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ANANDA NEHMY DE ALMEIDA
A MODERNIDADE EM CYRO DOS ANJOS:
CONFLITOS DE UM AMANUENSE
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Estudos Literários da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Letras.
Área de Concentração: Teoria da Literatura
Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade
Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Martiniano
Marques (UFMG)
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2009
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À memória de Daniel Nehmy de Almeida
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AGRADECIMENTOS
Ao Projeto Acervo de Escritores Mineiros, da Universidade Federal de Minas Gerais;
Ao CNPq (Fapemig), pela bolsa de Iniciação Científica;
A Reinaldo Martiniano Marques, que com sua orientação perspicaz, incentivou o uso
teórico de Max Weber na abordagem do tema do intelectual;
À equipe de pesquisadores e funcionários do Acervo de Escritores Mineiros: o
coordenador do projeto Wander Melo Miranda, as pesquisadoras Eneida Maria de Souza e
Constância Lima Duarte;
A Márcio Flávio Pimenta, funcionário do acervo e fonte de inspiração;
Aos professores, meus colegas de trabalho no Estado, outra fonte de inspiração;
Aos amigos Vânia, Alvany, Silvia, Rodrigo, Amanda, Yara, Luciana, Thaís, entre outros;
À minha família, meu pai Charles, meus irmãos Inácio e Bárbara, à memória de minha mãe
Eliana;
A Carlos Ferdinando, pelo amor e companhia;
À minha avó Alice Veiga, que me contava sempre as mesmas histórias dos carnavais de
rua em Belo Horizonte.
3
Um perfil? Você começa por um pedido difícil.
Para ser exato, o perfil há de abarcar o indivíduo no
tempo, e eu não sei até que ponto o meu perfil de
agora se assemelharia aos das quadras passadas. A
gente muda como as águas do rio de Heráclito, não
acha?
Cyro dos Anjos
4
RESUMO
Esta pesquisa realizada no Acervo de Escritores Mineiros observa como a recepção
crítica do romance O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, compõe uma imagem
heterogênea do intelectual moderno ao interpretar a figura do narrador como funcionário
público. As entrevistas do escritor mineiro, os livros de sua coleção bibliográfica e a
fortuna crítica permitem estabelecer novas figuras e metáforas teóricas que associam
aspectos linguísticos, biográficos e sociais na composição do objeto literário. Como
arcabouço teórico, faço recurso ao conceito de modernidade em Max Weber, que concebe
o Estado como uma empresa capitalista, à noção de conflito em George Simmel, e às
concepções de narrativa, drama e história em Walter Benjamin. No estudo da figura do
intelectual, procuro relacionar os objetos do acervo de Cyro dos Anjos aos estudos críticos
do romance e aos teóricos citados.
Palavras-chave: Recepção crítica, conflito, burocracia, drama e história.
5
RESUMEN
Esta investigación que se realiza en el Acervo de Escritores Mineiros observa como
la recepción crítica de la novela O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, forma una
imagen heterogénea del intelectual moderno cuando se interpreta la figura del narrador en
la condición de un empleado público. Las entrevistas del escritor minero, los libros de su
colección bibliográfica y la fortuna crítica permiten que se establezcan nuevas figuras y
metáforas teóricas que asocian aspectos linguísticos, biográficos y sociales en la
composición del objeto literario. Como fundamento teórico, utilizo el concepto de
modernidad de Max Weber, que concibe el Estado como una empresa capitalista, la noción
de conflicto de George Simmel, y las concepciones de narrativa, drama e historia de Walter
Benjamin. En el estudio de la figura del intelectual, intento relacionar los objetos del
acervo de Cyro dos Anjos a los estudios críticos de la novela y a las ideas de los teóricos
citados.
Palabras clave: Recepción crítica, conflicto, burocracia, drama e historia.
6
7
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................... 9
2. O LEITOR DE DIÁRIOS.................................................................................. 15
2.1 A recepção crítica no jornal.................................................................................. 15
2.2 A recepção acadêmica.......................................................................................... 31
3. UM AMANUENSE EM CONFLITO............................................................. 41
3.1 O leitor e o tempo............................................................................................... 41
3. 2 Drama e burocracia............................................................................................. 46
3. 2 Ficção burocrática.............................................................................................. 56
4. CARNAVAL EM BELO HORIZONTE....................................................... 67
4. 1 Uma crônica familiar........................................................................................ 68
4. 2 O código da família........................................................................................... 73
4. 3 Datas especiais.................................................................................................. 83
5. CONCLUSÃO............................................................................................... 98
BIBLIOGRAFIA........................................................................................... 104
ANEXOS........................................................................................................ 110
8
1. INTRODUÇÃO
Edla Van Steen inicia a entrevista a Cyro dos Anjos pedindo que traçasse um
perfil em poucas palavras. Para o escritor mineiro, trata-se de um pedido difícil já que
sua descrição abarcaria as transformações do indivíduo no tempo. Nessa entrevista, o
perfil sintético de Cyro dos Anjos retoma a característica básica de seus narradores que,
assim como o escritor mineiro, são analistas e autocríticos: “Investigo-me, estraçalho-
me. Para resumir: sou um anti-Narciso.”
1
Mesmo fazendo ressalvas quanto à descrição de um perfil na entrevista, é possível
perceber que Cyro dos Anjos se apresenta sob uma perspectiva biográfica, informando
ao leitor quais são os processos de criação do romance, seu vínculo com a escrita
jornalística e o serviço público, sua aproximação com o grupo de intelectuais mineiros
liderado por Carlos Drummond de Andrade ou com políticos do Estado Novo no
trabalho em gabinetes. O escritor se define a partir das instituições que serviram de
origem ou que deram condições materiais para efetivar a sua produção literária. A
imagem ambivalente do escritor como funcionário público da ditadura estadonovista, no
plano biográfico, faz parte da composição de seu romance de estreia.
Os amigos de Cyro dos Anjos perceberam que suas crônicas nos jornais A Tribuna
e Estado de Minas pareciam compor um romance em fragmentos. A insistência desse
boato despertou sua vontade de escrever, mas as tarefas no serviço público dificultavam
a escrita literária. Além de escrever para vários jornais de Belo Horizonte em 1930,
Cyro dos Anjos trabalhou como funcionário público em gabinetes de políticos – os do
governador de Minas Gerais, de secretários, ministros e presidente da República –, foi
professor universitário e ocupou cargos burocráticos no Tribunal de Contas do Distrito
Federal a pedido de Juscelino Kubtischek. O escritor dedicava pouco tempo à literatura
em comparação com a sua atividade como ghost-writer no Estado, escrevendo
entrevistas e discursos políticos. Publicado em 1937 pelo próprio autor, O amanuense
Belmiro foi concluído quando Benedito Valadares, governador do Estado de Minas
Gerais, foi a Poços de Caldas para receber o presidente Getúlio Vargas. Cyro dos Anjos,
que escrevia apenas nos dias de folga ou nas férias, liberou-se do trabalho como oficial
1
ANJOS, 1982, p. 13.
9
de gabinete do governador por trinta dias, finalizando o seu primeiro romance
memorialista.
A recepção crítica compara, inicialmente, a escrita de Cyro dos Anjos à tradição
machadiana. Eduardo Frieiro
2
é o primeiro crítico que aproxima os autores citados ao
observar o “senso de humor” como característica comum, diferenciando apenas Belmiro
da visão desencantada presente no narrador de Quincas Borba. Seguindo a crítica de
Frieiro, Otávio Tarquínio
3
destaca a influência de Machado de Assis nos planos
temático e estilístico da obra de Cyro dos Anjos. Em “Poesia e ficção na autobiografia”,
Antonio Candido identifica as nuances da autobiografia, poética e ficcional, que
apresenta uma espécie de “dupla leitura”, ou “leitura de dupla entrada”, podendo ser
lida como recordação, como documento da memória ou como obra criativa. O artigo
define o autor mineiro como “memorialista de elevado teor literário”, com elaboração
estilística e evidente objetivo autobiográfico.
A escrita de Cyro dos Anjos estaria, assim, mais próxima de Machado por sua
elaboração estilística e literária do romance de memórias. Contudo, ao realizar uma
breve historiografia da produção literária em Minas, no século XVIII, o crítico lembra
que essa literatura surgiu “com um acentuado cunho de universalidade; e o fato dos
mineiros gostarem de literatura em primeira pessoa, em particular, a autobiografia”
4
.
Nesse sentido, é possível observar que Cyro dos Anjos se filia também à tradição
memorialista mineira, que inclui autores como Carlos Drummond de Andrade e Pedro
Nava.
Na entrevista, Cyro dos Anjos afirma que procurou estabelecer uma amálgama da
realidade de dentro com a de fora, distraidamente observada e transfigurada, ao compor
o amanuense livre de esquemas fixos. Se, por um lado, o romance segue o pacto de
leitura ficcional, que diferencia o autor empírico do narrador, por outro, apresenta
implícito o objetivo autobiográfico, uma vez que a voz narrativa parte da figura de um
funcionário público que pretende escrever suas memórias. O amanuense Belmiro é um
romance de sondagem psicológica que, na década de 1930, destaca-se da tendência
presente na literatura regionalista de restringir o aspecto psicológico, a interioridade, na
composição dos personagens.
2
FRIEIRO, 1937, p. 3. Ana Paula Nobile cita um “autor anônimo” como o primeiro crítico que
identificou a semelhança dos estilos de Cyro dos Anjos e Machado de Assis. No jornal Folha de Minas
(1938), foi possível identificar Eduardo Frieiro como o autor desse artigo.
3
Cf. artigo “30 anos de crítica”, no Suplemento Literário Minas Gerais (1966) dedicado aos sessenta
anos de Cyro dos Anjos.
4
CANDIDO, 1987, p. 51.
10
No romance de Cyro dos Anjos, o narrador Belmiro Borba, assim como o autor
empírico, é um funcionário público que deseja escrever suas memórias. A posição
ideológica de Belmiro, que aparenta neutralidade, incomoda aos amigos literatos que o
classificam ora como cético pequeno burguês, ora como homem fraco, o que leva o
personagem a concluir: “Afinal, todos, exceto eu, sabem o que sou...”
5
Como síntese de
um tipo de intelectual, é possível perceber que alguns estudos críticos apresentam
ressalvas quanto à neutralidade política do narrador.
Em “Sobre o amanuense Belmiro”, Roberto Schwarz observa as aporias do
narrador que oscila entre o passado e o presente, a vida rural e a burocracia, mas não
realiza transformações sociais no contexto urbano. A epígrafe do artigo, “Grandes obras
são aquelas que têm sorte em seus pontos mais duvidosos”, retirada do artigo “Lírica e
Sociedade”, de Theodor Adorno, indica a duplicidade de Schwarz, que critica as aporias
e o imobilismo social de Belmiro, mas, ao mesmo tempo, destaca a presença da cultura
popular no episódio de carnaval como uma possibilidade de desdobramento da ação no
romance de Cyro dos Anjos. A charge irônica de Jaguar
6
, na qual um escultor convida
uma estátua grega para lhe servir de modelo, ilustra e retoma a crítica ao imobilismo no
artigo de Schwarz. Como o amanuense é um narrador autocrítico, sua figura lacunar
permite à recepção crítica que identifica elementos biográficos no romance tecer um
discurso contrário à participação do intelectual moderno nos quadros burocráticos do
Estado Novo.
Iniciado em 1989 com a doação do acervo literário de Henriqueta Lisboa, o
Acervo de Escritores Mineiros do Centro de Estudos Literários na Universidade Federal
de Minas Gerais abriga os arquivos literários, as coleções bibliográfica e iconográfica e
o mobiliário que fizeram parte da biografia intelectual de Cyro dos Anjos. No Colóquio
Passagens da Modernidade – Centenário de Cyro dos Anjos, realizado em setembro de
2006 pela UFMG, Silviano Santiago e Eneida Maria de Souza apresentaram estudos
críticos que estabelecem relações entre o romance do escritor mineiro e as novas
perspectivas teóricas que utilizam os arquivos na abordagem do texto literário.
Contrapondo-se ao estudo crítico de Roberto Schwarz, que identifica as semelhanças de
temas e figuras nos planos biográfico e literário, a crítica cultural confronta o romance
aos gêneros textuais e objetos que compõem a biografia do escritor.
5
ANJOS, 1937, p. 59.
6
Cf. SCHWARZ, 1966, p. 170. A revista que contém esse artigo faz parte da Coleção Bibliográfica de
Cyro dos Anjos, disponível no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG (Ver FIG. 1 do Anexo).
11
Cyro dos Anjos já afirmava, citando Heráclito, que o rio em que se entra pela
segunda vez já não é o mesmo da primeira vez.
7
Essa imagem do sujeito que interpreta
a si mesmo como resultado das alterações do tempo e espaço constitui a justificativa
para a dificuldade do autor de traçar o perfil autobiográfico numa entrevista. O
intelectual moderno não se fixa numa imagem única do contexto histórico, uma vez que
os estudos do arquivo literário permitem novas abordagens na interpretação da sua
figura, que se alterna entre as escritas documental e literária. No campo da teoria
literária, é possível estabelecer “jogos intertextuais”
8
entre as coleções bibliográficas, os
documentos e arquivos dos Acervos Literários e as leituras críticas da obra que
contribuem para decodificar temas dramatizados de maneira relativamente hermética na
escrita e história moderna, acrescentando uma nova leitura dos elementos biográficos no
romance de Cyro dos Anjos.
Opondo-se à concepção tradicional de autoria como origem do discurso literário,
Cyro dos Anjos se define como escritor ou leitor que incorpora outros discursos e
contextos na sua produção literária. Em várias passagens, o autor usa o leitor e a própria
leitura como temas que apresentam problemas no romance ou caracterizam o narrador e
os personagens. Por outro lado, o fato de Belmiro ser um escritor amanuense o
aproxima da figura do autor empírico, justificando a comparação entre o romance e os
dados biográficos. Daí a importância de se confrontarem as características poéticas do
romance com as leituras críticas e com os documentos e objetos que compõe a sua
biografia intelectual, conservados no Acervo de Escritores Mineiros e em outros
arquivos literários. A exemplo da Hemeroteca Pública do Estado de Minas Gerais e da
Coleção Mineiriana
9
que compõem o acervo da Biblioteca Pública Estadual Luiz de
Bessa, onde se encontra parte dos artigos da crítica publicados no jornal referentes ao
contexto de publicação do romance; e da Fundação Casa de Cultura Rui Barbosa, no
Rio de Janeiro, que abriga os manuscritos de sua obra, além de artigos da recepção que
foram arquivados pelo escritor. No Acervo de Escritores Mineiros, inclui-se também a
correspondência do romancista com Carlos Drummond, entre os outros objetos que
compõem o Arquivo de Cyro dos Anjos.
Os arquivos literários permitem questionar a noção tradicional de autoria já que o
autor, mais do que origem do discurso literário, é produto dos meios de divulgação da
7
Cf. NIETZSCHE, 1985, p. 103.
8
SANTIAGO, 2002, p. 10.
9
Na Coleção Mineiriana, foi possível localizar o artigo “Impressões de um clima e dois romances”, de
Milton Amado, publicado no periódico Mensagem.
12
literatura. O Estado e o jornal constituem locais de enunciação do intelectual moderno
que não se restringem ao seu plano biográfico, mas interferem na constituição estética e
material da produção literária, como se percebe no romance de Cyro dos Anjos. Mas, se
o conflito do intelectual moderno se apresenta em Belmiro, ao contrastar as leituras
críticas, é possível perceber que sua figura não é homogênea. As diferentes faces de
Belmiro permitem levantar as seguintes questões: como a recepção crítica associa a
figura do narrador ao contexto biográfico de Cyro dos Anjos? Quais são as imagens do
intelectual moderno e as concepções de história presentes nessas leituras?
A crítica de jornal, que fez parte do contexto biográfico de Cyro dos Anjos,
influencia-se pelos conflitos culturais dos escritores modernos ao interpretar o
amanuense. A crítica acadêmica amplia a recepção sociológica ao interpretar a figura do
narrador com o recurso das teorias do arquivo. Se o realismo crítico oferece limites
teóricos para a recepção, propõe-se como alternativa teórica a sociologia em Max
Weber, que aborda as relações entre o Estado e o intelectual. Além de focalizar a
fortuna crítica, é necessário contrastá-la com as hipóteses de leitura construídas pelo
próprio escritor mineiro nas suas entrevistas. A comparação das hipóteses permite
abordar a figura do narrador-funcionário público a partir de metáforas biográficas e
figuras que retomam os conflitos dos intelectuais modernos em perspectivas teóricas
mais próximas do conceito de arquivo.
O objetivo dessa pesquisa consiste em estabelecer relações entre a poética de Cyro
dos Anjos e a figura do intelectual moderno. O primeiro capítulo intitulado “O leitor de
diários” retoma as discussões de Philippe Lejeune referentes ao contrato de leitura; às
diferenças dos pactos autobiográfico, romanesco e fantasmático; assim como à
produção do espaço autobiográfico que confronta o texto literário com os documentos
ou com a escrita biográfica.
A abordagem da recepção crítica referente ao contexto de publicação de O
amanuense Belmiro, realizada por Ana Paula Nobile,
10
investiga os rótulos da crítica de
jornal na comparação entre Cyro dos Anjos e Machado de Assis, além de questionar os
valores veiculados nesse contexto de recepção que aproximam os autores,
desconsiderando as diferenças de projetos estéticos. Com base na relevância do corpus
utilizado por Nobile, que pesquisou os recortes de jornal de artigos que fazem parte do
arquivo de Cyro dos Anjos preservado na Fundação Casa de Cultura Rui Barbosa –
10
NOBILE, 2005, p. 95
13
Arquivo Museu de Literatura -, contrastei as hipóteses de leitura da recepção de jornal
com a acadêmica.
A recepção no jornal trata do contexto de produção e divulgação do romance de
Cyro dos Anjos que o influencia a configurar uma imagem múltipla do leitor na própria
narrativa. Já a recepção acadêmica, aprofunda as questões teóricas fazendo recurso ao
realismo crítico ou aos teóricos pós-modernos, além de relacionar o romance ao arquivo
literário do escritor e a outros gêneros textuais e obras literárias ou filosóficas. Os
diferentes contextos de recepção destacam o confronto entre os críticos e a figura do
funcionário público como narrador, a aceitação ou repulsa dessa escolha estética pelos
leitores especialistas de jornal ou acadêmicos.
O segundo capítulo, “Um amanuense em conflito”, propõe que se interprete a
modernidade em Cyro dos Anjos utilizando o conceito de dominação burocrática e a
concepção de Estado em Max Weber, além de seguir a proposta teórica de George
Simmel, que define o conflito na modernidade a partir do contraste entre as culturas
subjetiva e objetiva. Essas concepções de modernidade permitem observar que a figura
de Belmiro destaca os conflitos presentes nas relações de trabalho na burocracia e a
interferência da economia na cultura. Como não há consenso entre os críticos se o
romance apresenta características dramáticas, um dos objetivos dessa pesquisa é
contrastar a definição de conflito e drama em Cyro dos Anjos com a proposta de
Simmel e com as noções de drama em Walter Benjamin e Silviano Santiago.
O terceiro capítulo, “Carnaval em Belo Horizonte”, aborda os temas família e
cultura popular, destacando seus desdobramentos nas categorias de tempo e espaço. O
tema da família é configurado a partir das relações entre a dominação burocrática e os
conflitos presentes na hierarquia da árvore genealógica do amanuense. Além disso, o
capítulo destaca a oposição entre o rural e o urbano, entre as culturas popular e erudita
como elementos que interferem na distribuição dos capítulos em datas especiais e
episódios que relatam acontecimentos do cotidiano de Belmiro.
O conflito do amanuense se desdobra nas categorias de tempo e espaço, que
constituem o eixo temático dessa pesquisa. A crítica literária observa a figura do
intelectual, seguindo diferentes concepções de história que, atualmente, incorporam os
conceitos de arquivo na interpretação do romance. Espera-se, com essa pesquisa,
destacar a importância de conservação dos arquivos literários que permitem estabelecer
relações entre os aspectos estéticos e linguísticos do romance e as instituições que
tornaram possível a sua materialização como objeto literário.
14
2. O LEITOR DE DIÁRIOS
A minha vocação é mais para leitor do que para escritor, sempre foi.
Cyro dos Anjos
A recepção crítica no jornal retoma os conflitos culturais que se desdobravam nos
espaços de produção e divulgação literária do Modernismo, influenciando a escrita de O
amanuense Belmiro. As características da produção de textos no jornal são incorporadas
ao romance que fragmenta o leitor e o autobiógrafo, além de associá-los na própria
figura do narrador. Retomando o conceito de tempo e espaço em Heráclito, Cyro dos
Anjos parece prever que o perfil do amanuense delineado pela recepção crítica varia de
acordo com a concepção de história predominante no contexto dos leitores especialistas.
O estudo dos arquivos literários permite que a crítica cultural configure uma imagem
fragmentada do escritor moderno que amplia as possibilidades de interpretação da
crítica sociológica.
A associação da leitura à escrita, da figura do escritor à do leitor e a referência aos
processos materiais de produção do livro constituem temas abordados no romance de
Cyro dos Anjos, que trata dos conflitos da geração de escritores modernos na Belo
Horizonte de 1930. Nesse capítulo, a recepção crítica do romance é revista em duas
partes. Na primeira, destacam-se os críticos de jornal que fizeram parte do contexto
biográfico de Cyro dos Anjos ou do Modernismo. A segunda parte do capítulo revê a
recepção acadêmica, contrastando seus pontos comuns e divergências, além de observar
a influência do realismo crítico nas críticas marxista e cultural.
2. 1. A recepção crítica no jornal
O romance de estreia do escritor mineiro Cyro dos Anjos, O amanuense Belmiro,
teve início com uma série de crônicas publicadas no jornal A Tribuna. O presidente
Olegário Maciel criou A Tribuna em 1930 com o objetivo de substituir o Diário de
Minas, extinto em 1931, como “órgão oficioso do Palácio da Liberdade”.
11
Nesse jornal
de curta duração, e em tantos outros da década de 1930, os intelectuais modernistas
divulgavam a sua produção literária sem grande controle por parte do Estado.
11
WERNECK, 1992, p. 30.
15
O início da escrita em crônicas de jornal propicia a abertura do texto às alterações
motivadas pela crítica de outros jornalistas, publicadas no mesmo suporte textual.
Assinadas sob o pseudônimo de Belmiro Borba, as crônicas de Cyro dos Anjos teriam,
segundo Newton Prates, desvinculado a figura do autor da do personagem. Na coluna
diária do Estado de Minas, assinada por W., Prates critica uma das crônicas de Cyro dos
Anjos, que transforma Belmiro em “dentista”, com “consultório na Serra”:
Dentista, ocupação muito prática, não era a vocação de Belmiro,
protestamos exigindo do cronista maior respeito pelas tendências do
seu personagem, advertindo-o de que Belmiro Borba já adquiria
personalidade autônoma, independente, que não podia se submeter aos
caprichos, às liberdades do seu criador.
12
Seguindo as sugestões, Cyro dos Anjos reconhece a autonomia de seu
personagem, retira “a placa de dentista da porta de Belmiro” e o faz retornar aos
“contratempos sentimentais” e “divagações poéticas”. Na época em que o livro
começou a ser esboçado, Newton Prates afirma que ainda influenciou outras alterações
no romance como o envelhecimento de Belmiro para dez anos e o transporte da ação
romanesca do Rio de Janeiro para Belo Horizonte.
O jornalista relata também uma situação curiosa. Estudantes cariocas da Faculdade
de Filosofia em vésperas de excursão à capital mineira o procuraram para que, na sua
condição de mineiro, respondesse onde ficava a rua Erê, local do endereço de Belmiro
Borba, personagem do romance de Cyro dos Anjos. Segundo Newton Prates, esse fato
teve como consequência a incorporação dos lugares onde viveu Belmiro à “geografia
sentimental de Belo Horizonte”.
Para Maria Zilda Curry,
13
a atuação dos jornais funciona como metáfora para o
espaço cultural da cidade que é produzido a partir do contraditório processo de
modernização. Mesmo com suas características modernas, Belo Horizonte ainda
apresenta traços provincianos. A atividade cultural da cidade segrega outras camadas da
população e depende também do sustentáculo do Estado. É no espaço contraditório do
jornal que se inicia a atividade literária de Cyro dos Anjos, influenciada pela linguagem
da crônica. Na passagem da crônica, que está no suporte jornal, ao livro, o autor opta
pelo romance escrito em primeira pessoa. Trata-se de um romance memorialista que
mescla características do diário íntimo e da crônica.
12
PRATES, 1966, p. 2.
13
CURY, 1998, p. 13.
16
Philippe Lejeune define a autobiografia e o romance através de pressupostos
teóricos que retomam a recepção, delimitando esses gêneros a partir das noções de pacto
e contrato de leitura. Revendo a concepção do discurso em Benveniste, Lejeune propõe
que o leitor utiliza o nome próprio como operador de leitura, permitindo associar a
pessoa ao discurso. O nome próprio do autor reenvia o leitor à figura de uma pessoa real
(o escritor), estabelecendo o contrato de leitura através dos elementos pré-textuais do
livro.
Em Benveniste, a primeira pessoa gramatical é definida através da articulação de
dois níveis. No nível da referência, os pronomes pessoais (eu/tu) têm referência atual
apenas no interior do discurso, no ato de enunciação. No nível do enunciado, esses
pronomes marcam a identidade dos sujeitos da enunciação e do enunciado. Contudo,
Lejeune lembra que as análises de Benveniste partem da situação do discurso oral que
não apresentaria problema com a referência do “eu”: o interlocutor, na própria situação
de comunicação, identifica quem é essa pessoa. Opondo-se a Benveniste, Lejeune
afirma que a enunciação não é o termo último da referência, mas que, a seu turno, ela
põe um problema de identidade que, na comunicação oral, é resolvido através de dados
extralinguísticos. Na comunicação escrita, “a pessoa que enuncia o discurso permite sua
identificação no interior mesmo desse discurso a não ser por índices materiais.”
14
Seguindo Benveniste, Lejeune afirma que os pronomes pessoais, possessivos e
demonstrativos, não reenviam a um conceito, nem há um conceito do “eu”, mas eles
exercem a função de reenviar a um nome ou a uma entidade susceptível de ser
designada por um nome. A partir do contraste entre o pronome “eu” e a pessoa a qual
ele se refere, Lejeune observa o uso do conceito de identidade na produção de
autobiografias, romances autobiográficos e biografias. O teórico propõe que o pronome
pessoal “eu” reenvia ao enunciador da instância do discurso onde figura o “eu”.
Contudo, esse enunciador pode ser designado por um nome comum ou próprio. É a
partir da articulação entre o nome próprio e o discurso que Lejeune situa os problemas
da autobiografia: “É no nome próprio que a pessoa e o discurso se articulam antes
mesmo de se articular à primeira pessoa.”
15
Observando a identidade dos nomes do personagem e do autor, Lejeune estabelece
o conceito de pacto de leitura. Se não há identidade entre o nome do personagem-
narrador e o do autor, temos o pacto romanesco. No caso de um narrador sem identidade
14
LEJEUNE, 1975, p. 21.
15
Ibidem, p. 22.
17
definida, o pacto varia entre romanesco, autobiográfico e indeterminado, conforme as
características textuais do livro que se pretende classificar. O pacto autobiográfico é
definido a partir da identidade dos nomes próprios do narrador e do autor. Segundo
Lejeune, no texto autobiográfico, o nome próprio do autor, que seria indubitavelmente
referencial, tem a sua referência fundada em duas instituições sociais: o estado civil e o
contrato de edição. O efeito do contrato de leitura autobiográfico ocorre com a leitura
dos elementos pré-textuais do livro, como a capa, que apresenta o nome do autor e o
título do livro, a folha de rosto, a apresentação do livro e a contracapa. Por último, o
pacto fantasmático retoma o contexto histórico do autor como uma fantasmagoria que é
projetada no texto literário. O pacto fantasmático constitui um operador de leitura que
permite ao leitor identificar elementos autobiográficos no gênero romanesco.
Além de distinguir os gêneros com as noções de pacto e contrato, Philippe
Lejeune estabelece o conceito de espaço autobiográfico com o objetivo de relacionar os
textos autobiográficos aos ficcionais. Lejeune critica a ilusão ingênua de André Gide e
François Mauriac, que acreditavam ser o romance mais verdadeiro e autêntico do que a
autobiografia. A defesa do romance indica, na verdade, a preferência dos dois escritores
pelo espaço autobiográfico como chave de leitura de suas obras. Com isso, Lejeune
afirma que as aproximações entre os gêneros autobiografia e romance possibilitam
leituras duplas que configuram o espaço autobiográfico. Na percepção desse espaço, o
leitor não lê os romances apenas como gênero que mostra a verdade da natureza
humana, mas também como fantasma revelador de um indivíduo.
16
Para Michel Foucault, o nome próprio do autor não faz uma referência pura e
simples à sua figura empírica. Contrapondo-se a Lejeune, Foucault afirma que o nome
do autor não se localiza no estado civil dos homens, nem na ficção de uma obra, mas
“na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser”
17
. O
nome próprio e o nome do autor se situam nos polos de descrição e designação. Mais
do que exercer um papel em relação ao discurso, o nome do autor constitui uma função
que reagrupa e delimita textos em um conjunto discursivo referente ao “status desse
discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura”.
18
A função de autor se associa
ao sistema jurídico e institucional que “contém, determina e articula” os discursos.
16
LEJEUNE, 1975, p. 42.
17
Ibidem, p. 274.
18
FOUCAULT, 2006, p. 274.
18
Ao escolher o nome próprio do personagem, Cyro dos Anjos produz o espaço
autobiográfico no jornal e no livro. O autor mineiro comenta o “processo de gestação”
do personagem: “O pseudônimo virou personagem, e personagem-autor, no qual se
projetava, em parte, o autor verdadeiro. De pseudônimo converteu-se, assim, em
heterônimo.”
19
Inicialmente, nas crônicas de jornal assinadas sob o pseudônimo
Belmiro Borba, a composição desse nome próprio configura o pacto autobiográfico no
texto, já que, nesse caso, a função do nome é esconder, do público, a figura do autor.
Após a publicação do livro, o pseudônimo se torna o nome do personagem-narrador ou
heterônimo, desvinculado do nome próprio do autor.
Leyla Perrone-Moisés relaciona a questão do heterônimo em Fernando Pessoa à
psicanálise lacaniana.
20
Os vários nomes que assinam a obra do poeta – Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro Campos – indicam não só o esvaziamento da função da autoria,
mas também a desconfiança na visão pragmática da literatura e da figura do autor
empírico como fonte ou proprietário do texto. O eu, tanto para a linguística quanto para
a psicanálise, é um significante vazio que depende de uma relação discursiva para ser
preenchido. Na poesia de Pessoa, o eu lírico se “desqualifica” enquanto poeta,
configurando o sujeito no discurso do outro como uma metáfora da sua própria
ausência. O heterônimo é um significante que recobre uma falta ou o outro significante.
