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PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO
LUIZ AUGUSTO DE MATTOS
A IGREJA CATÓLICA NO BRASIL E SUA OPÇÃO PELOS POBRES:
Do Concílio Ecumênico Vaticano II à Conferência de Puebla
São Paulo – 2008
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2
PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO
LUIZ AUGUSTO DE MATTOS
A IGREJA CATÓLICA NO BRASIL E SUA OPÇÃO PELOS POBRES:
Do Concílio Ecumênico Vaticano II à Conferência de Puebla
Dissertação apresentada como exigência parcial para
a obtenção do grau do Mestre em Teologia à
Comissão Julgadora da Faculdade Nossa Senhora da
Assunção, sob a orientação do Dr. Frei Nilo
Agostini.
São Paulo - 2008
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3
Dedico este trabalho aos servidores do Reino que sofreram e
ainda sofrem a opressão, a perseguição o martírio, por
encarnarem num ministério junto à "Igreja dos Pobres" a opção
pelos empobrecidos.
4
"A Igreja é desafiada em sua missão profética de denunciar o lobo e de associar-se na defesa
do cordeiro ameaçado. A definição do destinatário - o povo e os pobres de nosso País -, a
utilização da linguagem deles, a postura profética denunciatória dos poderosos e a pastoral
comprometida com os oprimidos... fizeram com que, nos últimos anos, a temática da Igreja
venha se afunilando cada vez mais na direção dos temas ligados diretamente à vida do povo.
Assim, a temática da terra diante da expulsão de milhares de brasileiros sob a coação do
capitalismo agrário, o grave problema do solo urbano, a defesa sistemática dos indígenas e um
compromisso mais direto com os direitos dos pobres mediante a criação de uma significativa
rede de centros de defesa dos direitos humanos.
As CEBs foram elaborando, conseqüentemente, uma caminhada bem articulada com a grande
Igreja e com os demais movimentos populares. É no interior delas que a própria Igreja como
um todo se está remodelando em suas práticas, num novo tipo de comunicação com a
realidade e na definição das prioridades mais urgentes da vida do povo. Surge uma produção
feita pelas próprias bases e na sua linguagem".
Frei Leonardo Boff
5
SUMÁRIO
SIGLAS E ABREVIATURAS..........................................................................................
06
INTRODUÇÃO GERAL...................................................................................................
07
CAPÍTULO I A VIDA DO POBRE E A POLÍTICA DO SISTEMA
CAPITALISTA NA REALIDADE BRASILEIRA – aproximação sociológica...........
1. Introdução........................................................................................................................
2. Quem é o pobre (excluído) na Sociedade Brasileira........................................................
3. Por uma Visão Dialética do Empobrecido na Realidade Brasileira................................
4. A “Necrofilia do Capitalismo”: Causa Fundamental da Pobreza Estrutural (Anti-vida)
5. Conclusão.........................................................................................................................
11
11
13
24
34
39
CAPÍTULO II - CAMINHADA DA IGREJA NO BRASIL NA SUA OPÇÃO
PELOS POBRES – abordagem histórico-teológica........................................................
1. Introdução........................................................................................................................
2. A Irrupção do Pobre e seu Desafio Evangélico à Igreja..................................................
2.1 O pobre Oprimido e Crente: Opção pela Igreja e sua Identidade Eclesial na
Prática Política................................................................................................................
2.2 A Força Evangelizadora dos pobres através do Testemunho Profético e
Sacramental.....................................................................................................................
3. A Instituição Eclesial e sua “Consciência Histórica Irreversível” em Direção aos
Pobres...................................................................................................................................
3.1 Antecedentes Significativos - período pré-conciliar - para o Processo de
Redefinição da Igreja......................................................................................................
3.2 A Presença da Igreja Brasileira no Período Conciliar...............................................
3.3 O Vaticano II e o Movimento da Mística da Pobreza na Igreja................................
3.4 Medellín: A Igreja com os Pobres e o seu Significado para a Igreja Brasileira........
3.5 Puebla: Confirmação de Medellín na Opção (preferencial) pelos Pobres e sua
Retratação na Igreja Brasileira........................................................................................
3.6 Ambigüidades no Compromisso da “Opção pelos pobres”......................................
4. Conclusão.........................................................................................................................
42
42
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50
54
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75
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93
110
119
CAPÍTULO III - A “IGREJA DOS POBRES” E SEU FUNDAMENTO
TEOLÓGICO: A REALIDADE SACRAMENTAL, ORGANIZACIONAL E
MISSIONÁRIA – aproximação prático-pastoral...........................................................
1. Introdução........................................................................................................................
2. O Pobre como Autêntico “lugar teológico” para a Redefinição Constitutiva da Igreja..
3. A “Igreja dos Pobres”: Sacramento Histórico de Libertação...........................................
4. CEBs: Comunidades de Pobres e a Serviço de Libertação pela Evangelização..............
5. Redefinição e Reinterpretação de Elementos Eclesiais (ministério e serviços, liturgia,
bíblia) na Experiência da “Igreja dos Pobres” ....................................................................
5.1 Os Ministérios e Serviços..........................................................................................
5.2 A Bíblia.....................................................................................................................
5.3 Liturgia......................................................................................................................
6. A Espiritualidade Libertadora testemunhada na “Igreja dos Pobres”..............................
123
123
128
139
146
161
163
183
194
207
CONCLUSÃO FINAL.......................................................................................................
226
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................
236
6
SIGLAS E ABREVIATURAS
ACB.......................................................................................................Ação Católica Brasileira
AP........................................................................................................................... Ação Popular
BJ.............................................................................................................Bíblia de Jerusalém (*)
CEBs.......................................................................................... Comunidades Eclesiais de Base
CNBB ......................................................................Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CV................................................................................................................ Concílio Vaticano II
DM.................................................................... Documento das Conclusões de Medellin, 1968.
DP................................................Documento das Conclusões da Conferência de Puebla, 1979.
EN................................................................................................ Evangelii Nuntiandi, Paulo VI
GS......................................................................................................................Gaudium et Spes
IL ................................................................... Instrução sobre a Liberdade Cristã e a Libertação
JEC ............................................................................................... Juventude Estudantil Católica
JOC..................................................................................................Juventude Operária Católica
JUC...........................................................................................Juventude Universitária Católica
LE ...................................................................................................Encíclica Laborens Exercens
LG.......................................................................................................................Lumen Gentium
REB ..............................................................................................Revista Eclesiástica Brasileira
SC .........................................................................................................Sacrosanctum Concilium
SEDOC.................................................................................Serviço de Documentação Católica
TdL ..........................................................................................................Teologia da Libertação
(*) Com referência aos textos bíblicos usamos a tradução e as abreviaturas convencionais da
Bíblia de Jerusalém, Edição de 1981.
7
INTRODUÇÃO GERAL
É fato incontestável que a realidade do povo brasileiro tem se configurado, cada vez
mais, por uma dramática pobreza, como indigência e como miséria, como carência e como
humilhação, como debilidade individual e como forma de opressão e exclusão social.
Cotidianamente, milhões de brasileiros são esmagados pela fome, pelas doenças, pela falta de
reforma agrária, falta de moradia, subempregos, falta de acesso à educação, torturas,
violências e assassinatos, etc. - situação que é causada por uma estrutura sócio-política e
cultural que não visa defender os direitos básicos da grande maioria empobrecida, oprimida,
excluída e desesperançada.
Mergulhado nesse contexto, um setor da Igreja brasileira tem se esforçado para
experienciar um "novo jeito de ser Igreja". Para isso, tem procurado redefinir-se através da
"opção pelos pobres". Essa opção caracterizou-se por um tríplice empenho: denunciar a
"pobreza desumana", entendida como carência injusta (= desapropriação) dos bens
necessários à vida; anunciar na sua pregação a doutrina da "pobreza evangélica", entendida
como uma atitude de "abertura para Deus" e para com os irmãos; finalmente, empenhar-se em
favor dos necessitados, assumindo a sua condição "voluntariamente e por amor" como forma
exímia de testemunho cristão: compromisso que, necessariamente, tem reestruturado a Igreja
que vive o dinamismo de ser "recriada" desde o compromisso pelos empobrecidos.
Não obstante, esta realidade eclesial é viabilizada devido também à opção dos pobres
pela Igreja. É impossível compreender o compromisso eclesial junto a grande maioria a não
ser desde um movimento dialético entre a Igreja e os pobres. O pobre é presença que interpela
e dinamiza a Igreja a uma renovação estrutural e pastoral.
Daí podermos justificar a temática da dissertação de mestrado, por duas razões: a
primeira, pela necessidade de aprofundar histórica e teologicamente o compromisso da Igreja
diante do pobre oprimido e crente; a segunda, pela exigência que se impõe por uma
8
fundamentação evangélica e eclesial da experiência prático-pastoral que podemos
testemunhar atualmente na "Igreja dos pobres" - preocupação que não deixa de estar
vinculada à primeira razão. Em outras palavras: esse trabalho terá como objetivo fundamentar,
clarificar, interpretar e justificar - sem muita pretensão - o processo eclesial da "opção pelos
pobres" no contexto brasileiro, à luz do processo de. E, ademais, tratar dessa questão é algo
não importante e necessário, mas, no momento atual, desafiante e imprescindível, como
escopo de contribuir numa compreensão do processo evangelizador da Igreja.
Sabe-se que, apesar de parecer consenso ou questão resolvida e assumida, a "opção
pelos pobres" cobra constantemente o discernimento, a clarificação coerente e evangélica, a
partir dos problemas que emergem, se instauram a cada dia, onde não cabe irresolução,
indeterminação. A determinação e clareza na opção pelos pobres são fundamentais diante do
fundamentalismo e neoconservadorismo que permeia a Instituição Igreja.
Com a preocupação de alcançar o objetivo explicitado acima, partiremos de um
referencial teórico metodológico que permitirá verificar, por um processo articulado e
dialético, a profundidade e a razão última que está subjacente nesse compromisso eclesial. A
metodologia é construída sobre o conhecido tripé: Ver, Julgar e Agir. Todo o esquema-eixo
do trabalho procura estar em consonância com este "espírito de investigação".
No Capítulo I, que corresponde ao momento do Ver, tentaremos compreender o pobre
pelo qual a Igreja fez opção. Essa compreensão será a partir da "mediação sócio-analítica" -
abordagem sociológica - que buscará fazer emergir uma visão globalizadora, dialética do
pobre; o pobre compreendido como miserável, marginalizado e excluído. Compreensão que
parte de uma análise da correspondência-dependência da realidade do empobrecido (excluído)
com o sistema sócio-político e cultural que é responsável por essa realidade de pobreza,
miséria. O capitalismo - sobretudo na fase neoliberal - é interpretado como a causa
fundamental da pobreza desumana e injusta que atravessa a vida do nosso povo.
9
Contudo, é bom lembrar da alusão que se faz ao alargamento da concepção de pobreza,
porque a compreensão do pobre oprimido não se esgota na análise sócio-econômica - apesar
de ser "fundamental e determinante" - necessitando lembrar da discriminação: de "tipo racial"
(o negro), de "tipo étnico" (o índio) e de "tipo sexual" (a mulher). Na reflexão teológica,
procurou-se interpretar o oprimido sócio-econômico (o empobrecido) como "expressão infra-
estrutural" do dinamismo da opressão, e os outros oprimidos pela segregação, discriminação
sexual, etária, etc., como "expressões superestruturais da opressão".
O momento do Julgar se encontra no Capítulo II e parte do III. Partindo da perspectiva
histórica e teológica, analisa-se a dinâmica sócio-eclesial que irrompe em nosso contexto.
Com o surgimento do pobre em nossa sociedade - sujeito ativo e coletivo - a Igreja é
interpelada a se posicionar ou redefinir. A neutralidade, a omissão, não cabem na
experiência eclesial comprometida e libertadora. Daí tentarmos, à luz da fé, dos documentos
do magistério (Concílio Vaticano II, Medellín, Puebla) e do processo histórico da Igreja,
captar a consistência ou concretização da opção pelos empobrecidos na experiência eclesial. E
mais. Tentar-se-á demonstrar a confirmação e a ambigüidade que encontram na concretização
da opção.
uma preocupação em visualizar a dinâmica de um processo profundo e dialético por
uma "consciência irreversível" da Igreja. Acreditamos que, apesar da tensão, a Igreja vai
pouco a pouco assumindo um compromisso evangelizador junto à grande maioria deserdada.
Por fim, procurando explicitar e fundamentar a realidade prático-pastoral dessa Igreja
inserida e comprometida, o Capítulo III aborda a realidade missionária, organizacional,
sacramental da Igreja - o momento de Agir. É a "mediação prática" pretendendo recolher e
intuir experiências que confirmam a "opção pelos pobres" na nossa prática de Igreja. Para
isso, mostraremos a compreensão do pobre como "lugar teológico" e como realidade
constitutiva na "Igreja dos pobres"; uma reinterpretação de alguns elementos eclesiais que
10
fazem parte da Tradição (Bíblia, Ministérios, Liturgia, Espiritualidade) a partir de uma
experiência libertadora; uma fundamentação teológica da "Igreja dos pobres" como
sacramento de libertação; uma compreensão das CEB’s como exemplificação de uma
evangelização libertadora, ao vivenciarem uma unidade dialética entre a vertente religiosa e a
vertente social.
Na elaboração do presente trabalho, no que diz respeito ao método para a orientação da
técnica empregada para citações bibliográficas, disposição, etc., utilizar-se-á a obra de
Antonio Joaquim Severino, por ter sido considerada prática e adequada às nossas
necessidades.
Quanto à bibliografia usada, predominaram as obras que se referem diretamente à nossa
realidade sócio-política e eclesial. Isto não nos impede de utilizar autores (ou publicações)
que não se referem diretamente ao nosso contexto, mas que contribuíram para fundamentar,
clarificar nossa análise da experiência da Igreja no Brasil.
Terminada a dissertação, que não prescindiu de uma subjacente pergunta interpeladora
pela compreensão ou fundamentação teológica da caminhada da Igreja no Brasil na sua
"opção pelos pobres", espera-se estar contribuindo com o processo de discernimento, a
respeito da Igreja junto aos pobres. Assim, também mostramos estar convictos da importância
e da autenticidade dessa inserção corajosa e evangélica da "Igreja dos pobres", ao ser
desafiada pela dramaticidade de nossa situação histórica e pelo grito e esperança dos "bem-
aventurados" de Deus. É a SERVA do REINO realizando, de forma sacramental, pública, o
plano de Salvação que Deus quer para o seu Povo.
11
CAPÍTULO I – A VIDA DO POBRE E A POLÍTICA DO SISTEMA
CAPITALISTA NA REALIDADE BRASILEIRA
- Aproximação Sociológica
1. Introdução
Um estudo elucidativo e rigoroso da opção da Igreja pelos pobres não pode prescindir
de uma análise que retrata cientificamente esse "sujeito histórico" (o pobre oprimido e crente),
sob o risco de contribuir com uma análise puramente abstrata pelo uso de conceitos
coisificados, repetitivos e gerais e, conseqüentemente, de pouca determinação analítica e
eficaz
1
.
Sem esse conhecimento pertinente do "pobre real", facilmente se tem uma
instrumentalização ou ideologização de realidade humano-social em questão, que em nada
favorece sua compreensão
2
. A tentação por uma mistificação da realidade é fruto, às vezes, de
uma ciência não livre do “... teoricismo vazio que, em certas circunstâncias, é a marca do
cinismo acadêmico, se prestarmos atenção ao escândalo gritante das multidões esfomeadas e
sofridas de nosso mundo"
3
. Toda análise séria "comunga" os imperativos do momento
1
Fazer uma leitura científica da realidade para apreender o rosto do "pobre real", torna-se possível graças ao
método do ver analiticamente: método esse que não pode ser substituído por um ver pastoral. Numa análise feliz
do documento de Puebla, Oscar Beozzo aprofunda esta temática - Cf. Oscar BEOZZO, Puebla e a realidade
latino-americana; in: VV.AA., Puebla - análise, perspectivas, interrogações, pp. 9-34.Também queremos
lembrar que quando nos preocupamos com os "critérios científicos" não nos esquecemos da importância dos
"critérios éticos". A escolha de uma teoria se decide em função de uma opção ética prévia. Como afirma
Clodovis Boff: "De acordo com os critérios científicos, escolhe-se a teoria que seja mais explicativa: de acordo
com os critérios éticos, escolhe-se a teoria que responde melhor aos valores que se reputam decisivos e que
podem se incluir num projeto de vida ou de ação política" - Cf. Clodovis BOFF. Teoria e Prática - teologia do
político e suas mediações. p. 123.
2
Utilizamos o termo "compreensão" segundo L. Goldman - A compreensão "consiste na descrição tão precisa
quanto possível, de uma estrutura significativa (...) É o esclarecimento de uma estrutura significativa imanente ao
objeto estudado (...) É a descrição de uma estrutura significativa no que ela tem de essencial e de específico" Cf.
Lucien GOLDMAN, Crítica e dogmatismo na cultura moderna. p.51 e 85.
3
Clodovis BOFF. Op. Cit. p. 47.
12
histórico para não ocultar os problemas reais, e não abandona o pensamento que reflete as
situações sociais.
Contudo, não se pode negar o limite de abordagem de tipo científico. A mediação sócio-
analítica é imprescindível na apreensão do problema do empobrecimento da grande maioria;
mas ficar só no entendimento racional e científico faz cair no limite da "racionalidade
positiva". A experiência direta ajuda a "alargar a concepção" do pobre como realidade social
4
.
Mas o reconhecimento da importância da mediação cio-analítica - apesar dos limites -
justificou a necessidade de usarmos, para assimilar o verdadeiro rosto do pobre, a seguinte
metodologia: primeiramente, tenta-se constatar e restaurar o "pobre real" - procurando saber
de que se está falando: quem é ele - na tentativa de conhecer, ver esse pobre pelo qual se
afirma fazer uma "opção preferencial"
5
. É o ver analítico que contribui para o re-situar do e
diante do sujeito optado. Em seguida, explicita-se uma visão dialética da razão existencial e
conjuntural do empobrecido e oprimido - numa "vigilância ideo-política"
6
que possibilita não
se ter de menos em menos uma visão ingênua ou a-crítica do mesmo, fugindo da consciência
irreal ou má-consciência. Finalmente, na preocupação de interpretar a causa primeira - razão
histórico-estrutural da situação do pobre excluído, procura-se determinar a lógica intrínseca
do sistema capitalista na sua estrutura necrofílica.
4
Cf. Leonardo BOFF; Clodovis. BOFF. Como fazer teologia da libertação. p. 40-50.
5
Álvaro BARREIRO. Os pobres e o Reino: do Evangelho a João Paulo II. p. 13-14.
6
A necessidade de situar-se criticamente no contexto sócio - histórico é uma exigência fundamental para o
"controle" do conhecimento. Por isso, "vigilância ideo-política" se faz imprescindível - "... não existe saber total,
nem Verdade pura. Nem mesmo a teoria mais científica, nem a especulação mais metafísica, nem a palavra mais
mística não podem se interdizer estar concretamente inseridas nas malhas das determinações sócio-históricas e
de exercer uma função objetiva (...) Ele (teólogo) deve exercer uma vigilância ideo-política permanente com
respeito a significação institucional política ou outra de sua investigação ou de seus resultados". Cf. Clodovis
BOFF, Op. Cit., p. 63.
13
Sem uma "radiografia" real, autêntica e interpretativa do ser do pobre não o
compreenderemos em sua totalidade
7
, nem captaremos a amplitude e complexidade da opção
da Igreja quando proclama: "opção preferencial pelos pobres".
2. Quem é o pobre (excluído) na Sociedade Brasileira
Para restaurar e conhecer o "pobre real" analiticamente necessita-se abordar a realidade
brasileira a partir das determinações sócio-econômica e cultural. É o que trataremos a seguir.
O Brasil vem apresentando, nas três últimas décadas, uma "baixa taxa de integração
social"
8
, o que faz com que ele tenha uma sociedade desigualitária e excludente, onde haja
uma contradição irredutível entre os interesses da grande maioria - a população pobre e
oprimida - e os da maioria privilegiada. "O Brasil é o país dos contrastes entre riqueza de
recursos e pobreza do povo, e entre a opulência de uma elite e a miséria da maioria. Vivemos
cercados de sinais de prosperidade..., e pelo testemunho eloqüente da miséria, dado pela
proliferação de pedintes, mascates, trombadinhas, prostitutas que nos circundam nas calçadas,
cruzamentos e praças"
9
.
Um levantamento da situação da população pobre, a partir dos relatórios dos "Encontros
Intereclesiais das Comunidades de Base", ajudou a nos esclarecer essa realidade de
marginalização, que se através das mais variadas formas de opressão, como: a) exploração
do trabalho; b) não organização dos trabalhadores (e da população; c) más condições de vida;
d) opressão ideológica, etc.
10
. Isto vem refletir no aparecimento de uma variedade de
7
A expressão "Totalidade" deve receber a seguinte significação: "realidade como um todo estruturado, dialético,
no qual ou do qual um fato qualquer (...) pode vir a ser racionalmente compreendido" - Cf. K. KOSIK. Dialética
do concreto. p. 35
8
Cf. Hélio JAGUARIBE. Reflexões sobre o Atlântico Sul.
9
Paul SINGER. Repartição de Renda - pobres e ricos sob o regime militar. p. 7.
10
Cf. SEDOC, Out/78, Jan-Fev/79, Set/81, out/83 - utilizamos essas edições da revista para levantar os dados
abaixo:
As Opressões que sofrem a grande maioria da população brasileira:
A. Através da exploração do trabalho
A.1: Cidade
14
categorias
11
no meio da massa oprimida, causa de uma sociedade cruamente injusta, onde uma
multidão, no interior do país e nas periferias das grandes cidades, não tem voz nem vez,
vivendo à margem da sociedade e do processo social. Massa
12
famélica que não está passando
pela mediação de uma consciência e de uma organização societária em prol da defesa de seus
direitos fundamentais.
A multidão não empregável - excedente da força de trabalho - não incorporada pelo
sistema produtivo, e de "nada" integrável na organização social devido à discriminação e a
dominação - configura um contexto de marginalização progressiva e preocupante
13
. "... As
= falta de documentação, salário baixo, rotatividade da mão-de-obra, falta de segurança, falta de assistência
médica (INPS não atende bem), insalubridade, operários maltratados, doenças provocadas pelo trabalho pesado e
horas extras, mulher pouco valorizada, etc.
A.2: Campo
= salário baixo, falta de documentação, expulsão dos "agregados" da fazenda, grileiros atacam posseiros, falsa
promessa dos políticos, falta de reforma agrária, empresas (pró-álcool, reflorestamento) na região, lavrador
"expulso pelo boi", máquina substituindo o agricultor, etc.
B. Através da não organização dos trabalhadores
= ameaça do desemprego, repressão da política e dos patrões, sindicatos atrelados, medo em defender a própria
classe, leis injustas, reivindicações justas abandonadas, etc.
C. Através da má condição de vida
= falta de saneamento básico (água, esgoto, retirada de lixo, drenagem dos córregos, etc.), necessidade do posto
de saúde, falta de moradia e de segurança, transporte caro e pouco, falta de creches, etc.
D. Através da opressão ideológica (opressão dos poderosos que é introjetada no oprimido)
= alimenta o egoísmo, o comodismo e o individualismo, a cabeça cheia de descrença, não acreditando na própria
força, desvio dos problemas reais do próprio povo, torturas, opressor justifica o "status quo" e o oprimido aceita
como natural, etc.
11
Categoria: terminologia que quer se referir ao contingente da população que é o extrato da classe oprimida, cf.
nota 8.Além das categorias elencadas, podemos citar outras: indígenas, mendigos, peões (dependentes de
empreiteiros ou subempreiteiros): menores abandonados, prostitutas, bóias-frias, posseiros, lavadeiras, operários
desqualificados, etc.
12
A terminologia Massa se distingüe da categoria Povo. Povo, no presente estudo, é uma categoria sociológica
que abrange muito mais do que simplesmente as classes oprimidas. Essa categoria "povo” inclui, certamente, as
classes populares oprimidas, mas também inclui muitos outros elementos: grupos étnicos com sua própria
linguagem, raça e religião, tribos, grupos marginais que nem mesmo chegam a ser uma "classe", simplesmente
porque não alcançaram posições assalariadas dentro de um fraco sistema capitalista. Portanto, estritamente
falando, "povo" é o “bloco social dos oprimidos..." - Enrique Dussel, Recuperar a Palavra de Deus, in Teologia
do Povo. Estudo de Religião . 3 (1986): 57-58. E, ademais, em nossa realidade, a terminologia massa, reflete
"multidão desorganizada ou desmobilizada", e povo é enfocado como categoria conscientizada e organizada.
Quem deixa clara a distinção entre massa e povo é o sociólogo P. Ribeiro de OLIVEIRA, o qual afirma: Povo
"... significa o conjunto indiferenciado dos moradores das regiões pobres, seja nos povoados e zonas rurais, seja
nas favelas e periferias urbanas (...) que ganha força social quando o povo deixa de ser massa e de algum modo
se organiza para influir no seu destino", Cf. Pedro Ribeiro de OLIVEIRA, O que significa analiticamente
"povo"?. in: Concilium/196, 1964/6: 800 (grifo nosso).
13
Trabalho tratando do tema Marginalidade procurou abordar as diversas noções desta: "Marginalidade como
situação ecológica"; "Marginalidade como passividade"; "Marginalidade como resíduo no desenvolvimento";
"Marginalidade como falta de integração"; "As noções histórico-estruturais de marginalidade". Segundo o autor,
todas as noções apresentam dificuldades substantivas e metodológicas para o fenômeno da marginalidade. Fica
clara a necessidade dos cientistas sociais aprofundarem o assunto. Cf. Manoel T. BERLINCK. Marginalidade
social e relações de classe em São Paulo.
15
massas marginalizadas crescem aceleradamente, tanto pela diferença entre seu elevado ritmo
de oferta de novos empregos, como também, desde algum tempo, pelo deslocamento de
setores pobres mais integrados para a condição dos marginalizados"
14
. Ter mais de oitenta
milhões de empobrecidos nos alerta a concluir que eles não são simplesmente aqueles que não
foram absorvidos pela relação capitalista; são aqueles que são efetivamente excluídos da
sociedade pelas relações capitalistas
15
. A exclusão se dá, conseqüentemente, porque os pobres
emergem como necessitados, numa visão econômica, e como marginalizados, na visão
social
16
.
Uma análise social relevante da realidade do empobrecido o faz compreensível
(também) através da categoria sociológica de classes populares, que são o conjunto de grupos
de produção, que são dominados a nível econômico-político-ideológico"
17
. Sabe-se que o
conceito de classes
18
não está suficientemente definido nas ciências sociais, o que prejudica
captar melhor a totalidade (realidade global) do pobre. Não obstante, é útil para apreender a
"homogeneidade própria a esse grande conjunto de grupos que ocupam os escalões sociais e
econômicos inferiores nas diversas áreas do sistema capitalista vigente no Brasil"
19
.
O professor Paul Singer chama a atenção para a metade da força de trabalho que se encontra no exército
industrial de reserva, ou seja, ganha tão pouco que não consegue se manter acima da linha de pobreza absoluta.
A remuneração oferecida pelas empresas leva a uma pauperização crescente. Cf. Paul SINGER. Repartição da
renda - pobres e ricos sob o regime militar.
14
Darcy RIBEIRO. Op. Cit. p. 83.
15
Cf. Clodovis BOFF, Elementos para o conhecimento e a Interpretação da conjuntura ou momento político
atual: Fase/84 - série conjuntuta (mimeo). p. 13.
16
Álvaro BARREIRO, fazendo uma análise global do vocabulário usado por João Paulo II na América Latina,
em seus discursos, concluiu que a visão dos pobres não dilui, apesar da extensão de conceitos, a figura do pobre
numa visão puramente abstrata. No aspecto econômico - o pobre como "necessitado" (pobreza-indigência-
miséria) - revela um traço dos pobres como: "indigentes", "necessitados", "carentes", "desprovidos", "rosto
desfigurado". Aqueles que estão privados dos bens fundamentais para uma vida digna. No aspecto social - ao
tratar dos camponeses, índios, imigrantes, doentes e crianças carentes - os pobres são descritos como:
"despojados", "silenciados", injustiçados", "maltratados", "oprimidos", "explorados", "marginalizados". Os
pobres são vistos por João Paulo II dentro da situação de miséria econômica e de marginalização social, política
e cultural em que se encontra - Cf. Álvaro BARREIRO. Op. Cit. p. 13-47.
17
Ivo LESBAUPIN. As classes populares e os direitos humanos. p.18.
18
Utilizamos classes sociais com a seguinte definição: "grupos sociais antagônicos em que um se apropria do
trabalho do outro por causa do lugar diferente que ocupam na estrutura econômica de um modo de produção
determinado, lugar que está determinado fundamentalmente pela forma específica em que se relaciona com os
meios de produção" - Cf. Marta HARNECKER. Os conceitos elementares do materialismo histórico. p.157.
19
Ivo LESBAUPIN. Op. Cit. p. 18.
16
Importante ainda é identificar as classes populares
20
também com a classe subalterna e
a classe oprimida, não correndo o risco de identificá-las somente com a classe operária ou
trabalhadora. Veja: se as identificarmos com a classe operária
21
, vamos interpretar as classes
populares como o conjunto de pessoas que vendem sua força de trabalho e, por conseguinte,
são assalariados; se as identificarmos com a classe trabalhadora
22
poderemos nos equivocar
por ser a mesma composta por uma pequena burguesia (trabalhadores autônomos) e pelo
proletariado (trabalhadores assalariados). A cientificidade da identificação das classes
populares, a partir da distinção demonstrada, leva a concluir que: a) nem todos os assalariados
são proletários
23
; b) não se pode fazer a identificação simplista de classe operária com os
20
Classes populares são conceituadas a partir do estudo do sociólogo L. Eduardo Wanderley. Ele entende classes
populares (ou classes subordinadas) como "aquelas que vivem uma condição de exploração e de dominação
dentro do capitalismo (...). A dimensão, de dominação diz respeito à submissão no plano social e político dada
pela exploração econômica. Na esfera da vida social concreta, nos bairros, categorias que podemos distinguir
analiticamente, acabam por ter uma homogeneidade social básica que as identifica, há uma grande mistura social
mas que leva a atitudes e comportamentos comuns. Isso propicia ainda um certo tipo de tomada de consciência
comum de situação de vida, que conduz a reações semelhantes (...) A noção de classes populares, portanto, será
usada no plural, e compreenderá o operariado, o campesinato, os "marginais" (lumpemproletariado),
funcionários, profissionais e setores da pequena burguesia". (A noção engloba, indígenas, desempregados e
subempregados - cf. nota de rodapé do autor). E ainda afirma: "... Elas (classes populares) traduzem o que os
documentos do episcopado e a Teologia vêm denominando por pobres e oprimidos". L. Eduardo
WANDERLEY, Movimentos Sociais Populares: Aspectos Econômicos, sociais e Políticos, in: col. Encontros
com a Civilização Brasileira, P. 107.Obs.: Não nos identificamos completamente com todas as afirmações do
autor neste artigo. Concordamos no que diz respeito ao fato de que a noção de classes populares engloba todas as
classes (e grupo sociais) levantadas. Porém, não se aceita que a Igreja, ao falar (Ex.: na reflexão da Teologia da
Libertação) dos pobres e oprimidos, se refira às classes populares incluindo todas as classes (ou grupos sociais)
do referente estudo. Por isso, fala-se da classe subalterna e de classe oprimida, fazendo a distinção e a
observação necessárias: o que leva a concluir que o pobre do qual a Igreja fala e se ocupa não é encontrado na
generalização das classes. Essa explicitação contribui (também) para a não ocorrência de ambigüidade na
interpretação da opção da igreja pelos povos. Cf. Clodovis BOFF. Elementos para o conhecimento e a
interpretação da conjuntura ou momento político atual. p. 4.- Queremos lembra que a terminologia "classe
oprimida" é definida da conceituação de D. Ribeiro - A integração "por aquelas parcelas (...) da população que
têm formas precárias e instáveis de ocupação e vivem em condições subumanas de pobreza e ignorância e de
exclusão com respeito às instituições nacionais". Cf. Darcy RIBEIRO. Op. Cit. p. 61.
21
"O conceito de classe operária ou proletariado se refere basicamente ao conjunto de pessoas desprovidas de
propriedade ou de qualquer fonte de renda, que, por isso, são obrigadas a alugar sua capacidade de trabalhar. Isto
é, a vender sua força de trabalho para poder viver. São trabalhadores assalariados". Paul SINGER. A Formação
da classe operária. p. 4.
22
Classe trabalhadora é "o conjunto de pessoas que vivem apenas de seu próprio trabalho". Entre estes,
aparecem os que têm os meios de produção (ex.: o camponês que cultiva a própria terra ou terra arrendada com
seus próprios instrumentos e animais de trabalho; o comerciante que transaciona mercadorias que são dele ou lhe
foram confiadas; o médico e o dentista que m seu próprio consultório; o professor que aulas particulares,
etc); e os trabalhadores que não têm autonomia porque não possuem os recursos para trabalhar por conta própria:
o camponês sem terra e sem instrumentos e animais pode sobreviver como assalariado industrial ou
manufatureiro; ..."- Cf. Paul SINGER. Op. Cit. p. 4.
23
Ibid, p. 8-9.
17
empobrecidos
24
; c) ocorre que o proletário e o trabalhador, já podem ter uma certa experiência
de exploração e já passaram ou estão passando pela mediação da experiência de uma
consciência sindical, dos partidos, das associações
25
; e situações em que exercem
autoridade ou trabalham qualificadamente em ramos avançados da economia. As classes
sociais não podem ser reduzidas a conceitos gerais, não captando os grupos sociais
específicos da realidade que forma cada um, o que causaria uma falsa interpretação e
definição delas. Elas se constituem por realidades objetivas e inalienáveis em suas múltiplas
determinações
26
.
É importante ressaltar que as classes oprimidas se constituem por milhões de vidas que
se reproduzem nas rebarbas do sistema social e econômico. Reduzidas aos limites extremos
da marginalidade, revelam a injustiça estrutural do sistema. Ou seja: se é pobre enquanto se
cumpre os interesses da classe hegemônica e não os próprios
27
.
24
Ibid.
25
Clodovis BOFF. Elementos para o conhecimento e a interpretação da conjuntura ou momento político
atual. p. 4.
26
L. Alberto GOMES SOUZA. Classes populares e Igreja nos caminhos da história. p. 166-167.
27
A "Campanha da Fraternidade/85" ao tratar da realidade da fome, afirmou: "A fome oculta é a que resulta da
situação de injustiça estrutural, ou seja, da sociedade que se organiza sobre a injustiça. Suas vítimas são os
milhões da multidão silenciosa que com o trabalho, não consegue ganhar o suficiente para matar sua fome, a
fome da mulher e dos filhos. É o caso de milhões de trabalhadores sem carteira assinada, sem defesa contra os
que exploram seu trabalho, dos bóias-frias, dos que submergem no mercado informal, dos mendigos que
disputam os restos nas latas de lixo e nos monturos de limpeza urbana. É a multidão acrescida pela crise do
desemprego que hoje paralisa mais de 20% da chamada população economicamente ativa, crise que atinge
dramaticamente o trabalhador urbano, pela desativação de quase 1/3 do parque industrial brasileiro.
"O preço dos alimentos subiu, em 1983, 213%, enquanto os salários aumentaram 142%. O feijão, que é o
alimento básico da população, subiu, no mesmo período, mais de 500%. Nestas condições, as famílias cuja renda
não passa de um salário mínimo, e são quase 70% da população brasileira, podem sobreviver em estado de
fome permanente.
“Num levantamento que ficou conhecido em março de 1984, o instituto de Planejamento Econômico (IPEA),
mostrou que 86 milhões de brasileiros sobrevivem com muito menos que as 2.240 calorias prescritas pelo FAO
como dieta mínima. A fome produz uma raça de crianças raquíticas, homens "A fome e a miséria, com efeito,
tornam essas populações desprotegidas contra as doenças. A situação sanitária dos nordestinos registra a
existência de 4 milhões de pessoas atacadas pela esquistossomose; 3 milhões com a doença de Chagas; 17 mil
novos casos anuais de tuberculose.
"As mortes de menores de um ano constituem 34% do total de óbitos de todo do país; 107 mortes, no primeiro
ano de vida, por mil nascidos (...) Cf. CNBB, Centro da Fraternidade /1985. Manual. p. 18-19.
- Estudo da CNBB mostra algumas das grandes categorias oprimidas: 1) categoria dos marginalizados; 2)
categoria dos desempregados; 3) categoria dos mal empregados; e 4) categoria dos subempregados. Cf.
Subsídios para uma Política Social; in: Estudos da CNBB, 24. São Paulo, Paulinas, 1979, Fazendo uma
consideração ao referente estudo, ressaltamos a falta de critério científico na "compreensão" das categorias
analisadas.
18
Essa tentativa de compreensão do rosto do "pobre real" a partir da categoria de classe
social é fundamental e determinante, porque a maioria dos pobres só é verdadeiramente
compreendida numa "totalidade prático-produtiva". É a situação do povo dentro de um
sistema produtivo, o qual determina o seu tipo de trabalho e de apropriação de bens, o seu
modo de consumo, etc. Daí encontrar ou um trabalhador (produtor) da cidade ou do campo,
ou um marginalizado na produção (sub - ou desempregado)
28
. Todavia, deve-se superar uma
interpretação exclusivamente "classista" do pobre oprimido.
- Para uma visão da situação do pobre (como trabalhador, família) recomenda-se o estudo de: Ana LAGOA.,
Como se faz para sobreviver com um salário mínimo. Citemos alguns dados deste estudo:
- "No Rio de Janeiro, por exemplo, em 1970, cada metro cúbico de lixo tinha 43,8% de material orgânico, ou
seja, coisas 'comíveis' para aqueles que vivem marginalizados. E, em 1980, cada metro cúbico passou a ter
36,7% dessa 'comida' " (p.16).
- "Catar lixo em vazadouros ou pelas ruas, porém, não é o único expediente que uma família insustentável pelo
salário mínimo usa para sobreviver. O dia nobre dessas famílias é o dia da feira livre. A 'xepa', ou, mais que isso,
o que fica para o serviço de limpeza pública. Aí está a fina-flor do lixo orgânico. Tudo ainda 'fresquinho', sem ter
passado pelo caminhão, sem ter ficado dias ao sol e à chuva. Frutas amassadas, pontas de carnes, verduras
imprestáveis vão enchendo sacolas e caixotes que os feirantes largam para trás. É dia de festa. Prova-se de tudo
um pouco: laranja sem vitamina C, pois está cortada desde às sete da manhã como mostruário, peles de galinha
ressecadas e contaminadas pelas moscas, folhas de couve amarelas, sem ferro e sais minerais. Mas dia de feira é
dia de festa em milhões de lares brasileiros espalhados pelas grandes cidades" (p.18).
- "No Nordeste, a população economicamente ativa é de 12 milhões de pessoas. Desses 12 milhões de
trabalhadores, 24,1% ganham metade de um salário mínimo e 54,2% ganham um salário mínimo, segundo dados
ao IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Nas cidades nordestinas, 50% das pessoas que
trabalham ganham de um salário mínimo para menos. Ou seja, 2,6 milhões de trabalhadores não ganham sequer
para comer. E 1,1 milhão de trabalhadores não passam de meio salário mínimo por mês. Na área rural, 83,3% da
mão-de-obra agrícola, ou 4,6 milhões de trabalhadores; ganham até um salário mínimo, enquanto outros 2,6
milhões chegam a meio salário mínimo, segundo dados da própria SUDENE (Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste). É interessante notar que no limite de até 200 hectares não faz diferença o
trabalhador ser proprietário de terra ou não. Em qualquer hipótese a renda familiar o passa de um salário
mínimo e 60% das crianças são desnutridas" (p.27).condenados à baixa estatura, deficiências irremediáveis no
desenvolvimento intelectual e gente mais vulnerável a doenças”.
"Não no sertão, como na própria zona canavieira menos castigada pela seca, a fome devora suas vítimas
principalmente entre as crianças. Quase 70% delas são desnutridas, alimentadas com um pouco de água com
açúcar, já afetadas de modo irreparável no seu desenvolvimento físico e cerebral. A profecia de que o Brasil
seria um grande hospital se cumpre ao menos no Nordeste: o Nordeste está se transformando num grande
hospital, porém, sem médicos, sem enfermeiros, sem remédios,...”
28
Cf. Clodovis BOFF, A interpelação dos pobres hoje em nível mundial, in: Puebla, nº 26: p.8.
Obs.: Nossa compreensão da "totalidade prático-produtiva" está de acordo com E. Dussel. O cientista afirma que
o ser humano é capaz de modificar, transformar o "cosmo natural" para que seja uma totalidade habitável,
acolhedora, humanizada. Para ele, a totalidade da "cultura material e espiritual" é o nível produtivo, ou o fruto do
trabalho. Sendo que o nível pessoa-natureza é atravessado pelas relações práticas de pessoa-pessoa (relações
práticas, políticas, eróticas, pedagógicas ou religiosas). Então, a totalidade que o homem cria é de nível
produtivo e prático (estruturas de produtos trabalhados e de relações interhumanas); por isso, a "totalidade
prático produtiva" é entendida a partir da "totalidade estrutural" (omnicompreensiva) de todos os produtos do
trabalho (materiais, ideológicos), de todos as relações práticas cara-a-cara e de sua interpretação econômica
(política, erótica, pedagógica, teologal). É a partir dessa "totalidade" prático produtiva" que a vida humana se
cria e, ao criar, se recria (na alegria e na autoprodução) Cf. Enrique DUSSEL. História general de la iglesia en
America Latina - Tomo I/1, p. 64.
19
na categoria dos pobres reais uma forma de opressão de caráter prevalentemente
sócio-cultural - as "pobrezas sócio-culturais"
29
. Geralmente se situam dentro da pobreza
sócio-econômica, porque as opressões provenientes não do nível puramente sócio-econômico
são também condicionadas profundamente por ele. Por isso, afirma-se que o pobre sócio-
econômico é a "expressão infra-estrutural" nesse processo da opressão e os outros tipos de
opressão (racial, sexual, étnica) representam "expressões superestruturais", que são
determinadas pela primeira (infra-estrutural)
30
. Em outras palavras: essas pobrezas (sócio-
cultural) possuem, sem dúvida, sua autonomia relativa, sua consciência própria, ambas
irredutíveis ao econômico. Contudo, na realidade concreta, elas se encontram globalmente
articuladas com a pobreza econômica. (...) As pobrezas de caráter sócio-cultural não podem
servir de véus para ocultar e mistificar o fato real e bruto da pobreza sócio-econômica. Pode-
se dizer que, apesar de a 'pobreza' sócio-cultural ser específica e existir até, em proporções
minoritárias, separada da pobreza sócio-ecônomica, ela se encontra normalmente associada a
ela, devendo ser atacada junto com ela"
31
. Essa pobreza sócio-cultural que se encontra nas
discriminações (racial, sexual, cultural, física) é responsável pela sujeição ou incompreensão
com os estrangeiros, homossexuais, deficientes físicos, anciãos, índios, negros, mulheres.
32
29
Clodovis BOFF. Op. Cit. p. 8.
30
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF. Como fazer teologia da libertação. p. 46-48.
31
Ibid.
32
Um estudo de O. Beozzo, fazendo uma análise do Documento de Puebla, faz considerações pertinentes no que
diz respeito à discriminação. Vejamos: "Reconhece que na história da evangelização houve luzes e sombras, mas
em momento algum precisa que estas sombras estejam praticamente todas de um lado, o dos povos indígenas
americanos (...) cujos últimos testemunhos continuam ameaçados de genocídio físico e de destruição cultural".
Quanto aos negros, lembra: "Para todo o imenso drama negro do nosso passado e que continua vivo em nosso
presente, dedica o documento de Puebla, apenas três linhas como que envergonhadas, pois vem deslustrar o belo
quadro que vinha sendo traçado da história da evangelização: 'Infelizmente, o problema dos escravos africanos
não mereceu a suficiente atenção evangelizadora e libertadora da Igreja' (DP 2) (...) Quatrocentos anos de
discriminação aberta ou velada em relação às culturas negras e indígenas e mais trezentos anos de prática de
escravismo na economia ..." Cf. Oscar BEOZZO, Pueblo e a realidade Latino-americana, in: VV.AA., Puebla -
análise, perspectivas, interrogações. p. 16-17.
- Queremos lembrar também a discriminação em relação à mulher. É sexualmente discriminada e explorada em
sua força de trabalho. Cf. Marilena CHAUÍ. Repressão Sexual, essa Nossa (Des) Conhecida. Rose Marie
MURARD, Sexualidade da Mulher Brasileira; Corpo e Classe Social no Brasil. Neuma AGUIAR, (coord.),
Mulheres na Força de Trabalho na América Latina: Análises Qualificativas.
- Paulo SUESS. lice e cuia; crônicas de pastoral e política indigenista.
- Doc. CNBB. Os Povos indígenas e a nova república - Estudos da CNBB. p. 43.
- Jacob GORENDER. O escravismo colonial.
20
No intuito de compreender essa realidade de "pobreza sócio-cultural", vejamos a
situação ou problemática do índio e do negro em nosso país:
A - Quanto ao povo indígena - encontra-se um verdadeiro etnocídio (extinção cultural) e
genocídio (extinção física) a partir de uma guerra bacteriológica (na transmissão das doenças
dos "civilizados"), ecológica (pela destruição do seu meio-ambiente), tecnológica (pela
introdução de técnicas que criam dependência) e ideológica (destruição de sua moral,
cosmovisão, etc); enfim, pela desestruturação cultural que se produz quando o "civilizado"
intervém na organização tribal: na economia, na religião, no sistema de liderança e
parentesco, etc. Por de trás desse contexto de opressão e violação, de invasão e usurpação das
terras indígenas, está uma postura estatal e uma ideologia colonialista e integracionista.
Devido, entre outras, à política de integração (fusão dos grupos indígenas na sociedade
nacional ou a assimilação grupal), o índio tornou-se, em muitos lugares do interior, o
"caboclo" (denota que são "atrasados"), e na periferia das cidades o favelado. Como
prioridades na defesa da civilização indígena, deve-se implementar: a) Demarcação das terras
indígenas; b) Desincentivar os programas de Desenvolvimento, definidos pela Política
Econômica Nacional, que implantam grandes projetos agroindustriais e de mineração que
ocupam ou afetam indiscriminadamente ou violentamente as áreas indígenas e atingem
seriamente a sobrevivência física e cultural desse povo; c) Uma política de saúde do Governo
que não privilegie interesses multinacionais, geradores e mantenedores de doenças ao serem
implantados pela expansão do capitalismo que desequilibra o modo de produção do povo
indígena, provocando a sua desorganização sócio-cultural e a depressão de seus mecanismos
de resistência; d) Construir uma "sociedade pluricultural" onde os valores, costumes, etc. do
povo indígena possam ser respeitados e valorizados; e) Assumir uma opção, um compromisso
pela defesa da causa indígena - a qual tinha como meta o desaparecimento das classes
- Décio FREITAS. O escravismo brasileiro.
21
antagônicas, hegemônicas, em proveito de permanência das etnias e culturas no interior de um
processo de libertação integral. Acreditamos que, assim, o povo indígena não virá a formar
um "povo" miserável, marginalizado. Há que se deslegitimar ou negar paxisticamente a
situação desumana de realidade indígena.
B - Quanto ao povo Negro - falar ao povo negro em nosso contexto nos remete a pensar em
milhões de brasileiros que são oprimidos - os "mais esmagados entre os empobrecidos' - por
um racismo antinegro, pela tática da "democracia racial"; pela opressão e marginalização
cruel e desumana; por uma cooptação injusta, exploradora, por parte do sistema sócio-
político, etc. A população negra sofre uma "violência racial profunda, difundida e
diversificada". Daí constatarmos a seguinte realidade: a) a maioria negra não tem o seu direito
ao trabalho, ao salário condigno e à segurança social, negados pela força, sendo submetida a
cruéis condições de sobrevivência, confirmada nas favelas, alagados, cortiços, lixões,
malocas, mocambos, colônias; b) a população negra tem sido vítima da repressão policial
violenta. O "mito da democracia racial" iguala as pessoas, e se o negro está desempregado é
porque é "vagabundo"; reclamam-se os seus direitos, é "subversivo"; e, para os "vagabundos e
subversivos", um aparato policial preparado para atuar em "qualquer lugar, hora ou
circunstância"; c) o negro é oprimido por uma herança social e cultural racista - por isso a sua
presença nos meios de comunicação de massa, nos textos escolares, no convívio social, na
linguagem estereotipada, etc., é sempre acompanhada de discriminação, violência e desprezo.
Quanto aos estereótipos, eis alguns: "serviço de preto", "negro de alma branca", "negro rico é
branco", "negro, quando não faz na entrada faz na saída", "negro que é negro, não mija fora
do pinico", "negro que se preza", "a situação está preta", "negro metido a besta", "negro não
vai para o céu nem que seja rezador, tem cabelo de espeto, que espetou Nosso Senhor"; d) a
população negra é acompanhada do "medo psicológico" - essa violência psíquica gerou a
vergonha de ser negro, o que o leva a adotar valores preconceituosos de uma sociedade
22
racista. Isto facilitará a sua desestruturação, a sua impotência e submissão. Exemplo: a
interiorização no negro da função básica em ser mão-de-obra barata, com possibilidade de
realizar trabalhos simples e penosos, o faz submeter-se a uma exploração injusta. Geralmente,
com exceção de um mero reduzidíssimo que está exercendo profissões liberais, encontram-
se os negros trabalhando (quase sempre em sub-empregos) como: motoristas, trocadores de
ônibus, vendedores ambulantes, serventes, olheiros de ponto do jogo de bicho, lixeiros,
guardas de banco, carteiros, lavadores de carros, lavradores, empregadas domésticas,
prostitutas, e) o povo negro é neutralizado como sujeito de sua própria História, apesar dos
movimentos ("Grupo União e Consciência Negra"; "Pastoral do Negro") que manifestam a
preocupação de levar o negro a redescobrir sua identidade, negritude, capacitando-o assim a
dinamizar uma reação contra a ideologia ou a situação de denominação e discriminação,
contra a defesa do etnocentrismo, contra uma política, cultura que não beneficia a população
negra, etc. Isso com a preocupação de ir contra: a negação de sua História: a negação de sua
cultura; a negação da sua própria personalidade ou seu valor estético; a negação de sua
capacidade intelectual ou capacidade de organização; a negação da sua religião.
Não obstante, encontra-se na grande maioria dos negros o descrédito por uma iniciativa
em prol da própria libertação. E ainda: a "luta racial" e a "luta de classes" não podem ser
contrapostas, e nem se pode reduzi-las uma à outra. A força da luta pela libertação do negro
está na combinação dialética de ambas.
Conclusões apuradas do "rosto do pobre" também contribuíram para definí-lo
dialeticamente a partir de três fenômenos: "coletivo" ,"conflitivo" e "alternativo"
33
, que se dão
na atualidade, recuperando, assim, a Totalidade do empobrecido na sua compreensão.
Como fenômeno "coletivo" conclui-se que o pobre isolado não existe. O "pobre
solitário, isolado", é uma "abstração". Sempre está em comunidade, em grupo, socialmente,
33
Cf. G. GUTIERREZ, A Irrupção do Pobre na América Latina e as Comunidades Cristãs Populares, in:
VV.AA., A Igreja que Surge da Base. p. 191-192.
Clodovis BOFF, A interpelação dos Pobres Hoje em Nível Mundial, in: Puebla, nº 26, pp. 4-5.
23
historicamente, concretamente. Ele uma questão social, estrutural, massiva. Pobres são
classes, massas e povos inteiros"
34
. Isso é visível - conforme constatamos - nas periferias dos
grandes centros urbanos: através das favelas, das habitações nos alagados, dos bairros
operários, de alguns acampamentos de empresas, etc; e na zona rural onde são identificados
nas "colônias" das fazendas, dos acampamentos.
Também os pobres são um fenômeno "conflitivo". Dizer pobre significa assinar a
conflituosidade social. Pobre não é um termo ou uma realidade tranqüilizante. "Trata-se de
classes dominadas e de povos dependentes. Os pobres são um fenômeno social produzido: são
reduzidos ou mantidos na pobreza por forças da dominação"
35
, ou seja, os pobres são produto
- ou subproduto - da organização sócio-econômica e cultural. É a irrupção real de um conflito
estrutural que está na injustiça do sistema capitalista. E mais. Como classes sociais populares
ou como povos dominados ou expulsos do sistema, os pobres irrompem sob dupla forma: " a)
São os marginalizados, os excluídos do sistema sócio-econômico. E temos os
desempregados e subempregados. E todo esse rosário de miseráveis e sem defesa que são os
mendigos, famintos, menores abandonados, prostitutas e marginais (lumpen); b) São os
exploradores, os injustiçados do sistema. São os chamados "pobres laboriosos", as massas
trabalhadoras da cidade (proletariado) e do campo (campesinato)"
36
. O caráter conflitivo se dá
também pela percepção da causa da situação de denominação que leva os pobres (povos
dominados, excluídos ou as classes populares oprimidas) a lutarem contra ela - o que é
visível, por exemplo, numa greve, no confronto armado entre pistoleiros e lavradores, ou no
conflito entre elitistas e favelados.
34
Clodovis BOFF. Op. Cit. p.4.
35
Ibid.
36
Ibid.
- Obs.: O autor engloba nesse artigo o proletariado e o campesinato como classes sociais oprimidas. É preciso
observar a distinção, já efetuada neste trabalho - para não falhar na determinação do "pobre real" optado pela
Igreja. Com isso, não negamos que o proletariado, o trabalhador que tem uma certa experiência da exploração
e é militante junto ao sindicato, ao partido, às associações, estejam também no espaço da Igreja ajudando tanto
no pensamento como na prática; mas não são a maioria.
24
Por fim, pode-se identificar os pobres pelo fenômeno "alternativo". Pensar no pobre é
também refletir sobre sua luta por uma libertação integral, questionando radicalmente a atual
sociedade opressora e exigindo uma sociedade alternativa. Fundamentalmente, o pobre
reivindica o direito à vida através dos direitos sociais, culturais e políticos; por isso, os
"pobres são uma questão estrutural, sua libertação passa também pela mudança das estruturas
sociais que os proíbem de crescer"
37
.
3. Por uma Visão Dialética do Empobrecido na Realidade Brasileira
Na tentativa de desvendar o "rosto do pobre real" procuramos, no ítem acima, utilizar
uma visão dialética (crítica)
38
. Mas deve-se, agora, a partir dessa visão dialética, aprofundar a
"compreensão" do empobrecimento da grande maioria na realidade brasileira. A opacidade da
realidade é verdade incontestável, devido à “subinformação". Por isso, toda análise científica
exige mais do que o simples processamento de dados informativos para clarificar a
capacidade
39
- reclama-se a desfetichização ou a desmitificação das relações sociais e "que o
conteúdo de verdade da análise equivale à relação que esta terá sabido estabelecer com a
Totalidade"
40
.
Compreender a causa do empobrecimento - num contexto social - é chegar à
aproximação de uma "consciência efetiva" e de uma "consciência máxima possível"
41
. E
37
Ibid., p. 5.
38
Estamos concebendo a visão dialética de acordo com K. Kosik: "A dialética é o pensamento crítico que se
propõe a compreender a 'coisa em si' e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da
realidade. Por isso, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns" - K.
KOSIK. Dialética do Concreto. p. 15-16.
39
Cf. Hogo ASSMANN, os trilateralistas sugerem uma chave de leitura para este livro: o terceiro mundo visto
como ameaça, in: VV.AA., A trilateral: nova fase do Capitalismo mundial. p. 7-15.
40
S. NAIR, Prefácio, in: Lucian GOLDMAN. Epistemologia e filosofia política. Lisboa: Presença, 1984. p.9.
41
As terminologias "consciência efectiva" e "consciência máxima possível" de L. Goldman, as quais devem
significar "o máximo de conhecimento adequado à realidade que os processos e as estruturas estudadas podem
comportar, máximo que nos parece ser um instrumento conceptual de primeiríssima ordem para a compreensão
da realidade" – Cf. L. GOLDMAN. Op. Cit. p. 31.
25
sendo a realidade social demasiadamente rica e complexa, efetivamente nenhuma concepção
determinista, mecanicista ou simplesmente positivista de vida social conseguirá a
desmontagem satisfatória desta
42
. Daí a importância da visão dialética por abarcar a
Totalidade (a realidade como um todo estruturado, dialético), onde se chega a concluir que o
empobrecido não é um remanescente ou um subproduto acidental do sistema, mas o produto
direto e inevitável do sistema. Atinge-se, assim, a causa do problema.
As visões deficientes contribuem para legitimar e manter o "status quo". Se se parte
da "visão empirista" (ou vulgar)
43
, o empobrecido será compreendido no aspecto
individualizado. Fica desligado de suas condições sociais, das estruturas que o produzem.
Nesta visão, as causas são de dois tipos: a) causas morais: como conseqüência da ignorância
ou preguiça própria. Ou então: do egoísmo e da ganância da minoria privilegiada, não
abarcando a questão das estruturas de exploração; b) causas naturais: o empobrecimento vive
esta situação por ter nascido como pobre. Realidade imutável. A visão empirista é curta e
vulgar. O empobrecimento não é analisado como coletividade ou a partir das estruturas. Esta
concepção vulgar do empobrecido é a mais espelhada na sociedade. Já a "visão funcionalista"
percebe o problema coletivo da pobreza, mas esquece o caráter conflitivo, como que
acreditando que a situação do empobrecido é apenas questão de transição - "os pobres são
apenas atrasados, subdesenvolvidos, gente privada dos frutos do progresso. Mas com o tempo
e a ajuda dos outros, eles poderão se desenvolver e chegar ao nível em que estão as classes ou
42
Nas concepções mecanicistas da história, as características gerais do capitalismo acabam substituindo as
análises concretas da realidade específica das sociedades. Não se pode apenas basear nos moldes ("capitalismo
monopolista", "mercantilismo", etc.) para se entender a história da dependência. "... Excluindo o modelo
explicativo as lutas sociais e as relações particulares (econômicas, sociais e políticas) que dão impulso às
sociedades dominadas específicas, esses tipos de interpretação simplificam excessivamente a história e
conduzem a erros: não oferecem caracterizações precisas das estruturas sociais, nem apreendem o aspecto
dinâmico da história realizado pelas lutas sociais nas sociedades dependentes" - Cf. F. Henrique CARDOSO, e
E. FALETTO, Repensando dependência e desenvolvimento na América Latina, in: VV.AA., Economia e
movimentos sociais na América Latina. p. 21.
43
Cf. Clodovis BOFF. A Interpelação dos pobres hoje em nível mundial, in: Puebla, Mar/84, no. 26, p. 7.
26
povos desenvolvidos. Tudo é questão de investimentos, ajuda, técnica, etc."
44
. É uma
explicação de pobreza "como atraso" cultural, econômico e social, sendo uma interpretação
burguesa do fenômeno do empobrecimento.
Pode-se afirmar que toda visão a-crítica responde, de modo satisfatório, às questões
daquele (indivíduo, grupo social) que está preocupado com a continuidade do funcionamento
de um sistema social que julga bom e deve ser mantido. Geralmente é a preocupação da classe
dominante o que contribui para saídas em relação ao problema social, político, no nível do
assistencialismo e do reformismo.
Analisando a sociedade brasileira numa ótica crítica, defronta-se com uma pauperização
da grande maioria, que se explica pelo próprio sistema sócio-econômico e cultural
45
- fator
que se explica, devido à organização social, por um aprofundamento do antagonismo entre os
setores integrados (privilegiados) e os setores excluídos ou expulsos, ou seja, a existência dos
explorados. Ou ainda: a presença de povos que não foram incluídos no sistema (como, por
exemplo: etnias, tribos).
O sistema se torna compreensível ao se analisar o seu "modo de produção", que se
caracteriza pela sua dinâmica, isto é, "a contínua REPRODUÇÃO de suas condições de
existência”
46
. Procedendo nessa análise, constata-se que o sistema capitalista no Brasil "ao
mesmo tempo em que produz bens materiais em uma forma que implica a divisão dos
homens" na totalidade social entre poderosos e marginalizados, "e que origem a toda
44
Ibid.
45
."... a orientação dialética a Sociedade a partir de baixo, por conseguinte, de lugar onde ela se defina antes
de tudo como luta e afrontamento. Trata-se naturalmente aqui da visão dos grupos dominados". Cf. BOFF.
Teologia e Prática -Teologia do Político e suas mediações. p. 122.
46
Cf. M. HARNECKER. Os Conceitos elementares do materialismo histórico. p. 138.
O autor define o Modo de Produção como o "... conceito teórico que permite pensar na totalidade social como
uma estrutura dominante, na qual o nível econômico é determinante em última instância", p. 138.
Para compreender o problema da organização social utilizamos o "Materialismo Histórico" como método de
análise; que, em princípio, é legítimo devido ao seu aspecto científico ("fazer conhecer"). Cf. Clodovis BOFF.
Teologia e Prática - Teologia do Político e suas mediações. p. 118-119.
27
ideologia que favorece este tipo de produção e, a uma forma de poder que a defende e
estimula, vai continuamente reproduzindo suas condições de produção"
47
.
Interpretar a existência das classes oprimidas ou povos excluídos na formação social (=
realidade social historicamente determinada) de nossa sociedade é (também) interpretar o
lugar que ocupam no "sistema de produção historicamente determinado (relação que as leis
fixam e consagram), pelo papel que desempenham na organização social do trabalho; por
conseguinte, pelo modo e pela proporção em que percebem a parte de riqueza social de que
dispõem"
48
. Portanto, as relações de produção são o elemento importante para definir as
classes sociais ou os grupos sociais. Conforme o caráter destas relações de produção,
estabelecer-se-á a relação entre a classe exploradora - proprietária dos meios de produção e
que os possui efetivamente ao mesmo tempo -, os marginalizados ou a classe explorada.
Vejamos como Marx, ao referir-se ao modo de produção capitalista, consegue deixar clara a
relação social:
O processo capitalista de produção reproduz, portanto em virtude de seu próprio
desenvolvimento, o divórcio entre a força de trabalho e as condições de trabalho;
reproduz e eterniza, com isso, as condições de exploração do operário. Obriga-
o constantemente a vender sua força de trabalho para poder viver e permite
constantemente ao capitalista comprá-la para enriquecer-se..., Portanto, o
processo capitalista de produção não só reproduz a mais-valia, mas também
produz e reproduz o mesmo regime de capital de uma parte o capitalismo e da
outra o trabalhador assalariado"
49
. (grifo nosso).
A classe dominante no modo de produção capitalista é a que domina na formação
social. Seus interesses prevalecem sobre os interesses de todas as outras classes. O próprio
caráter de dominante a faz adquirir determinação que a possibilitam manter relações de
47
M. HARNECKER, Op. Cit.
Explicitando a mesma idéia, o autor afirma: "Ao mesmo tempo em que produz bens materiais, se reproduz as
relações de produção capitalista, e ao mesmo tempo em que reproduz estas relações reproduz suas condições de
existência superestruturais, isto é, as condições ideológicas e as relações de poder assim como o papel que
desempenha na estrutura social".
"Dado o princípio geral de que as forças e os modos de produção determinam as relações sociais e a consciência
dos homens, a divisão social do trabalho, estruturada em classes, assegurando a uns a detenção dos meios de
produção (...) confere a estes o domínio econômico-político da sociedade, impondo, aos demais, formas
alienadas e dependentes de trabalho e de vida..." Hélio JAGUARIBE. Introdução do Desenvolvimento Social.
p. 24.
48
M. HARNECKER. Op. Cit. p. 157.
49
Ibid., p. 162 (Cit. de El Capital, I, pp. 486-487).
28
exploração com as demais classes da formação social. Isto implica que tenha, na própria
estrutura de classe, instrumentos novos (econômicos, políticos e ideológicos) que lhe
permitem assegurar e perpetuar o critério que rege a produção capitalista: a "maximização do
lucro". Esta forma de produção "leva até suas últimas conseqüências as contradições do modo
de produção capitalista: a) concentração da propriedade dos bens de produção sob o controle
de uma minoria; b) a concentração da riqueza em mãos de pequenas parcelas da população; c)
o acirramento da competição entre as formas monopólicas de produção e entre os grandes
monopólios entre si"
50
. Esta classe poderosa e opressora é portadora e legitimadora desta
estrutura que marginaliza a grande maioria da população.
As classes oprimidas são, por conseguinte, o resultado do efeito desta estrutura ou estão
fundadas "em assimetrias sociais e em tipos de exploração da organização social"
51
. A
dominação e as relações sócio-econômicas e culturas não são dimensões analiticamente
dependentes entre si, como se fossem esferas separadas da realidade. Assim, entende-se que
as sociedades se constituem, no modo capitalista de produção, a partir da estruturação de
classe que têm interesses antagônicos; por isso, o definidor básico das classes sociais é a luta
de classes que tende a envolver toda a realidade social. "Neste sentido, todos os grupos e
pessoas, nestas sociedades, tendem a ser colocados num processo de “se fazer classe" que os
leva a posicionar-se, consciente ou inconscientemente, de um ou de outro lado da luta de
classes"
52
. Esta realidade de confronto é proporcionada por uma realidade que se caracteriza
por "uma grande assimetria: de um lado, a gigantesca força material, repressiva e persuasiva
das classes dominantes que pouco a pouco foram se configurando nisso que hoje são a
burguesia empresarial (agrícola, industrial, comercial e financeira) e a burguesia gerencial
(estatal e privada); por outro, a privação e o desamparo legal das classes dominadas que
50
Cf. H. José de SOUZA. O Capital Transnacional e o Estado. p. 10.
51
F. Henrique CARDOSO, e E. FALETTO, Repensando Dependência e Desenvolvimento na América Latina,
in: VV.AA., Economia e Movimentos Sociais na Latina. p. 16.
52
José Ivo FOLLMAN, Igreja, ideologia e classes, in: CEAS,97, p. 74.
29
também vêm se afirmando, mesmo com dificuldades, compondo-se de numerosos
contingentes populacionais que somam o proletário e o subproletário rural e urbano"
53
.
Conclui-se que a emancipação (ou a erradicação) das classes oprimidas não é possível sem
uma mudança nas relações de produção.
Mas colocam-se pelo menos dois problemas: A) Se partirmos da análise marxista que
afirma: "Entre todos os grupos sociais que existem em uma sociedade, os grupos que
participarem de forma direta no processo de produção chegam a constituir-se em polos
antagônicos (exploradores e explorados) se constituem em classes sociais"
54
, como
compreender as classes oprimidas nesta afirmação? Como enquadrá-las no processo de
"fazer-se classe"? Se não é uma classe nem um grupo social intermediário entre as duas
classes antagônicas, pode ser detectado entre as classes exploradas. Daí se constatar que a
classe oprimida é uma fração da classe explorada que mais é afetada pela exploração e
marginalização. E ainda: não tendo, quase sempre, a consciência de se constituir no bloco de
classes antagônicas e de viverem geralmente a exclusão no processo direto de produção.
Contudo, não se pode negar a sua existência nem seu estatuto de classe. Falta à teoria
sociológica marxista repensar as categorias de classes sociais, fração de classe, etc., para
poder abarcar com maior cientificidade as realidades periféricas das sociedades capitalistas;
B) Como compreender os pobres que são expulsos como classes (Ex.: os desempregados)
para serem pobres como miseráveis, mendigos (necessitados de todos os recursos, meios de
subsistência) a partir de visão classista? Se os miseráveis, o exército industrial de reserva e os
grupos étnicos estão excluídos do sistema de produção, não poderão ser compreendidos pela
visão marxista, vale dizer, classista. E ademais, as classes se "esgotam em cada época
histórica"; por isso, que se pensar nesses empobrecidos, expulsos do sistema pela categoria
"povo" (como sujeito da formação social que atravessa a história). Não obstante, categoria
53
Ibid., p. 75.
54
M. HARNECKER. Op. Cit. p. 163.
30
"povo" não pode deixar de subsumir a categoria classe porque, ao analisar o problema do
empobrecimento, sempre vem à tona o problema da dominação de uma classe dominante
sobre a classe oprimida - o que fez a lógica de um sistema dominador e opressivo.
Exemplificando: a) podemos (também) compreender o racismo contra a população negra
ao constatarmos que ele é uma dimensão estrutural ou uma manifestação conatural do sistema
capitalista. É a ambição pelo poder econômico (lucro) levando um grupo ou uma classe a
explorar outro grupo ou classe. Apesar de não podermos reduzir a exploração do negro a uma
dimensão econômica (ou política), essa dimensão é fundamental na compreensão da realidade
de violência, opressão contra o povo negro; b) também não podemos compreender em
profundidade o grito da civilização indígena em nosso território, se abandonamos a análise do
sistema capitalista. O capitalismo é responsável pelo sofrimento do povo indígena, porque
esse sofrimento tem sua causa numa dominação sobre essa população indefesa. É a
expropriação realizada por uma minoria opressora.
Toda esta estrutura analisada do sistema capitalista se torna "legitimada" de uma
"conciliação", a qual favorece o jogo do mascaramento e da ocultação do conflito social. As
relações sociais são permeadas por uma "conciliação" como arquétipo político-ideológico,
através da qual as classes hegemônicas se impõe como detentoras dos meios de produção e do
poder político
55
. Constrói-se um discurso, pelas classes dominantes, visando à integração
social - este tem a peculiaridade de ser liberal e autoritário/totalitário, combinando a coerção e
o consenso para obter, por parte da classe oprimida, uma aceitação do "status quo", ou seja, a
resignação de uma organização econômico-social que legitima esta sociedade desigualitária e
55
G. CERQUEIRA FILHO, o Direito e a Solução dos Conflitos Sociais: Aspectos Ideológicos, in: F.A. de
MIRANDA ROSA (org.). Direito e Conflito Social. p. 75.
31
opressora. Na articulação desse programa se a presença de dois mecanismos: a "ideologia
do favor", de um lado, e a "via prussiana", de outro
56
.
No Brasil, esta "conciliação" ficou bastante clara a partir da década de 1960, quando se
o "pacto de dominação autoritário". Este pacto é implantado por um modelo econômico,
político e cultural da classe hegemônica, o qual é apoiado, defendido pelas Forças Armadas,
sem reservas, chegando a uma organização sócio-política marcada pelo acirramento das
diferenças e dos antagonismos entre as várias classes ou grupos sociais. É a militarização da
sociedade em defesa de um Estado autoritário que pudesse beneficiar os interesses da grande
burguesia monopolista internacional ("donos do poder"), ou seja, é a estruturação da
sociedade para garantir a monopolização da economia (concentração da renda) e a sua
desnacionalização - para isso reforçou-se o aparato de repressão, alterou-se a estrutura
jurídica. É a reestruturação do aparelho de intervenção do Estado em todos os seus níveis: do
econômico ao político, o que favorecerá uma centralização autoritária da gestão pública, que
se afastaria cada vez mais das necessidades, anseios das classes populares. Para isso, contou
com a "doutrina de segurança nacional"
57
, que seria responsável por um Estado militar que
avocou à sua onisciência a tutela da sociedade a partir de arbitrariedades, incompetências,
56
Ibid. - afirma o auto: “Todavia, não vamos imaginar oposição entre o ‘favor’, que rege a vida ideológica
propriamente dita, e a ‘via prussiana’, a violência, que rege a esfera da produção e as relações entre as classes
sociais fundamentais”.
O 'favor' não é o inverso da violência que ele procura disfarçar e ocultar. Ele contém em si mesmo a violência,
porém de forma simbólica: podemos dizer que o 'favor', presente ao nível de ideologia, no que nega e esconde a
violência real e concreta na esfera de produção, consiste em si numa violência: a violência de ocultar e violência"
- p. 77.
O professor G. C. FILHO explica o processo (ou dinamismo) entra a "via prussiana" e a "ideologia do favor"; "...
a 'via prussiana' de desenvolvimento do capitalismo, combinada de forma complexa com a 'ideologia do favor',
permitiria exatamente o aprofundamento da 'via prussiana'. A 'via prussiana' se afirma na exata medida da sua
negação eficaz no campo da ideologia. Não evidentemente um deslocamento entre ideologia (do 'favor') e
transformações políticas e econômicas ('via prussiana). Há, todavia, um ritmo de desenvolvimento desigual nas
transformações econômicas, políticas e ideológicas. Estas últimas têm um ritmo mais lento se comparadas com
as duas primeiras. Por seu turno, a política está sempre atrasada com relação ao econômico. Esse ritmo mais
lento no desenvolvimento das transformações ideológicas permite que ainda hoje o 'favor' jogue um papel
significativo no conjunto das idéias burguesas que 'cimentam' (dão unidade) as classes sociais e grupos sociais
antagônicos ao nível estrutural da sociedade (...) é porque os pressupostos do 'favor' se articulam de forma
complexa com os pressupostos do pensamento burguês, que conseguimos chamar de independência à
dependência, do mérito ao compadrio, de pragmatismo ao capricho, de universalidade à exceção". Cf. G.
CERQUEIRA FILHO. Op. Cit. p. 82.
57
Cf. Hélio BICUDO. Segurança nacional ou submissão. p.103.
Cf. Joseph COMBLIN. A ideologia da segurança nacional - o poder militar na América Latina. p.58.
32
dominação, etc. Enfim, procurou-se, desde o pacto entre elites civis e militares, a implantação
de um autoritarismo que defendesse os interesses desses "donos do poder", tudo à custa de
uma "perda completa da autonomia política" e a "dolarização" do sistema financeiro privado e
do sistema de empresas públicas, à custa da perseguição dos que defendem os direitos
legítimos dos empobrecidos, à custa da repressão sobre as organizações, movimentos
autênticos.
58
O mito do "arquétipo político-ideológico da conciliação" tem exercido entre o povo a
função de induzir uma falsa esperança de solução para o conflito social, o qual é fruto desse
irredutível e antagônico modo de produção capitalista monopolista - o que proporciona uma
"democracia burguesa" que é, em si e por si mesma, uma verdadeira mistificação da realidade.
Em nome da liberdade, ela destrói a liberdade, o direito decisório das classes populares; em
nome da igualdade dos cidadãos, impõe a hegemonia (supremacia social) da burguesia; em
nome da representação, consagra o monopólio do poder à classe dominante
59
. Por isso, todo o
discurso da classe do poder está fundamentado numa ideologia
60
que contribui para o
ocultamento ou a dissimulação do real - "o discurso ideológico é aquele que pretende (...)
engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para,
através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem
particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante"
61
. Esta operação ideológica
consiste em afirmar que "de direito" a sociedade é indivisa, sendo prova dessa indivisão a
58
Cf. Clóvis BRIGAGÃO. A militarização da sociedade. p. 35.
- Nelson Werneck SODRÉ. Vida e morte da ditadura - 20 anos de autoritarismo no Brasil. p. 88.
- Hélio JAGUARIBE. Sociedade e política – um estudo sobre a atualidade brasileira. p. 61.
- F.A. de MIRANDA ROSA. Justiça e autoritarismo. p. 112
- Maria da Conceição TAVARES; J. Carlos de ASSIS. O Grande salto para o caos economia política e a
política econômica do regime autoritário. p.47.
59
Florestan FERNANDEZ. A ditadura em questão. p.71.
60
Entendemos a ideologia de acordo com Marilena Chauí: "A ideologia, forma específica do imaginário social
moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social,
econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de
ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento
ou a dissimulação do real", Marilena CHAUÍ. Cultura e democracia. p. 3.
61
Ibid., p. 3.
33
existência de "um e mesmo poder estatal" que dirige toda a sociedade e lhe favorece a
homogeneidade. Por outro lado, a ideologia procura afirmar que, de fato, há divisões e
conflitos sociais, "mas a causa desse fato injusto deve ser encontrada em homens (o meu
patrão, o mau trabalhador, o mau governante, as más alianças internacionais)"
62
. Não
obstante, o social histórico, que é o social configurado pela divisão de classes ou grupos
sociais e fundado pela luta de classes, deixa escamoteando este reducionismo de retratar a
realidade - sociedade - "atravessada por conflitos e por antagonismos que exprimem a
existência de contradições constitutivas do próprio social"
63
- apenas com dado empírico e
moral. Também na realidade brasileira o "social histórico" é surprendido por uma nova
consciência emergente das classes dominadas e de setores intermediários excluídos das
"benesses" da sociedade. Percebe-se que o pacto dominador estava voltado a beneficiar as
classes dominantes a qualquer sacrifício. E todo o discurso ideológico que servia de suporte à
consistência do "pacto de dominação autoritário" entra em crise
64
.
Na procura de uma visão que não oculte ou dissimule o empobrecimento, o discurso
crítico
65
deve servir para desmontar a operação ideológica que favorece os ocultamentos de
divisão social e o do exercício de poder por uma classe social sobre a outra ou um grupo
social sobre o outro - operação que é mantida pelo capitalismo, predominantemente
monopolista, a fim de manter na sociedade sua dominação, estendendo seu controle sobre
toda ela e, em particular, cobre o grupo dominado ou a classe oprimida que é manipulada,
explorada e marginalizada. E mais: sem efetuar uma análise a partir da visão dialética, não
conseguiremos a destruição da pseudoconcreticidade através de uma realidade fetichizada -
62
Ibid., p. 20.
