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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde
DESENVOLVIMENTO MORAL E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL: UM ESTUDO SOCIOCULTURAL CONSTRUTIVISTA
Alia Maria Barrios González Nunes
Orientadora: Profª.drª. Angela Maria Cristina Uchoa de Abreu Branco
Brasília-DF, Março 2009
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde
DESENVOLVIMENTO MORAL E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL: UM ESTUDO SOCIOCULTURAL CONSTRUTIVISTA
Alia Maria Barrios González Nunes
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de Brasília, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Processos de
Desenvolvimento Humano e Saúde, na área de
Desenvolvimento Humano e Educação.
Orientadora: Profª.drª. Angela Maria Cristina Uchoa de Abreu Branco
Brasília-DF, Março 2009
ii
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APROVADA PELA SEGUINTE BANCA
EXAMINADORA:
_______________________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Angela M. C. Uchoa de Abreu Branco - Presidente
Universidade de Brasília – Instituto de Psicologia
________________________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Thereza Pontual de Lemos Mettel - Membro
Universidade de Brasília – Instituto de Psicologia
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Lincoln Coimbra Martins - Membro
Universidade Federal de Minas Gerais – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
_______________________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Mônica de Souza Neves - Suplente
Universidade de Brasília - Instituto de Psicologia
Brasília-DF, Março 2009
iii
AGRADECIMENTOS
Um trabalho de pesquisa só é possível com a colaboração e ajuda de um incontável
número de pessoas. Algumas participam de uma forma indireta, com muito apoio, carinho
e compreensão ao longo do trabalho. Outras enriquecem a pesquisa com trocas intelectuais
valiosas, dicas práticas importantes e questionamentos muito oportunos. Sem contar
aquelas que contribuem das duas formas, deixando uma marca profunda e especial na
pesquisa e na trajetória de vida do pesquisador. A todas elas meu mais sincero
agradecimento.
À Professora Angela Branco, pela dedicação, disponibilidade e seriedade com que
orientou este trabalho. Também pela amizade, pelo afeto e pelo muito que aprendi com
suas preciosas contribuições em cada momento de troca.
À Professora Thereza Mettel pelas valiosas contribuições e pela disponibilidade,
um obrigado especial.
Aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação do Instituto de
Psicologia da Universidade de Brasília, por todos os momentos de troca intelectual e
afetiva durante estes dois anos de estudo e trabalho conjunto.
Aos educadores e às crianças que participaram do estudo, pelo apoio, acolhimento e
dedicação. Sem a participação e colaboração deles não teria sido possível a elaboração
deste trabalho.
A CAPES pelo suporte material oferecido durante a realização da pesquisa.
Aos meus pais pelo apoio, mesmo à distância. Ao meu filho João Gaspar, pela
paciência e pelo carinho.
Enfim, a todas as pessoas que, de uma forma ou outra, contribuíram para a
concretização deste trabalho.
iv
RESUMO
Nos últimos anos, o desenvolvimento moral vem se constituindo um campo específico de
pesquisa na psicologia do desenvolvimento. O interesse pelo tema se deve à necessidade de
uma perspectiva científica para o entendimento do desenvolvimento integral do ser
humano, em relação com o sistema educacional. As mudanças sociais e suas conseqüências
trazem para o centro das discussões pedagógicas a necessidade de uma educação voltada
para o desenvolvimento da ética e da cidadania. Entretanto, existem divergências em
relação ao que se entende como desenvolvimento integral, uma vez que as práticas
pedagógicas tendem a enfatizar determinados aspectos do desenvolvimento em detrimento
de outros. O desenvolvimento moral, por sua complexidade e natureza social, é um dos
aspectos mais prejudicados nas diversas práticas educativas. Nas escolas, o
desenvolvimento moral faz parte de um currículo oculto e desconhecido para a maioria dos
professores, o que sugere a necessidade de estudos sobre o tema, sobretudo a partir de uma
perspectiva sistêmica que valorize o papel do contexto sociocultural e das relações sociais.
Diante da complexidade do fenômeno, é preciso adotar uma perspectiva que enfatize a
interdependência das dimensões psicológicas da cognição, da emoção e da ação intencional
no desenvolvimento do conjunto de crenças e valores sócio-morais, que orientam a ação do
sujeito em suas relações. O presente estudo fundamentou-se teórica e metodologicamente
em uma perspectiva sociocultural construtivista, e teve como objetivo identificar e analisar
processos, estratégias e mecanismos presentes nas interações professora-criança que
possam ser significativos para o desenvolvimento moral. Participaram da pesquisa uma
professora e seus 16 alunos do 1º ano do Ensino Fundamental, e outros nove profissionais
de uma instituição pública de Educação Infantil, situada no Plano Piloto, em Brasília.
Foram identificadas e analisadas situações interativas, destacando-se padrões de
consistência e inconsistência entre a elaboração discursiva dos profissionais da escola e as
interações concretas. A análise microgenética das interações sociais professora-criança, e a
análise interpretativa do discurso dos profissionais da instituição fizeram parte da
metodologia qualitativa utilizada. Foram gravadas em vídeo e analisadas as atividades do
dia-a-dia, e duas atividades planejadas pela professora selecionada para promover
discussões sobre questões morais entre as crianças. Também foram realizadas entrevistas
individuais com nove profissionais. Observou-se que a tendência entre os educadores
investigados é conceber o desenvolvimento moral como a promoção de um conjunto de
normas e regras relacionadas ao controle do comportamento da criança, restringindo o
conceito de moralidade ao conceito de disciplina, e em alguns casos, controle da
sexualidade. Nesse contexto, o processo de desenvolvimento moral se confunde com a
transmissão unilateral de valores e a aprendizagem passiva, por parte das crianças, de
normas e regras estabelecidas assimetricamente pelos adultos. O estudo aponta para a
importância da reflexão e da consciência do educador no que diz respeito às suas
interações com as crianças. Também aponta para a necessidade de criar espaços que
possibilitem a avaliação construtiva do fazer pedagógico, e a formação do educador em
relação ao desenvolvimento e educação moral, sendo necessários novos trabalhos de
pesquisa sobre o tema no sentido de contribuir ainda mais nesta direção.
Palavras-chave: Desenvolvimento Moral, Socialização, Educação Infantil, Sociocultural
Construtivismo.
v
ABSTRACT
Moral development has increasingly become an important research field within
Developmental Psychology. This concern has emerged to meet the needs of a scientific
perspective towards understanding human being’s development from a holistic perspective,
taking into account the participation of the educational system in such process. Social
changes and its consequences demand a pedagogical discussion over the importance of
educating the child as a whole person, including aspects related to the promotion of ethics
and citizenship. However, there are divergences regarding the meaning of such
development, because most educational practices still give priority to a few and specific
developmental aspects. Moral development, due to its complexity and social nature, is
mostly left aside. Often, it is constrained to the realms of schools’ hidden curriculum, and
it remains an unknown field for most teachers. Therefore, the theme needs to be
investigated, especially through a systemic approach that considers the role played by
sociocultural practices and social relations. Sociocultural Constructivism is an approach
that emphasizes psychological dimensions’ interdependence—such as cognition, emotion,
intentional action—all related to the development of social beliefs and moral values that
guide one’s own actions and relationships. Based on a sociocultural constructivist
theoretical and methodological approach, the present study aims at identifying and
analyzing processes, strategies and mechanisms along teacher-child interactions that could
be meaningful in moral development processes. The investigation was carried out in a
public early education school, in Plano Piloto, Brasília. A first grade teacher and her 16
students, and nine other educators of the same school, took part in the investigation.
Interactive situations were screened and analyzed in order to identify consistency and
inconsistency patterns between adults’ discursive elaboration and their actual interactions
with children. The qualitative methodology consisted of microgenetic analysis of teacher-
children social interactions, and interpretative analysis of adult participants’ discourse. The
daily activities, and two structured activities—both designed and developed by the selected
teacher to “promote moral development”—were recorded in video and analyzed. Also, we
carried out individual interviews with nine other professionals. We found that most
educators perceive moral development as learning and obeying disciplinary rules oriented
to children behavior’s control, limiting the concept of morality to discipline, and in some
cases, to sexuality. Moral development emerged as a unidirectional rule/value transmission
or passive learning. Children were expected to follow norms and rules asymmetrically
established by adults. Results show how urgently educators need to learn and be aware of
moral issues, being aware of their own interactions with children as well. Also, the study
suggests the need to promote discussions about the subject in order to enable constructive
evaluations of daily educational practices, and their impact over moral development and
education. Moreover, there is a clear need for more investigation about the topic.
Key-words: Moral Development, Socialization, Early Childhood Education, Sociocultural
Constructivism.
vi
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS..................................................................................................... iv
RESUMO......................................................................................................................... v
ABSTRACT..................................................................................................................... vi
LISTA DE TABELAS..................................................................................................... ix
I. INTRODUÇÃO............................................................................................................ 1
II. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.............................................................................. 5
1 – O estudo do desenvolvimento moral na psicologia: diferentes abordagens
teóricas..................................................................................................................
5
1.1. A perspectiva comportamental e da aprendizagem social............................. 5
1.2. A perspectiva psicanalítica............................................................................. 6
1.3. O construtivismo e a perspectiva cognitivo-desenvolvimentista................... 7
1.4. O construtivismo social e a abordagem narrativa.......................................... 9
1.5. As perspectivas socioculturais....................................................................... 13
2 – Pressupostos e construtos teóricos da perspectiva sociocultural construtivista.... 19
2.1. A natureza sociocultural do desenvolvimento humano................................. 19
2.2. Os processos de internalização e externalização............................................ 24
2.3. O sistema motivacional: crenças e valores socioculturais............................. 25
2.4. Comunicação e metacomunicação nas interações sociais.............................. 27
3 – A compreensão da moralidade no contexto sociocultural construtivista.............. 30
3.1. Moralidade, disciplina e convenções sociais................................................. 30
3.2. A natureza sociocultural e subjetiva da moralidade....................................... 32
3.3. Desenvolvimento e educação moral na perspectiva sociocultural
construtivista..................................................................................................
35
3.4. Desenvolvimento moral no contexto escolar................................................. 37
3.5. Conflitos pessoais, internalização de regras e motivação social.................... 38
III. OBJETIVOS.............................................................................................................. 43
IV. METODOLOGIA...................................................................................................... 44
1 – Considerações metodológicas.............................................................................. 44
2 – Método................................................................................................................. 46
2.1. Participantes.................................................................................................. 46
2.2. Equipamentos e materiais............................................................................. 47
2.3. Local dos procedimentos: a escola................................................................ 48
2.4. Procedimentos para obtenção das informações............................................ 50
2.4.1. Contato com a escola, seleção das turmas e da turma-foco................ 50
2.4.2. Sessões de observação direta.............................................................. 51
2.4.3. Sessões gravadas em vídeo e sessões estruturadas na turma-foco...... 53
2.4.4. Entrevistas individuais semi-estruturadas........................................... 54
2.5. Procedimentos de análise.............................................................................. 55
2.5.1. Análise das observações diretas.......................................................... 55
2.5.2. Análise microgenética das interações sociais na turma-foco.............. 57
2.5.3. Análise interpretativa das entrevistas.................................................. 59
V. RESULTADOS........................................................................................................... 62
1 – Breve descrição das atividades e rotina da escola................................................. 63
2 – Estudo intensivo na turma-foco: análise das observações e das entrevistas com
a professora...........................................................................................................
64
2.1. Breve descrição da turma selecionada.......................................................... 64
2.2. Análise microgenética de episódios das atividades estruturadas.................. 66
2.3. Análise microgenética de episódios das sessões gravadas em vídeo............ 114
vii
2.4. Análise das entrevistas com a professora-foco............................................. 144
2.4.1. Entrevista sobre as atividades estruturadas........................................ 144
2.4.2. Entrevista individual sobre o tópico da pesquisa............................... 148
3 – Análise das observações e entrevistas com demais professoras do turno
matutino................................................................................................................
157
3.1. Análise de episódios das sessões de observação direta.................................. 157
3.2. Entrevistas individuais................................................................................... 166
4 – Análise das entrevistas com as professoras do turno vespertino e diretores......... 183
VI. DISCUSSÃO............................................................................................................. 202
1 – Interações professora-criança no cotidiano escolar.............................................. 202
2 – Regras: desenvolvimento moral ou disciplina?.................................................... 206
3 – Conflitos interpessoais: resolver ou eliminar?...................................................... 212
4 – Desenvolvimento moral como parte do currículo oculto...................................... 217
VII. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 223
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 228
ANEXOS......................................................................................................................... 234
Anexo I – Protocolo de registro, transcrição e análise das observações
diretas..............................................................................................
235
Anexo II – Roteiro das entrevistas semi-estruturadas com as professoras...... 236
Anexo III – Roteiro das entrevistas semi-estruturadas com os diretores......... 240
Anexo IV – Roteiro da entrevista semi-estruturada com a professora-foco.... 245
viii
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Relação e informações sobre os profissionais participantes da pesquisa........
47
Tabela 2 – Sessões de observação direta na escola e nas turmas do matutino..................
52
Tabela 3 – Sessões gravadas em vídeo e sessões estruturadas na turma-foco..................
54
Tabela 4 – Entrevistas individuais....................................................................................
55
Tabela 5 – Sessões de observação direta selecionadas para análise.................................
57
Tabela 6 – Sessões gravadas em vídeo selecionadas para análise....................................
59
Tabela 7 – Categorias de análise para a interpretação das entrevistas individuais...........
60
Tabela 8 – Categorias de análise para a interpretação da entrevista com a professora-
foco..................................................................................................................
61
ix
I – INTRODUÇÃO
O desenvolvimento moral tem sido, cada vez mais, objeto de estudo da psicologia
contemporânea, embora ainda de forma tímida e limitada. De acordo com Lourenço
(1998), o interesse crescente pelo tema tem em sua base diversos motivos. Em primeiro
lugar, existe a idéia quase generalizada de que a sociedade atual vive uma profunda crise
moral que se depreende do aumento progressivo dos inúmeros problemas sociais. Em
segundo lugar, a relevância filosófica, sociológica e psicológica da dimensão estruturadora
da moralidade, presente em nossas interações e relações com os outros e com o mundo do
qual fazemos parte. Em terceiro lugar, a importância do estudo e da compreensão científica
do desenvolvimento moral para o entendimento do desenvolvimento integral do ser
humano, assim como para o entendimento do papel do sistema educacional em relação ao
mesmo. Esta última idéia tem sido apontada por diversos autores (e.g. Araújo, 1996;
Branco, no prelo; DeVries & Zan, 1998; La Taille, 1998; Martins & Branco, 2001; Puig,
1998), que dedicam seus esforços ao estudo do tema, e que enfatizam a importância da
educação moral para uma vida com liberdade, autonomia e responsabilidade pelas ações
sociais.
Como apontado por Martins (2000), nos últimos anos a investigação do
desenvolvimento moral foi se constituindo um campo específico de pesquisa dentro da
psicologia do desenvolvimento. Os estudos realizados abrangem o tema por vários ângulos
e a partir de diferentes abordagens teóricas e metodológicas. Podemos citar, a modo de
exemplo, as pesquisas realizadas por Araújo (1996), Ardila-Rey e Killen (2001), La Taille
(2001), Lourenço e Kahn (2000) e Martins (2000), dentre outras. Algumas dessas
pesquisas se centram no estudo do papel da educação no desenvolvimento moral. Tema
que é cada vez mais relevante, em função das mudanças sociais que afetam a vida
contemporânea e, subsequentemente, o papel da escola em relação ao processo de
educação, de forma geral, e de socialização e desenvolvimento moral, de forma específica.
As mudanças sociais e as questões que elas acarretam colocaram no centro das
discussões pedagógicas a necessidade de uma educação voltada para o desenvolvimento
integral da criança. Essa necessidade permeia os principais objetivos da Educação Infantil,
de acordo com seu Referencial Curricular Nacional, elaborado pelo Ministério da
Educação e do Desporto (MEC, 1998). Entretanto, o próprio Referencial aponta para
existência de divergências em relação ao que se entende como desenvolvimento integral da
1
criança, uma vez que diversas práticas pedagógicas continuam enfatizando determinados
aspectos do desenvolvimento em detrimento de outros.
O desenvolvimento moral, em função de sua complexidade, é um dos aspectos mais
prejudicados nas diversas práticas educativas. Em grande parte das escolas, os professores
percebem o processo de desenvolvimento moral restrito à promoção de um conjunto de
normas e valores, embutido na estrutura social da escola e, geralmente, relacionado à
disciplina e ao controle do comportamento da criança. Como DeVries e Zan (1998)
enfatizam, os professores comunicam constantemente mensagens morais para as crianças
enquanto dissertam sobre o que é certo e errado. Além disso, estabelecem regras de
comportamento dentro da sala de aula ou administram sanções para o comportamento das
crianças, restringindo o conceito de moralidade ao conceito de disciplina, em função das
dimensões normativa e comportamental do primeiro (Freitag, 1997). Nesse contexto, o
processo de desenvolvimento moral se confunde com a transmissão unilateral de valores e
a aprendizagem passiva, por parte da criança, de normas e regras estabelecidas
assimetricamente pelos adultos.
No entanto, o desenvolvimento moral, em função de sua natureza social, acontece
no marco das relações e interações da criança com seus colegas e com os adultos
responsáveis por ela (DeVries & Zan, 1998). Em função de sua natureza cultural e, ao
mesmo tempo, subjetiva, se dá a partir da vivência concreta da pessoa no contexto de
práticas culturais específicas e do dia-a-dia (Martins & Branco, 2001; Rogoff, 2005).
Sendo assim, o desenvolvimento moral aparece como parte de um currículo oculto (Branco
& Mettel, 1995), desconhecido para a maioria dos professores, que estabelecem interações
e comunicam mensagens caracterizadas pela ambigüidade e pela contradição, como
constatado por Salomão (2001) em sua pesquisa sobre motivação social, comunicação e
metacomunicação, realizada com uma turma da primeira série do ensino fundamental.
Alguns autores e estudiosos falam da importância de perceber essas ambigüidades e
contradições e de criar um ambiente adequado para o desenvolvimento moral da criança.
Tappan (1992) aponta que os adultos devem estar conscientes do poder de sua voz e de
como suas vozes influenciam o funcionamento moral das próximas gerações. DeVries e
Zan (1998) apontam a importância de promover um ambiente sócio-moral que possibilite a
autonomia e o papel ativo das crianças na hora de resolver seus conflitos interpessoais,
assim como na hora de construir e legitimar as regras que nortearão o seu convívio. Branco
(1989) enfatiza a necessidade de estudar o currículo oculto com o objetivo de desvendar o
conjunto de expectativas, regras e valores sociais transmitidos tanto de forma verbal como
2
não verbal no contexto das interações professor-criança. De acordo com a autora, é
importante conhecer e estudar o currículo oculto, presente nas experiências vividas pelas
crianças em sua rotina escolar, para poder eliminá-lo ou diminuí-lo, dando lugar a
interações sociais e processos de comunicação menos ambíguos e contraditórios.
Em função das questões anteriores, o estudo e a compreensão dos processos,
estratégias e mecanismos presentes nas práticas educativas, que podem ser significativos
para o desenvolvimento moral da criança, tornam-se fundamentais. Tal conhecimento
certamente poderá contribuir para o desenvolvimento de modelos pedagógicos que, de
fato, privilegiem o desenvolvimento integral da criança. Esses foram os principais
objetivos do presente estudo, realizado em uma instituição de Educação Infantil, da rede
pública de ensino de Brasília.
A apresentação de nosso trabalho começa explicitando, de forma breve e na
primeira parte, algumas das abordagens psicológicas que se dedicam ao estudo do
desenvolvimento moral, que se destacam por suas valiosas contribuições para a
compreensão do tema. Depois, apresentamos os principais pressupostos e conceitos
teóricos da perspectiva sociocultural construtivista, que serviu como fundamentação
teórico-metodológica para a realização do estudo. Enfocamos, de modo particular, aspectos
fundamentais para a análise e compreensão da moralidade no contexto sociocultural
construtivista, assim como os aspectos específicos do desenvolvimento moral que se
constituíram como foco de análise ao longo da pesquisa.
Na segunda parte do trabalho, tecemos algumas considerações metodológicas
relacionadas com o processo de construção do conhecimento cientifico e com o estudo e
compreensão do desenvolvimento moral. Explicitamos o método de investigação utilizado
e o objetivo da pesquisa.
Na terceira parte, apresentamos a análise das informações obtidas durante as
diferentes fases do trabalho: sessões de observação direta na escola, sessões gravadas em
vídeo e sessões de atividades estruturadas na turma-foco, assim como entrevistas
individuais semi-estruturadas com todos os participantes adultos da pesquisa. Os resultados
aparecem em uma seqüência que permite estabelecer conexões entre a prática pedagógica
dos participantes do estudo e o seu discurso.
Na quarta e última parte, retomamos e integramos os principais resultados, com o
intuito de formular uma reflexão geral sobre como o desenvolvimento moral permeia a
prática pedagógica da instituição pesquisada. A partir dessa reflexão geral, tecemos nossas
considerações finais e as implicações do estudo.
3
Para finalizar, gostaríamos de ressaltar que as análises realizadas no contexto deste
trabalho não tiveram como objetivo julgar ou avaliar as ações e competência dos
profissionais da escola pesquisada. O objetivo principal da pesquisa é analisar como o
desenvolvimento moral é percebido, ou conceituado, pelos educadores, e quais as formas e
estratégias presentes nas interações que ocorrem nas práticas pedagógicas de uma
instituição de Educação Infantil que podem estar possivelmente relacionadas ao
desenvolvimento moral. Isto com a intenção de propor uma reflexão crítica e construtiva
sobre as referidas formas e estratégias utilizadas. Para isso, é inevitável e fundamental
identificar e analisar os processos, estratégias e mecanismos educativos da instituição,
assim como as consistências e inconsistências presentes em seu fazer pedagógico. No
entanto, vale a pena enfatizar que essas consistências e inconsistências não se restringem
ao contexto escolar, uma vez que elas estão presentes em diferentes contextos
socioculturais—como a família, por exemplo—que se inter-relacionam de forma dinâmica
e dialética. Portanto, o fazer pedagógico da escola e as ações educativas de seus
profissionais tendem a refletir as consistências e inconsistências de práticas educativas
compartilhadas socioculturalmente, e quando as identificamos devem ser objeto de
discussão em todos os níveis que participam da educação e desenvolvimento da criança.
4
II - FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
CAPÍTULO 1 - O ESTUDO DO DESENVOLVIMENTO MORAL NA
PSICOLOGIA: DIFERENTES ABORDAGENS TEÓRICAS
Ao longo da história da Psicologia, o desenvolvimento moral tem sido estudado por
várias abordagens teóricas desde pressupostos teóricos e epistemológicos diferentes. Essas
abordagens teóricas têm enfatizado determinados aspectos do desenvolvimento moral em
detrimento de outros, produzindo, assim, enfoques fragmentados que não levam em conta a
natureza sistêmica e dinâmica do desenvolvimento do indivíduo, nem as inter-relações
entre cognição, afeto, motivação e cultura. No entanto, cada uma delas trouxe
contribuições importantes para o estudo do desenvolvimento humano, de forma geral, e do
desenvolvimento moral, de forma mais específica.
Uma vez que o tema central deste trabalho é o desenvolvimento moral, é importante
contextualizar brevemente seu estudo na psicologia contemporânea, ressaltando as
diferentes contribuições das abordagens teóricas que têm se dedicado ao estudo da
moralidade de forma sistemática, constituindo referências importantes para diversos
estudos teóricos e empíricos na área. Para isso, partimos das revisões realizadas por
diferentes autores e pesquisadores (e.g. DeVries & Zan, 1998; La Taille, 2006; Lourenço,
1998; Lustosa, 2005; Martins, 2000), que dedicam seus esforços ao estudo do tema.
1.1. A Perspectiva Comportamental e da Aprendizagem Social
Nesta perspectiva, situam-se os estudos que enfatizam o desenvolvimento moral
como a aprendizagem adaptativa das regras e normas consideradas corretas pelos
integrantes de uma sociedade determinada. A comunidade impõe ao indivíduo um conjunto
de padrões morais fundamentais para sua adaptação e inserção na sociedade e nos diversos
grupos e instituições que a compõem. Os ditos padrões morais podem ser adquiridos pela
criança por reforço (Skinner, 1953, citado em Lourenço, 1998) ou por procedimentos
imitativos e de identificação com os adultos que convivem com ela (Bandura, 1991).
Em ambos os casos, as sanções sociais têm um papel fundamental na
aprendizagem dos padrões morais e no desenvolvimento moral da criança, que tem um
papel passivo diante do ambiente e das experiências e interações que nele se originam. As
sanções sociais podem ser mais eficientes quando combinadas com explicitações sobre os
5
danos e prejuízos ocasionados aos outros, ou quando sublinhadas pela insatisfação do
adulto em relação às condutas da criança (Bandura, 1991). No entanto, o desenvolvimento
moral da pessoa continua atrelado a diversos tipos de influencias externas, que determinam
a socialização sucedida do indivíduo. Entendida, esta última, como uma substituição
gradativa (também chamada de internalização) dos padrões internos de controle por
demandas externas que passam a guiar a ação moral.
Embora a perspectiva comportamental e da aprendizagem social enfatize a ação
moral, que é uma dimensão fundamental da moralidade, ela minimiza as intenções ou
razões que estão por detrás da ação moral (Lourenço, 1998). Por outro lado, a dimensão
motivacional da ação moral está estreitamente relacionada à necessidade de aprovação e
inserção social e ao medo e/ou conseqüências negativas das sanções (Martins, 2000).
1.2. A Perspectiva Psicanalítica
Como colocado por Martins (2000) e La Taille (2006), a psicanálise não se
debruçou de forma específica e sistemática sobre o estudo do desenvolvimento moral.
Entretanto, suas contribuições são importantes, uma vez que ressaltam o papel crucial da
afetividade para a compreensão e estudo da ação moral, ao sublinhar o caráter conflitivo da
relação do individuo com a moral. Por um lado, o individuo precisa se submeter a um
conjunto de regras e normas sócio-morais, sendo esse o preço a ser pago para viver em
sociedade e se civilizar. Por outro, essa submissão implica na perda da liberdade e na
renuncia à realização de desejos. Mesmo quando a formação moral for bem sucedida,
pulsões e desejos infantis podem voltar a dirigir as ações do sujeito. Dessa forma, o
controle da ação moral não está no sujeito consciente e autônomo, mas depende de uma
dinâmica conflitiva inconsciente de forças afetivas, que remetem às pulsões e sentimentos
experimentados pela criança em relação às figuras paternas (resolução do complexo de
Édipo e emergência do superego).
Como na perspectiva comportamental e da aprendizagem social, as sanções têm um
papel fundamental na aprendizagem dos padrões morais e no desenvolvimento moral da
criança. O sujeito pode renunciar à satisfação de seus desejos e seguir as leis morais por
medo às sanções, internalizando as restrições sociais em função da repressão exercida pela
consciência moral ou superego, na linguagem psicanalítica.
6
Na teoria psicanalítica, o individuo é considerado como um ser moralmente
heterônomo. Além disso, os comportamentos morais estão determinados por processos
inconscientes que fogem do controle do sujeito (La Taille, 2006).
1.3. O Construtivismo e a Perspectiva Cognitivo-Desenvolvimentista
O estudo do desenvolvimento moral a partir de uma perspectiva construtivista
iniciou-se com os trabalhos de Piaget (1932/1994) sobre o tema e, mais especificamente,
sobre os processos de construção das regras. A teoria piagetiana fala em desenvolvimento
moral como processo de construção que acontece em contextos de interação social. O
convívio social da criança, com seus pares e com os adultos, permite o estabelecimento de
dois tipos de relações fundamentais para o desenvolvimento da moralidade. Por um lado,
as relações de coação social (assimétricas), que reforçam a heteronomia moral, em função
do exercício da autoridade que leva ao empobrecimento das relações sociais. Por outro
lado, as relações de cooperação (simétricas), nas quais a autonomia moral vai se tornando
possível. Nas relações assimétricas, a criança, que tem poucas possibilidades de participar
ativamente no estabelecimento das regras e contratos sócio-morais, não se constitui uma
legisladora ativa das regras e normas morais. Nas relações simétricas, o desenvolvimento
do indivíduo e da autonomia moral é possível, uma vez que são relações constituintes que
pedem acordos mútuos entre os participantes. Neste ponto, é importante ressaltar que, para
Piaget (1932/1994), a moralidade humana tem caráter contratual e as regras sócio-morais
se constituem em acordos entre os participantes e membros do grupo social. Sendo assim, é
fundamental que essas regras levem em conta as necessidades dos indivíduos.
Seguindo a tradição iniciada por Piaget (1932/1994), podemos encontrar diversas
perspectivas teóricas que se debruçam sobre o estudo do desenvolvimento moral,
enfatizando diferentes aspectos estruturais e funcionais do mesmo, assim como o principio
da ontogênese. Podemos destacar os trabalhos teóricos e empíricos de Kohlberg (1984),
assim como os de outros autores da vertente cognitivo-desenvolvimentisa (e.g. Biaggio,
1975/1991; La Taille, 2006; Lourenço, 1998). Dita vertente enfatiza aspectos estruturais,
formais e universais da razão. Partindo do paralelismo entre o desenvolvimento cognitivo e
o desenvolvimento moral, e da idéia piagetiana de que a moral é uma lógica da ação, como
a lógica é uma moral do pensamento, a perspectiva cognitivo-desenvolvimentista ressalta
que determinado nível de pensamento (pensamento lógico-formal) é condição necessária,
porém não suficiente, para que o individuo possa alcançar patamares mais elevados no
7
desenvolvimento moral. As outras condições necessárias para atingir o nível mais alto de
moralidade seriam a possibilidade de assumir o ponto de vista do outro e a possibilidade de
incluir princípios de justiça nos julgamentos e ações morais.
De acordo com Lourenço (1998), para a perspectiva cognitivo-desenvolvimentista o
estudo da moralidade implica assumir um conjunto de princípios metaéticos, que se
relacionam diretamente com a não neutralidade. Não é possível estudar o desenvolvimento
moral sem partir de valorações sobre os próprios valores, sob o risco de cair no relativismo
ético e cultural, e na mera descrição das ações morais do individuo. O estudo científico do
desenvolvimento moral deve assumir que a ação moral é um todo que abrange a conduta e
a motivação cognitiva (fenomenismo), que é necessário aceitar alguns princípios éticos
aplicáveis a todas as pessoas e culturas (universalismo), que é necessária a obrigação de
obedecermos sempre a semelhantes princípios éticos (prescritivismo), que a ação moral
dever ter sempre razões morais (cognitivismo), que os princípios morais resultam mais da
atividade estruturante do sujeito do que da influencia direta do meio (construtivismo), e
que a justiça é o princípio moral básico e o aspecto mais estruturante do raciocínio moral
(orientação para a justiça) (Lourenço, 1998).
Outra questão relevante do construtivismo e da perspectiva cognitivo-
desenvolvimentista é a formulação do desenvolvimento moral em estágios que passam pela
anomia, heteronomia e autonomia moral. Na fase de anomia, a criança se mostra incapaz
de reconhecer e seguir regras e objetivos coletivos em suas interações, sendo que não há
uma interação propriamente dita. Na fase de heteronomia, a criança se interessa pelas
atividades coletivas e regradas, mas não se concebe a si própria como legisladora das
regras, nem concebe as regras como acordos mútuos que podem ser modificados e
legitimados coletivamente. As regras aparecem como algo imutável e externo, imposto
pela tradição ou autoridade. Na fase de autonomia, o respeito pelas regras é compreendido
como decorrente de mútuos acordos entre os participantes do grupo, que tem como função
principal harmonizar e regular as ações do grupo social. Diferentes aspectos dos estágios
do desenvolvimento moral coincidem com o desenvolvimento cognitivo, uma vez que
ambos caminham para a auto-regulação e para o equilíbrio.
Autores como Araújo (1996), DeVries e Zan (1998) e Selman (1980) seguem,
também, as idéias piagetianas, enfatizando a importância da qualidade das interações para
o desenvolvimento de uma moralidade autônoma. Uma vez que o conteúdo das regras
morais e sociais lida com nossas obrigações para com os outros, o desenvolvimento da
moralidade pressupõe a compreensão tanto das próprias necessidades, sentimentos e
8
intenções, como a compreensão das necessidades, sentimentos e intenções dos outros
(possibilidade de descentração, reciprocidade e mutualidade nas relações). Sendo assim,
questões como a qualidade das relações sociais (assimetria versus simetria), a coordenação
e negociação das diferentes perspectivas sociais e a experiência compartilhada através de
processos reflexivos, empáticos e cooperativos passam a ter uma posição de destaque no
desenvolvimento da moralidade.
Diferente das perspectivas que enfatizam o papel da afetividade na dimensão
motivacional da ação moral (necessidade de aprovação e inserção social, medo das
conseqüências negativas das sanções e dinâmica conflitiva de pulsões, sentimentos e
desejos), a perspectiva construtivista e cognitivo-desenvolvimentista coloca aspectos
cognitivos no centro da dimensão motivacional da ação moral. Isto não significa que a
afetividade não esteja presente, uma vez que a perspectiva ressalta o papel primordial da
qualidade das relações e interações sociais no desenvolvimento da moral. Certamente, essa
questão se constitui uma contribuição valiosíssima das perspectivas construtivistas,
aparecendo em outras perspectivas teóricas, como veremos na continuação.
1.4. O Construtivismo Social e a Abordagem Narrativa
Lustosa (2005) e Martins (2000), ao analisarem as diferentes abordagens teórico-
metodológicas do desenvolvimento moral, identificam como abordagens narrativas aquelas
que se preocupam com os aspectos contextuais do desenvolvimento e se focalizam nas
interpretações das representações narrativas dos indivíduos, no marco de suas experiências
reais de vida ligadas a questões e conflitos de caráter moral. Dentre os pesquisadores que
se situam na abordagem narrativa da moralidade, destacam-se os trabalhos e idéias de
Carol Gilligan (1982), Jacqueline Goodnow (1995), Mark Tappan (1992), Richard
Shweder e Nancy Much (1987). As abordagens narrativas se associam ao construtivismo
social, uma vez que enfatizam a importância de considerar a diversidade da realidade
sociocultural que se manifesta de forma concreta na estreita relação que existe entre a
cultura e a linguagem. Sendo assim, o estudo da narrativa permite compreender o
funcionamento do universo moral do indivíduo em um contexto concreto, assim como
auxilia na hora de compreender as transformações que acontecem em termos do
julgamento moral.
Gilligan (1982) centra seu trabalho na ética do cuidado, entendida como o senso de
responsabilidade em relação ao outro e suas necessidades. Diferente da ética da justiça,
9
tema central da perspectiva cognitivo-desenvolvimentista, a ética do cuidado remete à
intimidade, relação e interdependência. De acordo com a autora, essas questões não devem
ser estudadas desde a perspectiva de um self racional e abstrato, mas de um self dialógico,
emocional e sensível aos contextos locais. Sendo assim, o estudo da moralidade deve
valorizar as histórias de vida e narrativas pessoais dos indivíduos, que estão imersos em
contextos diferentes. Outra característica importante do trabalho desta pesquisadora é a
abordagem de questões fundamentais como as diferenças de gênero e papeis sociais na
vida real.
Tappan (1992) se refere a sua linha de trabalho como uma abordagem
hermenêutica, que parte do importante papel da linguagem na constituição e entendimento
dos processos psicológicos e, em especial, na constituição e no entendimento da dimensão
psicológica do desenvolvimento moral. Além disso, ressalta a importância do contexto
sociocultural onde esses processos psicológicos se constituem. A partir da estreita relação
entre cultura e linguagem, Tappan (1992) ressalta que o estudo do material lingüístico não
só permite compreender a constituição e o funcionamento do universo moral do indivíduo,
mas que também permite compreender a diversidade sociocultural onde esse universo
moral se constitui e funciona.