O uso da definição de heterônimo pelo autor mineiro retoma as concepções de
autoria em Newton Prates e Fernando Pessoa. O personagem Belmiro Borba é delineado
nas crônicas de jornal a partir de uma relação discursiva que o torna independente do
seu criador. Os dados biográficos, incorporados na ficção, reforçam ainda mais a
heteronímia porque estabelecem o pacto fantasmático no romance. Para Wander Melo
Miranda, o conceito de pacto fantasmático, que realça “o desdobramento do autor em
figuras e ‘personagens’, permite entrever, já em processo, a noção de autor como um ser
de papel”, e da autobiografia como “uma forma de encenação ilusória de um eu
exclusivo”, retomando também a concepção de autoria como uma função discursiva.
21
Ao rever Lejeune, Wander Melo Miranda cita o estudo de Elizabeth Bruss, que
caracteriza a autobiografia como um “ato de discurso literariamente intencionado”,
seguindo a definição de “atos elocutórios” em Searle e Austin. O ato de discurso
configurado na autobiografia se define através dos “mecanismos internos de
19
ANJOS, 1982, v. 2, p. 16.
20
PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 93-112 passim.
21
MIRANDA, 1992, p. 38.
19
organização textual” em articulação com a sociedade e a literatura. Cada autobiografia
apresenta uma noção de indivíduo, que é elaborada pelos atos de discurso. Nessa
perspectiva, a forma particular de definir a noção de indivíduo contribui para “o endosso
ou desmascaramento da ilusão autobiográfica”.
A composição do personagem-narrador, tanto no jornal como no livro, rompe com
a noção de autoria como exclusividade de um escritor, uma vez que outros escritores
interferem na criação, sugerindo alterações. Paradoxalmente, o romance retoma a
experiência vivida do contexto histórico de Cyro dos Anjos, configurando a ilusão
autobiográfica, no gênero romanesco, através do pacto fantasmático. O narrador, assim
como o autor empírico, associa a figura do funcionário público à do escritor. A
oscilação do narrador nos polos da burocracia e da escrita personalista retoma o conflito
dos escritores modernos que produziram literatura paralelamente às atividades
burocráticas no Estado Novo.
Cyro dos Anjos elabora o nome próprio do narrador relacionando os significantes
de nomes próprios de escritores ao sobrenome Borba. Em entrevista a Edla Van Steen
22
,
Cyro dos Anjos comenta que a aliteração dos dois “Bés” nasceu da simpatia que lhe
inspirou a figura do poeta Belmiro Braga. A aliteração, que é um processo comum do
autor para elaborar os nomes próprios dos personagens, surge intencionalmente no
nome próprio e no sobrenome do narrador. A filiação literária de Belmiro está marcada
pelo sobrenome Borba, retirado de Quincas Borba, personagem machadiano. O pacto
fantasmático se apresenta na escolha do nome próprio do narrador: o nome próprio do
autor (Cyro) ressoa nas três últimas letras do pseudônimo (heterônimo) Belmiro,
retomando a figura fantasmática do autor empírico no texto ficcional.
A recepção crítica de O amanuense Belmiro, que, assim como o livro, inicia-se no
jornal, lida com o tema da diferença e (ou) da semelhança das escritas de Machado de
Assis e Cyro dos Anjos. Ao mesmo tempo, a recepção já esboçava uma leitura do pacto
fantasmático ao abordar os elementos biográficos do romance em seus artigos.
Intelectuais (escritores e jornalistas), que atuavam como críticos literários, destacaram
características da poética de Cyro dos Anjos que repercutem na recepção crítica da
atualidade. As influências literárias, o estilo, a oposição entre os romances psicológico e
social, a oscilação da voz do narrador são temas retomados nessas críticas de jornal.
22
ANJOS, 1982, v. 2, p. 16.
20
A recepção utiliza correntemente a palavra “estilo” para definir quais são as
semelhanças e (ou) diferenças entre Cyro dos Anjos e Machado de Assis. Antoine
Compagnon
23
revê o conceito de estilo, ao qual a crítica literária francesa se opôs nas
décadas de 1960 e 1970, mas sem conseguir se desvencilhar do uso teórico da noção de
estilo. Seguindo a proposta do teórico francês, é possível observar as variações do
conceito de estilo utilizado pela crítica de jornal.
Compagnon procura definir o sentido da palavra estilo, que denota, ao mesmo
tempo, a individualidade, seguindo assim a proposta de Buffon – “o estilo, é o próprio
homem” –, ou a singularidade da obra. Considera, como critérios de classificação do
estilo, a necessidade de uma escritura e de uma classe, uma escola literária, um gênero,
um período e os procedimentos expressivos a se escolher.
Com a pesquisa histórica dos significados da palavra estilo, o teórico encontra
aspectos da noção de estilo resultantes dessa variação de significados que contribuem
para definir o conceito. Assim, o estilo é norma a ser imitada, que pressupõe o uso de
um cânone como modelo; sintoma, que associa o estilo ao indivíduo; ornamento, desvio
de um gênero ou tipo, que são três noções provenientes da retórica de Aristóteles, sendo
que a primeira noção é uma variação ou um efeito contra um fundo comum, a segunda é
o desvio que se faz em relação ao uso corrente e, na terceira noção, o estilo é a escolha
dos meios expressivos.
Os críticos comparam as semelhanças de estilo entre Cyro dos Anjos e Machado
de Assis, observando a escrita elegante, os capítulos curtos, as frases de efeito, a análise
psicológica, o cosmopolitismo das cidades e o fato de seguirem o gênero romance
intelectual. Essas leituras se voltam para aspectos formais do romance que não
pertencem propriamente nem a um, nem a outro autor, mas fazem parte da tradição de
escritores europeus como Sthendal, os comediantes ingleses e franceses ou
principalmente os escritores Georges Duhamel, Marcel Proust e Henri-Frédéric Amiel,
que retomam o espaço autobiográfico em suas composições. Nessa perspectiva, o estilo
dos escritores segue uma norma que é determinada pelo tipo de cânone, seja ele o
nacional, em Machado de Assis, seja o europeu, presente nos escritores que tratam do
cotidiano ou escrevem romances de memórias, autobiografias ou diários.
No plano das diferenças, Machado de Assis e Cyro dos Anjos são comparados
pelos “sentimentos” dos personagens e pelos efeitos de leitura que despertam. Enquanto
23
COMPAGNON, 2001, p. 167-169 passim.
21
os personagens machadianos seriam irônicos, cínicos, céticos, os personagens de Cyro
seriam simplórios e líricos, despertam a piedade dos leitores. Tratam-se das perspectivas
de estilo como desvio da norma, sendo esta representada pelo estilo de Machado de
Assis, e estilo como sintoma que marca a individualidade dos autores nas escolhas
pessoais de efeitos de sentido que diferenciam a escrita de cada um deles.
O artigo “Elogio da obra bem escrita”, de Eduardo Frieiro, sintetiza os problemas
na abordagem do conceito de estilo nas primeiras críticas de jornal ao romance de Cyro
dos Anjos. Para Eduardo Frieiro, o “estilo” é o que “confere a duração” de uma obra. O
título do artigo já indica que a “obra bem escrita” é o valor literário dessa concepção de
estilo. Se escrever bem significa ter valor literário para o crítico, a mesma característica
é mal vista por parte da crítica: “Dizer que alguém escreve como Machado de Assis, soa
como vitupério, na opinião de muitos. Na de outros vale como um grande elogio. Para
outros, ainda, significa um louvor mitigado.”
24
Contudo, Frieiro não se limita a elevar o nome de Cyro dos Anjos à categoria de
criador já que afirma que a sua escrita segue a obra de Machado de Assis como modelo.
Ambos os autores se encaixariam na linhagem que, sem eliminar o estilo, apresenta uma
escrita “harmônica” e “elegante”, ou seja, seguem o modelo normativo de escrita
proveniente de autores antigos ou até de alguns modernos, linhagem oposta à de
escritores que, ao romperem com a norma, são classificados como criativos. Ao
defender o estilo de Cyro dos Anjos, Frieiro trata do conflito dos intelectuais modernos
com a tradição e os valores literários, defendidos pelos partidários ou não das inovações
estéticas do Modernismo, expondo também a sua oposição à literatura de caráter social:
Os modernistas brasileiros da revolução literária de 1922 insurgiram-
se contra os escritores apurados e as obras bem escritas. Os escritores
populistas ou proletarizantes, vindos depois, erigiram em princípios
de arte e linguagem rasteira e a forma desordenada. Os escritores
acadêmicos ou simplesmente corretos foram desprezados e injuriados
como passadistas.
25
A relação do grupo modernista de Belo Horizonte com Machado de Assis é
contraditória. Os escritores modernos incorporam elementos da escrita machadiana, ao
mesmo tempo que procuram romper com essa escrita. Ainda, a crítica de Eduardo
Frieiro traz implícita a rejeição de alguns escritores e críticos na década de 1930 ao
24
FRIEIRO, 1938, p. 3.
25
FRIEIRO, loc. cit.
22
romance regionalista, que tem sua linguagem avaliada a partir da noção de estilo como
desvio da norma.
O artigo de Rubem Braga segue outra perspectiva referente à influência
machadiana e ao romance social. Logo na primeira frase do artigo, Braga apresenta o
romance de Cyro dos Anjos como “memorial machadiano de um funcionário público de
Belo Horizonte envenenado de literatura, e vivendo em um círculo muito estreito de
relações e afetos.”
26
A semelhança desses autores é o gênero memórias, mas a diferença
essencial é a profissão do narrador em Cyro dos Anjos. Braga marca as diferenças entre
os autores a partir do contexto histórico que é avaliado pelo crítico como mais aflito em
O amanuense Belmiro; mesmo que o narrador seja indiferente e fuja das aflições
sociais, elas “invadem a sua toca e conquistam um lugar no seu drama”.
Assim, o romance de Cyro dos Anjos, seguindo essa proposta, não é apenas
psicológico, mas apresenta aspectos sociais que são esboçados pela retomada de
elementos do contexto histórico: as aflições tratadas no romance são de um funcionário
público que vive às voltas com uma roda de literatos. A descrição desse meio literário é
familiar para Rubem Braga, que compõe o seu estudo crítico sugerindo o espaço
autobiográfico de leitura do romance ao tratar das figuras do livro. Na perspectiva do
crítico, os personagens do romance seriam fixados em tipos artificiais como Glicério,
que representa a humanidade banal; Silviano, o homem complicado; Florêncio, que
conta anedotas; e Redelvim, encarregado de ser comunista.
O ponto fraco do livro, segundo Rubem Braga, é o excesso de explicação das
personagens. Porém, faz a ressalva de que seu estudo foi feito “ataboalhadamente” e
“perturbado” porque conhece o meio e as pessoas reais que serviram de “modelo” e,
mais ainda, “sugestão” para o livro. Rubem Braga lê o espaço autobiográfico do
romance, contrastando a escrita de Cyro dos Anjos com as figuras reais que
compunham o cenário cultural da roda de intelectuais frequentada tanto pelo próprio
crítico quanto pelo escritor mineiro. Dessa forma, sua leitura crítica exige o pacto
autobiográfico, que pressupõe um pacto referencial, mas constata a presença do pacto
fantasmático na não-verossimilhança dos personagens frente às figuras reais. Cyro dos
Anjos compõe as personagens retomando essas figuras como fantasmagorias que são
reconfiguradas a partir do imaginário do escritor.
26
Cf. BRAGA, 1938, [n.p.]. Recorte de jornal do arquivo de Cyro dos Anjos na Fundação Casa de
Cultura Rui Barbosa.
23
Se para Rubem Braga, Belmiro não vive em uma cidade, vive ilhado na sua roda
de amigos, o artigo de Milton Amado
27
utiliza justamente a cidade para particularizar o
estilo de Cyro dos Anjos em contraste com o de Machado de Assis. Com seus jardins
pequenos, as lembranças patriarcais, o ambiente de burocratas líricos e funcionários
públicos, Belo Horizonte faz parte do estilo do autor mineiro, mesmo que, segundo
Amado, nele se encontre a ironia, o ceticismo e o “esquadrinhamento das coisas e suas
causas”, que são características formais tanto da escrita machadiana quanto das escritas
anatoleana e proustiana.
Milton Amado diferencia também os romances mineiros, filiados à literatura do
sul, aos romances do norte. O crítico afirma que o seu critério de classificação não é
geográfico, baseando-se apenas na “divergência dos processos romanceadores”, que
apresentam formas diversas de luta. Na literatura do norte, a luta do homem com a terra
indica o predomínio do sentido pragmático, que se volta para os problemas sociais. Nas
literaturas do sul e a mineira, essa luta se passaria no “domínio do espírito”.
É comum a recepção crítica de Cyro dos Anjos apresentar classificações que
diferenciam a produção do norte, caracterizada como literatura social, da produção do
sudeste e do sul, mais introspectiva. Wilson Lousada
28
utiliza a classificação “romance
do centro” para romances intelectuais que partem da observação psicológica do homem,
seguindo a herança machadiana. Diferencia, assim, o romance do centro, influenciado
pela cultura europeia e pelo cosmopolitismo da cidade, do romance do nordeste e da
Amazônia, que traz uma paisagem mais dramática.
Mário de Andrade
29
trata dessas questões revendo a rígida classificação dos
romances. Já no título de seu artigo, “Psicologia em análise”, Andrade discute o critério
de definição do que é um romance psicológico, que será revisto em suas contradições,
ou melhor, seguindo o próprio jargão da psicologia, será analisado pelo crítico. Assim, a
análise está presente em romances do norte e do sul/sudeste, em Machado de Assis e
nos comediantes.
A crítica, ao descrever a psicologia dos personagens, classifica os romancistas em
duas categorias: de um lado os autores que “preferem fazer psicologia em ação, frases e
gestos dos seus personagens”, de outro, os que preferem a “análise direta e introspecção,
27
AMADO, 1938, p. 84-86.
28
Cf. LOUSADA, Wilson, 1938 [n.p.]. Recorte de jornal do arquivo de Cyro dos Anjos na Fundação
Casa de Cultura Rui Barbosa.
29
Cf. ANDRADE, 1939 [n.p.]. Recorte de jornal do arquivo de Cyro dos Anjos na Fundação Casa de
Cultura Rui Barbosa.
24
o registro da dinâmica física independente da ação”. Para Mário de Andrade, que não
concebe essas distinções como intransponíveis, os romances de Rachel de Queiroz e
Thelmo Vergara têm momentos de análise, assim como em José Lins do Rego, cuja
narrativa mais analítica não deixa de apresentar ação.
Outro exemplo dos limites da classificação romanesca é a comparação, em
primeiro lugar, entre Cyro dos Anjos e Graciliano Ramos, que voltam suas escritas para
a vida interior, e, em segundo lugar, entre o autor mineiro e a suposta influência
machadiana. A análise, entretanto, é mais característica em Angústia, de Graciliano, do
que em Cyro dos Anjos, que foi influenciado pelo humorismo. Mário de Andrade
questiona a tendência da crítica literária que identifica a influência de Machado de Assis
apenas fazendo referência ao humorismo de Cyro dos Anjos
30
. Essa tendência parte do
pressuposto de que ser humorista é sinônimo de ser machadiano. Para Andrade, essas
características, ditas machadianas, já se encontravam nos humoristas ingleses e
franceses.
A escrita de Rachel de Queiroz, segundo Mário de Andrade, é mais próxima de
Machado de Assis do que a de Cyro dos Anjos. No romance Três Marias, a autora
apresenta “a lapidação cristalina da frase” e “o próprio mecanismo de pensar” que são
características da escrita machadiana. A perspectiva crítica de Andrade, de caráter
etnográfico, revela quais são os valores literários da crítica ao estipular classificações
que nem sempre se prendem aos aspectos linguísticos que caracterizariam as diferenças
ou semelhanças entre os escritores.
Helena Bomeny
31
pesquisa o projeto dos modernistas mineiros, que se baseia na
razão iluminista. A necessidade de inovação desses intelectuais vem acompanhada dos
conflitos gerados pela busca de uma identidade e de um projeto nacionais que
apresentem também uma feição universalista. Diferenciando-se do grupo de São Paulo,
que seguia a influência do nacionalismo romântico, o grupo mineiro tendia para a
tradição machadiana e a literatura francesa (Anatole France). Contudo, esses grupos de
intelectuais modernos, simultaneamente, aproximavam-se e rompiam com a tradição.
Ainda, buscavam registrar a cultura nacional, mas faziam ressalvas quanto à
representação do social na literatura regionalista.
30
Nobile comenta as críticas de Mário de Andrade à vinculação que a recepção estabelecia entre Cyro dos
Anjos e Machado de Assis pelo “veio humorístico” (Cf. NOBILE, 2005, p. 70-71).
31
BOMENY, 1994, p. 74.
25
Assim, a crítica de rodapé retoma as questões que fizeram parte do contexto
histórico desses grupos intelectuais ao identificar, valorizando ou não, as influências
literárias de Cyro dos Anjos e ao definir o gênero do livro como romance psicológico,
confrontando-o ao “romance social”, ou pondo em dúvida essa distinção de gêneros. As
entrevistas de Cyro dos Anjos apresentam também o julgamento do autor em relação à
influência da escrita machadiana. Mas, nas entrevistas, o autor foca a questão da
influência em ângulos diversos que, quando confrontados, indicam as tendências
culturais predominantes na época de cada entrevista.
Em entrevista referente à década de 1940, Otto Lara Resende
32
provoca Cyro dos
Anjos ao perguntar o que o autor pensa a respeito de grande parte da “crítica indígena”
classificá-lo como “um Machadiano”. Para o autor mineiro, sua escrita não se situa sob
esse meridiano, que se caracterizaria pelo elemento intelectual, pela ausência de lirismo,
o jogo de conceitos e a forma barroca; porque O amanuense Belmiro é
fundamentalmente um “livro sentimental”.
O autor mineiro explica que os críticos fazem essa aproximação baseando-se em
critérios puramente formais, “isto é, pela analogia entre processos técnicos empregados
no ‘Amanuense’ e em alguns livros de Machado de Assis”. Para Cyro dos Anjos, esses
processos, que foram avaliados pelos críticos pela sua materialidade, não seriam
criações exclusivas de Machado de Assis, “pois têm sido utilizados por escritores de
todas as literaturas”. Essa concepção de estilo da crítica, segundo analisou o autor na
entrevista, parte da separação entre forma e fundo (ou expressão), ou matéria. O modelo
de escrita é, segundo a crítica, Machado de Assis, mas, para o autor, a forma
classificada como machadiana pertence à “Literatura Europeia”.
Separando forma e conteúdo, Cyro dos Anjos afirma o caráter sentimental de seu
romance como desvio da norma. Segundo Compagnon, enquanto a linguística
contemporânea critica a distinção forma e conteúdo, afirmando a impossibilidade de
separação entre pensamento e linguagem; Roland Barthes reanima o estilo colocando-o
entre a língua e a escritura. A desconfiança de Cyro dos Anjos quanto às comparações
do seu estilo com o machadiano é justificável, pois o conceito de estilo da crítica não
explica a origem da forma de escrita utilizada por ambos os autores, sem os inserir em
uma tradição universal. Contudo, essa insatisfação é momentânea.
32
ANJOS, 1944, p. 3.
26
Em entrevista a Giovanni Ricciardi
33
, na década de 1980, Cyro dos Anjos afirma
que foi leitor de Machado de Assis e recebeu influência muito forte de seu estilo. Nesse
contexto, o autor assume o uso da tradição machadiana. Na data de publicação do livro
(1937), os escritores experimentavam os conflitos e as dualidades da segunda fase do
modernismo, que fazia a crítica da tradição incorporando a própria tradição.
Na entrevista a Ricciardi, Cyro dos Anjos já se firmou como escritor moderno. A
fala do entrevistado é intencional e persuasiva porque pretende atingir o terceiro
interlocutor. Nela se encontra a imagem de “autor” que o próprio entrevistado deseja
configurar para o seu público-alvo. Na primeira entrevista, o autor nega a influência
machadiana para inserir ambos os autores na literatura universal, na segunda, ele já
afirma a influência de Machado de Assis e se insere no ramo de uma tradição literária
nacional.
As entrevistas apresentam também a posição do autor quanto à presença ou não de
uma crítica social na sua obra. Para Otto Lara Resende
34
, Cyro dos Anjos afirma que
“um escritor não pode viver fora de sua época”, pois “a questão social é um tema de
todos os tempos”. Entretanto, o autor critica o uso artificial dos problemas sociais nas
obras literárias, que deveriam abordá-los de forma espontânea, quando a situação no
livro assim exigisse.
Na entrevista a Edla Van Steen
35
, Cyro dos Anjos afirma que no seu romance
procurou “retratar um indivíduo, não uma classe”. “Na classe, o indivíduo se perde” e a
sua preocupação é o homem em sua solidão. A posição do autor contraria a crítica de
Rubem Braga. O crítico avalia os personagens do romance como figuras vazias
encarregadas de fazerem justamente o contrário do que o autor mineiro quer, ou seja,
representam uma classe, mas de forma limitada.
A contradição entre aquilo que o personagem é no seu cotidiano – burguês,
fascista, comunista, feminista, homem comum – e as suas ideias produz no leitor o
efeito de desconfiança na própria ideologia. Dispostos em discursos ideológicos
diversos, o conflito entre os “amigos” levaria à desagregação e à “solidão” do indivíduo
que não se adapta ou não incorpora o discurso do outro ao seu próprio discurso. Belmiro
se opõe ao confronto, que levaria à consequente dissolução do grupo de amigos: “De
33
ANJOS, 1991, p. 21.
34
Idem, 1944, p. 3.
35
Idem, 1982, v. 2, p. 14.
27
que valem esses choques entre amigos? Cada um continua onde está, aferrado às suas
ideias. Tanto mais aferrado se as contraditamos.”
36
O capítulo “Choques”
37
apresenta uma das constantes discussões do narrador com
o personagem Redelvim. Os amigos se olham com estranhamento: para Belmiro,
Redelvim é um “comunista romântico”, inofensivo, enquanto o amigo vê o narrador
como um “pequeno burguês” cético. O diálogo se inicia com uma provocação de
Redelvim: “Então, continua nessa vidinha sórdida de pequeno burguês?”. Belmiro não
assume a identidade e ironiza: “Tem cem mil réis para me emprestar? (realmente estava
precisando).” O personagem Redelvim, ainda prossegue a discussão, observando que
ser burguês é um estado de espírito.
Nessa perspectiva, o estado de espírito do sujeito é definido por mais um campo
discursivo que se volta para a ideologia capitalista. Trata-se de um campo contraditório,
uma vez que não vincula necessariamente o sujeito classificado como burguês à posse
material do dinheiro. Mais ainda contraditória é a própria definição política de Belmiro,
que se autodenomina um “individual-socialista”. É uma tentativa de incorporar o
discurso do outro na sua própria definição política, atenuando a imagem de “pequeno
burguês”, mas isso não significa que o amigo comunista aceita a retórica do amanuense.
Redelvim e Belmiro, apesar das diferenças, têm semelhanças importantes que
instigam mais ainda o conflito dos amigos. No capítulo “Onde se apresenta um
revolucionário”
38
, a visita de Redelvim a Belmiro trata das dívidas mútuas dos
personagens e de uma confidência. Segundo o narrador, Redelvim o visitara para colher
um duplo “aval”. O primeiro consiste em reformar a promissória com o amanuense e o
segundo é confessar que participa de um movimento político cujo desfecho seria a
“revolução proletária”. Comenta também que a polícia invadira a sede do partido e
tomara os documentos com a relação dos membros, entre eles, o nome de Redelvim na
lista. Durante a conversa, Belmiro se mostra preocupado com o amigo, contudo,
Redelvim avalia essa preocupação como “pequeno burguesa” para, em seguida, afirmar
que “os indivíduos nada significam, segundo o seu modo de pensar.” Mais próximo do
discurso marxista referente às classes sociais, Redelvim rejeita o individualismo, que se
filiaria ao capitalismo.
36
ANJOS, 1937, p. 139.
37
Ibidem, p. 135-139.
38
Ibidem¸ p. 83-85.
28
Esse fato é relatado pelo narrador com o uso de palavras que retomam o sistema
financeiro de forma direta, como “promissória”; ou indireta, na palavra “aval”, que tem
sentido duplo, referindo-se tanto ao apoio moral e intelectual como ao termo comercial
ou ordem de pagamento. A visita de Redelvim se finaliza com sua saída para o banco.
Mesmo a conversa fluindo atravessada por conflitos ideológicos e pelo tema da
“revolução proletária”, os personagens ainda se prendem às ações cotidianas que fluem
com o uso do dinheiro.
Daí a ironia no título citado: o revolucionário Redelvim se apresenta na casa do
amanuense, pequeno burguês, para refazer uma promissória, o que significa que até as
ditas ações políticas dependeriam do financiamento “burguês”. Assim como a
Revolução Francesa foi fomentada pela burguesia, a atividade política de Redelvim
também tem um sustentáculo financeiro semelhante ao do amanuense “burguês”. Trata-
se do Estado, afinal, como relata o narrador, Redelvim fora seu companheiro nas
“aperturas financeiras e na burocracia”. Mesmo tendo deixado o funcionalismo, porque
se desentendeu com o diretor da repartição, Redelvim trabalhava em jornais, que, no
contexto histórico do autor na década de 1930, também se associavam ao Estado,
defendendo os interesses do governo.
As figuras de Belmiro e Redelvim constituem um duplo que permite leituras
baseadas no pacto fantasmático porque retomam a figura do intelectual moderno,
dividida entre a atividade literária e a função pública, seja como pequeno funcionário de
seção, ou na tarefa de jornalista. Inserido no mesmo contexto histórico de Cyro dos
Anjos, exercendo também a atividade jornalística, Rubem Braga desconfia justamente
da intenção do autor de retratar os indivíduos.
O narrador antevê a impossibilidade do sujeito, seja filiado ao socialismo seja ao
capitalismo, de manter a coerência entre a ideologia que defende e a sua própria
existência material no mundo. Mas Redelvim insiste em ser coerente; entretanto, nas
questões cotidianas, como observa o amanuense, não consegue coerência com a sua
ideologia e não se conscientiza das suas próprias contradições, fato esse que explica o
artificialismo do personagem. Belmiro é um personagem que aceita e vivencia suas
contradições e, talvez por isso, seja também aceito por Rubem Braga como “o único
literato que de fato interessa no livro”.
Beatrice Didier observa que “o diário não existia antes do século XV. A partir
dessa data, ele evoluiu da simples crônica, a um texto onde a individualidade do autor é
29
muito mais presente, à medida que a classe burguesa vai conquistando o poder.”
39
Trata-se de um gênero de origem burguesa, que, por retratar o cotidiano, é inicialmente
tipificado como literatura ordinária, mas que, com a ascensão da cultura burguesa,
eleva-se à categoria de gênero literário. O tempo do diário íntimo é fragmentado,
seguindo a forma espaçada da escrita no cotidiano, não obrigatoriamente seguindo a
linearidade dos dias.
O diário íntimo é um dos gêneros incorporado à escrita fictícia de Belmiro Borba,
que serve para reflexões sobre a leitura e tema para a literatura personalista do narrador.
Antes de ser um autor do seu diário, Belmiro Borba é leitor do diário de seus amigos
Redelvim e Silviano: “Redelvim também tem o seu “Diário... Li páginas dele, há
tempos, pelo mesmo processo clandestino por que conheci o do Silviano.”
40
O diário,
gênero de origem burguesa, é o meio de escrita utilizado por Redelvim que não traz
anotações explicitando o seu perfil político, mas, segundo Belmiro, tratam da sua
“individualidade”:
Como todos os documentos dessa natureza, contém histórias muito
íntimas, amores (inclusive o caso de sua amante espanhola, que o
torturou bastante) e versos de adolescência. Redelvim não permite
que se lhe fale dos amores nem dos poemas.
41
Descrito como literato, filósofo, fascista, mitômano, Silviano é um personagem
“múltiplo” para o narrador e seus amigos. Belmiro também faz leituras clandestinas do
diário de Silviano, contudo, cita trechos desse diário, incorporando-os na sua própria
escrita. O conteúdo do diário de Redelvim é apenas apropriado no discurso indireto do
narrador em um pequeno parágrafo. A narrativa não apresenta uma explicação para a
escolha, mas o que pode ficar como questão é que a escrita de Redelvim é silenciada
pelo narrador, que prefere citar na integra, para, em alguns momentos, ridicularizar a
escrita de Silviano.
O romance de Cyro dos Anjos retoma os conflitos culturais de Belo Horizonte
na década de 1930, através das figuras do burocrata e do jornalista. Contudo, não se
trata de afirmar o seu caráter autobiográfico como relação unívoca entre texto e
contexto. Nas crônicas, o personagem Belmiro Borba é composto a partir do processo
de leitura desse gênero fragmentado, que retoma elementos do cotidiano da cidade.
Publicadas no jornal, que sujeita o texto literário a vários tipos de leitores, as crônicas
39
DIDIER, 1976, p. 45.
40
ANJOS, 1937, p. 151.
41
ANJOS, loc. cit.
30
de Cyro dos Anjos convivem com a pluralidade e a interferência da recepção que esse
suporte permite. Na passagem das crônicas para a escrita do romance, o autor multiplica
a figura do “leitor modelo”, que vai desde o “vago leitor”, que pode ser qualquer um,
até o leitor par, que é a “âme-souer”, “leitor futuro”, que lerá o diário publicado e, por
fim, o “leitor imaginário”, que sintetiza a indefinição desses leitores concebidos na
perspectiva do narrador.
Os contrastes entre as leituras de Newton Prates, de Rubem Braga e de Mário de
Andrade confirmam as reflexões do personagem Belmiro sobre a própria composição
do diário, que, antes de revelar a unicidade do escritor e do leitor de memórias, delineia
a fragmentação, as contradições e os conflitos do sujeito nos planos de produção e
recepção do texto literário.
2. 2. A recepção acadêmica
A recepção crítica de O amanuense Belmiro renova as reflexões teóricas
referentes à oscilação da voz narrativa no par funcionário público/escritor, principal
foco dos críticos que identificam a presença de elementos biográficos que configuram o
pacto fantasmático no romance. O contraste entre a recepção marxista, que utiliza como
arcabouço teórico a dialética entre texto e contexto ou o realismo crítico de Georg
Lukács, e a crítica cultural, que faz referência aos teóricos pós-modernos como Gilles
Deleuze e Michel Foucault, além de buscar outras linhagens literárias ou filosóficas
para o romance de Cyro dos Anjos, retomam questões que já foram esboçadas nas
leituras de Rubem Braga e Mário de Andrade.