63
Ibid.
64
Cf. José Ivo FOLLMAN. Igreja, ideologia e classe sociais. p. 55-56.
65
Ibid., pp. 22-23: o autor define assim o discurso crítico: "... discurso que seja capaz de tomar o discurso
ideológico e não contrapor a ele um outro que serIa verdadeiro por ser 'completo' ou pleno, mas que tomasse o
discurso ideológico e o fizesse desdobrar todas as suas contradições, é um discurso que se elabora no interior do
próprio discurso ideológico como o seu contradiscurso".
34
onde os deuses necrófilos e sanguinários são cultuados pelo sistema de opressão e de
marginalização.
4. A "Necrofilia do Capitalismo": Causa Fundamental da Pobreza
Estrutural (Anti-vida)
Conforme o analisado no item acima, conclui-se que fazer transparecer a causa da
pobreza - na realidade brasileira - é possível pela tentativa de explicação da "lógica de morte"
do sistema de desenvolvimento, no que tem de opressor e explorador, porque o POBRE
(nação, classe, indivíduo) em seu 'rosto real', como interpretamos, é o sinal, "a ferida
sangrante da enfermidade profunda e estrutural do sistema"
66
. Não se pode, através de um
mecanismo ideológico, excluir a pobreza de sua dialética e constitutiva relação com o
explorador, o qual é responsável pela desapropriação, da grande maioria, do seu "ser" de
homem. Esta é a experiência que o povo oprimido tem da lógica do sistema de morte, ou seja,
a conseqüência viva e concreta do cinismo extremo da necrofilia da organização sócio-
econômica e política
67
.
Analisando o modelo brasileiro de desenvolvimento, que é capitalista, definimo-lo
através das características seguintes:
a) Periférico: onde a economia se pelo chamado "capital-sem-pátria" - "pelas
unidades de produção e pelos mercados das multinacionais, que atuam por cima das fronteiras
e dos interesses das nações. Para elas, os limites nacionais definem apenas um espaço
geográfico, econômico e social possível de ser utilizado para a realização de seus interesses
68
.
66
Enrique DUSSEL, El reino de Dios y los pobres, in: SERVIR n
o
83-84, p. 544.
67
Afirma H. Assmann: "El capitalismo no reconoce a nuestros muertos como 'héroes y mártires'. Son muertos
sin s. Muertos necesarios. Muertos por necesidad natural inherente a la lógica de la ley de la rentabilidad.
En rincones internos de nuestros periódicos a veces todavía se puede leer: 40 millones mueren al año por
hambre y desnutrición; 28 millones de niños, de menos de 5 años, mueren al año por desnutrición y falta de
asistencia dica mínima". - Hugo ASSMANN, El dominador, el mediador y la emergencia del 'otro', in: Raúl
VIDALES y Luis R. PAGÁN (eds.). La esperanza en el presente de América Latina. p. 49-50.
68
Argemiro J. BRUM. O desenvolvimento econômico brasileiro. p. 100.
35
b) Associado: acentuando a desnacionalização da nossa economia, chega-se ao
agravamento da dependência. "Emprenham-se os recursos humanos e naturais do país para
manter aqui padrões de consumo importados de sociedades tidas como mais adiantadas, os
quais possibilitam o atendimento do supérfluo para uma minoria dominante e olvidam as
necessidades básicas da maioria da população"
69
. Cerca de 60% das indústrias grandes e
médias pertencem ou são controladas pelas transnacionais.
c) Dependente: o modelo de industrialização implantado no país visa responder à
parcela da população com rendimentos elevados. Por isso, preocupa-se com a expansão do
parque industrial moderno e sofisticado - o que é realizado com capital estrangeiro e
tecnologia importada, agravando uma série de dependências diante dos países centrais
70
. O
capitalismo nacional depende do capitalismo mundial, não tendo projeto próprio. Ele obedece
às decisões tomadas pelos países cêntricos.
d) Exportador: a política do setor econômico se delineou, nos últimos anos, pela
preocupação com o exportador. O governo retira os subsídios dos produtos de consumo
popular (leite, carne, açúcar, trigo, etc.) e concede subsídios para a exportação de produtos
sofisticados. Conseqüentemente, a população tem que pagar caro pelos gêneros alimentícios
de primeira necessidade, ou deixar de consumí-los. Tudo contribuiu para que a população
brasileira vivesse numa situação de subconsumo crônico, agravado devido à alta do custo de
vida, à inflação e à perda do poder aquisitivo
71
.
e) Concentrador: a concentração da riqueza, em nível regional e pessoal, através
de concentração do capital, da propriedade, da terra, etc., tem revelado desequilíbrios que se
demonstraram pelo aumento da passagem entre a minoria privilegiada e a grande maioria
empobrecida
72
.
69
Ibid. p. 106.
70
Cf. Ibid. p. 106-108.
71
Cf. Ibid., p. 109-112.
72
Cf. Ibid., pp. 112-125.
36
f) Excludente: o modelo de desenvolvimento vigente no Brasil é excludente
porque exclui do processo histórico nacional milhões de brasileiros, que continuam em
"situação de absoluta ou relativa marginalidade econômico, social, política, cultural e
educacional"
73
, ou seja, o desenvolvimento intencionado e realizado não se orienta a atender
às necessidades da população, mas apenas aos caprichos do que detém o capital e o acumula
de forma privada. Tudo é fruto do jogo de interesses das forças dominantes no seio da
sociedade. E ainda: o problema central dos marginalizados está no fato de que eles, por si sós,
se encontram impossibilitados de se libertar. "Sua falta de participação no processo histórico
do país é fortemente condicionada por fatores estruturais, sua integração na sociedade não se
porque eles não podem, não porque eles não querem. Faltam-lhes condições não apenas
subjetivas, mas também objetivas"
74
.
Este sistema é responsável em transformar os homens (ou grupos sociais, ou classes) em
coisas, e as coisas em sujeitos animados. Os detentores do poder manipulam a política
econômica de acordo com seus interesses frente à imensa população de vendedores de sua
força de trabalho, leiloada ensoante as regras da demanda e da oferta. Percebe-se que "já não é
o homem o sujeito que decide, mas são as mercadorias, o dinheiro, o capital, que,
transformados em sujeitos sociais, decidem sobre a vida e sobre a morte de todos os homens.
Os objetos adquirem vida e subjetividade, que é a vida e a subjetividade dos homens projetada
nos objetos"
75
. Ocorre, assim, "a personalização" das mercadorias (o dinheiro, o capital) e a
"coisificação" ou mercantilização das pessoas, chegando à fetichização do sistema
76
- é a
- Afirma o autor: "Enquanto 90% dos brasileiros m sua participação relativa na renda nacional sensivelmente
reduzida, os 10 % mais ricos melhoram a sua participação em quase dez pontos, durante a década de 1960. E isso
ocorre justamente quando a distribuição de renda e a eliminação da marginalidade se constituem numa das mais
profundas e legítimas reivindicações da consciência nacional em prol da justiça social"(p. 116).
73
Ibid., p. 125.
74
Ibid., p. 126.
75
Pablo RICHARD e Raúl VIDALES, Introdução, in: Franz Hinkelammert, As armas ideológicas da Morte.
p.8.
76
De acordo com a definição de Marx, o fetichismo é "um certo tipo de relação entre um determinado marco
estrutural e determinada forma de consciência que serve de suporte do dito marco (...). Portanto, em uma
primeira aproximação, podemos dizer em forma geral, que o fetichismo consiste na inversão e, portanto,
37
exploração do homem pobre como mediação da explorabilidade da "natureza" em benefício
do homem rico. É o sacrifício sanguinário do sistema contra a realidade humana; uma
economia política antropófaga, fraticida"
77
que tem a satisfação de destruir o gênero humano.
A sobrevivência dos empobrecidos depende das necessidades do capital. Não é
preocupação, nessa lógica de morte, a miséria de milhões. O que importa é extrair do homem
cada vez mais sua força de trabalho e colocá-lo frente a uma competição desumana com a
máquina, deixando-o preocupado com o desemprego, a desvalorização de seu trabalho, etc. O
capital é o "senhor" proprietário dos meios de vida da população desempregada,
marginalizada. Todos são constantemente ameaçados a se transformarem em seres inúteis -
"essa contradição se manifesta estrepitosamente nesse holocausto ininterrupto de que se torna
vítima"
78
a grande maioria. É "o capital assegurando a vida somente aos operários necessários
para o seu próprio processo de vida. Transforma-se, portanto, em força onipotente que pode
cair sobre o operário em qualquer momento para feri-lo (ou matá-lo). Assim, a transformação
do processo é, ao mesmo tempo, o martírio do produtor"
79
- que se de duas maneiras:
tendência de extrair o próprio trabalho e pela morte como ameaça a partir do próprio
instrumento de trabalho.
A realidade humana decai a uma mercadoria e à mais miserável mercadoria
80
. Daí estar
alienada ao menos em quatro níveis. Vejamos
81
:
perversão, da realidade. Com efeito, no processo de fetichização, as pessoas se coisificam e as coisas se
personalizam". - Cf. Raúl VIDALES. Cristianismo Anti-Burguês. p. 13-14.
F. Hinkelammert analisa o problema ao explicitar o "fetichismo das mercadorias", o "fetichismo do capital", Cf.
F. HINKELAMMERT. Op.Cit. p. 29-52.
77
Enrique DUSSEL. Para uma Ética de Libertação Latino-americana na Política. p. 104.
78
F. HINKELAMMERT. Op. Cit. p. 52.
79
Ibid., p. 54
80
“... Marx parte, como ele próprio não se cansa de salientar, do fato constatado e contraditório de o operário
converter-se em mercadoria tanto mais barata quanto mais aumenta sua produtividade, da evidência de que a
valorização do mundo das coisas está sempre a corresponder à desvalorização do mundo dos homens". - Cf. José
Arthur GIANNOTTI. Origens da Dialética do Trabalho - Estudo sobre a lógica do jovem Marx. p. 137.
81
Cf. Karl MARX, A consciência Revolucionária da História, in: Florestan Fernandes (coord.), MARX e
ENGELS. pp. 146-181. Comentando o problema da alienação, a partir de Marx, temos a seguinte reflexão de
Giannotti:
"O trabalho se fixa no objeto, o produto alcança sua materialidade e sua objetividade num ex-tase do produtor;
mas, em vez de o sujeito realizar-se na produção, no final, o produto lhe aparece como uma coisa estranha e
38
a) Na relação do ser trabalhador com o produto do seu trabalho. O produto se trona um
objeto alheio a ponto de Ter poder sobre o trabalhador.
b) Na relação do trabalhador com o ato de produção dentro do trabalho. O próprio trabalho
acaba escravizando o trabalhador.
c) O homem acaba sendo alheio a ele mesmo. Alienação que atinge toda a vida do
trabalhador.
d) O homem está alienado do homem.
De uma maneira direta ou indireta, todos os homens vivem a partir de uma relação com
a divisão do trabalho ("posição alienada e alheada de atividade humana enquanto atividade
genérica real ou atividade do homem como ser genérico")
82
; e a possibilidade de alienação ou
não depende de como é coordenada esta divisão do trabalho. É um problema de vida ou morte
- "No fetiche do capital, o fetiche chega a destruir a própria vida humana através do efeito que
o capital tem sobre a coordenação da divisão social do trabalho. Os homens têm de morrer
hostil a fugir de seu controle. A existência objetivada do mundo das coisas ergue-se assim para ele como poder
autônomo e ameaçador, de tal modo que a objetivação do trabalho consiste num processo de corrupção de
desnaturalização, de perda de substância a resultar diretamente na sujeição do operário ao mundo criado por ele
próprio . A dessubstancialização chega a tal ponto que o priva até mesmo dos objetos indispensáveis a seu
trabalho e a seu próprio sustento. Além disso, que o caráter alienado do produto refere-se à ação de produzir,
essa também é alienada; paralelamente à alienação do produto ocorre a alienação do ato de produzir, na
qualidade de auto-alienação (Selbstenfrendung) do sujeito. O trabalhador se encontra numa dependência com a
natureza: de um lado, esta lhe fornece o objeto de seu trabalho e, de outro, os meios necessários a sua
sobrevivência não mais como trabalhador, momento de um processo mais amplo de trabalho, mas enquanto
indivíduo em geral. Além do mais, já que seu trabalho tem como resultado exacerbar a hostilidade das coisas,
quanto mais se aplica em suas funções tanto mais fica na triste contingência de substituir como indivíduo
somente quando encontrar emprego. Nessas condições, não é de se estranhar ser o trabalho exterior ao
trabalhador, consistir numa tarefa imposta de fora por alguém que está sempre pronto a apropriar-se dos frutos
do labor alheio. Torna-se assim trabalho forçado, desvinculado das necessidades e dos carecimentos do produtor,
sacrifício e mortificação, a transformar em caminho do embrutecimento o modo pelo qual o homem se
exterioriza e objetiva. Ao trabalhador nada mais resta senão comer, beber, dormir e o exercício de outras ações
necessárias à sua precária sobrevivência, ações que no fundo seriam humanas se não estivessem separadas e
abstraídas do contexto totalizante do trabalho. Por deixarem, todavia, de vincular-se ao trabalho como forma de
manifestação e realização do homem, transformaram-se em meras atividades animais. Finalmente chegamos ao
último momento: o desvirtuamento das relações vigentes entre o indivíduo e a espécie. O operário perde o
sentido social de sua ação, esquece-se de sua qualidade de ser genérico e passa a operar isoladamente, escravo
das vicissitudes naturais e sociais. Apagando a dimensão consciente da produção humana, o trabalho alienado
inverte o sentido da atividade vital: transforma-a num instrumento de garantia da existência de cada um, seja ela
qual for, ao invés de fazer dela a manifestação de sua essência", J. Arthur GIANNOTTI. Op. Cit. p. 137-138.
82
Ibid., p. 139. - Cf. Rubens ALVES. O suspiro dos oprimidos. p. 57-64.
39
para que o fetiche viva"
83
. A vida humana não é a primeira instância da determinação dos
valores a serem defendidos.
Todo este sistema fetichizado depende diretamente do grau de desumanização do
homem, o que implica afirmar ser o capitalizado "violento" desde duas raízes.
5. Conclusão
Nossa análise, que pretendeu ser científica, procurou desvendar o "rosto" real do
POBRE em nossa realidade. Concluiu-se que o pobre constitui o grande contingente da nossa
população - mais da metade - caracterizado pela miséria, marginalização, opressão,
configurando, assim, um país de constrastes entre uma minoria privilegiada e a grande
maioria expropriada, dominada. Estes expropriados são identificados com os bóias-frias, os
mendigos, as prostitutas, os vendedores ambulantes, os trombadinhas, os sub-empregados ou
desempregados, os faxineiros dos prédios, etc. E mais: não são conseqüências de um destino,
de um problema apenas moral ou conjuntural, mas são compreendidos como produto de um
Sistema que se reproduz sobre a lógica da destituição, exploração em todos os níveis - social,
econômico, político, cultural. A pobreza é "destituição" dos meios de sobrevivência física;
"marginalização" no acesso às oportunidades de emprego e da renda e usofruto das "benesses"
do progresso; "desproteção" advinda por não amparar dignamente todo cidadão a partir de um
setor público adequado e por uma operância dos direitos básicos (bem-estar, paz, educação,
saúde).
Para compreender a miserialização do nosso povo nas últimas décadas, exige-se detectar
o "pacto de dominação autoritário" implantado para empreender uma estruturação social que
levaria a esta injustificável situação, onde uma burguesia nacional e internacional tem
implantado sua hegemonia contra toda autonomia dos despossuídos, subalternos e excluídos.
É a injustiça imperando soberanamente.
83
F. HINKELAMMERT. Op. Cit. p. 85.
40
Procurando atingir a "raiz" do problema do empobrecimento, utilizamos a análise
dialética, que possibilitou revelar sua causa estrutural: o sistema capitalista. Este, ao ser
excludente, periférico, concentrador, associado, não está logicamente beneficiando a grande
maioria empobrecida. Esta é apenas (numa avaliação da repartição de renda) - quando muito -
a camada mais mal paga do "exército industrial ativo" e do exército industrial de reserva", ou
seja, aquela parcela maior da população que está marginalizada no processo de produção
social. Enfim, é a classe popular oprimida que se encontra à disposição do capital, o qual não
lhe paga a força de trabalho pelo piso legal e por isso sobrevive vendendo diretamente seu
serviço ou o produto de um trabalho injustamente remunerado. Além da dimensão da
repartição da renda, outras dimensões que ajudam - e são imprescindíveis - a compreender
a realidade do empobrecimento, como: a saúde dos pobres, condições sanitárias e de
habitação, a educação, meios de transportes - realidades que nos colocam diante do verdadeiro
"rosto" do POBRE, que configura a "foto" de milhões de pessoas do nosso povo.
É a lógica do sistema capitalista, que possui mecanismo de reprodução de pobreza,
miséria, a causa responsável pelo genocídio entre nós. Este sistema a partir da política
fraticida e antropófaga - a sangria da classe popular oprimida é justificada na estruturação
violenta, opressora. Então, a partir da vigilância de todo simplismo, pode-se afirmar que a
razão primeira da origem, crescimento do contigente de empobrecidos, é explicada pelo
capitalismo monopolista que não faz justiça a esta camada populacional. assim,
compreender-se-á realmente o "rosto" do POBRE, porque este não é realidade abstrata,
conceptual, e sim, a situação dura, lamentável, inegável de exploração, "crucificação" do
povo.
uma reestruturação ou transformação da organização sócio-política, no combate à
democracia burguesa, elitista, autoritária, nos libertará da injustiça e da violência
institucionalizadas. Uma sociedade construída sob a égide de um "pacto de dominação
41
autoritário" que respalda um sistema desumano, dominador, poderia gerar a situação na
qual nos encontramos. Cabe agora ao POBRE, como força coletiva e alternativa, contribuir
para a construção de uma nova sociedade onde seus direitos inalienáveis sejam defendidos e
promovidos.
42
CAPÍTULO II - CAMINHADA DA IGREJA NO BRASIL NA SUA
OPÇÃO PELOS POBRES
- Abordagem Histórico-Teológica
1. Introdução
Após uma análise da realidade sócio-econômica e política brasileira, no que se refere a
um período bem delimitado, foi possível a compreensão de um processo vertiginoso de
espoliação em todos os níveis, que favoreceu uma formação social profundamente
dissimétrica: onde aumenta a crescente brecha entre a minoria privilegiada e a grande maioria
empobrecida e oprimida. Conforme constatamos, este processo é conseqüência de um sistema
que necessita, para sobreviver, funcionar através de um modo de produção em que"... a
riqueza de uns poucos continua paralela à crescente miséria das massas (...) ricos cada vez
mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres"
84
. E mais. Toda essa política econômica de
maior rendimento, graças à exploração intensiva onde se favoreceu a crescente concentração
de renda nas mãos da minoria dominante e a socialização da miséria da maioria, foi
legitimada e defendida através de instrumentos legais de coerção e de um sofisticado aparelho
repressivo.
Cabe-nos agora, a partir de perspectiva histórico-teológica
85
, procurar interpretar, para
compreender teoricamente, o sentido que podem ter, à luz da fé, certos passos histórico-
84
João Paulo II no discurso de abertura da Assembléia do CELAM, em Puebla, 1979, III, 4.
85
Ao afirmar que trataremos de uma perspectiva ou de uma abordagem histórico-teológica, queremos dizer que a
reflexão sobre a Igreja não pode fazer a economia da passagem pelo histórico e pelo teológico, porque são nessas
"realidades" que se decidem se o que estamos vivendo é ou não uma expressão autêntica do que constitui o
compromisso e a essência ou o mistério da comunidade eclesial diante da realidade brasileira. É necessário
lembrar que a realidade histórica da Igreja possui o duplo caráter de realidade sacramental e de realidade sócio-
política. Não se trata de duas realidades justapostas. A Igreja pode e deve ser considerada nos dois enfoques que
são distintos, mas que se permeiam.
43
eclesiais da Igreja
86
, a partir dessa realidade constatada nos últimos anos. Compromisso
eclesial que "... constitui, por assim dizer, o fenótipo, a face visível de um modo particular de
ser Igreja e de compreender a sua maneira de estar presente na sociedade"
87
; sociedade que a
interpela e até a provoca por um testemunho profético.
É um irmanar-se - "Carregai o fardo uns dos outros" (Gal. 6,2) - da Igreja junto a esse
contexto configurado pela pobreza estrutural, ou seja, a opção pelos pobres corresponde a
assumir a causa deles. Causa que "é a luta contra a pobreza. Sendo a pobreza fruto de injustiça
institucionalizada, a causa do pobre é a transformação das estruturas sociais vigente, a criação
de uma sociedade justa"
88
. Nessa missão profética - identificação progressiva com as camadas
populares – o "Povo de Deus" vai encontrando sua identidade que se constrói pelo humanizar-
se num serviço aos empobrecidos. Contrário do que alguns afirmam: sede mal disfarçada de
poder, oportunismo eclesial, infidelidade às origens e à missão da Igreja
89
.
Com isso, queremos desvendar a razão primeira desse deslocamento de lugar social da
Igreja, o qual terá como conseqüência dois aspectos: o afastamento do poder e a opção pelos
pobres
90
. A grande virada histórica é possibilitada na opção pelas raças ou povos dominados e
86
Quando falamos da Igreja, referimo-nos explicitamente à Igreja institucional, de acordo com a definição de
Pablo Richard. Vejamos:
"A institucionalidade não é uma característica marginal ou acidental da Igreja, mas sua dimensão constitutiva
fundamental. A análise teológica e a análise política da Igreja seriam impossíveis se prescindíssemos do caráter
institucional da mesma. A contradição eclesial que os cristãos vivem hoje em dia não se entre uma igreja
institucional e outra não institucional, mas no próprio âmago da institucionalidade da Igreja. Definir-se como
cristão à margem da Igreja institucional significa não assumir nem confrontar essa contradição eclesial.
"A institucionalidade constitutiva da Igreja não é unidimensional, uniforme ou estática, mas multidimensional,
pluriforme e dinâmica. Poderíamos esboçar algumas distinções, por exemplo, existe uma Igreja institucional
hierárquica e outra de base. É importante dizer isso, pois uma comunidade eclesial de base (CEB), possui uma
institucionalidade eclesial. Não será a mesma de uma conferência episcopal, mas a institucionalidade da Igreja se
realiza também numa CEB" P. RICHARD. A Igreja latino-americana entre o temor e a esperança. p. 109-
110.
87
Carlos PALÁCIO, Igreja e sociedade no Brasil: 1968-1982 in: Lebauspin (Coord.). Igreja, movimentos
populares, política no Brasil. p. 9.
88
Francisco TABORDA, Dimensão teológica da opção pelos pobres, in: Francisco Taborda et alii. Dimensão
social teológica e pedagógica da opção pelos pobres - XI Congresso Nacional de A.E.C. p. 41.
89
No discurso inaugural à III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, o Papa João Paulo II
lembrou: "Não é, pois, por oportunismo nem por afã de novidade que a Igreja,
'
perita em humanidade
'
(Paulo VI,
Disc. na ONU, 5-10-1965) é defensora dos direitos humanos. É por um autêntico compromisso evangélico, o
qual como sucedeu com Cristo, é, sobretudo, compromisso com os mais necessitados", Cf. Doc. De Puebla,
Petrópolis: Vozes, 1979, p.29.
90
Os dois aspectos são comentados por C. Palácio:
44
pelas classes populares oprimidas; opção que é exigência por uma profunda e autêntica
evangelização
91
, sendo que evangelizar é a razão de ser Igreja
92
. Esta evangelização que se
identifica com o anúncio da libertação integral
93
de toda opressão a todos os homens, visando
à construção de uma sociedade justa e fraterna, que, em outras palavras, a partir de sua missão
"Em primeiro lugar, a nova situação da Igreja na sociedade faz com que ela esteja cada vez mais forte nos
centros decisórios do poder. Por uma razão muito simples: as decisões estão nas mãos de tecnocratas e são
tomadas em função de interesses que giram muito mais em torno do modelo econômico e dos interesses da
produção. Impermeáveis, portanto, às motivações de tipo ético e religioso. O que (...) parece curioso é que este
afastamento da Igreja em relação ao poder a aproxima cada vez mais da sociedade civil à diferença do que
aconteceu, por exemplo, nas sociedades mais avançadas".
"Em segundo este afastamento do poder tem implicações muito grandes quanto à imagem e à maneira como a
Igreja se compreende a si mesma como Igreja (...) A chamada opção preferencial pelos pobres da Conferência
Episcopal Latino-Americana é simultaneamente uma opção pastoral que admite e aceita este deslocamento das
'bases eclesiais'. Isto precisamente numa Igreja cuja pastoral toda até então se tinha concentrado nas classes
médias e altas. A opção preferencial pelos pobres é, assim, a expressão teológica do que tinha sido ao longo
desses anos o deslocamento progressivo das 'bases eclesiais' Quer dizer, em outras palavras, que não se trata na
opção preferencial pelos pobres de uma substituição oportunista do que antes eram as classes dominantes do
futuro: a presença e ascensão dos movimentos populares (...) Essa opção é a expressão de uma Igreja que trata de
pensar e de refletir teoricamente o que significa ser Igreja, e, portanto, comunidade de fé em Jesus Cristo, dentro
de uma sociedade de classe e numa situação na qual ela, como grupo específico e particular, foi deslocado dos
centros do poder" - Carlos PALÁCIO. Op. Cit. p. 15-16.
91
A referência ao evangelizar está em consonância com o enunciado no "Objetivo Geral de Ação Pastoral no
Brasil" - elaborado e aprovado por unanimidade na 21
ª
Assembléia Geral da CNBB em 15 de abril de 1983, onde
afirma: "Assim como Jesus Cristo, a Igreja faz da proclamação do Reino o centro de sua ação evangelizadora
(...) Reino que consiste na libertação de todas as misérias e opressões, cuja raiz última é o pecado. Reino que visa
instaurar uma nova ordem de vida e convivência na justiça, na fraternidade e na paz" (nº 3).
"Evangelizar constitui (...) o centro de convergência do Objetivo Geral da ação pastoral. De fato, o anúncio do
Evangelho é o serviço original e insubstituível da Igreja ao povo brasileiro e à sua história (...) Por fidelidade ao
Evangelho, a Igreja no Brasil fez opção preferencial pelos pobres e assumiu - fiel à sua inspiração - a causa da
libertação integral de todos os homens. É a vivência concreta do Evangelho que faz crescer na participação e
comunhão, e a compromete na construção de uma sociedade mais justa e fraterna (...)" Cf. CNBB, Diretrizes
Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil.
92
Cf. EN, nº 14.
93
Gostaríamos de deixar claro o que se entende por libertação sempre que empregamos esta terminologia. Para
isso, foi utilizada a conceituação de L. Boff:
"Em primeiro plano, se trata da libertação social dos oprimidos; isto implica na superação histórica do sistema
capitalista, principal produtor de opressão, na direção de uma sociedade mais participada, com estruturas que
gastem mais justiças para todos (...) Como se depreende, libertação não é uma metáfora; é um processo histórico-
social. Em segundo plano, faz-se mister dizer que a libertação nunca é meramente social. Ela se constitui em
fenômeno humano, carregado de significação, de dignidade e de grandeza humanística. Sempre é grande
comprometer-se na luta pela produção de mais humanidade, fraternidade e participação no sentido de que o
maior número possível de pessoas sejam sujeitos de seu próprio destino e participem na criação de um destino
coletivo. Em terceiro lugar, à luz da fé, este processo histórico-social se ordena à salvação (ou à perdição), é
antecipador e concretizador de dimensões daquilo que na utopia de Jesus Cristo se chamava Reino de Deus. Ele
possui, portanto, uma significação transcendente: repercute na eternidade. Neste processo se realiza ou frusta o
desígnio último de Deus, embora o desígnio último tenha também outras dimensões além desta histórico-social.
Por isso é que se fala de libertação Integral. A pode discernir esta dimensão de profundidade; mas não ; ela
se constitui em fator de mobilização em favor do compromisso com os oprimidos e por sua libertação. E por fim
a celebra a presença vitoriosa da libertação operada pelos homens na força de Deus que tudo penetra, e
proclama também a plena libertação que já nos foi galardoada na vida, morte e ressurreição de alguém também
oprimido. Jesus Cristo, como sinal de que nossa luta e esperança por uma total libertação não permanece no
mero âmbito da utopia. Ela se transforma em ridente e completa utopia", L. BOFF. O caminhar da Igreja com
os oprimidos: do vale de lágrimas à terra Prometida. p. 80 - (grifo nosso).
45
específica, a Igreja quer contribuir - numa evangelização libertadora - para gestar um homem
novo dentro de estruturas histórico-sociais que gestem mais fraternidade. Eis o que tenciona,
fundamentalmente, esta opção pelos empobrecidos ou despossuídos
94
. Conforme também
lembra a E.N.:
“... A evangelização não seria completa se ela não tomasse em consideração a
interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta,
pessoal e social dos homens. É por isso que a evangelização comporta uma
mensagem explícita adaptada às diversas situações e continuamente atualizadas:
sobre os direitos e deveres de toda a pessoa humana e sobre a vida familiar ...; sobre
a vida internacional, a paz, a justiça e o desenvolvimento; uma mensagem
sobremaneira vigorosa nos nossos dias, ainda, sobre a libertação.
(...) A igreja... tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos,
sendo muitos destes seus filhos espirituais; o dever de ajudar uma tal libertação nos
seus começos de dar testemunho em favor dela e de envidar esforços para que ela
chegue a ser total. Isso não é alheio à evangelização” (n. 29 a 30).
Esta realidade evangelizadora é propiciada em razão de fatores internos e de fatores
externos
95
. Quanto aos fatores internos, residem na renovação propiciada pelo Concílio
Vaticano II, as conclusões de Medellín e Puebla, o reflexo, dentro da Igreja, do aguçamento
das contradições sociais, a Teologia da Libertação, a nova consciência política de seus
agentes, a retomada da inspiração evangélica traduzida em compromisso efetivo com as
classes populares oprimidas, os grupos oprimidos, etc. os fatores externos residem na
implantação do regime autoritário e repressivo, capaz de controlar as correntes discordantes
96
.
94
Não obstante, que se observar que a "Igreja anuncia a salvação, dom gratuito de Deus, que supera qualquer
desejo humano. A evangelização não pode ser reduzida à mera promoção de valores humanos, sem relação com
o mistério de Cristo. Do outro lado, a promoção humana e a evangelização não podem ser superadas como
atividades paralelas. A Religião não se exprime em seguir Cristo, independentemente das outras atividades da
vida humana. Toda expressão coletiva dos homens, nas diversas ordens, social, econômica, política, enquanto
decisões livres do homem, devem responder às exigências de sua dignidade, conforme o conceito cristão da
pessoa humana, no qual a justiça, a igualdade, a liberdade, a participação têm lugar. A libertação é parte
integrante, constitutiva, da evangelização, do compromisso cristão". J.B. LIBÂNIO, Evangelização e libertação,
Cf. COMBLIN. J. EVANGELIZAR. p. 7-12.
95
Cf. Frei BETTO, Da prática da pastoral popular; in: Col. Encontros com a civilização brasileira. p. 95-112.
O autor, no referente artigo, ressalta também a função importante da Igreja na sociedade civil impedida de
conviver com a liberdade - a Igreja passa "a desempenhar um papel muito especial, devido à falta de partidos
políticos em condições de canalizar as aspirações populares e de instituições jurídicas capazes de reagir ao
arbítrio do poder, de um lado, torna-se ela a caixa de ressonância das aspirações de justiça, a redemocratização
ou mesmo uma nova sociedade, a Igreja sofre perseguição e se aliada aos que são tidos como inimigos do
regime. Isso se acentua tanto mais quanto mais a Igreja assume a defesa dos direitos humanos e se compromete
com a bandeira da libertação social" (pp. 96-97).
96
Afirma L. Boff: a Igreja, "em razão do vazio político e também por um dever evangélico, assumiu face ao
Estado autoritário uma função tribunícia: ergueu sua voz contra a violência feita aos humildes e contra o
46
É a Igreja, por força de seu enraizamento nos meios populares, representando uma "função
tribunícia" ao ser a voz dos que não têm voz, e uma ação terapêutica e/ou profética ao
favorecer a rearticulação de um povo marginalizado em vista de sua unidade na organização e
na mobilização.
Para precisar dialeticamente o caminhar da Igreja com os oprimidos, fugindo de uma
interpretação míope por não levar em consideração a complexidade e/ou o conjunto dessa
época, procuraremos mostrar a incidência de dois aspectos determinantes para esse caminhar:
primeiro, a presença ativa do pobre no espaço eclesial - os oprimidos como que optando pela
Igreja; segundo, a Igreja assumindo o compromisso com a opção pelos pobres. É a resposta-
compromisso com um dilema ineludível: ou aceita encarnar a defesa da classe ou da maioria
subalterna ou continua com a classe hegemônica/dominante. São fatores internos e externos
exigindo da Igreja uma redefinição no seu posicionamento frente à realidade social. Iremos
analisar, então, a opção dos pobres oprimidos pela Igreja como um fator importante - nível
externo - para a concretização da "opção pelos pobres"; e, em seguida, abordaremos a opção
da Igreja - nível interno - partindo das interpelações surgidas ou reafirmadas no Concílio
Vaticano II, Medellín e Puebla; ao mesmo tempo procurando a identidade da Igreja com as
respostas, declarações do Concílio e das duas Assembléias. Por outro lado, tentaremos
abordar o problema da ambigüidade na opção pelos pobres, o que situará as lacunas que
(pode) comprometem um testemunho mais sério e libertador da grande maioria empobrecida e
oprimida.
desrespeito aos direitos humanos e se empenhou em criar em suas comunidades o sentido de solidariedade e a
prática da participação. Representou, não sem um preço a pagar, as causas populares da justiça social, do direito
à terra e da inviolabilidade da pessoa humana, especialmente dos pobres, posseiros e índios. Numa palavra,
exerceu, quase a contragosto, um poder tribunício em favor do povo", L. BOFF. Op. Cit. p. 113.
47
2. A Irrupção do Pobre e seu Desafio Evangélico à Igreja
Conforme se constatou, a participação popular no poder de decisão diante do processo
sócio-econômico e político foi obstruída, e os instrumentos legais destruídos ou
rigorosamente cerceados. É a asfixia da sociedade civil brasileira pelo novo pacto político
autoritário. Mas essa grande maioria marginalizada não cedeu completamente - fez brotar,
lenta, mas progressivamente, embriões de organizações e mobilização
97
. Não foi um processo
que iniciou e progrediu de modo espontâneo. Os "ausentes"
98
da história começam a se fazer
presentes nela, às vezes violentamente, passando de sujeitos passivos e dependentes à
protagonistas históricos. No bojo dessa articulação, agentes atuaram como fator de estímulo e
conscientização.
Nesse momento, a igreja se destacaria com espaço hegemônico de rearticulação das
massas ou classes populares por manter um espaço com uma certa autonomia. Elas "...
encontram na Igreja comprometida com a pastoral popular um espaço privilegiado de
rearticulação de suas forças"
99
. Assim, à sombra do espaço eclesial, permitiu-se um intenso
trabalho pastoral, eminentemente popular, capaz de despertar a dimensão social e política da
cristã. Conseqüentemente, este compromisso exigiu da Igreja uma conversão no seu
posicionamento frente à sociedade civil (e/ou o Estado) e uma redefinição, ou melhor,
equacionamento diante das exigências que surgiram de sua defesa junto às classes
97
"Fruto de certo instinto de classe - de quem reconhece na força da união uma garantia de resistência - as
classes populares reforçaram seus laços de solidariedade, (re) criando novas formas de organização, pequenos
núcleos baseados em relações de vizinhança: clube de mães, associações de moradores, mutirão de roça, grupos
de jovens, loteamento clandestino, cursos de qualificação profissional, centros comunitários, grupos de teatro e
arte em geral, etc.", F. BETTO, Prática pastoral e prática política; in: Col. Encontros com a civilização
brasileira. p. 21.
98
Usamos o termo, "ausentes" entre aspas com a mesma preocupação de G. Gutiérrez:"... está entre aspas ....
porque é evidente que os pobres nunca estiveram fora da história concreta de nossos povos. Ao contrário, sua
vida, seu sangue, seu suor formam parte dela. O que se quer dizer é que a história foi construída e lida não em
função do pobre, mas dos privilegiados que os humilharam e exploraram", G. GUTIÉRREZ, A irrupção do
pobre na América Latina e as comunidades cristas populares: in: VV.AA., A Igreja que surge da base. p. 187.
Obs.: no Capítulo I esperamos ter deixado clara a repressão sobre os empobrecidos a partir dos anos da década
de 1960, quando se implanta um regime autoritário e opressor que beneficiaria a burguesia nacional e
internacional - situação facilitada por uma "ordem" legitimada e defendida pela força das forças armadas. É o
pacto de dominação em prejuízo da grande maioria.
99
F. BETTO. Op. Cit. p. 43.
48
exploradas, às raças marginalizadas e aos pobres deserdados. Esta redefinição eclesial - que
explicitaremos melhor abaixo - é visibilizada na realidade brasileira quando a Igreja assume o
compromisso de denunciar as injustiças e encorajar a promoção humana - numa ação social
com uma intensidade sem precedentes na sua história, pelo menos no Brasil. Perseguida, a
Igreja se fortalece como instituição em defesa dos "sem vez e sem voz" (indígenas,
camponeses, classe operária, desempregados, exilados, presos políticos, membros da
hierarquia perseguidos, torturados, mortos). Numa diaconia profético-crítica e na defesa dos
direitos dos pobres e oprimidos, a igreja vai testemunhando uma prática-pastoral e um
discurso que se compromete e se faz conhecer - por isso, ouve-se a sua voz gritar: "Não
oprimas teu irmão"
100
; "Eu ouvi os clamores do meu povo"
101
; "Marginalização de um povo:
grito das Igrejas"
102
. No documento da CNBB, "Comunicação pastoral ao povo de Deus"
103
,
a Igreja lembra os seguintes fatos: assassinato dos sacerdotes Rodolfo Lunkenbein e João
Bosco Penido Burnier, o seqüestro do bispo Dom Adriano Hipólito, a perseguição a Dom
Helder Câmara, a ação violenta contra instituições, como: Ordem dos Advogados do Brasil,
Associação Brasileira de Imprensa, Centro Brasileiro de Análises e Pesquisas (CEBRAP). E
como fatores desta violência contra pessoas, organizações, instituições, a igreja aponta: a
injustiça contra os pobres (acusados de vadios, agitadores), a impunidade de policiais
criminosos, a distribuição da terra (grandes empresas que estão expulsando os indígenas,
oprimindo e massacrando posseiros e camponeses), a situação marginalizadora dos índios, a
Ideologia da Segurança Nacional (contra aqueles que não concordam com a visão autoritária
da Sociedade). Também no documento Exigências Cristãs de uma Ordem Política
104
, a Igreja
assinala os problemas da marginalização, do Bem Comum, dos direitos e deveres do Estado,
da liberdade e segurança ... É a instituição eclesial que, como SERVA do Reino, num
100
Cf. Riolando AZZI, A igreja do Brasil na defesa dos direitos humanos, in: REB 37 (1977): 106-142.
101
Declaração dos bispos de São Paulo, em Brodóqui, em 1974.
102
Documento de bispos e religiosos do Nordeste do Brasil em 1973, in SEDOC 22 (1973): 607-627.
103
CNBB. Comunicação pastoral ao povo de Deus. p. 6-16.
104
CNBB. Exigências cristãs de uma ordem política. p. 9-16.
49
compromisso de libertação do povo, assume evangelicamente a causa e a defesa dos
oprimidos, denominada já não como "tutora dos pobres", mas como libertadora ou "ideólogica
dos pobres"
105
. Em outras palavras, numa sociedade dividida em classes e grupos antagônicos
- onde o grau de liberdade da classe ou da maioria oprimida é inversamente proporcional ao
grau de coerção e dominação de que a classe dominante necessita para exercer sua espoliação
- a democracia é negada e a Igreja sai a defender para todos (principalmente os excluídos)
iguais condições de exercício e defesa de seus direitos inalienáveis.
Mas qual foi o novo sujeito que favoreceu essa mudança da e na Igreja? Acreditamos
ser o sujeito eclesial e/ou social, identificado com as classes populares ou o movimento
popular (o movimento de reivindicação: a mobilização pela luz, água, etc.; o movimento de
resistência: frente à expulsão da terra, despejo da favela, etc.; o movimento de protesto,
denuncia; o movimento do custo de vida; o movimento de solidariedade: mobilização
nacional para recolher alimentos, roupas), que interpelou e forçou a instituição eclesial a se
modificar para contribuir decididamente com a transformação da realidade sócio-econômica,
política e religiosa. É o povo ocupando o espaço eclesial e vivendo nele, no nível da e do
social-político, uma iniciativa e experimentação que, "pode-se dizer ... converteu essa Igreja.
(Porque) A 'opção pelos pobres' (...) não foi o resultado de uma decisão tomada abstratamente,
mas de uma prática e de uma conquista dos setores populares"
106
. É um fato novo
acontecendo: a chance da Igreja de se recriar, renovar, para responder ao novo sujeito que
surge a partir da situação de cativerio.
Enfim, é a multidão empobrecida e marginalizada desafiando a Igreja "repensar a
missão e a reordenar as prioridades à luz do papel redentor na história humana proclamado no
evangelho"
107
. Os pobres a desafiam a respeito de sua identidade verdadeira no mundo como
105
C.P.F. de CAMARGO, "L'Eglise: trutice de pauvres ou leur idéologue?" (Texto datilografado)
106
L.A.GOMES DE SOUZA, Movimento popular, igreja e políticos; in: Proposta, dez-1980, nº 15, p. 21.
107
Júlio de SANTA ANA, (Editor). A igreja dos pobres. p. 118.
50
ela "vê a si mesma ao ser chamada para pregar a mensagem das boas novas aos pobres? Será
que a igreja escolheu mesmo ser serva daquele que disse:
“O Espírito Santo está sobre mim, porque ele me ungiu, para evangelizar os pobres;
enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista,
para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça ao Senhor
(Lc. 4, 18-19) "
108
.”
É a realidade eclesial sendo convocada a se transformar numa serva comprometida e
vibrante nas mãos do Deus da Vida para a libertação humana.
2.1. O pobre Oprimido e Crente: Opção pela Igreja e sua Identidade
Eclesial na Prática Política.
A redefinição da Igreja brasileira não teria sido possível sem um processo dialético.
Processo instaurado na década de 1960, quando a Igreja, a partir da "diaconia política" e da
"diaconia profético-crítica", vai constatando o caráter absolutista e totalitário do Estado e
denunciando o sistema capitalista como gerador principal da miséria e da injustiça social - o
que leva a Igreja a assumir a defesa dos direitos dos empobrecidos
109
. E este movimento
dialético, responsável pela sua inserção, é possibilitado pelo impacto de presença ativa do
povo na Igreja - "Não é esta que opta pelos pobres. também o movimento inverso, dos
pobres que optam pela Igreja"
110
. É o povo trazendo a sua experiência de sofrimento e de
108
Ibid., pp. 118-119 - Obs.: O texto bíblico transcrevemos da B.J.
109
Cf. Pablo RICHARD. Morte das cristandades e nascimento da igreja. p. 164-180.
110
P.A RIBEIRO DE OLIVEIRA, o que significa analiticamente "Povo"?, in: Concilium/196,6 (1984): 804 -
Cf. Idem, Oprimidos: a opção pela Igreja; in: REB, vol.41, 164, dez(1981): 643-653.
Obs.: o se pode compreender a nova consciência eclesial - visível em nova atitude de agir - a não ser num
processo dialético. Como afirma C. Palácio: "A pretensão de reservar em exclusividade ao discurso teológico a
chave capaz de nos abrir a interlecção deste período é tão ingênua (e até certo ponto totalitária) como seria a de
um discurso sociológico fechado à pretensão que levanta a Igreja de não ser pura e simplesmente reflexo ou
resultado da sociedade. Ambos os discursos se completam. Mais fecundo seria mostrar a relação que existe entre
o 'deslocamento social' (captado pela análise sociológica) e a reinterpretação da fé (resultado do discurso
teológico). Para tanto, é indispensável encontrar as categorias e os enfoques mais adequados" C. PALÁCIO
"Uma consciência histórica irreversível"; in: Síntese 17, (1979) 24.
Vejamos o que diz SOUZA LIMA: possível que, com uma parte da hierarquia se engajando na prática
pastoral popular (processo no qual a ideologia e os frutos da experiência passada tiveram grande influência), a
base da sociedade, as classes populares (trabalhadores rurais, camponeses pobres, operários, bóias-frias,
favelados e os setores pobres das classes médias) tenham vindo progressivamente a entrar na Igreja, 'ocupando'
um espaço institucional, convertendo a instituição (processo em custo), comprometendo-a com os seus interesses
51
esperança para o interior da comunidade eclasial; e esta, assumindo a forma, o jeito, o modo
de ser do Povo. Sabendo-se de Deus, o povo sente-se Igreja
111
.
A partir do momento em que o povo redescobriu a Igreja como seu espaço de expressão
e nutrição da e como espaço de organização e mobilização - ele não é spmente o setor
privilegiado do cuidado pastoral, mas também o sujeito ativo, decisório da pastoral. A
comunidade eclesial se revela como lugar de animação da vida do empobrecido em sua
totalidade, à luz da fé.
Conseqüentemente, um setor da Igreja viverá o deslocamento social - passa do lugar
social do opressor para o lugar social do oprimido - o que implicará que o agente (ou o fiel) e
a comunidade passam a apreender a fé, a história, a vida, pela ótica do oprimido
112
, tudo
dentro de uma tendência de articulação dialética: os membros não conflituam oração e ação,
fé em Deus e luta política. Essa unidade é uma realidade, mesmo que não reflita no discurso e
na vida dos agentes que com eles trabalham. Os membros da comunidade sabem que sua
espiritualidade "não se esgota na prática política, mas a sua oração merece credibilidade na
medida que se vincula às lutas e aos sofrimentos do povo. Muitas vezes, o próprio homem de
base exige momentos específicos de liturgia, não pela divisão que feria entre e vida, mas
por uma unidade tão profunda em sua vida que lhe permitiria mergulhar num espaço
exclusivamente litúrgico (ou exclusivamente político) sem que uma dimensão da vida ameace
a outra"
113
.
O caminhar dos oprimidos com a Igreja é mais profundo e complexo. Exige que a Igreja
não se converta em um poder paralelo, mas que seja realmente uma comunidade de fé, uma
imediatos e, em segundo momento, com suas perspectivas políticas e históricas". L.G. SOUZA LIMA. A
evolução política da igreja e dos católicos no Brasil. p. 59.
111
"O que talvez se saiba menos (...) é que estes mesmos povos (explorado e oprimido) têm - como sua
religiosa - uma consciência vaga, porém profunda, de ser amado por Deus e chamados a uma comunhão com Ele
na qual não contam a riqueza, a sabedoria nem o poder deste mundo, mas o amor dos irmãos e a dignidade igual
dos filhos", R. MUNHOZ, A função dos pobres na igreja; in: Concilium/124-1977/4:395.
112
Cf. J.B. LIBÂNIO. O que é pastoral. p. 54
Cf. Frei BETTO. O que é comunidade eclesial de base. p. 95.
113
Frei BETTO, Op. Cit., p. 97.
52
comunidade sacramental
114
, o que a obrigará a viver a "exigência teológica de conversão
contínua a seu caráter específico de Igreja pobre e crente"
115
. É o acontecimento de um
testemunho eclesial, surgido do povo, que visa ser medianeiro no processo de construção da
Igreja, o juízo de Cristo contra todo o pecado, opressão ou alienação.
Este processo de identificação das maiorias oprimidas com a Igreja tem sido um
momento do contexto histórico quando se o processo eclesiológico de reencontro da Igreja
com sua identidade própria e específica - fato que "não é casual ou pura coincidência,
tampouco se trata de um fato acidental ou externo à estruturação íntima ou essencial da Igreja.
(Porque) A 'opção pelos pobres' não significa um processo exclusivamente 'pastoral', de
extensão da Igreja a um novo 'campo' de evangelização, mas significa, fundamentalmente, um
processo interno de transformação radical e de conversão profunda da Igreja como
totalidade"
116
.
É a Igreja - através de um setor significativo - que se redefine pelo compromisso
libertador junto aos empobrecidos, devido ao seu testemunho "novo", na maneira nova de ser
Igreja e de concretizar o mistério da salvação vivido comunitária e profeticamente. Como
instituição (hierarquia, estrutura sacramental, doutrina ortodoxa, imperativos morais, normas
litúrgicas, lei canônica, Sagradas Escrituras) e como acontecimento (emerge, cresce e se
reinventa quando os homens se reúnem para proclamar a Palavra, crer nela e juntos assumir a
causa do Cristo junto aos preteridos da sociedade, impulsionados pelo Espírito), vai
demonstrando a Fraternidade e a Solidariedade, a Reconciliação e a Corresponsabilidade. É
uma reorganização da Igreja onde todos procuram ser efetivamente irmãos, participar e servir
comunitariamente. Uma experiência eclesial que abre possibilidade de maior participação e
114
"Se a Igreja perde a e se converte num poder, então nasce um 'terceirismo' e se lesa a autonomia do
movimento operário. A exigência política se converte, assim, na Igreja, numa exigência teológica de contínua
conversão a sua dimensão sacramental e crente", P. RICHARD. A igreja Latino-americana entre o temor e a
esperança. p. 78.
115
Ibid.
116
Ibid. p. 116-117.
53
equilíbrio entre as várias funções eclesiais - a apostolicidade ou a ministerialidade não é
característica apenas da hierarquia. E ainda: a efetivação, concretização dessa realidade
eclesial só é possível a partir da missão evangelizadora (responsável pelo reinventar da Igreja)
desde a ótica e o lugar do pobre e oprimido. É a Igreja, assim, um "organismo vivo" que
recria, alimenta e renova numa encarnação junto às bases
117
, favorecendo uma reestruturação
mais igualitária, dinâmica e libertadora. Na nossa experiência eclesial, esta nova maneira de
ser Igreja se expressa nas fórmulas: "Igreja dos pobres", "Igreja que surge da base", "Igreja
que nasce da do povo". Por isso, se compreenderá a radicalidade da opção dos pobres e
oprimidos pela Igreja, quando se procurar abordar a opção da Igreja pelos pobres como sendo
uma opção constitutiva, estrutural e essencial.
A identidade eclesial na vida do empobrecido se manifesta quando este, na luta pela
libertação integral - num rompimento com o sistema capitalista ou todas as opressões -
testemunha uma inserção profética e salvadora, negando, assim, a identidade da
"cristandade"
118
na própria prática sócio-eclesial. É a Igreja funcionando como núcleo
motivador e mesmo abastecedor de movimentos populares, organizações de base, na linha do
compromisso evangélico com a libertação dos oprimidos. Esta compreensão se torna possível
ao repelir taxativamente toda tentativa de "reducionismo" da tarefa evangelizadora - "seja a
um espiritualismo desencarnado sob pretexto de sentido religioso, seja a uma perspectiva de
ação política que desconheça idealisticamente a realidade de do povo. Sendo unilaterais e
irreais, ambos os reducionismos expressam uma ignorância da situação e das potencialidades
117
Cf. Leonardo BOFF. E a igreja se fez povo... p. 24-105.
118
Entendemos a “Cristandade" a partir da definição de P. Richard: "... Modo histórico específico de inserção da
Igreja institucional na totalidade social, que utiliza como mediação fundamental o poder político (sociedade
política) e o poder hegemônico (sociedade civil) das classes dominantes. Num regime de Cristandade a Igreja
procura 'cristianizar' a sociedade, apoiando-se no poder das classes dominantes, poder que se concentra
especialmente no Estado e nos organismos da sociedade civil: escolas, universidades, meios de comunicação,
etc. A igreja da Cristandade acredita que aumentar sua força 'cristianizadora' à medida que tiver maior presença e
poder em todos os organismos da sociedade política e civil dominantes e à medida que tais organismos defendem
os 'direitos' e a 'doutrina' da Igreja. Um rompimento com estes organismos e com o sistema político e econômico
que os sustenta, é visto pela Cristandade, como uma perda de possibilidade para a obra da Igreja", P. RICHARD,
Op. Cit., pp.112-113
54
dos grupos ou classe populares, e sabemos com que riscos. Continuamos convencidos, e a
prática dos pobres o confirma, de que o mais fecundo e imaginário desafio encontra-se em
uma 'contemplação na ação', na ação transformadora da história. Trata-se do encontro com
Deus no pobre, em uma cheia de esperança e alegria, vivida no seio de um processo de
libertação que tem as classes populares (ou os povos oprimidos) como seus agentes"
119
.
Apesar da instituição eclesial, em certos lugares e momentos, ter assumido uma prática
que é determinada pelo tipo de "legitimação condicional"
120
dela em relação ao sistema ou ao
Estado, constata-se um "fio condutor" em seu compromisso junto às classes populares ou à
população marginalizada - na defesa dos Direitos Humanos, denúncia da miséria, existência
de institucionalização democrática. - que faz o pobre e oprimido se indentificar com um
compromisso junto dela. Essa realidade é incontestável na Igreja brasileira.
2.2. A Força Evangelizadora dos pobres através do Testemunho Profético e
Sacramental
Os empobrecidos - como protagonistas ativos na renovação eclesial (e social) - estão
desafiando a Igreja a repensar ou redefinir seu compromisso de evangelização junto à grande
maioria oprimida - interpelação que surge do testemunho de luta em prol de mais vida. Tudo a
partir de uma cristã que tem de específico" ... uma afirmação radical de que Deus não nos
mentiu quando nos assegurou - na ressurreição do Senhor e no anúncio do Reino - que a
Vitória da Vida sobre a Morte conta com a garantia total do Deus da Vida"
121
. São os pobres
que, ao anteciparem o futuro na - força mística e motivadora - encaram o presente numa
dinâmica de libertação.
119
G. GUTIÉRREZ. A força histórica dos pobres. p. 138-159.
120
Cf. P. RICHARD, Op. Cit., pp. 114-115.
121
Hugo ASSMANN, Perder o medo ao Deus da vida que se manifesta na libertação dos oprimidos. Apostila,
12-15/7: 3.
55
Assim, em meio à antivida que os circunda e penetra através de um sistema necrófilo,
isto é, regido por uma gica de morte, vão com certeza-na-esperança negando os deuses da
opressão (dominação, violência, etc.) e anunciando no caminhar o triunfo definitivo de Deus
em favor da vida, da justiça, da liberdade, da paz e da alegria
122
.
Esta experiência dos pobres, conseqüentemente, torna-se um potencial evangelizador,
constatação que foi (também) anunciada em Puebla, onde se afirmou: "O compromisso da
Igreja com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja
a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto estes a interpelam
constantemente, chamando-a à conversão, e porque muitos deles realizam em sua vida os
valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o
dom de Deus"
123
. É a igreja descobrindo o carisma evangelizador dos pobres. Eles não apenas
como os destinatários
124
privilegiados da Boa-nova, mas também os seus portadores.
A evangelização como experiência de Deus na história dos oprimidos vive um
confronto com a idolatria
125
, porque as raízes idolátricas da opressão, da falsa dimensão
"trascendente" e "sobrenatural" do sistema de dominação, devem ser destruídas ou negadas;
assim pode emergir o Deus dos pobres. "Esta libertadora desconcerta o dominador que
prefere não crer em sua existência e na capacidade reveladora de Deus em nossa história
122
Na vida ou nas práticas coletivas do povo, encontra-se, inegavelmente, esta consciência de justiça, de
solidariedade, etc. Não obstante, por viver na dependência das estruturas de opressão e da cultura dominante,
pode ocorrer entre ele uma vivência ambígua "mantendo bloqueado o dinamismo histórico da cristã para
libertação integral do homem e para a construção de uma sociedade de justiça e fraternidade", Cf. R. MUNHOZ,
Op. Cit., pp. 395.
123
Doc. De Puebla, nº. 1147 - (grifo nosso)
124
Cf. T. TABORDA. Cristianismo e ideologia - ensaios teológicos. p. 166-169.
125
Compreendemos a IDOLATRIA de acordo com V. Araya: "A idolatria é o culto aos deuses da opressão em
cujo nome se desumanizam os homens, se os despauperizam, se os morte. Por isto... são autênticos deuses da
morte que, como no caso do Deus Moloch, exigem a vida dos homens para subsistir (...) A idolatria não é,
portanto, a carência de no verdadeiro Deus, nem um lamentável erro noético ao invocar ou não a Deus,
ou uma incorreta categorização da experiência transcendental de Deus, senão que consiste em adorar a um falso
Deus que exige vítimas", Vitório ARAYA. El Dios de los pobres. p. 150.
56
concreta. Negando-a manifesta-se como aquilo que é: o insensato de que fala a Bíblia, o ateu
do Deus libertador"
126
.
É o pobre como sujeito da práxis libertadora que, vivendo um testemunho profético, é
força transformadora da história. Ele, nesse compromisso, “... subverte e evangeliza ao
mesmo tempo. Afirmar isto, longe de cairmos num triunfalismo iludido ou de levar-nos a
descansar num mecanicismo histórico superficial, nos mostra exigências e tarefas"
127
.
Esta atitude profética faz a graça brilhar numa realidade de desgraça - por um lado, o
pobre sente-se oprimido por toda a ordem de opressões e, por outro, vive anelos ardentes de
libertação. Por que não dizer que é "graça de Deus a invencível certeza de que estamos
gestando um novo tipo de sociedade mais digna dos homens e de Deus que nascerá das
contradições do presente, onde haverá maior participação de todos com todos e onde
florescerá mais liberdade e justiça?"
128
. É o anúncio de Boa-nova do Pai se dando no processo
da própria libertação. São os pobres se evangelizando e se libertando.
É claro que os portadores do anúncio do Reino são mediação privilegiada da presença
do Senhor entre os homens
129
; no que Cristo é amado e servido através da defesa dos filhos
marginalizados. Daí se pensar na experiência sacramental, porque "o sacramento significa a
culminância de todo um processo de conversão, de compromisso e de engajamento pela causa
renovadora e libertadora de Cristo"
130
, vale dizer, os sacramentos estão orientados para o
horizonte escatológico do Reino de Deus. Não podem limitar-se a edificar a comunidade
eclesial, mas devem antecipar o Reino; o que implica pensar numa sacramentalidade profética
eclesial que exerça um juízo crítico, sob a memória da cruz, contra toda a atitude social e
eclesial que se centralize em valores contrários ao Reino; por exemplo, a opção pela riqueza, a
126
G. GUTIÉRREZ, A irrupção do pobre na América Latina e as comunidades cristãs populares; in: VV.AA., A
igreja que surge da base. p. 195.
127
Ibid., p. 203.
128
Cf. L. BOFF. A graça libertadora do mundo. p. 99-111 - (p. 111 cit).
129
Cf. Alvaro QUIROZ MAGANÃ. Eclesiologia en la teologia de la libertación. p. 70
130
L. BOFF. Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos. p. 72.
57
ânsia do poder e da dominação. Devem por sua vez, anunciar a Boa-nova do Reino aos pobres
e oprimidos deste mundo, seguindo a experiência de Jesus. Logicamente, "esta dupla vertente
de denúncia ao anúncio não pode ser meramente verbal, mas deve ser sacramental, isto é,
simbólico-significativa, com gestos concretos que atualizam o que se diz. Isto faz parte da
estrutura de toda profecia bíblica: realiza o que diz, verifica o que significa, pratica o
anunciado"
131
. E ainda: são os que sofrem (os "bem-aventurados") que, na fé, buscam a Deus,
e vão descobrindo Deus e sua Graça nos gestos significativos da vida. Deve-se ressaltar o
seguinte: enquanto existirem majoritariamente as vítimas da opressão do homem pelo homem,
enquanto a grande maioria for farrapos humanos e restos dos apetites dos poderosos, o reino
da Vida não chegou. Mas, ao contrário, se estes espoliados estão conseguindo testemunhar a
solidariedade e a fraternidade, se ativamente recuperam a dignidade e defendem seus direitos
fundamentais - recriando a criação - então o reino começa a se manifestar.
3. A Instituição Eclesial e sua "Consciência Histórica Irreversível" em
Direção aos Pobres
Abordaremos, a seguir, o problema da opção da Igreja pelos pobres - experiência
eclesial que é humana e evangélica antes de ser questão ideológica, favorecendo a mudança
não do conteúdo discursivo, mas da consciência e do modo de ser Igreja
132
. Esta mudança,
que se processou dentro de uma evolução histórica, é a Igreja em cada momento procurando
131
V. CODINA, Pressupostos teológicos para uma pastoral sacramental, hoje; in: VV.AA., Os sacramentos
hoje: teologia pastoral. p. 19.
132
Vejamos a reflexão de C. PALÁCIO, A igreja na sociedade; in: Cristianismo e história.
"Tomada de consciência que é, ao mesmo tempo, experiência espiritual de um reencontro com o seu 'mistério'
original e decisão corajosa de redefinir, em coerência com ele, a sua identidade teológica e a sua missão na
sociedade. O que em termos concretos significa: aceitar sem reservas o novo lugar ao qual foi relegada na
sociedade pelo Estado moderno, renunciar a se compreender a partir do poder, impedir que as manipulações
ideológicas da aliança histórica entre cristianismo e 'civilização ocidental' paralisem a sua presença na
construção de uma nova sociedade a partir de perspectiva dos pobres, e aceitar o desafio de estar presente nela
sem renunciar à especificidade de sua função nem às exigências da liberdade evangélica.
"Esta metamorfose de consciência eclesial é significativa do ponto de vista teológico porque nela vem à tona e
chegam à existência de uma compreensão da essência da Igreja e da sua missão que não tem precedentes na
história", p. 325-326.
58
responder ao sujeito histórico que a interpela. Esta evolução tem raízes que remontam às
décadas anteriores, sendo que os anos da década de 1960 são a "cristalização, o ponto
culminante e o epílogo de uma etapa histórica, nova e original para a Igreja"
133
. Como
veremos, nos últimos anos houve uma identificação cada vez maior com os mais pobres: o
que se tornou possível pelo contato imediato e persistente com o sofrimento real da grande
maioria, nas suas manifestações múltiplas.
Como o Concílio Vaticano II foi (é) um marco milenar para a Igreja, procuraremos
compreendê-lo na sua índole pastoral e, conseqüentemente, seu significado para a Igreja
brasileira.
É um momento eclesial que procura responder ao sujeito e à realidade sócio-histórica
que interpela a Igreja
134
. Esta redefinição ocasiona uma ruptura com a realidade sócio-eclesial
anterior - pré-moderna - e entrada renovadora no mundo moderno - "essa positividade do
Concílio não pode ser perdida. É dado conquistado através de enorme luta e sofrimento. A
igreja pagara preço caro pela sua distância cultural em relação ao mundo moderno e às outras
demolições religiosas. Conseguiria com esforço hercúleo cobrir tal fosso. Qualquer retrocesso
nesse espírito de abertura e diálogo custará à Igreja o preço de não ser mais entendida e
compreendida, com enorme detrimento para a evangelização"
135
.
Como todo evento humano, o Concílio tem seus limites. Também tentaremos enfocar a
superação do Vaticano II, no sentido dialético
136
, por Medellín e Puebla, sempre tentando ver
a caminhada eclesial dentro da preocupação de assumir a opção pelos pobres. Antes, será
133
Ibid., p. 26-27.
134
Compreender a abertura da Igreja à nova realidade não é simples. Partiremos da seguinte compreensão: "A
partir da fé, encontramos na ação do Espírito Santo a sua última causa e explicação. Esse dado da Revelação tem
de ser afirmado logo no início. Sem essa atuação do Espírito, prometida por Jesus à sua Igreja, nunca sairíamos
do marasmo de nossa preguiça, de nossas infidelidades históricas. Por sua vez, o Espírito de Deus age nas e
através das mediações históricas (...) Em termos sociopolíticos, essa transformação da Igreja pela ação do
espírito Santo supõe mediações históricas, explicações ligadas ao contexto sociocultural", J. Batista LIBÂNIO.
Fé e política. p. 142.
135
Ibid., p. 150.
136
O sentido dialético tem a preocupação de assumir o Vaticano II em sua positividade, e, ao mesmo tempo,
ultrapassá-lo em seus limites.
59
abordado, suscintamente, o período pré-conciliar e o conciliar na Igreja brasileira, na intenção
de mostrar a fermentação eclesial que favorece compreender na e na prática as
determinações do Concílio Vaticano II.
3.1. Antecedentes Significativos - período pré-conciliar - para o Processo de
Redefinição da Igreja
É realidade constatável que o Concílio Vaticano II não surgiu por geração espontânea
e em terreno pouco propício às suas idéias, mas resultado de longo e frutuoso itinerário da
Igreja na tentativa de resposta ao mundo moderno - "sem a renovação teológica e pastoral que
o precedeu, o Concílio Vaticano II não poderia ter sido o que foi"
137
. Surgiram correntes de
idéias e movimentos no seio da Igreja que foram "decisivos" para a exigência de uma nova
atitude da Instituição eclesial frente ao mundo. O posicionamento não podia ser de pura
defesa da ortodoxia, mas de abertura por um diálogo com o mundo - preocupação
demonstrada por João XXIII
138
.
Encontram-se análises da Igreja brasileira no período conciliar que procuram destacar
uma reforma ao nível da Igreja-grande-instituição. Com isso, o clero é mais ilustrado na reta
doutrina, disciplina, não havendo um deslocamento social em direção aos pobres, nem
atingindo a estrutura de poder da Igreja. Apesar de revelar sensibilidade pelo problema social,
está ausente uma crítica ao sistema e uma consciência do nexo causal entre riqueza e pobreza.
Constata-se "que aqueles bispos que mais falam contra a ideologização da são os mais
ideologizados em função da presente ordem, mas não se dão conta de que seu discurso goza
de boa funcionalidade dentro do sistema: sistema que discrimina, elitiza, quando não
reprime"
139
.
137
Cf. Álvaro BARREIRO, A figura carismática de João XXIII e seu Programa Conciliar de "Aggiornamento;
in: Síntese, vol. II (1974), p. 21-40 - (cit. P. 22).
138
Cf. J. BATISTA LIBÂNIO, Os novos caminhos da igreja; in: Livro do ano de Abril, 1979, pp. 25-33.
139
Cf. L. BOFF. O caminhar da igreja com os oprimidos. p. 71-72 (nota - p. 72).
60
Não obstante, deve-se constatar, nesse período, o deslocamento de setores da Igreja
numa "aproximação" ao movimento das classes dominadas ou dos povos abandonados. De
uma defesa da estabilidade social, do "status quo" passa a sua crítica. Esse movimento
procede a partir de dois componentes que estão intimamente relacionados. São eles: um grupo
progressista do Episcopado e a Ação Católica Brasileira (ACB), principalmente os setores de
JUC, JOC e JEC - JAC e JIC com menos intensidade
140
.
Quanto ao episcopado progressista, vamos encontrá-lo orientando sua ação para a
transformação da sociedade. Faz "corpo" com a situação de miséria ao envolver-se no
processo social, ao ser interpelado pela ação dos dominados. Ao mesmo tempo, apóia as
forças sociais que trabalhavam no sentido da realização de transformações sociais
141
.
Também não podemos esquecer que a Igreja hierárquica, a partir da fundação da CNBB
-out/82 - modernizara suas estruturas e foi, conseqüentemente, importante em nível nacional.
Em relação - como exemplo - ao projeto desenvolvimentista da SUDENE
142
, a Igreja o
interpretara em outra dimensão social: como um compromisso com os pobres - os bispos
140
Cf. Luiz Gonzaga SOUZA LIMA, Op. Cit., pp. 30-51.
141
Ibid. - O autor apresenta três níveis de análise que são determinantes para a compreensão do comportamento
de episcopado progressista. Vejamos:
a. possível que a ação de certos setores do episcopado tenha sido determinada pela convicção da necessidade
primordial de resolver algumas situações concretas, criadas pela estrutura da sociedade, e que para serem
resolvidas exigiam correções nas próprias estruturas sociais. A descoberta dessas 'situações concretas' não
ocorreu por causa dos índices de miséria de nossa sociedade, nem da imagem degradada que a miséria atribui à
paisagem nacional (...) Nossa hipótese é que não foi a existência da miséria que estimulou esse comportamento,
mas a ação dos miseráveis, dentro de uma situação de conflito. O elemento mais significativo do envolvimento
de setores da hierarquia, e que atribuiu qualidade diferente a esta ação, pode não ter sido a necessidade de
ampliar ou defender o catolicismo, com a criação de zonas sociais protegidas do comunismo, mas o
envolvimento sincero (e evangélico) de alguns níveis da hierarquia, inclusive bispos (o grupo progressiva), com
um projeto novo, que vinha sendo apresentado embrionariamente pelas massas em movimento" (p. 32).
b. "Nossa hipótese é que a ação desse grupo foi determinada principalmente pelo seu envolvimento no
processo social e não pela sua ideologia, e que esta última foi elaborada em relação com este mesmo processo
(...) Constitui realmente um elemento importante e significativo o fato de... no processo de mobilização popular
no Brasil, encontrar-se na direção da CNBB um grupo de bispos progressistas, que concordava com e até
estimulava a participação dos católicos que se achavam plenamente envolvidos nos conflitos sociais e nas
mobilizações que aconteciam..." (p. 32-33).
c. "O conteúdo que caracterizava a ação dos setores progressistas da hierarquia, na sua tentativa de participar do
processo de transformações que se apresentava, foi sendo estabelecido sob a influência de duas condições
favoráveis: a) as inovações da doutrina social da Igreja, no plano universal; e b) a existência do
'desenvolvimento' como ideologia de aliança de classe no poder"(p. 33-34).
142
Na reunião de Campina Grande (21 a 26 de maio de 1956), a Igreja Hierárquica engaja-se oficialmente na
"operação Nordeste" do governo, de onde sairá a SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste), dirigida por Celso Furtado. É a Igreja passando do "conservantismo" para o "desenvolvimentismo".
Cf. P. RICHARD. Morte das cristandades e Nascimento da Igreja. p. 149-150.
61
"verificavam que no interior das estruturas econômicas e sociais, que formam a nossa
organização política e o nosso sistema de economia privada, terríveis injustiças que levam
a Igreja a declarar a sua inteira independência e a sua não-responsabilidade face a esse estado
de coisas. E, além do mais, dada a sua própria missão evangélica, a Igreja proclama não ter
nenhum laço com as situações injustas e coloca-se ao lado dos oprimidos, para com eles
cooperar em um trabalho de recuperação e redenção"
143
. Esta procura de redefinição não
impedirá que a Igreja institucional siga, nos anos de 1960, revelando uma certa desconfiança e
falta de apoio com relação às práticas dos movimentos da Igreja mais comprometidos com
uma pastoral ou uma reflexão que se preocupava com a injustiça social, os trabalhadores
urbanos ou rurais explorados.
“O compromisso tradicional da Igreja com a salvação universal em oposição à
salvação para os poucos escolhidos, desempenhou papel teológico central em
encorajar a Igreja a tentar atingir todas as classes sociais e indivíduos de diferentes
crenças políticas. Este esforço de atingir todos os indivíduos impõe um caráter
cauteloso à Igreja no (sentido)... de evitar extremos e mudanças radicais. A Igreja
tem consistentemente marginalizado movimentos que poderiam ameaçar sua
capacidade de atingir coerentemente pessoas de classes diferentes e com amplo
amálgama de crenças religiosas e políticas"
144
.
Outro ponto de referência fundamental - lembrado acima - para a análise da Igreja
brasileira é a presença da vanguarda leiga através da Ação Católica Brasileira (ACB). A ACB
foi o "setor do espaço social católico que maior responsabilidade assumiu na participação
ativa e transformadora dos católicos nas lutas das classes dominadas no Brasil, influenciando
e arrastando setores das instituições para apoiarem ou participarem naquelas lutas"
145
, sendo,
não obstante, que o engajamento da ACB foi possível porque as classes sociais estavam
vivendo um processo de mobilização no tecido social. Essa inserção e compromisso vão
possibilitar um novo clima teológico-pastoral, o qual favorecerá o surgimento de "fenômenos
eclesiológicos", como: a presença dos leigos cristãos nos mais variados setores da tessitura da
143
Marcio Moreira ALVES. A igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, pp. 177-178 - (grifo
nosso).
144
Scott MAINWARING, Igreja e política: anotações teóricas, in: Síntese: 27:37.
145
L. Gonzaga SOUZA LIMA, Op. Cit., p. 39.
62
realidade sócio-política, num compromisso - missão que visava uma nova ordem humana,
social e política. Esta missão se dava "principalmente" entre o setor pobre da sociedade (Ex.:
a classe operária).
Outro fenômeno é a experiência eclesial que foi possível fazer emergir, e que viria
contribuir para uma renovação eclesial
146
. Como se afirma, "A Ação Católica foi a grande
responsável pela renovação eclesiológica... e essa renovação veio desembocar no Concílio
Vaticano II"
147
. Contudo, os grupos de vanguarda da ACB - setores mais avançados em
termos de proposta sócio-política - fariam uma escolha por trabalharem por transformações
radicais na estrutura social. Por isso, a luta contra o "capitalismo subdesenvolvido brasileiro"
vai se transformar na orientação principal dos militantes, e que caracterizará a participação da
Ação Católica na realidade política brasileira. É fato notável que as diferenças entre as duas
componentes (grupo progressista na hierarquia e católicos organizados na ACB) se
transformariam em divergências profundas
148
.
Todavia, não se pode negar que, nesse período pré-conciliar, a ACB "foi a primeira
protagonista do deslocamento da Igreja e dos católicos brasileiros de suas tradicionais bases
sociais e, vista nessa perspectiva, é necessário constatar que influenciou profundamente toda a
instituição"
149
. Por outro lado, os "bispos avançados", mesmo em minoria em relação ao
episcopado brasileiro, o bloqueavam o engajamento dos militantes da ACB. Assim, ficou
146
Cf. Marcelo P. CARVALHEIRA, Momentos históricos e desdobramentos da ação católica brasileira, in:
REB, março/1983:10-28.
147
Ibid., p. 25.
148
"Essas divergências em relação ao grupo progressista se transformariam em antagonismos inconciliáveis em
relação à maioria do episcopado. O grupo progressista dentro da hierarquia, conseguia, com o exercício de sua
hegemonia, o apoio da Igreja para um programa de reformas em colaboração com governo e em aliança com os s
setores mais progressistas das classes dominantes, com o objetivo de propor soluções para algumas injustiças
sociais consideradas graves. É possível que a Igreja no seu conjunto desse o seu apoio, mas apenas o grupo mais
progressista atuava no sentido da realização das referidas reformas.
"Os grupos de vanguarda de ACB, ao contrário, se engajaram em uma perspectiva completamente
diversa. Propugnavam em favor de transformações radicais da estrutura social, que deveriam realizar-se com a
ascensão das massas ao controle do poder político, para suprimir as causas estruturais das injustiças: a ACB,
através dos setores mais avançados, faria uma escolha revolucionária", L.S. SOUZ LIMA, Op. Cit., p. 35.
149
Ibid., p. 36.
63
mais fácil a essa vanguarda leiga católica conquistar um espaço para uma participação social e
política dos cristãos.
A ACB vai conseguir uma estrutura organizacional, uma estratégia de ação mais eficaz
quando se re-estrutura visando para cada meio específico uma especialização - é a
implantação da Ação Católica especializada. Para compreensão dessa eficácia - no nível do
"fenômeno eclesiológico" - no Brasil, vamos demonstrar a caminhada da JOC e JUC nos anos
da década de 1960.
Através de um corajoso testemunho, a JOC vai ter uma importante função para
estimular uma mudança da Igreja
150
. Ela ajudará, antes de tudo, a Igreja a compreender e
aproximar-se das necessidades da classe trabalhadora. O posicionamento da JOC vai ser
encaminhado através de três importantes assembléias, organizadas por ela no Rio de Janeiro,
no ano de 1961: o II Congresso Mundial da JOC, o I Congresso Nacional de Jovens
Trabalhadores e o Congresso de Jovens Empregadas Domésticas, além do lançamento da
"campanha de consciência operária", que tinha dois objetivos: "O primeiro... despertar o meio
operário, e particularmente a juventude, para a gravidade dos problemas em que vivem:
salários insuficientes, sonegação do salário mínimo, desemprego, exploração no trabalho. O
segundo objetivo... despertar os trabalhadores para a vida das associações de sua classe:
sindicatos, cooperativas, clubes de bairros, etc."
151
.
Este novo momento histórico da JOC vai possibilitar uma abertura em relação à classe
operária; uma posição crítica frente ao capitalismo - "O capitalismo, nas suas conseqüências e
pela falta de respeito ao homem, é um mal tão condenável quanto o comunismo"
152
; críticas
ao modelo de desenvolvimento - "A corrida desenvolvimentista não significa necessariamente
a promoção do meio operário, muito pelo contrário, no Brasil tem feito mais pobres os pobres,
150
Iremos analisar a presença da JOC na realidade brasileira tendo como base o estudo: Scott MAINWARING,
A JOC e o surgimento da Igreja na base (1958-1970), in: REB, março, (1983): 29-92.
