanismo de poder
sobre a coletividade, pois era o instrumento da Musa e neto de Mnemosyne.
Sócrates procura definir para Glauco a noção de filomatia, desejo de aprender,
propriedade indispensável para o condutor da cidade. Sócrates anui que as naturezas
dos filósofos aspiram ao aprendizado, manifestado por aquela essência (ekeínes s
ousês) que sempre é (tês aeì oúses), não submetida nem à geração nem à corrupção
(genéseos kaì phtorâs) (Rep.VI 485b), perguntando-lhe se haveria algo mais próprio ao
saber do que a verdade e se é possível a uma mesma e única natureza, ao mesmo
tempo, amar saber e amar mentir (Rep.VI 485c). Glauco diz-lhe que não, porque a
filomatia requer ser cultivada desde a juventude, aspirando a toda verdade, pois
aqueles que desejam verdadeiramente os conhecimentos e seus similares, sendo
realmente filósofos, têm o prazer da alma nela e por ela mesma, abandonando o prazer
corpóreo. A estreiteza de espírito, para esses amantes, é contrária à alma que tende
sempre a concentrar-se no todo e no conjunto das coisas divinas e humanas (toû hólou
kaì pantòs theíou te kaì anthropínou) (Rep.VI 486a), pois tendo um grande pensamento
(dianoía megaloprépeia), contemplam, por um lado, o conjunto do tempo e, por outro, o
conjunto dos seres, não considerando grande valor a vida humana, porque não teme
morrer (Rep.VI 486b). O filósofo não teme a morte, à medida que purifica a sua alma,
liberando-a e separando-a dos desejos e cadeias corporais. A frivolidade é o
contraditório da filomatia, pois uma natureza frívola não participa da verdadeira filosofia.
A alma verdadeiramente filosófica é mnemônica, pois tem a capacidade de anamnese,
e se não a fosse, seria vazia de ciência. Segundo Sócrates, é preciso que a alma
70
dianoética, cujo poder é o pensamento, possua, além da filosofia, filomatia e da
memória, a medida (enmetron) e a boa graça (eúcharin), espontaneamente guiando-se
para a idéia do ser (epì tèn toû óntos) (Rep.VI 486d), contraditória ao não-ser, à
nescidade. Sócrates rejeita qualquer ocupação que não seja exercida pela memória
(mnémon), bom aprendizado (eumathés), magnanimidade (megaloprepés), boa graça
(eúcharis) e que não seja amiga e congênere (phílos te kaì sungenès) da verdade
(aletheías), justiça (dikaiosýnes), temperança (sophrosýnes) e virilidade (andreías)
(Rep.VI 487a). A filosofia e a filomatia, presentes na alma remêmora, na vida dotada de
saber, são atributos indispensáveis para o condutor da própria cidade.
A objeção de Adimanto ao encômio socrático da filosofia evidencia o
afastamento do filósofo da multidão. Adimanto rejeita o louvor ao filósofo, pois, para ele,
todos aqueles que se dedicam à filosofia, devem usufruí-la na juventude até o término
de sua educação. Porém, ocupando-se dela por muito tempo, tornam-se, segundo
Adimanto, extravagantes, totalmente viciosos e ineptos para conduzir corretamente as
cidades, mesmo parecendo serem eqüânimes por causa de sua educação e formação.
O vilipêndio de Adimanto é vigorosamente refutado por Sócrates, para quem o
sentimento que as cidades infligem aos homens eqüânimes é o mais penoso. A defesa
do filósofo supõe o uso de recursos pictóricos para melhor descrevê-lo, pois, a fim de
realizar sua apologia, é mister, conforme Sócrates, desenhá-lo, reunindo muitos traços,
assim como os pintores, misturando animais fabulosos e congêneres, pintam (hoi
graphês gráphousin) (Rep.VI 488a). A arte do timonear é uma imagem precípua para
evidenciar o tratamento concedido ao filósofo nas cidades, haja vista que a pletora dos
tripulantes não julga ser necessário ao verdadeiro timoneiro o estudo das estações e
dos anos, do céu e dos astros, nem supõe serem capazes de obter seja por arte seja
por empenho o timonear, considerando o seu piloto um metereólogo, tagarela e inepto
(meteoroskópon te kaì adoléschen kaì achrestón) (Rep.VI 488d,489a), atributos
geralmente concedidos ao filósofo. A imagem detalhada do timoneiro explicita a
condição do verdadeiro filósofo nas cidades, à medida que a comparação entre eles
reside na ausência de filotimia e na plena aquisição da filomatia. O vitupério ao filósofo
se origina do apedeutismo e da amusia. Mas, a maior e mais violenta acusação contra
a filosofia surge dos detratores que afirmam praticá-la, considerando os filósofos
71
totalmente viciosos e inaptos. A difamação do filósofo nasceria da insciência e da
calúnia. Porém, o impostor jamais participaria da verdadeira filosofia, porque o genuino
amante da filomatia se esforça naturalmente para atingir o ser, sem se prender às
múltiplas e cambiantes aparências de cada coisa e, sem desanimar, apreende, pela
alma com o apoio do raciocínio, a natureza de cada ente, de sorte que, por uma
espécie de congeneridade, se nutre, conhecendo a verdadeira vida, misturando-se e
combinando-se ao ser real, produzindo o intelecto e a verdade (noûn kaì alétheian)
(Rep.VI 490a,b). A verdade, hegemônica, não tem como ácolito um coro de males, mas
a pureza e a justiça, acompanhada da temperança. A coragem, a eumatia, a
magnanimidade e a memória são qualidades naturais da alma filosófica e racional, às
quais a multidão, subordinada à multiplicidade das opiniões, não é capaz de se aplicar,
permanecendo no horizonte da ignorância.
Assim, há bens que corrompem e desviam a natureza filosófica da filomatia,
como a beleza, a riqueza, o vigor corpóreo, as potentes alianças na cidade e
congêneres, haja vista que a melhor natureza, submetida a um regime hostil, pode se
tornar pior do que uma natureza medíocre. As almas mais bem dotadas, sujeitas a uma
educação, se tornam eminentemente s, porquanto se a natureza filosófica
recebe um aprendizado apropriado, necessariamente almeja ao melhor crescimento.
Porém, se essa foi semeada e nutrida em um terreno impróprio, hostil, origina-se
viciosa. Os vituperadores do filósofo, sentados, pois, conjuntamente nas assembléias
políticas, nos tribunais, nos teatros, nos acampamentos e em outras reuniões públicas
reprovam ou anuem, com muito alarde, determinados atos ou palavras, excessivamente
exortando-os ou aplaudindo-os (Rep. VI 492b). O sofista manifestar-se-ia na massa
indistinta. A natureza suprema e virtuosa do filósofo, desenhada por crates,
evidencia o seu real afastamento da multidão. Os professores e sofistas, não podendo
persuadí-la, ameaçam-na com desonra (atimía), punindo-a com multas e ameaças de
morte (Rep.VI 492d). O filósofo, não se sujeitando à persuasão do coro dos males, é
apenado com a privação dos seus direitos. Ressalta-se a própria condição do filósofo
perante os atenienses, pois não houve, não há e não haverá, para Sócrates, um caráter
humano educado pela virtude que se apresente, todavia, adverso à educação dos
citados sofistas e supostos educadores, excetuando, conforme o provérbio, o caráter
72
divino (Rep.VI 492e), do qual a natureza filosófica aspira aproximar-se. Constitui-se um
tópico essencial dos Diálogos a congeneridade entre o filósofo e o divino, manifestada
de modo eminente pelo parentesco intelectual na ulterior imagem do Sol e, de modo
específico, no poder e idéia da supraessencialidade do Bem. O horizonte político,
nutrido pela alma dianoética e mnemônica, é congênito ao horizonte cultual, pois o
filósofo não compreende a sabedoria mediante o impulso e os prazeres de uma massa
multiforme reunida nas assembléias, seja aplicados à escrita, à música ou à política, e à
medida que não subordina a consideração da beleza de um poema, duma obra ou de
uma benfeitoria citadina à opinião da multidão, à pluralidade sensível, importando-lhe
prevalentemente o belo em si e não as múltiplas e cambiantes belas aparências dum
poema escrito ou de uma pintura adornada. A relação que o filósofo mantém com as
idéias e com a idéia supra-essencial se assemelha, para René Schaerer (Schaerer,
1938:238), ao liame que o herói homérico tem com seus deuses, porquanto Platão foi
educado, para esse autor, na grande escola de Homero, ressaltando a permanência do
discurso mítico no discurso filosófico. Se o discurso mitopoético almeja hinear a
comunidade entre deuses e mortais, empregando o recurso ao visível, o discurso
filosófico aspira a hinear a mútua comunidade entre os homens e as idéias.
As qualidades constituintes da alma dianoética devem ser pensadas pela forma
do Bem (toû agathoû idéa), considerada o maior conhecimento (mégiston máthema), da
qual todas as coisas justas e as outras retirariam proveitos e utilidades (chrésima kaì
ophélima) (Rep.VI 505a). Assim, é mister reconhecer o que é o Bem (agathòn), se é
ciência (epistémen), prazer (hedonén) ou se porventura é um outro além destes (Rep.VI
506b). Para Sócrates, há muitas coisas belas, boas e singulares que afirmamos existir e
que discernimos pela razão, ao mesmo tempo em que afirmamos haver o belo em si e o
bem em si; do mesmo modo, sobre todas as coisas que são instituidas como ltiplas,
cada uma refere-se a uma idéia única (kat’idéan mían) assim como a uma essência
(miâs oúses) (Rep.VI 507b). A apreensão da idéia ante a pluralidade fenomenal remete-
nos à tese da forma em si e da multiplicidade aparente, em que “cada idéia refere-se à
indivisibilidade e a sua dispersão fenomenal à divisibilidade” (Cherniss,1980:47),
ulteriormente consideradas como o limite e o ilimitado. A multiplicidade aparente, por
um lado, é visível, mas não inteligível (mèn horasthaí, noeîsthai d), as idéias,
73
por outro, são inteligíveis, porém não visíveis (tàs d’au idéas noeîsthai mén, horasthai
d’oú) (Rep.VI 507b), de modo que as coisas visíveis ( horómena) são apreendidas por
intermédio da vista (ópsei), as audíveis pelo ouvido, enquanto todas as coisas sensíveis
(aisthetá) pelos outros sentidos (taîs allais aisthésesi) (Rep.VI 507c). O demiurgo dos
sentidos trabalhou, com efeito, mais arduamente no poder do ver e ser visto (tèn toû
horân te kaì horásthai dýnamin) do que em outros (Rep.VI 507c). A atividade
demiúrgica, engendrando os sentidos, privilegia o poder de ver e ser visto. O ouvido e a
voz, todavia, não demandam um outro gênero, para ouvir e para ser ouvido, pois se não
sobrevier o terceiro, um ouvirá e o outro certamente será ouvido. O poder da visão e o
poder do ser visto necessariamente demandam um terceiro gênero que é a luz, pois
existindo na vista a visão, e tentando o possuidor utilizá-la e havendo também as cores
nas coisas, se não houver necessariamente outro liame, terceiro gênero, gerado para
isso, sem ele, a visão não veria e as cores seriam invisíveis. Ressalta-se, portanto, a
reiterada remetência ao campo visual, sintetizada na homologia entre as formas do Sol
e a do Bem, mostrando o componente figurativo e estético da expressão forma do Bem
ante a presumível noção de existência separada, propugnada por Aristóteles. No abono
dessa defesa, salientar-se-ia a prevalência do poder de ver e ser visto causado pelo
terceiro gênero e resultante da ação completiva demiúrgica, de sorte que a esfera da
sensibilidade imita os mecanismos da inteligibilidade. A cuidadosa relação de
semelhança entre o percipiente e o percebido imitaria a relação de congeneridade entre
a alma filósofa e as coisas inteligíveis.
O paradigma da visão, enquanto órgão superior de sensação, é evidenciado em
República VI 507 d, pois entre o percipiente, elemento ativo, identificado à visão, e o
percebido, elemento passivo, identificado ao que é visto, um terceiro gênero que é a
luz, conspícuo liame que unifica o sentido do poder da visão e o poder de ser visto.
Sócrates, expondo a Glauco ser a luz o terceiro gênero, indaga-lhe quem poderia
dentre os deuses do céu indiciar ser o soberano da luz, pois esta faz a nossa visão ver
(ópsis horân) o melhor possível e as coisas visíveis serem vistas ( horómena
horâsthai) (Rep.VI 508a), de sorte que é manifesto ser o Sol a causa da visão. A visão
não é o Sol, nem ela, nem em o que devém, que denominamos vista. Porém, dentre os
órgãos dos sentidos a visão é o mais semelhante à forma do Sol. O Sol não é a visão,
74
sendo o seu causador e por intermédio dela mesma é visto. O Sol é considerado o
rebento do Bem (tòn toû agathoû ékgnonon), tendo sido gerado pelo Bem conforme a
sua própria proporção, analogia: o Bem está no lugar inteligível em relação ao intelecto
e às coisas inteligíveis (nooúmena), assim como o Sol está no lugar visível em relação
à visão e às coisas visíveis ( horómena) (Rep.VI 508b,c)
22
. Se o Sol é, no lugar
sensível, o causador da visão, o Bem é, no lugar inteligível, o causador da intelecção.
Quando alguém não mais dirige seus olhos àquelas coisas, em cujas cores não mais
incide a luz diurnal, mas meramente dirige à luminosidade noturna, esmaecidamente
e parece ser semelhante a cego, como se não houvesse uma visão pura de toda
mistura (Rep.VI 508c). Mas, quando o Sol fulge a sua luz sobre aquelas coisas, com
clareza (Rep.VI 508d). A luz diurnal, a luminosidade noturna e a noite escura referem-
se, figurativamente, ao ser o misturado, à opinião, intermediário entre o ser puro
imiscível e o não-ser absoluto, e, enfim, ao não-ser. Na leitura de Brisson (Brisson,
1990:53), os filósofos do período clássico “privilegiam a vista, em que a imagem e a
parecença descrevem uma marcha legítima, uma via de acesso incontornável ao que
de outro modo permaneceria oculto”.
O âmbito fenomênico é o território do que se apresenta à visão, tendo como
fonte e princípio o Sol, filho do Bem, poder e idéia supra-essencial, e seu ocultamento,
privação da luz, é considerado como o horizonte do esquecimento, êxodo da memória e
da anamnese. O Sol é o rebento do Bem e sua função, no lugar visível, é análoga à do
Bem, no lugar inteligível, de sorte que o conhecimento dialético se realiza por causa do
Bem. O Sol é a causa sensível da manifestação de todo ente, enquanto o Bem é a sua
causa inteligível. Não se trata de definir o que é o Bem em termos de uma lógica
apodíctica da identidade, todavia se trata de definir a sua função para o poder dialético
de acordo com a compreensão do ser, da verdade e do conhecimento. A idéia do Bem
é intuída pela função do Sol, sendo, ambos, causas iluminantes de seus lugares
correlatos, havendo uma homologia, em primeiro, entre o Bem, o Sol e a unidade do
22
V.Dixsaut (2003:259): “Le schème de la filiation exprime une dépendance ontologique (de l’engendré
par rapport au géniteur) et une ressemblance maximale (entre le fils et le père)”. Segundo Dixsaut, o
visível é pensado como paradigma metodológico do inteligível, enquanto o inteligível é o paradigma
metodológico do visível: Elles (les métaphores) rétablissent une continuité et remettent à l’endroit la
relation paradigmatique: le visible est utilisé comme paradigme méthodologique de l’intelligible, qui est
son paradigme ontologique”. Cf. (Dixsaut,2003:259)
75
conhecimento, verdade e ser, em segundo, entre o ser, a luminosidade diurna e a
ciência, em terceiro, entre a opinião, a noturna manhã e o verossímil e, em quarto lugar,
entre o não-ser, a noite escura e a nescidade. Podemos afirmar que a imagem do Sol e
a idéia do Bem efetuam uma homologia estrutural entre a ontologia, a cosmologia e a
epistemologia, em que a ontologia agregaria as concepções de ser puro imiscido, de
intermediário e de não-ser absoluto, a cosmologia sintetizaria as noções de luz diurnal,
de noturna manhã e de noite escura, reportando-nos à segunda parte do poema
parmenídeo, e a epistemologia, enfim, agregaria as noções de ciência, de opinião e de
nescidade, i.e., privação de ciência.
Quando a alma mnemônica se dirige para algo, conforme a verdade e o ser, e
repousa nele, ela o pensa, reconhece-o e parece ter intelecto. Porém, quando se
mistura ao obscuro, ao gerado e corruto, opina e turvamente as opiniões se
alterarem para cima e para baixo e parece o ter inteligência, pois o que fornece a
verdade às coisas cognoscíveis e concede poder ao cognoscente é a forma do Bem
(tèn toû agathoû idéan), sendo a causa da ciência e da verdade (aitían epistémes kaì
aletheías) como conhecida (Rep.VI 508e). Sendo ambos belos, o conhecimento e a
verdade (gnóseos kaì aletheías), Sócrates afirma a Glauco que a idéia do Bem é mais
bela que esses e os conduz (Rep. VI 508e). A forma do Bem é causa do conhecimento
e da verdade. Segundo Sócrates, é reto reconhecer que a luz e visão são semelhantes,
no lugar visível, ao Sol, não sendo o Sol, e que a ciência e a verdade são semelhantes,
no lugar inteligível, ao Bem (agathoeidê), não sendo o Bem, devendo-se estimar,
meritoriamente, a posse do Bem (tèn toû agathoû héxin) (Rep.VI 509a). O Sol é a
causa da luz e da visão, assim como o Bem é a causa da ciência, da verdade e do ser,
apreendidos somente pelo poder dialético. O Sol concede aos visíveis não apenas o
poder de serem vistos (n toû horâsthai dýnamin), mas também a gênese, o
crescimento e a nutrição, não sendo a gênese. Do mesmo modo, para as coisas
cognoscíveis, essas recebem do Bem a sua cognoscibilidade, mas retiram dele o ser (
eînai) e a essência (tèn ousían) (Rep.VI 509b)
23
. A forma do Bem se revela como
tríplice causalidade, do ser, do conhecimento e da verdade. O Bem, não sendo
23
V.Dixsaut (Dixsaut,2003:262): Dans l’Idea du Bien est contenu la double puissance de révéler au sujet
connaissant sa faculté d’intelligence et celle d’arracher les choses connues au devenir incessant en les
rendant présentes sur le mode du ‘véritablement étant’, de l’essence”.
76
essência, está além dela em dignidade e em poder (Rep.VI 509b), sendo uma idéia
supra-essencial. O Bem é apresentado como análogo, no lugar inteligível, do Sol. A
utilização do discurso analógico permite que Sócrates desenvolva a forma do Bem pela
imagem do Sol, pois o Sol é definido, ao mesmo tempo, como rebento do Bem e como
sua imagem. A analogia com o Sol tem a função de esclarecer o poder do Bem,
entendido por meio da capacidade de possibilitar inteligibilidade às coisas inteligíveis.
Sócrates desenvolve a analogia entre o lugar visível e o lugar inteligível, em que à vista
como órgão do sentido corresponde o intelecto como órgão do conhecimento. Sócrates
diferencia duas espécies, a do inteligível, que reina, de um lado, no gênero e no lugar
inteligível ( mèn noetoû génous kaì tópou), e a do visível, que reina, de outro, no
gênero e lugar visível ( d’horatoû) (Rep. VI 509d). A homologia entre o gênero
sensível e o gênero inteligível, constituida pela correspondência entre o olho do corpo e
o da alma, entre a visão e o intelecto, entre a luz e a verdade, entre as coisas sensíveis
e as formas inteligíveis, entre o Sol e o Bem, “põe em evidência a perfeita simetria das
operações do corpo e do pensamento, expondo a unidade constitutiva da alma no ato
do conhecimento” (Mattéi,1987:129). A estrutura dialética é apresentada, na imagem do
Sol, pela analogia topológica entre o lugar visível e o lugar inteligível e, na imagem da
linha, pela analogia ontológica entre o gênero visível e o gênero inteligível. O Bem é o
princípio não-hipotético do qual todos os entes retiram suas utilidades e proveitos,
possibilitando-os realmente ser bons. A forma do Bem não é um princípio esotérico
indizível e impronunciável, restrito aos discípulos da Academia e apenas transmitido
oralmente, pois se assim o fosse, no parâmetro do raciocínio platônico, seria congênere
ao não-ser. Cada forma retira sua natureza e capacidade da forma suprema do Bem.
A análise de República VI 509 d a 511e delimita o gênero visível e o inteligível.
Uma linha é seccionada em duas partes desiguais, seguindo a mesma relação entre
gênero visível e gênero inteligível. Na primeira subseção da linha, referente ao visível,
há, quanto à clareza e à obscuridade, imagens, pois o gênero visível ( te toû
horoménou génous) produz amplo esquema de gradações, sombras, aparições
sensíveis em águas, em superfícies densas, brilhantes e lisas e também em
congêneres. A subseção adjunta, da qual a primeira se assemelha, compreende os
viventes, plantas e todo gênero artefato. A subseção adjunta representa os entes
77
físicos, artefatos e a primeira seção suas imagens e refrações. No que concerne à
verdade e à não-verdade, aquilo que se assemelha se refere àquilo a qual se
assemelha, ou seja, a imagem ao seu modelo, assim como o que é opinado ao que é
conhecido (tò doxastòn pròs tò gnóston) (Rep. VI 510a), portanto, a opinião à ciência.
Na primeira seção do gênero inteligível, a alma, servindo-se como de imagens
daqueles que tinham sido antes imitados, é compelida a examinar por hipóteses,
dirigindo-se o para o princípio, mas para a conclusão. Na seção adjunta, a alma,
tendo ido das hipóteses para o princípio não-hipotético, sem servir-se de imagens,
como na seção anterior, efetua o método, com as idéias próprias e segundo elas (Rep.
VI 510b). Como objeto do pensamento e como esfera de ação do método dialético, a
matemática realiza a passagem do pensamento dianoético para a intelecção, pois os
assuntos das diferentes ciências matemáticas podem devir objetos da dialética à
medida que tenham ultrapassado suas hipóteses para apreender o princípio (Rep.VI
511e). O pensamento compõe-se de idéias matemáticas, pois basear-se em hipóteses,
para o matemático, significa aceitá-las como verdadeiras sem questionar a sua
legitimidade, tomando as hipóteses matemáticas por princípios indemonstráveis. A
atividade dianoética parte de hipóteses para extrair-lhes as conclusões, imprescindindo
de figuras, pois “aqueles que se ocupam das geometrias, dos cálculos e de tantas
outras e tendo estabelecido o par e o ímpar, as figuras, as espécies de ângulo e
cognatos segundo o método, não as justificam nem a eles nem a outros, sendo a todos
evidente, de modo que, tendo começado por hipóteses, resta-lhes concluir,
homologando sobre o que observam” (Rep.VI 510c). Os geômetras utilizam-se de
formas visíveis e conjecturam sobre elas, porém não raciocinam sobre elas, mas sobre
as quais se assemelham, ou seja, suas formas
24
. A geometria consiste tanto na
dedução de conclusões por meio de proposições consideradas hipóteses quanto na
apreensão das implicações que contêm as figuras traçadas, pois o quadrado
desenhado é uma mera imagem sobre aquilo que especula o geômetra, pois pode
deduzir as propriedades do quadrado em si, referindo-se aos elementos constitutivos do
quadrado percebido ou imaginado, dependendo de uma intuição das figuras espaciais,
24
Cf. Irwin (1985:279): “As mathematicians, they do not need to look beyond their starting points; it is left
for the dialectician to see that the mathematicians make assumptions that need (for philosophical, not
mathematical, reasons) further justification”; Cf.Kahn (1996:308).
78
axiomas e postulados. A geometria seria o aprendizado que, embora se utilizando de
imagens e desenhos, permite organizar seus resultados mediante axiomas
fundamentais e regras de inferência.
O geômetra conjectura a partir do quadrado em si e da diagonal em si e não
segundo a forma visível que desenha nem tampouco a partir de outras figuras. As
formas visíveis que eles modelam e desenham são sombras, imagens desenhadas nas
águas, simples cópias, empregando-as como imagens, buscando ver aquelas mesmas
que são vistas somente pelo pensamento mediatizado, pois elas pertencem à espécie
inteligível. A alma, coagida a servir-se de hipóteses acerca da investigação, não pode
se conduzir para o princípio, pois não podendo deslocar-se além das hipóteses, utiliza-
se de imagens dos figurados na seção inferior, das figuras desenhadas e traçadas,
conjecturando sempre por meio de imagem. A geometria e as artes irmãs, como a
própria astronomia e aritmética, possibilitam o saber dianoético, dependendo de uma
figuração conjectural, porém apenas a ciência dialética consegue realmente explorar,
pelo inteligível, as figuras e diagramas, descobertos por aquelas. Assim, os geômetras,
astrônomos e aritméticos são caçadores, descobrindo as figuras, mas apenas o
dialético sabe realmente utilizá-las. Pode-se dizer que é um ‘tópos’ reiterativo do
discurso platônico a concepção de que o verdadeiro reside na região supra-celeste e
para compreendê-lo as almas meritórias dos mortais precisam realizar o ascenso ao
‘tópos ouranós’, consistindo a astronomia e as ciências congêneres uma via privilegiada
para esse rito ascensional. A astronomia, cuja Musa é Urânia, auxilia na mediação entre
o fenômeno e a idéia. Se no pensamento filosófico, a razão dianoética, mediata, é
sujeitada à pura intelecção, servindo-lhe de via, no pensamento mítico, Urânia é
subordinada à Musa Calíope, patrona do discurso eloqüente e da poesia épica, iterando
o nexo, portanto, entre mitopoese e filosofia, entre as mentalidades mítica e filosófica.
Segundo Sócrates, a razão apreende a segunda seção do inteligível pelo poder
dialético (toû dialégesthai dynámei), considerando as hipóteses o como princípios,
mas como meras hipóteses, as quais são marchas e avanços para apreender o
princípio de todas as coisas, que não permite hipóteses
25
. Apreendendo-o, a alma
25
Para Lafrance (Lafrance,2001), o conhecimento intuitivo correlato ao princípio não-hipotético é anuido
em República VI 511b pelo emprego reiterado das formas verbais háptetai (511b 4) e hapsámenos
(511b7). Cf. Lafrance (Lafrance,2001:40): “Rien n’indique dans notre texte, ni dans le contexte, que ce
79
descende para a conclusão e não utilizando-se de qualquer sensível, mas de idéias
próprias para outras idéias, finaliza em uma idéia. Sócrates afirma que a contemplação
do ser e do inteligível é mais evidente pela ciência da dialética (tês toû dialégesthai
epistémes) do que pelas chamadas artes, como a geometria, a astronomia e a
estereometria, as quais possuem as hipóteses como princípios, utilizando-se não dos
sentidos, mas do pensamento (diánoia). O pensamento não se dirige para o princípio,
mas, utilizando-se de hipóteses, não tem intelecção sobre o que se investiga, cabendo-
a, todavia, ao dialético, haja vista que os entes são inteligíveis com o auxílio do
princípio não-hipotético. A ciência dialética se reporta à etapa ascendente causadora da
contemplação do ser e do inteligível, enquanto o processo dianoético nos remete à
etapa descendente, referente ao movimento dedutivo utilizado pelas artes matemáticas.
Portanto, denomina-se pensamento (diánoia) e não intelecção, a faculdade do
geômetra e congêneres, porque o pensamento é considerado um intermediário entre a
opinião e o intelecto (metaxú ti dóxes te kaì noû) (Rep.VI 511d).
Sócrates denomina a dialética a real filosofia, cujo método é o único que,
negando hipóteses, dirige-se, mediante marchas e avanços, para o princípio não-
hipotético, a fim de estabelecer firmemente suas conclusões, porque a ciência, diferente
da reta opinião, depende de conclusões bem instituídas pelo raciocínio da causa.
República VI apresenta ineludivelmente a questão do ser e o nexo entre conhecimento,
verdade e ser. A dialética é apresentada como o ascenso da alma para o ser e o
inteligível, de sorte que a ciência dialética é a única, ante as outras também
consideradas ciências, capaz de revelar o ser e sua inteligibilidade. crates diz que
das quatro seções do diagrama da linha surgem quatro afecções na alma (pathémata
en psychê); intelecção (esis) é a seção súpera, pois seu escopo são os entes
inteligíveis; a segunda é o pensamento (diánoia), um intermediário entre o intelecto e a
toucher de l’esprit implique une expérience d’ordre mystique qui dépasserait l’ordre de la connaissance
humaine. Au contraire, tout le contexte renvoie à une classification des sciences et des degrés de
connaissance, fondée sur des degrés de réalité. L’allégorie de la Caverne qui suit l’analogie de la Ligne
offre sans doute une série de métaphores suggestives, mais celles-ci renvoient à une expérience d’ordre
moral, et non pas d’ordre mystique”. Lafrance interpreta, pois, o texto platônico por uma lógica que
separa os territórios do mito e da filosofia, procurando depurá-lo de toda e qualquer remetência ao saber
divino, pensando o saber ético como separado e autônomo em relação àquele. Pensar Platão por uma
hermenêutica do mito não supõe, porém, dar prevalência ao discurso mitopoético em face do discurso
filosófico, mas reconhecer uma lógica platônica de suas inter-relações, repousada na própria história da
invenção ateniense do discurso filosófico.
80
opinião, entendido como permanente apreensão, por meio da alma, de uma realidade
imutável; a terceira, crença (pístis); a ínfera, imaginação (eikasía), por ser afetada por
imagens, ordenando-as por analogia, pois quanto mais participam da verdade
(aletheías metéchein), mais possuem clareza (sapheneías) (Rep.VI 511e). A dialética é
a real filosofia, determinada pela participação das quatro modalidades de conhecimento
e das quatro afecções da alma na verdade, no conhecimento e no ser. A seção ínfera, a
menos verdadeira e também a mais obscura é a da imagem, enquanto as outras, as da
opinião, do pensamento e da intelecção, dela se diferem, em grau ascendente, pela
participação em verdade, clareza e no ser. “Os graus de conhecimento são
necessariamente graus de participação na verdade e no ser, dado que um dos traços
característicos dessa concepção mítica e platônica da verdade é o nexo necessário
entre conhecimento, verdade e ser” (Torrano,2002:23). A opinião é uma afecção da
alma correlata à crença como modalidade do conhecimento. Seu território é tanto o
horizonte político, intermediário entre as regiões ôntica e meôntica, onde se
manifestariam por persuasão e por verossimilhança os debates públicos em
assembléias e tribunais, quanto as disputas privadas, diatribes, onde se realizam as
contendas antilógicas e a erística.
A imagem da caverna
26
é uma figuração do território político, região intermediária
entre o ser imiscido e o não-ser absoluto. A condição humana, ínsita na referida
imagem, é manifesta na relação instituida entre a vida onírica hipnótica e a vida
desperta sábia, entre renascimento e morte, entre memória e esquecimento. A citada
imagem intenta, no livro VII, revelar, por meio de um conjunto de relações sensíveis, o
que foi exposto no livro VI em termos inteligíveis. A caverna, entendida como território
ctônio, representa, em termos figurativos, a possibilidade do conhecimento ascender ou
não à forma do Bem. A imagem da caverna permite a Platão atualizar a oposição
constitutiva entre o poder ctônio e o poder olímpio. A imagem da caverna, poder
icônico, discute figurativamente a nossa natureza, no que tange à educação e à
ausência de educação (paideías te péri kaì apaideusías), descrevendo homens em uma
26
Cf. Mattéi (1987:118;122): “En toute rigueur des termes, si l’on veut rester fidèle à la langue de Platon,
on ne devrait donc dire ni le ‘mythe’ ni l’‘allégorie’, mais l’’image’ de la caverne, qu’il conviendra
d’entendre, au-delà du mot lui-même, comme la caverne en tant que puissance d’images et même
machinerie d’images”.
81
caverna, aprisionados, por grilhões, nos tornozelos e pescoços, permanecendo em seu
interior, impossibilitados de deslocar suas cabeças, de modo que contemplam apenas
as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna, não diferenciando, pois, a
imagem umbrática do paradigma luminoso (Rep. VII 514a). A filosofia, na leitura de
Jean François Mattéi, “em sua aurora, não negligenciou o papel iniciático da caverna
que seria assimilado não apenas às profundezas terrentas, mas à totalidade da matéria
umbrática e mundana” (Mattéi,1987:112)
27
. Os prisioneiros atestam ser o verdadeiro (
alethès) não outra coisa do que as sombras dos artefatos, não diferenciando a
realidade do artefato, pois concebem o real por suas imagens, por meio de um grau
inferior de conhecimento (Rep.VII 515c). Porém, quando um dos prisioneiros se
libertasse e fosse constrangido a elevar-se subitamente, deslocando seu pescoço,
marchando e dirigindo seu olhar para a luz do fogo, sofreria, e devido à ofuscação,
seria incapaz de contemplar aqueles cujas sombras outrora observara. Mas, se alguém,
tendo antes observado fantasmas, dirigindo o seu olhar para o ser (toû óntos) e para as
coisas que são, veria retamente, sendo compelido a julgar o que realmente é
(apokrínesthai ti éstin), considerando que as coisas antes vistas (tóte horómena)
seriam mais verdadeiras (alethéstera) do que as coisas no presente mostradas (nûn
deiknúmena) (Rep.VII 515d). A passagem da pluralidade aparente para o ser real se
refere ao processo de dispersão da multiplicidade fenomênica e conseqüente
concentração no um, de sorte que o inteiro processo é concebido a partir daquilo que
se mantém no campo da manifestação e do que o supera. Por causa da ofuscação, o
prisioneiro reconhece maior grau de verdade na sombra do que no ser, no simulacro.
Se fosse constrangido a contemplar a luz em si mesma, afetaria os olhos e rejeitando-a,
retorná-los-ia àquelas que foi capaz de ver, julgando-as, no que concerne ao ser, mais
evidentes (saphéstera) do que aquelas que são mostradas (n deiknuménôn) (Rep.VII
515e). Quando retornasse à luz, tendo os olhos plenos de ofuscação, não seria capaz
de ver (horân oud dýnasthai) aqueles que agora, para Sócrates, denominamos
27
Cf. Mattéi (Mattéi,1987:109;122;134): “Les pratiques de cultes chthoniens et olympiens en Grèce
faisaient un contraste parfait en opposant l’orientation céleste des sacrifices des seconds à l’orientation
terrestre des premiers(...) La caverne platonicienne est la chôra invisible rapportée à Hades sur laquelle
vient se graver la termination intelligible de l’idée pour offrir sa visibilité au visible (....) La puissance
iconique de la caverne, avec son enracinement chthonien qui revient dans un grand nombre de mythes
platoniciens est la patrie, ou plutôt la matrie originelle du langage humain”.
82
verdadeiros (n nûn legomémon alethôn), devendo habituar-se se pretende ver
(ópsesthai) o súpero (Rep.VII 516a). Apenas a reta formação permite ao homem o
poder de conhecer a luminosa manhã, semelhante ao real, de modo que uma
oposição de princípios entre os termos luz e noite, entre os princípios celeste e ctônio.
A imagem cavernosa retoma o princípio de oposição, registrada na mitopoese, entre
Deuses ctônios e Deuses olímpios.
Sócrates propõe uma educação dos sentidos, proporcionando à vista a pura
visão. Primeiramente, o prisioneiro contemplaria facilmente as sombras, as imagens (
eídola) de homens e outras coisas nas águas e, por fim, eles próprios, sendo ambos
análogos aos dois segmentos do gênero visível. A partir deles, dirigindo seu olhar para
a luz dos astros e da lua, contemplaria mais facilmente o céu e, durante o dia, o sol e a
luz solar. O prisioneiro contemplaria o sol, não em águas, nem em seus simulacros
(phantásmata) em sede estrangeira, mas ele mesmo (autòn kath’autòn) em seu próprio
espaço (en autoû chóra), inferindo que o sol fornece as estações e os anos,
governando todas as coisas no lugar visível ( horoméno tópo), sendo o causador
(aítios) de tudo (Rep.VII 516b,c). O ex-prisioneiro, rememorando sua morada primeva, o
saber existente e seus companheiros de prisão, alegrar-se-ia da mudança e
lamentaria por aqueles que permaneceram. O descenso para a caverna expõe a
árdua reconversão à obscuridade. O ex-prisioneiro, retomando a seu posto, tem os
olhos ainda plenos de obscuridade, sendo risível para seus companheiros. O retorno
para a caverna evidencia o afastamento da reminiscência experimentada pelo
prisioneiro e seu conseqüente regresso para o estado de esquecimento, no qual a alma
se aprisionaria aos desejos corpóreos. A fuga da caverna explicita um presumível
êxodo da alma das cadeias corporais, remetendo-nos à concepção pitagórica do
exercício de morte. A alma separada do corpo, concentrando-se em si própria, possui a
acribia necessária à contemplação do ser e do inteligível, de sorte que a purificação da
alma é um momento privilegiado para o saber noético. O maior grau de evidência e
acurácia no conhecimento dos entes depende do reto uso do raciocínio sem o auxílio
das sensações, distanciando-nos de prazeres e de dores impuros. Os amores, desejos,
temores, múltiplas fantasias nascem da miscibilidade entre alma e corpo, impedindo-
nos de contemplar os entes em si próprios, todavia apenas como simulacros, i.e., como
83
meras sombras das imagens icásticas. A imagem sensível do ascenso do prisioneiro à
contemplação do sol é análoga à contemplação inteligível do ser, da verdade e do
conhecimento, realizada pela alma, de sorte que o recurso à figuração da caverna
ressalta as modalidades do conhecimento explicitadas, primeiro, nas imagens dos
homens, segundo, nos próprios homens, terceiro, nos astros, quarto, no próprio Sol.
A imagem da caverna remonta à imagem do lugar visível, domínio das
aparências, no qual os homens observam meros fenômenos, tendo como análogo
icástico a habitação da prisão. A caverna exprimiria, pois, “esse mito primígeno relativo
ao tecido primacial, no qual provêm os sensíveis, onde os elementos primevos do
conhecimento inscrevem suas determinações no material sensível, fotosensível, da
‘chóra’” (Máttei,1987:122). O poder do sol possui como sua imagem análoga a luz do
fogo na prisão. Apenas o poder dialético proporciona o ascenso da alma dos modos
inferiores do conhecimento, a conjectura e a crença, para as suas superiores, o
pensamento e a intelecção. Sócrates presume que a ascensão ao súpero e a
contemplação dos supernos refere-se ao ascenso da alma para o lugar inteligível (n
eis tòn noetòn tópon tês psychês ánodon), porquanto apenas o deus sabe se sua
esperança é verdadeira (Rep.VII 517b). A esperança proferida por Sócrates evidencia
que o conhecimento súpero no lugar inteligível é plenamente conhecido pelo deus, pois
a forma do Bem é a mais perfectiva, sendo a última do lugar inteligível. Se o Sol,
participando do lugar sensível, supera-o, proporcionando aos visíveis crescimento e
nutrição, o Bem, participando do reino inteligível, supera-o, propiciando aos inteligíveis
ser e essência. O ascenso para o princípio incondicionado efetua-se em face do
descenso, assegurando, pela forma do Bem, o conhecimento da verdade do ser. A
forma do Bem é a causa (aitía) de tudo o que existe de reto e belo em todas as coisas,
pois no lugar visível gerou a luz e o seu soberano, o Sol, e no lugar inteligível é a
própria soberana, fornecendo verdade e intelecto (alétheian kaì noûn) aos seres. A
forma do Bem é causa tanto do poder de conhecimento dos entes quanto de seu ser e
essência. Assim, deve-se entendê-la para que se possa agir prudentemente, quer seja
no particular, no âmbito próprio, quer seja no blico, no território coletivo, sendo a
84
causa tanto da vida feliz quanto da vida justa. A forma do Bem é causa para que os
entes possam ser bons.
28
Conceituar a forma do Bem como a causa incognoscível, impronunciável e
inefável compelir-nos-ia a relacioná-la com o gênero meôntico. A admissão dessa
congeneridade antinômica invalida o escopo platônico de diferenciação entre o filósofo
e outros gêneros produtores de discursos, aprisionando-o à região ctônia. Para Dixsaut,
“Platão não afirma jamais que o Bem é incognoscível e indefinível, todavia afirma
evidentemente o contrário” (Dixsaut,2003:263). Se nos atermos aos critérios
fundamentais enunciados por crates, propriamente, o Bem é supra-essencial,
superando-a em dignidade e poder, inferimos que o Bem possui o poder superno
àquele de toda outra essência. Se toda essência tem o poder de comunicar sua
propriedade à certa pluralidade fenomênica, o Bem tem o poder de comunicar-lhes sua
propriedade, assegurando-lhes a comunidade com o que é realmente bom.