Tappan (1992) busca suas fontes teóricas nos trabalhos de Bakhtin e Vygotsky
sobre a função constitutiva e mediacional da linguagem nos processos psicológicos e
aproveita as justaposições e complementaridades nas abordagens dos dois autores. Tanto
Bakhtin (1930/1995) como Vygotsky (1960/1987) ressaltam o caráter mediado do
funcionamento psicológico, o papel da linguagem como ‘instrumento, meio ou ferramenta’
das funções psicológicas e o caráter sociocultural da mesma. Para Vygotsky (1934/1968), o
funcionamento psicológico é mediado pela linguagem, que funciona como uma
‘ferramenta psicológica’, sendo esta um fenômeno sociocultural envolvido nos processos
da comunicação e das relações sociais. De acordo com Bakhtin (1930/1995), a palavra é o
meio (instrumento) da consciência, é o material semiótico da vida interna, sendo que o
termo ‘palavra’ pode ser interpretado como o discurso ou expressão. A linguagem interna
direciona as formas de pensar, sentir e atuar. Essa linguagem interna não é um monólogo,
mas vozes polifônicas engajadas num constante diálogo interno. As diferentes formas
como as vozes entram em contato define a idéia de dialogia, a que é, segundo Wertsch e
Smolka (2003), uma idéia muito mais abrangente do que aquela associada ao termo
‘diálogo’ na ciência contemporânea. Isto porque os aspectos essenciais de uma enunciação
10
podem ser entendidos como uma resposta à enunciação de outra voz ou, mesmo, à previsão
da enunciação do outro.
Vygotsky (1960/1987) ressalta que as funções psíquicas aparecem primeiro no
plano externo (entre indivíduos) sendo reconstruídas para aparecerem, depois, no plano
interno (no indivíduo). Bakhtin (1930/1995) sugere que o desenvolvimento, tanto
filogenético como ontogenético, acontece do plano social para o individual, uma vez que a
linguagem se origina e existe inicialmente na esfera social. A noção de ‘voz’ é central para
entender esse processo de desenvolvimento. As ‘vozes’ que o indivíduo ouve e com as
quais interage começam a fazer parte, gradativamente, da psique do indivíduo. Ou seja,
elas são internalizadas.
A partir das idéias anteriores e da análise de várias pesquisas realizadas por
Gilligan (1982), Tappan (1992) desenvolve uma série de idéias teóricas e metodológicas
importantes para a compreensão e estudo do funcionamento moral, contrapondo-se aos
autores da abordagem cognitivo-desenvolvimentista. Para o autor, o funcionamento moral
é mediado pela linguagem, na forma de diferentes ‘vozes morais’ (ou linguagens morais),
provenientes do contexto sociocultural no qual o indivíduo vive. O funcionamento moral
aparece primeiro entre os indivíduos, como categoria interpsicológica, que é internalizada,
aparecendo depois como categoria intrapsicológica. O funcionamento moral, uma vez
internalizado, deve ser visto como um processo ou uma função psicológica complexa, que
abrange dimensões psicológicas interdependentes: cognição, emoção e ação. Sendo assim,
a linguagem moral e a ação moral fazem parte da mesma função psicológica complexa,
mesmo que elas estejam impregnadas de significados socioculturais específicos.
Além das idéias anteriores, Tappan (1992) apresenta a relação entre linguagem,
cultura e funcionamento moral como a relação entre textos e contextos. De acordo com o
autor, o diálogo entre as ‘vozes morais’ que os indivíduos invocam para resolver
problemas, conflitos ou dilemas morais aparece representado nos textos das entrevistas
realizadas em pesquisas, demonstrando que os seres humanos não só são polifônicos, mas
podem oscilar de uma voz para outra na hora de resolver problemas. Essas vozes ou
linguagens morais são um fenômeno sociocultural, portanto estão socioculturalmente
situadas, ocupando um lugar predominante nos diferentes domínios da vida privada e
pública. Para o autor, isso significa que essas vozes ou linguagens morais devem ser
interpretadas a partir do que Bakhtin denominou de linguagem social, ou seja, um discurso
característico de um determinado segmento da sociedade—grupo profissional, etário etc.—
que, ao mesmo tempo, pertence a um sistema social determinado mais amplo. Para
11
entender o funcionamento moral de um indivíduo é necessário entender as linguagens e
vozes morais, as formas do discurso que o indivíduo ouve e fala (textos) e o contexto
sociocultural onde essas vozes, linguagens e formas de discurso surgem (contextos).
No estudo do desenvolvimento moral dentro desta perspectiva, a linguagem é vista
como uma instancia fundamental de sua constituição e como um meio de acesso à
experiência moral do individuo. Sendo assim, o estudo da narrativa do indivíduo diante de
problemas e situações morais específicos permite compreender a constituição e o
funcionamento moral de forma concreta, assim como permite compreender as
transformações que ocorrem no funcionamento moral, uma vez que o mesmo não é
estático, e nem acontece de forma abstrata. De acordo com Martins (2000), dentro da
perspectiva narrativa essas transformações são inerentes à diversidade com que a questão
da moralidade se manifesta na vida cotidiana.
Martins (2000), analisando a abordagem narrativa do construtivismo social, ressalta
os desafios e perigos que a adesão à mesma traz para o pesquisador, o qual pode fazer uma
leitura extremamente relativista da moralidade, com implicações teóricas e sociais
delicadas. Esta é uma das principais críticas elaboradas pelos defensores das teorias
universalistas e estruturais do desenvolvimento moral, entre as quais se destaca a
abordagem cognitivo-desenvolvimentista. De acordo com Lourenço (1998), o estudo
científico sobre o desenvolvimento moral não pode legitimar práticas sociais que
comprometam as importantes conquistas sociais da humanidade. Ou seja, o relativismo
cultural, que enfatiza a existência de padrões morais que variam de uma cultura para outra,
não deve abrir espaço para o relativismo ético.
Outros autores socioculturais, como Rey (2002), criticam a abordagem narrativa
adotada pelo construtivismo social, enfatizando que, no marco de dita abordagem, os
conceitos relacionados à constituição do intrapsíquico são deslocados para o domínio
público e compreendidos como discursos socialmente construídos, ignorando, dessa forma,
a dialética complexa do social e do individual em todos os domínios da vida humana.
Sendo assim, a abordagem narrativa do construtivismo social substitui a compreensão da
subjetividade pela compreensão da linguagem produzida nos diferentes sistemas de
relações sociais. Segundo Rey (2002), os indivíduos se tornam entidades vazias que
aparecem como ‘vozes’ dos discursos nos termos usados por Bakhtin.
Vale a pena ressaltar que, embora Tappan (1992) ressalte a importância do processo
de internalização apresentado por Vygotsky (1960/1987), o autor não especifica qual é o
papel do indivíduo neste processo. Por vezes, a internalização aparece como uma mera
12
apropriação ou simples reprodução das vozes, as quais são recombinadas de forma singular
pelo indivíduo, como apontado por Lustosa (2005).
1.5. As Perspectivas Socioculturais
No marco deste trabalho, são entendidas como perspectivas socioculturais aquelas
que enfatizam simultaneamente a individualidade e o relacionamento da pessoa com os
contextos culturais em que vivem. Com isto, buscam ultrapassar a parcialidade dos
modelos teóricos que se preocupam em demonstrar a ‘diluição’ dos indivíduos nos
contextos sociais.
Os conceitos e categorias desenvolvidos por diversos autores de perspectivas
socioculturais se encaminham para a superação da oposição existente entre as perspectivas
universalistas e narrativas do desenvolvimento moral. Martins (2000) destaca as
contribuições de autores como Rey (1997), Rogoff (2005) e Valsiner (1989, 1994, 1998),
que procuram focalizar os processos psicológicos envolvidos na internalização individual
dos valores e crenças culturais, enfatizando o papel ativo do indivíduo e a integridade do
ser humano. Como colocado por Rosseti-Ferreira, Amorin e Silva (2004), o
desenvolvimento humano acontece nas e por meio das múltiplas interações sociais que o
indivíduo estabelece no marco de contextos organizados social e culturalmente, sendo que
ele contribui ativamente para seu próprio desenvolvimento, para o desenvolvimento de
outras pessoas ao seu redor e para o desenvolvimento da situação em que se encontra
participando.
Sendo assim, apresentaremos as idéias de Rey e Martinez (1989) e Rogoff (2005),
autores destacados por Martins (2000) ao analisar as diferentes abordagens teórico-
metodológicas do desenvolvimento moral, uma vez que eles ressaltam a importância da
análise dos processos comunicativos para o estudo do desenvolvimento humano, de forma
geral, e para o estudo do desenvolvimento moral, de forma específica. Para estes autores,
inspirados no desenvolvimento das teses de Vygotsky, a cultura, que é constitutiva da
mente humana, deve ser compreendida como interações intersubjetivas e como interações
com os artefatos culturais, simbólicos e materiais. Interações dinâmicas, complexas e
dialéticas que ressaltam a importância da centralidade da pessoa como um agente
autônomo dentro de um mundo organizado culturalmente.
Para Rey e Martinez (1989), a dimensão moral pressupõe o desenvolvimento social,
no entanto ela se expressa de formas muito diversas nas diferentes classes, grupos e
13
indivíduos que integram uma sociedade. Ou seja, o funcionamento moral do indivíduo não
se determina de forma abstrata pelos valores e crenças morais do contexto sociocultural em
que o indivíduo se insere, uma vez que o indivíduo não pode fazer seu ou internalizar
aquilo que transcende suas possibilidades reais de internalização. Para Rey e Martinez
(1989), o desenvolvimento do indivíduo exige criatividade e uma posição ativa ante a vida,
o que se expressa, no âmbito da moral, através da individualização necessária dos
conteúdos morais da sociedade, de forma que os mesmos passem a regular o
comportamento individual. Os valores e crenças morais assumidos pelo indivíduo em
função de pressões externas não são individualizados e, portanto, não têm um determinante
moral na sua base, nem contribuem para o desenvolvimento dessa dimensão.
Por outro lado, para esses autores, o funcionamento moral do indivíduo não existe
de forma desvinculada de outras dimensões psicológicas, em função da integridade do ser
humano. Sendo assim, Rey e Martinez (1989), ao criticar os enfoques fragmentadores do
comportamento humano, enfatizam a necessidade de analisar a dimensão moral de forma
sistêmica.
Com essas idéias como ponto de partida, Rey e Martinez (1989) propõem estudar o
desenvolvimento moral a partir de uma metodologia construtivo-interpretativa, que vai
além da abordagem narrativa, como concebida por Tappan (1992) e pelo construtivismo
social, e que propõe estudar a dimensão moral desde a perspectiva da subjetividade social e
individual, as quais se entrelaçam de formas muito específicas para cada sujeito.
Na metodologia construtivo-interpretativa, como apresentada por Rey e Martinez
(1989), todas as informações obtidas a partir da expressão do sujeito em face de diferentes
e variados instrumentos (entrevistas, completamentos de frases, redação/narrações e
conflitos de diálogos) devem ser analisadas e interpretadas por meio da lógica
configuracional, que se define como um processo interpretativo, dinâmico, e complexo
entre a construção e reconstrução intelectual do pesquisador e o momento empírico,
podendo resultar em múltiplos desdobramentos, que dependem do problema da pesquisa.
Para realizar essa análise e interpretação, diferentes categorias teóricas como indicadores,
núcleos de sentido, sentidos subjetivos, configurações subjetivas e zonas de sentido
tornam-se importantes. Categorias estas que, de uma forma ou outra, ressaltam o caráter
dialógico da pesquisa qualitativa em psicologia e a perspectiva dialógica, dialética e
complexa da subjetividade humana, tanto em nível social como individual.
No âmbito da perspectiva sociocultural, mas de forma diversa, Rogoff (2005)
analisa diversas pesquisas culturais e ressalta como as formas utilizadas pelos adultos de
14
uma cultura específica interferem nas questões relativas à educação das crianças, formas
estas que variam de uma cultura para outra. Por outro lado, a maneira como as crianças de
uma determinada cultura reagem, ou respondem, a essas formas de interferência também
estão de acordo com as orientações para objetivos, crenças e valores da cultura específica
na qual elas se desenvolvem. No entanto, existe um elo comum entre as diferentes formas
em que os adultos transmitem os significados da cultura coletiva: as crianças apreendem à
medida que participam de práticas culturais e são orientadas pelos valores de sua
comunidade. Esta participação orientada inclui esforços tanto dos parceiros sociais como
das próprias crianças, que cumprem papeis ativamente centrais no seu processo de
socialização. A participação orientada e, por conseguinte, a participação ativa das crianças
em seu processo de socialização apareceu tanto em pesquisas sobre a aprendizagem da
ordem moral da comunidade como em relação ao desenvolvimento de padrões interativos
de cooperação e competição. No caso específico do desenvolvimento moral, as crianças
aprendiam a ordem moral da comunidade no decorrer dos eventos cotidianos, nos quais
recebiam comentários morais, ou reações específicas, que indicavam o que era bom ou
mau, certo ou errado (Rogoff, 2005).
Vale a pena ressaltar que a participação ativa da criança no seu desenvolvimento
moral também é apontada pelos autores construtivistas. Como ressalta Piaget (1932/1994),
é na inter-relação com o outro que a criança entra em contato com os valores e crenças
morais e com as regras estabelecidas socialmente. Porém, esse contato não é passivo, pois
o desenvolvimento do juízo moral não se resume a uma simples interiorização dos valores,
princípios e regras morais. O desenvolvimento da moralidade é uma re-construção ativa,
por parte da criança, desses valores, princípios e regras. Esta re-construção acontece a
partir da atividade da criança, em contato como o meio social, e tem características
específicas que dependem das estruturas mentais já construídas ao longo do seu
desenvolvimento.
Para Rogoff (2005), a participação ativa e conjunta do sujeito no seu próprio
processo de desenvolvimento moral é fundamental e significa que não há um educador
ativo e um educando passivo. A participação orientada pressupõe a atividade conjunta de
educadores e educandos e tem como objetivo principal enfrentar de forma compartilhada
as tarefas morais que surgem, de forma natural, na experiência dos indivíduos.
Rogoff (2005) não só ressalta o caráter dialógico dos processos de desenvolvimento
humano, como também enfatiza que esses processos de desenvolvimento acontecem no
contexto de práticas socioculturais específicas, nas quais o indivíduo participa de forma
15
ativa e em conjunto com os outros. Sendo assim, ação, comunicação e práticas
socioculturais aparecem como elementos interligados e fundamentais para o estudo do
desenvolvimento moral. Para a autora, o desenvolvimento humano acontece enquanto as
pessoas (que não são genéricas) participam em atividades socialmente organizadas e
mediadas pela linguagem (práticas socioculturais), em diferentes contextos sociais, com
discursos específicos. As variações, diferenças e semelhanças das práticas socioculturais,
da participação dos indivíduos e dos discursos de um contexto para outro, devem ser
estudados e compreendidos, a partir de um programa de investigação que pode ser
caracterizado a partir das seguintes premissas: a) reconhecimento da natureza holística do
desenvolvimento humano, ou seja, as pessoas e as atividades constituem-se mutuamente;
b) observação dos processos de desenvolvimento pela participação orientada nas práticas e
nos contextos culturais; e c) prioridade das metodologias qualitativas no estudo dos
indivíduos em contextos culturais. O seu percurso como investigadora conjuga o estudo
etnográfico dos fenômenos e dos diferentes modelos de psicologia popular (folk
psychology) existentes, utilização de videografia, entrevistas, observações, experimentação
em contextos reais de vida e em laboratório. Os trabalhos em laboratório têm como
objetivo aprofundar questões evocadas nos estudos etnográficos da vida diária (Costa &
Lyra, 2002; Fidalgo, 2004).
Os defensores das teorias universalistas e estruturais do desenvolvimento moral, ao
analisar o trabalho de Bárbara Rogoff, poderiam advogar pela crítica do relativismo
cultural e ético. No entanto, a autora, ao analisar diferentes pesquisas socioculturais sobre o
desenvolvimento moral aponta a existência de conceitos e preceitos obrigatórios no código
moral de qualquer sociedade, os quais estão relacionados com o princípio da vida, da
justiça e o princípio de evitar danos. Valores e preceitos que não devem ser entendidos
como universais e abstratos desvinculados da realidade sociocultural onde se concretizam e
expressam. Esses valores são compartilhados pelas diferentes culturas em função de sua
importância para o convívio constitutivo dos seres humanos nos contextos sociais, e devem
sua ‘universalidade’ ao desenvolvimento filogenético e histórico do indivíduo e da
sociedade.
As perspectivas narrativas e socioculturais acima apresentadas enfatizam o papel
fundamental da interação e dos processos de comunicação na constituição dos valores e
crenças morais, ressaltando, também, a importância da análise qualitativa e interpretativa
dos processos comunicativos para o estudo do desenvolvimento moral. No entanto, elas
diferem em relação a dois pontos específicos.
16
O primeiro, refere-se ao papel ativo, autônomo e criativo do sujeito no processo de
internalização dos conteúdos socioculturais. Como dito anteriormente, enquanto as
abordagens narrativas do construtivismo social não especificam o papel do indivíduo no
processo de internalização—que, por vezes, aparece como uma mera apropriação ou
simples reprodução das vozes sociais recombinadas de forma singular pelo indivíduo—as
perspectivas socioculturais ressaltam a importância da centralidade da pessoa como um
agente autônomo dentro de um mundo organizado culturalmente.
O segundo ponto refere-se à forma como as diferentes perspectivas abordam a
interpretação e análise da narrativa do sujeito para o estudo do desenvolvimento e
funcionamento moral. Como colocado por Rey (2002), a abordagem narrativa, no marco
do construtivismo social, desloca os conceitos relacionados à constituição do intrapsíquico
para o domínio público, compreendendo os mesmos como discursos socialmente
construídos e ignorando, dessa forma, a dialética complexa do social e do individual em
todos os domínios da vida humana. As abordagens narrativas do construtivismo social
propõem um estudo do desenvolvimento e funcionamento moral a partir, única e
exclusivamente, da narrativa do sujeito na resolução de problemas e dilemas morais, sem
levar em conta a unidade inseparável entre ação e linguagem.
Já em relação a esse segundo ponto, para as perspectivas socioculturais o dizer e o
fazer consistem em uma unidade de análise inseparável. A ação situada em contextos e
práticas socioculturais específicas e em constante diálogo com outras mentes ativas é o
ponto mais importante para o estudo do desenvolvimento, no marco de uma psicologia de
caráter sociocultural (Bruner, 1997). Sendo assim, as perspectivas socioculturais abordam
o desenvolvimento e funcionamento moral por meio de narrativas contextualizadas nos
diferentes sistemas de relações sociais e práticas socioculturais, sem deixar de enfatizar o
papel ativo e criativo do sujeito. Como colocado por Rosseti-Ferreira e cols. (2004), o
desenvolvimento humano se dá dentro de processos complexos e está imerso em uma
malha de elementos de natureza semiótica. No entanto, esse desenvolvimento acontece no
marco de contextos e atividades socioculturais, que passam a ter um papel determinante
(não determinista), deixando, assim, de ser um ‘pano de fundo’, para tornar-se um recurso
ou um instrumento de desenvolvimento.
As perspectivas socioculturais, portanto, combinam a análise e interpretação das
narrativas dos sujeitos com uma multiplicidade de procedimentos metodológicos, com o
intuito de apreender a complexidade dialética dos fenômenos socioculturais.
17
Por último, vale a pena ressaltar que os autores das perspectivas socioculturais não
adotam categorias estáticas e universais na hora de investigar o desenvolvimento e
funcionamento da dimensão moral. As categorias por eles utilizadas contemplam sempre o
caráter complexo e dinâmico dos fenômenos ligados à vida moral do sujeito, que vive e se
desenvolve em contextos específicos. Também não advogam um relativismo cultural
radical, como critica a vertente cognitivo-desenvolvimentista. A compreensão do papel da
cultura no desenvolvimento humano deve partir de uma definição de cultura como meio
que abrange a criação e evolução de instrumentos e signos que atuam como mediadores do
desenvolvimento humano, e deve ser entendido tanto na perspectiva ontogenética, como
filogenética.
18
CAPÍTULO 2 - PRESSUPOSTOS E CONSTRUTOS TEÓRICOS DA
PERSPECTIVA SOCIOCULTURAL CONSTRUTIVISTA
O presente estudo tem como fundamentação teórico-metodológica a abordagem
sociocultural construtivista. Esta parte de uma visão de desenvolvimento enquanto
processo que se constitui a partir das múltiplas relações sociais nas quais a criança está
envolvida, tendo ela um papel ativo no seu próprio desenvolvimento e na significação e re-
significação dos eventos, de si própria e das demais pessoas com quem se relaciona no
contexto sociocultural em que se desenvolve (Branco, 2003; Madureira & Branco, 2005;
Valsiner, 1989, 2007).
A abordagem sociocultural construtivista também concebe o desenvolvimento
humano e sua inserção semiótica (Valsiner, 2007) como um salto qualitativo que se
caracteriza pela emergência das funções psicológicas superiores e pelos processos de
transformação que geram novas funções e padrões psicológicos ao longo do tempo. Esse
salto qualitativo é possível a partir das experiências vividas pelo sujeito num determinado
tempo e lugar.
Além disso, a perspectiva sociocultural construtivista atribui um papel importante à
escola na formação integral do individuo, sendo esta um contexto de desenvolvimento
onde acontecem processos de socialização que influenciam de forma bastante significativa
a configuração de determinados padrões de interação social, bem como crenças e valores
específicos (Branco, 2006). A cultura exerce aí um papel fundamental na interpretação e,
conseqüentemente, no estudo e compreensão dos fenômenos psicológicos.
Esses e outros pressupostos e construtos teóricos da perspectiva serão abordados a
seguir, pela sua relevância para nosso estudo.
2.1. A Natureza Sociocultural do Desenvolvimento Humano
A perspectiva sociocultural construtivista parte de uma visão holística e sistêmica
do desenvolvimento humano, compreendendo-o como um processo de transformação
qualitativa que acontece com base nas interações do individuo com seu ambiente. Dessa
forma, enfatiza a natureza inerentemente social do desenvolvimento da pessoa, ressaltando
a interdependência, ou a relação dialética, entre individuo e sociedade. O desenvolvimento
integral do ser humano, portanto, dá-se particularmente no contexto dos processos de
19
socialização da pessoa em situações e momentos sócio-histórico-culturais específicos (e.g.
Rogoff, 2005; Valsiner, 1989, 2007).
É importante ressaltar que este pressuposto teórico—sociogênese—não deve ser
entendido de forma reducionista. Ou seja, as funções e características psicológicas do
indivíduo não são um simples produto construído e determinado pelo ambiente
sociocultural. A relação dialética entre individuo e sociedade deve ser entendida como uma
relação complexa e dinâmica, na qual individuo e sociedade se constituem e se
transformam mutuamente. Ao mesmo tempo em que a sociedade e a cultura são
importantes e participam do desenvolvimento do indivíduo, este último tem um papel ativo
no seu próprio processo de desenvolvimento e nas transformações do contexto
sociocultural em que se desenvolve.
Para uma melhor compreensão da relação dialética entre o indivíduo e a sociedade,
Valsiner (1989) e Valsiner e Cairns (1992) adotam o princípio da separação inclusiva. De
acordo com este princípio, o indivíduo e a sociedade não devem ser vistos como construtos
em oposição entre si, mas como construtos que pertencem a um mesmo sistema interativo.
São construtos separados de um mesmo conjunto, que se sobrepõem e contradizem em
determinados contextos e momentos, mas que mantêm uma interdependência.
O princípio da separação inclusiva, como explicado por Valsiner (1989) e Valsiner
e Cairns (1992), leva em conta a interdependência de opostos aparentes dentro de um
mesmo sistema interativo ou de uma mesma unidade analítica e holística. Esta noção
implica uma compreensão mais adequada dos mecanismos sistêmicos de desenvolvimento.
No caso da relação sujeito-sociedade, o indivíduo se diferencia da sociedade, ao mesmo
tempo em que mantém uma relação de interdependência com ela. Ou seja, o contexto
sociocultural constitui o sujeito e vice-versa, de forma que ambos são participantes ativos
na constituição da cultura coletiva (partilhada socialmente) e da cultura pessoal (subjetiva),
ao longo do desenvolvimento da pessoa e da sociedade.
Para Valsiner (1994, 1998, 2007), a cultura coletiva representa os significados
compartilhados pelos diferentes grupos de referência dos quais o sujeito participa. Dentre
esses significados se incluem as normas e regras sociais, assim como as práticas da vida
cotidiana. A cultura pessoal representa os significados que o indivíduo internalizou de
forma ativa e de acordo com suas experiências, constituindo o conjunto de normas, valores,
crenças e opiniões que orientam sua ação nos diferentes contextos socioculturais. A cultura
pessoal é uma recriação singular da cultura coletiva que é externalizada, introduzindo
20
novos elementos à cultura coletiva o que permite, ao longo do tempo, romper padrões
socialmente construídos.
Podemos dizer que os termos cultura coletiva e cultura pessoal são termos
utilizados por Valsiner (1994, 1998, 2007) para expressar as instâncias do social e do
sujeito, em constante interação. Existe uma relação dialética entre a cultura coletiva e a
cultura pessoal, o que equivale a dizer que padrões sociais, crenças e valores coletivos e
individuais se submetem a uma constante transformação, na medida em que são
internalizados e externalizados criativamente pelas pessoas.
Em função dos pressupostos anteriores, a cultura não deve ser vista como um
conjunto de regras e valores imutáveis. A cultura é um produto do cotidiano. Ela é
constantemente construída e reconstruída a partir das diversas experiências compartilhadas
socialmente. Ao mesmo tempo em que a cultura tem um papel fundamental no processo de
desenvolvimento e socialização da pessoa, ela é modificada.
Para compreender melhor o papel da cultura no processo de desenvolvimento
humano, Cole (1992) sugere o conceito de mediação cultural como instrumento para
analisar os efeitos da cultura sobre os fenômenos do desenvolvimento. A cultura, como
afirma Cole (1992), não deve ser entendida como um pano de fundo do desenvolvimento,
nem como simples diferenças entre os diversos grupos humanos. A compreensão do papel
da cultura no desenvolvimento humano deve partir de uma definição de cultura como meio
que abrange a criação e evolução de instrumentos e signos que atuam como mediadores do
desenvolvimento humano.
Para Valsiner (1989) e Rosa (2007) o papel da cultura no desenvolvimento humano
deve ser entendido a partir do conceito de mediação semiótica. Segundo eles, entender a
cultura como mediação semiótica pressupõe entendê-la como um contexto estruturado e
caracterizado por um conjunto de significados específicos que dão sentido às ações do
sujeito, e que possibilita a co-construção pessoal e coletiva de objetivos, crenças e valores.
A atividade e a interação humana acontecem em contextos socioculturais específicos,
carregados de significados. É nesses contextos que as mensagens culturais são ativamente
comunicadas, interpretadas e re-significadas, tanto de forma coletiva como pessoal.
O conceito de mediação semiótica, além de abordar a relação entre
desenvolvimento e cultura, enfatiza a importância de ver o papel das interações sociais no
desenvolvimento da personalidade como um facilitador do desenvolvimento em uma certa
direção. Essa noção de facilitador do desenvolvimento é apontada por Valsiner (1989)
como canalização cultural. De acordo com o princípio da canalização cultural, os valores
21
culturais e padrões sociais compartilhados no contexto de uma cultura específica têm um
papel fundamental no processo de desenvolvimento pessoal, mas não devem ser vistos
como determinantes do mesmo, em função da autonomia do sujeito. É essa autonomia do
sujeito, em sua relação com a cultura e no contexto de sua atividade semiótica, o que
possibilita o ato criativo e transformador da pessoa e da sociedade (Valsiner, 2007).
O resgate da autonomia do sujeito pode ser entendido como uma característica
fundamental das diferentes perspectivas teóricas que podem ser agrupadas dentro do
modelo designado como Psicologia Cultural, e que têm como inspiração as teses de
Vygotsky. Embora na obra deste autor não apareça com freqüência e de forma explicita os
termos sujeito, subjetividade e self, é importante ressaltar que, para Vygotsky (1994), a
forma como o individuo experiencia emocionalmente uma situação específica está
estreitamente relacionada com o tipo de significado, ou de entendimento, que ele tem dessa
situação específica, significado que também varia em função do momento de
desenvolvimento em que o individuo se encontra.
A partir da perspectiva sociocultural construtivista, Valsiner (1989, 2007)
reconhece o papel fundamental da história de vida e das experiências do individuo em seu
desenvolvimento, o que implica reconhecer o papel ativo do sujeito no seu próprio
processo de desenvolvimento, em conjunto com o papel do ambiente ou contexto
sociocultural em que vive. Destaca, particularmente, a importância central do espaço
subjetivo e do papel das emoções na construção dos significados compartilhados
culturalmente.
Adotar o princípio da separação inclusiva (Valsiner, 1989; Valsiner & Cairns,
1992), assim como reconhecer o papel da história de vida e das experiências individuais no
desenvolvimento humano, significa adotar um modelo bidirecional para o estudo e
compreensão do processo de transmissão da cultura.
Palmieri (2003), ao abordar as principais características e implicações do modelo
bidirecional de transmissão da cultura para a psicologia do desenvolvimento, segue as
idéias expostas por Branco e Valsiner (1997) e explica que, de acordo com o referido
modelo, o indivíduo produz constantes novidades psicológicas em seu processo de
desenvolvimento e é assim que constrói sua subjetividade, contribuindo para o
desenvolvimento do contexto em que vive. A transmissão de mensagens culturais dá-se,
pois, de forma bidirecional.
Neste ponto, é importante ressaltar as principais diferenças entre a perspectiva
unidirecional do desenvolvimento e a perspectiva bidirecional. A primeira assume as
22
mensagens culturais como conteúdos fixos e bem definidos que são transmitidos de
geração para geração, e assimilados pela pessoa de forma similar àquela em que foram
transmitidos. Ou seja, a perspectiva unidirecional promove uma visão passiva do sujeito no
seu próprio processo de desenvolvimento, em suas interações e frente à influência
intergeracional (Palmieri, 2003).
As idéias da perspectiva unidirecional têm implicações importantes para os
processos de desenvolvimento e socialização da pessoa e, em especial, da criança. A
interpretação passiva do sujeito frente à influência intergeracional favorece relações que se
caracterizam pela assimetria de poder ou verticalidade. Como apontado pelo
construtivismo, as relações assimétricas são relações constituídas (e não necessariamente
constituintes), nas quais um dos pólos da relação impõe seus pontos de vista em função de
elementos como a autoridade e o nível de competência entre os parceiros.
Diferente da abordagem anterior, a perspectiva bidirecional do desenvolvimento
focaliza os papeis ativos e constitutivo de todos os interlocutores, independentemente de
sua autoridade e competência. Sendo assim, todos os interlocutores devem ser entendidos
como co-construtores de novos elementos culturais, a partir de seus respectivos papeis
sociais e de sua experiência pessoal. São construtores ativos e conjuntos da cultura coletiva
e de sua própria cultura pessoal (Valsiner, 1989, 2007).
A adoção de uma perspectiva bidirecional do desenvolvimento e da socialização
tem implicações importantes para o desenvolvimento da criança e para seu processo de
educação. No caso específico do desenvolvimento da criança, pode-se dizer que as
mensagens culturais são ativamente comunicadas pelos adultos (e/ou parceiros mais
experientes), e ativamente processadas pelas crianças, a partir de suas experiências
individuais e de sua história de vida específica. Sendo assim, tanto os adultos como as
crianças devem ser entendidos como co-construtores ativos e conjuntos de novos
elementos culturais.
Sendo assim, a adoção de uma perspectiva bidirecional do desenvolvimento e da
socialização implica enfatizar a importância das relações e interações mais simétricas para
o desenvolvimento humano. Estas relações são apontadas pelo construtivismo como
relações constituintes, uma vez que todos os pólos têm a possibilidade de contribuir e
participar nos diferentes eventos sociais de forma coordenada e conjunta. Relações mais
simétricas podem enriquecer as trocas sociais, uma vez que abrem o espaço para que os
interlocutores saiam de seu respectivo ponto de vista (descentração), e possam
compreender o ponto de vista alheio, assim como construir novas visões.
23
Assim, pode-se concluir que a perspectiva bidirecional ressalta a importância não
somente do conteúdo, mas também da qualidade das relações e interações sociais. Os
aspectos cognitivos e afetivos das relações sociais estão intimamente ligados e devem ser
levados em conta na hora de estudar e compreender estas relações.
Por último é importante sublinhar que o processo de desenvolvimento e
socialização acontece em variados contextos (família, escola, grupos de pares) que são
extremamente significativos para o desenvolvimento. É nesses contextos que as mensagens
culturais são ativamente comunicadas, interpretadas e re-significadas, tanto de forma
coletiva como pessoal, através da diversidade de interações que neles se estabelece. É isto
que ocorre em relação às crenças e valores morais, bem como aos padrões de conduta
moral observados em contextos culturais determinados.
2.2. Os Processos de Internalização e Externalização
O conceito de internalização é de fundamental importância para a perspectiva
sociocultural construtivista, uma vez que ele se refere aos mecanismos e formas em que o
inter-psicológico se torna intra-psicológico. Este conceito tem sido proposto por vários
autores e estudiosos do desenvolvimento humano, dentre os quais se destaca Vygotsky
(1987):
Poderíamos formular a lei genética geral do desenvolvimento cultural da seguinte maneira:
qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena 2 vezes, em 2
planos: primeiro como algo social, depois como algo psicológico; primeiro entre as
pessoas, como uma categoria inter-psíquica, depois, dentro da criança, como uma categoria
intra-psíquica. (...) Temos o direito de considerar este postulado como uma lei no sentido
mais genuíno desta palavra, mas, entende-se que a passagem de fora para dentro transforma
o próprio processo, modifica sua estrutura e suas funções. (p. 161).
Vygotsky (1987) reconhece o processo de internalização como a interiorização
ativa dos conteúdos histórico-culturais que se manifestam e se transmitem através das
interações sociais entre os indivíduos. Este processo de internalização gera uma série de
transformações de natureza qualitativa nas funções psicológicas, e deve ser entendido a
partir da experiência emocional do individuo, uma vez que essa experiência emocional
representa, para ele, o fator mais importante que define o tipo de influencia de uma
situação determinada para o desenvolvimento (Vygotsky, 1994).
Em relação a esse aspecto, Palmieri e Branco (2004) explicam que a internalização
dos conteúdos culturais é orientada por diversos fatores motivacionais e afetivos, que
selecionam e priorizam aspectos culturais. Essa seleção não é necessariamente realizada de
24
forma intencional, mas refere-se aos significados que o indivíduo atribui aos aspectos
culturais, envolvendo uma multiplicidade de sentidos pessoais.
As autoras, também, enfatizam a inter-relação entre os processos de internalização
e externalização, assim como a importância desses dois processos para a compreensão da
relação dialética existente entre a cultura pessoal e a cultura coletiva. Como colocamos
anteriormente, a cultura coletiva representa os significados compartilhados pelos diferentes
grupos de referência do sujeito, enquanto a cultura pessoal se refere ao conjunto de
significados subjetivos transformados pelo individuo através do contato com a cultura
coletiva. Nos contextos comunicativos, a cultura pessoal é externalizada, introduzindo
novos elementos à cultura coletiva.
O conceito de externalização é de fundamental importância para a perspectiva
sociocultural construtivista, da mesma maneira que o conceito de internalização, uma vez
que a externalização se refere aos mecanismos e formas através das quais o indivíduo
participa das transformações que acontecem nas práticas típicas do contexto sociocultural
em que vive. Ou seja, refere-se às formas em que o intra-psicológico se torna inter-
psicológico.