-Obs.: A citação de textos de documentos, boletins, etc. Será feita pelo recurso à mesma fonte.
151
Ibid,.p. 44 (ano 1961).
152
Ibid., p. 45 (texto do I
o
Congresso Nacional de Jovens Trabalhadores) (Rio, novembro, 1961).
64
e os ricos mais ricos"
153
; uma descoberta da importância da participação na luta da classe
operária. Não obstante, pode-se perceber - na análise dos documentos - que a visão política da
JOC está ainda numa perspectiva do desenvolvimento nacionalista. A crença de que o Estado
e as classes dominantes possam resolver a situação das classes trabalhadoras não é descartada.
E ainda: apesar de "certo moralismo religioso" - "O ambiente depravado, cético e descrente
dos locais de trabalho, fermentado pelas conversas, maus exemplos, escândalos, pornografia,
obsessão ao sexo, solicitações, revoltas, injustiças, ódio e intrigas, corrompe a juventude
trabalhadora"
154
; ligação estreita com a paróquia; nada de radicalização pastoral; começa a
surgir certa tensão com a Hierarquia. Conforme se afirma:
“... Os assistentes da JOC tornaram-se mais críticos da instituição, e se
transformaram num dos grupos mais importantes a impulsionar mudanças dentro da
Igreja.Os assistentes começaram a se dar conta de que a Igreja tinha se tornado
omissa em relação à classe operária... Num documento presciente (1961), um grupo
de assistentes da JOC concluía que a classe trabalhadora deixara a Igreja porque esta
não atendera a classe operária, porque o trabalhador vivia em condições subumanas
que não permitiam uma forte vida religiosa, porque o trabalhador identificava a
Igreja como força opressora, e por causa da falta de católicos na luta dos
trabalhadores. O documento concluía: Da parte da Igreja houve pecados de omissão:
a ausência da Igreja nos problemas e assuntos operários. O operariado desconhece
totalmente que a Igreja tem uma doutrina capaz de dar resposta aos seus
problemas"
155
.
Os conflitos entre a JOC e a Hierarquia ou a Igreja institucional não alcançaram a
mesma intensidade que em relação à JUC, embora a ocorrência de resistência em algumas
dioceses tenha acontecido de forma contundente. Acredita-se que os conflitos assumiram mais
a forma de ausência de apoio ou falta de diálogo
156
. Agindo isoladamente, bispos como Dom
153
Ibid.
154
Ibid.. p. 46 (texto da "Segunda Semana Nacional dos Assistentes", fev. 1959).
155
Ibid., p. 47 (O documento lembrado é do "Encontro da Pastoral Operária", 9 a 12 de janeiro de 1961).
- Os padres da JOC afirmaram em 1963: "Se a Igreja do Brasil não se voltar para os problemas dos trabalhadores
e suas pessoas e não fizer um esforço gigantesco mesmo para sair do abismo que a separa da massa operária, se
não superar o divórcio entre a atual pastoral e a realidade de vida do nosso povo e especialmente dos
trabalhadores, ela estará faltando na sua missão: evangelizar os pobres", (p. 54).
156
Ibid. - "O problema (da terra) era mais de falta de diálogo do que de repressão institucional contra a JOC. Esta
escapou do ataque da instituição nos dois momentos em que ele seria mais provável: em 1966, quando a
hierarquia fechou a Ação Católica, e em 1969, quando ao Governo fez opressão sobre os bispos para que
usassem de represália contra a JOC", (p. 73-74). Procurando mostrar a tensão, ruptura entre a Hierarquia e a AC
na nossa realidade, o historiador E. Hoornaert afirma: "mesmo remodelando a pastoral da Igreja Católica de
forma tão ampla e profunda, os intelectuais da AC e grupos afins não conseguiram a hegemonia no corpo social
católico, sobretudo porque o Episcopado da década de 1960 não estava em condições de dar o devido respaldo
65
Tomás Balduíno, Dom Hélder Câmara, Dom Geraldo Padim, Dom Valdir Calheiros puseram-
se em defesa da JOC.
Por fim, apesar do caráter elitista, a atitude negativa diante da religiosidade popular, o
pequeno vínculo com a Igreja institucional, sua preocupação de que os membros tivessem
uma consciência altamente desenvolvida, a JOC procurou: ligar a ação na sociedade e a fé;
conseguir uma identificação cada vez melhor com a classe trabalhadora; deslegitimar a
injustiça e a miséria. Esta experiência dos jocistas contribuiu para despertar a Igreja para um
compromisso mais responsável com os pobres, ou seja, o compromisso da JOC exerceu um
"papel importante em levar a Igreja a se envolver no ciclo repressivo. Conseqüentemente - e
ironicamente - o processo que quase provocou a extinção da JOC simultaneamente ajudou a
trazer viva dentro da Igreja a mensagem da JOC"
157
.
Também a organização dos universitários católicos através da JUC vai, inevitavelmente,
ajudar a desencadear o processo do compromisso da Igreja na defesa dos pobres. A JUC teria
nascido num primeiro momento (após a etapa preparatória - 1943/1950 - encontramos essa
etapa do primeiro momento - 1950/1958 - Quando se a organização, expansão) com o
firme propósito de representar a Igreja no meio universitário, em oposição ao mundo moderno
e procurando restaurar a ordem desejada por Deus. Num segundo momento - 1959/1967 - a
JUC pretende restabelecer uma "nova cristandade profana cristã às estruturas anticristãs - é
quando procura escapar às categorias tradicionais de uma reflexão teológica e de um
aos posicionamentos dos militantes da AC e outros grupos diante da nova situação criada pelo golpe militar de
1964. O episcopado passou a 'torpedear' a experiência da JUC e retirou seu apoio efetivo a outros grupos que
assumiam o mesmo posicionamento de crítica a ditadura militar. Muitos militantes abandonaram a Igreja,
amargurados e revoltados. Outros continuaram a luta em campo muito menos protegidos e foram exilados,
perseguidos, torturados. Os efeitos desses episódios perduram ahoje e a experiência de desencanto ainda vive
na memória de muitos. um aspecto da questão que certamente pesou na recusa da Hierarquia: o da pouca ou
até nenhuma organicidade dos movimentos da AC com a cultura popular. Os movimentos lutaram certo pela
libertação do povo e analisaram, corretamente os condicionamento econômicos, sociais e políticos da questão da
libertação popular, mas eles demostravam pouca ou até nenhuma aderência à cultura popular propriamente dita,
uma cultura feita de devoções e rezas, promessas e romarias. Os militantes da AC desprezavam estas práticas
populares quando não as combatiam e ridicularizavam abertamente, taxando-as de alienações' ". Eduardo
HOORNAERT, Os três fatores da nova hegemonia dentro da Igreja Católica no Brasil: fatos e perspectivas, in:
REB, 46, jun (1986): 374.
157
Scott MAINWARING, Op. Cit., p. 92.
66
compromisso político a partir de uma ideologia moderada - o que fornecerá uma tensão com a
Hierarquia e uma perda crescente de "identidade" eclesial
158
.
A "ação missionária" dos jucistas vai procurar a superação do dualismo espiritual-
temporal, engajamento-espiritualidade; - "O homem é um ser chamado à santidade, mas
sempre numa história... o santo é o cristão engajado. A santidade não pode jamais ser
compreendida como uma evasão"
159
; ser cristão no Brasil de hoje é tomar cada vez mais
consciência da nossa missão profética, procurando, junto com o povo, junto com os homens
reais, concretos, que constituem o povo brasileiro, uma solução para os nossos problemas"
160
.
Não resta dúvida de que a reflexão teológica posterior ( TdL) retomará pontos
interpretativos da Bíblia, da Cristologia, da Eclesiologia, etc., da reflexão feita no meio
jucista.
Também vai surgir o "Ideal Histórico" da JUC, com o anseio de descobrir uma linha de
ação total, a partir de uma síntese Homem-temporal-espiritual
161
. E está clara a exigência pela
superação do capitalismo. Revelam-se os problemas do capitalismo ao mencionar:
“... algumas alienações da pessoa humana contidas no repertório da situação capitalista concreta: redução
do trabalho humano à categoria de mercadoria; ditadura da propriedade privada, não submetida as
exigências do bem comum; abuso do poder econômico; concorrência desenfreada, de um lado e práticas
monopolísticas de toda a sorte, de outro; motivação central no espírito de lucro; criação e sustentação da
condição proletária, etc.”
162
.
Quanto ao relacionamento entre JUC e Hierarquia, pode-se dizer que em 1961 existe
uma deterioração. Surgem vários pontos de divergências quando os bispos não compreendem
158
Cf. Luiz A Gómez de SOUZA. A JUC: os estudantes católicos e a política.
Cf. José Oscar BEOZZO. Cristão na universidade e na política. Obs.: Os textos dos documentos utilizados em
nosso trabalho foram retirados da obra de L. A. Gómez de Souza.
O livro de BEOZZO apresenta um quadro histórico de JUC muito bom.
159
Luiz SENA, "O homem, imagem de Deus e construção do mundo", in: Boletim Nacional, n. 3, 1965; cit. De
L.A.C. de Souza, Op. Cit., p. 218.
160
JUC, "Ser cristão no mundo, ser cristão no Brasil de hoje", in: Boletim Nacional, n. 4, junho de 1966 cit. de
L.A.C. de SOUZA, Op. Cit., p. 218.
161
Cf. L.A. Gómez de SOUZA, Op., cit., p. 159-165.
162
Ibid., p. 161. O autor também cita o encontro dos 10 anos da JUC: "A JUC de amanhã será a resposta a esta
conversão que se opera em nossos dias..., ela será o Brasil capitalista e deverá lutar; verá o Brasil sem Deus e
deverá mostrar ao brasileiro que Deus não é mito nem desculpa do fracasso, mas é resposta real, encarnada, do
Amor...” (p. 165).
67
o trabalho dos assistentes e membros da JUC, ou seja, o curto-circuito da comunicação entre a
Hierarquia e a JUC se dá em dois níveis
163
: 1) "Nível dos valores" - alguns valores assumidos
pelos jucistas, como, por exemplo, o socialismo, o trabalho com as Ligas Camponesas, a
presença no Movimento de Cultura Popular, etc.
164
; 2) "Nível da estrutura do movimento" -
no momento em que a atividade dos jucistas se desloca para o temporal numa tendência de
agir com independência em relação à autoridade religiosa; como militantes, no engajamento
pessoal, e com o Movimento.
Alguns assistentes se posicionaram na defesa da JUC: Frei Romeu Dale, Dom Cândido
Padim, Dom Hélder mara e outros. Para demonstrar o posicionamento dos defensores,
vejamos as transcrições - trechos - de escritos, pronunciamentos dos mesmos:
a) Frei Romeu
“... a JUC está conseguindo despertar os seus militantes e dirigentes, de maneira
orgânica, para a dimensão social do catolicismo. E de um modo bastante vigoroso.
Por outro lado, a equipe nacional, tomando consciência mais viva da importância e
da urgência da ação política, achou que devia estimular os seus dirigentes, e
militantes a uma ação sistemática e coordenada no plano da militância política
estudantil, desde que para isso se sentissem com gosto e aptidões.Visando mesmo a
ocupar os cargos políticos do meio estudantil, e a própria UNE"
165
.
b) Dom Cândido Padim:
“Vejo um paradoxo no fato, de um lado, de se exigir a sacralização do temporal e,
doutro lado, de se impedir aos leigos esta tarefa... Não vejo, pois, possibilidade de
uma linha certa da AC se os bispos pretendem que os membros da AC se abstenham
de uma atuação na ordem temporal
166
”.
c) Dom Hélder:
Como Assitente Geral da ACB e Secretário Geral da CNBB envia uma nota
reservada com informações objetivas sobre a JUC e seu Congresso do 10º
aniversário. Dom Hélder pede "apoio e estímulo" do episcopado; comenta dos
rumores de "influência marxista" na doutrina jucista; e adaptação da doutrina social
da Igreja no "Ideal histórico";
167
.
163
Cf. 3. BEOZZO, Op. Cit., p. 94.
164
Cf. Ibid., p. 95-96.
165
Luiz A Gómez de SOUZA, Op.Cit., p. 185-186.
166
Ibid.,. p. 188.
167
Ibid.,. p. 168-170 - O autor transcreve longos trechos da nota.
68
... a JUC, longe de estar exorbitando ao tentar o esforço que vem tentando, está
vivendo uma hora plena e merece o apoio e estímulo do Exmo. Episcopado; ... que
não é de espantar que, ao se reunirem mais de 500 jovens, de mais de 50 centros
universitário..., aqui e ali, alguma expressão oral ou até escrita se ressinta de
imprecisão doutrinária ou se revista de excessiva audácia...
168
.
Apesar de todo o esforço pelo apaziguamento da relação do Episcopado com a JUC, a
tensão-crise prosseguirá - é o que demonstra o relatório do 14
º
Congresso Nacional da JUC:
No momento em que o militante opta por qualquer ideologia, ele faz essa escolha
sob sua inteira responsabilidade, sem comprometer nem o movimento, nem a
Hierarquia, nem a Igreja. Ele gostaria somente de poder contar com o engajamento
dos bispos junto à Justiça, reconhecendo a situação vivida pelo militante no dia em
que, por causa de sua luta, sofrer perseguições e prisão sem possibilidade de assumir
sua própria defesa. Esse engajamento, além disso, não é um privilégio devido ao fato
de que ele é católico ou de que pertence a um movimento da Igreja, mas porque
todos aqueles, católicos ou não, que procuram a justiça e sofrem perseguição por
causa dela, têm direito à solidariedade da Igreja
169
.
Diferente da JOC, o movimento da JUC prossegue num processo de tensão até
desaparecer. Seria simplificar demais se se entende a crise, após 1960, como devida apenas à
tensão com o episcopado. Apesar de tudo, diríamos que a JUC possibilitou uma experiência
dos cristãos na universidade e na política que "revolucionou" a concepção na maneira de
testemunhar o Evangelho dentro da sociedade. Este testemunho também veio contribuir para
que surgisse um novo momento para a Igreja, quando agentes de ão pastoral deixam um
trabalho com os setores das classes médias para se comprometerem com as classes populares.
Sem uma visão desse processo de redefinição do "lugar social", não se compreenderá a
"opção pelos pobres" feita pela Igreja na realidade brasileira.
Outro movimento com a presença massiva dos leigos, para o qual também caberia
destaque, é o da Ação Popular (AP)
170
.
168
Ibid., p. 169-170.
169
Ibid., p. 220.
170
L. G. S. LIMA, Op. Cit., pp. 43-51.
Cf. J. O BEOZZO. Cristãos na universidade e na política. p. 104-132.
O livro de J. O, BEOZZO, ao comentar o nascimento de A P., afirma:
"A Ação Popular é um pouco fruto da convergência de três preocupações ou de três correntes, nascidas de
problemas diferentes, embora aparentados. São aparentados no sentido de que se trata de intelectuais ou de
estudantes que entraram numa fase de grande abertura para os problemas da sociedade, intelectuais e estudantes
que não se contentavam mais com a contemplação ou com o estudo científico e desinteressado dessa mesma
69
A AP propunha o engajamento político dos cristãos no processo de transformação das
estruturas sociais. E mais. através de uma análise globalizante pode-se compreender os
cristãos como sujeitos no processo de transformação social. Quanto ao movimento da AP não
se pode esquecer o abandono de perspectiva católica geral, que até então indicava uma
contaminação mais ou menos acusada pela ótica da "Ordem". No compromisso sócio-político
sobrelevou-se o aspecto de opção pura que tinha a sua militância, eximindo-se a toda
retomada de investigação ou análise das teses de desenvolvimento. Tal não lhe retirou,
entretanto, a sua riqueza específica, que foi a de ter, ao crivo de uma participação autêntica,
incorporado determinados temas de uma cogitação cristã geral à problemática brasileira de
hoje. a falar, neste sentido, a contribuição legitimamente praxística daquele movimento
para o processo nacional. Dele pôde a ação de esquerda católica retirar a sua primeira
manifestação de efetiva originalidade
171
.
A AP nasceu numa fase histórica em que se acumulam ameaças de interrupção do
processo de desenvolvimento e da crescente consciência de que seria preciso passar para uma
etapa nova, mais ou menos em ruptura com a presente. Esta "visão ideológica" coloca um
desafio para o movimento ou para os cristãos que militam nele, porque não poderiam aceitar
uma Igreja inserida e comprometida com o "status quo" e pouco testemunhal de sua doutrina
social - apesar da repugnância dos dirigentes da AP e toda classificação confessional.
Contudo, a orientação por um compromisso pela libertação do capitalismo, por uma
consciência histórica humanizadora, etc., possibilita uma experiência exemplar e
interpeladora para os cristãos. Com isso, acreditamos que a AP também contribui para a nova
consciência que emergia na Igreja.
realidade, mas que se encontravam, em sua maioria, engajados numa ação social, política ou educacional. Um
terceiro ponto de contato, além do status de intelectual e do desejo de ação eficaz sobre as estruturas do país,
eram as raízes cristãs e evangélicas de sua preocupação, mesmo se o grupo se mostrasse aberto e em diálogo
com outros movimentos e ideologias que estavam agindo no mesmo sentido de transformação da sociedade" (pp.
104-105).
171
Cândido MENDES. Memento dos vivos; a esquerda católica no Brasil. p. 69.
70
Também para se Ter uma análise mais global da redefinição da Igreja, não se pode
esquecer outros movimentos que também contribuíram nesse processo de deslocamento -
como exemplo: Movimento por um Mundo Melhor (MMM) e o Movimento de Natal
172
.
O MMM
173
exerceu muita influência na renovação da Igreja, por meio da atualização do
clero e da agilização da atividade pastoral, preparando, através de sua influência, o terreno
para as suas experiências pastorais inovadoras e pioneiras que se realizaram nos anos de 1960.
Apregoou uma visão teológica que favoreceu uma espiritualidade aberta e uma vivência
através do amor fraternal. Além disso, favoreceu um forte sentido histórico-social à ação
pastoral
174
. Quanto ao Movimento de Natal, encontra-se um projeto que tinha como
preocupação três grandes objetivos: a educação de base, a transformação global das estruturas
políticas, sociais e econômicas e a educação religiosa das populações carentes
175
.
Esse trabalho da Igreja não transcorreu sem conflito. Sabe-se que no processo de
sindicalização rural, uma série de conflitos veio à tona, principalmente com a elite do poder
(coronéis do interior, proprietários rurais e deputados). A Igreja é responsabilizada pela
atuação dos sindicatos - "O engajamento da Igreja nas zonas rurais passou a ser visto à mesma
172
Além desses movimentos, temos ainda: a "Experiência de Catequese Popular de Barra do Pirai", a
"Experiência Pastoral de Nízia Floresta", e o "Movimento de Educação de Base" (MEB). Para aprofundamento
destes movimentos pode-se consultar: F. L. Couto TEIXEIRA, Comunidade eclesial de base: elementos
explicativos de sua gênese. Dissertação de Mestrado. (mimeo.).
173
O nascimento deste movimento deve-se ao empenho de Pio XII. Confiou-se ao padre Ricardo Lombardi, S.J.
a missão de divulgar o movimento e a execução do plano de renovação cristã. O MMM caracteriza-se pela
necessidade de adaptação da pastoral da Igreja aos desafios do presente.
No Brasil, o momento forte de sua implantação se dá por ocasião do VII Congresso Eucarístico Nacional -
Curitiba, 1960. O episcopado deu sempre apoio e incentivo ao MMM. O Movimento foi praticamente
oficializado por ocasião do Plano de Emergência (1962), na 5
a
Assembléia da CNBB.
174
Cf. F. DIDONET, "Movimento por um mundo melhor", in: REB 21 (1961).
175
O Movimento de Natal pode ser caracterizado como sendo o conjunto de atividades sociais e religiosas
implementadas na Diocese de Natal a partir de 1948. É a partir daí que a Igreja, num trabalho sistemático,
combate a miséria e o subdesenvolvimento do Nordeste. Quanto aos objetivos do Movimento de Natal, afirma-
se: "O Movimento de Natal não visa outra coisa senão sanar todos esses males pela raiz comum: a falta de
preparo para enfrentar as situações concretas da nação. O lema: 'educar para mudar' encerra todo um vasto
programa: levar às populações um mínimo de conhecimento, de capacidade de julgar, de técnicas, de conduta de
bem estar, que as tronem aptas a superar-se e promover-se. E para tanto se impõe um programa extensivo de
alfabetização, educação sanitária, iniciação profissional, especialmente agrícola, desenvolvimento de
comunidade, cultura pessoal. Como segundo objetivo, o movimento preconiza uma mudança global das
estruturas políticas, sociais e econômicas; mudança que deverá ser alcançada pela formação de uma consciência
crítica, para desencadear um processo de conscientização e assim obter a construção de uma nova sociedade.
Como terceiro grande objetivo o movimento visa um esforço vigoroso de levar Deus a essas populações
abandonadas", REB, fasc. 3 set. 1963, p. 782.
71
luz em que eram vistos os agitadores comunistas que procuravam provocar a revolução
violenta. Os militantes, mesmo do clero, sofreram maior perseguição do que os próprios
comunistas. Em primeiro lugar, eram, na maior parte, sinceros e ingênuos, e, em segundo,
eram considerados, pelos militares e pelos donos de terra, como heréticos que usavam o nome
e o prestígio tradicional da Igreja para procurar coisas que ficavam bem a um anti-Cristo"
176
.
Os respectivos movimentos contribuíram para a superação de uma visão fatalista da
história e passaram a dar ênfase aos problemas sociais e econômicos como causadores da
situação de desenvolvimento, rejeitando, assim, qualquer situação de miséria.
3.2. A Presença da Igreja Brasileira no Período Conciliar
Esse período é assaz complexo quanto ao posicionamento da Igreja. Encontra-se, num
primeiro momento, a "Igreja-grande-Instituição" se posicionando durante da realidade de
subdesenvolvimento. Para isso, a Igreja vai lançar os Planos de Pastoral da CNBB, a partir de
1962,os quais proporcionam um esforço de planificação da pastoral.
Na preocupação de responder melhor ao momento histórico, surge o Plano de
Emergência (PE) com seu intento renovador
177
. Quanto aos traços significativos do PE
podemos apontar a atualização da paróquia, a renovação da diocese, a valorização da Igreja
particular, a valorização do leigo, o esforço de planificação pastoral, etc.
178
. Não resta dúvida
de que a Igreja sofreu um renovado dinamismo nas estruturas de pastoral e ampliação de seu
campo de ação com o PE.
O PE "preparou terreno para as amplas reformas do Concílio Vaticano II, atingindo,
portanto, o objetivo principal, que era um despertar generalizado na Igreja do Brasil, para
renovar-se em profundidade"
179
. Também é importante ressaltar que os bispos têm o
176
Thomas BRUNEAU. O catolicismo brasileiro em época de transição. p. 179.
177
Decisão da 5
a
Assembléia da CNBB, realizada em abril de 1962.
178
Cf. G. F. QUEIROCA. CNBB: comunhão e corresponsabilidade. p.89.
179
Cf. Ibid., p. 372.
72
liberalismo econômico, entre outros, como inimigo
180
. declarações do episcopado que são
verdadeiros posicionamentos de preocupação com os empobrecidos, como esta: "... ninguém
desconhece o clamor das massas que, martirizadas pelo espectro de fome, vão chegando, aqui
e acolá, às raias do desespero"
181
; ou, "... chega de promessas e de demagogia. Até hoje não se
faz nada de expressivo pelo meio rural. Queremos, de imediato, a reforma agrária"
182
.
No período anterior ao "golpe de 1964", é importante destacar o PE (abril de 1962) e a
"Declaração" (30 de abril de 1963), para se compreender a orientação da "Igreja-grande-
Instituição". Esses dois documentos, "que poderiam ser tomados como termo ad quem da
evolução da Igreja brasileira antes do golpe de Estado de 1964 e como termo a quo para a
análise de evolução posterior", apresentam "três características fundamentais da Igreja da
nova cristandade desenvolvimentista:
1
º
- A Igreja toma consciência do caráter inumano do sistema capitalista. Esses
documentos dão prova de uma notável capacidade de análise econômica, social e cultural do
povo;
2
º
- A Igreja opta deliberadamente pelas reformas de base necessárias a fim de mudar
esse caráter inumano do sistema capitalista (...);
3
º
- Quando a Igreja toma consciência do caráter inumano do capitalismo, e opta pelas
reformas radicais necessárias para mudar essa situação, ela define, também, simultaneamente,
os limites de seu engajamento social e político. A definição desses limites não se exprime,
180
"Ao terminar a V Assembléia Ordinária da CNBB (2-5 de abril de 1962), publicou-se uma declaração
conjunta, em que os bispos tomam posição diante de 'toda essa fermentação social e econômica que caracteriza a
nossa época e oferece pretextos aos semeadores de falsas doutrinas'. Tinham recebido uma carta do Papa João
XXXIII, dirigida ao Episcopado da América Latina, alertando-os para os 'múltiplos problemas de caráter civil,
social e econômico, que neste momento angustiam os governantes das (suas) Nações e que tanto reclamam a
atenção dos homens responsáveis pelos destinos da Humanidade'. Incita-os a difundir a doutrina cristã sobre os
problemas sociais e a estimular os fiéis a realizá-las, e assim não darão azo aos inimigos da Igreja para acusá-la
de que não se preocupa com as necessidades temporais dos homens. Dentro desse contexto (...) os bispos
sentiram-se obrigados a uma tomada de posição. Elegem rapidamente os grandes inimigos, contra os quais
querem levantar a voz: o comunismo ateu, o divórcio, o laicismo, o liberalismo econômico. Com isso, tomam a
clássica eqüidistância do sistema que erige o lucro e o egoísmo..." J.B. LIBÂNIO, Fé e política, pp. 129-130.
181
Declaração da Comissão Central da CNBB, 14 de julho de 1962, cit. de J.B. LIBÂNIO, Op. Cit., p. 130.
182
Esta declaração está ligada a I
a
Semana Rural de Minas e Espírito Santo (15 de fevereiro de 1963), promovida
pelo Secretariado Regional Leste II da CNBB - cf. REB, 23, 1963: 221.
73
entretanto, em termos teológicos coerentes com sua natureza eclesial específica, mas em
termos políticos próprios do projeto da nova cristandade"
183
.
Podemos afirmar que no início da década de 1960 a Igreja, por meio de seu órgão
oficial - a CNBB - procurou assumir posições críticas ao não compactuar com a conjuntura
sócio-econômica e política; mas foi crítica à tendência esquerdizante do governo e de todo um
movimento ideológico. Assim, a Igreja acaba colocando limites políticos a sua opção pelas
reformas radicais na luta contra o caráter inumano do sistema capitalista. Não obstante, os
dois documentos lembrados não se destacam como os mais avançados deste momento
conciliar, mas são indicadores de uma mudança.
com o "golpe de 1964", o posicionamento do episcopado, ou melhor, da Igreja, vai
mudar. Na fase anterior, a Igreja teve oportunidade de dominar suas contradições internas, na
medida em que podia colaborar com o Estado que realizava reformas sociais e, na medida em
que, devido à sua abertura para os problemas sociais e políticos, ela procurava orientar e
conduzir as aspirações de mudança social e política da hierarquia e dos leigos politizados e
conscientizados. Com o golpe, a hierarquia defronta-se com uma alternativa: "ou ela se
submete inteiramente ao governo militar e perde toda possibilidade de relação com sua base
social popular e seus militantes mais politizados ou, pelo contrário, identifica-se com as
aspirações sociais e políticas da sua base popular e defronta-se radicalmente com a ditadura,
correndo, então, o risco de sofrer uma repressão sistemática e generalizada que poderia
significar a destruição de toda a institucionalidade social e política da nova cristandade e até a
destruição na instituição eclesiástica"
184
.
Diante desta conjuntura, a Igreja vive um compromisso complexo e ambíguo. De um
lado, procura reconhecer o papel das forças Armadas, atendendo à geral e angustiosa
183
Pablo RICHARD. Morte das cristandades e nascimento da igreja. p. 160.
184
Ibid., pp. 165-166.
Obs.: Quanto à afirmação do autor deixamos aqui nossa pergunta: o que se entende por "destruição da Instituição
Eclesiástica"? um risco de interpretar e concluir a respeito da Instituição Eclesiástica quando se parte apenas
de uma visão (Ex.: sociológica).
74
expectativa do povo brasileiro de que não se instaure aqui o regime bolchevista. De outro, não
aceita acusações injuriosas e generalizadas à hierarquia e leigos. No fundo, a Igreja procurará
manter uma posição de equilíbrio, procurando combinar a não-ruptura com o Estado e a não-
ruptura com a sua base popular. Fica "dilacerada interiormente" entre a exigência da ordem e
da justiça
185
.
A falta de liberdade política impedindo, assim, a organização de canais alternativos de
participação da população em defesa de seus interesses, leva a Igreja, cada vez mais, a
assumir a causa dos marginalizados. É um compromisso que a Igreja intensifica ao se
defrontar com um novo contexto social e político que exclui a grande maioria de ter os
direitos fundamentais respeitados. Para chegar ao posicionamento de defesa da causa dos
empobrecidos, a Igreja teve que evoluir efetuando várias mudanças. Vejamos: "A Igreja passa
do conservantismo em luta defensiva contra o liberalismo, o positivismo (...) para uma Igreja
em luta ofensiva contra o subdesenvolvimento; de uma Igreja fechada no círculo estreito das
elites oligárquicas para uma Igreja aberta às camadas médias e às classes populares; de uma
Igreja absorvida pelos problemas familiares, educacionais e pelas práticas devocionais, para
uma Igreja preocupada com os problemas social e político; de uma Igreja europeizada e
romanizada, estranha à realidade nacional brasileira, à cultura e à religião popular, para uma
Igreja que busca sua identidade a partir da realidade nacional e das maiorias populares; do
triunfalismo exterior e formal das organizações eclesiásticas, das manifestações de massa e do
sacramentalismo, para uma Igreja pastoral, comunitária e educadora de militantes cristãos"
186
.
185
"Sem ceder e calar-se totalmente, procura cultivar atitude conciliatória, através de negociação com o
Governo. Em alguns casos, serviu mesmo de intermediária, como em relação à movimentação dos estudantes e
dos operários: dois setores da vida nacional onde o Governo encontra área de atrito. A Igreja, seja através de
declarações, seja através de medidas tomadas por membros qualificados, torna-se porta-voz público de
reivindicações desses setores da sociedade. No Nordeste, onde as tensões são maiores, os bispos chamam
freqüentemente a atenção para o 'período de tensões, de violência e sobressaltos' em que vive. Em outro
momento, apoiam o Manifesto da Ação Católica Operária provocando violenta reação do Governo e das forças
reacionárias, sobretudo através do Jornal do Comércio", J. B. LIBÂNIO, Op., Cit , pp. 131-132.
186
P. RICHARD, Op. Cit., pp. 163-164.
75
3.3. O Vaticano II e o Movimento da Mística da Pobreza na Igreja
As determinações do Concílio Vaticano II não vieram interromper o caminho da Igreja,
mas reforçar um compromisso social dela marcado por circunstâncias muito determinadas.
Este espírito suscitou uma mística de compromisso junto aos oprimidos, contribuindo para
que crescesse a inserção no mundo - o Concílio definiu enfaticamente que a Igreja deveria
estar a serviço do mundo
187
. Para a Igreja brasileira, a abertura "para o mundo moderno,
sobretudo através da magnífica Constituição Pastoral Gaudium et Spes, assume relevância
ainda maior porque está na origem de um processo que avança em Medellín e Puebla"
188
.
Se a Igreja brasileira encontra seu caminho de penetração no mundo dos pobres - de
maneira "decidida" - após o Vaticano II, é preciso ressaltar como a problemática do pobre
ventilou no Concílio. É um risco querer compreender a "opção pelos pobres" da Igreja no
Brasil desvinculada de um processo evolutivo que recebe influências desse evento (Vat. II)
que influenciou a presença da Igreja em todo o mundo
189
.
187
Cf. 3. COMBLIN, La iglesia latino-americana desde el Vaticano II, in: Contacto, 15,1978, n
o
1, pp. 9-21.
188
J. B. LIBÂNIO, Op. Cit., p. 147. - O autor comenta, ainda, sobre a nova compreensão do mundo que encontra
no Vaticano II. Vejamos: "Até então a concepção de mundo na literatura teológica tradicional vinha marcada por
conotação negativa, aplicando ao mundo material e ao dos homens traços da compreensão joanina do mundo,
expressão das forças opostas ao Reino de Deus. Some-se a isso a influência filosófica neoplatônica, gnóstica,
maniqueísta, da negatividade da matéria. No sentido positivo, o mundo era visto como algo puramente objetivo,
dado ao homem como obra de Deus a ser contemplada e admirada, conduzindo-o até Ele. O aspecto cosmológico
predominava. Buscava-se decifrar as significações objetivas que o mundo apresentava, com a primordial
preocupação de encontrar nele elementos para estabelecer a prova da existência de Deus. O homem situava-se
diante do mundo, defronte de algo de consistência própria e independente do homem.
"A viragem do Vaticano II caracteriza-se por uma consideração antropológica, histórica e teológico-salvífica do
mundo. Pois de fato esse (o) novo sujeito social moderno situa-se diante do mundo como campo de sua razão
conquistadora e transformadora através, sobretudo, da ciência e da técnica. É um mundo dos homens, da família
humana. A sua materialidade passa pela ótica da condição e vocação do homem. Assim o aspecto cosmológico
integra-se numa perspectiva antropológica (...)
Intimamente ligada com a característica antropológica do mundo está a concepção de história. O mundo surge
como teatro da história dos homens. O homem é o ator principal, que marca a realidade com suas vitórias e
derrotas. Sujeito da história configura, transforma, humaniza o mundo. Palco da história e objeto terminal da
ação humana. A Gaudium et Spes esposa essa visão de mundo da consciência moderna, otimista, transpondo-a
em clave histótica-salvífica" (p. 147-148).
189
Afirma A. Barreiro: "A renovação da Igreja na América Latina seria simplesmente impensável sem o
Vaticano II. 'Na América Latina, o Vaticano II teve o efeito de um terremoto'. Mas foi um terremoto salutar. A
partir de meados da década de 1960 houve na América Latina uma extraordinária divulgação, extensiva e
intensiva dos grandes temas conciliares, através de inúmeras reuniões, semanas de estudos, cursos de atualização
teológica e pastoral, etc. (...)
"... Quando terminada a assembléia conciliar, os bispos latino-americanos voltaram para suas Igrejas locais e,
com os pés fincados na realidade delas, procuraram discernir os 'sinais dos tempos', como nos documentos do
Vaticano II por eles assinados exortam, perceberam que o problema fundamental que estava na raiz da situação
76
No Concílio Vaticano II percebe-se o emergir de uma Igreja missionária, peregrina, que
vive entre "criaturas que geram e sofrem" (LG, n.48); que instrui os fiéis no amor, sobretudo
os pobres, doentes e perseguidos por amor da justiça (LG, n.54); que afirma que as alegrias e
esperanças dos discípulos são as mesmas dos homens de hoje, sobretudo das dos pobres e dos
que sofrem (GS, n.1); que defronta com habitantes que padecem pela fome, miséria,
analfabetismo, escravidão social e psíquica (GS, n.4); que desperta para a discrepância,
distância entre as nações ricas e as pobres (GS, n.8 e 9); que não descuida da promoção do
Bem comum, do respeito para com a pessoa humana, da justiça social (GS, n. 26, 27, 29); que
continua unida à Tradição dos Padres - "Alimenta a quem está morrendo de fome, porque, se
não o nutriste, mataste-o" - lembrando do direito que têm os pobres de serem socorridos em
suas necessidades. Poder-se-ia continuar lembrando de outras tantas afirmações do Concílio
em que está clara a preocupação pelos pobres. Esta "volta" em direção aos despossuídos
favorecerá (também) todo o processo evangelizador na "opção pelos pobres" na nossa
experiência eclesial. A seguir explicitaremos melhor esta mística da pobreza no Concílio.
É também constatável pelas atas, declaração, do Concílio, que a temática de pobreza
realmente foi levantada. Para isso, pelo menos duas intervenções catalisaram as aspirações e
reflexões dos Padres conciliares sobre esta temática: a mensagem radiofônica do Papa João
XXIII e a intervenção do Cardeal Lercaro
190
. Se a afirmação do Papa "é mais verdadeira como
optativo e imperativo (o que a Igreja quer e deve ser) do que como indicativo (o que ela é)"
191
- o que causou repercussão dentro e fora do Concílio - a célebre intervenção do Cardeal
Lercaro, numa linguagem transparente, ao mesmo tempo ousada e humilde, se fez acolhida
da pobreza e da miséria, da injustiça e da opressão de que era vítima a imensa maioria (...) era um problema de
Política econômica...", A RIBEIRO. Os pobres e o reino: do evangelho a João Paulo II. p. 139.
190
O Papa João XXIII, um mês antes da abertura do Concílio (11/9), afirmava: "Em face dos países
subdesenvolvidos, a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres". - Cit. in A BARREIRO,
Comunidades eclesiais de base e evangelização dos pobres, p. 17. Obs.: A intervenção do Cardeal Lercaro foi
durante a XXV Congregação Geral, em 6.12.62 - fim do primeiro período conciliar - momento em que se
discutia o esquema da Constituição De Ecclesia. Cf. A BARREIRO, Op., cit., p. 135.
191
IDEM, Comunidades eclesiais... p. 18.
77
por muitos que queriam uma Igreja que testemunhasse o Evangelho e as moções do espírito
na história. Vejamos as afirmações mais contundentes de sua intervenção:
A intenção das minhas palavras é que elas nos façam mais atentos para o aspecto
deste mistério de Cristo na Igreja, aspecto não só perene e essencial, mas também da
máxima atualidade histórica...O mistério de Cristo na Igreja sempre foi e é, mas hoje
o é, principalmente, o mistério de Cristo nos pobres; uma vez que a Igreja, como diz
o Santo Padre João XXIII, é a Igreja de todos, mas especialmente a Igreja dos
pobres. Não responderemos satisfatoriamente ao nosso múnus e não acolheremos
com espírito aberto o desígnio (consilium) de Deus e as expectativas dos homens se
não fizermos do mistério de Cristo nos pobres e da evangelização dos pobres o
centro e a alma de toda a obra doutrinal e legislativa deste Concílio. Não daremos
satisfação às exigências mais autênticas e mais profundas de nossa época, incluída
nossa máxima esperança na unidade de todos os cristãos, se abordarmos o tema da
evangelização dos pobres como um a mais dentre os muitos temas do Concílio. Não
se trata, com efeito, de um tema qualquer; trata-se, de alguma maneira, do tema
essencial do nosso Concílio. De fato, se o tema deste Concílio - como aqui foi dito
várias vezes - é a Igreja na [busca da] sua conformidade à verdade eterna do
Evangelho e ao mesmo tempo na [busca da] adequação às situações da nossa época,
podemos afirmar que o tema deste Concílio é a Igreja, principalmente enquanto
Igreja dos Pobres"
192
.
O que se constata, por ocasião do Vaticano II, é que se discutiu, se refletiu muito sobre a
Igreja e a pobreza, sobre a Igreja dos pobres, sobre uma evangelização dos pobres, sobre a
relação que poderia haver entre os pobres e o mistério de Cristo e da Igreja - realidade sentida
tanto dentro como fora do Concílio
193
. Quanto à referência ao tema da pobreza nas
constituições conciliares, quantitativamente ocupa um lugar reduzido - nas suas grandes
constituições temos a seguinte constatação: Lumem Gentium (16 vezes) e Gaudium et Spes
192
IDEM, Os pobres e o reino... p. 136-137.
193
Vejamos reflexões de alguns teólogos:
- CHENU:
"Por um lado, é incontestável que, no decorrer de sua história, a Igreja sempre foi o recurso dos fracos, dos
deserdados da sorte e do direito de opinar, dos pobres: ela tomou a si os encargos sociais que os poderes públicos
não souberam ou não puderam solucionar: educação das crianças, organização de escolas superiores, cuidado
dos doentes, hospitalidade dos anciãos; recentemente, assistência aos excepcionais, funções que ainda hoje, em
plena civilização industrial, são desempenhadas pela Igreja, na qual, assim como na sociedade, se acham
marginalizados..." -CHENU, Marie-Dominique. A igreja dos pobres no Vaticano II; in: Concilium, 1977/4: 438.
- CONGAR:
"... quando toda a mística da Igreja afirma o amor dos pobres, e mesmo da pobreza, quando a Igreja é realmente
pobre quase em toda a parte, até mesmo por vezes indigente, ela aparece rica e. para dizer tudo, senhoril ou
pretendendo sê-lo. Assim prejudica-se a si mesma, prejudica a causa que foi feita para servir e que na verdade
deseja servir". - CONGAR, Yves M. J., Igreja serva e pobre, p. 9.
Obs.: Esta obra de Congar apresenta declarações ou textos do Concílio onde prelados se posicionam sobre a
relação entre a Igreja e os Pobres - Cf. p. 176 - 185.
- Cf. P. GAUTHIER. O concílio e a Igreja dos pobres.
78
(14 vezes)
194
. Convém citar LG 8, pois nela está expressa a "importância" dos pobres no
mais profundo mistério da Igreja:
... Assim como Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e na perseguição,
assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho a fim de comunicar aos homens
os frutos da salvação. Cristo Jesus, 'como subsistisse na condição de Deus, despejou-
se a si mesmo, tomando a condição de servo' (Filip 2,6) e por nossa causa 'fez-se
pobre embora fosse rico’ (2 Cor 8,9): da mesma maneira a Igreja, embora necessite
dos bens humanos para executar sua missão, não foi instituída para buscar a glória
terrestre, mas para proclamar, também pelo seu próprio exemplo, a humildade e a
abnegação. Cristo foi enviado pelo Pai para evangelizar os pobres, sanar os contritos
de coração (Lc 4,18), 'procurar e salvar o que tinha perecido' (lc 19,10):
semelhantemente a Igreja cerca de amor todos os afligidos pela fraqueza humana,
reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador pobre e
sofredor. Faz o possível para mitigar-lhes a pobreza e neles procura servir a
Cristo"
195
.
Se o concílio não chegou a fazer da "Igreja dos Pobres" o tema de sua reflexão, é dito,
porém, "na ótica cristológica e eclesiológica" em que o tema havia sido abordado pelo
Cardeal Lercaro. O texto conciliar, apesar de sua brevidade, recupera e aprofunda a proposta
ao remeter, não aos textos que falam da missão de Jesus Cristo (Lc 4,18 e 19,10), mas
também a outros dois (Filip 2,6 e 2 Cor 8,9): a missão do Filho aos pobres é vista como
motivação para a caridade da Igreja em relação aos pobres e oprimidos
196
.
Pode-se constatar um movimento da mística da pobreza, despojando a Igreja de aparatos
de riqueza, simplificando na aparência externa e exigindo dela uma redefinição diante do
pobre. Daí a novidade desse movimento ao fazer a Igreja testemunhar "uma maior
sensibilidade pelo mundo dos pobres, um despojamento da Igreja, sem, contudo, chegar à
dimensão de perceber a importância social e político dos pobres de um lado e a causa
estrutural da existência de tal pobreza. A novidade de Medellín Puebla consistirá em avançar
194
Cf. A. BARREIRO. Comunidades eclesiais de base e evangelização. p. 20.
195
Cf. Compêndio Vaticano II - Constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 1968, p. 47.
196
"Muito se falou durante o Concílio (e depois) sobre a Igreja dos Pobres. Para dar uma satisfação, redigiu-se o
n
o
8c/22 da Lumem Gentium, com três paralelos entre Cristo e a Igreja: Como Cristo realizou a obra de redenção
na pobreza e na perseguição, assim deve a Igreja comunicar aos homens os frutos da redenção na pobreza e na
perseguição; como Cristo se fez servo e pobre, assim a Igreja deve andar pelos caminhos da humildade e da
abnegação ('não foi instituída para buscar a glória terrestre'); como Cristo foi enviado para evangelizar aos
pobres, também a Igreja deve a todos os afligidos pela fraqueza humana", B. KLOPPENBURG. A eclesiologia
do Vaticano II. p. 37-38.
79
esta stica numa linha de compromisso"
197
. O concílio, por ter-se autocompreendido como
um Concílio de renovação - que de fato foi - apresentou a característica de favorecer a
redescoberta e a revivência de todas as coisas do "mistério da Igreja" que pertencem a sua
mais antiga e autêntica tradição, mas que estavam na penumbra. A este mistério pertence,
como pôde ter ficado claro, o "mistério dos pobres".
No final do Concílio, o Papa Paulo VI convidou o episcopado do terceiro mundo a
assumir problemas do subdesenvolvimento e a levantar a voz, assim como re-estruturar a
pastoral para responder à realidade. Este espírito conciliar teve eco em nosso episcopado.
Fazendo parte de um grupo de bispos do terceiro mundo, assinaram uma mensagem
mostrando o compromisso com os pobres, muitos do episcopado brasileiro. Entre estes, Dom
Helder Câmara se destaca como porta-voz da Igreja comprometida com os pobres e
oprimidos
198
. A Igreja brasileira compreendeu, através do próprio testemunho, que o Concílio
não a convoca para uma "mundanização" e uma adaptação superficial diante do desafio do
contexto sócio-econômico e político, mas a revitalização do compromisso missionário
libertador; ou seja, percebeu que "só quando a é vivida de maneira sempre nova e se realiza
vitalmente na carne e no sangue de certa época é que podeser anunciada de maneira nova,
em virtude da própria vivência e da experiência"
199
. assim poderemos compreender o
espírito evangélico que permeia a opção da Igreja em estar ao lado dos pobres - opção que faz
sofrer perseguição, martírio, etc., por estar constantemente denunciando o sistema genocida e
anuciando o Reino aos excluídos da sociedade.
3.4. Medellín: A Igreja com os Pobres e o seu Significado para a Igreja
Brasileira
197
F. L. Couto TEIXEIRA, Op. cit., pp. 282-283.
198
Cf. 3. COMBLIN. La iglesia latino-americana... p. 13.
199
J. RATZINGER. O novo povo de Deus. p. 268.
80
A redefinição histórica da Igreja brasileira (ou latino-americana) é decorrente (também)
de um compromisso evangélico após a construção da grave realidade social e da percepção de
que a Igreja esteve muito mais ao lado das minorias dominantes. Esta autocrítica assumiu
expressão e sinal de missão profética no encontro de Medellín
200
. O posicionamento profético
é evidenciado nas afirmações que representa o Documento de Medellín (DM). Vejamos
algumas afirmações que confirmam isto
201
: "Esta miséria (que marginaliza grandes grupos
humanos), como fato coletivo, é injustiça que brada aos céus" (1.1); "Na História da Salvação,
a obra divina é uma ação de libertação integral e de promoção do homem em toda sua
dimensão” (1.3); "o sistema capitalista parece esgotar as possibilidades de transformar as
estruturas econômicas. Atenta contra a dignidade da pessoa humana, porque tem como
pressuposto a primazia do capital, o poder do mesmo e sua discriminante utilização em função
do lucro" (1.10); "... o subdesenvolvimento latino-americano... é uma injusta situação
promotora de tensões que conspira contra a paz" (2.10); o DM ainda lembra: das "diversas
formas de marginalização: sócio-econômicas, políticas, culturais, raciais, religiosas..." (2.2);
"das desigualdades excessivas entre as classes sociais" (2.3), "das formas de opressão de
grupos e setores dominantes:... observa-se freqüentemente uma insensibilidade lamentável
dos setores mais favorecidos frente à miséria dos setores marginalizados" (2.5), "crescente
tomada de consciência dos setores oprimidos" (2.7); condena o neocolonialismo externo (2.9)
e a corrida armamentista (2.13), acredita-se na conquista da paz (2.14)".
Estas e outras preocupações, constatações, condenações, revelam a intencionalidade do
profético que ocorreu na conferência de Medellín, onde se denuncia a falta de Justiça, da Paz,
da Solidariedade, e acredita-se no despertar dos homens para a construção de uma realidade
renovada.
200
Em Medellín (Colômbia), de 26 de agosto a 8 de setembro de 1968, realizou-se a II Conferência Geral do
Episcopado latino-americano.
201
As citações do DM são retiradas da obra: CELAM. A igreja na atual transformação da América Latina à
luz do Concílio.
81
Foi um novo Pentecostes para a Igreja.
Entre as opções feitas pelos bispos, destacamos três
202
: 1) opção pelo povo (a grande
maioria empobrecida e oprimida) e povos; como exemplo, afirma-se: "O episcopado latino-
americano não pode ficar indiferente perante as tremendas injustiças sociais existentes na
América Latina que mantêm a maioria de nossos povos numa doloroza pobreza e que, em
muitíssimos casos, chega a ser miséria inumana" (14.1); "Em nosso continente, milhões de
homens se encontram marginalizados da sociedade e impedidos de alcançar a plena dimensão
de seu destino, seja pela vigência de estruturas inadequadas e injustas, seja por outros fatores,
como o egoísmo ou a insensibilidade" (...) "A Igreja deve enfrentar essa situação com
estruturas pastorais aptas..." (15, 1 e 2); "A Igreja latino-americana tem uma mensagem para
todos os homens que... têm 'fome e sede da justiça' " (1,3); A pastoral deve "alentar e
favorecer todos os esforços do povo para criar e desenvolver suas próprias organizações de
base, pela reivindicação e consolidação de seus direitos e busca de uma verdadeira justiça" e
"denunciar a ação injusta que, em plano mundial, intentam as nações poderosas contra
autodeterminação dos povos fracos ... (2,27 e 32); 2) pelos pobres (pelo combate à opressão e
à miséria), como se constata: "A ordem específica do Senhor de evangelizar os pobres deve
levar-nos a uma distribuição tal dos esforços e do pessoal apostólico que se preferência
afetiva aos setores mais pobres, necessitados e segregados por um motivo ou outro..." (14.9);
"A II Conferência Latino-americana dirige-se a todos aqueles que, com esforço diário, vão
criando os bens e serviços que permitem a existência e o desenvolvimento da vida humana.
Pensamos muito especialmente nos milhões de homens e mulheres ... que constituem o setor
camponês e operário" (1,9); "A Igreja ... prestará sua ajuda aos desvalidos de qualquer tipo e
meio social, para que conheçam seus próprios direitos e saibam fazer uso deles" (1.20); a
pastoral deve "defender, segundo o mandato evangélico, os direitos dos pobres e oprimidos,
202
Cf. J.B. LIBÂNIO, Os novos caminhos da igreja; in: Livro do ano de Abril, 1979, p. 33.
82
urgindo a nossos governos e classes dirigentes que eliminem tudo quanto destrua a paz social:
injustiça, inércia, venalidade, insensibilidade" (2,22); também se constata que "no contexto da
pobreza e até miséria em que vive a grande maioria do povo latino-americano, os bispos,
sacerdotes e religiosos temos o necessário para a vida e também uma certa segurança,
enquanto os pobres carecem do indispensável e se debatem em meio à angústia e incerteza.
Não faltam casos em que os pobres sentem que seus bispos, párocos e religiosos não se
identificam realmente com eles, com seus problemas e angústias e que nem sempre apoiam os
que com eles trabalham ou advogam sua sorte" (14,3); e 3)pela libertação (desde a político-
econômica até a espiritual em processo dialético), exemplificando: "A paz é, antes de tudo,
obra da justiça. Supõe e exige a instauração de uma ordem justa ... na qual os homens não
sejam objetos, senão agentes de sua própria história" (2,14); "Não deixa de ver (o cristão) que
a América Latina encontra-se ... numa situação de injustiça que pode chamar-se de violência
institucionalizada já que ... 'populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa
dependência que lhes corta toda iniciativa e responsabilidade, ... possibilidade de formação
cultural e de acesso à carreira social e política', violando-se assim direitos fundamentais. Esta
situação exige transformações globais, audazes, urgentes e profundamente renovadoras"
(2,15); "A busca cristã da justiça é uma exigência do ensinamento bíblico. Todos os homens
somos humildes administradores dos bens. Na busca da salvação devemos evitar o dualismo
que separa as tarefas temporais da santificação ... Cremos que o amor a Cristo e a nossos
irmãos será não somente a grande força libertadora da injustiça e opressão, mas a inspiradora
da justiça social... " (1.5). Estas opções brotaram da maior participação de setores da Igreja
junto à grande maioria empobrecida numa perspectiva de libertação e numa consciente
convicção de eclesialidade - dando origem a "uma leitura e uma prática política-pastoral a
partir das classes subalternas. Portanto, não se trata de uma postura de cima para baixo, dando
origem ao espírito assistencialista e paternalista, espírito que, a despeito de sua misericórdia,
83
não respeita o pobre porque não lhe reconhece o dinamismo participador, a justiça de suas
reivindicações e o direito de suas lutas; mas se trata de uma perspectiva de baixo para cima,
valorizando o que é próprio do povo, especialmente seu potencial transformador"
203
. É um
compromisso de opção e de identificação com os anelos de libertação dos pobres e oprimidos
por razões evangélicas e pela própria compreensão da justiça de suas causas. Medellín se
preocupou em articular a Igreja aos vários movimentos populares, à maturação da consciência
política e à efervescência libertária"
204
que vinha se caracterizando entre a grande maioria,
como afirma o próprio documento: "A falta de consciência política ... torna imprescindível a
ação educadora da Igreja..." (1.16); A Conferência de Medellín "sente o dever de dar estímulo
especial às organizações que têm por fim a promoção humana e aplicação da justiça (1.23).
Não se pode compreender Medellín senão a partir do processo que o antecede
205
.
A Assembléia de Medellín vai significar uma reinterpretação com relação ao Concílio
Vaticano II
206
. É uma preocupação clara com o homem latino-americano, em suas angústias e
esperanças, cativeiros e libertações, perguntas e expectativas. Agora, o interlocutor, o sujeito
principal, é a maioria empobrecida pela situação de dependência, de opressão - contexto que é
um fato incontestável, mas não realidade ou destino irrevogável. Por isso, Medellín significou
uma opção profética e esperançosa da Igreja pelos pobres, ou seja, um movimento da Igreja
em direção aos pobres, ouvindo-os, aproximando-se deles
207
. Opção efetiva que exige uma
203
L. BOFF. O caminhar da igreja com os oprimidos. p. 78.
204
Ibid.
205
Cf. G. GUTIÉRREZ, Significado de Medellín para la iglesia latino-americana; in: VV.AA. Profecia y
evangelizacion. p. 77-97.
206
Apesar do Concílio mencionar (ou "dar satisfação") a respeito dos pobres, seu grande interlocutor é o sujeito
moderno burguês, por Ter preocupação com o homem moderno centro-europeu e norte-americano. A ruptura se
ao afastar-se do jeito burguês, como o "principal destinatário e produtor de seu discurso e de sua pastoral",
para viver uma comunhão, aproximação com as classes populares, os pobres. É a superação, no sentido dialético,
dos limites do Concílio Vaticano II. - Cf. J.B. LIBÂNIA. e política. p. 150-159.
207
Sabe-se que a preocupação pelos pobres foi uma constante na Igreja. Não é uma opção nova. Mas hoje
uma novidade. Esta opção "se apresenta sob uma forma nova, que é a de ser uma opção estratégica. Trata-se de
se solidarizar com eles, de se associar a eles enquanto sujeitos da história. Não se trata, pois, de se curvar sobre
eles, cheio de misericórdia, ao modo do samaritano. É antes uma questão política: a de entrar na caminhada dos
oprimidos" Cf. BOFF, A opção pelos pobres durante mil anos de história da igreja; in: Puebla, nº 7: p. 401.
84
atitude dialética de crítica em relação às situações de cativeiro e de esperança em vista dos
surtos libertadores - um dos grandes avanços de Medellín se coloca na "substituição da
linguagem desenvolvimentista, que considera o pobre simplesmente como marginalizado e
necessitado, pela linguagem libertadora"
208
.
Hoje é indiscutível que Medellín deve ser compreendido não como um encontro que se
realizou gratuita ou mecanicamente, mas pelo testemunho de "minorias proféticas" da e na
realidade sócio-eclesial. Estas "minorias proféticas" contribuíram para o encontro dialético de
duas correntes: "a corrente eclesial definida pelos grandes eventos da Igreja universal e latino-
americana e a corrente eclesial definida a partir dos processos econômicos, políticos e
ideológicos, pelo 'movimento cristão' "
209
.
Pode-se dizer, ainda, que a importância desse Encontro de Medellín não está
simplesmente nos textos ou documentos elaborados, mas na força, no apoio, na justificativa
que ele significou para os cristãos empobrecidos do Continente e para todos os cristãos
comprometidos com a causa de sua libertação evangélica.
Entre os dezesseis documentos das Conclusões finais da Conferência de Medellín, um
que teve maior repercussão foi o que se intitula: "Pobreza da Igreja" - n
o
14
210
; é o documento
que, enfaticamente, afirma a "opção pelos pobres". O documento começa, como os outros,
Conforme analisamos anteriormente, a opção pelos pobres é dupla: dos pobres pela Igreja e da Igreja pelos
pobres, reforçando-se mutuamente. A opção de Medellín é possível pela mobilização do povo no interior da
Igreja, e de Igreja numa inserção concreta e profética junto a ela.
208
B. BENI dos SANTOS. Puebla e a família. p. 9.
209
P. RICHARD. A igreja latino-americana entre o temor e a esperança. p. 56.
- O autor, comentando sobre as "minorias proféticas" afirma: "Estas 'minorias proféticas', formadas por leigos,
sacerdotes e bispos, tiveram um papel de grande importância na gestação da Conferência de Medellín, papel que
podemos resumir em torno de duas tarefas fundamentais:
Primeiro: estas 'minorias' souberam interpretar o momento histórico: econômico, político, social, ideológico,
cultural, religioso e eclesial latino-americano.
Segundo: tiveram a capacidade de reinterpretar os grandes documentos da Igreja universal latino-americana, a
partir desta realidade histórica latino-americana. “(...) As ‘minorias proféticas’ que gestaram Medellín são
profundamente antielitistas e isto por duas razões: Primeiro: porque foram uma ‘minoria’ que soube interpretar a
globalidade do processo histórico latino-americano e os interesses da maioria dos pobres e explorados”.
Segundo: porque foram uma 'minoria' que teve a capacidade de despertar na consciência do conjunto da Igreja
representada em Medellín. Uma minoria é 'profética' quando se torna medianeira entre uma totalidade histórica e
uma totalidade eclesial., p. 56-57.
210
Conclusões de Medellín: A igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio. ed.
Vozes, 1973. p. 145-149.
85
com uma descrição da "realidade latino-americana", na qual se comentam as "tremendas
injustiças sociais ... que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza", do
"surdo clamor" que "brota de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que
não lhes advém de parte nenhuma", do "contexto de pobreza e até miséria em que vive a
grande maioria do povo latino-americano", carecendo "do indispensável" e se debatendo "em
meio à angústia e incerteza". Na "motivação doutrinal" da segunda parte aparece a expressão
"Igreja pobre" - embora esta expressão apareça aqui, suas exigências pervadem todo o
documento. Uma "Igreja pobre", afirma o documento, deve denunciar a pobreza econômica,
entendida como "carência injusta dos bens deste mundo"; deve pregar e viver a "pobreza
espiritual", entendida como "atitude de infância espiritual a abertura para o Senhor"; deve
comprometer-se com os necessitados, com a "pobreza material", porque "a pobreza de tantos
irmãos clama por justiça, solidariedade, testemunho, compromisso". Nas orientações pastorais
da terceira e última parte são desenvolvidos, de modo amplo e sistemático, os temas da opção
pelos pobres e da solidariedade com os pobres do testemunho e do serviço
211
.
Também, um grande mérito de Medellin refere-se ao fato de ter reconhecido a situação
de miséria e os desequilíbrios estruturais da América Latina e procurado, à luz do Concílio,
encontrar caminhos de libertação e uma forma de presença ativa da Igreja no continente
212
.
211
Cf. Ibid., nº 9-11, 12-17, 18. p. 147-149.
212
Medellín, ao retratar a situação do Continente constata: “Diversas formas de marginalização: sócio-
econômica, políticas, culturais, raciais, religiosas, tanto nas zonas urbanas como nas rurais”.
"Desigualdade excessiva entre as classes sociais (...) poucos m muito (cultura, riqueza, poder, prestígio...),
enquanto muitos nada têm".
"Formas de opressão de grupos e setores dominantes: sem excluir uma eventual vontade de opressão observa-se
mais freqüentemente uma insensibilidade lamentável dos setores mais favorecidos frente à miséria dos setores
marginalizados". Quanto às tensões internacionais, afirma:
"... Para nossos países sua dependência de um centro de poder econômico" fazem que não são os donos "de seus
bens e de suas decisões econômicas: "Os países produtores de matérias-primas... permanecem sempre pobres,
enquanto que os países industrializados se enriquecem cada vez mais".
No que diz respeito à missão da Igreja, "cabe educar as consciências, inspirar, estimular e ajudar a orientar todas
as iniciativas que contribuem para a formação dos homens".
"Defender, segundo o mandato evangélico, os direitos dos pobres e oprimidos, urgindo aos nossos governantes e
classes dirigentes que eliminem tudo quanto destrua a paz social: injustiça, inércia, venalidade, insensibilidade.
"Denunciar energicamente os abusos e as injustas conseqüências das desigualdades excessivas entre ricos e
pobres, entre poderosos e fracos...". Cf. Conclusões de Medellín, Op. Cit.
. Doc., nº 2, pp. 56-63.
86
Não obstante, a grande profecia de Medellín foi ter despertado para a potencialidade
reinante nas experiências pastorais nascentes enquanto fermento de uma verdadeira
eclesiogênese. Da caminhada eclesial que o precedeu, Medellín recolheu justamente, das
experiências pastorais, os elementos que poderiam favorecer o novo compromisso da Igreja
com os empobrecidos.
Preocupada com a defesa dos direitos dos pobres, dos despossuídos pela estrutura
dominadora e opressora, a Conferência de Medellín prolonga e renova o engajamento da
Igreja no campo social pelos pobres, em vista de sua libertação completa e integral. É o
despertar de uma Igreja que não aceita ser mais uma "Igreja-reflexo" e por isso se
compromete evangelicamente com o povo num testemunho de “Igreja-fonte”
213
.
Cabe-nos, agora, numa tentativa de interpretação, descobrir como a Igreja brasileira
assumiu, na sua caminhada de inserção no mundo dos pobres, as determinações (ou
conclusões) de Medellín, e o que representou o encontro de Medellín para ela. Para isso, é
necessário saber como a Igreja se autocompreendeu e como viveu sua índole missionária, a
partir da identificação com os empobrecidos dentro do contexto sócio-econômico e político
brasileiro.
Primeiramente, é importante ressaltar que na Igreja o que mudou - no agir eclesial - não
foi o conteúdo do discurso, mas a consciência e o modo de ser Igreja. E é dentro dessa
evolução histórica que se deve situar e interpretar a redefinição da Igreja. Compreender a
transformação do lugar ocupado por ela na sociedade e a sua crescente marginalização diante
dos centros decisórios do poder é querer penetrar na raiz do porquê da eclosão de uma nova
consciência da sua identidade e sua missão, ou seja, saber por que a "Igreja se distancia cada
vez mais do poder estabelecido, (e) situa-se ao lado das classes populares assumindo a sua
causa e defendendo os seus direitos, e manifesta uma crescente consciência crítica não no
213
Cf. H.C.L. LIMA VAZ, Igreja-reflexo versus igreja-fonte; in: Cadernos Brasileiros 45. p. 17-22.
87
que diz respeito à situação social, mas também, em relação ao papel histórico por ela
desempenhado na constituição dessa sociedade. Tomada de consciência que é, ao mesmo
tempo, experiência espiritual de um reencontro com o seu 'mistério' original e decisão
corajosa de redefinir, em coerência com ele, a sua identidade teológica e a missão na
sociedade - o que em termos concretos significa: aceitar sem reservas o novo lugar ao qual foi
relegada na sociedade pelo Estado moderno, renunciar a compreender-se a partir do poder,
impedir que as manipulações ideológicas da aliança histórica entre cristianismo e 'civilização
ocidental' paralisem a sua presença na construção de uma sociedade a partir de perspectiva
dos pobres, e aceitar o desafio de estar presente nela sem renunciar à especificidade de sua
função nem às exigências da liberdade evangélica"
214
. Opera-se uma mudança na sua ação
através do deslocamento social, preocupando-se, assim, com uma evangelização libertadora
da grande maioria oprimida.
Contudo, esta redefinição da Igreja não foi espontânea ou gratuita, mas um processo
longo, contraditório e conflitivo. Ela foi surpreendida por vários acontecimentos, que
possibilitaram a emergência da nova postura eclesial. A realidade histórica das duas últimas
décadas favoreceu uma experiência sui generis: através de um contato direto e imediato das
conseqüências, no nível político, econômico e humano, do regime instaurado com o "golpe de
1964", a Igreja pôde tomar consciência das pretensões totalizantes e implacáveis de um
sistema genocida. Comungando o sofrimento real do pobre, surge o desafio de uma opção
decidida por parte da Igreja, a qual se compreende nesse momento a partir da perspectiva
dele; assim, vai denunciar toda injustiça, assumindo a defesa dos direitos humanos,
reconhecendo as reivindicações justas, etc. Devido a esta nova identidade eclesial, a Igreja
opta pela "resistência" e pela liberdade de proclamar o Evangelho, o que a fazia perder sua
imunidade (difamação, torturas, prisões, censura) diante do Estado. A própria natureza
214
C. PALÁCIO, A igreja na sociedade; in: Cristianismo e história. p. 325.
88
conflitiva da sociedade brasileira, ao ser confrontada com um cristianismo livre e evangélico,
conferia à Igreja uma situação profética.
Não podemos esquecer que, nesse processo de redefinição, a Igreja passou por
momentos de hesitações
215
que necessitaram ser superados, porque a hesitação é um risco
diante da contradição que permeia a sociedade: no momento em que o conflito entre o Estado
militar e as classes oprimidas se torna agudo, a mediação da Igreja se complica pela seguinte
contradição: "de um lado, as pessoas ou grupos oprimidos solicitam a Igreja e a pressionam
para que defenda sua causa, para que ela seja realmente 'a voz daqueles que não têm voz'
perante o Estado. Isso implica forçosamente para a Igreja o reconhecimento dos problemas
dos oprimidos e a solidariedade com eles, de outro lado, exercendo seu papel de mediação em
face da autoridade considerada legítima, a Igreja vê-se obrigada a crer na 'boa vontade' e na
capacidade de o governo dar uma solução para o conflito. Isso implica necessariamente para a
Igreja submeter-se à legalidade estabelecida pelo governo e reafirmar o caráter cristão que ela
reconheceu no Estado e os fundamentos dos objetivos do regime em uma ordem de valores
partilhada também pela Igreja"
216
. A Igreja, diante desse panorama, tem duas soluções: ou
se coloca ao lado dos oprimidos e se obrigada, em conseqüência, a se confrontar com o
Estado no que diz respeito ao seu caráter cristão e aos valores que o legitimam, ou continua
submetido ao Estado e se obrigada a proclamar a legalidade do seu caráter cristão e os
valores implícitos - segundo o Estado - na causa dos oprimidos. Qualquer das opções faz a
Igreja assumir uma prática política bem determinada nas categorias que lhe são próprias e
específicas. Na primeira opção, "a Igreja afirma sua solidariedade com a causa dos oprimidos
215
"A Hierarquia oscilará entre o reconhecimento discreto do regime e a reserva prudente. Um longo silêncio
cairá sobre as opções e os valores que caracterizam a época anterior, mas que agora se tornaram perigosos. A
aliança entre o laicato mais lúcido e a hierarquia se rompeu. Sem esse laicato, a hierarquia corria o risco de
perder também o contato com a nova base social que descobrira nesta época. Este vazio deixado pela AC e pela
pastoral popular será preenchido com movimentos mais tradicionais que começam a florescer nesse momento.
(TLC, Cursilhos de Cristandade, MFC, grupos vários de jovens, etc.). A emergência de grupos cristãos de direito
tornará cada vez mais patente a divisão entre os católicos e utilização política crescente do integrismo católico
como apoio religioso do status quo. C. PALÁCIO, Uma consciência histórica irreversível; in: Síntese 17,
(1979): 29.
216
P. RICHARD. Morte das cristandades e nascimento da igreja. p. 173.
89
em termos de evangelização libertadora. Descobre a íntima relação que não significa confusão
entre evangelização e libertação. Essa evangelização libertadora acarreta necessariamente o
confronto direto com a lei e os valores que o Estado considera legítimos e cristãos. A
evangelização adquire, assim, um conteúdo 'subversivo' que mina os fundamentos legais e
religiosos do sistema de dominação. No segundo caso, a Igreja exprime sua prática política
em termos morais e cristãos que reforçam a legitimidade do governo militar e tomam como
ilegítima a causa da libertação dos oprimidos. A Igreja nega a solidariedade às lutas de
libertação, ressaltando seu caráter político não-cristão oposto aos valores e à visão do homem
e da sociedade que ela vê realizados na política cristã do Estado"
217
.
Todavia, foi a experiência de afirmação de sua identidade e de sua autonomia que levou
a Igreja a ir contra o "caráter cristão do Estado", a partir de um processo de libertação contra o
caráter opressivo e repressivo do sistema. Por isso, encontramos uma Igreja se solidarizando
com os pobres, contra o Estado - é a não "reconfessionalização do Estado" ao ser ilegitimado
pela Igreja como cristão ou no seu direito de decidir quais são os dogmas e a moral cristãos
compatíveis com sua ideologia.
Este posicionamento da Igreja - representada por um setor - será responsável por um
isolamento e uma repressão que sofrerá ato de estratégia do Estado militar contra a Igreja.
Primeiro, articula-se uma denúncia, em que os cristãos comprometidos são interpretados
como responsáveis por uma corrupção da doutrina, por um atentado aos valores humanos,
cristãos e como risco à desagregação moral; e esses mesmos cristãos eram acusados de
comunistas, de serem manipulados por grupos extremistas. Toda esta denúncia preparou o
terreno para um tipo de repressão direta; o Estado procura intervir diretamente na vida da
Igreja por meio de prisões, torturas ou deportações de padres e agentes cristãos
218
. Devido a
217
Ibid., p. 174.
218
O "historiador" Enrique Dussel apresenta um relato minucioso de presença da Igreja na sociedade brasileira,
nesse momento em que sofreu a perseguição do Estado autoritário. Cf. E. DUSSEL. De Medellín a Puebla -
uma década de sangue e esperança. I De Medellín a Sucre - 1968 -1972. p. 182-198.
90
essa circunstância de perseguição, a Igreja assume uma postura: "entre a 'prudência' de uma
submissão inconfessada e os riscos imprevisíveis da resistência profética", ela opta
"abertamente pelo segundo termo da alternativa"
219
.
Com isso, haverá um deslocamento de suas bases sociais, ou seja, uma mudança de
lugar social, e esse deslocamento vai forjar um modelo de Igreja que rompe com o sistema de
repressão que procurará freá-la na liberdade de proclamar a Palavra e defender a causa dos
oprimidos. Com essa nova consciência eclesial ressurge uma Igreja que assume consciente e
livremente os riscos e as incertezas de um compromisso libertador por procurar a salvação na
luta pela justiça. Este novo posicionamento aparece claramente em alguns documentos
220
que
procuram analisar uma série de fatos violentos ocorridos no País (ex.: perseguição da
hierarquia), mostrando como eles são, na raiz, negação da justiça aos pobres, despreocupação
pela falta de uma reforma agrária, tolerância na discriminação aos índios, legalidade da
repressão legitimada pela ideologia da Segurança Nacional, etc. Além disso, os documentos
procuram oferecer princípios para a realização de uma ordem política justa, ao serem críticos
em relação à ordem vigente no País. Os documentos representam a "voz profética de modo
paradigmático: são gritos de denúncia e esperança que expressam a voz das massas reduzidas
O teólogo J.B. Libânio relata: "A partir de 1968, com a promulgação do AI-5, a situação do país se deteriora em
nível político e em grau de repressão (...) Além disso, começa a desencadear-se forte perseguição a setores da
Igreja, traduzida em diversos tipos de operações. O simples fato de enumerá-las seria longo; prisões de membros
do clero - religiosos e religiosas -, de líderes leigos, com tratamento ignominioso e bárbaro, sofrendo vexames
morais e torturas físicas. Vasta campanha de difamação a respeito de instituições da Igreja, sendo várias
invadidas diversas vezes por forças militares ou órgãos policiais. Outras vezes, eram pessoas de prestígio na
hierarquia (Ex.: D. Helder Câmara) que sofreram injuriosas difamações. A campanha mais consistente visou
associar todo o movimento crítico por parte da Igreja com a infiltração comunista, em nome da defesa da
civilização ocidental cristã (...)
"Entre 1968 e 1978 ocorreram as primeiras mortes de membros da Igreja por forças da repressão. Em Recife, um
jovem sacerdote da arquidiocese de D. Hélder é morto barbaramente, caso até hoje não esclarecido; dois
missionários são mortos em região de disputas: Pe. Burnier e Pe. Rodolfo; um bispo (D. Adriano) é seqüestrado,
fato ainda não desvendado", J. B. LIBÂNIO. Fé e política. p. 132.
219
Ibid., pp. 29-30.
220
Entre os documentos que revelam este deslocamento da Igreja a uma opção pela grande maioria, destacamos:
a. "Eu Ouvi os Clamores do Meu Povo", Doc. dos bispos do Nordeste, maio, 1973.
b. Marginalização de um Povo, doc. Dos bispos do Centro-Oeste, maio, 1973.
c. Comunicação Pastoral ao Povo de Deus, Comissão Representativa de CNBB, outubro, 1976.
Exigências Cristãs de uma Ordem Política, Assembléia Geral da CNBB, março, 1977.
91
ao silêncio e objeto de projetos que os manipulam sem que eles possam defender seus direitos
de modo algum"
221
.
Procuraremos, a seguir, captar o significado efetivo da Conferência de Medellín para a
Igreja brasileira. Acreditamos que nesse encontro se traçaram diretrizes, comungaram-se
experiências e abriram-se horizontes que têm muito a ver com a nossa caminhada eclesial,
porque Medellín foi fruto e, por vez, etapa de um processo mais amplo, histórico e eclesial.
Analisando as declarações ou as experiências da Igreja brasileira, pode-se constatar até que
ponto as posições compreensivelmente moderadas de Medellín foram assumidas ou
reelaboradoras nessa realidade eclesial, a partir do processo de libertação. Todavia, as
posições oficialmente assumidas em Medellín provinham de seu enraizamento nos setores que
representavam características como resultado de sua inserção nos meios mais pobres do
Continente. É a Igreja recuperando o semblante profético ao retraduzir o Evangelho para um
povo pobre e oprimido, ou seja, a Igreja vivente e pobre do Vaticano II encontrava identidade
definida e singular no âmbito da América Latina. E mais: a irrupção não de um novo
modelo pastoral, senão de um novo modo de pensar teologicamente a salvação, o Evangelho e
a Igreja mesma, o que contribuirá para fortalecer toda Igreja que vive defendendo a causa do
povo nesse momento "negro" da história.
Efetivamente, a Igreja brasileira interpretou Medellín como um marco eclesial
determinante para o seu processo contínuo de redefinição. Ela se sente identificada,
compreendida e defendida em sua identidade, o que se faz numa reflexão e numa prática
evangelizadora que procura responder ao clamor do Pobre.
Evangelização que se enquadra nos princípios de Medellín, ou melhor, que recebeu
confirmação do mesmo. Neste espírito encontra-se a Igreja testemunhando a seguinte
identidade:
221
J. COMBLIN. La iglesia latino-americana desde el Vaticano II. p. 19.
92
a. redefinindo-se em função do pobre e oprimido, superando uma preocupação com
conflitos puramente intra-eclesiais;
b. identidade missionária que está sempre em processo;
c. testemunha uma ruptura com a ordem social de opressão e injustiça;
d. uma igreja que se edifica na responsabilidade de todos, principalmente pela
presença do pobre;
e. fundamentada numa teologia que demonstra que a Salvação de Deus se manifesta
no plano social através da justiça, da verdade e da fraternidade.
Para Igreja brasileira, o Encontro de Medellín significou um incentivo e uma
configuração do processo evolutivo eclesial que se processava e que apontava para um futuro
esperançoso.
3.5. Puebla: Confirmação de Medellín na Opção (preferencial) pelos Pobres
e sua Retratação na Igreja Brasileira
A Conferência de Puebla pode ser entendida como um fato eclesial que reafirma e
assegura as posições de Medellín. Se Puebla não traz, talvez, grandes coisas qualitativamente
distintas, de propriedades novas, vai, contudo, ampliar o consenso e associar maiores forças
para "pontos eixos" no que diz respeito à caminhada promissora da Igreja no Continente. No
caso, por exemplo, de "opção pelos pobres", houve um avanço real - foi reforçada a opção
numa qualificação de profética e numa perspectiva de conjunto.
Por isso, a Conferência de Puebla deu às posições assumidas em Medellín - no que se
refere à "opção pelos pobres" - uma confirmação e uma interpretação "preferencial", o que é
93
garantia de uma irreversibilidade e uma base segura para a audácia de uma pastoral
renovada
222
.