Sócrates indica que cada homem sustém na alma o poder de aprender (dýnamin
katamanthánei), possuindo, para isso, seu órgão próprio, pois assim como o olho não é
capaz de um outro modo que dirigir-se, conjuntamente com todo o corpo, da
obscuridade para a claridade, da mesma forma deve aquele órgão, conjuntamente com
toda a alma, dirigir-se do que está devindo (toû gignómenou) para o que é capaz de
suportar a contemplação do ser e do mais manifesto do ser ( òn kaì toû óntos
phanótaton) (Rep.VII 518c). O poder da alma realiza a conversão da noite escura para
a luminosidade diurnal, da ignorância para o conhecimento. Sendo a dialética inteligível,
o poder da visão (he tês ópseos dýnamis) a imita quando se empenha em contemplar
os viventes, os astros e o sol. Do mesmo modo, quando alguém busca empenhar-se,
por intermédio do dialogar (dialégesthai), sem o auxílio de todas as sensações, mas
mediante a razão, em dirigir-se sobre o que cada um realmente é (ep’autò éstin
hékaston), não se detendo antes de apreender pela própria intelecção o que é o Bem
28
V.Cordero (2000:46): “En effet, dans la République, le dialecticien était censé connaître la Forme du
Bien, et cette Forme était placée, on le sait, au-delà de l’ousia. Mais chez Platon il n’est jamais question
de l’ousia dans le sens d’une Ousia suprême ou originaire. La formule de la République veut dire
simplement que la Forme du Bien se trouve au-delà de l’ousia de chacune des autres Formes, car,
comme le montre l’analogie avec le soleil, elle est la cause des ousiai, tout en restant elle-même une
ousia déterminé, celle du Bien. La participation de toutes les Formes à la Forme du Bien permet aux
Formes de ‘bien’ jouer leur rôle de Formes. Ce rôle, dans le Sophiste, est repris par la Forme de l’Être,
moins rattachée à un ti, car même le Bien était un ti, un quelque chose de déterminé”.
85
por si mesmo, atinge, enfim, o termo do inteligível, assim como antes o prisioneiro
atingira o termo do visível (Rep.VII 532a,b). Se o olho corpóreo apreende pela luz as
coisas sensíveis relativas à pluralidade, o olho anímico apreende pelo intelecto as
formas inteligíveis correlatas ao que é em si, àquilo que se apresenta, para a reta
razão, imiscido. A ascensão ao perfeito, suficiente e sempiterno depende do emprego
do poder dialético e da razão. O termo do poder da visão é, no lugar visível (pos
hóratos), o Sol, enquanto o termo do poder dialético é, no lugar inteligível (tópos
nóetos), o Bem, idéia e poder supra-essenciais, de sorte que o princípio não-hipotético,
termo do inteligível, é a elevada idéia. A descrição do rito ascensional é prenhe de
imagens remissivas ao discurso mitopoético, mostrando-nos que a hermenêutica da
forma do Bem precisa ser realizada por uma imbricação entre, o que Havelock
convenciona chamar, o discurso figurativo arcaico e o discurso conceitual clássico. A
forma do Bem nos reporta ao caráter venerando da linguagem, pois a idéia de todas as
idéias consiste na sublime revelação, compartilhada pelo verdadeiro iniciado teófilo,
sintetizando no ato epistêmico saber humano e saber divino
29
. Se anuirmos que o
diagrama da linha oferece a descrição do percurso pedagógico-epistemológico do
melhor condutor da pólis, entenderiamos que essa educação metódica supõe não um
reproche dos sentidos e também das imagens, mas uma depuração dos componentes
sensíveis, imagéticos, presentes na racionalidade gráfica, que não participariam, com
efeito, de suas presumíveis idéias, porque, pela observância das ltiplas identidades
e diferenças, semelhanças e dessemelhanças entre a pluralidade visível, apreender-se-
iam as idéias constituintes do gênero numênico, paradigmas do gênero fenomenal. O
campo perceptivo pode ou não induzir a intelecção ao exame, haja vista que entre as
coisas presentes nos sentidos ( mèn en taîs aisthésesin), certas não induzem a
intelecção (tén nóesin) ao exame (eis epískepsin), pois são suficientemente julgadas
pelos sentidos (hypò tês aisthéseos), ao passo que outras recomendam de modo
29
Lafrance entende a rota ascensional para o princípio não-hipotético como uma via estritamente
racional. Cf. Lafrance (Lafrance,2001:44): “L’intuition du principe anypothétique dans la dialectique
platonicienne n’est pas plus d’ordre mystique que l’intuition du cogito dans la pensée cartésienne, ou celle
des principes de la démonstration dans la doctrine aristotélicienne des sciences. Le trait commun entre
ces trois philosophes est qu’ils ont cru à la possibilité pour l’esprit humain d’atteindre une vérité absolue et
universelle à partir de laquelle il serait possible de déduire des conclusions certaines et infaillibles”.
Segundo Lafrance, o escopo do platonismo consiste em libertar a filosofia do recurso ao mito sob o risco
dela se tornar uma sublime poesia conceitual.
86
absoluto o examinar (episképsasthai), porque a sensação não produz nada saudável
(Rep.VII 523a,b). Sócrates se reporta às aparições contempladas de longe (
pórrothen phainómena) e às desenhadas em perspectiva (eskiagrapheména)(Rep.VII
523b). Para Sócrates, os desenhos que não induzem à intelecção são aqueles que não
produzem, ao mesmo tempo, uma sensação contrária (eis enantían aísthesin háma)
(523b,c). Porém, se realizam a percepção contrária, propicia-nos o juízo. As afecções
contrárias, provocadas pelo recurso à skiagraphía, imprimem na alma a aporia, pois se
a visão observa o grande e o pequeno, o lépido e o lento, por exemplo, misturados, a
intelecção, por meio da aporia nascida da sensação, os contempla separados. O âmbito
fenomênico, longe de excluir o horizonte da inteligibilidade, possibilita-lhe a rota de
acesso. O discrime socrático, entre as sensações que permitem ou não a intelecção,
circunscreve o ofício do produtor de discursos e de pinturas, à medida que graphê
designa tanto o ato de pintar quanto o de escrever, à dupla condição da imagem, pois
ela pode exprimir, de acordo com o intento de seu autor, ou seu lado destro ou seu lado
sinistro. Por meio da operação efetuada pelo intelecto, consistindo em separar
realmente o que parecia aos sentidos serem misturados, ora grande ora pequeno,
origina-se precipuamente o grande e o pequeno ( méga kaì smikrón) (Rep.VII
524c). Pela mesma operação, denominamos, por um lado, o inteligível (mèn noéton)
e, por outro, o visível (d’horatòn) (Rep.VII 524c). Assim, elementos sensíveis que
exortam o pensamento ( parakletikà tês dianoías), enquanto outros não; aqueles,
incidindo na sensação, produzem afecções contrárias, ao passo que esses não as
produzem, não despertando a intelecção (ouk enertikà tês noéseos) (Rep.VII 524d).
Não há, pelo enunciado das duas espécies de aferição visível, a cesura entre os
gêneros sensível e inteligível, pois a skiagraphía estimula a diánoia, ao passo que a
outra imagem, cuja visão parece aos sentidos imediata, não conduz a nóesis à vigília. O
filósofo perscruta a reta imitação, pela qual possibilitar-lhe-á a grafia paradigmática da
melhor pólis. O cálculo e a aritmética (logistikè te kaì arithmetikè), cujo escopo é o
número (perì arithmón), conduzem a alma à verdade, impelindo-a, pelo aprendizado, a
sair da gênese e apreender a essência. As ciências dianoéticas estimulam os sentidos
a ascender para a verdadeira ciência. Para Havelock, o lculo e a aritmética
permitiriam à mente abstrair o inteligível do visível, efetuando a transição de uma
87
disposição mental poetizada, sujeitada ao caráter metabólico de seus personagens,
Agamêmnon, Heitor, para um conhecimento atemporal, propugnado pelo pensamento e
pela intelecção. A tese do eminente autor descura, porém, da homologia estrutural
entre discurso filosófico e discurso mitopoético.
As imagens do Sol, da linha, da caverna configuram uma potente malha
conceitual rigorosamente imbricada às estruturas simbólicas da mitopoese grega. A
prevalência da idéia que supera todas outras idéias em majestade e poder remete às
estruturas míticas da religião arcaica
30
, pois Zeus, intelecto puro imiscido e pai dos
deuses e dos homens, constitui, na experiência simbólica do mundo, o supremo poder
primígeno, presidindo como deus magnânimo, as diversas potestades divinas, sendo-
lhes o princípio e o poder, e essas retiram o seu ser e a sua verdade dele próprio, de
sua causalidade, de sorte que à idéia do Bem se associa a presença mítica de Zeus. A
anuência com essa interpretação nos possibilita rejeitar a hermenêutica neo-platônica
que circunscreve o Bem a uma forma transcendental, não apenas supra-essencial mas
supra-ontológica. A alegoria da caverna busca relacionar o discurso mitopoético ao
discurso filosófico, reiterando seu liame, mostrando-nos que o entendimento da forma
do Bem deve ser realizado no próprio texto e não em elementos a ele extrínsecos,
premissa da tese esoterista de Platão que defende um suposto testamento ágrafo,
aplicando-lhe a lógica apodíctica. Revela-se, na tessitura das imagens do Sol, da linha
e da caverna, a homologia entre as quatro modalidades de conhecimento supracitadas,
correlatas aos gêneros inteligível e sensível, e a distinção hierárquica dos entes entre,
de um lado, deuses e numes invisíveis e, de outro, heróis e mortais visíveis. A
conversão da alma filósofa do devir para a idéia, da gênese para a essência, do
metabólico para o imutável, evidenciaria o ascenso para o ser real e para a memória,
efetivado pelo apurado percurso dialético. A hermenêutica cultual, sintetizando num
mesmo nexo comum a apreensão da verdade, do conhecimento e do ser, revelaria a
30
Cf.Torrano (Torrano:2006:90): “O bem é o termo absoluto que inclui e consubstancia os diversos graus
de participação na verdade, no conhecimento e no ser; o bem é a origem comum da verdade, do
conhecimento e do ser, e por essa comunidade originária estabelece-se o nexo necessário entre a
verdade, o conhecimento e o ser. Esse nexo necessário é um pressuposto fundamental tanto da filosofia
platônica quanto do pensamento mítico. Enquanto o pensamento mítico se mantém vivo e atuante, esse
nexo necessário entre verdade, conhecimento e ser é um dos seus traços distintivos mais característicos.
Platão, herdeiro e intérprete do pensamento mítico, exibe esse mesmo traço como um dos traços
distintivos mais característicos de seu pensamento”.
88
congeneridade da alma filósofa ao âmbito divino, território ôntico. O Bem, como termo
do inteligível, é o correlato lógico de Zeus, poder supremo na estrutura teogônica.
A libertação dos grilhões e a conversão das sombras para a luz, a ascese do
ínfero para o sol e a impotência, devido à ofuscação, em mirar claramente os viventes,
plantas e a luz do sol, propiciam a observação nas águas das aparições divinas e das
sombras dos entes, suas imagens icásticas, mas não as sombras dos simulacros,
geradas por uma luz artificiosa, distinta da luz projetada pelo sol. O estudo de artes
como aritmética, harmonia, astronomia e estereometria, artes prevalentemente
dianoéticas, pois remetem à acribia, permite o poder e a elevação do superior na alma
para a contemplação do melhor nos entes, assim como outrora permitira o poder e a
elevação do mais evidente no corpo para o mais luminoso na forma corpórea e no lugar
visível. Qual é a característica do poder dialético, quais são as suas espécies
discriminadas e quais são seus métodos? Sócrates diz que é preciso elevar-se da mera
imagem para o verdadeiro, da realidade fenomênica para o ser verdadeiramente real,
porquanto o todo dialético (dialektikè méthodos) é o único que se eleva, recusando
as hipóteses, para o próprio princípio não-hipotético, a fim de estabelecer firmemente
suas conclusões, afastando o olho da alma do lodo bárbaro, no qual está imerso e
conduzindo-o para o súpero, usando como auxiliares e condutores as artes
supramencionadas, as quais denominam-se, conforme o costume (dià éthos),
ciências, devendo possuir um outro nome, mais evidente do que opinião (enargestérou
è dóxes) e também mais obscuro do que ciência (amudrotérou è epistémes) (Rep.VII
533d). A primeira parcela dentre as modalidades do conhecimento é denominada
ciência (epistéme), a segunda é chamada pensamento (diánoia) a terceira crença
(pístis) e a quarta imaginação (eikasían), sendo que as duas últimas, conjuntamente,
referem-se, por um lado, à opinião (xan) e as duas primeiras, em conjunto, referem-
se, por outro, à intelecção (nóesin), pois a opinião estuda a gênese (perì génesin), o
que visa a algo, e a intelecção estuda a essência (perì ousían), o fim para o qual algo
tende (Rep.VII 533e,534a). A gênese tem como fim a essência, de sorte que o sensível
tem como meta, para uma alma filósofa e dianoética, o inteligível. Platão apresenta
aparentemente um paradoxo, inserindo, na supracitada passagem, o conhecimento
dianoético na esfera noética, haja vista que em 511e tanto a diánoia quanto a nóesis
89
são mostradas como modalidades distintas do gênero inteligível. A ascese ao súpero se
efetua à medida que a alma se aparta do corpo, concentrando-se sobre si própria,
libertando-se dos prazeres advenientes da visão e audição. Considerar-se-ia dialético
(dialektikòn) quem apreendesse o raciocínio sobre a essência de cada coisa (hekástou
tês ousías). Porém, quem não o possuisse, não teria inteligência sobre as coisas, não
conseguindo explicá-las (lógon didónai) nem a ele nem a outros (Rep.VII 534b). Assim,
evidencia-se o mesmo com o Bem, pois aquele que não fosse capaz de distinguir, por
intermédio do raciocínio, a forma do Bem (tèn toû agathoû idéan) de todas as outras
obscuras, exatamente como aquele que empenha-se ardorosamente em buscar as
suas provas (prothumoúmenos elénchein), não apenas pela opinião (katà dóxan),
mas pela essência (kat’ousían), estudando a fundo, na discussão, todos os argumentos
(pánton elénchon) e expondo-os em detalhes mediante um infalível raciocínio, não seria
capaz de conhecer nem o Bem em si (autò tó agathòn) nem algum outro bem (állo
agathòn), mas meramente apreenderia, adormecendo e sonhando em sua vida atual,
qualquer imagem (eidólou tinòs), não pela ciência (ouk epistéme), mas por meio da
opinião (dóxe)
31
(Rep. 534b,c). Ressalta-se que a apreensão da forma do Bem também
se efetua pelo entendimento dos outros bens que dela participam. Assim sendo, quem
se sujeitar não à epistéme, mas somente à xa, não despertando em sua vida atual,
mas descendendo ao Hades, dormiria completamente. O sonho nos instaura na
condição de esquecimento, própria ao território meôntico, na qual se evidencia o êxodo
da memória, porquanto a figuração dos estados do sono e da vigília, da vida onírica e
da vida real, constitui tópico essencial para a interpretação do diálogo, remetendo-nos
às imagens da luminosa manhã, âmbito da tenuidade, e da noite escura, território da
densidade, correlatas às afecções do saber e do não-saber, conhecimento e ignorância.
A vida hipnótica e onírica tem sua percepção nas imagens multifárias. O ascenso ao
Bem e o descenso ao Hades, respectivamente anabase e katabase, eterno ciclo
palingenético de renascimento e morte, configuram as categorias psicológicas da
31
Cf.Dixsaut (Dixsaut:2003:264): “Une chose est indiscutable: dans la République, la question du Bien est
toujours liée à celle de la dialectique, qui reconnaît dans le Bien à la fois son principe et sa fin, ce dont
elle dérive et ce vers quoi elle tend. (...) Le Bien n’est une énigme que si on reste à l’extérieur de la
dialectique: à l’interieur, il est ce que l’intelligence dialectique comprend d’abord comme sa cause et sa
fin. Bien et dialectique sont alors conçus comme deux puissances, et il faut être à l’interieur de l’une pour
compreendre l’autre”.
90
memória e do esquecimento, pois a gênese do esquecimento é o êxodo da memória. A
dialética não é, portanto, uma arte, todavia uma ciência, sendo o coroamento de todas
as disciplinas (thrigkòs toîs mathémasin). A ciência dialética, referente à dimensão
noética, diferencia-se, neste contexto, do saber dianoético, pois, contrariamente à
ciência dos geômetras e congêneres, de todas disciplinas propedêuticas em geral,
busca apreender “a unidade mítica entre o ser, a verdade e o Bem” (Gadamer,1994:39).
O dialético se difere daqueles que não o são por ser sinóptico (synoptikòs dialektikós)
(Rep.VII 537b). Assim, somente o dialético desperta e se liberta da “dominação que
exerce sobre nós este sonho que é o mundo da vida e despertar deste sonho assim
como deste torpor é precisamente desfazer-se de hipóteses, nas quais a interpretação
do mundo é sedimentada e de onde a nossa linguagem é tributária (Gadamer,1994:82).
91
III. A crítica platônica da retórica no Fedro
Coexistem no pensamento platônico dois âmbitos ineludivelmente imbricados, o
âmbito da oralidade e o da escrita. Realiza-se a análise dessa profícua coexistência no
Fédon. Podemos aferir nesse diálogo, por meio do cotejo sobre os discursos acerca da
natureza do amor, uma acurada reflexão sobre o estatuto da prática discursiva e de seu
conseqüente registro escrito. Pela diatribe sobre a natureza do amor explicitam-se os
critérios necessários à reta elaboração de um discurso, nascidos da reflexão platônica
sobre a referida coexistência, propriamente:
1) o respeito à verdade, donde o orador deve se subordinar a ela e não apenas
à verossimilhança.
2) a defesa de uma possível refutação, donde a apologia dos discursos breves
ante os discursos longos.
92
3) o reconhecimento da sujeição da escrita à oralidade, portanto, do sensível ao
inteligível.
A real natureza do amor é o tema privilegiado para que Platão oponha a
educação filosófica àquela praticada nas escolas de retórica. A instituição dessa
oposição se efetua por uma acurada apreciação das formas e gêneros discursivos,
revelando-nos que à arte compositiva de discursos se associa uma arte condutora de
almas. Neste prisma, o Fedro esmiuça as prováveis semelhanças e dessemelhanças
entre os gêneros do filósofo e do retor, pormenorizando a construção da figura do
filósofo realizada nos livros V, VI e VII da República. O filósofo, diferentemente de
outros produtores de discursos, possui a aptidão tanto sinóptica quanto discriminatória,
minudenciando as partes constitutivas do discurso, articulando-as por uma necessidade
logográfica. O intento do orador socrático é expor as notórias insuficiências da
logografia, exemplificada na prédica de Lísias sobre o amor e lida, com efeito, a
Sócrates por um apaixonado Fedro. O reproche socrático originar-se-á da evidência de
que a récita do referido logógrafo descura do liame entre as dimensões cultual e
retórica necessária à elaboração perfectiva do discurso. A crítica platônica à retórica e a
constituição da dialética como elevada arte da palavra revelam, no Fedro, o
afastamento do filósofo dos produtores de imitações verossímeis. Os meros logógrafos,
imitadores da verossimilhança, se opõem ao filósofo, imitador sábio da verdade, pois
este retira o seu poder dialético do caráter uno e ingênito das potestades divinas, pelas
quais se inspira, enquanto aqueles extraem o seu poder antilógico do caráter
metabólico do perpétuo devir. Os discursos antagônicos sobre a natureza, impulsos e
afecções do amor permitem evidenciar as relações entre a realidade fenomênica e o ser
verdadeiro, à medida que o desejo erótico, território do belo, pode ou não ser pensado
como motor precípuo de ascenso ao pero, região sublime das idéias. O discurso
filosófico se apresenta como o aspecto sensível da inteligibilidade divina, pois o filósofo
dialético, apaixonado tanto pela verdade quanto pelo ser real, imita a veneranda
divindade olímpia.
Fedro expõe a Sócrates ter participado da diatribe de Lísias, conspícuo
logógrafo, referente à natureza do discurso erótico, na qual este dissera que se deveria
aprazer mais a quem não ama do que ao amante. Fedro e Sócrates, então, afastando-
93
se dos muros de Atenas, margeiam o rio Ilissos, onde existe um elevado plátano. Fedro
interpela Sócrates se esse crê ser verdadeiro o mitologema do rapto de Orítia por
Bóreas. Sócrates pondera que lhe parece ser risível examinar temas alheios ainda por
ele ignorados, porquanto não se julga capaz de se conhecer a si mesmo, como indica a
inscrição délfica. A invectiva de crates contra os sábios, acusando-nos de mera
empiria, provém de sua ciente recusa à interpretação dos mitologemas, pois exigiriam
muita habilidade e laboriosa dedicação, não tornando o homem feliz. A necessidade de
atribuir verossimilhança aos mitologemas, por causa de sua incredulidade, não lhe
propiciaria o ócio necessário. crates se conduz para o plátano mediante a promessa
de ouvir a peça retórica de Lísias, lida por Fedro, a respeito do amor, pois prefere os
discursos verdadeiros aos enigmáticos mitologemas. O discurso do logógrafo Lísias
expressa, na leitura de Fedro, ser melhor entregar-se ao não apaixonado do que ao
amante, pois esses confessam serem insensatos e incapazes de se dominar, sendo
nocivos e impertinentes ao amado. Sócrates reprova a declamação por considerá-la
reiterativa e artificiosa. Fedro interpela-o, pedindo-lhe que componha uma cita
emulativa, i.e., uma prédica que se oponha a de Lísias. Sócrates principia seu discurso,
invocando as Musas e exaltando a sublimidade da poesia ditirâmbica, pois são “o
princípio do canto, tanto no sentido inaugural quanto no dirigente constitutivo” (Torrano,
2003:21). A invocação das Musas explicita o entusiasmo socrático pela presença
dessas potestades, condição para o estabelecimento da bela récita, congênere à
expressão do divino. O reconhecimento da prevalência dessas divindades, filhas do
intercurso entre Zeus e Mnemosyne, evidencia a postura veneranda socrática ante a
prédica de Lísias. A não apreciação da interpelação socrática do poder sublimador das
Musas esmaece o liame entre discurso filosófico e discurso mítico, não atentando para
o resgate platônico das estruturas mitopoéticas, pelas quais pensa a composição
retórica, à medida que as interpreta a partir de seus próprios propósitos hermenêuticos,
visando à constituição de sua dialética filosófica. A sublimabilidade das Musas impõe,
pois, ao filósofo os preceitos necessários à elaboração augusta do discurso, sem os
quais fracassaria em seu intento. Sócrates afirma em sua prédica que o homem
dominado pelo desejo aspira ao prazer ilimitado, não almejando nada que possa lhe ser
ou superior ou semelhante, de sorte que o amante, temendo a perda do amado,
94
impede-lhe o convívio com o melhor, útil e proveitoso, assim prejudicando-lhe. O
apaixonado, em seu delírio, afasta o ente desejado da divina filosofia e de bens
magnânimos. O júbilo possessivo do amante arrefece o pleno desenvolvimento do
amado e cessando o prazer momentâneo do delirante, esquiva-se do ser desiderado,
abandonando-o, de modo que é melhor entregar-se ao não apaixonado temperante do
que ao amante possessivo, pois este ama o seu amado, assim como o lobo ama o
cordeiro. O prestar favores ao amante revela-se na primeira récita socrática, deletério
para o amado. As duas récitas, tanto a de Lísias lida por Fedro quanto a de Sócrates,
ressaltam a natureza prejudicial e nefanda da possessão e delírio amorosos. O sinal
numinoso e costumaz ( daimónion kaì eiothòs semeîon) manifesta-se a Sócrates
como uma voz interior, interpelando-o e compelindo-o a reelaborar seu discurso, pois se
Eros é um deus ou divino, não poderia ser mau (Fedr.242d). A palinódia socrática deve
precisamente compelir Lísias a compor o elogio do amante (tòn toû erastoû épainon)
(Fedr.243d). A citada palinódia visa expurgar a concepção deletéria e servil da natureza
do amor, explicitada nos discursos anteriores. O palinodista socrático aspira a revelar a
congeneridade da possessão amorosa ao divino, escusando-se por defender o caráter
dissimulatório do amante, evidenciado no primeiro discurso socrático. crates
pronuncia encomiasticamente, na palinódia, o discurso de Estesicoro, filho de Euphemo
e oriundo de Himera, dizendo o haver discurso verdadeiro se, na presença do
amante, se enuncia que se deve agraciar mais a quem não ama por ser sensato do que
a quem ama, por ser delirante. O delírio (manía) não é, de modo algum, um mal, pois os
maiores dentre os bens (mégista tôn agathôn) se originam para s mediante um
delírio (dià manías), como os dons divinos (Fedr.244a). A profetisa de Delfos e a
sacerdotisa de Dôdona efetuaram, no estado delirante, muitas e belas coisas tanto no
âmbito privado quanto no público aos helenos, porém no estado temperante nada
realizaram. A Sibila, também, e tantos outros, utilizando-se da possessão divinatória,
vaticinaram o reto porvir para muitos, revelando-lhes o evidente.
O saber arcaico censura o opróbio do delírio, pois os antigos, instituindo os
nomes, não o julgavam nem uma ignomía nem reprochável, pois, urdindo o próprio
nome, manía, à mais bela arte, a preditiva, denominaram-lhe maniké. Os coetâneos,
não tendo o senso do belo, chamaram-lhe mantikè (Fedr.244c). À arte do presságio,
95
baseada nos pássaros, em outros sinais e no pensamento, perscrutando, na
ponderação humana, inteligência e informação (noûn te kaì historían), chamam augúrio
(oionoïstikèn) (Fedr.244c). A arte divinatória, pelo delírio, é mais perfeita e venerada do
que a arte do augúrio, por intermédio da interpretação do vôo dos pássaros, porquanto
os antigos testemunham ser o delírio nascido do deus mais belo do que a temperança
surgida dos homens (Fedr. 244d). Os ritos purificantes e iniciáticos, ofertando preces e
cultos aos deuses, libertam certos membros, de determinadas tribos, dos maiores
males e dores, nascidos de antigos ressentimentos. A terceira possessão e delírio é
originada das Musas, pois se apossando de uma alma pura e delicada (hapalèn kaì
ábaton psychén), desperta-a, imergindo-a num transe báquico, evidenciado em odes e
poemas outros, e, gloriando as ações dos antigos, educa os pósteros. Mas, se alguém
se apresenta, sem o delírio das Musas, às portas da Poesia, persuadindo-se que,
apenas com arte, tornar-se-á suficientemente poeta, esse será um poeta imperfeito,
porquanto a poesia do temperante (poíesis toû sophronoûntos) desaparece por causa
da poesia dos delirantes (tês tôn mainoménon) (Fedr.245a). Os citados belos atos
nascidos do delírio divino não devem ser temidos, pois não é plausível supor que o
temperante seja mais venerável que o delirante. Os deuses concedem à loucura do
amor a suprema felicidade e à sua possessão a sabedoria numinosa. A demonstração
da superioridade do delírio não persuade os hábeis, mas os sábios (Fedr.245c). Por
hábeis se entendem aqueles imitadores que empregam unicamente suas artes, sem
possuirem o sublime delírio divino, como o retor, o poeta épico e o sofista, aos quais
não se revelam o poder numinoso das Musas. A composição tanto poética quanto
retórica dependem da epifania dessas divindades. A retórica é, neste estágio do
Diálogo, entendida pela constituição da teoria da alma remêmora, de modo que é
preciso aprender o verdadeiro sobre a natureza da alma, tanto divina quanto humana,
observando suas afecções e ações, porque toda alma é imortal (psychè pâsa
athánatos). O automovente é imortal ( autokíneton athánaton), à medida que é
autárquico e autônomo. O motor de outrem ( d’állo kinoûn) por outro é movido
(hyp’állou kinoúmenon), que, tendo cessado o movimento, cessa também o princípio
vital. O auto motor ( autò kinoûn) nada lhe faltando, não cessa jamais de se
96
movimentar, sendo fonte e princípio do movimento (pegè kaì archè kinéseos) para os
outros que por ele, assim, são movidos (Fedr. 245c).
O princípio é ingênito (archè dè agéneton), porque é a partir de um princípio que,
necessariamente, tudo o que devém vem a ser, enquanto o próprio princípio não
provém de nenhum outro, pois se viesse a ser de um princípio, não seria considerado
princípio (Fedr.245c,d). O princípio, sendo ingênito, é, forçosamente, incorruptível
(adiáphthoron), pois, se se corrompesse, nem viria a ser de algo nem um outro a partir
dele, haja vista que todo o devir surge do princípio (Fedr.245d). Assim, o princípio do
movimento (archè kinéseos) é, ele próprio, o auto motor (autò kinoûn), não podendo
nem se corromper nem devir (Fedr.245d). A essência e a noção própria da alma é ser
ingênita, incorruptível, imortal e auto movente. Portanto, todo o corpo, recebendo de
fora o mover-se, é inanimado (ápsychon), enquanto o animado (émpsychon) é aquele
que tem em si e a partir de si mesmo o mover-se, de modo que o auto mover é a
própria natureza da alma (Fedr.245d). A alma, por causa de sua essência e natureza, é
congênere ao divino, não podendo ser evidenciada por um caráter meramente humano.
A essência ingênita e incorruptível da alma imortal e automovente pode ser apenas
conhecida por uma natureza divina perfeita e sempiterna. O poder natural divino é
conduzir o elemento pesado para o alto, elevando-o até o lugar onde mora a raça dos
deuses, no qual reside a deusa Hestia. A asa, dentre todas as coisas corpóreas,
mantém a comunidade com o divino. O divino, por ser belo (kalón), sábio (sophón), bom
(agathón) e congênere, nutre e desenvolve as asas da alma, enquanto o vil, o mau e
outros contrários as corrompem, destruindo-as. Zeus, poder hegemônico e excelso no
céu, conduzindo a atalagem alada, avança primeiramente, ordenando e regendo todas
as coisas, seguido pela armada dos deuses e numes, dividida em onze partes, pois
Hestia habita solitariamente no centro a morada divina (Fedr.246e, 247a). A figura
divina de Hestia, divindade do fogo, revelar-se-ia a correlata mitopoética de Ousia,
residindo na planície da verdade.
32
Sócrates pondera que nenhum poeta jamais hineou
32
Cf.Mattéi(1996:179): “Avec le passage d’Hestia à Ousia, qui se manifeste au terme de la procession
céleste, liée à la déese, et à l’origine de la contemplation supra céleste, ouverte sur la plénitude stable de
l’essence, nous abandonnons le terrain du mythe pour jeter un premier regard sur le champ propre de la
dialectique. C’est avec la métamorphose d’Hestia en Ousia, que Platon, semblable au char divin qui, aux
confins du ciel, passe sur l’autre versant, transpose un matériau mythique en construction logique,
ouvrant ainsi largement la voie – dans la Plaine de vérité – à la méthode ultérieure de la philosophie”.
97
nem hineará o lugar supraceleste (Fedr.247c), pois a região supraceleste repousa no
âmbito da verdade, cuja essência real é acromática, sem figura e intangível
(achrómatos te kaì aschemátistos kaì anaphès), sendo unicamente contemplada pelo
piloto da alma, pelo intelecto, porquanto pertence ao gênero da ciência verdadeira (
tês alethoûs epistémes génos) (Fedr.247c,d). O pensamento divino, nutrido pelos
intelecto e ciência imiscida assim como toda alma, recebendo o alimento adequado, se
aprazem da afetuosidade, observando no tempo o ser, e se alimentam, contemplando
as coisas verdadeiras (Fedr.247d). O horizonte ôntico supraceleste é contemplado
apenas pela alma remêmora congênere à alma divina, aprazendo-se da essência real e
verdadeira, ingênita e incorruta. O Fedro retoma as imagens precípuas da mitopoese
arcaica relativas à memória e ao esquecimento, aos territórios ôntico e meôntico.
A alma, à medida que é autárquica, tendo o princípio em si própria, é auto e
sempre movente, autônoma e sempiterna. A alma, participando do cortejo do deus,
contempla, no lugar inteligível, o verdadeiro. A contemplação, na região supraceleste,
do sublime se origina, primeiro, na semente de um homem tornado filósofo, amante do
belo e das Musas e cultor do amor, segundo, no germe de um rei legítimo, guerreiro e
soberano, terceiro, na semente de um político ou intendente ou financista, quarto, na de
um homem que ama a fadiga dos exercícios físicos, quinto, numa vida divinatória ou na
iniciação de mistérios, sexto, no germe de um poeta ou de outro produtor de imitações,
sétimo, no de um artesão ou cultivador, oitavo, no de um sofista ou no de um
demagogo, nono, no de um tirano, de sorte que, dentre esses homens, aquele que
partilha de uma vida justa, recebe o melhor lote, enquanto quem partilha de uma vida
injusta, possui o pior lote (Fedr.248d). A alma filósofa, amante do belo e cultora do amor
erótico é a mais congênere ao divino. A alma, considerada ingênita e incompósita
mantém congeneridade com as idéias, pois não participam da geração e da corrupção.
A compreensão humana precisa se realizar de acordo com o que se chama
forma (kat’eîdos legómenon), indo das ltiplas sensações para o um, concentrado por
meio do raciocínio (Fedr.249b,c). O ato de concentração da pluralidade no um remete à
anamnese daquelas coisas que nossa alma outrora conhecera, reunida com o deus,
contemplando do alto o que hoje denominamos ser, elevando-se para o ser real (òn
óntos). Por causa disso, é justo que o pensamento do filósofo (he toû philosóphou
98
diánoia) seja o único alado, pois, empregando a memória, se dedica, de acordo com o
seu poder, sempre para aquelas Formas, às quais um deus deve a sua própria
divindade, reiterando o parentesco entre as potestades divinas, a memória e o
conhecimento. Assim, utilizando-se retamente daquelas reminiscências e cumprindo
perfeitamente os ritos iniciáticos, o filósofo seria o único homem que se torna, para
Sócrates, realmente perfeito (Fedr.249c). O pensamento filosófico é, ao mesmo tempo,
alado, divino, remêmoro, de sorte que a afecção erótica, provocando o viso inteligível,
nutre as asas dessa alma numinosa, à qual o deus oferta os dons manifestos em idéias
completivas. O filósofo, por essas razões sublimes, afastando-se dos assuntos
propriamente humanos, se dirige para o divino, para a região fulgente, e pleno de
entusiasmo é esquecido pela multidão. Se alguém contempla o belo visível, esse
rememora, munindo a alma com asas, o belo verdadeiro e, tendo adquirido novamente
asas, passa a desejá-lo vividamente. Mas, sendo incapaz de voar, contempla, como
pássaro, o alto e, negligenciando os assuntos mundanos, é acusado de delirante (Fedr.
249d,e). Dentre todas as possessões divinas, o delírio amoroso é o melhor, composto
de melhores elementos, tanto para quem o possui para quem se associa a ele, pois, o
amoroso, participando deste supremo delírio, é retamente denominado amante das
belas coisas (Fedr.249e). Assim, toda alma humana, por natureza, teria contemplado os
entes, pois se não os tivesse contemplado, não viria a ser um vivente. O rememorar, a
partir da vida mundana, o súpero não é fácil para todo vivente, remanescendo poucas
almas capazes de reter a memória dos entes sagrados, de modo que muitas almas, não
afeitas à filomatia, pelo êxodo da memória, incidem no esquecimento. A observância,
no visível, da imagem, pode, em certos eventos, perturbar a alma, interditando aos
muitos a evidência do supremo. A justiça, a temperança e tantos outros prêmios para as
almas não possuem, todavia, nenhuma luminosidade nas imagens do âmbito sensível
(Fedr.250a). Os prêmios de uma vida justa e feliz não são obtidos por meio da
percepção mas pelo conhecimento dianoético, propiciando à alma medida e proporção.
Se justiça, temperança e outros bens são formas congêneres ao inteligível, então
sua apreensão se realiza por uma forma que lhes seria de nexo, evidenciada na forma
do belo. A contemplação sensível do belo propicia à alma filósofa a anamnese das
formas peras, pois ela rememora, a partir da contemplação do belo visível, as idéias
99
imutáveis, unas e sempiternas. Assim, determinadas idéias, como justiça, temperança,
sabedoria, se refugiam na natureza do belo, porquanto essa permitiria a reminiscência
daquelas idéias supremas, compreendidas pelo saber dianoético. Contempla-se o belo
em sua fulgência, pois, quando se acompanha o coro dos bem-aventurados, tem-se a
visão e o espetáculo sublime da corte de Zeus e de outros deuses (Fedr.250b). A visão,
órgão percipiente do belo, é, das sensações por meio do corpo, a mais penetrante.
Porém, não pode mirar a sabedoria, que nos poderia conceder amores sublimes. O
belo, apenas, possui o quinhão de poder ser o mais evidente e amado (ekphanéstaton
kaì erasmiótaton) (Fedr.250d). A contemplação do belo visível propicia tanto o ascenso
ao belo em si quanto o descenso às paixões mais deletérias. O belo visível, porém, por
causa de seu aspecto fúlgido, nos permitiria o acesso ao conhecimento, à verdade e ao
ser, à medida que participássemos do coro divino. Sócrates afere que cada alma
venera o seu deus de quem foi coreuta, imitando-o e honrando-o o quanto pode, desde
sua primeira gênese, tanto nas suas relações amorosas quanto nos convívios de
amizade (Fedr.252d). Assim, os coreutas de Zeus aspiram a se apaixonar por aqueles
que possuem uma alma semelhante a Zeus, concebido intelecto puro imiscido,
examinando se sua natureza é filósofa e hegemônica. A possessão erótica permite à
alma compreender sua natureza inata e divina, porquanto “as almas são espécies
numinosas, recebendo o conhecimento divino do belo, do justo e do bem(Friedländer,
1958:42), sendo, especificadamente, a alma coreuta de Zeus a mais elevada alma
predisposta à filosofia e à hegemonia política, um intermediário entre o deus e o mortal.
Ressalta-se o nexo evidente entre a experiência erótica e contemplação das idéias
súperas, pelo qual o inteligível é vislumbrado no horizonte sensível, pois quem
contemplou o belo visível, rememora, por uma anamnese voluntária, o belo em si, o
puro belo imiscido, que outrora contemplara na região supraceleste, antes de seu
nascimento. Os seguidores de Hera, por exemplo, almejam uma natureza real e tendo-a
descoberto, empenham-se por enfim possui-la. Os coreutas de Apolo e de cada um dos
outros deuses aspiram a uma alma congênere, acedendo ao seu próprio deus, de sorte
que o verdadeiro amante se predispõe vigorosamente a tornar, por uma espécie de
magia simpática, o amado o mais semelhante ao deus venerado e almejado,
100
ausentando-lhe completamente, em seu delírio amoroso, o ciúme, a inveja, o temor ou
cólera, ou seja, prazeres ilimitados.
O cortejo divino exprime no horizonte mítico as estruturas ontológicas atestadas
no registro filosófico. Zeus, poder olímpio hegemônico, exprime em sua soberania a
idéia do Bem, idéia dentre todas idéias. Cada outra divindade é precisamente
reconhecida por seu âmbito de poder, assim como cada idéia é rigorosamente
entendida pelo seu próprio horizonte de potência. A concepção de que os Deuses são
definidos por seus domínios específicos constitui um tópico essencial do raciocínio
teogônico hesiódico, nutrindo e configurando a especulação filosófica platônica em
torno do reino das idéias. A citada homologia se torna ainda mais preclara pela
conceituação das formas advenientes da problemática da essência, aduzidas na
gigantomaquia cosmogônica do Sofista, como gêneros supremos. A correspondência
entre Deuses e idéias, no diálogo Fedro, permite a Platão, portanto, fixar os ditames da
composição retórica sobre a natureza do amor, auferindo que cada paixão requer ser
pensada e enunciado respeitando a sabedoria numinosa. Não há no texto platônico a
transição do mito à filosofia, do discurso figurativo arcaico para o discurso conceitual
clássico, mas o nexo entre discurso mitopoético e discurso filosófico.