É possível estabelecer uma comparação entre as leituras marxistas e culturais de
Cyro dos Anjos e o estudo Realismo crítico hoje, de Georg Lukács, que trata da
concepção de mundo de dois grupos de escritores que fazem parte da literatura burguesa
contemporânea. Lukács distingue os escritores realistas, no qual inclui Thomas Mann,
dos escritores de vanguarda, grupo que abarca escritores como James Joyce, Kafka e
principalmente Robert Musil. Essas correntes literárias apresentam, segundo Lukács,
diferentes concepções do homem e da realidade efetiva.
Assim, na literatura realista, as circunstâncias histórico-sociais determinam e
condicionam o destino dos personagens. A possibilidade abstrata de realização pode
tornar-se concreta na perspectiva realista, configurando a irrupção do drama na
realidade efetiva. Por outro lado, na literatura de vanguarda, tem-se o predomínio da
31
possibilidade abstrata, que é mais rica do que a realidade. A literatura de vanguarda
realiza o movimento do “sujeito que conhece” enquanto a literatura realista realiza o
movimento da “realidade efetiva” conhecida pelo sujeito. Lukács diferencia essas
correntes estéticas observando o desenvolvimento ou a suspensão da ação na narrativa.
O imobilismo e a atitude intelectual de Belmiro permitem aproximá-lo da
corrente literária de vanguarda. É necessário lembrar que essa classificação tem sido
utilizada com o fim de estabelecer uma crítica paralela ao papel limitado do intelectual
moderno no âmbito político do seu contexto histórico. Partindo-se de um sujeito
histórico determinado, que é o funcionário público-escritor, alguns estudos críticos do
romance associam a figura do narrador à do autor empírico. Antonio Candido e Roberto
Schwarz abordam o estudo da narrativa sob o enfoque da crítica marxista. Em
“Estratégia”, Antonio Candido destaca as diferenças entre Machado de Assis e Cyro dos
Anjos:
Enquanto Machado de Assis tinha uma visão [...] dramática, no
sentido próprio da vida, Cyro dos Anjos possui, além dessa, [...], um
maravilhoso sentido poético das coisas e dos homens. O que é
admirável no seu livro, é o diálogo entre o lírico, que quer se
abandonar, e o analista, dotado de humour, que o chama à ordem; ou,
ao contrário, o analista querendo dar aos fatos e aos sentimentos um
valor de pura constatação, e o lírico chamando-o à vida, envolvendo
uns e outros em piedosa ternura.
42
O crítico parte do princípio de que a dialética entre texto e contexto delineia a
figura do intelectual moderno na narrativa. A oscilação do narrador entre o lirismo e a
análise é uma crítica à limitação do intelectual na sociedade, que não consegue
concretizar suas ideias no plano real. Antonio Candido define o elemento dramático da
narrativa como um reflexo da solução intelectual de Belmiro a sua desadaptação ao
mundo: “refugia-se no passado, uma vez que o presente lhe escapa das mãos. [...] O
drama é que o presente se insinua no passado.”
43
Roberto Schwarz utiliza o realismo crítico de Georg Lukács como arcabouço
teórico seguindo a distinção anteriormente citada entre os escritores engajados e os de
vanguarda. O escritor engajado realiza a representação de uma consciência coletiva,
enquanto o escritor de vanguarda se prende ao esteticismo e ao subjetivismo imediato.
Nessa perspectiva, a obra literária do escritor engajado expressaria uma visão de mundo
42
CANDIDO, 1945, p. 87.
43
Ibidem¸ p. 85.
32
que é condição essencial para a ação, tendo o poder de refletir traços da realidade com o
objetivo de desalienar o público.
Em “Sobre O amanuense Belmiro”, Roberto Schwarz observa que o andamento
variável do ritmo na prosa entre análise e lirismo interfere no desenrolar da ação.
Quando o narrador oscila nesse par, a ação não se desdobra num plano dramático: trata-
se, portanto, de “Estética de Acomodação”. Schwarz conclui que “o romance da
urbanização, que por sua natureza deveria ser dramático, torna-se lírico, na perspectiva
intermediária do burocrata.”
44
O crítico ameniza seu discurso afirmando que, embora as
oscilações da narrativa sejam limite, não são defeito, já que o romance é escrito na
forma de diário. Segundo Schwarz, na construção romanesca, “a biografia de Belmiro é
um princípio lírico” que evoca o passado, mais do que senso de conflito e destruição e
de crise, é decomposição do presente: “O irremediável não está na perda, está na
continuidade; os traços não variam, varia apenas a sua acentuação”.
45
Cyro dos Anjos e Machado de Assis apresentam características comuns em
relação ao gênero – romance memorialista – e ao estilo. No estudo referente ao livro
Memórias póstumas de Brás Cubas,
46
porém, é possível observar que existe uma
preferência de Schwarz pela narrativa machadiana. O crítico cita Machado como
exemplo de poética que dramatiza o espetáculo social do país, sendo possível classificá-
lo como escritor engajado. Nessa perspectiva, a ausência da ação dramática na escrita de
Cyro dos Anjos é o que o distingue de Machado de Assis.
Ao citar o gênero memórias como característica que justifica as “platitudes” de
Belmiro, Schwarz procura disfarçar o tom negativo da sua crítica literária. Contudo, o
crítico destaca importantes contradições nas falas do personagem-narrador, que se nega
a classificar o homem segundo doutrinas, mas põe-se na defesa do seu trabalho,
desfazendo parcialmente o seu ceticismo: “A prova do contrário está em mim. Atuo no
meu setor, como se acreditasse nas coisas. As necessidades vitais fazem o homem agir e
não permitem que ele se torne um contemplativo puro.”
47
Para Schwarz, Belmiro
confunde ganha-pão com ativismo e afirma a “inexistência” das diferenças sociais.
Nessa leitura, a burocracia é definida como “a pedra seca do amanuense” que confirma
a permanência do privilégio rural estendido à “sinecura” da Seção de Fomento, onde
Belmiro consegue trabalho através dos favores de um deputado.
44
SCHWARZ, 1966, p. 170.
45
SCHWARZ, loc. cit.
46
Idem, 2000, p. 11.
47
ANJOS, 1937, p. 168.
33
Confrontando O brejo das almas, de Carlos Drummond de Andrade, a Angústia,
de Graciliano Ramos, e a O amanuense Belmiro, Jonh Gledson
48
questiona a tipologia
de Alfredo Bosi
49
que diferencia os romances social e psicológico. A classificação de
Bosi diferencia autores como Graciliano Ramos e Cyro dos Anjos, sem abordar
semelhanças que, na perspectiva de Gledson, podem ser percebidas porque ambos
dramatizam a mesma situação história da Revolução de 1930.
Citando a comparação de Schwarz, Gledson define o romance de Cyro dos Anjos
como um “brejo das almas, porém, com graça”. Nos romances de Cyro dos Anjos e
Graciliano Ramos, a duplicidade do narrador em primeira pessoa oferece uma
perspectiva dupla da situação “social, psicológica e familiar” na narrativa e no contexto
histórico dos autores empíricos. Para Gledson, os narradores como funcionários
públicos, burocratas ou jornalistas, se posicionam de dentro e fora dessa situação que é
delineada a partir do conflito na literatura moderna, vista com desconfiança ou como
status social nos romances dos autores citados.
A tensão do narrador entre uma visão subjetiva e outra objetiva dos eventos,
seguida da não resolução do conflito, força as narrativas de Cyro dos Anjos e Graciliano
Ramos “a partir em direção à crise e à mudança”. Gledson contrasta a oscilação do
narrador em O amanuense Belmiro e em Angústia com a variação do eu-lírico entre a
primeira e a terceira pessoas no poema “Sombra das moças em flor”, de Carlos
Drummond. Além do tema proustiano do amor platônico, a oscilação do narrador e do
eu-lírico e o imobilismo dos personagens retratam, de forma implícita, os
acontecimentos políticos da década de 1930.
Essa escolha estética implica também a oposição dos autores citados à narrativa
realista, já que pareciam sentir “o realismo como um imperativo dual: ele requer que se
revela verdade (ou certas verdades) sobre a sociedade, mas que se faça isso de um ponto
de vista que em si é verossímil e realista.”
50
Usando o discurso de Drummond como
paradigma teórico que explica a crise de 1930, Gledson cita a entrevista na qual o poeta
define “Deus, Freud e o comunismo” como três caminhos ou soluções para a sua
geração que, na verdade, constituem duas formas de não-opção: de um lado, a “ação
católica, fascista e organizada em defesa do ocidente”, e, de outro, o “paraíso
moscovita.” Para Drummond, opõem-se à não-opção os escritores que, seguindo “o
48
GLEDSON, 2003, p. 201-232 passim.
49
BOSI, 2006, p. 390-395.
50
GLEDSON, 2003, p. 229.
34
roteiro da psicanálise” freudiana, oferecem uma “análise” da crise ao se negarem a
escolher entre fascismo e comunismo.
O crítico faz referência a autores como Lima Barreto e Machado de Assis que,
desde a transição do Império à República no Brasil, destacam a “incapacidade
insuperável de mudança” social e política. Mesmo com a Revolução de 1930, Cyro dos
Anjos, Graciliano e Drummond observam a continuidade do imobilismo. No contexto
moderno, a Revolução apresenta a permanência de um “impasse histórico” que não
alterou o contexto histórico dos escritores citados, causando uma sensação de
impotência e imobilismo que é retratada no título e na apresentação
51
do livro de Carlos
Drummond. Ao confrontar os romances com o poema, Gledson conclui que os textos
retomam a crise histórica na forma poética em graus de maior ou menor lirismo:
Cyro dos Anjos atinge o alvo com uma polidez característica quando
afirma que Belo Horizonte é apenas a tradicional Minas Gerais
disfarçada. As implicações da cadeia de causação histórica que discuti
em Angústia são mais especificas e brutais. O “brejo” histórico é
resultado da violenta repressão envolvida na escravidão e das suas
consequências igualmente violentas. 1888 é uma data mais importante
que 1930.
52
Schwarz e Gledson concluem que o imobilismo de Belmiro é uma consequência
da queda de sua linhagem rural. Nessas leituras, o narrador se “desqualifica” ou “perde
seu prestígio” político e familiar passando da aristocracia rural para o serviço público.
Para Schwarz, a oscilação do narrador no passado e presente ou nos espaços rural e
urbano não permite uma articulação do tempo, que é subjetivado e governado pela
memória e divagação: a imobilidade constituiria uma forma negativa de conciliação que
figura no final do livro.
Mesmo definido Belmiro como “o parado”, Silviano Santiago não avalia a
passagem para o serviço burocrático e para a cidade como desqualificação. Nessa leitura
crítica, Belmiro é um narrador que não se decide: “Enquanto protagonista, ele é um
indeciso no tempo e no espaço da genealogia e no tempo e espaço rural e citadino.”
53
Para Santiago, a leitura de Schwarz, que alterna a figura do narrador em espaços
51
Segundo o texto da apresentação, escrito por Carlos Drummond, “Brejo das Almas” é um município
que está em fase de prosperidade na produção agrária com o objetivo de exportação para outros
municípios. Seus habitantes cogitam a mudança do nome “primitivo” do município, que estaria cada
vez mais próspero (ANDRADE, 2001, p.15).
52
GLEDSON, 2003, p. 225.
53
SANTIAGO, 2006, p. 67.
35
opostos, procura, na verdade, adaptar “o final brusco do romance a desígnios
ideológicos, uma ‘forma negativa de conciliação’.”
54
Em A vida como literatura, Silviano Santiago destaca as referências do romance
às literaturas francesa e nacional, representadas nas figuras de Machado de Assis e
Carlos Drummond, e à filosofia em Nietzsche. Santiago constata que Cyro dos Anjos
faz uso de uma escrita caracterizada pelo hibridismo entre o clássico e a prosa moderna.
A influência da literatura tradicional e antivanguardista francesa, representada pelo
interesse de André Gide pelo fait divers, possibilita a Cyro dos Anjos “escrever com
uma língua nacional castiça e um estilo coloquial enxuto.”
55
Os faits divers são crônicas de acontecimentos diários que apresentam a descrição
dos fatos sem artifícios e sem a fantasia literária, além de se caracterizarem pelo uso da
escrita do diário e pelo cultivo a contenção estilística. Para Santiago, a psicologia dessa
escritura se diferencia das máximas universais que caracterizam a narrativa moralista.
O foco dessa nova psicologia é retratar mais “as tramas urdidas pelo outro, imaginário
do mesmo, na sua cotidianidade, do que as reflexões feitas pelo próprio escritor na sua
biblioteca.”
56
A valorização do cotidiano abarca o tema do escritor que, na pretensa
tentativa de se alcançar a verdade humana na escrita autobiográfica, configura uma
verdade poética.
Silviano Santiago estabelece diferenças entre o romance de Cyro dos Anjos e a
narrativa oitocentista. A análise de Santiago parte do final do romance memorialista de
Cyro, que não chega ao fim da vida do narrador. Nesse caso, temos a junção entre o
formal (romance) e o existencial (vida). Na grande narrativa oitocentista – Santiago cita
Machado de Assis como exemplo – o meio da vida não leva o narrador a fingir que
tenha chegado ao fim dela. No caso do romance de Cyro, o meio da vida do
protagonista se confunde com o fim do livro. Por outro lado, em Dom Casmurro, o
meio do livro coincide com o instante em que os fatos narrados chegam ao meio da
vida. O crítico cita a metáfora da gestação que relaciona o nascimento ao início da
escrita:
Sim, vago leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas
de trinta e oito anos. E isso é uma razão suficiente. Posta de parte a
modéstia, sou um amanuense complicado e a vida fecundou-me a seu
54
SANTIAGO, 2006, p. 66.
55
Ibidem, p. 38.
56
Ibidem¸ p. 40.
36
modo, fazendo-me conceber qualquer coisa que reclama autonomia
no espaço.
57
Santiago utiliza a metáfora do estupro para explicar o trecho “a vida fecundou-me
a seu modo”, justificando a metáfora da gestação. Contudo, analisando esse trecho
citado pelo crítico, o modo como a vida fecunda Belmiro não é explicitado. O
estranhamento do adjetivo “grávido” implica mais o fato de se estar fazendo analogia
entre a gravidez, que é uma função biológica do corpo feminino, e a origem da escrita.
A expressão “a seu modo”, portanto, pode estar também relacionada à analogia entre a
escrita e a gestação, porque quem gesta, no caso do romance, é do sexo masculino.
A leitura de Santiago se apoia no trecho de Roland Dogelès, “é o estupro que
salvará o amor”, aproximando a ideia de estupro do indivíduo pela realidade a “o
momento em que o humano descobre o Amor pela escrita.” Os fatos, que fazem parte
do plano real, passam, através da metáfora do estupro, para o plano da realidade
estruturada simbolicamente. Constitui-se, assim, o duplo imaginário da realidade. Trata-
se do modo violento como a exterioridade traumatiza o narrador, “ao deslocar o eixo da
vida do plano real para o plano da realidade simbolicamente estruturada.”
58
Para Santiago, o romance de Cyro dos Anjos apresenta três figuras dramáticas –
Belmiro, Carolino e o leitor – que produzem efeitos de sentido. Belmiro, ao fazer
recurso, nas epígrafes do romance, aos trechos de Remarques sur les mémoires
imaginaires, de Georges Duhamel, questiona a própria veracidade da sua escrita
memorialística. Duhamel não nos dá certeza se as memórias são verdadeiras ou são
imaginárias. De um lado, temos o efeito Duhamel, causado pelas epígrafes, que faz o
leitor questionar o estatuto de real da literatura autobiográfica. De outro, temos o efeito
Nietzsche, que consiste em olhar o mundo como se fosse uma obra de arte. Carolino é
um funcionário de baixo cargo da Sessão de Fomento. Fornece o papel da seção,
clandestinamente, para Belmiro escrever suas memórias durante o serviço. Por último, o
leitor faz figuração no romance, ora quando é citado por Belmiro, ora quando as falas
dirigidas ao Carolino apresentam uma leitura dupla – parecem que são voltadas para o
leitor.
Assim como Silviano Santiago, o estudo crítico de Eneida Maria de Souza destaca
o drama do intelectual na escrita memorialista de Cyro dos Anjos. Souza busca autores
na literatura universal como Baudelaire, Melville, Kafka, Musil, Borges e Vila-Matas,
57
ANJOS, 1937, p. 24-25.
58
SANTIAGO, 2006, p. 16-17.
37
que, assim como o escritor mineiro, apresentem referências ao tema do nada da
existência. Kafka e Musil são autores da estética de vanguarda que retomam a
classificação de Georg Lukács.
Em “A verdade está na Rua Erê”,
59
a ensaísta se concentra na observação de um
dos locais onde Belmiro escreve suas memórias: o escritório da sua casa na rua Erê do
bairro Prado. Se a escrita do livro é comparada à gestação, o útero ou refúgio é a
metáfora que caracteriza o local onde ela se realiza. Fazendo recurso às metáforas
femininas do parto e da gestação, ela afirma que o “livro-filho” compensa a
incapacidade de Belmiro gerar seus descendentes. O celibato do amanuense teria uma
justificativa econômica: o casamento é viabilizado pelo “mercantilismo amoroso”.
Belmiro e suas irmãs se tornam celibatários por uma contingência econômica causada
pela decadência da fazenda de seus pais.
Souza aproxima a escrita de Cyro dos Anjos à dos autores que dramatizam o tema
da “fragilidade de vínculos entre os sujeitos”. Nessa perspectiva, o sujeito moderno
passa pelo conflito identitário causado pelos desvirtuamentos dos valores e da
fragmentação do “eu com seu ‘estranho’ outro”. Para Christine Buci-Gluksmann, o
spleen em Musil e Baudelaire é caracterizado pelas noções de efêmero e transitório, pela
alegorização do ego e da alienação de si, que se distinguiria do efêmero cômico de
herança nietzscheana, caracterizado pela leveza e positividade. Citando Buci-
Gluksmann, Souza observa que a escrita de Cyro dos Anjos apresenta um conceito de
arte e sensualidade que afirma a vida como princípio carnavalesco, opondo-se ao
princípio formal destrutivo presente no drama barroco que inscreve o efêmero
melancólico como fragmento e ruína. A ruptura moderna com a tradição da família, a
falência da fazenda e a fragilidade dos vínculos afetivos, compensada no âmbito urbano
pelo grupo dos amigos, tornam-se suportáveis para Belmiro que, segundo Souza,
adquire saúde através da escrita memorialística.
Esse estudo crítico, que enfatiza a autoria como uma função discursiva, permite
identificar o espaço autobiográfico como operador de leitura do romance na medida em
que contrasta o texto ficcional aos objetos do Arquivo Literário de Cyro dos Anjos. As
cartas dos escritores modernos com o timbre de órgãos do Estado são comparadas ao
59
Conferência intitulada “Cenas de uma modernidade alternativa” que foi apresentada pela ensaísta no
Colóquio Passagens da Modernidade: centenário de Cyro dos Anjos, realizado pela UFMG em 2006. O
ensaio foi publicado parcialmente em 2007, no Suplemento Literário de Minas Gerais, com o título
“Velho amanuense” e está, em sua íntegra, no prelo.
38
papel timbrado da Seção de Fomento, que é o suporte ficcional das memórias de
Belmiro. Além do material manuscrito, Souza pesquisa o material iconográfico
referente ao segundo Salão de Belas Artes de Belo Horizonte em 1938. Nesse evento,
Delpino Júnior, que concorria ao prêmio com o retrato de Cyro dos Anjos, expôs
também a figura de Belmiro Borba em desenho, que foi comentada pelo conferencista
João Alphonsus. Para Souza, a semelhança das figuras no retrato e no desenho leva
Alphonsus a se decidir pelo estatuto de ficção da personagem:
Em tom humorístico, João Alphonsus decide sobre o estatuto de
Belmiro Borba como ficção, graças à imagem criada pelo desenhista.
Cyro e Belmiro, autor, pseudônimo e personagem se acham expostos
no Salão, e adquirem, ainda que imaginariamente, autonomia, no
entender do conferencista João Alphonsus.
60
Comparando-se as diferentes recepções críticas, nota-se que a leitura de Roberto
Schwarz é normativa no sentido de estabelecer critérios para especificar o que é o drama
social brasileiro. Nessa perspectiva, Machado de Assis seria uma literatura oficial que
define o que é drama. Contrapondo-se a essa leitura, Antonio Candido percebe a
dramaticidade em Cyro dos Anjos, contudo, volta-se para a questão temporal. Ao
relacionar texto e contexto, Candido universaliza a figura do narrador uma vez que o
drama do intelectual se situa no plano da heterogeneidade do tempo: para Belmiro, o
passado é o refúgio que é constantemente perturbado pelo presente. Nessa leitura,
Belmiro não é apenas o intelectual brasileiro que compactua com o Estado Novo – o
intelectual da Estética da Acomodação –, mas é o intelectual moderno que está sujeito
ao conflito universalista do tempo.
A crítica cultural não descarta a presença do drama na escrita de Cyro dos Anjos.
Gledson destaca o conflito do narrador que, na posição ambígua de literato que trabalha
para o Estado, sintetiza o confronto “entre a literatura como liberdade e como produto”
num grupo social restrito. Para Silviano Santiago, o narrador rompe a unicidade de um
eu que se desdobra entre a realidade e a ficção ao dramatizar no papel vidas imaginárias.
Em “Suas cartas, nossas cartas”, Santiago propõe que os “jogos intertextuais” de
documentos e leituras críticas da obra contribuem para decodificar temas dramatizados
na escrita e história moderna. Eneida Maria de Souza observa a encenação do drama do
intelectual moderno na narrativa de Cyro dos Anjos, confrontando o romance com os
documentos e objetos que fizeram parte da biografia intelectual do escritor.
60
SOUZA, 2007. No prelo.
39
A crítica cultural apresenta uma perspectiva histórica do drama do intelectual moderno
fundamentada no contraste entre o romance e os documentos e objetos culturais que
pertenceram ao contexto histórico de produção do livro. Os arquivos literários permitem o
desdobramento de questões teóricas que destaquem as preferências literárias dos escritores,
identificadas nas coleções bibliográficas, o estudo dos manuscritos na crítica genética, a
composição da imagem do escritor em entrevistas e objetos iconográficos, os efeitos da
recepção crítica na produção literária e as consequentes alterações no estilo do escritor.
Na recepção do jornal, Rubem Braga é o crítico que destaca a relação entre o drama e o
contexto histórico de Cyro dos Anjos na produção de O amanuense Belmiro. Na recepção
contemporânea, o posicionamento ideológico de cada crítico ainda interfere na percepção do
elemento dramático na narrativa. Como crítico engajado que exige a ação do narrador, Schwarz
caracteriza Belmiro dentro da estética da acomodação ou do imobilismo de vanguarda. Adepto
da estética do pastiche, Silviano Santiago define a escrita memorialística de Cyro dos Anjos,
que funde autobiografia e imaginário, como uma reação do escritor à realidade que traumatiza o
sujeito. Coerente com seu projeto literário das memórias imaginárias de Graciliano Ramos,
Santiago valoriza o personagem Silviano (amigo e alter ego de Belmiro), que faz recurso ao
imaginário na construção da sua “autobiografia”. Ampliando a linhagem literária do romance de
Cyro dos Anjos, a leitura de Eneida Maria de Souza associa Belmiro Borba a uma série de
copistas que retomam o drama do escritor e sua pulsão negativa pela escrita que fazem parte da
literatura moderna.
Assim, os estudos críticos mais recentes retomam as leituras de Rubem Braga e Antônio
Candido ao confirmarem a presença do drama em O amanuense Belmiro. Ampliou-se, contudo,
a noção de drama, que não se restringe à oscilação temporal do romance, mas se define também
a partir dos conflitos gerados pela figura ambígua do narrador-funcionário público; da relação
entre as figuras do autor empírico e do leitor; e do conflito identitário do sujeito moderno. Faz-
se a ressalva à crítica de Roberto Schwarz, que seguindo o realismo crítico, não identifica a
representação estética do drama social no romance.
A crítica marxista de Lukács não explicita as relações entre a burocracia e a produção
intelectual, que são amplamente discutidas no artigo de Schwarz. As leituras recentes dos
arquivos literários complementam essa leitura crítica já que apresentam uma imagem da figura
do escritor inserida na vida cultural e política da cidade moderna. Ampliam-se, assim, as
possibilidades de projeção do espaço autobiográfico, que abarca a construção do imaginário dos
leitores, configurado a partir da relação entre a obra e os objetos biográficos que compõem o
acervo do autor empírico.
40
3. UM AMANUENSE EM CONFLITO
A modernidade em Max Weber oferece outra perspectiva para a observação do
narrador-funcionário público ao definir o Estado como uma empresa capitalista que
separa os meios de produção do trabalhador. A sociologia é uma ferramenta teórica
importante no estudo desse romance, contudo, propõe-se partir de um ponto de vista
sociológico que focalize as relações de trabalho na burocracia. Max Weber, Georg
Simmel e a crítica cultural de Walter Benjamin oferecem instrumentos teóricos que
permitem abordar o drama do amanuense numa perspectiva que articula a escrita e a
leitura do romance ao contexto histórico configurado a partir de documentos e objetos
culturais que compõem os arquivos literários dos escritores modernos.
A recepção sociológica de O amanuense Belmiro parece se opor à participação do
intelectual no Estado, enquanto a recepção cultural destaca os conflitos, as limitações e
imposições à produção literária dos escritores modernos. A interpretação dos críticos se
influencia pela temporalidade do seu próprio contexto histórico, como Cyro dos Anjos
mesmo já previa ao estabelecer um “leitor futuro” no romance. Com isso, é possível
contrastar as leituras considerando que a particularidade de cada crítico resulta da
relação entre o leitor e seu tempo. O termo “ficção burocrática”, usado pelo narrador ao
definir a encenação do trabalho burocrático, é uma metáfora teórica que contribui para
compreender os limites da ação estatal na realidade. Esse capítulo trata do conflito
social desdobrado no tempo e espaço do amanuense, que encena o drama do intelectual
moderno no Estado Novo como uma ficção burocrática.
3. 1. O leitor e o tempo
O homem espia o homem, inexoravelmente.
Cyro dos Anjos
A epígrafe acima, retirada do romance de estreia de Cyro dos Anjos, recupera o
conceito de pacto autobiográfico configurado na significação do verbo “espia”, que
relaciona a leitura à produção autobiográfica. “Observar” ou “olhar secretamente” são
significados do verbo que apresentam implícitos a ideia da leitura como atividade
clandestina. O sujeito e o objeto da frase são idênticos, mas indefinidos: o uso da
41
palavra homem não permite que se identifiquem ou se separem as figuras do leitor e do
autobiógrafo. A frase se encerra com um advérbio que, mais do que indicar o modo
como se espia, funciona como dêitico, ampliando suas possibilidades de significação à
media que aponta para as figuras do autor e do leitor da frase, e para o processo de
leitura.
No parágrafo anterior a essa frase, Belmiro se define como o “amanuense esteta”
que é cindido em o “indivíduo que sofre” e o outro “que analisa e estiliza o sofrimento”.
Para Silviano Santiago, o “indivíduo que sofre” é uma série de episódios conectados
pela cronologia enquanto a figura do esteta é um “eu” organizado “a partir de
conflituosas tendências [...] controladas e harmonizadas pelo trabalho de arte”
61
que se
concretiza na escrita autobiográfica.
Nietzsche propõe uma “visão literária” da vida e do mundo que podem ser
interpretados sob diversas perspectivas. Retomando Nietzsche, Michel Foucault faz
recurso à transdiscursividade e à subjetivação ao definir o autor como uma função que
se desdobra em diferentes campos discursivos. Com base nesses pressupostos teóricos,
Santiago propõe que “graças à escrita, o eu passa por um processo de ‘subjetivação’, de
ressemantização do indivíduo pelo esteta.”
62
O esteticismo do amanuense se relaciona
ao perspectivismo nietzscheano, que é “o fundamento da crítica ao dogmatismo.”
63
Para
Santiago, Belmiro e Silviano, ambos “autobiógrafos”, interpretam as ações e as
características de seus amigos sob o viés do perspectivismo.
O capítulo que se encerra com a frase citada, “o homem espia o homem,
inexoravelmente”, prepara o leitor para um importante acontecimento na narrativa. No
capítulo “O Carnaval”, o narrador tece reflexões que associam a festa popular aos
significados econômico e político que recobrem o conceito de “massa”. Os comentários
do narrador preparam o leitor para observar a oposição entre realidade e ficção presente
nos acontecimentos do Carnaval, que serão tratados no próximo capítulo do romance.
O conceito de “personagem”, que se restringiria ao plano ficcional, é utilizado
pelo narrador ao definir o aglomerado de carnavalescos fantasiados. É também a
“comunicação” que define o movimento e a força da multidão no campo conceitual da
linguagem. O movimento da massa em translação compõe uma imagem de força
uniforme que é recebida e transmitida num processo de comunicação de indivíduo para
61
SANTIAGO, 2006, p. 48.
62
SANTIAGO¸ loc. cit.
63
Ibidem¸ p. 51.
42
indivíduo, cuja imagem final é a metáfora que a compara a uma “onda ou ciclone”. As
reflexões de Belmiro delineiam o caráter ambíguo da “massa”, que pode ser interpretada
como aglomerado de personagens ou como público da festa carnavalesca.
O capítulo “O luar de Caraíbas tudo explica”, posterior a essas reflexões e aos
acontecimentos do Carnaval, retoma e transforma a frase com uma palavra que, se não
diferencia o leitor do autobiógrafo, delimita suas figuras no plano da burocracia. Assim,
a paráfrase “o amanuense que espia o amanuense” amplia o pacto de leitura para os
planos de produção e recepção do romance. A perspectiva “autobiográfica” da paráfrase
abrange a figura do autor já que ambos – o narrador e o autor empírico – são
funcionários públicos. No plano da recepção, é possível relacionar também a figura do
“leitor especialista” no contexto biográfico de Cyro dos Anjos, que produz a crítica
literária nos jornais financiados pelo Estado, à palavra “amanuense”, que contém, em
sua significação, o sentido de trabalho voltado para a escrita documental no serviço
público.
A frase e sua paráfrase apresentam o paradoxo desse livro, que é autobiográfico
para o narrador Belmiro, que escreve suas memórias, e ficção romanesca para os
leitores e para o autor Cyro dos Anjos. A profissão de Belmiro aproxima a figura do
autor empírico à do narrador, mas não estabelece o pacto autobiográfico conforme a
regra de Lejeune que, como já foi observado, exige a identidade entre os nomes do autor
e do narrador-personagem nas autobiografias. As epígrafes do romance, retiradas do
livro Remarques sur les mémoires imaginaires, de Georges Duhamel, retomam a
questão das frases citadas.
Eduardo Frieiro já destacava a importância de se observarem as epígrafes que
filiam a escrita do autor mineiro às memórias imaginárias de Georges Duhamel. A
proximidade com o contexto biográfico dos intelectuais modernos na década de 1930
talvez explique porque o crítico leu o romance influenciado pelo pacto fantasmático.