O documento que trata da "opção preferencial pelos pobres" afirma, claramente, situar-
se nas pegadas de Medellín. No início se constata a afirmação: "A Conferência de Puebla
volta a assumir, com renovada esperança na força vivificadora do espírito, a posição da II
Conferência Geral que fez uma clara e profética opção preferencial e solidária pelos pobres,
não obstante os desvios e interpretações com que alguns desvirtuaram o espírito de Medellín,
e o desconhecimento e até mesmo a hostilidade de outros" (n. 1134)
223
.
É extremamente significativo para a Igreja este reassumir a ótica e a instituição
proféticas em relação aos pobres, resgatando ou reforçando Medellín.
222
Cf. Clodovis BOFF, Puebla: a graça da confirmação de Medellín; in: VV.AA., Puebla! E então? p. 10-20.
Cf. Oscar BEOZZO, A igreja após o Vaticano II, in: Vida pastoral, Nov-Dez. (1985).
O autor afirma, nesse trabalho: "O ímpeto de Medellín, ainda que submetido à críticas, oposições externas e
internas a Igreja, foi retomado com vigor por Puebla, a opção preferencial pelos pobres traduziu o que de melhor
o Vaticano II, em breves lampejos, ao falar de uma Igreja 'servidora e pobre' havia produzido e Medellín havia
explicitado" (p. 35).
223
Cf. Puebla. A evangelização no presente e no futuro da América Latina, 1979. p. 307.
outros textos que anunciam a fidelidade às preocupações de Medellín, no que diz respeito ao pobre - ver, por
exemplo, os números 28, 87-90, 382, 707, 733, 769, 1134, 1165.
Obs.: O n
o
1134 tem que ser compreendido num "sentido real" quando afirma: "...obstante os desvios e
interpretações com que alguns desvirtuaram o espírito de Medellín..." Esta afirmação é em si correta e
incoerente, pois toda leitura reducionista ou ideológica - no sentido negativo de ideologia, isto é, de
manipulação desinteressada - deve ser desmascarada. Contudo, esta afirmação, para nós, quer dizer (ou quer
indicar) descontentamento com a direção engajada de expressivos setores da Igreja do Continente em relação à
grande maioria pobre e oprimida, de não assumir profeticamente os pobres.
Também devemos reconhecer que o Documento apresenta, por um lado, grandes afirmações, intuições básicas, e
de outro, apresenta os silêncios, omissões, lacunas importantes. Além disso, encontram-se elementos
conflituosos, onde as tensões mais significativas da Assembléia se refletem.
O cientista (historiador, filósofo) Enrique Dussel afirma em relação ao "acontecimento-Puebla":
"Freqüentemente se confunde o momento textual (um 'texto' eclesial) com a totalidade de um 'acontecimento'
eclesial que inclui muitos outros momentos. Por isso, o 'acontecimento-Puebla' é muito mais que um documento
Final. Deixar de ter em conta isto é dar ao documento a centralidade de algo que não tem, e esquecer donde se
produz em realidade o 'acontecimento' (...).
O importante é compreender que o Documento Final de Puebla ... é um momento e não o principal de todo o
'acontecimento'. O referente necessário do 'acontecimento' eclesial é ... o Povo latino-americano, o Povo cristão,
a práxis popular eclesial (...) No texto de Puebla intervieram muitos fatores. Quantidade de consultas, um
Documento de Consulta (DC), um Documento de Trabalho (DT), aportes do Povo cristão, as palavras e os
'gestos' do Papa, ... Em Puebla mesmo intervieram igualmente os teólogos da libertação (TL), que levaram parte
da voz do povo à Conferência. Todas as contradições dos países, das classes que a Igreja inclui na América
Latina, que se manifestam em evidente tensão, não são explicadas (resuelta) no texto", Enrique DUSSEL,
Dinamica de la opción de la iglesia por los pobres; in: VV.AA., La iglesia latinoamericana de Medellín a
Puebla. p. 52-53.
94
Não obstante, Puebla tem sua originalidade. A "tendência confirmada"
224
é responsável
por retomar a análise da realidade feita em Medellín e, numa coragem profética, procurar ir
além em sua interpretação e denúncia - entre outras coisas, por constatar que a situação se
agravou nos últimos anos
225
- o que favoreceu evitar uma descrição abstrata de estilos de vida
e normas dos setores dominantes, ou uma manobra ideologicamente conservadora que não
recolhesse a prática de uma Igreja que se definiu pela libertação dos empobrecidos.
Ainda mais: a novidade original de Puebla, no que se refere à "opção pelos pobres",
aparece no seu caráter de ser orientada para a libertação integral dos pobres. É fato notável
que a Igreja teve sempre uma predileção efetiva pelos pobres - "A novidade de opção pelos
224
Cf. Clodovis BOFF, Op. cit, p. 13-17.
Tomando Medellín como ponto de referência, o teólogo C. BOFF alude a duas correntes que se fizeram
presentes em Puebla. Vejamos:
a) "Tendência restauradora": esta entendida que Puebla devia corrigir ou retificar as "interpretações
errôneas" surgidas de Medellín. "Poderíamos dizer que ela supunha uma teologia verticalista, onde se acentua o
aspecto transcendental do Cristianismo. Seu lema seria: 'Meu reino não é deste mundo' (Jo. 18-36). Para ela, a
se exprime, sobretudo em seu aspecto religioso ou cultural. Cristianismo é antes de tudo uma religião e não uma
ética ou outra coisa. Essa corrente acha que, depois de Medellín, a Igreja ou setores importantes dela exageraram
em seu compromisso social. Politizaram a fé, radicalizaram o Evangelho, transformaram a religião numa
ideologia; enfim, se intrometeram em campos que não eram de sua competência. Tratar-se-ia agora de colocar as
coisas em ordem, de recuar onde se avançou demais, colocando em jogo a identidade da e a missão própria
da Igreja. Essa corrente se mostra muito preocupada com a questão do 'específico' da fé, com as funções
diretamente religiosas da Igreja, seus interesses são sobretudo institucionais. O que está dentro da questão não é
a sociedade mas a própria Igreja. Sua eclesiologia é calçada no modelo de Cristandade, onde a Igreja, em aliança
com o Poder, se faz presente na sociedade como modeladora de cultura a partir de sua própria tradição. Diríamos
que se realça aqui a 'Ecclesia ad intra', a Igreja da 'Lumen Gentium', com seus interesses corporativos e todo o
seu aparelho intrasistêmico" (p. 14).
b) "A Tendência confirmadora": esta tendência "se definia com o propósito de levar em frente a linha de
Medellín, de reassumir suas opções de base mais ampla e profundamente, enfim, de confirmar suas linhas de
fundo".
Esta corrente sublinha a dimensão encarnacional da fé. Seu lema seria: 'O Reino de Deus se encontra no meio
de nós' (Lc. 17, 21). Para ela, o Cristianismo se realiza antes de tudo como prática, prática ética: amor, justiça,
fraternidade, paz".
"... Se privilegia o aspecto ético-político sobre o aspecto religioso-cultural. A eclesiologia que supõe tal posição
é uma eclesiologia de diáspora: a de uma Igreja representada como uma rede de comunidades pequenas,
disseminadas capilarmente dentro do corpo social e agindo como fermento transformador. A aliança aqui não
é mais com os poderes, mas com os pobres. O objetivo não é tanto manter o sistema cultural presente, mas
transformar a sociedade pelas bases, é gestar uma nova sociedade onde os valores expressos pelo Evangelho
possam ter um corpo social e histórico. Tem-se aqui diante dos olhos uma eclesiologia mais próxima da
'Gaudium et Spes' - a de uma Igreja pobre e serva dos homens, sobretudo dos pobres. É a de uma 'Ecclesia ad
Extra' "(pp. 15-16).
225
Em Puebla uma clara denúncia de que "a imensa maioria de nossos irmãos continua vivendo em situação
de pobreza e até miséria que se veio agravando" (n
º
1135). E na nota ao da página indica: "carecem dos mais
elementares bens materiais em contraste com a acumulação de riquezas nas mãos de uma minoria, muitas vezes
às custas da pobreza de muitos. Os pobres não carecem de bens materiais, mas também no plano da dignidade
humana, carecem de uma plena participação social e política. Nesta categoria se encontram nossos indígenas,
camponeses, operários, marginalizados pela cidade e, especialmente, a mulher desses setores sociais, por sua
condição duplamente oprimida e marginalizada".
95
pobres, afirmada em Medellín e solenemente renovada em Puebla, consiste no seu sentido
libertador, já que ele não se contenta com a simples solidariedade com o pobre em sua
situação de pobreza, mas quer ajudá-lo a libertar-se dela e, sobretudo, das causas estruturais
sociais, que estão na sua origem"
226
.
A "opção preferencial pelos pobres" vai constituir o "eixo do documento e seu princípio
animador" que possibilita, na leitura de todos os temas de Puebla, uma "visão unitária e
coerente"
227
, criando, assim, um fio condutor que favorece uma unidade ao texto, que recolhe
e aponta diretrizes pastorais da inspiração da Igreja em sua caminhada na realidade latino-
americana.
Mas a que pobres se refere o Documento de Puebla
228
quando fala de opção
preferencial? A resposta é clara: aos pobres reais, tal como existem na nossa realidade e que
são criados pelas "graves injustiças derivadas de mecanismos opressores" (nº 1136), o que
reclama uma "necessária mudança das estruturas sociais, políticas e econômicas injustas" (n.
1155; Cf. n. 30; 437; 778; 1258). Para evitar equívocos, o DP faz a seguinte retratação dos
pobres: trata-se da "imensa maioria de nossos irmãos (que) continua vivendo em situação de
pobreza e até de miséria, que se veio agravando" (n. 1135), e acrescenta, em nota, um texto
que esclarece este número, o qual confirma: os pobres "carecem dos mais elementares bens
materiais em contraste com a acumulação de riqueza nas mãos de uma minoria, muitas vezes
às custas da pobreza de muitos. Os pobres não só carecem de bens materiais, mas também, no
plano da dignidade humana, carecem de uma plena participação social e política. Nesta se
encontram principalmente nossos indígenas, camponeses, operários, marginalizados pela
cidade e, especialmente, a mulher desses setores sociais, por sua condição duplamente
oprimida e marginalizada" - (Cf. n. 32-39). Há também uma condenação clara de situação de
226
J. B. LIBÂNIO, Em torno a Puebla-II - O documento final de Puebla: suas grandes linhas; in: ntese, 15
(1979): p. 58.
227
Cf. Bení dos SANTOS, Introdução a uma leitura do documento a partir da opção preferencial pelos pobres;
in: Conclusões da conferência de Puebla. Texto oficial. p. 56.
228
Os números de DP são tirados da obra nota 224.
96
pobreza da grande maioria, como pode constatar-se: "Vemos - diz Puebla - à luz da fé, como
um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres. O
luxo de alguns poucos converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas. Isto é
contrário ao plano do Criador e à honra que Lhe é devida. Nesta angústia e dor, a Igreja
discerne uma situação de pecado social ..." (n. 28). A Igreja, naturalmente, se posiciona contra
a pobreza antievangélica, que é sinônimo de espoliação, opressão, que vive o nosso povo
empobrecido. Trata-se da pobreza de "dimensão sócio-política", isto é, generalizada e
estrutural. Esta visão da pobreza foi possível devido à leitura dialética da realidade que
permitiu descobrir os conflitos da sociedade, a estrutura geradora de opressores e oprimidos
(n. 1160); que permitiu não apenas detectar os sintomas, mas as causas da injustiça
institucionalizada (n. 46). Procura-se compreender o pobre não somente como um
subdesenvolvido, marginalizado, mas como um empobrecido, explorado, oprimido
229
.
Apesar de o DP dar prioridade ao sentido de pobreza a partir do nível (ou dimensão)
sócio-econômico (Cf. n. 16; 26; 29; 35-37; 43; 68; 573; 1155; 1257...), podemos encontrar no
mesmo documento, pelo menos, as seguintes compreensões de pobreza, nos respectivos
níveis: a) nível biológico (etário?) - anciãos (n. 39; 1266), jovens (n. 33; 95; 1170), crianças
(n. 32; 577; 584); b) vel físico - desnutrição, deficiências mentais e corporais irreparáveis,
inválidos (Cf. n. 29; 32; 41; 531; 1266), c) negros (n. 34; 8 - cf. nota; 1266); d) nível sócio-
cultural (étnico?, biológico?) - mães solteiras (n. 577), mulher (n. 1134 - cf. nota),
prostituição (n. 577; 834; 1261), sexo (n. 58); e) vel político - refugiados (n.1266), asilados
(n.1266), torturas (n.531; 1262), assassinatos (n.1262), desaparecimento (n. 1262). Contudo,
gostaríamos de frisar que, embora o DP faça uma análise dialética da realidade, dê prioridade
ao nível sócio-econômico, apresente um relato abrangente dos males, ele poderia ter
aprofundado mais a causa das várias pobrezas evidenciadas. Isso seria possível a partir de
229
Cf. Bení dos SANTOS, Op. cit.
97
uma articulação, mais coerente e dialética, que fosse do econômico ao político, do jurídico ao
ideológico, do religioso ao social.
Procurando a fundamentação bíblica da opção pelos empobrecidos no DP, percebe-se
uma perspectiva cristológica
230
que tem como ponto central a identificação de Cristo com o
pobre (Mt 25, 31-46). Afirma o DP: “... a Igreja deve ter os olhos em Cristo quando se
pergunta qual de ser a sua ação evangelizadora. O filho de Deus demostrou a grandeza
desse compromisso ao fazer-se homem, pois se identificou com os homens se tornado um
deles, solidário com eles e assumindo a situação em que se encontravam..." (n.1141). "Só por
este motivo, os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for a situação moral ou
pessoal em que se encontrem. Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus
filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os
ama. Assim é que os pobres são os primeiros destinatários da missão e sua evangelização é o
230
Para um aprofundamento da perspectiva cristológica indicamos: Ana F. ANDERSON e G. S. GORGULHO,
Puebla e o anúncio de Jesus Cristo; in: VV.AA. Puebla - análises, perspectivas, interrogações. p. 86-100.
Obs.: os autores, analisando o DP, demonstram a "cristologia explícita" do documento (n. 95-127), onde trata de
apresentar o Desígnio de Deus sobre a história como fundamento e critério para a missão eclesial. É reafirmada a
totalidade da católica no mistério de Jesus Cristo na unidade do desígnio de Deus e o motivo da encarnação
(DP 100-102); 2
o
- A Encarnação e a salvação da História (DP 103-104); 3
o
- A humanidade do Filho de Deus
(DP 105-110); 4
o
- A missão do Espírito Santo (SP 11-20) - mostra que a missão de Jesus culmina com a
missão do Espírito. O DP apresenta uma pneumatologia que deveria ser aprofundada (Cf. n
o
s: 111, 112, 115,
117); 5
a
- A totalidade do mistério de Cristo (n
o
121-127).
Em seguida, os autores comentam a "cristologia implícita" - onde mostram que a figura do Servo Sofredor serve
de sujeito que cataliza a estrutura todas as outras afirmações cristológicas, no conjunto do documento. Para
tornar compreensível o eixo cristológico do DP, os autores apresentam um quadro sinótico:
A Figura do Servo Sofredor.
(Cf. Is. 52,13 e Is 53)
A Estrutura Cristológica do Documento.
1. O Servo sofre e assume o sofrimento do Povo para
libertá-lo.
1. O rosto sofredor de Cristo na América Latina.
2. O Servo é Luz das Nações pelo seu ensinamento e
julgamento.
2. o Evangelho é a verdade de Cristo que liberta a
todos, a cultura, a religião, as ideologias.
3. O Servo é a aliança dos Povos. 3. A Igreja evangeliza enquanto é centro de comunhão
e de participação em todos os seus níveis (família,
CEB’s, Paróquias, Igreja particular), em todos os seus
agentes e atividades.
4. O Servo é Pobre, humilhado e exaltado. Por isso é
fonte de libertação e de um futuro novo.
4. A Força e a novidade do Evangelho passam hoje na
América Latina pela opção preferencial pelos pobres e
pelos jovens, e pelo serviço que constrói a sociedade a
partir da dignidade humana e dos sues direitos
fundamentais.
5. o Servo prosperará, e sua descendência terá um
futuro feliz na Justiça que revela todo o Desígnio de
Deus.
5, O futuro da evangelização na América Latina está
numa docilidade ao Espírito Santo, nas opções
pastorais que libertam e que fazem a Igreja continuar
a missão de Cristo Servo de Iahweh.
98
sinal e prova por excelência da missão de Jesus" (n.1142); e ainda afirma-se: "Ao aproximar-
se do pobre para acompanhá-lo e servi-lo, fazemos o que Cristo nos ensinou, quando se fez
irmão nosso, pobre como nós. Por isso o serviço dos pobres é medida privilegiada de
Cristo..." (n.1145). Daí concluir que o privilégio dos pobres tem, portanto, seu fundamento
teológico no Deus de Jesus Cristo. Os pobres oprimidos e crentes são bem-aventurados - são
os primeiros destinatários do Evangelho (n. 1142); possuem um "potencial evangelizador" (n.
1147) - não pelo simples fato de serem pobres, mas porque o Reino de Deus se exprime na
manifestação de sua justiça e de seu amor, em favor deles. A situação dos pobres em nossa
realidade é contrária à mensagem cristã (antievangélica) e negadora do Deus que se revela na
Bíblia, o defensor dos pobres e vingador dos humildes (Ex 3,7; 10,3; Sf 3,19). Optar pelos
pobres significa crer e viver servindo ao Reino que está próximo e é contra qualquer injustiça,
especialmente em relação aos bem-aventurados do Pai.
Antes de tudo, é necessário procurar compreender o que os pastores quiseram
comunicar ao ressaltarem a temática "opção preferencial", a qual deverá permear toda a
Evangelização. Primeiramente, o termo "opção" quer significar um compromisso de decidir,
tomar partido dos pobres e oprimidos, com todas as implicações
231
.
Sabendo-se que o lugar do "agente", da Instituição, condiciona o lugar
epistemológico
232
, a "opção pelos pobres" implica um deslocamento social: a identificação
cada vez maior com a causa dos empobrecidos e a reorientação conseqüente de toda a sua
ação pastoral a partir desta ótica. Não há dúvida de que a opção pelos pobres "seria a
tradução, em linguagem eclesial, de uma opção de 'classe', (...) [que] tem que ser vivida numa
sociedade de classes, isto é, se situa, se confronta e passa inevitavelmente pela mediação
231
O teólogo B. dos SANTOS, Op. Cit., ainda afirma: trata-se de "uma decisão política (pois os pobres são fruto
de uma estrutura sócio-política opressora), ética um imperativo moral) e evangélica (pois essa foi a opção de
Jesus) "(p. 57).
232
Para o problema "do ligar", ver:
Cl. BOFF. Teologia e prática; teologia do político e suas mediações. p. 286.
J. B. LIBÂNIO. O problema da salvação no catolicismo do Povo. (Cap. I Determinação do lugar
hermenêutico, p. 13).
99
sócio-política das classes oprimidas, devendo, contudo, permanecer vigilante e lúcida para
não se tornar inconscientemente uma justificação teológica do conflito social. Ao mesmo
tempo, deve ser desmascarada sem dissimulação a pretensa neutralidade daqueles - leigos ou
da hierarquia - que 'mantêm a verdade prisioneira da injustiça' (Rm 1,18), isto é, que
encobrem a própria posição ideológica de classe (dominante) sob a capa de 'pureza
evangélica' ou de um cristianismo 'universal', supostamente acima de todas as ideologias, mas
instrumentalizado de fato, e posto a serviço de uma posição ideológica e de uma classe
social"
233
. E ainda mais: trata-se (também) de uma opção que é sinônimo de conversão,
conforme afirma o documento: "o serviço ao pobre exige, de fato, uma conversão e
purificação constantes, em todos os cristãos, para conseguir-se uma identificação cada dia
mais plena com Cristo pobre e com os pobres" (n.1140). Diante do visto, percebe-se que a
opção pelos empobrecidos se opera na passagem de uma "abstração analítica" (a pobreza
como categoria) para o imperativo ético da justiça - há um compromisso da Igreja, irrevogável
e imprescindível, de optar e comprometer-se com a causa dos oprimidos.
A "opção pelos pobres" sendo qualificada de "preferencial", ou seja, não excludente dos
demais (DP n.1165), demostra a preocupação de que a Evangelização para todos procure ser a
partir do lugar social dos pobres, o que implica em toda a Igreja comprometer-se com a causa
dos empobrecidos
234
. Este posicionamento eclesial apresenta uma conotação de
"parcialidade" que parece atingir o universalismo cristão e ceder a conflitividades como das
opções de certo movimentos, partidos. Assim, optar pelos pobres implicaria estar contra os
ricos
235
. Longe de querer generalizar o conflito real - a "luta de classes" - a opção quer ser
233
C. PALÁCIO, Igreja na sociedade; in: C. Palácio (coord.), Cristianismo e história. p. 334.
234
Cf. Bení dos SANTOS, Op. cit., 58.
235
Comenta C. Palácio: "Sociologicamente, de fato, esta 'parcialidade' pode chocar porque vai frontalmente
contra a imagem de uma 'Igreja mediadora' que se prestava a confundir a 'mediação' com uma 'média' mal tirada.
Esse tipo de mediação não é evangélico porque é enganador e finalmente injusto. Onde são lesados direitos
elementares, a justiça não pode equidistar de ambas as partes em litígio. A parcialidade implicada na opção
preferencial pelos pobres é outra. Ser parcial, aqui, significa inclinar-se e ficar claramente do lado dos
oprimidos: é que se encontra a justiça lesada e desprotegida. Tal atitude não é, pois, partidária ou injusta
precisamente por ser parcial. Se ele escandaliza é porque desmascara a falsa pretensão de 'imparcialidade' dos
100
uma opção eclesial que na sua parcialidade procura desmascarar uma realidade social e
política onde a grande maioria é marginalizada.
Acreditamos que o Documento de Puebla acaba lançando - sem ser consciente - um
apelo a que a Igreja abrace a ideologia das classes populares. Converter "ao pobre é
evangélico; a concreção é atual e, portanto, ideológica"
236
, porque o crente (cristão), como
todos os homens, está submetido à dinâmica social, sendo que um dos fatores é a existência
das ideologias, isto é, pensamentos socialmente condicionados e comprometidos para
justificar ou questionar uma superação, uma determinada situação humana
237
. Assim, a Igreja,
desafiadoramente, acaba fazendo um apelo para o caminho da superação: toda a comunidade
eclesial é chamada a entrar pela "porta estreita" (preferencial) da ótica dos pobres, assumindo
a sua causa ao lutar pela restauração da justiça.
Aprofundando teologicamente a razão desta "parcialidade", pode-se perceber que a
Igreja recupera sua universalidade, porque optar pelos empobrecidos é optar pelo "universal
concreto" do homem. Esta opção "pelo particular, que é o pobre, é a única forma de - nessa
que pela própria situação social são parte interessada e inevitavelmente 'parciais dos que por isso desejariam a
abstenção da Igreja em nome de sua 'missão espiritual'. Esta abstenção seria parcial no mal sentido, isto é,
ajudaria a encobrir uma situação de injustiça (e reforçando) o caráter ideológico do recurso, nada inocente, aos
calores (Deus de todos, amor e fraternidade universais de Jesus Cristo, etc.) da 'civilização cristã e ocidental' ",
C. PALÁCIO, Op. cit., p. 336.
236
Cf. F. TABORDA. Cristianismo e ideologia - ensaios teológicos. p. 124.
O autor também aprofunda o problema da ideologia, afirmando: "Como mediar as ações em que se expressa a
opção preferencial pelos pobres, senão ideologicamente? Essa opção não quer ser paternalista, mas levar aos
pobres a 'serem verdadeiros protagonistas de seu próprio desenvolvimento'... Portanto: a uma consciência de
classe. Trata-se de defender os interesses dos pobres (...) Eles o devem fazer por si, organizando-se 'para
reivindicar seus direitos'... Isso acontece para reivindicar direitos que se supõem lesados por outra classe (já que
se admite que o problema é estrutural). Tudo isso são elementos com que o próprio Documento de Puebla
caracteriza uma ideologia. Mais ainda: uma ideologia de transformação (...), por se tratar de dar voz e vez aos
que não as m, de tornar presente o Reino (ainda que incipientemente) numa situação que é anti-reino, situação
de pecado social... Portanto, é preciso afirmar que na situação econômica, política e social de nosso Continente, a
se enriquecerá (...) através de expressões ideológicas tomadas daquelas ideologias que pretendem mudar a
situação. É simplesmente inevitável, se a opção evangélica preferencial pelo pobre quiser ser mais que
declamação retórica".
"A liberdade de compromissos não consiste em neutralidade. Numa situação conflitiva o não se comprometer
equivale a um compromisso com o mais forte, o poder dominante e sua ideologia. Para ser 'livre de
compromissos' a Igreja deverá, pois, assumir uma posição contra-ideológica: é a utopia (no sentido
manheimniano) das classes oprimidas. Para ser livre a Igreja precisa ser partidária dos que não m poder nem
riqueza. Uma neutralidade nessa situação seria apenas pseudoneutralidade que deixaria reinar a opressão (pp.
122-123).
237
"Ideologias são concepções esquemáticas da realidade, condicionadas pela situação econômica, social,
cultural dos grupos que as sustém e servem a esses grupos para planejar sua ação a fim de manter ou conseguir
seus interesses" - J. de SANTA ANA, Fé cristã e ideologias; in: Cristianismo y sociedad, 3:8.
101
situação concreta - optar por todos, expressar a universalidade do amor cristão. A ideologia do
oprimido é a mediação possível e disponível para que a Igreja, hoje, na concretidade dessa
situação não exclua ninguém de seu amor"
238
. A Igreja, com a "opção pelos pobres", liberta
todo aquele que se fecha no egoísmo, na opressão e na injustiça, se tornado insensível à lógica
paradoxal da Encarnação
239
; é a exigência de um compromisso com uma experiência viva do
Deus parcial: dialética de uma liberdade histórica que interpela outras liberdades pelo fato de
ser de todos a partir dos marginalizados.
Formalmente, a "opção pelos pobres", na qualificação de preferencial, é exclusivista -
numa preocupação de não comportar ao mesmo tempo uma outra opção por outros interesses
objetivos que não favoreçam os empobrecidos. Estes, pois, como os protagonistas de uma
sociedade justa, nesse momento histórico de um capitalismo dependente, periférico, são os
únicos que podem testemunhar uma visão cristã. Além disso, os pobres são os emissários do
Evangelho e possuem a capacidade de evangelizar todos porque, ao falar de pobreza
evangélica, a Igreja sabe que esta implicará em: "participar da condição de vida dos pobres
materiais (vida simples, sóbria e austera - DP n.1149), (viver) uma extrojeção do rico
introjetado (superação da cobiça e do orgulho - DP n.1149), e, por fim, (ter) atitude de
infância espiritual e de total disponibilidade ao serviço (abertura confiante em Deus - DP
n.1149). Esse tipo de pobreza é um modo de ser sem o qual a vivência do Evangelho é
impossível, quer para os ricos, quer para os pobres"
240
. Daí concluir-se que os pobres não têm
apenas necessidades a que se deve atender, mas também capacidade de transformação
histórica e potencial evangelizador (DP n.1147). Eles são, assim, nossos mestres e juizes
241
.
238
F. TABORDA, Op. cit., p. 123.
239
Entendemos esta "lógica paradoxal" de acordo com C. PALÁCIO: "A 'lógica' de opção pelos pobres é a
lógica paradoxal da Encarnação: a decisão de ser um homem (limitado no tempo e no espaço) para ser o Deus de
todos", C. PALÁCIO, Op. cit., p. 337.
240
L. BOFF. O caminhar da Igreja com os oprimidos. p. 88.
241
Cf. J.B. LIBÂNIO. Fé e política. p. 159-171.
102
Também é evidente que, pelo fato da Igreja em Puebla reassumir a sua opção pelos
empobrecidos, numa postura de compromisso profético com o projeto de uma libertação
integral, surgem, impreterivelmente, tensões devido a perseguições, repressões, conflitos,
porque esse compromisso eclesial provoca um contínuo “des-inverter” na maneira de ver a
realidade
242
, a qual é construída sob a égide da ideologia dos dominantes, baseada no lucro e
articulada no saber como instrumento de dominação. A Igreja acredita num des-inverter da
própria "ordem", professando que os principais artífices de uma sociedade são os pobres. Uma
tal des-inversão ideológica supõe e alimenta uma transformação das estruturas sócio-
econômica e política. Esta inversão nos critérios de análise e julgamento supõe uma
objetividade ou historicidade que acarreta um agir consciente e inserido que instaura a
solidariedade e tende à identificação profunda com a causa dos oprimidos, ou seja, entrar "de
corpo" na luta contra a pobreza - "sendo a pobreza fruto da injustiça institucionalizada, a
causa do pobre é a transformação das estruturas sociais vigentes, a criação de uma sociedade
justa"
243
.
A reação violenta contra a Igreja, pela sua redefinição junto ao povo marginalizado,
vem por parte do Estado e da classe dominante. Estes antevêem o enfraquecimento do sistema
político genocida ao se estimular a organização autônoma do povo
244
, criando espaços para o
242
Cf. R.I. de Almeida CUNHA. A opção preferencial pelos pobres. p. 22-28.
243
F. TABORDA, Dimensão teológica da opção pelos pobres; in: VV.AA. Dimensão social teológica
pedagógica da opção pelos pobres. p. 41.
244
No documento de Puebla encontramos as afirmações:
de suma importância que este serviço do irmão (a serviço do irmão pobre) siga a linha que o Concílio
Vaticano II nos traça: 'Cumprir antes de mais nada as exigências da justiça, para não ficar dando como ajuda de
caridade aquilo que se deve em razão da justiça; suprir as causas e não os defeitos dos males e organizar os
auxílios de forma tal que os que os recebem se libertem progressivamente da dependência externa e se bastem a
si mesmo'. (AAB)" (nº 1146). "Em especial, compete à ação da Igreja com relação aos anônimos sociais, o dever
de acolhê-los e assisti-los, de restaurar sua dignidade e sua fisionomia humana 'porque quando um homem é
ferido em sua dignidade, toda a Igreja sofre' (Paulo VI, Janeiro de 1979)" (nº 1289).
"A Igreja deve empenhar-se em que este grupo flutuante da humanidade se reintegre socialmente, sem perder os
próprios valores: deve velar pela restauração plena de seus direitos; de colaborar para que aqueles que não
existem legalmente adquiram a necessária documentação, a fim de que todos tenham acesso ao desenvolvimento
integral, que a sua dignidade de homens e filhos de Deus merece. Com isto ela cooperará para assegurar ao
homem uma existência digna, que o capacite para realizar-se no interior da família e da sociedade" (nº 1290) .
103
povo falar e se organizar - sendo a "opção preferencial pelos pobres" um compromisso numa
história conflitiva onde se defende a conquista dos direitos fundamentais da grande maioria.
A Instituição eclesial tem constatado as seguintes conseqüências, devido à sua "opção
pelos pobres": incompreensão e afastamento de grupos sociais, sobretudo das classes
abastadas; ressentimento de católicos que se sentiram "abandonados"; má interpretação em
torno da redefinição da Igreja; conflito até mesmo no interior da Igreja; o sangue do martírio
sendo testemunhado, etc.
245
. Conseqüências que não a têm amedrontado, mas que a ajudaram
numa autocrítica corajosa, confessando não estar ainda identificada suficientemente com os
pobres e propondo avançar com mais firmeza nesse deslocamento
246
.
Nessa perspectiva de viver profeticamente a "opção preferencial pelos pobres", destaca-
se a Igreja na realidade brasileira. Ela se torna a porta-voz dos interesses e direitos violentados
245
Citaremos, a seguir, alguns trechos do Doc. de Puebla que mostram a consciência da Igreja quanto às
perseguições, incompreensões:
a) Quanto ao afastamento de grupos sociais:
"A imagem da Igreja como aliada dos poderes deste mundo tem mudado na maior parte de nossos países. A
firme defesa que ela tem feito dos direitos humanos o seu compromisso com uma real promoção social levou-a
para mais perto do povo, embora por outro lado, ela tenha sido alvo da incompreensão ou do afastamento de
determinados grupos sociais" (nº 83).
b) Quanto às classes abastadas:
"A Igreja tem intensificado seu compromisso com os setores desfavorecidos financeiramente, advogando sua
promoção integral. Esta atitude dá a alguns a impressão de que ela deixa de lado as classes abastadas" (nº 147).
c) Não compromisso de membros da Igreja e má interpretação:
"A própria ação positiva da Igreja em defesa dos direitos humanos e o seu comportamento em relação aos pobres
tem levado grupos econômicamente poderosos, que se consideravam líderes do catolicismo, a se sentirem como
abandonados pela Igreja, que segundo eles, teria deixado sua missão 'espiritual'. muitos outros que se dizem
católicos 'a sua maneira' e não acatam os postulados básicos da Igreja. Muitos valorizam mais as próprias
'ideologia' do que sua fé e pertencem à Igreja" (nº 79).
d) Perseguição, martírios:
"A denúncia profética da Igreja e seus compromissos concretos com o pobre causaram-lhe, em não poucos casos,
perseguições e vexames de vários tipos: os próprios pobres têm sido as primeiras vítimas de tais vexames"
(nº1138).
"Isso tudo foi causa de tensões e conflitos dentro e fora da Igreja. Acusaram-na com freqüência, seja de estar ao
lado dos poderes sócio-econômicos e políticos, seja dum perigoso desvio ideológico marxista" (nº 1139).
246
No documento de Puebla temos o seguinte posicionamento:
"Para viver e anunciar a existência da pobreza cristã, a Igreja deve rever suas estruturas e a vida de seus
membros, sobretudo dos agentes de pastoral, com vista a uma conversão efetiva" (nº 1157)
"(...) Assim, apresentará uma imagem autenticamente pobre, aberta a Deus e ao irmão, sempre disponível, onde
os pobres têm capacidade real de participação e são reconhecidos pelo valor que têm" ( 1158).
"Comprometidos com os pobres, condenamos como antievangélica a pobreza extrema que afeta numerosíssimos
setores em nosso continente" (nº 1159). "Envidamos esforços para conhecer e denunciar os mecanismos
geradores dessa pobreza" (nº1160)."Ser peregrino implica sempre uma cota inevitável de insegurança e de risco
(...) Os últimos dez anos m sido violentos em nosso Continente. Mas caminhamos na certeza de que o Senhor
saberá transformar a dor, o sangue e a morte, que no caminho da história vão deixando os nossos povos e a nossa
Igreja..." (nº 266).
104
da grande maioria, diante do Estado autoritário e repressor, assumindo a "função tribunícia"
de representar os pobres e oprimidos que não tinham possibilidade de manifestar o conflito
real que estavam vivendo. Este posicionamento eclesial se deu numa continuidade às
propostas de Medellín e, por conseguinte, em consonância com Puebla, foi ratificado e
reassumido no que tem de evangélico e eclesial, o que favoreceu à Igreja avançar no
compromisso.
Analisando o caminhar da Igreja no processo histórico brasileiro, encontra-se um
testemunho onde os atritos se dão em todos os campos, ora na região rural com o camponês e
o indígena, devido à exploração de parte das companhias agropecuárias, à não demarcação
das terras indígenas, à falta da reforma agraria, ora nas cidades com relação ao problema
operário ou às situações infra-humanas da população empobrecida. Esta distância crítica da
Igreja, em seus vários níveis
247
, teve alguns momentos importantes que merecem atenção.
Quanto a um primeiro nível - Igreja como instituição oficial - A CNBB destacou-se em
denunciar o autoritarismo ou os acontecimentos de violência e exploração, mostrando que a
raiz desses problemas se encontra na negação da justiça aos pobres, na impunidade de
autoridades corruptas e policiais criminosos, na má distribuição da terra, na marginalização do
povo indígena, na ideologia da Segurança Nacional. Também os bispos sempre procuram
oferecer princípios para a compreensão e realização de uma ordem política justa, sempre
247
Utilizamos a compreensão da Igreja, a partir dos níveis, Cf. J.B. LIBÂNIO. e política - o autor apresenta
três níveis da Igreja no conflito:
a. Primeiro nível: Igreja como conjunto dos fiéis
- "Nesse nível são Igreja todos aqueles que dizem ser membros e de algum modo são socialmente reconhecidos
como tais. Não foram excluídos dela e têm títulos de pertença, como o batismo e a profissão de fé, sem entrar na
verificação da maior ou menor autenticidade e verdade de tal profissão" (p. 122).
b. Segundo nível: Igreja como instituição oficial
- ".... assumimos Igreja na sua representatividade oficial, através especialmente da CNBB (Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil). Expressão oficial e consciente da dupla dimensão da Igreja: sociológica e teológica. Aqui
o aspecto teológico é mais explicitado pois necessita pois necessita ser invocado de modo claro, como
fundamento último da legitimidade de suas declarações. Ao referirmo-nos à CNBB entendemos também seus
órgãos de expressão, como foram durante um tempo a Comissão Central, depois a Comissão Representativa e a
Comissão de Pastoral ou grupo de bispos, como expressão de algum regional" (p. 129).
c . Terceiro nível: Igreja como grupos minoritários
- "Apontam cada vez mais como Igreja na consciência das pessoas pequenos grupos, comunidades eclesiais
concretas, sobretudo de caráter popular. Nesse terceiro nível entendemos especialmente as comunidades eclesiais
de base, na medida em que falam, agem como Igreja" (p. 136).
105
tendo uma postura crítica em relação à ordem existente e prospectivas para uma nova
ordem
248
.
248
A Igreja - no nível de instituição oficial - praticamente a cada ano, tem publicado, em geral por ocasião da
Assembléia Geral de Conferência dos Bispos, algum documento sério e crítico ao sistema vigente. Vejamos a
relação e a tônica de alguns:
a. DOCUMENTO DA CNBB, Comunicação Pastoral do Povo de Deus, São Paulo, Paulinas, 1976.
- Esse documento, após relatar fatos que abalaram a Igreja e o povo - como o seqüestro de D. Hipólito, a morte
do Pe. João Bosco P. Burnier, etc. -, explicita o sentido dos fatos, afirmando:
“A ação perniciosa e nefasta, anônima ou pública, daqueles que tacham bispos, padres e leigos de subversivos,
agitadores e comunistas quando tomam a defesa dos pobres, dos humildes, dos presos e das vítimas de torturas,
contribui para o clima de violência e das arbitrariedades" (p. 11).
Entre os principais fatores de violência destacam:
"Os pobres sem justiças"
- "São os pobres, os indefesos que enchem as cadeias, as delegacias, onde as torturas são freqüentes em vítimas
que se encontram sob a acusação de não trazerem documentos de identidade... somente pobres são acusados e
presos por vadiagem. Para os poderosos, a situação é bem diferente. criminosos que não são punidos, porque
são protegidos pelo poder do dinheiro" (p. 12).
"A má distribuição da terra
- “... pequenos proprietários, sitiantes e posseiros, com dificuldade até para obter uma carteira de identidade, não
conseguem documentar a posse da terra, ou fazer valer, perante a Justiça, os seus direitos de usucapião”.
“São, então, expulsos das terras, tangidos para mais longe, apara países vizinhos, ou transformados em novos
nômades destinados a vagar pelas estradas do País (...)”.
“Outros dembandam às cidades mais próximas, provocando a vasta migração interna, que termina por 'inchar' as
grandes cidades onde têm que se alojar em casebres miseráveis, levando vida humana, até que sejam varridos
para mais longe, quando as áreas, nas quais se instalaram, passam a ser de interesse para a especulação
imobiliária ou para a implantação de grandes projetos de urbanização. Antes disso, porém terão sofrido os
males da cidade..." (p. 13-14).
- Obs.: O documento trata ainda da "situação dos índios", de Segurança Nacional e a Segurança Individual, etc.
b. DOCUMENTO DA CNBB, Exigência Cristãs de uma Ordem Política, São Paulo, Paulinas, 1977.
- Afirma o documento quanto à marginalização:
"A marginalização manifesta-se através de situações que favorecem aos beneficiários privilegiados do
despojamento da paciência e da miséria dos outros. Ser marginalizado é ser mantido fora, à margem; é receber
um salário injusto, é ser privado de instrução, de atendimento médico, de crédito; é passar fome, é habitar em
barracos sórdidos, é ser privado da terra por estruturas agrárias inadequadas e injustas. Ser marginalizado é,
sobretudo, não poder libertar-se destas situações. Ser marginalizado é não poder participar livremente o processo
de criatividade que forja a cultura original de um povo. Ser marginalizado é não dispor de representatividade
eficaz, para fazer chegar aos centros decisórios as próprias necessidades..." (p. 12).
- Quanto ao desafio do desenvolvimento:
"O desenvolvimento integral, que responde às exigências do bem comum, não se mede pelo crescimento
quantitativo de valores mensuráveis; ele se mede também, e principalmente, por valores qualitativos não
contábeis. Um povo se desenvolve quando cresce em liberdade e em participação, quando tem seus direitos
respeitados..." (p. 19).
c. Em 1979, a CNBB oferece um trabalho elaborado pelo IBRADES que se intitula: "Subsídios para uma política
social" - o qual faz uma crítica ao sistema vigente, apontando suas enormes distorções, etc.
d. DOCUMENTO DA CNBB, Igreja e Problemas da terra, São Paulo, Paulinas, 1980.
O documento focaliza uma chaga da estrutura social: a situação fundiária no país.
- Vejamos algumas afirmações do documento:
"A situação dos que sofrem por questões de terra em nosso país é extremamente grave. Ouve-se por toda parte o
clamor desse povo sofrido, ameaçado de perder sua terra ou impossibilitado de alcançá-la" (p. 3).
"É missão da Igreja convocar todos os homens para que vivam como irmãos superando toda a forma de
exploração, como quer o único Deus e Pai comum dos homens. Movidos pelo Evangelho e pela graça de Deus,
devemos não somente ouvir, mas assumir os sofrimentos e angústias, as lutas e esperanças das vítimas da injusta
distribuição e posses da terra" (p. 4).
"O desejo incontrolado de lucros leva a concentrar os bens produzidos com o trabalho de todos nas mãos de
pouca gente. Concentram-se os bens, o capital, a propriedade da terra e seus recursos, concentrando-se ainda
106
É a Igreja na missão evangelizadora, assumindo a angústia e a esperança do povo
brasileiro, que vive padecendo pelos problemas sócio-políticos, explicitando, ao mesmo
tempo, as exigências do Reino.
A Igreja compreendida num segundo nível - como "grupos minoritários" (ex.: CEB’s) -
também procurou na sua missão específica - salvífica e evangelizadora - ser voz e vez dos que
não tinham voz e direitos para participarem na construção de uma sociedade justa e fraterna,
bem como na preservação de valores inegociáveis, mesmo quando sua participação exigia que
ela levantasse a voz em defesa de direitos desatendidos ou de valores postergados. O silêncio
ou a omissão não caracterizou esse nível da Igreja que procurou comungar e participar das
lutas do povo pobre e oprimido. Na medida em que toma consciência de produção, na
participação sócio-política, ficando a grande maioria à margem do poder decisório e da
apropriação dos meios de produção de sociedade, no nível econômico, político e simbólico,
mais o poder político num processo cumulativo resultante da exploração do trabalho e da marginalização social e
política de maior parte de nosso povo" (p. 14).
e. DOCUMENTO DA CNBB, reflexão cristã sobre a conjuntura política, São Paulo, Paulinas, 1981.
Este documento continua na mesma linha crítica quanto ao processo político do país.
- Afirmações do documento:
"No atual momento, a sociedade brasileira em transformação apresenta desafios peculiares na ordem política,
bem como na área econômica e na área social. As desigualdades sociais e regionais constituem uma realidade
particularmente triste em uma nação com aspirações e recursos que poderiam permitir uma sociedade mais justa"
(p. 3).
"Nenhuma reforma logrará consolidar formas estáveis de democracia, se não levar em consideração a
necessidade de abrir espaços para que os trabalhadores e os sem trabalho, posseiros expulsos da terra e acusados
de subversão, os índios, os subalimentados, as massas sem instrução, sem auxílio de saúde e sem habitação
decente, sem emprego estável, sem salário suficiente, chegando por fim a serem reconhecidos como cidadãos
com plenos direitos.
"Queremos aqui sensibilizar a opinião pública para o quadro extremamente grave das demissões em massa dos
trabalhadores que devem pagar com os salários perdidos os custos de recessão da qual não são culpados.
Queremos reafirmar às classes sofridas de nosso povo, que desejamos estar a seu lado e apoiá-los, de assumirem
seus problemas e encaminharem soluções justas (...)
"Qualquer orientação política nova que seja uma contribuição eficaz para que os marginalizados se libertem de
sua condição será bem vinda. Qualquer orientação e reforma que postergue de novo as mudanças urgentes
reclamadas tantos anos sevã, deixará apenas desilusões, conduzirá a crises semelhantes às do passado e
tenderá a soluções autoritárias..." (p. 11-12).
f. DOCUMENTO DA CNBB, Solo Urbano e Ação Pastoral, São Paulo, Paulinas, 1982.
O documento trata da questão de moradia das massas populares na
cidade, diante da gananciosa especulação imobiliária.
- Afirma o documento:
“A ocupação do solo urbano para fins habitacionais é precária e tende a piorar em virtude do ritmo de
crescimento da população urbana”.
"A influência das migrações para os centros coincide com um processo que exacerba a situação" a rápida
valorização do solo urbano, objeto de intensa especulação imobiliária.
a .Atinge hoje proporções graves o expediente da estocagem de terrenos para fins especulativos" (p. 7).
g. DOCUMENTO DA CNBB, Nordeste: Desafio 1
a
Missão da Igreja no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1984.
107
essa Igreja comprometida com as bases continuaa ser elemento conflitivo no sistema. O
conflito é normal ao romper com o sistema, passando a agir, em conseqüência, com um
processo de libertação
249
em direção a uma sociedade fraterna, que já tem algum traço
manifestado na própria prática do caminhar da Igreja, porque nesse nível (a Igreja nas bases)
"germina uma consciência e uma prática fraternas igualitárias. Pois a libertação não é
questão de conteúdos, mas também de formas. A libertação não é apenas o resultado de luta,
mas é o próprio processo da luta"
250
.
Também, se pode compreender a Igreja a partir de um terceiro nível: como "conjunto
dos fiéis". Nesse nível ela se apresenta como uma instituição que cobre todo o conjunto da
realidade social. E ainda: por ter membros em todas as classes, ultrapassa as separações de
classe - inclusive no conflito que se instala entre Estado e Nação, quando o Estado não
contribui para uma ordenação e a organização real da justiça na Nação, membros da Igreja
serão encontrados nos dois lados: o identificado com o Estado e o opositor. Isso fundamenta a
seguinte tese: o compromisso da Igreja, entendida no nível indicado, na realidade brasileira, é
o reflexo ou a expressão da consciência moral da Nação. Como exemplificação histórica
pode-se lembrar da igreja apoiando as eleições diretas - é ela (Igreja) encarnando a
insatisfação da Nação em relação ao Estado que perdia sua legitimação, por não responder aos
interesses da Nação. A luta pela reforma agrária e a Constituinte são outros exemplos do
249
Quando usamos o termo LIBERTAÇÃO estamos em sintonia com Leonardo BOFF: "Quando se fala de
libertação no contexto de nossa reflexão, deve-se entender principalmente - mas não exclusivamente - a
libertação econômica, política e social dos povos oprimidos. Não se trata, num primeiro sentido imediato, de
libertação do pecado, do egoísmo e demais vícios que perturbam a convivência humana e comprometem o
relacionamente com Deus. Este constitui o sentido último, sem o qual nenhuma outra libertação teria significado
definitivo", L. BOFF. A fé na periferia do mundo. p. 57.
250
Cl. BOFF , CEB’s e práticas de libertação; in: REB (40), Dez. (1980): 611.
Obs.: Pode-se perguntar: Quais são essas libertações (ou lutas) da Igreja junto às bases? As lutas sempre são por
melhores condições de vida - geralmente através do movimento popular, o qual apresenta as seguintes
modalidades:
1. Movimento de reivindicações: a mobilização em função da água, esgoto, luz, ônibus, etc.
2. Movimento de resistência: frente à ameaça de desejo na favela, de retomada de terrenos ocupados, etc.
3. Movimento de denúncia: movimento Custo de Vida, movimento pela anistia e a defesa dos direitos
humanos.
4. Movimento de Solidariedade: como o que criou em 1980, por ocasião da greve do ABC. Toda uma
mobilização para recolher fundos, alimentos, roupas, etc.
108
compromisso eclesial. Enquanto presença nas classes populares expressa seu
descontentamento devido às péssimas condições sociais em que vivem, e enquanto presença
nos meios burgueses liberais, reflete a sua insatisfação diante do autoritarismo, da corrupção
do governo. A Igreja, nesse terceiro nível, não será também compreendida, porque, na medida
em que o Estado vai perdendo sua legitimação e o conflito com o conjunto da Nação,
capitalizando, de certa maneira, o conflito. Enquanto nossa Nação o estiver organizada
democraticamente em favor da justiça social, a igreja deverá ocupar o proscênio do conflito
devido à sua consciência evangélica pela fidelidade ao Senhor e seu amor aos oprimidos.
Enfim, as libertações infra-estruturais encerram sempre uma dimensão espiritual e
teológica que a fé deverá resgatar. A Igreja no seu compromisso pela libertação do povo
"reconhece" sua consciência teologal - referência à sua missão transcendente. Por isso, toda
libertação deve possibilitar um horizonte transcendente para que seja mediação do Reino de
Deus - "no nível teológico, pode-se dizer que é no econômico e no político que Deus, hoje, é
maximamente ofendido quando, não negado. Somente esta constatação justificaria o
compromisso da Igreja e da comunidade cristã na libertação econômica e política de nossos
povos oprimidos"
251
.
Pode-se concluir que, com a Conferência de Puebla, a Igreja, sem extrapolar sua
instância - na sua prática específica (pastoral, catequética, litúrgica) - saiu reforçada para
articular essa sua especificidade religiosa com outras práticas sociais, particularmente
políticas. Assim, práticas significantes da instituição eclesial adquirem relevância diante do
mundo, na medida em que traduzem concretamente um trabalho que articula, reforça e serve
aos "des-servidos" do sistema capitalista e que são desejosos de libertação
252
. Esta realidade
eclesial pode ser presencializada na Igreja brasileira em dois aspectos: primeiramente, quando
a Igreja, como instância simbólico-religiosa, passa a ser fator de crítica e de ruptura ("caráter
251
L. BOFF, Op. cit., p.58.
252
Ibid., p. 66-67.
109
profético da fé") frente à ordem estabelecida da sociedade, desempenhando, por conseguinte,
uma função motivadora e inspiradora da libertação; outro aspecto é a Igreja sensibilizando os
cristãos para um compromisso fora do espaço eclesial oficial. Daí uma atuação desses cristãos
nos partidos, nos sindicatos, nos movimentos populares ou outras organizações; tudo numa
inspiração pela fé libertadora. Este testemunho pascal - libertação integral do pecado e de suas
seqüelas pessoais e sociais - é irrenunciável, porque essa missão pascal é a razão de ser da
Igreja. E mais, a Igreja "aprendeu... de seu divino Mestre a mais luminosa lição de sua vida,
morte e ressurreição. E a lição é apenas esta: só quem é livre liberta"
253
.
Se Puebla não despertou a Igreja brasileira para uma caminhada nova - por já vivê-la - a
Igreja saiu fortificada e esperançosa para continuar avançando nessa redefinição em direção
aos empobrecidos. Ela teme o grande juízo que vem das multidões despojadas e espoliadas
injustamente dos bens necessários e de condições mínimas de vida humana. Daí uma resposta
vigorosa através da "opção preferencial pelos pobres", porque sem essa opção, o juízo do
pobre será condenação (Mt 25,31-46). É uma tarefa messiânica desafiadora, porque a "Igreja
pode tolerar ser difamada pelos ricos; o que não pode é sentir-se desprezada pelos pobres"
254
.
3.6. Ambigüidades no Compromisso da "Opção pelos pobres"
Analisando o posicionamento ou o discurso da Igreja diante da "opção pelos pobres",
alguns pastores, teólogos e cientistas sociais têm constatado ambigüidades que comprometem
um compromisso mais conseqüente - eclesial ou evangelicamente - para a eficácia da Palavra
e da Prática, ou seja, a Igreja vivendo uma missão através da função específica (evangelização
levada às suas conseqüências éticas) e de função principal (engajamento com os pobres, na
perspectiva evangélica, sobretudo com os exploradores).Acreditamos que o fenômeno de
atitude ambígua se - principalmente - por (a) não ser clara ou objetiva na opção; (b) não
253
F. Bastos de ÁVILA, O momento nacional e a presença da Igreja; in: Síntese, (1985), nº 34: 25.
254
L. BOFF. O caminhar da Igreja com os oprimidos. p. 135.
110
compreender verdadeiramente o pobre como um sujeito ativo e transformador na construção
de um mundo mais justo; (c) não zelar por um discurso de anúncio-denúncia que seja
pertinente.
Quanto à questão primeira, não ser clara ou objetiva na opção, a Igreja pode falhar em
dois aspectos:
1. No desvio da "opção pelos pobres" - realidade constatável quando o compromisso
missionário ou evangelizador apresenta as seguintes características
255
: "Extrinsecismo" -
entender que de um lado está a instituição Eclesial e do outro, os Pobres - o que prejudica
captar o problema comum da alienação, percebendo que tanto a Igreja como o Pobre precisam
da libertação. É a Igreja se libertando ao libertar os oprimidos; "Paternalismo" - é acolher os
Pobres como objeto de nossos cuidados, por interpretar a Igreja como a libertadora, a autora e
protagonista da emancipação dos empobrecidos. Nega-se a potencialidade dos pobres como
agentes de sua própria libertação e se reconhece a Igreja numa visão triunfante e messiânica.
que se compreender que a Instituição eclesial leva uma contribuição aos pobres quando se
coloca ao lado deles, dentro da caminhada deles; "Canonização da Pobreza" - corre-se o
risco, de tanto falar em pobre, de aprovar a pobreza do pobre. Por isso, a Igreja usa a fórmula:
"pelos pobres contra a pobreza". Não se pode confundir pobreza sócio-econômica, que é
antievangélica, com a pobreza evangélica que é uma virtude
256
. A pobreza evangélica
interpela o rico a libertar-se de sua riqueza, da sua condição de degenerado, de prepotência, da
condição de explorador, e assumir a causa do pobre - porque o pobre tem que se libertar de
sua pobreza, de seu fatalismo, do seu desespero, de sua condição infra-humana de vida. Deve-
255
Estamos usando com liberdade, conceituações do teólogo C. Boff, por achar que condizem com a realidade
prática da Igreja - Cf. Cl. BOFF, a Igreja, o poder e o povo; in: REB (40), MAR (1980): 37-38.
256
Falando na pobreza sócio-econômica, o Doc. De Puebla declara:
"Comprometidos com os pobres, condenamos como antievangélica a pobreza extrema que afeta numerosíssimos
setores em nosso continente" (nº 1159).
Convidamos esforços para conhecer e denunciar os mecanismos geradores dessa pobreza" (nº 1160).
Quanto à pobreza evangélica afirma:
"A pobreza evangélica une a atitude de abertura confiante em Deus com uma vida simples, sóbria e austera, que
aparta a tentação da cobiça e do orgulho" (nº 1149).
111
se ressaltar que a nobreza evangélica não é pobreza espiritual, é também material;
"Sentimentalismo vaporoso" - se a "opção pelos pobres" é algo de concreto, não se pode ficar
na compaixão pelos pobres, na indignação moral frente à miséria. Exige-se da Igreja uma
redefinição que não se contenta com as práticas da esmola, do assistencialismo ou da mera
promoção humana, cabendo uma prática de conteúdo político ou lutar ao lado dos pobres e
oprimidos; "Populismo eclesial" - é a atitude dos agentes que "sacralizam o povo" como se
este tivesse uma consciência pura, isenta de qualquer influência da ideologia dominante.
Acredita-se que o povo, por si só, é capaz de se conscientizar e de se libertar. A partir de um
anti-intelectualismo exacerbado, esta tendência revela-se (também) num trabalho
espontaneísta, sem planejamento e avaliação, feita à base do "eu-achismo", sem análise da
realidade, sem clareza de objetivos a serem atingidos, senão os universalmente genéricos. E
ainda: "no estilo obreirista ou pauperizante em que vivem no meio popular, os partidários
desta tendência ajudam a reforçar a falsa idéia - bastante difundida - de que a pobreza é uma
virtude agradável aos olhos de Deus. Assim, encobrem a verdadeira causa da pobreza, que é a
contradição entre as forças produtivas e as relações de propriedade. Esquecem-se que a
Palavra de Deus aponta a pobreza como sinal de injustiça, sem jamais canonizá-la. Se se
chamar o pobre de 'bem-aventurado', não é pelo fato dele ser pobre, mas pelo fato dele
merecer a promessa da posse do reino, sacramento de um mundo novo que não interessa
senão àqueles que só têm a ganhar com a mudança.
Se a Igreja, a exemplo de seu Mestre, faz 'opção pelo pobre', não é pelo romantismo de
compartilhar dessa condição social, mas, na linha de encarnação, de assumir a situação do
pobre para ajudá-lo a se libertar da pobreza - não pela ascensão às classes superiores mas pelo
fim das contradições antagônicas entre as classes"
257
.
257
Frei BETTO. Da prática da pastoral popular; in: Encontros com a civilização brasileira, n. 2 (1978): 111.
112
2. O Problema de termo "Preferencial" - quando se procura analisar o porquê do termo
"Preferencial", que se encontra interposto na proclamação da opção da Igreja pelos pobres
258
,
pode-se testificar uma opção que favorece à ambigüidade porque a expressão margem a
interpretações múltiplas ou opostas. A expressão "opção preferencial pelos pobres",
conseqüentemente, permite uma interpretação ideológica que justifique pastorais com e em
favor dos interesses das classes burguesas, ou - no sentido real - com e em favor dos
empobrecidos. Também uma opção preferencial pode entender uma "opção opcional" ou uma
"preferência preferencial", significando que a Igreja pode manter "preferências menos
preferenciais"
259
. Corre-se o risco de entender a "opção pelos pobres" de modo efetivo e
ingênuo
260
- como se devesse amar a todos, mas mais ou especialmente os empobrecidos.
Essa compreensão ingênua não percebe a relação de dependência e de exploração que existe
entre o rico e o pobre - o que implicará em (poder) justificar duas pastorais paralelas: uma
para os ricos e outra para os pobres (o que o Documento de Puebla critica)
261
.
A saída é uma "opção exclusiva pelos pobres"
262
? A expressão "exclusiva" também é
rejeitável, por não ser menos ambígua que a "preferencial" porque supõe uma "visão sectária"
dos empobrecidos, o que prejudicaria compreendê-los ligados aos grupos sociais: dos aliados
(positivamente) ou dos seus opressores (negativamente). Essa opção poderia favorecer a uma
pastoral exclusivista que falharia do ponto de vista político e do evangélico.
Para resolver a problemática, optaríamos simplesmente pela expressão "opção pelos
pobres", procurando entendê-la de modo dialético porque, embora, ao saber que o Evangelho
é para todos, ele é a favor de uns e contra os outros, para salvar a todos. Ou seja, no momento
em que a Igreja opta pela classe oprimida ou pela grande maioria despossuída e
258
No documento de Puebla encontra-se a qualificação PREFERENCIAL, nos meros: 382, 707, 733, 769,
1134, 1217.
259
Cf. D.Pedro CASALDÁLIGA, Opção de vida entre os pobres; in: REB 44, MAR, (1984): 84.
260
Cf. Cl. BOFF, Op. cit., p. 38.
261
diz o Doc. de Puebla: “A superação da distinção entre pastoral de elites e pastoral popular. A pastoral é
uma só (...)” (nº 1215).
262
Cf. Cl. BOFF, Op. cit., pp.38-39.
113
marginalizada, ela se coloca automaticamente contra a classe dominante ou a minoria
exploradora. É a lógica de uma situação contraditória onde a "opção pelos pobres" é e não
excludente: exclui o rico como rico, mas não o "rico" em favor do pobre e o pobre que se
liberta da pobreza e assume a causa de outros pobres. A atitude da Igreja é se definir a partir
dos pobres; e se ele vai aos ricos é como porta-voz da causa dos injustiçados
263
.
Outra questão que favorece a ambigüidade é o reconhecer realmente o pobre como
sujeito ativo e transformador. Essa atitude da Igreja acaba compreendendo o pobre como
"objeto" de indulgente comiseração, e não como sujeito privilegiado do Evangelho
264
. Como
conseqüência, vamos encontrar na Igreja um "vanguardismo" eclesial"
265
onde agentes -
leigos e hierarquia - julgam o povo incapaz, ignorante e se colocam como auto-suficientes no
encaminhamento da pastoral ou da prática popular. Essa tendência preocupa-se em injetar no
povo uma "ciência". Elaborada fora do povo, acreditando mais nas próprias idéias que na
prática testada e avaliada em comunidade ou organizações populares. A origem dessa
tendência está numa formação elitista, eivada pela mentalidade de que a história é construída
por aqueles que detêm o poder.
No fundo, esta tendência não acredita na capacidade de o povo assumir o seu próprio
processo histórico (ou pastoral). Do alto do elitismo, essa visão míope em relação ao povo é
incapaz de perceber por trás do discurso verbalmente limitado ou da prática visivelmente
ineficaz dele, toda uma potencialidade libertadora. Assim, esse vanguardismo acaba
legitimando uma Igreja que, intrinsecamente, manipula, dirige e empurra o povo a aceitar uma
263
Ibid., p.39 - afirma: Então os ricos estão condenados? Aqui precisamos distinguir os ricos enquanto classe
e os ricos enquanto pessoas. Amamos os ricos enquanto pessoas e os combatemos como classe. Mas é pelo
mesmo gesto que os amamos e os combatemos. Deveríamos dizer: só amamos suas pessoas quando combatemos
sua classe. Assim: amamos o pecador quando combatemos seu pecado. O médico ama o doente quando combate
a doença. Desta maneira, a Igreja pode ser a favor dos ricos quando é contra eles: é pastoralmente a favor de
suas pessoas quando é politicamente contra sua classe. Essa formação pode parecer paradoxal. Mas é a única
dialeticamente correta. A classe opessora como tal não se converte: se destrói. São pessoas desta classe que
podem se converter, traindo sua classe (como São Francisco com seu pai). Temos que amar oprimidos e
agressores. mas cada um a seu modo. Cada um de modo adequado. Ama-se os oprimidos associando-se a eles e
ama-se o agressor combatendo-os...”
264
Cf. Hugo ASSMANN, Iglesia de los pobres; in: Contacto nº6 (1978): 17-27.
265
Cf. Frei BETTO, Op. cit., pp. 111-112.
114
divisão social que determina a dominação das camadas privilegiadas sobre as camadas
populares.
Exige-se uma mudança eclesiológica, porque a Igreja deve tentar reinventar-se a partir
dos pobres para que toda ela seja para os pobres, com os pobres e dos pobres. O que implica
optar pelo valor da cultura do pobre, pela sua religiosidade e pela maneira como vive sua
numa sociedade conflitiva. É só nesse deslocamento, reforçando o "polo social dialético" mais
frágil (o povo pobre e oprimido ou a classe popular oprimida) na sua luta e na sua esperança
de mudança, que a Igreja poderá testemunhar uma compreensão efetiva na proclamação de
que os pobres e oprimidos têm um "potencial evangelizador".
Por fim, uma outra ambigüidade da instituição eclesial é apresentar um discurso de
caráter duplo e de pouco rigor científico. Isso é constatável na análise da proclamação do
anúncio do reino e na denúncia de tudo que se opõe ao pleno desse reinado, impedindo uma
libertação para salvação do homem.
Hoje os agentes de pastoral (leigo ou hierarquia) e cientista sociais comprometidos com
a causa do povo, que procuram ter uma racionalidade política adequada à análise de
conjuntura e do sistema capitalista, põem em xeque e desmascaram a precaridade política de
discursos da Igreja, forjados em "linguagem genérica, simbólica, utópica", no que concerne a
propostas alternativas, fundamentados em princípios éticos e inadequados para exprimir as
raízes da contradição da realidade brasileira: "em nível de hierarquia, a tendência é de
hipertrofiar o discurso pastoral (ou eclesial), como se ele abarcasse toda a conjuntura atual
pelo simples fato de apreender, à luz da revelação do Pai, o sentido último e absoluto da
realidade histórica. Sem dúvida, o discurso pastoral possui elementos que lhe permitem aferir
a conjuntura e, nela, detectar os sinais do pecado e denunciá-los profeticamente (Cf. Subsídios
para uma política social, CNBB, 1979). O que falta ao discurso pastoral é uma medição
sócio-analítica que lhe permita maior concretude evangélica no anúncio de pistas alternativas
115
que escapam ao reformismo e comprometem os cristãos com uma prática política
efetivamente libertadora"
266
.
Também, às vezes, ocorrem críticas à Hierarquia ou à Igreja por não cumprir as
promessas proclamadas ou manter-se equidistante frente aos dominantes e aos oprimidos.
Tudo contribui para se chegar a questionamentos como: não será equívoco um pensamento
triunfalista exigir promessas que até por "excrescência de linguagem compensatória" podem
ter sido precipitadas? A "opção pelos pobres" o é sociologicamente uma "vitória verbal" de
setores minoritários, que atrapalham a clarificação do compromisso numa representatividade
maior da Igreja
267
? O limite do "apoliticismo", do prescindir da política, da "missão
espiritual" legitimada e reforçada com posições pseudoteológicas, ou diretamente jurídicas,
não são responsáveis por manter um bloqueio para uma redefinição da Igreja mais
libertadora
268
? A Igreja na tática do "reformismo" não pode esconder uma "luta de classes"
que a atravessa, a qual camufla um posicionamento que consolida e favorece a classe
hegemônica, em detrimento dos empobrecidos
269
? A igreja brasileira, como espaço de
266
Idem, Prática pastoral e prática política; in: Encontros com a civilização brasileira, n. 21, Mar, (1980
): 146.
267
"Medellín exerceu um papel de acobertamento do caráter limitado das reais possibilidades da Igreja
hierárquica (...) Houve lentidão em perceber que Medellín não era uma plataforma programática da Igreja
católica em sua amplitude, latino-americana (...) Portanto, Medellín era uma referência e nada mais; um respaldo
útil no plano tático; não era a assimilação consciente, por parte dos bispos, de claras metas de libertação. Mesmo
a linguagem dos textos dava margem ao subterfúgio justificador de interpretações puramente reformistas" (H.
ASSMANN, Medellín, a desilusão que nos amadureceu; in: CEAS, JUL-AGO, (1975) n
o
38: p. 52).
268
Cf. Ibid., pp. 53-54.
O autor afirma: "... os bispos, bloqueados em sua eclesiologia pretensamente 'apolítica' negam ideologicamente o
papel que deveriam cumprir, por negá-lo, cumprem o papel que o sistema lhe impõe. A isso se junta sua
resistência em reconhecer o caráter de classe dos conflitos da sociedade. Não reconhecendo isso, é lógico que a
necessidade de entrar em conflito com as classes dominantes se apresenta como um tabu insuperável. O
argumento utilizado para a preservação desse tabu é a 'unidade', esse centro da teologia e da literatura que
perpetua o cativeiro da Igreja" (p. 54).
269
Na Igreja podemos detectar duas dimensões: a Igreja enquanto "campo religioso-eclesiástico" (instituição) e a
Igreja enquanto "campo eclesial-sacramental" (sacramento, sinal e instrumento de salvação), sendo que as duas
dimensões devem ser mutuamente relacionadas. O "campo religioso-eclesiástico" é resultado de um processo de
produção, o produto de um trabalho de estruturação através de duas forças produtivas: a sociedade com o seu
modo de produção determinado e a experiência cristã com seu conteúdo de revelação.
Na sociedade capitalista, como a nossa, encontra-se um modo de produção dissimétrico, que se caracteriza pela
apropriação privada dos meios de produção por parte de uma minoria privilegiada dominante, pela distribuição
desigual da capacidade de trabalho e dos produtos finais do trabalho. Esta mesma classe dominante, em sua
estratégia hegemônica, procura incorporar a Igreja a serviço da ampliação, consolidação e legitimação de sua
exploração. Assim, o campo religioso-eclesiástico recebe constante pressão para estruturar-se de tal forma que se
ajuste aos interesses dos dominantes, desempenhando a Igreja uma função conservadora e legitimadora do
116
criatividade e libertação do povo, não necessita de um discernimento no seu linguajar duplo
quando, por uma parte, incide criticamente nos aspectos desumanos do sistema e, na mesma
medida, aponta a organização do povo; mas por outra parte, mantém um discurso de caráter
"terceirista" quando condena o "capitalismo selvagem" - "há capitalismo que não seja
selvagem?" - e mantém distância de propostas explicitamente construtoras de uma sociedade
mais justa, igualitária e fraterna
270
? Também se deve ressaltar que em pronunciamentos ou
documentos da Igreja - ex.: Documento de Puebla - encontram-se denúncias de fatos
opressivos e anúncio de compromisso com o pobre. O difícil é ver uma clara identificação da
contradição da sociedade e um compromisso com o pobre dentro de uma postura de classe. O
inter-classismo é inegável, ainda, no seio da Igreja. É certo que a Igreja - na totalidade - não
tem condições de retirar, de um só golpe, de seu meio, a classe dominante. O que poderá fazer
é um lento e doloroso descompromisso com os interesses dessa classe
271
. Outras tantas
"bloco Histórico" imperante. - Cf. L. BOFF, Igreja: Carisma e poder - ensaios de eclesiologia militante. p.
172-179.
. Cf. Otto MADURO. Religião e luta de classes.
- O autor defende que: "Assim como a produção religiosa consiste em um trabalho de mediação da ação da
sociedade sobre si mesma, da mesma forma as religiões podem influir sobre a produção, reprodução e
transformação das relações sociais, isto é, nessa mesma medida pode a religião desempenhar funções sociais" (p.
156).
“... Uma religião qualquer, ao se encontrar no seio de uma sociedade onde uma classe social - ou bloco de
classes - se acha a ponto de se constituir como classe dominante, de se ver passo a passo e inevitavelmente
submetida - a religião - a um conjunto de limitações e orientações geradas pelo mesmo processo de dominação, e
tendentes a fazer da mera dominação uma verdadeira hegemonia”.
"Se a tentativa de tal classe - ou bloco - dominante, por se erigir um dirigente (hegemônica) se prolongar
por várias gerações, tal processo de dominação terá profundo impacto sobre as religiões que atuam no âmbito da
sociedade em tela. A dinâmica da dominação poderá impor-se sobre as tradições religiosas da população
implicada até o processo de (a) aniquilar ou submeter todo 'elemento' religioso (crença, rito, norma, grupo, líder)
que pareça constituir um obstáculo ou perigo para a consolidação do poder da classe - ou bloco dominante; (b)
favorecer a criação e/ou o desenvolvimento de todos os elementos religiosos que foram claramente convergentes
com a consolidação do poder da classe dominante, e (c) reestruturar de maneira mais adequada à nova situação
de dominação todos aqueles elementos religiosos que não forem diretamente obstaculizadores da consolidação
do poder de classe dominante" (p. 108).
270
Cf. Hugo ASSMANN. El dominador, el mediador y la emergencia del 'outro'; in: R. VIDALES, e L.R.
PAGÁN (editores), La esperanza en el presente da America Latina. p. 51-5.
Cf. Idem. Iglesia de los pobres.
Nesse artigo o autor diz: "A Ausência do assinalamento claro das leis objetivas do sistema dominador implica,
por vez, a ausência de um rechaço cabal do sistema opressor - entendido como sistema global de produção e
reprodução da vida real -, e uma falta de coragem de nomear diretamente o inimigo. Quando o sistema opressor
não é reconhecido como tal, em termos estruturais, e quando o inimigo não é nomeado, o mais provável e
freqüente é o seguinte: o 'inimigo' e o mal social ficam diluídos na inclinação genérica do homem para o
egoísmo, e o pecado concreto volta a diluir-se na pecaminosidade genérica de todos os homens" (pp. 24-25).
271
Cf. Ibid.
117
interrogações poderiam surgir se tentássemos captar a totalidade da ortopráxis da Igreja
brasileira no processo histórico.
De tudo o que foi apresentado, no que lembra a ambigüidade, impõe-se à Igreja uma
conseqüência pastoral e política que a desloca numa presença ativa e transformadora, direta e
libertadora, junto aos empobrecidos ou às classes populares oprimidas. Não cabe refugiar-se
numa dimensão transcendente, enclausurar-se nos quadros pastorais onde tudo está pré-
determinado por um conservadorismo ou reformismo, "negando", na prática, a conflitividade.
É premente uma "recristianização da Igreja", cada vez mais conseqüente, junto aos
subalternos que aguardam um serviço que subverta a situação genocida; tarefa da instituição
eclesial que procura assimilar e retrabalhar a realidade social em prol desses des-serviços -
porque "o campo religioso-eclesiástico encerra em si uma inegável contradição; por um lado,
se realiza historicamente nos quadros de um modo dissimétrico de produção simbólica,
acolitando a sociedade capitalista; por outro, o ideário básico convoca para um modo de
produção simétrico, participado e fraterno. Porque a Igreja vive esta contradição, sempre é
possível nela a irrupção do profeta e do espírito libertário que a faz se encaminhar na direção
daqueles grupos que buscam relações mais justas na história e se organizam nos marcos de
uma prática revolucionária
272
; é o que se espera da Igreja para que ela se liberte de uma
ambigüidade que a destitui de ser a serva do Reino.
Dado que a Igreja em si mesma e nas suas estruturas fundamentais é ao mesmo tempo
institucional e carismática, a ambigüidade deverá ser desmontada a partir de uma nova
perspectiva eclesiológica, segundo a qual a Igreja é o povo de Deus peregrinando na história a
caminho do Reino, como templo carismático do Espírito onde se revela um intento de
comunhão de e de esperança, como sacramento ou sinal de um mundo justo, fraterno. A
Igreja é como "diácona do Espírito"; com efeito, a comunidade eclesial deve conservar a
272
L. BOFF, Op. cit., p. 180.
118
"tensão dialética entre mística e profecia, liturgia e diaconia, contemplação e ação, mensagem
e crítica, evangelização e libertação"
273
, mas sempre numa atenção à experiência da graça que
é libertadora e conflitiva - desde o momento em que se coloca a serviço dos "bem-
aventurados". Isso é compreender a Igreja no consenso evangélico, onde a instituição eclesial
deseja escutar, viver e proclamar a mensagem da Boa-nova da libertação aos oprimidos; onde
os cristãos - membros da Igreja - são parte de um coletivo humano que constrói, na contextura
real da vida social, uma humanidade em cujo seio a justiça e a fraternidade se façam verdades
eficazes.
4. Conclusão
Analisando o caminhar da Igreja brasileira - enfoque histórico-teológico - na sua "opção
pelos pobres", pudemos perceber um compromisso profético e libertador, ou seja, Evangélico.
Esta redefinição eclesiológica tornou-se possível a partir de um processo dialético através de
três fatores determinantes: a presença ativa, transformadora e interpeladora dos pobres na
Igreja (novo sujeito social eclesial), ao optarem por ela; a influência da militância da AC
especializada no "corpo eclesial"; e o compromisso e "respaldo" de um representativo setor da
instituição eclesial junto aos pobres e seus defensores.
Na tentativa de aprofundar a descoberta de elementos que favoreceram decisivamente
essa nova realidade eclesial, foi possível enumerar fatores subjetivos e fatores objetivos. Entre
os subjetivos, destacamos a redefinição conjunta da Igreja a partir do Concílio Vaticano II,
das Conferências Episcopais (Medellín e Puebla), das decisões da Igreja local (ex.: membros
da AC) que militavam em prol dos marginalizados, etc. Por outro lado, como fator objetivo, a
273
F. Alexandre PASTOR. O reino e a história - problemas teóricos de uma teología de práxis. p. 8.
119
realidade de miséria e injustiça da grande maioria. Esta realidade favoreceu um discernimento
da Igreja que a levou a viver um processo de deslocamento em direção à camada social
espoliada e marginalizada.
Como se pode constatar, o surgimento da "Igreja dos pobres" é uma conquista que tem
seus antecedentes, e não fruto de uma geração espontânea. A Igreja, ao se defrontar com um
"novo sujeito" (o pobre oprimido e crente), vive um compromisso libertador aberto -
principalmente, através de seus setores "autênticos", cabendo destaque à presença da Ação
Católica especializada nos anos de 1960, dos movimentos que comungavam os anseios da
classe popular oprimida (ex.:MEB); são compromissos de cristãos que orientam suas
atividades por uma transformação do mundo, não aceitando mais uma visão fatalista da
história. Dessa atuação despertará a Igreja para a conquista de uma pastoral renovada.
É a Igreja que, pouco-a-pouco, toma consciência de opressão advinda do sistema
capitalista, o que vai favorecer sua presença corajosa e profética a partir de uma inserção
junto aos oprimidos. Toda essa redefinição eclesial - mudança que se deu na consciência e no
modo de ser Igreja - será proclamada e assumida em Medellín e, em sintonia com Medellín,
reafirmada em Puebla. Assim, a Igreja pode se distanciar do poder estabelecido e se situar ao
lado do povo explorado.