2.3. O Sistema Motivacional: Crenças e Valores Socioculturais
No tópico anterior, foi ressaltado o papel da motivação nos processos de
internalização e externalização. Os conteúdos socioculturais são internalizados em função
dos significados afeto-cognitivos que o indivíduo atribui aos mesmos, envolvendo uma
multiplicidade de sentidos pessoais, o mesmo ocorrendo durante os processos de
externalização.
O reconhecimento do papel da motivação nos processos de internalização e
externalização está estreitamente relacionado com o reconhecimento da participação ativa
do indivíduo no seu próprio processo de desenvolvimento, e com o reconhecimento da
importância central do espaço subjetivo e do papel das emoções na construção e re-
construção dos significados compartilhados culturalmente (Branco, 2006). Reconhecer o
papel da motivação nesses dois processos se relaciona, assim, com a visão integral de ser
humano, típica da perspectiva aqui adotada. Esta advoga a integração e a interdependência
das três dimensões—cognição, emoção e ação—que têm sido, de uma forma ou de outra,
estudadas de forma fragmentada pela psicologia tradicional.
25
Cada indivíduo atribui um significado pessoal e subjetivo às experiências que
vivencia no seu cotidiano, assim como responde a essas experiências em função do
significado pessoal que as mesmas têm para ele. De acordo com Vygotsky (1994), é a
experiência emocional que o indivíduo tem diante das diferentes situações o que define sua
relação com o meio, e esta experiência emocional irá depender do nível de compreensão
que o indivíduo tem da situação específica e dos significados pessoais que este lhe atribui.
O significado, entendido como generalização que se desenvolveu ao longo da história da
humanidade, é apreendido e re-elaborado em diferentes níveis pela criança na sua relação
com outras pessoas.
A rede de significados pessoais reconstruídos pelo indivíduo ao longo de seu
processo de desenvolvimento (Rossetti-Ferreira & cols., 2004) se organiza de forma
sistêmica, fazendo parte do universo motivacional da pessoa, o qual está na base de sua
ação. Sendo assim, as crenças e valores sociais, transmitidos culturalmente e re-
significados pelo indivíduo, são elementos que compõem seu sistema motivacional. No
entanto, como Palmieri e Branco (2004) ressaltam, o universo motivacional do indivíduo é
um sistema complexo, dinâmico, subjetivo e original que está constantemente sendo
construído e reconstruído. Essa idéia de transformação está estreitamente relacionada com
a introdução do termo “orientação” no contexto sociocultural construtivista:
A introdução do termo “orientação” no contexto sócio-cultural construtivista busca
assegurar o caráter aberto e dinâmico dos conceitos de objetivos, crenças e valores,
associados à idéia de transformação (Branco & Valsiner, 1997). Objetivos, crenças e
valores, nesse contexto, não existem de forma estática e independentemente, pois ao
mediatizar a relação bidirecional pessoa-contexto cultural, vão se constituindo e se
incorporando ao sistema motivacional da pessoa de forma contínua e transformadora, em
função de perspectivas subjetivas que englobam as dimensões de passado, presente e
futuro. (Palmieri e Branco, 2004, p.196).
As autoras, além de enfatizar a perspectiva dinâmica introduzida pelo termo
orientação, explicam a diferença conceitual entre crença e valor, conforme colocada por
Valsiner, Branco e Dantas (1997). Essa diferença conceitual se deve, principalmente, à
maior carga afetiva que está presente no conceito valor, que se articula mais proximamente
com o conceito de meta ou objetivo. Sendo assim, o conceito ‘valor’ se conforma como
um caso especial de orientação para crença, que é mais estável em função de sua carga
afetiva e do papel que o mesmo desempenha nos processos de formação da identidade
(Branco & Madureira, 2008).
26
Tanto as crenças como os valores sociais são transmitidos de forma bidirecional
através das mensagens culturais, ativamente comunicadas pelos adultos e ativamente re-
significadas pelas crianças. Mesmo existindo uma assimetria nas relações entre crianças e
adultos, as ações das crianças têm um efeito considerável nos adultos com quem
interagem, e este efeito deve ser levado em consideração. No entanto, diversos estudos
empíricos, como o estudo realizado por Salomão (2001), mostram que as mensagens
culturais comunicadas pelos adultos podem ser ambíguas e contraditórias, ressaltando
assim a importância do estudo das crenças e valores sociais nos processos de comunicação
intersubjetiva (Branco & Valsiner, 2004; Valsiner, Branco & Dantas, 1997). O mesmo
certamente pode ser dito com relação às crenças e valores morais (Barrios & Branco, 2007;
Martins & Branco, 2001).
2.4. Comunicação e Metacomunicação nas Interações Sociais
Uma vez que a perspectiva sociocultural construtivista enfatiza a natureza social do
desenvolvimento e a importância das relações e interações sociais e o papel dos processos
comunicativos na transmissão de crenças e valores sociais, é fundamental sublinhar o
caráter multifuncional da comunicação, como apontado por Fatigante, Fasulo e Pontecorvo
(2004).
As autoras, partindo dos três níveis de abstração da comunicação apontados por
Bateson em 1972, apresentam o conceito de metacomunicação e sua evolução teórica.
Trata-se de um conceito primeiramente utilizado no campo da psicopatologia, que parte de
uma conceitualização de três níveis de abstração presentes na comunicação humana. O
primeiro nível, denotativo, refere-se às etiquetas aplicadas aos objetos; o segundo,
metalingüístico, no qual o objeto do discurso é a linguagem em si mesma; e o terceiro
nível, a metacomunicação, no qual o objeto do discurso é a relação entre os participantes
da interação. Sendo a metacomunicação uma comunicação sobre a comunicação, Branco
(2006), por outro lado, aponta para diferentes níveis de metacomunicação, dentre os quais
destaca o nível relacional como aquele de maior importância e significado para a
psicologia.
A metacomunicação tem como principal objetivo ou função a construção mútua de
significados, por parte dos participantes, acerca de sua própria interação e/ou relação.
Sendo assim, contribui de forma muito importante para a interpretação dos significados
diversos que são co-construídos nos processos comunicativos. A função da
27
metacomunicação relacional é continua e pode acontecer tanto através da linguagem
verbal, como da linguagem não verbal. Os participantes da interação não só usam signos
lingüísticos, mas também outros como gestos, tom da voz, postura e movimentos
corporais, ritmo da fala, entonação da voz, olhares e expressões faciais. Todos esses
elementos têm um papel preponderante na atribuição de sentido à comunicação e, ao
mesmo tempo, são fatores muito importantes para a co-regulação das ações dos
participantes (Fogel, 1993).
As mensagens metacomunicativas estão estreitamente relacionadas com o tipo de
atividade ou contexto em que os participantes da interação estão envolvidos em um
momento específico, e com os diferentes papéis que os participantes alternam durante a
interação, passando particularmente pelas relações de poder que se estabelecem e alternam
durante o processo interativo.
As mensagens metacomunicativas não só contextualizam a interação, elas também
definem como os padrões comunicativos se ajustam às orientações para objetivos dos
participantes. Com isto, permitem que novas orientações para objetivos emerjam durante a
interação.
A metacomunicação, por ser um nível basicamente não lingüístico ou não verbal da
comunicação (salvo quando ocorre sob a forma de metacomunicação verbal, Branco,
Pessina, Flores & Salomão, 2004), sempre está presente na interação humana, mesmo
quando não há uma comunicação através de signos lingüísticos. Portanto, a
metacomunicação nos leva à impossibilidade de não existir comunicação entre os seres
humanos, mesmo quando existe silêncio e posturas estáticas (Salomão, 2001; Watzlawick,
Beavin & Jackson, 1967).
A metacomunicação, portanto, constitui-se em um nível do fenômeno comunicativo
que se inter-relaciona com os demais, uma vez que a comunicação propriamente dita
consiste em um processo mais amplo, caracterizando-se como fenômeno multifacetado e
complexo. No entanto, a relação ou articulação entre os diferentes níveis pode ser ambígua
e/ou contraditória. Essa ambigüidade e/ou contradição entre os níveis da comunicação
também são elementos fundamentais da comunicação, e quando ligados a padrões
patológicos de relações entre as pessoas, podem se constituir em sérios problemas para os
indivíduos em interação.
As crianças, assim como todos nós, são altamente sensíveis aos sinais
metacomunicativos, incluindo-se as ambigüidades e contradições que freqüentemente
existem entre a mensagem e a metamensagem direcionadas a elas pelos colegas e adultos.
28
Particularmente estes últimos, diretamente responsáveis por sua educação e
desenvolvimento, devem, pois, ter consciência da qualidade da comunicação que com elas
estabelecem, evitando ativamente a configuração de relações de duplo vínculo ou de dupla
mensagem com as crianças.
A importância das mensagens metacomunicativas para o desenvolvimento moral é
ressaltada por diversos autores (e.g. Branco & cols., 2004; DeVries e Zan, 1998; Salomão,
2001; Tappan, 1992), em função do papel fundamental que a linguagem ocupa na
dimensão psicológica da experiência moral. A linguagem representa a realidade
psicológica e, ao mesmo tempo, participa de sua própria constituição. Sendo assim, o
estudo do desenvolvimento moral com base em uma perspectiva sociocultural
construtivista deve considerar a centralidade da comunicação e da metacomunicação nos
processos de significação relacionados ao mesmo.
29
CAPÍTULO 3 - A COMPREENSÃO DA MORALIDADE NO CONTEXTO
SOCIOCULTURAL CONSTRUTIVISTA
Uma vez que o presente trabalho teve como objetivo abordar o estudo do
desenvolvimento moral a partir dos pressupostos e conceitos teóricos da perspectiva
sociocultural construtivista, faz-se necessário enfocar, de modo particular, aspectos
fundamentais para o estudo e compreensão da moralidade a partir de nossa perspectiva
teórica. Alguns desses aspectos se constituíram foco de análise, ao longo de nossa
pesquisa.
3.1. Moralidade, Disciplina e Convenções Sociais
Várias são as definições de moralidade. No contexto deste trabalho, adotamos a
perspectiva de Freitag (1997) que, baseada em Max Weber concebe o domínio da ‘moral’
como da ordem do sujeito, em relação dialética com o conceito de ‘ética’, que se define por
sua natureza mais social e coletiva. A autora, eminente pensadora construtivista, não se
enquadra na abordagem sociocultural, porém suas contribuições conceituais para o campo
do estudo da moralidade, em uma perspectiva construtivista, são de inestimável valor.
Para Freitag (1997), a moral é um conceito complexo que deve ser estudado e
compreendido de forma multidisciplinar, em função de suas diferentes dimensões. Em
primeiro lugar, a autora ressalta a dimensão comportamental da moralidade. A moral tem a
ver com a ação dos sujeitos no contexto das interações sociais. Essa ação está orientada e
pode ser julgada a partir de um conjunto de regras e normas que determinam, em nível
sociocultural, o que é considerado certo, justo e correto na interação com os outros.
Algumas dessas regras e normas podem se constituir (ou não) princípios e valores que
orientam, de forma mais estável, as ações e interações em função de sua importância para o
convívio social. Freitag (1997) se refere a essas normas e regras como a dimensão
normativa da moralidade, e enfatiza que a mesma pressupõe um sujeito consciente, capaz
de julgar o certo e o errado, o bem e o mal, o justo e o injusto. Por outro lado, a moralidade
pressupõe uma causa da ação, ou seja, uma explicitação para as razões que levam o sujeito
a agir de uma determinada forma. As razões, motivos e intencionalidade constituem a
dimensão motivacional da moralidade, e seu estudo é de vital importância para a
psicologia.
30
No estudo do desenvolvimento moral, as dimensões normativa e comportamental
da moralidade têm sido privilegiadas por diferentes perspectivas teóricas, como vimos na
primeira parte desta Fundamentação Teórica. Já a dimensão motivacional da moralidade
tem sido relegada a um segundo plano e, muitas vezes, esquecida pela própria psicologia.
Esta questão tem implicações importantes para o estudo do desenvolvimento e
funcionamento moral, uma vez que a dimensão motivacional se refere exatamente ao
conjunto de princípios e valores sócio-morais que orientam a ação do sujeito e que co-
existem na base de muitas regras e normas estabelecidas socialmente.
Por outro lado, enfatizar as dimensões normativa e comportamental da moralidade
pode levar a um reducionismo deste conceito. A moral, em função de sua complexidade e
várias dimensões, está inter-relacionada com outros conceitos que também são importantes
para o convívio social, como é o caso do conceito de disciplina. No entanto, é fundamental
ressaltar que moral e disciplina são conceitos diferentes e que o primeiro não pode ficar
reduzido ao segundo. Enquanto a moral se refere a um conjunto de conceitos e preceitos
que regulam a qualidade das relações que se estabelecem entre os sujeitos em termos de
confiança, respeito e justiça, as diferentes conceituações do termo disciplina enfatizam a
mera obediência a regras, que têm como fim ulterior o controle do comportamento.
Lima (2000) estudou a questão da disciplina no contexto escolar e fez uma revisão
do conceito, encontrando definições que passam pelo treinamento do comportamento, pela
punição, e pela obediência e submissão. Alguns dos conceitos destacados pela autora são
os seguintes: (1) Treinamento de alunos e subordinados a uma conduta e ação adequadas,
através de instrução e exercício; (2) Sistema pelo qual a ordem é mantida; (3) Observância
de preceitos e normas; (4) Submissão a um regulamento; (5) Tratamento que corrige ou
castiga.
De forma geral, os diferentes conceitos revisados por Lima (2000) ressaltam uma
postura passiva do educando em relação ao educador, e favorecem as relações que se
caracterizam pela assimetria de poder ou verticalidade. Como colocado anteriormente, as
relações assimétricas não contribuem para níveis mais elevados de moralidade, e são
características de perspectivas unidirecionais de desenvolvimento e transmissão de cultura.
Outro conceito que está estreitamente relacionado com a moralidade é o conceito
de convenções sociais, mais relacionado à dimensão normativa da conduta. Autores como
Turiel (2002) diferenciam ambos os conceitos, afirmando que as convenções sociais
podem ser definidas como consensos de conduta que regulam as interações dos indivíduos
dentro dos sistemas sociais. O autor especifica que as convenções sociais, diferentemente
31
dos princípios e valores morais, têm caráter arbitrário, local e circunstancial. Sendo assim,
Turiel (2002) advoga pela necessidade de diferenciar o domínio moral do domínio
convencional. Segundo o autor, crianças de quatro a cinco anos já distinguem claramente
as transgressões morais (machucar um colega) das transgressões convencionais (fazer
bagunça na hora do recreio).
La Taille (2001) difere das idéias apontadas por Turiel (2002), e especifica que
certas convenções sociais, como a polidez, fazem, sim, parte do universo moral das
crianças pequenas. Para La Taille (2001), a polidez indica minimamente o respeito e
interesse pelo outro, com exceção dos casos de extrema hipocrisia. Neste ponto, é
importante assinalar que a idéia do autor nos remete à questão da motivação, aspecto
central da moralidade.
Em nosso trabalho, diferenciamos ambos os conceitos e ressaltamos a importância e
necessidade de levar em conta o papel da motivação e do contexto interativo na hora de
estabelecer relações e diferenciações entre determinadas convenções sociais e a
moralidade. Concordamos com autores como DeVries e Zan (1998), que enfatizam a
dificuldade para estabelecer uma distinção clara e bem definida entre o social e o moral na
maioria das situações. Embora algumas questões possam parecer especificamente questões
de convenção social, elas podem ter implicações morais subjacentes ou podem tornar-se
morais em determinado contexto interativo.
3.2. A Natureza Sociocultural e Subjetiva da Moralidade
A natureza sociocultural do desenvolvimento e do funcionamento moral é
intrínseca ao conceito de moralidade, e tem sido apontada por diversos autores, inclusive
das abordagens construtivistas (e.g. DeVries & Zan, 1998; La Taille, 2006; Piaget,
1932/1994), pois a moralidade não só diz respeito às relações sociais, como também tem a
sua origem nos relacionamentos interpessoais. O próprio Piaget (1932/1994) ressalta que é
na inter-relação com o outro que a criança entra em contato com os valores e crenças
morais e com as regras estabelecidas socialmente. Piaget (1932/1994) vai mais longe e
enfatiza a existência de dois tipos de relações interpessoais (relações de coação e de
cooperação) que podem ser significativas para o desenvolvimento do juízo moral. No
entanto, enfatizar a natureza sociocultural da moralidade, no contexto de uma perspectiva
sociocultural, vai além de levar em conta a sociogênese e a finalidade social dos valores e
crenças morais.
32
A moralidade é um construto sociocultural que, ao longo da história da
humanidade, tem sido elaborado e estabelecido de formas diferentes e de acordo com os
interesses das diversas classes e grupos sociais que convergem em um determinado
contexto social e momento histórico. Para Vygotsky (2004), o estudo da moralidade, a
partir de uma perspectiva sociocultural, deve levar em conta esse caráter co-construido e
histórico do fenômeno moral, além de outros aspectos importantes. Um desses aspectos é a
negação de uma raiz absoluta ou superempírica da moral ou de qualquer sentimento moral
inato. Para o autor, do ponto de vista psicológico, o comportamento moral como qualquer
outro, tem na sua base reações inatas e é elaborado pelo individuo a partir das
interferências sistemáticas do meio. Como reações inatas, Vygotsky (2004) entende as pré-
disposições emocionais de um individuo em relação a outro (como no conceito de empatia,
Hoffman, 2000), referindo-se a um ‘instinto’ social e gregário inerente à condição humana.
Ou seja, no marco de uma psicologia sociocultural, a moralidade se constitui um construto
cultural e histórico com bases biológicas, modificadas ao longo do desenvolvimento
filogenético da espécie humana.
Valsiner (2007) aponta que, no marco da Psicologia Cultural, as normas, crenças e
valores sociais são ferramentas e construtos culturais que têm, entre suas funções, orientar
o comportamento do indivíduo, proporcionando um sentido para suas ações dentro das
fronteiras e limites (constraints) de sua cultura. Por outro lado, as crenças e valores sociais
(incluindo-se aqui as morais) são transmitidos no seio das interações sociais e
internalizados de forma criativa e singular pelo individuo, a partir de sua experiência
subjetiva, que é única. Além de Valsiner (2007), outros autores de perspectivas
socioculturais (e.g. Branco, no prelo; Martins & Branco, 2001; Rey & Martinez, 1989;
Rogoff, 2005) ressaltam a importância e necessidade de levar em conta o caráter social e
individual/subjetivo da moralidade, assim como o papel ativo do sujeito na re-significação
das crenças, valores e ideais morais (e.g. Martins & Branco, 2001).
Rogoff (2005) ressalta a natureza cultural da moralidade e a especificidade da
educação moral nas diferentes culturas. Em relação à primeira questão, Rogoff (2005)
explica que a noção de moralidade está ligada a concepções culturais sobre como os
indivíduos se relacionam e devem se relacionar uns com os outros em sua comunidade.
Algumas comunidades enfatizam a negociação de tratamento e recursos iguais para todas
as pessoas, outras enfatizam a responsabilidade com o grupo, no contexto de uma relação
de autonomia e interdependência. De acordo com a autora, as diferenças nos preceitos
morais parecem se agrupar de maneira que sugerem visões de mundo diferentes nas
33
distintas comunidades. Como exemplo, ela coloca as diferentes visões sobre moralidade
em duas comunidades determinadas. Entre os adultos e crianças de classe média dos
Estados Unidos, a noção de moral está relacionada com aquilo que os indivíduos
independentes concordam (contratos, promessas, consentimento etc.). Entre os adultos e
crianças de Bhubaneswar (Índia), a noção de moral está relacionada com práticas
consagradas pelo costume, que são parte de uma moral natural, na qual os papéis sociais e
os relacionamentos seguem regras específicas.
Sobre a especificidade da educação moral nas diferentes culturas, Rogoff (2005)
ressalta que as formas em que os adultos de uma cultura específica interferem nas questões
relativas à educação das crianças variam de uma cultura para outra. A autora analisa
diversas pesquisas culturais e coloca exemplos de interferências adultas nas questões
morais que surgem no dia-a-dia das crianças. Por trás dessas diversas formas de
interferência existem orientações para objetivos, crenças e valores específicos para cada
cultura (Valsiner, Branco & Dantas, 1997). As formas como as crianças de uma
determinada cultura respondem as interferências adultas também estão de acordo com as
orientações para objetivos, crenças e valores da cultura específica na qual elas se
desenvolvem.
A aprendizagem da ordem moral da comunidade por parte das crianças acontece no
contexto de eventos cotidianos nos quais as crianças recebem comentários morais, ou
reações específicas, que indicam o que é bom ou mau, certo ou errado (Schweder & Much,
1987). Sendo assim, as crianças apreendem à medida que participam de práticas culturais e
são orientadas pelos valores de sua comunidade. Esta participação orientada inclui esforços
tanto dos parceiros sociais como das próprias crianças, que cumprem papeis ativamente
centrais no seu processo de socialização. De acordo com Rogoff (2005), o
desenvolvimento moral se dá a partir da vivência concreta da pessoa no contexto de
práticas culturais específicas e do dia-a-dia, em situações educativas não necessariamente
escolares. No contexto dessas práticas culturais não há um educador ativo nem um
educando passivo. A participação orientada pressupõe a atividade conjunta de educadores e
educandos e tem como objetivo principal enfrentar de forma compartilhada as tarefas
morais que surgem, de forma natural, na experiência dos indivíduos.
34
3.3. Desenvolvimento e Educação Moral na Perspectiva Sociocultural Construtivista
Vários autores, desde perspectivas teóricas diferentes, têm realizado diversas e
significativas contribuições para a compreensão da relação entre o desenvolvimento e a
educação moral. Entre eles, podemos destacar nomes como Kohlberg (1984), DeVries e
Zan (1998), La Taille (1998), Puig (1998), Rogoff (2005) e Serrano (2002), que têm
enfatizado o papel fundamental das relações e interações sociais para o desenvolvimento
moral, assim como têm enfatizado a necessidade de uma educação que contemple este
desenvolvimento de forma consciente e planejada.
DeVries e Zan (1998), a partir das idéias apontadas por Piaget (1932/1994) sobre o
desenvolvimento do juízo moral, ressaltam a importância das relações e interações das
crianças com seus colegas e com os adultos para o seu desenvolvimento moral. De acordo
com as autoras, a rede de relações interpessoais que forma a experiência da criança
configura o ambiente sócio-moral no qual ela está imersa. Dependendo da natureza do
ambiente sócio-moral, a criança aprende que o mundo das pessoas é coercitivo ou
cooperativo, satisfatório ou insatisfatório. A relação adulto-criança é fundamental, uma vez
que é o adulto quem tem a possibilidade de estabelecer o ambiente sócio-moral,
organizando as atividades e relacionando-se com as crianças de modo predominantemente
coercitivo ou cooperativo. Para as autoras, o relacionamento dos adultos com as crianças
pode, muitas vezes, incentivar (ou não) o desenvolvimento da moralidade autônoma. Além
disso, as formas e estratégias de intervenção do adulto nas questões sócio-morais das
crianças se constituem, também, elementos significativos para o desenvolvimento e
educação moral.
Para Puig (1998), a intervenção educativa em prol do desenvolvimento da
moralidade deve acontecer a partir de uma perspectiva que entenda a educação moral como
construção da personalidade, e deve levar em conta as situações produzidas na realidade
social. O autor afirma que educar moralmente supõe considerar a incerteza da experiência
vital do ser humano. A notável imprevisibilidade das experiências de problematização
moral exige a construção de um modo de ser pessoal aberto à improvisação e à
criatividade. Puig (1998) também enfatiza que a consciência moral heterônoma ou
autônoma tem sua origem nas práticas sociais e, mais precisamente, nas interações
mediadas pela linguagem. A inter-relação com os demais é a chave que nós permitirá
explicar o aparecimento das modalidades heteronômica e autônoma da consciência
pessoal. O autor, concordando com Piaget (1932/1994), sublinha que as relações de
35
respeito unilateral baseadas na coerção dão lugar a uma consciência moral heterônoma,
enquanto as relações de respeito mutuo, baseadas na cooperação, permitem o aparecimento
de formas morais autônomas.
De acordo com Puig (1998), a consciência moral depende da mediação que a
linguagem realiza. Construímos consciência graças ao uso da linguagem na relação
interpessoal. O uso da linguagem, como processo comunicativo, supõe uma representação
mental do expressado. Por meio da linguagem, a criança se relaciona com seu grupo social,
é capaz de se ver na perspectiva do outro e assumir o seu papel. Sendo assim, a linguagem
utilizada nos processos comunicativos vai além da mera repetição passiva das influencias
sociais, abrindo espaço para a formação da consciência moral autônoma.
A perspectiva sociocultural construtivista propõe a integração dessas idéias e
destaca o papel constitutivo da mediação semiótica que se dá pela linguagem e pelo afeto
para o desenvolvimento moral, assim como a importância do contexto sócio-histórico-
cultural em que o indivíduo se desenvolve (Barrios & Branco, 2007; Martins & Branco,
2001). As relações e interações das crianças com colegas e com adultos são fundamentais,
uma vez que é no contexto dessas interações e relações que as crenças e valores morais são
transmitidos e ativamente processados pela criança. Portanto, características, conteúdo e
qualidade dessas interações e relações são aspectos fundamentais para o processo
educativo e, conseqüentemente, para o desenvolvimento moral (Shweder & Much, 1987).
Além disso, a perspectiva sociocultural construtivista destaca, em especial, o papel
fundamental da metacomunicação no desenvolvimento da pessoa, de forma geral, e no
desenvolvimento e educação moral, de forma mais específica. As pessoas comunicam e
metacomunicam as crenças e valores sócio-morais que fazem parte de sua cultura pessoal e
da cultura coletiva, nas atividades e rotinas do dia-a-dia. Comunicação e metacomunicação
que muitas vezes se contradizem, gerando ambigüidades que podem passar despercebidas
para os adultos, mas não para as crianças, que são altamente sensíveis aos sinais
metacomunicativos (Barrios & Branco, 2007). A importância das mensagens
metacomunicativas para o desenvolvimento moral é ressaltada por diversos autores de
diferentes formas. Para DeVries e Zan (1998), os adultos comunicam continuamente
mensagens sociais e morais tanto quando dissertam para as crianças sobre regras e
comportamentos, como quando administram determinadas sanções para o comportamento
das mesmas.
De acordo com Vygotsky (2004), as mensagens sócio-morais e as estratégias
pedagógicas, que se veiculam no contexto escolar, refletem as crenças e valores
36
socioculturais de um momento histórico especifico. Entretanto, essas crenças e valores têm
um longo percurso filogenético e carregam consigo relações históricas entre a moral e o
poder. Por muito tempo, a educação tradicional se concentrou em uma educação moral que
se baseava em princípios autoritários, considerando a obediência como um ideal para o
aluno. Atualmente, e em função de múltiplas mudanças sociais, esses princípios tem sido
alvo de profundos questionamentos. Entretanto, eles persistem em muitas das práticas
diárias do contexto escolar, podendo ser revelados através do estudo da metacomunicação.
3.4. Desenvolvimento Moral no Contexto Escolar
A perspectiva sociocultural construtivista, ao mesmo tempo em que enfatiza a
importância das vivências cotidianas e não necessariamente escolares no desenvolvimento
e educação moral das crianças, ressalta a importância da escola como contexto de
desenvolvimento para a experiência sócio-moral das crianças. Na escola, não só está em
jogo a aprendizagem de determinados conhecimentos e conteúdos, mas também o
desenvolvimento da pessoa como um todo e dos padrões relacionais que têm como base as
crenças e valores sócio-morais integrados no sistema motivacional do individuo.
A escola é um espaço típico de desenvolvimento e de socialização, em função do
vasto mundo de relações e interações pessoais que as crianças estabelecem com seus
professores e colegas. É no contexto dessas interações pessoais que se veiculam os
significados, crenças e valores socioculturais, que são re-significados de modo único pela
pessoa em desenvolvimento (Valsiner, 1989). No entanto, o conjunto de relações e
interações pessoais que se estabelecem no contexto escolar, assim como o universo de
valores que se veiculam através das mesmas fazem parte de um currículo oculto. Este
último pode ser entendido como um conjunto de fatores não programados que determinam
a totalidade das experiências vivenciadas pelas crianças em sua rotina escolar. Sua
finalidade, mecanismos e efeitos são geralmente desprezados ou desconhecidos pelos
educadores (Branco, 1989, 2003, no prelo).
De acordo com Branco (1989), dentro do currículo oculto aparecem diversos
aspectos da educação e do desenvolvimento que são negligenciados ou que não aparecem
como objetivos específicos e primordiais da escola, mas que estão presentes no cotidiano
da instituição. O currículo oculto abrange tanto a maneira pela qual o professor estrutura as
situações de aprendizagem (atividades e rotina), como as diferentes formas e padrões de
relacionamento que se estabelecem entre o educador e as crianças. Sendo assim, o
37
currículo oculto abrange a função socializadora da escola. O termo ‘oculto’ se refere ao
fato de que essa função socializadora, muitas vezes, é ignorada pelos educadores, criando o
um conflito não intencional entre os objetivos e a ação pedagógica. Como colocado
anteriormente, o desenvolvimento e a educação moral fazem parte do processo de
socialização da pessoa.
Outros autores, como DeVries e Zan (1998), também chamam a atenção para o
papel e a importância do currículo oculto no desenvolvimento e educação moral das
crianças. As autoras, assim como Branco (1989), enfatizam o papel do ambiente relacional
no desenvolvimento e educação moral das crianças, e descrevem um conjunto de aspectos
e padrões de interação que podem ser significativos para o desenvolvimento da
moralidade. Alguns dos aspectos ressaltados por DeVries e Zan (1998) estão relacionados
com o processo de estabelecimento e possível internalização de regras, com as estratégias
de resolução de conflitos interpessoais, e com a motivação social (ajuda, cooperação,
agressão, hostilidade, individualismo etc.). Na próxima seção abordaremos os mesmos de
forma mais detalhada, uma vez que foram objeto de análise em nosso estudo.
3.5. Conflitos Pessoais, Internalização de Regras e Motivação Social
Como apontam Valsiner e Cairns (1992), o conflito tem sido estudado em
diferentes áreas e em diferentes sentidos, pois as questões relativas ao conflito são tão
importantes quanto complexas. De forma geral, o conflito tem sido conceitualizado como
uma situação de oposição entre as partes integrantes de um sistema interativo. Na
perspectiva tradicional do desenvolvimento, essa oposição tem sido classificada em duas
formas específicas em função de suas possíveis conseqüências para o sistema: o conflito
positivo e o conflito negativo. O conflito positivo é aquele no qual a relação de oposição
entre as partes do sistema conduz à emergência de novos estados naquele sistema. Já o
conflito negativo implica um choque de competição exclusiva, devastando uma parte ou
outra e, desse modo, conduzindo à extinção do todo do qual são partes integrantes. Embora
seja importante levar em conta as conseqüências da oposição para o sistema interativo, dita
classificação estabelece uma dicotomia excludente entre ambos os tipos de conflito, e não
ressalta o importante papel que os dois podem desempenhar para o desenvolvimento do
indivíduo. Determinadas situações de oposição podem conduzir à extinção do sistema
interativo, mas ao mesmo tempo, possibilitar mudanças significativas para as partes
integrantes do mesmo.
38
Rey e Martinez (1989) afirmam que as situações de contradição são educativas, à
medida que são capazes de produzir tensão emocional e colocar o sujeito diante da
necessidade de apresentar ações qualitativamente diferentes da até então existentes,
impulsionando, assim, seu desenvolvimento. Entretanto, as contradições que não se
explicitam para serem elaboradas se convertem em objeto de tensão emocional entre os
sujeitos, e se transformam em focos permanentes de mal-estar, produtores de disposições
negativas que, em geral, não levam ao desenvolvimento. Para estes autores, o papel do
conflito no desenvolvimento pessoal está relacionado com a explicitação e a forma de
administrar as oposições e divergências.
Para Turiel (2002), o conflito é uma conseqüência das diferenças nas prescrições,
conhecimentos e crenças que motivam e direcionam a ação humana, no contexto da
interação. O conflito é característico da interação e intrínseco à condição humana, sendo,
portanto, do âmbito da moralidade.
No caso específico do contexto escolar, o conflito está presente com freqüência,
tanto nas interações professor-criança como nas interações criança-criança. De acordo com
DeVries e Zan (1998), o conflito interpessoal é um elemento presente e importante do
ambiente sócio-moral da sala de aula, que deve ser conduzido de forma significativa para o
desenvolvimento e a educação moral das crianças. Entretanto, a idéia da ocorrência de
conflitos parece constantemente perturbar o professor, e este passa, assim, a procurar evitá-
los como sendo algo sempre e exclusivamente negativo (Galvão, 2004; Lima, 2000).
DeVries e Zan (1998) ressaltam o significado de diversas estratégias e
interferências educativas na hora de lidar com os conflitos interpessoais dentro de sala.
Essas estratégias passam pela possibilidade de negociação das divergências por parte das
próprias crianças, o reconhecimento dos sentimentos, desejos e percepções dos envolvidos
na situação de conflito, a oportunidade de criar e sugerir soluções adequadas para a
situação de conflito, e a oportunidade de compensação e restabelecimento do vinculo
interpessoal. Em todas essas estratégias e interferências, o educador pode assumir uma
posição de mediador, no sentido de ajudar as crianças a partir de sua experiência e, ao
mesmo tempo, deixar o espaço para que elas se responsabilizem por seus conflitos e
exerçam a autonomia e criatividade em suas negociações.
Os conflitos interpessoais, quando negociados e resolvidos de forma autônoma e
criativa, podem se configurar experiências positivas que permitem a descentração por parte
das crianças envolvidas. Perceber os sentimentos e necessidades do outro, assim como os
próprios, é um elemento importante para a construção e expressão de sentimentos como a
39
empatia e respeito, que estão na base da motivação social (Hoffman, 2000). Por outro lado,
nas situações de conflito também é possível perceber a necessidade de estabelecer regras e
normas que orientam a ação em relação ao outro e ao convívio social de forma geral.
Segundo DeVries e Zan (1998), o objetivo mais amplo de envolver as crianças na
tomada de decisões e estabelecimento de regras dentro de sala de aula é contribuir para
uma atmosfera de respeito mútuo, na qual educadores e crianças possam praticar a
cooperação. Além disso, o envolvimento das crianças no processo de definição e
estabelecimento das regras pode promover o sentimento de necessidade de regras e justiça,
promover o sentimento de autoria das regras que norteiam o convívio do grupo, e
promover o sentimento de responsabilidade compartilhada pelo que acontece na classe e
pela forma como o grupo se relaciona.
A regra, como construto sociocultural, é internalizada no contexto das interações
concretas. Em função disso, participar do estabelecimento de regras pode representar uma
clara oportunidade para que as crianças compreendam e re-signifiquem as regras sócio-
morais, de forma criativa e singular, a partir de sua experiência subjetiva e única. Na
opinião de Piaget (1932/1994), seguir as regras estabelecidas por outros em função da
obediência não abre o espaço para a reflexão sobre o papel e funcionalidade das mesmas
no convívio humano, nem para o compromisso interno e autônomo (auto-regulado) com
elas. Insistindo que a criança siga apenas regras, valores e diretrizes estabelecidos
unilateralmente por outros, o adulto pode contribuir para o desenvolvimento de uma
moralidade conformista. Para que isso não aconteça, o professor deve reduzir o exercício
da autoridade desnecessária, estabelecendo, assim, relações menos assimétricas e mais
cooperativas com as crianças.