A louvação da loucura amorosa nos presenteia com o dom divino da
reminiscência da sabedoria, da virtude e do belo inteligível. O êxtase amoroso,
originado da emanação de uma pura luz interior do delirante e refletida nos olhos do
amado, recrudesce o ímpeto da sabedoria divina e da contemplação das Formas
ingênitas e incorrutas, ao passo que o não apaixonado, misturado a uma mortal
temperança e a uma economia parcimoniosa e humana, engendra na alma amiga a
frivolidade, à qual a multidão falsamente denomina virtude. A mais bela e melhor
palinódia à possessão amorosa, laudatoriamente proferida por Sócrates, purificando-o
de seu primeiro discurso vituperioso, ressalta o elogio da filosofia e a congeneridade da
alma filósofa à sabedoria numinosa e divina. O discurso encomiástico socrático,
expondo a relevância do delírio apaixonado para a consecução da verdadeira filosofia,
superou em perfeição e beleza a mera logografia de Lísias. A logografia não é, todavia,
deletéria, sendo preciso saber o que torna um discurso bom, afastando-o dos prazeres
efêmeros ou maus, remetentes aos prazeres servis. A dialética se apresentaria como a
101
consumada arte de escrever discursos, dirigida o simplesmente ao deleite da
multidão, mas ao conhecimento da verdade, de modo que quem contempla o
verdadeiramente real efetua, tanto no falar quanto no escrever, tanto no diálogo quanto
na logografia, o justo e o conveniente. O consumado retor, possuido pelo delírio erótico
que lhe permite a reminiscência do belo em si, do belo inteligível, é o filósofo, pois esse
participa do caráter divino e numinoso. O verdadeiro filósofo é protegido pelas Musas
Calíope, protetora da épica e da eloqüência, e Urânia, patrona da astronomia, gloriando
melodias mais belas do que as hineadas pelas outras Musas. A noção de uma
hierarquia entre as próprias Musas implica a hierarquia das suas funções, pois o estudo
celeste e da natureza completiva, escopo de Urânia, precisam ser legiferados pela
retórica filosófica, escopo de Calíope. A referência à Musa Calíope estipula os
procedimentos necessários à reta consecução logográfica, reunindo as dimensões
humana e numinosa. A dialética se apresenta como suprema retórica, efetuada por
uma necessidade logográfica e protegida pelas venerandas Musas, filhas de Zeus e
Mnemosyne.
O discurso encomiástico sobre a natureza do amor, proferido por Sócrates,
oposto ao discurso de Lísias, proferido por Fedro, e ao primeiro discurso socrático,
evidencia a condição do filósofo e sua congeneridade ao princípio da alma dianoética e
mnemônica. Sócrates e Fedro, após a exposição do primeiro e do segundo discursos
vituperiosos e do terceiro laudatório, começam a discutir as condições apropriadas à
execução do discurso verdadeiro, salientado na terceira récita encomiástica, efetuando
a distinção das melhores formas oratórias, adversas às meras logografias. O escrutínio
de uma retórica filosófica, cuja teleologia é a natureza completiva do todo, oposta à
retórica, consumar-se-á na dialética. Não se trata de rejeitar a escrita como forma de
expressão, pois um rei como Dario ou conspícuos retores como Lícurgo e Sólon eram
em vida, pondera Sócrates, considerados logógrafos imortais na pólis (Fedr.258b,c). A
crítica à escrita não se reporta a si própria, mas se refere tanto ao falar quanto ao
escrever nocivamente. Não uma suposta invectiva platônica da escrita, tese
precípua da teoria esoterista, porém a objeção à e à nociva logografia, porquanto o
discurso filosófico se revela como perfectiva arte gráfica. A dialética é eleita o supremo
gênero oratório e os seus artífices considerados melhores retores. Não o reproche à
102
escrita, mas a aguda consciência do processo de elaboração da logografia e de sua
finalidade ante determinados gêneros produtores de discursos que almejam apenas o
persuadir. O nascimento do discurso filosófico é indissociável do aparecimento do
diálogo como forma expositiva literária das reflexões moral e política, surgidas no
período clássico. “Por muitas gerações anteriores a Platão, desde os primeiros filósofos
naturais de Mileto até os coetâneos de Sócrates, como Anaxágoras, Diógenes de
Apolônia e Demócrito, a exposição em prosa era o meio privilegiado para o estudo da
natureza, enquanto os autores gregos empregavam o diálogo para a reflexão moral e
política” (Vlastos,1983:77).
A dialética surge como um saber psicagógico, assemelhando-se, aparentemente,
à retórica, considerada também uma arte condutora de almas. Mas, se dialética e
retórica têm semelhanças, porque ambas possuem a alma como escopo, apresentam
também diferenças. Salientam-se na dialética e na retórica semelhanças e diferenças
relativas, assim como ressaltam-se na medicina e na culinária semelhanças e
diferenças relativas. Revelam-se a construção da figura do filósofo e sua oposição à
figura do retor, pois se a dialética tem como critério a unidade mítica entre verdade,
conhecimento e ser, a retórica tem como critério a persuasão e a mera verossimilhança.
A retórica filosófica relativa à suprema dialética se apresenta como aspecto sensível da
inteligibilidade divina, pois o filósofo dialético, apaixonado pela verdade e pelo ser real,
imita, pela possessão numinosa, e notoriamente honra a divindade olímpia. A retórica,
empregada como arte antilógica, nos afasta da experiência do sagrado, pois rejeita o
nexo entre logografia sensível e forma inteligível, atendo-se ao verossímil sem que esse
manifeste realmente o verdadeiro, sem revelá-lo
33
. Assim, é mister privilegiar a posse e
presença da sabedoria numinosa da alma dianoética a fim de diferenciar a dialética
filosófica da antilogia retórica. As categorias modernas de pensamento, separando
pensamento mítico e pensamento lógico, linguagem simbólica e linguagem conceitual,
descuram do liame evidente entre os horizontes político e cultual, pelo qual o saber
filosófico platônico é constituído.
33
Cf.Mié (Mié,2004:220): “La persuasión popular y la imposición de la aparencia ante un público masivo
son prácticas discursivas de poder mutuamente vinculadas, que Platón adjudica a la retórica tradicional
en el Fedro (...) Todo lógos, tanto el pronunciado en público como en privado, el escrito como el oral, se
ordena a la determinación de la verdad de la cosa tratada”.
103
Não seria a arte retórica, no seu conjunto, uma psicagogia (psychagogía), por
meio de discursos, exercida não apenas nos tribunais e em tantas outras reuniões
públicas, mas também em reuniões privadas, aplicando-se tanto nos temas
insignificantes quanto nos grandiosos, ajuizando, da mesma maneira, homens vis e
magnânimos? (Fedr.261a) Sócrates pergunta a Fedro se, porventura, ouvira falar dos
discursos de Nestor e Ulisses, compostos em Ilíon, ou da arte de Palamedes. Fedro
responde-lhe que não, a não ser que supusesse ser Górgias
34
um Nestor ou Trasímaco
e Teodoro um Ulisses. A pergunta socrática pretende expor que a antilogia pode ser
primeiramente atestada na mitopoesia, por meio dos personagens de Nestor, Ulisses e
do argivo Palamedes, conspícuo por sua capacidade oratória. O inquérito socrático
põe-nos, portanto, entre parênteses a premissa de que a antilogia é uma invenção
racional, nascida da transição do discurso mitopoético para o discurso lógico. A poesia
épica apresentar-nos-ia exemplos de habilidade oratória, revelando-nos o emprego da
antilogia por seus personagens. Não realizariam os litigantes (antídikoi), em tribunais, a
arte antilógica sobre o justo e o injusto, fazendo as mesmas coisas parecerem aos seus
cidadãos, nos discursos populares, ora justas ora injustas, ora boas, ora o seu
contrário? Sócrates anui que o Palamedes eleata, exercendo a antilogia, proporciona
que as mesmas coisas pareçam ser, ao mesmo tempo, para seus ouvintes semelhantes
e dessemelhantes, unas e múltiplas, móveis e imóveis
35
(Fedr. 261d).
Sócrates ressalta que a controvérsia (antilogikè), antilogia, não se realiza apenas
em tribunais e nos debates públicos, mas em toda espécie de discurso, tornando todas
as coisas mutuamente semelhantes a fim de proceder à ilusão, operada pela arte do
engano, de sorte que se alguém, exercendo a antilogia, se empenha em enganar
outrem, sem se enganar, é preciso conhecer com acurácia a semelhança e a
dessemelhança dos entes, pois aquele que ignora a verdade de cada ente, não é capaz
de reconhecer distintamente nos outros nem o semelhante nem o dessemelhante. “A
34
Cf.Mié (2004:218): “La naturaleza de la retórica del siglo V (cf. Grg.455d8,456a5) es explicada por
Platón como un poder-saber (dýnamis cf.466d7-8, e3) dominar las más diversas capacidades del
hombre”.
35
Cf.Kerferd (1981:60): “That the Eleatic Palamedes was Plato’s way of referring to Zeno was recognized
in antiquity and may be taken as securely established. There is every reason also to suppose that when
he wrote these words Plato was well aware of the contents of Zeno’s book. On this basis Gregory Vlastos
has recently argued most persuasively that Zeno supposed that the contradictions ‘like/unlike’,
‘one/many’, and ‘resting/in motion’ all followed from a single initial hypothesis, ‘if things are many’”.
104
arte retórica e a arte do enganar (que no Sofista é chamada arte apatética) têm um
território comum: ambas se fundam no conhecimento da verdade, o que por si
demanda o método dialético” (Torrano,2004:48). A apatética, lado sinistro da
psicagogia, reconhecendo a diferença entre semelhantes e dessemelhantes, manifesta-
os para o seu auditório indistintamente para iludí-lo. Assim, quem não conhece a
verdade, procurando caçar meramente opiniões, transforma a arte dos discursos
plausivelmente em algo risível e sem arte (geloían tiná kaì átechnon), pois é preciso
escrutinar nos discursos o que é ou não referente ao paradigma (Fedr.262c). Os dois
discursos socráticos sobre o amor, um reprobatório e o outro encomiástico, revelam,
conforme seu autor, que o conhecimento do verdadeiro permitiria ao orador dissimular
os discursos a fim de encantar e iludir os ouvintes. A concepção de que para proferir o
falso é necessário conhecer o verdadeiro constitui tópico essencial da análise platônica
sobre a natureza do discurso, de sorte que o uso nefando da oratória não advém da
ignorância de quem a emprega. Se alguém pronuncia a palavra ferro ou prata, diz
Sócrates, claramente entendemos o mesmo. Mas, quando alguém fala a palavra justo
ou bom, não podemos entendê-los, de acordo com a astúcia de determinada espécie
retórica, diferentemente? A arte retórica pode tanto tratar do que é claramente anuido
por todos, como ferro e prata, quanto daquilo que não é unanimemente aquiescido,
como justo e virtuoso. As palavras que reportam aos entes invisíveis e intangíveis
realizam a mútua antilogia e a contradição em nossa própria alma. Se a retórica tem por
escopo a opinião, a dialética tem, como arte também do discurso, por meta a verdade.
A habilidade retórica pode induzir o auditório ao erro e à falsa opinião. O risível nasceria
à medida que a nossa opinião contradiz o real, apoiando-se no o-ser. A antilogia
opõe dois argumentos mutuamente contraditórios, consistindo numa arte puramente
emulatória que usa as palavras sem o auxílio da ciência. A prevalência erística do uso
de meras contradições verbais se opõe ao discurso dialético que emprega o método de
divisão por formas. A dialética não pode incidir em simples contradições verbais, em
contendas frívolas, de sorte que o discurso antilógico remete à concepção ontológica
fundamental de que a realidade fenomênica está em um processo metabólico
permanente, no qual todas as coisas são e não são, havendo o fluxo perpétuo da
contradição. O poder da arte antilógica rejeita os princípios necessários da possessão
105
amorosa correlatos à contemplação sensível e apaixonada do semelhante, à medida
que transforma o semelhante no dessemelhante, o grande no pequeno, o bom no
vicioso, fazendo com que as coisas pareçam ser ao mesmo tempo e na mesma relação
unas e múltiplas, móveis e imóveis, iguais e desiguais.
Sócrates rejeita a indistinção entre dialética e antilogia
36
, pois essa se apresenta,
produzindo lides contraditórias, no âmbito da mera aparência, a qual não participa da
inteligibilidade, enquanto aquela, inspirada pelo supremo delírio erótico, discerne, no
nível do discurso, as formas da semelhança e da dessemelhança. O filósofo é, também,
um produtor de discursos, mas sua arte mimética não se baseia numa imitação de
opiniões, na doxomimética, comprometida apenas com a aparição da verossimilhança,
todavia se baseia na imitação verdadeira das formas. O dialético contempla, na ordem
verossímil do cosmos, o possível entrelaçamento inteligível de formas distintas,
manifestando-o por intermédio da reta linguagem, havendo, nesta diligente
observância, a analogia entre o cosmo completivo e o discurso verdadeiro, porque
ambos necessitam apresentar certa harmonia. A constituição do discurso verdadeiro
precisa se sujeitar não aos preceitos convencionais, ditados pela arte antilógica, mas à
ordem natural, à natureza originária. Sócrates salienta que todo discurso necessita ser
constituido como um ser vivente, tendo seu próprio corpo, não ausentando-lhe nem
cabeça nem s, possuindo as extremidades e meios mutuamente ajustados e
completamente escritos (Fedr.264c). A passagem citada evidencia, portanto, as “regras
de composição literária” (Robinson,1962:64), os preceitos da arte retórica, expondo ser
preciso proceder dos temas mais simples para aqueles mais complexos, do mais fácil
para o mais difícil, respeitando, pela necessidade logográfica, as articulações naturais
36
Kerferd intenta diferir entre dialética, antilogia e erística, pois para ele, antilogia e erística não o
termos intercambiáveis. A erística se reporta, dada a acepção de seu nome primevo, ‘eris’, à contenda, à
lide, não evidenciando necessariamente uma técnica argumentativa, como a antilogia, porém
determinada conduta, contraditória a da dialética, sendo usualmente objeto de reproche e condenação
pelo filósofo. A antilogia, cuja técnica argumentativa remonta a Zenão de Eléia, se diferencia da erística
por dois aspectos; de um lado, pela oposição, ou por contrariedade ou por contradição, entre ‘lógoi’ ou
pela evidência de oposições em um argumento, de outro, pelo seu possível mau emprego por aqueles
que tencionam a dissimulação. Cf. Kerferd (Kerferd,1981:61): If we look at the whole passage in the
Phaedrus 261c4-e5 it becomes clear that Plato is there equating the art of the Eleatic Palamedes with an
art which he calls antilogike which consists in causing the same thing to be seen by the same people now
as possessing one predicate and now as possessing the opposite or contradictory predicate”. Gilbert Ryle
(Ryle,2003:83) rejeita a diferenciação entre antilogia e erística. Para Ryle, “as expressões agón lògon e
ho antilégon constituem parte integrante do vocabulário dos exercícios erísticos.
106
do discurso e sua requerida harmonia. Assim, todo discurso requer ser composto por
causa da unidade orgânica, cuja forma imitaria a compleição do cosmo. O produtor de
discursos, contemplando o que se mantém sempre o mesmo, o imutável e perfeito,
beneficiando-se de um tal paradigma, perfecciona sua oração como bela, mas se
observasse o devir, como o retor, o sofista, o poeta, beneficiando-se de um paradigma
gênito, seu discurso não seria belo, não participando da necessária inteligibilidade.
O projeto platônico, ínsita a diatribe entre Sócrates, intérprete das Musas, e
Fedro, leitor de Lísias, é instaurar a dialética como consumada arte retórica, própria aos
verdadeiros oradores que são os filósofos. Se em República VI a dialética é pensada no
nível epistemológico, como superna ciência, no Fedro é pensada no âmbito retórico, de
sorte que epistemologia e retórica o são, para Platão, eixos incompossíveis, mas
compatíveis. A dialética se constitui como eminente projeto, ao mesmo tempo
epistêmico e retórico, cultual e político, mítico e racional, pois o verossímil, pela
necessidade logográfica do discurso, deve participar da inteligibilidade do verdadeiro.
Se se aquiesce ser o amor, conforme os discursos proferidos, um delírio, é
preciso diferenciar suas possíveis formas por meio do método de divisão. Sócrates diz
haver duas espécies de delírio, uma nascida das moléstias humanas e a outra surgida
da possessão divina, afastada, assim, de leis costumeiras. A possessão divina é
diferenciada em quatro parcelas correlatas a quatro deuses, pois é atribuida a Apolo a
inspiração divinatória (mantikèn epípnoian), a Dioniso a inspiração iniciática nos
mistérios (telestikén), às Musas a inspiração poética (poietikèn) e à Afrodite e a Eros é
atribuido o delírio erótico (erotikèn manían) como sendo o melhor dentre todos os
delírios, porquanto representando mediante imagem a afecção erótica ( erotikòn
páthos), atinge-se alguma verdade, assim como também se afasta dela, de sorte que
se compõe com essa mistura um discurso não absolutamente não persuasivo (ou
pantápasin apíthanon lógon), algum hino mítico, mesurado e benfazejo, em louvor a
Eros, considerado o senhor e protetor dos belos jovens (Fedr.265b,c). O discurso sobre
o amor é a manifestação do delírio erótico, podendo relacionar a natureza mortal com o
seu oposto complementar, revelado, pela plena afecção erótica, na natureza imortal. À
mútua relação entre imortal e mortal, instaura-se a comunidade entre o ser e seu outro.
Se se compõe o encômio da afecção erótica, atinge-se alguma verdade, se se compõe
107
seu opróbio, afasta-se dela. A discursividade sofística se apresenta como a contrafação
da discursividade filosófica pela diferenciação entre os usos reto e nefando da retórica.
Contemplando conjuntamente a multiplicidade disseminada, é preciso conduzi-la
para uma forma única, a fim de que se torne manifesto, definindo cada elemento, sobre
o que se deseja representar. A outra maneira de elaborar adequadamente um discurso
é ser capaz de dividir por formas (kat’eíde dýnasthai diatémnein), pelas suas
articulações naturais, empenhando-se em não mutilar suas partes, como se se
utilizasse de modos de um mau açougueiro (Fedr.265e). A dialética se constitui como a
mais consumada retórica. Sócrates declara ser um amante das divisões e combinações
(erastés tôn diairéseon kaì sunagogôn), permitindo-lhe ser capaz de falar e de pensar
(Fedr.266b). Sócrates afirma que se contemplasse alguém capaz de se dirigir tanto
para o um quanto para o múltiplo, tencionaria segui-lo de perto, acompanhando seu
rastro como se ele fosse divino (Fedr.266b). Sócrates propõe, pelo princípio cultual, um
procedimento retórico, subordinado às operações dialéticas, por um lado, de unificação
da pluralidade fenomenal numa idéia única, representada pela síntese, e, por outro, de
divisão por formas, obedecendo as articulações naturais do discurso, semelhante ao
vivente, representada pela análise
37
. A retórica precisa, destarte, se afastar dos
aspectos meramente antilógicos e ascender ao divino, apenas apreendido por uma
sabedoria numinosa, intermediária entre os horizontes humano sensível e divino
inteligível. Com efeito, denominam-se dialéticos (dialektikoùs) aqueles que têm esse
poder numênico, pois apenas o deus, pondera Sócrates, sabe se é adequado ou não
chamá-los assim (Fedr.266b,c). O dialético, por intermédio da posse e presença da
verdade, aproxima-se do divino e da essência, sintetizando em sua eminente figura
fenomenal o saber ético e o saber divino. Segundo Bárbara Cassin (Cassin,2005:155),
a retórica, em sua relação com o divino, é o nome do projeto pedagógico infinito da
filosofia e do próprio filósofo. A retórica é a filosofia mesma. Porém, o seria a filosofia
37
Cf.Mattéi (Mattéi,1996:182): “Le dialecticien pratiquera en conséquent des divisions dichotomiques, du
côte gauche comme du cotê droit, en respectant les symétries et les différences. Mais la dialectique ne se
réduit pas à un procédé logique, et pragmatique, pour distinguer et unir: la structure du corps, comme
celle du discours, doit révéler la structure de l’âme, laquelle, à son tour, doit révéler la structure du Tout
qui est, précisément, l’objet de nos recherches: l’ousia”. Cf.Dixsaut (Dixsaut,2003:153): Rassembler les
espèces ‘gauche et droite’ d’erôs en une Forme unique est une opération symétrique de celle de la
division, et entre les deux il n’y a pas succession mais parfaite circularité (..) Le va-et-vient du
108
a mais consumada retórica? A passagem do vitupério da retórica para o seu louvor se
fundamenta, antes, no reconhecimento da dialética como a mais elevada arte retórica,
hineada laudatoriamente e determinada por uma necessidade logográfica, que
respeitaria as partes constitutivas do discurso e a relação entre as partes e o todo. A
dialética como eminente psicagogia filosófica e consumada retórica efetiva o liame
entre as esferas fenomênica e numênica, entre aparência e ser. Para Cassin, a retórica
que Platão “defende e a que ele ataca são inteiramente distintas: no Górgias, trata-se
de uma retórica sofística, adulação que desliza sob a máscara da legislação e sob a da
justiça, trata-se da própria sofística; no Fedro, trata-se de uma retórica filosófica, a do
dialético que analisa e compõe as idéias, trata-se da retórica enquanto filosófica, trata-
se da própria filosofia” (Cassin,2005:149). A retórica sofística opera, de acordo com a
autora, a conjunção entre universalidade e aparência dóxica, pois, por sua desmesura,
pretende tudo saber, simulando o domínio de todas as práticas médicas e demiúrgicas.
Porém, o manejo do verossímil, ‘télos’ do retor, supõe a ciência das relações possíveis
entre verossimilhança e verdade, assim como da semelhança e dessemelhança entre
os entes, de modo que a genuina retórica se apresenta como retórica filosófica.
Assim, não é a retórica a própria filosofia, mas a filosofia, porque arte dialética,
que é a sublime retórica. A invenção platônica da dialética instaura uma relação original
com o discurso, à medida que o esforço de constituição de sua arte como ciência da
verdade, do conhecimento e do ser resulta antes de sua oposição aos outros gêneros
discursivos existentes na pólis clássica ateniense, expondo-nos que o entendimento da
retórica filosófica compreende a instituição de uma hermenêutica ontológica. A dialética
se impõe como necessidade logográfica, pela qual as partes do discurso são reunidas
numa mútua relação
38
. A crítica à retórica precisa ser aduzida não da concepção da
dialética como mero todo de divisões e agrupamentos, todavia da evidência de sua
excelência como arte psicagógica constituinte do discurso e pensamento verdadeiros. A
rassemblement et de la division est constitutif de la dialectique, à condition d’entendre par rassemblement
la réunion d’espèces eidétiques constituant réellement un Genre”.
38
Cf.Kerferd (1981:65): “Dialectic as understood by Plato is difficult to characterise in detail. It has been
well said that the word ‘dialectic’ had a strong tendency in Plato to mean the ‘ideal method, whatever that
may be’. But it regularly involves an approach to the Platonic Forms and it is this more than anything else
which distinguishes it from antilogic. Thus in the Phaedo it is used to refer to the method of hypothesis, in
the Republic it is the ‘upward’ path, and in the Philebus it consists of the process of Synthesis and
Division”.
109
filosofia se revela como a mais perfeita logografia. Ressalta-se o nexo indissolúvel entre
a dialética e a necessidade logográfica, porquanto o dialético compõe o discurso,
respeitando suas partes e sua articulação natural, formulando-o como organismo vivo e
animado. Sócrates enumera as partes constituintes do discurso retórico, havendo, em
primeiro, o proêmio (prooímion), em segundo, a exposição (diégesin) acompanhada de
testemunhos (marturías), em terceiro, os indícios (tekméria), em quarto, os chamados
verossímeis (eikóta). O bizantino Teodoro, considerado o mais hábil artesão de
discursos propõe a justificação (pístosis) e a confirmação da justificação (epipístosis)
(Fedr.266e). O retor precisa efetuar tanto na acusação (kategoría) quanto na defesa
(apología) a refutação e a pós-refutação (élenchon kaì epexélenchon) (Fedr.267a). O
admirável Eveno de Paros foi o primeiro quem descobriu a alusão (hypodélosis) e o
elogio indireto (parépainos), propondo, também, a reprovação indireta (parápsogos) em
metros a fim de auxiliar a anamnese (Fedr.267a). A natureza da verossimilhança
remete ao caráter oratório precípuo da presunção, pois o retor induz o auditório
universal à plausibilidade de seus argumentos, empregando todos disponíveis para
persuadi-los, sem se preocupar com a natureza da verdade, mas com a aparência, o
parecer ser verdadeiro. O proêmio, a exposição com testemunhos, os indícios e os
verossímeis permitem ao hábil orador tecer sua peça retórica a fim de encantar,
persuadir o ouvinte, inserindo-o no âmbito da opinião e da aparência multiforme, na
sedução dóxica, afastando-o da verdade e do ser real. O dialético, afeiçoado à arte da
divisão e da combinação, da união e da separação, à técnica da síntese e de divisão,
pode discernir os elementos constitutivos do discurso, a relação entre suas partes e o
todo, impondo-lhes a sujeição à verdade e ao conhecimento, compondo uma totalidade
completiva semelhante a um organismo vivo e animado. Sócrates expõe a necessidade
de impor regras gerais, adequadas e necessárias de composição literária, colhendo,
previamente, como um mau e nocivo exemplo o discurso erótico de Lísias, indicando
nomes de conspícuos retores que compuseram preceitos oratórios, os quais podem
emular com o consumado retor.
110
Sócrates procede a um inventário de prestigiados retores históricos, minudeando
seus fins
39
. rgias e Tísias anuiram, para Sócrates, que os verossímeis deviam ser
mais venerados que as verdades e, por meio da força do discurso, fizeram com que
pequenas coisas aparecessem grandes e as grandes pequenas, as coisas novas
parecessem ser antigas e assim reciprocamente, empregando tanto a concisão dos
discursos quanto seu prolongamento infinito, mas Prodico disse ser mais conveniente
os discursos mensurados (Fedr.267a,b). Tísias foi discípulo de Córax, e, auxiliando na
formação da escola siciliana de retórica, escreveu um tratado de arte oratória. O poder
da arte retórica se manifesta nas assembléias populares, privilegiando mais o
verossímil do que o verdadeiro. Se o critério fundamental da dialética é a verdade, o
critério fundamental da retórica é a verossimilhança. Não a condenação da retórica,
mas a evidência de seu mau emprego por alguns oradores, considerados maus
logógrafos. Adrasto, rei de Argos, e Péricles, o estratego ateniense, são venerados por
Sócrates como exemplos de admiráveis retores, pois diziam que não se deve hostilizar,
mas perdoar aqueles que, não conhecendo o dialogar (epistaménoi dialégesthai),
são incapazes de definir o que é a retórica (Fedr.269b). A retórica e a arte médica
possuiriam elementos comuns, sendo preciso diferenciá-las concernente a suas
naturezas. A medicina é a arte dos corpos que sintetiza a ciência à empiria, o universal
ao particular, o conhecimento inteligível ao sensível. O médico exercendo a arte
terapêutica corporal, prescrevendo quer exercícios laboriosos, quer uma reta dieta,
realiza a somatogogia, a condução de corpos. Se a medicina cuida do corpo, a retórica
cuidaria da alma. Se se deseja produzir no corpo saúde e força, não meramente por
uma prática rotineira e pela empiria, mas pela arte, deve-se lhe conceder remédios e
nutrição. Se se deseja dar à alma persuasão e virtude, deve-se nutri-la de discursos e
disposições legítimas (lógous te kaì epitedeúseis nomímous) (Fedr.270b). A retórica
filosófica configurar-se-ia como uma espécie de antropologia dietética, pois tanto a
medicina quanto a retórica necessitam ser legiferadas pelos procedimentos analítico e
39
V.Ryle (Ryle,200378). Gilbert Ryle defende que entre a época de Protágoras e a de Aristóteles havia
um considerável número de tratados retóricos, pois os jovens gregos que almejavam ingressar nos
assuntos públicos precisavam aprender como compor discursos judiciários, políticos e panegíricos, de
modo que a arte retórica era o ensinamento predominante até a fundação da Academia. Segundo Ryle,
os manuais de instrução em retórica que Platão menciona no Fedro, particularmente em 266-267, foram
todos compostos por sofistas.
111
sinóptico da dialética, mediante os quais se compreenderia a relação entre as partes e
o todo de seus objetos correlatos. Se a arte retórica busca, então, a terapêutica da
alma, o entendimento de sua natureza se reporta ao conhecimento da natureza do
todo, pois o discurso deve imitar, como um organismo animado, a compleição cósmica.
O consumado orador elabora seu discurso, considerando não o perpétuo devir da
realidade fenomênica, mas a estabilidade e clareza das idéias. A pluralidade aparente
se apresenta metabólica, na qual todas as coisas são e não são, na qual o semelhante
devém dessemelhante, o justo injusto, o virtuoso vicioso, confundindo, pela má
educação, essência e aparência, fenômeno e idéia, de sorte que o discurso antilógico
retira seu poder da mera aceitação do devir, da aparência dóxica. O discurso filosófico,
todavia, retira seu poder de sua congeneridade à sabedoria e à alma divinas.
Segundo Sócrates, é manifesto que Trasímaco e outros, que ensinam
prestemente a arte retórica, devem primeiramente descrever com toda exatidão a alma
e mostrar se é, por natureza, una e homogênea ou se, pela aparência corpórea, é
multiforme. A retórica filosófica implicaria “o conhecimento da alma e de sua força
produtiva e receptiva, tanto quanto o conhecimento dos gêneros de discursos e de seus
correspondentes gêneros de alma” (Torrano,2002:50). O discurso, se se ater apenas ao
sensível, revela um arrazoado multiforme sem uma necessária compleição. Mas, se se
aplicar ao inteligível, evidencia uma completiva natureza una e homogênea. O discurso
bem composto revelar-nos-ia uma necessidade logográfica, pela qual as partes devem
ser devidamente articuladas ao todo compósito. Sobretudo, deve-se ordenar o gênero
dos discursos e de alma (tà lógon te kaì psychês géne), suas afecções correspondentes
e as respectivas causas, ajustando cada gênero a seu gênero correlato, ensinando por
intermédio de quais gêneros discursivos cada gênero de alma é ou não
necessariamente persuadido (Fedr.271b). A persuasão deve ser, consoante os ditames
logográficos, acompanhada da verdade. Assim, cada gênero de discursos, arte retórica,
a sofística, filosofia, produz na alma do ouvinte uma forma determinada de prazer. A
alma filósofa é a única que experimenta os prazeres puros, pois, nutrida pela dialética,
não se persuade apenas por discursos belos e ornados, sem a necessária comunidade
com a verdade e com a inteligibilidade. A multidão, aprazendo-se com o caráter
encantatório da linguagem, adstrito ao território do verossímil e da falsa aparência,
112
deixa-se facilmente persuadir. Ressalta-se a homologia entre o gênero da alma e o
gênero do discurso, pois o dizer exprime o ser, a linguagem expressa a realidade, de
sorte que o consumado orador, venerando a verdade e a sabedoria divina, inspira as
almas magnânimes para o belo. Para Cassin, o ensino da retórica “deve passar por um
conhecimento dos gêneros de almas, de suas maneiras de agir e de padecer, e por um
conhecimento simétrico dos gêneros de discurso, para desembocar no conhecimento
das relações causais entre gêneros de discurso e gêneros de alma” (Cassin,2005:155).
A definição do discurso como psicagogia constitui um dos tópicos centrais dos
Diálogos platônicos, pois, para crates, o poder do discurso (lógou dýnamis) consiste
na psicagogia, condução de almas, porque quem deseja se tornar retórico, precisa
conhecer as formas que a alma possui (271c,d). A cada gênero de alma corresponde
determinado gênero de discurso e, por esta causa, há almas fáceis de persuadir
(eupeitheîs), mas há, porém, outras difíceis de persuadir (dyspeitheîs), sendo preciso
que o retor seja capaz de respeitar com acuidade o desenvolvimento de um discurso,
contemplando os argumentos nas ações e em eventos, reunindo, nesta arte, palavra e
ação, haja vista que certas almas não se aprazem com certos discursos, nos quais se
originam a opinião e a imaginação falsas. A alma filósofa e dianoética, por exemplo, se
apraz com a dialética, observando o verdadeiro, o que é regido pela justa proporção e
simetria. O tópico retórico da psicagogia nos auxilia a pensar o ofício pedagógico e
político do filósofo ante os seus êmulos, de sorte que a dialética, elevado saber
psicagógico, se impõe, pela necessidade logográfica e pela recusa à apatética, como
gênero produtor de discursos verdadeiros, superando tanto a contenda elêntica quanto
a antilogia quer dos retores quer dos sofistas, gêneros produtores de discursos falsos.
40
O filósofo é o crítico das formas oratórias existentes nas assembléias populares
e nos tribunais, pois ninguém nos tribunais se ocupa da verdade, mas da persuasão,
pois quem almeja dominar a arte retórica, preocupa-se meramente com o verossímil.
Numa acusação ou numa defesa, de acordo com a retórica e eloqüência judiciárias,
não se deve falar, diz crates, as ações que realmente aconteceram, se estas não
40
Cf. Torrano (2002:51): “A primeira sinopse da exposição verifica que, aplicado à retórica, o método
dialético implica a psicologia que distingue 1 º) se a alma é algo simples ou complexo, 2 º) qual a
natureza de seu poder de produzir o quê em outrem e de padecer o qde outrem, 3 º) quais almas por
quais razões se deixam ou não se deixam persuadir por quais discursos”.
113
forem verossímeis (Fedr.272e). O poder da arte antilógica prevalência à
verossimilhança, separando os domínios da ação e da palavra. A oposição entre
alethès, o verdadeiro, e eikòs, o verossímil, é constitutiva da oposição entre a
filosofia e os outros gêneros de discurso existentes na pólis clássica, portanto, entre a
imitação sábia e verdadeira e a imitação de simulacros. Assim, é mister salientar que o
verossímil surge para a multidão por causa da similitude com o verdadeiro, reiterando o
poder do aparente. Conforme Sócrates, jamais alguém será um hábil artista do discurso
se não discernir as naturezas dos ouvintes futuros e também as naturezas de suas
almas, se não diferenciar os entes por suas formas e se não compreender numa única
idéia cada ente em particular (Fedr.273d,e), procedendo sua arte por divisões e
agrupamentos. O consumado orador é o dialético. O dialético é o único dos gêneros
produtores de discurso que pode reunir as habilidades supracitadas. O filósofo possui a
primazia do saber dialético, pois diferencia na unidade complexa do real suas partes
específicas. As habilidades não são alcançadas sem muita aplicação, aproximando o
homem sensato não do falar e agir humanos, mas do falar e agir divinos, pois os mais
sábios dizem que não se deve comprazer com os companheiros de escravidão, mas
com os bons senhores e pelas coisas boas (Fedr.273e,274a). Para Brisson (Brisson,
2003:170), “Platão não aceita a autonomia da retórica, porquanto ela depende de uma
outra cnica, a dialética, que se esforça por atingir o verdadeiro, do qual depende o
verossímil procurado pela retórica; e ela depende de um sistema de valores que é da
ordem do inteligível, não do sensível”. A oposição entre o dialético e o retórico não
consiste meramente em uma distinção de habilidades discursivas, mas, de acordo com
uma hermenêutica filosófica, na própria diferenciação de suas naturezas ontológicas, à
medida que o retórico confina sua prática à simples empiria e convenção, não aduzindo
que o sensível se manifesta na própria relação com o inteligível, limitando o justo e o
belo a palavras ausentes de idéias, o que contemporaneamente denominamos palavras
ocas, ausentes de sentido. O dialético conhece no horizonte fenomênico os liames e as
disjunções entre os entes, observando-o tanto como a harmonia cósmica quanto como
o organismo vivo e animado. O obséquio para com os bons senhores, os deuses, surge
da anuência de que o dialético possui uma aptidão distinta dos outros produtores de
discursos, uma habilidade inata, sendo-lhe concedido um saber privilegiado. O poder
114
despótico dos deuses sobre os homens impõe, antes, ao sábio a experiência sagrada,
pela qual se afasta das falsas aparências, da sedução doxástica. A evidência de que a
linguagem apresenta o ente é constitutiva da experiência dialética registrada em Platão.
O mito da origem da escrita narra que, no entorno de Naucratis do Egito, havia
uma divindade antiga, cujo emblema sagrado era o pássaro chamado íbis e seu nome
era Theuth, o primeiro a descobrir o número, o cálculo, a geometria, a astronomia e as
letras. Naquele tempo, reinava no Egito o rei Thamous, cuja morada era a maior cidade
do lugar elevado, denominada pelos helenos Tebas do Egito e cujo deus era Amon.
Theuth indo até ele, mostrou-lhe as artes, dizendo ser preciso transmiti-las para os
outros egípcios. Theuth diz para o rei existir o aprendizado (tò máthema) que tornaria os
egípcios mais sábios e mais mnêmicos (sophotérous kaì mnemonikotérous), de sorte
que a memória e a sabedoria (mnémes te kaì sophías) descobriram o seu remédio
(phármakon) (Fedr.274e). Thamous responde-lhe que quem possa produzir as artes
e quem possa decidir qual parte é nociva ou útil àqueles que as empregam. O
engenhoso Theuth, pai das letras (patèr grammáton), por complacência, diz o contrário
àquilo do que a escrita é capaz, pois o aprendizado da escrita propicia nas almas o
esquecimento, por causa da ausência do exercício da memória. Assim, rememora-se
pela crença na escrita, por intermédio de inscrições estrangeiras e do exterior e não do
interior e por si mesmo. A alma, por intermédio da invenção da escrita, não exercita a
memória, provocando, assim, a reminiscência não por si mesma e interiormente, mas
exteriormente e pelo uso das letras, de forma que Theuth descobriu o remédio
(phármakon) não para a memória (oúkoun mnémes), mas para a reminiscência (allà
hypomnéseos) (Fedr.275a). A mais sublime e mais veneranda forma de escrita seria o
discurso escrito na alma pelo filósofo, propiciando-lha a anamnese. A crítica à escrita se
refere, pois, à invectiva contra a reminiscência involuntária, originada não da sabedoria,
mas daquele remédio entorpecedor da memória, pois a escrita interditaria o discurso da
alma consigo mesma, sendo a ela extrínseca, ao passo que a prática oral agiria como o
correlato pictórico ou escrito na alma do ser, sendo nela intrínseca.
Giorgio Colli (1994:173) aquiesce que a escrita, em sua função precipuamente
literária, aparece na cultura grega depois da segunda metade do sexto século, sendo,
todavia, antes adstrita à esfera política, sob forma de documento público, de modo que,
115
enquanto simples recurso mnemotécnico, era privado de autonomia expressiva e de
consideração intrínseca. Assim, no momento em que a linguagem dialética adentra no
território político, advém, por um lento processo, essa autonomia, surgindo os nomes
decisivos de Platão e Górgias (Colli,1994:173). A avaliação platônica da escrita é
inextricavelmente associada ao contexto da sua origem e de sua conseqüente fonte de
registro dos discursos orais, correlata à logografia (Guthrie,1971:178). A transposição
de uma linguagem oral sagrada para uma linguagem escrita laica, passível de conter
uma natureza dissimulatória, capaz de tornar o não-saber em aparência de saber,
institui, para Platão, a premência de pensar o estatuto da razão gráfica nascente. A
invectiva platônica não é à escrita em si mesma, porém àqueles que a dissociam do
caráter primígeno venerando da oralidade, praticantes da poesia, da logografia e da
nomografia. Seria Platão o lado destro de Homero, Lísias e Sólon? O filósofo, conforme
Sócrates revela no epílogo do diálogo, precisa subordinar a escrita ao discurso oral,
mostrando sê-la, se correla, a imagem sensível destra do inteligível, diferentemente dos
poetas, dos logógrafos e nomógrafos, artífices do discurso, que tornam o texto escrito a
imagem sensível esquerda do inteligível. Para Fabian Mié (Mié:2004,26), “ler Platão
requer uma completa transformação e reformulação dos critérios e dos comportamentos
práticos por parte do leitor”.