Também se verifica que foi numa identificação recíproca - Igreja e povo pobre e
oprimido (o povo dominado ou a classe popular oprimida) - que a Instituição eclesial se revela
como sacramento de salvação. Houve, por outra parte da Igreja, um processo difícil.
Necessitou-se de uma mudança radical de perspectiva - o que se deu com entusiasmo e
desanimo, acertos e falhas, esperanças e temores, liberdade e perseguição. Tudo a partir de
uma solidariedade com o mundo dos empobrecidos, o que significou a Igreja fazer seus os
problemas e lutas deles; saber falar, sendo voz defensora deles. Não resta dúvida de que a
exigência e o testemunho de solidariedade marcaram a prática dos cristãos nos últimos anos.
120
A atitude missionária da Igreja ao assumir a "opção pelos pobres" efetua uma
Evangelização marcada pela seguinte realidade: os pobres são evangelizados e a evangelizam.
Mas como se o processo Evangelizador na Igreja que opta pelos pobres?
Necessariamente, a partir de um modelo de evangelização que inclui dialeticamente os três
momentos: evangelizador, evangelização e evangelizados - o que implicará dois tipos de
realidade unificadas, mas diversas: o conteúdo a comunicar e a ação de comunicar esse
conteúdo. A igreja na manifestação de sua identidade mais profunda - "Ela existe para
evangelizar" (EN, nº14) - realiza a atividade da proclamação da Boa Nova. Essa missão
eclesial em nossa situação tem como destinatário privilegiado os empobrecidos, os quais
favorecem a Igreja a compreender a visão de Deus sobre o mundo e, mais ainda, a
corresponder à sua realidade - torna possível uma ação cristã segundo Deus
274
. Logicamente,
a realidade evangelizadora não poderá descuidar de um profundo e contínuo discernimento
diante da situação dos pobres - é carregada de contradição, ambigüidade e tensões. Daí a
Igreja saber que, pelo fato da religiosidade, da cultura, da organização e da luta dos pobres,
sofrerem de ambivalência é preciso evangelizá-los. A Igreja saindo de seu "próprio universo"
começa a descobrir o mundo dos pobres, mundo que apresenta indigência e miséria, uma
subcultura marginalizada e oprimida, uma mão-de-obra que é explorada e violentada; enfim,
são os oprimidos tendo seus direitos humanos, pessoais e coletivos atropelados e negados pelo
sistema sócio-econômico, pela institucionalidade política e pelo aparelho cultural. A presença
da Igreja junto aos pobres é de esperança e de salvação.
Por outro lado, descobre-se que os pobres não têm miséria e urgentes necessidades,
mas carregam valores próprios e aspirações: uma utopia por outra vida e nova sociedade,
274
Cf. Jon SOBRINO. Ressurreição da verdadeira igreja. p. 255-300.
Cf. CNBB. Diretrizes gerais da ação pastoral da igreja no Brasil.
Obs.: Nesse documento é demostrada a seguinte preocupação: "Evangelizar o povo brasileiro em processo de
transformação cio-econômica e cultural a partir da verdade sobre Jesus Cristo, a Igreja e o homem, à luz da
opção preferencial pelos pobres, pela libertação integral do homem, numa crescente participação e comunhão,
visando à construção de uma sociedade mais justa e fraterna, anunciar, assim, o reino definitivo".
121
outro padrão de comportamento, outra experiência (libertadora) de Deus. Como povo, os
pobres caminham na história operando constantemente a "inversão messiânica": "os últimos
serão os primeiros". Também a participação na tarefa eclesial leva a Igreja a se converter. O
testemunho de Fé e Vida dos empobrecidos contribui para que a Igreja testemunhe uma
"fidelidade a Jesus Cristo", de pobreza e desapego dos bens materiais, de liberdade frente aos
poderes do mundo" (EN, n.41).
Essa redefinição que está acontecendo com a Igreja - a partir de seu deslocamento em
direção aos explorados - é uma "opção teocêntrica", porque se ama cada cultura, raça, classe,
povo, que sofre as conseqüências de um mundo genocida. A Igreja apenas cumpre sua missão
- estar a serviço do Reino - quando assume a causa da maioria sofredora.
Contudo, a Igreja, por ser também uma Instituição inserida na sociedade, acaba
falhando na sua missão específica e redentora (evangelizadora). Por isso, vamos encontrar
atitudes ambíguas na sua "opção pelos pobres", o que se dá pela falta de clareza na opção, por
não viver uma inserção mais profunda com o mundo dos pobres e pela ausência de um
discurso - anúncio e denúncia - mais conseqüente. Cabe à Igreja, também, viver um constante
discernimento diante de sua própria caminhada, porque ela está convocada a uma ação
transformadora - a Igreja tem "o dever não de anunciar a libertação de milhões de seres
humanos, mas também o dever de ajudar esta libertação a nascer, o dever de dar testemunho
da mesma, de fazer com que seja total" (EN. n.30).
Concluindo, diríamos que a Igreja como "serva do Espírito" tem procurado ser fiel ao
serviço do Reino no seu compromisso com os "bem-aventurados". Como Juízes e Mestres os
pobres apenas contribuirão para uma conversão evangélica de todos os membros da Igreja; daí
a necessidade da Igreja não negar, camuflar ou trair essa "opção pelos pobres" que deverá se
constituir irreversível, em vista da implantação de um mundo que seja sinal do reinado de
Deus. A fidelidade a Jesus Cristo hoje atravessa a realidade dos empobrecidos, porque sem a
122
libertação das opressões e injustiças, dificilmente a salvação será verdade para a grande
maioria subjugada pelo pecado que a escraviza e imola diariamente.
CAPÍTULO III - A "IGREJA DOS POBRES" E SEU FUNDAMENTO
TEOLÓGICO: A REALIDADE SACRAMENTAL, ORGANIZACIONAL
E MISSIONÁRIA
- Aproximação Prático-pastoral -
1. Introdução
Procurando aprofundar a "opção pelos pobres", tentaremos explicitar a fundamentação
teológica (evangélica)
275
e, conseqüentemente, a realidade eclesial emergente no campo
prático-pastoral, sempre a partir da redefinição da Igreja brasileira junto aos empobrecidos.
275
No presente trabalho, compreender a "opção preferencial pelos pobres" a partir da fundamentação teológica é
superar um enfoque "puramente ético" do ser para os pobres, um enfoque "universalista do povo de Deus" ou um
enfoque "puramente regional" dos oprimidos dentro de uma totalidade, coexistindo com não pobres. A
fundamentação teológica, por conseguinte, proclama que "o Espírito de Jesus está nos pobres e a partir deles
recria a totalidade da Igreja. Se esta verdade for compreendida em toda a profundidade e numa perspectiva
autenticamente trinitaria, está se dizendo que a história de Deus passa indefectivelmente pelos pobres, que o
Espírito de Jesus assume carne histórica nos pobres e que, a partir deles, se observa a direção que a história
segundo Deus deve tomar. 'A união de Deus com oS homens, tal como se em Jesus Cristo, é historicamente
uma união de um Deus esvaziado em sua versão primária ao mundo dos pobres'", Jon SOBRINO, Ressurreição
da verdadeira Igreja - os pobres, lugar teológico da eclesiologia. p. 102.
123
Para que a análise da retratação dessa redefinição não seja um simples discurso ou
apenas uma descrição de fatos, é importante ressaltar a raiz evangélica da própria "opção
pelos pobres", relacionando-as com Cristo; mostrando, com isso, a fundamentação
indestrutível da opção por pertencer ao cerne do Evangelho
276
. E ainda: a índole missionária
no compromisso com o Reino
277
e a fidelidade à interpelação do Espírito na história deverão
levar a Igreja a testemunhar um serviço ao Evangelho de Jesus, a começar de uma
evangelização dos pobres e oprimidos nas formas exigidas pelo seguimento do Senhor
278
.
Teologicamente, a Igreja revela-se como mistério visível e sacramento de Cristo e do
Espírito Santo, concepção que incrimina uma visão meramente hierárquica da Igreja ou uma
visão puramente sociológica
279
. No Magistério está clara a interpelação da Igreja como
276
"A opção preferencial pelos pobres não é, contrariamente ao que se tem repetidas vezes afirmado desde
extremos opostos, um modismo superficial, nem uma redução de ideologias estranhas no Evangelho, em um
cálculo político dentro de uma estratégia eclesiástico-clerical para manter o poder. Ela é uma opção cuja prática
é inexoravelmente exigida pela fidelidade da Igreja ao Evangelho do Reino proclamado por Jesus com palavras e
ações. Com efeito, se a opção preferencial pelos pobres pertence de fato ao coração do Evangelho, ao centro do
seu centro, ela pertence, ipso facto, à essência mais medular da igreja" - Álvaro BARREIRO. Opção pelo
pobres - a propósito de uma objeção teológica; Perspectiva teológica. 38: 10-11.
277
O que entender com Reino? O Reino de Deus - anunciado por Cristo - "é a realização da utopia fundamental
do coração humano de total transfiguração deste mundo, livre de tudo o que aliena, como sejam a dor, o pecado,
a divisão e a morte" - Leonardo BOFF. Jesus Cristo Libertador. p. 62.
Por isso, o Reino não é a libertação deste ou daquele mal (Ex.: libertação das dificuldades econômicas do
povo). O Reino abarca tudo, mundo, homem e sociedade; porque a totalidade da realidade deve ser transformada
por Deus - Cf. Lc 17, 21. Entretanto, o Reino não significa algo de puramente espiritual ou fora deste mundo.
Também encontramos teólogos que usam a expressão "reinado", "soberania de Deus", procurando demonstrar a
dimensão dinâmica que deve prevalecer sobre a estática (a expressão Reino de Deus pode conotar essa situação
estática que não existe na expressão hebréia original - malkuth Iahweh) - Cf. Jon SOBRINO. Cristologia desde
América Latina. p. 32.
Cf. George V. PIXLEY, O reino de Deus.
O autor afirma:
"Em termos abstratos e gerais, o reino de Deus significa na Bíblia uma sociedade de justiça, igualdade e
abundância. Em termos concretos, esse reino orienta projetos históricos diferentes sob diferentes circunstâncias"
(p. 117).
"Somente a experiência dirá se o reino bíblico de Deus pode verdadeiramente ser Boa Nova para os pobres, para
os trabalhadores explorados da América Latina. Parece haver elementos positivos, mas somente sua
encarnação em estratégias efetivas de libertação irá confirmar que não se trata de uma questão dos povos da
América Latina se nos impõe hoje, e, para os que crêem no reino de Deus, temos um aliado divino em nossa
luta... a história deverá dizer se nossa fé está bem situada. Só a experiência há de comprová-lo" (p. 120).
278
Cf. José R. REGIDOR. Jesús y el despertar de los oprimidos. p. 365-470.
279
O teólogo L. Boff apresenta um aprofundamento da noção de mistério mostrando as nove principais
significações. Citemos algumas dessas significações:
a)"Mistério-sacramento" significa o plano histórico-salvífico de Deus. Este desígnio divino estava
oculto em Deus, mas se destina à revelação a todos os homens mediante os apóstolos e os profetas (1 Cor 4,1;
Rm 16; 25; Cl 1,25; Ef 3, 34-8) particularmente pela Igreja (Ef 3,10). Mesmo comunicado aos homens, o
mistério continua mistério".
124
mistério - "Entre os mistérios de divina Providencia, impenetráveis à nossa inteligência, Deus
quis um que fosse como que tocável pelas mãos: o mistério visível da Igreja imorredoura no
meio do mundo. A Igreja é o grande mistério visível..."
280
; "A Igreja, mistério de comunhão,
povo de Deus a serviço dos homens continua... levando a todos a Boa Nova
281
. Numa visão de
mistério, retamente compreendida, não existe o problema do reducionismo porque une as
várias dimensões da realidade-Igreja: a social histórica com a espiritual e transcendente
282
.
Por isso, "nos basta dizer que a Igreja é mistério porque nela atuam Deus e, de forma única,
Jesus Cristo e o Espírito Santo. Eles atuam, sim, mas unidos à materialidade institucional da
Igreja"
283
. Na coexistência numa mesma realidade-Igreja de dois elementos do divino e do
humano, reside o específico do mistério da Igreja, vale dizer, compreender a Igreja é concebê-
la a partir da união das realidades humana e divina, temporal e espiritual, ordenada a serviço
do plano de Deus para o seu Povo.
A Igreja pode demonstrar este mistério (também) quando nela se celebram os mistérios
da salvação e estes se realizam litúrgica e sacramentalmente na vida dos fiéis, da
comunidade
284
.
b)"Mistério-sacramento" significa Jesus Cristo, chamado por São Paulo de mistério de Deus (Cl 2,3) em
quem o plano histórico-salvífico encontrou sua máxima concretização e comunicação aos homens".
c)"Mistério-sacramento" designa também os vários fatos da vida de Cristo, seu nascimento, seu amor
aos pobres, seus milagres, sua paixão, sua morte e ressurreição. Os Padres falavam dos mysteria et sacramenta
carnis Christi".
d)"Mistério-sacramento" significa a própria Igreja na medida em que ela vem sempre associada ao
mistério de Cristo, do Espírito e da própria SS. Trindade..."
e)"Mistério-sacramento" significa os sete sacramentos da Igreja, vale dizer, aquelas celebrações que
concretizam o sacramento-base que é a própria Igreja para as várias situações da vida humana, historizando o
plano da salvação e comunicando a graça divina".
f)"Mistério-sacramento" designa as verdades cristãs reveladas não acessíveis a razão humana, algumas
delas mesmo depois de reveladas, como o mistério da SS. Trindade..."
g)"Mistério-sacramento" significa a união do visível com o invisível, compreensível apenas pelos
iniciados na cristã. Assim na teologia patrística se dizia que o sacramento (elemento visível) contém um
mistério (elemento invisível) ou então o mistério (trascendente) se manifesta no sacramento (imanente)" -
Leonardo BOFF, E a igreja se fez povo... p. 25-27.
280
PIUS XII, Les Enseignement II, 1114-1115.
281
DP, n. 167.
282
Cf. Leonardo BOFF, Op. Cit., p. 24-31.
283
Ibid., p. 31.
284
Cf. Ibid., p. 31-32.
125
Enfim, o mistério da Igreja é um mistério sacramental. Daí a exigência de que a Igreja,
apesar da sua realidade complexa e paradoxal, esteja convocada a concretizar este mistério na
comunidade ao se transformar em Povo de Deus, em corpo místico de Cristo; caso contrário,
degenera-se em mistificação.
Mas o que surge de "novo", na Comunidade eclesial, além de estar em correspondência
"contínua" com a Plenitude (LG. n
o
12-19), é estar voltada para uma vida concreta e solidária
com os pobres explorados, porque viver uma fidelidade ao Reino é compreender na prática
que o que "com-move o coração de Deus na direção dos pobres, o que atrai sobre eles a
'justiça' e a misericórdia de Deus é a situação dos pobres como tais, sejam quais forem suas
disposições espirituais interiores. É a situação material de necessidade, de indigência e de
miséria, de injustiça, de opressão e de marginalização, e os sofrimentos decorrentes dessa
situação, o que suscita a benevolência e a predileção, a compaixão, a misericórdia e a ternura
de Deus para com eles"
285
.
Com isso, a Instituição eclesial deve entender a "opção pelos pobres" não como forma
de idealizar ou sacralizar os pobres, mas proclamar o fim da pobreza ao crer que seguir o
Deus protetor e libertador dos oprimidos
286
é compreendê-lo e revelá-lo no testemunho de
fraternidade e de solidariedade com os que vivem sob os flagelos da indigência e da miséria,
da marginalização e da humilhação. A prática evangélica da "opção pelos pobres" é, portanto,
critério prático de verificação do compromisso com o Reino
287
.
O autor comenta: "É mistério em sentido estrito... a transubstanciação do pão e do vinho no corpo e no sangue do
Senhor. Neste pedaço de mundo material se comunica o mistério supremo, Deus mesmo em sua divindade para
ser alimento dos que peregrinam na fé. É mistério o fato de os elementos cósmicos que constituem a matéria dos
sacramentos poderem se fazer sinais e instrumentos da proximidade graciosa de Deus. Os sacramentos sempre
são gestos que Cristo faz mediante o corpo da Igreja em benefício do Povo de Deus" (pp. 30-31).
285
Álvaro BARREIRO, Op. Cit.,p. 11
286
Cf. Elza TAMEZ. A bíblia dos oprimidos: a opressão na teologia bíblica. p. 101-110.
287
Afirma o renomado teólogo G. Gutiérrez: “... fica cada vez mais claro para muitos cristãos que, se quiser ser
fiel ao Deus de Jesus Cristo, a Igreja deve tomar consciência dela mesma a partir de baixo, a partir dos pobres
deste mundo, das classes exploradas, das raças desprezadas, das culturas marginalizadas. Deve descer aos
infernos deste mundo e comungar com a miséria, a injustiça, as lutas e as esperanças dos condenados da terra,
porque deles é o Reino dos céus. No fundo, trata-se de viver como Igreja aquilo que a maioria de seus próprios
membros vive cotidianamente. Nascer e até renascer como Igreja, a partir daí significa morrer hoje em uma
história de opressão e cumplicidades. Nessa perspectiva eclesiológica, retomando um tema nuclear na Bíblia,
126
Na tentativa de explicitaçao dessa realidade eclesial - fundamentada em Jesus Cristo (o
crucificado e ressuscitado) - que nos interpela a partir do empobrecido, que pode ser
denominada "Igreja dos Pobres"
288
, vamos seguir as seguintes preocupações: a)iniciaremos
abordando o pobre como "lugar teológico" da constituição da Igreja, mostrando o pobre como
sujeito (protagonista) teológico da "Igreja do Pobres" por ser uma mediação privilegiada da
Cristo é visto com o pobre, identificado com os oprimidos e espoliados do mundo" - Gustavo GUTIÉRREZ. A
força histórica dos pobres. p. 309.
288
A conceituação ou a compreensão da "Igreja dos Pobres" irá sendo explicitada ao longo desse Capítulo III.
Antecipando, gostaríamos de lembrar que, de acordo com a "opção pelos pobres" (nota 1), a "Igreja dos Pobres":
a) não significa uma parte da Igreja dentro da totalidade eclesial mais ampla, que coexista com outras partes da
Igreja; b) não pretende "superar um enfoque meramente universalista do povo de Deus"; c) não pretende apenas
"superar um enfoque puramente ético de ser para os pobres" ou puramente regional dos pobres dentro de uma
totalidade e que coexistam com outros grupos não pobres.
Mas o que se afirma é que o Espírito de Jesus está nos pobres e a partir deles recria a totalidade da Igreja
(Eclesiogênese). Nessa compreensão, a "Igreja dos Pobres" está proclamando que a história de Deus passa
indefectivelmente pelos empobrecidos, que o Espírito de Jesus assume carne histórica nos pobres e, que a partir
deles, se observa qual a direção que a história, segundo Deus, deve tomar. E ainda: a Igreja nesse testemunho-
compromisso é obra do amor de Deus à humanidade - "A Igreja é um povo universal a ser 'luz das nações' (Is.
49, 6; Lc 2, 32)... Nasce de Deus, pela fé em Jesus Cristo" (DP 237); "O povo de Deus, em que habita o Espírito,
é também um Povo Santo. Mediante o batismo, o próprio Espírito o tornou participante da vida divina, o ungiu
como povo messiânico e o revestiu da santidade da vida divina recebida. Esta santidade recorda ao Povo de Deus
a dimensão vertical e constituinte da sua comunhão. É um povo que não apenas nasce de Deus, mas também se
orienta para Ele, como povo consagrado..." (DP 250). Na preocupação de viver, em plenitude, a vocação
universal para a santidade, a "Igreja dos Pobres" procura constituir-se a partir dos pobres oprimidos e crentes,
vale dizer, é a Igreja encontrando nos pobres seu "princípio de estruturação, organização e missão" - "O
compromisso evangélico da igreja, como disse o Papa, deve ser como o de Cristo: um compromisso com os mais
necessitados (Cf. Lc 4, 18-21: Discurso inaugural III, 3). Por conseguinte, a Igreja deve ter os olhos em Cristo
quando se pergunta qual de ser a sua ação evangélica. O Filho de Deus demonstrou a grandeza deste
compromisso ao fazer-se homem, pois identificou-se com os homens tornando-se um deles, solidário com eles e
assumindo a situação em que se encontram..." (DP 1141; cf. LG 8; EN 30; Fl 2, 2-5). O pobre é o "centro da
totalidade desse modelo eclesial. Enfim, a "Igreja dos Pobres" é uma concretização do mistério da Igreja entre os
empobrecidos - "O compromisso com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram
a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto estes a interpelam constantemente
chamando-a à conversão e pelo muito que eles realizam em sua vida os valores evangélicos de solidariedade,
serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o Dom de Deus" (DP 1147; cf. 1158); "A Igreja acha-se
vivamente empenhada nesta causa (fazer realidade a justiça social nas regiões de miséria, exploração, fome,
etc.), porque a considera como sua missão, seu serviço e como uma comprovação da sua fidelidade a Cristo, para
assim ser verdadeiramente a 'Igreja dos pobres'" (L.E., n. 8).
Acreditamos que a "Igreja dos Pobres, através de sua prática, proclama uma concepção da fé, da missão e da
organização da Igreja, coerente com o seguimento ao Filho de Deus e segundo a interpelação, exigência de nossa
realidade. É o compromisso à fidelidade para viver sua missão específica: a Evangelização - a proclamação da
Boa Nova aos empobrecidos.
Comentando a "Igreja dos Pobres", afirma L. BOFF: "A Igreja que se faz pobre, mais ainda, que permite os
pobres se sentirem Igreja a ponto de constituírem a igreja dos pobres, com sua cultura de pobres, com sua
situação espoliada (e denunciada profeticamente), com sua forma de celebrar Jesus Cristo que se fez pobre (Cf. 2
Cor 8, 9), com a confiança no Espírito Santo, 'pai dos pobres', uma Igreja assim se torna, efetivamente, o
sacramento de libertação e pode se apresentar como a portadora do mistério da libertação integral" - L. BOFF, E
a Igreja se fez povo..., p. 35.
Cf. Ronaldo MUÑOZ. A Igreja no povo; para uma eclesiologia latino-americana.
Jon SOBRINO. Ressurreição da verdadeira igreja. Os pobres, lugar de eclesiologia.
Luiz Carlos ARAÚJO. Profecia e poder na igreja; reflexões para debate.
Gustavo GUTIÉRREZ. La iglesia de los pobres, in: SERVIR, 20 (1984): 268-291.
127
presença do Senhor e de um encontro com Ele de uma maneira profunda; b)também se
procurará compreender a "Igreja dos Pobres" como sacramento histórico de salvação,
ressaltando a Igreja existindo em continuidade à missão de Jesus, no serviço do Reino;
c)preocupados em visualizar um modelo de Igreja que encarna na sua prática-pastoral a
"Igreja dos Pobres", refletiremos sobre as CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base),
interpretando-as como comunidades dos pobres e como um redefinir da Igreja a partir deles;
d)por último, achamos por bem abordar as novas experiências ou exigências que nascem
dessa nova experiência eclesial nos seguintes campos: ministerial, bíblico, litúrgico e
espiritual.
Este terceiro capítulo terá como preocupação um enfoque teológico dessa nova maneira
de ser Igreja, na sua explicitação prático-pastoral.
2. O Pobre como Autêntico "lugar teológico" para a Redefinição
Constitutiva da Igreja
289
Analisando o caminhar da Igreja brasileira, constata-se uma realidade histórica e
teologal, que surge da função profética, sacerdotal e real de Cristo, em vista da realização de
sua missão evangelizadora e salvadora. Esta experiência eclesial é encontrada viva e
concretamente na "Igreja dos Pobres", onde o pobre oprimido e crente tem uma
responsabilidade direta e eficaz nessa função ou missão salvífica, devido à sua "autoridade
doutrinal" e presença teologal
290
.
289
Quando falamos de "redefinição constitutiva" queremos lembrar de uma interferência pela reestruturação da
Igreja - a partir de uma conversão estrutural - em todos os seus níveis: sacramental, hierárquico, doutrinal.
290
Hoje a instituição eclesial tem necessidade de se dirigir ao Povo-de-Deus - oprimido e crente - não como algo
conveniente, optativo, ou por um paternalismo condescendente, mas porque o pobre possui a "verdade mais
fundamental" e a experiência "pura" de Deus, conforme lembra Jon Sobrino ao refletir sobre a "autoridade
doutrinal" dos pobres: "Os bispos, assessorados por teólogos (em Medellín), elaboram uma doutrina com
autoridade. Mas a matéria pré-doutrinal sobre que falam, a urgência com a qual devem abordá-la, inclusive a
direção do enfoque doutrinal e a resposta aos problemas colocados recebe-as em primeiro lugar daqueles que são
sujeitos próprios do clamor e do anseio, por aquilo que eles mesmos exprimem em sua realidade de pobres,
oprimidos e cheios de esperança, e pela primigênia interpretação cristã que eles mesmos fazem, mais ou menos
explicitamente, desse clamor e desse anseio.
(...)
128
O empobrecido, como esse novo sujeito - juízo de Deus - que interpela, converte e
proporciona a ressurreição da Igreja
291
, é encontrado no contexto histórico e eclesial
irrompendo processos de uma nova história e de um novo modelo de Igreja
292
. Isto é
reconfirmado na leitura que fazemos da palavra de Deus e de toda a história da salvação que
se dá no Hoje.
Também não é difícil, a partir de uma nova ótica, ver e provar a correspondência em
que o pobre se manifesta como lugar excepcional da revelação de Deus, fundamentando-a no
Evangelho, porque a prática de Jesus foi fundamentalmente orientada para um serviço aos
pobres e com eles e, por isso, contra os dominadores e opressores deles
293
- afirmando, com a
própria vida, a permanente paternidade de Deus com os marginalizados. Essa prática se
num total despojamento concreto (Flp 2,6-11), passando pelo fracasso e pela morte para que,
assim, Jesus se constituísse como Senhor e Filho de Deus (Rom 1, 2-4). A Igreja deve
compreender que o ressuscitado não é outro senão o Jesus de Nazaré crucificado; por isso,
"Com eles, a doutrina ganha um núcleo fundamental e inovador e, inclusive, se recuperam muitos outros
elementos importantes da Escritura e da Tradição, que tinham ficado latentes ou abafados. Tem o povo de Deus,
portanto, autoria indireta, mas eficaz na doutrina da Igreja latino-americana. Esta reconheceu em sua própria
atividade doutrinal que sem eles a sua doutrina pode ser genericamente correta, mas concretamente ineficaz" -
Jon SOBRINO, A "autoridade doutrinal" do povo de Deus na América Latina, Concilium, 4: 61, 1985.
- Falando da "presença teologal", queremos mostrar que o pobre constitui um lugar excepcional da
presença de Deus entre os homens. Isso não pode ser confundido com triunfalismo nem automatismo, mas
mostrar uma mediação ou experiência viva e libertadora que nos ajuda a conhecer a Deus e sua vontade. Enfim,
o pobre oprimido e crente, como o Servo de Javé, é um "potencial evangelizador" (Doc. Puebla, n
o
1147), ou
seja, portador da salvação.
Cf. Jon SOBRINO, Op. Cit.
Cf. Ibid. Ressurreição da verdadeira igreja. p. 135-166.
291
Cf. Jon SOBRINO, A "autoridade doutrinal" do povo de Deus na América Latina, Op.Cit., p. 93-133.
292
É importante determinar em que sentido usa-se a terminologia Modelo de Igreja. Por que? Vejamos:
indicava Paulo VI na sua primeira encíclica, Ecclesiam suam: "O mistério da Igreja não é um mero objeto de
conhecimento teológico; é algo que deve ser vivido, de que a alma fiel pode ter como que uma experiência
conatural, antes mesmo de chegar a conhecê-lo claramente” (n. 39). Com isso, pode-se concluir que a
compreensão da realidade eclesiológica é algo complexo, difícil. Daí falar-se em modelo de Igreja, como sendo
uma conceituação de um modo parcial e funcional de compreender um fenômeno eclesiológico - para obter uma
correspondência com o mistério da Igreja - o que ajuda esclarecer perspectivas, desafios, novidades... de um
experiência eclesial. Então, quando se fala, por exemplo, de dois modelos de Igreja não se está falando de duas
Igrejas, mas de dois níveis ou setores da própria Igreja, onde cada um apresenta uma vivência eclesial, uma
estruturação institucional e uma práxis pastoral característica. Por isso, pode-se falar de dois enfoques
eclesiológicos. Ou seja: o modelo procura explicitar uma experiência ou concepção de Igreja nos seus
fenômenos (nível teológico e sociológico) interno e externo; do carisma e poder; etc.; vale dizer, o modelo ajuda
a perceber a linha da força de um fenômeno eclesiológico. - Cf. Avery DULLES. A Igreja e seus modelos. p. 5-
32.
293
Cf. Hugo ECHEGARAY. A prática de Jesus.
129
não se pode querer anunciar a ressurreição esquecendo o crucificado. "Por isso cremos que a
primeira pergunta que se dirige à Igreja, precisamente quando quer anunciar a ressurreição de
Jesus, é se está na verdade junto à cruz e junto às inumeráveis cruzes da história. Não há outro
lugar para poder falar cristãmente da ressurreição de Jesus (...) Quando a Igreja está junto do
crucificado e dos crucificados, sabe como falar do ressuscitado, como suscitar uma esperança
e como fazer com que os cristãos vivam já como ressuscitados na história"
294
.
E ainda, a prática de Jesus se identifica com a vida dos pobres e, até certo ponto, no que
é a luta dos oprimidos pela sua libertação
295
. Nesse sentido, a prática libertadora de Jesus é
um serviço ao Reino porque a mensagem que proclamava consistia, resumidamente, em que:
"a) o Reino ansiado por todos foi aproximado; b) há que acolhê-lo pelanesta bela notícia e
pela conversão; c) porque seu irromper é iminente; d) e é para a salvação dos homens,
especialmente dos pecadores; e)porque Deus é um Pai de infinita bondade que ama
indistintamente a todos, também os ingratos e maus, privilegiando os pobres, os fracos, os
pequeninos e os pecadores..."
296
. Expondo os traços da prática de Jesus que revelam uma
identificação ou uma aproximação junto aos pobres na perspectiva libertadora, podemos
lembrar
297
: A) Jesus se coloca do lado dos excluídos do sistema: a) prostitutas - que são
preferidas aos fariseus (Mt 21, 31-32; Lc 7, 37-50); b) publicanos- têm precedência sobre os
escribas (Lc 18, 9-14; 19,1-10); c) leprosos - são acolhidos e limpos (Mt 8, 2-3; 11, 5; Lc 17,
12) e os sacerdotes são obrigados a dar-lhes prova de purificação (Lc 17, 14; Mc 1, 44; Mt 8,
2-4); d) doentes (Mt 8, 17) são curados em dia de Sábado (Mc 3, 1-5; Lc 14, 1-6; 13, 10-13);
e) povo humilde - entende o mistério do reino melhor que os sábios e entendidos (Mt 11, 25-
294
Jon SOBRINO. Jesus na América Latina; seu significado para a fé e a cristologia. p. 228.
295
"Na realidade mesma de Jesus, em sua práxis e em sua palavra, é essencial a conexão de seu Pai através d'Ele
mesmo com os pobres - dialeticamente estendidos e com a pobreza mesma. É a partir desta perspectiva dos
pobres desde donde se confessa em verdade que Jesus é Deus e que Deus é para nós o Deus de Jesus. Confessar
que Jesus é Deus, entendendo por Deus algo que tem pouco que ver com o Deus de Jesus, não é estar
defendendo a divindade de Jesus, senão que é estar atribuindo-lhe uma divinização falsa" - Ignacio
ELLACURÍA, Conversíon de la Iglesia al reino de Dios; para anunciarlo y realizarlo en la história. p. 164.
296
L. BOFF. Paixão de Cristo - Paixão do mundo... p. 76.
297
Com liberdade utilizamos o referente estudo: Carlos MESTERS. A prática libertadora de Jesus.
130
26); f) famintos - acolhe-os como rebanho sem pastor (Mc 6, 34; Mt 9, 36; 15, 32), dá-lhes de
comer (Jo 6, 5-11) e provoca neles a partilha (Jo 6,9); g) mendigos - na parábola, eles recebem
a vida eterna e o rico epulão vai para o inferno (Lc 16, 19-31); pobres - o reino de Deus é
deles (Mt 5, 3; Lc 6, 20) e não dos ricos (Lc 6,24); h) samaritanos - são apresentados como
modelo aos judeus (Lc 10, 33; 17, 16); i) coxos - sua cura é sinal de que Jesus pode perdoar
pecado sem ser blasfemo (Mc 2, 1-12; Mt 11, 15); j) adúltera - é acolhida e defendida contra
a lei e contra a tradição (Jo 8, 2-11). Estas atitudes de Jesus revelam sua aproximação àqueles
que não tinham um "lugar" no sistema social de sua época. B) Jesus rejeita e combate as
decisões criadas pelos homens: a) a divisão entre pobres e exploradores - denuncia os
exploradores que se dizem benfeitores do povo (Lc 20, 46-47; Lc 22, 25) e derruba as mesas
dos cambistas que são chamados ladrões (Mc 11, 15-17; Mt 21, 12-17); b)a divisão entre puro
e impuro - Jesus questionou toda a legislação da pureza legal (Mt 23, 23; Mc 7, 13-23) e
chegou a ridicularizá-la (Mt 23, 24); c) a divisão entre próximo e o-próximo - não
depende mais da raça nem da observância exterior, mas depende da disposição de cada um se
aproximar do outro, quem quer que ele seja (Lc 10, 29-37). Nesse agir Jesus liberta o povo da
tirania da lei, dos que impunham fardos pesados ao povo dito ignorante (Mt 23, 4). C) Jesus é
contra os males que oprimem os homens: a) contra a fome, pois alimenta os famintos (Mc, 6,
30-44); b) contra a doença e tristeza, pois cura os enfermos (Mt 4, 24; 8, 16-17); c) contra as
leis que oprimem o homem e impedem o seu crescimento, pois coloca o homem com objetivo
e fim de todas as leis (Mt 12, 1-5; Mc 2, 23-28); d) contra a opressão, pois acolhe o povo
oprimido (Mt 11, 28-30) e denuncia os opressores que se fazem passar por benfeitores na
nação (Lc 22, 25); e) contra o abandono e a solidão, pois acolhe as pessoas e não as
marginaliza (Mt 9, 36; 11, 28-30). Jesus se compadece do povo abandonado, oprimido,
marginalizado e toma partido deles. D) Jesus é contra os poderosos (ricos) do seu tempo: a)
diz claramente que não é possível servir a dois senhores, a Deus e ao Dinheiro! (Mt 6, 24); b)
131
prefere o óbulo da viúva às grandes esmolas dos ricos (Lc 21, 1-4); c)não acredita muito na
conversão dos ricos, pois diz: "Se não escutam nem a Moisés nem aos Profetas, mesmo que
alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão" (Lc 16, 31); d)na parábola do homem que
constrói grandes armazéns ele denuncia a acumulação de bens (Lc 12, 13-21; Mt 6,
19),"Insensato, nessa mesma noite ser-te-á reclamada a alma. E as coisas que acumulastes, de
quem serão?" (Lc 12, 20); e)profeticamente afirma: mais fácil um camelo passar pelo
fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!" (Mc 10, 25). Jesus vai, aberta
e corajosamente, condenando todos os responsáveis pela opressão sobre o povo; ele queria
libertar a vida reprimida e oprimida (Mt 11, 28) - é a concretização da solidariedade com os
marginalizados e oprimidos por uma organização sócio-política, econômico, religiosa. E
ainda: tudo isso que Jesus testemunhou, "as suas atitudes, seus gestos e suas palavras revelam
uma nova visão das coisas, um novo ponto de partida, uma nova ordem. Não é uma nova
ordem no sentido de Jesus oferecer um programa concreto da ão política ou social, mas ele
oferece e propõe alguns pontos básicos que devem inspirar e renovar pela raiz todo o
relacionamento entre os homens, em qualquer tipo de organização que estiverem"
298
. Entre os
pontos básicos, pode-se destacar: a)Jesus une o amor a Deus ao amor ao próximo (Mt 22, 34-
40); b)o poder deve ser exercido como serviço (Mt, 12, 1-7; Mc 2, 27). Enfim, o Filho de
Deus procura viver e anunciar a toda a humanidade a Boa Nova do Reino
299
.
Viver um segmento desse Jesus, hoje, é o crente procurar ser senhor da história no
trabalho pela instalação do Reino de Deus, na luta pela justiça e pela libertação integral.
Numa linguagem de ressurreição, pode-se dizer que o senhorio se exerce repetindo na história
o gesto de Deus que ressuscita Jesus: dar vida em abundância aos crucificados de história; ou
298
Ibid., p. 15.
299
Cf. Luis M. SANDER. Jesus, o libertador. A cristologia da libertação de Leonardo Boff, p. 39.
Cf. Jon SOBRINO. Cristologia a partir da América Latina. p. 100.
132
seja, a ressurreição do Filho converte-se em boa-notícia para todos: a justiça triunfará sobre a
injustiça, a vítima sobre o verdugo.
Evidentemente, toda esta humanidade de Jesus - alguém que era vazio de si mesmo e
amante e defensor dos empobrecidos - não se identifica gratuitamente com sua divindade,
mas, porque viveu o homem na sua máxima radicalidade
300
, pôde deixar claro e transparente a
sua divindade. Essa Humanidade se identifica, conforme lembramos, de modo especial com
os pobres como "especial lugar teológico"
301
.
Antes de mostrar a implicação dessa realidade teologal do pobre para um redefinir da
instituição eclesial, queremos explicitar o que se deve entender por "lugar teológico".
Entende-se, aqui, em primeiro lugar, como o lugar onde o Deus de Jesus se revela de modo
especial porque assim o Pai tem querido
302
. Realidade experienciada quando se vive um
300
Cf. Leonardo BOFF. Jesus Cristo Libertador. p. 210-215. O autor afirma: “... Jesus foi o homem por
excelência, o eccehomo: porque sua radical humanidade foi conquistada, não pela autárquica e autocrática
afirmação do eu, mas pela entrega e comunicação de seu e aos outros e para os outros, especialmente para Deus,
a ponto de identificar-se com os outros e com Deus" (p. 212-213).
301
Utilizaremos a tese de I. Ellacuría - O pobre como "especial lugar teológico" - com liberdade, no intuito
principal de procurar demonstrar essa realidade como importante e significativa na mudança ou reestruturação da
Igreja. Cf. Ignácio ELLACURÍA, Op. Cit., 165-178.
Obs.: O autor fez uma distinção, ao menos metodologicamente, entre "lugar" e "fonte", conforme explicita: "...
'fonte' ou depósito (como) aquilo que de uma ou outra forma mantém os conteúdos da fé. A distinção não é
estrita nem, menos ainda, excludente, porque de algum modo o lugar é fonte enquanto que aquele faz que esta dê
de si isto ou aquilo, de modo que, graças ao lugar e em virtude dele, se atualizam e se fazem realmente presentes
uns determinados conteúdos" (p. 168).
302
"A opção-identificação de Deus com e pelos pobres não está fundamentada em razão de mérito ou virtude
alguma dos pobres. Pensar assim seria sacralizar o pobre. Deus não quer nem a sacralização do pobre, nem da
pobreza; quer a destruição do pobre e da pobreza. O que está em jogo é a manifestação da radical gratuidade de
seu amor transcendente e universal que se historiza de forma eficaz quando Deus busca o pequeno e perdido
deste mundo e se dirige ao pobre porque é pobre, independentemente de suas disposições morais e pessoais ou
de que os pobres podem dar algo a Deus, que o pobre não tem nenhum mérito, virtude ou título que oferecer ou
para exigir a acolhida de Deus. Os pobres da terra são aqueles cuja vida está ameaçada, são os crucificados da
história por serem pobres, os que sofrem, a violência de um sistema objetivamente injusto. O que está em jogo é
a justiça do Reino de Deus, o desígnio primigenio de Deus de que os pobres tenham vida, iniciando-se assim seu
Reino. Por isso, Deus se identifica com eles e faz polemicamente da causa do pobre, sua causa. 'O direito do
pobre, é direito de Deus’. Por isso dizemos a partir da fé, que o pobre é lugar de Deus (lugar teo-fânico) por que
nele Deus mesmo está presente" - Victorio ARAYA. El Dios de los pobres; el ministério de Dios en la
teologia de la libertación. p. 191.
No Documento de Puebla encontramos a afirmação: "... os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual
for a situação moral ou pessoal em que se encontrem. Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus
filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama. Assim é que
os pobres são os primeiros destinatários da missão e sua evangelização é o sinal e prova por excelência da
missão de Jesus" - (nº 1142).
O teólogo J. Sobrino, comentando a correlação entre Deus e os pobres a partir deste texto de Puebla, comenta:
"Isto significa que na revelação de Deus uma parcialidade constitutiva em referência ao pequeno e frágil, ao
133
processo de conversão evangélica, que se no deslocamento em direção aos empobrecidos;
vale dizer, no posicionamento de aproximação dos des-servidos da sociedade é possível
compreender na própria vida a correlação entre Deus e os pobres, sem a qual se torna difícil
testemunhar adequadamente a realidade viva do Deus libertador. E mais. Esta experiência da
teo-fania, a partir do "reverso da história", se através de três características essenciais: a) é
inicialmente uma "presença oculta e desconcertante" - apesar de ser real e decisiva (Mt 25) -
lembrando o Filho de Deus na "carne histórica de Jesus de Nazaré"; b) é, imediadamente
depois, uma “presença profética” ao viver um despojamento de si mesmo e uma palavra de
anúncio e denúncia a partir de uma prática que procura construir o reino de Deus em oposição
ao pecado; c) é, finalmente, uma "presença apocalíptica", porque contribui para destruir o
tempo de opressão, apontando ao mesmo tempo com dor de parto e com sinais de esperança
um novo homem e uma nova terra (GS 39) que deverão surgir num novo tempo.
Em segundo lugar, entende-se o "lugar teológico" como o lugar mais apto para a
vigência da em Jesus e para a correspondente práxis do seguimento; este lugar privilegiado
pode corresponder aos lugares de processo de libertação dos pobres. Jamais seriam lugares
privilegiados: o poder, a riqueza, etc.
303
. Uma experiência encarnada na realidade dos
despossuídos (oprimidos e crentes), que comunga a realizada, o seguimento de Jesus, a
esperança e a oração viva, a profecia e a luta pela libertação poderá, assim, conhecer em
profundidade a Deus e seu mistério da salvação.
Finalmente, entende-se o "lugar teológico" como o lugar mais próximo para realizar a
reflexão sobre a fé, para fazer teologia cristã. O que leva a determinar que são os pobres
"lugar teológico" neste terceiro sentido é, por um lado, o reconhecimento crente do desígnio e
pobre e oprimido deste mundo, e que sua também verdadeira universalidade se constitui através de e não à
margem dessa parcialidade. Na revelação de Deus em Jesus de Nazaré, esta anuncia a boa notícia aos pobres (Lc
4, 18), anuncia que a eles pertencem ao Reino de Deus (Mt 5, 3; Lc 6, 20) e isto se constitui em sinal principal de
sua messianidade (Mt 11, 5; Lc 7, 22). Daí ser gico o Júbilo de Jesus por serem os pequenos e não os sábios e
prudentes que compreenderam os mistérios do reino (Mt 11, 25)", Jon SOBRINO, A "autoridade doutrinal" do
povo de Deus na América Latina, Op. Cit., p. 64.
303
Cf. I. ELLACURÍA, Op. Cit., p. 166.
134
da eleição de Deus, que tem querido que o pequeno, o simples, o fraco, o empobrecido se
tenha convertido em pedra angular para confundir o mundo; por outro lado, a opção por uma
metodologia, segundo a qual se afirma que o lugar privilegiado ("lugar optimo") da revelação
e da é também o lugar privilegiado de práxis salvífica libertadora e da práxis teológica
304
.
Para a nossa visão do pobre como "lugar teológico" pode-se afirmar: "Os pobres se
convertem... em lugar donde se faz história a Palavra e donde o Espírito a recria. E nessa
historicização e recreação é donde "connaturalmente" se a práxis cristã correta, da qual a
teologia é, em certo sentido, seu momento ideológico. que reconhecer que é fundamental
para a práxis e a teoria cristã o lugar de recepção, da interpretação e de interpelação e há que
reconhecer que esse lugar é de modo preferencial e connatural o lugar teológico que
constituem os pobres, já assumidos em sua materialidade pelo Espírito de Jesus"
305
.
Tudo isso significa que os empobrecidos são interpelados como o autêntico "lugar
teológico" da compreensão da verdade e práxis cristã, e por isso também da constituição da
Igreja. Como se afirma:
“Os pobres são os que levantam a Igreja o problema teológico fundamental e
também a direção de sua resolução, porque levantam o problema de buscar a Deus,
sem pressupor que a Igreja o possua de uma vez para sempre, e lhe oferece o lugar
para encontrá-lo. A verdade cristã se converterá no universal concreto a partir dele;
neles se carrega as virtudes que a teologia irá desenvolvendo para a compreensão de
toda a história; e a partir deles se encontra a originária correspondência com a
verdade na origem evangélica. A práxis cristã recuperará sua concretização, direção
e sentido a partir deles; terão a última palavra sobre o último do cristianismo - o
amor - sobre o que realmente é, sobre suas necessárias mediações históricas, sobre
suas diversas modalidades...
Quando os pobres se tornam o centro da Igreja, eles dão direção e sentido a tudo que
legitimamente... constitui a realidade concreta da Igreja: sua pregação e ação, suas
estruturas administrativas, culturais, dogmáticas, teológicas, etc. Os pobres não são
de modo algum causa de 'redução' da realidade eclesial; pelo contrário, são fonte de
'concretização' cristã de toda a realidade eclesial
306
.”
Procurando explicitar melhor a problemática de como adentrar no Mistério - possuir a
experiência de compreender o caráter revelacional de Deus a partir da realidade dos pobres e,
304
Cf. Ibid., p. 166-168.
305
Ibid., p. 168-169.
306
Jon SOBRINO, Op. Cit., pp. 102-103
135
assim, testemunhar um conhecimento "autêntico" de Deus - defrontamo-nos com uma
questão: o ponto de partida é desde a ("analogia fidei") ou desde a práxis libertadora
("analogia praxeos")?
307
Há, na tradição protestante
308
, uma postura que tem como ponto de
partida a fé, mostrando a radical impossibilidade (pela "infinita diferença qualitativa" entre
Deus e o homem) de se pensar um caminho na história que favoreça a acessibilidade ao
conhecimento de Deus. Esta ênfase da fé, desde que não leva a um reducionismo fideísta,
mostra seu valor ao destacar gratuidade de Deus em manifestar seu amor aos homens
309
. Por
outro lado, a práxis libertadora deve ser reconhecida e mantida como âmbito da possibilidade
de aparição do Mistério de Deus na nossa atuação histórica
310
.
A e a Práxis libertadora, apesar de não se identificarem e serem "momentos
distintos" aos quais corresponde ter sua própria especificidade, não são contraditórias e não se
negam "a partir de Jesus, Deus encarnado, presente... na história, o dilema desaparece. Em
razão de que Deus se faz homem e assumiu a história, o homem e a história têm sentido e
estão abertos a partir de sua obscuridade e conflitividade (história de opressão e luta pela
libertação) ao Mysterium liberationis. O Mistério tem deixado de ser mistério em um ponto: o
amor. Quando se defende a vida ameaçada dos pobres, quando se diz a verdade onde
307
Cf. Victorino ARAYA, Op. Cit., pp. 192-193.
308
Na tradição protestante encontra-se a primazia absoluta que se ortoga ao momento de fé. - Cf. Karl BARTH,
La revelación como abolición de la religión.
Cf. Hans Kung. Existe Dios?; respuesta al problema de Dios en nuestro tiempo. p. 701-706 - obra que faz um
comentário de K. Barth.
309
"Se o homem pode conhecer a Deus não é em virtude de sua própria busca, senão porque Deus se a
conhecer. Esta ênfase carrega inegáveis valores: se mantém a primazia da ação de Deus de revelar-se desde si
mesmo à história e manifestar livremente seu amor; se mantém o momento de gratuidade essencial sem o qual
desaparece a fé. Deus se tem aproximado do homem por graça, não é busca ou conquista do homem. Deus não se
tem aproximado em correspondência a nossos méritos. Estes valores , não obstante, têm que ser resgatados do
reducionismo 'fideísta' que os limita e empobrece. A gratuidade da ação de Deus não significa que o homem se
encontre em um estado de total passividade. Isto supõe uma contradição. Assim não se pode falar de revelação
de Deus. Como poderíamos... oferecer uma mínima resposta à proposta da Palavra de Deus? Cabe aqui a palavra
clássica da tradição teológica: 'Deus salva ao homem, mas não sem o homem'". - Victorio ARAYA, Op. Cit., p.
192.
310
É teologicamente sabido que "por ser Deus sempre Maior, é irredutível a nossa práxis; a práxis não conduz
mecanicamente a Deus. Deus não está ao final e como culminação da práxis humana por [mais] correta que esta
seja (orto-práxis). Não obstante, está aberto e tende ao Mistério de Deus quem coloca sua vida em um
compromisso de libertação e justiça ao pobre: 'quem toma por guia a justiça está no caminho que conduz a Ti'. A
práxis libertadora, como amor eficaz ao pobre, constitui caminho seguro ao Deus dos pobres". - Victorio
ARAYA, Op. Cit., p. 192.
136
mentira; quando se pratica o amor onde ódio e se ama aos historicamente privados de
amor; quando se criam novas relações de fraternidade, comunhão e participação, 'vai Deus
mesmo em nosso caminhar'. A práxis libertadora e o momento da (graça e não bondade ou
mérito humano), se encaminham quando são autênticos ao mesmo fim: ao encontro do
homem com o Deus libertador e do Deus libertador com o homem"
311
.
Para querer viver uma expressão de autêntica e vigorosa - hoje - é exigido assumir a
causa dos empobrecidos (dos povos subjugados ou dominados ou das classes populares
oprimidas); ou seja, amar no Senhor aqueles a quem os deuses deste mundo têm despojado de
sua dignidade e de sua figura humana; ter misericórdia dos que vivem sob o jugo da opressão
e da escravidão. Daí a conivência com os pobres favorecer o conhecimento de Deus, pois
evangelizam a todos ao interpelar a partir da própria realidade e ao demonstrar uma viva e
libertadora
312
.
Os empobrecidos se convertem, cada vez mais, em lugar onde a Palavra faz história e
onde o Espírito a recria e, nessa historização e recriação, "connaturalmente" se manifesta a
prática cristã concreta e libertadora. Se tomarmos a sério esta afirmação conclusiva de que o
pobre é "lugar teológico", é evidente que ela se torna prioridade, ou melhor, um absoluto
diante do qual a Igreja deverá repensar e reestruturar sua caminhada. Caso contrário, a Igreja
deixaria de ser sinal ou instrumento do Reino - os pobres são os "bem-aventurados" -
deixando de ser Igreja dos pobres; e deixaria "de ser Igreja dos pobres não enquanto
desatendera gravemente aos pobres e seus problemas, senão, muito mais radicalmente,
enquanto os pobres deixaram de ser sua opção preferencial no momento de construir sua
hierarquia, de orientar sua formação, de criar suas estruturas, de enfocar sua pastoral inteira...
311
Ibid., p. 193.
312
"Na realização de sua fé, os pobres sabem e fazem saber quem é Deus, Deus da vida e da libertação, Deus
perto da história até os horrores da Cruz, Deus ressuscitado e plenificador. Sabem e fazem saber que é Jesus,
irmão dos pobres e Filho de Deus. Senhor e libertador. E assim, muitas outras coisas fundamentais. Essa
realizada dos pobres, vivida não formulada, testemunhada muitas vezes com o sangue e não só com os lábios, é a
que esclarece quem é Deus e quem é Jesus Cristo", Jon SOBRINO, Op. Cit., p. 66.
137
e também no momento de pronunciar-se dogmaticamente"
313
. A Igreja é convocada a viver,
anunciar e celebrar o Mistério da presença de Deus nos pequenos e oprimidos - o que
converte a Igreja da tentação "eclesiocêntrica" que se preocupa em construir-se "desde dentro"
- em função de seu crescimento e conservação no mundo.
Se partirmos da afirmação de que o Reino se apresenta como o absoluto
314
, então a
Igreja deve estar subordinada ao Reino e não o Reino à Igreja. Como o sentido integral do
reino se revela na totalidade da prática messiânica de Jesus, a Igreja procura atuar como sinal
e servidora do Reino ao fazer sua a prática de Jesus, fazendo de sua encarnação na história
dos oprimidos "verdadeiro anúncio e realização germinal do que se aproxima. E isto com uma
consciência explícita e proclamada de que o Reino de Deus vem em graça. E uma graça que a
Igreja experimenta não só como os novos ouvidos que capacitam para escutar a palavra ou os
novos olhos que permitem superar anteriores cegueiras, senão também como as novas mãos
para construir uma história coerente com o reino que se aproxima, em um esforço no que tal
proximidade se vive como esperança que não morre"
315
.
Nesse compromisso com o Reino, a Igreja vai descobrindo o valor e o lugar central da
sua tarefa evangelizadora, a qual dinamiza a presença da Igreja num serviço eficaz e
libertador. Assim, a presença evangelizadora se numa prática que é anúncio do reinado na
transformação de situação opressora em que vive a grande maioria; é proclamação de que o
Reino está próximo, de que no Ressuscitado se tem inaugurado já de maneira definitiva, e por
vez atitude de quem, a exemplo de Jesus, procura eficazmente corresponder a essa
313
Ignacio ELLACURÍA, op. cit., p. 170.
314
Para fundamentar a tese de que Jesus Cristo não pregou a si mesmo nem a Igreja, mas o Reino de Deus - e
esse de modo absoluto - sugerimos: Leonardo BOFF. Jesus Cristo libertador. p. 62-75.
315
Álvaro Quiróz MAGAÑA. Eclesiologia em la teologia de la liberación. p. 139.
. Nesse compromisso “... a Igreja irá aprendendo a partir de dentro, com riscos e equívocos, quais são as
medições concretas que hoje mais aproximam do reino de Deus; que sistemas sociais, econômicos e políticos
tornam mais iluminadora a proximidade do reino; onde se encontra o Espírito de Jesus, se nos centros de poder
ou no rosto dos oprimidos; como conceber e organizar a Igreja, a partir das alturas constitucionais ou a partir das
bases do povo; que pecados concretos são os que inelutavelmente se deve anunciar etc". - Jon SOBRINO. Jesus
na América
Latina. p. 142.
138
proximidade
316
. E ainda, se os pobres são parte essencial do Reino de Deus e gozam nele
prioridade, é importante compreender que os pobres são um potencial insubstituível para a
"ressurreição da verdadeira Igreja", no que diz respeito à estruturação. É sabido que, num
esforço consciente e humildade como sinal e servidora do Reino, a Igreja tem procurado
caracterizar seu testemunho ou sua opção evangelizadora com uma opção cada vez mais
definida pelos empobrecidos. Assim, o povo explorado e crente se transforma para a Igreja
num protagonista ativo na renovação eclesial; renovação que faz surgir um povo de Deus que
é uma verdadeira Igreja ("Igreja dos pobres")
317
, onde o Evangelho proclamado é semente da
libertação do Senhor da história.
Não obstante ter o empobrecido com "lugar teológico", não é compreendido como uma
tática ou recurso de revitalização da Igreja. Mas é compreender, nesse compromisso com o
pobre, um serviço à causa da fé, que é (também) a causa dos pobres; é assumir o Reino de
Deus, enquanto o Reino mantém estruturalmente conexas a realidade dos pobres e a vontade
de Deus; é procurar a sintonia entre os caminhos de Deus e dos pobres. O que ajuda a
concluir: a construção da igreja passa por um compromisso com a soberania de Deus na
316
Cf. Álvaro Q. MAGANÃ, Op. Cit., p. 146.
317
Compreendemos a "Igreja dos Pobres" como verdadeira Igreja a partir de uma fundamentação de J. Sobrino,
que, sem preocupação de distinguir igrejas verdadeiras de outras igrejas hereges e cismáticas, procura saber se
nessa "Igreja dos pobres" existe o que se pode chamar de substância da primeira eclesialidade, isto é, a fé, a
esperança, o amor, a presença de Cristo, a missão, etc., e se existe em maior plenitude que em outros moldes de
ser igreja, bem como, se por sua própria estrutura histórica, está mais bem assegurada essa primeira substância
eclesial. Para isso, procura compreender as quatro notas tradicionais (santidade, apostolicidade, unidade e
catolicidade) - notas formuladas no Concílio de Constantinopla, no ano 381 - como aparecem na "Igreja dos
Pobres"; o que serve para a verificação de verdade da Igreja. - Cf. Jon SOBRINO. Ressurreição da verdadeira
Igreja. p. 107-133.
. Comenta o teólogo: "O que faz a Igreja dos pobres é introduzir os pobres como medição última da realidade
transcendental da Igreja, da Igreja da fé, e com isso concretiza cristãmente a realidade última. E por essa razão,
concretiza também cristãmente as notas históricas da Igreja. As quatro notas são critério de verificação, e nesse
sentido a posteriori, de uma determinada Igreja. De maneira mais profunda, porém, essas quatro notas são
modos pelos quais a Igreja vai se constituindo como tal, e nesse sentido são critérios a priori da constituição da
verdadeira Igreja.
"O que acontece é que os pobres constituem a verdadeira Igreja, e uma vez que isso acontece, as notas
tradicionais, concretas a partir delas, servem para verificá-la. Mas, no fundo, constituição e verificação formam
uma coisa. Construir a verdadeira Igreja e encontrar depois os critérios dessa verdadeira construção são
historicamente uma mesma coisa. No fundo, portanto, não 'provamos' nada, como se existissem critérios
universais, válidos em si mesmos, independentemente da realidade concreta das diversas formas de ser Igreja.
O que procuramos 'mostrar' foi que a Igreja dos pobres se parece mais com a Igreja prosseguidora de Jesus" - (p.
133).
139
Terra; daí a Igreja ser chamada, despertada para entender o Reino e crer no Deus do Reino a
partir de um compromisso de e solidariedade com a grande maioria empobrecida. Nessa
relação prática de fidelidade ao Senhor, a instituição eclesial é redefinida constantemente.
3. A "Igreja dos Pobres": Sacramento Histórico de Libertação
À igreja podemos aplicar o título de sacramento por várias razões teológicas, entre as
quais pode-se lembrar: sua realidade mistérica com aspectos estruturais tangíveis e dimensão
pneumática invisível; por ser ela a fonte dos sete sacramentos; ou porque a Igreja procura
significar, antecipar e realizar o "mistério" do desígnio salvífico entre os homens e o mundo.
Nosso trabalho enfoca a significação de Igreja-sacramento no aspecto de
"instrumentalidade eficiente" da salvação dos homens, do mundo. Como se pode afirmar:
“A Igreja é o lugar onde o Reino aparece visivelmente e toma consciência de sua
atuação na história. Por isso a chamamos sacramento do Reino. Com esta expressão,
se quer indicar duas realidades. Primeiramente que entre a Igreja e o Reino uma
relação muito especial. A Igreja antecipa, concretiza e celebra a irrupção do Reino
no mundo. Por ela o Reino, que se realiza em forma anônima em muitas partes do
mundo, adquire um nome; e a salvação, que Deus vai operando nos povos e nas
pessoas, toma corpo social. A Igreja é assim a profetisa, a 'gramática' do Reino de
Deus para o mundo. Sacramento do Reino significa, em segundo lugar, que a Igreja
não tem a mesma extensão que o Reino. Este, como realidade da salvação, se faz
presente além das fronteiras visíveis da Igreja. É a ação de Deus, que desde o
começo do mundo e ao interior de todos os povos e de todas as épocas, vai abrindo
passo à humanidade nova e à libertação plena do homem
318
.”
Nessa perspectiva, a "Igreja dos Pobres" está convocada a ser sacramento do Reino ao
configurar-se como seguidora e continuadora da pessoa e obra de Jesus entre os pobres.
Assim, a Igreja se converte em sacramento histórico de libertação, anúncio, expressão visível
e realização concreta, ainda que parcial, da libertação prometida por Deus. Interessa-nos
mostrar esse aspecto de instrumentalidade eficiente da salvação pela Igreja. O que foi
lembrado no CV, conforme afirma:
“Assim o povo messiânico, ainda que não abranja atualmente os homens todos e
repetidas vezes seja mencionado como um pequeno rebanho, é para toda a
318
CLAR, Pueblo de dios y comunidad liberadora: perspectibas eclesiologiacas desde las comunidades
religiosas quw caminan eon el Pueblo, 33, p. 92.
140
humanidade um germe fecundíssimo de unidade, de esperança e de salvação.
Constituído por Cristo em comunhão de vida, de amor e de verdade, é, nas mãos do
mesmo Cristo, instrumento de redenção universal, e é enviado ao mundo inteiro
como luz do mesmo mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16).
... Deus convocou assembléia daqueles que, crendo, olham para Jesus, autor da
salvação e princípio da unidade e da paz, e constituiu-a como Igreja, para que seja,
para todos e para cada um, sacramento visível desta unidade salutífera
319
.”
A afirmação do CV põe em relevo a salvação enquanto presente e atuante na Igreja e é
eficazmente significada por ela. Por outra parte, destaca o caráter funcional da Igreja
enquanto coloca em primeiro plano sua referência à realidade da salvação. Sublinhando nessa
preocupação a unidade entre a comunidade eclesial e a salvação oferecida à humanidade,
consequentemente a Igreja como sacramento, não se distancia da historia, senão que
constantemente mergulha nela.
Analisando o modelo eclesiológico
320
subjacente à afirmação do CV - igual a
sacramento visível da salvação do mundo - surge uma pergunta: onde está a diferença entre a
eclesiologia da "Igreja dos Pobres" e a inspirada somente no CV? A diferença começa a surgir
quando se procura compreender de que salvação propriamente se trata e de ser sacramento
a "Igreja dos Pobres'; ou, a partir de que mundo ou sujeito histórico a Igreja deverá viver sua
missão evangelizadora; ou como articular a instituição organizativa e a vida comunitária
interna da Igreja com o seu compromisso de libertação do mundo. Também a novidade
eclesiológica surge quando se começa compreender a tarefa evangelizadora e o serviço da
"Igreja dos Pobres" a partir da perspectiva do Reino de Deus. Esses pontos procuraremos
abordar a seguir, o que ajudará a compreender a "Igreja que surge da Base" como sacramento
histórico de libertação.
319
Lg 9. O CV em LG 1, 8, 48; AG 1, 5; GS 42, 45 também afirma a sacramentalidade salvífica da Igreja.
320
Cf. Texto preparatório para a assembléia da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, s/d, mimeo.
O texto faz a seguinte observação: "Toda reflexão em modelos é didática e redutiva. Trata-se de uma categoria
de análise estrutural. Procura salientar de modo especial alguns traços principais da realidade em questão,
deixando outros, também presentes, na penumbra. Por isso, sua função principal é chamar atenção sobre as
características marcantes e não apresentar um quadro de referência completo e exaustivo da realidade. Não
dispensa, pois outras aproximações complementares como, por exemplo, a bordagem histórica" (p. 1).
No texto são apresentados três modelos: institucional, comunitário participativo e sacramento do Reino de Deus.
141
De início deve-se lembrar que a instituição eclesial não é, nem pode ser, ela mesma, seu
centro, porque seu centro de opção e evangelização se orienta para um compromisso com o
Reino - a Igreja acha-se ordenada ao Reino. "A comunidade dos crentes nasce da pregação do
Reino - o Reino é o seu início e o seu fundamento. E orienta-se para a plenitude da revolução
do Reino - o Reino é o seu objetivo, o seu limite e o seu juízo. A igreja não é o Reino de
Deus, mas levanta para ele os olhos, aguarda-o ao mundo como seu arauto"
321
. É a Igreja se
colocando inteiramente a serviço de Deus, ao ser sinal da realidade do Reino que ela espera,
testemunha e prega - o qual é futuro, mas, no entanto, presente. E ainda: a comunidade
eclesial deverá, em fidelidade ao Senhor, testemunhar, cada vez mais, uma salvação que vem
se conceber a partir da libertação integral e total para o homem, não cabendo uma visão
reducionista
322
- "Há de ser sacramento de uma salvação total, integral, definitiva, que ocorre
na história como algo que na mesma história é maior que a história e nesse sentido é graça
que aponta à consumação final; salvação que afeta à totalidade do homem e da
humanidade"
323
. Ou seja, o sentido da instituição eclesial, da vida interna, é ser epifania do
Reino. A missão evangelizadora no mundo articula as dimensões institucional e profética para
que a comunidade eclesial revele-se como sinal e instrumento do Reino escatológico
324
.
Se a missão da Igreja é anunciar e instaurar o Reino entre os povos, como ela está sendo
este sinal do Reino como salvação na "Igreja dos Pobres"
325
? Sem uma preocupação ou
321
Hans KING. A Igreja. v. I, p. 128-150, cit. p. 138.
322
Baseando-se em Álvaro Q. MAGAÑA, explicitaremos três reduções que procuram compreender a salvação
fora da história e, conseqüentemente, reduzem o âmbito da vida cristã e da missão da Igreja.
A. Reduçao sobrenaturalista: reduz a salvação a um âmbito "sobrenatural", o que levou a uma dicotomia da vida
do cristão. A atividade temporal recebia um valor puramente extrínseco.
B. Redução eclesiocêntrica: uma Igreja voltada para si mesma e, por isso, distante da história. Esta visão
tipificou-se na afirmação: "extra ecclesiam nulla salus".
C. Redução escatologista: “não consegue prever a salvação se dando na atual existência histórica”.
323
Álvaro Q. MAGAÑA, Op. Cit., p. 109.
324
Se o reinado de Deus é uma realidade absoluta, a Igreja é algo relativo, sendo que sua função é permitir um
discernimento da presença salvífica de Deus na história. Daí que a "dimensão sacerdotal" da comunidade eclesial
não está em celebrar a si mesma ou para si mesma, mas sempre voltada para converte-se num sujeito absoluto,
exerce um poder que a transforma institucionalmente num Reino eclesiástico, perdendo assim a sua dimensão
sacerdotal e sacramental". -Pablo RICHARD. Morte das cristandades e nascimento da igreja. 2
a
ed. p. 229-240
- cit. p. 231.
325
DP n
o
227.
142
tendência triunfalista, a "Igreja dos Pobres" assume um compromisso com a obra salvadora
dos pobres oprimidos, porque compreendê-la como sacramento de libertação é interpretá-la,
não como a salvação, mas sim, no seu testemunhar de acolhida da fé e da prática do amor, um
estar a serviço da salvação histórica dos homens
326
. É sabido que a salvação ultrapassa as
fronteiras da Igreja, porque "não há salvação porque Igreja, senão que existe Igreja, porque
há salvação"
327
.
Portanto, reconhecer a comunidade eclesial como sacramento de libertação não é
"relativizá-la”; ao contrário, é interpretar a realidade eclesial no sentido de efeito de salvação
e no de significar dinamicamente para o mundo de opressão, marginalizarão, etc., a salvação
que é oferecida pelo Deus da vida
328
- porque a comunidade eclesial torna-se o lugar onde,
mediante a e a caridade, emerge de tal maneira a salvação que pode não celebrá-la,
senão ao mesmo visibilizá-la como interpelação e anúncio. A constituição sacramental mais
profunda da Igreja é efeito da salvação e da graça. E na vivência de comunidade, o cristão,
. "... A Igreja dos pobres não é aquela que, sendo rica e estabelecendo como tal, se preocupa com os pobres; não
é aquela Igreja, que estando fora do mundo dos pobres, oferece generosamente sua ajuda. É, melhor, uma Igreja,
na qual os pobres são seu principal sujeito e seu princípio de estruturação interna; a união de Deus com os
homens, tal como se em Jesus Cristo, é historicamente uma união de um Deus despojado em sua versão
primária ao mundo dos pobres. Assim a Igreja, sendo ela mesma pobre e, sobretudo, dedicando-se
fundamentalmente à salvação dos pobres, poderá ser o que é e poderá desenvolver cristãmente sua missão de
salvação universal. Encarnando-se entre os pobres, dedicando ultimamente sua vida a eles e morrendo por eles, é
como pode constituir-se cristãmente em sinal eficaz de salvação para todos os homens", - Ignacio
ELLACURRÍA, Op., Cit,. pp. 207-208.
326
O teólogo I. Ellacurría, com relação à salvação histórica, afirma: "que a salvação seja histórica supõe... duas
coisas: será diferente segundo o tempo e o lugar em que se realiza, e deve realizar-se na realidade histórica do
homem, ou seja, em sua total e concreta realidade. Não tem, portanto, por que se escandalizar de que a Igreja
aprendendo sua missão concreta pela leitura da revelação na realidade cambiante da história dos homens, nem de
que anunciando sua salvação de modo distinto segundo as situações distintas. Que empiricamente haja nisto
muito de oportunismo, não impede que este proceder seja em si o único para ser fiel a sua missão", Ignacio
Ellacuría, teologia política, 8; cit. in: Alvaro Q. MAGANÃ, Op. Cit., p. 111.
327
Ibid., p. 98.
. Também o Concílio Vaticano II reconhece a graça fora do âmbito eclesial: "Aqueles ... que sem culpa
ignoraram o Evangelho de Cristo e Sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tendem, sob o influxo
da graça, cumprir por obras a Sua vontade conhecida através do ditame da consciência, podem conseguir a
salvação eterna" (GS 16).
328
Na definição teológica da Igreja como Sacramentum, que se entender que Sacramento - na realidade
eclesial - "não tem antes de tudo um valor ativo ou eficiente, mas passivo ou paciente. Trata-se de uma realidade
que é repleta de Graça. Por isso, e por isso, a Igreja é sinal de Graça. A Igreja contém Graça
participativamente, mas não a Graça exclusivamente como se fosse sua fonte ou como se tivesse seu monopólio.
"Portanto, a Igreja como Sacramento é sinal de Graça; não um sinal-fator, mas um sinal-efeito. É só num sentido
segundo ou terceiro que a Igreja é "instrumento" da Graça (e não da Graça, pois que não tem o monopólio da
Graça, como salvação oferecida)". Clodovis BOFF. Comunidade eclesial -
comunidade política; ensaios de
eclesiologia política. p. 28.
143
empobrecido ou o que participa assumindo a causa dos pobres e tornou verdadeira e eficaz a
"opção pelos pobres", pode constatar a libertação - lugar de salvação - como realidade na
fraternidade e solidariedade, na transformação do homem e do mundo, na erradicação do
pecado e no encontro profundo com Deus.
Quando se pensa numa Igreja Profética ou como sinal (instrumento) de libertação,
necessariamente se opõe à "Igreja Massa"
329
, a qual se identifica com uma preocupação com a
sacramentalização e ritos, e com uma vivência desencarnada e impositiva, tentada a
manifestar o poder. A 'Igreja Massa" se revela como "privilégio" para aqueles que querem
maior facilidade, confirmando o próprio egoísmo (dominação, opressão)
330
. A Igreja tem que
testemunhar um sinal de libertação; em outras palavras, "a ajuda essencial que a Igreja presta
ao 'povo' da humanidade não é a de introduzi-lo em seu próprio risco, indevidamente, ou seja,
sem remover o obstáculo de sua salvação, mas a de fazer ressoar, através de sua significação,
a mensagem que pode mudar-lhe a existência, até sem o converter em cristão. Do contrário,
esta... mensagem de salvação não chegará até ele, ainda que, esteja dentro da Igreja"
331
.
Assim, se encontrará a Igreja como sinal de libertação e não um cerco onde o cristão "vive"
sua fé e "assegura" sua salvação.
A comunidade através da evangelização - ação específica de comunidade eclesial - vai
iluminando as consciências alienadas e deslegitimando as estruturas de dominação. Para isso,
tem que enfrentar, sobretudo, a idolatria enraizada na manipulação ou deformação de Deus,
como sua substituição por outros deuses. A "Igreja dos Pobres" vai se fazendo instrumento da
libertação quando, profeticamente nas lutas de libertação, contribui para destruir as raízes
idolátricas da exploração, opressão ao desidolatrar os mecanismos de dominação, ao destruir
329
C.f. Juan Bautista CAPPELLARO. De massa a pueblo de Dios; proyeto pastoral.
Cf. Juan Luis SEGUNDO. Teologia aberta para o leigo adulto. v. I - essa comunidade chamada igreja, p. 97-
118.
330
Cf. Juan Luis SEGUNDO, Op. Cit.
331
Ibid., pp. 105-106.
144
os "fetiches intocáveis do sistema"
332
. A partir do imperativo ético a Igreja vive a missão
evangelizadora que se refere à totalidade da existência humana: cultura, economia, política. Já
não se pode mais separar evangelização e justiça social, evangelização e libertação
333
.
Procurando visibilizar a realidade salvífica da "Igreja dos Pobres", a partir da nossa
realidade conflitiva, achamos que a detectamos quando Igreja denuncia como pecado e,
portanto, como contrária a Deus, toda a situação de injustiça e de exploração que nos cerca, e
quando se solidariza - decisão política da vida, dos direitos básicos
334
- concretamente com os
empobrecidos e com sua luta enquanto destinatários privilegiados do anúncio evangélico. É o
grito da grande maioria sendo assumido e discernido evangelicamente pela Igreja. Podemos
presenciar esta experiência eclesial em alguns setores ou lugares da Igreja brasileira; onde,
profeticamente, a "Igreja dos Pobres" vai aguçando sua capacidade de ouvir e sentir os
problemas do povo de modo direto. Buscando revelar a ação libertadora de Deus na história,
numa vivência de fé explícita e pública, a Igreja não teme ser as "minorias proféticas" que
interpretam na vida a radicalidade evangélica ao se comprometer com a "lógica das maiorias",
refletindo e tomando posição face aos problemas sociais e estruturais que atingem
profundamente a comunidade eclesial e nacional.
Por isso, encontramos, na história da "Igreja dos oprimidos"
335
, irmãos dispostos a dar
sua própria vida em fidelidade ao Evangelho e ao povo pobre e explorado; agentes de pastoral
sendo assassinados ou martirizados ao defenderem o povo indígena e o povo negro; cristãos
militantes sendo perseguidos ou mortos por viverem um projeto pastoral ou popular no
332
Cf. Pablo RICHARD, Op. Cit.
afirma o autor: "Por trás de cada sujeito dominante sempre outro sujeito, abstrato e universal, com o qual o
sujeito dominante se identifica. A opressão nunca é exercida em nome próprio, mas em nome de um sujeito
'sobrenatural' que se impõe com modalidades 'divinas'. Este desdobramento do sujeito opressor e sua
identificação com este sujeito 'divino' permitem ao sujeito opressor agir sem limites. Quando o sujeito opressor
se 'diviniza', converte-se num sujeito perigoso, pois oprime e reprime em nome de 'deus', e assim tudo lhe é lícito
e permitido. A idolatrização do poder político é hoje, na América Latina, uma das causas da repressão cruel e
generalizada contra o povo. A evangelização denuncia esta idolatria repressiva e distingue claramente entre o
Deus dos pobres e o deus em nome do qual se mata o povo" (p. 234).
333
Cf. E.N., n. 29-30; I.L., n. 63-65.
334
Cf. L.E., n. 8; I.L., n. 61.
335
Cf. Helena SALEM (coord.). A igreja dos oprimidos. col. Brasil Hoje, nº 3.
145
coração dos movimentos locais
336
; pastores (bispos, padres, religiosos) que, sem temor,
tomam a defesa dos camponeses (bóia-frias, posseiros), operários, desempregados.
Acreditamos que a "Igreja dos Pobres" revela-se como sacramento histórico de
libertação pelas suas características fundamentais: ser presença libertadora no mundo dos
empobrecidos, descobrir a manifestação de Deus (teofania) a partir do "novo lugar" (o povo
negro, os favelados, as mulheres), fazendo-se fermento e luz ao despertar no povo o acreditar
na infalibilidade da causa da justiça e da fraternidade, e no que a proclama e a esperança
promete; acreditar que se faz compromisso através da construção da nova sociedade e na luta
para o surgimento do novo homem.
4. CEB’s: Comunidades de Pobres e a Serviço de Libertação pela
Evangelização.
A seguir procuraremos demonstrar a realidade das CEB’s (Comunidades Eclesiais de
Base) a partir da sua constituição sociológica pelos pobres e o seu testemunho - na dimensão
teologal - como comunidade evangelizadora e, por isso, libertadora.
Contudo, antes, gostaríamos de lembrar um equívoco comum em relação às CEB’s.
Geralmente quando se comenta ou algum estudo a respeito delas, quase sempre uma
exploração que não visualiza sua verdadeira identidade vital, cotidiana, processual. Com
facilidade se cai num "otimismo ingênuo", numa visão triunfalista a-crítica, numa concepção
336
Para mostrar a correspondência entre a opção pelos empobrecidos e os movimentos populares, o teólogo
Milton Schwantes afirma: “A opção pelos pobres é uma opção pela sua organização. Ela insere as igrejas nos
movimentos populares!" - M. SCHWANTES, Teologia bíblica junto ao povo, in: Estudos da religião 3, p. 46.