Autores como Piaget (1932/1994) e DeVries e Zan (1998) argumentam que é
apenas evitando o exercício da autoridade desnecessária que o adulto abre o caminho para
que as crianças desenvolvam relacionamentos autônomos, criatividade e sentimentos
morais que levem em consideração o melhor para todos. Os relacionamentos autônomos
operam através da cooperação, entendida como a possibilidade de coordenar os
sentimentos e perspectivas próprias com a consciência dos sentimentos e perspectivas dos
outros. O motivo para a cooperação começa com um sentimento de mútua afeição e
confiança, que vai se transformando em sentimentos de simpatia e consciência das
intenções de si mesmo e dos outros. Neste ponto, percebemos a grande convergência entre
o pensamento construtivista e a perspectiva sociocultural, que enfatiza o papel fundamental
da re-significação—isto é, da dimensão semiótica—para os processos de internalização
40
através dos quais processos inter-pessoais se transformam em intra-pessoais (Valsiner,
1989, 2007; Vygotsky, 1960/1987)
Ainda sobre esta questão, Turiel (2002) especifica que definir a moralidade desde a
perspectiva da internalização das regras e normas sociais significa não justificar o uso de
estratégias de intervenção voltadas para a obediência e autoridade, mesmo que o objetivo
seja promover a motivação social. A moralidade não deve ser imposta para a criança, e não
deve estar baseada, única e exclusivamente, em sentimentos negativos como a ansiedade e
a culpa. As crianças, desde pequenas, têm a possibilidade de construir e expressar
sentimentos como simpatia, empatia, respeito e amor.
Numerosas e diversificadas são as estratégias e interferências educativas que têm
como objetivo o desenvolvimento e a educação moral das crianças. Essas estratégias
podem diferir de uma cultura para outra, como apontado por Rogoff (2005), e podem
perpassar por estratégias que incluem obediência, promoção da culpa e da vergonha, e/ou
pelo incentivo da empatia e descentração, incluindo também diferentes tipos de sanções
compatíveis com a diversas práticas sociais. Entretanto, é fundamental que o adulto reflita
sobre as possíveis conseqüências dessas estratégias educativas, tanto em nível emocional
como moral (La Taille, 2004).
Quais as possíveis implicações dessas estratégias educativas para o
desenvolvimento moral das crianças? Que habilidades de participação social, negociação e
afirmação de suas próprias posições e pontos de vista podem ser desenvolvidas no contexto
das interações adulto-crianças e criança-criança? Qual o objetivo ulterior dessas estratégias
educativas? O que prevalece em nossas salas de aula, o controle do comportamento e a
disciplina, ou o desenvolvimento de uma moralidade autônoma e criativa? Como investigar
e trabalhar estas questões?
Todas as questões explicitadas até o momento são consideradas como fundamentais
pela perspectiva sociocultural construtivista, que propõe a sua integração e aponta aspectos
importantes para o estudo e compreensão do desenvolvimento moral. O primeiro deles é a
importância da qualidade das interações sociais, uma vez que é por meio da relação com
outros sujeitos que a criança elege valores, regras e normas que direcionarão seu
comportamento moral. O segundo, refere-se à necessidade de maior compreensão do papel
da cultura no desenvolvimento humano, uma vez que esta abrange a criação e
transformação histórica de instrumentos e signos que atuam como mediadores do
desenvolvimento. O terceiro aspecto refere-se à participação ativa do sujeito no seu
processo de desenvolvimento e no desenvolvimento histórico-cultural da humanidade.
41
Participação ativa que perpassa os conceitos e pressupostos de internalização,
externalização, cultura coletiva, cultura pessoal e o modelo bidirecional de transmissão
cultural. O quarto refere-se à integração sistêmica, dinâmica e complexa entre práticas
culturais e as crenças e valores morais no universo motivacional do indivíduo, que estão na
base de sua ação, e nas práticas concretas promovidas nos variados contextos de
desenvolvimento. Este último aspecto é uma contribuição significativa para o estudo e
compreensão do desenvolvimento moral, que deve ser entendido de forma ampla já que a
questão da moralidade abrange, além de aspectos concernentes à filosofia e antropologia,
as dimensões psicológicas interdependentes da cognição, da emoção e da ação intencional
(Barrios e Branco, 2007).
42
III - OBJETIVOS
O principal objetivo do estudo foi identificar e analisar processos, estratégias e
mecanismos presentes nas interações professora-criança, que possam ser significativos
para o desenvolvimento moral das crianças de uma instituição de Educação Infantil. Este
objetivo se desdobrou em três objetivos específicos:
(a) Identificar os possíveis significados das interações sociais professora-criança
para o desenvolvimento moral das crianças, através da análise microgenética
das interações no contexto das atividades do cotidiano escolar, e no contexto de
duas atividades estruturadas e planejadas pela professora com o objetivo
específico de promover discussões sobre questões morais entre as crianças.
(b) Identificar as conceituações dos profissionais da escola sobre questões de
natureza moral e outros temas centrais para o estudo do desenvolvimento moral,
a partir da análise interpretativa de sua elaboração discursiva, obtida em
situação de entrevista individual.
(c) Identificar padrões de consistência e inconsistência entre a elaboração
discursiva dos profissionais da escola e as interações concretas analisadas.
43
IV - METODOLOGIA
1. Considerações Metodológicas
A psicologia do desenvolvimento, seguindo o modelo clássico de ciência, tem se
aproximado de seu objeto de estudo de forma descontextualizada e/ou fragmentada, assim
como tem adotado pressupostos epistemológicos voltados para uma concepção
determinista da realidade. A visão cartesiana e a tradição positivista têm sustentado
trabalhos científicos na área que se preocupam de forma exagerada com o processamento
estatístico de dados coletados de forma descontextualizada, sem levar em conta o caráter
complexo dos fenômenos do desenvolvimento, nem a relação dialética entre os
pressupostos teóricos da ciência e os métodos através dos quais esses pressupostos teóricos
são construídos e reconstruídos.
A emergência de um novo paradigma, holístico e sistêmico, para o estudo do
desenvolvimento humano traz consigo a insatisfação de vários pesquisadores em relação às
limitações que os paradigmas positivista e cartesiano impuseram as ciências (Branco &
Rocha, 1998). Sendo assim, numerosos estudiosos do desenvolvimento propõem adotar
uma abordagem que leve em conta a natureza sistêmica e inter-relacionada dos processos
de desenvolvimento, assim como os contextos nos quais estes acontecem. Como colocado
por Dessen (2005): “precisamos empregar metodologias apropriadas para captar os
fenômenos de desenvolvimento do indivíduo, visto como integrado e integrando unidades
que são dinâmicas e mudam ao longo do tempo” (p. 276).
No entanto, a visão dessa necessidade não deve ser entendida como o
desmerecimento dos avanços e importantes estudos realizados a partir das diversas
conceituações de ciência. Ela deve ser entendida no marco da integração e da pluralidade,
tanto teórica como metodológica. Por outro lado, não existe, a priori, um método de
pesquisa que seja mais apropriado ou eficiente. A escolha do método de pesquisa constitui
um desafio para o pesquisador, que deve levar em consideração vários fatores, dentre eles a
natureza do fenômeno a ser investigado e os pressupostos teóricos que norteiam a pesquisa
(Fleith & Costa Jr., 2005).
A perspectiva sociocultural construtivista apresenta uma visão de metodologia
como processo cíclico de produção de conhecimento, que envolve diferentes momentos,
assim como a participação ativa do pesquisador no processo de aproximação dos dados e a
clareza do mesmo acerca de seu próprio papel na construção da pesquisa científica. De
44
acordo com Branco e Valsiner (1997), a metodologia é o processo de pensamento dos
procedimentos de intervenção em interação com o fenômeno estudado. Procedimentos de
intervenção que podem ser diversificados, sempre que compatibilizados às questões
específicas que o pesquisador pretende estudar (Branco, 1993).
Além da consideração da dimensão processual da produção do conhecimento, a
perspectiva sociocultural construtivista aponta outros aspectos fundamentais para o estudo
do desenvolvimento humano. O primeiro deles é a necessidade de desenvolver uma
abordagem metodológica que leve em conta as inter-relações entre cognição, afeto,
motivação e cultura, ressaltando a natureza sistêmica e dinâmica do desenvolvimento do
individuo. Sendo assim, o estudo do desenvolvimento humano no contexto sociocultural
construtivista não adota categorias estáticas, universais e definidas a priori. As categorias,
co-construidas no processo de produção do conhecimento, devem contemplar o caráter
complexo e dinâmico dos fenômenos do desenvolvimento, que acontecem em contextos
socioculturais específicos (Martins & Branco, 2001).
O segundo aspecto é a importância das interações sociais para o desenvolvimento
humano, uma vez que é por meio da relação com outros sujeitos que a pessoa entra em
contato, de forma ativa, com o conjunto de significados compartilhados culturalmente. Em
função do caráter dinâmico e complexo das interações sociais, a perspectiva sociocultural
construtivista aponta a importância do estudo minucioso das mesmas.
O terceiro aspecto está relacionado com o papel fundamental que ocupa a
linguagem no estudo e compreensão do desenvolvimento humano. A linguagem representa
a realidade psicológica e, ao mesmo tempo, participa de sua constituição. Assim, é
importante o estudo da elaboração discursiva dos sujeitos a partir do seu contato com o
universo de significados transmitidos e re-significados culturalmente.
A partir desses aspectos essenciais para a compreensão dos processos de
desenvolvimento e para o estudo das interações sociais, foi que se tomou a decisão de
utilizar metodologicamente a análise microgenética das atividades do dia-a-dia e de
atividades especialmente planejadas para promover discussões sobre temáticas
relacionadas à moralidade, gravadas em vídeo. Além disso, foram realizadas entrevistas
com as professoras e diretores da instituição. Os dados empíricos obtidos através da
aplicação de técnicas e instrumentos específicos de investigação foram analisados em
termos de indicadores relacionados aos objetivos da pesquisa, de forma a articular estes
indicadores com o intuito de facilitar o processo de inferência relativo à atribuição de
sentido (Rey, 1997) às experiências concretas das crianças no dia-a-dia da instituição.
45
2. Método
2.1. Participantes
O estudo foi realizado em uma escola de Educação Infantil da Rede Pública de
Ensino do Distrito Federal. Para selecionar a escola estudada, estabeleceram-se,
anteriormente, três critérios: 1) pertencer ao sistema público de ensino do Distrito Federal;
2) atender crianças na faixa etária de 4 a 6 anos; 3) demonstrar interesse em participar da
pesquisa. Estes critérios de escolha foram estabelecidos em função dos objetivos do estudo,
e da necessidade de pesquisas que possam contribuir para o aprimoramento da educação
pública.
Em um primeiro momento, participou do estudo o grupo de professoras, diretores e
crianças do período matutino da escola, uma vez que se pretendia analisar a prática
pedagógica da instituição. A participação dos mesmos ficou restrita às sessões de
observação direta nos diferentes espaços da escola e nas diferentes atividades que
aconteceram no dia-a-dia da instituição.
Após a etapa anterior, foi selecionada uma turma específica com 16 crianças de 6
anos para o estudo e análise das interações professora-criança no contexto das atividades
realizadas no dia-a-dia, e no contexto de duas atividades estruturadas e planejadas pela
professora, com o objetivo específico de promover discussões sobre temáticas relacionadas
à moralidade entre as crianças. Esta turma específica—liderada pela professora aqui
denominada P3—foi selecionada levando em consideração o interesse e consentimento da
professora e dos pais das crianças para as gravações em vídeo que foram realizadas. O
último critério etário (crianças de 6 anos de idade) foi estabelecido em função das
atividades que a professora estruturou, as quais demandaram a utilização da linguagem
entre os participantes.
Na última fase da pesquisa, participaram os diretores e as professoras da escola que
concordaram em realizar uma entrevista individual semi-estruturada e gravada em áudio.
Ao total, participaram nove profissionais da instituição. Nas entrevistas participaram tanto
as professoras do turno matutino como as professoras do turno vespertino.
As professoras foram abordadas diretamente em uma reunião realizada para
apresentar a pesquisa, explicar seus objetivos, procedimentos e benefícios, assim como
convidá-las para participarem da mesma.
46
As crianças que participaram da pesquisa foram abordadas diretamente em uma
conversa, em sala de aula, devidamente planejada pela professora e pela pesquisadora.
Essa conversa foi realizada para apresentar a pesquisadora, explicar que seria realizada
uma pesquisa e convidar as crianças para participarem das gravações em vídeo. Os pais e
responsáveis receberam uma comunicação por escrito, explicando a pesquisa, assim como,
o termo de consentimento livre e esclarecido.
As informações relativas aos profissionais que participaram da pesquisa aparecem
na Tabela 1 e foram obtidas durante a entrevista individual.
Tabela 1 - Informações sobre os profissionais participantes da pesquisa
Identificação Idade Formação Experiência
Educação
Tempo na
Escola
Cargos
Ocupados na
Escola
D1
48 Pedagogia
13 anos 3 anos Cargo
administrativo
D2
41 Geografia
20 anos 12 anos Cargo
administrativo
Professora
P1 36 Pedagogia 18 anos 5 anos Professora
P2 35 Pedagogia 15 anos 4 anos Professora
P3
Professora-foco
44 Pedagogia 26 anos 10 anos Professora
P4 38 Pedagogia 14 anos 4 anos Professora
Coordenadora
P5 38 Pedagogia
10 anos 7 anos Cargo
administrativo
Professora
Coordenadora
P6 48 Pedagogia 22 anos 4 anos Professora
P7 38 Pedagogia
17 anos 7 anos Professora
Coordenadora
Nota. D = membro da diretoria da escola; P = professora de educação infantil.
2.2. Equipamento e Materiais
Os equipamentos utilizados foram uma câmera de vídeo super VHS, marca
Panasonic, modelo PV-D300, uma TV e um vídeo-cassete para gravação e transcrição das
sessões gravadas em vídeo. Para registrar as entrevistas individuais com as professoras e
diretores da escola foi usado um gravador, marca AIWA, modelo TP-M525.
De forma geral, a pesquisa contou com a elaboração e utilização de um protocolo e
quatro roteiros de entrevistas, que aparecem nos anexos e serão explicitados, de forma
mais detalhada, a seguir.
47
O protocolo utilizado para o registro, transcrição e análise das sessões de
observação direta e das sessões gravadas em vídeo foi um protocolo elaborado e usado em
pesquisas anteriores (Salomão, 2001; Tacca, 2000). O mesmo permite o registro detalhado
das interações professora-criança e criança-criança, assim como auxilia na análise
qualitativa das mesmas. (Anexo I)
Os roteiros elaborados e utilizados na pesquisa foram: (a) Roteiro de entrevista
semi-estruturada com as professoras; (b) Roteiro de entrevista semi-estruturada com os
diretores; (c) Roteiro de entrevista semi-estruturada com a professora-foco. Todos os
roteiros foram elaborados, na sua versão final, após a inserção da pesquisadora no contexto
da instituição e a partir dos objetivos da pesquisa. (Anexos II, III, e IV respectivamente.)
Os roteiros elaborados para as entrevistas com diretores e professoras tiveram como
objetivo abordar questões de natureza moral e outros temas relevantes para o estudo do
desenvolvimento moral, assim como questões relativas à organização e prática pedagógica
da escola. O roteiro elaborado para a entrevista com a professora-foco teve como objetivo
principal suscitar a análise e avaliação das atividades estruturadas, por parte da
entrevistada.
2.3. Local dos Procedimentos: A Escola
A instituição escolhida, para a condução do estudo, foi uma escola de Educação
Infantil localizada no Plano Piloto de Brasília. O prédio onde funcionava a escola estava
situado em área residencial e ocupava parte de uma praça, junto com um parque infantil
que era usado pelas crianças da escola. Na frente da instituição havia canteiros
ornamentais, cuidados e mantidos pelas crianças e professoras.
A escola contava com quatro salas de aula amplas, arejadas e bem iluminadas, com
mobiliários e brinquedos pedagógicos para atender crianças na faixa etária de 4 a 6 anos.
Todas as salas tinham banheiros exclusivos para os alunos e acesso a um pátio lateral que
era usado para realizar atividades coletivas e específicas de cada turma. Além disso, a
escola contava com um pátio interno coberto, no qual funcionava um refeitório composto
por quatro mesas e oito bancos coletivos. Ao lado do pátio interno havia um parque com
tanque de areia e brinquedos variados bem conservados (escorregador, balanço e trepa-
trepa), assim como uma pequena praça com jogos de amarelinha pintados no chão, um
chuveiro, uma pia, uma faixa de pedestre e semáforos, que eram usados em atividades
pedagógicas relativas ao trânsito. Após o pátio interno, ficava a sala de apoio e ludoteca e
48
uma casinha para brincar. Todos esses espaços eram utilizados para desenvolver diferentes
atividades com as crianças.
A escola contava, também, com uma secretaria, uma sala de direção, uma sala de
professores, uma cozinha, uma sala de deposito de gêneros e banheiros específicos para
funcionários e professores. De forma geral, o espaço da instituição era agradável e estava
bem cuidado e organizado. Nos diferentes espaços da escola havia murais para recados,
informações, exposições de fotos e trabalhos das crianças.
A clientela atendida, de acordo com a diretoria da escola, estava composta por
crianças provenientes de diversas comunidades. Na época da pesquisa, a escola atendia 145
alunos, distribuídos em sete turmas e dois turnos. O turno matutino funcionava das 7h às
12h15 e atendia 77 crianças, distribuídas em 4 turmas organizadas da seguinte forma: uma
de 1º Período (crianças de 4 anos), duas de 2º Período (crianças de 5 anos) e uma turma de
1º Ano de Ensino Fundamental (crianças de 6 anos). O turno vespertino funcionava das
13h às 18h15 e atendia 68 crianças, distribuídas em 3 turmas organizadas da seguinte
forma: uma de 1º Período (crianças de 4 anos), uma de 2º Período (crianças de 5 anos) e
uma turma de 1º Ano de Ensino Fundamental (crianças de 6 anos). A escola atendia 4
crianças com necessidades educativas especiais.
A escola contava com duas instâncias participativas: a Associação de Pais e
Mestres (APM) e o Conselho Escolar. As duas instâncias tinham como objetivo principal
proporcionar à comunidade escolar (pais, professores e funcionários) uma participação
ativa na organização e gerenciamento escolar. A APM solicitava dos pais uma contribuição
mensal, não obrigatória, de R$ 20, 00 por aluno.
A gestão da escola era conduzida pelo diretor e pela vice-diretora, mas os outros
membros da instituição tinham uma participação efetiva na tomada de decisões. Na época
da pesquisa, a escola contava com uma equipe pedagógica composta por oito professoras
que atuavam em regime de jornada ampliada, sendo sete professoras regentes e uma
professora de apoio psicopedagógico. Além da equipe pedagógica, a escola contava com
uma secretaria escolar, cinco funcionárias de serviços gerais, duas porteiras, e três vigias.
No momento de realização da pesquisa, a escola não contava com coordenador
pedagógico. Em função disso, os diretores da escola orientavam e apoiavam o fazer
pedagógico das professoras.
O trabalho da escola seguia uma rotina pré-estabelecida composta por atividades
como: roda, atividades nas mesas, higiene, lanche e parque. A escola também realizava
outras programações como: passeios pedagógicos e de lazer, atividades pedagógicas
49
coletivas em datas comemorativas e a comemoração dos aniversariantes do mês. Todas
essas atividades eram organizadas em conjunto pela direção e pela equipe pedagógica.
O Projeto Pedagógico da escola foi elaborado de forma participativa e apontava os
valores humanos e sociais como fundamento da prática pedagógica e do trabalho
educativo. De acordo com os profissionais da escola, o trabalho da instituição era voltado
para o desenvolvimento integral da criança e seguia os parâmetros estabelecidos pelo
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil elaborado pelo Ministério da
Educação (MEC).
2.4. Procedimentos para Obtenção das Informações
A pesquisa foi desenvolvida em quatro etapas ou fases distintas:
1ª Fase: Contato com a escola, seleção das turmas e da turma-foco.
2ª Fase: Sessões de observação direta nos diferentes espaços e da escola, e na sala da turma
selecionada para participar das sessões gravadas em vídeo e das atividades estruturadas.
3ª Fase: Sessões gravadas em vídeo e sessões de atividades estruturadas na turma-foco.
4ª Fase: Entrevistas individuais semi-estruturas.
Cada uma das etapas ou fases anteriores será explicitada a seguir.
2.4.1. Contato com a Escola, Seleção das Turmas e da Turma-Foco
A escola selecionada para participar da pesquisa foi indicada por uma profissional
vinculada à SEE-DF, em função da abertura da equipe pedagógica e da direção para a
realização de pesquisas. Uma vez que a instituição se enquadrava nos critérios
estabelecidos para a seleção da escola, efetuou-se contato telefônico e marcou-se um
encontro para a apresentação do projeto de pesquisa. Nesse primeiro encontro, tanto a
coordenadora como o diretor mostraram interesse na pesquisa e solicitaram uma reunião
com a equipe pedagógica, para apresentar a pesquisa, explicar seus objetivos,
procedimentos e benefícios, assim como convidar todas as professoras para participarem
da mesma. A equipe pedagógica foi muito receptiva e todas as professoras aceitaram
participar da pesquisa.
A confirmação da participação da escola no estudo aconteceu após obter a
autorização da SEE-DF e a aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética da
50
Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília. Após dita confirmação, foram
selecionadas as turmas que participariam nas sessões de observação direta (todas as turmas
do turno matutino) e a turma-foco, que também participaria nas sessões gravadas em vídeo
e nas atividades estruturadas.
2.4.2. Sessões de Observação Direta
Na presente pesquisa, optamos por utilizar a observação naturalística direta tanto
como recurso de aproximação etnográfica ao objeto e contexto de estudo, como técnica
para obter informações sobre a dinâmica das interações sociais, as quais constituem um
foco de análise fundamental quando se pretende estudar e analisar questões relativas ao
desenvolvimento moral da criança.
Apesar das dificuldades da observação, não só pela presença do observador no
contexto estudado, mas também por ela ser um recorte específico de uma dinâmica
complexa, a mesma se mostrou uma técnica indispensável para o levantamento inicial de
informações relativas às questões estudadas, possibilitando uma definição melhor das
etapas seguintes da pesquisa.
Além disso, através da observação nos diferentes espaços do contexto escolar, foi
possível o contato direto com o fenômeno em estudo, na forma como o mesmo se
apresentou na dinâmica das interações sociais professoras-crianças, no contexto das
atividades realizadas no dia-a-dia da instituição como um todo. Sendo assim, as sessões de
observação direta permitiram expandir o estudo para além da turma-foco selecionada para
o estudo intensivo, possibilitando uma análise mais ampla da prática pedagógica da
instituição pesquisada.
As sessões de observação direta foram realizadas de modo ininterrupto, nos
diferentes espaços da escola, em horários diferentes e de acordo com a rotina das turmas do
período matutino. Foram realizadas sessões de observações com duração entre 3 e 4 horas,
aproximadamente. Ao todo, foram realizadas 10 sessões de observação direta, totalizando
35 horas e 10 minutos de observação, durante os meses de fevereiro e março de 2008.
Todas as sessões de observação direta foram registradas no diário de campo, de acordo
com o protocolo de registro, transcrição e análise utilizado na pesquisa.
Em cada sessão foram observadas diferentes atividades, que receberam um título,
de acordo com a temática ou o objetivo principal de cada uma delas. A Tabela 2 apresenta
as informações relativas às sessões de observação direta.
51
Tabela 2- Sessões de observação direta na escola e nas turmas do matutino
Sessão Atividades Data Duração
1
-Chegada na escola (Todas as turmas)
-Formação (Todas as turmas)
-Sessão de filme (Turma A)
-Brincadeira livre no parque (Turma C)
-Lanche (Todas as turmas)
-Escovação (Turmas A e B)
25/02/08 04h00min h
(7:00 – 11:00)
2 -Formação (Todas as turmas)
-Atividade psicomotora (Turma-foco)
-Brincadeira livre na casinha (Turma B)
-Lanche (Todas as turmas)
-Escovação (Turmas A e B)
26/02/08 03h28min h
(7h32 – 11h)
3 -Aniversariantes do mês (Todas as turmas)
-Escovação (Turmas A e B)
-Brincadeira livre no parque (Turma-foco)
-Saída da escola (Todas as turmas)
27/02/08 03h15min h
(9h – 12h15)
4
Turma C
-Escolhendo uma atividade
-Brincando com massinha
-Desenhando os olhos do colega
-Lanche
28/02/08 03h15min h
(7h45 – 11h)
5
Turma-foco
-Dia do brinquedo
-Roda de história
-Jogos Pedagógicos
-Lanche
-Sessão de filme
29/02/08 03h40min h
(7h50 – 11h30)
6
Turma A
-Formação
-Roda de história
-Atividade psicomotora
-Desenhando as partes do corpo
-Lanche
-Escovação
03/03/08 03h30min h
(7h30 – 11h)
7
Turma-foco
-Revisão coletiva do dever de casa
-Figuras geométricas
-Formando palavras (primeira parte da atividade)
-Lanche
-Formando palavras (segunda parte da atividade)
04/03/08 03h26min h
(8h04 – 11h30)
8
Turma-foco
-As partes do corpo humano
-Mata Letrinha
-Roda de história
-Lanche
-Brincadeira livre na casinha
05/03/08 03h30min h
(7h55 – 11h25)
9
Turma-foco
-Formação
-As partes do corpo humano
-Roda de história
-O som das letras
-Lanche
-Sessão de filme
06/03/08 03h31min h
(7h29 – 11h)
10
Turma-foco
-Dia do brinquedo
-Atividade psicomotora
-Lanche
-Sessão de filme
07/03/08 03h35min h
(7h55 – 11h30)
Nota. Turma A = crianças de 4 anos, Turmas B e C = crianças de 5 anos.
52
2.4.3. Sessões Gravadas em Vídeo e Sessões Estruturadas na Turma-Foco
As sessões gravadas em vídeo e as sessões estruturadas aconteceram após as
sessões de observação direta. Para participar de ditas sessões foi selecionada uma turma do
1º Ano do Ensino Fundamental, do período matutino, composta por 16 crianças com 6
anos de idade e sua professora. Todas as crianças da turma participaram das sessões
gravadas e das sessões estruturadas, de acordo com a presença delas nos diferentes dias de
gravação.
Em um primeiro momento foram gravadas atividades do dia-a-dia da turma
selecionada, o que possibilitou o contato direto com o fenômeno em estudo, na forma
como o mesmo se apresentou na dinâmica das interações sociais professora-criança. Em
um segundo momento foram gravadas duas atividades estruturadas e planejadas pela
professora da turma com o objetivo específico de promover discussões sobre temáticas
relacionadas à moralidade entre as crianças. Para a realização das atividades estruturadas
foi entregue para a professora a seguinte solicitação: “Para dar continuidade a nossa
pesquisa, solicitamos o planejamento e realização de duas atividades de, mais ou menos,
30 minutos cada, com o objetivo de promover a discussão sobre questões relacionadas à
moralidade entre as crianças da turma. As atividades devem ser planejadas da forma que a
professora achar adequado, sempre que de acordo com o objetivo anteriormente
solicitado”. As atividades estruturadas aconteceram em dias consecutivos selecionados
pela professora-foco, em função do planejamento da turma.
As sessões foram gravadas de modo ininterrupto e em horários diferentes, de
acordo com a rotina da turma. Foram gravadas sessões com duração entre 1 e 2 horas,
aproximadamente. Ao todo, foram realizadas 7 sessões de gravação, totalizando 10 horas e
11 minutos de gravação, durante o mês de março de 2008.
Em cada sessão de gravação foram registradas diferentes atividades, que receberam
um título, de acordo com a temática principal desenvolvida em cada uma delas. A Tabela 3
apresenta as informações relativas às sessões gravadas em vídeo e às sessões estruturadas.
As cinco primeiras sessões correspondem às atividades cotidianas da turma e as duas
últimas (sessões 6 e 7) às atividades estruturadas e planejadas especificamente para a
pesquisa.
53
Tabela 3- Sessões gravadas em vídeo e sessões estruturadas na turma-foco
Sessão Atividades Data Duração
1 -O corpo humano: importância e higiene dos dentes
-Conservação da quantidade com massinha
-Fazendo dentes com massinha
11/03/08 01h34min h
(8h20 – 9h54)
2 -Trabalhando com quantidades: o número 7
-O som das letras
-Procurando palavras com a letra “B”
13/03/08 01h02min h
8h06 – 9h08
3 -Roda de conversa
-Escrevendo a palavra Páscoa
-Dia do brinquedo
-Desenho sobre a Páscoa
-Saída para o parque
14/03/08 01h31min h
(7h57 – 9h28)
4 -Caixa surpresa: a letra “P”
-Organizando as fichas de nomes
-Escrevendo palavras com a letra “P”
-Trabalhando com quantidades: o número 8
-Dobradura de um coelho
17/03/08 01h28min h
(8h03 – 9h31)
5 -Roda de conversa
-Misturando cores: a cor marrom
18/03/08 01h02min h
(7h56 – 8h58)
6 -Recolhendo o dever de casa
-Calendário
-A gente pode... (Atividade Estruturada 1)
-Desenho sobre o recesso
-Saída para o lanche
24/03/08 01h41min h
(8h08 – 9h49)
7 -Recolhendo o dever de casa
-Calendário
-A gente não pode... (Atividade Estruturada 2)
-Dever de casa
-Saída para o lanche
25/03/08 01h53min h
(8h02 – 9h55)
2.4.4. Entrevistas Individuais Semi-Estruturadas
As entrevistas individuais foram realizadas após a fase de observação direta e de
gravação em vídeo, nos espaços disponíveis na escola e no turno contrario ao trabalho de
regência das professoras, para não atrapalhar o desenvolvimento das atividades com as
crianças. No caso dos diretores, procurou-se em conjunto um horário adequado, que não
obstaculizasse o trabalho dos mesmos. Todas as entrevistas foram marcadas com
antecedência, de acordo com o interesse em participar e com as conveniências de cada
entrevistado.
As entrevistas individuais semi-estruturadas foram realizadas a partir de três
roteiros, conforme explicado na sessão de equipamentos e materiais. Um roteiro geral para
as entrevistas com as professoras da escola, contendo questões pertinentes a todas. Um
roteiro específico para as entrevistas com os diretores da escola, contendo as mesmas
54
questões do roteiro anterior, além de questões gerais sobre a escola e questões específicas
sobre a proposta pedagógica da escola. Um roteiro específico elaborado para uma
entrevista com a professora-foco, contendo questões relacionadas às atividades
estruturadas e planejadas por ela. Na entrevista com a professora-foco, foi solicitada uma
análise e avaliação das atividades estruturadas, o que permitiu a reflexão da professora
sobre sua prática pedagógica e as atividades especificamente realizadas para a pesquisa.
Outras perguntas sobre temas centrais para o estudo foram inclusas na dita entrevista.
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e depois transcritas na íntegra. As
informações relativas à realização das entrevistas aparecem na Tabela 4. As entrevistas
individuais aconteceram durante os meses de abril e maio.
Tabela 4 - Entrevistas individuais
Identificação Data Local Início Término Duração
D1 11/04 Sala da direção 9h05 10h10 01h05min h
D2 03/04 Sala da direção 9h08 10h12 01h04min h
P1 17/04 Sala de apoio 15h05 16h20 01h15min h
P2 15/05 Sala 3 14h41 15h45 01h04min h
P3
Professora-foco / Entrevista
individual
19/05 Sala 4 15h10 16h06 00h56min
min
P3
Professora-foco / Entrevista sobre as
atividades estruturadas
30/05 Sala de apoio 8h05 9h35 01h30min h
P4 10/04 Sala de apoio 9h30 10h33 01h03min h
P5 08/05 Sala de apoio 10h56 11h36 00h40min
min
P6
17/04 Sala dos
professores
9h50 11h25 01h35min h
P7 24/04 Sala de apoio 14h55 15h30 00h35min
min
2.5. Procedimentos de Análise
2.5.1. Análise das Observações Diretas
No marco da psicologia, a observação naturalística direta tem sido apontada por
alguns autores como um dos métodos fundamentais para o estudo do desenvolvimento
humano. Mukhina (1996) não só ressalta a importância da observação, como também
55
ressalta suas desvantagens e as características que vão delimitar sua rigorosidade. Uma vez
que na observação é impossível registrar cada movimento e cada palavra dos sujeitos em
interação, as observações naturalísticas diretas são sempre mais ou menos seletivas:
registra-se aquilo que, na opinião do observador, tem importância ou significado. Em
função disso, cabe ao pesquisador delimitar quais são os aspectos fundamentais a serem
observados e interpretados, a partir do objetivo do seu estudo (Branco & Mettel, 1995).
No marco da antropologia, a observação participante da vida do grupo em estudo é
considerada uma forma básica de pesquisa etnográfica, que permite a inserção no contexto
a ser estudado. Sendo assim, é fundamental tomar parte da rotina do grupo pesquisado e
anotar cuidadosamente todas as informações que serão uma fonte valiosa para a construção
dos dados e para a interpretação (Tacca, 2000).
Como colocamos anteriormente, optamos por utilizar a observação naturalística
direta tanto como recurso de aproximação etnográfica ao objeto e contexto de estudo,
como técnica para obter informações sobre a dinâmica das interações sociais. Apesar das
desvantagens da observação, a mesma se mostrou uma técnica indispensável, permitindo
expandir o estudo para além da turma-foco selecionada para o estudo intensivo, e
possibilitando uma análise mais ampla da prática pedagógica da instituição pesquisada.
Uma vez que a observação naturalística direta é um recorte especifico no tempo de
uma dinâmica complexa, optamos por uma análise interpretativa geral das mesmas,
focalizando nossa atenção nas interações professoras-crianças registradas cuidadosamente
no diário de campo e segundo o protocolo de registro, transcrição e análise utilizado na
pesquisa.
No primeiro momento, optamos por realizar uma leitura e análise preliminar das
sessões de observação direta, com o intuito de selecionar aquelas nas quais fosse possível
analisar interações que pudessem ser significativas para o desenvolvimento moral das
crianças. No segundo momento, passamos à análise interpretativa geral dos episódios
dessas sessões, procurando abranger as especificidades comunicativas das interações
registradas, dentro das possibilidades que a observação naturalística direta oferece.
Das sessões de observação realizadas nos diferentes espaços da escola,
selecionamos 3 sessões para análise e um total de 5 episódios. Essas sessões correspondem
às atividades do dia-a-dia das turmas A, e B. Não foram selecionados episódios relativos às
atividades cotidianas da turma C, uma vez que a professora da dita turma não participou da
entrevista individual por opção pessoal. Os episódios selecionados para análise estão
relacionados com o processo de estabelecimento e possível internalização de regras,
56
estratégias de resolução de conflitos interpessoais, com a motivação social (ajuda,
cooperação, agressão, hostilidade, individualismo etc.), e demais questões relacionadas ao
tema deste trabalho. Os episódios analisados receberam um titulo, de acordo com as
questões mais relevantes de cada um. Na Tabela 5, apresentamos as informações relativas
às sessões de observação direta, que foram selecionadas e analisadas.
Tabela 5 – Sessões de observação direta selecionadas para análise
Número da Sessão Data Atividades e Episódios
Sessão 1 25/02/2008 Chegada na escola
Formação
Sessão de filme – Episódio I
Brincadeira livre no parque
Lanche
Escovação
Sessão 2 26/02/2008 Formação
Atividade psicomotora
Brincadeira livre na casinha – Episódios I e II
Lanche
Escovação
Sessão 6 03/03/2008 Formação
Roda de histórias
Atividade psicomotora
Desenhando as partes do corpo – Episódio I e II
Lanche
Escovação
2.5.2. Análise Microgenética das Interações Sociais na Turma-Foco
O estudo das interações sociais que acontecem no marco de contextos
socioculturais específicos traz grandes desafios metodológicos para os pesquisadores, em
função do caráter complexo, dinâmico e inter-relacionado de ambos os elementos. Nos
contextos sociais determinados acontecem constantes e sutis mudanças, que se veiculam,
principalmente, através de mensagens verbais e não-verbais transmitidas e re-significadas
pelas pessoas em interação. O estudo dessas especificidades comunicativas demanda uma
análise mais detalhada e pormenorizada.