Os homens se mostram, pela escrita, bastante sapientes sem instrução,
parecendo ser muito instruidos, tendo uma opinião complacente de sua sabedoria, sem
serem sábios e possuindo, no que tange à sabedoria, não a verdade, mas a opinião. A
escrita permite ao homem ter a aparência de sabedoria, porquanto o verdadeiro saber é
privilégio de uma alma mnemônica. Não uma rejeição da escrita, como presume a
leitura esoterista dos Diálogos, mas a evidência de um nexo indissolúvel entre memória
e saber, reminiscência e oralidade. A memória exerce função decisiva para a execução
da vida feliz, mista de vida sábia e hedonista. A gênese do esquecimento é o êxodo da
memória, porquanto o território da verdade é o horizonte do não esquecimento,
efetuado pela anamnese da alma, por um contínuo e reiterado exercício mnemônico,
pela contemplação das formas inteligíveis. Privilegiando o saber mnêmico em oposição
à reminiscência pela grafia, o mito da origem da escrita busca exprimir os limites da arte
mimética como manifestação do real, pois tanto a escrita quanto a pintura se revelam
116
como simples imitações do real, imagens dos viventes, cópias de cópias, haja vista que
o discurso daquele que sabe (tòn toû eidótos lógon) é o discurso vivente e animado, e o
discurso escrito é sua imagem (gegramménos eídolon) (Fedr.276a), sendo mister aferir
a beleza ou deleteriedade do discurso falado ou escrito e a possibilidade de reproche
ou louvor de seu compositor. A crítica à escrita nos remonta, portanto, ao escrutínio do
estatuto da imagem e às implicações ontológicas surgidas de sua oposição ao modelo,
à medida que o poder do dialogar nos remete ao âmbito inteligível e a escrita ao
sensível. A superioridade da oralidade em relação à escrita repousaria em um critério
eminentemente epistemológico, pois o discurso oral permite tanto o exercício da
refutação, o elenchos, quanto a defesa de quem foi eventualmente interpelado.
41
A escrita é uma imagem do diálogo vivo e animado, podendo ou não manifestar,
por causa de sua natureza sensível, tanto o ser real quanto sua mera aparência, de
sorte que o escritor, assim como o pintor, à medida que a pintura possui o mesmo
estatuto da escrita, deve escrever discursos verdadeiros a seus leitores a fim de lhes
revelar a essência inteligível. Mas, apenas o dialético efetua inscrições verdadeiras,
porquanto seu discurso se reporta não às simples sensações, aos meros ouvintes, e
sim à alma do ser. A dialética instaura uma original espécie de logografia, não afeita ao
caráter persuasivo e verossímil do dizer, inspirada pela apologia do delírio erótico,
manifesta pela interpelação numênica, mostrando ser Eros um deus benfazejo. O dizer
dialético exprime o ente em si mesmo, seu aspecto parusíaco e as suas possíveis
combinações, semelhanças, participações, comunidades e misturas. A ciência dialética
busca expressar o indissociável liame entre dizer, pensar e ser, nexo revelado na
tríplice caracterização do conhecimento, verdade e ser, afastando-se do uso apenas
antilógico e do raciocínio erístico. A dialética engendra o caráter inato da alma, a sua
natureza ingênita, propiciando-lha, pela atividade mnêmica, a reminiscência das idéias
contempladas na região supraceleste.
41
A concepção da escrita não como um mero sucedâneo da oralidade, mas como sua própria imagem
sensível é, de certa forma, retomada por Trindade por meio do procedimento socrático do elenchos. V.
Trindade (1987:63): “A sobreposição dos horizontes oral e escritural deixa-se prolongar na prática do
elenchos, em que um e outro aspectos podem ser distinguidos de um modo personalizado e não
personalizado, respectivamente. Pelo primeiro, percebe-se que Sócrates procura melhorar o seu
interlocutor, tornando-o apto a reconhecer a sua própria ignorância, portanto, capaz de ‘investigar e
aprender’ (Men.84c). Pelo segundo, em que qualquer diálogo é tomado como a tentativa de responder a
uma pergunta, o elenchos vê-se melhor como um instrumento de refutação sistemática”.
117
O discurso vivo e animado é mais belo do que os mitologemas, pois utilizando-se
da dialética e por uma alma apropriada, plantam-se e semeiam-se discursos com a
ajuda da ciência (met’epistémes) (Fedr.276e). A dialética filosófica, superando o
pensamento elêntico dos Diálogos primeiros, se constitui como psicagogia dialética, à
medida que é um gênero produtor de discursos verdadeiros, opondo-se a outros
gêneros miméticos. O discurso imitativo do vivente, efetuado pela arte dialética,
prevalência ao verdadeiro de cada um dos aspectos do qual se fala ou escreve,
podendo definir todas as coisas em si mesmas (kath’autò), de modo particular, e,
procedendo às suas definições, dividi-las, conforme as Formas, até o indivisível (Fedr.
277b). O poder dialético afere o lado destro da imagem, pois pormenorizadamente
escrutina a semelhança com a realidade inteligível, sendo concedido ao filósofo, que
compõe a obra respeitando o verdadeiro, defendendo-a se, porventura, lha sobrevier
uma refutação, considerando-a, enfim, insignificante em face do tema magnânime
tratado. O interlocutor socrático infere ser retamente nomeado quem contempla os três
requisitos supra-citados, o respeito à verdade, a defesa de uma possível refutação e o
reconhecimento da sujeição da escrita à oralidade, o um sábio (sophós), pois essa
denominação conviria senão ao deus, mas filósofo (philósophos), ao passo que quem
contempla meramente a sua composição é correto chamá-los ou poeta (poièten) ou
redator de discursos (gon syngraphéa), logógrafo de fato, ou nomógrafo
(nomographón) (Fedr.278d), reportando-se, dentre os mais conspícuos, a Homero, a
Lísias e a lon
42
. A poesia, a logografia e a nomografia seriam o lado esquerdo da
imagem sensível da prática oral, pois contemplam apenas o exercício compositivo, ao
passo que a filosofia seria o lado destro da imagem sensível da escrita. O dialético,
opondo-se àqueles e a suas correspondentes formas de escrita, é o consumado retor,
apreendendo seu discurso pelas suas articulações naturais e formas específicas, sendo
hábil em contemplá-las tanto sinopticamente quanto indivisivelmente. A divisão por
42
A composição dos discursos retóricos e dos cantos mitopoéticos contempla a unidade mítico-filosófica
entre os três critérios dialéticos relativos ao conhecimento, à verdade e ao ser. Léon Robin considera
haver uma perfeita unidade no pensamento platônico referente à apreciação dos poetas e dos
legisladores, descritos como nomógrafos. Cf. Robin (Robin,1964:78): “Il n’y a donc en somme, dans
l’attitude du Phèdre à l’égard des poètes et des législateurs rien qui soit nouveau: l’idée que les
législateurs, les orateurs et les poètes ne méritent d’être estimés qu’à la condition de savoir en quoi
consiste la vérité et d’être, en un mot, philosophes (...) toute poésie, toute rhétorique, toute politique sont
condamnables, dont l’objet n’est pas la vérite et la justice”.
118
Formas, método correspondente à retórica filosófica, discerne, aferindo a multiplicidade
fenomênica, o entrelaçamento inteligível das Formas em si, rejeitando que haja apenas
o perpétuo devir, a mera fenomenalidade, na qual todas as coisas aparentemente, ao
mesmo tempo e na mesma relação são e não são semelhantes e dessemelhantes, más
e boas, virtuosas e viciosas, grandes e pequenas, limitadas e ilimitadas, fundamento da
arte erística e do poder antilógico.
O discurso laudatório socrático sobre o amor permite-nos evidenciar os tópicos
precípuos dos Diálogos aplicados à constituição do discurso filosófico, como a primazia
da alma dianoética e mnêmica, a excelência da arte dialética, a apropriação do discurso
mítico pelo discurso filosófico, a oposição do filósofo aos outros gêneros produtores de
imagens, os limites morais da deliberação política e da eloqüência judiciária e a relação
reta ou sinistra entre verdade e verossimilhança. A escrita é o correlato sensível da
récita animada inteligível, podendo ou não imitá-la retamente, ressaltando ou não o
aspecto numinoso da prédica oral, pelo qual o consumado retor realizaria sua sábia
logografia. Apenas o filósofo, em seu sentido estritamente platônico e não isocrático,
pode ser considerado verdadeiro retor, pois aspira ao conhecimento do todo e não
unicamente de suas partes. A logografia filosófica, considerada imortal, pois mantém
congeneridade com a verdade, com o conhecimento e com o ser, se constitui “pari
passu” e concomitantemente à noção da alma remêmora. A logografia, por sua vez,
praticada por Lísias, Trasímaco, Górgias e Tísias, promove o esquecimento, à medida
que nos impede, por causa da ausência de correlação com o ser real e a verdade, a
reminiscência voluntária das Formas, entorpecendo a memória e provocando a
ausência das lembranças. Não há uma crítica universal à escrita, mas sim à
logografia, porquanto essa nos interdita a anamnese espontânea, o mantendo nexo
com a verdade e também o admitindo refutação. A logografia filosófica, todavia, nos
permite a reminiscência das idéias ingênitas e imutáveis, não sujeitas à nese e ao
perecimento e à pura contenda enantiológica. A dialética, no estrito senso definida no
diálogo Fedro e oposta à retórica antilógica e à mera logografia, retira sua evidência da
compreensão das idéias intangíveis e incorpóreas, contempladas pela reminiscência
voluntária. Mas, a anuência apenas do caráter unigênito e imutável das idéias nos induz
ao imobilismo parmenídeo, tornando-se preciso pensar, adverso ao puro eleatismo, a
119
essência do movimento, necessária para a aquisição do conhecimento, de sorte que a
tessitura das idéias, propugnada pelo Estrangeiro de Eléia, no diálogo Sofista “constitui
a resposta platônica ao problema do eleatismo, i.e., às dificuldades entranhadas numa
apreensão monista das propriedades” (Mié,2004[2]:102). Segundo Mattéi (Mattéi,1996:
181), o estudo dos gêneros supremos nos permite “estabelecer como a filosofia opera o
deslocamento de uma figura divina, Hestia, a mais abstrata dentre todas as divindades
do Panteão grego, para uma idéia metafísica, Ousia, a mais concreta dentre as formas
inteligíveis, recebendo a comunidade em seu seio”. Para tanto, tornar-se-á mister definir
a teoria da comunidade recíproca dos gêneros supremos (koinonía tôn mégiston
genon), incorporando, assim, o movimento, a dinâmica, ao problema da essência.
120
IV. O poder da comunidade e a dialética no Sofista
O diálogo Sofista é considerado por parte da crítica comentativa como uma
ruptura em relação a certo platonismo ortodoxo, que separa os lugares sensível e
inteligível, o devir e a essência, o movimento e o repouso, assegurando o mobilismo
unicamente ao lugar sensível e ao devir e o imobilismo apenas ao lugar inteligível e à
essência. Se em República V 476a evidencia-se o poder de comunidade recíproca
entre os sensíveis por meio da comunidade entre corpos e ações, no Sofista tratar-se-á
de mostrar o poder de comunidade tua entre os inteligíveis. Pensamos que o Sofista
apresenta o desenvolvimento natural das questões implicadas nos Diálogos chamados
intermediários, pois considerá-lo como uma cisão, suporia entender que Platão tivesse
uma teoria apriorista das Formas, na qual as formas inteligíveis funcionariam como
princípio formal e a pluralidade sensível como princípio material, comandando a
atividade compositiva de seus Diálogos.
121
A crítica platônica à arte sofística supõe a própria definição do gênero sofístico.
O gênero filosófico se constitui em oposição a seus gêneros dessemelhantes, sendo
difícil de ser apreendido, devido à natureza divina. A definição do sofista, no diálogo
homônimo, como doxômimo, imitador de opiniões, permite-nos entender a diferença
entre o filósofo e seu outro, entre o discurso e opinião verdadeiros e o discurso e
opinião falsos. O sofista, assim como o poeta e o retor, é um imitador de aparências. O
gênero sofístico, à medida que opera não com a verdade, mas com a aparência, não
com o ser, mas com o parecer ser, produz a opinião, a imaginação e o discurso falsos.
A possibilidade de, não apenas, dizer o falso, mas de supô-lo e imaginá-lo, exige uma
reavaliação do estatuto do não-ser, antes confinado ao âmbito ontológico do
esquecimento, lugar meôntico onde prevalece a ausência de memória, e do
ocultamento. O entendimento socrático de que o sofista reside no intermediário entre o
ser puro imiscido e o não-ser absoluto nos remete à crítica à radical cesura entre o ser
e o não-ser, oriunda do poema de Parmênides e à rejeição do postulado sofístico da
impossibilidade do discurso falso. Caberá ao estrangeiro eleata recusar a natureza do
não-ser absoluto, atribuindo-lhe certa existência, porquanto propicia o aparecimento da
opinião, imaginação e do discurso falsos. O método de divisão por formas, empregado
pelo estrangeiro, se aplica tanto no reino fenomênico, a fim de evidenciar a natureza do
sofista ante o filósofo e político, quanto no âmbito inteligível, a fim de revelar os gêneros
supremos e sua possível comunidade recíproca.
O gênero do filósofo não é mais fácil de definir do que o gênero divino, pois
esses homens, aparecendo sob as mais diversas formas na ignorância dos muitos,
vagam nas cidades, contemplando do súpero a vida terrena, sendo realmente, e não
apenas em aparência, filósofos (Sof.216c). Parecem a uns valorosos, a outros de pouca
valia, tomando a forma ora de políticos ora de sofistas, aparecendo para opinião de
muitos em total delírio. O estrangeiro admite que o filósofo, o sofista e o político são três
gêneros distintos. Não obstante, definí-los com evidência não é um ato pequeno nem
fácil (Sof. 217b). O reconhecimento do filósofo se efetua por diferenciação ante os seus
gêneros dessemelhantes. Por ser congênere ao divino, o filósofo é, dos gêneros
citados, o mais difícil de ser apreendido. A sua natureza humana e também divina é a
mais semelhante à região supraceleste, onde reside o ser puro imiscido. A presumível
122
indistinção entre o filósofo e seus gêneros dessemelhantes nos remete à opinião de
que Sócrates teria ensinado entre os sofistas, tendo sido, para muitos, um genuíno
sofista e, no parecer do comediógrafo Aristófanes, o seu mais conspícuo representante
(Friedländer,1974:23). Revela-se a preeminência de não confundir, por causa dessa
suposta indiferenciação, numa mesma totalidade gêneros dessemelhantes. A suposta
semelhança, na opinião dos muitos detratores do saber socrático, entre o filósofo e os
amantes da erística se torna nociva para o reto saber e para seu possuidor.
O hipotético poder ou o de comunidade entre o filósofo e o sofista, à medida
que habitam lugares distintos, refletiria o poder ou não de comunidade entre os gêneros
supremos, de sorte que o sensível revela o possível entrelaçamento ou não do
inteligível. A noção de que o visível pode ou não manifestar a tecedura das formas
invisíveis precisa permear o entendimento do diálogo, revelando-nos a superação tanto
do devir móvel metabólico heracliteano quanto do ser esférico imutável parmenídeo,
portanto, da relação antitética entre movimento e repouso. A realidade aparente se
apresenta em uma mútua comunidade de ações e corpos. A arte erística, descurando
da recíproca associação dos entes, não apreende a urdidura fenomênica, engendrando
nas assembléias e tribunais a opinião e o discurso falsos. O reconhecimento da
dessemelhança entre o filósofo e o sofista, de sua não comunidade, permite evidenciar
a diferenciação entre o verdadeiro e o falso, realizada pelo método de divisão por
formas. A aplicação desse todo supremo propicia discriminar no todo homogêneo as
suas parcelas concordantes e discordantes.
O estrangeiro emprega o método de divisão por formas, com o auxílio de
Teeteto, buscando preliminarmente definir o gênero do pescador com anzol, pois deve-
se ocupar primeiramente dos assuntos mais fáceis e simples para julgar os mais
relevantes. Assim, é preciso discernir a arte do pescador com anzol. As artes o
divididas em arte produtiva (poietiké téchne), pois do não-ser se origina o ser, e arte
aquisitiva (ktetiké téchne), que se apropria do pré-existente, do produzido. A
aquisitiva se diferencia em duas formas, havendo a troca por dons, locações e compras
(metabletikòn diá doreôn kaì mistóseon kaì agoráseon) e a forma da captura (
cheirotikòn), apreendendo todas as coisas por atos e palavras. A captura se divide em
duas formas, pois o que se faz às claras é a luta (agonistikòn) e o que se faz
123
secretamente é a caça (thereutikòn). A própria caça é dividida em duas partes,
havendo, de um lado, a caça do gênero inanimado (mèn apsýchou) e, de outro, a
caça do gênero animado (d’empsýchou) (Sof.219e). A aspaliêutica efetuaria não a
arte produtiva, mas a arte aquisitiva por captura, especificamente, a caça do gênero
animado aquático, cabendo, então, ao sofista a caça do gênero animado terreno.
Assim, é preciso compreender o gênero sofístico por raciocínios firmes e o apenas
pelo nome separado do raciocínio, empregando não longos discursos, mas
interrogações. O gênero sofístico opera a captura, não mediante luta manifesta, mas
pela caça ardilosa. O sofista não caça o gênero inanimado, mas o gênero animado
terreno, os animais domésticos. O sofista é ardiloso caçador, não violento, mas
persuasivo, pois a arte de caçar animais não selvagens é dividida em duas formas. A
caça pela violência é pilhagem, escravidão de homens, tirania e toda espécie de guerra.
Porém, o discurso judiciário (dikanikè), a eloqüência deliberativa (demegorikè), a
conversação particular (prosomiletikè) constituem um todo, denominado arte da
persuasão (pithanourgiké téchne), exercida tanto no âmbito público quanto no privado
(Sof.222d). A arte da persuasão é uma forma própria de caça doméstica, na qual o
sofista realiza uma caça doméstica, não pública, mas privada. A caça do particular
(idiothereutiké) é efetuada ou por meio de salário (mistharnetikós) ou, como a arte
erótica, pela oferta de presentes (dorophorikós). O sofista professa, em reuniões
privadas, a virtude, recebendo por ela uma remuneração. A sofística é uma forma
persuasiva, não violenta, de escravidão, cuja captura e domínio são efetivados por
discursos adulatórios. Portanto, a primeira definição do sofista é o caçador interesseiro
de jovens ricos. O gênero sofístico exerce, previamente, a arte aquisitiva por captura,
pela caça do gênero animado terreno doméstico, caça não violenta todavia persuasiva.
A arte aquisitiva não se reduz, de um lado, ao gênero da caça ( mèn
thereutikòn), mas contempla, de outro, o gênero da troca ( allaktikón). A troca
possui duas formas, por um lado, a troca de presentes (mèn doretikón) e, por outro, a
troca comercial (agorestikón). A troca comercial é dividida na arte de vender seus
produtos (autopoliké) e na arte de vender os produtos de outrem (metabletiké). A troca
comercial de produtos alheios é realizada tanto no comércio interno das cidades
(kapeliké) quanto na importação (emporiké). O sofista, percorrendo as cidades,
124
mercadeja bens para uso e alimento da alma, assim como a música em seu conjunto
(mousiké sunápasas), a pintura e escritura (graphikè), a prestidigitação
(thaumatopoiikè) e muitos maravilhamentos para a alma. No empório de almas
(psychemporikês), há a parte correlata à arte da exibição (epideiktikè) e a relativa ao
comércio de conhecimentos (mathematopolikè) (Sof.224b). No comércio de
conhecimentos, a parte relativa ao comércio de artes (technopolikèn) e outra
referente ao gênero sofístico (sophistikòn genós). O gênero do sofista se reporta à
arte aquisitiva (tò ktetikês), à troca (metabletikè), à troca comercial (agorastikè), à
importação (emporikè) e ao empório de almas (psychemporikè), mercadejando os
discursos e os conhecimentos referentes à virtude (Sof.224c,d). O sofista é, mediante o
método de divisão por formas, um estrangeiro que comercia virtude e discurso, donde a
segunda definição do sofista é o comerciante de conhecimentos. Mas, quem se fixa na
cidade, exercendo a aquisição pela troca comercial de conhecimentos, negociando-os
tanto como vendedor de segunda mão quanto como próprio produtor é denominado
sofista. A sua terceira e quarta definição é revendedor de conhecimentos e produtor e
vendedor de conhecimentos. O sofista não é meramente quem efetua a troca comercial
pela importação, mas quem a realiza em sua cidade. O ofício do sofista consiste tanto
na caça adulatória de jovens ricos quanto na troca comercial, quer externa quer interna,
de discursos e conhecimentos sobre a virtude.
O sofista é, também, definido pelo gênero agonístico. A agonística se diferencia
em emulação (tò amilletikòn) e em combate ( machetikón) (Sof.225a). O combate,
realizado corpo a corpo, tem verossímil e convenientemente o nome de ataque violento
(biastikón). Porém, denomina-se contestação (amphisbetetikón), quando se opõem
discursos contra discursos (Sof.225b). Se se opõem, no âmbito público, longos
discursos sobre a justiça e a injustiça, chama-se contestação judiciária (dikanikón). Se a
contestação é particular, efetuada por perguntas e por respostas, denomina-se
contestação antilógica (antilogikón) (Sof.225b). A antilogia, cujo assunto são os
contratos, é contestação, exercida ao acaso e sem arte. o obstante, a contestação
exercida com arte sobre o justo em si, o injusto em si e outros denomina-se erística
(eristikòn) (Sof.225c). A erística é uma parte definida da contestação antilógica,
diferenciando-se pela crematística, ou seja, pela remuneração. A erística propicia tanto
125
o ganho quanto a perda de dinheiro
43
. Quando, por causa do prazer da diatribe,
negligencia-se interesses pessoais, sem se atentar para o prazer dos muitos dos
ouvintes, denomina-se tagarelice (adoleschía) (Sof.225d). A tagarelice é uma parcela
da arte aquisitiva, agonística, antilógica e erística. Mas, a arte oposta que recebe
dinheiro por contendas privadas é a sofística, pois o gênero crematístico (
chrematistikòn génos), na arte erística (eristikês téchnes), na antilógica (tês antilogikês),
na arte contestatória (tês amphisbetetikês), na do combate (tês machetikês), na
agonística (tês agonistikês) e na aquisitiva (tês ktetikês), se reporta ao gênero do sofista
(Sof.226a). O erístico mercenário é, portanto, a quinta definição do sofista, cujo oposto
é o erístico que pratica a tagarelice. As quatro primeiras definições do sofista nos
remetem às relações de mercado existentes na cidade, enquanto a quinta busca defini-
lo a partir dos quadros conceituais de crítica aos gêneros produtores de discurso, de
modo que a diferença entre contestação judiciária e contestação antilógica ou
contraditória reside no fato de que esta aparece nas reuniões privadas, em diatribes, e
aquela nas reuniões públicas, nos tribunais e nas assembléias.
A sexta definição se refere à arte da divisão (diakritikèn téchnen), separando
quer seja o pior do melhor, quer seja o semelhante do semelhante. Quando se separa o
pior do melhor, chama-se uma purificação, havendo duas formas de purificação, uma
correlata ao corpo e a outra relativa à alma. O vício na alma é diferente da virtude,
porque purificar é rejeitar o ignóbil, mantendo o remanescente. Contemplam-se na alma
duas formas de mal, uma relativa à enfermidade no corpo e a outra à fealdade.
Constitui um dos tópicos importantes dos Diálogos a identidade entre harmonia, saúde
e gênese e entre discórdia, enfermidade e corrupção. A discórdia se origina da
corrupção da natureza nascida do desacordo mútuo entre congêneres, enquanto a
fealdade provém da ausência de medida, acarretando a deformidade do gênero. Assim,
as opiniões, desejos, coragem, prazeres, a razão e as dores estão na alma dos frívolos
em mútuo e geral desacordo, de sorte que o vício é retamente dito ser uma discórdia e
uma enfermidade da alma (stásin kaì nóson tês psychês ponerían) (Sof.228b). A
43
Segundo Gilbert Ryle (Ryle,2003:79), as contendas refutativas eram comumente denominadas
erísticas, adquirindo uma conotação pejorativa previamente nos textos platônicos. Para Ryle, “Platão
emprega esta palavra e suas variações para as formas comercializadas de exercício praticadas por
certos sofistas, que recorrem a todas as formas de astúcia a fim de lhes assegurar a vitória”.
126
discórdia, enfermidade, corrupção nascem da assimetria dos sentimentos, da errância
dos impulsos anímicos. Para toda alma a ignorância é involuntária, pois o ignorar é
quando a alma, dirigindo-se para a verdade, desvia-se da compreensão, ocasionando a
desrazão. A alma insensata (psychè anóetos) constitui-se de fealdade e falta de
medida. na alma dois gêneros de males, por um lado, o vício ( mèn ponería),
sendo manifestamente para ela uma enfermidade, por outro, a ignorância (
ágnoian), não reconhecida que seja um mal na alma (Sof.228d). Assim, existem dois
gêneros de males na alma, pois a covardia, o desregramento e a injustiça constituem
uma enfermidade, a ignorância, afecção ltipla e multiforme, é decerto uma
fealdade. A ginástica e a medicina expurgam respectivamente a fealdade e a
enfermidade do corpo. A punição (kolastikè) para a desmesura, para a injustiça e
covardia é, de todas as artes, a que melhor se aparenta à justiça, já a instrução
(didaskalikè) é a arte mais apropriada para a ignorância em conjunto (Sof.229a). A
educação (paidéia) é uma forma particular de instrução, que liberta o ignaro do
desconhecimento, tendo duas formas. Há, por um lado, o antigo modo de nossos pais,
que muitos utilizam, até hoje, para com seus filhos, ora repreendendo-os ora
docemente aconselhando-os, podendo denominá-lo, em seu conjunto, retamente de
admoestação (nouthetetikén). Há, por outro, a forma nascida da evidência de que todo
desconhecimento é involuntário (pâsan akoúsion amathían), pois quem supõe ser sábio
não desejaria nada aprender do que presume ser hábil. Os falsos sábios pensam ser
hábeis, quando, não obstante, possuem uma ignorância involuntária.
A refutação (tòn élenchon) é a mais importante e a mais poderosa das
purificações (megíste kaì kyriotáte tôn kathárseon), porém conservar-se irrefutável (tòn
anélenchton), mesmo sendo um supremo rei, torna-o impurificado dos maiores males,
mantendo a falta de educação e a fealdade onde se deseja a maior pureza e beleza a
quem pretenda ser realmente feliz (Sof.230d,e). A refutação pode tanto nos remeter à
argúcia socrática de liberar o interlocutor das falsas aparências quanto à arte sofística,
havendo tanto seu lado destro correlato a Sócrates refutador quanto seu lado sinistro
relativo ao sofista refutador. Assim, torna-se preciso delimitar as diferenças existentes
entre o filósofo e o sofista, pois o filósofo se assemelha ao sofista assim como o o ao
lobo, o animal doméstico ao animal selvagem. A efetiva alteridade entre esses gêneros
127
se realiza pelos ditames da arte mimética. Os sofistas, para o Estrangeiro, parecem aos
seus aprendizes serem sábios a respeito de todas as coisas, mas realmente não são,
pois isso é impossível. A raça dos sofistas manifesta ter não a verdade, mas uma certa
ciência doxástica (doxastikèn epistémen), i.e., uma arte do conjecturar no que concerne
a tudo (Sof.233c)
44
. O sofista se revela, portanto, doxósofo, aquele que tem a aparência
de sábio. O sofista, dizendo saber todas as coisas e podendo ensiná-las por ínfima
quantia e no tempo mínimo, pratica um entretenimento infantil (paidiá), de sorte que a
mais graciosa e engenhosa forma de divertimento é a forma mimética (mimetikón)
(Sof.234b). O homem que promete ser capaz de tudo produzir, fabrica meramente
imitações e homônimos dos entes (mimémata kaì homónyma tôn ónton), pois, pela arte
gráfica, poderá exibir de longe seus desenhos aos ingênuos dentre os jovens infantes
(Sof.234b). Assim como o pintor e o poeta, o sofista detém uma espécie privilegiada de
arte gráfica, por meio da qual exerce sua arte mimética, pois os discursos admitem uma
certa arte, a qual é capaz de enfeitiçar por palavras os ouvidos dos jovens ainda
privados da verdade das coisas, apresentando-lhes imagens faladas (eídola legómena)
sobre tudo o que existe, parecendo ser verdade o que ouvem e o pronunciador dos
discursos ser o mais sábio dentre todos (Sof.234c). O sofista é um ilusionista e um hábil
imitador, produzindo a sua prestidigitação mediante a arte antilógica, apresentando aos
seus ouvintes não o lado destro da imagem mas o seu lado sinistro.
O sofista pertence ao gênero dos prestidigitadores (tôn thaumatopoiôn génos),
produzindo aparência de verdade e deslumbramentos nas sensações de seus
discípulos. O sofista é um mimético doxósofo, pois efetua, com sua mágica, ltiplos
sortilégios aos ouvintes, privando-lhes do conhecimento e da verdade, refugiando-se na
arte de produzir imagens, denominada arte idolopéica (n eidolopoiikèn téchnen). O
sofista exerce uma forma específica de imitação no gênero mimético correlata à arte
fantástica, produtora de simulacros. Segundo o método de divisão por formas,
discriminam-se duas espécies de produção de imagens na mimética, pois há, de um
lado, a arte da cópia, denominada arte icástica (tèn eikastikèn téchnen) e, de outro, a
arte do simulacro, chamada arte fantástica (n phantastikèn téchnen). A primeira
44
Cf. Casertano (Casertano,2002:79). A ciência doxástica revela a possibilidade do discurso não
pronunciar verdadeiramente o ser, o apreendendo a essência real. A doxastikè epistéme indica a
aparência de ser sem realmente ser, ou seja, o falso.
128
parcela é a arte da cópia, porque a gênese da imitação (tèn toû mimématos génesin) é
efetuada segundo as simetrias do paradigma em largura, comprimento e profundidade,
atribuindo a cada uma de suas partes as cores adequadas. A arte do simulacro, porém,
segunda parcela da arte produtora de imagens, se origina da imitação inexata das
proporções do modelo, comum na mimética pictórica, pois seus demiurgos renunciam
às corretas proporções, produzindo belas aparências das imagens a fim de maravilhar
os seus espectadores
45
. O gênero sofístico é difícil de ser apreendido, pois o parecer
ser e o mostrar (phaínesthai kaì dokeîn) sem ser, o dizer sem dizer a verdade
revelam, segundo o Estrangeiro de Eléia, muitas aporias, pois dizer que o falso ou o
opinar seja real (pseudê légein è doxázein óntos eînai) e proferí-lo nos envolve em uma
contradição (enantiología) (Sof.236d). A hipótese provável de que o não-ser seja (
òn eînai), de que o não-ser exista, revelaria uma ousadia do discurso (Sof. 237a),
opondo-se às teses parmenídea e megárica sobre a não-existência do não-ser. A
opinião, por ser precisamente um intermediário entre o ser imiscido e o não-ser
absoluto, precisa ser entendida de acordo com a possibilidade de comunidade ou com
o ser ou com o não-ser. A constatação da existência do discurso e da opinião falsos, ou
seja, de que o não-ser é, produz, segundo o Estrangeiro eleata, a enantiologia, sendo
que a contradição repousa no presumível intercâmbio entre ser e o-ser, pois, por
essa evidência, ambos não podem mais ser pensados como esferas topológicas
distintas, podendo se misturar.
45
A diferenciação da arte mimética, propugnada pelo Estrangeiro eleata, em idolopéica icástica e
idolopéica fantástica, respectivamente, entre, por um lado, uma imitação que reproduz fidedignamente as
proporções de seu paradigma, pois as partes superiores, numa escultura ou pintura, parecem, por causa
da perspectiva do observador, ser menores do que realmente são, enquanto as inferiores parecem ser
maiores do que são verdadeiramente, e, por outro, uma imitação descompromissada com a exatidão do
modelo, porém apenas com o parecer ser belas suas imagens, precisamente, com a verossimilhança,
retoma o discrime socrático, em República VII 523a,b, entre, de um lado, a apreciação da skiagraphía,
desenho em perspectiva, permitindo à intelecção (nóesis) intervir na sensação (aisthésis), e, de outro, a
aferição de que os desenhos observados de longe intervêm meramente nas sensações, não despertando
o inteligível. Com efeito, em ambos os casos, posicionamo-nos em face de duas operações miméticas
diferentes, tanto em República VII quanto no Sofista, correlatas ao respeito ou não à verdade, ao
conhecimento e ao ser. Porquanto grap pode, assim, designar tanto o ato de pintar quanto o de
escrever, reconhecemos não haver no Fedro uma invectiva platônica à escrita, mas precisamente
àqueles discursos escritos que não se reportam ao ser, à verdade e conhecimento. Defender a
proeminência de um pretenso testamento ágrafo platônico em relação a seus textos seria não entender a
complexidade da constituição da arte mimética para Platão e sua relevância para a invenção da dialética,
imitação sábia e verdadeira,
129
A contradição supõe a possibilidade de um não-ser diferente do não-ser
absoluto, porque o não-ser por si ( òn au kath’autó) não pode, para o
Estrangeiro, ser nem pronunciado (pthénxasthai), nem dito (eipeîn), nem pensado
(dianoethênai), pois o o-ser per se é impensável (adianóeton), inefável (árreton),
inexprimível (áphthenkton) e indizível (álogon) (Sof. 238c). Admitir que o não-ser per se
possa ser pensado e dito nos carreia a contradição de supô-lo dotado de algum ser. O
sofista se refugiou em um lugar recôndito, lugar ctônico, cujo escrutínio se pela
noção mesma de imagem, instaurando a possibilidade do não-ser relativo. A imagem é
entendida como um certo outro (héteron toioûton), sendo semelhante ao verdadeiro (
pròs talethinòn aphomoioménon) (Sof. 240a), porém realmente não o seja. A imagem
como o outro do ser é o verossímil. O outro não é de modo algum o verdadeiro, mas
sim verossímil (all’eoikòs) (Sof.240b). Se o verdadeiro (alethinòn) é o que realmente
é (óntos òn), o ser real, o não-verdadeiro (alethinòn) seria, por essa noção, o
contrário do verdadeiro (enantíon alethoûs). O verossímil (eoikòs), haja vista ser não-
verdadeiro, porquanto imagem, não pode ser dito como realmente não sendo (ouk
óntos ouk òn), mas sim de certo modo é (Sof.240b). A natureza da imagem possui um
certo grau de realidade. O verossímil não é o não-ser por si, i.e., o não-ser absoluto,
mas é o não-ser relativo, pois é, no sentido existencial não predicativo, porque
semelhante, em relação ao verdadeiro. Assim, torna-se mister realizar a ortologia sobre
o não-ser (tèn orthologían perì tò ón) (Sof.239c) a fim de tanto dirimir a aporia
parmenídea de que o o-ser não é, pelo qual exclui tudo o que realmente não é ser,
afirmando que todas as coisas contêm ser, quanto definir, adverso ao sofista, a real
natureza do falso. O policéfalo sofista, operando habilmente imagens, tanto homônimos
quanto imitações dos entes, nos constrange a homologar que o não-ser, de certo modo,
é, tendo certa existência, dado haver o entrelaçamento entre o ser e o não-ser (Sof.
240c). O referido o-ser se manifesta em imagens em águas e em espelhos, tanto em
impressões (tà gegramména) quanto nas inscrições (tà tetypoména) (Sof.239d), i.e., em
imagens seja pintadas seja gravadas. A contradição, enantiología, na qual se
enredaram os interlocutores acerca da existência ou não do não-ser, se revela princípio
de resolução da aporia parmenídea, atribuindo ao entrelaçamento uma unidade
130
enantiológica, própria ao desvelamento do sofista.
46
Se no diálogo Fédon a unidade
enantiológica é pensada em termos da participação do sensível no inteligível e de
mútua interdependência entre idéias opostas, no Sofista é entendida por meio da
comunidade recíproca entre os gêneros considerados supremos.
O gênero sofístico é um gênero produtor de simulacros (phantásmata), cuja arte
é a do engano, também denominada arte apatética (tèn chnen apatetikèn),
produzindo em nossas almas opiniões falsas (Sof.240d), pela fabricação de imitações e
homônimos dos entes. A opinião falsa (pseudès dóxa) opina sobre coisas contrárias
aos entes (tanantía toîs si), de sorte que ela opina sobre os não-entes ( ónta).
O sofista realiza a sua arte no âmbito meôntico, no qual o não-ser se mostra como o
outro do ser, o verossímil. Revela-se, neste diálogo, a possibilidade de dizer ou pensar
o falso, correlato ao o-ser, o outro do ser, entendido, por meio da arte mimética,
como a imagem dissimulatória. Pela comunidade de gêneros, é possível evidenciar a
existência da opinião falsa, rejeitada pelo pensamento megárico. A opinião falsa, para
esse raciocínio, não existe, pois tampouco a contradição, de forma que se alguém,
porventura, se opõe a outrem, é porque possuem objetos distintos. A ciência dialética,
diferenciando as opiniões falsas das verdadeiras, os discursos falsos dos verdadeiros,
se constitui como o conhecimento do mais verdadeiro, manifestado em seus gêneros
distintos e no possível entrelaçamento ou não entre eles.
O Estrangeiro ajuiza ser preciso, a fim de se defender, pôr à prova (basanídzein)
o discurso do pai Parmênides (tòn toû patròs Parmenídou lógon), asseverando com
força que o não-ser, em relação a algo (katá ti), é, não sendo antes um não-ser
absoluto, e que o ser, de certo modo, não é (Sof.241d). A aporia parmenídea
impossibilita pensar a natureza da arte imitativa. Se não houver o questionamento da
rígida antinomia parmenídea, não se pode falar acerca de discursos e opiniões falsos
(perì lógon pseudôn è doxés), nem de imagens (eidólon) ou de cópias (eikónon), nem
46
Cf. Torrano (2006:89): “O vínculo de participação e associação recíproca entre os gêneros diversos
reside tanto na exclusão de outros que não o mesmo pela qual ele mesmo se constitui o mesmo quanto
na inclusão de outros que não o mesmo pela qual ele mesmo se define o mesmo e assim se contrapõe
como ele mesmo a todos os outros que não ele mesmo.Assim se supõe que o discurso possa escapar ao
sentido pejorativo da contradição inerente à noção de imagem, mediante a descoberta de uma unidade
enantiológica na estrutura mesma das relações recíprocas entre os gêneros supremos. Pode-se, pois,
dizer que a unidade enantiológica no diálogo Sofista de Platão constitui primeiro a primeira aporia e
depois a grande descoberta cujo reconhecimento constitui o princípio da superação de todas as aporias”.
131
sequer de imitações (mimemáton) ou simulacros (phantásmaton), muito menos de suas
artes correlatas (Sof.241e), reiterando a fundamentação sofística de que não o
discurso falso, pois o não-ser, para esse raciocínio, não é, sendo, portanto, todo
discurso necessariamente um discurso sobre algo. O projeto epistêmico do Estrangeiro
é circunscrever a provável natureza especiosa da idolopéica, da produção de imagens,
salvaguardando sua possível reta determinação. O Estrangeiro defende a premência,
por essa razão, de efetivar a invectiva ao raciocínio paterno, do pai Parmênides,
aprazendo-se em refutá-lo e demonstrá-lo. Teeteto exorta-o a proceder à refutação (tòn
élenchon) e também à demonstração (tèn apódeixin) (Sof.242 b). A refutação se
reporta, previamente, àqueles que tencionaram definir a quantidade e a qualidade dos
entes, pois parecem narrar, aos infantes, mitos, haja vista que uns proferem ser três os
entes, outros professam ser dois, como o úmido e o seco, o quente e o frio, enquanto a
raça eleata proclama ser o todo um. Posteriormente, certas Musas da Jônia e da Sicília
ponderaram que o mais evidente seria entretecer ambas as referidas noções e afirmar
que o ser é um e múltiplo (òn pollá te kaì hén estin), associado pelo ódio e pelo amor
(échtra kaì philía synéchetai) (Sof.242d,e), em uma evidente referência à física
empedocleana, que propugna haver quatro raízes fundamentais, o quente e o frio, o
seco e o úmido, unidas pelo amor e separadas pelo ódio, ambos concebidos motores
dos referidos poderes. O inventário das diversas concepções naturalistas discordantes
sobre o ser induz o Estrangeiro a apreciar a urgência de perquirir, com acribia, acerca
do ser e do não-ser, evitando a aporia, pondo em juízo tanto as teorias pluralistas e as
unitaristas quanto as doutrinas dos filhos da terra e dos amantes das Formas, essas
examinadas pela arcaica gigantomaquia cosmogônica.