Frieiro associa as figuras do narrador às do autor empírico quando caracteriza Belmiro
como um “companheiro imaginário”, “espécie de fantasma lírico” ou “sósia mental” de
Cyro dos Anjos.
64
Silviano Santiago observa como cada epígrafe do romance define o gênero
autobiográfico utilizando o conceito de imaginário. Na interpretação de Santiago,
Duhamel teoriza o gênero literário fazendo recurso ao paradoxo da autobiografia que
64
FRIEIRO, 1955, p. 32.
43
valoriza a verdade poética: “Busca-se o estatuto duma narrativa fictícia que ofereça ao
leitor o peso ilustrado da verdade poética e não a mera narrativa que se impõe pelo
documento que traduz a verdade humana.”
65
A partir da observação da segunda epígrafe
66
do romance, Santiago destaca a
ruptura com o estatuto do eu na narrativa autobiográfica de Belmiro. O narrador-
protagonista se desdobra nos polos eu e outro, real e imaginário, documentário e
ficção. A leitura de Santiago, que destaca o papel do imaginário na produção do
romance memorialista, se aproxima da estética da recepção. Wolfgang Iser
67
também
utiliza o conceito de imaginário como mediador entre o texto ficcional e os elementos
reais que o compõe.
Para Iser, o saber tácito do leitor, que separa ficção e realidade, interfere na
interpretação do texto ficcional. A seleção de elementos reais, sua repetição e
combinação nos elementos textuais constituem os atos de fingir que configuram o
imaginário na literatura. A realidade torna-se um signo na escrita, enquanto o
imaginário é o efeito desse real que é identificado pelo leitor no texto. A seleção e a
combinação compõem os atos de linguagem que lidam com as noções de limite e
transgressão do real.
Philippe Lejeune focaliza a recepção ao utilizar o conceito de espaço
autobiográfico para definir a relação que o leitor estabelece entre os textos ficcional e
autobiográfico. Já Iser estabelece uma relação triádica entre o imaginário, o real e a
ficção que também engloba o leitor que identifica, nos efeitos de sentido do ato de
fingir, os limites, as rupturas e as fusões dessas três categorias. A crítica de Silviano
Santiago cita o conceito de imaginário, retirado de Duhamel, ao definir a composição do
narrador-protagonista como um “outro imaginário” que traz “novas perspectivas de
compreensão do sujeito” que se voltam para a categoria do tempo.
Ao observar a figura do amanuense, Santiago afirma que é pela estilização ou pela
subjetivação que “o outro faz o mesmo desaparecer na folha de papel em branco, como
que pelo trabalho diurno duma borracha invisível, que vai apagando a visão
unidimensional, factual e cronológica do indivíduo.”
68
Segundo Santiago, Belmiro se
65
SANTIAGO, 2006, p. 46.
66
“Para escrever a história de um outro, colaboro com minha própria vida. Que não se procure saber o
que nessa ficção é incontestavelmente eu. Enganar-se-iam. E meus próximos tanto e mais se
enganariam quanto os outros” (DUHAMEL, 2006). Epígrafe do romance O amanuense Belmiro,
traduzida por Silviano Santiago.
67
ISER, 1983, p. 384-416 passim.
68
SANTIAGO, 2006, p. 49.
44
concebe na escrita autobiográfica como um outro que rompe a linearidade do tempo
cronológico para fazer com que “o mesmo volte à tona do eu”, “num movimento de
eterno retorno” que retoma o tempo na sua forma circular e mítica, como propôs
Nietzsche.
Santiago destaca a importância do cotidiano na narrativa em detrimento do tempo
cronológico, seguindo a leitura de Roberto Schwarz que concebe essa temporalidade
circular como “subjetivação” do tempo. Antonio Candido usa a metáfora da bola para
definir a temporalidade do romance como resultante da oscilação do narrador entre o
passado e o presente. Para Schwarz e Candido, a oscilação retoma a temporalidade do
intelectual moderno, que vivenciava o processo de transição do poder econômico e
político da aristocracia rural para o âmbito da burocracia urbana.
No romance de Cyro dos Anjos, o cotidiano da cidade é caracterizado pelas
funções rotineiras do amanuense, tais como o trabalho, o convívio com a família, os
vizinhos e amigos e a participação nas festas do calendário. Contudo, o narrador
reencontra fragmentos do passado nos personagens, nos lugares e nos objetos do tempo
presente. Seguindo a estética proustiana, que faz a memória involuntária retomar o
passado, Belmiro rememora e transforma os fragmentos na memória imaginária, como
propõe Duhamel. Silviano Santiago valoriza a temporalidade do cotidiano que, com seu
movimento de repetição, também fragmenta e incorpora a narrativa histórica do
contexto do Estado Novo.
A figura do funcionário público permite aos leitores estabelecerem relações entre
o narrador-protagonista e o autor empírico. O amanuense delineia a temporalidade
cotidiana nas suas memórias incorporando fragmentos ou fantasmagorias do contexto
dos intelectuais modernos. A oposição vila e cidade faz parte das memórias de Belmiro
que apenas consegue resgatar sua história nos objetos e personagens do espaço urbano
semelhantes aos do passado na vila. Como, na perspectiva de Lejeune, o diário de
Belmiro Borba não apresentaria o pacto autobiográfico, temos o pacto fantasmático que
se configura a partir desses fragmentos.
O retorno dos fragmentos no presente apresenta uma concepção estética do tempo
que se opõe aos paradigmas tradicionais – linearidade, sequência e progresso –
utilizados na abordagem teórica desse conceito. Os fragmentos do passado da vila
45
associados ao presente, seguem a noção espacial de simultaneidade.
69
Tem-se aí a
espacialização do tempo, que também é ampliada ao enfatizar a relação entre o real e o
fictício na autobiografia de Belmiro. Esses fragmentos configuram o imaginário como
um ato de fingir que se efetiva através da seleção de temas ou figuras comuns ao
contexto histórico do autor empírico. Incorporados ao romance de memórias,
constituem fantasmagorias que indicam ao leitor o uso do pacto fantasmático como um
operador de leitura no romance de Cyro dos Anjos.
A interpretação da figura do funcionário público e os efeitos do pacto fantasmático
permitem à crítica literária estabelecer relações entre o romance e o contexto do autor
empírico que são influenciadas pelo contexto histórico da própria recepção. A leitura
negativa de Schwarz ressalta importantes características do romance que se relacionam
ao contexto biográfico de Cyro dos Anjos. Mas a perspectiva ideológica do crítico
também é um efeito do período cultural e político referente ao governo militar na
década de 1960, que explica a ironia de Schwarz: “O país de Belmiro, embora
silencioso e filosófico, também é cheio de marechais.”
70
Da mesma forma, a observação
da presença do drama no romance referente às críticas de Santiago e Souza resultam da
revisão desse contexto histórico a partir da abertura de arquivos dos escritores
modernos. O personagem Belmiro já destinava suas memórias a um leitor futuro que, no
caso da recepção crítica, ressignifica a figura do narrador a partir de novas concepções
da história que partem do estudo de textos e objetos biográficos.
3. 2. Drama e burocracia
A crítica sociológica do romance O amanuense Belmiro, que destaca os pontos
fracos da narrativa, se apoia numa concepção histórica negativa da figura do intelectual
moderno. A recepção marxista concebe a figura do narrador associada à imagem do
intelectual moderno que se resigna ao contexto político-social da época. Contudo, por se
tratar de um romance memorialista, que apresenta como característica o pacto
fantasmático, a história e o passado do narrador não são retomados apenas como
conteúdo de memórias imaginárias, mas funcionam como categorias estéticas que
69
Cf. Luis Alberto Brandão, que, seguindo a proposta de Edward Soja, define os conceitos de sequência,
que prioriza o caráter temporal, e de simultaneidade, que é uma noção que se associa a perspectiva
espacializante (BRANDÃO, 2005, p. 35).
70
SCHWARZ, 1966, p. 68.
46
produzem sentido nesse romance, delineando a forma romanesca em suas oscilações
com o gênero autobiográfico.
Roberto Schwarz e Antonio Candido percebem os elementos históricos da
narrativa ao interpretá-los seguindo a dialética marxista. Retomando esses estudos
críticos, suas análises destacam a duplicidade do narrador: para Candido, Belmiro oscila
entre o passado e o presente ou o lirismo e a análise, enquanto que, para Schwarz, o
narrador desenvolve suas reflexões no plano da análise, mas, ao passar para o plano
lírico, não as desdobra na forma dramática. A caracterização de Belmiro como “o
parado” (que não se localiza num lugar “entre”) permite a Silviano Santiago analisar a
temporalidade fragmentária do narrador.
A recepção sociológica apresenta uma crítica arguta referente ao papel político
restrito do intelectual moderno na sociedade, enquanto a crítica de Santiago focaliza os
conflitos culturais, as limitações e imposições do Estado à produção cultural do escritor.
Confrontando essas posições críticas, cabe aproximá-las da perspectiva sociológica de
Max Weber e Georg Simmel, que estudam os conflitos sociais sob um viés que destaca
a cultura. A dominação burocrática, em Max Weber, e os conflitos das culturas
subjetiva e objetiva, em Simmel, são pontos de vista teóricos que contribuem no sentido
de compreender a figura ambígua do funcionário público como narrador.
Belmiro retoma o conflito dos intelectuais modernos que, no contexto político da
ditadura do Estado Novo, tem duas possibilidades (ou não-opções, como se observa na
entrevista de Drummond): a primeira é assumir um posicionamento ideológico contrário
ao governo, passando pelas consequências dessa escolha; a outra seria participar do
Estado, mas de uma forma contraditória, tendo em vista que os temas da produção
literária retomam o conflito dessa posição. No romance de Cyro dos Anjos, o
amanuense, que se define como um “profissional da tristeza”, segue a segunda “opção”,
como seguiram muitos escritores no contexto biográfico de Cyro dos Anjos.
O autor mineiro fez parte da geração de intelectuais modernos que se alternava
entre a atividade literária e o serviço público. Assim como Belmiro, esses intelectuais,
originários da aristocracia rural falida, abandonavam as províncias para ocuparem
cargos públicos nas capitais, como forma de manterem o poder e a tradição de suas
famílias. A fixação na cidade, contudo, não apaga totalmente a memória do espaço
provinciano, que é recuperado como fantasmagoria no espaço urbano ficcional, seja nas
memórias de Belmiro, ou na obra dos escritores modernos que vivenciaram essa
transição. Ao observar a trajetória de Belmiro, Schwarz conclui que a alternância de
47
espaços não conduz o narrador a alterar suas reflexões sobre o quadro político,
ideológico e econômico nos planos rural ou urbano.
O uso do realismo crítico em Schwarz tem como consequência a associação da
figura do narrador à estética de Vanguarda, caracterizada pelo imobilismo social dos
personagens. O realismo crítico delineia a concepção de drama a partir da configuração
de uma abstração como possibilidade concreta na narrativa realista. Essa realidade
efetiva configurada no drama trata-se, contudo, de uma interpretação ou efeito do real
na recepção. Opondo-se ao determinismo marxista, Max Weber apresenta uma
perspectiva sociológica que, mais do que a dominação de classes e o reflexo da
infraestrutura na superestrutura, destaca o papel mediador do agente social na cultura.
71
Ao enfatizar o papel do agente e os sentidos da ação social, Weber procura
estabelecer os limites metodológicos da sociologia, opondo-se à ideia de que o
sociólogo trata de uma realidade empírica que é totalizada no seu trabalho. Weber
compreende os fenômenos sociais a partir da observação dos significados que os
agentes atribuem à ação social. Os “tipos ideais”, configurados através da ação social,
eliminam a relação unívoca entre o real e a sociedade.
72
Na perspectiva de Weber, o burocrata, que faz parte do “quadro administrativo”, é
o elo mediador entre dominantes e dominados. Esse quadro de funcionários é o suporte
de qualquer “tipo de dominação que tenha vigência ao longo do tempo.”
73
Weber
destaca eventos políticos na Alemanha reconstruída que explicam o tipo de dominação
burocrática. O primeiro ministro Bismarck procura eliminar a autonomia política do
parlamento alemão: as possíveis lideranças partidárias de extrema esquerda e do centro
foram neutralizadas em favor da administração do Estado. Daí a ironia weberiana que se
oculta na alternativa: “O que ocorre no parlamento tem realmente a importância ou o
parlamento não passa do carimbo involuntário tolerado de uma burocracia
dominante”.
74
Weber define o Estado Moderno como uma empresa capitalista que detém a posse
dos instrumentos de trabalho dos funcionários públicos. As esferas política, cultural e
militar da economia capitalista se fundamentam na separação do trabalhador dos meios
materiais de produção. No contexto alemão, o burocrata ou especialista domina a
técnica necessária para a gestão do Estado Moderno seguindo uma rotina burocrática
71
Cf. COHN, 2003, p. 136-152.
72
Cf. o conceito de tipo ideal em WEBER, 1993, p. 139-140.
73
COHN, 2003, p. 185.
74
WEBER, 1974, p. 22.
48
que não interfere nas decisões políticas do parlamento. A burocracia alemã segue os
desígnios do Estado que é o dono dos meios de produção do trabalho burocrático, assim
como os funcionários de um escritório privado seguem os desígnios dos proprietários.
Os preceitos racionais do cálculo constituem normas que regem o desempenho de
uma máquina que atua nos sistemas administrativo e legal do Estado (ou empresa)
Moderno. Para Weber, a mente seria uma máquina inanimada que se torna animada ao
conceber formas concretas de organização burocrática do Estado como a divisão de
jurisdição, os regulamentos e as relações hierárquicas. Os burocratas operam uma
máquina concreta no domínio cotidiano do trabalho, assim como se verifica na realidade
de uma fábrica: “Juntamente com a fábrica inanimada, a inteligência concretizada
ocupa-se em construir a concha da servidão que os homens serão forçados a habitar
algum dia tão impotentes quanto os felás do Egito Antigo.”
75
Max Weber diferencia ainda o trabalho do funcionário público, associado à
técnica e ao racionalismo moderno, do trabalho dos funcionários romano, bizantino e
egípcio, que se prendem à tradição patriarcal. Por outro lado, o sociólogo observa
também que a servidão, moderna ou antiga, se efetiva através do trabalho burocrático.
Weber faz uma crítica sutil ao papel do intelectual burocrata na Alemanha que, aliado
ao governo, influiu indiretamente para desestabilizar o parlamentarismo. Esses
intelectuais concebiam o parlamento e a democracia como ameaça para a manutenção
da estabilidade política alemã. A autonomia política foi abolida em favor do governo
pela via burocrática.
Vendendo sua força de trabalho para o Estado, mas separado das decisões
políticas, o burocrata alemão no contexto histórico de Weber se assemelha ao intelectual
brasileiro que participava dos “quadros administrativos” na ditadura Vargas.
Considerando essa semelhança, Helena Bomeny observa o tema da mineiridade que é
traduzido em código utilizado com o intuito de preservar a unidade política do Estado.
76
Palavras como “prudência”, “conciliação”, “unidade de Minas” e “equilíbrio dos
homens públicos” compõem o código da linguagem que faz parte do quadro
administrativo e político mineiro. Para Bomeny, que faz recurso ao conceito de razão
em Weber, a racionalização direcionada a partir dos projetos dos intelectuais mineiros
que se institucionalizaram no Estado Novo toma o lugar de processos espontâneos e
75
WEBER, 1974, p. 32.
76
BOMENY, 1994, p. 180.
49
naturais de organização social: “as regras e procedimentos explícitos, previsíveis,
abstratos e calculados” se estendem nas dimensões da vida social.
Se essa análise sociológica valoriza o projeto modernista, Sérgio Micelli destaca
os aspectos negativos da associação do intelectual moderno ao Estado Novo. Ignorando
o caráter questionador da produção literária modernista, Micelli observa o custo político
gerado pela negociação da obra pessoal dos intelectuais modernos em troca da
participação no trabalho de construção institucional do Estado Novo. Assim como
Weber, Micelli critica a ação do intelectual que compõe os quadros administrativos
públicos, consentindo, até certo ponto, com a restrição dos direitos políticos.
Acrescenta-se, contudo, ao custo político da ascensão dos escritores modernistas, o
custo da restrição do mercado privado de bens culturais à medida que são apadrinhados
pelo Estado brasileiro.
Em “O intelectual modernista revisitado”, Silviano Santiago retoma a crítica de
Micelli que revela a “explicitação de um sabido silenciado”. Santiago se refere à
resistência dos estudos críticos em aceitar os custos político e mercadológico da
produção literária moderna. A insatisfação de alguns teóricos da literatura com a
ausência da reflexão sobre a “biografia” do autor leva Silviano Santiago a propor que os
estudos críticos considerem a produção documental dos escritores modernos nas
análises literárias; contudo, não se trata de retornar “ao positivismo originário da crítica
vida-e-obra”:
Trata-se de buscar textos onde o corpo do próprio autor foi
dramatizado enquanto tal por ele mesmo, enriquecido com essa leitura
extra as leituras que foram feitas dos seus textos ditos ficcionais ou
poéticos. Trata-se ainda, de configurar as aproximações e contradições
ideológicas que se tornam salientes quando o texto da ficção e o texto
da memória são analisados contrastivamente.
77
Silviano Santiago retoma a ideia de corpo ao definir o drama do escritor que se
configura a partir da relação entre os documentos biográficos, as leituras críticas e a
própria obra. Essa noção de autoria que associa drama e corpo se assemelha ao conceito
de biografema. Para Barthes
78
, o escritor (ou o logoteca) funda uma língua ao realizar
operações que “isolam”, “articulam”, “ordenam” e, principalmente, “dramatizam” a
nova língua, constituindo, assim, uma definição semiológica de texto. Barthes define o
autor como uma figura sem unidade ou um “corpo” que se reduz a “pormenores sutis”
77
SANTIAGO, 1989, p. 167.
78
BARTHES, 1971, p. 11-14 passim.
50
que na escrita seriam destinados a algum “corpo futuro”. Os biografemas seriam esses
pormenores ou, seguindo a terminologia lacaniana, “insistências”, constantemente
retomados na escrita que se destina ao leitor.
O teatro é uma metáfora teórica recorrente porque expõe os mecanismos de
enunciação ao defrontar os interlocutores face a face, em planos diversos, na oposição
palco/plateia , conforme se constata em Simmel e Benjamin. Simmel utiliza essa
metáfora para compreender os conflitos da produção de bens culturais na modernidade.
A palavra cultura, que, em sua origem, designa o trabalho do cultivo, é abordada em
Simmel com base na materialização de valores da sociedade que constituem um acervo
de objetos culturais. Para o sociólogo, a introdução da economia monetária e da divisão
social do trabalho na vida moderna dissocia a cultura subjetiva, que é voltada para o
espírito, da cultura objetiva, que materializa os objetos culturais. As esferas da cultura,
separadas pelo dinheiro, assumem uma lógica independente dos indivíduos que as
geraram, indicando o caráter ambíguo do agente dessa separação.
Assim, o dinheiro, que propicia o desenvolvimento individual ao dissociar a
personalidade das transações monetárias, torna-se independente de seu criador que é
dominado e alienado pela economia. Tomado como instrumento, o dinheiro torna a
cultura objetiva mais cultivada à medida que o meio para se conseguir algo, que seria o
próprio dinheiro, é confundido com o fim. Seguindo a concepção marxista de fetiche,
Simmel propõe que a autonomia dos bens culturais subjetivos e objetivos leva os
sujeitos a não se reconhecerem nas suas criações. Configura-se, assim, a “tragédia
moderna” que, na definição de Simmel, compõe o conflito do sujeito que não se
reconhece nos objetos culturais que produz.
Entretanto, para Walter Benjamin a concepção clássica da tragédia grega não se
aplica à definição do drama barroco.
79
Na tragédia grega, que interpela e justifica o
espectador, o palco é um topos cósmico que “lembra um vale solitário na montanha”.
No drama barroco, que produz no espectador a emoção do luto, o palco é móvel: “suas
tábuas representam metaforicamente a terra como um cenário criado para o espetáculo
da história: ele peregrina como a corte, de cidade em cidade.”
80
Benjamin concebe o
79
Marc Sagnol observa que a oposição benjaminiana entre o Trauerspiel e a tragédia retoma a distinção
entre o trágico antigo e o “triste” da modernidade romântica, presente na filosofia alemã após Hegel.
Para Sagnol, esses dois termos aparecem regularmente juntos, exprimindo uma diferença de graus em
Hegel e Simmel, de natureza, em Nietzsche e Ziegler, e, enfim, uma relação de polaridade, em
Benjamin (SAGNOL, 2003, p. 14).
80
BENJAMIN, 1984, p. 143.
51
tempo e a história em sua relação com o espaço fazendo recurso às alegorias barroca e
moderna.
A alegoria barroca tem uma significação histórica tendo vem vista que, pelo uso
da linguagem literal, essa figura remete a linguagem a outro nível em que todas as
significações são unificadas na história. Opondo-se ao tempo linear do Iluminismo, para
Benjamin a alegoria constitui um “verdadeiro declínio”, porque é composta por
fragmentos ou ruínas do “passado oprimido” que são extraídos do continuum da história
para atingir o presente. Nessa perspectiva, a transitoriedade da história se delineia no
rosto da natureza, configurando “a fisionomia alegórica, posta no palco pelo drama”,
que “só está verdadeiramente presente como ruína sob essa forma.”
81
A concepção
histórica do drama transpõe “dados inicialmente temporais para uma simultaneidade
espacial”. Para Benjamin, a secularização da história no teatro é semelhante à
descoberta do cálculo infinitesimal na ciência exata: “Nos dois casos o movimento
temporal é captado e analisado em uma imagem espacial. A imagem do palco, ou mais
exatamente, da corte, se transforma na chave para a compreensão da história.”
82
Em “Sobre o conceito de história” e Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo, Benjamin retoma o tempo e o espaço nas perspectivas materiais e históricas
desses conceitos, seguindo um viés marxista que se associa à psicanálise. Os fragmentos
que compõem a alegoria moderna são retirados e materializados nos objetos ou bens
culturais da sociedade de consumo como imagens dialéticas. Segundo Benjamin, a
tarefa do historiador no século XX seria interpretar essas imagens para dissolver-lhes o
fascínio. Assim como Simmel, o filósofo se aproxima do conceito marxista de fetiche
da mercadoria ao perceber a expressão cultural da economia nas formas histórico-
concretas e ao definir quais são os objetos culturais que materializam essa questão.
83
A proposta teórica de Walter Benjamin contribui para Silviano Santiago associar o
estudo dos documentos biográficos de escritores modernos à concepção do drama
barroco que se configura a partir das categorias de tempo, espaço e história. Além disso,
Santiago relaciona o drama biográfico à figura do leitor, seguindo Barthes, uma vez que
a escrita memorialística realiza a “operação” de dramatizar os biografemas,
81
BENJAMIN, 1984, p. 39-40.
82
Ibidem, p. 115.
83
Cf. comentário de Rolf Tiedemann sobre o materialismo em Walter Benjamin, que, em As passagens,
faz recurso à definição de fetiche da mercadoria em Marx e à montagem surrealista (TIEDEMANN,
2006, p. 22-23).
52
configurando “o corpo do escritor” nos textos autobiográfico ou romanesco com o
objetivo de atingir ao público leitor.
Seguindo essa concepção de drama, o narrador Belmiro retoma a figura
paradigmática do intelectual moderno, conforme indicam as críticas de Santiago e
Souza. Os documentos e objetos do autor empírico materializam a relação que se produz
na linguagem entre as categorias do tempo e do espaço. A partir daí, os críticos
levantam questões teóricas no campo da autoria, não com o intuito de estabelecer a
unicidade entre as figuras do autor e do narrador. Ao contrário, esses estudos críticos
partem da observação de um sujeito fragmentado que se apresenta tanto nos documentos
biográficos, como na ficção.
A materialidade dos documentos biográficos (as correspondências entre escritores,
por exemplo) com o timbre dos órgãos do Estado, indica qual foi o sustentáculo
financeiro que permitiu aos autores modernos efetivarem a sua produção literária. O
contraste entre o romance de Cyro dos Anjos e seu arquivo literário complementa os
estudos críticos que identificam o pacto fantasmático na figura do narrador-funcionário
público sem focalizar, entretanto, a produção documental do autor empírico; ou, ainda,
restritos ao estudo comparativo de textos literários que apresentam esse tipo de
narrador. O tempo-espaço é configurado nos documentos, objetos biográficos e nas
fantasmagorias do romance de Cyro dos Anjos a partir do lugar de enunciação do
intelectual moderno no Estado Novo.
Max Weber concebe o Estado a partir dos significados históricos que os agentes
sociais atribuem aos conceitos de “máquina” e “empresa capitalista”. Complementando
a ênfase de Weber à figura do burocrata, a modernidade em Simmel acrescenta a
possibilidade de se analisar a separação entre o sujeito e a cultura por ele produzida no
romance de Cyro dos Anjos. É possível perceber que as relações de trabalho e amizade,
no plano ficcional, entre os personagens, ou biográfico, dos intelectuais modernos,
retomam o conflito do sujeito que não se reconhece no trabalho que produz. No
romance de Cyro dos Anjos, as profissões de Belmiro e Redelvim (amanuense e
jornalista), o interesse de ambos pela escrita memorialística, as discussões políticas do
narrador com o personagem retomam os conflitos culturais da modernidade. A
separação entre o sujeito e a cultura por ele produzida destaca a influência da divisão
social do trabalho nas esferas subjetiva e objetiva da cultura. A profissão de Belmiro
Borba constitui uma fantasmagoria que retoma, sob uma perspectiva “econômica”, a
figura do autor empírico e de outros intelectuais modernos.
53
A alegoria em Walter Benjamin permite compor uma imagem não linear da
história que contribui para observar como os elementos biográficos são incorporados de
forma fragmentada e em suas características contraditórias no romance. Walter Moser
observa o campo semântico do adjetivo “tardio” (Spätzeit, em alemão), que abarca os
sentidos de “perda”, “decadência”, “esgotamento” e “posterioridade”. Moser relaciona o
sentido do tardio, como “decadência”, à alegoria em Walter Benjamin. Para Moser, “o
processo da história encontrará na alegoria seu modo de representação mais adequado: a
ruína, a coisa decaída torna-se a alegoria por excelência do ser histórico do homem.”
84
Os sentidos do Spätzeit retomados na alegoria de Benjamin permitem associar a
modernidade ao tardio numa concepção positiva tendo em vista que o fragmento passa a
compor outro objeto cultural.
A figura do funcionário público incorpora o conflito moderno que se configura a
partir da interferência da divisão social do trabalho nas esferas culturais. Contudo, a
origem familiar de Belmiro Borba e as retomadas do espaço e dos personagens da vila
na cidade permitem observar a presença do “tardio” como um elemento de composição
do moderno que se apresenta sintetizado na figura ambígua do amanuense. A
modernidade se associa à noção positiva do “tardio” já que o novo se constitui a partir
de fragmentos ou retomadas da tradição. O comentário de Cyro dos Anjos sobre a sua
inserção no Modernismo retoma o conceito de tardio:
Fui modernista retardatário porque eu tinha uma formação mais
clássica: leituras de Machado de Assis, de Anatole France, dos
clássicos franceses. Mas, ao surgir o Movimento Modernista de 22,
fiquei fascinado pela poesia de Drummond; pela poesia e pela prosa,
porque ele é um grande prosador. Ficamos amigos em 1928; eu entrei
no Modernismo quando ele já estava saindo da moda: já havia passado
aquele ímpeto modernista, eu fui da undécima hora...
85
Nessa entrevista, Cyro dos Anjos faz uma “autocrítica” em tom retórico uma vez
que a justificativa para se considerar um modernista “retardatário” é a sua “formação
mais clássica”. Ao avaliar suas influências literárias, questionando a classificação da sua
obra como moderna, insere seu romance nos cânones nacional e francês. Sua escrita,
que se efetiva numa fase posterior ao ímpeto modernista, recupera e transforma a
tradição da literatura francesa e o estilo machadiano.
84
MOSER, 1999, p. 344.
85
ANJOS, 1991, p. 23.
54
O sentido fraterno da amizade é revisto por Silviano Santiago que percebe suas
contradições no campo profissional dos intelectuais modernos que participaram dos
quadros administrativos do Estado Novo, perpetuando a tradição da ideologia do favor.
86
No comentário de Cyro dos Anjos, a “amizade” com Drummond indica que a adesão
ao Modernismo se efetiva através das possibilidades dos escritores se encontrarem,
discutirem suas experiências estéticas e a viabilidade de projetos literários. Cyro dos
Anjos conheceu Drummond na redação do Diário de Minas, onde trabalhavam
respectivamente, como redator e redator-chefe do jornal.
O Diário de Minas, que se iniciou independente em 1899, fazia oposição ao
governo estadual de Silviano Brandão. Vendido ao Partido Republicano, o jornal se
torna órgão oficial para, com a continuidade do PRM no poder, tornar-se também “um
órgão oficioso do Palácio da Liberdade.”
87
É no Estado que os escritores modernos,
trabalhando como funcionários públicos ou jornalistas, conseguem efetivar sua
produção literária. Por outro lado, esse espaço gera a contradição e o consequente mal-
estar dos escritores que, apesar de apresentarem uma produção literária que se contrapõe
à ditadura estadonovista, participavam de seus cargos públicos.
A modernidade em Cyro dos Anjos pode ser definida a partir da significação
positiva de “tardio”. O objetivo inicial de Belmiro seria resgatar integralmente o
passado provinciano que, contudo, retorna nas suas memórias a partir de fragmentos
mesclados ao cotidiano do amanuense em Belo Horizonte. Constitui-se, assim, o
paradoxo do intelectual moderno na figura do narrador que se desdobra em antinomias
como tradição e inovação, cultura popular e erudita, urbanização e provincianismo,
escrita literária e serviço público. Se, por um lado, o romance segue o pacto de leitura
romanesco, que diferencia o autor empírico do narrador, por outro, apresenta implícito o
objetivo autobiográfico,
88
dado que a voz narrativa oscila e mescla os binarismos
citados.
Esse “atraso” de Cyro dos Anjos em relação aos escritores modernistas permitiu
que a sua escrita apresentasse uma imagem mais complexa da figura do narrador como
funcionário público. Se considerarmos a posterioridade dessa escrita em relação aos
escritores modernos, a figura do amanuense permite uma reflexão mais global sobre o
86
SANTIAGO, 2002, p. 215.
87
WERNECK, 1992, p. 19.
88
CANDIDO, 1987, p. 35.
55
contexto histórico e literário, configurando uma abordagem positiva do conceito de
tardio.
3. 3. Ficção burocrática
No “Ano-bom” de 1937, Belmiro caminha pela cidade, procura o bonde e pensa
na amiga Jandira. Ao ouvir o cego tocando valsas na sanfona, o narrador se perde no
tempo e no espaço urbano. Os passos do narrador o levavam, “não para o presente e
para o quotidiano, mas para tempos mortos.”