É em função desse caráter dinâmico e complexo das interações sociais, que a
perspectiva sociocultural construtivista aponta a importância da análise microgenética para
o estudo das mesmas. Esta análise permite seu estudo minucioso, assim como possibilita
abranger a dinâmica das transformações contínuas e a emergência de novidades que
acontecem no marco das interações sociais e que são de vital importância para os processos
57
de construção de significados e para o desenvolvimento (Branco & Rocha, 1998; Branco &
Valsiner, 1997).
A análise microgenética permite o estudo de fenômenos em suas etapas de transição
e mudança incluindo aspectos qualitativos e quantitativos. Os fenômenos podem e devem
ser analisados em suas seqüências mínimas, acompanhando as mudanças e as estratégias
utilizadas pelos indivíduos na produção das mesmas. Sendo assim, o pesquisador deve
registrar situações que possibilitem a ocorrência do fenômeno em estudo, com recursos que
permitam a observação de detalhes (gravação em vídeo) e que favoreçam a análise da
situação interativa desde seu início (Tacca, 2000).
Em função da importância e da adequação da análise microgenética para o estudo
das interações sociais, foi que tomamos a decisão de utilizá-la como método de análise das
atividades do dia-a-dia e de atividades especialmente planejadas para promover discussões
sobre temáticas relacionadas à moralidade, gravadas em vídeo.
Inicialmente, realizamos uma observação e análise previa de todas as sessões
gravadas em vídeo, procurando identificar os trechos mais significativos para nosso estudo.
Após esse momento inicial, realizamos a transcrição dos trechos selecionados, destacando
o tempo de ocorrência e a continuidade das interações, o número do episódio selecionado
para análise, as ações e verbalizações da professora e das crianças, e as observações gerais
relativas às atividades e ao contexto em que as mesmas aconteceram.
Das 5 primeiras sessões gravadas em vídeo, selecionamos 4 sessões para análise e
um total de 10 episódios. Essas sessões correspondem às atividades do dia-a-dia da turma-
foco. Os episódios selecionados para análise estão, também, relacionados com o processo
de estabelecimento e possível internalização de regras, estratégias de resolução de conflitos
interpessoais, com a motivação social (ajuda, cooperação, agressão, hostilidade,
individualismo etc.) e demais questões relacionadas ao tema do trabalho. Os episódios
analisados receberam um título, de acordo com as questões mais relevantes de cada um.
No caso das duas atividades estruturadas (sessões 6 e 7), realizamos a transcrição e
análise integral das mesmas, em função de sua importância para nosso estudo. As duas
atividades estruturadas foram divididas em sete episódios, utilizando como critério o fato
destes conterem interações julgadas de interesse significativo para o desenvolvimento
moral das crianças. Nos diferentes episódios, utilizamos como unidades de análise
pequenos trechos dos diálogos entre a professora e as crianças, possibilitando, assim, uma
análise minuciosa das interações professora-criança. Os episódios das atividades
estruturadas também receberam um titulo, de acordo com as questões mais relevantes de
58
cada um. Na Tabela 6, apresentamos as informações relativas às sessões gravadas em
vídeo e as duas sessões estruturadas, que foram selecionadas e analisadas.
Tabela 6 – Sessões gravadas em vídeo selecionadas para análise
Número da Sessão Data Atividades e Episódios
Sessão 1 11/03/08
O corpo humano: importância e higiene dos dentes –
Episódios I e II
Conservação da quantidade com massinha
Fazendo dentes com massinha – Episódio III
Sessão 2 13/03/08
Recolhendo o dever de casa – Episódio I
Trabalhando com quantidades: o número 7 – Episódio II
O som das letras
Procurando palavras com a letra “B”
Sessão 3 14/03/08
Roda de conversa – Episódio I
Escrevendo a palavra Páscoa – Episódio II
Dia do brinquedo
Desenho sobre a Páscoa
Saída para o parque – Episódio III
Sessão 4 17/03/08 Caixa surpresa: a letra “P”
Organizando as fichas de nomes – Episódio I
Escrevendo palavras com a letra “P”- Episódio II
Trabalhando com quantidades: o número 8
Dobradura de um coelho
Sessão 6
Atividade
Estruturada 1
24/03/08 Recolhendo o dever de casa
Calendário
A gente pode... (Atividade Estruturada 1) – Episódios I, II e
III
Desenho sobre o recesso
Saída para o lanche
Sessão 7
Atividade
Estruturada 2
25/03/08 Recolhendo o dever de casa
Calendário
A gente não pode... (Atividade Estruturada 2) – Episódios I,
II, III e IV
Dever de casa
Saída para o lanche
2.5.3. Análise Interpretativa das Entrevistas
A entrevista individual foi a técnica escolhida para registrar as falas e reflexões das
professoras e diretores da escola acerca de sua prática pedagógica e dos temas centrais do
estudo. Esta técnica possibilitou a coordenação de interpretações por parte do entrevistador
e do entrevistado, assim como permitiu que o entrevistado construísse sua própria
interpretação das perguntas, evocando novas interpretações. De acordo com Branco e
Valsiner (1997), na situação de entrevista, o entrevistador e o entrevistado aparecem como
construtores ativos do discurso, que estão constantemente produzindo novas compreensões
sobre os temas abordados e sobre o próprio evento da entrevista.
59
A análise do discurso das professoras e diretores da escola foi realizada em dois
momentos específicos. No primeiro momento, optamos por realizar uma leitura e
interpretação preliminar da transcrição de todas as entrevistas individuais. A partir dessa
interpretação preliminar e de palavras-chaves das questões contidas nos roteiros, passamos
à elaboração das categorias de análise comuns a todas as professoras e diretores da escola.
No segundo momento, realizamos uma análise detalhada de todas as categorias elaboradas,
em cada uma das entrevistas. Da transcrição das falas foram retirados trechos que
pudessem ilustrar as questões presentes no discurso das professoras e que fornecessem
indicadores de suas concepções acerca dos temas abordados e das categorias analisadas.
Na Tabela 7, apresentamos as categorias de análise comuns a todas as professoras e
diretores da escola.
Tabela 7 – Categorias de análise para a interpretação das entrevistas individuais
Categorias de Análise
1. Percepção da formação
profissional
Formação acadêmica
Formação prática
2. Percepção da profissão Satisfação com a profissão
Preferência pela Educação Infantil
3. Definição de criança e infância
4. Definição de Educação Infantil Importância da Educação Infantil para a criança
Principais objetivos da Educação Infantil
5. Rotina do dia-a-dia Atividades diversificadas
Importância e objetivos das atividades
Atividades importantes para o desenvolvimento moral
6. Planejamento Planejamento conjunto
Participação das crianças no planejamento
Organização das crianças nas atividades
7. Regras Principais regras a serem respeitadas pelas crianças
Definição, comunicação e modificação das regras
Principais mecanismos para garantir o respeito pelas
regras
8. Conflitos Papel do conflito interpessoal no desenvolvimento moral
Conflitos comuns entre as crianças
Principais mecanismos para lidar com os conflitos
9. Percepção da relação professor-
criança
Relação com as crianças
Principais desafios e dificuldades
10. O conceito de moral Moral um conceito complexo
Exemplos de ações certas e erradas moralmente
Moral e convenção social
11. O conceito de desenvolvimento
moral
Como a criança desenvolve a moralidade
Instancias que participam no processo
O desenvolvimento moral na Educação Infantil
12. Percepção da prática pedagógica
(Análise das situações hipotéticas)
Em situações de conflitos
Em situações de transgressão de regras
Em situações de desrespeito
60
A entrevista semi-estruturada realizada especificamente com a professora-foco,
sobre as atividades estruturadas, foi analisada a partir de categorias elaboradas de acordo
com os objetivos da entrevista e as palavras-chaves das questões contidas no roteiro. Uma
vez que a entrevista tinha como objetivo principal a análise, avaliação e reflexão da
professora sobre as atividades estruturadas e sobre temas centrais do estudo, as categorias
estabelecidas se centraram nessas questões. Na Tabela 8, apresentamos as mesmas.
Tabela 8 – Categorias de análise para a interpretação da entrevista com a professora-
foco
Categorias de Análise
1. Objetivos das atividades estruturadas Planejamento das atividades e sub-atividades
Adequação das atividades aos objetivos solicitados
2. Avaliação das atividades Avaliação da interpretação e participação das crianças
Avaliação do direcionamento e realização das atividades
Satisfação com as atividades realizadas
3. Conceitos norteadores Moral
Desenvolvimento moral
Educação moral
A seguir, passamos à análise dos resultados obtidos no trabalho.
61
62
V - RESULTADOS
Os resultados aparecem em uma seqüência que permite estabelecer conexões entre
a prática pedagógica das professoras observadas e o seu discurso, começando pela
professora-foco que planejou e realizou as atividades estruturadas para ‘promover o
desenvolvimento moral’, segundo suas concepções. Para uma melhor compreensão dos
resultados intercalamos informações significativas sobre a escola, as turmas e as atividades
analisadas. Além disso, cada protocolo de análise é identificado para facilitar a
compreensão do leitor.
Inicialmente, apresentamos uma breve descrição da rotina e das atividades
características da instituição pesquisada. Esta descrição foi realizada a partir das
informações obtidas nas sessões de observação direta e nas entrevistas individuais com as
professoras e diretores da escola. Em seguida, são apresentados os resultados referentes à
análise da turma-foco. A análise dos episódios relativos às sessões de atividades
estruturadas e às sessões gravadas em vídeo é seguida da análise das duas entrevistas
realizadas com a professora-foco. Esta seção foi intitulada “Estudo intensivo na turma-
foco: análise das observações e das entrevistas com a professora”.
Em terceiro lugar, apresentamos a análise dos episódios relativos às sessões de
observação direta realizadas nas outras turmas do período matutino, assim como a análise
das entrevistas individuais realizadas com as professoras dessas turmas, sendo esta seção
denominada “Análise das observações e entrevistas com demais professoras do turno
matutino”.
Em quarto lugar, apresentamos a análise das entrevistas realizadas com as
professoras do turno vespertino e com os diretores da escola. Esta seção foi intitulada
“Análise das entrevistas com outros profissionais da escola”. Uma vez que as categorias de
análise elaboradas são comuns a todas as professoras e diretores da escola, optamos por
apresentar uma análise conjunta das entrevistas, destacando algumas particularidades das
análises individuais, quando necessário.
Como foi explicitado na seção dos Procedimentos de Análise no capítulo
Metodologia, buscou-se enfatizar nas análises, particularmente, as interações que podem
ser consideradas significativas para o desenvolvimento moral das crianças, outorgando-se
uma especial atenção às interações professora-criança, tendo em vista os objetivos da
pesquisa. Os episódios selecionados para análise estão, assim, relacionados com o processo
de estabelecimento e possível internalização de regras, estratégias de resolução de conflitos
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interpessoais, negociação de dilemas e orientações relativas à motivação social (ajuda,
cooperação, agressão, hostilidade, individualismo etc.).
As análises das entrevistas individuais seguem a seqüência das categorias
apresentadas no item Procedimentos de Análise, no capítulo Metodologia.
1. Breve Descrição das Atividades e Rotina da Escola
A escola estudada programava atividades pedagógicas diversificadas, de acordo
com os objetivos pautados para a Educação Infantil, pelo Referencial Curricular Nacional
(RECNEI). Sendo assim, as atividades de motricidade, desenho, leitura e escrita, dentre
outras, faziam parte do dia-a-dia da instituição e estavam inseridas dentro de uma rotina
que permitia a organização da escola e das turmas específicas, assim como o uso dos
espaços coletivos por todos. As atividades pedagógicas mais usuais eram as seguintes:
Roda: Era na roda que acontecia a maioria das atividades pedagógicas da sala: desenho,
narração de histórias, atividades de escrita e matemática. No espaço da roda, as crianças e
professoras tinham a possibilidade de realizar essas atividades tanto de forma individual
como coletiva.
Jogos Pedagógicos: As professoras utilizavam diversos jogos pedagógicos, destinados ao
desenvolvimento de habilidades relativas às diferentes áreas do conhecimento como
linguagem escrita e matemática. Os jogos eram distribuídos em mesas separadas, formando
espaços ou “cantinhos” de jogos. As crianças, organizadas em pequenos grupos, passavam
por cada “cantinho” e tinham a possibilidade de participar de todos os jogos. A professora
passava por cada mesa, ajudando as crianças e explicando os jogos que exigiam maior
concentração ou habilidades específicas. Cada sala contava com um acervo de jogos
pedagógicos adequados para a faixa etária da turma.
Filme: Cada turma tinha um dia específico para assistir um filme, na sala de apoio ou
ludoteca. As crianças combinavam, antes, quem ficaria responsável por levar um filme
para assistir. Eram as próprias crianças que escolhiam o filme que compartilhariam com
seus colegas. Caso a criança responsável pelo filme esquecesse de levá-lo, o grupo pedia
emprestado um filme para outra turma ou usava o material disponível na escola.
Brincadeira livre no parque: Cada turma tinha dias e horários específicos para usar o
parque da escola. As crianças tinham a possibilidade de brincar e interagir livremente
durante o horário de parque, enquanto as professoras observavam a brincadeira.
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Brincadeira livre na casinha: As diferentes turmas tinham a possibilidade de brincar
livremente em uma casa de bonecas, disposta no final do pátio interno da escola. A casa de
bonecas contava com diferentes brinquedos de faz-de-conta, para uso coletivo. Cada turma
usava a casa de bonecas em dias e horários específicos, estabelecidos com antecedência.
Atividades de psicomotricidade no pátio: As professoras planejavam diversos jogos e
atividades, destinados ao desenvolvimento de habilidades psicomotoras. Essas atividades
aconteciam no pátio interno da escola, motivo pelo qual cada turma tinha um dia e horário
específico para a realização das mesmas. Algumas das atividades realizadas eram circuitos
de psicomotricidade e jogos de regras como pique-pega.
Dia do brinquedo de casa: Toda sexta-feira as crianças tinham a oportunidade de levar um
brinquedo de casa para mostrar e compartilhar com os colegas de seu grupo. O brinquedo
de casa era mostrado e passado no espaço da roda. Após esse primeiro momento de
socialização, as crianças podiam brincar com seus brinquedos e os dos colegas.
A rotina estabelecida para os dois turnos da escola era a seguinte:
- Recepção das crianças na entrada da escola.
- Entrada das crianças na escola e formação no pátio interno.
- Atividades pedagógicas nas salas e nos diferentes espaços da escola.
- Lanche e higiene pessoal.
- Atividades pedagógicas nas salas e nos diferentes espaços da escola.
- Saída da escola.
Muitas das atividades realizadas no dia-a-dia se encaixavam em projetos
pedagógicos elaborados em conjunto pelos profissionais da escola, durante a coordenação.
De acordo com as professoras e diretores, alguns desses projetos estavam relacionados
com as datas comemorativas mais importantes e tentavam ir além do significado da data,
trabalhando objetivos da Educação Infantil. Outros projetos pedagógicos que a escola
realizava estavam voltados para a formação de hábitos importantes como a leitura, a
alimentação saudável e a higiene.
2. Estudo Intensivo na Turma-Foco: Análise das Observações e das Entrevistas com a
Professora
2.1. Breve Descrição da Turma Selecionada
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A turma de 1º Ano do Ensino Fundamental, selecionada para participar das sessões
gravadas em vídeo e das duas atividades estruturadas, estava composta por 16 crianças de
6 anos de idade, sendo 13 meninos e 3 meninas. Uma das crianças da turma tinha
necessidades educativas especiais, fato pelo qual ficava com uma acompanhante dentro de
sala.
A sala de aula era ampla, arejada e bem iluminada, com mobiliários e brinquedos
pedagógicos específicos para crianças na faixa dos 6 anos. Havia um banheiro exclusivo
para os alunos e um quartinho com prateleiras que servia como armário para o material
pedagógico. Os brinquedos e jogos pedagógicos estavam organizados em prateleiras em
uma das paredes. A sala contava com duas portas, uma delas dando acesso a um pátio
lateral usado para realizar atividades coletivas e específicas de cada turma. A porta
principal dava acesso direto ao pátio interno da escola, à sala de apoio e ludoteca, assim
como a uma casinha para brincar.
No fundo da sala, localizava-se a porta com acesso ao pátio lateral, o quadro de giz,
cartazes com as letras do alfabeto e uma estante baixa para guardar material de escrita,
desenho e pintura. Na frente, localizava-se a porta principal, o quadro de prega usado nas
atividades de escrita e o calendário. Nas paredes laterais estavam dois murais com
desenhos e cartazes confeccionados pelas crianças.
A sala contava com 6 mesas baixas, adequadas ao tamanho das crianças, cada qual
com 4 cadeiras, distribuídas ao redor do centro da sala e formando um espaço central, onde
aconteceram a maioria das atividades filmadas. As crianças e a professora sentavam nesse
espaço central, formando uma roda. Para sentar no chão, cada membro do grupo tinha um
tapete de EVA, que ficava guardado em um baú perto da porta principal.
Na época da pesquisa, um dos murais da sala tinha afixadas as regras da turma onde
se lia “Nossas Regras”. Todas as regras estavam escritas e desenhadas pelas crianças, em
folhas individuais. As regras estabelecidas na turma do 1º Ano de Ensino Fundamental
eram as seguintes:
- Levantar o dedo para falar; Respeitar os mais velhos; Brincar na hora certa; Cuidar dos
materiais; Não sujar a sala; Saber ouvir; Não brigar; Ser amigo de todos; Falar baixo; Não
jogar areia nos colegas; Lanchar com cuidado; Cuidar dos materiais da escola; Respeitar os
colegas; Cuidar das plantas; Não falar palavras feias; Ser um bom aluno; Respeitar os pais;
Prestar atenção na aula; Ser bom filho; Dar descarga.
Além do mural com as regras desenhadas pelas crianças, a sala contava com um
cartaz confeccionado pela professora com algumas das regras anteriores:
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- Horários para brincar, comer, conversar, estudar; Respeitar os mais velhos, os pais, os
amigos e (os) outros; Falar baixo; Levantar o dedo para falar ou pedir algo; Saber usar o
banheiro; Saber lanchar; Cuidar dos materiais individuais e coletivos; Saber ouvir; Não
pode brigar e falar palavras feias.
De acordo com a professora do 1º Ano de Ensino Fundamental o estabelecimento
dessas regras foi importante, uma vez que as crianças não conseguiam brincar nem
participar das atividades por motivos de conflitos. Após o estabelecimento e cumprimento
das regras, o grupo começou interagir de forma diferente, brincando e participando mais. A
delimitação das regras aconteceu na primeira semana do ano escolar.
2.2. Análise Microgenética de Episódios das Atividades Estruturadas
As duas atividades estruturadas, planejadas e desenvolvidas pela professora-foco,
foram realizadas em dois dias subseqüentes. Para sua realização, a professora selecionou o
livro intitulado “A gente pode... A gente não pode...”, da autora Anna Claudia Ramos e
com ilustrações de Ana Raquel. O livro, indicado pela autora para crianças com 3 ou 4
anos (e não para a idade das crianças da turma!) é dividido em duas partes. A professora,
seguindo a divisão do livro, planejou a primeira atividade estruturada a partir do texto “A
gente pode...”, e a segunda atividade estruturada a partir do texto “A gente não pode...”.
Cada uma das atividades contou com diferentes sub-atividades, explicitadas a seguir:
Atividade Estruturada 1 (24/03/2008):
1. Apresentação da atividade.
2. Leitura e interpretação do texto “A gente pode...”
3. Representação do livro através de mímica.
4. Desenho individual a partir do texto.
Atividade Estruturada 2 (25/03/2008):
1. Apresentação da atividade.
2. Leitura e interpretação do texto “A gente não pode...”
3. Desenho e confecção de um livro a partir do texto.
O livro, de acordo com a ficha técnica, foi resultado de uma pesquisa realizada pela
autora com alunos de diferentes escolas. Nessa pesquisa, os alunos conversavam e
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respondiam sobre o que eles achavam que podiam e não podiam fazer com a idade que
tinham. Sendo assim, os ‘podes’ e ‘não podes’ apresentados pelo livro surgiram das
respostas e comentários de diferentes crianças de 3 e 4 anos de idade, e a própria autora
recomenda a leitura do livro como base para uma discussão com estas crianças.
As duas atividades estruturadas foram transcritas e analisadas integralmente. As
duas atividades estruturadas foram divididas em sete episódios, utilizando como critério o
fato destes conterem interações julgadas de interesse significativo para o desenvolvimento
moral das crianças. Nos diferentes episódios, utilizamos como unidade de análise pequenos
trechos dos diálogos entre a professora e as crianças. Os episódios das atividades
estruturadas receberam um titulo, de acordo com as questões mais relevantes de cada um.
Atividade Estruturada 1: “A gente pode...”
Legenda para a leitura do protocolo:
F (menina) e M (menino): As crianças foram numeradas começando pelas meninas,
e de acordo com sua distribuição no espaço. No momento da gravação, a turma contava
com 2 meninas, e 11 meninos (13 crianças).
F* e M*: Quatro crianças de outra turma, que ficaram na sala em função da ausência
da professora dessa turma. As quatro participaram em vários momentos da atividade,
mas não ficaram na roda porque não tinham autorização para participar das filmagens.
Crs: Várias crianças falam ao mesmo tempo ou respondem juntas.
P3: Professora da turma.
.... : Pausa na fala.
: Primeira fala ou explicação que deve ser lida no protocolo.
“” : Leitura dos trechos do livro e letra de música.
Texto sublinhado
: Falas das crianças que não foram respondidas por P3.
Episódio I – “Igual a gente faz!”
ATIVIDADE: Apresentação da atividade estruturada para as crianças, seguida da leitura e
interpretação do livro selecionado para a mesma. As crianças estão sentadas em roda, no chão. Elas
prestam atenção às explicações da professora sobre a atividade que vai começar. A professora está
sentada em uma cadeira, no espaço da roda e na frente da turma.
TEMPO: 8h14 (Inicio da Atividade)
PROFESSORA - P3 CRIANÇAS
(1) 00:06 Apresentação da atividade.
P3: Vamos lá. Vamos começar. Hoje, nós vamos
começar a aula diferente. A gente já conversou
sobre este livro (pegando o livro). Quem contou
este livro nem foi a tia K. (referindo-se a ela
mesma). Quem contou este livro foi a tia B. Eu
pedi para a tia B. contar para vocês. Então, a tia K.
gostaria de contar novamente.
P3: Agora!
M6: É agora?
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P3: Não, não é grande. Então, vamos lá.
E agora minha gente uma história eu vou contar.
Uma história bem bonita, todo mundo vai gostar”.
P3: Então, vamos ouvir a história. Quem escreveu
foi Anna Claudia Ramos. Quem fez o desenho e
pintura foi Ana Raquel. O nome da história é A
gente pode...”.
A professora olha para M6.
P3: Deu para parar e ouvir? Então, vamos lá.
M6: É grande, tia?
Crs: “...minha gente uma história eu vou
contar. Uma história bem bonita, todo mundo
vai gostar.”
M6: A gente pode. A gente pode.
M6 pára de falar.
A intervenção da professora com M6, que se mostra participativo e interessado, metacomunica
para as crianças que é necessário ficar em silêncio e ouvir a história. Dessa forma, a professora
estabelece, assimetricamente, uma regra. Tudo indica que a regra tem como objetivo manter a
ordem e a disciplina a despeito da motivação das crianças para interagir e participar.
(2) 00:08 Leitura e interpretação da página 1.
A professora levanta da cadeira e fica em pé de
frente para a roda. Começa a leitura do livro, com
as imagens de frente para as crianças.
P3: A gente pode desenhar. Fazer pintura na
escola e em casa. Brincar com os amigos.Isso a
gente pode fazer. Então, vamos ver. Desenhar.
Que que é desenhar? Eu vou perguntar um por um.
Que que é desenhar, F2, para você? Que que é
desenhar?
P3: Que que é desenhar, M5, para você?
P3: Você gosta de desenhar?
P3: Muito bom! Fazer pintura na escola e em casa.
E que que é para você fazer uma pintura.
(Apontando para M4.)
P3: Sim. Mas, essa pintura que você gosta, você
acha ela linda?
P3: Vai ficar bonita. Brincar com os amigos. O
que que é isso, M7? Brincar com os amigos.
P3: Ah! Dividir os brinquedos! Muito bem!
Vamos continuar.
F2 fica em silêncio.
M5: Desenhar é quando eu faço um desenho.
M5 faz um sinal afirmativo com a cabeça.
M4: Pintura... Eu gosto de pintar.
M4: Eu acho que é porque vai ficar bonita.
M7: Dividir os brinquedos.
Neste trecho, a professora fica em pé com o livro acima das crianças, dificultando a visualização
das imagens. Ao sair do espaço da roda e ficar em pé, ela abandona uma posição mais simétrica
69
em relação às crianças, e adota uma postura de autoridade. Além disso, estabelece outra regra
para manter a ordem e disciplina: as crianças devem participar apenas de acordo com a
oportunidade outorgada por ela.
Também chamam a atenção as primeiras perguntas realizadas a partir do texto. São perguntas
conceituais (Que que é desenhar? Que que é fazer uma pintura?) que podem ser difíceis até para
crianças mais velhas. Se por um lado o livro apresentado está aquém das possibilidades das
crianças, as perguntas realizadas neste trecho estão além dessas possibilidades, podendo
restringir ou inibir a participação das mesmas. De qualquer forma, são inadequadas, pois as
respostas somente podem ser óbvias (desenhar é desenhar!).
A resposta de M7 (brincar com os amigos é dividir os brinquedos) não foi aproveitada para
suscitar uma discussão sobre questões relacionadas à cooperação.
(3) 00:12 Leitura e interpretação da página 2.
P3: “A gente pode brincar de ler história sem
rasgar o livro. Escovar os dentes. Abrir o lanche
sozinho. Brincar com massinha.”.
O que é, M11, brincar de ler histórias sem rasgar o
livro?
P3: É para ler. Mas, tem que fazer o quê?
Cuidando de quê?
P3: Do livro!!! Não estragando, nem amassando.
O que que é, M8, escovar os dentes?
P3: Para ficar limpo. Muito bem! Abrir o lanche
sozinho. O que que é, M6?
P3: Ah! Já cresceu! Isso mesmo, muito bem!
Brincar com massinha. Oh, M12! Que que é isso?
P3: Ah! Fazer boneco de massinha. A gente pode
o que mais...?
M11: É para ler o livro.
M11: Do livro.
M8: Para o dente ficar limpo.
M6: Que você é um... um rapaz.
M12: Boneco de massinha e bolinha.
As perguntas da professora tenderiam a eliciar respostas óbvias. Mas M8, de forma criativa, ao
invés de responder “o que é...”, responde para que serve, e M6 responde o que a ação significa
(você já é um rapaz)!
(4) 00:15 Leitura e interpretação da página 3.
P3: “Descer e subir escada sozinho, menos a
escada rolante, que é perigosa. Que que é isso
F2?
P3: Ah! Muito bem! Porque cai e pode...
P3: Machucar. Pode cair e machucar. Então,
vamos continuar.
F2: Escada rolante? ...Porque cai.
F2: Machucar.
M6: Tia! Eu não uso escada rolante porque
pode machucar.
P3 prossegue canalizando respostas óbvias. As crianças continuam criativas, mas P3 não
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aproveita as respostas das crianças. No final do trecho, M6 fez uma colocação a partir de sua
vivência pessoal. No entanto, essa colocação não foi aproveitada para suscitar uma discussão
mais ampla sobre os cuidados necessários na escada rolante.
O fato da professora não levar em conta a fala de uma criança, que não foi escolhida para
responder a pergunta, é um indicador de que as crianças devem participar somente quando ela
manda.
(5) 00:15 Leitura e interpretação da página 4.
P3: “Ir ao banheiro sozinho e dar descarga. Pedir
ajuda a um adulto pra limpar o bumbum e lavar as
mãos depois.Fazer a limpeza. O que que é isso?
M3!
P3: Vamos! O que que é isso!?
P3: Fedido! Sujo! Agora o M9. Pedir ajuda a um
adulto para limpar o bumbum. Que que é isso?
Para não ficar como?
P3: Sujo! Para não ficar sujo. Até você aprender.
Vamos continuar.
M3 fica em silêncio.
M3: Não pode deixar fedido.
M9: Sujo.
F2: E assado.
A professora, ao mesmo tempo em que encoraja a participação da criança escolhida por ela (M3),
não considera a participação de F2. Mais uma vez, a professora indica que cada criança deve
participar apenas na sua vez, a despeito de sua motivação.
Aqui já é possível se observar o padrão de “diálogo” adotado por P3: diálogo mecânico, sem
espaço para a co-construção dos ‘podes’ apresentados e sem interação entre as crianças.
(6) 00:17 Leitura e interpretação da página 5.
P3: “Guardar a mochila e a lancheira. Dividir a
mesa com os amigos na hora do lanche.Então,
vamos lá. Quem que não chamei ainda? (Olhando
para a roda de crianças.)
P3: F1... Não, eu quero M10. M10, guardar a
mochila e a lancheira. Que que é isso?
P3: Tem que guardar. Tudo isso para que? Para
não deixar...
P3: Espalhado. Muito bem M10. Vamos lá, F1.
Dividir a mesa com os amigos, na hora do lanche.
P3: Ser gentil. Muito bem! Vamos lá.
M4: Não chamou F1.
M10: Que você tem que guardar a mochila e
a lancheira no lugar que é.
M10: Espalhado.
F1: É ser gentil.
A frase “F1... Não, eu quero M10”, indica mais uma vez, que todos só devem participar no
momento selecionado pela professora, e ressalta sua posição de autoridade. No entanto, ela tem o
cuidado de garantir que todos participem de alguma forma, na interpretação do texto.
P3 não discute com as crianças porque é importante cuidar dos pertences pessoais e manter o
material organizado para as atividades. Embora a professora elogie e enfatize a resposta de F1,
não aproveita a mesma para suscitar uma discussão sobre questões relacionadas à motivação
71
social e à moralidade.
(7) 00:19 Leitura e interpretação da página 6.
P3: “Falar obrigado e por favor. Ajudar a guardar
os brinquedos. Emprestar os brinquedos para o
amigo.Quem eu não chamei ainda?
P3: Já chamei todo mundo. Então, vou chamar as
crianças da outra tia, para eles participarem um
pouco. Falar obrigado e por favor. Que que é isso?
(Apontando para uma das crianças.)
P3: Fala meu amor. Que que é isso? Que
palavrinha é essa? São palavrinhas como? Você
sabe falar obrigado e por favor? Que quer dizer
isso?
P3: Ah! É para pedir! São palavrinhas mágicas.
Vamos lá, continuando. Guardar os brinquedos.
Que que é isso? Para não deixar os brinquedos
como? (Falando com outra criança da outra
turma.)
P3: Deixem ela falar... É para não deixar como?
P3: Espalhado. Emprestar o brinquedo para o
amigo. Que que é isso? (Falando com a terceira
criança da outra turma.)
P3: Ser amigo. Não ser egoísta. Vamos embora!
M5: Todo mundo.
F* fica em silêncio, olhando para a
professora.
F*: É para pedir.
Crs: Espalhados... Espalhados.
F*: Espalhado.
M*: Ser amigo.
M* refere-se à cooperação e ajuda, mas P3 não aproveita para discutir com o grupo. Limita-se a
complementar a fala da criança com suas próprias crenças e valores: emprestar o brinquedo para
o amigo é não ser egoísta. Neste trecho, permanece o padrão mecânico do “diálogo” em um ritmo
e tempo específico. A última fala da professora (“Vamos embora”!) deixa isto bem claro.
(8) 00:23 Leitura e interpretação da página 7.
P3: “Dar a chupeta para um bebê. Andar de
bicicleta com rodinhas.Se estiver em casa ou na
rua, quem tiver um irmão pode dar a chupeta para
o bebê, não é?
P3: Pode. Andar de bicicleta com rodinhas. Não é
vergonha, não. Quando a gente não sabe andar,
ainda, de bicicleta, tem que ter o auxilio de
alguma pessoa ou de algum instrumento... Ou
algum objeto e pode ser a rodinha da bicicleta...
A professora pára de falar, olha para M7 e faz um
gesto com a mão, pedindo para esperar.
P3: Deixa eu acabar de contar a história. Depois
vocês falam. Continuando...
Crs: Pode.
M7: Oh tia! Tia!
A partir deste trecho, a dinâmica da atividade muda. Uma vez que todas as crianças já
72
participaram, a professora começa a dissertar sobre as questões apresentadas pelo livro,
restringindo mais a possibilidade de participação das crianças. Um indicador dessa atitude é a
inibição da fala de M7. A fala da professora (“Deixa eu acabar de contar a história. Depois vocês
falam.”) indica que contar a história é mais importante do que a discussão entre e com as
crianças.
(9) 00:26 Leitura e interpretação da página 8.
P3: “Tomar água e suco no copo. Subir no
escorregador sozinho. Que que é isso? É muito
feio você beber água no bico da garrafa. Por quê?
Porque você vai transmitir todas as bactérias que
você tem para aquela água, para aquele suco.
Então, tem que ter um copo. É por isso que a gente
pode beber água...?
P3: No copo. Subir no escorregador sozinho! Pela
escadinha!
A professora olha para M4 e coloca o dedo na
frente da boca, solicitando silêncio, enquanto
continua sua fala.
P3: Porque se você ainda não sabe trabalhar com
o escorregador, você pode cair e machucar. O que
que a gente pode também?
M6: No bico...
F2: Essa água é só para a gente.
Crs: No copo.
M4: Igual a gente faz!
M4 fica em silêncio.
As outras crianças estão em silêncio,
acompanhando a fala da professora.
A motivação das crianças continua sem espaço de expressão, já que a orientação para objetivos da
professora, é o controle total das falas e dos temas, não sendo responsiva às crianças.
É neste trecho que M4 faz uma colocação importante: em relação a regras de segurança e tarefas
de destreza física, eles já estão bem além do livro!
(10) 00:28 Leitura e interpretação da página 9.
P3: “Começar a se vestir sozinho.
Por quê? Porque você já está crescendo, não vai
ter a mamãe o tempo inteiro. Então, você tem que
se vestir sozinho. Calçar uma meia, vestir uma
calça comprida ou uma blusa. Colocar uma cueca
ou uma calcinha.
P3: Não! Não é de rir, não! (Olhando para o local
onde está a criança que riu.) Vamos ver mais.
M6: E que já...
F* ri.
F* pára de rir e fica em silêncio, olhando para
as outras crianças e para a professora.
A intervenção da professora com F* indica que as crianças devem controlar seu comportamento,
inclusive suas expressões espontâneas de emoção. A ênfase na fala e a frase dita (“Não! Não é de
rir, não!”) metacomunica a desaprovação da professora em relação às ações da criança. Em
função disso, a intervenção acaba colocando em evidencia a criança perante o grupo, o que é
visível na sua reação. F* foi punida por seu riso, o que indica que “rir” é algo errado.
(11) 00:29 Leitura e interpretação da página 10.
P3: “Ajudar a guardar as roupas. Você não vai
chegar da escola e jogar tudo no chão. Você
As crianças estão em silêncio e prestam
atenção na fala da professora.
73
mesmo vai pisar na roupa. Então, você pode
guardar as roupas, para ficar no lugar certo e
organizado. O último...
(12) 00:29 Leitura e interpretação da página 11.
P3: “Andar na calçada de mãos dadas com um
adulto.
Por que não é para andar sozinho na calçada? Às
vezes... Se você vê uma coisa interessante e tem
aquele impulso de correr, e vem um carro?
Atropela. Então, por isso tem que andar na calçada
de mãos...?