O discrime do movimento e do repouso como gêneros diferenciais do ser, mas
que dele participam, propicia o desvelamento dos gêneros do não-ser, do mesmo e do
outro. A passagem do combate dos gigantes (gigantomachía) intenta definir o que é o
ser e sua comunidade com o movimento e o repouso. Se o ser é nomeado, no poema
parmenídeo, ingênito (agéneton), incorruto (aphthárton) e imóvel (akíneton), um todo
esférico e sem partes, absolutamente eqüidistante de seu centro, de que modo participa
do movimento? Se se anui que o ser é um, essa tese carreia inúmeras aporias. Se, ao
contrário, todas as coisas estão submetidas ao perpétuo devir, de que modo haveria o
132
poder de participação com o repouso, com o imobilismo? As teorias unitaristas e
pluralistas isolam o ser em um determinado aspecto, perscrutando se o ser reside na
gênese ou na essência, no devir ou na idéia, confundindo a forma do ser ou com suas
qualidades ou com suas quantidades. A questão, para as citadas concepções, é saber
se os entes, pensados como totalidade existente, são corpóreos e visíveis, se são
incorpóreos e intangíveis. Os entes participam da geração ou mantêm porventura
comunidade simplesmente com a essência?
A natureza da essência é examinada a fim de determinar sua presumível mistura
com a geração. É preciso entender como a geração e a essência podem se misturam,
pois parece, ao Estrangeiro, haver um combate de gigantes (gigantomachía), por causa
da controvérsia (dià tèn amphisbétesin), sobre a essência (perì tês ousías) (Sof.246a).
Por um lado, uns, reportando-se aos filhos da terra, procuram arrastar do céu e do
invisível para a terra todas as coisas, agrupando rochas e carvalhos apenas pelas
mãos. Mediante esta apreensão, afirmam, de forma veemente, haver unicamente o que
oferece resistência e contato, definindo o corpo e a essência como idênticos (sôma kaì
ousían) e mesmo que outros, referindo-se aos amantes das Formas, pretendam atribuir
o ser a algo que não tenha corpo, mostram-lhes uma absoluta presunção, não
querendo outra coisa ouvir (Sof.246a,b). O Estrangeiro apresenta, previamente, os
partidários da corporeidade. Seus adversários nesta querela, os amantes de Formas,
defendem-se precavidamente do alto de um lugar invisível, sustentando com rigor que
as Formas inteligíveis e incorpóreas (noetà kaì asómata eíde) são a essência
verdadeira (tèn alethinèn ousían) (Sof.246b). O Estrangeiro diferencia os adversários,
nesta contenda, dos filhos da terra, denominando-os amantes das Formas. Com efeito,
quanto àqueles que consideram ser absolutamente os corpos a verdade mencionada,
chamados os filhos da terra, estes rejeitam denominá-la essência, concebendo-a
meramente como uma geração móvel (génesin pheroménen) (Sof.246b,c). O devir
aparece como a única realidade para os partidários da corporeidade, concebendo-a
metabólica e fenomênica, enquanto as Formas inteligíveis são a única realidade anuida
pelos partidários da incorporeidade, entendidas por sua natureza separada da gênese,
não participando do devir, instituindo, por essa lide, a gigantomaquia cosmogônica.
133
O Estrangeiro de Eléia tenciona demonstrar que as supra-citadas concepções
constituem uma relação enantiológica, em que não há a exclusão de uma pela outra,
mas uma lógica de oposição complementar. Para isso, inquire o jovem Teeteto acerca
do estatuto ontológico tanto do corpo quanto da alma, buscando pensá-los pelo poder
de mútua comunidade, tanto dos partidários da corporeidade quanto da incorporeidade.
A resolução do Estrangeiro evidenciará a mútua interdependência entre o inteligível e o
sensível, entendida pela formulação de uma teoria da arte mimética, na qual a imagem
se revela como o outro do modelo, podendo, assim, assumir espécies distintas.
A perquirição do Estrangeiro eleata intenta solucionar as aporias contidas na
antinomia entre imobilismo e movimento, procedendo por indagações. Podemos afirmar
que o vivente mortal seja algo? Não seria este algo um corpo animado? Não seria a
alma, pois, um dos seres? Com esses problemas, o Estrangeiro almeja superar os
argumentos antitéticos, tanto dos partidários da corporeidade quanto dos da
incorporeidade, que impõem um dualismo psicofisiológico e uma radical cesura entre os
gênero sensível e inteligível, entre a gênese e a essência, entre a aparência e a idéia.
Não afirmariamos que a alma seria ora justa ora injusta ora sensata ora insensata? Não
seria pela posse e presença da justiça (dikaiosýnes héxei kaì parousíai) que a alma
viria a ser justa, e pela posse e presença de seus contrários que ela poderia vir a ser
contrária? Seria um ser o que pode estar presente ou ausentar-se de algo? Atribuindo o
ser à justiça, à sabedoria, a outra virtude, a seus contrários (dikaiosýnes kaì phronéseos
kaì tês álles aretês kaì tôn enantíon) e à alma, onde essses devêm, afirmariamos que
algum deles poderia ser visível e tangível (horatòn kaì haptòn) ou todos seriam
invisíveis (aórata)? (Sof.247b). Teeteto afirma não haver nenhum dentre eles que seja
visível. Pode-se, com efeito, anuir que os não-visíveis têm algum corpo? Teeteto diz
que parece, aos filhos da terra, ser a alma corpórea, mas, quanto à sabedoria e àqueles
outros, o temor lhes impede de se atreverem tanto de lhes rejeitar absolutamente o ser
quanto de aceitar firmemente que sejam corpóreos, sendo preciso examinar o que
existe de conatural entre aqueles que têm corpo e os incorpóreos, porquanto haja entes
não visíveis. Assim, deve-se empenhar-se em explicar cada ente e mostrá-lo, pois os
incorpóreos revelam-se, diferentemente da corporeidade, meramente à razão. O gênero
134
dos incorpóreos, por causa de sua natureza invisível e inteligível, o se mostra aos
sentidos, podendo ser unicamente conhecido pelo intelecto, pela memória e razão.
A crítica aos amantes das Formas e aos filhos da terra, propriamente, aos
amigos das idéias e aos partidários da corporeidade, não possui o mesmo teor do que a
ulterior crítica aos sofistas, pois a estes se reportará uma invectiva política e ontológica,
enquanto àqueles se reporta uma objeção tanto ontológica quanto epistemológica, à
medida que se instaura para o Estrangeiro a questão da origem das idéias na alma,
concebida princípio intelectivo. O erro tanto dos partidários da corporeidade quanto dos
da incorporeidade foi não supor o poder de comunidade entre o conhecer e o ser
conhecido. Pormenorizando, quem possui um poder apropriado, quer seja para agir
naturalmente sobre não importa o quê, quer seja para padecer, por menor que seja,
pelo agente mais insignificante, é considerado um ser real. O estrangeiro institui
nenhuma outra coisa senão o poder (dýnamis) (Sof.247e)
47
, porquanto, de um lado,
pelo corpo, por meio da sensação (di’aisthéseos), estamos em comunidade com o devir
(genései), submetido à mudança e, de outro, pela alma, por meio do raciocínio (dià
logismoû), estamos em comunidade com a essência real (tèn óntos ousían), sempre
idêntica a si mesma (Sof.248a). O embaraço de parte da fortuna crítica platônica reside
no não entendimento de que mesmo sendo formas distintas de realidade, o devir e a
essência verdadeira, o discurso filosófico almeja sintetizá-las pelo ato hierogâmico do
conhecimento constituido no entorno da concepção de poder. A comunidade (
koinoneîn) é, em ambos os casos, tanto concernente ao devir quanto relativa ao ser,
entendida, pelo prisma dos partidários da corporeidade, como a paixão ou a ação
(páthema è poíema) segundo o poder do acordo recíproco (Sof.248b). A conaturalidade
entre a gênese corpórea e a essência incorpórea residiria, para os filhos da terra, na
compreensão de que ambas possuem o poder de agir e padecer. No entanto, para os
amantes das Formas, é apenas lícito falar que o devir participa do poder do agir e
padecer (toû páschein kaì poieîn dynámeos), não podendo dizer o mesmo a respeito da
essência, pois nenhum desses poderes, o do agir e do padecer, lha conviria, dada sua
natureza ingênita e incorruta. Os amantes das Formas rejeitam a concepção do ser
47
Cf.Mié (Mié, 2004 [2]:276): “La falta de reflexión sobre las condiciones lógicas de toda teoría sobre el
ser, que caracteriza la formulación misma de esta teoría, es subsanada por el extranjero mediante la
inclusión de la dýnamis, utilizada como vía para dar cuenta del factum del conocimiento”.
135
pelos poderes, conquanto admitem que a alma conhece e a essência é conhecida.
Porém, o conhecer ou o ser conhecido não seria ou ação ou paixão (poíema é páthos)
ou mesmo ambas? Ou, por um lado, inquire o Estrangeiro, um é a ação e, por outro
lado, o outro é paixão? Ou nenhum deles se relaciona nem com uma nem com outra?
Teeteto afirma ser evidente para os amantes das Formas que nem o conhecer nem o
ser conhecido podem ser considerados nem ação nem afecção, pois admiti-las seria
contradizer-se (Sof.248d), incidir, portanto, na enantiologia. Se se anui que o conhecer
é agir, é forçoso admitir que o ser conhecido é padecer, pois, por esse raciocínio, a
essência, sendo conhecida (tèn ousían gignoskoménen) pelo conhecimento (hypò tês
gnóseos) e, à medida que é conhecida, é, por seu intermédio, movida pelo padecer
(kineîsthai dià tò páschein) (Sof.248e). O padecer, o sofrer a ação, não pode originar-se
do repouso (eremoûn) (Sof.24 8e), da inabalável morada, no qual o ser parmenídeo
reside, mas sim do movimento. O poder do conhecer move o ser real, rejeitando-lhe o
permanente repouso e, por essa afecção, provocada pelo conhecimento, o ser efetua
sua comunidade com o movimento
48
. A ação de conhecer supõe a condição do
movimento. O poder (dýnamis) revela-se tensão ontológica essencial entre a relação
enantiológica entre o agir e o padecer, entre o mover e o repousar. O Estrangeiro
argumenta, “deixariamos facilmente, por Zeus, nos persuadir de que o movimento, vida,
alma, sabedoria (kínesin kaì zoèn kaì psychèn kaì phrónesin) não estejam realmente
presentes no ser absoluto (pantelôs ónti
49
pareînai) e que o mesmo ser absoluto
nem vive nem também pensa, mas venerável e sagrado (semnòn kaì ágion), não
possuindo intelecto (noûn ouk échon), remanesceria imóvel (akíneton)?” (Sof.
248e,249a). A formulação do Estrangeiro eleata referente ao ato de conhecer se
apropria da ação hierogâmica do mito, para o qual existe uma comunidade entre o
âmbito humano e o território divino, entre mortais e imortais, de sorte que seu escopo
48
Cf.Mattéi (Mattéi,1996:183): “Dès lors que l’âme se trouve seule à seule avec l’ousia, dans la plénitude
commune de l’acte de connaître pour l’une et d’être connue pour l’autre, il faut bien reconnaître que l’être
est la passion de l’âme et l’âme l’action de l’être, tous deux tombant sous le coup de la double puissance
de l’être qui est la source de toute communauté”.
49
Cf.Mattéi (Mattéi,1996:183): Avec le Sophiste, nous accédons à un niveau ontologique, et non
simplement physique: c’est n’est pas la chose singulière qui peut agir sur une autre chose ou se trouver
affectée par elle; c’est l’être lui-même, qui doit être reconnu comme puissance permanente d’entrelacer
les autres genres entre eux sous la forme d’une communauté réglée par des operations logiques
spécifiques”.
136
consiste na realização da passagem da genealogia mítica para a gnoseologia filosófica,
da ontologia mitopoética para a filosófica.
Admitir que o ser tenha vida e intelecto e que seja plenamente animado,
compele-nos, em oposição aos amantes das formas, a conceder-lhe o movido e o
movimento (tò kinoúmenon kaì kínesin). Para o estrangeiro, é preciso consentir o
movido e o movimento como entes (Sof.249b). Se se infere que os seres são imóveis,
não nenhum intelecto nem aplicado a alguém tampouco referente a algo (Sof.249b),
pois não existe a condição do conhecimento que é o movimento. Assim, é necessário
que se atribua o movimento ao ser absoluto, sem o qual não poderia ser conhecido. Se
os filhos da terra incidem no erro de admitir meramente a existência de corporeidade,
os amantes de formas equivocam-se em rejeitar que haja um acordo mútuo entre poder
ativo e poder passivo. Para o ato do conhecimento é preciso que haja o movimento. Se
se anui que tudo está submetido ao movimento e à rotação, suprime-se, do ser, o
intelecto, haja vista que não poderia nascer, separado do repouso, algo que se
mantenha idêntico, do mesmo modo e aplicado a si próprio. O intelecto não existiria
jamais sem aquilo que se mantém idêntico sempre a si mesmo. Para o Estrangeiro, é
preciso combater firmemente quem dissimula ou a ciência ou a sabedoria ou o intelecto
(epistémen è phrónesin è noûn) (Sof.249c). O filósofo os estima sobretudo, não
aceitando nem que o todo seja estático, tal como aqueles que o declaram tanto como o
um quanto como múltiplas Formas, tampouco que o ser se mova por toda a parte
indistintamente. O ser é posto como um terceiro ao lado do movimento e repouso, pois
esses são circundados por aquele, compreendendo-os e contemplando-os em vista da
comunidade da essência (pròs tèn tês ousías koinonían) (Sof.250b). O ser, dos gêneros
supremos, não pode ser nem repouso nem movimento, mas deles participa, sendo um
terceiro gênero distinto de ambos, repouso e movimento (eremían kaì kínesin).
A proposição de que o movimento e o repouso participam do poder da
comunidade com o ser permite a rejeição tanto da tese dos filhos da terra quanto da
dos amantes das Formas, haja vista que esses três gêneros mutuamente irredutíveis
são a condição sem a qual não haveria a possibilidade do conhecimento. Se
aceitássemos, primeiramente, que nenhum desses teria mutuamente nenhum poder da
comunidade (dýnamin koinonías) em nenhuma relação, logo não poderiam o
137
movimento e o repouso misturar-se jamais com a essência (oudamê methéxeton
ousías) (Sof.251e)
50
. Poderia haver algum desses que não tivesse parte com a
essência? Ora, tanto o movimento quanto o repouso só existem por causa da
comunidade com o ser. Assim, todas as propostas foram, ao mesmo tempo, recusadas,
a tese dos que movem o todo, a dos que o imobilizam no um e a tese dos que afirmam
os entes segundo Formas, idênticas e imutáveis. Do mesmo modo, aqueles que ora
unificam o todo ora o dividem, seja para o um e do um infinitos, seja discriminando-o em
elementos finitos e a partir deles, unificando-o, nada afirmariam a respeito do todo, se
não houvesse, tanto na alternância quanto na mútua coexistência, a mistura (sýnmeixis)
(Sof.252b). Se tendo rejeitado a primeira hipótese, de que não o poder da
comunidade com a essência, e se atribuíssemos, reciprocamente, a todas as coisas o
poder da comunidade (dýnamin epikoinonías)? (Sof.252d). Se o movimento tivesse
comunidade com o repouso e assim mutuamente? Se se aceita isso, o movimento se
estancaria totalmente e o repouso estaria em movimento. Restaria a terceira hipótese,
de que uma mistura recíproca entre alguns determinados, evidenciada nas letras,
pois algumas harmonizam-se entre si enquanto outras, não. As vogais, particularmente,
diferem das outras letras, pois circulam como um liame por todas as outras, de forma
que sem uma delas não seria possível que uma letra se harmonizasse com a outra
(Sof.253a). A gramática seria a arte da comunidade entre as letras. Assim, tanto a arte
da gramática quanto a arte da música estabelecem a consonância entre elementos
diferentes; esta institui o liame entre sons graves e agudos, aquela o nexo entre as
vogais e consoantes. Se há tanto uma arte que combina letras quanto outra que
harmoniza sons, precisa haver uma arte apropriada para o entrelaçamento entre as
50
Cf.Cordero (1993:47): Platon cherche la condition rendant possible ces rapports, et il offre une réponse
inespérée et volutionaire: tout ce qui est réel existe parce qu’il y a une puissance de communication
réciproque. Cette puissance de communication (dýnamis koinonías), c’est l’être”. Cf. Mattéi (Mattéi,1996:
183): “L’être, clairement posé pour la première fois comme ‘puissance de communauté’ (dýnamin
koinonías), va établir plusieurs formes de liaison entre les formes les plus élevées, ‘Mobilité’ et ‘Stabilité’
(stásis kaì kínesis), ‘Même’ et ‘Autre(taûton ktháteron), jusqu’à ce que l’on admette que toutes quatre
ont bien un ‘pouvoir de communication mutuelle’ (koinonías allélon dynámeos) dans ce qui est leur foyer
commun. Le premier couple, d’ordre physique, associe deux termes féminins en grec, alors que le second
couple, d’ordre logique, met en présence deux termes neutres. On doit supposer que stasis et kinesis,
Stabilité et Mobilité, représentent les déterminations cosmologiques de l’ousia, comme le montre le
tableau mythique du Phèdre qui dépeint le mouvement circulaire des âmes autour du point fixe d’Hestia,
alors que tauton et heteron manifestent les opérations logiques de l’âme quand elle contemple les formes
pures”.
138
formas. Porquanto os gêneros aceitem ter reciprocamente as mesmas misturas, não é
necessário que haja o auxílio de uma ciência (met’ epistémes tinòs) que permita
avançar por meio dos discursos, se se pretende mostrar corretamente quais gêneros
são mutuamente consoantes e quais gêneros não se relacionam entre si? (Sof.253b). O
diferir por gêneros (katà géne diaireîsthai), não tomando nem a mesma forma por
outra tampouco a outra forma pela mesma seria próprio da ciência dialética (tês
dialektikês epistémes) (Sof.253d). Pois, quem percebe distinta e suficientemente na
pluralidade disposta, é capaz de apreender, por esta multiplicidade, uma forma única
(mían idéan), em que cada uma permanece distinta do todo, não se confundindo, por
sua vez, com ele, e também muitas formas mutuamente diferentes, circundadas
externamente por uma única forma, observando também tanto uma única forma,
perpassando muitas totalidades, quanto muitas diferentes e absolutamente separadas.
Ser capaz e dialético é saber diferenciar entre os gêneros quais deles podem ou não
manter uma recíproca comunidade, de sorte que o poder ontológico da comunidade
entre os gêneros supremos produz a tecedura da realidade. A dialética é “a ciência do
homem livre, estudando tanto a combinação quanto a separação dos elementos puros,
indivisíveis, monoeidéticos, assim como as artes gramatical e musical” (Rosen,1983:
255). Para Monique Dixsaut (Dixsaut, 2003:156), a diferenciação por gêneros interdita a
presumível identidade entre o ser e o movimento, pensada indistintamente por certos
pré-socráticos, ou entre o ser e o repouso, entendida por Parmênides, ou entre o ser e
o mesmo, anuida pelos amantes das Formas, ou ainda entre o ser e o outro, defendida
pelos sofistas. O entendimento do discurso contempla a harmonia entre a unidade
discursiva e a pluralidade de suas formas.
51
O Estrangeiro eleata inquire acerca da
possibilidade da predicação, relativa à anuência de uma harmonia complexa do um e
do múltiplo numa única e mesma comunidade. A ciência dialética se constitui, dada a
noção fundamental da comunidade de gêneros supremos, pelo ordenamento dos pares
antitéticos, entre o movimento e o repouso, termos femininos em grego, stásis e kínesis,
entre o Mesmo e Outro, termos neutros em grego, taûton e tháteron, regidos, no âmbito
51
V.Mié (Mié,2004[2]:148): “Las formas delimitan los nuevos correlatos del lógos cuya verdad consiste en
la correcta articulación de la identidad y diferencia que constituye a cada forma. (...) La forma representa
una unificación de la multiplicidad, es decir, no es el mero producto acumulativo de la sumatoria de
múltiples ideas componentes, sino que en su unidad contiene el fundamento de la síntesis que explica la
identidad de cada forma”.
139
ontológico, pelo ser, e, no âmbito cosmológico, pela essência. A dialética é apresentada
em estrito senso como a ciência por excelência do gênero filosófico, procedendo pelo
conspícuo método de divisões por formas, saber oposto à arte privada do sofista e à
arte pública do retórico, aos erísticos, fundamentados na mera verossimilhança.
Jean François Mattéi (Mattéi,1996:185), escrutinando as prováveis relações entre
o mito e a filosofia, defende a permanência do discurso mítico no discurso filosófico,
circunscrita, no seu parecer, “à gigantomaquia cosmogônica relativa à essência, pois é
na região central do cosmo, no omphalos primitivo da ousia, mutação mitológica da
figura mítica de Hestia, que se manifesta a lide dos gigantes do visível e do invisível,
dos amantes das Formas, cujas almas aladas lhes permitem ascender ao lugar celeste,
tópos ourános, e dos filhos da terra, presos ao córporeo tangível” (Mattéi,1996:185).
Respeitado o nexo arcaico entre discurso mitopoético e discurso racional, os pares de
opostos antitéticos, stásis e kínesis, taûton e tháteron, reunidos sob a égide do ser,
ón, evidenciariam, para Mattéi (Mattéi,1996:186), a transposição lógica da figura central
de Thémis: Céu e Terra, deuses e mortais, seriam, respectivamente, transmudados nos
opostos complementares movimento e repouso, Mesmo e Outro, coligidos na plenitude
do ser, revelada por Hestia-Ousia, de sorte que, tanto na esfera lógica quanto na esfera
mítica, “é o mesmo termo de koinonía que acompanharia a transposição do mýthos ao
lógos, de Hestia-Ousia à Hestia-On (Mattéi, 1996:186). O Estrangeiro realiza, para
Mattéi (Mattéi,1983:185), a mediação entre os personagens, representando o gênero do
outro, a alteridade requerida no interior do eleatismo, pela qual se relacionariam os
matemáticos Teodoro e Teeteto, crates e seu jovem homônimo, rompendo a prévia
composição simétrica quaternária, associando-lhe o dissenso da alteridade correlato à
violência da imparidade.
52
Se Hestia manifesta, no horizonte mítico, a essência (ousía),
Hermes exprimiria, nesse mesmo território, a alteridade, porquanto “Hermes representa
no espaço, no mundo humano, o movimento, a passagem, a mudança de estados, as
transições, enfim, os contatos entre elementos estrangeiros” (Mattéi,1983:186). Hermes
52
Cf.Mattéi (Mattéi,1983:191): “Dans le Sophiste, le principe herméneutique de la différence, symbolisé
par l’Etranger, entre en relation nécessaire avec le principe ontologique de l’identité, incarné par le jeune
Socrate, selon un mouvement d’altérité qui définit l’equilibre des quatre genres et des quatre
personnages”.
140
e Hestia são compreendidos como dois deuses paradigmáticos da lógica de oposição
complementar, expressando no plano mítico, a essência e a forma da alteridade.
Portanto, cada ente é outro que os próprios entes, não por causa de sua
natureza mesma, mas porque participa da forma da alteridade, de sorte que os dois
deuses Hestia e Hermes compõem um exemplo precípuo de unidade enantiológica,
pois mantêm mútua interdependência, assim como os gêneros ontológicos do ser e do
não-ser, do mesmo e do outro, do movimento e do repouso. Pensar, pois, a
comunidade recíproca dos gêneros supremos como a ruptura platônica em relação à
hipotética teoria canônica das Formas implicaria o não reconhecimento do engenho
hermenêutico platônico das estruturas míticas gregas. Para Fabián Mié (Mié,2004 [2]:
222), o diálogo Sofista elabora um conceito formal do ser por intermédio dos gêneros
supremos, donde a realidade é o produto do ‘entrelaçamento’ das idéias, constituindo a
configuração resultante da articulação dessas referidas idéias”. Se aceitássemos ser o
âmbito fenomenal o produto da tecedura das formas, admitiriamos a regência duma
teoria dos dois mundos, baseada na doutrina clássica da idéia separada. A comunidade
de gêneros carreia a noção de concretitude e inclusividade, ausente na pura relação
causal entre idéia e fenômeno, essência e gênese, reportando à acepção conferida na
épica homérica, “onde é uma das palavras para designar a família no interior da tribo”
(Torrano,2006:90). A noção de gênero refletiria, pois, a compreensão acerba das
relações efetuadas no plano fenomênico relativo ao núcleo familial, pois a palavra
génos é da mesma família que as palavras génesis e gígnesthai, com que se nomeia a
noção de devir” (Torrano,2006:90). A comunidade de gêneros retomaria, pelo prisma
das relações interfamiliais, as imagens genealógicas contidas em República VI, pela
perspectiva da filiação entre o Bem inteligível e seu rebento, o Sol visível. O discurso
filosófico se refere a estruturas precípuas da mitopoese arcaica, homérica e hesiódica.
Couloubaritsis (1990), ressaltando a permanência do discurso mítico no discurso
filosófico, anui que sob a forma genealógica o mito exprime um real complexo, em que
co-existem um mundo visível (vida societária e cosmo) e um invisível (divindades e a
esfera teodítica), segundo categorias de semelhança e dessemelhança, em função de
uma narrativa que, tendo utilizado duma lógica que lhe é própria, em que os termos se
associam por meio de relações de oposição e complementaridade, movimenta um
141
esquema transcendental, perfilhado pela referência particular à experiência que o
homem arcaico tem do parentesco, assumido por ele como a experiência a mais
familiar e melhor organizada, i.e,. a relação interfamilial. A lógica do mito, aceiramente
utilizada no diálogo Sofista, compreende um mesmo fenômeno por dois planos, pois o
pensamento apreende a separação da terra das águas simultaneamente como fato
natural no cosmos visível e também como geração divina no tempo primordial mítico.
A comunidade de gêneros, entendida por seu recurso ao mito, professa esse
duplo movimento do real, pois ao mesmo tempo exprime as relações de parentesco
instituidas no núcleo interfamilial e as estruturas supremas do âmbito numênico,
reunindo na récita a co-presença do visível corpóreo e do invisível incorpóreo.
Não é lícito, então, supor uma cesura ontológica radical entre o gênero visível,
por metonímia, sensível e o gênero inteligível, porque o poder de mútua comunidade
permeia todos os entes. A diacosmese aparente, na qual há uma mútua comunidade
entre ações e corpos, imita a tecedura dos gêneros a ser considerados supremos. Se o
gênero visível, por metonímia, sensível, exprime a tecedura densa do real, o gênero
inteligível evidencia a bela ordem incorpórea, de sorte que a realidade aparente,
recipiendária do poder mútuo da comunidade, pode ou não manifestar, mediante o
discurso, a opinião e a imaginação, a comunidade dos inteligíveis. A comunidade dos
gêneros supremos, proposta no âmbito da inteligibilidade, é pensada, no horizonte da
visibilidade, a partir da definição do gênero sofístico e de sua presumível alteridade ao
gênero filosófico, haja vista ser antes preciso discernir os gêneros mais simples para
então definir os gêneros mais complexos, indo do mais fácil para o mais difícil. O
território dos inteligíveis é entendido mediante a referência à esfera das relações
humanas realizadas no âmbito da pólis, porquanto o entendimento do poder ou não de
comunidade mútua entre os gêneros supremos depende da evidência do poder ou não
de comunidade mútua entre os gêneros produtores de discursos na pólis clássica.
Revela-se o nexo entre sensível e inteligível, porque pode haver ou não relação mútua
entre os gêneros tanto na esfera fenomênica quanto na esfera inteligível. O gênero
sofístico, residindo no intermediário entre o ser puro imiscido e o não-ser absoluto,
exprime, no lugar visível, a homologia ontológica com o gênero do não-ser, de sorte
que a figura do sofista se reporta ao horizonte meôntico da noturna manhã, onde o
142
homem vive uma vida hipnótica e onírica. O filósofo, porque habita a região ôntica da
luz diurnal, nos remete, em sua nítida oposição ao sofista doxósofo, à ambiência do ser
e de sua inteligibilidade. A cosmologia parmenídea, supondo que tudo contém ente,
rejeitando o não-ser, não estipula a figura do sofista, de um certo modo de não-ser.
Para Fabian Mié (2004 [2]:101), “Platão elabora, no Sofista, um conceito dialético
de ente por meio da explicação do lógos e em resposta à posição eleata do eón que
não permitiria postular senão entidades singulares, imóveis e simples no sentido do
eleatismo lógico”.
53
As Formas inteligíveis, de acordo com essa conspícua concepção,
seriam, pois, “entidades não privadas de combinação e composição”, de modo que o
movimento das idéias dependeria da superação do imobilismo das entidades eleáticas,
cuja opacidade específica definiria a impossibilidade de pensar a comunicação
intereidética (Mié,2004[2]: 101). A assunção do movimento entre as idéias é, segundo
Torrano (Torrano,2006:90), enfatizada pelo emprego da palavra gênero, que implica um
sentido corpóreo e mobilista, em oposição ao sentido incorpóreo e imobilista, porquanto
designaria, por meio do reporte “às palavras génesis e gígnesthai com que se nomeia a
noção de devir” (Torrano,2006: 90), a família no interior da tribo. A hipótese da
comunidade de gêneros (koinonía tôn génon) superaria uma radical oposição entre
idéia e fenômeno, essência e gênese, pois conteria em si a noção de movimento,
rejeitando tanto a tese dos amantes das Formas, que imobilizam o ser real, quanto a
dos filhos da terra, que o apreendem apenas no devir. A passagem da comunidade
recíproca dos gêneros supremos prepara o epílogo da obra relativo à definição da
figura do sofista. A concepção de uma presumível ruptura com um platonismo ortodoxo
pela introdução do movimento no poder de comunidade intereidética descura do escopo
precípuo do Diálogo, correlato à definição do sofista e da imagem.
O Estrangeiro de Eléia aduz quatro modos possíveis de comunidade pela
distinção dos cinco gêneros supremos, o ser, o movimento, o repouso, o mesmo e o
outro. O primeiro se refere ao discrime, no todo genérico, dos gêneros do ser, do
movimento e do repouso. Se se aquiesce, todavia, a existência tanto do movimento
53
Cf.Mié (Mié,2004[2]:102): “La dialéctica platónica puede ser entendida como ‘dialéctica positiva’, en
clara distinción respecto de la ‘dialéctica negativa’ de tipo zenoniano, cuya meta es destructiva y se
alcanza mediante la demonstración de la aporía (...) Mi tesis es que la comunidad de los géneros del
Sofista debe ser entendida como la explicación de la possibilidad del lógos del ente, entendido como
idea”.
143
quanto do repouso, fundamentais para o intelecto e para o ato do conhecimento, que
consiste na hierogamia de ambos, então o segundo modo diz respeito ao gênero do
ser, circundando os gêneros do movimento e repouso. O terceiro se refere ao gênero
do outro, definindo a alteridade, o não-ser, pois, permeando múltiplas totalidades, não
perde a sua característica. O quarto modo remete ao gênero do mesmo, em que cada
forma é irredutível à outra, definindo a identidade como critério ontológico. O Dom
dialético seatribuido a quem filosofa pura e justamente. A vida livre requer tanto a
dialética quanto a posse e presença da justiça. O sofista refugia-se na região obscura
do não-ser, empenhando-se em habitá-la e, devido a obscuridade do lugar, é penoso
compreendê-lo. O filósofo, sempre apegado, conforme seus próprios raciocínios, à
forma do ser (toû óntos idéa)
54
, por causa da luminosidade da região, não é fácil de
ser visto, porquanto os olhos da alma dos muitos o incapazes de suportar
pacientemente a contemplação do divino (Sof.254a,b). O ser imiscido e não imiscível
tem como sua determinação própria precisamente o poder de comunidade entre os
gêneros supremos do movimento e do repouso. A determinação platônica da forma do
ser lhe permite, portanto, expor a possibilidade de mistura entre formas bastante
precisas e sendo o filósofo congênere à forma do ser tanto pode se comunicar com o
movimento sensível quanto com o repouso inteligível. A forma do ser atesta o poder de
comunicação recíproca entre os mégista gène. Salienta-se a oposição entre, de um
lado, o filósofo e o sofista no gênero visível e, de outro, entre o ser e o não-ser no
gênero inteligível. O sofista pertence ao gênero meôntico, topologicamente
caracterizado pela noite escura e pelos deuses ctônios, enquanto o filósofo pertence ao
gênero ôntico, topologicamente definido pela luminosidade diurnal e pelos deuses
olímpios. O sofista opera sua arte no intermediário entre esses lugares distintos, onde
se manifestaria o reino das aparências, da verossimilhança e da prestidigitação. O lugar
sensível, intermediário entre noite meôntica e luz imiscida, manifesta, por um lado, tanto
a opinião e o discurso verdadeiros quanto a opinião e o discurso falsos e, por outro,
tanto a homologia e a reta imitação dos entes quanto seu dissenso e a sua imitação
sinistra, sendo necessário entender a comunidade ou não entre os gêneros.
54
Cordero entende tèn toû óntos idéa como “a forma do ser”. V.Cordero (2000:44): “Chaque Forme doit
d’abord exister, et exister c’est posséder ou acquérir cette capacité de communication. Et l’existence de
chaque Forme découle de as participation à la Forme de l’Être”.
144
Assim, certos gêneros desejam mutuamente manter comunidade, enquanto
outros não, de sorte que certos gêneros têm comunidade com poucos, enquanto outros
com muitos, havendo mesmo aqueles gêneros que, perpassando todos, não impedem
que mantenham comunidade com todos (Sof.254b). Para o Estrangeiro, não é preciso
aplicar o raciocínio em todas as formas (perì pánton tôn eidôn) a fim de não se
confundir na multiplicidade. Mas, tendo escolhido os denominados maiores (tôn
megíston legoménon), deve-se examinar primeiramente como é cada um e como
podem manter reciprocamente o poder da comunidade (koinonías dynámeos),
conquanto seja difícil apreender de modo evidente o ser e o não-ser (Sof.254c)
55
. Os
gêneros considerados supremos são o próprio ser, o repouso e o movimento (Sof.254d)
e, por intermédio deles, o Estrangeiro aduz os gêneros conseqüentes do mesmo e do
outro. O repouso e o movimento não podem misturar-se reciprocamente, sendo
incompossíveis, enquanto o ser, entendido como poder de recíproca comunidade, se
mistura em ambos, pois dele participam e também devem sua existência, havendo,
então, cinco gêneros distintos, sendo que cada um deles é o outro que os dois e o
mesmo que si, logo, identidade e diferença, o mesmo e o outro. Se a forma do Bem (he
toû agathoû idéa) é em República VI 508e a causa da cognoscibilidade e verdade das
idéias, das formas a ela subordinadas, a forma do ser é o poder próprio de mistura e
comunidade entre os gêneros supremos, de sorte que “a existência e oposição mútua
do movimento e do repouso, liame do ser e conseqüente irredutibilidade do ser ao
movimento e ao repouso, tudo isto é estudado para firmemente instituir o princípio da
comunidade dos gêneros chamados supremos” (Diès,1972:500).
55
Os gêneros podem ou não manter uma mútua comunidade e por essa evidência se origina a
possibilidade de provar a existência da opinião e discurso falsos. O discurso verdadeiro supõe o nexo
real entre as Formas, pelo qual associa o enunciado da ação ao seu agente, portanto, o predicado a seu
sujeito. Cf. Cordero (1993:50): “Le philosophe doit connaître le pouvoir de communication réciproque
entre les choses a fin de saisir le lógos de l’être et du non-être”. Para Maura Iglésias (Iglésias,2004:254),
“como parte da refutação do Parmênides, Platão substitui a noção de pensamento como um noein,
entendido como intelecção direta do ser (de algo que é como é), pela de um dianoeisthai, pensamento
compreendido como uma tessitura de seres, que podem ser apreendidos nessa tessitura e de
nenhuma outra maneira. Apreender o ser torna-se assim apreender as relações que une um ser a todos
os outros, relações que se tornam evidentes na prática dialética”. Por essa definição, poderíamos anuir
que se em República VI há a observância relativa à hierarquia epistêmica ínsita no diagrama da linha,
refletindo homologamente a hierarquia mitopoética entre deuses e numes invisíveis, heróis e mortais
visíveis, no Sofista a propositura da mútua comunidade entre os gêneros supremos (mégista gène),
exprimindo homologamente a koinonía mitopoética entre os gêneros cosmogônicos, que, conforme
Mattéi, seriam precisamente Hestia, Hermes, deuses, mortais, Urano e Gaia.
145
Seriam o Mesmo (tautòn) e o Outro ( tháteron) dois gêneros diferentes dos
três supramencionados, o ser, o movimento e o repouso, sempre misturados àqueles a
partir da necessidade (ex anánkes)? (Sof.254e) Se se atribuisse o movimento e o
repouso ao Mesmo e ao Outro, então o movimento se imobilizaria e o repouso mover-
se-ia, pois se algum dos dois puder vir a ser outro, o outro altera a sua própria natureza
em seu contrário, de modo que participe do contrário. Assim, por essa inferência, tanto
o movimento quanto o repouso não podem ser ditos nem o Mesmo nem o Outro, mas
participam do Mesmo e do Outro. Pode-se pensar o ser e o Mesmo como um? Se se
aceita que o ser e o Mesmo não devem significar nenhum gênero diferente, mas sim
idênticos, quando se fala que tanto o movimento quanto o repouso são, do mesmo
modo afirma-se, ambos absurdamente, o Mesmo. O ser e o Mesmo não podem ser um.
O Mesmo é pensado como sendo a quarta forma ao lado das três formas anteriores.
Deve-se afirmar o Outro como a quinta forma? Seria preciso pensá-lo e o ser
como dois nomes, revestindo um único gênero? O Estrangeiro busca mostrar que,
diferente de um único gênero, tendo dois nomes, dois gêneros, o ser e o não-ser,
pois certos entes são afirmados em si e por si ( autà kath’autá), enquanto
determinados outros são ditos sempre em relação a outros (pròs álla aeì) (Sof.255c).
O Outro não é afirmado sempre em relação a um outro? Assim, é preciso afirmar a
natureza do outro como a quinta entre as formas, atravessando todas as demais, pois
cada uma é outra perante outras, não pela sua própria natureza, mas pelo participar da
idéia do outro (dià metéchein tês idéas tês thatérou). O movimento é absolutamente
outro que o repouso, não sendo o repouso e é, por causa do participar do ser (dià tó
metéchein toû óntos) (Sof.256a). O movimento é outro que o mesmo, mas não é o
mesmo, pois é o mesmo pelo participar dele (Sof.256a). O movimento participa do
gênero do ser e do gênero do outro e também participa do gênero do mesmo. Portanto,
é preciso homologar e não menosprezar que o movimento é o mesmo e não é o
mesmo, porque quando se afirma ser e não ser o mesmo, não os falamos de modo
semelhante. Afirmamo-lo ser o mesmo por causa da participação, por si próprio, no
mesmo (d tèn métexin tautoû). Porém, julgamo-lo não ser o mesmo por causa da
comunidade com o outro (dià tèn koinonían thatérou), a partir da qual, tendo se
separado do mesmo, devém não este, mas outro, sendo dito não o mesmo (Sof.256b).
146
O movimento é o mesmo, mantendo identidade consigo próprio e não é o
mesmo, porque o gênero do movimento difere do gênero do mesmo, devindo outro. Se
o próprio movimento recebesse o repouso, tivesse o poder da comunidade com o outro,
não seria absurdo denominá-lo estático, haja vista que se separou do mesmo, vindo a
ser outro que o mesmo. Assim, dentre os gêneros, certos aspiram a misturar-se
mutuamente, outros não, devido a sua própria natureza. Se o movimento é outro que o
ser, então é manifesto que o movimento é realmente não-ser e ser (kínesis óntos ouk
ón esti k ón), pois participa do ser, sendo necessário que o não-ser exista no
movimento (mè òn epí te kinéseos) e também para todos os gêneros, porque, para
todos, a natureza do outro, transformando cada um em outro que o ser, produz o o-
ser (Sof.256d,e). Assim, é reto afirmá-los, todos conjuntamente, conforme tais relações,
não-seres e, porque participam do ser (hóti metéchei toû óntos), seres, pois existir é
participar da idéia do ser. No entorno de cada uma das formas, há, por um lado, uma
pluralidade de ser e, por outro, uma quantidade ilimitada de não-ser (Sof.256e). A
natureza do outro parece, ao Estrangeiro, se reduzir em ínfimos fragmentos, do mesmo
modo que a ciência. Não obstante a ciência seja uma única, cada parcela que dela se
separa, aplicada a um conhecimento específico, tem um nome que lhe é próprio, pois
existem muitas artes mencionadas e muitas ciências. As parcelas da natureza do outro
adviriam também de um único ser. O Estrangeiro pergunta a Teeteto se há, referente ao
belo, alguma parcela do outro que lhe seja contraposta (Sof.257d). Pormenorizando,
haveria alguma parcela da natureza do outro antitética à natureza do belo? Seria
anônima ou teria alguma denominação? Teeteto responde ao estrangeiro que não-belo
não seria qualquer outro, mas outro que a natureza do belo. Assim, não belo não seria
algum outro, distinto de um determinado gênero dos entes, e que se opõe em relação a
determinado dentre os entes? Se o não-ser é outro que o ser, então o não belo é outro
que o belo. Belo e não-belo são empregados pelo Estrangeiro para entender a
comunidade entre a identidade e a diferença, entre o mesmo e o outro, porquanto se o
ser é um, o não-ser, outro que o ser, é plurívoco, de sorte que este é uma natureza
indefinida e ilimitada, aquele é uma natureza definida e limitada. O não-belo parece,
assim, resultar da oposição de ente a ente. Por causa deste raciocínio, tanto o belo não
seria mais ente quanto o não-belo menos ente, pois tanto o belo quanto o não-belo,
147
assim como o grande e o não-grande, são semelhantemente (Sof.258a), i.e., mantêm
comunidade com a forma do ser. A forma do ser tem a capacidade de fazer com que
todas as formas, todos os gêneros sendo outros que ele, possam dele participar.