89
No centro de Belo Horizonte, a rua
Guajajaras se torna a Ladeira da Conceição de Vila Caraíbas. A “memória musical”,
seguindo o mecanismo da memória involuntária, faz Belmiro se recordar do outro
sanfonista, que não era cego, mas que tocava na ladeira da vila sem pedir esmolas,
apenas “por amor à arte” ou “para chorar mágoas.”
O sanfonista da vila, que não utiliza a música como meio de sobrevivência, ainda
a toma no seu caráter “sagrado” de obra de arte. Por outro lado, o dinheiro dos
passantes, que paga a música do sanfonista urbano, é definido como “esmola”,
associando a ideia de caridade ao campo semântico da economia. Se a visão é um dos
sentidos que caracteriza o sanfonista da vila, preso à concepção romântica da arte pela
arte, para o músico da cidade, a sua falta gera uma situação na qual a percepção da arte
como objeto de valor econômico sofre a interferência da caridade.
Para Belmiro, o sanfonista da vila extraía, de motivos individuais, melodias que se
ajustavam às “necessidades” dos circunstantes, traduzindo seus sentimentos em frases
musicais. O músico urbano não teria a mesma eficiência, mas, segundo o narrador, sua
música o faz recordar da Ladeira da Conceição por onde Camila, sua primeira namorada
da vila, costumava passar com um bando alegre. Belmiro compara os músicos e conclui
que a melodia da vila apresenta um sentido mais lírico, voltado para as individualidades
dos ouvintes, enquanto a melodia urbana é fraca na forma, mas seu mérito é interligar,
no processo da memória involuntária ou, na definição do narrador, “memória musical”,
o tempo passado ao presente.
Essas reflexões que estabelecem os conceitos de arte e de artista a partir da
valorização da estética romântica, são seguidas pelo contraste de duas personagens
femininas. Ao se desviar do presente, o narrador contrasta a “realidade de Jandira” com
89
ANJOS, 1937, p. 27.
56
“sombra de Camila”, que o reconduz “às estradas de Vila Caraíbas”. Camila é
recuperada pela memória como fantasmagoria do passado na terra natal, enquanto
Jandira faz parte do presente urbano do narrador. As comparações dos sanfonistas e das
personagens femininas constituem exemplos ou justificativas para a definição do
conflito espaço-temporal de Belmiro:
Pus-me a pensar no permanente conflito que há em mim no domínio
do tempo. Se, a cada instante, mergulho no passado e nele procuro
uma compensação, as secretas forças da vida trazem-me de novo à
tona e encontram meios de entreter-me com as insignificâncias do
quotidiano. Pelo oposto, é comum que, quando o atual me reclama a
energia ou pensamento, estes se diluam e o espírito se desvie para
outras paisagens, nelas buscando abrigo. Tais solicitações contrárias,
em luta constante, levam-me às vezes a tão subitâneas mudanças de
plano que minha vida, na realidade, se processa em arrancos e fugas,
intermináveis e sucessivos, tornando-se inquietante ficção que se
confunde no tempo e espaço.
90
Em “Outros espaços”, Michel Foucault observa que a modernidade privilegia o
tempo e a história nos campos teórico e literário em detrimento da categoria do espaço.
A definição do conflito em Cyro dos Anjos indica que o narrador apresenta uma
perspectiva positiva do tempo, centrado no cotidiano de Belo Horizonte. Contudo, essa
definição, de cunho estético, é indissociável da categoria do espaço, assim como propõe
o estudo do tempo físico na teoria da relatividade em oposição ao tempo absoluto e
universal da teoria newtoniana.
91
No início do parágrafo, o narrador comenta o momento em que volta ao passado
para, em seguida, retornar às “insignificâncias do presente” fazendo recurso às noções
espaciais de fundo e superfície; ou, ao contrário, o presente diluído conduz Belmiro ao
espaço definido como “paisagem”. O conflito se inicia quando o narrador se sente
“solicitado” a mudar a perspectiva de observação dos espaços e acontecimentos que
recobrem suas memórias. Ocorre, assim, a partir da noção de espaço, uma mudança
brusca de “planos” que, associada à oscilação temporal, produz o efeito de imaginário
na escrita “autobiográfica” de Belmiro.
A relação entre as categorias de tempo e espaço é abordada por vários teóricos
com o objetivo de estabelecer critérios formais que delimitem e definam as
características linguísticas dos gêneros autobiográficos. Para Maurice Blanchot, o
diarista deveria assinar um “pacto” que pressupõe o respeito ao calendário como um
90
ANJOS, 1937, p. 26-27.
91
EINSTEIN; INFELD, 1946, p. 41.
57
“demônio, inspirador, compositor, provocador e guarda” do diário. O tempo no diário
íntimo também é compreendido pelo teórico francês como uma dupla nulidade ou
“meditação do zero sobre si próprio”, como afirmava Amiel, já que ao se realizar o “ato
de escrever”, não se realiza o ato de viver ou, ao contrário, ao se viver, não se escreve.
92
Assim como Elizabeth Bruss, Beatrice Didier propõe que se substitua a noção de
pacto pela de ato autobiográfico, já que o contrato de leitura não é suficiente para
diferenciar o diário íntimo da autobiografia. O objetivo de Didier é observar o
funcionamento da escritura do diário íntimo que apresenta características semelhantes a
outros gêneros como o romance autobiográfico, o ensaio e o auto-retrato.
93
Para
Didier, a palavra “journal”, que engloba a ideia de tempo gasto com a disciplina de se
escrever no dia-a-dia, seria mais aceita pela crítica literária do que a palavra “intime”,
que retoma as oposições exterior e interior, público e privado. Propondo uma
perspectiva heterogênea na abordagem teórica do diário íntimo, a autora enfatiza a
necessidade de se analisar o funcionamento temporal e espacial do “eu”, o mecanismo
da escritura e a presença do “outro” na escrita.
Para Cinthia Gannett, os termos jornal e diário, que têm origem no latim, referem-
se a dia de trabalho, dia de viagem ou entrada diária de informação.
94
O termo jornal,
que vem do antigo francês journal, é originário da palavra em latim diurnal, que
significa “de ou pertencente ao dia”. Os primeiros usos da palavra journal datam da
metade dos séculos XIV e XV para se referir no comércio à lista diária onde se
registram os créditos e os débitos, às notas de viagem e aos “serviços religiosos”.
Gannett conclui que “desde o momento de sua cunhagem, o termo diário parece estar
próximo de um sinônimo exato para jornal, representando uma recordação diária de
eventos, ambos públicos e privados.”
95
O campo semântico dos termos “diário” e
“jornal” engloba itens como tempo, dia, cotidiano e jornada, que caracterizam também a
temporalidade fragmentária no diário e o imediatismo do tempo no jornal impresso.
O capítulo “Os acontecimentos conduzem os homens” pode ser considerado
metalingüístico, uma vez que o narrador faz uma análise da variação de gêneros textuais
na sua escrita. Esse título indica que, na perspectiva de Belmiro, a heterogeneidade da
escrita depende da dimensão temporal dos acontecimentos. Embora O amanuense
Belmiro apresente a voz do narrador fragmentada, com um tom intimista, confessional,
92
BLANCHOT, 1984, 195 p.
93
DIDIER, 1976, p. 7-8.
94
GANNETT, 1992, p. 105-106.
95
GANNETT, loc. cit.
58
outros gêneros interferem na constituição da escrita. Belmiro define o suporte de sua
escrita como “livro de memórias”, “livro sentimental” e “diário” partindo da
característica intimista da sua escrita. Por outro lado, o narrador usa a definição
“romance”, nas variações “trágico”, “cômico” e “sem sentido”, que se opõe à noção
referencial dos gêneros autobiográficos. Para o narrador, os fatos consumados são
acrescidos de “acessórios” que, num “plano especial”, tornam-se romance. Por último, o
termo “bloco de notas” indica qual é o suporte da escrita “intimista” que se mescla à
burocrática ao se apropriar do papel timbrado da Seção de Fomento.
A variação de gêneros permite questionar a oposição entre público e privado nos
textos de cunho autobiográfico ou memorialista, considerando que o narrador cita
gêneros destinados à publicação, além de projetar no seu texto diferentes tipos de
leitores. Ao se desculpar pelo tom íntimo, o narrador projeta um horizonte de sentido
para a recepção que defende uma narrativa objetiva, como seria a do romance social.
Belmiro configura, assim, um ato de linguagem performativo que justifica
antecipadamente ao leitor o uso do discurso íntimo e a suposta ausência da abordagem
social nas suas memórias.
O amanuense retoma constantemente o conceito negativo de espaço como se
percebe na frase dirigida ao leitor: “as coisas não estão no espaço, leitor; as coisas estão
é no tempo”. Essa concepção negativa de espaço se aproxima das concepções de tempo,
espaço e memória em Bergson e Proust. Para Benjamin, “a memória pura da teoria
bergsoniana”, que se associa à experiência do tempo (duração), é definida em Proust
como “memória involuntária”, que se constitui como um ato contínuo.
Proust confronta a memória involuntária com a voluntária, “sujeita à tutela do
intelecto”.
96
Na memória involuntária, o passado retorna a memória do narrador através
de um objeto material qualquer, que se encontra “fora do âmbito da inteligência e de seu
campo de ação.” A experiência do tempo na duração se restringe à memória pura do
escritor, que é “o sujeito adequado dessa experiência”. Contudo, Proust procura
produzir artificialmente a experiência de Bergson a partir da memória involuntária. Em
Bergson, a memória pura toma o tempo como experiência interior, enquanto que, em
Proust, com a memória involuntária, o indivíduo compõe “uma imagem de si mesmo” a
partir de um objeto externo.
96
BENJAMIN, 1989, p. 106.
59
Se há fragmentos do passado em figuras urbanas no romance de Cyro dos Anjos, o
objeto perdido retorna em um novo objeto que se configura a partir do uso das
concepções de memória em Proust, no mecanismo da memória involuntária, e da
memória imaginária de Georges Duhamel. Belmiro associa a memória involuntária ao
tempo como duração interior na sua concepção de tempo-espaço. A materialidade dos
espaços e objetos no contexto da vila não é recuperada integralmente pela memória
involuntária, mas faz parte de uma duração interior que recupera o passado em
fragmentos. Outros objetos e espaços da cidade despertam a memória involuntária do
amanuense que constata o caráter melancólico do retorno ao passado.
Belmiro se posiciona em planos opostos, ora como “espectador”, ora como “ator
principal” dos eventos que se desdobram na cidade. Essa alternância de espaços
interfere na sua concepção de gênero autobiográfico uma vez que, no momento da
escrita, o autobiógrafo se distância dos acontecimentos cotidianos. A performance do
“ato de escrita” se realiza no espaço do escritório, que não se restringe a casa da rua Erê.
O termo “escritório” define um espaço comum que pertence às arquiteturas da casa e da
Seção de Fomento no serviço público.
Conservando a memória dos rituais da família, a rua Erê constitui um dos espaços
urbanos que preserva as tradições e os conflitos da aristocracia rural, retomados pela
geração que finaliza a linhagem com três irmãos celibatários – Belmiro, Emília e
Francisquinha. Originária de cultos africanos, a palavra Erê nomeia uma entidade
infantil, espírito menor, que nasce quando se faz o seu santo para auxiliar no processo
de iniciação ritual. Eneida Maria de Souza lembra também que o nome da rua é
composto de apenas três letras que indicam a conformidade do amanuense à vida
pequena do bairro Prado. Souza utiliza à metáfora teórica “útero” associando o espaço
da fazenda à gestação e à figura materna para definir o escritório de Belmiro como o
espaço onde a escrita se inicia. Confrontados ao restante da casa, que é habitada pelas
irmãs, o alpendre e o escritório de Belmiro se comunicam com o exterior do imóvel. No
alpendre, Belmiro se posiciona na velha cadeira austríaca como espectador dos poucos
“transeuntes” da rua Erê. Belmiro cita a rua vazia na cidade como um dos possíveis
motivos que o faz retornar à Ladeira da Conceição e rever os fantasmas de Vila
Caraíbas.
A casa de Belmiro é vizinha de duas fábricas: a de toalhas, que fica em frente à
casa, e a de sapatos, que fica atrás de um lote vago. Os apitos marcam a rotina do
amanuense nos dias de trabalho das fábricas. Nos domingos, dias santos e feriados, o
60
narrador é assombrado pelo apito fantasma da fábrica, que, na verdade, o condicionou a
despertar no horário de trabalho dos operários. O amanuense não se mostra revoltado
com os apitos da fábrica “real”, tampouco com os da “imaginária”: “Acabado os apitos,
ponho-me de novo a dormir, embalado pela música das máquinas”.
97
O espaço das
fábricas na cidade, em contraste com a casa da família, ainda faz parte da paisagem
urbana, que incorpora o operário na sua população. O apito da fábrica real desperta
Belmiro do sono para que o dia de trabalho na outra “fábrica” – a Seção de Fomento –
possa prosseguir.
A resignação do narrador ao apito da fábrica é momentânea e contraditória se
considerarmos as relações de trabalho na Seção de Fomento. O título do capítulo “O
amanuense amando está” apresenta uma frase com a sintaxe fora da ordem canônica: na
locução verbal, o verbo auxiliar antecede ao principal com a finalidade de compor a
aliteração e a assonância na frase. Os significados das palavras “amanuense” e “amor”
reforçam o efeito rítmico do título. A frase fora da ordem direta não se encaixa no
contexto da Seção de Fomento já que, sob o olhar complacente do chefe de seção,
Belmiro escreve um poema que lhe serve de consolo para a frustração amorosa. O título
do capítulo em verso apresenta um fragmento do poema escrito na Seção de Fomento,
mas que não é transposto nas memórias de Belmiro. É a partir da Seção de Fomento que
Belmiro retrata uma galeria de tipos ou personagens burocráticos.
Na sua maioria, há os burocratas revoltados, que gostariam de ter seguido outras
profissões. Fazem parte da “burocracia militante e inconformada, recusando-se a pôr o
espírito em função no ofício que lhes parece tão contrário à vocação e preferências.”
98
As vocações frustradas dos burocratas variam em político, bispo, carreira no exército,
nas letras. Existe também o tipo raro de burocrata, que chega à burocracia triunfante,
“que é aquela em que o espírito se integra no Bureau e o homem não é mais do que um
conjunto de fórmulas e praxes, ou melhor, é o próprio processo, em forma hierática e
cabal”.
99
Filgueiras, colega de Belmiro, é o homem processo, totalmente adaptado ao
trabalho burocrático. O rosto de Filgueiras se abre citando fórmulas que fazem parte da
fraseologia burocrática – “saúde e fraternidade”, por exemplo – ou ainda quando franze
as sobrancelhas, ao perceber que as normas foram relaxadas, “seu vulto assume a
97
ANJOS, 1937, p. 125.
98
Ibidem, p. 47.
99
ANJOS, loc. cit.
61
gravidade de um edifício público”. Para Belmiro, essa seriedade expressa no rosto do
colega “todo um sistema de leis fiscais, com multas e penas”.
Se a burocracia constitui um meio que permite atingir à finalidade do burocrata de
expressar a sua subjetividade em situações externas ao trabalho, temos o efeito contrário
em Filgueiras. Na perspectiva de Simmel, a plena adaptação de Filgueiras à burocracia
suprime a sua “subjetividade”: a face impessoal do personagem é descrita a partir da
imagem objetiva e prática do edifício público e da lei. Por outro lado, o chefe de
Belmiro e os funcionários revoltados rompem parcialmente com o trabalho no escritório
na medida em que, mesmo ocupando o tempo no escritório com a escrita personalista, o
tema dos versos do narrador retoma um conflito romântico de ordem burguesa.
O título irônico de outro capítulo, “Seção do Fomento Animal”, define a
burocracia como um lugar “onde os homens esperam pachorrentamente a aposentadoria
e a morte”. Nesse capítulo, o trabalho burocrático faz parte de uma encenação que
simula para os espectadores a suposta importância que o chefe de seção atribui à leitura
do relatório de Belmiro. O colega Glicério também pede para ler o relatório, mas nesse
momento passavam duas pessoas pela seção que serviriam de plateia . O chefe faz uma
“figuração” (como definia Glicério), que impressiona os visitantes, dando ar sigiloso ao
relatório, que seria diretamente entregue ao diretor: “É assunto urgente”. Glicério é
excluído da leitura porque já não namora mais com a filha do chefe de seção. Temos
implicações pessoais que interferem na encenação dos personagens no contexto do
escritório.
De um lado, temos a insatisfação dos “burocratas revoltados”, que não se
reconhecem no trabalho que produzem, de outro, a face do burocrata triunfante, que não
é expressão de um sujeito, mas da própria burocracia. Para o amanuense, que cita a frase
“viva a Seção de Fomento, que me dá o pão e o papel”, a carreira burocrática, seja
resultado de frustrações ou de conformismo, permite a sua sobrevivência e oferece a
matéria-prima para a sua escrita memorialista. Mas, se seguirmos a crítica de Schwarz,
trata-se mesmo da manutenção de privilégios do intelectual moderno procedente de
famílias que pertenceram à aristocracia rural.
Os capítulos que tratam da busca e apreensão do diário de Redelvim pela polícia,
da tentativa de recuperação do material apreendido e da consequente prisão de Belmiro
são analisados por Schwarz, que destaca a configuração de uma situação social no
romance. A pedido de Glicério, o senador Furquim interfere para que o diário seja
devolvido a Redelvim. No diário, não havia nada de comprometedor, mas os papéis
62
avulsos e a correspondência apresentavam indícios de que Redelvim havia promovido a
última greve de operários. Portando essas informações, Glicério avisa ao narrador que
Redelvim seria perseguido pela polícia e, em seguida, preso durante a rápida Revolução
Comunista no Rio.
À procura do amigo, Belmiro acaba na mesma situação: é preso e tem seu diário
apreendido. O episódio da prisão de Belmiro, muito criticado por Roberto Schwarz e
Rubem Braga, trata da prisão política de uma forma amena. No capítulo, o narrador
apenas conversa com os presos sobre as supostas “gírias” de cadeia. Schwarz percebe a
seguinte situação social: preso, Belmiro faz um apelo ao delegado que façam a revista a
sua casa sem perturbar as velhas irmãs se baseando na sua posição social. O apelo tem
como argumentos o fato de o narrador morar numa casa respeitável, ser conhecido da
polícia, trabalhar como funcionário público, ter no seu círculo de relações o bacharel
Glicério, além da imprescindível certeza de que não fez nada.
É possível associar a dominação de tipo burocrático em Max Weber, que identifica
o burocrata como elo mediador entre dominantes e dominados, à função “privilegiada”
de Belmiro nos episódios referentes às prisões e às apreensões dos diários. O escritório
burocrático é espaço comum ao amanuense e a Glicério, sendo que o último frequenta
as rodas sociais de Belo Horizonte. A partir do círculo de relações da Seção de
Fomento, Belmiro procura resolver o problema do amigo Redelvim, mesmo que a
consequência imediata seja a prisão de ambos.
Opondo-se à teoria de Belmiro, que defenderia um igualitarismo dissolvente,
Schwarz
100
não aceita o ângulo de visão do narrador, que afirma ver “criaturas” que
sentem e pensam “onde os outros veem unidades mecânicas de massa ou abstrações
econômicas.”
101
Contudo, essa não é a única opinião do narrador sobre o tema da
economia. As reflexões de Belmiro não se fixam em um ponto de vista único, como se
percebe no trecho que retoma o tema da economia sob outro viés: “Há, sem dúvida, uma
trama secreta que, encandeando os acontecimentos, envolve uma química, uma física e
uma economia social extremamente sutis para que a ciência humana possa penetrá-
la.”
102
O narrador reconhece que a Seção de Fomento apresenta uma encenação do
trabalho burocrático. É a partir de um “requerimento de férias”, sugerido pelo chefe de
seção ao amanuense em crise, que se percebe, entre parênteses, a concepção de trabalho
100
SCHWARZ, 1966, p. 168.
101
ANJOS, 1937, p. 84-85.
102
Ibidem, p. 41.
63
burocrático do narrador: “(Na verdade nunca tivemos serviço, e jamais conheci ficção
burocrática mais perfeita que a ‘Seção do Fomento’...)”
103
O relatório que o amanuense
entrega ao chefe da seção constitui um exemplo da escrita objetiva no serviço público
que teria a finalidade de atingir o real, porém, configura uma encenação. Na perspectiva
do narrador, a escrita burocrática compõe uma ficção que não produz efeitos no plano
real, mas torna-se talvez um instrumento de propaganda do trabalho no Estado para os
espectadores – os visitantes da seção.
Da mesma forma, a estética romântica dos versos escritos na Seção de Fomento e
a própria escrita autobiográfica no suporte do papel timbrado retomam os conflitos
materiais do amanuense celibatário. Se, no primeiro trecho, Belmiro se opõe à visão de
abstrações econômicas nos seres, no segundo, o narrador afirma que os conflitos
gerados pela esfera econômica, além da física e da química, se associam às “leis que
regulam a circulação dos homens”, interferindo, assim, na composição da trama de suas
memórias. Ao longo do romance se percebe que a esfera econômica não se restringe à
questão política no trabalho, mas influencia as situações que parecem se restringir ao
sentimento ou pensamento dos personagens.
Belmiro escreve no escritório da rua Erê, que funciona como um espaço paralelo à
Seção de Fomento. A “máquina doméstica”, como define Belmiro, é comanda pela
irmã Emília, que retoma a atmosfera moral da fazenda. No âmbito doméstico, os
acontecimentos cotidianos interferem no ritmo da escrita ou lhe servem de tema. O
amanuense inicia alguns capítulos se desculpando pelos acontecimentos que
interromperam a escrita autobiográfica como as doenças das irmãs, a fuga do filho de
Giovanni, ou nos acontecimentos que ultrapassam a rotina familiar, como a festa
carnavalesca e os encontros com os amigos. Essas interrupções separam o tempo
passado, que pertenceu ao plano da experiência, da realização da própria escrita
autobiográfica, que se configura no presente da enunciação como um ato performativo.
No decorrer da narrativa, os acontecimentos que geram interrupções constituem novos
temas que são retomados na escrita, tecendo a sequência do romance.
A heterogeneidade das categorias de tempo e espaço produz efeitos de sentido que
interferem na noção de limite entre real e fictício, compondo o conflito do amanuense.
Além dos temas modernos no romance, que retomam o contexto biográfico de Cyro dos
Anjos, as citações de três poetas fazem parte do discurso literário de escritores que
103
ANJOS, 1937, p. 38.
64
pertenceram à roda de intelectuais belo-horizontinos na década de 1930. O capítulo
“Mundo Mundo”, cujo título foi retirado de um dos versos do “Poema de sete faces”, de
Carlos Drummond, apresenta versos de poetas que não são identificados pelos nomes
próprios.
A primeira citação, que é um trecho do “Poema de sete faces”, foi retirada,
segundo o narrador, do “poeta irônico”. Nos versos “Mundo mundo vasto mundo/ se eu
me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”, o nome próprio no
texto torna o sujeito apenas objeto que compõe o ritmo do poema. Na segunda citação,
o “poeta místico” recita trechos do poema “Interrogação”, de Emílio Moura: “ – Senhor,
são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco?/ Eu tenho as mãos cansadas/ e o
barco voa dentro da noite.” O eu-lírico não sabe se o que o conduz são os remos, que
funcionam como “instrumentos” de navegação, ou as ondas, que representam a
dominação da natureza e do acaso sob o barco. Na palavra “Senhor”, a letra inicial
maiúscula e seu registro de polidez retomam a significação da palavra Deus, além de
delinear um interlocutor tradicional ou uma relação servil entre os interlocutores. Na
terceira citação, “o poeta sem nome” canta o trecho de uma marchinha: “Pirulito que
bate, bate,/ Pirulito que já bateu/ Quem gosta de mim é ela/ Quem gosta dela sou eu...”.
Os versos da marcha, que pertencem ao âmbito da cultura popular, são de autoria
desconhecida. A marcha tematiza a reciprocidade e a realização do amor. Esse encontro
de Belmiro com os poetas acontece no interior de um trem, que é comandado pelo
chefe.
A recepção identifica o nome dos poetas Carlos Drummond e Emílio Moura pelas
obras publicadas, que já fazem parte do cânone nacional, enquanto a marchinha, de
autoria não identificada, pertence à cultura popular.
104
O encontro dos três poetas
numa viagem de trem compõe uma imagem onírica que se constitui a partir de
elementos comuns ao contexto biográfico do autor empírico. As vozes dos três poetas
citados tratam dos efeitos do imaginário que lida com a questão dos limites entre a
escrita e a realidade, além de estabelecerem um indício do pacto fantasmático no
romance de Cyro dos Anjos.
104
Em “A verdade está na rua Erê”, Eneida Maria de Souza identifica a autoria dos textos citados nesse
capítulo do romance, além de fazer referência à cultura popular, caracterizada na figura do poeta sem
nome.
65
Ernesto Laclau
105
propõe que o populismo seja compreendido como um modo de
articulação de conteúdos sociais, políticos ou ideológicos, que se configura a partir da
interação entre cadeias de equivalência e lógicas diferenciais. As diferenças de
“exigências” dos grupos sociais são unificadas pela equivalência, que constitui um
modo privado de articulação no populismo. O sonho do narrador articula três figuras
que aparentam uma relação de equivalência: o poeta irônico, o poeta místico e o poeta
sem nome expressam conteúdos líricos em seus versos. Cada poeta tem sua voz
respeitada no discurso citado pelo narrador, entretanto, o sonho se encerra com a
reunião do grupo em uma roda que canta apenas os versos do poeta irônico
(Drummond): “Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é o meu coração.” A
equivalência dos poetas apresenta uma diferenciação lógica na medida em que os versos
do poeta irônico se sobrepõem aos demais. Da mesma forma, a roda se diferencia do
chefe-do-trem que simboliza o comando nesse espaço móvel. Ao mesmo tempo, o chefe
acompanha o recital com o “grande trombone”, um instrumento musical que sugere a
força do comandante do trem.
A personagem Emília, que simboliza o poder já desgastado da aristocracia rural,
desperta Belmiro do sonho com os poetas. Para o narrador, o sonho seria interpretado
como literário, se estivesse fora dele. Nesse sentido, é possível observar a posição
ambígua do narrador, que se projeta fora da literatura, mas, no sonho, se posiciona no
centro da roda. O amanuense participa da dominação de tipo burocrático, ou seja, está
no centro, contudo, nessa posição, não participa do movimento circular e do canto da
roda.
Ao incorporar o “poeta sem nome” à roda, Cyro dos Anjos delineia as tensões do
conceito de populismo na autobiografia do amanuense. O autor mineiro não usa o nome
próprio dos poetas irônico (Drummond) e místico (Moura) no texto como uma forma de
identificação dos autores no discurso citado, abordando, assim, a autoria no texto
literário como uma função discursiva. Se, por um lado, o leitor reconhece a autoria das
citações porque esses poetas fizeram parte dos meios de divulgação da cultura letrada,
por outro, não identifica a autoria nos versos do “poeta sem nome”, que faz parte da
cultura popular.
Na perspectiva de Laclau, populismo significa “questionar a ordem institucional
por meio da construção de um vencido como agente histórico”, articulando as noções de
105
LACLAU, 2003, p. 16.
66
equivalência e diferença. Ao incorporar o poeta sem nome à roda, o narrador abre
espaço para a cultura popular, mas, mostra também que existe uma “diferença” da
cultura erudita definida a partir do local de enunciação dos interlocutores e da
preponderância do discurso literário no fim da cena. Da mesma forma, quem aciona a
memória involuntária de Belmiro é a música do sanfonista popular, elemento comum
aos espaços rural e urbano. A partir daí, percebe-se a tentativa do autor de construir um
conceito de populismo na sua narrativa.
Os escritores modernos, que ocuparam cargos públicos, atuaram como elo
mediador entre dominantes e dominados. Ocupar essa posição significa também
estabelecer uma hierarquia e distinção cultural, que retoma os antagonismos das classes
sociais. Os três poetas, o narrador e o sanfonista encenam o conflito cultural que associa
e confronta as esferas política, econômica e estética aos afetos dos personagens na
composição das categorias de tempo e espaço dessa autobiografia fictícia.
4. CARNAVAL EM BELO HORIZONTE
As situações vivenciadas na família ou no grupo de amigos, os acontecimentos da
cidade e o trabalho na Seção de Fomento pertencem ao cotidiano de Belmiro, que
retoma em fragmentos os conflitos materiais e afetivos gerados pela decadência da
fazenda e pelo consequente deslocamento da família para o espaço urbano. A transição
entre esses espaços e a falência da aristocracia rural compõem a biografia dos escritores
modernos, que replicam esses conflitos de forma fragmentada na escrita literária.
Antonio Candido identifica elementos biográficos em O amanuense Belmiro ao
compará-lo à biografia História da família Versiani, de Rui dos Anjos. O estudo de
Candido se complementa com as hipóteses de leitura da recepção que interpreta o pacto
fantasmático do romance a partir de teorias que usam o conceito de arquivo.
Os documentos usados na biografia indicam a interferência da dominação
burocrática na consolidação da aristocracia rural. Essa biografia é revista considerando
a concepção de arquivo em Jacques Derrida, associada ao conceito de dominação
burocrática em Max Weber. Seguindo a leitura de Antonio Candido, a segunda parte
desse capítulo revê o tema da família abordado pela recepção acadêmica, que identifica
67
os conflitos da genealogia de Belmiro a partir do conceito de arquivo. Na terceira parte,
as categorias de tempo e espaço são analisadas utilizando concepções de história,
narrativa, tempo e espaço em Walter Benjamin. A influência dessas categorias na
organização dos capítulos e na caracterização das personagens permite identificar como
Cyro dos Anjos compõe o conflito do intelectual moderno na escrita “autobiográfica” de
Belmiro Borba.
4. 1. Uma crônica familiar
Em “Apostilas ao Amanuense”, Antonio Candido observa que o romance de Cyro
dos Anjos apresenta elementos biográficos comuns ao livro História da família
Versiani, de Rui Veloso Versiani dos Anjos (um de seus descendentes). Divulgado
apenas no meio familiar, essa biografia mostra a preocupação dos descendentes de
manterem a memória do prestígio e do poder que a família Versiani representou no
Norte de Minas. Candido estabelece o espaço autobiográfico de leitura ao contrastar as
figuras dessa biografia familiar aos personagens que compõem a família de Belmiro no
romance.
Em Mal de arquivo, Jacques Derrida propõe que se observe a psicanálise
freudiana a partir dos conceitos de arquivo, arqueológico e escavação. Nessa
perspectiva, a memória se exterioriza como arquivo, tomando várias formas, como a da
dedicatória de um livro, que foi passado de geração a geração, a de uma marca no
corpo, que constitui o signo de uma cultura, ou até mesmo de um modelo técnico de
memória. Incorporando os conceitos da psicanálise, Derrida define as pulsões e os
princípios que interferem na constituição do arquivo.