P3: Dadas. E agora minha gente, uma história
terminou. Batam palmas de alegria, batam palmas,
por favor”.
Crs: Dadas.
...uma história terminou. Batam palmas de
alegria, batam palmas, por favor”.
A maioria das crianças bate palmas.
Nos trechos 11 e 12, é importante ressaltar que a participação das crianças foi diminuindo, até
todas ficarem em silêncio, escutando a professora e respondendo no momento estabelecido por
ela.
No primeiro episódio, as ações e esforços da professora se orientaram para uma
pseudo-interpretação do texto por parte das crianças. Isto porque suas perguntas eram do
tipo “o que”, sugerindo respostas óbvias. A forma como a professora realizou algumas das
perguntas e elogiou as respostas de algumas crianças indicaram que ela esperava respostas
óbvias e específicas e acabou canalizando as respostas das crianças em uma direção
determinada, sem qualquer avaliação ou julgamento.
Podemos encontrar exemplos disto em vários momentos do episódio (trechos 3, 4 e
7), nos quais a professora fez perguntas mais amplas e pouco específicas (“O que é brincar
de ler histórias sem rasgar o livro?”, “Falar obrigado e por favor. Que que é isso?”). As
perguntas suscitaram respostas diversificadas por parte das crianças e, diante dessas
respostas, a professora continuou perguntando até chegar à resposta que ela achava
adequada e certa. O elogio das respostas serviu mais para indicar quais eram essas
respostas adequadas. No entanto, a professora se preocupou com a participação de todas as
crianças e encorajou diretamente aquelas que ficaram mais inibidas na hora de responder
(trechos 5 e 7).
O padrão de ‘diálogo’ da professora ficou claro desde o primeiro momento da
atividade (trecho 2), quando ela disse que escolheria e daria a vez para as crianças
participarem, chamando-as pelo nome. Dessa forma, ela manteve um grande controle sobre
a turma e sobre a atividade, que não chegou a ser uma discussão.
Podemos dizer que a professora não só comunicou, mas também que
metacomunicou a sua intenção de direcionar e controlar a participação das crianças. Em
74
vários momentos ela usou indicadores simples para metacomunicar que só era possível
participar nos momentos estabelecidos por ela. Um dos indicadores mais usados foi não
levar em conta a fala das crianças às quais ela não tinha perguntado em um momento
específico. Em alguns momentos (trechos 7 e 8), a professora solicitou diretamente que as
crianças não participassem, pois era a vez de alguma criança, ou dela, falar.
No momento em que se completou a participação de todas as crianças (trecho 8), a
professora começou a interpretar o texto sozinha, transmitindo várias crenças e valores
para as crianças, mas estas não mais conseguiram participar, nem mesmo solicitando
espaço para isso. No seu discurso monológico, a professora interpretava o texto desde uma
perspectiva adulta e acabou transmitindo regras e limites pouco compreensíveis para as
crianças: “precisa tomar água e suco no copo para não transmitir as bactérias para aquela
água ou suco”, “a criança que está crescendo não vai ter a mamãe o tempo todo e pode
colocar a roupa sozinha”, “precisa guardar a roupa para não pisar a roupa que fica
espalhada pelo chão”. A professora podia ter abordado essas questões a partir da
autonomia crescente das crianças e de suas vivencias específicas no dia-a-dia. No entanto,
as colocações das crianças nesse sentido não foram levadas em conta: “Essa água é só para
a gente”, “Igual a gente faz!”.
O direcionamento e controle exercido pela professora em relação à participação das
crianças indicaram a ênfase absoluta que ela deu à ordem e à disciplina. Estes
prevaleceram em relação às necessidades e à motivação das crianças para participar e
sugerir respostas. Além disso, ao centralizar em si a fala, a professora inibiu as interações
criança-criança. Como vemos no protocolo, as crianças não tiveram a possibilidade de
interagir, trocando idéias e discutindo sobre o texto e os temas por ele abordados.
Outros indicadores da ênfase na ordem e na disciplina foram as intervenções da
professora nos momentos em que as crianças fizeram colocações descontextualizadas em
relação à atividade (repetir o titulo do livro, rir de alguma palavra). Nesses momentos
(trechos 1 e 10), a professora interveio de forma enfática, metacomunicando sua
desaprovação em relação às ações das crianças. Por sua vez, as crianças tentaram se
adequar às exigências e às regras estabelecidas pela professora. As respostas das crianças,
diante das perguntas da professora, foram muito restritas, o que pode ter como base vários
fatores. Um deles pode ser a insegurança e a preocupação das crianças em apresentar uma
resposta correta, de acordo com as expectativas da professora.
Outro inibidor das respostas das crianças pode ter sido o tipo de pergunta realizada.
A professora fez perguntas relativas a conceitos que podem ser difíceis até para crianças
75
mais velhas: “Que que é desenhar?”, “E que que é para você fazer uma pintura”. Perguntas
sem qualquer sentido no contexto específico, pois desenhar para uma criança é desenhar e
pintar é pintar. Mesmo assim, algumas crianças conseguiram responder e interpretar os
‘podes’ do texto segundo suas experiências: “Brincar de massinha é fazer um boneco de
massinha”, “Dividir a mesa com os amigos é ser gentil” e “Escovar os dentes é para o
dente ficar limpo”.
O que mais nos surpreendeu, entretanto, foi que a maioria das questões lidas e
interpretadas no episódio não estava relacionada à moralidade. Muitos dos ‘podes’
interpretados se referem a regras colocadas pelo adulto em função da segurança e saúde
das crianças, bem como a tarefas de destreza física, que estão bem aquém das
possibilidades reais das crianças, em função de sua faixa etária. Esta questão foi notada por
uma das crianças, no trecho 9 (“Igual a gente faz!”).
Além disso, os ‘podes’ que, de alguma forma se relacionam à moral, foram
apresentados e interpretados de forma desconexa de seus aspectos morais e sociais. No
trecho 2, a frase “A gente pode brincar com os amigos” foi interpretada por uma criança
como a possibilidade de dividir e compartilhar os brinquedos com o outro. Interpretação
que não foi aproveitada na direção de explorar mais os motivos sociais dessa partilha, a
partir das próprias experiências das crianças, que costumam ter conflitos em função dos
objetos e brinquedos. Além disto, fica implícito que o natural é brincar sozinho, mas que a
gente ‘pode’, ou tem permissão, para brincar com o colega!
No episódio, não se estabeleceu uma discussão sobre questões relativas à
moralidade, como solicitado antes da realização da atividade. Por um lado, não houve uma
discussão entendida como co-construção das crenças e valores relacionados às regras,
normas e limites que foram apresentados para as crianças. Por outro lado, a maioria dessas
regras, normas e limites não se relacionam com a moralidade, e aqueles que podem estar
relacionados não foram discutidos e analisados em uma perspectiva moral. Entretanto,
todas essas questões, assim como as interações que aconteceram ao longo do episódio,
podem ser significativas para a experiência e o desenvolvimento social e moral das
crianças. Uma vez que o desenvolvimento da moralidade acontece no contexto das
interações sociais, a qualidade e o conteúdo dessas interações se constituem experiências
significativas, que podem abrir o espaço para o desenvolvimento da heteronomia.
Sobre a interação da professora com as crianças, podemos concluir que a mesma
esteve marcada pela assimetria característica da relação adulto-criança. Além dos
elementos já apontados, outros como ler o texto em pé, com o livro fora da visão das
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crianças, remarcaram a posição de autoridade da professora, assim como o predomínio do
modelo unidirecional de transmissão de cultura e de conhecimentos. Nesse modelo, cabe
ao adulto transmitir os conhecimentos, enquanto cabe a criança uma interpretação passiva
dos mesmos. Em termos morais, isto certamente reforça a heteronomia.
Episódio II – “Tá demorando demais!”
ATIVIDADE: Representação do livro através de mímica. As crianças continuam sentadas em
roda, no chão. Algumas se mexem no lugar e outras conversam. A professora está em pé, frente a
roda.
TEMPO: 8h39
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:31 Apresentação da atividade de mímica.
P3: Agora, eu vou querer... Eu vou escolher alguns
alunos... A gente entendeu bem a história...
P3: Não, desenho não. Nada de desenho. Agora,
vamos fazer uma coisa bem legal. Oh, M4, junta
com M5, vocês vão lá trás e vão fazer uma cena,
como se fosse uma mímica, sobre o que a gente
pode e a gente vai tentar adivinhar.
P3: Não. Eu contei o que pode. A gente não
contou o que não pode. Hoje, foi só o que pode.
A professora volta falar com M4 e M5.
P3: Vocês vão escolher uma parte... Entram em
acordo, vocês dois, o que vocês mais gostaram e...
P3: Não. Eu falei M4 e M5. Vão fazer a mímica,
para a gente adivinhar o que foi. Olha o tanto de
coisas que vocês podem escolher! Se foi desenhar
ou pintar. Brincar com os amigos, brincar de contar
histórias, escovar os dentes, comer sozinho...
Guardar os materiais... Se foi de subir na escada,
ou se foi de ir no banheiro sozinho e dar descarga...
dividir seu lanche, sentar na mesa com o amigo...
Vai escolher um... Dar chupeta para o bebê,
emprestar os brinquedos... Vocês vão escolher
um... Subir na escada do escorregador... Se é se
vestir sozinho, se é andar na calçada com a mamãe.
A professora se dirige ao quartinho onde fica
guardado o material da sala e chama M4 e M5 com
a mão.
P3: Ah! Você quer contar o acidente!
M7: Desenho.
M11: O que não pode...
M3: Eu e M5.
M7: Eu quero contar o acidente em Minas
Gerais. (Falando bem baixinho.)
M7 faz um gesto afirmativo com a cabeça.
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P3: Espera só um minutinho, deixa a gente acabar.
Aí, vocês contam o que vocês fizeram no recesso
de vocês.
A professora entra no quartinho com M4 e M5.
P3: Por favor! Por favor! (Solicitando silêncio, em
função da fala de F1.)
A professora sai do quartinho com M4 e M5.
P3: Eles vão fazer a mímica. Então, vamos prestar
atenção. Vocês não podem falar. Depois, eu vou
chamar mais duas crianças. Tá bom? Pode
começar.
F1: Eu fui...
A maioria das crianças fica em silêncio,
esperando a representação. Algumas
conversam bem baixinho.
Neste trecho, a professora comunica diretamente que as duplas para realizar a atividade serão
selecionadas por ela. Dessa forma, a participação das crianças continua sob o controle e
direcionamento da professora.
Já no começo da atividade, as crianças indicaram sua orientação para conversar sobre o recesso.
A professora, ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de levar em conta os objetivos e
interesses das crianças, indica que está disposta a manter o planejamento da atividade.
A intervenção da professora em função da fala de F1 metacomunica sua desaprovação em relação
às ações da criança, e é o primeiro indicativo de que as crianças devem ficar em silêncio enquanto
esperam a representação dos colegas.
(2) 00:36 Representação da página 1: A gente pode
desenhar, fazer pintura na escola e em casa.
P3: Uê! Mas, vocês não pegam mais nada!? É só
isso?
P3: Vocês estão pintando?
P3: Ah! Muito bem! Vamos ver... M6 e M3. Eu
vou pegar todo mundo. Vai pensando sem falar.
A professora entra com M6 e M3 no quartinho.
A professora sai com as crianças do quartinho.
P3: Vamos lá! Podem começar.
M4 e M5 fazem gestos com as mãos, como
se estivessem desenhando ou pintando em
um papel imaginário.
M6: Pintando!
M4 e M5 fazem gestos afirmativos com a
cabeça.
As crianças conversam baixinho e se mexem
no lugar, enquanto esperam.
Na primeira parte deste trecho, a professora intervém em relação à apresentação de M4 e M5.
Através de sua fala, ela metacomunica seu desapontamento e suas expectativas em relação à
apresentação realizada pelas duas crianças, o que pode restringir ou inibir a participação das
mesmas. No entanto e após a intervenção de M6, a professora muda sua atitude e acaba elogiando
a participação da dupla.
A fala da professora para o grupo estabelece duas regras, que devem ser seguidas pelas crianças:
participar de acordo com a oportunidade outorgada por ela e esperar em silêncio a representação
de cada dupla. As duas
regras para a realização da atividade, foram colocadas de forma
assimétrica pela professora e parecem ter como objetivo principal o cumprimento da ordem e da
disciplina.
(3) 00:39 Representação da página 7: A gente pode
M6 e M3 fazem vários gestos, como se
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dar a chupeta para um bebê.
P3: Calma gente. Vamos prestar atenção. Oh! Eles
fizeram dois gestos... um de dar a chupeta para o
bebê e outro de como chupa chupeta. Não foi?
P3: Então, eles escolheram dar a chupeta para o
bebê. Palmas para eles.
P3: M10 e M11... Depois, M7 e M12. Psiu!! Se
falar, não dá certo.
A professora entra no quartinho com M10 e M11.
P3: Psiu!!
estivessem colocando algo na boca ou dando
algo para alguém.
F1: Que que é isso?
M9: Que que é isso?
M6 e M3 respondem que sim com a cabeça.
As crianças batem palmas. Algumas
conversam e se mexem bastante.
As crianças ficam em silêncio, aguardando a
próxima representação. Elas se mexem no
lugar.
M5: Tá demorando demais! Tia!
Neste trecho, aumentam as mostras de cansaço e impaciência, por parte das crianças. Parece que
a atividade não gera muito entusiasmo, pelo contrário. Uma das crianças (M5) chega reclamar
diretamente da demora da atividade. Reclamação que não foi levada em conta pela professora. Ao
mesmo tempo em que aumentam as mostras de cansaço e impaciência das crianças, aumentam as
ações da professora no sentido de controlar o comportamento delas, em função da organização e
realização da atividade. É importante ressaltar que, nesse ponto da atividade, as crianças tinham
mais de 39 minutos na roda, que começou antes da atividade estruturada.
(4) 00:43 Representação da página 2: A gente pode
escovar os dentes.
A professora sai do quartinho com M10 e M11.
P3: Começa do inicio. Não deixem de fazer nada
do que vocês combinaram.
P3: Ah! Muito bem! Vamos lá, M7 e M12.
A professora entra com M7 e M12 no quartinho.
P3: O pessoal lá está bagunçando! (Referindo-se
as crianças da outra turma, que estão conversando.)
Dá licença, ou eu vou ter que tirar. Vamos
começar.
M10 e M11 fazem como se estivessem
pegando vários objetos de um estojo ou
bolsa. Preparam alguns desses objetos
imaginários e começam fazer de conta que
escovam os dentes.
Crs: Escovar os dentes!
Várias crianças começam se mexer pelo
espaço da sala, escorregando no chão de um
lado a outro da roda. A maioria das crianças
conversa.
Neste trecho aparece de forma mais explicita o conflito entre as necessidades e motivações das
crianças e as orientações para objetivos da professora. Por um lado, as crianças estão cansadas
de ficar no mesmo espaço, precisando se mexer e interagir entre elas, indicando cansaço com
relação às atividades. Por outro, a professora está orientada para manter a atividade dentro dos
79
parâmetros estabelecidos por ela, controlando o comportamento do grupo. Para exercer o dito
controle, a professora muda de estratégia. Ao invés de solicitar silêncio como nos trechos
anteriores, assume uma atitude punitiva e comunica para as crianças que a transgressão das
regras estabelecidas por ela anteriormente, terá como conseqüência a exclusão da atividade.
(5) 00:45 Representação da página 9: A gente pode
começar a se vestir sozinho.
P3: É isso M12?
P3: Palmas. Agora F2 e M8. Calma! Silêncio!!
Silêncio!!
A professora entra com F2 e M8 no quartinho.
P3: Quem está falando aqui!?
A professora pergunta desde a porta do quartinho.
M7 e M12 fazem como se estivessem
vestindo várias peças de roupas. Primeiro
calcam os sapatos, depois, vestem calça e
blusa.
M6: Colocar a roupa sozinho.
M12: É.
As crianças se mexem e falam mais alto.
As crianças continuam falando.
As mostras de cansaço e a necessidade de interação continuaram aumentando. A professora
enfatiza sua desaprovação em relação às ações das crianças através do tom da voz (Silêncio!!
Silêncio!!) e de sua atitude punitiva (Quem está falando aqui!?). Dessa forma, a professora indica
que está disposta a continuar a atividade e que elas devem se adequar às regras estabelecidas.
Por outro lado e, talvez em função do conflito que se estabeleceu, a professora começa mudar o
ritmo da atividade. Se em um primeiro momento (trecho 2) ela indicou que esperava
representações elaboradas por parte das crianças, a partir deste trecho ela começa fechar as
representações de forma mais rápida.
(6) 00:46 Representação da página 11: A gente pode
andar na calçada de mãos dadas com um adulto.
P3: Onde?
P3: Muito bem. Quem falta?
P3: Já foi. M9 vai fazer com F1. F1 cochicha aí
com ele. M13, você vai fazer comigo. Venha!
A professora entra com M13 no quartinho.
A professora sai do quartinho, junto com M13.
P3: Pronto. F1 e M9 vão fazer primeiro. Depois,
M13 e eu. Vocês podem começar.
F2 e M8 saem do quartinho e começam
andar pelo espaço da sala, de mãos dadas.
M3: Andar de mãos dadas.
M3: Na calçada.
F1: O M7.
F1 e M9 conversam baixinho no lugar.
As crianças aguardam as duas representações
em silêncio.
(7) 00:48 Representação da página 2: A gente pode
brincar com massinha.
P3: É isso F1?
F1 e M9 fazem de conta que amassam
alguma coisa.
M4: Brincando de massinha!
F1: É. A gente está brincando de massinha.
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P3: Ah! (Bate palmas.)
P3: Agora M13 e eu. Vamos lá, nós dois.
Algumas crianças batem palmas.
Embora nos trechos 6 e 7 as mostras de cansaço e impaciência das crianças diminuam, as duas
representações foram realizadas em um ritmo rápido e de uma forma mecânica. Também é
importante observar que a forma como a professora elogia as representações das crianças muda
em relação aos trechos anteriores. Tanto as crianças quanto a professora parecem pouco
comprometidas com a atividade. Mesmo assim, a atividade continua, apesar de não corresponder
aos interesses dos participantes, do cansaço e da possível falta de motivação. Nesse sentido,
cumprir com a atividade até o final se constitui para P3 uma regra que não pode ser mudada.
(8) 00:50 Representação da página 5: A gente pode
dividir a mesa com os amigos na hora do lanche.
A professora e M13 fazem gestos de servir e
comer.
P3: É isso aí! Só comendo? Primeiro, dividindo o
quê?
P3: Dividindo a comida. E depois?
P3: Dividindo as coisas e comendo. Obrigada.
Agora vocês duas. (Referindo-se as duas meninas
da outra turma.)
A professora entra no quartinho com as duas
meninas.
A professora sai do quartinho com as duas
meninas.
M3: Lavando as mãos!
M8: Comendo! Estão comendo!
F1: Dividindo a comida.
M7: Comendo.
As crianças conversam enquanto esperam.
Neste trecho é importante ressaltar que a criança que fez a representação com a professora (M13)
não teve a possibilidade de se colocar em relação a sua própria participação. É a professora que
interage com o restante do grupo, sem deixar espaço para M13 se colocar. A atitude da professora
indica seu papel central no direcionamento e controle da atividade, o qual ela não deixa de lado
em um momento em que isso pode ser importante para a criança que está participando junto com
ela. Novamente, as crianças começam interagir entre elas, contrariando a professora.
(9) 00:53 Representação criada pelas crianças: A
gente pode ajudar em casa.
P3: Prestem atenção no que elas vão fazer.
P3: Elas estão ajudando nas coisas da casa.
Lavando as coisas. É que elas disseram que a gente
também pode ajudar nas coisas da casa. Foi muito
bom! Podem sentar. Agora vocês dois. (Referindo-
se aos meninos da outra turma.)
As duas crianças fazem como se estivessem
lavando algumas coisas.
M4: Que que é isso. Elas estão lavando?
As duas meninas sentam e os dois meninos
vão até a professora.
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A professora entra no quartinho com os dois
meninos.
A professora e os dois meninos saem do quartinho.
As crianças conversam.
No trecho 9 é importante ressaltar que a professora se mostra flexível em relação à apresentação
das duas crianças, que não segue nenhuma das questões apresentadas pelo livro. Dessa forma, ela
abre o espaço para que as crianças re-criem o texto a partir de suas próprias experiências, o que
não aconteceu nas outras representações.
Entretanto, as crianças que representaram não tiveram a oportunidade de explicar para o grupo o
que elas próprias fizeram. A professora, ao mesmo tempo em que se mostra flexível em relação à
participação das crianças, continua direcionando a atividade desde sua posição de autoridade.
(10) 00:56 Representação da página 7: A gente pode
andar de bicicleta com rodinhas.
P3: Vamos ver o que eles vão fazer. Pode
começar.
P3: Andando de bicicleta. Eles gostaram dessa
parte da história.
Os dois meninos se movimentam de um lugar
para outro, como se estivessem andando de
bicicleta.
M6: Eles estão correndo?
M13: Estão andando de bicicleta.
Na última representação o texto é retomado ao pé da letra, sem nenhuma re-criação dos ‘podes’
abordados, por parte das crianças. As crianças que representaram não tiveram a possibilidade de
se colocar em relação a sua própria apresentação, o que foi uma característica predominante ao
longo da atividade. A interação entre as crianças é mediada pela professora, que responde e
pergunta por elas.
(11) 00:56 Avaliação da história.
P3: Vocês gostaram da história?
P3: Você não gostou? Por quê?
P3: Uê! Se você não gostou, eu quero saber por
quê! Você gostou ou não gostou?
P3: Ah! Então, porque está falando besteira?
P3: Ah! Você amou! ...
Crs: Gostei! Eu gostei!
M5: Eu não gostei.
M5 fica em silêncio.
M5: Gostei.
M6: Eu não gostei, eu amei.
M5, que já tinha reclamado em relação à duração da atividade, mostrou sua insatisfação com a
mesma, avaliando a história de forma negativa. A professora interveio, inibindo e desqualificando
a opinião da criança. Ao mesmo tempo, a intervenção da professora canalizou as respostas das
crianças para uma avaliação positiva da atividade, como indica a fala de M6. Diante da
intervenção da professora, M5 muda de opinião. Dessa forma, a professora acabou inibindo a
possibilidade das crianças se colocarem de forma sincera expressando idéias ou sentimentos.
(12) 00:57 Apresentação da atividade de desenho.
P3: Bom, agora vamos fazer outra coisa. Vocês
não fizeram uma demonstração? Cada um foi com
o amigo e fez uma coisa. Agora, vocês vão sentar
na mesa com esse amigo. Cada um vai fazer o seu,
As crianças continuam sentadas na roda.
82
mas cada um vai ajudar o outro que precisar. Vão
desenhar e escrever o que vocês fizeram. Então,
por exemplo, o M13, comigo, foi lanchar. A gente
coloca lanche e desenha. Estou dando um exemplo.
F1 escreve massinha e desenha alguém amassando
a massinha no lugar. F2 e M8 fizeram andando de
mão dadas. Coloca andando e faz o desenho
andando com o papai e a mamãe. O M4 foi com
quem?
P3: Fizeram o quê?
P3: Então, vocês escrevem desenhando e
desenham vocês desenhando. M12 foi com quem?
P3: Com M7. O que vocês fizeram?
P3: Então, vestir. Escreve vestindo a roupa e
desenha. M6 foi com quem?
P3: M6 foi com quem?
P3: Fizeram o que?
P3: Então escreve colocar a chupeta no bebê e
desenha. O M10 foi com quem?
P3: E fizeram o quê?
P3: Então escreve dentes e depois desenha. Todo
mundo entendeu, não foi?
M5: Comigo.
M5: Desenho.
M7: Comigo.
M7: Colocar a roupa.
F1: Com M3.
M6: Com M3.
M6: O da chupeta.
F1: O M11.
M11: Escovar os dentes.
As crianças ficam em silêncio.
No trecho 12, a professora aproveita o final da atividade para apresentar e direcionar a próxima,
antes de abrir o espaço para conversar sobre o recesso. A apresentação da atividade aconteceu de
modo rápido e bastante diretivo. Embora a professora diga que ela ‘está dando um exemplo’,
acaba dizendo para as crianças o que elas devem desenhar e escrever. Dessa forma, a professora
restringe novamente a possibilidade de elaboração e re-criação conjunta das questões
apresentadas pelo texto.
É importante ressaltar que, ao apresentar a atividade de desenho, ela sugere a cooperação e ajuda
entre as crianças. Embora o desenho seja individual, as crianças podem se ajudar mutuamente. Ou
seja, não se trata de atividade cooperativa, mas individual com permissão para “ajudar” o outro.
(13) 01:01 Conversa sobre o recesso.
P3: Então, antes de passar para a mesa, vamos
falar do recesso. O que vocês fizeram no recesso?
M13 está falando com F2, sentada do seu
lado.
83
Vamos contar para M13 parar de conversa fiada.
P3: Fala M7! O que você queria contar? É um de
cada vez e rápido.
M13 pára de falar e presta atenção no que
acontece na roda.
No final da atividade, a professora levou em conta as orientações para objetivos das crianças e
abriu um espaço para conversar sobre o recesso. Entretanto, ela estabeleceu, através da
intervenção com M13, que a conversa devia seguir as mesmas regras da atividade anterior: as
crianças deviam ficar em silêncio e participar segundo seu direcionamento e orientação. Além
disso, a conversa precisava ser rápida em função da próxima atividade, já apresentada.
No segundo episódio, estabeleceu-se um conflito entre as orientações para objetivos
da professora e as orientações para objetivos das crianças. Enquanto a professora se
orientava para realizar a atividade de acordo com o planejamento, as crianças indicaram
sua orientação para conversar sobre o recesso. Sendo assim, estabeleceu-se uma
negociação em relação à atividade, logo no começo do episódio (trecho 1).
De forma geral, essa negociação esteve marcada pela assimetria na interação
adulto-criança, uma vez que a professora manteve o compromisso de cumprir fielmente o
planejamento da atividade, apesar das mostras de cansaço, impaciência e desinteresse das
crianças. A partir das interações entre P3 e as crianças, podemos concluir que não houve de
fato qualquer negociação. As mostras de cansaço e desinteresse por parte das crianças
aumentaram ao longo do episódio, o que pode estar relacionado a vários fatores. Por um
lado, o tempo prolongado de permanência na roda e na atividade que, como colocado por
uma criança, demorou demais. Por outro lado, a atividade de representação foi uma
reprodução mecânica das ações interpretadas no episódio anterior. Neste ponto, vale a pena
ressaltar que não foi possível gravar em vídeo a organização das representações por parte
das duplas selecionadas. Sendo assim, não foi possível saber se houve direcionamento, por
parte da professora, nesses momentos de organização.
Ao mesmo tempo em que aumentaram as mostras de desinteresse e cansaço das
crianças, aumentaram as intervenções da professora no sentido de controlar o
comportamento das crianças, em função da organização, da disciplina e do sucesso da
atividade. As intervenções da professora variaram do pedido explicito de silêncio à ameaça
de retirar as crianças da atividade, caso continuassem conversando, o que foi visto por ela
como bagunça (trecho 4). Dessa forma, a professora não só acabou inibindo as interações
entre as crianças, como também inibiu a possibilidade das crianças trocarem idéias sobre a
atividade proposta e as regras representadas.
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Como no episódio anterior, a professora direcionou a participação das crianças,
dando a vez de cada uma representar, assim como estabelecendo as duplas que fariam a
mímica. O direcionamento e controle exercido em relação à participação das crianças
também indicaram a ênfase que ela deu a ordem e a disciplina, aspectos que prevaleceram
durante toda a sessão. Nesta parte da atividade, também não houve uma discussão
entendida como co-construção das crenças e valores relacionados às regras, normas e
limites que foram representados pelas crianças.
O direcionamento da participação das crianças apareceu de forma muito específica
no trecho 11. No momento em que a professora sugeriu uma avaliação da história lida,
uma das crianças mostra sua insatisfação com a história e a atividade. A professora
interferiu inibindo e desqualificando a opinião da criança. Por outro lado, a intervenção da
professora comunicou, para o restante do grupo, que só era possível avaliar a história de
forma positiva, uma vez que a avaliação negativa foi entendida e qualificada como
‘besteira’. Sendo assim, a intervenção realizada canalizou a participação das crianças numa
direção especifica, segundo as orientações e expectativas da professora.
No final do episódio (trecho 13), a professora levou em conta as orientações para
objetivos das crianças e abriu um espaço para conversar sobre o recesso. Entretanto, ao
intervir com uma das crianças, ela comunicou que essa conversa devia acontecer de acordo
com seu direcionamento e as regras de organização e disciplina estabelecidas. Qualquer
interação fora das regras estabelecidas seria ‘conversa fiada’.
Como no episódio anterior, as crianças tentaram se adequar às exigências e às
regras estabelecidas pela professora, assim como participar de acordo com a oportunidade
dada por ela e segundo sua coordenação. Também é importante sinalizar que, apesar da
autoridade e controle exercidos pela professora, há um contexto afetivo positivo entre ela e
as crianças. Em vários momentos do episódio, a professora avaliou de forma positiva a
participação das duplas e incentivou o elogio e o reconhecimento entre as crianças.
Elementos importantes para as interações sociais entre elas.
Ao longo do episódio, as regras para a realização da atividade foram estabelecidas
de forma assimétrica pela professora, sem levar em conta os interesses e necessidades das
crianças. Como colocamos nos trechos 6 e 7, continuar a atividade até o final acabou se
constituindo uma regra que devia ser cumprida e não podia ser mudada em função dos
participantes, sendo essa a questão principal do episódio. Questão em estreita relação com
a moralidade, em função de sua dimensão normativa. Nesse contexto, o conceito de regra
não aparece como uma legislação que tem uma funcionalidade determinada e pode ser
85
estabelecida pelas pessoas envolvidas, em função de seus interesses. A regra passa ser um
limite estabelecido por uma autoridade, e que deve ser cumprido ao pé da letra, a despeito
dos interesses e necessidades dos participantes da atividade ou situação específica. Por sua
vez, os participantes não têm a possibilidade de se constituírem legisladores, negociando as
regras de forma flexível e autônoma.
Episódio III – “É para o amigo ajudar”
ATIVIDADE: Desenho individual a partir do texto. Para a realização da atividade, as crianças
sentam nas mesas, de acordo com a orientação da professora. As duplas formadas para a atividade
de mímica ficam juntas para a realização do desenho.
TEMPO: 9h20
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 01:12
A professora solicita que todas as crianças
guardem o tapete e sentem às mesas, formando as
duplas da atividade de mímica. Ela começa repartir
o material que será usado na atividade de desenho.
P3: Não esqueçam de colocar o nome no cantinho.
(Indo de mesa em mesa, repartindo o material e
observando o que as crianças estão fazendo.)
P3: É bem bonito que a tia A. vai levar. Cada um
faz seu desenho bem bonito. Não pode falar, é para
desenhar.
A professora passa pelas
mesas, ajudando as
crianças que estão escrevendo.
P3: Ajudem quem está precisando, mas falem
baixo.
A professora sai da sala.
As crianças vão guardando os tapetes,
ocupando as mesas e cadeiras e esperando o
material da atividade. Algumas conversam
entre elas. Outras andam pelo espaço da
sala, procurando um lugar para sentar.
As crianças, já nas mesas, desenham e
escrevem em sua folha. Algumas se
auxiliam com as letras do alfabeto, que estão
encima do quadro preto.
As crianças conversam entre elas e
observam os desenhos dos colegas. Algumas
crianças levantam e vão até outras mesas
para interagir com os colegas.
No começo da atividade, a professora estabelece novamente a regra de não conversar durante a
atividade. No entanto e pouco tempo depois, ela própria flexibiliza a regra, uma vez que é
contraria a orientação dada por ela no episódio anterior: ajudar quem estiver precisando. Mesmo
assim, a possibilidade de estabelecer as regras do grupo e de flexibilizar as mesmas se mantém
centrada na figura da professora.
Neste trecho é importante ressaltar que a professora se mostra solicita, ajudando as crianças na
tarefa de escrita. Também é importante chamar a atenção para as interações entre as crianças,
que aumentam na hora que a professora sai da sala. Nesse momento, as crianças interagem e se
mexem pelo espaço, sem deixar de fazer as tarefas solicitadas.
(2) 01:23
A professora entra na sala.
P3: Então, você quer ajuda da tia K.
P3: Mas eu falei que era o amigo que ia ajudar. Eu
M7: Tia! Me ajuda.
M5: Eu também.
86
não vou ter tempo de ajudar todo mundo. Vocês não
precisam esperar por mim para fazer e se ajudar.
A professora começa ajudar M7.
P3: F1, ajuda ele aqui. (Solicitando que F1 acabe de
ajudar M7, que está perto dela.)
A professora vai ajudar M5 que está em outra mesa.
Conversa com M5 sobre a palavra que ele está
escrevendo e vai mostrando as letras do alfabeto da
sala. Também pronuncia a palavra mais devagar e
pergunta quais as letras que ele ouve.
Após ajudar a criança, continua passando pelas
mesas, observando o trabalho das crianças e
oferecendo suporte para elas.
F1 fica mais perto de M7 e conversa com ele
sobre o desenho e a escrita.
As outras crianças continuam desenhando e
escrevendo. Algumas conversam.
Neste trecho, a professora continua ajudando as crianças, de forma mais individualizada e de
acordo com as solicitações. Além disso, a professora encoraja a autonomia das crianças na hora
de fazer a tarefa e a ajuda entre elas. A diferença do primeiro trecho, ela não ressalta motivos pró-
sociais para que as crianças se ajudem mutuamente. Como aparece no trecho, ela explica que as
crianças devem se ajudar porque ela não vai ter tempo de ajudar todo mundo. Mesmo assim, ela
incentiva ações pró-sociais entre as crianças através da fala e de sua própria atitude. Além disso,
a professora dá espaço para que as trocas entre as crianças aconteçam.
No trecho, as crianças continuam interagindo e engajadas na atividade.
(3) 01:29
P3: Vou recolher para a gente fazer outra coisa.
P3: Quem acabou, né? Acabou M6? Acabou, né?
A professora pega o desenho de M6 e vai mesa por
mesa, perguntando quem acabou e recolhendo os
desenhos.
P3: Quem gostaria de uma folha em branco para
fazer o desenho do recesso?
P3: Vou pegar então.
P3: Quem mais gostaria de fazer alguma coisa
sobre o recesso? Você quer M6?
P3: Então, tá.
A professora continua recolhendo os desenhos da
atividade estruturada e repartindo folhas para o
desenho sobre o recesso.
M7: Eu não acabei tia.
M6 responde com um gesto afirmativo.
M8: Eu!
M5: Eu! Eu!
M6: É.
No final da atividade a professora sugere outra que vem ao encontro dos interesses das crianças
no episódio anterior. Dessa forma, ela tenta levar em conta as orientações para objetivos das
crianças, que se mostram motivadas em relação à atividade sugerida.
No terceiro episódio, as crianças estavam envolvidas em uma atividade individual
de desenho que foi explicada e combinada no episódio anterior. No primeiro momento
(trecho 1), a professora estabeleceu que a atividade seria realizada de forma individual e
em silêncio: “Cada um faz seu desenho bem bonito. Não pode falar, é para desenhar”,
87
indicando ênfase no individualismo, na organização e na disciplina. No entanto, diante das
interações das crianças e em função de uma orientação que ela deu anteriormente (ajudar
quem precisar), mostrou flexibilidade, acatando as orientações para objetivos das crianças,
sem deixar de estabelecer regras para a atividade. No mesmo trecho, a professora orientou
as crianças para se ajudarem mutuamente, conversando em tom baixo. Essa orientação se
manteve ao longo do episódio. Nos trechos 1 e 2 do episódio, a professora comunicou
explicitamente que todos podiam ajudar a quem estivesse precisando. Já no trecho 2,
solicitou diretamente para uma criança que ajudasse outra que estava perto. Sendo assim,
podemos concluir que, apesar da atividade ser individual, a professora incentivou a
interação entre as crianças, no sentido da ajuda mútua. Como colocamos no protocolo, a
professora também incentivou a autonomia das crianças em relação à tarefa solicitada.