A região do não-ser não é o âmbito da contradição, mas sim do outro, horizonte
da diferença. A natureza do outro, porque o outro é tanto ser quanto seu outro,
manifestou-se ‘ser’ dentre os entes, entendendo ‘ser’ em sua acepção existencial,
sendo necessário asseverar que suas parcelas não são menos entes. O todo e suas
partes têm a mesma participação no ser. A oposição da natureza parcial do outro e da
natureza parcial do ser, opondo-se reciprocamente, não é menos essência que o
próprio ser, significando não o contrário daquele, mas meramente o seu outro. O
Estrangeiro eleata recupera o discrime socrático onto-topológico de ser e não-ser,
lugares desperto e onírico, territórios ôntico e meôntico, circunscrevendo-os nos
horizontes do pensamento e da linguagem. Se o um é, de acordo com a concepção
parmenídea, considerado todo, contínuo, homogêneo, ingênito e incorruto, as suas
parcelas, pela resolução do Estrangeiro, mantêm o poder da comunidade com o ser, de
modo que há o ser, o outro, as partes do ser e do outro e a antítese entre ambas.
Teeteto afirma que o próprio não-ser foi manifestamente examinado por meio do
sofista (Sof.258b). O sofista é entendido como o outro do filósofo. O não-ser não é
menos essência do que os outros entes, pois existe firmemente, tendo a sua própria
natureza, porque o grande é grande, o belo belo, o não-grande não grande, do mesmo
modo que o não-ser por si (òn katautòn), era e é não-ser, enumerado como
forma única entre os muitos entes (Sof.258b,c), participando do ser. Aduzidos os
gêneros do movimento e do repouso, do ser, do mesmo e do outro, o gênero do não-
ser participa da essência, sendo forma única, irredutível a outro gênero. Revelado que o
não-ser é, desvela-se a forma do não-ser. Assim, tendo sido demonstrado haver a
natureza do outro, fracionada em todos os entes, por mútua relação, cada parte da
natureza do outro, oposta ao ser, é realmente não-ser (óntos ón) (Sof.258d,
258e). Os gêneros, reciprocamente, se misturam, em que o ser e o outro permeiam
todas as coisas. O outro, participando do ser, por causa desta participação (dià taúten
tèn méthexin), é, não aquele do qual participa, mas outro, outro que o ser, sendo
evidentemente não-ser. O ser, participando do outro, é outro que os outros gêneros e
148
sendo outro que aqueles, não pode ser nem cada um deles nem conjuntamente outros,
mas ele próprio, de sorte que o ser, muitas vezes o é, enquanto os muitos outros,
tanto isolada quanto conjuntamente, muitas vezes são e não são (Sof. 259a,259b). O
empenhar-se, para o Estrangeiro, em separar todas as coisas do todo não é, de modo
algum, conveniente e é totalmente alheio às Musas e à filosofia (amoúsou tinòs kaì
aphilosóphou) (Sof.259d). A mais consumada supressão de todos os discursos é
desagregar cada parcela do todo, porque é pelo mútuo entrelaçamento das formas (dià
tèn allélon tôn eidôn sumplokèn) que o discurso se origina em s (lógos gégonen
hemîn) (Sof.259e). O discurso, porquanto imita sensivelmente o ser real, é uma
tessitura de formas que mantêm mutuamente a comunidade e o dialético é o único que
tem a ciência própria para desvelar a complexidade do real e expressá-la mediante o
discurso apropriado, diferenciando-o dos muitos outros produtores de discursos, como o
orador, o sofista e o poeta. A perspectiva ontológica do Diálogo precisa ser entendida
pelo prisma moral implicado no ofício dos diferentes gêneros produtores de discursos.
A apreciação da comunidade dos gêneros permite o entendimento da
possibilidade do discurso verdadeiro e do discurso falso. O não-ser é um gênero entre
os outros gêneros, permeando todos os entes, sendo preciso examinar se o não-ser se
mistura à opinião e ao discurso. Se esses não se misturam ao não-ser, é mister
evidenciar que tudo é verdadeiro. Porém, se se misturam ao não-ser, surgem a opinião
e o discurso falsos (dóxa pseudès gígnetai kaì gos), porquanto, mediante o opinar ou
falar os não-entes ( tà mè ónta doxázein è légein), surge no pensamento e nos
discursos o falso (pseûdos en dianoía te kaì lógois gignómenon) (Sof.260b,c). Assim,
havendo o falso, o engano, em que tudo é pleno de imagens, de cópias e de
aparições (eidólon te kaì eikónon kaì phantasías) (Sof.260c). O sofista refugia-se neste
lugar, o aceitando absolutamente o falso, pois ninguém, para esse pensamento, nem
pensa nem fala o não-ser (gàr òn oúte dianoeîsthai tina oúte légein). O não-ser
não participa, de modo algum, da essência (ousías gàr oudèn oudamê tò mè ón
metéchein) (Sof.260c,d). O não-ser, para o entendimento eleata do ente, é impensável,
impronunciável e, podemos dizer, irrealizável. A comunidade dos gêneros nos propicia
entender o nexo entre ontologia e política, lógica e moral, à medida que o sofista,
limitado ao gênero agonístico, do combate, antilógico e erístico, induz, pelo discurso
149
falso, ou seja, pela comunidade entre o ser e o não-ser, seu interlocutor às imaginações
e às opiniões falsas, produzindo o dissenso e o ilusionismo político. O sofista efetua no
âmbito privado o que o retor, empregando a má logografia, realiza no território público
enquanto orador popular.
O o-ser, de acordo com a comunidade de gêneros, se mostrou participar do
ser. Se a opinião e o discurso não tivessem comunidade com o não-ser, não haveria o
falso, interditando o entendimento da opinião e discurso falsos. É preciso, pois, explicar
o que é o discurso, a opinião e a imaginação (lógon kaì dóxan kaì phantasían), a fim de
tanto mostrar a comunidade que esses mantêm com o não-ser quanto demonstrar o
falso (Sof.260e).
56
O raciocínio acompanhado da reta opinião participa do ser, enquanto
a opinião e o raciocínio falso participam do não-ser, imprimindo na alma do ser
simulacros, aparições. Do mesmo modo que o Estrangeiro eleata e Teeteto atestaram
haver tanto a comunidade de letras quanto das formas, evidenciam que certos nomes
mutuamente se harmonizam e outros não, atestando uma homologia entre formas,
letras e discursos. Por intermédio da voz, há dois gêneros para conhecer a essência, os
nomes e os verbos. O verbo é o meio de conhecer o ser segundo as ações e o nome é
o signo vocal aplicado àqueles que agem. O discurso origina-se do entrelaçamento
entre nomes e verbos, entre estas duas funções sintáticas precípuas, podendo ser tanto
um discurso verdadeiro quanto um falso. Se se enunciam os outros como os mesmos
(thátera hos autà) e os o-entes como entes (ónta hos ónta), por esta síntese
originada de nomes e verbos, surge real e verdadeiramente (óntos te kaì alethôs) um
discurso falso (Sof.263d). O discurso falso, empregado tanto pela arte retórica quanto
56
V.Mié (Mié:2004[2]:229): “Los distintos modos de conocer las entidades – el ‘pensamiento’ (diánoia), ‘la
percepción sensible’ (aísthesis), ‘la imaginación’ (phantasía) y el juicio (dóxa) – hacen accesible la
estructura de lo conocido y, con ello, representan miembros del mismo proceso de ‘verificación’, en
cuanto se integran en el rendimiento epistémico de la psykhé (Sph. 263 d 6-7, d 7-8). La psyk convierte
esas diferentes vías de acceso a las formas en procesos mentales donde se articula una estructura de
unidad y multiplicidad de determinaciones inteligibles y, de esa manera, en vías del conocimiento”. Para
Mié, a apreensão cognitiva tanto da verdade quanto da falsidade de algo se realiza quando se estabelece
uma estrutura de identidade e diferença pelo lógos, quando a definição de algo exprime a unidade real de
múltiplas formas por meio de suas relações plurívocas, circunscrevendo a compreensão das formas pelo
lógos. Assim, os distintos modos de conhecimento das entidades, pensamento, sensação, imaginação,
opinião, assegurariam o acesso à estrutura do que é conhecido. Aísthesis, dóxa, phantasía, mescla de
opinião e sensação, diánoia se referem, pois, a etapas de um mesmo processo de verificação epistêmica.
150
pela arte sofística, tornada apatética, se origina do não reconhecimento da verdadeira
ciência discricionária dos gêneros supremos que é a dialética.
57
Não é, pois, evidente que esses gêneros, o pensamento, a opinião e a
imaginação (diánoia te kaì dóxa kaì phantasía) produzam em nossas almas tanto o
verdadeiro quanto o falso? (263d). Para o Estrangeiro, pensamento e discurso são o
mesmo, dado que chamamos pensamento o diálogo interno e silente da alma consigo
mesma. O discurso interior da alma consigo própria é pensamento. O fluxo, emanando
da alma, saindo da boca, mediante a linguagem, é nomeado discurso (263e). O
discurso pode ser afirmativo ou negativo. Quando eles surgem silenciosamente na
alma, conforme o pensamento (katà diánoian), é denominado opinião. Mas, quando se
apresentam, não por si mesmos, mas por meio da sensação (di’aisthéseos), a afecção
é denominada imaginação (tèn phantasían) (Sof.264a). Porque os discursos tanto
verdadeiros quanto falsos, deles inferimos que o pensamento (diánoia) é o íntimo e
silencioso diálogo da alma consigo própria (ho entòs tês psychês pròs hautên diálogos),
a opinião o resultado do pensamento (dóxa dianoías apoteleútesis), a imaginação a
mistura de sensação e opinião (sýnmeixis aisthéseos kaì dóxes), pois sendo
congêneres do discurso, alguns são falsos (Sof.264a,b). O pensamento, o discurso, a
opinião e a imaginação podem ser ou verdadeiros ou falsos, não sendo essas últimas
totalmente depreciativas, como supõe parte da fortuna crítica platônica. A circunscrição
do não-ser como gênero supremo tem, pois, como meta o desvelamento do discurso
falso e os seus efeitos acarretados nas afecções da alma, no pensamento, na opinião e
na imaginação falsos. O lógos falso é também uma combinação, mas uma symploké de
57
Para Maura Iglésias (Iglésias,2003,152), “provar que as imagens são possíveis a partir da mera
afirmação de serem as coisas sensíveis imagens seriam uma grosseira petição de princípio, uma vez que
a possibilidade de haver coisas que são imagens é o que se quer mostrar para poder afirmar a
possibilidade de haver coisas sensíveis como imagens”. Segundo a autora (2003,153), “a investigação
sobre o ser levou não só à descoberta do não-ser como ser outro, como à dedução dos gêneros
supremos e à dedução da natureza do pantelôs ón, ou da realidade real, como uma tessitura de idéias
(symplokè tôn eìdon), uma estrutura complexa, formada por idéias das quais algumas (os gêneros
supremos) se comunicam com todas, algumas abraçam totalmente outras, algumas se comunicam
parcialmente, e algumas não guardam nenhuma relação direta entre si. É essa estrutura de relações,
algumas necessárias, outras não, que determinam a tessitura possível do sensível. E é sobre as coisas,
que se apresentam sempre tecidas, que o discurso vai falar, i.e., são as coisas, que se apresentam
sempre numa tessitura, que ele vai fazer aparecer, tanto como elas são quanto como elas não o”. A
autora compreende haver uma relação necessária entre a parte central do Diálogo (236e-264c) relativa à
possibilidade ou não do discurso e opinião falsos e suas partes extremas (216a-236e;264c-268d)
relativas à definição do gênero sofístico e da natureza da imagem.
151
formas incompossíveis. O campo da lógica do enunciado, com suas formas compatíveis
e incompatíveis, com seus gêneros possíveis e incompossíveis, permite a Platão expor,
pelo Estrangeiro eleata, as prováveis confusões entre os gêneros filosófico e sofístico.
Reconhecer o filósofo no sofista é supor o mesmo pelo outro, o ser pelo não-ser, a
parcela pelo todo, conquanto unicamente o filósofo aspira à totalidade do real em face
dos muitos amantes de espetáculos. O filósofo conhece, portanto, a natureza das
partes a partir do conhecimento da natureza do todo.
A idolopéica (eidolopoiikè) se divide em duas formas, de um lado, a arte
produtora de cópias (tèn eikastikén) e, de outro, a arte produtora de simulacros (tèn
phantastikén) (Sof.264c). Comprovada a existência do não-ser, há o discurso e a
opinião falsos, também as imitações dos entes (mimémata n ónton) e, desta
disposição, se origina a arte do engano (téchnen apatetikén) (Sof.264d). O sofista se
manifesta na arte aquisitiva, na caça, na agonística, no comércio e nas suas formas
correlatas. O sofista opera por meio de uma idolopéica fantástica, pois sua arte repousa
não na produção de pias mas de simulacros e não dos próprios entes. O sofista
efetua tanto a arte aquisitiva quanto a produtiva, que é diferenciada em partes divina e
humana. A parte produtiva é todo o poder que vem a ser causa daqueles que,
previamente o sendo, ulteriormente vêm a ser, por exemplo, todos viventes mortais,
as plantas, tantas quantas brotam da terra a partir de sementes e raízes e também os
corpos inanimados compósitos e terrenos, fusíveis e infusíveis, fogo, água, terra e ar,
engendrados por uma demiurgia divina. Assim, as obras da natureza são efetuadas
pela arte divina, enquanto as compostas pelos homens são exercidas pela arte
humana, separando a natureza do artefato. O humano e todos outros viventes, fogo,
água e seus congêneres, as imagens oníricas e tantas outras aparições que
espontaneamente surgem são produtos e atos divinos, porquanto dois o os atos de
produção divina, de um lado, a coisa mesma e, de outro, a imagem que a acompanha.
A arte produtiva humana também se divide, por analogia à arte divina, em duas, há, por
exemplo, a casa mesma, efetuada pela arte arquitetônica, e outra casa, efetivada
pela arte pictórica, sonho humano realizado em vigília. Segundo esse raciocínio,
uma duplicidade de ações de nossa prática produtiva (dittà érga tês hemetéras
poietikês práxeos), pois a própria coisa ( autò), originada da arte produtora de
152
coisas reais (autourgikè) e a sua imagem (eídolon), resultante da arte produtora de
imagens, idolopéica (eidolopoiikè) (Sof.266d). O Estrangeiro busca examinar a técnica
humana de produção de imagens e seu entrelaçamento, pela mimética, com a opinião e
o discurso, podendo gerar tanto o verdadeiro quanto o falso. Teeteto evidencia que
duas formas de artes produtivas, a divina e a humana, em que cada uma é duplamente
seccionada, de um lado, o ente fabricado e, de outro, a obra que lhe se assemelha,
o produto e a sua imagem. O gênero da idolopoética (eidolourgikè) é dividido assim na
icástica, arte produtora de cópias (eikastikón) e na arte produtora de simulacros (
phantastikón)
58
, mostrando que o falso é realmente falso e que é, por natureza, um ente
dentre os entes (Sof.266d,266e). O falso é o não-ser e o não-ser como gênero pode
participar do ser, assegurando uma modalidade do discurso, manifesta na opinião e no
discurso falsos. A possibilidade do discurso falso nos remete à comprovação do lado
esquerdo da imagem, porque não a rejeição da arte idolopéica como gênero
imitativo, mas apenas de uma de suas partes, a arte fantástica, cujo escopo é a
produção de simulacros. Pela divisão da arte idolopéica em icástica, seu lado destro, e
fantástica, seu lado esquerdo, poderíamos anuir a compreensão platônica da relevância
ou não da arte gráfica, tanto a escrita quanto a pictórica, pois a divisão operada pelo
Estrangeiro no Sofista referir-se-ia à diferenciação socrática dos lados destro e
esquerdo da escrita, imagem sensível da oralidade, no Fedro.
O gênero produtivo de simulacros é diferenciado em dois, havendo a produção
de simulacros por meio de instrumentos e mediante quem produz o simulacro, quando,
empregando seu corpo ou de sua voz, parece simular o gestual ou a voz de outra
58
A reta definição de imagem, ligando-a ontologicamente ao próprio ser do nero sofístico conclui o
plano expositivo do Diálogo. Cf.Dixsaut (Dixsaut,2003:143): L’art du sophiste est un art mimétique, mais
la mimétique comporte deux espèces: l’une se soucie de respecter les proportions et les qualités du
modèle, l’autre doit les modifier en tenant compte de la situation de celui à qui on veut faire illusion. La
première espèce d’image (eidôlon) est une ‘semblance’ (eikôn), la seconde un simulacre (phantasma)”.
Conforme Monique Dixsaut (2003:162), “o discurso é uma proposição verbal, não uma proposição
predicativa, analisada em termos de sujeito, cópula e predicado”, haja vista que o sujeito não é
compreendido como o suporte, substrato material, recipiendário de atributos, de acidentes, precisamente,
como uma hypokeímene ousía ou hypokeímene phýsis, substância de todos predicados, conforme a
propositura aristotélica oriunda de sua crítica à filosofia préplatônica e platônica. A lógica do estrangeiro
eleata evidencia, porém, um indissociável nexo entre o agente e a sua ação, implicando uma mútua
interdependência. A tecedura sintática, por esse prisma, produz um discurso que tem a característica de
ser verdadeiro ou falso. Cf. Dixsaut (2003:162): “Mettre en position de sujet un nom signifiant un agent et
non pas une substance ou un sujet logique, cela fait une différence considérable”. V.Mié (2004 [2]:154-
158).
153
pessoa, utilizando o seu próprio corpo como um instrumento. O gênero mimético,
segunda parcela do gênero produtor de simulacros, também se divide em dois, pois,
entre os imitadores, aqueles que conhecem o que imitam e aqueles que não o
conhecem. A divisão é efetuada em ignorância e conhecimento, porque quem não
conhece é a alteridade de quem conhece. A imitação realizada pela opinião (n metà
dóxes mímesin) é chamada doxomimética (doxomimetikèn), enquanto a realizada pela
ciência (tèn met’epistémes) uma imitação sábia (historikén tina mímesin) (Sof.267d, 267
e). O sofista não pertence ao gênero daqueles que sabem, afastados apenas
duplamente da natureza, mas daqueles que imitam, distanciados triplamente da
natureza. O sofista não é imitador da verdade, mas de aparências. O sofista é o
imitador privado de ciência, operando sua arte imitativa pela opinião, sendo praticante
da doxomimética. O sofista se diferencia do filósofo, pois se este se apóia na filomatia,
entendida pelo amor pelo conhecimento do todo, aquele se apóia na doxosofia, no
parecer conhecer todas as coisas. Não no Diálogo, a rejeição da arte imitativa, mas
de uma parcela de sua atuação, a mimética baseada na opinião, doxomímesis, sem o
auxílio da ciência. Se o sofista, praticante da doxomimética, imita discursos falsos com
as opiniões e imaginações falsas, o filósofo, praticante da imitação verdadeira e sábia,
imita, por sua postura, discursos verdadeiros com a reta ciência e opinião verdadeira,
mas ambos precisam reconhecer a natureza da verdade para compor seus discursos.
59
Pela análise do entrelaçamento das formas presente na constituição de todo
discurso, apreendemos a finalidade dos produtores de discursos e, particularmente, dos
doxomimetas. O doxomimeta se revela de duas formas. Dentre os doxomimetas, há o
59
Casertano (2002) considera a imitação apenas por seu lado sinistro, não reconhecendo o lado destro
da arte mimética e, por conseqüência, a técnica imitativa do filósofo. Ora, a mímesis não é apenas objeto
de vitupério para Platão, pois o mesmo distingue entre uma mímesis phantásmatos e uma mímesis
alétheias. Segundo Casertano (Casertano,2002: 92), as imagens, imitações, as aparências e fantasmas,
podendo ser reconhecidos como produto da discursividade humana, revelar-se-iam, pela perspectiva da
construção de uma ontologia ética, imitações da má disposição presente na arte apatética. Não há,
contudo, no prisma do estrangeiro, um reproche da imagem, mas sim a apreciação de ser o outro do
modelo. Para Casertano, a diferença entre discurso verdadeiro e discurso falso não é uma diferença
lógica ou ontológica, mas ética ou política (Casertano, 2002:90). Para Maura Iglésias, porém, ”quando na
primeira parte do Diálogo, o Estrangeiro acusou o sofista de ser o produtor de imagens no discurso, a
sugestão parecia ser que haveria um discurso que não seria imagem. Mas o desenvolvimento das
questões levantadas pelo não-ser acaba revelando o próprio discurso verdadeiro como imagem. I.e., algo
cujo ser consiste em não ser aquilo a que ele se refere, mas que ele faz aparecer por uma relação natural
de semelhança entre a tessitura que ele estabelece entre onoma e rhema com a tessitura da coisa de
que ele fala, e que ele próprio não é” (Iglésias,2003:155).
154
ingênuo, que supõe saber coisas sobre as quais meramente opina. A figura do outro
tem muita desconfiança e temor, pois ignora as coisas que manifesta, perante os
outros, saber. O doxomimeta ingênuo é considerado um mero imitador e o outro um
imitador irônico (eironikòs mimetés). O gênero ao qual pertence o imitador irônico é
dividido em dois e, nesta precípua divisão, o Estrangeiro separa o orador do sofista. “A
congeneridade do orador e do sofista poder-se-ia, pois, resumir em três traços comuns:
a prestidigitação (eidolopoiiké, ou eidolourgiké), a imitação opinativa (doxomimetiké) e o
imitador irônico (eironikòs mimetés)” (Torrano,2006:94). O orador, considerado orador
popular (demologikón) (Sof.268b), é um doxômimo capaz de dissimular em reuniões
públicas, perante multidões, em longos discursos, enquanto o sofista, imitador de sábio,
fingindo em breves discursos, em reuniões de caráter particular, compele seu próprio
interlocutor a se contradizer. O imitador sofista, coagindo seu adversário a contradizer-
se, pertence a uma parcela da arte imitativa irônica, referente à arte produtora de
opiniões, a doxástica. O gênero do simulacro remonta à arte de produzir imagens, a
arte imagética, cuja parte, não divina, mas humana da produção mediante discursos,
define o prestidigitador. A arte da prestidigitação, própria ao sofista, é uma parcela da
arte produtora de simulacros, que remonta à arte produtora de imagens. “O sofista é,
pois, um fantasma, não meramente do filósofo, mas do homem bio, de modo que,
para definir o sofista, é preciso conhecer a natureza do filósofo” (Rosen,1983:246). O
sofista produz, pela arte mimética, imitações e homônimos dos entes. O método de
divisão por formas foi empregado para diferenciar o sofista dos outros gêneros
miméticos, salientando a pluralidade de imitadores, dentre os quais se ressaltam o
poeta e o retor, distanciados triplamente da natureza, o artesão e o carpinteiro,
utilizando de instrumentos apropriados para as suas imitações cientes de paradigmas,
distanciados duplamente da natureza, e, propriamente, o filósofo, porquanto realiza
uma imitação sábia e verdadeira, pois o seu discurso e julgamento manifestam o
entrelaçamento verdadeiro das Formas inteligíveis. A arte sofística, considerada arte
apatética, repousa no âmbito dos discursos antilógicos, dos quais se evidencia, como
sua segunda parcela, a cnica erística, empregando imitações não verdadeiras dos
entes. A ontologia do Diálogo é, portanto, aduzida da crítica aos gêneros produtores de
imagens sinistras, realizando a opinião e o discurso falsos. O gênero do filósofo,
155
correlato ontologicamente ao gênero do ser se constitui em oposição ao gênero
doxomimético, portanto, doxosofístico, relativo ontologicamente ao gênero do não-ser,
habitando esferas distintas. A posição do Estrangeiro concernente à circunscrição do
gênero sofístico revela a necessidade de diferenciar os propósitos eleata e sofístico
quanto à natureza do gênero do não-ser e dos discursos, das opiniões e imaginações
falsos. A investigação lógica, epistemológica e ontológica constituir-se-iam “pari passu”
à perquirição moral, ética e política, porquanto o texto platônico não as dissocia. Assim,
se analisássemos o Diálogo por um prisma exclusivamente lógico, esmaeceríamos seu
tema precípuo que é a reta definição da natureza da imagem e suas diferenciações.
Se, no diálogo Sofista, a ciência dialética discrimina, pelo método de divisão por
formas, o ser, o movimento, o repouso, o mesmo e o outro como gêneros ontológicos
supremos (mégista gène) constituintes do ser absoluto (pantelôs ón), no Filebo, por
sua vez, a ciência dialética, oposta à arte erística, define, por meio do mesmo todo
de divisão, o limite, o ilimitado, a mistura, a causa da mistura e, também, a causa da
separação como os gêneros constitutivos da vida mista feliz. Retoma-se no Filebo, por
meio de um Sócrates habilidoso na arte dialética e cônscio de seus procedimentos, a
forma do Bem como a forma suprema dentre todos os bens considerados desejáveis.
156
V. A bela ordem incorpórea no Filebo
Se nos diálogos predecessores o problema da relação entre a idéia e a
pluralidade fenomenal, entre a forma única e a multiplicidade aparente, é pensado em
termos ontológicos ou de participação no don ou de semelhança na República ou de
comunidade no Sofista, no Filebo, diálogo sobre o prazer e a vida feliz será pensado
em termos da mistura entre elementos antitéticos, o limite e o ilimitado. A oposição
entre finito e infinito, entre uma natureza definida e limitada e outra indefinida e ilimitada
não é uma questão apenas pitagórica, mas pode ser aferida tanto na física milésia, no
entorno da concepção anaximandreana de ilimitado, de onde provêm os congêneres,
quanto na cosmologia parmenídea, adstrita à definição de ser como esfera delimitada e
perfectiva. O tema da discussão reitera a problemática eleata da concentração no um e
conseqüente dispersão fenomênica na multiplicidade aparente. A leitura e interpretação
dos Diálogos apenas pelo prisma pitagórico reduz a possibilidade de interpretá-lo por
157
meio de uma incessante comunicação da obra platônica com as proposituras eleatas,
fundamento da invectiva socrática à antilogia erística, atestada no proêmio do Filebo
relativa à alusão ao Palamedes eleata. A tradição comentativa que analisa este diálogo
pelo prisma eminentemente pitagórico e matematístico esmaece os nexos entre o
platonismo e o pensamento eleático e sua conseqüente crítica ao mau discurso.
Por meio da leitura de Monique Dixsaut (Dixsaut,2001:286), “o Filebo é o terreno
da eleição dos defensores de uma ‘nova ontologia’ de Platão e dos partidários das
doutrinas não-escritas”, pois exprimiria, para esses autores, suas preocupações finais
partilhadas por seus discípulos na Academia e registradas pela doxografia aristotélica,
circunscritas à teoria dos dois princípios correlatos ao um, princípio formal, e à díada
indefinida, princípio material. Para os teóricos do testamento ágrafo, Platão, “rompendo
definitivamente o apenas com a hipótese das Formas mas também com os gêneros
supremos do Sofista, operaria naquele diálogo uma revisão minudente de sua ontologia
e de seu método, a dialética” (Dixsaut,2001:286). Para os partidários da dogmática não-
escrita que têm, segundo Dixsaut, a divina surpresa de aferir escritos os dois princípios
que, por essa doutrina, seriam a mônada e a díada indefinida do grande e do pequeno,
anuindo, por conseguinte, haver realidades matemáticas intermediárias, tratar-se-ia não
de uma evolução da dialética platônica, mas da emergência de uma teoria esoterista. A
tese da mescla comum entre prazer e sabedoria, assegurando a vida média feliz,
revelar-se-ia, para a interpretação esoterista, apenas “o pretexto permitindo a Platão
expor seus novos princípios metodológicos ou os seus princípios ontológicos ocultos”
(Dixsaut,2001:287). Por essa perspectiva analítica, esmaecem-se, no platonismo tardio,
os componentes ético e político e os tópicos reiterantes da dialética platônica, a crítica à
erística, a invectiva das paixões deletérias, o opróbio à escrita, a asserção de que a
gênese do esquecimento é a fuga da memória, a prática da alma remêmora, a analogia
entre as artes dialética, gramática e musical, em favor, então, de uma dogmática ágrafa,
que anula tanto o âmbito cultual referente à hermenêutica platônica da herança mítica,
quanto o político, o entendimento da relação do filósofo com os gêneros produtores de
discursos. Se lêssemos Platão por um sistema apriorista de princípios em torno do um e
da díada indefinida, não o interpretando por meio dos lugares constituintes de sua
hermenêutica cultual, reconheceriamos ineludivelmente nele antinomias e lacunas.
158
O Filebo, assim como a maioria dos Diálogos platônicos, pertence ao gênero
ético, que, desde o Mênon, de acordo com o estudo de Harold Cherniss (2004) sobre a
economia filosófica da teoria platônica das Formas, contemplaria, também, a ontologia.
A ética mnemônica prescreve ser a sabedoria e a memória os bens absolutos
para a vida feliz. A ética hedonista prescreve ser o prazer o bem absoluto. Qual é a vida
feliz (bíos eudaímon)? Duas teses são expostas; a primeira, defendida por Filebo define
ser o prazer (hedonè), enquanto a segunda, defendida por Sócrates e antitética àquela,
define ser a sabedoria (phronèsis). Filebo afirma ser bom (agathòn) para todos os
viventes a graça (chaírein), o prazer (tèn hedonèn), o júbilo (térpsin) e tantas quantas
consoantes a este gênero (Fil. 11b3). Sócrates argumenta não ser aquelas, mas antes
o conhecer (phroneîn), o pensar (noeîn) e o rememorar (memnesthai) e todos os
congêneres, pois a reta opinião (dóxan orthèn) e o raciocínio verdadeiro (aletheîs
logismoûs) o melhores que o prazer (tês hedonês) (Fil.11c). A reta opinião associada
ao raciocínio da causa, portanto, verdadeiro, nos remete ao estabelecimento da ciência
no Mênon. Sócrates afirma a importância de evidenciar uma disposição e condição da
alma (héxin psychês kaì diáthesin) que assegure a todos os homens a possibilidade de
uma vida feliz (tòn bíon eudaímona), argumentando ser a vida do conhecer, enquanto
Filebo declara ser a vida da graça (Fil.11d), entendida em seu sentido hedonista. Se o
prazer dominasse a intelecção, haveria o poder da vida hedonista (krateî bíos tês
hedonês) e, se houvesse o inverso, adviria o poder da vida bia (s phronéseos) (Fil.
12a). Sócrates refletira sobre o prazer e a sabedoria, concluindo que nenhum deles
seria o Bem, mas seria um terceiro outro, diferente deles, melhor que ambos. O Filebo,
diálogo final, retoma a conspícua concepção da forma do Bem, analisada em República
VI. A classe do Bem é a mais perfeita e suficiente, diferindo-se de todos os entes.
Sócrates rejeita que todos os prazeres sejam bons, haja vista que Protarco afirma ser o
prazer um bem (tagathón) (Fil.13b). A tese de Protarco institui prazeres bons e maus
como idênticos e semelhantes, não diferenciando as ltiplas espécies em um gênero
único e o mesmo, sendo preciso, pelo método de divisão por formas, discerni-los. Se o
método diairético institui no Sofista os mégista gène, estabelece no Filebo a bela ordem
incorpórea entre os quatro gêneros da vida mista feliz. Se há prazeres maus, eles são
mutuamente dessemelhantes (anomoíous allélais) e contrários (enantías) aos prazeres
159
bons, não podendo ser todos idênticos ao mesmo gênero do Bem. Protarco, não
diferenciando as espécies de prazer, não compreende a multiplicidade determinada,
confundindo assim coisas semelhantes e dessemelhantes, iguais e desiguais, operação
própria ao raciocínio erístico. Como rejeitar o peremptório componente moral e político
presente na indagação socrática sobre a relação entre a forma única e a pluralidade?
Segundo Sócrates, todas as ciências parecem ser múltiplas e reciprocamente
dessemelhantes. No processo de oposições, em que o um devém múltiplo, existe uma
natureza admirável, concebida como o um (hén)
60
, não sendo, todavia, estabelecido
por aqueles que devêm e se corrompem (tôn gignoménôn te kaì apolluménon) (Fil.15a).
O um é sempre idêntico a si próprio, ingênito, e incorruptível. O entendimento socrático
da relação entre o um e o múltiplo opor-se-á à concepção da erística, concernente a
Zenão de Eléia, acerca da impossiblidade da multiplicidade, porquanto, para ele, é
inconsistente anuir a existência do múltiplo, pois se os entes fossem múltiplos, não
poderiam, ao mesmo tempo, ser semelhantes e dessemelhantes, nem o semelhante
devir dessemelhante e assim reciprocamente. Se , porém, a multiplicidade, é preciso
admitir a natureza do devir, concomitante à aceitação da essência. O equívoco de
Zenão reside no desconhecimento das relações efetuadas entre idéia e pluralidade
fenomênica, ou seja, entre o um, entendido como essência, e a multiplicidade aparente.
Sócrates intenta examinar a natureza do um e do múltiplo, recusando uma
provável identidade entre eles, pois é preciso admitir se tais unidades realmente
existem (monádas alethôs sas) e como cada uma, sendo sempre a mesma e o
aceitando nem geração nem destruição (méte génesin méte ólethron), pode ser no seu
todo uma unidade a mais estável. Assim, deve-se instituir naqueles que devêm (en toîs
gignoménois) e nos infinitos (apeírois) ou como sendo múltiplos e dispersos ou, o que
parece ser de todas as coisas a mais implausível (adynatótaton), como sendo idênticos
e unos que, separando-se, devêm, concomitante, no um e na pluralidade (Fil.15b). Não
se pode aceitar a indistinção entre o plano fenomênico e o plano numênico, erro
praticado pela arte erística. O mito primacial de Prometeu exprime, segundo o relato
60
Cf.Mié (Mié,2004[2]:234): “En el Filebo, un Sócrates maduro en las artes dialécticas está en
condiciones de asumir el problema ante el que se detenía el joven del Parménides; así, Sócrates
expresa, en el primero de estos diálogos, que es preciso admitir aquella maravillosa (thaumastón, Phlb.
14c 8; cf. Prm. 129 e 4 thaumastôs) tesis (lógos Phlb. 14 c 1), según la cual lo uno es múltiple e ilimitado
y lo múltiple es uno (Phlb.14e 3-5)”.
160
socrático, a relação entre o um e a multiplicidade aparente, unindo discurso filosófico e
discurso mitopoético. O fogo ofertado pelos deuses para que Prometeu conceda aos
mortais se liga às lições e ensinamentos indispensáveis relatados pelas antigas
tradições, pois os antigos, morando perto dos deuses, deram a fama de que, do um e
do ltiplo, os entes existem sempre, contendo, assim, o limite (péras) e o ilimitado
(apeirían)
61
neles próprios e brotados conjuntamente (Fil.16c). Mas, deve-se instituir
uma forma única (mían idéan) para cada ente que se examine, pois as coisas se
ordenam no todo. A diacosmese nasce precisamente da relação entre o um e a
dispersão fenomenal. O um não se altera na gênese, porque mesmo no devir o um se
mantém sempre idêntico a si mesmo, não admitindo em si os contrários, sendo próprio
do método erístico não diferir o um da pluralidade fenomênica, não reconhecendo entre
eles seus intermediários. Cada ente possui sua forma, sendo conhecida pelo citado
método de divisão. “Platão parece-nos insinuar que o um, o gênero, em si mesmo, é
múltiplo, pois o gênero contêm as diferenças que constituem as espécies, o que é
coerente com a teoria das idéias” (Pater,1965:51). Cada etapa do todo de divisão
possui dois gêneros ou espécies, ou um limitado número possível, pois o que é visado
se insere em determinado gênero pela exclusão de seu pertencimento a outro. No que
concerne à forma do infinito não é certo relacioná-la ao ltiplo sem considerar o seu
número total no intervalo entre o infinito e o um (Fil.16d). Os deuses (hoi theoí) nos
ofertaram reciprocamente, profere Sócrates, examinar, aprender e ensinar (skopeîn kaì
manthánein kaì didáskein) (Fil.16e). Os homens bios coetâneos, pondo lepidamente
os infinitos depois do um, ignoram seus intermediários, porquanto respeitá-los é o que
diferencia o dialético do erístico (Fil.17d), o filósofo dos muitos produtores de discursos.
Sócrates busca precisar a relação entre o um e o infinito pelo modelo do
alfabeto. O entrelaçamento entre vogais e consoantes produz uma originária estrutura
mental que revoluciona as categorias de pensamento gregas, pois entendido o ilimitado
61
Huffman (Huffman,1999:17) investiga as origens das noções do limite e do ilimitado, rejeitando a tese
de Charles H. Kahn, para quem o ‘Ápeiron’ seria antes registrado na física milésia de Anaximandro.
Huffman anui que os princípios do limite e do ilimitado são atestados nas teorias de Anaxágoras e Zenão
na segunda metade do V º século. Segundo Huffman, Filolau não se refere a princípios abstratos, o
limite e o ilimitado, expostos por Platão no Filebo (péras,apeirían), mas fala, no plural, de limitantes e
ilimitados. Cf.Dixsaut (2001:298): “Carl Huffman a brillamment demontré ‘que rien chez Platon ne suggère
que le système de la limite et de l’illimité remonte jusqu’à Pythagore. Nous pouvons estimer par
conséquent que Platon se réfère au système de Philolaos”.
161
dos sons, quer por um deus quer por um homem divino, uma tradição egípcia revelou
que Theuth foi o primeiro a entender que, no infinito, as vogais o o o um, mas
múltiplas
62
, com semi-vogais, dispondo também uma terceira espécie de letras, as
consoantes, denominando-as elementos. Os elementos formam um liame único,
revelado pela arte gramatical, “liame de interdependência, servindo de exemplo para
cada arte determinada” (Gadamer,1994:83). O recurso ao alfabeto e à sua arte
adequada, a gramatical, evidencia, no âmbito sensível, a comunidade ontológica dos
gêneros supremos e a sua elevada ciência, a dialética. O paradigma do alfabeto nos
auxilia no reconhecimento das presumíveis espécies de prazer e sabedoria, ajudando-
nos a discernir no todo complexo suas formas próprias. O exemplo egípcio exprime o
ato do pensamento em face do indeterminado, haja vista que, por meio da dialética, a
multiplicidade indefinida tornar-se-ia pluralidade determinada, reconhecida, por
exemplo, na música e na gramática. Para Dixsaut (Dixsaut,2001:312), o ilimitado não é
uma matéria que o limite informaria, mas um devir estabilizado pelo limite, um perpétuo
desigual em si, processo que não se pode reconhecer nem princípio, nem meio, nem
fim, rejeitando a correlação esoterista dos princípios ontológicos do limite e do ilimitado
ao um, causa formal, e à díada indefinida do grande e do pequeno, causa material. A
análise dos prazeres permite efetuar a operação dialética supramencionada,
discriminando no gênero do prazer as suas múltiplas espécies. Filebo, partidário da vida
hedonista, de um lado, aquiesce ser o prazer, o júbilo, a graça e congêneres o melhor
dentre os bens humanos. Sócrates, de outro, sustenta ser a rememoração, porquanto
as reminiscências em nossa memória precisam ser convenientemente julgadas. O bem
laudável, considerado melhor do que o prazer, seria, para a perspectiva socrática, o
intelecto, a ciência, a compreensão (sýnesin), a arte e seus cognatos (Fil.19c,d).