106
O princípio ontológico ou histórico indica qual é a origem do arquivo e o princípio
nomológico institui a ordem e a lei que rege o material arquivado. O princípio arcôntico
complementa os anteriores ao definir os critérios de seleção e consignação dos signos
no arquivo. A família ou Estado assumem a posição de arconte, que é a figura
responsável pela guarda dos arquivos. O arquivo se localiza numa “domiciliação” que
pode se transferir do domínio particular para o público. A partir da pulsão de morte,
Derrida define o mal de arquivo, que é marcado pela pulsão de destruição ou perda do
arquivo, que depende também da própria pulsão de arquivo ou conservação.
106
Cf. DERRIDA, 2001, p. 11-16.
68
Como que seguindo os princípios nomológico e arcôntico, Rui dos Anjos
estabelece critérios de seleção e consignação dos documentos a partir do tema da
economia ao afirmar que a crônica da família talvez interessasse mais aos historiadores
que a relacionassem à história do desenvolvimento econômico do Norte de Minas.
Ainda, segundo o biógrafo, o propósito dessa publicação seria permitir que uma família
numerosa, tivesse “o melhor conhecimento de seus antepassados.”
107
A partir daí, Rui
dos Anjos torna sua biografia um monumento referente à história dos Versiani.
Na função de arconte, o biógrafo buscava documentos em arquivos públicos ou
particulares (colecionadores e familiares) que apresentassem informações sobre os
antepassados dos Versiani. Ao mesmo tempo em que transforma cada familiar num
arconte (incluindo Cyro dos Anjos), ao assumir a autoria do livro põe-se como arconte
da biografia, na função discursiva de biógrafo. Da mesma forma, o arconte pode
exercer papel essencial na constituição do arquivo, sem assumir a autoria. Trata-se da
patrocinadora da publicação, Antonieta Versiani dos Anjos Veloso, que indicia a
ruptura do poder patriarcal já que temos uma financiadora para a obra. Por outro lado,
na quarta capa o Estado reproduz sua marca tipográfica na biografia, informando que o
livro foi publicado na Imprensa Oficial de Minas Gerais.
108
Para Antonio Candido, a História da família Versiani é “um auxiliar preciso de
exegese literária” no estudo do romance de Cyro dos Anjos. Rui dos Anjos consultou
arquivos públicos e particulares que se compõem de textos publicados, dos documentos
da Real Extração de Diamantes, das plantas e desenhos da fazenda, da descrição da
genealogia e dos documentos do inventário da família. A reunião de documentos
dispersos numa crônica familiar procura reproduzir, de forma artificial, a memória da
família.
O auge da fazenda de Santo Elói é abordado nos livros Viagens pelas províncias
de Rio de Janeiro e Minas Gerais (1817), do naturalista francês Saint-Hilaire, e Travels
in the interior of Brazil¸ de George Gardner. A decadência da fazenda é um dos temas
da série de artigos intitulada “Notas de um curioso” que o advogado e sociólogo
Herculino de Sousa publicou em 1918 no Jornal de Montes Claros. Saint-Hilaire
descreve a paisagem e clima, as plantas e os animais, os produtos agrícolas e a atividade
comercial da fazenda. No interior do casarão, Saint-Hilaire percebe a ausência de
tapeçarias, secretárias, cômodas e armários, que se associariam ao interior europeu
107
ANJOS, 1944, p. 55.
108
Cf. capa e contracapa da História da família Versiani nas FIGs. 2 e 3 do anexo.
69
retomado em outros objetos da fazenda, como a baixela e bacia de prata, a renda nas
toalhas, nos lençóis e travesseiros.
George Gardner aborda os mesmos pontos que Sainte-Hilaire, porém, destaca as
atividades econômicas da fazenda e o conhecimento médico do Coronel Pedro Versiani.
A crônica registra a crítica do coronel aos comentários de Sainte-Hilaire referentes à
matriarca da família. Na interpretação do naturalista francês, a dona da casa aparecia
apenas como um “vulto” aos viajantes por uma imposição patriarcal às mulheres que,
nessa região, tinham “escassa liberdade.” Opondo-se a Sainte-Hilaire, George Gardner
afirma que viu a senhora todas as vezes que esteve na casa. Todavia, Gardner constata a
continuidade dos hábitos familiares nas fazendas ao comparar a nova postura da mãe,
passados 23 anos da visita de Sainte-Hilaire, com a das filhas jovens: “Tinha,
entretanto, diversas filhas crescidas, e não menos tímidas que a mãe, nos dias de sua
mocidade.”
109
Além dos relatos europeus, os moradores das cidades vizinhas citam a fazenda
como ponto de parada obrigatória para os viajantes do sertão. Herculino de Sousa sofre
os efeitos desse imaginário que lhe desperta o interesse em conhecer a opulência da
fazenda. Rui dos Anjos identifica a escrita romanesca nos artigos de Herculino de Sousa
que contemplou apenas “as ruínas do velho solar de Santo Elói”. O contraste entre a
fazenda imaginária e a constatação da sua decadência leva Herculino de Sousa a definir
esse espaço como monumento:
A história desses monumentos é uma só e bem triste no nosso país:
mortos os primeiros donos, desaparecidos os senhores que criaram
com o seu labor essas magníficas vivendas – verdadeiros solares a que
só faltavam belicosas torres e ameias e o orgulho senhorial para se
igualarem aos castelos medievais, e onde reinava a simplicidade
bucólica e a hospitalidade mais cordial – os descendentes vão-se
desagregando, a harmonia do todo vai desaparecendo, cessa a
opulência, fraciona-se o patrimônio, e não se está longe da ruína
final.
110
Da imagem opulenta da fazenda, concebida no imaginário das cidades vizinhas,
ainda se via as “vastas proporções” do seu edifício principal, cercado de “casas
destruídas” e de “vestígios de maquinismos vários, sinais de aquedutos, tudo em ruína,
tudo desaparecendo com a invasão da floresta.”
111
Assim como no conceito de alegoria
109
GARDNER, 1945, p. 434-437.
110
SOUSA, 1918, p. 10-11 apud ANJOS, 1944, p. 10-11.
111
Ibidem¸ p. 11.
70
em Walter Benjamin, a imagem desgastada da fazenda permite o retorno ao passado nos
vestígios da opulência de Santo Elói, associando as categorias de tempo e espaço.
Essa imagem decadente instiga Herculino de Sousa a buscar nos arquivos,
documentos que contenham dados biográficos sobre os antepassados europeus, as
propriedades e os acontecimentos principais para escrever uma crônica da família
Versiani. Rui dos Anjos observa as falhas da biografia de Sousa, que não dispunha de
recursos financeiros para complementar a pesquisa. Os cargos públicos da monarquia
portuguesa, ocupados pelos membros da família Versiani citados no estudo de Sousa,
foram alvo das correções de Rui dos Anjos, que buscou informações complementares
nos arquivos do Serro. Segundo Herculino de Sousa, o primeiro descendente da família,
nascido na Itália, e, mais tarde, seu filho Pedro foram nomeados funcionários da Caixa
da Real Administração de Diamantes em Diamantina. Na revisão, Rui dos Anjos
informa que o Capitão Pedro se desentendeu com o Intendente da Câmara.
A “Carta de um patriota, amigo da verdade”,
112
de José Vieira Couto, cita a
arbitrariedade do Intendente, que proibiu ao Capitão Pedro de retornar a Diamantina
para cuidar do pai. Rui dos Anjos questiona, contudo, a qualificação de arbitrariedade,
uma vez que esse fato tinha respaldo no Art. 23 do Regimento Diamantino:
“monumento de despotismo, dava poderes amplos ao Intendente para obrigar a sair da
Demarcação Diamantina a quem bem entendesse. E do ato só havia recurso para a
pessoa do Rei.”
113
Além de exonerar Pedro Versiani do cargo de escriturário, alegando
que o filho instigava o pai a se opor ao governo, o intendente o expulsa da Demarcação,
usando os poderes do Art. 23.
A crônica familiar de Rui dos Anjos destaca, além da genealogia da família, o
papel que seus descendentes exercem na sociedade local em atividades que envolvem
filantropia, política, jornalismo e serviço público. O estudo de Antonio Candido aborda
principalmente as informações de dois ramos da família: os “Cata-preta”, do qual se
destaca o nome de Gabriela, e o ramo “Anjos”, que deu origem à família do escritor
mineiro Cyro dos Anjos. Além do patriarca Antonio Versiani dos Anjos, Gabriela Cata-
preta, que é descrita como fina musicista, que veio de Ouro Preto, e a mãe de Cyro dos
Anjos, que se destaca por preferir viver na cidade, são citadas no artigo de Antonio
Candido como figuras que foram retomadas no romance O amanuense Belmiro.
112
Segundo Rui dos Anjos, Joaquim Felício atribui a autoria da carta publicada num folheto, em 1821, ao
cientista mineiro José Viera Couto. Cf. ANJOS, 1944, p. 28.
113
ANJOS, 1944, p. 29.
71
Existe uma preocupação constante de Rui dos Anjos de comprovar a veracidade
de sua crônica utilizando às informações de textos publicados e dos documentos que
envolvem as atividades econômicas da família
114
. Rui dos Anjos anexa na biografia o
documento do inventário do Capitão Pedro, o fundador da fazenda de Santo Elói. Esse
documento apresenta longas listas de bens que faziam parte do inventário. Classificados
entre os “bens”, ocupando uma lista de quatro páginas,
115
observa-se os nomes dos
escravos que pertenceram à família, alguns assinalados pela característica “defeito de
fugir.” Segundo Rui dos Anjos, a condição para Pedro Versiani ocupar o cargo de
funcionário da metrópole seria, além da habilidade de escriturário, o fato de possuir
muitos bens, incluindo o número de escravos. Rui dos Anjos comenta também sobre a
preocupação da família com as informações dos bens nos inventários, já que a
Monarquia Portuguesa confiscava a herança de figuras importantes da região.
O progresso econômico da fazenda, a manutenção do poder pelas famílias da
aristocracia rural, as relações familiares com os efeitos do patriarcalismo recalcado sob
o olhar europeu, são temas abordados nos livros dos viajantes Sainte-Hilaire e George
Gardner. Herculino de Sousa observa o caráter monumental do prédio de Santo Elói e
do “Regimento Diamantino”, definido como um monumento ao despotismo. Além
disso, Rui dos Anjos comprova a participação de seus descendentes nos serviços
burocráticos da metrópole portuguesa ao examinar os documentos da Real Extração de
Diamantes e a carta de José Vieira Couto.
O livro de Rui dos Anjos foi publicado sete anos após O amanuense Belmiro,
porém, é possível observar que ambos tratam do tema da família a partir de figuras
comuns, como se percebe no estudo crítico de Antonio Candido. O Coronel Antonio,
pai de Cyro dos Anjos, que exerceu o jornalismo na juventude, iniciou a traição da
linhagem rural com suas leituras de Dantec, assim como o personagem Belarmino, pai
de Belmiro, que lia clássicos como Vergílio, além de escrever na Gazeta Caraíbense a
série de artigos “Rumo a Gleba”. A descrição de Gabriela Cata-Preta (fina musicista) se
assemelha à da avó Maia, e à da jovem Carmélia, que fazia parte da alta sociedade de
Belo Horizonte. Os nomes Porfírio e Belarmino, citados entre os descendentes dos
Versiani, fazem parte da dedicatória, “aos Borba, da linha tronco, desde Porfírio até
Belarmino”, no romance de Cyro dos Anjos.
114
Cf. na FIG.4 do Anexo, o documento que comprova a atuação de João Antonio Maria Versiani como
guarda-livros da Real Extração de Diamantes.
115
Cf. ANJOS, 1944, p. 131-134.
72
Mesmo com essas comparações, Antonio Candido não exalta a escrita da crônica
familiar uma vez que considera suas “páginas convencionais”, sem “um sopro forte de
vida”. Como o próprio Rui dos Anjos afirmava que a sua crônica interessaria mais aos
especialistas em economia, o que se percebe nesse texto biográfico é que a necessidade
de se afirmar a força e o poder dos Versiani através de documentos leva à valorização
da cultura objetiva no tema da família. Ao tratar do mesmo tema no romance, Cyro dos
Anjos também apresenta termos que fazem parte do jargão da economia, como
“herança” e “consórcio”, por exemplo, ao se referir à família de Belmiro.
Quanto às críticas de Candido, devem-se fazer ressalvas, considerando-se que as
observações do biógrafo na crônica partem de uma concepção de história que utiliza o
conceito de arquivo. Rui dos Anjos interpreta as lacunas dos textos publicados de
Sainte-Hilaire e George Gardner em confronto com os documentos de arquivos públicos
e privados.
A biografia História da família Versiani apresenta formas diferenciadas de
arquivar os ramos da família, além de seu espaço e patrimônio. A árvore genealógica da
família é estabelecida a partir de princípios de organização e ordenação dos
descendentes que seguem critérios econômicos e de gênero. A descrição das casas,
máquinas e do edifício principal de Santo Elói em ruínas, a planta do edifício
residencial
116
e a reprodução em bico de pena do edifício principal
117
funcionam como
arquivos que indicam como se distribuía o espaço da fazenda, nos seus tempos de
opulência. Por último, o inventário do Capitão Pedro constitui um arquivo do
patrimônio da família
118
, que se distribui em listagens organizadas em itens como bens,
materiais e humanos, os nomes dos credores da família e declarações de dotes.
A participação da família Versiani em cargos da metrópole portuguesa já indica o
início da dominação burocrática que procura controlar o espaço, a produção de riquezas
e a circulação de pessoas no território colonial através das normas do Regimento
Diamantino. Todavia, devemos lembrar que o desentendimento entre o intendente e o
Capitão Pedro marca também uma tentativa de ruptura com esse tipo de dominação.
116
Cf. a planta do edifício principal da Fazenda de Santo Elói na FIG. 5 do Anexo.
117
Cf. o desenho em bico de pena do edifício principal de Santo Elói na FIG. 6 do Anexo.
118
Cf. na FIG. 7 do Anexo, a capa do apêndice da biografia História da família Versiani, intitulado Os
bens de um Caixa da Real Extração dos Diamantes. O apêndice reproduz informações referentes ao
inventário do Capitão João Antônio Maria Versiani, que exerceu o cargo de Caixa da Real Extração
de Diamantes.
73
4. 2. O código da família
Há em tudo isso uma coincidência de nomes,
locais, datas e desígnios que não pode ser
desprezada. Ou pode?
Silviano Santiago
É possível interpretar o uso dos documentos na biografia de Rui dos Anjos a partir
da metáfora “código da família”, usada no romance de Cyro dos Anjos para definir a lei
patriarcal que rege a linhagem do amanuense. O termo código associa a noção de
linguagem ao significado jurídico que, no caso da metáfora se restringe ao âmbito
familiar pela locução adjetiva que o complementa. Roberto Schwarz afirma que a
abordagem do tema família no romance não explicita o confronto entre pai e filho. Por
outro lado, John Gledson observa que o romancista explora esse conflito no olhar
inconsciente do amanuense sob o cotidiano de seus vizinhos do bairro Prado. Eneida
Maria de Souza e Silviano Santiago abordam o tema citando as possibilidades de
ruptura do narrador celibatário com a hierarquia da sua árvore genealógica. Ao
confrontar os estudos críticos, é possível perceber que as leituras do romance abordam a
influência dos processos de reificação na família de Belmiro.
Para Roberto Schwarz, os capítulos iniciais apresentam uma prosa rápida e fácil
que se encaixa ao tema “conversa de boteco.” No terceiro capítulo, há uma mudança de
cenário e ritmo na narrativa que passa a girar em torno do conflito entre pai e filho. Em
ritmo lento, Belmiro analisa as suas divergências com o velho Borba, mas finaliza o
capítulo retomando o ritmo ligeiro em forma de resumo ao relatar o desenlace da sua
briga com o pai. Segundo Schwarz, a narrativa ligeira permite ao amanuense omitir os
argumentos da discussão, encerrando a cena com o abraço de pai e filho.
119
Se, nessa
leitura, o confronto é silenciado pelo narrador, para John Gledson
120
,
o romance
apresenta uma passagem que explora a sua culminância seguida de reconciliação, mas
com outros personagens.
Eneida Maria de Souza afirma que a comunidade dos celibatários no romance de
Cyro dos Anjos exerce a função citada por Deleuze de “fraternidade universal”, cujo
gesto parricida é uma resistência à sociedade capitalista. Entretanto, em “Bartleby ou a
criação”, Deleuze observa também que o pragmatismo americano exercita uma
119
SCHWARZ, 1966, p. 162.
120
Cf. GLEDSON, 2003, p. 211.
74
paternidade disfarçada em fraternidade. Na novela de Melville, o advogado, mesmo
como chefe de Bartleby, ainda usa a função paterna uma vez que faz recurso à caridade
ao tolerar no seu escritório a permanência do copista que se nega a copiar.
Partindo do conceito de “fraternidade universal”, Souza afirma que o celibato e a
esterilidade dos irmãos Borba-Maia se contrapõem ao mercantilismo amoroso no
casamento que apresenta a finalidade de “procriação e reprodução de linhagens.” Nessa
leitura, o gesto parricida de Belmiro, que se nega a permanecer na fazenda, contribui no
sentido de fundar uma linha fraterna oposta ao capitalismo previsto na função e na
hierarquia paterna. Entretanto, os conflitos financeiros que envolvem a amizade de
Belmiro e Redelvim, ou mesmo com Glicério, indicam que o grupo de amigos ainda se
influencia pelo capitalismo. Da mesma forma, o humor que, segundo Souza, afasta o
sentimento melancólico da modernidade, afirmando a vida como princípio
carnavalesco, retoma o conflito familiar sob uma perspectiva capitalista perceptível no
cotidiano dos irmãos. A imagem irônica que Belmiro compõe das irmãs ao compará-las
a herança, citada no ensaio de Souza, reafirma a interferência do capitalismo na
“comunidade fraterna”.
Silviano Santiago ressalta as nuances do capitalismo na cultura ao observar os
conflitos da árvore genealógica, as tensões geradas pelo poder patriarcal na família e a
presença do fenômeno de variação linguística na fala dos irmãos. Tomando a noção
“nome falso”, do escritor argentino Ricardo Piglia, o crítico identifica na troca de
nomes, a face tradicional do amanuense. Ao contrastar essas leituras, se percebe a
influência da economia nas relações sociais tanto no grupo dos amigos, que se
caracteriza pelo uso da linguagem comercial e jurídica nas expressões “aval” e
“promissória”, ou na definição de Belmiro que se intitula um “procurador de amigos”,
assim como na genealogia e nas diferenças culturais dos irmãos Borba-Maia.
O uso de documentos na biografia de Rui dos Anjos permite visualizar o tema da
família associado à dominação burocrática. Se o tema faz parte da cultura subjetiva, o
que se percebe nos documentos anexados à biografia, é o oposto, ou seja, a interferência
da escrita objetiva e da temática econômica na composição do texto biográfico. Em O
amanuense Belmiro, o conflito do narrador no tempo e no espaço retoma o auge e a
falência da aristocracia rural incorporado ao tema da família na transição dos
descendentes do espaço rural para o urbano e na composição das personagens
femininas. Voltada para a temática econômica, a biografia dos Versiani permite rever os
75
estudos críticos a partir de uma perspectiva que identifica os conflitos materiais na
genealogia de Belmiro.
Para John Gledson, os vizinhos italianos, Giovanni e Pietro, explicitam o conflito
familiar que surge na briga entre Belmiro e Belarmino. Pela primeira vez, Giovanni
pune o filho ao saber pela polícia de sua suposta participação numa quadrilha de
menores arrombadores. O pai batia no filho, sem ouvir sua defesa: “enquanto apanhava,
a criança gritava que não tinha culpa, que tinha ido com os outros era porque lhe
chamaram ‘mocinha’, medroso, e lhe mandaram vestir uma saia.”
121
A quadrilha obriga o menino a segui-la com a ameaça de fazê-lo quebrar um
código de linguagem ou honra que faz parte do discurso patriarcal. Entre a honra do
discurso patriarcal e a defesa do comércio assaltado ou a manutenção das leis urbanas,
Giovanni não consegue escutar a defesa do filho e bate nele assim mesmo. Ao discurso
da punição contraditória, tanto do pai quanto da polícia, se sobrepõe o discurso literário
do filho, que registra o conflito familiar. Pietro devolve sua revolta ao pai (o falso) em
discurso literário num bilhete que, na perspectiva do narrador, mais parece um poema:
“Besta velha
falso, até nunca!
Ciáo, ciáo, ciáo
Falso como tu
Só merece páo.
E’ tolice me percurar
porque já estou longe
longe.
Sim, besta!”
122
O investigador Parreiras (amigo do amanuense) traz ao pai pistas do trajeto de
Pietro, que passou pelas estações de trem de Corinto e Diamantina. A tradução do nome
bíblico do filho para Pedro compõe a fundação da árvore genealógica do autor empírico,
como se percebe na crônica de Rui dos Anjos. Na cidade de Corinto, um nome comum
aos mapas grego, bíblico e mineiro, Pietro já demonstra sinais de perdoar o pai na
indecisão entre as cidades de Montes Claros, Pirapora ou Diamantina. Compra dois
bilhetes, um para Diamantina, cidade onde vivia seu padrinho, e outro para Pirapora. O
pai vê na indecisão do filho um sinal de arrependimento. Temos aí um mapa que mostra
121
ANJOS, 1937, p. 92.
122
Ibidem, p. 91.
76
no espaço os pontos indicativos da indecisão de Pietro, comuns também ao território do
autor empírico.
A cidade de Corinto permite diferenciar três linhas de interpretação do discurso
patriarcal: o discurso freudiano em torno da tragédia grega Édipo; o discurso bíblico,
com as cartas do apóstolo Paulo à prospera cidade
123
de Corinto, conhecida por sua
riqueza e vida fácil; e, seguindo uma expressão de Silviano Santiago, o discurso das
“tábuas da lei” na família mineira. O personagem Pietro finaliza o conflito acolhendo a
definição bíblica da cidade, se consideramos o conteúdo das cartas de Paulo.
Segundo o texto bíblico, a cidade de Corinto era conhecida pela expressão “viver à
moda de Corinto”, que significava viver no luxo e na orgia. Na primeira carta, o
apóstolo pretende superar os “conflitos da comunidade”, pregando aos Coríntios uma
“teologia do corpo”, que estabelece normas para o celibato e o matrimônio, além de
punições contra a imoralidade e o incesto. Na segunda carta, intitulada “A força se
manifesta na fraqueza”, Paulo usa o relato autobiográfico para se defender da
desconfiança dos Coríntios: mostra a força de Deus nas suas fraquezas como apóstolo,
que se assemelham às fraquezas da comunidade a que tenta persuadir.
Nas leituras críticas do romance, os conflitos entre pai e filho são observados a
partir da sequência e interrupção do ritmo na narrativa, que gera a censura do conflito;
ou ainda, seu recalque, na abordagem psicanalítica do texto literário. Se as leituras de
Schwarz e Gledson observam a estrutura narrativa a partir de pares, como a divisão do
ritmo em rápido e lento, ou a oscilação da narrativa em subjetiva e objetiva, Silviano
Santiago percebe a fragmentação do tema da família no romance, mas vai além das
figuras masculinas.
Deleuze propõe que se interprete a Recherche proustiana como uma máquina de
leitura, constituída a partir da estrutura fragmentaria dos signos que afirmam a diferença
das suas partes. Para Santiago, o romance de Cyro dos Anjos articula “sedimentos” nas
categorias de tempo e espaço que retomam os conflitos familiares no contexto urbano
com a inversão de gênero dos irmãos Borba-Maia. Silviano Santiago percebe a
fragmentação na escrita de Cyro dos Anjos, mas a define a partir de signos da existência
que passam para uma grafia-de-vida, aproximando o autor mineiro da linhagem literária
de Clarice Lispector. Ambos usam metáforas que relacionam o biológico à escrita,
123
Cf. Novo Testamento, primeira e segunda cartas do apóstolo Paulo aos Coríntios.
77
permitindo diferenciar Cyro dos Anjos da linhagem mineira de Carlos Drummond, por
exemplo, que enfatiza o patriarcalismo.
A questão de gênero e o sistema Borba são observados a partir do trecho: “Desse
consórcio de Maias com Borbas foi que surgiu o amanuense, sem a virilidade destes, e
sem a delicadeza daqueles.”
124
Segundo Santiago, a repetição da palavra “sem” na
segunda oração leva os críticos a confundi-la com uma conjunção disjuntiva. A partir
daí, o crítico lança seu argumento contrário à leitura de Schwarz que avalia a oscilação
do narrador como uma “forma negativa de conciliação.” Santiago argumenta que
“pertencendo ao gênero masculino, Belmiro não é um dos Borba; não pertencendo ao
gênero feminino, ele não é um dos Maias. Antes de tudo, é um incompleto, duplamente
incompleto.”
125
Contudo, é possível levantar algumas questões a partir da leitura de
Santiago, considerando o que os gramáticos e a psicanálise lacaniana afirmam sobre o
uso do artigo.
Nas definições de gênero na gramática,
126
o masculino é não-marcado nas
palavras porque tem uma forma geral de significação, enquanto o feminino seria uma
forma específica. Lacan trata da questão do artigo definido, que não designa a expressão
“A mulher” como um universal. Na psicanálise lacaniana, o artigo “a” apenas marca um
lugar vazio, mas não significa nada.
127
Lacan define o ser da significância que,
designado pelo artigo “A”, está no lugar de “Outro”. Como se observa, na frase citada
por Santiago, os pronomes demonstrativos “destes” e “daqueles” são masculinos ou
formas universais que, na sua função dêitica, indicam a qual das linhagens caberia os
substantivos abstratos “virilidade” e “delicadeza”. Antecedidos pelo artigo “a”, esses
substantivos são formas específicas que, na verdade, pertencem aos dêiticos que
apontam para os ramos patriarcais das famílias Borba e Maia.
Para Silviano Santiago, a condição de ser Maia é ter “delicadeza”, palavra que não
se restringe a caracterização do gênero feminino já que o narrador atribui delicadeza
também à oratória do político. Belmiro conta que o deputado dirigiu uma “delicada
palavra” ao velho Borba que havia escorregado no pavilhão encerado, ao que foi
respondido com violência: “Também vocês mandam ensebar o assoalho... Era de prever
isso!...”
128
A velha Maia dizia, entre parênteses, que o filho saíra “aos Maia”, utilizando
124
ANJOS, 1937, p. 147.
125
ANJOS, 1937, p. 66.
126
Cf. BECHARA, 2002, p. 132.
127
LACAN, 1985, p. 103.
128
ANJOS, 1937, p. 146.
78
a contração “aos”. Se a velha Maia desejava ver o filho na “carreira das letras”, isso não
significa que temos a preponderância do matriarcalismo na genealogia da família Maia.
O narrador não cita a “carreira” das letras entre “as” Maias, mas se lembra do avô
materno, que era deputado geral. A “carreira” política exige o uso da retórica que se
articularia à carreira das letras. Se, por um lado, a vontade da velha Maia contribui no
sentido de perpetuar a sua tradição patriarcal, oposta à linhagem “rude” e “viril” do
marido, por outro, o desejo que o filho ocupe uma posição na linhagem materna explica
e questiona a falha do próprio tronco Maia.
A inversão de gênero é abordada a partir do “sistema Borba” que influencia os
irmãos Belmiro e Emília a seguirem os “furores” e a “incapacidade para etiquetas” da
linhagem paterna. Para Santiago, Emília é a figura dominadora da casa que
complementa o vácuo da “feminilidade/masculinidade” de Belmiro; contudo, se observa
que os irmãos também procuram se defender da dependência mútua. Emília trata
Belmiro pelo epíteto de “ex-comungado” que é repetido pelo papagaio da casa, além de
usar um anteparo de papelão na mesa que a separa do irmão durante as refeições. Por
seu turno, Belmiro não incorpora o dialeto da irmã, aprendido com as ex-escravas da
fazenda,
129
que aparece em itálico no texto; ou no epíteto “ex-comungado”, separado
entre aspas como título de um capítulo, mostrando a necessidade do narrador de
diferenciar tipograficamente as suas falas das falas de Emília e Francisquinha.
Seguindo a definição de matrimônio em Bataille, Eneida Maria de Souza percebe
o celibato dos irmãos Borba como uma oposição ao mercantilismo amoroso no
casamento. Belarmino desejava que as filhas estudassem em Diamantina, mas essa
educação tinha o objetivo de lhes conferir as etiquetas que são valorizadas no
mercantilismo amoroso. Mesmo avaliando como desfavorável o bacharelato para os
homens, o velho Borba visualizava duas profissões contraditórias para o filho com o
objetivo de persuadir Belmiro a permanecer na fazenda: a de agrônomo, que é o
profissional que participa da prática ou do cultivo agrícola, ou a de agrimensor, que
mede ou demarca as terras, contribuindo para que sejam vendidas.
Como forma de conciliar o agrário com o acadêmico (e também patriarcado e
matriarcalismo), Belarmino manda Belmiro para Belo Horizonte, estudar agronomia:
“Se o menino não se ajeitava na fazenda, que, pelo menos não se distanciasse dela –
129
Silviano Santiago observa que as irmãs Emília e Francisquinha aprenderam com as ex-escravas da
fazenda o que sabiam da língua (Cf. SANTIAGO, 2006, p. 69).
79
poderia tirar uma carta de agrônomo.”
130
A partir daí, Belmiro segue a sua vontade em
outro campo nas letras: “Abandonei, porém, as letras agrícolas e entreguei-me a outra
sorte de letras, nada rendosas.”
131
Nem “carta de agrônomo”, nem “carreira das letras”,
mas em Belo Horizonte o narrador se põe na “companhia de literatos a sofrer
imaginárias inquietações.”
Belarmino descobre que Belmiro gastava a mesada paterna em serenatas e
pagodes, iniciando assim o conflito entre pai e filho, cujo desfecho, retomando
Schwarz, não é explicitado no romance. Fazendo recurso à noção de “nome falso”,
Silviano Santiago observa a precariedade da ruptura de Belmiro com a sua linhagem ao
analisar a dedicatória do amanuense: “Aos Borba, da linha tronco, desde Porfírio até
Belarmino.” Para Santiago, o personagem Silviano, que inventa novos nomes para os
outros e para si mesmo, denuncia o tradicionalismo do amanuense, que tem seu nome
trocado para Porfírio. Em outra passagem, o narrador comenta que, apesar da rudeza
Borba, o tio Porfírio tinha uma formação humanista. Os nomes da linhagem Borba
seguem uma função discursiva que engloba apenas o gênero masculino na composição
da árvore genealógica da família.