Dessa forma, a professora não só incentivou interações pró-sociais entre as
crianças, como transmitiu sua crença de que é importante ajudar o outro, sobretudo se esse
outro estiver precisando. Além disso, incluiu a participação ativa das crianças na atividade,
a partir de trocas significativas entre elas e pessoas mais experientes, procurando levar a
criança menos experiente a atingir níveis mais elevados de desenvolvimento. Também
indicou sua confiança na competência das crianças para estabelecer essas trocas
significativas e construir de forma conjunta o conhecimento.
Uma vez que neste episódio as crianças tiveram a possibilidade de participar
ativamente, podemos concluir que a interação entre a professora e as crianças foi mais
simétrica do que nos episódios anteriores. Por um lado, as crianças tiveram a oportunidade
de coordenar seus pontos de vista e estabelecer interações de reciprocidade. Ou seja,
interações constituintes, nas quais se estabelecem regras e acordos mútuos entre os
participantes, elementos importantes para a dimensão moral (Piaget, 1932/1994). Por outro
lado, a professora assumiu uma postura menos diretiva e autoritária, sem deixar de
estabelecer regras consideradas por ela importantes, para o sucesso da atividade.
Ao longo do episódio, a professora se mostrou solicita, aproximando-se das
crianças e fornecendo ajuda sempre que necessário. Dessa forma, ela própria também
estabeleceu trocas significativas com as crianças, que lhe permitiriam conhecer quais as
possibilidades e duvidas do grupo e de cada criança de forma individual. A atitude pró-
social da professora também é importante para o estabelecimento de trocas entre as
crianças.
No trecho 3, a professora levou em conta as orientações para objetivos das crianças
e sugeriu desenhar sobre o recesso. Sugestão que foi acatada pelas crianças com
88
entusiasmo. Dessa forma, a professora não só considerou os interesses das crianças, como
indicou a possibilidade de modificar a rotina em função desses interesses.
Atividade Estruturada 2: “A gente não pode...”
Legenda para a leitura do protocolo:
F (feminino) e M (masculino): Crianças da turma, que foram numeradas
começando pelas meninas e de acordo com sua distribuição no espaço. No momento
da gravação, a turma contava com 3 crianças do sexo feminino e 11 do sexo
masculino (14 crianças).
Crs: Várias crianças falam ao mesmo tempo ou respondem juntas.
P3: Professora da turma.
.... : Pausa na fala.
: Primeira fala ou explicação que deve ser lida no protocolo.
“” : Leitura dos trechos do livro e letra de música.
Texto sublinhado: Falas das crianças que não foram levadas em conta pela
professora, durante a atividade analisada.
Episódio I – “O M8 está atrapalhando!”
ATIVIDADE: Apresentação da Atividade Estruturada para as crianças. As crianças estão sentadas
na roda, no chão. A professora está sentada em uma cadeira, também no espaço da roda.
TEMPO: 8h11 (Início da Atividade)
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:09
P3: Podemos começar?
P3: Oh! Ontem, nós fizemos um monte de
atividades. Foi legal a atividade de ontem, não foi?
Quem não veio perdeu. Porque ontem... Que que
nós fizemos? Alguém lembra?
P3: Não. Antes da caixinha de fósforo.
P3: Então, M4 vai falar desde a hora que a gente
chegou. Que que nós fizemos?
P3: Não. É ele que vai contar. (Olhando para M10
e apontando para M4.)
P3: Não. Antes, antes. O que que a tia K. fez?
P3: Continua.
Crs: Podemos.
F2: Caixinhas de fósforo.
M4: Eu sei tia.
M10: Tia! Tia!
M4: A gente... A senhora pegou duas
crianças...
M4: O livro.
M4: A gente...
Neste trecho, as crianças parecem engajadas na atividade e motivadas para participar.
A professora intervém junto a M10, que queria responder a pergunta e estava solicitando um
89
espaço para falar. Através de sua intervenção, a professora indica para as crianças que cada uma
deve participar na sua vez, estabelecendo, assim, a mesma regra da sessão anterior para a
realização da atividade.
(2) 00:11
P3: Como era o nome do livro? Fala, M9.
P3: Ah! O que a gente pode.
P3: Depois que a gente leu a história do que a
gente pode, a gente fez o quê?
P3: O M8 está atrapalhando! M4?
P3: Isso! Fizemos uma brincadeira como
demonstração do livro. E depois?
M9: O que a gente pode.
M4: Aí, depois, a gente foi lá (apontando
para o quarto dos materiais) e fez aquela
brincadeira.
M4: Fez aquela brincadeira.
M8: Foi lá no quartinho.
M8 fica em silêncio.
M4: Fez a brincadeira.
F2: Aí, a gente fez a caixa.
No segundo trecho, uma das crianças (M8) transgride a regra estabelecida e fala na vez de outra
criança. A professora intervém metacomunicando, com o tom da voz, sua desaprovação em
relação à ação da criança. Além disso, a frase usada por ela comunica para as crianças que
qualquer intervenção fora da organização estabelecida será vista como uma forma de atrapalhar a
realização da atividade. Nesse contexto, falar na sua vez e sem interromper a vez do colega não
apareceu como uma questão de respeito e cuidado com o outro, que já iria responder a pergunta.
Falar na sua vez torna-se mais uma regra voltada para a organização e sucesso da atividade
realizada.
(3) 00: 13
P3: Ah! Mas isso foi depois. O que que nós
fizemos para a tia A.?
P3: Desenho! Sobre o quê?
P3: Do livro. Do que a gente pode. O que a gente
pode fazer.
P3: Não. Nós não falamos ontem do que não pode.
O que que nós fizemos também?
P3: Quando vocês fizeram o desenho para a tia A.,
o que que vocês fizeram também? Escreveram o
quê?
P3: O que que escreveu... M4?
M7: Desenho.
M9: Do que pode.
M14: O que não pode.
As crianças ficam em silêncio.
As crianças continuam em silêncio,
prestando atenção na fala da professora.
M4 fica em silêncio olhando para a
90
P3: Oh! Nós escrevemos sobre o quê? Quando
vocês fizeram o desenho para a tia A., escreveram
sobre o quê?
P3: Sobre o que apresentou! Depois, fizeram
montagem de sucata. Ontem, a montagem de
sucata foi longa. Vocês fizeram o quê?
P3: Moveis... Brinquedos. Com caixinhas de quê?
P3: Então, fizemos móveis e brinquedos com
caixinhas de fósforo. Vamos ver o que que nós
vamos fazer hoje. Se ontem a gente viu o que a
gente pode, hoje nós vamos ver o que a gente não
pode.
professora.
M8: O que apresentou.
F2: Móveis.
M5: Brinquedos.
M5: De fósforo.
Crs: Não pode.
Neste trecho, as crianças respondem de acordo com seu interesse e com o que lembram sobre a
realização das atividades. A professora tenta aproveitar as respostas das crianças para seus
objetivos, até conseguir descrever a rotina do dia anterior na seqüência temporal adequada. As
crianças continuam motivadas por participar, e tentam fazê-lo de acordo com a regra estabelecida
pela professora, no começo da atividade. Como é possível observar, cada criança fala na sua vez e
a professora não precisa intervir em relação à regra estabelecida.
No primeiro episódio, as ações e esforços da professora se orientaram para a
apresentação da segunda atividade estruturada. No trecho 1, a professora lançou uma
pergunta para o grupo, sobre as atividades realizadas no dia anterior, com o intuito de
aproveitar as respostas para a apresentação do livro. A pergunta suscitou respostas
diversificadas por parte das crianças, algumas delas fora das expectativas da professora.
Diante disso, a professora continuou perguntando até chegar à resposta que lhe permitiria
apresentar o texto e a atividade do dia.
A forma como a professora direcionou a apresentação da atividade, assim como
suas interações com as crianças, indicaram sua orientação para cumprir fielmente o
planejamento realizado por ela. Mesmo nos momentos em que as crianças mostraram sua
motivação para falar sobre outras atividades (confecção de brinquedos com sucata, por
exemplo) a professora aproveitou a resposta das crianças na direção estabelecida por ela,
até conseguir descrever a rotina do dia anterior na seqüência temporal adequada, e
apresentar a atividade estruturada.
Neste episódio, de forma geral, a professora se mostrou mais flexível em relação à
participação das crianças. No entanto, não deixou de estabelecer regras para que essa
91
participação acontecesse de forma que não ‘atrapalhasse’ o andamento da atividade. Como
aparece no protocolo de análise, a professora não selecionou a priori a criança que iria
responder sua pergunta, nem delimitou que ela outorgaria a vez de cada uma falar. As
crianças foram respondendo de acordo com suas lembranças sobre a rotina do dia anterior,
e a professora foi aproveitando as respostas. A regra estabelecida em relação à participação
foi ‘cada uma falar na sua vez’.
A regra anterior foi estabelecida, assimetricamente, pela professora e no marco de
suas interações com as crianças, através de diferentes estratégias. No trecho 2, uma
criança (M10) solicitou um espaço para falar e responder a pergunta lançada ao grupo. A
intervenção da professora aconteceu no sentido de esclarecer que outra criança responderia
a pergunta (“Não. É ele que vai contar.”), sem estabelecer outras possibilidades para a
criança, que acabou desistindo de participar nesse momento da atividade. No trecho 3, uma
criança (M8) transgrediu a regra estabelecida em relação à participação, respondendo a
pergunta direcionada a outra criança (M4). Embora a resposta estivesse certa, a mesma não
foi levada em conta pela professora, que interveio de forma enfática, metacomunicando sua
desaprovação em relação à ação da criança. Além disso, a professora interpretou a ação
dela como uma forma de ‘atrapalhar’, indicando que as participações fora da ordem
estabelecida interferiam no andamento e sucesso da atividade.
A intervenção da professora com M8 indicou a ênfase que a professora deu à
organização e disciplina, em detrimento de outras questões que podem ser importantes para
as relações sociais entre as crianças da turma. Embora a regra ‘falar na sua vez’ possa estar
relacionada com o respeito e cuidado com o outro, ela foi colocada no sentido de manter a
disciplina, a organização e o sucesso da atividade, sem nenhuma alusão a motivos sociais.
Por outro lado, a estratégia usada pela professora para intervir junto à criança, acabou
colocando-la em evidencia perante o grupo, podendo inibir sua motivação para participar
da atividade, assim como canalizar as ações das crianças na direção esperada por ela.
Como explicitamos no protocolo de análise, no trecho 3 as crianças tentaram se adequar às
exigências e à regra estabelecida pela professora, respondendo ou falando na sua vez e de
acordo com sua coordenação.
Episódio II – “Porque aqui não deixa”
ATIVIDADE: Leitura do livro selecionado para a atividade estruturada. A professora fica em pé e
começa a leitura do livro. As crianças continuam sentadas na roda. Elas prestam atenção à
atividade.
TEMPO: 8h17
92
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:15 Leitura e interpretação da página 1.
P3: Continuando o livro! E agora minha gente
uma história eu vou contar. Uma história bem
bonita, todo mundo vai gostar.”
Da Anna Claudia e da Ana Raquel. Só que ontem, a
gente viu o que a gente pode e hoje vamos ver o que
a gente não pode. Então, vamos ver o que a gente
não pode...
A gente não pode tomar remédio sozinhoF2, por
que a gente não pode tomar remédio sozinho?
P3: Muito bem! E outra coisa? Vamos lá... M8. Por
que que não pode, M8?
P3: Não, M8.
P3: Fala M4.
P3: Morre? De quê?
P3: Ah! Se tomar bastante remédio. Não pode. Isso!
O remédio pode curar e o remédio pode matar, se a
criança tomar o remédio errado.
A professora olha para M7 e pede para esperar com
um gesto da mão.
P3: Mocinho, de aqui a pouco você fala. Eu te
chamo.
Crs: “...minha gente uma história eu vou
contar. Uma história bem bonita, todo
mundo vai gostar.”
F2: Porque se não pode quebrar o vidro e
pode... pode cortar o pé.
M7 levanta a mão.
M4: Porque...
M8: Porque se não vai... para o médico e
põe gesso no braço.
M4: Se não morre.
M4: Do remédio.
M7 levanta a mão novamente.
Neste trecho da atividade, a professora estabeleceu a primeira regra relacionada com a
participação das crianças: a vez de participar será outorgada por ela, a despeito da motivação das
crianças.
A regra foi estabelecida no marco das interações com as crianças (M4 e M7) que queriam
participar, mesmo não sendo selecionadas no momento específico.
As crianças se mostram motivadas e tentam participar a partir de suas vivências e conhecimentos.
Por sua vez, a professora acolhe as respostas das crianças e tenta esclarecê-las quando
necessário.
(2) 00:17 Leitura e interpretação da página 2.
P3: Vamos lá. A gente não pode Trocar a comida
por doces e biscoitos.Por quê? M13.
M13: Porque dá dor de barriga.
93
P3: Pode dar um problema de saúde. Por quê? Oh!
M6.
P3: Porque essas coisas aqui é para lanchar e não
para refeições... De comida, de arroz, feijão,
verduras e legumes.
A professora olha para M5.
P3: Eu estou contando uma história e está
participando quem eu estou chamando!
A professora vai até M7 e tira o pedaço de tapete da
mão dele.
P3: Eu vi, vi. Chega para trás, M7. Vamos.
M6: Porque não está na hora de jantar.
M5: Eu gosto...
M7 tem um pedaço de tapete na mão e está
brincando com ele.
M8: É o M7 que foi.
A professora intervém junto a M5, “Eu estou contando uma história e está participando quem eu
estou chamando!”, posicionando-se de forma inflexível. Além disso, ela possivelmente perdeu a
oportunidade de suscitar uma discussão mais ampla sobre a questão abordada: a fala de M5
indica que a colocação dele seria a favor dos doces e biscoitos.
Ao interferir com M7, que brinca com um pedaço de tapete, a professora estabelece outra regra
voltada para a disciplina, a ordem e o controle do comportamento das crianças: durante a
atividade todos devem ficar atentos. Tanto a fala da professora (“Eu vi, vi. Chega para trás, M7.
Vamos.”) como a forma que usou para tirar o pedaço de tapete da criança, acabam
metacomunicando sua desaprovação em relação às ações de M7.
(3) 00:17 Leitura e interpretação da página 3.
P3: Vamos. Apertar o irmãozinho, nem a
irmãzinha... Apertar como? Oh... M9... Não, M9
não tem irmão.
P3: Não. Ele não tem irmão pequeno, não. Quem
tem é M11. M11...
P3: Não. Eu quero o M11. Por que a gente não pode,
M11?
P3: Justamente. Se pegar muito forte, pode
machucar a criança, quebra o ossinho. Porque ela é
muito fraquinha. Muito bem, M11! Parabéns! A
gente não pode ficar pedindo colo na rua toda hora.
Por quê?
P3: Não. Cada um uma vez. M7.
P3: Isso! Vocês não têm perninhas para andar?
M7: Tem.
M14: Eu tenho! Eu tenho! (Levantando o
braço.)
M5: Eu também tenho.
M11: Porque se pegar muito forte, quebra o
braço.
M4: A mão também
.
M4: Por...
M7: Porque a mãe fica cansada.
94
P3: Isso! Vamos continuar. Cada um de uma vez.
Algumas crianças respondem que sim com
a cabeça.
M5: E pode quebra a coluna da mamãe.
Neste trecho, várias crianças se mostram interessadas em participar, a partir de sua experiência
pessoal. No entanto, essa motivação não foi levada em conta pela professora, que continua
controlando a vez de cada criança participar, desde uma posição bastante autoritária. Frases
como “Eu quero M11” indicam que a participação depende da vontade dela.
Os motivos para não pedir colo na rua a toda hora, foram abordados desde uma perspectiva
adulta e não a partir da autonomia crescente das crianças que, em função da idade, não precisam
mais de colo. Além disso, a questão de não machucar o irmãozinho ou a irmãzinha podia ter sido
abordada de forma mais abrangente e ampla, e desde uma perspectiva mais pró-social com base
nas próprias experiências das crianças.
(4) 00:20 Leitura e interpretação da página 4.
P3: “A gente não pode puxar o rabo do cachorro,
nem do gatinho.Por quê? M12.
P3: Eu quero M12. Cada um de uma vez.
P3: Oh, M7! Que que eu falei!? É um de cada vez!
Fala M12.
P3: Machuca o animal. Você acha que você gostaria
de alguém te apertar? Não, né? Então, o animal
também não gosta.
M7: Porque se não morde.
M7: Por que se não morde.
M12: Porque machuca.
A intervenção da professora com M7, que insiste em participar, indicou seu desapontamento e
desaprovação em relação às ações da criança. Elementos que foram metacomunicados através do
tom da voz. A resposta da criança, que se refere à reação do animal caso seja machucado, não foi
levada em conta, nem aproveitada com o intuito de suscitar uma discussão mais ampla.
De forma geral, a questão abordada pelo livro não foi aproveitada no sentido de estabelecer uma
discussão sobre o cuidado com os animais, em função de sua condição de seres vivos com os quais
interagimos e convivemos.
A professora fecha a interpretação dessa página tentando suscitar a empatia das crianças em
relação aos animais. No entanto, ela não deixa as crianças responderem sua pergunta. Ela mesma
responde e passa para a página seguinte.
(5) 00:21 Leitura e interpretação da página 5.
P3: “A gente não pode pegar o lanche do amigo
se ele não deixar.Por quê? M9.
P3: Hum-hum... Porque primeiro, a gente tem que
ser muito educado e pedir. ‘Amigo, você pode me
dar um pedacinho de seu lanche?’ Sem falar não é
bom. Não tem que pegar o lanche do amigo. Tem
que ser educado.
P3: Agora não! Você vai participar... A gente não
pode, M5, jogar o lanche no chão. Por quê?
M9: Porque ele não deixou.
M5: Tem que...
M5 fica em silêncio.
95
P3: Agora é hora de você falar. Agora é a vez de
M5.
P3: Ah! Porque fica tudo sujo. E a gente pode ficar
brincando com comida?
P3: Não podemos.
P3: Nem jogando.
M8 levanta o braço.
M5: Porque fica tudo sujo
.
Crs: Não!
M7: Nem jogando.
A questão abordada neste trecho também não foi aproveitada no sentido de estabelecer uma co-
construção relativa a questões sociais e morais. Diante da resposta de M9, a professora começou
dissertar sobre a questão, colocando suas próprias crenças e valores: pegar o lanche do amigo se
ele não deixar não é ser educado, e é bom e necessário ter educação. Em função disso, podemos
dizer que a questão foi abordada desde a perspectiva da polidez e não de motivos sociais e morais
mais específicos. Uma vez que a questão abordada pelo texto faz parte do cotidiano das crianças,
podia ser mais explorada a partir da experiência delas.
Neste trecho chama a atenção a intervenção da professora com M5, que tenta participar burlando
a regra estabelecida. Momentos depois de dizer para M5 que não é a vez dele participar, a
professora o chama para interpretar um dos ‘não pode’ do texto. Diante do silêncio da criança, a
professora especifica “Agora é a vez de você falar”, desde uma perspectiva bastante assimétrica e
autoritária.
(6) 00:23 Leitura e interpretação da página 6.
P3: “A gente não pode comer meleca. Por que,
M14? É M14. Oh! M9, vai para trás...
P3: Isso mesmo! As pessoas não podem ficar com
catarro na boca.
P3: O que M11?
P3: Oh! Oh! Continuando...A gente não pode
jogar lixo no chão.Por que, F3?
P3: O chão vai ficar sujo. E a gente tem alguma
empregada para ficar limpando?
P3: E outra coisa. A educação da gente exige que a
gente jogue o lixo aonde?
P3: Na lixeira. Porque se jogar o lixo no chão,
também, o que vai acontecer? Vai sujar o mundo. E
o mundo vai ficar o quê? Vai ficar pobre, mais do
que é. Sem dar o ar para a gente, para respirar. E
sem dar alimento... Agora não, que eu quero
continuar a história.
M4: Eca!
M14: Porque as pessoas não podem ficar
com catarro na boca.
M11 fala alguma coisa ininteligível.
M11: Porque é cheio de micróbios.
M2: Porque faz mal.
F3: Porque fica sujo.
Crs: Não!
Crs: Na lixeira.
M6: O mundo vai ficar...
M4: E o mundo...
M6: Não vai dar alimento.
96
A professora olha para M6.
P3: Deixa eu continuar a história. Eu vou tirar!
Estou falando!...
No trecho 6, aparecem vários indicadores da assimetria na interação professora-criança e da
ênfase na disciplina, na ordem e no controle do comportamento das crianças. Além de chamar a
atenção de M9, que deve ficar em um espaço específico da roda, a professora interfere de forma
autoritária e punitiva, com as crianças que queriam participar. Retirar a criança da atividade
aparece como uma estratégia ou mecanismo para controlar suas ações na direção desejada.
Estratégia que parece eficiente, uma vez que M6 não tenta burlar mais a regra de participação
estabelecida pela professora, como pode ser observado no restante do protocolo.
Vale ressaltar a atitude da professora em relação à fala de M11, assim como em relação às
intervenções de outras crianças, que não foram levadas em conta. Ao mesmo tempo em que a
professora solicita que M11 fale, ela não considera a fala da criança, passando imediatamente
para a leitura do próximo ‘não pode’ do texto. Essa atitude vem ao encontro de suas orientações
para objetivos, que aparecem na sua fala: “Agora não, que eu quero continuar a história”.
As questões abordadas pelo texto foram interpretadas pela professora, que acabou dissertando
sobre as mesmas a partir de suas próprias crenças e valores. Essas questões não foram discutidas
desde uma perspectiva social e moral, mas desde a perspectiva da polidez.
(7) 00:26 Leitura e interpretação da página 7.
P3: “A gente não pode... Oh! M4, puxar o cabelo
das pessoas.Por quê?
P3: Doe. Se ficar puxando... E a pessoa vai ficar
careca, também. E é uma falta de educação. Como
que vai ficar puxando, a toda hora, o cabelo da
pessoa, do amiguinho? Não dá.
M4: Por cai e dói.
A página 7 do livro aborda uma questão importante em termos de moralidade e que faz parte do
cotidiano das crianças pequenas, que costumam resolver seus conflitos interpessoais através do
confronto físico. Mesmo assim, a questão não foi discutida sob a perspectiva da moralidade, de
forma abrangente e a partir das experiências das crianças. A professora se limitou a transmitir
suas próprias crenças e valores: não pode puxar o cabelo das pessoas porque doe e é uma falta de
educação. Mais uma vez, uma questão relacionada com o cuidado e o respeito pelo outro foi
abordada desde a perspectiva da polidez e descontextualizadas de questões morais.
(8) 00:26 Leitura e interpretação da página 8.
P3: “A gente não pode morder o amigo.Por que,
F1?
P3: Fica uma marca.
P3: Não é cachorro, é gente. Muito bem, F1!
Parabéns! É isso mesmo. Por que a gente não pode
empurrar e nem machucar o amigo?... M8, você já
falou. M7 também. M13. M13, por que a gente não
pode empurrar e machucar o amigo?
A professora senta em uma cadeira, no espaço da
roda.
P3: Além de doer, o que a pessoa faz?
F1: Porque se não fica uma marca.
F1: Não é cachorro.
M4: Tia. Tia.
M13: A pessoa... Porque se não doe e
também grita.
M13: Grita.
97
P3: Grita. E machuca, não é? E outra coisa: Você
gostaria de alguém te empurrando, te jogando no
chão e te batendo? Fala, M7.
P3: Continuando. Deixa eu acabar a minha história.
Depois, você conta a sua.
M7 levanta o dedo.
M7: Quando eu estava em casa...
No trecho 8, também é abordada uma questão importante em termos de moralidade e que faz parte
do cotidiano das crianças. A questão não foi discutida a partir das experiências das crianças, nem
em função de motivos sociais e morais, como o cuidado com as pessoas. Como em trecho anterior,
a professora tenta suscitar a empatia das crianças, perguntando se alguém gostaria de ser
machucado. No entanto, ela não deixa as crianças responderem sua pergunta. Ela mesma
responde e passa para a página seguinte.
Ao mesmo tempo em que a professora solicita a participação de M7, que pediu a palavra, não leva
em conta a fala da criança, passando para a próxima página do livro e indicando sua orientação:
acabar a história.
(9) 00:28 Leitura e interpretação da página 9.
P3: “A gente não pode pedir as coisas gritando ou
chorando. Assim: ‘Ai! Ai! Mamãe me dá isso aí!’
ou ‘Eu não agüento, eu quero agora. Pode fazer
isso?
A professora olha para M5, sentado de seu lado. Ela
abaixa a cabeça, ficando quase à altura dele, e fala.
P3: Sua mãe me contou que você faz isso. Por que,
M5? Por que a gente não pode pedir as coisas
gritando ou chorando? ...
P3: Deixem ele responder. Eu queria chegar nessa
parte. Por que, M5?
P3: Deixem ele responder. Ele, agora, vai pensar e
vai falar porque que a gente não pode fazer esse tipo
de coisa.
P3: Não. Deixa ele responder. Ele está pensando.
P3: Por quê? Responde.
P3: Depois você me responde?
P3: Fala para ele, F3. Por que que não pode?
P3: Fala para ele, M6. Por que que não pode?
Crs: Não.
M4: Nada a ver.
M5 fica em silêncio, com a boca apertada,
olhando para os colegas.
M10: Porque...
M8: Porque é bonito.
M5 continua em silêncio.
M13: Eu sei...
M5 fala algo ininteligível, abaixa a cabeça e
coloca as mãos na frente do rosto.
M5 fica em silêncio, com a cabeça baixa.
M5 fica em silêncio.
M5 continua em silêncio.
F3 fica em silêncio, também com a cabeça
baixa.
98
P3: Fala para ele, M4. Por que que não pode?
P3: Por isso! Eu falei por que as crianças não podem
pedir as coisas, assim, gritando. Fala, M12.
P3: Por que, M6?
P3: Por que, F1?
P3: Não é ser educado! Você precisa... Todo mundo
tem o quê? (Assinalando os ouvidos.)
P3: Ouvidos! Você precisa gritar com alguém para
ele ouvir? Não! Você tem que falar baixo, ser
educado. Não precisa ter gritos. Não precisa gritar.
Espera aí, que tem mais. A gente na pode gritar
quando não quer fazer alguma coisa.Você tem que
falar por que você não quer fazer. Não é assim: ‘não
quero porque não’. Isso é justificativa?
P3: Não, é falar as coisas direito. Então, tem que
saber.
M6 fica em silêncio.
F1, M7 e M8 levantam os braços.
M4: Porque ele acha muito legal o
brinquedo.
M12: Eu tia.
M12: Porque a mãe não deixa.
M6: Porque a mãe dá uma surra.
F1: Porque... não é ser educado.
Crs: Ouvidos.
Crs: Não.
M12: Não é falar...
A professora coloca em evidencia, perante os colegas e de forma negativa, uma criança da turma
(M5). Ao perguntar diretamente para a criança e insistir na resposta, a professora indica sua
desaprovação em relação às ações da criança. Além disso, a fala da professora “Eu queria chegar
nessa parte” indica que a ação dela foi proposital.
M5 mostrou-se bastante constrangido em relação à situação. Ele se manteve com a cabeça baixa,
colocou as mãos na frente do rosto e se recusou a responder. Mesmo diante das mostras de
constrangimento da criança, a professora continuou insistindo na resposta e na exposição de M5.
Uma vez que ele não respondeu, a professora solicitou que o grupo respondesse para ele. Algumas
crianças se mostraram solidárias com M5 e permaneceram em silêncio. Outras responderam
enfatizando a assimetria característica da interação adulto-criança, e indicando que a regra
apresentada parte da perspectiva e das necessidades do adulto e não necessariamente da
perspectiva e necessidades da criança.
As respostas das crianças (“Porque ele acha muito legal o brinquedo”, “Porque a mãe não
deixa”, “Porque a mãe dá uma surra”) indicam pouco entendimento das regras quando colocadas
desde a perspectiva adulta.
A partir da resposta de F1 (“... não é ser educado”), a professora interpreta a regra desde a
perspectiva da polidez, sem abordar questões relativas à moralidade.
(10) 00:33 Leitura e interpretação da página 10.
P3: Vamos lá. Por que não pode “subir na janela?
P3: Porque cai. E pode acontecer o quê?
P3: Pode acontecer um acidente e machucar. Pode
acontecer um acidente grave e quebrar um osso, um
Crs: Porque cai.
Crs: Machucar
99
braço, uma perna. Por que que não pode desenhar
nas paredes da casa, nem da escola”, M5! (Olhando
para M5.)
P3: Não!! (Olhando para M11 com expressão muito
séria e franzindo a testa.)
P3: Não! Não é isso, não! Por que que não pode
ficar desenhando na parede de casa e da escola? Por
quê?
P3: Ah! Isso, F1! Porque vai ficar muito feio.
P3: É! Os outros chegam aí... Né, M5? E está tudo
riscado, como ontem. Você foi apagar, não foi?
Então, não está certo. Isso não está certo. Então, o
M11 está percebendo, agora, que as coisas não estão
certas.
P3: É! O M5, desculpa. (Pedindo desculpas para
M11, por ter errado de nome).
M10: E a bochecha...
M5 fica em silêncio e olha para a
professora e para a câmera de vídeo.
M11: Porque aqui não deixa.
M13: Porque a mamãe briga.
F1: Fica feio.
F1: Fica muito feio!
M5 está em silêncio, com uma expressão
bastante séria e olhando para a professora,
para as outras crianças e para o chão.
M11: O M5!
No trecho 10, M5 foi colocado novamente em evidencia de forma negativa perante o grupo. A
professora aproveitou uma das questões colocadas pelo texto para re-lembrar um acontecido, que
envolvia a criança. No dia anterior, M5 tinha riscado uma parede da escola, que limpou com o
intuito de reparar as conseqüências de sua transgressão. Uma vez que a reparação já tinha
acontecido, e ela é uma estratégia importante para o desenvolvimento moral da criança em função
de sua reciprocidade em relação à transgressão, a exposição da criança (estratégia da vergonha)
era completamente desnecessária no marco da atividade. Além disso, a criança tinha sido exposta
momentos antes e dava sinais de constrangimento.
Diante da resposta de M11 (“Porque aqui não deixa.”), a professora interveio metacomunicando
seu desapontamento e desaprovação, através do tom da voz e da expressão do rosto. A resposta da
criança
enfatiza a assimetria característica da interação adulto-criança, e indica pouco
entendimento das regras quando colocadas desde uma perspectiva adulta.
(11)00:36 Leitura e interpretação da página 11.
P3: “A gente não pode gritar assim: Me dá, eu quero
agora! Será que as pessoas, quando vão atender
você, elas podem atender agora?
P3: Não! A tia, aqui na sala... Eu vou dar um
exemplo da tia K. (ela mesma). Aqui na sala, eu não
vou no lugar de cada um para ajudar? Mas tem que
ser agora?
P3: Não. Você tem que ter a paciência e não ser
egoísta. Esperar a tia ajudar o amigo, para depois
ajudar você. É igual em casa. A mamãe... Às vezes,
a mamãe está fazendo uma coisa séria e você fica:
‘mamãe, mamãe eu quero agora!’ Está certo?
M8: Não!
Crs: Não!
Crs: Não!
100
P3: Não! A mamãe vai fazer, mas tem que esperar
um momentinho, tá?
P3: Às vezes, ela está tomando banho. Não tem
como a pessoa parar.
P3: Lógico! Agora... Cruza as pernas, F3. Não é
assim que a gente funciona, não é assim! Não é
dessa maneira! A gente não pode... Então, um monte
de coisas que a gente não pode fazer.
F1: Às vezes, quando a mamãe demora, eu
tenho que ficar esperando. Mamãe anda!
M4: Às vezes, ela está fazendo as coisas.
F3 esticou as pernas.
F3 senta com as pernas cruzadas.
A questão abordada no último trecho foi explicada pela professora desde a perspectiva adulta e
não desde a perspectiva e a experiência das crianças.
A intervenção com F3, que esticou as pernas, indica a ênfase dada na disciplina e no controle do
comportamento das crianças, que devem manter uma postura corporal determinada no espaço da
roda e no contexto da atividade. O tom da voz e a fala da professora indicaram sua desaprovação
em relação à postura corporal da criança, que tentou se adequar às regras e exigências da
professora.
No segundo episódio, as ações e esforços da professora se orientaram para a
interpretação do texto por parte das crianças. A partir da regra estabelecida em relação à
participação das crianças, a professora centralizou em torno de si a oportunidade de
responder e interpretar o texto lido. Embora as crianças estivessem motivadas para
participar, a professora comunicou e metacomunicou, através de vários indicadores, que só
era possível participar nos momentos estabelecidos por ela. Um dos indicadores mais
usados foi não levar em conta a fala das crianças às quais ela não tinha perguntado em um
momento específico, conforme destacamos no protocolo de registro e análise. Em alguns
momentos do episódio, a professora solicitou diretamente que as crianças não
participassem, pois ela já tinha selecionado outra criança para interpretar o texto. No trecho
1, essa intervenção aconteceu com duas crianças (M4 e M7). No entanto, a professora
estabeleceu outras possibilidades para que essas crianças participassem, sempre sob seu
direcionamento e de acordo com suas orientações para objetivos. Já nos trechos 2 e 4, a
professora interveio com outras crianças (M5 e M7), re-lembrando diretamente a regra
estabelecida por ela e metacomunicando sua desaprovação em relação às ações das
crianças: “Eu estou contando uma história e está participando quem eu estou chamando!”,
“Que que eu falei!? É um de cada vez!”.
101
Além de comunicar e metacomunicar a regra de participação estabelecida, a
professora usou outras estratégias para validá-la. No trecho 6, várias crianças (M4, M11,
F2 e M6) fizeram comentários sobre o texto, transgredindo a regra de participação. Diante
disso e da insistência de M6 para participar, a professora deixou claro que uma nova
transgressão da regra teria como conseqüência a exclusão das crianças da atividade: “Eu
vou tirar! Estou falando!”. A estratégia usada, por um lado, é uma sanção que não se
sustenta na sua reciprocidade com a regra transgredida e acaba reforçando a assimetria na
interação adulto-criança, assim como a visão heterônoma da regra, por parte das crianças.
Por outro lado, indicou a atitude punitiva e inflexível da professora em relação às regras
estabelecidas. Uma vez que a regra de participação não estava de acordo com as
necessidades e motivação das crianças, a professora podia ter negociado com o grupo a
modificação da mesma.
Dessa forma, a professora tentou consolidar e validar, ao longo do episódio, uma
regra que restringiu a participação das crianças e a possibilidade de discutir os temas
abordados a partir das opiniões e experiências delas.
O direcionamento e controle exercido, por parte da professora, em relação à
participação indicaram a ênfase que ela deu a ordem e a disciplina. Aspectos que acabaram
prevalecendo em relação à necessidade e motivação das crianças para participar e sugerir
respostas, e em relação aos objetivos solicitados. Além disso, ao centralizar em torno de si
a oportunidade de participar, a professora restringiu as interações criança-criança. Como
podemos observar no protocolo, as crianças não tiveram a possibilidade de interagir,
trocando idéias e discutindo sobre o texto e os temas por ele abordados.