Sócrates procede à investigação e julgamento da vida hedonista (tón hedonês
bíon) e da vida sábia (tòn phronéseos bíon), considerando-as separadamente, o
62
Cf.Dixsaut (Dixsaut,2001:304): Le dialecticien doit résoudre un problème analogue à celui qu’a
rencontré Theuth, l’inventeur de l’alphabet phonétique (18b-d): comment, à partir d’une réalité illimitée,
produire un ensemble organisé d’éléments interdépendants. Theuth a en effet lui aussi dû partir d’une
réalité illimitée, la voix (phônè), et dans cet illimité il a été le premier à penser qu’il était possible de
convertir cette unité indéfiniment variable en une pluralité (...) Ce à quoi Socrate veut en venir devrait
donc, comme il l’affirme (18 d-e) être évident: le problème posé au dialecticien par le plaisir est un
problème de nature semblable, car le plaisir est, comme la phônè, une réalité recouvrant une multiplicité
indéterminée et, pour en découvrir l’unité réelle, il faut d’abord en constituer la multiplicité nombrée”.
162
havendo sabedoria na vida hedonista nem tampouco prazer na vida sábia, pois se uma
delas, a vida sábia ou a vida hedonista, fosse o Bem, não carecia de nada, sendo, ao
mesmo tempo, tanto autônoma quanto autárquica. A autonomia e a autarquia se
referem apenas à idéia e poder supra-essencial do Bem, idéia que supera as outras
idéias em poder e majestade. Mas, se precisasse de algo, o seria o Bem real (
óntos agathón). crates, a fim de investigar dialeticamente a real natureza autárquica
do Bem, sugere a Protarco viver toda a vida, aprazendo-se (hedómenos) dos maiores
prazeres (hedonàs tás megístas), de forma que, tendo-os inteiramente (pantelôs), não
carecia de nada, nem do conhecer (toû phroneîn), nem do pensar (toû noeîn), nem do
raciocinar (logídzesthai) (Fil.21a,b). Protarco admite não precisar de nada, vivendo a
plenitude da vida hedonista. A tese de Protarco defende a prevalência do hedonismo,
rejeitando qualquer outro bem. Porém, se não possuisse o intelecto (noûn), a memória
(mnémen), a ciência (epistémen) e a opinião verdadeira (dóxan alethê), seria preciso,
primeiramente, ignorar, sendo vazio de toda sabedoria (kenón páses phronéseos), se
se apraz ou não (Fil.21b). Do mesmo modo, sendo privado de memória, não poderia
relembrar se um dia regozijara, não remanescendo nenhuma memória do prazer
experimentado no instante atual (Fil.21c). Da mesma forma, ausentando-lhe a opinião
verdadeira, não lhe pareceria regozijar, mesmo regozijando, e carecendo-lhe, decerto, o
raciocínio, não conseguiria calcular os prazeres porvindouros, não vivendo uma vida
humana, não havendo, quer na vida hedonista quer na vida sábia, nem autonomia
tampouco autarquia. A ética hedonista, prescrevendo o prazer, o júbilo e a graça como
bens prevalentes, necessitaria, para poder vivê-los plenamente, dos bens propriamente
intelectuais e dianoéticos, o conhecer, o raciocinar, a memória, a opinião verdadeira e o
raciocínio. Sócrates permanece respeitoso ao culto de Afrodite, reconhecendo-a como
um membro da família dos deuses olímpios, limitando a pretensão de impô-la como o
único poder regente do mundo (Gadamer,1994:95). A ética hedonista não é uma ética
da compleição, ausentando-lhe, assim, o elemento dianoético. Recusar uma vida
inteiramente hedonista não acarretaria na aceitação de uma vida inteiramente sábia,
pois se aceitássemos viver, possuindo, em sua totalidade, sabedoria, inteligência,
ciência e memória, não participando nem de um grande prazer tampouco de um
pequeno, não havendo a dor, viveríamos em inteira apatia, não sendo uma vida digna
163
de escolha. As teses antitéticas, opondo as vidas hedonista e sábia, não respondem
sobre a real natureza do Bem.
Aduzindo que o bem não estaria em nenhuma dessas duas vidas, Sócrates
propõe que as duas conjuntamente, tendo vigorosamente se misturado, nasceria de
ambas uma comum, composta de prazer, intelecto e sabedoria, sendo suficiente,
perfeita e digna de escolha para todos os viventes, podendo vivê-la plenamente por
toda a vida. Se alguém, porventura, escolhesse uma outra vida, apreendê-la-ia
contrariamente à real natureza do verdadeiramente eleito, compelido involuntariamente
pela ignorância ou por uma infeliz necessidade. Parece a Sócrates que não se deve
considerar a deusa de Filebo, Afrodite, como idêntica ao Bem, considerado autárquico e
autônomo, tampouco parece a Filebo ser meramente o intelecto. O intelecto, para
Sócrates, é ao mesmo tempo verdadeiro e divino (alethinòn háma kaì theîon), sendo
diferente do prazer. Os prêmios da vitória da vida mista comum, a qual reúne sabedoria
e prazer, não são dados apenas ao intelecto, mas também são partilhados pelo prazer.
Sócrates defende energicamente que nesta vida mista de prazer e sabedoria, o
que a torna ao mesmo tempo eleita e boa (hairetòs háma kaì agathós) não é o prazer,
mas o intelecto, sendo-lha mais congênere e mais semelhante. Parece ser preciso um
outro engenho que assegure ao intelecto o segundo lugar. Sócrates institui o método de
divisão por gêneros. O deus lhe revelara que há nos entes o ilimitado e o limite e das
duas espécies deviria a terceira, misturada de ambas. Não obstante, parece a crates
ser necessário o quarto gênero, considerado a causa da mistura recíproca daquelas.
Sócrates declara, em primeiro lugar, o ilimitado (ápeiron), em segundo, o limite (péras),
em terceiro, a essência misturada e nascida (meiktèn kaì gegeneménen ousían)
daqueles e, em quarto, a causa da mistura e da geração (tèn tês meíxeos aitían kaì
genéseos) (Fil.27b)
63
. Os prêmios da vitória da vida comum e feliz foram atribuidos à
vida composta de prazer e sabedoria (tòn meiktòn bíon hedonês te kaì phronéseos),
sendo considerada uma parcela do terceiro gênero, não meramente composto desses
dois, mas de todos os ilimitados conjuntamente ligados pelo limite. O terceiro nero
seria, pois, entendido por crates como um compósito do limite e do ilimitado e a vida
63
Cf.Mié (Mié,2004[2]:312): “Así como el excurso sobre los mégista géne del Sofista proveía las
herramientas para explicar el no-ser y la falsedad, en el Filebo el excurso sobre los cuatro géneros busca
explicar la estructura de las entidades a fin de dar cuenta de la naturaleza de la razón y del placer”.
164
mista de prazer e sabedoria seria concebida como parte do terceiro gênero. Os gêneros
da vida mista seriam o limite, o ilimitado, a vida comum e o gênero da causa, que, pela
universal e multifária sabedoria, conceder-nos-ia a alma, engendraria os exercícios do
corpo e a medicina do corpo enfermo, pois na composição do todo muito ilimitado,
suficiente limite e uma causa não insignificante sobre eles, ordenando e governando os
anos, meses e as estações, chamada meritoriamente saber e intelecto, não podendo
haver saber e intelecto sem alma. Poder-se-ia mesmo afirmar que é inata à natureza de
Zeus, intelecto puro imiscido, uma alma real e um intelecto real (basilikèn psychén te
kaì basilikòn noûn) por causa do poder da causa (dià tèn s aitías dýnamin), havendo
outros belos dons nos outros deuses de acordo com a denominação própria de cada
um, sendo declarado pelos antigos, Anaxágoras ineludivelmente, que o intelecto
comanda sempre o todo (Fil.30d). O intelecto é o rei e o poder hegemônico do terceiro
gênero, misto do limite e do ilimitado. O enunciado socrático reitera e minudencia a
prévia crítica, relativa à segunda navegação, à concepção anaxagorea de intelecto.
Qual é o gênero do intelecto e que poder possui? O intelecto é do gênero denominado
causa universal, sendo congênere da causa e próximo a este gênero, enquanto o
prazer é ilimitado em si mesmo, próximo ao gênero que não tem e jamais terá nem
princípio, nem meio nem fim. O prazer deve ser julgado não separado da dor, pois
ambos possuem a mesma gênese, parecendo pertencerem a um mesmo gênero
comum, segundo a natureza. Da harmonia se dissolvendo nos viventes, surgem a
dissolução da natureza e a gênese do sofrimento físico. Porém, harmonizando-se, a
saúde dos viventes retorna à sua própria natureza, produzindo o prazer. A fome é
dissolução e dor enquanto o alimento e a repleção engendram o prazer. A sede é, ao
mesmo tempo, corrupção, dissolução e dor, enquanto o poder do úmido, tendo
preenchido o que foi dessecado, é prazer. A separação e a dissolução contra a
natureza pelo aquecimento propiciam a dor, enquanto a retribuição e o resfriamento
produzem o prazer. O frio, agindo, destarte, contra a natureza da umidade do vivente,
acarretando o congelamento, produz a dor. Mas, o frio, retornando e separando-se em
seus elementos primitivos carreia o prazer. Quando a forma animada nascida
naturalmente do limite e do ilimitado se corrompe, a corrupção é dor. Porém, se a via
retorna para a sua essência mesma, a retirada é prazer para todos. A via da corrupção
165
e da reparação remetem a uma espécie de dor e prazer, originadas das afecções
corporais. Mas, reside na alma mesma, por intermédio da antecipação das afecções, a
esperança prazerosa e confiante e a aflição temerosa e dolorosa, havendo, então, uma
outra espécie de prazer e dor, nascida por antecipação na própria alma, princípio
autárquico e intelectivo, separada do corpo. Os prazeres e as dores se originam
previamente na natureza da própria alma autônoma.
Sócrates propõe, de acordo com Gadamer (Gadamer,1996:228), constituir, pelo
método de divisão por formas, a gênese efetiva dos prazeres. Por intermédio da análise
das espécies de prazer, rejeita-se compreendê-los em uma totalidade homogênea e
indiferenciada, pois prazeres desejados e indesejados, considerando-os pela
necessidade em suas formas específicas, podendo ou não receber a natureza
discricionária do Bem. Se a destruição é sofrimento físico e a reintegração prazer, não
havendo nem corrupção nem reparação, nem harmonia nem discórdia, haveria uma
condição para os viventes, ausente de dor e prazer. Sócrates institui uma terceira
disposição, ao lado do estado agradável e do doloroso, presente na vida intelectiva e
sábia, concebida a mais divina de todas, julgando meritório o segundo prêmio para o
intelecto. A segunda espécie de prazeres, proveniente da própria alma, é originada pela
memória. Porém, a compreensão da memória depende do entendimento da sensação,
pois “a memória remete a uma percepção anterior, baseada em uma afecção corporal,
uma impressão sensorial” (Gadamer,1996:234). Os prazeres corpóreos admitem o mais
e o menos, prazer e dor infinitos, pertencendo ao gênero do ilimitado, enquanto os
prazeres anímicos supõem a memória e a sensação. Das afecções do corpo, algumas
se extinguem antes mesmo de atingirem a alma, enquanto outras, instaurando-se em
ambos, provocam um abalo que os move singular e conjuntamente. As afecções que
não penetram em ambos não são sentidas, porém as afecções que penetram
conjuntamente em ambos o sentidas, imprimindo na alma do percipiente a memória
do percebido. A compreensão do ignorado o indica uma gênese do esquecimento
(léthes génesin), pois o esquecimento é a fuga, o êxodo da memória (mnémes éxodos)
e a memória, se nem nasceu, tampouco existe (Fil.33e). Se a gênese do esquecimento
é a perda da memória, não é plausível pensar a ausência de sensação, a apatia, como
esquecimento, pois o ignorado não se apresenta à mente, não podendo conservar-se
166
mnemonicamente, não podendo nos propiciar a reminiscência voluntária. A memória
supõe a sensação, a união entre a alma e o corpo como condição de atividade e a
reminiscência supõe a lembrança do outrora percebido. Quando a alma devém apática,
por causa dos abalos do corpo, o que denominamos esquecimento, denomina-se
ausência de sensação. Quando, porventura, a alma e o corpo são reunidos em uma
única e mesma sensação, denominamos, com efeito, sensação ao movimento. Para
Gadamer, “Sócrates demonstra que o prazer e a dor físicos participam igualmente da
economia geral da alma” (Gadamer,1996:235).
Assim, a conservação da sensação é denominada memória. Porém, a memória
se diferencia da anamnese. “Platão opera uma distinção entre a memória que retém o
conteúdo de uma percepção pretérita e a reminiscência que consiste em tornar
presente algo que não existe mais, o conteúdo de uma antiga impressão ou, também, a
lembrança perdida de uma sensação ou de um conhecimento pretéritos que a alma
retoma na reminiscência” (Gadamer,1996:235). crates nomeia reminiscência ou
anamnese e não memória quando a alma, tendo antes experimentado afecções por
intermédio do corpo e tendo-as retomado na memória sem o auxílio do corpo,
rememora-as e quando, tendo perdido a memória quer de uma sensação quer de um
aprendizado, relembra-os por si mesma a partir da reminiscência voluntária sem o
auxílio da escrita. Se a memória é compreendida por um liame presencial com a
sensação, a anamnese é uma qualidade pura da alma, a potencialidade de “instaurar
um liame com o não-presente sem algum suporte material externo” (Gadamer,1996:
236). A reminiscência é a permanência da lembrança afetiva na memória do ser,
possibilitando-o restaurar a experiência do divino. “A alma aprende, reagrupando, por
reminiscência, os fragmentos de seu saber pré-natal” (Vlastos,1994:73). Assim, nem o
prazer nem o desejo o autárquicos, pois dependem de sensações corpóreas e das
afecções psíquicas, conjuntamente, para serem percebidos e do recurso à atividade
mnemônica e à reminiscência voluntária, logo, da alma remêmora.
Não há, assim, desejo corpóreo, pois o esforço de todo vivente tende sempre
para a afecção contrária àquela percebida no corpo. O apetite, guiando-se para as
afecções contrárias àquelas atualmente sentidas, evidencia que uma memória das
afecções contrárias presentes no ser. O apetite, o desejo e o princípio de todo vivente
167
(tèn hormèn kaì epithymían kaì tèn archèn toû zôou pantòs) pertencem conjuntamente
à alma (Fil. 35d). Se o prazer é uma afecção psíquica e não corpórea podemos inferir
que, por causa de uma dolorosa afecção, lembra-se de prazeres que, surgindo, fariam
cessar o sofrimento, mas não preencheriam ainda uma sensação agradável. Sócrates
conjectura pelas duplas afecções que podem haver prazeres e dores verdadeiros ou
falsos, do mesmo modo que podem existir opiniões e temores verdadeiros ou falsos ou
também alguns verdadeiros e outros falsos. Se opinar e aprazer são semelhantes e se
o prazer é unicamente verdadeiro, por que há opinião verdadeira ou falsa? Que
sobrevenha à opinião o falso ou o verdadeiro e que surja por intermédio deles não
meramente opinião, mas de cada um uma qualidade, é preciso examinar, pois
instituindo que tanto os prazeres quanto as dores têm qualidades, sendo grandes ou
pequenos, fortes ou fracos, se lhes sobrevier, porém, o vício, entendemos que a opinião
devém viciosa ou o prazer vicioso. Mas, se lhes sobrevier a retidão, julgamos haver
opinião reta ou prazer reto (Fil.37d). Se uma suposição enganosa (hamartanómenon
doxazómenon), é preciso homologar que a opinião, enganando-se, não supõe
retamente. A opinião, por sua própria natureza, é um intermediário entre o ser e o não-
ser, entre o verdadeiro e o falso. Se a dor ou o prazer, enganando-se acerca do que
sofre ou se apraz, carreia o falso juízo, não havendo nem a retidão nem a utilidade.
Assim, o prazer parece freqüentemente surgir em nós, diz Sócrates, não acompanhado
de uma reta opinião (metà dóxes orthês), contudo de uma falsa opinião (Fil.37e).
Sócrates indaga se não há real diferença entre o prazer acompanhado de reta
opinião e de ciência (he metà dóxes te orthês kaì met’epistémes hedonè) daquele que
surge freqüentemente em nós acompanhado do falso e da ignorância (metà toû
pseúdous kaì agnoías) (Fil.38a), evidenciando que opinião, prazer e dor, tanto os falsos
quanto os verdadeiros, surgem a partir da memória e da sensação (ek mnémes te kaì
aisthéseos) (Fil.38b) A nossa alma assemelha-se a um livro, porque a memória,
reunindo-se com a sensação e com as afecções originárias, parece escrever nas almas
discursos (gráphein en taîs psychaîs lógous). Quando uma afecção escreve coisas
verdadeiras, resulta-nos, a partir dela, opinião verdadeira (dóxa alethès) e discursos
verdadeiros (lógoi aletheîs). Mas quando o escrevente (grammateùs), existindo em nós,
escreve-nos o falso, o resultado seria o contrário das opiniões verdadeiras (Fil.39a).
168
Não há, pois, a apreciação do caráter deletério da escrita, mas o reconhecimento de
que as paixões podem imprimir na alma do ser discursos verdadeiros ou falsos,
dependendo do gênero produtor de discursos que as suscitam, podendo ser o filósofo,
os poetas trágico e cômico, o retor e o sofista. Sócrates, discutindo o surgimento das
opiniões falsas, emprega a razão gráfica (Brisson:1990) para esclarecê-las, ensejando
a compreensão de que um outro produtor poderia ao mesmo tempo agir em nossas
almas, exemplo, o pintor (zográphon), que, depois do gramatista (n grammatistèn),
desenha na alma as imagens dos discursos (tôn legoménon eikónas). Quando os
objetos de opinião e os discursos advenientes são separados da visão ou de alguma
outra sensação (tinos álles aisthéseos), observar-se-iam as imagens do que foi opinado
e do que foi dito (Fil.39b). As imagens das opiniões e dos discursos verdadeiros (haí tôn
alethôn doxôn kaì lógon eikónes) são verdadeiras, ao passo que as imagens das
opiniões e dos discursos falsos são falsas (Fil.39c). A idolopéica pode manifestar tanto
o lado reto da imagem, relativo ao conhecimento, à verdade e ao ser, quanto também o
seu lado sinistro, correlato à ignorância, ao falso e ao não-ser. As referidas imagens
decorrem de afecções pretéritas, presentes e porvindouras. O dialético mimético
escreve pelo poder do dialogar, pensamentos, discursos e opiniões verdadeiros nas
almas dos ouvintes, rejeitando pensamentos, opiniões e discursos falsos.
Os prazeres e as dores da alma surgem anteriormente aos prazeres e às dores
corpóreos, à medida que nos propiciam, no que concerne ao tempo porvindouro,
prazeres e dores antecipados, revelando-nos a pré-existência da alma em face do
corpo. As letras e as pinturas postas em nossas almas se referem ao pretérito, ao
presente e ao porvir, porque o homem é pleno de múltiplas expectações no que tange
ao futuro. Assim, o que se denomina expectações são discursos e as aparições
pinturas. A boa expectação é concedida a quem é amado pelos deuses, reiterando a
relação entre o filósofo e o divino. As inscrições, para o homem justo e piedoso, são
oferendas verdadeiras, enquanto para o homem injusto são oferendas falsas. crates
diz que nas almas dos homens falsos prazeres e falsas dores que imitam, conforme
o risível, os verdadeiros, anuindo que tanto as opiniões quanto os prazeres o
enganosos e deletérios quando tornam-se falsos. As sensações, as imagens impressas
na alma, as opiniões, os prazeres serão verdadeiros se o homem participar do intelecto
169
divino, se sua ação for regida respeitando os prazeres bons. Os prazeres falsos,
todavia, existem e nascem múltiplos e freqüentes. Se a alma é o desiderato dos
estados contrários do corpo, o corpo é o permitidor de afecções dolorosas ou
prazerosas. Os prazeres e as dores corpóreas, pertencentes ao gênero do ilimitado,
originam-se e presentificam-se ao mesmo tempo e conjuntamente com as suas
sensações contrárias e recíprocas. A corrupção da natureza pelas combinações e
dissoluções, crescimento e diminuição engendra, com efeito, dores e sofrimentos.
Porém, quando a sua natureza é reestabelecida, a sua restauração é prazer. A vida
isenta de dor e de prazeres assemelha-se à vida divina, havendo três espécies de vida,
a do prazer, a da dor ou a da completa ausência dessas afecções.
Sócrates propõe a hipótese de que se se isentar da dor, não seria a mesma
coisa que se aprazer. Seria a mais prazerosa de todas as coisas passar toda a vida
sem dor? (Fil.43d). Os êmulos de Filebo defendem que a vida feliz não reside na
hegemonia do prazer mas na isenção da dor. Segundo a reta razão, a vida média
(mésos bíos) não poderia devir nem prazerosa nem dolorosa, sendo ausente tanto de
prazer quanto de dor. Os inimigos de Filebo são hábeis oradores (deinoùs legoménous)
da natureza, afirmando não haver absolutamente prazeres, adivinhando a não
hegemonia do prazer o por uma arte, mas por uma nobre natureza, repudiando, por
esse prisma, o poder do prazer (tèn tês hedonês dýnamin), não o considerando sadio,
de modo que a sua própria arte da sedução ( epapogòn) não é, para eles, prazer,
mas sim charlatanismo ( goéteuma) (Fil.44c)
64
. Os maiores prazeres e as maiores
dores se originam a partir do vício da alma e do corpo e não da virtude (Fil. 45e). Os
prazeres misturados às dores nascem ora dos corpos e nos próprios corpos ou ora da
própria alma e na alma, havendo também dores misturadas a prazeres, originadas do
corpo e da alma, cujo conjunto denominar-se-ia ora prazeres ora dores. Porém, cólera,
temor, saudade, lamentação, amor, ciúme, inveja e congêneres constituem dores da
64
Para Mié, a tese dos inimigos de Filebo não corresponde àquela defendida por Platão, repousada na
evidência da vida mista de prazer e sabedoria, não sendo capazes de contemplar no uso dos prazeres
nenhuma forma de positividade. Cf.Mié (2004 [2]:316): “Pero la verdadera causa de esa tesis, que Platón
aquí le hace combatir a Sócrates como la mera contracara de la posición hedonista, reside en la aversión
a combinar génesis y ousía”. Os ascetas, assim como os hedonistas, compartilhariam a incapacidade de
conjugar dialeticamente gênese e essência, devir e idéia. A função do dialético é pensar, portanto, a
mistura ou comunidade entre gêneros aparentemente diferentes, remetendo à questão da gigantomaquia
manifesta no Sofista, que opunha aos partidários da incorporeidade os defensores da corporalidade.
170
própria alma (Fil.47e). Não a rejeição da esfera das sensações, mas o
reconhecimento de revelar a etiologia tanto dos prazeres quanto das dores. O liame de
interrelação entre alma e corpo nos previne de uma concepção correlata a um suposto
dualismo psicofisiológico. A crítica à tragédia e à comédia, artes poéticas imitativas
dramáticas, revelar-se-ia indissociável duma etiologia dos prazeres, pois emergem dos
discursos trágico e cômico a mescla indistinta entre prazer e dor.
As poesias trágicas propiciam-nos a mescla de prazer e dor, pois nos aprazemos
devido aos lamentos. A fruição estética que a tragédia nos oferece se baseia em
prazeres impuros, no amálgama entre prazer e dor. Seria também a nossa disposição
de alma nas comédias uma mescla de dor e prazer? Sócrates mostra os estados de
ânimo provocados nos amantes de espetáculo pela tragédia e pela comédia. A
natureza precípua do risível é um vício, sendo diferenciada pelas riquezas, quando
muitos supõem serem mais ricos que as suas próprias fortunas e, também, serem
maiores e mais belos conforme o corpo do que realmente são. A terceira espécie se
refere àqueles que supõem serem mais virtuosos do que são. O risível é discernido por
uma espécie de desmesura que abala o reto julgamento (Fil.49a), pertencendo ao
gênero do ilimitado. A apresentação da natureza do risível e de suas espécies permite a
Sócrates expor o afastamento entre o filósofo e os falsos saberes, dirimindo a opinião
comum de que o risível seria apreciado no filósofo, distante dos interesses vulgares.
Sócrates defende que a ignorância é réproba e vil para os vigorosos, pois a nocividade
lhe é congenitamente própria e também a suas imagens, enquanto a debilidade de
caráter pertence à ordem e à natureza das coisas risíveis, devendo ser afastada da reta
educação. Quando rimos dos ridículos de nossos amigos, o raciocínio nos mostra que,
mesclando o prazer à inveja, misturamos o prazer à dor. Nos lamentos, nas tragédias e
nas comédias, não apenas nos dramas, mas em toda tragédia e comédia da vida e em
outras miríades, as dores misturam-se, ao mesmo tempo, aos prazeres, resultando na
alma tanto do espectador quanto do paciente emoções ilimitadas. O componente
deletério da tragédia e da comédia se efetua pela promoção dos prazeres impuros,
produzindo na alma poderes contrários à reta natureza humana. A tragédia e comédia,
à medida que são imitações de simulacros, distanciam o espectador dos prazeres puros
e bons, imergindo-o em uma pluralidade de aparências, nas quais se misturam os
171
poderes nefandos das ações humanas. Os poetas trágico e cômico, afastados
triplamente do real, imitam os atos humanos na ignomía e no risível. O imitador
aparente mistura as opiniões falsas aos prazeres impuros. A crítica platônica à poesia
trágica revela a disposição natural do tragediógrafo para a imitação não do caráter
temperante mas do caráter irascível da alma, pela qual assegura a simpatia da
multidão, misturando, em sua composição, o prazer à dor. A poesia, privilegiando o
“ethos” colérico, nutre a parte ignominiosa e corrompe a parte racional da alma. O poeta
imitador instaura na alma de cada ser um mau regime, propiciando a dissensão dos
poderes anímicos.
A invectiva platônica contra a poesia repousa na inadequação da imitação
poética à eunomia política. A poesia imitativa homérica propicia nos alimentarmos de
prazeres impuros e ilimitados, pois nos lamentamos com os infortúnios de seus heróis,
não nutrindo o caráter racional e temperante da alma. O melhor elemento de nossa
natureza, não sendo corretamente educado pela razão e pelo costume, relaxa a guarda
perante as lamentações dos heróis, não considerando deletério, como espectador,
afligir-se com os sofrimentos do personagem. O poeta trágico provoca, pela simpatia
com o lamento heróico, a fraqueza de alma, afastando-nos da adequação à vida justa,
mista e feliz, do prazer puro e definido. A condenação platônica dos prazeres e opiniões
miscíveis e falsos evidencia a sua crítica às poesias trágica e mica, triplamente
afastadas do real. O poeta cômico, produzindo o risível, apraz com suas imitações a
pusilanimidade de alma. A piedade trágica e a bufonaria cômica provocam no
espectador emoções patéticas, pois se originam tanto na comiseração quanto na
derrisão prazeres e dores falsos e miscíveis, remissivos o ao gênero do limite, mas
do ilimitado. A vida hedonista não pode, por esse prisma, ser sujeitada à natureza
miscível e ilimitada das poesias trágica e cômica.
Por que entendemos a mistura em particular na comédia? Sócrates considera
mais fácil apresentar a fusão nos temores, nos amores e congêneres. A crítica socrática
da tragédia, comédia e outros dramas se realiza pela miscibilidade entre prazeres e
dores. A apreciação das muitas espécies de prazer propicia a Sócrates evidenciar o
afastamento do prazer do filósofo dos outros gêneros hedonistas, presentes em
discursos alheios à filosofia, como a comédia, a retórica e a sofística. A eunomia política
172
não pode admitir a Musa voluptuosa, mas apenas os hinos em louvor aos deuses e o
encômio dos homens bons. Qual prazer, enfim, distante dos prazeres impuros, é o
prazer verdadeiro? O puro, imisturável e suficiente ou o extremo, numeroso e grande?
Sócrates afirma que certos homens engenhosos se empenham em nos revelar que o
prazer é sempre gênese (aeì génesis estin) e não é absolutamente essência (ousía
ouk ésti parápan) (Fil.53c). dois gêneros de seres, o que é em si e por si (mèn
autò kath’autó) e o que tende para um outro (d’aeì ephiémenon állou) (Fil.53d). O
primeiro é, por natureza, sempre o mais venerável, sendo autônomo e autárquico,
enquanto o outro é inferior àquele, sendo-lhe subordinado. Sócrates busca entendê-los
pelo impulso erótico, pois contemplamos nesse, ao mesmo tempo, jovens amados
belos e bons e seus amantes viris, de modo que esta díade é símile àquela e a todas
proferidas, pois se entende os seres ou em vista sempre de um fim (héneká tou) ou,
então, o próprio fim desejado (d’hoû chárin) (Fil. 53e). Sócrates emprega a imagem
sensível da afecção erótica para evidenciar a relação entre gênese e essência. Se
pensarmos na díade gênese e essência, qual seria em vista do fim e qual seria o
próprio fim? A gênese visa à essência (tèn génesin ousías héneka) ou a essência visa à
gênese (tèn ousían genéseos héneka)? (Fil.54a) Sócrates aquiesce que todos os
medicamentos, todos instrumentos e todo material são oferecidos visando à gênese e,
também, cada gênese determinada origina-se visando a uma outra essência
determinada assim como a gênese em sua completude devém visando à essência em
sua completude. Se o prazer é gênese, ele necessariamente nasce visando a uma
certa essência (Fil.54c). Se o prazer, portanto, não é essência, sendo gênese, pertence
a outra parcela que a parcela do Bem (tèn toû agathoû moîran) (Fil.54d), não podendo
ser confundido, pelo método da divisão, como uma parte do Bem. Se o prazer é gênese
e a geração aceita seu contrário, a corrupção, é forçoso reconhecê-lo também por meio
da corrupção, podendo promover tanto a harmonia quanto o dissenso. Se o Bem não é
nem prazer nem seu oposto, a dor, nem gênese nem corrupção, não sendo ilimitado,
propõe-se uma terceira vida, a do conhecer, considerada a mais pura possível.
Não seria ilógico não admitir o bom e o belo nem em corpos nem em muitos
outros, exceto na alma e nela unicamente o prazer? A coragem, a temperança, o
intelecto e tantos outros bens não seriam atribuídos à alma? Não é lícito realizar uma
173
análise do prazer, sem privilegiar o intelecto e a ciência (noû kaì epistémes), sendo
preciso observar o que há por natureza neles de mais puro, empregando, para a
mescla comum (tèn krâsin tèn koinèn), de suas partes mais verdadeiras, misturadas às
do prazer (Fil.55c). Sócrates supõe que os aprendizados da ciência referem-se, de um
lado, à formação e à educação e, de outro, à produção, anuindo que umas contêm mais
ciência do que as outras, sendo preciso reconhecer que umas são mais puras enquanto
as outras mais impuras. Assim é necessário discerni-las, separando, em cada uma
daquelas, as ciências hegemônicas. Se separássemos de todas as artes a aritmética, a
metrética e estática, o que remanesceria de cada uma delas seria insignificante. Resta-
nos, afirma Sócrates, apenas conjecturar, exercendo os sentidos mediante a empiria e
por uma prática rotineira, utilizando-se dos poderes da arte do conjecturar, que os
muitos denominam artes, mas cuja eficácia advém de um exercício fatigante. A aulética
é plena disso, pois ajusta a consonância não pela medida, mas pela empiria, assim
como a música em sua totalidade, que procura a medida de cada corda pela conjectura,
sendo permeada pela não clareza e pelo mínimo de firmeza, tal como a medicina, a
agricultura, o estrategismo e a arte do timoneiro. Porém, a arte do carpinteiro emprega
mais medidas e instrumentos, fornecendo maior rigor, sendo mais arte do que a maioria
das ciências. Sócrates separa as mencionadas artes em duas, aquelas que
acompanham a sica, apresentando menor exatidão em suas obras e aquelas que
se aproximam da arte do carpinteiro, tendo maior exatidão, utilizando-se de régua e
compasso. A aritmética também pode ser separada em duas, há a aritmética dos
muitos e há a dos filósofos, pois uns calculam unidades desiguais, como duas armadas,
dois bois, magnitudes ínfimas e grandes, não superando a empiria e a prática rotineira,
enquanto outros empregam a geometria filosófica, procedendo ao cálculo
independentemente da prática empírica. A esfera dianoética nos remete ao
conhecimento realizado por intermédio do intelecto, que depende do emprego de
figuras, propiciando a superação da simples empiria. As artes se diferenciam ou por sua
maior clareza ou por sua maior obscuridade. As artes aplicadas ao impulso dos
verdadeiros filósofos são prodigiosas em exatidão e em verdade, distinguindo-se de
todas as outras em medida e número, em qualidade e quantidade. O poder dialético (he
toû dialégesthai dýnamis) se refere ao ser, ao real e ao sempre idêntico por natureza e
174
de modo absoluto (òn kaì óntos kaì katautòn aeì pephykòs pántos), sendo o
conhecimento o mais verdadeiro (Fil.58a). A arte do persuadir subordina todas as
coisas de acordo com o consentimento e não pela força, por anuência e não por
violência, sendo de todas as artes a melhor. O poder natural de nossa alma é desejante
do verdadeiro, e tendo-o como fim, apropria-se do puro do intelecto e da sabedoria.
Não há nenhuma outra ciência ou arte que esteja além dela e tampouco que se
aproximasse mais do que ela mesma do verdadeiro.
65
As muitas artes, opostas à
ciência dialética, utilizam-se de opiniões, dirigindo-se para o exame da natureza, do
devir pretérito, presente e futuro, não se preocupando com o que sempre permanece
idêntico, com o imutável, sobre as coisas que não possuem nenhuma estabilidade, não
nem intelecto nem alguma ciência que tivesse acerca delas o mais verdadeiro. O
intelecto e a sabedoria são os nomes mais veneráveis atribuídos àquelas artes que
permanecem sempre idênticas a si próprias. A opinião existe em vista da gênese e o
intelecto em vista da essência. Porém, para Filebo, o prazer é a justa meta de todos os
viventes e o seu bem universal, reiterando sua ética hedonista, de sorte que bom e
prazeroso seriam dois nomes que se aplicam a uma mesma e única natureza.
Sócrates rejeita esta pretensa unidade, porque, para ele, o bom e o prazeroso
têm naturezas diferentes, em que a sabedoria participa mais do lote do bem do que o
prazer (Fil.60b). A vida feliz e comum seria a mescla recíproca de prazer e sabedoria,
sendo mister entendermos, mediante a razão, o prazer imiscível à sabedoria e, do
mesmo modo, essa não misturada ao prazer. A dicotomia entre prazer e sabedoria
efetua-se meramente por meio do pensamento, pois memória, sabedoria, ciência e
opinião verdadeira (mnémen kaì phrónesin kaì epistémen kaì alethê xan) não
subsistiriam sem o prazer nem este sem aqueles. A natureza do Bem se diferencia
tanto de uma vida puramente hedonista quanto de uma vida puramente sábia, porque
ambos, prazer e sabedoria, não coincidem com o perfeito, o universalmente elegível e o
bem absoluto (tó téleon kaì pâsin hairetòn kaì tò pantápasin agathòn) (Fil.61a). O
filósofo rejeita, pois, tanto a ética absolutamente hedonista quanto uma ética
absolutamente sábia e mnemônica. A morada do bem seria a vida mista, comum e feliz
65
Cf. Dixsaut (2001:324): “La dialectique a affaire à des réalités possédant ‘fermeté, pureté, verité et ce
que nous appelons intégrité et qui sont semblablement toujours mêmes’, mais aussi ‘le plus sans
mélange’ (59c 2-4)”.
175
e reconhecê-la seria a maior expectação. A demiurgia da vida feliz necessita ser
efetuada mediante a mescla correta entre o prazer e sabedoria, pois uma ciência
mais verdadeira do que a outra e uma arte mais exata do que outras artes. A ciência
mais verdadeira seria aquela que se dirige para o ingênito, incorruto e sempiterno.
Os portadores de libações, Sócrates e Protarco, misturariam a fonte prazerosa
de mel à água austera e saudável da sabedoria. A vida mais desejável nasceria da
mescla suficiente dessas seções as mais verdadeiras. A vida amada o poderia surgir
de um único gênero, pois um gênero único, isolado e imiscível não seria nem possível
nem proveitoso. Mas, de todos os gêneros, o melhor é aquele que, habitando
conjuntamente com a sabedoria, conhece todos os outros e cada espécie de prazer
perfeitamente e possível. Se misturarmos indistintamente toda espécie de prazer a toda
espécie de sabedoria, não nenhuma exatidão em obter a mistura adequada, pois as
diferentes espécies não m o mesmo grau de verdade no que diz respeito ao gênero
(Gadamer, 1996:303). Os prazeres verdadeiros e puros, sujeitados à natureza limitada
da sabedoria, o considerados quase nossos parentes, acompanhados da saúde, da
temperança e de todos aqueles que seguem a virtude como se ela fosse uma
divindade. Os prazeres que acompanham a intemperança e outros males, subordinados
à hegemonia do ilimitado, nos trazem muita desrazão se porventura forem misturados
ao intelecto.
Se quisermos contemplar o mais belo compósito e a mescla mais estranha às
facções, então é preciso predizer o que é por natureza o bem nos homens e no todo e a
sua idéia. Sócrates refere-se à predição, por causa do caráter divino da idéia do Bem,
cujo poder é congênere ao inteligível. O filósofo empenha-se no exercício do poder
dialético, aproximando-se da divindade imiscidos. Os prazeres bons, não viciosos,
júbilo, sensações agradáveis, memória, sabedoria, intelecto, opinião verdadeira, são
importantes constituintes para a admiração da idéia e natureza do Bem. Qual é, nesta
mistura, o mais venerável e ao mesmo tempo a causa por excelência que supomos
originar para todos os homens uma requerida condição plena de benevolência? Todo
compósito, qualquer que seja a forma de sua composição, se privado de medida e
proporção, os ingredientes e ele próprio necessariamente se corrompem. A mistura
adequada, considerada uma ordem incorpórea, regendo belamente um corpo animado,
176
necessita dos critérios de medida e de proporção. Se não mescla comum, mas um
amálgama indistinto, origina-se para os seus possuidores um verdadeiro infortúnio. A
bela ordem incorpórea, regente dos corpos animados “manifesta a essência do Bem
por intermédio de suas três propriedades constitutivas, proporção, verdade e beleza”
(Gadamer,1996:308). A vida mista compósita, para ser elegível e boa, precisa ser a
mais congênere e mais semelhante à idéia do Bem. A idéia do Bem, conquanto
mantenha, no dizer de Gadamer, um halo de imprecisão, é meramente contemplada
pelos seus rebentos, o belo, o justo e o verdadeiro. O poder do Bem (he toû agathoû
dýnamis)
66
refugiou-se, segundo a expressão socrática, na natureza do belo (tèn toû
kaloû phýsin), porquanto a medida e a proporção, noções precisamente dianoéticas,
fazem nascer por toda parte o belo e a virtude
67
, misturando-se a eles nessa mescla a
verdade. Qual deles, o prazer ou sabedoria, julgamos nos homens e nos deuses ser o
mais venerável e o mais congênere ao melhor? Se o prazer é gênese, tende para um
fim outro do que ele próprio, que seria uma essência. O prazer não é nem suficiente em
si nem perfeito, não sendo o mais congênere à verdade. O intelecto é idêntico à
verdade, o mais semelhante e o mais verdadeiro. O intelecto e a ciência são os mais
proporcionados, ausentando-lhes qualquer desmesura. O intelecto participa mais do
belo do que o gênero do prazer, porquanto jamais decerto alguém viu ou imaginou, diz
Sócrates, quer em sono quer em vigília, que a sabedoria ou o intelecto pudessem devir
ou ser viciosos.
O prazer não seria nem o primeiro nem o segundo bem desejável, pois o
primeiro é concedido à medida, ao mesurado, ao conforme e todos quantos lhes forem
idênticos. O segundo bem desejável é atribuído à proporção, ao belo, ao perfeito, ao
suficiente e todas da mesma linhagem. O terceiro bem seria o intelecto e a sabedoria.
As ciências, as artes, as opiniões retas seriam o quarto desejável, por serem mais
66
V.Mié (2004[2]:322): Similarmente a lo que sucede en la República, en el Filebo se demarca la
diménsion de un más allá de las entidades, de una naturaleza que es la posibilidad articulada en toda
realidad (he toû agathoû dýnamis Phlb. 64e), una potencia que se efectiviza en distintas formas y
constituye la forma misma de la realidad”.