Quanto aos negros, comenta David Regan: "Pela primeira vez, pessoas marcadas pela escravidão têm a
oportunidade de expressar-se com a relativa liberdade em termos de religião. Essa liberdade é dificultada pelos
séculos de discriminação contra os negros, anteriormente marcados de forma atroz pelo código legal da
escravatura, hoje mais sofisticada apesar de sutilmente encoberta. As CEB’s oferecem um espaço no qual
aquelas culturas africanas, por tanto tempo suprimidas, podem encontrar o Evangelho em liberdade.
Mais da metade da população brasileira possui traços raciais negros, e não é necessário dizer que é a metade
mais pobre. E é exatamente desta metade que as CEB’s se constituem, sendo a Igreja não com os pobres, nem a
favor dos pobres, mas dos pobres". - D. REGAN. Igreja para a libertação; retrato pastoral da igreja no
Brasil. p. 76-77.
Cf. Pablo RICAHRD, A igreja dos pobres no movimento popular, Concilium/196: 16-24.
146
de "estado puro" ou "realidade perfeita", que limita uma compreensão mais englobante ou
realista. É importante sublinhar que as CEB’s não são - e nem poderiam ser - uma realidade
que surge espontaneamente ou fora de qualquer tensão, ambigüidade, contradição.
Numa experiência de limitação das CEB’s encontram-se, pelo menos, os seguintes
problemas: 1) a coexistência de sua incipiente prática de democracia participativa com o
modelo centralizado e hierarquizado da Igreja; 2) a atração exercida sobre os militantes mais
pobres, por movimentos católicos de classe média, mais voltados para a instituição clerical; 3)
o aproveitamento dos militantes mais ativos das CEB’s em funções ligadas aos ministérios
tradicionais da Igreja (sempre na perspectiva clerical e machista); 4) o choque entre a
metodologia de atuação das CEB’s - mais lenta - e o desempenho dos sindicatos, partidos e
associações em que os militantes das comunidades também atuam. Coloca-se, aqui, também,
o preconceito ainda muito forte, na hierarquia da Igreja, com relação aos partidos políticos; 5)
a consciência, bem evidente em muitos militantes de CEB’s, de que o discurso sobre
"libertação" foi apropriado oficialmente pela Igreja, embora, na prática, a teoria seja outra,
em muitas paróquias, dioceses e arquidioceses.
337
.
Através de leitura das pesquisas e relatórios das CEB’s, pode-se constatar que elas são
praticamente constituídas por pessoas, povo dominado ou classes pobres e oprimidas,
geralmente localizadas em áreas socialmente carentes, sejam rurais ou urbanas
338
. É uma
337
Dermi AZEVEDO, CEB’s indefinidas entre autonomia e institucionalização, in: Dossiê Folha, 4/5/1986, p. 6.
338
Os participantes geralmente são encontrados entre os lavradores, meeiros, lavadeiras, faxineiras, operários de
construção, biscateiros, eletricistas, motoristas, etc. Muitos não apresentam nenhuma qualificação profissional e
são analfabetos, o que não exclui a presença da assessoria ou participação de pessoas de outras classes (Ex.:
agentes de pastoral-padre, religiosos, advogados, etc.) que optam por uma "comunhão e participação" com e
nessas comunidades.
Cf. Álvaro BARREIRO, Comunidade eclesiais de base e evangelização dos pobres. p. 21-27.
. Reflete Enrique Dussel: "As CEB’s são sem vida o lugar orgânico do cristão, povo oprimido e 'Povo de
Deus', parte dos pobres e parte da Igreja. Nem todos os membros da Igreja optam pelos pobres nem são pobres.
A Comunidade de Base é o lugar próprio da participação dos pobres, o povo dos pobres, na Igreja, Povo de
Deus, e dos que optam por eles. Esses pobres e os que optam por eles, membros do ‘Povo de Deu’, poderiam ser
perfeitamente denominados ‘Igreja popular’”, Enrique DUSSEL, Populus dei” in populo, Concilium/196,1984:
60.
Quanto à composição das CEB’s, encontramos uma afirmação de C. Boff que achamos bastante elucidativa. Diz:
“Os membros das CEB’s são em sua maioria absoluta gente pobre. Pertencem às camadas populares, aos estratos
sociais mais sofridos. Esse o é um dado primeiramente religioso mas social: constata-se que é assim. De fato,
147
característica própria das CEB’s - um traço eclesiológico - serem, antes de tudo, uma Igreja
constituída a partir dos empobrecidos da sociedade
339
.
as CEB’s até hoje vingaram nas duas áreas sociais onde vivem os pobres: no campo e nas periferias das cidades.
Seria por este fato que se fala em ‘base’ o respeito delas? Em parte sim. Não é à toa que em outros países da
América Latina se substitui ‘de base’ por ‘populares’ indicação do mesmo componente social desses grupos
(...) Contudo, encontra-se sempre nas CEB’s gente da classe média e até alta. Em geral são agentes de pastoral:
coordenadores, responsáveis de um setor ou de uma tarefa específica dentro da comunidade. São leigos que se
comprometeram com os pobres do ponto de vista da ‘evangelização libertadora’”. – Clodovis BOFF, Fisionomia
das comunidades eclesiais de base, Concilium/164: 72-73.
Cf. Jon SOBRINO. Fora dos pobres não há salvação. Ed. Paulinas, 2008, p. 187.
Cf. VV.AA., A esperança dos pobres vive. Coletânea em homenagem aos 80 anos de José Coneblin. Ed.
Paulus, 2003, p. 767.
339
Encontram-se estudos, documentos do episcopado que não aceitam o princípio “CEB’s: comunidade de
pobres”, ou não são claros nessa definição. Vejamos:
. Documento da CNBB:
- “Não seria certo...concluir-se...que as CEB’s só são possíveis entre as classes pobres. Pior ainda seria pensar se
em duas Igrejas irredutíveis entre si: uma dos pobres, nas CEB’s, e outra das classes médias e ricas, na paróquia
e outras organizações”, CNBB, Comunidades eclesiais de base na igreja do Brasil, Documento da CNBB, 25, p.
19.
. O teólogo Azevedo apresenta a seguinte observação:
- “Tanto Codina como Dussel e CI. Boff, ao mesmo tempo em que vinculam os pobres (e as CEB’s), de modo
absoluto e inquestionável, ao projeto de libertação (não estão contemplados pobres que não o representem ou
dele não participem efetivamente), excluem do projeto, automaticamente e de modo não menos absoluto, os que
não são empobrecidos (economicamente). Ora, os próprios teólogos e outros intelectuais que servem as CEB’s e
com elas refletem não são pobres e não chegarão a sê-lo apesar da sinceridade da intenção como são pobres
os que eles definem como tais. É preciso, pois, ter a coragem de admitir e propugnar, na teoria e na prática, que
as CEB’s e o projeto da construção de uma sociedade justa, libertadora, devem, potencial e eclesialmente,
envolver a todos. CEB’s e libertação não são uma simples versão ou duplicata cristã da utopia marxista, a exigir
a hegemonia dos empobrecidos (ou do proletariado) e a sua eventual dominação sobre todos os demais como via
única para concretizar a nova sociedade. Este esquema acena de fato com perspectivas historicamente
comprovadas como inviáveis (alimentando, pois, uma ilusão de massa) e, ao mesmo tempo, fecha a porta (por
princípio ou por silêncio) à transformação viável, embora nada fácil, de muitos que não são pobres
materialmente, por aqueles que o são evangelicamente e/ou economicamente (mas não economicamente) e
conscientizadamente (isto é, conscientes da necessidade de uma nova sociedade). A falta do reconhecimento e da
explicitação desta perspectiva radicaliza as pessoas e compromete-o processo por um dualismo insanável. No
entanto as opções é que devem ser radicais (ir até à raiz), para fazer livres as pessoas e levá-las a transformar por
dentro a sociedade, sem substituir uma opressão por outra”. Marcello AZVEDO. Comunidade eclesiais de
base e inculturação da fé. p. 100-101.
Obs.: Achamos que a observação de M. Azevedo não é condizente com o pensar dos teólogos por ele citados.
Esses teólogos (de maneira particular Cl. Boff) não tem preocupação de exclusão de nenhuma classe e nem de
vincular os pobres de modo “absoluto e inquestionável” com o processo de libertação. Também o problema do
“dualismo insanável” não é cabível. O que se exige é que toda pessoa ou classe passe a aprender a fé, a história,
a vida, pela ótica do oprimido atitude evangélica com os marginalizados (Mt 25). Passar do lugar social do
opressor para o lugar social do oprimido, favorecendo a libertação da grande maioria.
Cf. Antonio Alves de MELLO, Classe média e opção preferencial pelos pobres, REB/43: 340-350.
Também o Doc. Da CNBB citado é ambíguo. Ao mesmo tempo em que reconhece que as CEB’s são
constituídas ou congregam” pessoas pobres e simples da periferia e zona rural” (p.29) e que “o novo que as
CEB’s trouxeram foi o fato de oferecerem, dentro da Igreja, um espaço para o próprio povo simples participar da
evangelização da sociedade...” (p. 25), acaba afirmando que não é correto afirmar que as CBEs são possíveis
entre as classes empobrecidas. O problema é que a prática tem demonstrado que as CEB’s nascem e crescem
entre os explorados e marginalizados. Gostaria de citar a reflexão de D. Luis Fernandes, o qual tem uma longa e
profunda experiência com as CEB’s:
“Já se perguntou, tantas vezes, por que é que não se formam CEB’s na classe média. Às vezes, a pergunta é feita
até com certa irritação ...ruindade das CBEs? Desprezo pela classe média? O Documento de Puebla recomenda
que se continue tentado. Seria idiota imaginar-se que vai nisso a má vontade ou o capricho de alguém.
148
No seu compromisso voltado para uma ação "ad extra"
340
como comunidades de e
Caridade, querem estar comprometidas com a libertação total e integral deles, em vista da
criação (ou surgimento) de um novo Homem e uma nova Terra (Cf. GS 39), segundo os
desígnios de Deus Pai, realizados na vida de seu filho Jesus.
Devido à nossa preocupação em fundamentar as CEB’s como "Comunidades de
Pobres", no intuito de mostrar uma realidade eclesial que testemunha claramente a "opção
pelos pobres", procuraremos explicitar a caracterização BASE. Apesar do termo BASE não
receber um sentido unívoco no tratamento por teólogos ou sociólogos
341
, somos partidários do
reconhecimento do alcance eclesiológico desse termo
342
, nessa nova maneira de ser Igreja no
meio da sociedade, sobretudo no meio popular, havendo um processo dialético ao se
mergulhar nessa realidade do pobre, porque a Igreja, ao comprometer-se com os pobres, do
ponto de vista sócio-dialético, vai assumindo como comunidade um múnus profético em
relação ao contexto de opressão. Deixando de testemunhar essa missão, as CEB’s poderão se
transformar em seita, partido político ou legitimação do status quo
343
. Um traço do perfil de
“Não deixa, porém, de ser muito significativo esse desafio. uma reflexão longa e séria sobre o que é classe
média e sobre o que é a verdadeira CEB (...)
“A experiência mais tentadora seria com edifícios habitacionais. À primeira vista, nada mais fácil. Cem famílias
ali pertinho uma da outra (...)
“E contudo...nada de comunidade!
“Se houver alguma exceção, será uma confirmação de regra!”
- D. Luis FERNANDES. Como se faz uma comunidade eclesial de base. p. 42.
340
Tomamos emprestada a afirmação ad extrade A.R. Guimarães, que é compreendida assim: “A igreja não é
uma linha isolada do mundo onde vivem cristãos. Cremos que as CEB’s são um quadro em vista de uma ação
ad extra’. Insistimos em dizer que não queremos separar vida comunitária ad intra’ e ad extra’. A Igreja não
vem fazer uma ‘aparição’ episódica no mundo. Ela está realmente na realidade social, política e cultural”.
Almir Ribeiro GUIMARÃES. Comunidade de base no Brasil: uma nova maneira de ser em igreja. p. 243.
341
Cf. Marcello AZEVEDO, Op. Cit., 98-105.
342
Cf. Enrique DUSSEL. Caminhos de libertação latino-americana; reflexões para uma teologia da
libertação. v. IV. p. 151-154.
“As CEB’s manifestam o movimento que se efetua na base, isto é, nas camadas (classes) populares e, pela base,
isto é, estas camadas populares começam a expressar através de um método próprio, uma prática própria, uma
linguagem própria, suas aspirações e sua maneira de encarar o econômico, o político e o religioso (cultural-
ideoloógico). Na América Latina, estas camadas populares (classes populares) são o novo sujeito da história. O
sujeito da nova ordem é o povo e, eis a novidade, o sujeito da Igreja é também o povo. ‘Os novos bárbaros, com
seu potencial evangelizador (cf. Puebla 1147), tornam-se o ‘sujeito eclesial.
Neste sentido, a Igreja reconcilia-se com o Tempo: o sujeito político é o sujeito eclesial...O povo ocupou seu
lugar na Igreja e a transforma por dentro, levando-a, movido pelo Espírito, na direção de uma Igreja Popular, do
Povo, Igreja Povo de Deus (LG 9)”. Benedito FERRARO, IV Encontro Intereclesial da CEB’s, Vida Pastoral,
101, pp. 21-22.
343
Enrique DUSSEL, Op. Cit., p. 153-154.
149
uma CEB é a militância - gente que age, que se compromete. Toda dinâmica da CEB tende a
levar à ação e à ação libertadora.
Acreditamos que a compreensão do termo BASE ajuda a determinar, em grande parte, o
sentido sócio-eclesial da comunidade de base. "Este é o termo mais carregado de interesses
sócio-políticos e eclesiásticos na expressão 'comunidade eclesial de base'. Pois os termos
‘comunidade’ e ‘eclesial’ tornam-se críticos precisamente em relação ao termo 'base'. A
natureza da comunidade e da sua respectiva eclesialidade depende da compreensão do
conceito 'base'"
344
. Por isso, a seguir, procuraremos desvendar os níveis "sócio-político" e
"eclesiástico" do termo BASE, a partir de uma concepção que não descarateriza as CEB’s
345
.
E ainda: optamos pela via analítica e não militante.
. Obs.: Como não iremos estudar pormenorizadamente a tríplice caracterização da CEB
(Comunidade/Eclesial/Base), apenas aprofundando a realidade BASE que nos interessa, vamos citar as
definições (ou interpretações) de Comunidade e de Eclesial quanto às CEB’s que mais nos convencem. E
sempre que falarmos nas CEB’s estamos pressupondo estas interpretações.
- Comunidade: “Como grupos primários, associados em razão da vizinhança geográfica, as CEB’s exercem um
papel de primeira ordem para a refeição do tecido social, dilacerado por um lustre de ditadura. Nelas e por elas
as pessoas podem se encontrar, se conhecer, trocar idéias e experiências, se encorajar mutuamente na esfera de
dias melhores. Assim se criam espaços de sociabilidade, de diálogo e esperança dentro de uma sociedade
bloqueada por um Estado posto a serviço de uma burguesia selvagem e cínica.
(...)
“A dinâmica interna da CEB leva, antes de tudo, à participação igualitária. As pessoas se descobrem e se fazem
sujeitos. Superam o medo e a desconfiança de si mesmos. Começam a falar diante dos outros e em nome pessoal.
não estão mais reduzidos a ouvir e a falar apenas pela boca de outros. Não. Falam em nome próprio, sem
serem substituídos por pretensos ´representantes´. A comunidade se forma no exercício direto e constante de
democracia”. - Clodóvis BOFF, A influência política das comunidades eclesiais de base (CEB’s), in: Religião e
Sociedade, 4: 97-98.
- Eclesial: “Elas (CEB’s) querem ser eclesiais enquanto a fé em seus membros e sua unidade com a da Igreja
é o primeiro catalisador para a própria constituição do grupo enquanto eclesial. Eclesiais, em seguida, enquanto
se vinculam à hierarquia da Igreja, reconhecidas e acolhidas por ela e a ela submissa. Hierarquia, neste contexto
quer significar numa espécie de sinédoque, a parte pelo todo uma expressão inequívoca da Igreja como
instituição. Unidas à hierarquia, as CEB’s explicitam sua pertença à Igreja, enquanto esta é realidade visível
social-sociológica, com uma determinada estrutura. Nesta, por sua vez, a hierarquia, soube promover e guardar a
unidade do corpo, tem também uma função legitimadora no reconhecimento da pertença ao corpo. Eclesiais
enfim porque constituem um novo modo de ser Igreja, no qual esta vive, na espontaneidade de novas formas de
serviço e, portanto, na criação de outros ministérios e modos de presença no mundo”. Marcello AZEVEDO,
Op. Cit., p. 86-87.
344
J.B. LIBÂNIO, Comunidades eclesiais da base: em torno ao termo “base”, in: Perspectiva Teológica, 18
(1986): 63.
345
A “concepção sócio-dialética” apresenta um sentido de BASE que é mais globalizante e responde à nossa
preocupação. Enquanto uma concepção privatizante” ou psicologizante chama a atenção sobre o caráter quase
familiar da comunidade – trata-se de uma comunidade de poucos membros, onde existe um mútuo conhecimento
e relações primárias (DP, n. 641), a “concepção sócio-dialética” vem mostrar que BASE quer significar as
classes populares. Lembra que a opressão atinge os níveis econômico, político e ideológico. Economicamente a
BASE são aqueles que são explorados na sua força de trabalho. Sobrevivem na miséria, desemprego,
subemprego, etc. Politicamente a base são aqueles que não detém poder na sociedade ou somente dispõem de
150
Quanto ao "nível cio-político"; compreendido numa concepção sócio-dialética, a
BASE vem a significar, representar, o povo oprimido ou as classes populares oprimidas
346
.
Como conseqüência de tal concepção de BASE valoriza o aspecto de compromisso social, de
lutas em prol da libertação das CEB’s. A estas comunidades já não permite que fiquem
restritas e fechadas unicamente aos problemas internos da comunidade. Isso ajuda a sobressair
a originalidade das CEB’s em praticarem a articulação entre e vida, a vivência religiosa e
os compromissos, as exigências sociais, vale dizer, "se duas vertentes originantes das
CEB’s - a religiosa e a social - a verdadeira CEB surge quando elas se fundem numa
unidade em profunda articulação"
347
.
Esta concepção de BASE, ao não mascarar a conflitividade da e na sociedade, exige que
as CEB’s repensem os conflitos em termos teológicos, eclesiológicos, pastorais
348
. Já não
cabe ocultar os problemas reais; resta redefinir as pastorais para uma sociedade conflitiva.
No "nível eclesiástico", entendido num sentido qualitativo
349
, o termo BASE quer
significar fundamentalmente "aqueles que não têm poder quer na sociedade - sentido
sociológico - quer na Igreja - sentido eclesiológico"
350
. Necessariamente, a caracterização
BASE define-se em oposição aos que ocupam os lugares de poder, de autoridade, na realidade
política ou eclesiástica. Daí que na igreja "não são base aqueles que constituem o mundo
explicitamente clerical, seus teólogos, as forças pastorais ilustradas, os consultores e
assessores. Todos eles dispõem de algum poder oficial. A 'base' está totalmente desprovida
pequena parcela. Ideologicamente a Base se caracteriza por dois grupos: a) Uns estão em pleno processo de
conscientização ou já vivem um bom nível de lucidez crítico-ideológica. São base porque pela conscientização e
avanço crítico-ideológico não esqueceram a condição de classe popular, mas a assumiram ainda mais
explicitamente; b) outros vivem na inconsciência dos próprios direitos, interesses das classes populares. São
facilmente manipuláveis.
346
Cf. J.B. LIBÂNIO, Op. Cit.
347
Ibid., p. 69.
348
Cf. J.B. LIBÂNIO. Pastoral numa sociedade de conflitos.
349
Cf. Id., Comunidades eclesiais de base...
350
Ibid., p. 72.
151
desse poder eclesiástico"
351
. Inclusive a classe média, que pode servir a uma CEB, deve ter
uma presença de "retaguarda" na Comunidade, e não hegemônica.
A partir dessa concepção do termo BASE - nível eclesiástico - entendem-se as CEB’s
com "novo modo de ser Igreja"
352
. Essas comunidades são compreendidas como um
fenômeno de "eclesiogênese", isto é, de uma Igreja que se está construindo. Não é uma
experiência eclesial em ruptura com a Igreja universal, com a Igreja institucional, com outras
comunidades, mas apenas traduz "a possibilidade de repensar a estruturação da Igreja a partir
da ação do Espírito nas bases. É possível que uma reestruturação profunda aconteça na Igreja,
não por simples iniciativa reformista da cúpula, mas pela provocação profética das bases
pobres da Igreja... A CEB reflete uma compreensão de igreja como uma 'rede de
comunidades' unidas pelo Espírito, em que a liberdade criativa nos diferentes níveis (liturgia,
ministérios, organização interna, prática pastoral) tem amplo espaço. É um modelo
eclesiológico de criatividade e não de pura reprodução das estruturas existentes. Pode
significar uma ruptura de modelo, mas não da Igreja"
353
. E ademais, a justificação teológica,
dessa nova maneira de ser Igreja, pode ser encontrada na constituição Dogmática "Lumen
Gentium", ao tratar fundamentalmente da Igreja como Povo de Deus, na sua dimensão
participativa, livre, criativa de irmãos pelo batismo.
Por fim, deve ter ficado claro que existe uma relação dialética entre a compreensão do
termo BASE e as práticas concretas. Ainda que os campos político-ideológico e teológico-
pastoral preservem suas autonomias próprias, não podemos desconhecer que acontece
praxisticamente uma articulação proposital ou meramente fática desses níveis. E mais.
Quando esta articulação é motivo de uma deturpação da experiência eclesial, resta
denunciá-la.
351
Ibid., pp. 72-73.
352
CNBB: Comunidades eclesiais de base na igreja do Brasil. doc. CNBB, 25.
353
J.B. LIBÂNIO, Op. Cit., p. 73.
152
As CEB’s não são uma criação de "geração espontânea", mas surgiram a partir de um
contexto eclesial e social. Porque o espaço para o nascimento desse novo modelo de Igreja
aconteceu quando setores significativos da Igreja iam aos pobres e os pobres começam a ser
presença ativa e sujeito significativo para a Igreja. Há, conseqüentemente, um "duplo
movimento: a ocupação feliz da Igreja pelas classes populares e a ida de segmentos médios da
Igreja a essas classes"
354
; fato eclesial que favorecerá uma redefinição da Igreja, que não mais
aceita ser estruturalmente companheira na dominação e cúmplice nos mecanismos de
marginalizaçao e opressão do povo junto com o sistema. É o Espírito utilizando o grito dos
fracos, a palavra do pobre, o clamor dos oprimidos para despertar na igreja uma
transformação. E nesse confiteor ou nessa Igreja renascida vai-se assumido a defesa, os
projetos das classes populares oprimidas ou povos dominados, dessacralizando a resignação e
a "canonização" de uma pobreza injusta.
Este posicionamento da igreja contribuirá, no período do regime de repressão, para que
ela seja lugar privilegiado onde os empobrecidos possam pensar, rezar, projetar, organizar,
etc.. Assim, as CEB’s são uma resposta ao grito e à interpelação dos oprimidos. A presença
desta BASE
355
é o fator de constituição fundamental e o primeiro para a existência destas
comunidades. E mais. Essa redefinição eclesial impedirá a Igreja de continuar acolitando a
sociedade capitalista ou os prósperos corruptos e exploradores, porque nela se irrompe o
profeta e o espírito libertário que a faz se encaminhar na direção daqueles grupos que buscam
relações mais justas e fraternas na história e se organizam na preocupação de construir um
mundo que seja sinal do Reino. Como afirmou alguém, "expulsa de seu paraíso (plena de
354
J. Batista LIBÂNIO. Experiência das comunidades eclesiais de base no Brasil. p. 121.
355
Ibid., p. 123 – no referente artigo comentam-se as várias compressões do termo base. Vejamos:
. Psicossocial: aspecto celular, nuclear, fundamental.
. Teológico: tecido elementar cristão, leigo.
. Sociológico: classes populares.
. O teólogo Leonardo BOFF fez questão de ressaltar que as CEB’s possuem uma característica de BASE porque
os participantes, em quase sua absoluta maioria, pertencem à BASE da sociedade camadas populares pobres
e à BASE da Igreja pois se trata de leigos, simplesmente cristãos. Cf. Leonardo BOFF, Comunidades eclesiais
de base e teologia da libertação, in: Convergência XIV/145, p. 431 b
153
privilégios; obedecida; 'mestra' da humanidade; admirada), a Igreja viu-se obrigada a 'lavrar a
terra', isto é, a trabalhar arduamente ao lado dos pobres, dos analfabetos, dos oprimidos, dos
marginalizados e deserdados. Abandonando a atitude do sacerdote e do levita, põe-se a ocupar
a posição do samaritano. A passagem do paraíso para a terra do trabalho não se fez sem as
dores da morte. Aceitando morrer, viu-se ressuscitada, renovada, refeita, pela força do
Espírito que lhe chegou através do clamor dos fracos, de milhares de samaritanos"
356
.
Também estas "Comunidades de pobres" são realidade devido ao elemento da - povo
crente no e pelo Espírito de Deus. É um povo cheio de fé, esperança, fraternidade, que vai
concretizando a verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Igreja que apresenta uma resposta da aos
desafios constantes que surgem na história. que nada tem de "pietismo adulçorado", mas
que define o sentido de toda existência e a orientação de todas as práticas. Nas CEB’s, " a
não é nenhum adereço na lapela da vida, mas o horizonte a partir do qual tudo é globalizado
sem com isso negar consistência às realidades seculares ou políticas"
357
. Por isso, as CEB’s
não são seitas ou guetos, mas comunidades abertas ao mundo, à sociedade desafiante numa
preocupação de evangelizar, numa função crítica e desmistificadora - na atuação social -
porque a transformação da sociedade torna-se uma das condições de autenticidade da fé.
Contudo, não podemos afirmar que as CEB’s nascem apenas pela vertente social. Elas
são experiência eclesial muito complexa e diversificada - não um modelo único de
gestação da CEB. Pode nascer, pelo menos, das seguintes motivações
358
: a) Círculos Bíblicos,
Novena de Natal - onde grupos de pessoas lendo a Escritura, a temática da "Campanha da
Fraternidade", etc., são tocadas a relacionar a Palavra de Deus com a Vida; b) Grupos de
pessoas que se reúnem para lutar por uma necessidade, reivindicar um direito - durante o
processo descobrem que todos são cristãos ou católicos, e daí surgem as leituras da Palavra de
356
Roque FRANGIOTTI, A nova igreja da América Latina, Vida Pastoral, 101. p. 29.
357
Leonardo BOFF, Comunidade eclesiais de base: povo oprimido que se organiza para a libertação, REB, 41,
jun-1981:312-320.
358
J.B. LIBÂNIO, Comunidade eclesial de base, in: Convergência, 191 (1986): 180.
154
Deus, as celebrações; c) por "decreto dum pároco que resolveu subdividir sua paróquia em
comunidade de base" - algumas comunidade conseguem testemunhar a identidade de uma
CEB; outras não passam de "subdivisão paroquial, em moldes tradicionais"; d) pela "visita de
agentes de pastoral" - algum agente (padre, religioso, leigo) que começa a residir e inserir-se
numa área pobre (ex.: favela) e pouco-a-pouco vai visitando as pessoas, famílias. Depois -
num segundo momento - convida para uma reunião de oração, de leitura da Bíblia, de
discussão dos problemas. Daí vai surgindo uma CEB; e) pela "ação missionária de outra
CEB" - uma comunidade envia alguém membro dela para "fundar" uma nova comunidade de
base em outro lugar; f) por um "cristão popular" - visitando uma CEB fica animado e começa
a trabalhar pela germinação de uma outra; g) por um "curso de liderança" - os participantes
saem esperançosos, animados, dotados de algumas técnicas de organização e mobilização, ao
lado do espírito religioso, eclesial, o que contribuirá para o conhecimento das CEB’s; h)
também algumas CEB’s nasceram de "movimentos de Igreja", de "organizações religiosas"
até tradicionais como "Apostolado de Oração", "Vicentinos" - estas associações, ao iniciarem
um abandono do seu "caráter estritamente religioso e tradicional", começam a participar de
uma pastoral mais comprometida. Pouco a pouco se transformam em CEB’s.
As CEB’s, conforme vimos, podem nascer de uma luta popular ou de uma atividade
religiosa. Mas a sua característica fundamental é a profunda articulação entre Evangelho e
Vida - conforme se pode afirmar:
“Nas CEB’s duas vertentes, portanto: a religiosa ou a social como ponto inicial.
Mas surge CEB se a vertente dominante, quer religiosa, quer político-social, se
acopla com a outra. Assim, uma luta popular, um mutirão - vertente social - termina
em oração, celebração, em descoberta de uma fé católica comum.
Pouco a pouco esse encontro esporádico para a luta ou mutirão se consolida numa
comunidade eclesial.
Em outros casos, a piedosa reunião numa capelinha, a novena de Natal, a reflexão
sobre a palavra de Deus - vertente religiosa - evolui para uma comunidade engajada
com as lutas do povo.
Portanto, CEB supõe - reza e mutirão; evangelho e realidade social; e luta do
povo
359
.”
359
Ibid., p. 180-181
Cf. Leonardo BOFF. Carisma e poder. p. 198-199.
155
Constata-se que as CEB’s comprometem-se com os problemas que o povo sofre. Entre
os problemas do momento, podemos citar: desemprego, perseguição, falta de reforma agrária,
falta de condução. Partindo da consciência dos problemas sociais procuram-se organizar onde
não existem organismos civis adequados, numa função supletiva: preenchendo funções
culturais (alfabetização, cursos de higiene), econômicas (roça comunitária, organização de
cooperativa, criação de sindicatos,) e políticas (resistência à expulsão da terra, manifestações,
criação de comitês partidários independentes); além das funções religiosas (celebrações,
círculos bíblicos). Por essa consciência e organização, a presença redentora de Deus na
história e a vivência do mistério de Deus na dimensão bíblica da prática da justiça fazem-se
realidade nas lutas da comunidade. Não perdendo a dimensão transcendente, a da
comunidade eclesial torna transparente a realidade em que se vive: passa-se a compreender o
caráter relativo do status quo, a dimensão histórica de vida e a causa dos males sociais
360
. É a
Igreja mergulhada no mundo dos pobres como sinal e instrumento de libertação, vale dizer, é
a "Igreja de base, na base, com a base e pela base" testemunhando a correta compreensão do
mistério da Encarnação.
Verifica-se na caminhada pluriforme das CBEs uma dimensão sócio-política da
evangelização
361
. Porque a evangelização é compreendida como todo anúncio, realizado em
360
Como reflete Frei Betto:
“Cada vez que alguém diz ‘a fé do povo não me interessa’ está reforçando a apropriação que os opressores fazem
dessa fé, pois estes jamais desistiram de fazer da religião uma legitimação de sua posição de classe”.
“Porém cada vez que enfrentamos o desafio de recuperar as energias libertadoras do Evangelho e de retornar a
posição da comunidade primitiva, comprometida com a subversão permanente da história em vista da utopia do
reino que se constrói através dele, mas não se esgota em nenhum regime político estamos estabelecendo a
unidade dialética entre a e a política, o evangelho e a realidade, a alma e a consciência de nosso povo”, Frei
BETTO, O que é comunidade eclesial de base, p. 86.
361
Afirma o episcopado brasileiro:
“A caminhada das CEB’s tem seguido, passo a passo, a explicitação da missão evangelizadora da Igreja. Desde
o início elas se apresentaram como uma proposta de assumir o global da vida, superando o espiritualismo
desencarnado. O esforço das pequenas comunidades rurais do início, no sentido de criar condições mais humanas
de vida, refletia bem a consciência da Igreja da época conciliar de que a evangelização tem implicações diante do
subdesenvolvimento...
(...)
156
palavras e gestos sacramentais e não sacramentais, da realidade salvífica de Jesus Cristo, na
preocupação de realizar a libertação de todos os homens e do homem todo - "a missão
evangelizadora (da Igreja) necessita ir além da palavra e dos gestos sacramentais para
produzir outro tipo de ação que liberte o homem na sua totalidade.
A fidelidade da Igreja ao Evangelho não lhe deixa outra alternativa: ser sinal visível da
presença do Senhor na aspiração pela libertação e na luta por uma sociedade mais humana e
eficaz na mensagem de amor de que é portadora”
362
. Daí a libertação ser parte integrante da
evangelização, o que foi preocupação no Sínodo de 1974
363
.
A explicitação do compromisso evangelizador, que se de acordo com o nível de
consciência e de organização interna, é realidade desde comunidades que estão surgindo com
o nível de visitas (contato de agentes - padres religiosos - para criar nculos com as pessoas)
até aqueles que se constituem a partir da luta de reivindicações ou contra a opressão da esfera
econômica e do campo político
364
.
O empenho das atuais CEB’s na luta pela justiça e na libertação do homem reflete uma análise mais precisa da
realidade social vista como fruto da injustiça das estruturas e opressões dos pobres. Também aqui as CEB’s
refletem a consciência da Igreja em termos de missão evangelizadora” CNBB, Comunidade eclesiais de base
na igreja do Brasil, Op. Cit., pp. 21-22.
. Como se define a evangelização nas CEB’s: “A evangelização nas CEB’s é a descoberta da presença viva de
Deus. Evangelizar é antes mudar a sua própria vida, abrindo-se a si mesmo e aos outros, e trabalhar para
transformar as estruturas do mundo. É ser fermento na massa”. CNBB, Comunidade eclesiais de base no
Brasil, Doc. da CNBB, 23, pp. 17-18.
362
J. Batista LIBÂNIO. Evangelização e libertação. p. 28.
363
O papa Paulo VI captou esse processo de evangelização que se na preocupação de libertar o homem.
Vejamos:
“Entre evangelização e promoção humana desenvolvimento, libertação existem de fato laços profundos:
laços de ordem antropológica, dado que o homem que de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim
um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicas; laços de ordem teológica, porque não se
pode nunca dissociar o plano da Criação do plano de Redenção, um e outro a abrangeram as situações bem
concretas da injustiça que de ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente
evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia, realmente, proclamar o mandamento novo sem
promover na justiça e na paz o verdadeiro e o autêntico progresso do homem? Nós próprios tivemos o cuidado
de salientar isto mesmo, ao recordar que é impossível aceitar que a obra da evangelização possa ou deva
negligenciar os problemas extremamente graves, agitados sobremaneira hoje em dia, pelo que se refere à justiça,
à libertação, ao desenvolvimento e à paz do mundo. Se isso porventura acontecesse, seria ignorar a doutrina do
Evangelho sobre o amor para com o próximo que sofre ou se encontra em necessidade...” PAULO VI, A
evangelização no mundo contemporâneo, 31, p. 28.
364
No trabalho citado de J.B. LIBÂNIO uma análise detalhada dos vários níveis. O autor apresenta quatro
níveis (apesar de estar dentro de uma lógica evolutiva, cada comunidade não necessita perfazer esse itinerário):
1º Nível: das visitas.
2º Nível: das celebrações.
157
Também as comunidades eclesiais não constituem uma realidade possível de se realizar
atualmente em estado puro. É um espírito a ser criado, uma inspiração que alimenta o trabalho
de, continuamente, superar os desafios e problemas que surgem na experiência de conquista
do relacionamento fraterno, solidário
365
. Isso porque as contradições da sociedade ou do
sistema capitalista - estruturado a partir de um modo de produção dissimétrico - atravessam a
Igreja. Os conflitos são inevitáveis porque a comunidade eclesial necessita fazer uma ruptura
com a realidade social hegemônica. Caso contrário, poderá fortalecer, reproduzir, difundir e
legitimar o bloco histórico hegemônico responsável pela história do sofrimento da grande
maioria
366
. As CEB’s procuram defender a estratégia de libertação do povo que anseia por
uma visão independente e alternativa da sociedade e do mundo, em contraposição aos
interesses da classe dominante. Ou seja: essa nova maneira de ser Igreja interpela a todos a
um compromisso de "comunhão e participação" com a utopia da BASE, cuja preocupação é
autolegitimar seu processo de libertação e contralegitimar a exploração e opressão que
sofrem. Teologicamente, pode-se afirmar que as CEB’s "recapturam a figura histórica de
Jesus de Nazaré que privilegiava os pobres e os entendia como os primeiros destinatários e
beneficiários do Reino de Deus; recupera-se o sentido originário de sua vida e morte como
vida comprometida com a causa dos humilhados nos quais se frustava a Causa de Deus, como
morte causada por um conflito movido pelas classes dominantes da época. Nesta linha se
reinterpretam os principais símbolos da e se desvelam as dimensões libertadoras,
objetivamente, presentes neles, mas recalcadas por uma estruturação de dominação religiosa
articulada com a classe hegemônica social"
367
.
3º Nível: da luta contra a pobreza
4º Nível: da luta contra a opressão na esfera do econômico.
5º Nível; da luta contra a opressão no campo político, J. Batista LIBÂNIO, Op. Cit., pp. 130-137.
365
Ibid.
O estudo também aponta riscos ou dificuldades que surgem na caminhada das CEB’s. O que ajuda a elucidar o
nosso trabalho.
366
Cf. Leonardo BOFF. Igreja: carisma e poder. p. 172-179.
367
Ibid., p. 183.
158
Nessa experiência eclesial vai-se processando o fenômeno da eclesiogênese
368
, no qual
os empobrecidos fazem uma ruptura com o monopólio do poder religioso e social e
inauguram um novo processo religioso e social de estruturação da Igreja e da sociedade.
Quando se fala do "monopólio do poder religioso" está se referindo a uma organização
eclesial a partir de uma "autoridade hierárquica-constituída" fechada e centralizadora das
funções ministeriais. Isso vem favorecer uma dicotomia hierarquia/laicato, vale dizer, uma
estruturação eclesial que tem "como conseqüências básicas a concentração da
responsabilidade eclesial nas mãos do ministério ordenado (que começou a ser chamado de
"Sagrada Hierarquia") e a divisão da Igreja em governados e governantes, celebrantes e
assistentes, produtores e consumidores de sacramentos"
369
. Inclusive o CV advertiu que o
ministério ordenado não pode monopolizar todos os ministérios: "Os Pastores sagrados sabem
perfeitamente...que não foram instituídos por Cristo a fim de assumirem sozinhos toda a
missão salvífica da Igreja no mundo. Seu preclaro múnus é apascentar...os fiéis a reconhecer
suas atribuições e carismas, que todos, a seu modo cooperam unanimemente na obra comum"
(LG. 30). Não se pode esquecer, por conseguinte, que Poder e Carisma não precisam se
inimizar: ambos constróem a seu modo e na união tensa, a riqueza e o ministério da Igreja.
A experiência eclesial demonstra que ainda estamos longe da realidade desejada e
aguardada após o Concílio - quando se falou da "participação", "corresponsabilidade",
"descentralização do poder", "democracia" na Igreja. Há quem afirme que: "A julgar pela
reflexão nesse período pós-conciliar, deveríamos ter hoje comunidades eclesiais com ampla
participação de todos os cristãos... Fundamentalmente, a estrutura eclesial continua a mesma,
apesar dos sinais de esperança das CEB’s e de algumas outras comunidades... A participação
do leigo na Igreja continua sem muita expressão. Na vida concreta de nossas comunidades
368
Cf. Idem. Eclesiogênese – as comunidades eclesiais de base reinventam a igreja. p. 9-50.
369
M.de O. SOUZA NETO. Serviços e novos ministérios nas CEB’s: recriação da igreja neo-testamentária.
Dissertação de Mestrado. p. 140.
Cf. E. HOORNAERT, CEB’s: Dez anos de experiência; in: REB, 38 set (1978): 474-502.
159
locais, sabemos que até formas mais simples de participação - como os encontros, as
assembléias de planejamento e revisão, os Conselhos Pastorais e coisas semelhantes -
constituem problema em não poucos lugares, ou não existem. Isso sem falar na participação
em decisões mais importantes"
370
.
Não obstante, a experiência da ministerialidade-carismática na "Igreja dos Pobres" não
é promissora, mas também concretizadora de uma experiência comunitária na
corresponsabilidade, coparticipação - no nível da organicidade, da ministerialidade, etc. É a
Igreja se autocompreendendo e sendo reconhecida como portadora do Espírito, porque se dá
reconhecimento a todos pelo batismo, da filiação divina, da irmandade crítica e do direito ao
Reino de Deus - o 'ensaio' de vida da comunidade primitiva, conservado na memória da
Igreja e revitalizado tantas vezes ao longo dos séculos, que volta a exercer sua força de
atração como ideal utópico, e vai sendo outra vez atualizado pelo Espírito, o Senhor da Igreja
e da própria história"
371
. É a "autoridade evangélica" construindo, testemunhando uma
igualdade entre os cristãos na qual não aconteça a dicotomia Hierarquia/laicato ou a
existência na Igreja de "duas classes" (os que ensinam e os que aprendem; os que decidem e
os que cumprem as decisões; os que realizam o culto e os que assistem); vale dizer: é a
tentativa da "institucionalização da participação real de todos" os comunitários na vida e
missão da Igreja.
Como conseqüência, surge uma Igreja com características próprias
372
. Entre as
características constatadas, destacamos: "Igreja dos pobres e fracos", "Igreja dos espoliados",
"Igreja libertadora", "Igreja que sacramentaliza as libertações concretas", "Igreja que constrói
a unidade a partir da missão libertadora"
373
.
370
Delir BRUNELLI, A participação comunitária no novo testamento; in: Convergência,174 (1984):350-359.
371
Ibid., p. 359.
372
Cf. Idem. Igreja: carisma e poder. p. 182-195.
- O autor apresenta quinze características destra Igreja que surge a partir das bases.
373
Essas características são apresentadas por L. Boff. Com liberdade, vamos apresentar trechos de seu estudo
quanto a cada uma das características. – Leonardo BOFF, Op. Cit.
160
É o povo empobrecido e crente que irrompe na Igreja como sujeito de criatividade e
renovação eclesial, o que favorece às CEB’s serem um "foco de evangelização" ao viverem o
ideal libertador de assumir evangelicamente a causa da grande maioria desfigurada e
marginalizada. E ainda: essas comunidades tornam-se, assim, lugares privilegiados da prática
do Evangelho (DP 1147). Assim, essa nova maneira de ser Igreja e de concretizar o critério de
salvação vivido comunitariamente, vai possibilitando uma evangelização que seja fator de
libertação de um povo crucificado por um sistema genocida. uma esperança indestrutível:
pela Ressurreição do Filho que mostrou que Deus tomou partido pelos crucificados; o algoz
não triunfará sobre seus vitimados.
5. Redefinição e Reinterpretação de Elementos Eclesiais (ministério e
serviços, liturgia, bíblia) na Experiência da "Igreja dos Pobres"
- “Igreja dos pobres e fracos”
. ”A grande maioria dos membros das comunidades de base são pobres e fisicamente fracos pela dura
expropriação de seu trabalho a que estão submetidos. As comunidades dispõem de parcos meios, o que
ocasião de colocar em comum a força de trabalho de seus membros em multirões e outras iniciativas
comunitárias”.
“O fato de ser pobre e fraco não constitui apenas um dado sociologico; aos olhos da constitui um
acontecimento teológico; o pobre, evangelicamente, significa uma epifania do Senhor; sua experiência é um
desafio lançado a Deus mesmo que resolveu, um dia, intervir para restabelecer a justiça porque ela não é gerada
espontaneamente, mas por um modo de produção expropriador” (pp. 185-186).
- “Igreja dos espoliados”
“A grande maioria das comunidades eclesiais de base... estão às voltas com problemas de terras das quais são
expulsos ou ameaçados de sê-lo, com questões de salários, trabalho, saúde, casa, escola, sindicato. Percebe-se
sem dificuldade que o nosso tipo de sociedade em moldes capitalistas, dependente, associada, elitista não foi
feita para eles; nada funciona em função deles, nem as leis, nem os juízes, nem o aparato policial, nem os meios
de comunicação. São, realmente, espoliados, até há pouco eram objeto da misericórdia da Igreja e da sociedade...
“Agora se reúnem; formam comunidades, acumulam uma consciência crítica e transformadora em termos de
Igreja e de sociedade; fazem-se sujeitos da história” (p. 186).
-“Igreja libertadora”
.“... a comunidade cristã pode significar a porta de entrada (do ponto de vista do povo) para a política como
engajamento e prática buscando o bem comum e a justiça social” (p. 189).
-“Igreja que sacramentaliza as libertações concretas”
.“A comunidade eclesial de base não celebra apenas a palavra de Deus, os sacramentos (quando pode tê-los),
mas celebra, à luz da fé, a própria vida, as conquistas de todo o grupo e seus encontros” (p. 189).
-“Igreja que constrói a unidade a partir da missão libertadora”
.“Nas comunidades de base a unidade se estrutura fundamentalmente a partir da missão. Certamente ela possui a
mesma fé, recebe e administra os sacramentos e se encontra em comunhão com a grande Igreja estruturada
hierarquicamente; mas esta unidade interior é criada e alimentada a partir de uma referência à exterioridade que é
a missão”.
“O contexto conflitivo das bases configura muito concretamente a missão da Igreja: pensar e viver a de forma
libertadora, comprometida com os humilhados, lutando por sua dignidade e ajudando a construir uma
convivência mais conforme os critérios evangélicos” (p. 191-192).
161
A experiência da Igreja, a partir da "opção pelos pobres" num compromisso com a
solidariedade e a justiça, levou-a a uma praxe que vigora num permanente "reinventar" de si
própria. Essa história eclesial possibilita a emergência de uma nova eclesiologia onde se
uma redefinição de estrutura ou funcionamento, de reinterpretação da Palavra ou da
valorização da expressão religiosa popular que corresponde ou se fundamenta em um modelo
de Igreja mais encarnado e comprometido - amor-serviço - com a realidade do empobrecido e
crente. Não se trata de uma atualização de formas antigas e repristinação de experiências
históricas passadas, mas uma verdadeira "eclesiogênese" pela criação do "novo-ainda-não-
experimentado".
Tudo se pode compreender na exigência surgida por um novo "círculo
hermenêutico"
374
, o qual leva a Igreja a assumir uma prática pastoral com as seguintes
características ou preocupações: a) necessidade de fazer uma leitura e um compromisso diante
da realidade para des-ocultar e transformar o que impede a libertação integral e total do ser
humano: - desde o lugar dos oprimidos nascem exigências concretas e diferentes; b) a
experiência de engajamento e a reflexão crítica não são coniventes com o status quo ou os
interesses do sistema estabelecido, o que favorece um posicionamento profético, libertador da
374
A metodologia do “Círculo Hermenêutico” é caracterizada por uma preocupação que parte da abertura ao
passado e da explicação do presente. No campo teológico essa preocupação se no intuito de atualizar a
Palavra, a Práxis eclesial, no aqui e agora o que impedirá que a Teologia e a Prática pastoral da Igreja Latino-
americana sejam reabsorvidas” pelos mecanismos mais profundos da opressão, um dos quais é, justamente,
incorporar uma linguagem revolucionária à linguagem do status quo. É a tentativa metodológica para conseguir
“critérios atuais” para superar uma maneira conservadora de pensar e de atuar. É sabido que “a libertação não
pertence tanto ao conteúdo quanto ao método que se usa para fazer teologia frente à nossa realidade” (J.L.
SEGUNDO).
Por conseguinte, o Círculo Hermenêutico exige duas condições para funcionar: (a) que as perguntas do presente
sejam ricas e profundas; (b) carregadas de uma suspeita ideológica quanto à superestrutura em geral e à teologia
em particular. Exemplificando:
- Tratando-se da Palavra de Deus: ocorrerá uma contínua mudança de nossa interpretação da Bíblia releitura
em função das novas prioridades decorrentes das novas práticas e da nova interpretação da realidade. O teólogo
J.L. SEGUNDO esclarece: “Hermenêutica quer dizer interpretação. O caráter circular dessa interpretação
significa que cada realidade nova obriga a interpretar de novo a revelação de Deus, a mudar com ela, a realidade
e, daí, voltar a interpretar... e assim sucessivamente”. Logicamente, “se a teologia chegar a supor que é capaz de
responder às novas perguntas sem mudar sua costumeira interpretação das Escrituras, já terminou o círculo
hermenêutico. Além disso, se a interpretação da Escritura muda junto com os problemas, estas ficarão sem
resposta ou, o que seria pior, receberão resposta velhas, inúteis e conservadoras”, J.L. SEGUNDO, Libertação
da teologia, p. 11.
C.f._ Clodovis BOFF. Teologia e prática
– teologia do político e suas mediações. p. 243-250.
162
Igreja; c) a nova prática eclesial e a sua nova interpretação da realidade de opressão e
marginalizarão levam a comunidade eclesial a fazer uma releitura dos dados blicos e dos
dados da tradição eclesial.
Tentaremos, a seguir, mostrar a nova manifestação de alguns elementos eclesiais
(ministérios, bíblia e liturgia) nessa experiência de nova maneira de ser Igreja, ou seja, a
vivência eclesial na "Igreja dos Pobres", no que diz respeito a alguns dados da tradição e do
relato bíblico, no desafio do contexto dos empobrecidos e injustiçados.
5.1. Os Ministérios e Serviços
375
Tratando-se dos ministérios e serviços na "Igreja dos Pobres"
376
é importante fazer
inicialmente duas observações, que se encontram articuladas dialeticamente.
375
Na experiência da “Igreja dos Pobres”, surge, em número cada vez maior, uma pluralidade de funções,
trabalhos e iniciativas pastorais entre fiéis e em comum-união com os pastores.
A terminologia empregada para essa experiência eclesial é variada: “Ministério sem ordem sagrada(DP, n.
804), “Ministérios diversificados” (E.N., n. 73), “Ministérios não-ordenados” (DP, n. 625 e 845), “Ministérios
confiados aos leigos” (DP, n. 94 e 805). Diante desta pluralidade de termonologias unificamos tudo nas
categorias: “Novos Ministérios” e “Serviços”.
Os “serviços” são uma categoria “para designar toda função, tarefa ou ação que empreende a maioria dos
cristãos, ‘em cumprimento de sua vocação e para o bem da comunidade podendo ser um serviço espontâneo,
porque o faz livre e espontaneamente sem estar submetida a nenhuma determinação da comunidade: ou
determinado, se supõe uma certa ordem ou regulamento por parte da comunidade’. O serviço não exige
necessariamente uma preparação mais ou menos sistemática, está referido a dimensões não tão fundamentais da
vida da Igreja e de sua missão e tem um caráter provisório. Geralmente os serviços afloram nas relações da
Igreja com o mundo. São exercidos por cristãos que se fazem presentes, por exemplo, nas múltiplas iniciativas
da sociedade civil, tais como, sindicatos, associações de moradores, comissões de justiça e paz, centro de defesa
dos direitos humanos, etc... Mas os serviços dos cristãos acontecem também a nível interno da Igreja nas figuras
dos rezadores de terço, sacristão, zeladores das capelas, cantadores...” M. de Oliveira SOUZA NETO, Serviço
e novos ministérios nas CEB’s: recriação da igreja neo-testamentária. Dissertação de Mestrado, PUC do Rio de
Janeiro, 1986, p. 136.
Apesar de que os “Serviços” são expressão de ministerialidade eclesial, quando falamos dos ministérios nos
referimos ao que se considera “Ministérios não-ordenadose “Ministério ordenado”. Quanto aos “ministérios
não-ordenados” serão identificados com os “novos ministérios” que trataremos mais à frente. os “ministérios”
existem no interior da comunidade e a seu serviço, “seja representando todas as demais Igrejas frente a sua Igreja
particular... seja como princípio de unidade no interior da Igreja local, da qual é membro” (L. BOFF,
Eclesiogênese, p. 39). Trata-se de um ministério fundado no carisma de direção, de governo, de assistência (1
Cor 12, 28) que o faz ser o princípio de unidade entre todos os carismas (1 Ts 5, 12; Rm 12, 8; 1 Tm 5, 17).
376
Uma descrição geral de como se deve entender e quais são alguns ministérios na “Igreja dos Pobres”
encontramos em CNBB, Comunidades eclesiais de base no Brasil, Doc. da CNBB, 23, pp. 49-50. O
documento afirma: “Emerge nas CEB’s uma grande variedade de serviços, que chamaremos de ministérios;
crescem em toda parte como uma floresta densa, sempre para responder a um problema concreto, umas nascem
para atingir um objetivo determinado e depois, no decorrer do processo, tomam outro rumo (...) Alguns
ministérios são mais permanentes, outros transitórios ...
“Numa pesquisa feita, contamos, mais de 30 tipos de ministérios, cuja lista não é limitativa. Encontramos nas
comunidades, além dos ministérios ordinários dos sacerdotes, religiosos e religiosas, os ministérios seguintes:
163
Primeiramente, todas as "formas de teologia do ministério e práticas do ministério não
se originam do vácuo. o espaço da 'ecclesia' e também o espaço sócio-cultural e sócio-
político da sociedade na qual as Igrejas vivem e desenvolvem seus ministérios"
377
. Em termos
de Brasil, encontramos um espaço favorecido por dois fatores que propiciaram a redefinição
dos ministérios: o fator subjetivo - proporcionado com a renovação teológica e pastoral do
CV, e no período pós-conciliar as Conferências de Medellín e Puebla, os nodos dos bispos,
os Planos de Pastoral de Conjunto em níveis nacional e diocesano; e o fator objetivo - a
situação concreta político-social, que provocou, por parte da Igreja, uma maior encarnação da
na vida e o surgimento de muitos leigos se colocando a serviço da comunidade eclesial
378
.
Tudo contribuindo, assim, para um testemunho de comunidade evangelizadora que apresenta
uma estrutura e vida a serviço do anúncio do Evangelho - "A comunidade assume,
solidariamente, a missão evangelizadora; a fraternidade e a igualdade entre seus membros são
um testemunho evangélico essencial, especialmente face a uma sociedade desigual, injusta,
que privilegia poucos e oprime muitos"
379
Também a variedade de funções ministeriais, serviços que emergiram nas comunidades
eclesiais, vão ter uma origem no seguinte processo: devido à necessidade ou conflito intra-
eclesial - como exemplos, pode-se lembrar: a tensão, em alguma comunidade, entre
"sacerdotes tradicionais" e os não-ordenados "agentes pastorais" que são verdadeiros
animadores ou coordenadores das comunidades cristãs; ou a falta de padres que leva os leigos
ministro da palavra, pregador popular, leitor, catequista, comentador da liturgia, animador de cantos, ministros
da administração e preparação do batismo, da crisma, do matrimônio, da celebração dos funerais, da assistência
aos doentes, da caridade (assistência aos pobres), da acolhida aos recém-chegados, do conselho e reconcialação,
da coordenação de grupos de evangelização, presidente de culto, presidente do conselho da CEB, visitador de
outras comunidades, responsável de grupos de rua ou círculos bíblicos, coordenador de jovens, secretário,
animador e organizador de festas, ministro do patrimônio, da caixa comum, do dízimo, ministro da promoção
humana (cursos profissionalizantes, cursos de conscientização política), dos direitos humanos (Centro de Defesa
dos Direitos Humanos); de justiça e paz, com as pastorais especificas (da terra, do mundo do trabalho, dos
índios). Cf. Alberto PARRA. Os ministérios na Igraja dos pobres. Ed. Vozes, 1991. p. 191.
377
Edward SCHILLEBEECHX, Ministérios na igreja dos pobres, Concilium/196, p. 136.
378
CNBB, Op. Cit., pp. 50-51.
379
CNBB-CNC. O presbítero na igreja, povo de Deus, servidora do mundo. p. 19.
164
a irem assumindo funções - e extra-eclesial - a Igreja é realidade num contexto sócio-histórico
e, de maneira evangélica, vai assumindo a causa da grande maioria num trabalho de suplência
junto à classe operária, o povo indígena, etc.
380
- a "Igreja dos Pobres, reconhecendo a
presença do Ressucitado e do Espírito no coração dos homens, leva a conceber uma
comunidade eclesial mais a partir da base, aceitando a corresponsabilidade de todos num
compromisso em defesa dos pobres e oprimidos. Assim, a atitude de cada discípulo e servidor
da comunidade, "a exemplo de Cristo, se manifesta também contritamente no lugar que ele
escolhe na sociedade. O ministro do Evangelho não pode deixar de estar ao lado dos pobres e
de aprender com eles a prática da simplicidade e do serviço (Cf. DP 1141, 1147). Ele deve
vigiar para conservar sua liberdade a serviço da evangelização, evitando deixar se prender
pelos interesses ou pelas ideologias dos poderosos"
381
.
Por outro lado, o problema dos ministérios está ligado ao modelo de Igreja que se possui
previamente, a cada modelo corresponde uma percepção de significado e natureza dos
ministérios
382
. O modelo eclesiológico pré-Vaticano II acentuava de tal maneira os aspectos
institucionais e hierárquicos
383
, que o levou a cometer dois sérios erros: descuidava da
380
Edward SCHILLEBEECKX, Op. Cit. Reflete o autor: “A mistificação do sacerdócio e a conseqüente redução
da relevância da ´nova visão´ do ser cristão parece fazer com que para muitos se torne mais difícil aceitar uma
aproximação sócio-histórica dos ministérios na Igreja. Certamente não se deve falar a respeito dos múnus
eclesiais numa linguagem apenas sociológica. É preciso falar deles também numa linguagem religiosa e
teológica, evitando porém cair num dualismo inaceitável. Não se deve confundir a visão sociológica e histórica
com o que a ´comunidade de Deus´ experimenta com razão como chamado e graça de Deus (...) Mas uma
redução teológica... é possível, a saber, procurar o caráter do múnus ao lado, acima ou atrás dos aspectos sócio-
historicos do múnus. Reconhecem então duas dimensões correspondendo uma à linguagem científica e a outra à
linguagem de fé. Com razão, mas não se pode colocar as duas num mesmo nível para depois somá-las. Não
existe um surplus com base na revelação ao lado ou acima dos aspectos concretos do múnus. Isto seria puro
sobrenaturalismo, dualismo. Trata-se de uma e mesma realidade: a imagem histórica e sociologicamente passível
de análise dos ministérios é justamente aquilo que o fiel sente e exprime em linguagem de como sendo uma
forma concreta da resposta eclesial à graça divina...” (p. 135-136).
381
CNBB-CNC, Op. Cit., p. 21.
382
Cf. Texto preparatório para a assembléia da sociedade de teologia e ciências da religião, s/d, mimeo., pp.
3-4.
Cf. Leonardo BOFF, Os ministérios numa igreja popular, Convergência, 174: 341-343.
383
O teólogo A.Q. MAGAÑA cita um parágrafo da VEHEMENTER NOS (2 Fev 1906) que exemplifica uma
concepção eclesiológica hierárquica. Vejamos: “A igreja é por essência uma sociedade desigual, é dizer, uma
sociedade que abraça duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho, os que ocupam uma posição nos
diversos graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E essas categorias são tão distintas entre si que no corpo
pastoral residem o direito e a autoridade necessária para quanto à multidão, seu dever é deixar-se governar e
seguir
obedientemente a guia de quem a rege”, - A.Q. MAGAÑA, Op. Cit., p. 313.
165
importância da comunidade crente enquanto tal e despojava praticamente o leigo de uma
significação eclesiológica mais responsável e evangélica. Esta realidade eclesial que favorecia
uma acentuada separação de clero e laicato, atualmente aparece como teologicamente
inaceitável e pastoralmente prejudicial. Hoje se procura um modelo eclesiológico capaz de
impulsionar práticas e experiência eclesiais que permitam superar as limitações do anterior.
Busca-se o reencontro do primado da evangelização e uma realidade ministerial a partir de
uma comunidade eclesial toda evangelizadora. análises explicitamente eclesiológicas, na
atual reflexão teológica, que apresentam características de uma Igreja encarnada e/ou
articulada com as classes subalternas ou grupos dominados, onde a participação dos fiéis na
missão e decisões da Igreja é uma realidade, entre estas se pode lembrar: "Igreja-povo-de-
Deus", "Igreja como Koinomia de poder" e "Igreja, toda ela ministerial"
384
.
Na igreja brasileira, a participação dos fiéis em suas decisões, ao nível da "Igreja dos
Pobres", é, de alguma maneira, uma realidade, ganhando dinâmica própria
385
. E mais. Um
modelo de Igreja que se constrói sob a participação de todos, sob a hegemonia do povo
organizado - um novo sujeito histórico emergente na sociedade e na Igreja - se manifesta com
atitudes mais democráticas, participatórias e libertadoras, evitando os perigos de
"corporativismo e burocratização" de uma classe de ministros
386
- o que exige uma
redefinição dos ministérios clássicos e um questionamento do ministério a partir do axioma
fundamental: "sacramenta propter homines".
Não obstante, é normal aparecerem dificuldades no surgimento e no exercício dos
ministérios e serviços na nova perspectiva: dificuldades materiais, psicológicas e provenientes
384
Leonardo BOFF. Igreja: carisma e poder. p. 185-187.
Cf. Marie-Abdon, SANTANER. Homem e poder, igreja a ministério. p. 313.
385
Cf. Antonio da Silva PEREIRA, Participação dos fiéis nas decisões da igreja, REB, 41: 445-450.
386
CNBB-CNC, Op. Cit.
O documento ainda lembra: “... para orientar o exercício do ministério, o critério supremo que, de algum modo,
resume todos os outros é que o ministro faça crescer a comunidade - sua consciência, seu dinamismo, sua
responsabilidade e não a torne passiva e acomodada. O bom pastor não é aquele cujo nome está em evidência,
nem mesmo aquele que é muito estimado e amado por aquilo que faz, mas aquele que faz a comunidade
encontrar a plenitude da vida. Para ele, como para todo cristão, o ideal evangélico permanece aquele da mão
esquerda que não sabe o que faz a direita (cf. Mt 6, 3)” (p. 21-22).
166
do poder, etc.
387
. Porém, achamos que o problema do Poder de decisão é o mais sério na
redefinição dos ministérios. Enquanto o leigo (fiel) não possuir uma realidade eclesiológica
decisória, será sempre estrangulado nos momentos de decisão, à mercê da estrutura de poder
na Igreja
388
.
Entre os autores latino-americanos encontramos Hoornaert, que vai apontar três
obstáculos para uma verdadeira participação nas decisões da Igreja
389
: a) o método de
"treinamento dos líderes" - o autor mostra que a maneira como é feita a formação dos líderes,
não coadunando com a dinâmica comunitária, levou a um impasse: “o treinamento de líderes,
por mais democratizante e atualizado que seja, entra na linha de constituição de uma elite
dentro da Igreja, de uma divisão de grupos (o grupo de organizadores versus o resto), de uma
hierarquia”. Pertence ao modo de ser clerical, ou neoclerical ou criptoclerical, à constituição
de um grupo que fatalmente organiza as coisas e concentra o poder. Assim, como o clero se
reservou durante séculos o monopólio da produção ou 'administração' dos sinais da graça
(sacramentos) e da palavra de Deus, constituindo-se desta forma em grupo socialmente
privilegiado e politicamente central, assim também os líderes passam facilmente a manipular
387
CNNBB, Op. Cit A partir das categorias (poder, psicológica, materiais, etc.) mostra as várias dificuldades.
Como é elucidativo, vamos expor algumas dessas dificuldades:
- Necessidades psicológicas – (p. 54-56)
.“O ministro e o povo da comunidade são herdeiros do passado de uma cultura. Daí a tendência:
-“da parte do ministro, a ser um líder autoritário, que não sabe repartir as tarefas. O ministro corre o
perigo de continuar o modelo clerical. Ser um pequeno padre;
-“da parte do povo, a se encostar no ministro, pois nele encontrou um ´padrinho´”;
-“o pequeno não acredita no pequeno, um peão não pode ensinar um peão”;
(...)
-“De certa forma os ministérios que surgem das CBEs, são a contracorrente do próprio povo que deseja mais um
protetor do que um coordenador co-responsável com ele, e a contracorrente da sociedade na qual vivemos, que
atomiza as pessoas...
-“carência de experiência do poder decisório exercido democraticamente, o que impede a corresponsabilidade”.
- Dificuldade proveniente do poder (p. 56):
-“medo, repressão”;
-“desprezo dos ricos, que não aceitam que um pobre assuma alguma função na Igreja, por exemplo, que batize
seus filhos”.
- Dificuldades materiais:
-“no interior, a distância”:
-“aponta de recurso financeiro... e a pobreza excessiva”.
388
Cf. Antonio da Silva PEREIRA, Op. Cit., p. 460-472.
- O autor procura mostrar teses de autores (teólogos, sociólogos) que se têm preocupado em analisar o problema
da participação dos fiéis nas decisões da Igreja. Aqui nos interessam os autores latino-americanos.
389
Cf. Eduardo HOORNAERT, Comunidades de base: dez anos de experiência, SEDOC 11 (1979): 721-731.
167
o pouco poder que lhes é atribuído...
390
; b) relacionamento com a religiosidade popular ou
cultura popular - em nome do suposto risco que o método de formação dos líderes não
possibilita ao povo tomar consciência dos seus problemas (não permite conscientização), vai
se alimentando e legitimando uma ideologia burguesa que argumenta: "uns sabem, outros não
sabem", "uns percebem". O autor argumenta: “Analisando esta maneira de formular o
problema, que me parece ser a maneira corrente, pode-se avançar a hipótese de que esta
diferença entre uns que sabem e outros que não sabem talvez pertença a um discurso que tem
sua função dentro da sociedade na qual vivemos, que é uma sociedade de classes”. O que
existe na realidade é a sociedade de classes, das quais uma detém o poder e marginaliza a
outra (...) Em outras palavras: não é tanto o povo que não sabe falar, é a classe dominante que
lhe impede o uso da palavra"
391
. Conclui-se que o que está fundamentalmente errado com a
sociedade na qual vivemos se situa no nível de cultura dominante; e que dentro de uma
perspectiva de maior coesão popular, do fortalecimento dessa coesão, justifica-se a razão de
ser da conscientização. Daí que a raiz do problema mexe na questão do poder, implicando
uma opção política; c) um último obstáculo é o escravismo - formação social que se
concretizou e atuou através de uma "aristocracia escrava", a qual se compunha de "feitores,
domésticos, finalmente todo o setor terciário ou de serviços do sistema de produção do açúcar
que não compartilhava os interesses da massa escrava no campo e na senzala, mas vivia na
casa grande e da casa grande e, na hora de insurreições escravas que eram numerosas ou de
complôs para matar os senhores, tomava o partido dos amos. Suas condições de vida eram
melhores, não raro, do que as de muitos livres pobres. Em todos os bairros existe ainda, se
assim se pode dizer, uma 'aristocracia escrava' cujos interesses são os dos herdeiros e
descendentes dos senhores de engenho. Vivem encravados no meio dos pobres e são pobres
390
Ibid., p. 721-722.
391
Ibid., p. 724.
168
economicamente, mas ideologicamente são aliados à classe dominadora"
392
. A mola
propulsora deste sistema de extrema estabilidade é o privilégio. Por isso, sem uma análise do
escravismo como "fenômeno global e permanente", os esforços pastorais podem chegar a uma
inoperância. que se estar consciente de que o sistema ético visto foi interiorizado na
história de nosso povo.
Tudo indica a necessidade de que o ministro tem de ser formado na comunidade eclesial
que apresente um modo de ser comunitário. Essa eclesiologia exige, de princípio, uma
redefinição do modelo eclesiológico. Nessa direção aponta o sociólogo P.A. Ribeiro de
Oliveira, quando afirma: "a única saída (...) está na compreensão do leigo como um dos
termos da estrutura, participando, portanto, do poder de decidir quanto aos objetivos
específicos de sua Igreja. Mas para isso é indispensável que ele exista concretamente como
portador de valores religiosos católicos em sua vida. Porém alcançar isto é alterar a
estruturação em eixo vigente, é apresentar-se a Igreja à determinada população como uma
totalidade, em que seus elementos constitutivos têm, todos, uma função diferenciada de
acordo com uma posição de idêntico valor na estrutura. Aceitar tal saída é aceitar também
alterações ao nível do mundo clerical (bispo-padre), redefinindo-lhes a marca e a função. E
em tudo isso assume papel de destaque o processo de socialização do leigo"
393
, onde existe
entre os ministros (bispo-padre-leigo) uma realidade de relações entre si numa "circularidade
envolvente". Todos são co-responsáveis pela colegialidade visando à evangelização. Ou seja:
a participação ativa de todos os batizados na vida e missão da Igreja não é uma simples
concessão dos seus dirigentes. É um dever e direito de todo cristão
394
.
392
Ibid., p. 730.
393
C.A. de MEDINA e Pedro A. de OLIVEIRA. Autoridade e participação estudo sociológico da igreja
católica. p. 180.
394
Podemos encontrar o fundamento dessa participação comunitária – por dever e direito nos escritos do Novo
Testamento. Vejamos os textos que fundamentam uma corresponsabilidade, comum-união, co-participação, etc.
(Cf. D. BRUNELLI, Op. Cit.)
a) Quanto à “liberdade cristã”:
- 2 Cor 3, 17; At 2, 38; Tg 2, 12; Gl 5, 1.
169
Esta compreensão eclesiológica nos afasta de uma visão triunfalista ou de um
perfeccionismo em relação à experiência dos ministérios nessa nova maneira de ser Igreja, e
nos coloca realisticamente na caminhada de "Igreja dos Pobres" que, paulatinamente, desperta
nos membros do povo cristão a consciência de que são eles todos, fiéis e pastores, os sujeitos
ativos responsáveis por uma realidade ministerial.
Assim, os ministérios e serviços podem e devem ser compreendidos obedecendo a dois
critérios: "a tradição da Igreja" e as "necessidades de nosso tempo"
395
.
Analisando as comunidades Neotestamentárias constata-se uma "relação dialética
fraternal' onde alguns estão a serviço de todos dentro da comunhão, na unidade, sem nunca
esquecer que todos são corresponsáveis
396
. Exemplificando, podemos lembrar as epístolas
paulinas onde aparece clara a relação entre "alguns" e "todos": a edificação (oikodome) que é
uma tarefa de todos (Rm 14, 19; 15,2) é também uma missão específica de Paulo, que para tal
recebeu o poder (exousia) do Senhor (2Cor 10,8; 13,10); o dever da correção fraterna
freqüentemente recomendado por Paulo a todos (Col 5, 16; Gal 6, 1) é também encargo de
alguns (Rm 15, 14-15); embora os profetas e doutores fossem incumbidos, entre outras
funções, da do discernimento, este não lhes está reservado, mas compete a todos (Ts 5, 21; Fl
1, 9; Ef 5, 10) - é constatado que "esta dialética: responsabilidade de todos/responsabilidade
Lendo os textos constata-se que não se pode falar em liberdade verdadeira onde não houver participação.
desrespeito à liberdade de quando não se reconhece a justa autonomia de cada carisma na comunidade ou se
estabelece uma hierarquia opressora entre os carismas.
b) Quanto à “igualdade fundamental entre os cristãos”:
- Gl 3, 28; Rm 14, 10; Tg 2, 24; 1 Cor 12, 25; 1Pe, 2,5-10.
Todos os membros da comunidade estão acima de qualquer diferença de função na Igreja, e deve
necessariamente acontecer uma igualdade fundamental que se traduz numa corresponsabilidade ativa e efetiva.
c) Quanto à “Fraternidade cristã”:
- Rm 8, 15.21; Gl 3, 26-28; 1 Jo 4, 7.
Não cabe, numa comunidade fraterna, o domínio, o espírito de dependência, a discriminação.
e) Quanto ao “exercício da crítica”:
- 1 Ts 5, 12.19; 1 Jo 4, 1; Gl 1, 8.
O exercício da crítica é indispensável para a prática da corresponsabilidade de todos. Cria a “flexibilidade
comunitária” e o “dinamismo renovador”. Só o totalitarismo tem medo da crítica.
395
CNBB, Op. Cit., p. 60.
Cf. Antonio da Silva PEREIRA, Participação dos fiéis nas decisões da igreja à luz do NT; REB/45: 678-690.
396
Cf. M. de O. SOUZA NETO, Serviços e novos ministérios nas CEB’s: recriação da igreja neo-testamentária.
Dissertação de Mestrado. p. 54.
170
própria de alguns, não é específica das epístolas paulinas"
397
. Encontra-se claramente em 1Jo
2. 20-27; 1Pe 4, 8-11. Nesta perspectiva neotestamentária a autoridade ou qualquer ministério
e serviço é sempre um serviço e nunca dominação (cf. Mc 10, 42-45; Jo 13, 12-15; 1Cor 3, 5;
4 ,1; 9, 19), vale dizer, é sempre vista de dentro de um ideal maior: serviço a Deus e aos
irmãos. E mais. A pluralidade de ministérios e serviços tem sua origem nos dons concedidos
pelo Espírito Santo. A ministerialidade de todas as Comunidades eclesiais é expressão do
Carisma
398
, pois desde o início todos os cristãos agem sob a ação do Espírito Santo. (1Cor 12,
7). Cada membro da comunidade, servidor ou ministro, é um "homem do Espírito". Isso
exclui a possibilidade de algum membro ou setor da comunidade reivindicar a plenitude de
todos os carismas (cf. lCor 12, 23 s) e, conseqüentemente, funda a igualdade básica na Igreja:
"todos vós sois irmãos" (Mt 23, 8). Assim, o "Carisma é, pois, fonte estruturante da
ministerialidade da Igreja. E pode ser compreendido como dons concedidos pelo Espírito
Santo a todos os cristãos e a cada um em particular para o exercício de serviços ou ministérios
necessários à vida e à missão da Igreja... O Carisma está pois vinculado às necessidades vitais
e missionárias da Igreja o que faz com que ela seja algo distinto de dote, aptidão ou talento
(para a música, para a dança) que se tem ou não se tem. Ao contrário, o carisma é uma
vocação graciosa ao serviço do reino de Deus, dirigida a todos os homens, com suas dádivas
pessoais, nas diversas situações concretas"
399
.
Na Conferência de Medellín, ao recordar-se que a Igreja é mistério de comunhão (LG,
n. 13), também se reafirmou a estrutura carismática-ministerial da Igreja, ao dizer que "Essa
397
A. JOUBERT. Las espistolas de Pablo: el hecho comunitario, in: J. Delorme, El ministerio y los
ministerios segun el Nuevo Testamento. p. 29.
398
Carisma é uma “categoria fundamentalmente paulina”. Derivada de Charis” ou Chairein” quer significar “a
gratuidade, benevolência e o dom de Deus que se abre e se entrega ao homem” (L. BOFF). E ainda: o Carisma
não é privilégio de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, mas dom do Espírito a todos os cristãos conforme
lembram as Escrituras: “...cada um recebe de Deus o seu dom particular; um, deste modo; outro, daquele modo”
(1Cor 7,7); “Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos” (1cor 12, 7). Numa
organização comunitária, inspirada nos escritos paulinos, onde ocorre um modelo eclesial fraterno, solidário,
percebe-se a fluência dos carismas e a manifestação do Espírito (Gal 4,6).
399
M. de O, SOUZA NETO, Op. Cit., p. 65.
171
comunhão que une todos os batizados, longe de impedir, exige que, dentro da comunidade
eclesial, exista multiplicidade de funções específicas, pois, para que ela se constitua e possa
cumprir sua missão, o próprio Deus suscita em seu seio diversos ministérios e outros
Carismas que determinam, a cada qual, um papel peculiar na vida e na ação da Igreja"
400
.
Também o CV alertava que o ministério ordenado não pode monopolizar todos os
ministérios: "Os pastores sagrados sabem perfeitamente quanto os leigos contribuem para o
bem de toda a Igreja. Sabem também os Pastores que não foram instituídos por Cristo a fim
de assumirem sozinhos toda a missão salvífica da Igreja no mundo. Seu preclaro múnus é
apascentar de tal forma os fiéis e reconhecer suas atribuições e carismas, que todos, a seu
modo, cooperem unanimemente na “obra”
401
. Com nossa argumentação queremos deixar
claro o seguinte: não se trata de legitimar uma ministerialidade a partir de uma "nivelação ou
indiferenciação ministerial" (Ex.: defender a clericalização dos fiéis) ou de uma afirmação do
"poder autoritário" em prejuízo da comum-união e da corresponsabilidade na Igreja. Na
"Igreja dos Pobres" procura-se uma atualização de estrutura carismática-ministerial, na qual o
importante não são as diferenças de papéis ou de responsabilidade, ou a possível distribuição
de funções, senão o 'nós' de uma ordem original criada, inspirada pela ação do Espírito, como
se pode constatar:
“Pessoalmente e unidos de todos os demais, os membros da Igreja são o sacramento
de salvação para o mundo inteiro. O são pelo serviço (diaconia) que vivem entre si e
no meio dos demais homens, sobretudo os humildes e desamparados. O são pela
confissão de que responde à Palavra recebida e pelo testemunho que prestam a
Jesus morto e ressuscitado, no processo que sempre lhe propicia o espírito de
mentira, da injustiça e do ódio. O são pela comunhão que vivem entre si e que não
pode ser menos que sinal da vitória do Espírito de reconciliação e perdão. O são na
celebração dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia, aonde culmina o serviço aos
homens que se convertem no serviço de Deus, a confissão do mistério da e a
comunhão com Deus e entre uns homens meio divididos e confrontados na vida de
cada dia...
402
.”