A linhagem materna é esquecida, mas retorna talvez pela interferência do
personagem Silviano. Ao criar “o nome falso” para o amigo, Silviano faz da figura de
Belmiro um fantasma de Porfírio ou do desejo materno, que se apresenta acima do pai
Belarmino na hierarquia da linha tronco. Contudo, nas figuras das irmãs, se vê que a
inserção da linhagem Maia no tronco Borba ainda é um simulacro que não resolve o
problema da hegemonia patriarcal na família mineira, como nota Santiago ao abordar a
inversão de gênero no romance.
Definida pela força e rudeza, características que englobariam a virilidade Borba,
associadas à “pobreza de linguagem” adquirida com as escravas, Emília, que permanece
fora da linhagem patriarcal, parece esboçar uma reação ao nomear o amanuense pelo
epíteto “ex-comungado”. Assim, se o gesto de Belmiro é parricida, porque não aceita
seguir a carreira de agrônomo, nem permanecer na fazenda, até certo ponto é matricida
e fratricida. Belmiro atende parcialmente a vontade materna, já que não segue a
“carreira” de deputado, como na linhagem tronco da mãe, nem incorpora o dialeto da
irmã à sua voz e à tipografia.
130
ANJOS, 1937, p. 20.
131
ANJOS, loc. cit.
80
O amanuense usa a palavra “herança” ao definir como as irmãs foram
incorporadas à casa da rua Erê: “Quando o Borba morreu (a velha Maia partiu bem
antes) e a fazenda foi à praça, recebi-as como herança.
132
A hereditariedade e o direito
sucessório são retomados nas figuras das irmãs que, num primeiro momento, funcionam
como metonímia da decadência da fazenda, ao serem comparadas à herança. No início
do romance, Belmiro interpreta o epíteto como um pressentimento que traduz, na
“língua familiar de Vila Caraíbas”, a dissolução do seu espírito. Com a morte de
Francisquinha, o narrador passa a conceber a “meia-luz” de Emília como “fortaleza” no
sentido “épico”, dado que a irmã suporta o fato se apoiando no cristianismo. Nessa
passagem, a palavra fortaleza é uma metonímia do auge da fazenda que, por meio de
seus empregados (os ex-escravos), instituiu a linguagem de Emília.
Belmiro percebe que a morte de Francisquinha torna Emília mais sombria e presa
a rua Erê, apesar do irmão manifestar sua vontade de vender a casa. Essas diferentes
manifestações de luto retomam o discurso filosófico mesclado ao paradoxo da carta de
Paulo, “a força se manifesta na fraqueza”. Se, por um lado, Belmiro aceita o consolo
religioso da irmã, por outro, adepto do discurso nietzscheano, sente-se incapaz de fazer
recurso à religião no momento do luto. Contrapondo-se a Belmiro, que apresenta um
sinal de força na sua vontade de sair de casa, a mudança no gênio de Emília constitui
um sinal de fraqueza na força. Sob o efeito do luto, Belmiro conclui que a expansão do
tempo na fazenda é retomada nos longos dias que se assinalam pelas batidas do relógio
de repetição da casa na rua Erê.
Códice, que vem da palavra latina codice, é uma forma de registro ou compilação
de manuscritos, documentos históricos ou leis, da mesma forma que significa obra de
autor clássico. No âmbito do direito, o termo código significa leis, normas ou o conjunto
sistemático de leis agrupadas e ordenadas em um livro. No sentido de linguagem, o
termo é usado nas ciências biológicas e exatas, na informática e na comunicação para
designar um conjunto de regras que permite a conversão de uma mensagem em outra
linguagem. Seguindo Roman Jakobson, Barthes define a linguagem como uma
legislação cujo código é a língua. Essa concepção de linguagem e código, próxima tanto
dos sentidos jurídico ou político do termo códice, como dos princípios de ordenação do
arquivo, levam Barthes a afirmar que “a língua é fascista” porque, além de se sujeitar às
132
ANJOS, 1937, p. 16.
81
classificações e à ordem dos signos, obriga a dizer a partir de uma autoridade, ou poder.
133
O código civil apresenta leis que regulam a família, controlando suas relações e
seu patrimônio ao exigir o registro em certidões de cartório de fatos comuns como o
casamento, a morte, o nascimento ou a distribuição e o registro de seus bens. O contexto
histórico de Cyro dos Anjos apresenta uma constituição outorgada que atendia aos
interesses de integralistas e católicos, além de se orientar pela Carta del Lavoro da Itália
fascista, que atendia a alguns interesses trabalhistas, mas proibia o direito à greve
operária. Os princípios de ordem no código civil sofrem a interferência do mal de
arquivo, já que é possível alterar o texto legal de forma brusca, como se percebe no
exemplo da constituição outorgada na ditadura estadonovista que, na verdade,
“substitui” a de 1930.
134
A consolidação das leis trabalhistas na CLT, o Ministério do
Trabalho e a propaganda política no rádio faziam Getúlio Vargas ser conhecido pelo
“nome falso” de “pai dos pobres.”
O grupo católico liderado por Alceu Amoroso de Lima
135
procurava interferir nas
leis que tratam do matrimônio, como forma de afirmar o catolicismo no país.
Condenavam o laicismo da Velha República, pedindo que a nova constituição (1930)
fosse promulgada em nome de Deus, validasse o casamento religioso, permitisse o
ensino religioso nas escolas e defendesse a indissolubilidade do casamento civil.
136
Nessas exigências é possível perceber que os grupos têm necessidade de inserirem sua
ideologia no texto constitucional, afirmando as leis que regem a família na bíblia como,
por exemplo, a “teologia do corpo” na primeira carta de Paulo aos Coríntios.
Na crônica familiar de Rui dos Anjos, os documentos indicam que o poder
econômico das linhagens se consolida com o acúmulo e transmissão de bens. Os
documentos de inventário explicam como ocorre a transferência do patrimônio e do
poder entre os descendentes das famílias. No caso do matrimônio, as certidões de
casamento ou dote, citadas na biografia, consolidam o “consórcio”, no sentido
comercial, das linhagens tradicionais. A burocracia que envolve a administração da
fazenda permite compará-la a uma empresa, observando que, assim como no Estado
133
BARTHES, 2004, p. 14.
134
ANDRADE, 1988, p. 84-86.
135
Indicações políticas: da revolução à constituição é uma publicação formada por uma série de artigos
de Alceu Amoroso Lima que, segundo o autor, tratam do “esforço político católico” para interferir no
“plano político-legal” no contexto da revolução de 1930.
136
Em “Rumos”, Alceu Amoroso Lima retoma essas propostas como pontos estruturais que deveriam ser
incorporados ao estatuto político da constituição de 1930. Cf. LIMA, 1936, p. 36-37.
82
Moderno, as atividades econômicas da aristocracia rural se concretizam a partir da
dominação burocrática.
É possível compreender porque o amanuense compara a fazenda a um grande e
poderoso estabelecimento público, a espera de cuidados moços. Seja na propriedade
rural, ou no serviço público, as linhagens tradicionais mantêm o seu poder político e
econômico usando a escrita documental e a influência do espaço burocrático nas suas
relações sociais. Belmiro cita a metáfora “código da família” ao se referir às “cinco
sombras ilustres” de seus avós, que representavam o “brilho rural” da linha tronco. Ao
associar a linguagem à lei, a metáfora estabelece o patriarcalismo como ideologia
preponderante na fundação da árvore genealógica de Belmiro.
O tema da família compõe o conflito do narrador que rompe com a linhagem
paterna, mas a recupera em suas contradições na escrita autobiográfica. Belmiro levanta
a hipótese de que se o bacharel Glicério conhecesse os Borba, diria que o amanuense é o
Borba errado, retomando sob si próprio o discurso do pai, que se decepcionou ao ver o
filho afastar-se da fazenda, se tornando um amanuense: “O velho Borba tinha razão, do
ponto de vista histórico: como Borba, fali.”
137
Romper com o laço patriarcal seria, nessa
concepção, se desligar da terra (a fazenda), entretanto, como o próprio estudo de
Santiago afirma, Porfírio ainda é o nome falso de Belmiro. Mesmo assim, o menino
Pietro, que se esconde do pai na cidade de Corinto, ainda fornece, em dialeto Piemontês,
um enigma que contribui para questionar a imagem do narrador resignado à sociedade
patriarcal: “É tolice me percurar /porque já estou longe.”
138
4. 3. Datas especiais
O tempo no trabalho é controlado pelo calendário, pelo relógio ou livro de ponto,
de forma que as atividades sigam um ritmo homogêneo que atenda à produção. Os
participantes da Revolução Francesa já conheciam o poder da organização e
mensuração do tempo em função do trabalho. Em 1793, os revolucionários franceses
aprovaram na Convenção Nacional um novo calendário que se opunha às referências
que os ligavam ao Antigo Regime e, principalmente, à Igreja católica. No contexto da
Revolução, o calendário francês passou a se iniciar em setembro, a semana se dividia
em dez dias, cada mês continha três semanas, cada ano, doze meses. Os cinco dias
137
ANJOS, 1937, p. 19.
138
Ibidem, p. 91.
83
restantes foram transformados em feriados patrióticos. Os dias receberam nomes que
sugeriam regularidades matemáticas, além de serem dedicados a aspectos da vida rural,
opondo-se a sua vinculação com as homenagens feitas aos santos do calendário
cristão.
139
Walter Benjamin opõe a concepção de tempo do historicismo, que agrupa os fatos
para preencher o tempo homogêneo e vazio do progresso, à da historiografia marxista,
que imobiliza bruscamente o pensamento numa série de tensões que “comunicam um
choque”, cristalizado na mônada.
140
Para o filósofo, o primeiro dia do ano no calendário
da Revolução Francesa funciona como um acelerador histórico, mas não se diferencia
dos dias de reminiscência, que são os feriados. Nesse sentido, a Revolução Francesa
explode o continuum histórico, elegendo o trabalho do camponês como um signo do
novo calendário. Todavia, a alteração do calendário não deixa de ter inspiração
capitalista ou burguesa, uma vez que os dias santos são substituídos por numerações ou
inspirados nos tipos de trabalho da produção rural.
Como já foi observado, Cyro dos Anjos iniciou O amanuense Belmiro com as
crônicas soltas de jornal, mas, mesmo publicadas em livro, apresentaram uma forma
heterogênea de gênero que varia entre crônica, romance de memórias, diário íntimo e
caderno de notas. O diário íntimo e a crônica de jornal são gêneros textuais marcados
por uma concepção de tempo não-linear que se aproxima da proposta de Walter
Benjamin. Segundo Roger Bastide, o ritmo no “diário” de Belmiro é sociológico já que
a sua existência toma forma num ambiente do tempo social distribuído em datas como
“o domingo, os dias da semana, Natal e Ano Bom, Finados e Carnaval.”
141
Além de Walter Benjamin, Blanchot também tece considerações a respeito do
calendário, mas, assim como Roger Bastide, focaliza a temporalidade no gênero diário
íntimo. Nessa concepção, a escrita do diário íntimo estaria protegida pela regularidade
dos dias comuns; contudo, para Blanchot, esse critério não é suficiente para se
estabelecer distinções entre o diário e a narrativa: “Não é porque conte acontecimentos
extraordinários que a narrativa se distingue do diário. O extraordinário também faz parte
do ordinário.”
142
Blanchot questiona a verdade do texto autobiográfico ao observar a
presença do extraordinário na narrativa desse tipo de escrita. O cotidiano estaria, assim,
assinalado pelo elemento ficcional. Por outro lado, Benjamin critica o historicismo que
139
Cf. DARNTON, 1990, p. 25.
140
Cf. BENJAMIN, 1994, p. 130-131.
141
BASTIDE, 1945, p. 4
142
BLANCHOT, 1984, p. 194.
84
estabelece uma narrativa comum a partir da visão linear do tempo. A tradição narrativa
através dos narradores – o marinheiro comerciante, o camponês sedentário e o artífice –
apresenta vários ângulos da história comum.
143
Comparando a narrativa na sua origem com a forma artesanal de comunicação,
Benjamin observa que as experiências do leitor e do narrador se distanciam ao se
contrastarem as transmissões da narrativa pela oralidade e pela escrita. Se o leitor do
romance é solitário, o ouvinte é aquele que compartilha da presença do narrador e até
interfere na composição da narrativa. A comunidade da experiência na narrativa
tradicional se perde na sociedade capitalista à medida que introduz o modelo de leitor
cujo duplo seria o herói solitário do romance, que é a forma “característica da sociedade
burguesa moderna.”
144
A fusão entre o extraordinário e o ordinário ou a mescla entre a
“ficção” e a temporalidade do diário, que se tece com o cotidiano e a narrativa histórica,
podem ser ampliadas quando observamos as definições de experiência, narrativa,
história e tempo, propostas por Walter Benjamin.
A organização do romance em capítulos que valorizam os acontecimentos
cotidianos se opõe à percepção linear dos dias no calendário. A escrita de Belmiro
fragmenta o tempo da experiência comum a partir da mescla de gêneros textuais que
tratam do cotidiano, como a crônica e o diário íntimo. Para Blanchot, a narrativa
cotidiana também sofre interferência de fatos que ultrapassam a rotina dos personagens.
Assim, os fatos ordinários que fazem parte da rotina burocrática do amanuense não são
os únicos a fazer “a curva no tempo”. Outros fatos mesclam as narrativas histórica e
cronológica, interferindo na composição das notas de Belmiro:
Que tenho eu com os dias que a folhinha assinala? Há dois meses
comecei a registrar, no papel, alguns fragmentos de minha vida, e noto
agora que apenas o faço em datas especiais. Encontro uma explicação
plausível: minha vida tem sido insignificante, e o seu currículo
ordinário nem faz, realmente, por onde eu a perceba. Habituei-me às
coisas e seres que incidem no meu trajeto usual da Secretaria para o
café e do café para a rua Erê. Tais seres e coisas pertencem, por assim
dizer, ao meu sistema planetário, e, entretido com eles, na sua feição
mais ou menos constante, vou traçando quase que despercebidamente
minha curva no tempo.
145
Belmiro opõe a distribuição dos dias no calendário (a folhinha), que atende a
concepção de tempo cronológico e progressivo, à sua preferência por registrar as datas
143
BENJAMIN, 1994, p. 205.
144
GAGNEBIN, 1994, p. 11.
145
ANJOS, 1937, p. 29-30.
85
que ultrapassem a continuidade da rotina no seu currículo ordinário, trazendo o
extraordinário para a escrita como elemento que desestabiliza o cotidiano. O narrador
usa o adjetivo “extraordinário” para qualificar algumas datas como o Natal, a festa de
São João e o Carnaval.
O romance se inicia com os amigos de Belmiro distribuídos em torno da mesa de
ferro, conversando sem grandes pretensões. É possível perceber que os personagens são
definidos pela origem ideológica dos discursos que circulam na mesa. Redelvim é um
ex-funcionário público que atua como jornalista, mas Belmiro e os amigos o consideram
um comunista romântico. Glicério, assim como Belmiro, trabalha na Seção de Fomento,
mas investe nas suas relações sociais, frequentando as rodas burguesas de Belo
Horizonte. Florêncio é, ao mesmo tempo, o homem sem abismos e sem história, que
encerra as discórdias do grupo pedindo mais chope. Por último, temos o personagem
Silviano, um professor com aspirações filosóficas e literárias, mas que se prende
também à teologia.
A discussão gira em torno da fala de Silviano: “A solução é a conduta católica.”
Os amigos rebatem, entre eles, Belmiro, para o qual essa conduta seria a “supressão da
vida”. Silviano procura convencer a roda afirmando que se não se possui a vida com
plenitude, é melhor renunciar, encontrando tranquilidade na conduta católica. É um
diálogo contraditório. De um lado, Belmiro, que é solitário, posiciona-se dentro de um
discurso cético e nietzscheano. De outro, o personagem Silviano se posiciona no
discurso teológico, apesar de viver às voltas com as moças em flor. Para Silviano
Santiago, o personagem Silviano é verdadeiramente nietzscheano. Temos aí a
contradição gerada pela diferença entre a fala dos interlocutores, que não deixa de ser
imaginária, e aquilo que é a ação dos interlocutores na sua realidade. A discussão
realmente não gera nada, não altera a paisagem histórica do bar do alemão. Esse parece
ser um efeito que incomoda o intelectual que lê esse livro: entre a paisagem e a
discussão, nada mudou.
Na leitura de Silviano Santiago, a metáfora do estupro se baseia na tradução da
palavra francesa viol, que permite estabelecer relações com a frase de Roland Dogelès –
é o estupro (viol) que salvará o amor. Santiago justifica o uso dessa metáfora teórica ao
observar que a semântica na narrativa de Cyro dos Anjos se desdobra em quatro verbos:
rejeitar, buscar, deslocar e explorar. Nessa perspectiva, o autor rejeita a realidade como
fonte de criação literária; busca sentir “o modo violento” como “a exterioridade do real
que o traumatiza e violenta; desloca “o eixo da vida do plano real para o plano da
86
realidade simbolicamente estruturada” e, por fim, explora “como os choques e
confrontos com a experiência o fazem imaginar, refletir e escrever.”
146
Ao analisar a Recherche proustiana, Deleuze afirma que o grande tema do tempo
redescoberto seria a busca da verdade como uma aventura típica do involuntário. Nessa
leitura, o tempo significa a partir de signos que violentam o pensamento e o forçam a
pensar. Para Deleuze, o ato de pensar tira o pensamento de suas possibilidades abstratas,
levando-o a interpretar, explicar, decifrar ou traduzir os signos.
147
Da mesma forma, os
argumentos de Santiago, mesmo que façam referência aos autores literários,
fundamentam a metáfora do estupro seguindo a proposta de Deleuze.
Durante a conversa de boteco, Glicério retoma o discurso de Belmiro, fazendo
alterações: “o católico destrói a vida pelo modo mais violento. Introduz em nosso
cotidiano a preocupação com a vida eterna, sacrificando, a esta, aquela”. Mais adiante,
no romance, Silviano reafirma ao narrador que a solução dos problemas seria seguir “a
conduta católica”, citando a “teologia do corpo” presente na carta do apóstolo Paulo aos
Coríntios: “Andai pelo espírito e não satisfareis a cobiça pela carne.” Belmiro se afirma
como um celibatário, que se enquadra na teologia do corpo mesmo sem o querer. A
partir daí, Silviano põe como problema de ambos o repúdio à vida, no que ela tem de
mais “excitante”, propondo ao amigo que ambos renunciem “violentamente”, seguindo
a conduta católica.
148
A palavra “viol” se origina no discurso de Glicério, mas não faz parte do discurso
de Belmiro, que apenas incorpora do jovem amigo a palavra “modo”, ao justificar o
início da sua escrita – “a vida fecundou-me a seu modo.” Embora censure Glicério na
conversa de boteco, afirmando que não discute com “menores”, o personagem Silviano,
em outra conversa com Belmiro, incorpora também o discurso do advogado ao usar a
palavra “violentamente”, que indica um modo de renunciar a vida. No início do seu
ensaio, Silviano Santiago afirma que o narrador tem consciência de que é o estupro que
o faz escrever. Todavia, se observarmos a circulação da palavra viol no texto, o discurso
do futuro advogado Glicério, com aspirações burguesas, parece que constitui a origem
dessa “consciência.” Esses diálogos, que nos levam a confundir a fala de um
146
SANTIAGO, 2006, p. 17.
147
DELEUZE, 2006, p. 91.
148
ANJOS, 1937, p. 205.
87
personagem com a de outro, são, segundo Eneida Maria de Souza, “jogos que seguem o
ritmo lento da imaginação e do teatro mental.”
149
Se, nessa leitura, é o estupro que faz Belmiro iniciar a escrita, para Souza a
narrativa de Cyro dos Anjos se constitui a partir da oposição dos princípios destrutivo e
carnavalesco. A explicitação por parte de Belmiro da sua vontade de escrever acontece
justamente na data do Natal, palavra que vem do latim natale, dia de nascimento do
Cristo na tradição católica. A palavra nada vem da locução do latim tardio res nata, ou
seja, nenhuma coisa nascida que, com a elipse do não (res non nata) e perda do res,
passa a significar “coisa alguma”, ou “nada”. As significações da data do Natal e da
palavra nada podem se relacionar com a leitura de Eneida Maria de Souza, que tece
aproximações entre o amanuense e o copista da novela Bartleby¸ de Melville.
Por causa do remanejamento de pessoal, Bartleby muda de função, passando a
trabalhar como copista em escritórios de advogados. Inicia-se a pulsão negativa do
personagem, citada no estudo de Souza como elemento que o aproxima de Belmiro. O
copista se nega a copiar e ler o texto legal, respondendo sempre ao narrador, que é chefe
e advogado, e aos outros personagens a frase enigmática: “acho melhor não.” O
narrador fracassa nas suas várias tentativas de dissuadir o copista a trabalhar e a não
repetir mais a frase. Bartleby continua fechado no escritório de outro advogado,
negando-se a trabalhar sempre com a mesma frase, mas acaba preso e morto por
anorexia. No final da novela, o advogado procura justificar a morte contando como era
o emprego anterior do copista, que trabalhava na Repartição de Cartas Mortas, em
Washington. Sua função consistia em ler, selecionar e atirá-las ao fogo. O narrador, que
compara as cartas a homens mortos, conta que elas traziam esperança de vida, dinheiro
ou objetos para destinatários fantasmas.
A “pulsão negativa”
150
em Belmiro, que também é funcionário público, se
direciona ao próprio livro-filho se tem presente o que aconteceu com os dois outros
livros-filhos iniciados pelo amanuense, que tiveram um fim ao mesmo tempo cômico e
melancólico: “Enterrei-os no fundo do quintal como se enterravam os anjinhos sem
batismo, em Vila Caraíbas. Sobre a cova brotou uma bananeira.”
151
O nascimento da
vontade de escrever justamente no natal já apresenta implícito o risco da escrita que se
perde como um recém-nascido sem batismo, preso no limbo ou no nada.
149
SOUZA, 2007. No prelo.
150
SOUZA, 2007. No prelo.
151
ANJOS, 1937, p. 25.
88
Ao analisar a novela Bartleby¸ de Melville, Giorgio Agamben aborda as questões
que envolvem o tema da criação e da potência divina nos planos literário, filosófico ou
teológico, nas tradições católica, judaica ou muçulmana.
152
Aristóteles retoma o
conceito de intelecto agente ao definir o pensamento como uma tábua rasa coberta de
cera à espera de ser escrita.
153
Para Agamben, o intelecto agente, assim como a cera
que ainda não foi sulcada pelo estilete, constitui “a pura potência (de não pensar).”
Nessa perspectiva, a fórmula do copista no condicional apresenta o paradoxo de que
Bartleby prefere não fazer o que seria necessário para mantê-lo no emprego de copista,
desvinculando a sua vontade do poder.
Contrastando Bartleby e o amanuense, é possível interpretar a “Estética da
Acomodação”, proposta por Schwarz, como pensamento em potência, seguindo a leitura
agambeniana. Ainda, a violência do romance, prevista por Silviano Santiago, pode ser
também interpretada como um obrigatório apagamento da vontade em função daquilo
que se pode fazer. O rito do Natal, data na qual Belmiro justifica o porquê da escrita,
retoma a figura do copista que, encerrado na escrita autobiográfica, compõe uma
imagem circular do tempo-espaço entre a casa da rua Erê e a Seção de Fomento.
Se o Natal marca o nascimento do Cristo no calendário, o Carnaval é um período
de festas profanas, originárias de ritos e costumes pagãos, como as festas dionisíacas e
as saturnais. Em Carnavais, malandros e heróis, Roberto da Matta propõe que se estude
o rito lado a lado com o mundo cotidiano, opondo-se ao destaque apenas do
determinismo histórico da sociedade. Nessa perspectiva, o rito é o momento
extraordinário que “permite colocar em foco um aspecto da realidade e, por meio disso,
mudar seu significado quotidiano ou mesmo dar-lhe um novo significado.”
154
No
carnaval, dramatiza-se o par exibição e modéstia, a imagem dupla da mulher virgem-
prostituta, a música e a oposição básica casa e rua.
Mikhail Bakhtin define o carnaval como uma forma “sincrética de espetáculo
ritual”, que exprime uma visão carnavalesca ao criar “toda uma linguagem de formas
concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de massas e gestos
carnavalescos”.
155
Bakhtin define quatro categorias estéticas que compõem a
carnavalização da literatura: o livre contato familiar entre os foliões, que rompe a
hierarquia social da vida extracarnavalesca; a excentricidade, que revela aspectos
152
AGAMBEN, 1995, p. 11-79.
153
Ibidem, p. 13-15.
154
MATTA, 1981, p. 30.
155
BAKHTIN, 1981, p. 105.
89
ocultos da natureza humana; as mesalliances carnavalescas, que combinam elementos
que anteriormente estavam separados e distanciados uns dos outros pela hierarquia da
cosmovisão extracarnavalesca; e, por último, a categoria da profanação, com os
sacrilégios carnavalescos, as paródias dos textos sagrados e sentenças bíblicas. Para
Bakhtin, a ação carnavalesca principal – o núcleo da cosmovisão carnavalesca – é a
coroação bufa e o posterior destronamento do rei do Carnaval, que enfatiza as mudanças
e transformações da morte e da renovação.
No romance de Cyro dos Anjos, o capítulo “A donzela Arabela” se inicia com a
frase, “Ontem me aconteceu uma coisa extraordinária”, que indica a ruptura do tempo
cotidiano, ou ordinário na cidade. No Carnaval de 1935, mesmo sem fantasia, como
manda a norma do serviço público, Belmiro não se contém e resolve seguir o seu hábito
antigo: desce a avenida repleta de foliões e se põe a observar colombinas fáceis na Praça
Sete. No espaço público da rua, Belmiro ora é incitado a participar da folia, ora é
excluído, ou seja, passa por um processo de coroação e destronamento constante. A
comédia italiana de Colombina, que abandona Pierrô para ficar com Arlequim, faz parte
da tradição carnavalesca e repercute nos acontecimentos desse capítulo.
Belmiro chama a atenção dos foliões, que o perturbam ao ponto de ser tragado
pela massa, cantar, dançar e se entorpecer de éter. O amanuense encena a história da
comédia italiana ao ser atingido por um jato de perfume que vinha de uma boneca
holandesa, mas se destinava a outro rosto. Na nova versão, a boneca é arrastada pelo
príncipe russo, que a livrou dos braços de um marinheiro. Seguindo cordões diversos,
Belmiro realiza a passagem do espaço aberto, a rua, para o espaço fechado, o clube.
O salão do clube é um espaço onde o livre contato entre os foliões interfere
provisoriamente na hierarquia do mundo extracarnavalesco. No seu interior, ao som dos
coros sensuais dos morros, Carmélia enlaça o braço de Belmiro cantando e o tira da
desordem carnavalesca. A partir daí, o amanuense se recorda da narrativa oral de Vila
Caraíbas que retorna para ser incorporada à sua escrita autobiográfica. A voz e a mão
branca de Carmélia o fazem se recordar do mito de infância “A Donzela Arabela”: “nas
noites longas da fazenda, contava-se a história da casta Arabela, que morreu de amor e
que na torre do castelo entoava tristes melodias”.
156
O encantamento do amanuense se
finaliza “em um momento impossível de localizar, no tempo e no espaço”, quando a
mão da moça lhe escapa em meio ao Carnaval urbano. A ação carnavalesca se encerra
156
ANJOS, 1937, p. 34.
90
com destronamento de Belmiro que, deixado sozinho num canapé, acorda com o sol já
alto, sem os personagens da multidão e a moça do clube.
As personagens femininas parecem compor a cena retomando a imagem carnal da
mulher nas figuras da colombina e da boneca holandesa, em oposição a Carmélia, que
compõe uma imagem mística, imaterial e atemporal do feminino. Entretanto, como
Cyro dos Anjos usa a eufonia ao compor os nomes de personagens, o nome Carmélia,
que retoma a figura da Donzela Arabela, apresenta a mesma sonoridade das letras
iniciais da palavra “carnaval”, mesclando o místico à sensualidade da festa que opõe o
sacrilégio à teologia do corpo.
Em outra situação, Belmiro procurava a casa de um farmacêutico, mas,
acidentalmente, bate na porta da casa de Carmélia, que cantava a canção napolitana
Tuorna a Surriento, apreciada por Camila em Vila Caraíbas. Passados dois anos, ao
caminhar com Glicério, Belmiro vê uma flor que o faz recordar a casa, seguindo o
processo da memória involuntária. O advogado informa ao amigo que quem vive na
casa é Carmélia Miranda, moça da alta roda belo-horizontina. Belmiro faz uma analogia
entre Carmélia e Arabela a partir dos espaços casa e castelo que retomam a imagem do
feminino voltada para o âmbito familiar e caracterizada pela origem nobre.
O nome Carmélia, que vem da palavra hebraica karmel¸ significa jardim divino,
enquanto o nome Camila, de origem latina, significa jovem criada, atendente de
cerimonial. O nome “Arabela”, que vem da palavra latina orabilis¸ significa altar
formoso. O que une o familiar, originário das narrativas de Vila Caraíbas, às outras
imagens femininas é esse altar. A origem nobre de Arabela está emparelhada com a
origem burguesa de Carmélia, além de se associarem ao sagrado com as palavras altar e
divino. Camila retoma o mito, mas de forma diversa: a namorada da vila não representa
uma aristocracia rural.
Em Belo Horizonte, destaca-se a datilógrafa Jandira, caracterizada pelo narrador
como um espírito realista, que frequenta a roda dos literatos. Curiosamente, o nome
Jandira, de origem tupi, designa abelha de mel, permitindo estabelecer uma analogia
com o par abelha-operária, que retoma, na sua significação, a ideia do trabalho
feminino. Alguns capítulos aparecem sob títulos que indicam o uso da estética realista
na composição da personagem, como o capítulo “Problemas de proletária”, no qual
Jandira relata ao narrador os conflitos do seu trabalho, onde resiste ao assédio do chefe
Pereira.
91
Os espaços ocupados por Jandira, como o escritório e o apartamento, definem o
feminino na perspectiva do trabalho e fora do plano familiar. A sua moradia é um tanto
contraditória: o interior do apartamento da proletária é decorado como se fosse um
apartamento de finos burgueses. Sua amizade com o amanuense, mesmo se opondo à
maioria da roda, que tentava conquistá-la, é também contraditória. Belmiro observa o
corpo da amiga que, por sua vez, faz movimentos de volteios, constrangimento, ou dá
vazão para seus gestos femininos, compondo, na perspectiva do narrador, uma “amável
geografia.” Contudo, Belmiro a aproxima do mito da Donzela Arabela, mas Jandira se
distingue das “moças em flor” porque percebe as diferenças do feminino delineadas a
partir da oposição de espaços sociais:
Não. Sei que não sou. Há uma distinção que percebo. Não bastam que
sejam donzelas. É preciso que tenham também, ao menos o ar de
inocência e sejam protegidas por todo um sistema de fortificações –
papais, irmãos, fortuna – que as torne difíceis e respeitadas, e inspire a
vocês uma série de lendas românticas a respeito delas.