67
Para Dixsaut (Dixsaut,2000:257), os três critérios fundamentais da forma do Bem, medida, proporção,
beleza, não são três espécies de um mesmo gênero correlato ao Bem, mas três efeitos inseparáveis de
seu poder que se interdependem. A forma do Bem nos é compreensível, segundo Dixsaut, por seus
critérios. Segundo Mié (2004[2]:321), os conceitos de virtude e beleza definem a aparição e concreção do
bem na estrutura da facticidade humana. Pela correlação entre o bem e a vida boa, Platão põe em relevo
a orientação racional necessária à prática ética.
177
congêneres ao Bem que o prazer. O quinto seria os prazeres isentos de dor e os
prazeres considerados puros da alma.
Sócrates diz que Filebo defendeu ser o prazer o bem universal e absoluto.
Porém, Sócrates defendeu ser o intelecto superior e melhor do que o prazer. Mas, nem
o prazer nem o intelecto são suficientes, faltando-lhes a autarquia e o poder do
suficiente e perfeito (Fil.67a). No entanto, tendo se manifestado um terceiro, superou
tanto um quanto o outro, tendo o intelecto mais parentesco e mais naturalidade com a
forma do vencedor (toû nikôntos idéa) (Fil.67a). O intelecto é o mais congênere ao
Bem, o supremo desejável. O prazer não seria o quarto, mas o quinto na ordem dos
valores, pois o Bem é o primeiro. Não obstante, diz Sócrates, todos os bois, cavalos e
todas as feras conjuntamente aspirem ao regozijar, os muitos julgam, acreditando
neles, tal como os adivinhos nos pássaros, ser os prazeres os mais poderosos para o
bem viver, considerando os amores das feras testemunhos mais autorizados do que os
amores dos discursos vaticinados pela Musa filosófica (Fil.67b). A vida mista nutrida na
alma filósofa adquire a felicidade, pois seu compósito é mesclado pelos bens
desejáveis. A isonomia mútua da mistura assegura a vida feliz e comum, haja vista os
principais bens serem a medida e a proporção. Se forem ausentes, a desmesura carreia
corrupção e dor, enquanto, se presentes, gênese e prazer. A virtude, o verdadeiro, o
intelecto, são frutos da retidão e da simetria. Reiterando, é preciso, para o inquérito
socrático, fazer a justa eleição dos prazeres e conhecimentos mais puros, não
miscíveis, a fim de instituir a autarquia e autonomia da vida feliz, a qual é proveniente
da mescla correta, ou seja, de uma mistura cujos constituintes se combinam retamente
e cuja superveniência de um componente qualquer o prejudica a eleição e
administração de outro. A dialética é, portanto, a arte que evidencia a reta mistura entre
o prazer e a sabedoria, entre uma natureza indefinida e ilimitada e outra definida e
limitada. A dialética, enquanto poder de ascese anímica dos prazeres e opiniões para o
vestíbulo do Bem é a única, oposta ao poder antilógico, que eleva-se para a vida feliz,
porquanto é congênere ao poder do perfeito e suficiente. O dialético opõe-se ao erístico
e aos outros produtores de imagens, pois, por meio da divisão das espécies de prazer,
pode separar prazeres verdadeiros dos miscíveis, impuros. Mediante o método de
divisão, separando os semelhantes dos dessemelhantes, o primeiro prêmio foi atribuído
178
à idéia e natureza do Bem, princípio não-hipotético. A forma do Bem, por causa de sua
natureza supraessencial em estima e poder, deve ser apreendida pela atividade
noética, congênere à razão divina pura e imiscida. A forma do Bem, porquanto idéia
mais venerada e sublime, é própria da sabedoria divina. A razão humana pode apenas
apreendê-la pela esfera dianoética, na medida em que essa supraessencialidade se
refugia na natureza sublime do Belo. Se o poder do Bem refugiou-se na natureza do
Belo, cuja contemplação sensível nos propicia a anamnese da idéia do Belo em si, a
beleza é entendida dianoeticamente pelo liame com o verdadeiro, com a simetria e com
a proporção. Os prazeres e dores ilimitados surgem do deslumbramento efetuado pela
retórica e sofística, pelas poesias trágica e cômica, épica e lírica. Os prazeres puros
não misturados nascem da causa da mescla comum entre vida sábia e vida hedonista.
A alma filósofa ascende ao súpero, lugar supraceleste, onde mora o belo, a proporção,
o perfeito, contemplados pelo poder dialético. Os gêneros supremos da vida mista e
comum são, portanto, o limite, o ilimitado, a mistura e a causa da mistura, discernidas
pelo poder dialético, refutando a pluralidade indeterminada. A vida feliz se realiza pela
presença do bom nume. A vida numinosa é aduzida, por um lado, dos princípios
dianoéticos, o limite, o ilimitado e a mistura resultante e, por outro, do princípio noético
correlato à causa da mistura. A vida numinosa, portanto, se revela ao filósofo por causa
de sua natureza teófila, afastada dos meros interesses vulgares hegemônicos nos
tribunais e nas assembléias populares. A filosofia, protegida das Musas da astronomia
e da poesia épica, Urânia e Calíope, filhas de Mnemosyne, deusa da Memória, aspira à
morada do Bem, região divina e supra-celeste e supra-essencial, à qual pode ascender
por uma espécie de congeneridade, manifesta em seu reto procedimento e discurso.
A ciência dialética não prescinde das três primeiras modalidades do
conhecimento, pois tanto se privilegia a reta imagem do belo e a opinião verdadeira
quanto a capacidade dianoética de apreensão da medida e proporção presentes na
bela ordem incorpórea. A forma do Bem, por ser congenérica à sabedoria divina, pode
ser apenas reconhecida pela possessão numinosa, a qual compreende os princípios
dianoéticos atestados nas mútuas relações entre as formas singulares. Revela-se a
homologia, de um lado, entre as esferas divina e noética e, de outro, entre os âmbitos
numinoso e dianoético, de sorte que a vida eudemonista, evidenciada pela posse e
179
presença do bom nume, é adquirida pela dialética filosófica. A indeterminação, portanto,
da supraessencialidade do Bem requer ser aduzida não da pretensa lacuna do texto
platônico, premissa da leitura esoterista, mas da própria consciência de seu autor ante
a ontologia mítica atestada nas poesias homérica e trágica, separando as modalidades
do ser entre mortais e heróis visíveis e entre numes e deuses inteligíveis, entre uma
complexa comunidade que reúne Hestia e Hermes, deuses e mortais, Céu e Terra
68
. A
ontologia filosófica se constitui não por ruptura com a consciência mítica e com a
natureza da imagem, mas mediante a hermenêutica das relações mútuas entre os
territórios do visível e do invisível, da imagem e da idéia, do sensível e do inteligível. A
dialética filosófica entende, em primeiro lugar, a relação recíproca entre o sensível e o
inteligível em termos de participação ou semelhança e, em segundo lugar, a relação
mútua, por um lado, apenas entre os sensíveis e, por outro, apenas entre os inteligíveis
em termos de comunidade ou mistura. A relação de participação ou semelhança entre a
imagem sensível e a sua idéia inteligível é, pois, homóloga à relação de participação ou
semelhança entre o mortal visível e o seu deus invisível, assim como a comunidade dos
gêneros supremos evidencia a comunidade superna dos deuses imortais.
A proporção, beleza e verdade seriam, portanto, manifestações da idéia e do
poder supra-essencial do Bem, critérios dianoéticos por meio dos quais se reconheceria
o que é, por natureza, bom, reiterando o esquema genealógico que aquiesce ser o Bem
o pai e a causa de todos os entes, princípio de cognoscibilidade. A medida, par nocional
da proporção, e a simetria permitiriam ao sensível subtrair-se à hegemonia do devir,
68
Hestia, Hermes, Gaia, Urano são, na leitura de Mattéi (Mattéi,1983:186, passim), correlatos míticos aos
gêneros ontológicos, descritos no Sofista, do ser, do outro, do repouso, do movimento: Hestia representa,
na estrutura gica de oposição complementar, a permanência, enquanto Hermes a alteridade, do mesmo
modo, Gaia representa o correspondente mitopoético do nero ontológico do repouso, ao passo que
Urano o correlato apresentado no Sofista do gênero do movimento. Se Hestia manifesta, no parecer de
Mattéi, a essência (ousía) transmudada, na reflexão ontológica do Estrangeiro de Eléia, no gênero do ser
e Hermes a mudança de estados e os contatos entre elementos estrangeiros, podemos inferir, de acordo
com a análise de Mattéi, uma relação enantiológica entre o mesmo e o outro, entre a identidade e a
diferença, na qual se define a comunidade entre deuses e mortais, pois cada ente é outro que os entes
mesmos, não por sua própria natureza, mas porque participa da forma da alteridade. Cf. pág.138,139.
Para Lambros Couloubaritsis, a lógica de oposição complementar, dominada pela forma de alteridade,
estabelece que cada termo da relação possui qualquer coisa do outro termo (seu oposto), implicando,
necessariamente, uma lógica da ambivalência (Couloubaritsis,1990:142,passim). No caso específico, a
oposição thnetós, athánatos supõe relações mais complexas, em que o A-privativo não indica,
propriamente, uma negação absoluta, mas uma diferença de ordem (Couloubaritsis,1990:186).
180
mantendo, com efeito, comunidade com a essência, haja vista que a gênese corruta
deve ter como fim superno, se respeitar o intelecto, a essência incorruta.
A magnífica inovação do texto platônico reside em sua ineludível habilidade para
incorporar em seus quadros de pensamento as formulações de seus predecessores, e
de forma precípua o eleatismo, e interpretá-los pelo prisma de sua ontologia. A
pretensão de circunscrever o Diálogo sobre a vida mista feliz a uma suposta teoria
esoterista, refletindo as preocupações matematísticas do platonismo tardio e cuja fonte
primária repousaria no hipotético testamento ágrafo, defendendo a redução da amplexo
fenomênico a dois princípios relativos ao um e à díada indefinida do grande e pequeno,
esmaece a compreeensão de tópicos reiterativos da obra platônica e manifestos ao
longo desta tese correlatos à afirmação de que a gênese do esquecimento é o êxodo
da memória, ao reconhecimento de que as artes dianoéticas o disciplinas
propedêuticas à apreensão pelo raciocínio da medida, do justo e do belo, à apologia da
expectação humana relacionada à idéia e poder supra-essenciais do Bem, à anuência
de que a não-manifestação do ser carreia a imaginação, o discurso e a opinião falsos.
Por esses dados, as inferências realizadas na diatribe sobre o prazer revelam-se
fidedignas ao escopo do platonismo conspícuo, pois ressaltam a prevalência da
sabedoria e do saber numinoso para a reta aquisição da vida compósita feliz e o
posicionamento do filósofo dialético ante os muitos produtores de discurso que
descuram da realidade fenomênica, fixando-se apenas no âmbito da prestidigitação e
das imagens fantásticas dissimulatórias. Se não se produz a mescla correta entre as
melhores partes dos prazeres e dos conhecimentos, a mistura imperfeita acarretaria na
vida humana uma dependência dos prazeres impuros e dos falsos conhecimentos,
freqüentemente praticados nas assembléias, nos tribunais e no âmbito público.
O filósofo dialético tem, oposto ao erístico, a ciência necessária para apreender
as múltiplas relações efetuadas tanto entre as imagens e seus paradigmas quanto entre
as próprias idéias, assim como o poeta outrora tinha o venerando dom tanto para
reconhecer a participação dos mortais na divindade quanto para revelar a suprema
comunidade dos deuses. A dialética filosófica não pode ser confinada nos limites de um
saber metafísico, separado da própria história evolutiva da esfera política, haja vista
que se apresenta como hermenêutica própria das categorias arcaicas longamente
181
sedimentadas no mundo grego pré-platônico. A invenção platônica da dialética deriva
da necessidade de entender a relação entre o um e sua conseqüente dispersão
fenomênica. A escolha, com efeito, do prazer como tema precípuo da diatribe entre
Sócrates, Protarco e Filebo permite a Platão reconstituir as linhas fundamentais de seu
pensamento, correlatas à harmonia complexa entre o um e a multiplicidade fenomenal,
ao reconhecimento da memória como critério do conhecimento, porquanto a gênese do
olvido é a fuga mnêmica, à asserção da essência como fim supremo da geração e da
ciência como finalidade superna da reta opinião, à comprovação da proeminência das
artes ditas dianoéticas assegurando respeito e louvor à idéia e poder supra-essencial
do Bem, ao encômio da morada divina do Bem, interdita à natureza mortal, reiterando,
destarte, a hierarquia ontológica entre a gênese sensível e a essência inteligível, à
analogia da dialética às artes gramatical e musical, pensadas como tessituras de
elementos indivizíveis, à apreciação do caráter ou nefando ou venerando da escrita.
Respeitados esses critérios, anuidos no processo da exposição, circunscreve-se, para o
discurso filosófico, a questão ética da vida feliz pela determinação dos gêneros do
limite, do ilimitado, da mistura e da causa da mistura. Se, não obstante, no inquérito
sobre o gênero sofístico, diferenciam-se os gêneros supremos do ser, do mesmo e do
outro, do movimento e do repouso, se, no discurso verossímil sobre a gênese do
cosmo, aferem-se os gêneros da Forma, do fenômeno, do receptáculo e do demiurgo,
não podemos aduzir uma perfeita semelhança entre esses gêneros e aqueles
discernidos no escrutínio da vida média feliz, pois o pensamento filosófico platônico não
se constitui como um sistema. Se é pertinente associarmos às Formas o limite, dado
serem o intelecto e a ciência naturezas definidas, se é lícito relacionarmos aos
fenômenos o ilimitado, pois múltiplos prazeres, se se observa uma possível
homologia entre a causa da mistura, o intelecto, e a atividade demiúrgica, não
podemos, todavia, associar ao receptáculo, espaço onde todas as coisas devêm, a
mistura entre o limite e o ilimitado, i.e., a mescla entre a vida hedonista e a vida sábia.
A aplicação de categorias epistêmicas modernas para o entendimento do diálogo
nos induziria a atestar uma lacuna conceitual referente à idéia e ao poder do Bem.
Porém, essa leitura é apenas lícita por uma interpretação extrínseca do diálogo, a qual
presume haver um hipotético testamento ágrafo filosoficamente superior aos textos dos
182
Diálogos. A teoria esoterista, defendendo um presumível testemunho não-escrito,
associa o limite e o ilimitado respectivamente ao um, causa formal, e à díada indefinida
do grande e pequeno, causa material, apoiando-se nas chamadas lições platônicas
sobre o Bem. A redução dos constituintes necessários à vida ética feliz a componentes
matematísticos exprime menos os pressupostos da dialética platônica do que os
fundamentos da metafísica aristotélica, reiterados pela doxografia peripatética de
Teofrasto e Alexandre de Afrodísia. O grande e o pequeno referem-se a exemplos que
firmam a premência das ciências dianoéticas para o entendimento das estruturas
ontológicas, não se reportando a uma ulterior essência ou natureza substrata, substrato
ou suporte material das idéias-número. A interpretação esoterista, fundamentada na
dogmática não-escrita, minimiza as formulações platônicas relativas à ética e à política
em proveito de um hipotético sistema apriorista de princípios correlatos aos princípios
formal e material, ou seja, ao um e à díada indefinida do grande e do pequeno. A teoria
dos dois princípios é, com efeito, ineludivelmente conexa à crítica metafísica aristotélica
do préplatonismo e do platonismo. Para Luc Brisson (Brisson,1993), a tarefa suprema
de Platão é constituir um projeto ético-político conjunto às contemporâneas disposições
legislativas, pensando a ontologia e a epistemologia pela ética e política, fins que a
corrente esoterista desconsidera.
A hermenêutica do texto platônico permite, antes, ponderar sobre os limites do
saber humano e evidenciar a conseqüente transposição de uma moralidade trágica
para uma moralidade filosófica, de um discurso mitopoético para um discurso filosófico.
A congeneridade entre a sublime sabedoria divina e o inspirado saber humano se
efetua à medida que o filósofo manifesta, por um reto discurso, a tecedura da demiurgia
divina, baseada na mútua comunidade dos gêneros e no entrelaçamento das formas
inteligíveis. O discurso verdadeiro, efetuado pelo poder dialético, oposto ao poder
antilógico e erístico, deve aparecer como a imagem sensível da harmonia entre os
entes invisíveis, intangíveis e incorpóreos. A dialética se apresenta como esse discurso
vivo e animado, considerado logografia filosófica e suprema psicagogia, que, adverso
aos gêneros miméticos retórico, poético e sofístico, portanto, à logografia, à poesia
e à doxosofia, imita sábia e verdadeiramente o ser e sua inteligibilidade. A crítica
platônica à poesia, por exemplo, se reporta a uma invectiva de natureza não estética
183
mas ontológica, pois não se trata de desqualificá-la como obra literária mas de expor
seus efeitos na alma, centrados em uma fenomenologia das paixões. A concepção
deontológica da vida mista feliz se origina da compreensão ontológica da mescla
comum entre o limite e o ilimitado. A observância da reta comunidade, na qual o
ilimitado é subordinado à hegemonia do limite, permite, para o filósofo, o domínio das
paixões, não obstante recrudescidas pela tragédia e pela comédia, promotoras das
ilimitadas afecções respectivas de comiseração e derrisão. A crítica platônica à arte
poética imitativa nasceria, por esse prisma, do reconhecimento duma fenomenologia
das paixões, i.e., do acurado estudo das manifestações afetivas na alma do ser.
Respeitadas essas considerações, poder-se-ia afirmar que o opróbio da imitação
relacionar-se-ia, para Platão, às possíveis conseqüências deletérias produzidas na
esfera pública pelos gêneros produtores de imagens falsas. A dialética filosófica almeja,
pela reta linguagem, realizar o liame entre fenomenologia, ontologia e deontologia, pela
qual o discurso pode manifestar retamente a opinião e a imaginação verdadeiras.
184
Epílogo
Salientou-se que a invenção platônica da dialética é coetânea à constituição de
sua hermenêutica do real, entendida pela participação dos sensíveis nas formas
inteligíveis, pela mútua comunidade entre, de um lado, os visíveis e, de outro, os
gêneros supremos e pela mescla comum entre os gêneros, de sorte que se há uma
teoria das Formas, essa requer ser pensada por meio da compreensão evolutiva
dessas relações recíprocas, não havendo uma presumível doutrina apriorística de dois
mundos, realizando a cesura entre o sensível e o inteligível, como fundamento de toda
sua filosofia. A atividade compositora do autor Platão revela o entendimento dos
constituintes precípuos do mundo fenomênico, particularmente correlatos ao mundo
político, o qual imitaria os possíveis entrelaçamentos ou não entre as idéias. A forma,
com efeito, pela qual a linguagem manifestaria ou não a suposta inteligibilidade
presente na realidade aparente política constitui tópico essencial à especulação
185
filosófica platônica, discernindo na pólis ateniense clássica a existência de certos
gêneros produtores de discurso, cujas prováveis semelhanças e dessemelhanças são
examinadas ao longo de todo pensamento platônico, de modo que, pelo escrutínio de
suas hipotéticas identidades e alteridades, se explicita a circunscrição da figura do
filósofo e de seu gênero específico, a dialética filosófica. Realizaram-se a leitura e
interpretação dos Diálogos por esse prisma, ressaltando seus elementos textuais, sem,
porém, efetuar uma lógica extrínseca ao entendimento do próprio texto.
A tese buscou, assim, enfatizar a constituição da figura do filósofo e a sua
oposição aos outros gêneros produtores de discursos existentes na pólis ateniense
clássica. Se o retor e o sofista realizam imitações doxásticas, o poeta imitações de
simulacros, o filósofo produziria uma imitação sábia e verdadeira, de sorte que a
dialética constituir-se-ia menos como mero método e mais como gênero próprio do
discurso filosófico, revelando-se, ao mesmo tempo, como elevada ciência e consumada
retórica, projeto, concomitantemente, epistêmico e retórico, cultual e político, pois o
filósofo discerniria na natureza complexa do todo as formas inteligíveis que a compõem,
revelando no âmbito sensível a tessitura do real. Se o discurso retórico prescreve nas
assembléias e nos tribunais a persuasão, se o discurso sofístico supõe a antilogia
erística, cuja meta é o verossímil e a plausibilidade, se o discurso poético produz a
comiseração e derrisão humanas, promovendo prazeres e dores infinitos, o discurso
filosófico evidenciaria no âmbito sensível a sua participação ou não na inteligibilidade,
retomando um dos tópicos precípuos do discurso mitopoético correlato à participação
do humano no divino. Se o fragmento heracliteano anui haver uma harmonia invisível,
pois a natureza ama esconder-se, se a segunda parte do poema parmenídeo assevera
existir uma ordem verossímil das aparências, caberá à dialética filosófica platônica,
reavaliando-os, por meio da gigantomaquia cosmogônica do Sofista, considerada por
muitos o primeiro exercício da história da filosofia, explicitar a mútua relação entre a
gênese sensível e a essência inteligível, o devir e o ser, entre a aparência e a forma, de
sorte que se entende a dialética, em estrito senso, como verdadeira ciência filosófica,
manifestando a diacosmese ínsita na pluralidade fenomênica. A dialética, propugnada
por Platão, se insere na tradição multi-secular de decifração do mundo fenomênico.
186
Se nos diálogos iniciais se inquire sobre o aspecto de algo, buscando, por meio
da ironia socrática, delimitá-lo na ordem do discurso, os diálogos intermediários
concebem o aspecto como forma inteligível em oposição complementar à sua imagem
sensível. A recepção platônica do pitagorismo, da filosofia jônica da natureza e do
eleatismo permitem ao filósofo constituir a sua própria hermenêutica do real. A dialética
não pode ser pensada como simples método, ancila de uma ontologia canônica, como
se houvesse uma teoria apriorista das Formas regendo a compreensão do real,
cindindo os domínios do sensível e do inteligível e estipulando uma doutrina dos dois
mundos, mas como gênero imitativo produtor de discursos verdadeiros, logo, como
imitação sábia, mímesis historikè, por oposição à imitação doxástica, realizada por
retores e sofistas, e à imitação de simulacros, produzida por poetas. A constituição da
dialética se efetua, assim, por sua oposição à crítica dos gêneros miméticos fantásticos
e doxásticos, na medida em que esses produzem opiniões, discursos e imaginações
falsos, ressaltando, em suas artes, afecções ilimitadas, prazeres e dores infinitos,
adversos à ordem natural. A epistemologia e ontologia platônicas devem ser aduzidas
da relação instituída entre os gêneros produtores de discurso existentes na lis
ateniense clássica, propriamente, de um lado, o filósofo e, de outro, o poeta, o retor e o
sofista. Se o filósofo habita a região ôntica, o ser puro imiscido, o sofista reside, pois, na
região meôntica, no intermediário entre o não-ser absoluto e o ser real, de sorte que as
mútuas relações entre o ser e o o-ser instituídas no inteligível refletiria as relações
recíprocas entre o filósofo e o sofista existentes no âmbito sensível. A constituição da
dialética precisa ser interpretada não por uma teoria apriorística das Formas, que torna
o território humano cópia esmaecida da inteligibilidade, causando o demérito do
sensível e a conseqüente cesura entre dois mundos, contudo mediante a construção da
figura do filósofo e de suas alteridades, de sorte que se atesta nos Diálogos platônicos
a prevalência de uma tese central referente à circunscrição do filósofo, afeiçoado pelo
entendimento da natureza do todo e da relação com suas partes. Pudemos inferir que a
reflexão platônica ontológica, epistemológica e lógica concerne e provém não de uma
suposta teoria apriorista das Formas, prescrevendo idéias universais separadas, mas
de uma atinada reflexão moral, ética e política relativa à pólis ateniense clássica. Assim,
187
a ontologia, a epistemologia e a gica formuladas nos Diálogos se conjugam com as
linhas fundamentais de sua moral, de sua ética e de sua política.
O surgimento da retórica, dos discursos antilógicos e de seus registros escritos
propiciam a Platão apreender os presumíveis efeitos dos discursos persuasivos para a
pólis clássica, sendo preciso avaliar ao mesmo tempo as práticas orais e seu reflexo na
escrita, sensível da oralidade. Se o retor produz discursos antilógicos, fundamentados
na convenção, na persuasão, na verossimilhança e na preferibilidade, o filósofo elabora
discursos dialéticos, fundamentados na natureza, no conhecimento, na verdade e no
ser. A refutação necessita se reportar ao próprio processo de argumentação, assistindo-
lhe, assim, a fim de apreender o verdadeiro, noção ineludivelmente associada à relação
destra entre idéia e fenômeno, essência e aparência. A refutação, elemento constituinte
dos raciocínios antilógicos, contrapondo Sócrates aos interlocutores erísticos, precisa
integrar-se à especulação fenomênica e metafenomênica, possibilitando a Sócrates ser
um refutador que purifica os interlocutores de suas falsas opiniões. O reconhecimento
dessa especulação, surgida duma apreciação que remonta ao pensamento mitopoético
e arcaico, porque existia a compreensão da relação entre o ser puro imiscido e o ente
fenomênico, permite a Platão a superação das aporias, presentes nas lides refutativas.
A linguagem outrora sagrada do mundo societário arcaico e da poesia homérica,
se revela, no discurso antilógico, professado por retores e sofistas, dissociada de sua
experiência cultual, prevalecendo não o ser, mas o parecer ser, não a essência, porém
a aparência. A realidade normativa convencional aparece, para os hábeis produtores de
discursos, interpelados por Sócrates, antitética à realidade natural essencial, revelando
serem termos antinômicos. Se o discurso, a dimensão do ‘lógos’, se sujeita a propósitos
humanos arbitrários, opera, pela citada cisão, o ilusionismo e a degenerescência moral
e política. Se a antilogia, oriunda do gênero agonístico, produz a doxosofia e a
doxomimética, a filosofia promove a dialética. A filosofia, protegida das Musas, retoma,
pela invenção da mais consumada retórica, a dialética, o território teófilo correlato ao
horizonte cultual. A dialética se constitui, por meio do filósofo, como suprema retórica e
elevada ciência, projeto, concomitante, epistêmico e retórico, cultual e político, mítico e
lógico. A dialética se apresenta como ciência filosófica, apreendendo a unidade entre o
ser, conhecimento e verdade, manifestando, pela compreensão das formas ingênitas,
188
dos gêneros supremos e dos gêneros constitutivos tanto da vida mista feliz quanto da
natureza do todo, a estrutura fundamental do mundo, o tecido complexo do real. Se o
discurso antilógico admite ser a realidade fenomênica apenas multiplicidade aparente, o
discurso filosófico a entende por sua participação na inteligibilidade. Pudemos, assim,
comprovar como a anamnese se apresenta como um processo epistêmico que associa
a determinado dado sensível seu correspondente inteligível. Não se trata de subordinar
o homem, a dimensão humana, o lugar sensível, a uma teologia platônica, ao lugar
inteligível, nem de instaurar uma condição totalitária atinente a um universalismo moral,
mas de conceber o espaço político como imagem destra da natureza, promovendo o
acurado nexo entre natureza e convenção. A dialética se propõe, para o autor Platão,
como hermenêutica adequada dessa ontologia multi-secular, sintetizando teogonia,
física e antropologia. Se o sofista privilegia a arte erística, o filósofo prioriza a arte
dialética, autêntico saber psicagógico. O filósofo busca superar a mera refutação, para
a qual a realidade, correlata à pluralidade fenomênica, é concebida como perpétuo
devir, constante e metabólico fluxo, no qual todas as coisas, subordinadas à
permanente alternância de contrários, são e não são, ao mesmo tempo e na mesma
relação, semelhantes e dessemelhantes, retas e sinistras, grandes e pequenas, iguais e
desiguais. O gênero filosófico, rejeitando a indistinção da pluralidade aparente,
permissiva à prestidigitação e à apatética, empregando métodos de hipóteses, sínteses
e de divisões por formas, discerne na totalidade complexa do real as formas indivisíveis
e paradigmas que a compõem, produzindo outrossim a imaginação, a opinião e o
discurso verdadeiros ante a imaginação, a opinião e o discurso falsos efetuados pelos
produtores de simulacros, pela mímesis phantasmátos. O filósofo realizaria a imitação
sábia e verdadeira da realidade, a mímesis alétheias. Se a escrita não é um mero
sucedâneo da oralidade, mas a sua aparência sensível, então o filósofo deve elaborar
os procedimentos adequados à consecução da reta grafia. A possibilidade de pensar a
retórica filosófica por seu lado destro provém da constituição da ontologia platônica,
haja vista que o discurso escrito pode ou o manifestar a tecedura das Formas. A
consumada retórica filosófica, mobilizando o método de divisão por formas, se empenha
em esclarecer a tessitura das idéias por meio do projeto exeqüível de uma linguagem
dialética, consolidada no poder da comunidade dos gêneros supremos. A complexa
189
ontologia platônica precisa, deste modo, ser aduzida da crítica aos gêneros produtores
de discursos falsos, particularmente, dos imitadores fantásticos e doxásticos, que não
discernem o real entrelaçamento das formas, compondo uma linguagem falsa.
Se uma teoria esoterista do autor Platão, essa requer ser atestada não numa
presumível teoria matematística dos dois princípios, o contemplando nem a forma do
Bem nem a forma do Ser, mas antes nos próprios Diálogos, à medida que a linguagem
aparece, para seu autor, provida, ao mesmo tempo, dos componentes lógico e sagrado,
humano e divino, de sorte que tanto a crítica ao poder deletério da escrita quanto a
indeterminação da idéia supra-essencial do Bem precisam ser pensadas por esse
prisma. A escrita assume para Platão estatuto moral, pois precisa se reportar à unidade
mítico-filosófica entre verdade, conhecimento e ser, revelando-a. O reproche platônico
referir-se-ia, assim, a certos gêneros produtores de discursos escritos, o poeta, o
logógrafo e o nomógrafo, pois esses o contemplariam os critérios precípuos à
consecução da escrita, relativos à fidedignidade do verdadeiro, a defesa duma possível
refutação à composição resultante e o reconhecimento da insignificância do texto
escrito perante o tema tratado. A relevância, portanto, da escrita reside em sua relação
fidedigna com o verdadeiro, com o conhecimento e com o ser, com o inteligível em seu
conjunto. O discurso filosófico formulado por Platão interpreta o discurso mitopoético,
associando-o às inovações advindas do conhecimento científico, pois à relação mítica
entre mortais e heróis visíveis, numes e deuses invisíveis remonta a relação lógica
entre imaginação e crença sensíveis, pensamento e intelecção inteligíveis, de modo
que a filosofia e o mito se articulam na estrutura complexa de deciframento do real,
partilhando o mesmo fundamento ontológico. O aparecimento dos primeiros registros
logográficos por parte dos retores, num horizonte cultural mnêmico, tomado pela
mitopoese, torna o discurso, outrora revelador da presença numinosa, subordinado aos
ditames da oratória antilógica, relativos à persuasão, à preferibilidade e a opiniões
metabólicas aparentes. A forma literária dialógica adotada por Platão, com os inúmeros
relatos míticos, com discursos verossímeis e fábulas, com discursos breves e longos,
permite ao leitor aferir as múltiplas teses defendidas pelos personagens, evitando-lhe a
capciosa e ilícita adesão imediata de premissas persuasivas, a exemplo da logografia.
Os Diálogos, como registro escrito, opor-se-iam, ética e epistemologicamente, aos
190
textos logográficos. A consciência, assim, da complexidade da escrita para Platão, de
seu caráter legiferante e sagrado, reiterando a concepção heracliteana de ‘lógos’, nos
previne da asserção de uma doutrina exotérica escrita popular contaposta a uma teoria
esoterista oral, partilhada pelos membros da Academia, Aristóteles, Espeusipo,
Xenócrates, incumbida de explicar as supostas lacunas deixadas por seu autor,
apropriando-se de uma lógica extrínseca ao próprio contexto dos Diálogos, manifesto
no liame entre os horizontes político e cultual, mítico e lógico.
A determinação da idéia supra-essencial do Bem revelaria menos a incapacidade
do filósofo para defini-la ou a sua presumível exposição pelo testamento ágrafo do que
a aquiescência com as estruturas fundamentais da mítica grega, na medida em que o
Bem apresentar-se-ia como correlato epistêmico do deus puro imiscido, superando em
poder e majestade todas as outras divindades. A compreensão da idéia e poder do
Bem se efetua pela apropriação de uma ontologia mítica, relativa à hierarquia dos
entes, mortais e heróis visíveis, numes e deuses invisíveis, e na precípua participação
desses no divino imiscível, intelecto puro sem mistura. Ressaltam-se, portanto, na
atividade compositora do autor Platão a leitura e conseqüente hermenêutica de
categorias fundamentais do pensamento simbólico arcaico, promovidas pela
racionalidade emergente e por seu acurado esforço de interpretação da tradição e do
discurso mitopoéticos. A leitura dos Diálogos permite-nos aferir o nexo entre
experiência cultual e experiência política, de sorte que a passagem do mundo
homérico, repousado na comunidade gentilícia mnemônica, para o mundo clássico,
fundado na comunidade política, não consiste meramente na transição de um discurso
figurativo arcaico para um discurso conceitual clássico. O discurso filosófico, cuja forma
completiva na pólis ateniense clássica realizar-se-ia nos Diálogos platônicos, retém
múltiplos lugares-comuns do discurso mitopoético. A ontologia mítica precede e prepara
a ontologia filosófica, havendo entre ambas uma homologia estrutural, porque à
hierarquia quaternária entre deuses e numes invisíveis e heróis e mortais visíveis
associar-se-ia a hierarquia epistêmica entre a imaginação e a crença sensíveis e
pensamento e intelecção inteligíveis em República VI, assim como à comunidade
recíproca entre deuses imortais, homens mortais, a Terra, Céu e Hestia corresponderia,
respectivamente, a tua comunidade de gêneros entre o mesmo, o outro, o
191
movimento, o repouso e a essência no Sofista, rompendo, com efeito, com a concepção
meramente diacrônica das estruturais mentais do pensamento grego. A presença da
sabedoria numinosa numa alma magnânime é, também, um dos componentes
precípuos tanto da mitopoese quanto da filosofia, à medida que o herói e o filósofo a
possuem, participando da natureza súpera. A possessão numinosa efetuaria a
mediação entre os horizontes humano e divino, porque o filósofo revelar-se-ia
congênere aos deuses e às idéias sem mistura, imiscidas. A vida eudaimônica e justa
consistiria na mescla comum e perfeita entre as vidas sábia e hedonista, entre o limite e
o ilimitado. A imagem da linha, atestada em República VI, elabora na linguagem
filosófica e conceitual, a hierarquia do divino tradicional referentes aos seus quatro
modos de ser. A assimilação refletida da oposição cultual entre Deuses ctônios e
Deuses olímpios revelou-se paulatina na mentalidade arcaica e clássica, registrada
tanto na relação entre o denso e o raro no poema parmenídeo quanto na oposição
platônica entre a noite escura e a luz diurnal.
A pesquisa evita conceituar a dialética pelas categorias epistêmicas aristotélicas,
as quais remetem os gêneros do ser e do não-ser a uma hipotética teoria dos
princípios, fundamento do testamento ágrafo, identificando o ser ao um, correlato à
causa formal, e o o-ser à díada indeterminada do grande e pequeno, relativa à causa
material. A análise aristotélica, circunscrevendo seus predecessores, à sua gica da
essência ou natureza substrata, interpreta a experiência platônica do sagrado por meio
de uma teoria das idéias separadas. As leituras metafísicas esmaecem os constituintes
históricos da invenção platônica da dialética, o privilegiando o nexo precípuo entre
ontologia mítica e ontologia filosófica, pelo qual Platão realiza a hermenêutica das
estruturas fundamentais do mundo grego, interpretando-as pelo prisma da
racionalidade nascente, sem, porém, submetê-las a uma lógica apodíctica e não
contraditória. A filosofia, à medida que surge da emulação com os outros gêneros
produtores de discurso existentes na pólis clássica, os gêneros poético, retórico e
sofístico, pretende superá-los em verdade, conhecimento e ser, constituindo-se como a
imitação sábia e verdadeira. A invenção platônica da dialética filosófica contemplaria os
componentes fundamentais do pensamento grego, correlatos à mútua comunidade
entre, de um lado, os entes visíveis e, de outro, os entes invisíveis, pensados tanto
192
miticamente quanto ontologicamente, relativos à participação dos entes sensíveis na
inteligibilidade, à mescla comum e perfeita entre os gêneros supremos, à relação de
oposição e complementaridade entre as regiões ôntica e meôntica, correspondentes à
luz diurnal e à noite escura, ao conhecimento e à ignorância, à memória e ao
esquecimento, enfim, entre as naturezas antitéticas, constitutivas da, assim chamada
pela fortuna crítica, teoria platônica das Formas. A subordinação do entendimento do
texto platônico à lógica da identidade e da não-contradição desfaz os nexos evidentes
entre pensamento platônico e pensamento mitopoético, à medida que aferimos nos
Diálogos platônicos não a passagem do discurso figurativo arcaico para o discurso
conceitual clássico, da imagem para a idéia, mas prevalentemente uma relação
dialógica entre esses termos supostamente antitéticos, devendo-se lê-los recompondo
as linhas de força presentes na pólis ateniense clássica, presentes nas atividades do
retor, do poeta, do sofista, do político.
A participação dos entes sensíveis em suas formas inteligíveis nos reporta
sempre, à relação entre as formas antitéticas, movimento e repouso, imagem e modelo,
não-ser e ser, iterando a gica de oposição e complementaridade perante a apodítica,
pois tanto a alma imortal invisível mantém uma relação enantiológica com o corpo
gênito visível quanto o ser imiscido com o não-ser absoluto, de sorte que o ato real de
conhecimento consiste, no pensamento mítico, na hierogamia entre as potestades
olímpias da memória e as potestades ctônias do esquecimento. A leitura e interpretação
dos Diálogos evidencia, assim, a constituição de uma hermenêutica platônica do real e
de seus níveis de visibilidade e invisibilidade, expostos em seus mitos genealógicos e
escatológicos. A partir da minudente análise da existência fenomenal, Platão compõe
sua ontologia. A sua ontologia é adveniente da compreensão das relações existentes
ou não entre o saber verdadeiro e os falsos saberes, de modo que o no Sofista a
rejeição de uma teoria canônica das Formas, promulgada conspicuamente tanto no
Fédon quanto na República, mas o entendimento das possíveis relações ou não entre o
filósofo e o sofista por meio da exposição da comunidade de gêneros (koinonía tôn
genôn). A compreensão das relações instituídas entre os gêneros produtores de
discurso na pólis ateniense, o filósofo, o poeta, o retor e o sofista, nos remete à
concepção de esfera política como intermediária entre o ser puro imiscido e o não-ser
193
absoluto, esfera ctônia contraposta à esfera olímpia, na qual se manifestariam tanto a
opinião, o discurso e a imaginação verdadeiros quanto a opinião, o discurso e
imaginação falsos. As noções epistêmicas platônicas de ignorância, opinião e ciência
são aferidas dessa citada relação topológica arcaica. Ressalta-se o evidente nexo entre
ontologia e epistemologia, à medida que ao ser imiscido, ao intermediário e ao não-ser
absoluto se associam o conhecimento, a opinião e a privação de conhecimento,
correlatos à vida desperta sábia, à vida onírica hipnótica e ao esquecimento. A pólis se
apresenta para Platão como a instituição político-cultu(r)al, recipiendária da pluralidade
de imagens e fenômenos, na qual os diferentes gêneros imitativos podem ou não
produzir os estados mentais supracitados. A dialética, por essas razões, foi
conceituada, nesta tese, não como um mero método extrínseco ao seu próprio escopo,
mas como elevada ciência e consumada retórica, projeto ao mesmo tempo epistêmico e
retórico, político e cultual: essa dupla condição, aparentemente contraditória, permitiu
ao filósofo ateniense elaborar uma sofisticada teoria filosófica, alheia, portanto, a uma
lógica classificatória e da não-contradição, solicitando de seu leitor sensibilidade e
razão para apreendê-la. Por meio das análises dos diálogos Mênon, Fédon, República
V, VI e VII, Fedro, Sofista e Filebo, buscou-se circunscrever um conceito preciso de
dialética, em co-relação com outras práticas discursivas presentes no espaço público,
revelando suas prováveis semelhanças e dessemelhanças, identidades e alteridades.
194
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