400
DM. n. 15, 7.
401
LG. n. 30.
402
M. de O. SOUZA NETO, Op. Cit., p. 93.
172
No compromisso junto aos pobres oprimidos, o serviço e as funções ministeriais
testemunham o nível profético a partir da força mística de que Jesus está presente no pobre e é
o seu libertador. E, no compromisso com o pobre, experiência uma nova maneira de ser
Igreja, onde se articulam Evangelho e Vida, e Política (promoção de justiça social). Com
isso, a "Igreja dos pobres" profeticamente "procura fazer da vida comunitária a antecipação,
em miniatura, da sociedade justa, fraterna e igualitária com a qual sonhamos"
403
.
Toda reestruturação eclesial, a partir da perspectiva exposta, procura apresentar a
novidade seguinte: os clássicos serviços messiânicos de Cristo (profético, sacerdotal e
pastoral) são inseridos na caminhada do povo, na "Igreja dos Pobres", num outro estilo ou
dinamismo, entre este, uma maior descentralização do poder através de uma relação de
colegialidade entre os ministros ordenados (bispos, sacerdotes) e não ordenados (religiosos,
leigos)) - E.N. 73 - não justificando mais que o Hoornaert chama de "monopólio da produção
ou administração...". Surge agora uma "recriação da ministerialidade". O princípio
estruturante da Igreja não é o "duplo polo hierarquia-laicato", mas a comunidade eclesial com
sua variedade de carismas que faz surgir a "autonomização dos pastores" em relação à
comunidade e à desqualificação religiosa dos leigos na estrutura eclesial. Daí se falar do
binômio "comunidade-carismas e ministérios".
Apesar de muitos bispos se encontrarem preparados para a missão diante da novidade
colocada pela realidade transformadora e conflitiva, um núcleo significativo está
testemunhando formas novas de exercício de seu ministério. Nesse nível do episcopado tem
ocorrido uma descoberta de dimensão profética do ministério, desde a "opção pelos pobres".
Nessa nova imagem o bispo se apresenta como pastor no meio das comunidades, aprendendo
da experiência da fé e da justiça dos irmãos e atestando a comum da Tradição
404
. O
presbítero se destaca pela função de animador das comunidades e coordenador a serviço da
403
Bení dos SANTOS, O movimento de libertação (VI); in: O SÃO PAULO, n.1569, P. 9.
404
Cf. CNBB, Comunidades eclesiais de base na igreja do Brasil, Doc. CNBB, nº 25, p. 32-34.
173
unidade e da comunhão e cooperação entre as várias comunidades, não monopolizando ou
absorvendo suas múltiplas funções e seus diversos serviços. E ainda, "a espiritualidade do
presbítero estará marcada pelo amor aos pobres e por uma opção voluntária pela pobreza
evangélica (SP 1148-1152). A opção preferencial pelos pobres é um sinal de autenticidade de
evangelização, a exemplo do próprio Jesus; mas também, no contexto da sociedade atual,
testemunho contra a idolatria..."
405
. A missão do bispo e do presbítero de realizar a unidade e
de confirmar os irmãos na é conservada mais no plano vivêncial e existencial do que no
jurídico
406
.
Também se deve destacar a identificação que se aos bispos e padres nessas
comunidades eclesiais. Sentem-se membros do povo de Deus que caminha numa unidade que
vem de uma verdadeira comunhão e participação, não cabendo mais uma visão do caráter
hierárquico e institucional dos ministérios em oposição a qualquer compreensão
"democrática" dos mesmos; em que qualquer diluição entre ministros e leigos é rechaçada,
quer teológica quer simplesmente através de ritos
407
.
Fato notável também é a acolhida, por parte das comunidades, dos ministros ordenados:
"não os rechaçam, porque não alimentam uma afeição negativa ao caráter tradicional e
405
CNBB, Op. Cit., p. 27.
406
CNBB, Op. Cit, p., nº 23, p. 61.
Então afirma Marie-Abdon Santaner: “Os membros e os grupos eclesiais não praticam a condição ministerial da
Igreja em virtude de um selo de qualidade que, automaticamente, confere a seus atos um caracter ministerial (...)
O ministério existe entre os indivíduos ou grupos da Igreja na medida em que estes obedecem (individual ou
coletivamente) ao Espirito de Jesus Cristo. Se eles não forem conduzidos pelo Espírito de Jesus, as obras que
praticam não produzirão a condição do servidor. Elas só podem revelar alguma paranóia de ´dominadores´(...)
“A igreja não é ´totalmente ministerial´ em seus membros e em seus vários grupos em virtude de alguma
investidura de tipo mágico. Nesse nível, incumbe-lhe o propósito de ser totalmente ministerial a preço da
vigilância que exerce sobre si mesma com o intuito de manter-se, com todos os seus membros e os grupos por
eles constituídos, sob a dependência do Espírito”, M. SANTANER, Op. Cit., p. 101.
407
A seguir, destacamos um depoimento de D. Aloísio Lorrscheider que é bastante esclarecedor:
“Aos poucos tornou-se-me claro que o meu ministério episcopal seria exercido diferentemente. Eu não seria
sempre mais alguém dentro da comunidade, como superior dela, mas sim como membro da comunidade que,
revestido da exousía de Cristo pelo sacramento da ordem, deveria estar aí só para serviço ou em que eu
percebesse, num espírito de caridade fraterna, que eu lhes poderia ajudar na caminhada. não era mais o
professor, o instrutor, mas muito mais o animador com eles, animadores. Eu também me tornara aluno antes de
poder pensar em ser mestre. Nem penso mais em ser mestre, porque um é o Mestre. Penso muito mais em ser
com eles discípulo do Mestre, à escuta de Jesus e do Seu Espírito, atento com toda a comunidade para saber o
que Jesus e o Espírito têm a dizer à Igreja”. Aloísio LORSCHEIDER, A redefinição da figura do bispo no
meio popular pobre e religioso, Concilium, 196, pp. 63-64.
174
institucional de suas funções; têm-nos em grande apreço; mas querem que caminhem com
elas; assumam suas buscas e problemas; participem de suas expressões populares e respeitem
as demais funções que vão surgindo no seio do Povo de Deus"
408
.
Quanto aos novos ministérios e serviços que encontramos na "Igreja dos Pobres"
409
, eles
emergem e se estruturam a partir de alguns eixos ou campo de ação; anúncio evangélico,
celebração, ação no mundo e coordenação
410
. E mais. Eles surgem como um dos elementos de
resposta eclesial a um desafio pastoral colocando à Igreja que se autocompreende como
"sacramentum mundi pauperum", ou seja, é a comunidade eclesial redefinindo-se a partir de
encarnação no mundo dos empobrecidos.
Na preocupação de elencar alguns dos novos ministérios e serviços demosntrar-se-á
uma classificação e as referentes funções, práticas pastorais, atividades, etc., tendo como base
relatórios de Comunidades eclesiais
411
.
A: "Ligados à liderança, governo ou coordenação":
a) "Conselho Paroquial de Pastoral": ministério composto por membros das comunidades
eclesiais que compõem a paróquia. Entre suas funções encontram-se: planejamento,
dinamização e avaliação da ação evangelizadora; a articulação e unidade das diversas
experiências eclesiais; em algumas paróquias, o poder de decisão sobre a ação pastoral.
408
Leonardo BOFF, Op. Cit., p. 344.
409
Cf. nota 2.
410
Leonardo Boff faz referência aos quatro eixos com a seguinte explicitação:
Anúncio evangélico: “concretiza-se em toda prática evangélica ligada à Palavra, à reflexão, à produção de textos
e símbolos, em função de anunciar a boa-nova de Jesus”.
Celebração: “a comunidade festeja a presença do Ressuscitado e do Espírito na comunidade, magnífica a gesta
Dei na história dos homens, especialmente nas lutas dos pobres que buscam sua justiça”.
Ação no mundo: “trata-se de serviço que os cristãos prestam na construção da sociedade humana, para que
contenha mais e mais bens do Reino, particularmente, numa perspectiva de respeito aos direitos de cada pessoa
humana, na atenção para com os irmãos menores de Jesus, e no compromisso para com a justiça social”.
Coordenação: “em função da unidade: precisa-se de instâncias que tenham, sob seu encargo, a animação e
articulação de todos os eixos, em função do bem da comunidade e da missão no mundo; esta tarefa é assumida
pelo Papa, pelos bispos, pelos párocos, pelos coordenadores dos grupos de reflexão”, Leonardo BOFF, Os
ministros numa igreja popular, Op. Cit., p. 344.
411
Para essa classificação e explicitarão da variedade de ministérios e serviços, somos bastante devedores ao
trabalho de M. de O. SOUZA NETO, Op. Cit., p. 9-15. O autor utilizou os relatórios das comunidades eclesiais
(Cf. SEDOC, 11(1978)).
175
b) "Conselho Comunitário de Pastoral": ministério constituído por representantes dos
diversos ministérios e serviços que formam uma determinada comunidade eclesial.
Entre as funções destacam-se: motivação e promoção dos fiéis para o exercício de
serviços e ministérios necessários à vida e missão das comunidades; valorização das
iniciativas ministeriais e da unidade eclesial.
c) "Dirigente de Comunidade": ministério realizado por aquele que tem a função da
coordenação e animação de uma comunidade. Exige-se a comum-união com o pároco
ou dirigentes das comunidades que formam a comunidade, são chamados também de
"monitores".
d) "Agentes de Pastoral": ministério assumido por religiosos ou fiéis adultos enviados pelo
ministério pastoral para evangelizar, organizar, dinamizar, animar as comunidades.
e) "Animadores de Pastoral": ministério daqueles que têm a função de coordenação de
diversas iniciativas pastorais (preparador de Batismo, ministro de Culto, etc.) ou de uma
comunidade.
f) "Assembléia Pastoral": esta acontece nos níveis: ministerial, eclesial, paroquial e
diocesano. Constitui-se por ministros ordenados e não ordenados, os quais têm a função
de reflexão, planejamento, etc. da ação pastoral.
g) "Escola de Ministros": ministério executado pelos pastores ou agentes de pastoral. Tem
como função a orientação dos animadores de pastoral.
B) "Ligados à Educação da Fé"
a) "Catequese": ministério que se preocupa em iniciar os batizados (crianças ou adultos) na
vida eclesial e de comunicar a vivida por toda a Igreja, de modo sistemático. Procura-
se, geralmente, uma catequese a partir da ótica libertadora.
b) “Círculo Bíblico”: ministério constituído pela participação dos membros da comunidade
em pequenos grupos, também chamados de grupos de evangelho”, “grupos de rua”,
176
“grupos de reflexão” ou “grupo de estudo bíblico”. têm a função de ler a Bíblia a partir de
um “fato da vida” ou da realidade sofrida de um povo.
c) “Curso Bíblico”: ministério muito valorizado pelas CEB’s. Constituídos por agentes de
pastoral e agente do povo estuda-se a palavra de Deus para ajudar as comunidades no
conhecimento da palavra.
C) “Ligados aos Sacramentos, à liturgia e ao culto
a) “Ministério extraordinário do Batismo”: confiado aos “Ministros do Batismo”, fiéis com
carisma de unidade, para a função de batizar – especialmente nas CEB’s, que não contam com
uma assistência mais freqüente de padres.
b)"Ministério Extraordinário da Eucaristia": confiado aos "Ministros da Eucaristia" - homens
ou mulheres de vida exemplar, boa aceitação na comunidade. Têm a função de distribuir o
"Corpo do Senhor" aos fiéis na celebração do culto ou da própria Eucaristia e aos doentes em
suas casas.
c) "Ministério da Palavra": ministério assumido pelas equipes de liturgia. Têm a função de
preparar e dinamizar as celebrações dos sacramentos, os cultos semanais e as orações
comunitárias.
d) "Serviço de encomendação dos mortos".
e) Também se pode destacar: "Serviço dos rezadores de terço", "Serviço de animação de
Novenas".
D) "Ligados à promoção humana"
a) "Serviço Permanente de Alfabetização de Adultos": reúne pessoas com "certo grau de
instrução" para trabalharem como monitores de cursos de alfabetização de adultos.
b) "Serviço de Criação e Manutenção de Clube de Mães": constituídos por pessoas
("sócias") que desejam promover momentos de lazer a mães e discutir problemas
pertinentes a elas.
177
c) "Serviços Extraordinários de Organização": responsáveis pela implantação dos Armazéns
Comunitários, das roças comunitárias, do Movimento de Custo de Vida, etc.
E) "Ligados à promoção da justiça e dos direitos humanos"
a) CPT - Comissão de Pastoral de Terra: ministério constituído de lavradores e profissionais
liberais. Tem como função a conscientização dos trabalhadores rurais, posseiros, sobre os
seus direitos e prestar-lhes assessoria jurídica em suas reivindicações e lutas.
b) PO - Pastoral Operária: ministério ligado à Linha I da CNBB. Constituído de operários
que refletem sobre o mundo do trabalho e que tomam posições de defesa da classe
trabalhadora.
c) "Comissão de Justiça e Paz e Centro de Defeso dos Direitos Humanos": tem como
serviço assessorar os pobres na defesa da vida e de seus direitos.
d) "Serviços de Organização e Apoio": são serviços junto às Associações de Moradores, aos
grupos de Bóia-frias, etc.
F) "Ligados à Caridade"
a) "Pastoral da Saúde”: ministério exercido por profissionais da saúde (médicos,
farmacêuticos, enfermeiras, parteiras) e gente do povo que promove a medicina social e
que descobre e incentiva a "medicina alternativa" (chás de ervas, etc.).
b) "Pastoral do Menor": ministério preocupado com a promoção humana e libertação dos
menores abandonados. É constituída por educadores profissionais e populares.
c) "Serviço de Mutirões": serviço prestado à população carente. Tem como preocupação a
construção de barracos, a conservação de ruas, etc.
G) "Ligados à Administração da Paróquia"
a) "Conselho de Economia": ministério responsável pela manutenção dos empreendimentos
pastorais, sociais, etc.
178
b) "Caixa Comum": ministério original coordenado por membros da comunidade com a
preocupação de socorrer os mais carentes ou as comunidades necessitadas.
c) "Serviços administrativos": dos quais se pode destacar: "Tesoureiro", "Administrador do
Patrimônio", "Secretário".
Entre as iniciativas que favorecem o surgimento dos ministérios e serviços, destacamos:
a "convivência comunitária e humilde" com o povo empobrecido e crente, da parte da
hierarquia; ou a descoberta, pelo próprio povo, do serviço em prol da comunidade eclesial ou
social; ou a iniciativa de "pesquisas" que procuram fazer os levantamentos das reais
necessidades do povo (salário, custo de vida, problemas de condução, problemas de luta de
classes, de oposição sindical ou de greve, problemas relacionados com a terra, etc.). Também
a valorização da pessoa do leigo; os cursos, treinos e avaliações; a confiança de discernimento
espiritual do agente de pastoral para reconhecer os dons do Espírito e os carismas nas pessoas.
Além dessas iniciativas, um dinamismo baseado em dois momentos
412
: num primeiro
momento vigora uma igualdade entre os "comunitários". Pela e pelo batismo todos os
irmãos são inseridos em Cristo; o Espírito é realidade viva em todos, criando uma
comunidade fraterna e solidária (Gl 3, 38). Todos são convocados, sendo responsáveis e
comprometidos com a Igreja e o compromisso profético. Num segundo momento, surgem as
diferenças "dentro da unidade e em função da comunidade". Todos são iguais, mas nem todos
"comunitários" fazem todas as coisas. Cada qual preenche a necessidade da comunidade de
acordo com seu carisma; conforme lembra o CV: "Há entre os membros da Igreja uma
diversidade quer de ofícios, pois alguns exercem o sagrado ministério a bem de seus irmãos,
quer de condição e modo de vida, pois muitos no estado religioso, tendendo à santidade por
um caminho mais estreito, estimulam a irmãos por seu exemplo" (LG 13).
412
Leonardo BOFF. Eclesiogênese. p. 42-43.
179
A característica fundamental que aparece nos ministérios nessa Igreja inserida no
mundo dos oprimidos reside nisso: eles são pessoais e somente requerem um conhecimento
prático
413
. São pessoais porque estão vinculados às qualidades das pessoas que os
desempenham. Não se preocupam tanto com o tulo das funções (evangelizador, celebrante,
etc.); ou seja, praticamente não ministérios, mas ministros - o que conta é que a
comunidade conheça o nome de quem desempenha os serviços
414
. O "seu" José é líder da
comunidade eclesial porque todos sabem que ele é um homem corajoso, honesto, digno de
confiança e, por isso, é indicado para defender os interesses da comunidade, esta qualidade de
"seu" José não se delega para uma outra pessoa; por isso, quando alguém deixa de exercer sua
função na comunidade, não ocorre uma simples transmissão de cargos; cria-se um vazio a ser
preenchido na vida da comunidade. Quanto ao outro caráter dos ministérios - conhecimento
prático - exige-se que a pessoa saiba realizar o serviço, quer dizer, domine os esquemas de
pensamento e ação. Um coordenador ocupa essa função comunitária porque demonstra, na
prática, saber exercê-la. "Se uma pessoa não desempenha bem sua função, é logo substituída
por outra e vai fazer o que pode e sabe fazer. Em outras palavras, o poder religioso que a
pessoa detém, deve legitimar-se continuamente pela prática; seu poder está sob a permanente
ameaça de contestação, pois pode ser destituído... Diferentemente ocorre com o sacerdote:
porque recebeu uma investidura sagrada já não depende, em seu exercício, do juízo da
413
P. A. Ribeiro de OLIVEIRA, O reconhecimento eclesiástico de novos ministérios. Doc. da CNBB, 23, pp.
95-97.
414
Um membro de Comunidade Eclesial de Base mostrando sua concepção e vivência de serviço, afirma:
“Numa reflexão que fazíamos, vimos que tínhamos que estar a serviço de três coisas, principalmente:
1) A serviço da comunidade: ajudar para que a comunidade cresça, amadureça, chegue a ter clareza sobre sua
missão, cresça no amor e na justiça.
2) A serviço da unidade e organização: não basta fazer a comunidade amadurecer; é preciso promover a unidade
e a organização com todos os irmãos que lutam por uma nova sociedade. Temos relação com algumas
organizações populares. Nisso é necessária a formação política, para não serem ingênuos e deixarem que nos
utilizem para outros interesses. A grande força com que nós, pobres, contamos é a organização. Além disso, é
unidos e organizados que podemos ir vivendo mais plenamente o Reino de Deus. A serviço de Deus e de meus
irmãos: Jesus diz que toda a Lei se resume em amar a Deus e ao irmão. Como animador preciso viver
profundamente este ideal, porque de nada serve que eu fale muito de amor se não o vivo”.– Carlos Zarco MERA,
O ministério dos coordenadores na comunidade cristã popular, Concilium/196: 88-89.
3)
180
comunidade; a legitimação não vem pela prática, mas pelo título de 'pároco'"
415
. Os líderes
leigos exercem as funções comunitárias independentemente de uma "investidura eclesiástica"
- está uma diferença fundamental entre os ministérios tradicionais e os ministérios nas
CEB’s ("Igreja do Pobres"). Não se preocupam com uma "institucionalização do poder" a
partir da investidura; há, sim, ritos de reconhecimento comunitário - o que importa é uma
corresponsabilidade na edificação da comunidade eclesial. Como se afirma: "Embora os
leigos que ocupam uma posição de liderança religiosa nas comunidades se sobressaiam em
relação aos demais, deles não se distingüem por seu 'status' eclesiástico, como os sacerdotes,
as religiosas e os 'leigos ordenados' (diáconos e ministros extraordinários da Eucaristia).
Desempenham funções religiosas para a comunidade ... porque têm uma qualificação pessoal
para isso, e não porque tenham sido investidos nessa função pela autoridade eclesiástica"
416
.
A comunidade na "Igreja dos Pobres" é o verdadeiro sujeito do poder sagrado e não o
ministro mediante um rito oficial. Contudo, o reconhecimento do leigo (fiel) para uma função
ministerial não é espontâneo, mas revela um compromisso precedente e sua continuidade, de
"comunhão e participação" com a comunidade eclesial que o reconhece.
Este compromisso é um "poder-serviço" que pode ser expresso de três formas
417
:
1) Como "força moral" - nesse sentido, a "autoridade evangélica" (= poder-serviço) é
sempre serviço. É uma ação voltada para o outro, heterocentrada, o contrário da dominação,
imposição, que não se preocupa em servir o outro, mas em servir-se do outro (cf. Jo 3,30). E
mais. Enquanto "força moral" o poder-serviço se caracteriza pelos componentes: a) Carisma -
o "poder-serviço" é vivido no Espírito (cf. 1Cor 12, 28 e Rm 12, 8); b) Confiança - que é
415
Leonardo BOFF, Os mistérios numa igreja popular, Op. Cit., p. 346.
416
Pedro A. Ribeiro de OLIVEIRA, A posição do leigo nas comunidades eclesiais de base; in: SEDOC, n. 9
(1976): 286.
Obs.: Os “ministérios instituídos” (leitor, acólito, ministério extraordinário da Eucaristia) fogem à regra. São
confiados aos leigos (fiéis) pelo bispo, através de um rito litúrgico aprovado pela Santa Sé.
417
Baseamo-nos no trabalho de Cl. Boff para fundamentar o “reconhecimento” a partir do “Poder-Serviço”. Para
o autor, “Poder-Serviço” se opõe a “Poder-dominação”. Ainda mostra que Jesus apresenta uma proposta para a
metanóia do poder, ou seja, o poder precisa ser transformado, revolucionado internamente. Cf. Clodovis BOFF,
O Evangelho do poder-serviço.
181
expressa no processo de escolha; é como 'a resposta da base à investidura do Espírito", como
em At 1, 15-26; 2Cor 8, 19; c) Exemplo - o testemunho vivo é a correspondência ao carisma
do Espírito e a base da confiança da Comunidade.
2) Como "trabalho sacrificado, humilde e responsável" - o poder-serviço é, pois, uma sincera
dedicação e entrega aos irmãos. Não se aceita o comodismo ou a mordomia (cf. Mc 10, 35-
41).
3) Como "animação dos irmãos" - nessa forma exige-se que o poder-serviço trabalhe para
animar os irmãos. Animar para a vivência evangélica, animar para a participação comunitária
e para a missão do mundo.
Conclui-se que o problema da pertença à Igreja é "prático-teológico". o momento da
autoconsciência e o momento do reconhecimento. "De um lado, o membro se experimenta,
através de seus sentimentos, impressões, crenças, fé, ritos, comportamentos, como
pertencendo à Igreja. Num segundo momento não sucessivo, mas dialético, tal consciência
recebe um reconhecimento dos outros membros. Tal reconhecimento pertence à sua própria
consciência de membros, e no compromisso junto à Comunidade. A pertença à Igreja
constitui-se, portanto, numa operação dialética, em que cristãos se julgam e são julgados
pertencerem à Igreja"
418
.
Nessa nova experiência eclesial, os ministros têm seu lugar na comunidade, pela
comunidade e para a comunidade. É impossível pensá-los como uma realidade fora ou acima
da comunidade eclesial para criar a comunidade - "Eles são desdobrados do que existe
como feito e querido pelo Ressuscitado e seu Espírito, na comunidade"
419
. E ainda, os
ministérios não oferecem ao ministro um "poder autocrático" sobre a Igreja, mas no seio dela
e em função dela. Para isso, as funções comunitárias apresentam algumas características,
418
J.B. LIBÂNIO, Igreja que nasce da religião do povo, in: Religião e catolicismo do povo, p. 162.
419
Leonardo BOFF, Op. Cit., p. 348.
182
como as seguintes
420
: a) orientam-se diretamente à vida e crescimento da comunidade
eclesial; b) tendem a estruturar-se colegialmente - não existem ministérios autônomos,
evitando monopólios ou autocracias que podem empobrecer a fecundidade da
ministerialidade; c) exige-se uma união com os pastores da Igreja (Cf. DP. n
o
812) - o
apostolado além de ser uma vocação divina é um chamamento eclesiástico (Cf. DP. n
o
860;370); d) há uma preocupação pela inculturação das funções.
Enfim, todos os que apresentam um carisma que possa contribuir para o bem da
comunidade são acolhidos para que o seu amor-serviço zele pelas necessidades fundamentais
dos "comunitários"; e os vários serviços constituem diferentes formas, como o Espírito se faz
realidade viva e atuante na comunidade. Por isso, os ministérios e os serviços não podem ser
compreendidos a partir de uma função de acumulação ou absorção de atividades. Mas sempre
como poder-serviço responsável pela animação, coordenação, ação eficaz. Os ministérios
devem proporcionar a unidade das três instâncias fundamentais para o acontecimento Igreja
(anúncio/fé; celebração/eucaristia; inserçao/missão), ou seja, os ministérios devem motivar,
favorecer o aflorar de uma comunidade eclesial pela articulação dialética dos elementos
fundamentais para a sua existência.
5.2. A Bíblia
Toda a experiência na "Igreja dos Pobres" quanto à releitura e à reinterpretaçao que se
faz da Bíblia não é uma simples compreensão de idéias abstratas ou um inconseqüente
biblismo, é, sim, um esforço que procura recolher a vida, a liberdade e o projeto dos
oprimidos e crentes, visando sustentar e fortalecer as lutas e as esperanças em prol da
libertação dentro de um contexto social.
420
Cf. R. Cuéllar ROMO, Los ministerios en América Latina; in: VV.AA., Los ministérios en la iglesia. p. 258-
259.
183
A novidade da renovação - na compreensão da Bíblia - pode ser esclarecida pela
caminhada realizada. Com a realização do Concílio Vaticano II "a Bíblia adquiriu um status
novo na vida da Igreja. Quem viveu o pré e o s-Concílio pode perceber que, de acordo com
o espírito que transparecia nos documentos, a Bíblia passou por uma grande reviravolta
deixando de ser simplesmente um objeto de pia veneração para tornar-se o livro de uso
contínuo dos fiéis em todas as dimensões e aspectos da vida cristã"
421
. O documento conciliar
"DEI VERBUM" expressa e sintetiza o resultado de longo tempo, apesar de ser um
documento, ainda hoje, pouco conhecido e assimilado. Entre as perspectivas apresentadas no
"DEI VERBUM", destacamos
422
: a) "Bíblia, fonte e alma da cristã" - manifesta a
preocupação de que a Bíblia seja e se torne cada vez mais o bem comum, a fonte, a base, o
centro, o ponto de partida de toda a vida, atividade e reflexão cristã (cf. DV 10). Por isso, o
documento demonstra duas preocupações; "preocupação quantitativa" (que o povo tivesse
acesso à Palavra de Deus) e "preocupação qualitativa" (a Bíblia como o ponto de partida
diante da realidade da vida); b) "Bíblia, revelação do projeto de Deus para a humanidade" - a
Bíblia apresenta como conteúdo básico a revelação do projeto de Deus (cf. DB 2-6 e 14-20).
Reconhece-se na Bíblia o status de "teologia fundante", germe de uma que se refontiza
continuamente na Palavra revelada para se encarnar concretamente numa determinada
história; c) "o Espírito Santo, intérprete da Bíblia" - junto ao povo de Jesus Cristo, o Espírito é
o intérprete. Possibilita a todo cristão recriar o compromisso como o projeto de Deus
realizado em Jesus Cristo para todas as épocas e contextos (cf. DV 8); d) "O Magistério a
serviço da Palavra" - os pastores e teólogos devem ser os pioneiros do teologar na Igreja,
repropondo o projeto do texto bíblico a partir do contexto em que vivem (cf. DV 10). São
também apresentadas três dimensões do serviço que o Magistério é chamado a prestar à
Bíblia: auscutar piamente a Palavra, guardar santamente a Palavra e expor fielmente a
421
Euclides M. BALANCIN et alii. A bíblia na igreja a partir de Dei Verbum, Vida Pastoral, Nov-Dez/1985, p.
11.
422
Cf. Ibid., pp. 11-15.
184
Palavra. Com essa compreensão da "DEI VERBUM" é possível captar a sua importância para
o aparecimento do "novo" de nossos dias; a Bíblia sendo reapropriada pelo povo; o
movimento bíblico, etc.
Também a influência dos documentos do Concílio
423
foi potenciada com o surgimento
dos documentos de Medellín e Puebla. Estes documentos recolhem e respaldam uma
experiência eclesial que favorece uma nova "Teologia Bíblica"
424
e uma reapropriação e
reinterpretação da Bíblia pelo novo crente e oprimido. Esse contato direto do povo com a
Palavra de Deus é feito a partir de um critério novo: lê-se a Bíblia confrontando-a com os
problemas da vida e da luta do oprimido, possibilitando a redescoberta do "serviço da
Palavra" dentro da Igreja e dentro do Mundo; e lê-se a vida a partir da Luz (discernimento) da
Palavra
425
. Dá-se uma "leitura auto-implicativa"
426
que é baseada nesses dois momentos (ler a
Bíblia na vida e ler a vida na Bíblia). Em outras palavras: a "Igreja dos pobres" é a fonte da
nova leitura bíblica. Isso faz com que a leitura da bíblia seja uma “leitura dos empobrecidos".
Esta leitura realizada pelos pobres ou pela "Igreja dos Pobres" revela o crente e
empobrecido como o sujeito da leitura e relembra que ele é o sinal e o depositário da
sabedoria, da promessa e do projeto de Jesus. E ainda, todo pobre é objetivamente um sinal
profético e escatológico da vinda do Reino de Deus (Cf. Mt 5, 11; 25). Assim, o empobrecido,
com sua leitura popular da Bíblia, apresenta-se como a "chave hermenêutica" para se
423
Cf. Ibid. Mostrando a preocupação que outros documentos do Concílio apresentaram em relação à bíblia,
afirma o artigo: "... a 'Constituição sobre a liturgia também apresenta a Bíblia como 'alma' da liturgia (SC 24, 35,
51); o 'Decreto sobre a Formação Sacerdotal' desejava que a Teologia Moral fosse mais alimentada pela doutrina
da Bíblia (OT 16); o 'Decreto sobre o Ecumenismo' via na Bíblia um exímio instrumento para a consecução da
unidade (UR 21); o 'Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja' apresentava a missão da Igreja como
continuação da missão do Filho e do Espírito Santo, numa linha de reflexão eminentemente bíblica (AG 2-5); a
'Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje' dava uma importante contribuição no sentido de que o
Evangelho fosse adaptado à capacidade de todos e à exigência dos sábios', afirmando que compete a todo o povo
de Deus, principalmente aos pastores e teólogos, com o auxílio do Espírito Santo, auscutar, discernir e interpretar
as várias linguagens do tempo, e julgá-las à luz da palavra divina..." (GS 44), pp. 11-12.
424
Cf. Alberto ANTONIAZZI. A palavra de Deus na vida do povo - orientações teológicas e sugestões
práticas. p. 4-5.
425
Cf. Carlos MESTERS. Flor sem defesa - uma explicação da bíblia a partir do povo. p. 133-136; 190-191.
426
Euclides BALANCIN et al., Op. Cit., pp. 15-16.
185
compreender o processo da revelação da Palavra e do Espírito na história da formação do
Povo de Deus. Esta realidade pode ser compreendida pela seguinte análise:
“Se a Bíblia destaca com tanto relevo a preferência de Deus pelos oprimidos,
marginalizados, doentes, pecadores, etc., a sua mensagem é recebida por estes como
esperança, ao mesmo tempo em que aqueles que são responsáveis por essa realidade
(ricos e opressores) recebem-na como juízo, se não como convite à conversão.
Como a realidade das pessoas é muito mais de sofrimento, miséria, pecado,
opressão, não é difícil reconhecer que os pobres e oprimidos possuem a
'competência' e a 'pertinência mais adequada para reler o querigma da Bíblia. Este
lhes pertence preferencialmente
427
.”
Nessa nova leitura da Bíblia, o povo pobre - agente da interpretação - já não considera a
Bíblia como "Livro da hierarquia", "Livro dos exegetas", mas "livro da Igreja", acabando,
assim, com um complexo de inferioridade e de ignorância no povo e, às vezes, nos padres e
bispos. Esta realidade de reapropriação do uso da Bíblia pelo povo encontra nos "grupos de
reflexão" (onde um fato ou situação da via é confrontada com uma leitura da Bíblia, junto
com algumas perguntas de orientação para a reflexão em comum), "círculos bíblicos" (grupos
que costumam seguir um determinado roteiro preparado por outros; a rigor, qualquer grupo de
reflexão se identifica com o chamado círculo blico), Celebração da Palavra (o povo faz o
seu culto, e explica a Palavra de Deus, sem a presença do padre), encontros comunitários,
missa com dramatização da Palavra, etc. Nessa leitura da Bíblia pelos pobres, com os pobres
e através dos pobres, não se justificam mais critérios de interpretação exclusivamente de
ordem histórica, literária, dogmática. Mas, a partir da Bíblia, descobre-se a identidade do
povo de Deus que tem uma história e uma memória a serem preservadas. A Palavra de Deus
começa a "inspirar a vida" porque a "Bíblia não é simplesmente um livro inspirado, mas é um
livro inspirado para algo. Deus não inspirou aquelas ginas para que nós tivéssemos a
Bíblia, mas as inspirou para que a Bíblia nos ensinasse, persuadisse, corrigisse, formasse na
427
J. Severino CROATTO. Hermenêutica bíblica; para uma teoria da leitura como produção de
significado. p. 55 (grifo nosso).
“A renovação da leitura e da interpretação da Bíblia vem de um fato que marcou a vida deste povo crente e
oprimido e que repercutiu no próprio processo de evangelização: os pobres lêem diretamente a Palavra de Deus
como fonte e luz de sua caminhada e de seu projeto de vida e de liberdade na fraternidade", Fazer teologia
bíblica na América Latina, texto mineo., p. 3.
186
justiça e nos preparasse para toda a boa obra e, assim, nos comunicasse a sabedoria que leva à
salvação"
428
.
Esta leitura da Bíblia pelos pobres não é nova na história da Igreja. Contudo, essa
"novidade" surge nas "diferenças sensíveis" quando se compara a leitura do passado e a
realizada no presente na "Igreja dos Pobres". Não encontramos, na atual leitura, uma
"renovação das heresias", uma continuação anacrônica da "leitura ingênua do passado", mas
sim, uma leitura crítica e eclesial
429
.
Pelo fato de a Bíblia ser reapropriada pelo povo, ela "mudou de lugar" e, de certa
maneira, "mudou de classe"
430
, dando origem a uma mensagem bíblica de perspectiva nova,
que é responsável pelo surgimento de características próprias na sua leitura
431
. Entre estas,
destacamos: a) "leitura comunitária": o povo oprimido e crente considera-se destinatário
direto da Bíblia. Há uma consciência comunitária expressa na afirmação: "Nosso livro!
Escrito por Deus para nós!". Acontece uma familiarização com os textos bíblicos por um lado,
e, por outro, se desclericaliza o uso da Bíblia; b) "Espelho da vida": o objetivo principal da
leitura da Bíblia não é interpretá-la, mas interpretar a vida que vive. A Bíblia é lida e
estruturada para conhecer melhor a realidade presente e os apelos de Deus na história; c)
"leitura militante": o povo não faz uma leitura neutra. A Bíblia é "presença nas lutas da vida".
Os conteúdos bíblicos surgem como algo presente - os personagens bíblicos assumem
428
Carlos MESTERS. Por trás das palavras. V. I, um estudo sobre a porta de entrada no mundo da bíblia, p.
199.
429
Cf. José COMBLIN, Critérios para um comentário da bíblia, REB, 42: 307-310.
- O autor constata: "O movimento das comunidades de base leva a um novo tipo de comentários bíblicos:
comentários feitos não para os monges que buscam os caminhos de sua perfeição individual, não para seitas
que procuram justificar o seu separatismo e o seu isolamento da antiga tradição eclesial, não para universitários,
não para pastores da Igreja que querem manter o seu rebanho na simples ortodoxia, mas para as comunidades
eclesiais de base que não são comunidades de pobres, comunidades populares, mas guiadas por intelectuais
críticos, imbuídos de crítica intelectual, de modernidade, de política moderna e de sociologia contemporânea.
(...)
"Podemos dizer que não existe precedente histórico de semelhante trabalho que une num olhar o sentido
moderno crítico de uma classe intelectual e as aspirações de libertação e autonomia de um povo oprimido" (p.
310).
430
Cf. Carlos MESTERS. Flor sem defesa..., pp. 34-38.
431
As características foram tomadas do exegeta C. MESTERS. Op. Cit.
Cf. Ibid., pp. 192-194.
Cf. Milton SCHWANTES, Teologia bíblica junto ao povo; in: Estudos de religião 3: 43:56.
187
contornos hodiernos; as experiências de organização que as comunidades vão fazendo são "re-
encontráveis no texto". Apesar das críticas que são feitas contra esta "leitura popular"
(fundamentalismo, reducionismo concordista, falta de distanciamento crítico), que deve, é
claro, ser levada muito a sério, o povo consegue fazer uma leitura que sintoniza os conteúdos
bíblicos desde uma "perspectiva concreta e material" e "desde uma prática de luta e conflito",
o que possibilita uma libertação. É uma leitura a partir de uma interpretação transformadora
por ser engajada em se comprometer com os oprimidos e com sua luta, procurando, assim,
transformar a vida mais de acordo com as exigências do Evangelho. Esta leitura assume uma
dimensão política; d) "leitura orante" (ou espiritual): quem vive na comunidade eclesial, vive
em contato com o Cristo vivo, ressuscitado, e Dele recebe a graça do Espírito para
compreender o que Deus oferece ao povo pela Bíblia (cf. 1Cor 2, 14). A leitura da Bíblia, para
o povo, é exercício da própria fé. Faz-se, sempre, uma leitura orante, quando se dá lugar à
ação do Espírito na leitura e na interpretação da Bíblia; etc.; e)"leitura profética": a leitura
bíblica realizada pelos empobrecidos destaca a Bíblia como denúncia incansável contra a
pauperização, a exploração e anúncio de que , pela solidariedade dos empobrecidos, possa
crescer a esperança de um mundo mais fraterno e solidário.
Estas características apresentadas mostram a influência mútua da vida sobre a Bíblia e
da Bíblia sobre a vida. E mais: a leitura da Bíblia pelos pobres não é e nem pode ser feita a
partir dos interesses e da lógica dos "sábios e dos entendidos", mas sempre a partir da fé, da
esperança e do amor dos pequeninos (Mt 11, 25-30).
Todavia, mais uma vez não descartamos que uma interpretação popular (ou elitista,
acadêmica) da Bíblia possa ser falha ou, no mínimo, incompleta, chegando às vezes ao
fanatismo, agarramento à letra, uso tendencioso (dogmático ou ideológico) do texto,
subjetivismo ingênuo e acrítico, mistificação da letra, interpretação dominadora, etc. É sabido
que a Bíblia foi sustentáculo justificador da opressão ou legitimadora na proibição do
188
despertar de um povo. Então, dependendo da leitura ou da interpretação, "a Bíblia ou ajuda ou
atrapalha"; "ou oprime ou liberta". A problemática da ambigüidade na interpretação nos leva,
agora, a refletir sobre uma metodologia que favoreça a eficácia por uma libertação da grande
maioria.
O uso da Bíblia pelo e/ou para o povo deve ser realizado na contínua tensão de três
forças: "a força do problema concreto que angustia a vida do povo; a força da investigação
científica da exegese que questiona as certezas estabelecidas; e a força da fé da Igreja que está
acordando na 'memória' dos cristãos
432
; em outras palavras, três elementos devem ser suporte
de toda leitura bíblica: a vida (pré-texto), a ciência (texto) e a (contexto)
433
. Daí se pensar
na seguinte problemática do uso da Bíblia na Igreja:
“O problema maior da interpretação da Bíblia hoje em dia já não está em saber
explicar melhor este ou aquele texto; não está em usar um pouco mais os critérios da
fé; nem está em ativar no povo a criatividade para ele poder descobrir um sentido
para a sua vida em cada texto. Interpretar a Palavra de Deus não depende da
exegese ou de uma infalível competência científica do exegeta, nem da ou de
um conhecimento maior da Tradição da Igreja, nem da vida ou de uma
convivência mais intensa com o povo. Depende da integração destas três forças, ou
melhor, depende da integração da ciência e da fé, colocadas ambas a serviço da vida,
criada por Deus e salva em Jesus Cristo, para que seja enfim, 'vida em abundância'
(Jo 10, 10)
434
”.
432
C. MESTERS, Op. Cit, pp. 140-141.
433
Utilizaremos a reflexão de C. MESTERS no que diz respeito à metodologia a partir das três forças. Para ele, a
vida do povo é o pré-texto = "tudo aquilo que preexiste em nós, antes mesmo de entrarmos em contato com o
texto, a que nos leva a procurar dentro do texto um sentido para a vida" A ciência exegeta trabalha o texto = "é o
texto da bíblia, enquanto lido é interpretado com os critérios da ciência, independentemente de qualquer idéia
preconcebida, para se chegar a descobrir o seu sentido literal". E a da Igreja que recebe e a Bíblia como
sendo o seu livro funciona como contexto.
Cf. Ibid.
434
Ibid., p. 143 (grifo nosso)
189
Na experiência da "Igreja dos Pobres", a integração entre as "forças" está em
andamento. Cada uma das forças tem sua função e é necessário serem integradas para que a
Palavra de Deus atinja seu objetivo na vida dos homens
435
. A falta de contribuição de pré-
texto pode levar à mistificação ou absolutização do texto, confirmando uma leitura alienada,
como também a comunidade pode perder o sinal profético diante do sistema antievangélico,
ao indentificar o pré-texto com o contexto, preocupando-se apenas com a transformação da
vida da comunidade eclesial. Chega-se ao erro de querer interpretar a Bíblia com a
preocupação de moralizar a vida e conformá-la de acordo com os valores do ambiente
exterior. Também as leituras correm o perigo de não compreenderem bem o contexto. Isto
acontece quando o reduzimos ao tamanho dos nossos próprios projetos de ação sobre a
realidade. A comunidade da acaba sendo o meio e instrumento para o agir sobre o pré-
texto da realidade, o que pode privar a pessoa de um instrumento crítico para a prática
transformadora. É necessário o olhar da fé, nascido do Espírito. Quanto ao texto, este pode ser
distorcido na sua função quando perde a autonomia diante do pretexto e do contexto. Ao ser
subordinado ao contexto pode-se ter uma exegese dogmática e apologética; ao ser
subordinado ao pré-texto, pode surgir uma exegese ideológica. É importante ter a consciência
desses riscos. Porém, "o texto exige que ele seja lido dentro do contexto da fé, pois é do
435
Os três elementeos podem ser representados graficamente assim:
Escutar hoje
a palavra de
Deus
Texto
(Bíblia)
Contexto
(comunidade)
Pré-texto
(realidade)
190
horizonte do Espírito que vem a luz para poder descobrir o sentido do texto para a vida de
hoje. Deve ser lido também a partir do pré-texto da realidade da vida do povo, pois é
horizonte da realidade que mostra todo o alcance histórico da conversão que o texto e o
Espírito pedem de nós"
436
.
A metodologia demonstrada quer apenas salientar que a Bíblia tem um valor para a ação
do povo de Deus, a partir de uma leitura que responde às exigências da grande maioria,
negando, assim, a concepção de que a Bíblia é apenas um documento histórico do passado ou
uma obra literária da antigüidade
437
. Aquilo que faz a Bíblia Ter um "sentido-para-nós", que
vivemos nessa nossa realidade, é sua capacidade de fazer a comunidade despertar para a
presença contínua, amiga e gratuita de Deus em sua vida. O passado e o presente como partes
integrantes de uma unidade maior se dão pela continuidade do diálogo entre o "mesmo Deus e
o mesmo povo", contribuindo para des-velar os fatos de nossa vida e nos revelar a presença de
Deus no processo histórico de libertação. Nosso método se caracteriza, conseqüentemente,
pela vigilância de uma leitura intimista, individualista, privatizante para a prática da Palavra
de Vida e, realmente, espiritual
438
; ou seja, zelar por uma leitura a partir da vida do Povo, na
436
Carlos MESTERS. Flor sem defesa... p. 153.
437
"A Bíblia contém a palavra de Deus que guia e orienta a ação no presente, em todos os presentes. Daí a
multiplicidade dos sentidos da Bíblia. Na medida em que os discípulos caminham na busca da verdade, na
medida em que as gerações passam, as situações mudam, as exigências de Deus mudam também. A mesma
palavra já não é a mesma: pois ela tem outras exigências. Ela se renova constantemente, procurando sempre a
mesma linha, mas a partir de circunstâncias diferentes, de pontos de partida diferentes. A nenhuma geração a
Bíblia diz tudo o que ela contém. Sempre exprime uma parte, aquela que é necessária numa geração
determinada. Ainda que a tradição da Igreja procure guardar a lembrança de toda a experiência do passado e
construir o presente a partir de toda a herança do passado, sempre o presente traz algo novo.
"A Bíblia fala para os tempos de hoje. Ela fala também para ação de hoje, não para o depósito cultural. Ela fala
para os pobres, pois ela é o livro dos pobres", José COMBLIN, Op. Cit., p. 314.
438
O que se entende por:
a) Leitura individualista e intimista:
-"Um tipo de leitura que não perceba a totalidade do apelo da Palavra de Deus é aquela que é feita pelo indivíduo
fechado sobre si mesmo: fica um intimismo individualista, não a necessária realização entre 'pessoa e povo' e
por isso não percebe as exigências comunitárias do amor, de comunhão, do serviço comunitário, e das exigências
de transformação das estruturas do mundo e da sociedade.
-"Há uma leitura fundamentalista e interesseira: a leitura da Palavra de Deus se faz numa abstração que procura
fugir dos desafios concretos e evita compromissos e mudanças na vida social, e isto com a finalidade de manter
os privilégios e os interesses de determinados grupos sociais. Este tipo de leitura procura evitar os apelos e as
exigências do Espírito de conversão e de mudança inerentes ao anúncio evangélico.
-"Esta leitura se manifesta como a busca de uma idéia abstrata e universal. Busca uma idéia sem vida e sem força
de transformação. E isto acontece para fugir das situações reais e concretas onde se manifestam os verdadeiros
191
qual se manifesta a presença e ação do Espírito Evangélico de comunhão e de vida. Essa
realidade de nova compreensão do texto bíblico encontramos na experiência das comunidades
inseridas no mundo dos empobrecidos.
Quando se diz que a Palavra de Deus ilumina uma ão no hoje, não se pensa na Bíblia
oferecendo um programa de ação, um planejamento ou uma estratégia. A ação dos cristãos
não é a partir de um programa do passado. Nem Jesus ofereceu algum programa. Por isso
mesmo, o testemunho das comunidades eclesiais será infinitamente diverso de acordo com os
tempos, os lugares, as situações das pessoas ou dos grupos. A Bíblia apresenta apenas
"critérios" para orientar as opções das comunidades
439
.
A primeira função da Bíblia despertar-nos para a insuficiência ou ambivalência dos
nossos próprios critérios e para as aspirações profundas do coração humano, iguais em todos
os tempos, serem preenchidas pela certeza central da fé: Deus-conosco"
440
. De critérios
apresentados pela Bíblia ajudam o empobrecido a julgar a religião, os fatos humanos e
sociais.
Todo comentário bíblico possibilita compreender a diversidade de situações, a
multiplicidade de analogias, ajudando a iluminar a situação presente sob vários pontos de
vista. O comentário pode contribuir para uma não ideologização do texto bíblico, realidade
por assimilações precipitadas, parcialidades nas opções dos textos.
repensáveis das situações de opressão, de marginalizarão, e portanto situações de pecado e de negação do Reino
de Deus".
b) Leitura da verdade que liberta:
-"Uma leitura a partir da prática libertadora do Povo. Leva em conta a situação concreta da vida dos pobres, onde
se manifestam os apelos da vida e da presença de Deus e de seu Reino.
-"Esta leitura suscita uma atitude e uma análise crítica da realidade, e do próprio texto bíblico: é um
discernimento do Espírito que leva às raízes das situações e dos Libertos da Morte, e busca a radicalidade do
Caminho da Libertação que leva para a Vida e para a Comunhão no Amor do Pai, revelado por Jesus Cristo.
-"Assim é uma leitura que busca a Verdade de um Espírito profético e escatológico que transforma a vida
social, muda a qualidade das relações sociais, e possibilita a viver todas as exigências da justiça e do amor
evangélico. É a busca de um espírito profético que leva a viver a nova justiça superior à justiça dos Escribas e
dos Fariseus, na chama do espírito das bem aventuranças...",Fazer teologia bíblica na América Latina, Op.Cit., p.
4-5.
439
Cf. José COMBLIN, Op. Cit., 319-321.
440
Carlos MESTERS. Por trás das palavras... p. 120.
192
Entre os critérios definidos pela Bíblia que devem nortear a opção-compromisso da
"Igreja dos Pobres", destacamos
441
: a) ver a história na perspectiva dos pobres e, por
conseguinte, todos os acontecimentos atuais devem ser interpretados desde a perspectiva dos
empobrecidos; b) revelar o poder dos oprimidos, permitindo aos homens acreditar no futuro
apesar do atual contexto sócio-político; c) mostrar a permanência da luta e que ela não é
extinta pela "imposição de uma ordem", desmascarando visões místicas, ideologias e
pensamentos espontâneos que querem, em nome da justiça, da paz e da ordem, deixar o povo
sob o jugo da opressão.
A partir desses critérios, a Bíblia é um instrumento de evangelização libertadora.
Evangelização como anúncio do verdadeiro Deus e compromisso de fazer o pobre tomar
consciência de sua real história de opressão e libertação; em outras palavras, a evangelização
é um juízo que desmascara os ídolos de um sistema que oprime o povo de Deus. Não
dúvida de que evangelizar é muito mais que interpretar um texto bíblico, "mas não há
evangelização plena sem uma referência explícita ao texto bíblico..."
442
. E, partindo de que a
"Bíblia foi produzido pelos pobres ou na perspectiva dos pobres, isto lhes permite, somente
eles, encontrar a chave de sua interpretação"
443
. Quanto mais difícil a missão de discernir a
revelação de Deus em um contexto idolátrico de opressão, injustiça, tanto mais necessita o
pobre do texto bíblico como critério de discernimento, fazendo-se, assim, sujeito legítimo da
evangelização, porque a Bíblia pertence à "memória histórica e subversiva" dos pobres.
Sendo a Bíblia história de um povo humilhado e explorado, de um Deus que não aceita
o cativeiro, os pobres em nossa realidade estão descobrindo que a história bíblica se identifica
com a sua história, e que o Deus bíblico continua condenando essa situação injusta. Assim, a
Bíblia nas mãos dos empobrecidos crentes é alimento de esperança e luta por uma vida digna
441
Cf. José COMBLIN, Op.Cit., p. 320-321.
442
Pablo RICHARD, BÍBLIA: memória dos pobres, in: Estudos bíblicos 1, a bíblia como memória dos
pobres, p. 22.
443
Ibid., p. 25.
193
e um mundo justo. Novamente a Palavra de Deus é entregue e acolhida pelo seu real
destinatário.
5.3. Liturgia
Se a liturgia
444
deve estar a serviço do povo de Deus - pela sua essência "teocêntrica" - é
importante compreendê-la na experiência da "Igreja dos Pobres", procurando desvendar o
sentido de libertação da e na realidade litúrgica, o que nega comprendê-la simplesmente como
"rito" ou "cerimônia eclesiástica" alienante. Esta análise deverá proporcionar o conhecimento
da resposta da liturgia ao homem empobrecido que anseia pela libertação integral.
Antes de apresentar a liturgia no seu aspecto libertador, vamos ressaltar elementos de
estrutura ou de interpretação que a fazem cativa de um compromisso alienante, ao estar
acolitando um sistema sócio-econômico e político explorador ou manifestando uma atitude
descristianizada, ficando desprovida da memória libertadora efetuada por Deus junto ao seu
povo
445
.
Entre os elementos que freiariam a renovação, a revitalização e a dimensão libertadora,
podemos destacar: a) a clericalização da liturgia: "toda" a liturgia está estruturada a partir da
hierarquia, e a participação do leigo no culto não passa de mera concessão. Há que se
descobrir que a ação litúrgica precisa libertar-se da dominação do clero e receber uma
participação efetiva do povo; b) des-inculturação litúrgica: a liturgia se dependente de
fórmulas estrangeiras herdadas em séculos passados; daí uma realidade de ininteligibilidade,
arcaísmos, rubricismo, conservadorismo, tradicionalismo, dificultando uma liturgia como
resposta à realidade local; c) liturgia espiritualizante: esquece-se que a liturgia é celebração
444
É a seguinte a definição implícita que utilizamos referente à liturgia: "...reunião do povo de Deus para
celebrar os atos libertadores de Deus na história dos homens e para anunciar ao mundo essa mesma libertação.
Trata-se de uma reunião regular, alimentadora da vida e voltada para a realização plena das promessas de Deus
ao seu povo", Jaci C. MARASCHIN. A libertação da liturgia, Tempo e Presença. 184, p. 27.
445
Cf. Ibid.
Cf. Ignacio ELLACURÍA. Conversión de la iglesia al reino de Dios. p. 283-288.
-Baseando-nos nas análises dos autores citados fomos inspirados quanto à constatação de elementos dos quais
nossa liturgia está prisioneira.
194
da objetividade da ação de Deus na história no corpo, chegando a uma religião da
subjetividade responsável por uma liturgia desencarnada, desarticulada da realidade, não
integrada na vida, não adaptada ao povo, acontecendo um abandono do mundo ou uma
alienação da vida, da história. É necessário libertar a liturgia dessa falsa espiritualidade; d)
idolatrização dos "deuses" de hoje: se a liturgia é a reunião do povo de Deus para celebrar
Sua revelação libertadora, ela deverá desmascarar os deuses falsos. É falsa a celebração que
acaba adorando os falsos deuses do dinheiro, do capitalismo, do lucro, do bem-estar, da
hierarquia, do poder da instituição; e) confinação ao "lugar e tempo sagrados: deve-se chegar
a uma liberdade em relação ao espaço e ao tempo para o encontro ou adoração de nosso Deus.
que se saber que todos os tempos e espaços são santificáveis; f) liturgia voltada para a
"outra vida": a literatura refere-se à salvação na vida eterna, retirando qualquer ligação com o
ser terreno. Com isso, dificulta um trabalho que se comprometa a visualizar os sinais do Reino
entre s; g) liturgia do "ex opere operato": minimiza uma ativa e histórica do crente.
Acaba às vezes convertendo a liturgia a uma magia individualista, intimista. Em tal
orientação, falta o esforço de fazer presente o Mistério com sinais vivos...
A liturgia é lugar privilegiado da libertação quando consegue libertar-se desses claros
perigos elencados. Contudo, é sabido que muita alienação vivenciada pelo povo foi
implantada através da Igreja. Conforme o visto, entre as contribuições negativas da instituição
eclesial, algumas foram transmitidas através da liturgia. Como exemplificação, temos o
problema lembrado da preocupação com a "outra vida"; em que se confunde a libertação
com a "evasão"
446
. Numa vida comprometida, "longe de buscar na liturgia, em certos lugares
e horas, a evasão da realidade ... os cristãos coerentes unem vitalmente todas as suas lutas pela
justiça às lutas do próprio Cristo (centro da liturgia), vivo na liturgia... Não aceitam, pois, nem
446
Cf. Ignacio ELLACURÍA, Op. Cit.
O autor mostra que o problema de evasão foi sério. O crente se preocupava com o reino celeste, desvinculando o
compromisso de libertação da própria liturgia.
195
o ritualismo - predominância vazia de gestos e fórmulas sobre a disposição radical da pessoa -
nem o angelismo - alienação paralisante dos que supervalorizam um falso mundo espiritual
desligado da vida corrente"
447
. Toda liturgia desligada dos problemas da vida dos
empobrecidos narcotiza o crente e desfigura a comunidade eclesial.
Não obstante, a liturgia tem-se preocupado, a partir das últimas décadas, em libertar-se
do cativeiro e tranformar-se, assim, num serviço à libertação de todos os pobres e oprimidos.
O CV vai consagrar hierarquicamente um longo processo de reforma litúrgica
448
, publicando
em forma oficial a "Sacrosanctum Concilium". Quatro princípios enunciados pelo CV foram
determinantes para definir o primeiro momento de renovação. Primeiro, visou-se ordenar os
ritos de maneira a estimular a participação da assembléia dos fiéis. O CV fala da necessidade
da participação ativa e frutuosa, consciente, plena, piedosa dos fiéis na liturgia
449
; segundo,
uma preocupação pela descentralização, favorecendo uma maior liberdade diante da liturgia
por parte de cada "autoridade territorial eclesiástica"
450
; terceiro, procurou-se atender à
necessidade de restaurar as formas e estruturas do culto eclesial, revalorizando o sacramental
e o simbólico, e ajustar a prática sacramental a povos que desconheciam a língua em que se
apresentava a liturgia, esta adaptação da liturgia foi viável devido ao princípio da
descentralização. Não cabe mais a uniformidade, isto é, realizar a mesma coisa e de maneira
igual em todos os lugares do mundo. A liturgia deve ser uma contínua celebração adaptada ao
povo, apresentando o cuidado da simplicidade quanto à linguagem e aos sinais para a maior
compreensão dos ritos e cerimonias pelos fiéis
451
; quarto, também não cabe à liturgia
desprezar a tradição da Igreja. Conhecendo a verdadeira natureza e desenvolvimento histórico
447
Aldo VANNUCCHI. Liturgia e libertação. p. 19.
448
A renovação litúrgica apresentada pelo Concílio Vaticno II continuidade à reforma litúrgica iniciada no
fim do século passado.
Cf. Almir Ribeiro GUIMARÃES. Comunidades de base no Brasil. p. 102-105.
449
Nada menos que 25 números da Sacrosanctum Concilium falam da necessidade de participação dos fiéis na
liturgia - Cf. n. 11, 12, 14, 18, 19, 21, 27, 30, 31, 33, 41, 48, 50, 53, 54, 55, 56, 59, 79, 100, 113, 118, 121, 124.
450
Cf. SC, n. 44.
451
Cf. SC, n. 37; 34; 38.
196
da liturgia, poderemos apreciá-la e realizá-la de modo mais vivo, enriquecedor e atualizado
452
.
Ocorre, assim, uma reestruturação e revalorização interna da liturgia ao assimilar e cultivar
formas e expressões mais próximas do povo.
A constituição sobre a liturgia avança ao se preocupar com o engajamento e resposta da
comunidade eclesial diante do litúrgico. Mostrando o respeito aos valores da Tradição e à
importância de uma resposta atualizada, ela quer que "se abra caminho para um legítimo
progresso", a fim de que as cerimonias "sejam acomodadas à compreensão dos fiéis" e
integradas aos "diversos grupos, regiões e povos"
453
. É um apelo à criatividade no intuito de
acabar com o mal-estar da liturgia fixada, uniformizada ou distante (alienada) da vida do povo
- as autoridades eclesiásticas foram convocadas a vivenciar ritos particulares e a apresentar
proposições concretas no sentido de uma adaptação mais condizente com as tradições e
mentalidades dos povos. Acreditamos que a grande contribuição da "Sacrosanctum
Concilium" foi recolocar a liturgia dentro da história do Povo de Deus, que é a história de
salvação.
Partindo da perspectiva do Documento de Medellín, a liturgia continua o processo de
renovação. Para compreender a redefinição da Igreja, na Conferência de Medellín, quanto à
liturgia, é necessário a referência à constituição conciliar "A Igreja no mundo de hoje"
(Gaudium et Spes) e a encíclica do Papa Paulo VI "O desenvolvimento dos povos"
(Populorum Progressio). O posicionamento da Instituição eclesial nesses documentos é
interpretar sua missão a serviço do Reino no mundo, a serviço do homem situado
historicamente, como ser social e político. Reconhece-se que o maior problema do momento
histórico era "a universalidade da questão social, o abismo crescente entre os "povos de
452
Recomenda o Concílio na Sc n. 23:
"A fim de que se mantenha a tradição e assim mesmo se abra caminho para um legítimo progresso, sempre
preceda cuidadosa investigação teológica, histórica e pastoral acerca de cada uma das partes da Liturgia a serem
reformuladas".
453
SC n. 23, 34, 38.
197
opulência" e os "povos da fome". Todo discípulo de Cristo é chamado a assumir como suas
"as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje" (GS), e a tornar-se
uma força transformadora na resolução dos problemas que afligem a humanidade.
No capítulo 9
454
fica clara a preocupação da união vital entre a fé, a liturgia e a vida
cotidiana. A liturgia não poderá continuar sendo um "parêntese religioso" na vida do cristão,
mas um momento forte de comunhão com todas as dimensões da vida do homem
455
, sendo
indispensável que ela deixe de ficar alheia ao que acontece na história do homem, porque
que celebrar a presença ativa e salvífica de Deus dentro da realidade, na tentativa de guiá-la
em direção à realização plena do plano de Deus. Isso é compreensível devido ao caráter de
liturgia ser "antecipação da libertação integral", da Plenitude - na "liturgia temos a
oportunidade de vivenciar, em atos simbólicos-sacramentais, aquilo que aguardamos, aquilo
que Deus prometeu: o amor e a partilha entre os irmãos, a igualdade e o respeito mútuo entre
raças, sexos e nações (cf. Gál 3, 26-28), a liberdade dos filhos de Deus, a plena comunhão
com Deus... Porém, esta vivência momentânea, esta antecipação da glória celeste, não pode
nos afastar das tarefas da construção do mundo; ao contrário, deve ser um estímulo para voltar
ao trabalho da construção do Reino dentro da história"
456
. Quem celebra a liturgia deve
manter-se numa situação dinâmica e acompanhar o processo de evolução da humanidade. Se
o CV insistiu numa participação ativa, plena e consciente do povo na liturgia, o documento de
454
Afirmações do Documento de Medellín no Capítulo 9, que trata da liturgia:
“... a celebração litúrgica coroa e comporta um compromisso com a realidade humana, com o desenvolvimento e
com a promoção, precisamente porque toda a criação está inserida no desígnio salvador que abrange a totalidade
do homem".
'... a celebração litúrgica, por meio do conjunto de sinais com que expressa a fé, traz:
a) Um conhecimento e uma vivência mais profunda da fé;
b) Um sentido de transcendência da vocação humana;
c) Uma mensagem cristã de alegria e esperança;
d) A dimensão missionária da vida eclesial;
e) A exigência que leva a fé a comprometer-se com as realidades humanas.
(...)
"Levar a uma experiência vital da união entre a fé, a liturgia e a vida cotidiana..." - CELAM, A igreja na atual
transformação da América Latina à luz do concílio - conclusões de Medellín, p. 107-108.
455
Cf. Ione BUYST, Liturgia no documento de Medellín, in: Renovação litúrgica pós-Medellín, Rev. bimestral
de liturgia, 62, p. 3.
456
Ibid., p. 4.
198
Medellín interpreta esta participação na construção de um mundo livre, justo e fraterno.
Porque a participação consciente e plena na liturgia nos lança a uma prática libertadora.
Assim, a liturgia necessariamente se vincula à vida. E é um momento privilegiado da
pessoa ou da comunidade para confirmar o compromisso com a promoção humana através de
soluções justas e fraternas para a grande maioria.
A renovação litúrgica vai ser também confirmada e reiterada na Conferência de Puebla.
E os enfoques que repercutiram na prática litúrgica são provavelmente a "opção pelos
pobres", a "Comunhão e Participação" e a "Piedade popular"
457
.
O enfoque da "opção pelos pobres" vai apresentar uma repercussão grande na liturgia.
Afirma-se a necessidade de "conseguir um rito acomodado às nossas necessidades,
especialmente às do povo simples, tendo-se em conta suas legítimas expressões culturais" (DP
926). A liturgia, nesta perspectiva, torna-se uma das principais entradas por onde o
empobrecido realiza sua irrupção no mundo de hoje; o que contribui para que a opção pelos
empobrecidos seja inalienável na "Igreja dos Pobres". O documento de Puebla reconhece que
a “participação na liturgia não repercurte de forma adequada no compromisso social dos
cristãos. A instrumentalização que, por vezes, se faz mesma, lhe desfigura o valor
evangelizador" (DP 902), o que não deixa de ser advertência contra os abusos ou possíveis
instrumentalizações da liturgia para fins que não proporcionam a evangelização do povo. O
outro enfoque, "Comunhão e Participação", está apontando implicitamente o processo da
libertação
458
. Porque não se trata apenas de participação nas orações e cerimônias, mas de
uma participação que se estende até o compromisso social e histórico dos fiéis (DP 901,
457
Baseamos a análise da liturgia em Puebla a partir do artigo: Adriano Van der BERG, Puebla e a liturgia, in:
Renovação liturgica pós-Medellín. Op. Cit., p. 10-18.
-Cf. CNBB. Liturgia: 20 anos de caminhada pós-conciliar. Doc. da CNBB, 42.
458
"Como a Comunhão e Participação não são dadas, mas têm que ser construídas, entra o processo de libertação
pelo qual se liberta o homem dos empecilhos à Comunhão e à Participação e se liberta para a vivência concreta
da Comunhão e da Participação", Leonardo BOFF, A libertação em Puebla, in: Puebla, análise, perspectivas,
interrogações. p. 43.
-O DP insiste, repetidas vezes, na "participação dos fiéis": n. 896, 923, 925, 931, 944, 947, 948.
199
958). Com efeito, os conceitos de "Comunhão e Participação" tornaram-se elementos
inalienáveis no processo de renovação litúrgica; mais ainda, quando se revela que expressam
implicitamente a libertação - expressando a liberdade a que os cristãos deveriam ter acesso,
em de igualdade: os bens deste mundo (Comunhão) e o poder de decisão (Participação).
Quanto à atenção pela Piedade popular, o documento está em consonância com a "opção
pelos pobres"
459
. Mostra-se uma preocupação pelos valores próprios, religiosos ou culturais,
da piedade popular
460
, o que respalda a ligação íntima entre os atos religiosos e a liturgia,
apesar de que, em alguma passagem do DP, não fica clara a consideração da piedade popular
como Liturgia. Fala-se dela em números separados e parece querer preservar o sentido da
liturgia para os atos do culto oficial da Igreja, como os sacramentos
461
.
Salvo engano, acreditamos que a liturgia está procurando obedecer ao incentivo e aos
critérios de Puebla na sua caminhada, favorecendo uma liturgia encarnada e responsável pela
libertação integral do povo de Deus. Contudo, toda a experiência litúrgica deve evitar os
reducionismos. Encontramos duas tendências reducionistas: a) "redução teológica" na qual
“toda e qualquer presença, na liturgia, de ‘elementos profanos’, é insuportável”. Não aceitam
(liturgistas) de modo algum que Deus está presente e se manifesta em tais elementos profanos,
como são a história humana concreta e suas dimensões: a realidade social, econômica,
política, etc. A dimensão cultural seria eventualmente aceitável como mediação da
459
Talvez o episcopado latino-americano reunido em Puebla não tenha entendido "popular" dentro da ótica da
realidade dos empobrecidos, mas de uma maneira mais vaga. o obstante, "povo" é dito daquele segmento da
Igreja que não constitui a hierarquia ou oficialidade da Igreja. E o "popular" é interpretado no sentido de simples,
espontâneo, sem teorização. O que aproxima do "povo dos pobres".
O documento da CNBB (n. 42), citado acima, ao comentar dos "pobres na liturgia" afirma:
"Partindo da constatação de que na liturgia dos últimos vinte anos, uma mudança, senão a mais importante e
determinante, ao menos uma das mais marcantes, é a opção (preferencial) pelos pobres, e as tensões e
conflitividades decorrentes desta opção. A época da presença de ricos e pobres fraternalmente unidos na liturgia
parece definitivamente passada. Não é mais uma realidade pacífica. Não é mais aceito como normal que haja
ricos e pobres, e questiona-se também o fato de eles se sentarem à mesa do senhor, como nos tempos de São
Paulo (L Cor 11, 17 ss). Neste sentido, pode-se falar de um desmascaramento da mentira/hipocrisia, que
simulava união e fraternidade, inexistentes na realidade (‘... enquanto um passa fome, o outro fica embriagado...'
1 Cor 11, 17) (...) Por isso... se opção pelos pobres desmascara, na liturgia, a mentira da falsa paz e da
fraternidade simulada, podemos apenas aplaudir. E teremos que aceitar as tensões e eventuais conflitos que isso
causa, como dor inevitável" (p. 57-58).
460
DP 899.
461
Cf. DP n. 916-918, 922-923.
200
manifestação de Deus. É que esta manifestação não acarretaria, imediatamente, exigências de
mudança e transformações..."
462
; b) "redução sociológica" (histórica) - esta pode ser motivada
por outro zelo, zelo por uma sociedade justa e humana, por exemplo. É uma preocupação
evangélica, mas não pode abandonar a dimensão religiosa (teológica); caso contrário, torna-se
problemática. A palavra de Deus deve ser acatada apenas como "pronunciamento ou
veredicto" sobre o contexto social. "A Palavra de Deus... é muito mais: é autocomunicação de
Deus e sua encarnação dentro da história, que a esta uma dimensão maior, transcendente, e
que faz com que ela não se feche sobre si mesma para terminar no absurdo do nada. Mas se
abrigará para dentro da própria vida do Pai, e do Filho e do Espírito, na única e verdadeira
união. Comunhão e Participação, igualdade, liberdade: é o reino de Deus"
463
.
Diante da caminhada feita nesse "ensaio de renovação litúrgica", diríamos que há
desafios e esperanças se concretizando. Entre os desafios básicos, a partir dos problemas
levantados no início, nessas últimas décadas, para se chegar à autêntica renovação, pode-se
destacar
464
: a) "espiritualidade litúrgica" - este vem do confronto com as aspirações bíblico-
tradicionais e de uma sensibilidade aguçada com relação às exigências antropológicas,
culturais e sociais do povo, que é motivada na celebração de sua vida. Esta espiritualidade
exige a "vida de oração", uma vivência às fontes oracionais da Igreja, a fé interiorizada que
leva a uma vida de gratuidade, liberdade. "A espiritualidade litúrgica exige vida íntima com o
Mistério pascal, contemplação profunda de realidade da história da salvação até criar a
disponibilidade interior de entregar a própria vida pela causa assumida pelo Cristo, Filho de
Deus e irmão dos seres humanos na concretude de suas condições"
465
; b) o pressuposto da
inculturação é imprescindível - este não exige especializar em discurso convincente a respeito
de uma realidade aparente, captada pelo "agente atento" ou revelar fenômenos sócio-políticos
462
Adriano Van der BERG, Op. Cit., p. 17.
463
Ibid.
464
Cf. Maucyr GIBIN, O pós-concílio: ganhos e perdas na renovação litúrgica. Vida Pastoral: 125, Nov-
Dez/1985, pp. 22-25.
465
Ibid., p. 25
201
emergentes em certas condições. A cultura é um "agir interior que chega à sobreface como
agir social e carrega toda uma história do ser humano antes de ser problema superficial,
mesmo grave, mas que não marcou a gênese psicológica. a cultura é carregada de emoção
profunda capaz de ser celebrada. Os fatos epifenomenológicos são passíveis de
comportamentos esporádicos, mas a cultura envolve uma atitude comprometida e
comprometedora"
466
. É a profundamente assimilada e enraizada na realidade, que favorece
uma não instrumentalização das celebrações por um "comportamento moralisticamente pré-
estabelecido” diante do contexto sócio-político, mas sim, uma operacionalidade coerente
numa identificação com o serviço ao Reino.
Quanto a essa novidade, proporcionada pela renovação, encontramos uma fidelidade ao
ensinamento do Sacrosanctum Concilium nas Conferências de Medellín e Puebla - onde se
procura reinterpretar para a nossa realidade a riqueza da liturgia - promovendo na Igreja local
uma imaginação criativa e libertadora, e consonância com as necessidades do pobre e crente.
Conseqüência dessa "inovação litúrgica" são as experiências na "Igreja dos Pobres".
Como a Igreja se entende e se constitui - consenso de comunitária - em função
(também) de um conteúdo religioso transmitido, é importante desvendar a prática litúrgica na
"Igreja dos oprimidos". Apesar do CV proporcionar uma renovação litúrgica, ela ficou
distante de uma produção litúrgica popular. Diante de sua função produtiva, o povo pobre
esteve ausente e esquecido na preparação da reforma - "A reforma do Vaticano II foi marcada
pela presença de grupos seletos, habituados à vida litúrgica mais aprimorada e por intelectuais
especialistas. Portanto, não significou nenhuma atividade popular. Se não foi exclusivamente
clerical, mas se enriqueceu das experiências de cristãos leigos, contudo esses não vinham de
nenhuma camada popular. Pertenciam a uma elite espiritual da Igreja"
467
. Hoje, encontra-se,
466
Ibid., p. 25
467
J. Batista LIBÂNIO, Igreja que nasce da religião do povo, in: VV.AA. Religião e catolicismo do povo. p.
140.
202
na maioria das paróquias tradicionais, uma liturgia secularizada, implantada por uma reforma
intelectualizada, na qual predomina o culto liturgicamente idealista, abstrato, sem relação
direta com a vida dos empobrecidos. O consumidor da produção litúrgica é representado pelo
cristão moderno, isto é, aquele que tem acesso à cultura letrada. que se perguntar: a que
leigo o CV permitiu presença, apesar de restringida pelo controle das instâncias oficiais, na
criação de liturgia? Se na "função produtiva" o povo pobre e crente esteve ausente, na "função
consumidora" foi desrespeitado
468
.
O problema coloca-se de modo crucial por não ser um fato ocasional, conjuntural e sim
estrutural, havendo duas questões centrais: uma de natureza "antropológico-cultural" e outra
de natureza "teológico-canônica
469
. Quanto ao aspecto "antropológico-cultural", constata-se
que liturgia é realidade por uma linguagem simbólica que tem seu significado em dupla fonte:
"a revelação" e "a experiência daqueles que a falam". Assim, o povo capta o significado da
liturgia (a representação, o sentido ou o conteúdo do significante) e a vive, quando o
significante (a forma, o rito) é expresso em categorias e símbolos recolhidos da sua situação
existencial. Existe, necessariamente, uma relação dialética entre a instância religiosa (liturgia)
e as condições materiais de existência. O aspecto da "natureza teológico-canônica" apresenta
sua problemática. Mesmo com a reforma, "existe na consciência canônico-teológico vigente
uma censura muito grande entre a liturgia sacramental e a não sacramental, no que diz
respeito à participação do leigo e do povo em geral"
470
. O Concílio reafirmou a diferença
essencial entre o "sacerdócio" comum dos fiéis" e o "sacerdócio ministerial": "O sacerdócio
comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico ordenam-se um ao outro, embora se
468
Ibid., p. 141. Lembra o autor da retirada das imagens dos santos e da introdução de uma liturgia que relega as
expressões não verbais. Enfim, surge uma liturgia monótona e fria para o povo.
469
Recolhemos a intuição e/ou a análise do teólogo J.B. LIBÂNIO, quanto ao enfoque estrutural na reforma
litúrgica - Cf. J.B. LIBÂNIO, Op. Cit., pp. 141-144.
470
Ibid., p. 144.
203
diferenciem na essência e não apenas em grau"
471
. Contudo, deverá continuar paralelamente,
numa comunidade tradicional, o duplo catolicismo: "devocional protetor", de um lado, e
"sacramental-bíblico", de outro.
Apesar das condições expostas, há um reinventar da liturgia, numa linha popular, pela
"Igreja dos Pobres". É o povo empobrecido através das comunidades eclesiais de base,
readquirindo a "posse do capital simbólico da cristã" e isso, sem dúvida, fazendo a liturgia
readquirir seu sentido bíblico de exprimir um programa de vida
472
. A liturgia é, assim, na vida
das CEB’s, um elemento essencial como fator da fraternidade, festa, solidariedade e reflexão.
Por isso, constatam-se celebrações para os mais diferentes momentos e motivos da vida
473
.
Entre estas celebrações, destacamos: celebração lembrando "acontecimentos bonitos da vida":
nascimento, recuperação de doenças, aniversários; "celebração de solidariedade e conforto",
por ocasião de dificuldades: desemprego, martírio, doença; "celebração de resistência e
esperança", quando a comunidade é desafiada a uma atitude profético-transformadora e
enfrenta forças da dominação, marginalizarão, etc.: despejos, lutas de bairros, perseguições
políticas, lutas sindicais; "celebração das grandes datas e acontecimentos" relacionados à
história e vida do povo: dia da consciência negra, data da morte de um mártir, dia do
trabalhador; "celebração do culto dominical": que reflete o caminhar da comunidade;
"celebração dos tempos fortes do calendário litúrgico": Natal, Semana Santa, Páscoa, mês da
Bíblia, Campanha da Fraternidade.
Constata-se que as liturgias são carregadas de vida. Com muita espontaneidade o povo
realiza liturgias celebradas em cima de acontecimentos e situações, descobrindo, por toda a
parte, os sinais concretos da presença e ação de Deus. Essa experiência sentido, força e
coragem para continuar na luta pela conquista da paz, da terra, do pão... Cada aspecto de
471
O Concílio Vaticano II, Constituição dogmática sobre a Igreja. Lumen Gentium. n. 10.
472
Cf. Frei BETTO. O que é comunidade eclesial de base. p. 62-66.
473
Cf. Texto Eq. Vitória, CEB’s e liturgia. Rev. Bimestral de liturgia, 59, p. 22.
