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presença do bom nume, é adquirida pela dialética filosófica. A indeterminação, portanto,
da supraessencialidade do Bem requer ser aduzida não da pretensa lacuna do texto
platônico, premissa da leitura esoterista, mas da própria consciência de seu autor ante
a ontologia mítica atestada nas poesias homérica e trágica, separando as modalidades
do ser entre mortais e heróis visíveis e entre numes e deuses inteligíveis, entre uma
complexa comunidade que reúne Hestia e Hermes, deuses e mortais, Céu e Terra
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. A
ontologia filosófica se constitui não por ruptura com a consciência mítica e com a
natureza da imagem, mas mediante a hermenêutica das relações mútuas entre os
territórios do visível e do invisível, da imagem e da idéia, do sensível e do inteligível. A
dialética filosófica entende, em primeiro lugar, a relação recíproca entre o sensível e o
inteligível em termos de participação ou semelhança e, em segundo lugar, a relação
mútua, por um lado, apenas entre os sensíveis e, por outro, apenas entre os inteligíveis
em termos de comunidade ou mistura. A relação de participação ou semelhança entre a
imagem sensível e a sua idéia inteligível é, pois, homóloga à relação de participação ou
semelhança entre o mortal visível e o seu deus invisível, assim como a comunidade dos
gêneros supremos evidencia a comunidade superna dos deuses imortais.
A proporção, beleza e verdade seriam, portanto, manifestações da idéia e do
poder supra-essencial do Bem, critérios dianoéticos por meio dos quais se reconheceria
o que é, por natureza, bom, reiterando o esquema genealógico que aquiesce ser o Bem
o pai e a causa de todos os entes, princípio de cognoscibilidade. A medida, par nocional
da proporção, e a simetria permitiriam ao sensível subtrair-se à hegemonia do devir,
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Hestia, Hermes, Gaia, Urano são, na leitura de Mattéi (Mattéi,1983:186, passim), correlatos míticos aos
gêneros ontológicos, descritos no Sofista, do ser, do outro, do repouso, do movimento: Hestia representa,
na estrutura lógica de oposição complementar, a permanência, enquanto Hermes a alteridade, do mesmo
modo, Gaia representa o correspondente mitopoético do gênero ontológico do repouso, ao passo que
Urano o correlato apresentado no Sofista do gênero do movimento. Se Hestia manifesta, no parecer de
Mattéi, a essência (ousía) transmudada, na reflexão ontológica do Estrangeiro de Eléia, no gênero do ser
e Hermes a mudança de estados e os contatos entre elementos estrangeiros, podemos inferir, de acordo
com a análise de Mattéi, uma relação enantiológica entre o mesmo e o outro, entre a identidade e a
diferença, na qual se define a comunidade entre deuses e mortais, pois cada ente é outro que os entes
mesmos, não por sua própria natureza, mas porque participa da forma da alteridade. Cf. pág.138,139.
Para Lambros Couloubaritsis, a lógica de oposição complementar, dominada pela forma de alteridade,
estabelece que cada termo da relação possui qualquer coisa do outro termo (seu oposto), implicando,
necessariamente, uma lógica da ambivalência (Couloubaritsis,1990:142,passim). No caso específico, a
oposição thnetós, athánatos supõe relações mais complexas, em que o A-privativo não indica,
propriamente, uma negação absoluta, mas uma diferença de ordem (Couloubaritsis,1990:186).