157
A palavra fortaleza, utilizada pelo narrador ao definir Emília, retorna na fala de
Jandira associada à significação da palavra castelo, que faz parte do imaginário tanto
das narrativas orais de Vila Caraíbas, como dos relatos de viagem de Saint-Hilaire e
George Gardner, que descrevem a fazenda e os hábitos femininos no contexto patriarcal.
O narrador enfatiza que o corpo e a paisagem se desgastam com o tempo, além de
relacionar a oposição entre os espaços rural e urbano às personagens femininas. No
capítulo “Ritornelo”, Belmiro vai pela última vez à vila, mas revê, além das paisagens
devastadas da terra natal, os efeitos do tempo no corpo de Camila: “Fui ver Camila. Era
uma sombra miserável de um tempo que morreu. O sertão estraga as mulheres e a
pobreza as consome.”
158
Ao discutir com Glicério, Belmiro expõe que Carmélia
também sofrerá as alterações do tempo após o casamento, quando os filhos vierem.
Camila, Arabela e Carmélia se encontram no âmbito familiar e aristocrático da
casa ou castelo. Jandira, que transita livremente pelos espaços rua – trabalho – e
apartamento, sintetiza os conflitos e as contradições da mulher que se desloca fora do
âmbito destinado à família. A amiga se confessa ao amanuense: “As meninas de família
têm papais e irmãos para imporem respeito a esses sujeitos. Eu tenho que reagir
sozinha, todo dia, todo dia. E às vezes sinto-me fraca, tenho medo de ceder.”
159
Por sua
157
ANJOS, 1937, p. 102.
158
Ibidem, p. 115.
159
Ibidem, p. 57.
92
vez, Carmélia se casa com seu descendente, o primo Jorge, que impõe status pela
posição social e profissão de médico. Assim, o mercantilismo amoroso, ou as
mesalliances e profanações, que lidam com o par virgem-prostituta, compõem os
conflitos das personagens femininas no romance de Cyro dos Anjos.
Essas questões que envolvem o mercantilismo amoroso são retratadas sob o
ângulo de outros personagens, como na “novela fabulosa” de Silviano ou nas suas
próprias conquistas amorosas. Silviano usa um cartão com o “nome falso”
160
de
Aristóteles de Stagira para seduzir as moças do subúrbio que, ou lhe fogem, ou aceitam
seus presentes. O personagem mescla realidade e ficção na novela inspirada em duas
jovens pobres que perderam o pai. A partir daí, Silviano cria a firma “Parabosco &
Ferrabôsco Ltda” para, em seguida, imaginar os donos como empresários italianos que
transformariam a Pedreira Prado Lopes num centro de diversões com cassino, onde as
jovens trabalhariam, seguindo os preceitos do mercantilismo amoroso. A criação da
firma e os presentes constituem signos que indicam a influência do dinheiro nas
relações eróticas, assim como sua influência nas decisões relativas ao matrimônio.
As questões materiais também interferem na aproximação ou afastamento do
narrador em relação a Carmélia e Jandira. Belmiro procura notícias esparsas de
Carmélia, ou frequenta lugares onde poderia encontrá-la, mas, ao mesmo tempo, evita o
confronto direto. As informações sobre o casamento de Carmélia são trazidas ou pelo
amigo Glicério, ou quando o narrador as lê na coluna social do Minas Gerais. A
distância entre ele e Carmélia é intransponível e mesmo Jandira, que faz parte do seu
cotidiano, trata-o como “analgésico” para as suas confissões. Na verdade, Belmiro
gostaria de ser tratado como um “qualquer” da roda de amigos, que também se
interessam por Jandira. Além de ter sido destronado no Carnaval por Carmélia e a
Boneca, com Jandira, Belmiro é coroado como amigo, mas rejeitado como pretendente
a marido.
As “moças em flor” configuram o drama de Belmiro e Silviano, que vivem à
procura delas, assim como no romance proustiano, À l’ombre des jeunes filles en fleur.
O prazer de assistir a uma peça de teatro torna-se uma obrigação para o narrador da
Recherche, que aprende a reconhecer as diferenças entre a representação e a leitura da
peça, criando a expectativa de que, atrás do véu de Fedra, aparecesse a perfeição da atriz
Berma. Aos poucos ele se interessa pela peça à medida que percebe os bastidores do
160
Para Silviano Santiago, Aristóteles de Stagira é um “nome falso.”
93
teatro, a preparação do cenário, a entrada de atores e espectadores e os ruídos atrás da
cortina. A cortina se ergue, aparece uma atriz e, em seguida, outra, confundindo o
narrador que sente prazer com a dicção das atrizes, mas já não sabe qual delas é Berma.
Ao surgir a terceira mulher no palco, que é a verdadeira Berma, o narrador perde o
prazer: “ouvia-a como se lesse Fedra, ou como se a própria Fedra dissesse naquele
momento as coisas que eu escutava, sem que o talento da Berma parecesse acrescentar-
lhes alguma coisa.”
161
Pelo binóculo, vê a imagem da atriz na lente de aumento, mas, já não é a voz que
ouve. Deixa o binóculo de lado, para compor uma imagem de Berma diminuída pelo
afastamento, que parece ser mais exata. Essa matinê, que foi uma grande decepção para
o narrador, é muito aplaudida pelo público, que reconhece Berma nos seus melhores
dias: “Parece que certas realidades transcendentes emitem ondas a que é sensível a
multidão”.
162
O narrador observa o espaço e a ocupação do teatro; a enunciação no
teatro, pois teme que a reação da plateia cause efeitos de sentido na interpretação da
atriz; a passagem do texto ao espetáculo, presentes na dicção de Berma, que o faz se
recordar da leitura da peça.
Em Balbec, o narrador vê um bando de jovens desconhecidas, que forma um
grupo homogêneo. Os traços das jovens, no início, mesclam-se para, em seguida,
tornarem-se individuais, destacando o rosto de Albertina, que lhe retribui os olhares. Ao
perceber que Elstir conhece as jovens, o narrador vai ao seu ateliê, enquanto espera pelo
reencontro com as jovens. O retrato de uma figura com o rosto e o vestuário andrógino
não lhe permite distinguir “um modelo feminino de um disfarce a fantasia”. Trata-se da
fantasia Miss Sacripant – personagem de teatro. Elstir termina a sua pintura e os dois
caminham em direção à praia, mas, nos rochedos, ao avistar as jovens, o narrador se
paralisa. Suspende, então, o prazer que iria sentir, se fosse apresentado para as jovens.
Para Deleuze, o narrador da Recherche é um decifrador de signos. Ao assistir a
Fedra, ele procura a verdadeira Berma, cuja voz não corresponde à das outras atrizes,
mas a distância entre o espectador e a atriz afeta a recepção. O signo da arte surge na
recepção da peça – as sensações (signos materiais) são consequências da separação
entre o espectador e os atores. Esse conflito essencial do espaço na recepção surge
também nos signos amorosos. O narrador aos poucos procura vencer a distância entre a
encenação das jovens e sua condição de espectador. A figura ambígua de Miss
161
PROUST, 1960, p. 15.
162
PROUST, 1960, p. 11.
94
Sacripant traz o signo do amor mentiroso ou a incerteza do signo amoroso que o
aprendiz busca interpretar ou definir.
O Carnaval é um espetáculo sem ribalta, mas, em Proust, temos a ribalta e o
espetáculo, a separação ente o espectador e o palco, os efeitos dessa recepção sob o
narrador. O modo de recepção do teatro funciona como paradigma para a compreensão
dos signos amorosos – a distância entre os casais e a concepção do feminino. Contudo,
o narrador procura ultrapassar a ribalta ao se aproximar das jeunes en fleur. Os
deslocamentos do narrador em busca das jovens já é uma tentativa de romper a oposição
palco-espectador. Entre o narrador da Recherche e Belmiro, temos também em comum
o véu que separa, de um lado, a encenação presente na ideia da perfeição do feminino
em Berma e no mito Arabela, e, de outro, a fragmentação das personagens femininas no
plano da realidade.
Schopenhauer propõe que a realidade oculta uma outra realidade, que é aparência.
Nessa perspectiva, a característica da aptidão filosófica seria considerar os homens
como fantasmas ou realidades oníricas. Nietzsche relaciona o apolíneo, que configura as
artes pictóricas, o mundo das harmonias e a aparência, ao homem recolhido no véu de
Maia.
163
Esse homem, segundo Schopenhauer, confia no princípio de individuação.
Dionísio é o deus que rasga o véu “para celebrar a festa da reconciliação com seu filho
perdido, o homem”. O sensorial e a música fazem parte do dionisíaco. Na reconciliação
de Dionísio e de Apolo, segundo Nietzsche, rompe-se o princípio de individuação e
surge o fenômeno artístico.
Originária desse discurso filosófico, a metáfora do véu, utilizada como elemento
que separa a idealização de Berma da sua realidade, aparece no encerramento da cena
de carnaval em Cyro dos Anjos. Ainda que incorpore a carnavalização nas suas
memórias, no final do capítulo, o amanuense analista informa que a sua escrita é
técnica: “Descendo de novo, cautelosamente, a margem do caminho, o véu que cobre a
face real das coisas e que foi, aqui e ali, descerrado por mão imprudente.”
164
Todavia, o
narrador reconhece que, mesmo submetendo sua escrita ao racionalismo, deseja
renunciar “aos rumos da inteligência e viver simplesmente pela sensibilidade”:
As modificações que a paixão determina em nossa substância e a
diversa visão, que ela nos proporciona, dos seres e das coisas, poderão
vir lucidamente, mais tarde, quando, tudo já serenado, o espírito
163
NIETZSCHE, 1992, p. 34-35.
164
ANJOS, 1937, p. 35.
95
calcula e mede – mas certamente não são suscetíveis de registro, no
instante em que devastam nossa sensibilidade.
165
O episódio de Carnaval e as moças em flor tornam-se temas das confidências do
amanuense aos amigos. No ambiente de trabalho, concebido como “ficção burocrática”,
Belmiro atiça as expectativas do ouvinte (leitor) Glicério ao descrever Carmélia à
semelhança de personagens de ficção. Silviano, que vivencia os mesmos conflitos do
amanuense, retoma o tema do feminino atemporal e imaterial no trecho do seu diário
intitulado “Termometria de um estado psicológico”.
Belmiro afirma que o diário de Silviano realiza uma espécie de teatro interior
que duplica o diarista na oposição palco e plateia. O amanuense lê no diário do amigo
uma frase que retoma o mito de Arabela, mas associado ao problema faústico. Sem
perceber as leituras clandestinas de Belmiro, Silviano inicia a conversa afirmando que
Arabela é um símbolo faústico. O narrador completa a frase do amigo fazendo uso de
falsas reticências: “... problema fáustico... o amor... vida... estrangulado pelo
conhecimento... É isso?” Silviano se surpreende com a adivinhação e cita Salvador
Albert, que explica Amiel a partir do Fausto, de Goethe.
166
Na sua busca por conhecimento infinito e juventude eterna, Dr. Fausto vende sua
alma para o demônio Mefistófeles, que atende aos seus pedidos, mas o faz se apaixonar
pela primeira mulher que vê. Ao zombar de Fausto, Mefisto o destrona, mas o coroa lhe
dando a juventude eterna. Deus coroa Mefisto ao tratá-lo “de modo tão humano”, mas o
destrona ao não aceitar a perda da alma de Fausto. Gretchen, a mulher por quem ele se
apaixona, que é do meio popular, é coroada-destronada por Fausto, que a seduz e a
abandona; destronada pelo povo, que a condena por infanticídio e, por último, coroada
pelos anjos e pela virgem, que a perdoam. O eterno feminino se apresenta na figura
sagrada da virgem.
167
O pacto de Fausto se produz a partir de noções da economia,
jurídica, no contrato, e mística, que, também inspira metáforas teóricas como as de
Philippe Leujeune ao criar o pacto autobiográfico.
168
Silviano incorpora o mito da Donzela Arabela à carnavalização na literatura,
associando a narrativa de tradição oral à peça de Goethe. O personagem encontra em
165
Ibidem, p. 38.
166
ANJOS, 1937, p. 78.
167
CAMPOS, 1981, p. 71-115.
168
LEJEUNE, 2008, p. 73.
96
Nietzsche
169
traços da carnavalização que são comuns ao Fausto, como o par morte-vida
presente na ação carnavalesca, simbolizado na dança e canto das jovens na clareira e no
posterior abandono de Zaratustra. Porém, o personagem valoriza mais a sua versão
afirmando que não imaginava Belmiro, um “homem de planície”, andando em “tais
altitudes”, que seriam as da cultura letrada, literatura ou filosofia, citada pelo próprio
Silviano.
A Quarta-feira de Cinzas do calendário cristão finaliza o Carnaval para o início da
quaresma, que se destina à penitência. O termo “cinzas” se relaciona às palavras
desgaste, ruína ou morte, permitindo que seu significado de data cristã se associe
também a frase bíblica “do pó viemos, ao pó voltaremos.” Belmiro escreve justamente
na Quarta-feira de Cinzas sobre os fatos vivenciados no Carnaval. Temos aí uma
separação entre o tempo do vivido, que polariza vida e morte na ação carnavalesca, e o
tempo da escrita, que acontece numa data cristã, com tempo chuvoso, como a Quarta-
feira de Cinzas, no escritório da rua Erê. O narrador separa o tempo vivenciado no
Carnaval da sua passagem para a escrita autobiográfica, retomando a concepção de
escrita do autor empírico. Cyro dos Anjos concebe o processo de escrita como um “ato
penoso” que propicia prazeres momentâneos quando o autor descobre a “chave de um
pensamento ou sentimento” a partir de uma “luta” consigo mesmo.
170
Para Walter Benjamin, “os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que
os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica.”
171
A expressão
“currículo ordinário”, citada pelo amanuense, designa a circularidade do seu trajeto,
entre o escritório da rua Erê e o da Seção de Fomento. Na sua escrita autobiográfica,
Belmiro compõe um monumento que resgata as tradições pagãs e cristãs como datas
especiais que rompem com a linearidade do tempo no calendário. O Carnaval o faz se
desviar desse caminho e experimentar sensações que permitem o retorno aos fantasmas
e à tradição narrativa de Vila Caraíbas em outros personagens. Por outro lado, a Quarta-
feira de Cinzas, data melancólica, permite que esses fatos sejam registrados na escrita.
Essas datas, assim como o Natal, são dias de reminiscência que se opõem aos dias de
trabalho, destacando a ruptura do narrador com o tempo destinado à Seção de Fomento
no âmbito da dominação burocrática.
169
Cf. NIETZSCHE, 1998, p. 136-140.
170
ANJOS, 1991, p. 27.
171
BENJAMIN, 1994, p. 230.
97
5. Conclusão
As categorias de tempo e espaço, que se confundem no par realidade-ficção,
compõem o conflito na escrita “autobiográfica” do amanuense Belmiro, que utiliza
temas que fizeram parte da biografia intelectual de Cyro dos Anjos. O espaço do
arquivo literário permite estabelecer novas metáforas biográficas na leitura do romance,
questionando o papel do intelectual moderno como elo mediador entre dominantes e
dominados na ditadura estadonovista, como se percebe nas traduções e releituras de O
amanuense Belmiro.
As traduções
172
e as capas do romance apresentam a figura do funcionário público
e a festa carnavalesca como elementos que despertariam o interesse dos leitores de Cyro
dos Anjos. A tradução francesa cita apenas o nome próprio do narrador como título,
mas, na ilustração da capa
173
, há figuras fantasiadas que formam um cordão no qual se
destaca Belmiro, usando um terno branco. Na tradução mexicana, Daniel Tapia Bolívar
justifica a “conversão” do título original para o espanhol El amanuense Belmiro
afirmando que a palavra amanuense foi usada durante muito tempo na terminologia
administrativa do Brasil para designar um cargo burocrático. Na capa da tradução
174
, há
várias figuras que compõem uma cena carnavalesca: um homem magro, de chapéu e
óculos, assim como o amanuense se descreve, uma mulher com um vestido branco,
seguindo as imagens femininas nos contos de fadas, e dois personagens fantasiados.
O tradutor Arthur Brakel cita o gênero textual e a profissão de Belmiro ao traduzir
o título para Diary of a Civil Servant. Na capa da tradução americana
175
, a imagem se
assemelha a um porta-retrato vazio: distribuem-se quatro prendedores de papel nos
cantos da página, enquanto, no centro do livro, estão o título do romance e o nome do
autor. Os títulos das três traduções e a capa da tradução inglesa destacam a figura do
funcionário público, enquanto as ilustrações das capas francesa e mexicana focalizam o
episódio de Carnaval. Apenas Raffaele Spinelli cita esse episódio ao traduzir o título
172
As traduções Belmiro (Belo Horizonte 1935), El amanuense Belmiro, Diary of a Civil Servant e
Carnavale en Belo Horizonte fazem parte da Coleção Bibliográfica de Cyro dos Anjos no Acervo de
Escritores Mineiros da UFMG.
173
Cf. capa de Belmiro (Belo Horizonte 1935) na FIG.8 do Anexo.
174
Cf. capa de El amanuense Belmiro na FIG.9 do Anexo.
175
Cf. capa de Diary of a Civil Servant na FIG.10 do Anexo.
98
para Carnavale en Belo Horizonte
176
. O tradutor seleciona o capítulo que trata da festa
da cultura popular como título do romance de Cyro dos Anjos, além de afirmar que o
significado da palavra amanuense corresponde à função de archivista.
A recepção crítica de Cyro dos Anjos apresenta leituras que focalizam temas como
a figura do escritor, a burocracia, as oposições urbano e rural e as influências literárias
do romancista. A crítica de Roberto Schwarz observa as percepções do narrador na festa
carnavalesca que ressaltam “a significação ambígua da sensibilidade”, dividida entre a
“vindicação e o conformismo.” Todavia, Schwarz não considera as particularidades
estéticas da festa ao afirmar que o romance da urbanização deveria ser dramático, mas
se torna lírico, na perspectiva do burocrata.
Julia Kristeva define o Carnaval como uma festa popular essencialmente dialógica
e dramática, mesmo sem a ribalta e a separação entre ator e espectador que caracteriza o
teatro. Nessa perspectiva, o Carnaval é “cena e vida, jogo e sonho, discurso e
espetáculo”, que apresenta o drama na linguagem sem uma forma linear.
177
Considerando o conceito de arquivo na abordagem do texto literário, o tema do
intelectual moderno também é dramatizado no romance, ao incorporar elementos
biográficos do autor empírico, tais como a profissão e o ambiente de trabalho do
narrador, o suporte de sua escrita – o papel da Sessão de Fomento – e as questões
familiares do romance, que retomam a interferência da dominação burocrática no
âmbito familiar.
Mesmo apresentando uma crítica negativa ao romance, o estudo de Roberto
Schwarz indica elementos importantes na narrativa que permitem analisar o tema da
burocracia e a expressão da cultura popular no romance de Cyro dos Anjos. As críticas
de Silviano Santiago e Eneida Maria de Souza perpassam os temas abordados por
Schwarz, mas com o acréscimo das teorias do arquivo literário. As leituras críticas do
romance, tanto no seu contexto de produção, como na crítica acadêmica, que fazem
referência à figura do intelectual, incorporam efeitos de sentido que parecem
intencionais tendo em vista que o escritor configura o amanuense como um leitor de
diários, característica que situa o narrador em plano semelhante ao da crítica literária,
que interpreta o diário de Belmiro Borba.
176
Cf. capa de Carnavale en Belo Horizonte na FIG.11 do Anexo.
177
KRISTEVA, 1974, p. 78.
99
A dominação de tipo burocrático, que não conduz à transformação da realidade,
configura o drama do amanuense assim como a festa carnavalesca. A escrita objetiva do
serviço público compõe a encenação dos funcionários públicos, além de interferir na
escrita autobiográfica de Belmiro, que usa a linguagem e os suportes da escrita
burocrática. Seguindo o pacto fantasmático, Cyro dos Anjos incorpora no seu romance
o conflito dos intelectuais que atuavam como ghost-writer na ditadura estadonovista,
mas produziam textos literários que divergiam da política do governo. Nesse contexto, a
dominação de tipo burocrático interfere na escrita literária, que incorpora o tema da
burocracia, e na própria possibilidade dos escritores produzirem os livros como objetos
de consumo cultural.
Retomando Max Weber, é possível perceber que Cyro dos Anjos estabelece uma
crítica à imagem do intelectual como elo mediador, ao se observar a relação entre
Belmiro e Carolino, o almoxarife da Seção de Fomento. Conhecido como aluado pelos
funcionários, Carolino se torna amigo e cúmplice do amanuense ao fornecer o papel
timbrado para a escrita do caderno de notas, além de frequentar a casa na rua Erê. O
amigo ajudava com as irmãs e assumia a gestão das contas do amanuense, fazendo uma
lista de credores (eleição de credores) que poderiam ser pagos no fim do mês, ou
adiantando pagamentos de dívidas. Quando Belmiro se oferecia para pagamento por
esse serviço, Carolino se recusava, mostrando a vasta caderneta de depósito no banco,
que fora resultado de uma herança e economias próprias.
No capítulo “A vida se encolhe”, o amanuense comenta sobre “a dispersão do
grupo de amigos”, cada um segue o seu rumo: Redelvim vai para a fazenda, Glicério
trabalha nos serviços de advocacia do Estado, Jandira vive no seu mundo de datilografa,
permanecendo apenas os amigos Silviano e Florêncio. Aos poucos, Carolino passa a
fazer parte de um grupo reduzido que pertence ao ambiente doméstico de Belmiro:
“Minha vida se reduz a Emília, Carolino, Giovanni e Prudêncio. Isto é: encolhe-se na
rua Erê, como dentro de um caramujo.”
178
O aluado Carolino é uma nova aquisição para o amanuense, cansado da tarefa
ambígua de “procurador de amigos”. Para Belmiro, Carolino, que tinha grande
habilidade com números, é que deveria ser um amanuense, mas o “complexo de
inferioridade”, gerado pela família, amigos e principalmente pelo pai, que o supunha um
“débil de espírito”, o limitou ao cargo de contínuo. A partir de uma conversa, Belmiro
178
ANJOS, 1937, p. 270.
100
consegue que o amigo “inteligente e dedicado” pare de lhe perguntar se é uma “criatura
abjeta”:
- O senhor pode dizer-me o que é abjeto?
- Para quê você quer saber isso, Carolino?
- O senhor acha que eu sou um homem abjeto?
- Ora, Carolino, deixe-se disso. Você não tem nada de abjeto.
- Que é psicopata?
- Psicopata?
- Sou psicopata, sou?
179
É o funcionário público “subalterno” na Seção de Fomento que contribui para a
consolidação da escrita autobiográfica. Glicério, Belmiro e Carolino, mesmo se situando
no espaço da Seção de Fomento, apresentam funções diferentes que seguem uma
hierarquia: o advogado Glicério, mais próximo do texto legal, tem acesso ao Senador
Furquim e à alta roda belo-horizontina; o amanuense, ou procurador de amigos, usa os
serviços de Glicério e do investigador Parreiras para resolver os problemas de Redelvim
e Giovani; e Carolino, que trabalha como contínuo, é o personagem que leva e traz os
papéis no escritório. Se na hierarquia da Seção de Fomento, o subalterno é
desqualificado, na verdade, quebrando a norma do serviço público, Carolino exerce a
função essencial de “provedor”, que permite a materialização da escrita de Belmiro.
Os blocos de papel roubados pelo amigo Carolino materializam a fragmentação
inevitável da narrativa estatal, feita de folha a folha, seja na “ficção burocrática” ou no
“escritório da rua Erê”. Essa escrita utiliza a matéria comum que compõe os arquivos
dos escritores modernos, que se correspondiam (escreviam), utilizando o papel
assinalado com o carimbo de órgãos públicos. O arquivo é o espaço que funciona como
receptáculo de papéis e documentos biográficos dos escritores. No romance, as folhas
da seção constituem o espaço onde se delineia a escrita memorialística do amanuense,
configurada também como mal de arquivo, pulsão de vida e de morte, como propõe
Jacques Derrida.
180
De um lado, em O amanuense Belmiro, temos o livro-filho cuja
escrita funciona como arquivo das memórias do narrador, de outro, na novela de
Melville, temos o copista Bartleby, que atua como homem ou carta sem destinatário.
No capítulo “Última página”, Carolino se lembra de trazer os blocos da Seção de
Fomento para o amanuense que dispensa os instrumentos de escrita: “Esqueceu-me
comunicar-lhe que já não preciso de papel, nem de penas, nem de boiões de tinta.
179
ANJOS, 1937, p. 250.
180
DERRIDA, 2001, p. 12-38.
101
Esqueceu-me dizer-lhe que a vida parou e não a nada mais por escrever”.
181
Como a
tradição da família Borba é viver até os setenta anos, Belmiro pergunta o que irá fazer
para empurrar os anos que lhe restam de vida, sabendo que já não possui a força da sua
linhagem. Ao comparar sua morte com a de seus descendentes, o amanuense utiliza a
natureza e o corpo como metáforas que diferenciam a aristocracia rural da dominação
de tipo burocrático.
Segundo Belmiro, seus descendentes “viviam a vida” ou o poder da aristocracia
rural em sua plenitude como proprietários da fazenda. O amanuense não tem a posse
dos seus instrumentos de trabalho, mas seu jogo de influências no escritório burocrático
demarca a manutenção da hierarquia familiar no plano urbano. Ao definir a morte dos
Borba na linha-tronco, o narrador usa a metáfora romântica “gameleira ferida pelo raio”,
que aproxima a temporalidade do homem à da natureza. Para Belmiro, a morte dos seus
descendentes é repentina e se dissocia do corpo: “Não morriam aos poucos, vendo o
corpo consumir-se lentamente”. Nessa negativa, a metáfora que associa morte e corpo
está mais próxima de Belmiro à medida que o espaço da Seção de Fomento se
assemelha a uma prisão no tempo-espaço que o consome e dificulta o desdobramento da
sua autobiografia num plano real.
Belmiro finaliza suas memórias com uma pergunta dirigida ao contínuo da Seção
de Fomento, “Que faremos, Carolino amigo?”, que o diferencia de Musil e Melville.
Em O homem sem qualidades, Musil define o personagem Arnheim como o “grande
escritor”, que pertence ao tempo das grandes-guerras e casas de comércio, associando
sua figura à do comerciante. O protagonista Ulrich parece dispensar essa particularidade
em seu diálogo com Gerda: “Mas como quer que eu escreva um livro? Sou filho de uma
mulher e não de um tinteiro”.
182
O amanuense usa as metáforas da gestação e do parto
para definir o processo de produção das suas memórias, enquanto Ulrich se opõe à
perspectiva instrumental da escrita ao justificar a impossibilidade de escrever usando o
mesmo argumento biológico que embasa essas metáforas. Em Melville, Bartleby se
dirige ao seu interlocutor, o advogado e chefe no escritório, com a frase no condicional
que é uma negativa à escrita vazia do copista.
Entre compor fórmulas que definam o protagonista como filho de uma mulher, ou
que destaquem a preferência enigmática do copista, Cyro dos Anjos utiliza o verbo
“fazer”, na primeira pessoa do plural, além de usar o nome do seu interlocutor como um
181
ANJOS, op. cit., p. 293.
182
MUSIL, [s.d.], p. 217.
102
vocativo na questão que encerra o romance. Carolino ainda faz parte da dominação
burocrática que não destaca a importância do seu trabalho subalterno. A ruptura de
Belmiro com a hierarquia da Seção de Fomento ao eleger Carolino como seu
interlocutor no final das memórias já se apresenta nos episódios que destacam o contato
do amanuense com os artistas e a cultura populares.
O Acervo de Escritores Mineiros apresenta no próprio nome um critério de
seleção dos autores que compõem o material desse museu literário. A festa popular do
Carnaval, citado como título da tradução italiana, faz parte de uma tradição que se
encontra apagada na Belo Horizonte pós-moderna. Se o Acervo Literário de Cyro dos
Anjos utiliza o critério nomológico que privilegia a cultura letrada e destaca a figura do
escritor moderno na constituição do arquivo, o próprio romance e as suas traduções
apresentam vestígios da festa carnavalesca que teve seu apogeu no início do
Modernismo belo-horizontino. O arquivo literário retoma as dimensões do conflito no
tempo-espaço de O amanuense Belmiro ao passo que estabelece limites e critérios de
seleção do material que será incorporado ao museu.
O espaço do arquivo literário possibilita a observação da literatura como um
fenômeno sociológico uma vez que os documentos que compõem a biografia intelectual
do escritor indicam a contribuição da máquina estatal que, por seu turno, interfere na
constituição estética do objeto artístico. Todavia, devemos lembrar que os limites do
arquivo – seus critérios de seleção da memória – são questionados pelo próprio romance
de Cyro dos Anjos, que se torna também um arquivo da cultura popular cujo autor ainda
é o “poeta sem nome”.
103
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FIGURA 1 - Charge produzida por Jaguar que ilustra o artigo “Sobre o amanuense Belmiro”, de Roberto
Schwarz, publicado na Revista Civilização Brasileira.
Fonte: SCHWARZ, 1966, p. 170.
110
FIGURA 2 - Capa da biografia História da Família Versiani, de Rui Veloso dos Anjos.
Fonte: ANJOS, 1944.
111
FIGURA 3 - Colofão da biografia História da Família Versiani, de Rui Veloso dos Anjos.
Fonte: ANJOS, 1944, p. 144.
112
FIGURA 4 - Documento anexado na biografia: História da Família Versiani, que contém a assinatura de
João Antônio Maria Versiani, comprovando os seus serviços burocráticos para a Real Extração dos
Diamantes.
Fonte: ANJOS, 1944, p. 16.
113
FIGURA 5 - Planta da parte residencial da sede de Santo Elói, que fazia parte dos arquivos da fazenda e
foi reproduzida na biografia História da Família Versiani.
Fonte: ANJOS, 1944, p. 48.
114
FIGURA 6 - Desenho a bico de pena, de Julius Kaukal, que reproduz o edifício principal da Fazenda de
Santo Elói.
Fonte: ANJOS, 1944, p. 40.
115
FIGURA 7 - Edição que complementa a biografia da família Versiani, com informações referentes ao
inventário do Capitão João Antônio Maria Versiani.
Fonte: ANJOS, 1944.
116
FIGURA 8 - Capa da tradução francesa de O amanuense Belmiro.
Fonte: ANJOS, 1988.
117
FIGURA 9 - Capa da tradução mexicana de O amanuense Belmiro.
Fonte: ANJOS, 1954.
118
FIGURA 10 - Capa da tradução americana de
O amanuense Belmiro.
Fonte: ANJOS, 1988.
FIGURA 11 - Capa da tradução italiana de
O amanuense Belmiro.
Fonte: ANJOS, 1945.
119
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