204
liturgia (gesto, canto, orações, sinais) é expressão autêntica da Fé, da Vida, dos sonhos e
esperanças
474
.
Através da vivência da "Igreja dos Pobres" o povo tem uma oportunidade histórico-
eclesial de celebrar sua vida e sua fé, de uma forma libertadora. Porque o povo, ao "tomar
posse" da liturgia e podendo participar livremente, espontaneamente, faz com que as
celebrações sejam denúncia de tudo que é manipulação de Deus para justificar a opressão em
que vive o povo, e o anúncio da Boa-Nova que traz salvação para todos. É a participação do
povo enriquecendo e revitalizando a liturgia, ou a "voz" de Deus mostrando que aos
pequeninos e humildes é revelado um "mistério" que se esconde aos sábios e entendidos.
A liturgia como "estrutura estruturada"
475
é recuperada no celebrar da "Igreja dos
Pobres". Um exemplo são as "Romarias da Terra". Nelas uma Cruz característica que se
tornou símbolo de todas de todas as conquistas e caminhadas em direção a um compromisso
esperançoso e corajoso. A renovação da liturgia vem da sensibilidade, da expressão corporal,
da imaginação criativa e espontânea, dos símbolos da cultura popular que poderá o povo
manifestar nas celebrações. Porque "a reforma da liturgia não virá dos padres, dos teólogos.
Virá de pessoas que tenham o dom especial para isso"
476
; ou seja, é o povo que, numa reação
legítima ao ritualismo exagerado, a um formalismo rígido, a um prolongamento de
doutrinação vai, através da linguagem verbal e não-verbal, da ligação e vida, da
criatividade e espontaneidade nos ritos como bençãos, vigílias, peregrinações recitais, dramas
sagrados, procissões, celebrações por vários motivos, reinventando uma liturgia que vem ao
encontro de sua história. Daí a necessidade que a "Igreja dos Pobres" tem em redescobrir a
474
Cf. Júlio A. GIORDANI, Fé e liturgia na conquista da terra. Revista de liturgia. 73, p. 12.
475
A consideração da liturgia como "estrutura estruturada" tomamos emprestada de J.B. LIBÂNIO. Tem o
sentido "de ver se os elementos culturais que transmite correspondem ao momento e ao processo de libertação do
povo" - J.B. LIBÂNIO, Op. Cit., p. 149.
476
J. COMBLIN, Entrevistas. Revista de liturgia, 71, set-out / 1985, p. 6.
205
"estrutura estruturante”
477
da liturgia. Na medida em que a atividade litúrgica encarna os
interesses, a vida, as experiências do povo, nesta mesma medida ela representa verdadeiro
serviço e não inspiração arbitrária e alienante. Porque, "analisando a Liturgia, enquanto
manifestação cultural..., aparece mais clara a tensão entre liturgia oficial e popular. Em todo
processo cultural, na medida em que uma sociedade se diversifica e se complexifica, acontece
um desapossamento em relação ao capital simbólico daqueles que ocupam lugar inferior na
estrutura da produção e distribuição de tais bens. Surge um corpo de especialistas que se
apropria de tal capital, excluindo de sua posse aqueles que até então o possuíam de modo
espontâneo, não sistemático. Pouco a pouco, tal corpo de especialistas se faz reconhecer pelos
'leigos', devolvendo-lhes o capital simbólico em forma de bens de consumo sob seu controle.
Não se segue necessariamente um empobrecimento do povo, mas sim este fica sob controle
daqueles que lhes devolvem agora sobre outra forma, aquilo que eles possuíam na sua
tradição. Nisto a cultura se transforma em instrumento de poder, exercendo verdadeira
violência simbólica"
478
. É uma violência simbólica que se caracteriza por inculcar um
"conteúdo arbitrário" através de um "poder arbitrário" o qual reproduz, de modo simbólico, a
relação de força entre grupos/classes da sociedade
479
. Linguagem simbólica que tem função
de camuflar as relações reais em que o empobrecido é massacrado, imolado por uma classe
dominante.
A liturgia, na experiência da "Igreja dos Pobres", na medida em que se redefine numa
"opção pelos pobres", insere-se num processo como força de libertação
480
, superando o
caráter alienante, descomprometido, mágico que, muitas vezes, revela a Liturgia
"essencialmente teocêntrica", não se justifica por si mesma, mas sim pelo serviço ao homem,
477
Cf. J. B. LIBÂNIO, Op. Cit. O autor também fala de "estrutura estruturante". O significado é este: a função
que exerce na prática religiosa e social do povo.
478
Ibid., 147 (grifo nosso).
479
Cf. P. BOURDIEU - J. Cl. PASSERON. A reprodução - elementos para uma teoria do sistema de ensino.
p. 19-25.
480
Cf. Aldo VANNUCCHI, Op. Cit., pp. 23-28.
206
ao mundo. E ainda: não será libertadora uma liturgia configurada no dirigismo dos ministros,
no automatismo da assembléia, no vago das palavras, numa celebração insossa... Celebrar
tangido pelo costume, pela pressão social, pela lei, pelo "folclórico de um inócuo tempo
sagrado", etc. é não descobrir "a boa nova da libertação que se celebra em todo ato litúrgico,
pois ele exprime, vive e presentifica o próprio Ministério Pascal de Cristo, para que cada um
de nós faça também de sua vida uma páscoa, passagem genuína da servidão para a liberdade,
da morte para a ressurreição"
481
.
Os empobrecidos estão, através da liturgia, na experiência da "Igreja dos Pobres",
compreendendo que "rezar a vida é praticar a Deus", o que implica reiterar a vontade de
libertar-se de todos os ídolos e manifestações que impeçam descobrir a certeza e a esperança
de que no Deus da Vida está a plenitude da libertação com que sonhamos.
6. A Espiritualidade Libertadora testemunhada na "Igreja dos Pobres"
A experiência renovada da Igreja - renovação pastoral, teológica e institucional
482
- na
nossa realidade é possibilitada (também) a partir de uma experiência de Deus. Experiência
que significa experienciar o "Sentido radical numa existência historicamente dada, a
existência de Jesus, e na palavra da revelação que é totalmente condicionada por essa
existência histórica na medida em que dela procede e a ela se refere”
483
. Sem a realidade
experiêncial do Deus Jesus Cristo, nossa vida andará vacilando entre os muitos deuses e
muitos senhores, os quais não são mais que ídolos ou representações falsas da verdade que
481
Ibid. , p. 68.
482
Cf. Segundo GALILEA. O caminho de espiritualidade. p. 5-6.
483
Henrique C. de LIMA VAZ, A experiência de Deus, in: VV.AA., Experimentar Deus hoje. p. 86.
- O autor também mostra a diferença entre a experiência de Deus e a experiência religiosa: "... a experiência
religiosa é uma experiência do Sagrado e a experiência de Deus é uma experiência do Sentido (...) Se dissemos
que a experiência religiosa ou experiência do Sagrado não é especificamente uma experiência de Deus é porque
ou o religioso ou o Sagrado resulta da função simbolizante do homem nesse terreno que se estende entre o
fascínio e o temor do que é incompreensível ou misterioso" (pp. 82-83). Mas "a experiência cristã de Deus
desenvolve-se ... no terreno da linguagem - da lógica - da Encarnação na totalidade dos seus momentos, cujo
sentido pleno se manifesta na Ressurreição. Trata-se, portanto, essencialmente de uma experiência de fé..." (p.
87).
207
abandonamos. E ainda: se a "Igreja dos Pobres" quer ser sinal profético para toda a Igreja terá,
inevitavelmente, que restaurar elementos essenciais da vida cristã e da identidade eclesial,
como a espiritualidade.
A verdadeira teopatia (experiência da presença de Deus) faz emergir dentro dos grandes
desafios sócio-históricos um Deus como acontecimento da Santidade, de esperança, da luta,
de conquista (vitória) para a grande maioria empobrecida e crente. Daí encontrarmos uma
Espiritualidade libertadora
484
, onde acontece, como ponto de partida, uma experiência na vida
e comprometida com a vida - surgindo, assim, uma espiritualidade preocupada com a
"readequação" e renovação espiritual cristã coerente com os desafios do presente.
Definir ou compreender a Espiritualidade não é fácil
485
! Ela, por ser histórica, exige,
conseqüentemente, que a prática e a stica que o cristão (ou a Igreja) testemunha, devido à
existência e tarefa da fé, não independam dos dinamismos históricos, sociais e culturais da
realidade onde se viva. Certamente, a novidade da Espiritualidade da libertação está no
atender à "superação dos entraves sociais e ideológicos" de um contexto, porque "a
espiritualidade não é um momento do processo da libertação dos pobres. É a mística da
experiência de Deus em que este processo se realiza. Significa o encontro com o Deus vivo
484
Por "espiritualidade libertadora" subentendemos o seguinte: "no sentido em que a experiência critã dos latino-
americanos inseridos na transformação da América Latina se num contexto de libertadora de todo tipo de
opressões temporais. Os cristãos procuram com um compromisso não realizar mudanças reais no campo
social do Continente, mas fazer que estas mudanças tragam desenvolvimento e liberdade para os pobres e
oprimidos. Para o cristão, esta experiência histórica é também uma experiência espiritual", Segundo GALILEA.
Espiritualidade da libertação. p. 7.
485
Cf. Id. O caminho da espiritualidade. p. 26s.
- O autor afirma a respeito da definição de Espiritualidade: "Não é fácil fazê-lo, como também não é fácil definir
a vida de fé, a vida cristã ou cristianismo - que, de certa forma, são termos equivalentes. A causa da dificuldade
reside na riqueza da idéia cristã de espiritualidade, que faz com que qualquer definição se trone pobre e
insuficiente" (p. 25).
Para aprofundamento do tema da Espiritualidade aconselhamos as seguintes obras (além das que utilizaremos):
-Pedro CASALDÁLIGA, Com Deus no meio do povo.
-Albert NOLAN, Espiritualidade da justiça e do amor.
-Segundo GALILEA, As raízes da espiritualidade latino-americana.
-Segundo GALILEA, Espiritualidade de evangelização - segundo as bem-aventuranças.
-Camilo MACCISE, Deus presente na história - espiritualidade bíblica.
-Frei BETTO, Oração na ação.
208
em Jesus Cristo, na história coletiva e n a vida cotidiana e pessoal"
486
. Desta maneira, pode-se
compreender a relação entre prática e Espiritualidade. Ambas realidades, por sua essência,
não são antagônicas, senão complementárias. Como se pode afirmar: Espiritualidade sem
prática de libertação é hoje puramente genérica, evangelicamente impossível e historicamente
alienante; e prática da libertação sem espírito é genericamente boa, mas concretamente
ameaçada de degeneração e pecado. Por isso, a espiritualidade necessita prática de libertação
para que o espírito tenha onde se encarnar evangélica e relevantemente na história atual; e a
prática necessita do espírito para manter-se como prática libertadora dos empobrecidos, vale
dizer, uma prática criativa e potenciadora de uma verdadeira libertação dos pobres. Nessa
perspectiva conclui-se, cada vez mais, que a fidelidade e o compromisso de autenticidade com
a realidade não são apenas o pressuposto para uma revelação de Deus, senão a "matéria
própria", sem a qual e independente da qual não se capta a revelação.
Podemos defrontar a Igreja com diversas espiritualidades, dependendo da experiência,
do "lugar", da cultura, do desafio...Contudo, "as diversas espiritualidades não são
essencialmente diferentes uma das outras, pois têm as mesmas fontes e a mesma identidade.
Trata-se do seguimento de Jesus". O distinto é que "elas diferem na modalidade histórica
desse seguimento e, portanto, nos valores de sua mensagem, que são privilegiados segundo as
diversas situações, desafios e particularmente culturas"
487
.
Não obstante, a Espiritualidade hoje é desafiada por questionamentos que mostram
"experiências espirituais" que não são experiências originárias de Deus. Podemos destacar o
seguinte descobrimento, assim como as respectivas críticas que se encontram: a) uma
486
CIET, Documento final; in: A igreja que surge da base. p. 344.
Cf. Jon SOBRINO. Liberación con espiritu; apuntes para una nueva espiritualidad. p. 23-58.
487
Segundo GALILEA. O caminho da espiritualidade. p. 27.
-O autor também reflete: "... falamos de espiritualidade medieval, da devocio moderna, da espiritualidade da
Contra-Reforma... E, como as tarefas e experiências cristãs são diversas, isso privilegia certas exigências cristãs
no interior de cada Igreja. Assim, nos países do Atlântico Norte, atualmente é preciso evangelizar um mundo
tecnológico e secularizado: é necessário dar testemunho da fé nesse mundo, que gera uma espiritualidade
particular nessas áreas cristãs. Na América Latina, ao contrário, a urgência é evangelizar a partir das injustiças
sociais e dos pobres e oprimidos, o que cria a necessidade de se apoiar mais em certos valores e experiências
cristãs" (p. 27-28).
209
Espiritualidade que se fundamenta no "transcendentalismo"
488
- Deus totalmente outro - tem
implicações graves. A representação de Deus transcendente compreende-O acima do mundo e
fora do mundo. É um Deus sem mundo. E ainda: "Sendo totalmente fora do mundo, Deus não
é experimentável. É objeto da revelação como irrupção dentro do mundo d'Aquele que está
fora. Ele revela verdades e representações de si. Crer é crer em verdades sobre Deus. Deus se
transforma em puro objeto da fé..."
489
. Esta representação de Deus justifica um dualismo na
experiência de fé: por um lado, encontram-se as experiências da vida e do mundo e, por outro,
a adesão às "verdades abstratas sobre Deus", não havendo a correlação necessária entre
ambas. Uma Espiritualidade vivida a partir (somente) de uma representação da transcendência
divina não responde ao crente, à comunidade, que quer testemunhar um compromisso
libertador no mundo; b) outro entrave para a Espiritualidade é a representação numa
concepção imanentista
490
. Identifica a representação com a presença de Deus. Nesta
concepção epifânica, pelo qual pensa-se ver "Deus diretamente em tudo", não lugar para a
história humana, não se deixa o mundo ser mundo. Dá-se uma compreensão antropomórfica
de Deus que tem conseqüências profundas - "A lei divina entendida no mesmo vel que a lei
humana, a doutrina revelada, as instituições divinas compreendidas no mesmo horizonte das
doutrinas e instituições humanas se prestaram à manipulação dos detentores do poder e de
interpretação ortodoxa em favor da situação estabelecida"
491
. A diluição de Deus partindo de
uma concepção dentro das categorias do mundo apresentou como resultado uma "nova
negação de Deus". Se no transcendentalismo a tônica é afirmar a Deus e negar o mundo, no
imanentismo se nega a Deus e se afirma o mundo, o que em nada contribui para uma
Espiritualidade libertadora; c) a Espiritualidade corre o risco de ser elitizada - "questão de
488
Cf. Leonardo VOFF, Experimenta a Deus hoje, in: Experimentar Deus hoje. p. 127-129.
-Dizia Santo Agostinho: "Por mais altos que foram os vôos do pensamento, Ele (Deus) está ainda para além. Se
compreendeste, não é Deus. Se pudeste compreender, compreendeste não Deus, mas apenas uma representação
de Deus. Se pudeste quase compreender, então foste enganado pela tua reflexão" - Sermões 52, n. 16: PL 38,
360.
489
Leonardo BOFF, Op. Cit., p. 128.
490
Ibid., p. 129-131.
491
Ibid., p. 130.
210
minorias"
492
. É o problema de apresentar a Espiritualidade como propriedade de grupos
seletos e, de certa maneira, identificada nas congregações religiosas. A característica é buscar
um "estado de perfeição", supondo um isolamento do mundo e de suas preocupações
cotidianas ("fuga mundi"). Assume-se uma tentativa de renúncia, de despojamento, de
modificação, para viver uma união com Deus na oração, na contemplação. Contudo, esta
Espiritualidade de hoje é interrogada
493
: de um lado, por uma experiência espiritual que nasce
no compromisso dos despossuídos e oprimidos - e dos que se solidarizam com eles - nos seus
processos de libertação; de outro lado, por aqueles que testemunham uma Espiritualidade a
qual exige suprir as necessidades de ordem material (habitação, saúde, alimentação, etc.).
Também estas "minorias" constantemente estão sendo questionadas devido à estabilidade
social, cultural, econômica em que se encontram - como fica o verdadeiro despojamento
diante da grande maioria empobrecida?; d) Espiritualidade individualista
494
- esta se encontra
numa Espiritualidade compreendida numa perspectiva individualista: em que o caminho
espiritual é compreendido como valorização de qualidades (valores) individuais orientadas
para o aperfeiçoamento pessoal. Na preocupação pela "vida interior" buscava-se "o
desenvolvimento das virtudes como potencialidades individuais, com pouca ou nenhuma
relação com o mundo exterior"
495
. Assim, chega-se a um espiritualismo que "espiritualiza" a
ordem social, histórica, como, por exemplo, reduzindo "a oposição pobres-ricos
496
” (realidade
social) à contradição humilde-orgulhoso (realidade interior ao indivíduo). Uma
Espiritualidade condicionada pelo individualismo não responde ou orienta os empobrecidos -
ou seus aliados - que embarcaram no compromisso pela libertação. Ela se torna cega às
diferentes dimensões de ser humano, inclusive as chamadas materiais.
492
Cf. Gustavo GUTIÉRREZ. Beber no próprio poço - itinerário espiritual de um povo. p. 23-24.
493
Cf. Ibid., pp. 23-25.
494
Cf. Ibid., pp. 25-28.
495
Ibid., p. 26.
496
Ibid., p. 27.
211
Preocupando-se em elaborar uma nova Espiritualidade que responde ao nosso tempo,
carregado de "impasses e de novas pistas" repleto de injustiças e de esperanças, urge elaborar
uma síntese da experiência espiritual na ação, dentro da ação e com a ação. Isto é, vivenciar o
encontro com o Deus da Vida no encontro com os pobres oprimidos e crentes. É a experiência
espiritual conferida na unidade fé-vida, mística-política
497
, não realizando uma polarização ou
uma justaposição, mas articulando dialeticamente os dois pólos, numa abertura e implicações
mútuas.
Acreditamos, por conseguinte, que a Espiritualidade libertadora - apesar das
dificuldades
498
- deve apresentar as principais características
499
: a) a "Oração materializada de
ação" e a "Oração expressão da comunidade libertadora"
500
: acontece uma experiência de
Deus a partir de uma oração que coleta toda a vivência dos comprometidos: suas lutas,
conflitos, erros, conquistas; quer interceder não individualisticamente, mas em função do
caminhar do povo que sofre; que reflete tanto os passos de libertação como as "incoerências
entre o profano e o vivido'; etc. Assim, é essencialmente um compartilhar da vida, não se
limitando a uma privacidade "crítica" das experiências, ou a um individualismo espiritual
onde não se comunica ou se escuta um ao outro. uma ajuda tua nessa nova maneira de
497
Cf. Leonardo BOFF. Contemplativus in liberatione - da espiritualidade da libertação à prática da libertação,
in: REB: 571-580.
- Afirma Frei Betto:
"Predomina entre cristãos a idéia de que a mística nada tem a ver com a política. Seriam como dois elementos
químicos que se repelem. Basta observar como vivem uns e outros: os sticos, trancados em suas estufas
contemplativas, alheios ao índice da inflação, absorvidos em seus exercícios ascéticos, diferentes às discussões
políticas que se travam em volta deles. Consumidos por infindáveis reuniões, correndo contra o relógio da
história, os políticos vivem mergulhados no redemoinho de contatos, de análises e de decisões que saciam o
tempo e não abrem espaço sequer ao convívio familiar, quanto mais à meditação e à oração!
"É verdade: uma certa concepção da mística é incompatível com certo modo de se fazer política. A vida religiosa
está imbuída desse conceito contemplativo que é quem as costas ao mundo para prostrar-se frente a Deus",
Frei BETTO, O santo como político, in: Caderno Especial, JB,14/4/85, p. 3.
498
Leonardo BOFF, Op. Cit., p. 578. Afirma o autor (rodapé): "A grande dificuldade dessa espiritualidade de
libertação reside no fato de que a história da Igreja apresenta poucos, ou quase nenhum santo, que tenham
realizado a síntese entre o místico e o político, assim como o entendemos hoje. São Francisco de Assis, São
Bernadino de Sena, São Vicente e outros tinham uma atitude, segundo nossos critérios, mais assistencialista que
libertadora. Não se moviam nem tinham condições teóricas e práticas para fazê-lo dentro do marco do político
como campo de batalha de poderes onde se impõem opções, por vezes, radicais, em nome da e/ou da justiça.
Eis o grande desfio de nosso tempo: criar militantes com santidade verdadeiramente política. Importa ser ao
mesmo tempo santo e político no pleno sentido da palavra".
499
Cf. E. BONNÍN (Ed.). Espiritualidad y liberación en América Latina. p. 63-66.
500
Leonardo BOFF, Op. Cit., pp. 578-579.
212
compreender o que contribui para o processo de libertação no seio da própria comunidade. Os
membros da comunidade (os "comunitários") não se importam com as críticas; o que importa,
para eles, são os critérios objetivos: o Reino, a Libertação, a Solidariedade, etc.; b) "Santidade
política"
501
: invocando o ideal do Reino de Deus e o Deus do Reino para configurar a história
e o compromisso eclesial, social, encontra-se hoje milhares de cristãos (agentes de pastoral,
sindicalistas, pastores, camponeses, operários, etc.) derramando seu sangue ao acreditarem no
valor de plenificar a vida e a justiça, da indispensável luta, das necessárias reformas
estruturais. Por isso, surge o compromisso de solidariedade com as classes populares
oprimidas e/ou o povo espoliado; a capacidade de trabalhar por uma sociedade futura onde a
paz, a justiça, a fraternidade se tornem realidade para a grande maioria; a superação do ódio
contra as pessoas que são agentes de mecanismos de empobrecimento, na esperança da
conversão. Procura-se repetir o gesto de Deus aproximando-se libertadoramente dos
empobrecidos e assumindo o destino desta aproximação. Com isso, a "santidade política é
uma possibilidade, e historicamente uma necessidade. Não outra maneira de dizer hoje ao
mundo que Deus ama verdadeiramente as maiorias pobres"
502
. Hoje toda a vida cristã ou toda
501
Ibid., pp. 579-580.
- O teólogo J. Sobrino esclarece a respeito de "santidade política”:
"A expressão santidade política pode parecer mesmo hoje uma expressão desconcertante por relacionar duas
realidades que normalmente se supõem separadas de fato e de direito; e é uma expressão ambígua enquanto não
se concretizar o que se entende por ambas as coisas. De forma genérica...entendemos por santidade uma
realização notável da fé, esperança e, sobretudo, do amor, e das virtudes geradas pelo seguimento de Jesus.
Entendemos por política aquela prática visando transformar estruturalmente a sociedade na direção do Reino de
Deus, para se fazer justiça às maiorias pobres e oprimidas e para estas encontrarem a vida e salvação histórica.
"Relacionar política e santidade supõe uma dupla novidade. A primeira consiste em apresentar uma nova esfera
para a santidade, um âmbito possível e necessário. Ao longo da história da Igreja se pressupunha que esse âmbito
é a ascese pessoal, a contemplação, o exercício do amor na sua forma assistencial ou promocional. Atualmente,
devido à tomada de consciência da miséria e opressão das maiorias e aos processos de libertação... o âmbito
político aparece para os cristãos como o âmbito para a santidade...
"A Segunda novidade, mais recente, e surgida da própria experiência do compromisso político dos cristãos, é
que não se trata de relacionar e política, cristianismo e política... mas de relacionar santidade e política.
Isso se deve, cremos, a uma dupla constatação: a) para manter uma vida cristã política, não basta a lucidez
teórica sobre sua possibilidade, mas é necessário tentar uma realização notável de valores especialmente cristãos;
b) uma realização santa da ação política é necessária, para evitar os sub-produtos negativos inerentes a esta e
mesmo para dinamizá-la em sua eficiência histórica", JON SOBRINO, Perfil de uma santidade política, in:
Concilium/183/3: 281-282.
- Cf. Frei BETTO, Op. Cit.
502
Jon SOBRINO, Op. Cit., p. 285.
213
a Igreja está convocada a viver a síntese entre a política como "exercício de transformação
libertadora da sociedade" e a mística (fé) como conversão permanente ao Deus da vida; c)
Testemunho profético e paciência histórica
503
: uma Espiritualidade libertadora exige uma
conversão ao homem oprimido, à classe social explorada, à raça desprezada, ao país
dominado. Conversão que implica num compromisso profético de defesa e de luta em favor
do povo e contra os ídolos da opressão e da morte. É a proclamação do Deus de Jesus Cristo
na experiência do amor e da luta, com uma prática antiidolátrica e antifetichista, ou seja, os
pobres e seus aliados lutam contra fetiches, ídolos que são sacralizadores da opressão e da
antivida em nossa realidade
504
. Arrisca-se a vida a ponto de sofrer perseguição, martírio,
torturas. Essa atitude originada de uma opção evangélica - fé antidolátrica - é acompanhada
por uma paciência histórica. Esta paciência é alimentada e cultivada ao crer-se na força do
Espírito que age nos humildes, sofredores e perseguidos do Reino, na vitória de sua causa e
no direito de sua luta. E a gratuidade sendo realidade ao vivenciar uma experiência autentica
de Deus junto aos bem-aventurados; d) uma "Atitude Pascal" - o seguimento de Jesus nos
coloca diante da dialética morte-vida
505
. Toda libertação autêntica exige sacrifícios, renúncia,
que não devem ser temidos. "Existe (um) forte sentido da cruz como passo necessário para a
vitória. A ressurreição é vivida como o momento em que triunfa a justiça, em que o povo
vence a luta e faz a vida digna de ser vivida"
506
. Assim, o povo vai com "jovialidade e
serenidade evangélicas" assumindo uma Espiritualidade profunda, autenticamente pascal. É,
em outras palavras, o testemunho de seguimento a Jesus, que se dá na opção livre e consciente
entre o "sistema opressor e o Deus que liberta, entre a morte que simula o dominador e o Deus
da vida"
507
. É a constatação da Ressurreição de Jesus como "imenso processo de libertação"
503
Cf. Leonardo BOFF, Op. Cit., p. 580.
504
Cf. Pablo RICHARD, Nossa luta é contra os ídolos, in: VV.AA., A luta dos deuses - os ídolos da opressão e
a busca do Deus libertador, p. 9-38.
505
Cf. Gustavo GUTIÉRREZ, Op. Cit., pp. 42-43.
506
Leonardo BOFF, Op. Cit.
507
Gustavo GUTIÉRREZ, Op. Cit., p. 43.
214
que conquista a história e, conseqüentemente, celebrado e vivenciado como Esperança e força
do Espírito no seio da história; e) Espiritualidade Eclesial: a renovação da Igreja, a partir da
opção pelos pobres, exige e gera uma Espiritualidade
508
. Por isso, a Espiritualidade libertadora
nasce da "simbiose entre a espiritualidade elaborada e vivida pelos evangelizadores do povo e
os valores espirituais dos pobres"
509
, ou seja, simbiose do e no Espírito, sob o guia da Igreja.
Não é o mesmo experienciar Deus dentro de uma configuração eclesial ou fora dela; é um
canal (a Igreja) capaz de motivar e acompanhar uma nova experiência de Deus a partir das
circunstancias históricas da realidade.
Entre os elementos que iluminam a importância da Igreja para a experiência de Deus,
pode-se destacar
510
: a) "comunitariedade na experiência de fé": quem testemunha a
experiência de não é meramente o sujeito individual, mas ele inserido "na Igreja, no povo
de Deus, cuja experiência de Deus está configurada não só pelo objeto de sua fé, mas também
pela forma historicamente concreta de ser-Igreja dentro da qual se realiza"
511
. Por essência, a
do sujeito individual está chamada para uma abertura à dos outros, ou seja, a fé, por ser
eclesial, implica na essencial comunitariedade da experiência de Deus - o experiênciar a Deus
passa pelo nível eclesial, coletivo; b) "Variedade e complementaçao das experiências
-Cf. Segundo GALILEA. Espiritualidade da libertação. p. 28-33.
-O autor afirma: "O cristão comprometido é chamado igualmente a uma espiritualidade que consiste em aplicar a
permanente exigência Morte e Ressurreição de Cristo para uma vida nova - nas circunstâncias atuais latino-
americanas. Deve ver, nas destruições e desvios que trazem as mudanças, a scoa latini-americana. A
possibilidade, por causa de Cristo, de realizar uma nova sociedade, melhor, mesmo que provisória. "No fundo, é
descobrir a Páscoa a partir do ângulo secular, penetrando no ministério histórico em que a morte e a ressurreição
não é algo meramente místico ou ascético, mas também se cristaliza nas mudanças sociais. Esta atitude fez com
que o cristão descubra Deus de uma nova forma e sua passagem e presença entre os homens desmitizados da
pura dimensão religiosa. Esta presença e esta passagem descobrimos através dos fatos políticos, culturais e
também nas revelações sociais" (pp. 30-31).
508
O "processo de 'renovação de modelo' (modelo de Igreja = maneira histórica como a Igreja se encarna e atua
em determinada sociedade), onde a própria Igreja reconhece o lugar privilegiado do Espírito, por ser obra do
Espírito, supõe e gera uma espiritualidade. Toda renovação cristã-pastoral, institucional, e, portanto, também
teológica, permanece superficial e insuficiente se não for acompanhada de uma renovação da espiritualidade... A
espiritualidade é a motivação evangélica das renovações históricas do catolicismo (da missão, das instituições
pastorais, da teologia, etc.)" - Segundo GALILEA, Rosto latino-americano da espiritualidade, in: REB, Fasc.
156, Dez. 1979: 566.
509
Ibid, p. 567.
510
Os dois elementos que destacaremos encontram-se em: J. SOBRINO. Ressurreição da verdadeira igreja; os
pobres, lugar teológico da eclesiologia. p. 139-144.
511
Ibid., p. 140.
215
históricas da fé": dependendo da configuração histórica existe diferente experiência de Deus -
"enquanto experiência transcendental poderá ser descrita, em sua formalidade, como
semelhante para todo homem, mas que, enquanto experiência concreta, dependerá de
configurações históricas concretas"
512
. Na Espiritualidade libertadora o eclesial é vivenciado
na "Igreja dos Pobres" e a variedade das experiências é explicitada ou testemunhada a partir
do "reverso da história".
Poderíamos enumerar outras características que fundamentam uma Espiritualidade
libertadora. Mas, mais importante agora é lembrar que o EMPOBRECIDO (os povos
dominados ou as classes populares oprimidas) é a referência fundamental que possibilita e
justifica a Espiritualidade da libertação, porque da convivência com a grande maioria
espoliada, nascem as características da nova Espiritualidade.
A experiência de Deus vivenciada no "reverso da história" - lugar onde a vida é
oprimida, "negada", crucificada - tornar-se um autêntico e profundo caminho de
Espiritualidade
513
porque experienciar o Deus de Jesus exige aceitar esta variedade
fundamental e certamente escandalosa: o Deus Bíblico toma partido e está ao lado dos
empobrecidos. Por isso, uma vida espiritual cristã necessita: primeiro, captar o pobre como
um fato histórico-social que configura a nossa realidade. Segundo, a necessidade de
testemunhar uma fé que descobre o pobre como "lugar bíblico" - o Senhor vem ao encontro
do crente através do oprimido e crente que é sacramento da presença d'Ele na história. É a
experiência do seguimento a Jesus Cristo nas experiências cotidianas que a gente vive ao
participar do mundo do pobre. Assim, esses irmãos bem-aventurados, tornam-se o "grande
eixo da Espiritualidade da libertação"
514
. Numa leitura de compreendemos que a irrupção
512
Ibid., p. 142.
513
Cf. Victorio ARAYA, Experiencia de Dios. Su lugar en la teologia desde el reverso de la historia; in:
Espiritualidad y libertación en America Latina, p. 105-114.
514
Cf. Rogério Ingnácio de ALMEIDA CUNHA, O pobre na espiritualidade da libertação; in: Convergência,
188: 605-622.
216
dos empobrecidos na sociedade e na "Igreja dos Pobres" é, em última instância, uma irrupção
de Deus em nossas vidas.
Contudo, participar do mundo dos empobrecidos, como exigência fundamental a uma
Espiritualidade da libertação, implica experimentar a Deus no serviço de construir, "de dentro
da catividade", seu Reino que é Dom e conquista, graça e tarefa. É a "auto-manifestação
(fanía) de Deus" que não emerge apenas na "ausência"
515
, mas também e sobretudo no
processo de libertação efetivo, no compromisso para transformar as estruturas injustas do
Sistema, no engajamento para libertar e promover o homem empobrecido, na solidariedade
com o pobre e numa luta contra a pobreza, etc. A forma de seguir Jesus hoje está ligada ao
movimento histórico centrado no processo libertador; é o povo construindo um mundo onde
as pessoas são mais importantes que as coisas, onde vivem com dignidade, porque "este é o
solo no qual se formam as raízes da ... fé no Deus da vida"
516
.
É uma "Espiritualidade de luta"
517
que se desenrola por entre as "agruras do anti-Reino",
ao compreender que: o "credo dos Pobres... não consiste tanto em afirmar que Deus existe
515
Interpretamos o problema da ausência de acordo com L. Boff, o qual apresenta a seguinte reflexão:
"Deus se faz presente na América Latina por uma dupla ausência dele extremamente angustiosa. A dependência
opressora, a marginalidade de milhões, a miséria humilhante, a ganância insaciável de uns poucos, a repressão
sanguinolenta do poder estabelecido despertam em nós uma sede insaciável de justiça, fome de petrificação,
ânsia de fraternidade e um desejo imenso de criação de estruturas sociais que impeçam para sempre a exploração
do homem pelo homem. É porque entrevemos a Justiça que sofremos com a injustiça estrutural; e porque
vivemos a ânsia da Solidariedade que penamos sob o regime de discriminação; é porque estamos banhados pelo
Amor que nos debatemos com a desumanização das relações sociais. A Justiça, a Solidariedade, o Amor, etc.,
estão presentes na ausência deles como fato histórico. Não é porventura Deus o símbolo lingüístico para
dizermos a Justiça, o Amor, a Participação, a Comunhão, a Solidariedade, etc.? (...) O Deus que assim aparece é
o Deus inversus. Ele emerge do contraste. Quanto maiores forem as trevas, maior será o esplendor de luz. Mas
essa Luz nos julga, nos condena, nos provoca. Não permite que fiquemos inativos em face das injustiças que
clamam ao céu e da miséria que Deus não ama e por isso não quer.
"A Segunda ausência... torna Deus presente, pelo contraste. É a ausência de Deus concreto, vivo e verdadeiro
naqueles que usam em seus lábios o nome de Deus e o veneram em seus templos (...) Deus é nomeado, venerado,
suplicado na publicidade oficial da vida. Mas a fé em Deus e em Jesus Cristo não chegou à sua plena
explicitação cristã (...) A cristã, como se articulou de forma definitiva e escatológica no caminho de Jesus
Cristo, afirma que Deus não quer ser servido em si mesmo, mas nos outros". - Leonardo BOFF. Experimentar a
Deus hoje. Op. Cit., pp. 149-150.
516
Gustavo GUTIÉRREZ, Op. Cit., p. 41.
517
Cf. Rogério I. de ALMEIDA CUNHA, Op. Cit., pp. 618-619.
Cf. Dom Antonio FRAGOSO. e compromisso para uma pastoral em tempo de revolução, in: VOZES, 8,
1981: 585-593.
-Entre outras afirmações do autor, destacamos: "Se os camponeses amam a Deus, têm que lutar contra a classe
opressora. A luta de classes é, neste sentido, absolutamente evangélica e faz parte da espiritualidade..." (p. 591).
217
quanto em proclamar com a vida que Deus caminha nos passos do Povo, que Deus luta nas
batalhas cotidianas dos humildes"
518
.
Diante desta "irrupção vulcânica de Deus" em nosso contexto, "desde dentro" da
história dos despossuídos, a "Igreja dos Pobres” soube ser sacramento de salvação e
testemunho da vida do Ressuscitado, vivendo a realidade dessa nova Espiritualidade, a qual
engloba e reflete no agir eclesial. E ainda: a "Igreja dos Pobres" se oferece hoje e em concreto
um "melhor", embora não único, canal para experienciar a Deus. Necessita-se, porém, saber
"que o que se diz da experiência de Deus na Igreja dos pobres não supõe nem triunfalismo
nem automatismo. Falamos da Igreja dos pobres como canal estrutural da experiência de
Deus, o que não significa nem que todos os indivíduos façam tal experiência de maneira
profunda, nem que a não esteja também por essência ameaçada, como se tivesse sido
encontrado um seguro de vida para a fé, ou não se levasse essa em vasos de barro"
519
. O
que se ressalta é a importância estrutural da "Igreja dos Pobres" para experiência de Deus e a
consciência que temos de que "existe nela suficiente substância da experiência de Deus para
que possa ser considerada importante e - enquanto canal - como normativa"
520
. A Igreja dos
oprimidos não tem o monopólio da experiência de Deus, mas julga que na orientação que
oferece se pode "recriar melhor" essa experiência de Deus.
Constata-se a concretização, nesse modelo de Igreja, de uma verdade do cristianismo:
"Deus rompeu sua simetria de distância e proximidade" e pela sua graça e misericórdia se
518
CEP. El credo de los pobres, p. 9.
519
Jon SOBRINO. Ressurreição da verdadeira igreja. p. 138.
-Queremos ressaltar uma observação do teólogo Rogério I. de ALMEIDA CUNHA:
“Espiritualidade é uma coisa bonita e entusiasmante, mas a vida do pobre não é bonita. A pobreza é feia, suja,
desagradável, incômoda e dolorosa. Mesmo o Pobre, eixo e fonte das características acenadas desta
espiritualidade, não é anjo, nem homem perfeito. Tem suas mazelas, falcatruas e maldades.
A arenosa vida que o arrasta lhe ensina truques feios: alguns, ele os aprende imitando a desonestidade dos
patrões, dos governantes corruptos e corruptores, outros lhe são sugeridos pela propaganda que impõe a corrida
ao lucro como regra de vida, outros lhe são necessários para escapar com vida à dura lei-de-cão que o
marginaliza, outros são a sua maneira de vingar, outros ainda são apenas uma característica de sua visão cultural
do mundo. Isso tudo suja de barro e as pernas com que caminha neste mundo a espiritualidade, do pobre, mas
não lhe arranca o coração", Op. Cit., p. 620-621.
520
Jon SOBRINO, Op. Cit.
218
tornou próximo. E essa verdade é compreendida quando se descobre na experiência da vida
que Deus é um Deus de vida e, mais concretamente, que é amor; que a vida digna e em
abundância é mediação d'Ele; que a prática da defesa e do amor à causa dos despossuídos é a
mediação privilegiada d'Ele, etc. Mas se a "Igreja dos Pobres" se apresenta como canal
estrutural da graça, é porque ela faz dessas "afirmações genéricas" verdades mais operativas e
efetivas. E mais: a Igreja está convicta de "que não se acede igualmente a Deus a partir de
qualquer experiência, mas a partir de experiências qualificadas... (Que) 'o problema não é
buscar a Deus, mas encontrá-Lo ali onde ele disse que estava'. Esse lugar é o mundo dos
Pobres..."
521
. A experiência de Deus deve se dar privilegiadamente a partir da parcialidade dos
empobrecidos
522
.
Esta nova Espiritualidade é constatável na caminhada das CEB’s. Essas comunidades
que surgem num contexto sócio-económico-político de opressão, clamando pela libertação,
vão revelando, na experiência da e do Amor (Agapé), o sinal do Reino através das ações,
das pequenas libertações. Esta experiência eclesial vai re-animando os pobres que são
massacrados pelas péssimas condições de vida; saúde sempre ameaçada, salário baixo, falta
521
Ibid., p. 157.
522
Cf. Ibid., p. 158-161.
-O autor esclarece: "Que não se possa aceder diretamente ao Deus maior diretamente a partir do absoluto da
globalidade da experiência e da história, é algo claro para a reflexão filosófica. Mas que positivamente se deve
aceder a ele a partir da parcialidade do pobre, é uma opção que pode ser determinada a partir da cristã. Por
isso a Igreja dos pobres 'justifica' a parcialidade do acesso a Deus recordando o que entende serem as verdades
fundamentais da revelação" (p. 158).
Em seguida esclarece essas verdades:
a) "Se Cristo nos diz algo realmente histórico sobre o ser homem e sobre as relações com outros homens para
chegar a sê-lo, então nos parece claro que o 'homem' é mediação da experiência de Deus desde que uma captação
qualificada desse ser homem: o pobre e o solidário com os pobres" (p. 158).
b) "...se Cristo não é somente o homem por antonomásia, mas também Filho, então se está formulando que ele
mesmo faz uma experiência do Pai, uma experiência de Deus, e que essa experiência é prototípica para nossa
experiência de Deus (...) Agora ... queremos afirmar que tanto o seu caminho objetivo, como o que transluz de
sua experiência subjetiva, está configurado pela óptica do pobre e pela opção por ele (...) Esta óptica parcial de
sua missão, que transluzirá também na experiência interna, deduzível de suas tentações messiânicas, de sua
oração, de seu saber ou saber sobre a vida do reino, é fundamentalmente o que Jesus exige como seguimento seu,
que é o modo de fazer-nos filhos do Filho e, assim, ter a experiência do Pai" (pp. 158-159).
c) "...a Igreja dos pobres encontra a sua parcialidade constitutiva na famosa passagem de Mt 25. Esta passagem
naturalmente tem também conseqüências para compreender a formalidade da experiência de Deus (...)
"O encontrar a Deus nos pobres Mt 25 não teria por que ser evidente, e muito menos aceitar que ali ele é
encontrado efetivamente. Mas se isso é verdade, também será verdade a afirmação contrária: à experiência de
Deus cabe uma cota de escândalo que só se alcança a partir do lugar parcial dos pobres" (pp. 159-160).
219
de saneamento básico (água, luz, esgoto), habitaçao precária, etc. Então, compreender a
Espiritualidade na "Igreja dos Pobres" é interpretá-la na nova prática dos "novos cristãos":
numa política de libertação de um povo espoliado e marginalizado; num esforço de
participação popular nas decisões políticas para fazer avançar a conquista dos direitos
fundamentais à vida; num conflito contra a ideologia de classe hegemônica na sua força e
mecanismo de dominação e opressão contra a grande maioria; numa construção de uma
sociedade onde aconteça "partilha igualitária dos bens produzidos" e "onde haja a
possibilidade da ternura, da doçura de viver"; numa vivência eclesial onde se a conquista
dos bens simbólicos (orações, celebrações, cantos, poemas, etc.) que ajudam o povo a
encontrar uma consciência crítica e uma prática eficaz para superar os "poderes do mundo". A
Espiritualidade libertadora poderá ser compreendida à luz dessa nova prática, em que os
cristãos se engajam na luta política de libertação de um povo despossuído, crucificado e
abandonado
523
. Enfim, o testemunho da experiência de Deus na "Igreja dos Pobres" exige
estar atento ao grito e ao clamor que sobe dos empobrecidos: "Do coração dos vários países
que formam a AL está subindo ao céu um clamor cada vez mais impressionante. É o grito de
um povo que sofre e que reclama justiça, liberdade e respeito aos direitos fundamentais dos
homens e dos povos. pouco mais de dez anos, a Conferência de Medellín apontava a
constatação deste fato, ao afirmar: 'Um clamor surdo brota de milhões de homens, pedindo a
seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte' (Pobreza da Igreja, 2). O
clamor pode ter parecido surdo naquela ocasião. Agora é claro, crescente, impetuoso e, em
alguns casos, ameaçador"
524
.
Assim, as comunidades eclesiais inseridas nas "maiorias populares" não têm uma
proteção de Deus, não mostram uma descrição intelectual d'Ele. Para elas, Deus é uma
questão tão real, concreta com seu quotidiano como a experiência do amor ou a experiência
523
Cf. Benedito FERRARO, As CEB’s e a espiritualidade da libertação, in: VV.AA., Fé e participação
popular. p. 69-80.
524
DP 87-89.
220
da luta. Na "Igreja dos Pobres" o Deus de Jesus Cristo epidérmico, um Deus que brota da
própria experiência de vida"
525
. A Fé é uma questão eminentemente prática, ela não se resolve
no templo, mas sim no terreno da ação do sujeito social e coletivo - "para o povo simples, o
fato de crer em Deus e poder expressar essa é parte substancial de sua possibilidade de
lutar. Isso faz parte de sua linguagem prática sobre o amor e a esperança, nas quais se
concretiza historicamente a fé"
526
.
Não obstante, deve-se ressaltar que a Espiritualidade libertadora necessita de um
constante processo de discernimento
527
, porque riscos de desvios devido: à ideologização
da (tanto da visão conservadora como do reduccionismo progressista)
528
; à vivência
idolátrica da
529
; a uma visão religiosa de fato alienante ao transferir para Deus a
responsabilidade da solução dos problemas concretos. Uma "concessão de cidadania cristã ao
povo", ao reconhecer uma Espiritualidade em suas práticas, não pode abandonar uma "reserva
de juízo" que saiba interpretar, questionar uma expressão que não está adequada à fé cristã.
Na experiência da "Igreja dos Pobres" a Espiritualidade da libertação apresenta "alguns"
elementos da vida cristã (oração, santidade, martírio) a partir de uma reconceitualização,
reformulação e por uma vivência atualizada e libertadora. Quanto à Oração, se comentou a
importância da Espiritualidade testemunhada numa "Oração materializada de ação" e como
525
Frei BETTO, Deus brota na experiência da vida; in: VV.AA., A luta dos deuses..., p. 226.
- O autor ainda diz: "Em minha experiência com as comunidades de base está acontecendo algo importante:
estou percebendo que nelas a vivência de Deus é diferente da vivência do Deus que eu conhecia antes. Eles m
um Deus que se come, um Deus que se respira, um Deus que se experimenta no sexo, um Deus que se vive na
liberdade de viver, um Deus em cima do qual se chora, se grita, se protesta, se reivindica, se luta. Não a
menor separação ou distinção entre esse Deus e a realidade que o povo vive" (p. 224).
526
Hugo ASSMANN, A fé dos pobres na luta contra os ídolos; in: VV.AA., A luta dos deuses, p. 274.
527
Cf. J.B. LIBÂNIO. Discernimento espiritual; reflexões teológica-espirituais.
- O DISCERNIMENTO deve ser compreendido como um processo, cognoscitivo e volitivo, para a realização de
um compromisso do cristão. Ou seja: é o homem, a partir da lucidez, consciência, liberdade, realizando uma
decisão que contribui para a libertação nos níveis; pessoal, comunitário, político. A Espiritualidade exige um
"discernimento espiritual", vale dizer, procurar fazer a vontade de Deus.
528
Ideologização da se quando a colocamos no mesmo patamar das ideologias, como mera explicação do
mundo, como suporte ético de uma racionalidade, como simples explicação da realidade, destituindo-a de
conteúdo: a explicitação da Revelação, o conhecimento íntimo, profundo e autêntico do Deus da vida...
529
Esta idolátrica consistiria em cultuar aos deuses ou invocar os ídolos que sacralizam o sistema de opressão
e da antivida.
221
"expressão de uma comunidade libertadora". Mas é importante realçar a Oração
compreendida pela coordenada vital do social, lembrando uma "faceta da oração" cristã que
emerge com a releitura da Palavra de Deus em um contexto em processo de libertação. Trata-
se, fundamentalmente, de fazer-se "Contemplativus in Liberations". Em outras palavras:
vivenciar a autêntica oração cristã no encontro dos pobres com o Senhor, ou seja, um reiniciar
ou reaprender a orar com os pobres e a partir dos pobres.
Esta redefinição da Oração a faz superar o intimismo ou o exclusivismo individualista, o
"monofisitismo espiritual" (Labora et ora), a concepção mágica e alienante, etc., através da
tomada de consciência e de um compromisso solidário com os empobrecidos que desejam ser
libertados de tudo que os oprime. "Só vivendo essa solidariedade comprometida com o grito
dos pobres pode a Igreja aprender a rezar de novo, sem risco de alienação nem infantilismo.
Os pobres deste mundo e os pobres da Igreja constituem a mais legítima escola de oração
evangélica, a mediação histórica necessária para aprender novamente a rezar"
530
. Os Bem-
aventurados não têm necessidades que se devem socorrer, mas possuem o privilégio de
serem portadores do Senhor e destinatários primeiros do reinado do Senhor, com o potencial
evangelizador de todos os homens e da Igreja (DP 1147). É a unidade da paixão por Deus
com a paixão pelo empobrecidos; ou melhor, exige-se que a paixão de Deus em Jesus Cristo
seja vivida na paixão dos irmãos marginalizados, perseguidos, crucificados. Orar é fazer nossa
a súplica, o gemido do Espírito que, na realidade de cativeiro dos pobres, anseia por
libertação.
Por isso, jamais aprenderemos a orar se nos afastarmos do Espírito de Jesus que clama
através das comunidades inseridas, dos militantes comprometidos, por um mundo mais justo e
mais fraterno. Também a oração que não conduza a um compromisso libertador, a uma real
530
Vitor CODINA, Aprender a rezar pondo-se no lugar dos pobres, uma necessidade cristã; in: Concilium, 179,
1982/9: 1001.
222
solidariedade com os "Bem-aventurados" é uma oração farisaica, hipócrita e anticristã"
531
. É a
contemplação sendo realizada não apenas no recinto sacrossanto do templo ou do mosteiro,
mas também na prática política, social, transformadora pela defesa das causas dos oprimidos
(sua justiça, direitos e dignidade).
Outro elemento da vida cristã, que nasce da experiência de Deus, é a Santidade. A
"Igreja dos Pobres" vem apresentando um modelo de santidade - distinto do modelo canônico
- que se situa "no contexto de um determinado sacrilégio que atinge o povo de Deus"
532
. A
partir do "reverso da história" vai-se testemunhando uma santidade política. Diante do
sofrimento, da opressão em que vivem os empobrecidos encontra-se uma resposta à vontade
de Deus através de um despojamento que faz aproximar-se do mundo dos pobres e da vida
dos pobres; de uma atitude de denúncia e desmascaramento das estruturas responsáveis pela
miséria, desesperança e desespero do povo; de uma encarnação que se pela aproximação
parcial aos empobrecidos e oprimidos; de uma vida de perseguição devido aos ataques,
ameaças, prisões, difamações, torturas, mortes. Estes "novos Santos" são uma realidade.
Geralmente são "canonizados" por aqueles que sofrem
533
. A "Igreja dos Pobres" é
testemunhada, edificada também a partir do sangue desses "novos Santos", como: Simão
Cristino (leigo indígena), Tito Alencar (religioso dominicano), Alexandre Vannuchi (leigo),
Santos Dias da Silva (leigo-operário-CEB’s), João Eduardo (líder de CEB’s), João Bosco P.
531
Cf. Jaun Hernadéz FICO, La oración en los processos latino-americanos de libertación; in: Ed. Bonnín (Ed).
Espiritualidad y Libertación en América Latina. p. 115-132.
532
Eduardo HOORNAERT, Modelos de Santidade a partir do povo, in: Concilium, 149, DP. 53-54.
533
Cf. Jon SOBRINO. Perfil de uma santidade política. Op. Cit.
-Afirma o teólogo L. Boff: "A evangelização libertadora e a ação pastoral, visando à promoção e libertação de
todos, a partir dos oprimidos, fez com que emergisse a santidade política na Igreja. Assim assistimos à
emergência da profecia em tantos bispos e leigos com as seqüelas próprias aos profetas: a maledicência, a
incompreensão até dos próprios irmãos, a perseguição e mesmo a liquidação física. Surgiu o deslocamento físico
e mental de um sem-número de religiosos que deixaram o centro para buscar as periferias e compartilhar a fé,
o sofrimento e a vida do povo oprimido. Emergiu entre os leigos um sentido social da solidariedade para com
toda uma classe social, aquela dos trabalhadores explorados, dos desempregados e marginalizados do atual
sistema de trabalho; a criação de círculos bíblicos, comunidades cristãs e movimentos de promoção e defesa dos
direitos dos pobres nestes meios, o que propiciou à Igreja descobrir as potencialidades humanizadoras e
libertadoras do Evangelho e novas formas de se viver e organizar historicamente a comunidade eclesial" -
Leonardo BOFF, A Igreja como mistério e a libertação integral, in: Grande sinal, n. 2, 1986: 102-103 (grifo
nosso).
223
Burnier (padre jesuíta), Henrique Pereira Neto, Josimo Moraes Tavares (sacerdotes
diocesanos), Pe. Ezequiel Ramin, irmã Cleuza Carolina Rody Coelho
534
. É a oferta da vida
que lhes outorga a sua última justificação.
É um novo modelo de santidade que emerge devido a uma nova situação histórica. Se a
Igreja quiser converter-se ao pobre e evitar o risco sempre iminente do farisaísmo, proposto
por uma religião sacrílega pelo serviço à idolátrica, deverá ser sementeira desses "novos
Santos", ou seja, essa nova santidade é hoje historicamente eficaz e necessária para que a
História se encaminhe na perspectiva do Reino de Deus e, além disso, é importante à Igreja
"para que em seu interior recupere a verdade do Evangelho e faça deste o fundamento de sua
missão, e para que fora tenha e mantenha a credibilidade que na humanidade atual lhe dará
um amor eficaz aos pobres. Só dessa forma, aliás, poderá enfrentar o desafio que supõe para o
futuro da o surgimento de outras instâncias salvadoras dos pobres que não aceitam ou não
explicitam o Deus de Jesus Cristo"
535
.
Essa santidade, realidade na "Igreja dos Pobres", exige afirmação de Deus, da verdade e
da justiça. Conseqüentemente, ela, testemunhada numa "situação de pecado", vai causar o
Martírio
536
. Daí ser também o Martírio um elemento da Espiritualidade libertadora.
Os mártires numa profissão de pública optam pelos empobrecidos, por sua libertação
e pela defesa de seus direitos. Opção que é manifestada por uma vida cristã que
"desabsolutiza e desdiviniza os poderes" do sistema ao denunciar as formas de
534
Cf. José MARINS et al. Martírio - memória perigosa na América Latina hoje.
535
Jon SOBRINO, Op. Cit., p. 288-289.
-Também L. Boff afirma: "Nesta santidade política, resposta adequada aos desafios de hoje, os cristãos guardam
acesa a lamparina sagrada, diante da qual velam e zelam pelo mistério. Vivendo a partir do mistério,
descobrindo-o negado nos oprimidos, desvelando-o por uma prática que se conforma àquela de Cristo,
sacramento visível do mistério invisível, a Igreja pode se apresentar como mistério sem temor de incompreensão
e rejeição. Ela evoca o mistério do mundo, o mistério que perpassa cada existência, mistério não no outro, mas
no mesmo, sob formas diferentes, que se realiza em todos e ganha consciência e organização pública na
comunidade cristã: Deus" - Leonardo BOFF, Op. Cit., pp. 103-104.
536
Quanto à possibilidade do Martírio partimos da seguinte reflexão:
"Em primeiro, o martírio é possível porque existem pessoas que preferem sacrificar a própria vida a ser infiéis a
suas próprias convicções (...)
"Em segundo lugar, o martírio é possível porque pessoas ou instâncias que rejeitam o anúncio e a denúncia;
perseguem, torturam e matam" - Leonardo BOFF, Martírio; tentativa de uma reflexão sistemática, in:
Concilium/183, 1983/3: 273.
224
desumanização, de opressão e de anti-vida. E nesse compromisso leva-se até o radicalismo a
dinâmica da vida: entregando-se totalmente ao outro a partir da doação da própria vida.
A "fé-práxis libertadora" leva necessariamente à "sacrificação" da vida dos "novos
Santos" por uma estrutura sócio-política que reflete a "odium fidei". Por isso, o "Mártir é todo
aquele que sofreu a morte violenta por causa de Deus ou por causa de Cristo, ou por causa de
uma prática de vida derivada da em Deus e em Cristo ou, por fim, por aquilo que constitui
o verdadeiro conteúdo da palavra de Deus e de Cristo: a verdade e a justiça"
537
. Morre-se,
assim, por causa da Justiça; mas explícita ou anonimamente pela justiça divina.
Acreditamos que o Martírio estrutural, anônimo, coletivo é responsável pela irrupção da
"Igreja de Mártires". E ainda: a realidade martirial vai fazendo a Igreja tornar-se cada vez
mais santa, ou renascida para uma vida segundo o Espírito.
Concluindo, a Espiritualidade libertadora retoma o enraizamento bíblico ou o de melhor
da história de Espiritualidade cristã, exigindo a ruptura com a opressão e compromisso com a
construção de uma sociedade fraterna e solidária, a partir da convicção ou aceitação de que
Deus é o único Senhor. É uma Espiritualidade de Discernimento
538
que discerne entre o
espírito da libertação dos humildes e o espírito da dominação dos detentores do poder. Trata-
se, em última instância, de uma experiência espiritual profunda e autêntica, onde se o
Encontro com o Deus da vida como o único Absoluto; onde se testemunha uma
Espiritualidade encarnada e comprometida com a História dos empobrecidos, contra toda a
injustiça e opressão; que se opõe abertamente a uma religião legitimada pelo legalismo,
ritualismo, formalismo desencarnado e alienante. Enfim, uma Espiritualidade de "esperança
ativa" onde, em meio às perseguições, interpreta a ação humana numa perspectiva de
plenitude.
537
Ibid. , p. 280.
538
Cf. Maris Cl. L. BIRGEMER. O espírito santo na espiritualidade cristã - fonte de vida e discernimento, in:
Convergência: 221-236.
225
CONCLUSÃO FINAL
Este trabalho procurou compreender, na experiência da Igreja na realidade brasileira,
sua "opção pelos pobres", procurando desvendar o desafio implicado nesse compromisso
evangélico e as conseqüências delas advindas. Partiu-se da interpretação analítica do
SUJEITO - o empobrecido: o grupo, o povo dominado ou a classe popular oprimida - na
tentativa de deixar claro o "rosto" desse sujeito pelo qual se opta radicalmente; em seguida,
empenhou-se na decifração do processo ou dinamismo histórico-e-eclesial - comprometedor,
evangelizador - que possibilitou verificar, concretizar a opção da Igreja. Por fim, realizou-se
uma análise para demonstrar a fundamentação teológica do modelo eclesial - "Igreja dos
Pobres" - que está subjacente à opção; o que também implicou aprofundar e reinterpretar a
definição diante de alguns elementos eclesiais: a Espiritualidade, os Ministérios, a Bíblia e a
Liturgia.
Quanto ao desvelamento do "novo" sujeito (coletivo e social) - o empobrecido -
concluiu-se que ele forma o grande contingente de nossa população - realidade que emerge de
uma situação desumana e marginalizadora, tendo como causa fundamental um sistema sócio-
político dominador e opressor (genocida), onde, a expropriação do Homem ou de uma classe
passa pela sua lógica, a lógica da anti-Vida.
É nessa "situação de pecado" que a Igreja testemunha sua opção evangélica a partir de
uma práxis de gratuidade, ou seja, como resultado de uma experiência do Agapé. Obviamente,
esta opção é determinada também por uma relação dialética entre os pobres e a Igreja. Sem
uma "abertura", compromisso recíproco onde o servido e o servidor passem pela realidade
tanto da Igreja como dos pobres, seria impossível a concretização da "opção pelos pobres",
porque hoje está claro que foi a partir do desafio surgido pela irrupção do pobre na realidade
social e eclesial e da nova consciência histórica da Igreja que surgiu a oportunidade de
realizar "o caminho irreversível" da "opção pelos pobres" - na perspectiva de como é feita. É
226
lógico que essa nova consciência eclesial é devedora de um processo anterior que acenava
por uma mudança da instituição aos pobres. Apesar das ambigüidades que podem demonstrar
o compromisso diante da opção, é consenso de que a Igreja, cada vez mais, se redefine a partir
desse novo "lugar social" (o empobrecido ou as classes populares).
Necessariamente, a Igreja, ao encanar-se nesse novo "lugar social", redimensiona sua
evangelização. Tudo deverá ser efetuado numa outra perspectiva - a partir da ótica dos
oprimidos. Para isso, procura-se explicitar duas questões: uma de ordem doutrinal (ortodoxia)
na qual se demonstra a fundamentação teológica do novo modelo eclesial, mostrando o
pobre como "lugar teológico" e, conseqüentemente, a Igreja dos pobres como instrumento de
evangelização ao ser na "situação de pecado" sacramento histórico de libertação - realidade
que é autêntica na experiência das CEB’s. A outra questão se no campo pastoral. A Igreja
se defronta com o desafio, a interpelação de repensar sua prática-pastoral - o que implica
renovar a eclesiologia no que diz respeito aos elementos fundamentais para a evangelização:
uma interpretação blica atualizada, condizendo com a prática; uma Liturgia encarnada e
libertadora; um Ministério (serviço) junto aos pobres realmente comprometedor e profético;
uma Espiritualidade de seguimento fiel ao Filho de Deus na força do Espírito.
Assim, nessa nova consciência e prática da Igreja, acreditamos que ela (Igreja)
realmente esta fazendo a "opção pelos pobres", e será para a grande maioria sinal e
instrumento de construção do Reino, porque, como prática e cheia de esperança vai
denunciando as injustiças do presente e anunciando a sua transformação em algo radicalmente
novo, vai deslegitimando a opressão e convidando os oprimidos e crentes para "um novo e
permanente êxodo"; enfim, vai aceitando morrer para poder renascer, ressuscitar como e para
o Povo-de-Deus.
Em termos de conclusões, o presente trabalho inctui para as seguintes observações: a) A
"opção pelos pobres" é irreversível no testemunho da nossa Igreja brasileira. A nova
227
consciência eclesial - interpretada como fidelidade às origens - não aceitará ser mais cúmplice
ou agente da denominação sobre o povo empobrecido, o que vem acarretando transformações
da sua estrutura institucional, uma re-interpretação de seu magistério, do seu ministério. É
"caminho sem volta" o da Igreja em relação à defesa da causa dos "bem-aventurados". Não
resta dúvida de que esta opção está se dando, realizando sob a tensão ambígua, "jogos
internos de poder", presença de setores mais tímidos. Mas é justamente nas contradições e nos
conflitos que se vai forjando, constituindo uma Igreja nova; b) Em determinadas
circunstâncias - como a nossa - "a opção pelos pobres" não exclui uma opção classista.
Diante de um sistema sócio-político tão injusto, excludente, como que impera em nossa
realidade, a Igreja deve tomar partido dos pobres e oprimidos. É um serviço misericordioso,
profético, prestado àqueles que continuamente são expropriados por uma sociedade, um
sistema que os despreza, naturalmente todos estão convocados à conversão, ao compromisso
de fraternidade e solidariedade com os pobres; c) A identificação progressiva da Igreja com
as classes populares oprimidas não pode ser interpretada, pura e simplesmente, como
"oportunismo eclesial" ou "sede maldisfarçada de poder". Mas é a Igreja que se renova na
opção pastoral, evangélica, quando vai assumindo a problemática que os pobres vivem e
levantam. É a Igreja se indentificando como "Igreja dos pobres", ou seja, se redefinindo,
reestruturando, ressuscitando da fé, do Amor que encontra entre o povo. Toda comunidade
eclesial, ao comprometer-se com os empobrecidos, apenas quer ser testemunha da SERVA
que trabalha pelo Reino de Deus; d) A irrupção do novo sujeito social e coletivo (o
empobrecido ou as classes populares) foi também razão da renovação da Igreja. A presença
interpeladora, incômoda, dos pobres diante da Igreja foi determinante para sua redefinição - o
grito, o sofrimento dos "novos bárbaros" levou a Igreja a testemunhar uma práxis eclesial
libertadora. A instituição eclesial, acreditando que a parcialidade dos pobres realiza a
universalidade do Evangelho, vai encontrar o sentido de sua existência no prolongamento de
228
um serviço - em nome de Deus - aos humilhados e ofendidos da nossa realidade; e) A
inserção da "Igreja dos pobres" no meio do povo lhe possibilita ser o fermento, o sinal de
soberania de Deus entre os povos. Hoje a Igreja reconhece que seu compromisso com o povo
é imprescindível; caso contrário, estará prestando um desserviço ao Reino. A cristã está
chamada a deslegitimar toda fé idolátrica que serve de suporte ou legitimação de uma
"situação de pecado", onde milhões de irmãos são violentados, fraudados em seus direitos
fundamentais.
Acreditamos que a presente dissertação venha contribuir - no nível reflexivo - a um
discernimento da prática-pastoral que se realiza em nossa Igreja. Pode-se lembrar, como
contribuição, dos seguintes acentos: a) Fez-se notar a importância do "lugar social", porque
esse vem influenciar e determinar uma consciência eclesial e, conseqüentemente, sua
redefinição dentro do contexto sócio-político. Nossa práxis eclesial entende por esse "lugar
social" a realidade dos pobres oprimidos - ponto de partida que tem procurado definir toda a
experiência pastoral. E ainda: esta determinação do "lugar social" ou do "novo sujeito" é
acompanhada por uma análise dialética da sociedade (compreensão do conflito objetivo e
estrutural), favorecendo a superação de um lugar social neutro, equidistante, ou seja,
"aconflitivo", "transconflitivo", "metaconflitivo". Assim, nosso trabalho procurou demonstrar
que uma práxis eclesial não poderá ser um mero paliativo, mas uma opção responsável pelo
mundo dos pobres e pelos pobres ("a favor dos pobres e contra a pobreza"), o que se
desdobrará num serviço de verdadeira libertação integral; b) Ao enfocar o pobre - pelo qual a
Igreja deve fazer uma opção radical (e não preferencial, no nosso entender) - como classe
popular oprimida e como os povos marginalizados - produto de um sistema ou conseqüência
de uma expropriação, está se mostrando a importância de que o discurso eclesiástico não seja
puramente voluntarista (revela o desejo ou a vontade de quem fala), idealista ou moralista
(onde as mediações sócio-analíticas cedem lugar às categorias éticas); caso contrário, não
229
contribuirá para a transformação dessa "situação de pecado". Não adianta apenas a
"indignação ética", mas o discurso deverá estar acompanhado de uma "lucidez sócio-
analítica" e de perspectiva transformadora; c) Também se procurou salientar um equívoco:
pensa-se que a "opção pelos pobres" seja decisão primeira, unilateral da pastoral oficial da
Igreja, esquecendo-se de que a redefinição da Igreja, a formulação de Medellín/Puebla, vem
apenas traduzir e assumir o fenômeno da presença nova e interpeladora das classes populares
oprimidas no seio da Igreja. Com isso, se quer acenar também para a necessidade de abertura,
conversão da Igreja, ou seja, a "opção pelos pobres" não será evangélica, profunda, autêntica
sem um vínculo relacional-dialético entre a Igreja institucional e o novo sujeito ativo e
coletivo (os pobres); d) A preocupação de mostrar que a "opção pelos pobres" está se dando
na "Igreja dos pobres", leva-nos a tirar várias conclusões. Entre estas, destaca-se: a "Igreja dos
pobres" pretende teológica e praticamente superar o enfoque meramente universalista da
Igreja, o enfoque puramente ético de fazer a opção pelos empobrecidos. É uma experiência
eclesial (na "Igreja dos pobres") que se faz a partir dos pobres, encontrando neles seu
"princípio de estruturação, organização e missão". Os pobres passam a ser concebidos como
"centro" da Igreja o que implica viabilizar uma prática-pastoral a partir deles. Todos os
elementos eclesiais (Bíblia, Ministérios, Liturgia, Espiritualidade) são redimensionados. É o
pobre como "lugar teológico" redefinindo a Igreja. E mais. Só nessa volta verdadeira e
corajosa à realidade dos despossuídos se poderá vivenciar a "opção pelos pobres". Caso
contrário, se estará vivendo uma pretensa, fantasiosa, manipuladora, reducionista opção. Ou a
Igreja envereda num compromisso sério, profético com a grande maioria, ou continuará sendo
uma instituição cúmplice, omissa diante da realidade que marginaliza os "bem-aventurados"
de Deus; e) O conteúdo do presente trabalho - sem muita pretensão - deve ser também
compreendido com um sintonizar, compartilhar e contribuir com os temas-chave de Teologia
da Libertação. Entre os temas que estão explicitados claramente, podemos salientar: "A
230
Igreja, sinal e instrumento de libertação"; o Reinado de Deus: como projeto d'Ele entre os
homens; O Deus de Jesus que toma o partido dos pobres; a viva e autêntica que exige uma
prática libertadora; a Espiritualidade libertadora, etc. Na abordagem dos temas acredita-se que
haja uma contribuição para não cair - no nível reflexivo - nas tentações: "descuido das raízes
místicas" (momento religioso da Fé); uma Fé ideologizada (no sentido de desserviço ao
Reino); uma prática idolátrica (conivente com o sistema genocida), etc. Com isso não se quis,
na reflexão, deixar transparecer a "infração do aspecto político" em prejuízo de outras
riquezas que deverão ser ressalvadas: amizade, perdão, lazer.
Finalmente, queremos salientar, pelo menos, quatro "questões abertas”. A primeira é de
como a Igreja, ao fazer a "opção pelos pobres", vai se definir praxisticamente diante da
presença eclesial do "Neoconservadorismo progressista" (procura reconstruir a Cristandade
que sempre está pronta para acolitar ou legitimar o poder social e político dominante), que é
inegável em toda realidade não só brasileira, mas pelo menos ao nível latino-americano. Sabe-
se que a prática eclesial advinda do conservadorismo é incapaz de libertar o homem e a
sociedade de seu pecado. Proclama uma salvação não da fé, da caridade, mas da lei e do poder
dominante. E ainda: o conservadorismo não teme integrar em seu discurso teológico os temas,
conteúdo, valores apregoados pela "Igreja dos pobres", como: libertação, direitos humanos,
solidariedade, fraternidade, problema de extrema miséria, análise estrutural da realidade
sócio-política, etc., mas a integração dessas temáticas, valores, estará condicionada a
reconstruir e legitimar a ordem social, política dominante, havendo uma ruptura entre o
discurso e a prática, entre o conteúdo e a obra. A Igreja dos pobres" que surge “à margem e
em oposição à Cristandade”, e que se apoia exclusivamente no poder do Evangelho e no
poder do Agapé, da e da Esperança, terá que viver um discernimento contínuo (ideológico,
teológico) para não perder a necessária vigilância diante das expressões humanísticas,
231
doutrinárias, políticas modernizantes que apresenta o modelo neoconservador progressista.
Esta é uma questão - acreditamos - séria e verdadeira.
Outra "questão aberta" surge quando se pergunta sobre o vínculo: Classe média e a
opção pelos pobres. É outro problema que não está totalmente resolvido pela Igreja. Quais os
critérios, pistas para concretizar na vida do não-pobre (no caso, a classe média), nas seguintes
categorias: profissional liberal, funcionário, intelectual, agente de pastoral, etc., a opção pelos
pobres e oprimidos? Logicamente, dentro da preocupação pela evangelização. O problema é
complexo quando se procura refletir a questão prática nas áreas das atividades humanas: "área
do relacionamento interpessoal" (lembra o relacionamento interpessoal: tratar bem, respeitar,
acolher o outro), "área das práticas sociais e políticas extraprofissionais (se pelo
"engajamento" nas atividades extra-profissionais: militar nos movimentos populares;
manisfestações políticas; panfletagem partidária, etc.); "área das atividades profissionais"
(ligada à própria profissão). Nesta última área, encontra-se maiores dificuldades para realizar
a "opção pelos pobres". Além de não se apresentar ainda uma reflexão séria e conseqüente,
toda a atividade profissional carrega em seu bojo uma ambigüidade: está praticamente
vinculada à classe dominante, porque são estas que possuem ou mantêm as empresas, as
escolas, os centros de pesquisas, etc. - o que torna difícil escamotear a contradição entre a
situação profissional (ou de classe) e a exigência do Evangelho (Lc 18, 22ss). Se optar pelas
classes populares oprimidas leva toda classe a defender e lutar reivindicações legítimas e de
direito da classe marginalizadora, necessariamente serão atingidos os privilégios de outros
segmentos da sociedade. Optar pelos pobres e oprimidos é nos tornar seus aliados,
"representantes", defensores, dentro do campo profissional. Para isso, uma condição é
indescartável: que se mantenha uma "ligação orgânica com os oprimidos" uma ligação real,
efetiva e afetiva - onde se coloquem os recursos técnicos, intelectuais, culturais ou
profissionais a serviço da libertação das classes populares, na construção de projetos
232
alternativos de sociedade. Por isso, o desafio à Igreja se coloca no como "incardinar-se" a
classe média na "Igreja dos pobres" (participando da vida, das decisões dos oprimidos)), para
que ela (a classe média) possa entrar no processo de libertação ao viver um serviço ao Reino,
e não continuar respaldando uma realidade burguesa que é contratestemunho nessa nossa
situação.
Uma terceira "questão aberta" pode ser a necessidade de redefinição da "Igreja dos
pobres" diante da "Nova República" (ou diante da "abertura para a democracia" ou "transição
para um governo civil"). Se a atual conjuntura sócio-política apresenta uma nova situação,
isso para a Igreja levanta novos desafios, por que a Igreja perante as "vicissitudes dos eventos
políticos" é convocada a posicionar-se ou num compromisso efetivo ("imersão ativa"), ou
num descompromisso ("insenção"), ou num "impacto receptivo" - tudo a partir de sua
estrutura carismática e encarnatória: sinal operante da presença de Cristo - Espírito na História
e "corpo social tecido pelas estruturas sociais humanas". Mas a Igreja deverá fazer
constantemente seu discernimento para continuar uma ação pastoral profética, libertadora,
porque no "novo momento histórico da criação de real democracia - assentada na busca do
consenso das forças sociais verdadeiras e concretas de um lado e de inquietantes sinais da
parte das forças conservadoras em manter, com terrível miopia social, seus privilégios à custa
da penúria das grandes massas populares - a Igreja conserva sua nítida vocação profética de
sustentar a esperança e alertar contra as solertes e embusteiras maquinações das forças que até
agora sugaram, em vergonhosas mordomias e corrupções, o sangue enfraquecido de um
povo desnutrido" (Editorial, Rev. Perspectiva Teológica, 42, 1985). A "Igreja dos pobres"
deverá manter uma postura de vigilância, de crítica para não vir colocar em risco a liberdade
pastoral conquistada, o direito de anunciar e denunciar a coragem de fazer preservar valores
inegociáveis (ex.: defesa da causa e presença ativa nas aspirações populares; uma atuação
libertária). O risco pode se concretizar ao aceitar uma "cooptação tácita' na relação com o
233
Estado ou algum segmento inautêntico da sociedade: ao não preparar seus membros para
atuar, embuídos da visão cristã, nas várias áreas ou campos que a atual situação abre; ao não
saber conjugar no testemunho a oscilação entre "esperança e alerta", "apoio e reserva", "voto
de confiança prévio e distância crítica", caindo num otimismo ingênuo capaz de acreditar que
as lutas pela libertação, saúde, educação, reforma agrária justa, constituinte que atenda as
camadas populares, etc. não encontrarão oposição dos poderosos; ao abandonar um
verdadeiro discernimento que a ajudaria (Igreja) a ir despertando para novos desafios, quando
seu trabalho de suplência diante de alguns setores da sociedade não é tão necessário como
antes, etc. Daí a grande questão que se coloca à "Igreja dos pobres": como continuar tendo
uma função crítica e construtora - em defesa dos pobres - na atual conjuntura sócio-política?
Ou: como contribuir hoje por uma sociedade verdadeiramente democrática, justa e soberana?
Procurar responder na prática a estas interpelações é se preocupar com uma evangelização
encarnada e libertadora.
Por último, gostaríamos de mostrar a preocupação por um conjugar a "opção pelos
pobres" a partir também da perspectiva Ecumênica. A Igreja Católica, que vem gozando de
uma verdadeira renovação nessa sua opção, não poderá negligenciar a procura de um diálogo,
cada vez mais profundo, com outras Igrejas cristãs, o que apenas contribuirá para que a
"opção pelos pobres" seja testemunhada por todos nós - irmãos - que deveremos realizar na
unidade uma caminhada comprometida com os empobrecidos, num serviço ao Reino.
Também estamos conscientes do trabalho realizado por algumas Igrejas Evangélicas. Não
será na defesa da causa e na participação da luta dos povos marginalizados, através de um
compromisso conjunto dos cristãos, que estaria a raiz do verdadeiro Ecumenismo? Não
deveria ser o Ecumenismo uma grande preocupação de todos nós, cristãos, nessa "situação de
pecado?”
234
Gostaríamos ainda de lembrar quanto à contribuição da presente dissertação.
Acreditamos que ela vem ao encontro das seguintes exigências fundamentais: a) continuar
realizando uma reflexão que elucide, fundamente (histórica, teológica e eclesialmente) o
compromisso da Igreja com os pobres; b) repensar a "opção pelos pobres" no nosso contexto,
captando avanços e ambigüidades na preocupação pela responsabilização com o processo; c)
contribuir para uma não vulgarização ou cooptação pela visão triunfalista ou pessimista,
ingênua, idealista ou abstracionista do processo eclesial.
Urge cada vez mais fazer aflorar uma reflexão teológica contextorizada que reflita
pertinentemente essa "Eclesiogênese" que profeticamente assume a causa dos "bem-
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