Outro elemento que indicou a ênfase na ordem e na disciplina foi o controle
exercido em relação às ações das crianças e a sua postura corporal no espaço da roda e
durante a atividade. Várias interferências da professora aconteceram no sentido de
estabelecer e re-lembrar que era necessário prestar atenção na atividade e manter uma
postura adequada para a ocasião. Podemos encontrar um exemplo dessa questão no trecho
11, no qual a professora interveio junto a uma criança (F3), que esticou as pernas. A fala da
professora (“Cruza as pernas, F3. Não é assim que a gente funciona, não é assim! Não é
dessa maneira!”) foi enfática e indicou sua desaprovação em relação às ações da criança,
além de inflexibilidade em relação às regras e diante das necessidades dela. Uma vez que o
grupo tinha mais de 33 minutos na roda, era compreensível que as crianças sentissem a
necessidade de mudar a posição do corpo.
102
Além das questões anteriores, chama a atenção o esforço da professora por
interpretar o texto a partir dos valores e crenças que ela considerou pertinentes. Em alguns
trechos do episódio (trechos 1, 6 e 10), é possível observar comentários das crianças que
não foram levados em conta, uma vez que não se adequaram às regras apresentadas no
livro, ou às interpretações da professora. Em outros momentos, a professora aproveitou as
regras apresentadas no texto para dissertar sobre as mesmas e transmitir
unidirecionalmente seus próprios valores e crenças, restando para as crianças a
possibilidade de uma interpretação passiva.
Podemos encontrar exemplos da questão anterior na maioria dos trechos do
episódio (trechos 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11). No trecho 6, as questões abordadas pelo texto
foram interpretadas pela professora, que acabou dissertando sobre as mesmas a partir de
suas próprias crenças e valores, sem a participação efetiva das crianças, que mostraram seu
interesse de várias maneiras. Como colocamos no protocolo, no trecho 7 foi abordada uma
questão importante em termos de moralidade. Questão que faz parte do cotidiano das
crianças pequenas, que costumam resolver seus conflitos interpessoais através do
confronto físico. Mesmo assim, a questão não foi discutida de forma abrangente e a partir
das experiências das crianças. A professora se limitou a transmitir suas próprias crenças e
valores: não pode puxar o cabelo das pessoas porque doe e é uma falta de educação. Nesse
trecho, assim como em outros, uma questão relacionada com o cuidado e o respeito pelo
outro foi abordada desde a perspectiva da polidez e descontextualizadas de questões
morais.
Além de dissertar sobre as regras apresentadas pelo livro, a professora usou outras
estratégias para transmitir valores e crenças sócio-morais, relacionadas ao cumprimento
das regras estabelecidas. Uma das estratégias usadas foi a sanção em função da
transgressão das regras, como colocamos anteriormente. No trecho 6, a professora indicou
que o não cumprimento das regras de participação teria como conseqüência a exclusão das
crianças da atividade. Dessa forma, a professora ressaltou a importância de seguir as regras
ao pé da letra, mesmo quando essas regras não levam em conta as necessidades e interesses
dos participantes da situação. Nesse caso específico, a estratégia usada pela professora
pode acabar apresentando um conceito de regra desprovido de sua funcionalidade social.
Outras estratégias, usadas pela professora ao intervir junto às crianças, podem ser
significativas para o desenvolvimento moral. Nos trechos 9 e 10, a professora interveio
com uma criança (M5), em função dela ter transgredido determinadas regras em outros
contextos. O mecanismo da vergonha, que se baseia na exposição dos erros da criança
103
perante si mesma e os outros, é apontado por vários autores (e.g. La Taille, 2004; Rogoff,
2005) como um mecanismo importante para o desenvolvimento da moralidade. No
entanto, os autores mencionados enfatizam a importância de considerar os efeitos
negativos da exposição da criança perante os outros. Como analisamos no protocolo, a
criança repreendida deu mostras visíveis de constrangimento. Além disso, no trecho 10, a
estratégia usada se mostrou desnecessária, uma vez que a criança já tinha reparado as
conseqüências de sua transgressão no momento oportuno.
Como sublinhamos nos trechos 9 e 10, as respostas das crianças diante da
interferência com M5 denotaram pouco entendimento das regras, o que pode acontecer
quando as regras são colocadas sem a participação ativa das crianças (DeVries e Zan,
1998). De acordo com M11, M5 não podia riscar as paredes da escola porque na instituição
não deixam. A resposta da criança indicou, que no contexto estudado, é possível que as
regras sejam colocadas de forma assimétrica e desde a perspectiva adulta. Questão
fundamental para nosso estudo.
A maioria das questões lidas e interpretadas no episódio está relacionada à
moralidade. Muitos dos ‘não pode’ interpretados se referem a regras que têm como base
questões sócio-morais relacionadas com o respeito pelo outro. No entanto, essas regras
foram apresentadas e interpretadas de forma desconexa de seus motivos morais e sociais,
como analisamos anteriormente.
De forma geral, este episódio apresentou padrões de interação semelhantes com os
apresentados na primeira atividade estruturada. Nos dois episódios relativos à apresentação
e interpretação das regras, chamam a atenção o direcionamento e controle excessivo da
atividade e do comportamento das crianças, a restrição das interações criança-criança e a
canalização das interpretações do texto em uma direção determinada. Todos esses
elementos restringiram a possibilidade de estabelecer uma discussão, entendida como co-
construção das crenças e valores relacionados às regras, normas e limites que foram
apresentados para as crianças. Sendo assim, não se estabeleceu uma discussão sobre
questões relativas à moralidade, como solicitado antes da realização da atividade.
Episódio III – “Uma idéia boa!”
ATIVIDADE: Apresentação da atividade de desenho a partir do livro. As crianças continuam
sentadas na roda. A professora está sentada em uma cadeira, também no espaço da roda. Ela
explica e organiza a atividade de desenho sobre o livro. As crianças prestam atenção às orientações
da professora.
TEMPO: 8h39
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
104
(1) 00:38
P3: Ontem, nós fizemos uma dramatização. Hoje,
não vamos fazer uma dramatização.
P3: Não! Registrar, a gente tem que registrar! Mas,
nós vamos fazer hoje juntos. Sabe como? Nós vamos
fazer para a tia A. um painel. Viu tia A.? Que ela vai
deixar lá para as pessoas verem. O que é um painel?
A tia K. não faz... Também a tia S. e a tia R. Não
fazem um cartaz e colocam lá fora? Para o papai e a
mamãe? Por favor! Por favor! (Solicitando silêncio e
atenção.) Então, a tia K. vai esticar um papel no chão,
comprido. Nós vamos, juntos, escrever uma frase. Eu
vou pegar um aluno para representar todo mundo e
escrever essa frase lá encima. E todo mundo vai
desenhar neste painel, para a tia A. E vamos pintar
esse painel com caneta grande. O contorno com
caneta grande e dentro com giz de cera. Vamos fazer
um painel bonito para a tia A. Combinado?
M8: Desenho!? Tem que desenhar isso!?
M8 abaixa a cabeça e fica muito sério.
As crianças se mexem, brincam com o
tapete, olham para os lados. Algumas
começam conversar.
F2 e M12 levantam os braços e começam
pular no lugar, com entusiasmo. M6 bate
palmas. O restante das crianças continua se
mexendo e olhando para os lados.
M8 mostra sua insatisfação em relação à atividade proposta pela professora. Além disso, as
crianças dão mostras de desinteresse e distração, conversando, brincando e se mexendo no lugar.
Diante da situação, a professora esclarece que a atividade precisa ser realizada conforme
planejado por ela: “Não! Registrar, a gente tem que registrar!”. Para engajar as crianças na
atividade, a professora sugere usar material diferente (caneta grande e giz de cera), o que anima
algumas crianças.
(2) 00:41
P3: Não! Nós vamos fazer... Você pode fazer, M7, o
coração, mas primeiro, nós vamos fazer o que a gente
não pode. Cada um vai escolher agora uma coisa e
vai desenhar. Pode escolher e falar para a tia K. Oh!
Boca fechada e pensando. Vamos lá. O que M12
pode fazer, para a tia A., nesse painel?
P3: É o M12. Agora é hora de falar, invés de estar
gritando.
M7: Eu vou fazer um coração.
Algumas crianças conversam. M12
conversa em um tom mais alto com
alguém perto dele. A fala dele é
ininteligível.
M6: O M12?
M12 fica em silêncio.
Como no trecho anterior, uma das crianças (M7) mostra desinteresse em relação à atividade
proposta, indicando que deseja desenhar outra coisa. A professora, ao mesmo tempo em que tenta
incluir o interesse da criança, enfatiza que a atividade precisa seguir os parâmetros e os objetivos
estabelecidos por ela. Primeiro vão desenhar sobre o livro, depois cada um pode desenhar uma
coisa diferente.
A professora, através de sua fala e da intervenção com M12, relembra para as crianças as regras
da atividade: ficar em silêncio e falar no momento estabelecido.
(3) 00:43
P3: O que que pode ser feito, M6? O que você vai
fazer? A gente viu um monte de coisas que a gente
não pode fazer. Oh! Tomar remédio sozinho, comer
doces e biscoitos na hora errada, apertar o
As crianças continuam se mexendo no
lugar.
105
irmãozinho, ficar pedindo colo na rua, puxar o rabo
do cachorro e do gatinho, pegar o lanche do amigo
sem ele deixar, jogar lixo no chão, jogar lanche no
chão, comer meleca...
A professora faz um gesto com a mão, pedindo para
esperar.
P3: Pêra aí! Puxar o cabelo das pessoas, morder o
amigo, empurrar o amigo para machucar, pedir as
coisas gritando, gritar com as pessoas, subir na
janela, desenhar as paredes da escola e da casa, gritar.
Tem um monte de coisas. Qual que você vai
desenhar?
P3: Escolhe uma, M6.
P3: Não. Então, só puxar o rabo do gato.
P3: Então, apertar a mão do neném.
M8: Tia! Tia!
M4: Oh, tia! Tia!
M6: O M12?
M5: Duas!?
M6: Não puxar a mão do neném e não
puxar o rabo o gatinho.
M8: Ah, não! Desenhar!
M6: Apertar a mão do neném.
A professora continua centrada em seus objetivos e não leva em conta as mostras de desinteresse
das crianças, que parecem dispersas. Nesse contexto, ela não abre espaço para a participação das
crianças (M8 e M4), que estão solicitando a palavra.
M8 reclama novamente da atividade. Reclamação que não é considerada, nem discutida com a
criança.
(4) 00:46
P3: Vai M12.
P3: Oh! Lixo no chão, o M12. M11?
P3: É melhor você pensar. M4?
P3: Puxar o rabo do gato. M11?
P3: Empurrar o amigo para machucar. Muito bem!
M12: Não jogar lixo no chão.
M11 fica em silêncio e baixa a cabeça.
M4: Puxar o rabo do gato.
M11: Empurrar o amigo para machucar.
A professora começa perguntar para as crianças sobre o que elas vão desenhar, sem deixar opção
de escolha sobre a possibilidade de participar ou não na atividade de desenho. As crianças acatam
a orientação da professora e começam escolher um tema para o desenho. Ao mesmo tempo, ela
tenta imprimir um ritmo mais rápido à apresentação e organização da atividade, talvez em função
do conflito entre suas orientações e as orientações das crianças.
(5) 00:47
P3: M10?
P3: Ah! É porque ele foi no mar. E está certo. Não
pode entrar dentro do mar sem uma pessoa, porque
você afunda e afoga. Tá certo.
M10: Não pode entrar no mar sozinho...
para dentro do mar porque se afoga.
Neste trecho, é interessante a atitude da professora em relação à escolha de M10. A criança
106
seleciona um tema não abordado pelo texto, mas que faz sentido para ela, em função de sua
experiência pessoal. A professora se mostra flexível e esclarece a escolha de M10 para o restante
do grupo.
(6) 00:48
P3: Então, agora M9. M9, o que você vai fazer?
P3: Não. Eu sei... Isso também não está certo. Mas
qual você vai desenhar do livro?
P3: Na janela. F3?
P3: Já tem. F1! Vai pensando, que eu volto. (Falando
com F3.)
P3: É. Não pode jamais. Mas escolhe outra coisa do
livro. Pode ser outra coisa. Lembrou? (Falando
novamente com F3.)
P3: Tomar remédio sozinho.
M9: Não pode... Não pode empurrar da
janela.
M9: Não pode subir na janela.
F3: Olhar pela janela.
F1: Não bater na mamãe.
F3 levanta o dedo.
F3: Tomar remédio sozinho.
Em função da atitude da professora no trecho 5, as crianças começam escolher situações a partir
de suas vivências e que fazem sentido para elas. Diante disso, a professora volta a se colocar de
forma inflexível e estabelece que todas devem selecionar uma situação do livro lido.
A escolha de M9 pode estar relacionada com um caso policial (o caso Isabela, em que a criança
foi jogada pela janela) que estava passando na mídia na época da pesquisa. A professora, ao invés
de explorar a questão com as crianças sendo uma situação real sobre a qual as crianças podem
opinar e discutir, limita-se a esclarecer que M9 deve selecionar algo explícito no texto.
F1 também trouxe uma questão que podia servir como ponto de partida para uma discussão. No
entanto, a interferência da professora estava totalmente amarrada ao livro.
(7) 00:50
P3: F2! Depois eu volto para F1.
P3: Ah! Tá certo. M7!
P3: Tá! M13!
P3: Ah! Tem que não pode ficar pedindo colo.
P3: Tá certo. E F1?
P3: No meio da rua. Tá bom.
F2: Eu vou fazer que não pode pegar a
comida dos outros.
M7 levanta o dedo.
M7: Que não pode pegar a comida dos
outros.
M13: Não sei.
M13 faz um gesto afirmativo com a
cabeça.
F1: Não pode ficar pedindo o colo da
mamãe no meio da rua.
Se nos trechos anteriores a professora estabelece que as crianças não podiam selecionar o mesmo
tema, neste ela abandona essa orientação. Alguns dos temas precisam de bastante elaboração e
recursos gráficos para seu registro, e também não há temas suficientes para todas as crianças
107
escolherem um diferente. Ao intervir com M13, a professora acaba direcionando a escolha da
criança, que se limita a concordar com o sugerido.
(8) 00:53
P3: E que frase a gente pode fazer. Uma frase bem
interessante para a gente pôr no papel. Para a gente
deixar, bem lindo, no papel. Não, não é hora de
deitar! Deitar é para casa! Senta e cruza as pernas,
por favor! Que frase a gente pode pôr no papel?
Vamos gente!
P3: Não fazer coisas feias!?
M5 estica as pernas.
M5 cruza as pernas.
Algumas crianças se mexem e falam baixo.
M5: Eu te amo.
M6: Não responder à mamãe.
F3: Não fazer coisas feias.
A professora intervém junto a M5, indicando que é necessário manter uma postura corporal
determinada e adequada no marco da roda e da atividade. O tom da voz e a maneira de interferir
revelam a desaprovação e o desapontamento dela. M5 segue as orientações e regras estabelecidas,
e tenta participar da atividade mostrando seu comprometimento com a mesma e com a professora.
As crianças dão várias sugestões para o título do painel. Algumas delas não são levadas em conta,
uma vez que não se relacionam com o tema do livro. Diante da sugestão de F3, a professora
mostra estranhamento, mas não se dispõe a conversar com a criança sobre o fato dela catalogar
as questões abordadas como ‘coisas feias’, sendo essa uma frase geralmente usada pelos adultos.
(9) 00:56
P3: A tia vai pegar um papel bem grande, e eu quero
saber o que nós podemos colocar encima desse papel
para fazer o painel.
P3: M5, pensa para falar. Senta bem, no lugar.
P3: Você pode fazer seu coração. Eu quero o que a
gente pode escrever lá encima. Uma idéia boa!
P3: Isso! Mas o que a gente pode escrever lá encima.
P3: Isso! A gente não pode...
P3: A gente está falando do que a gente não pode
fazer. Então, a gente pode escrever isso lá encima: O
que a gente não pode fazer. F3, você vai escrever
para mim, lá encima. Eu vou pegar o papel.
Combinado? Cochichando bem baixinho.
(Orientando as crianças sobre a forma de falar, uma
vez que ela vai sair da sala.)
A professora sai da sala para pegar o papel.
M5: Eu te amo.
M7: Um coração.
M12: As coisas que a gente faz.
F3: Tomar remédio sozinho.
Crs: Tomar remédio sozinho.
As crianças começam falar e se mexer,
indo de um lugar para outro da sala. Nesse
momento não é possível diferenciar as
falas das crianças, pois todas conversam.
P3 continua perguntando sobre a frase que será escrita no painel. As crianças, novamente, dão
sugestões que não estão relacionadas com os temas abordados (M5 e M7). A professora interfere
108
indicando a inadequação das sugestões e vai canalizando as respostas das crianças até chegar ao
título do livro, “A gente não pode”. Fica bem claro que a “idéia boa” sobre o título já estava
definida, antes, por ela. Nesse contexto, a possibilidade de escolha e participação efetiva das
crianças não existe.
No momento em que a professora sai da sala, as interações entre as crianças aumentam
consideravelmente. Elas também aproveitam a saída da figura de autoridade para se mexer pelo
espaço e mudar a postura corporal, que até o momento foi controlada em função da atividade.
É importante ressaltar que a professora, antes de sair, orienta as crianças ‘cochichar bem
baixinho’, na tentativa de manter o comportamento delas dentro de determinados padrões, após
sua saída.
O terceiro episódio esteve marcado por duas questões relevantes. Por um lado, mais
uma vez se estabeleceu um conflito entre as orientações para objetivo da professora e o
interesse e necessidade de algumas crianças. Por outro, a professora manteve o controle da
atividade, direcionando até as ‘escolhas’ das crianças em relação ao que iam desenhar.
Logo no início, algumas crianças deram mostras de desapontamento em relação à
atividade de desenho, assim como mostras de desinteresse e cansaço. M8 reclamou do
desenho, várias crianças conversavam, brincavam e se mexiam no lugar, sem prestar
atenção à organização da atividade. Mesmo com todas essas demonstrações de falta de
motivação, a professora esclareceu que precisavam realizar a atividade de ‘registro’,
segundo seu planejamento. Ao longo do episódio as mostras de desinteresse se repetiram,
mas não foram consideradas.
Como em episódios anteriores, a professora direcionou a participação das crianças,
assim como as escolhas realizadas por elas para o desenho. O direcionamento e controle
exercido em relação à participação das crianças indicaram a ênfase que ela deu a ordem e a
disciplina, aspectos que, mais uma vez, prevaleceram, também, nesta parte da atividade. As
crianças não tiveram a possibilidade de participar de forma efetiva, nem de fazer escolhas
relacionadas com suas vivências pessoais, que poderiam estar de acordo com os temas
abordados pelo texto. Como apontamos no protocolo de análise, a professora estabeleceu
como regra da atividade, que cada criança deveria desenhar sobre uma regra do livro,
flexibilizando essa orientação somente em relação a uma criança da turma. Uma vez que
algumas crianças indicaram seu interesse por desenhar outros assuntos diferentes do livro,
mas também relacionados às questões abordadas, a regra da atividade se tornou mais
flexível, de forma a incluí-las na organização do desenho. Além disso, as questões trazidas
pelas crianças a partir de suas vivências podiam servir como ponto de partida para
109
discussões sobre temas relacionados à moralidade, que era o objetivo principal da
atividade.
Como sublinhamos no protocolo de análise (trecho 9), as interferências da
professora em relação ao titulo do painel indicaram total canalização. Embora a professora
solicitasse as sugestões das crianças sobre o que seria “uma idéia boa”, ela mesma é que
definiu o título do painel, a partir do título do texto. Esse trecho explicita bem como a
possibilidade de escolha e participação efetiva das crianças foi bastante restrita.
Ao longo do episódio, as regras para a realização da atividade foram estabelecidas e
relembradas de forma assimétrica pela professora, sem levar em conta os interesses e
necessidades das crianças. As regras eram sempre relacionadas à ordem, disciplina e
organização da atividade. Como em episódios anteriores, as crianças buscaram se adequar
às exigências e às regras estabelecidas pela professora.
Episódio IV – “Cada um faz o seu”
ATIVIDADE: Atividade de desenho a partir do livro. As crianças, que estavam sentadas na roda,
formam pequenos grupos para a realização do desenho. Os grupos atendem as orientações da
professora, que aproveita a proximidade das crianças para organizá-las em grupos de 3 ou 4
participantes. A professora se movimenta o tempo todo pela sala, organizando a atividade.
TEMPO: 9h02
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 01:01
A professora entra na sala.
P3: Olha, a tia estava olhando lá e não tem aquele
papel pardo comprido. Então, a gente vai desenhar
em cartolina. Viu tia A.? Depois a gente emenda para
ti. (Falando com a pesquisadora.)
P3: Vamos juntar para fazer o desenho.
A professora distribui as cartolinas, formando
pequenos grupos de 3 ou 4 crianças. Com um lápis,
divide cada cartolina de forma que cada criança tenha
um espaço para desenhar.
As crianças se organizam ao redor das
cartolinas e conversam, esperando o
material para desenhar.
A divisão realizada pela professora na cartolina indica para as crianças que o desenho deve ser
individual, apesar das crianças estarem organizadas em pequenos grupos, e 3 ou 4 delas
compartilharem o mesmo material e suporte gráfico. A atividade de desenho que podia ser
coletiva, abrindo o espaço para as interações entre as crianças e a co-construção sobre os temas
abordados, estrutura-se de uma forma individual, restringindo as interações criança-criança.
(2) 01:05
P3: Psiu! Vamos pensar! A tia já fez divisões para
cada um desenhar e não brigar. F3, você escreve aqui
a frase: A gente não pode...
A professora começa distribuir o material para
desenhar.
P3: Vamos lá. Vou dar um lápis para cada um. Vou
dar borracha. Vou colocar giz de cera. Vou colocar
canetinha.
As crianças continuam conversando.
110
P3: Quem quiser pegar o estojo, pode. Mas eu acho
que não precisa, não.
P3: Pode. Põe o nome no cantinho. Aqui, M8, bem
no cantinho.
M14: Tia! Pode pegar o estojo?
Algumas crianças levantam e pegam o
estojo nas mochilas. Voltam para o lugar e
começam o desenho.
M8: Pode escrever o nome?
Neste trecho, a professora orienta as crianças diretamente sobre o trabalho individual (“A tia já
fez divisões para cada um desenhar e não brigar”). Na sua fala, a necessidade de desenhar
individualmente aparece associada à regra: não brigar. Em função disso, podemos pensar que a
organização da atividade tem, outra vez, um papel importante no sentido de canalizar a não
interação, para ela sinônimo de ordem e disciplina. Além disso, a fala da professora indica que as
crianças não devem jamais divergir entre si. Conflitos interpessoais têm que ser evitados. Com isto
expressa uma visão negativa do conflito interpessoal, que deve ser sempre evitado através de uma
estratégia simples como a organização da atividade.
A professora, através de sua fala “Psiu! Vamos pensar!”, estabelece outra regra para a atividade:
desenhar em silêncio. As duas frases juntas indicam as crenças e valores que a professora
transmite: para pensar é preciso ficar em silêncio.
(3) 01:10
A professora continua passando pelos grupos,
distribuindo material e ajudando as crianças colocar o
nome na folha.
P3: Psiu! Oh, M4! É baixinho! E não pode passar da
linha, cada um faz o seu!
As crianças desenham, escrevem,
conversam e trocam material entre elas.
Algumas se ajudam, dando palpites sobre
os desenhos.
M4 fala sozinho e se mexe no lugar.
As crianças continuam interagindo entre elas, apesar dos esforços da professora para controlar o
comportamento das mesmas e manter a ordem e disciplina. De forma geral, as crianças se
mostram prestativas, ajudando-se e interagindo em função de seus desenhos. Suas orientações
para objetivos prevalecem apesar da professora. Entretanto, em uma frase, P3 inibe a criatividade
e exige individualismo: “E não pode passar da linha, cada um faz o seu!”. Logo em seguida,
repete a mesma frase.
(4) 01:13
P3: Psiu! Oh, M8! É baixinho! E não pode passar da
linha, cada um faz o seu!
P3: Você desenhou o que você não pode fazer?
P3: Então, agora você desenha o que você não pode
fazer aí, dentro da casa.
P3: Agora, você desenha outra coisa do lado desse
coração.
A professora sai da sala.
M8: Tia! Eu fiz uma casa!
M8: Eu fiz uma casa.
M8: Eu fiz uma casa! Olha!
M8 continua desenhando.
M7: Eu fiz um coração.
As crianças continuam desenhando e
conversando. Algumas começam se mexer
pelo espaço da sala.
Neste trecho, as orientações para objetivos e interesses das crianças também prevalecem. Elas
continuam interagindo apesar dos pedidos explícitos de silêncio da professora e estão desenhando
111
de acordo com seus interesses. M8, que reclamou no episódio anterior pelo desenho e não
escolheu nenhum tema abordado para desenhar, faz uma casa. M7 desenha um coração, conforme
tinha indicado no episódio anterior.
(5) 01:19
A professora volta.
P3: Psiu! M12 faça o seu trabalho. Não fale, faça.
A professora passa pelos grupos e ajuda algumas
crianças. Senta em uma cadeira e começa trabalhar
no planejamento. Ela se mantém atenta às crianças,
mas não interfere na atividade.
As crianças continuam interagindo.
Desenham, conversam e se ajudam.
M12 conversa com M10, que está sentado
do lado.
As crianças continuam desenhando e
conversando em tom baixo.
As orientações para objetivos das crianças prevalecem em relação às orientações da professora,
que desiste de interferir nos desenhos e nas interações que estão acontecendo. As crianças, por sua
vez, interagem dentro de certos limites. Elas conversam em tom baixo, indicando seu
comprometimento com a professora e as regras estabelecidas.
ATIVIDADE: Socialização do desenho. A professora fica em pé, no espaço da roda, com as
cartolinas perto dela. As crianças estão sentadas no chão, na roda. Elas prestam atenção nos
desenhos que a professora mostra. Algumas conversam baixinho.
TEMPO: 9h25
(6) 01:24
P3: Está na hora de acabar e emendar as cartolinas.
A professora começa recolher o material de cada
grupo e pegar as cartolinas desenhadas.
P3: Voltem para o lugar da roda.
Algumas crianças guardam os estojos. Aos
poucos, vão voltando para seu lugar na
roda, de acordo com a solicitação da
professora.
No trecho 6, a professora comunica que a atividade deve acabar, sem perguntar para as crianças
se já tinham terminado seus desenhos. Dessa forma, a professora retoma seu papel central na
atividade. As crianças seguem as orientações da professora e começam guardar o material.
(7) 01:26
P3: Agora, nós vamos emendar as cartolinas. Antes,
vamos ver os cartazes e ver o que cada um desenhou.
Assim, a tia A. vai poder ver como tudo ficou lindo.
A professora pega um cartaz e mostra para todos.
P3: Esse aqui é a turma do M8. M8, o que vocês
desenharam?
P3: Ah! Não pode subir na janela. Olha os desenhos
como ficaram lindos. Olha o desenho de M5! M5
melhorou muito o desenho. Tá vendo! Quando você
quer, você pode.
Pega outro cartaz.
P3: Vamos ver outro. Esse aqui é da turma do M9,
que desenhou não pode tomar remédio sozinho. Os
desenhos ficaram muito bonitos. Dá para todo mundo
ver?
M8: Não pode subir na janela.
Crs: Dá.
112
P3: Vamos ver outro. Esse aqui é da turma do M12.
Olha! O M12 escreveu Não pode pular da janela.
Ficou ótimo, M12. Escreveu diretinho. Olha o do
M10! Todos ficaram lindos. Agora vamos ver o das
meninas. Olha como F3 escreveu tudo! Ficou lindo.
Agora, vamos emendar.
A professora começa emendar as cartolinas,
colocando fita por trás.
P3: Vou emendar assim, como se fosse um painel.
P3: Um livro! Olha que legal ficou! (Mostrando o
livro para todos.)
A professora coloca o livro encima de uma mesa e
pega o material da próxima atividade.
P3: Antes de sair, nós vamos ver o dever de casa.
As crianças observam atentas as ações da
professora.
F2: Um livro!
As crianças prestam atenção na professora.
Neste trecho se estabelece uma troca afetiva positiva entre a professora e as crianças. A
professora elogia os desenhos e a escrita dos diferentes grupos e de algumas crianças de forma
individual. Ao falar com M5 (que foi repreendido no segundo episódio), a professora o elogia pelo
desenho e indica que ele tem possibilidades de realizar as tarefas da forma esperada. A professora
coloca M5 em evidencia perante o grupo, agora de forma positiva.
No final do episódio, as crianças parecem mais centradas na atividade. Elas se mexem menos, não
conversam e prestam atenção à fala da professora. A mudança no comportamento das crianças
pode estar relacionada com a possibilidade de interação e de movimentação que tiveram.
O quarto episódio começou com a tentativa de controle das crianças pela
professora. Nos primeiros momentos da atividade, ela se esforçou por manter a disciplina
dentro dos parâmetros estabelecidos por ela, ao longo de toda a atividade estruturada.
Embora ela fosse menos enfática do que em outros episódios, comunicou de várias formas
que as crianças precisavam ficar em silêncio e concentradas em seu desenho individual. No
entanto, as crianças estavam orientadas para interagir entre elas, movimentar-se e
expressar-se espontaneamente através de seus desenhos.
Sendo assim, inicialmente se estabeleceu um conflito entre as orientações para
objetivos da professora e das crianças. Conflito que não foi negociado de forma explícita,
mas que foi negociado através das interações e de suas mudanças ao longo da atividade. Se
em um primeiro momento a professora tentou manter sua posição de autoridade e seu papel
central no direcionamento da atividade, em um segundo momento ela acabou cedendo
diante das necessidades e orientações das crianças. Estas se mostraram mais assertivas,
uma vez que indicaram que manteriam suas orientações dentro de certos limites ou
parâmetros: interagiram em voz baixa e de forma positiva, compartilhando o material e se
ajudando mutuamente.
113
No final do episódio, a professora assumiu novamente o papel central no
direcionamento da atividade, mas de maneira diferente. Ela se mostrou mais flexível e
estabeleceu uma troca afetiva positiva com as crianças. Essa mudança na interação
apareceu de forma mais clara na troca com M5, que dessa vez foi elogiado perante o grupo.
No episódio, outras questões chamaram a atenção. A primeira foi a orientação da
professora em relação à realização do desenho. Logo no primeiro trecho do episódio, a
professora orientou que o desenho seria individual, dividindo o espaço do suporte gráfico
que as crianças usariam. A atividade de desenho -que podia ser coletiva, abrindo o espaço
para a cooperação e discussão entre as crianças- começou estruturada no sentido de
restringir as interações criança-criança. Na fala da professora, a necessidade de desenhar
individualmente apareceu associada à regra: não brigar. P3 organizava a atividade em
função da ordem e da disciplina, isto significando o desestímulo à interação entre as
crianças. Além disso, a fala da professora indicou que as crianças não deviam ter conflitos
interpessoais, o que expressa uma visão negativa dos conflitos, que devem ser sempre
evitados.
A segunda questão está relacionada às mensagens contraditórias que foram
transmitidas pela professora. Se por um lado, a professora orientou a realização individual
do desenho, por outra ela mesma organizou as crianças em pequenos grupos que deviam
compartilhar diferentes tipos de materiais, incluindo o suporte gráfico. Nesse contexto e
levando em conta as orientações e necessidades das crianças, seria muito difícil controlar
as interações entre elas. Por sua vez, parece que as crianças souberam aproveitar essa
contradição entre a orientação para a tarefa e a organização geral da atividade para
interagir entre si. Isto pode ser significativo para o desenvolvimento moral. No primeiro
momento, não tiveram a possibilidade de negociar nada. No entanto, através de suas
interações concretas elas geraram, de forma ativa, uma re-definição das regras em função
de seus objetivos e interesses.
Neste episódio as crianças tiveram mais possibilidades de participação e
estabeleceram trocas significativas entre elas. A professora assumiu uma postura menos
diretiva e autoritária, sem deixar de estabelecer regras consideradas por ela importantes.
Em função desses elementos, podemos concluir que a interação entre a professora e as
crianças foi mais simétrica do que nos episódios anteriores, o que é um elemento
importante para a dimensão moral (Piaget, 1932/1994).
114
2.3. Análise Microgenética de Episódios das Sessões Gravadas em Vídeo
Dados Gerais da Sessão 1
Data: 11/03/2008
Horário e tempo: 8h20 – 9h54 (1 hora e 34 minutos de gravação)
Local da gravação: Sala de aula
Atividades: O corpo humano: importância e higiene dos dentes
Conservação da quantidade com massinha
Fazendo dentes com massinha
Episódio I – “Não vai na onda, não!”
ATIVIDADE: O corpo humano: importância e higiene dos dentes. As crianças estão sentadas no
chão, em roda, uma do lado da outra. A professora está passando agachada, pela frente de cada
criança. Ela está apresentando uma sacola com um objeto dentro (uma dentadura). Cada criança, na
sua vez, coloca a mão dentro da sacola e manuseia o objeto até conseguir adivinhar o que é.
TEMPO: 8h23
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:03
A professora está apresentando a sacola para M6.
Ela está perto de M4 e M5.
Algumas crianças prestam atenção na
professora, outras conversam, fazem sons e
se mexem no lugar.
M4 e M5 estão sentados na roda, um do lado
do outro.
M5 olha para a professora, vira a cabeça na
direção de M4, coloca a mão diante da boca
e fala baixo.
M4 coloca a mão na boca e fala baixo com
M5.
Durante esse momento da atividade as crianças parecem dispersas, o que pode indicar falta de
motivação. As crianças parecem mais interessadas em interagir entre elas, uma vez que a maioria
conversa em voz bem baixa. M4 e M5, ao colocar a mão na frente da boca e ‘vigiar’ a professora
que está por perto, indica que eles querem interagir, mas evitando que a professora brigue.
(2) 00:04
P3: M5, não vai na onda, não! Não é para
conversar. Da próxima vez, se vocês continuam
conversando com a mão na boca, eu vou tirar vocês
da rodinha.
A professora continua apresentando a sacola para
outras crianças.
M4 e M5 tiram a mão da boca, olham um
para o outro e param de conversar.
A professora, que percebeu a situação, interfere imediatamente com as duas crianças, re-
lembrando a regra estabelecida (não conversar durante a atividade) e comunicando que a próxima
transgressão da regra terá como conseqüência a exclusão da atividade. A frase e o tom usado pela
professora indicam sua desaprovação em relação às ações das crianças.
No primeiro episódio desta sessão, a professora interferiu em um momento de
interação de duas crianças. A interferência da professora indicou que em aquele momento
não era a hora certa para interagir com o outro, talvez, em função do andamento da
115
atividade. A fala da professora (“Não é para conversar.”) esteve orientada para estabelecer
e/ou re-apresentar uma regra a ser seguida pelas crianças da turma, independentemente das
necessidades de interação das mesmas. Vale a pena ressaltar que a professora não
explicitou os motivos que sustentavam a regra em aquele momento e contexto específico.
Uma vez que a interação das crianças não obstaculizava a realização da atividade, a regra
só podia se sustentar na orientação da professora para o controle do comportamento das
crianças e para a manutenção da ordem e disciplina.
Além do estabelecimento da regra, a professora optou pelo uso de uma estratégia
para validar e garantir o respeito pela mesma. No caso específico, a professora deixou claro
que uma nova transgressão da regra teria como conseqüência a exclusão das crianças da
atividade. Embora a estratégia usada tenha surtido efeito, uma vez que as crianças
acataram a regra estabelecida, é importante apontar que não há uma relação de
reciprocidade entre a regra transgredida e a privação temporária da atividade. Sendo assim,
a estratégia usada pela professora pode reforçar a assimetria característica da interação
adulto-criança, assim como uma visão heterônoma da regra (Piaget, 1939/1994).
De forma geral, a intervenção da professora em relação à interação livre das
crianças indica uma ênfase na disciplina e no controle do comportamento das mesmas. Por
outro lado, a intervenção da professora também enfatiza o predomínio do modelo
unidirecional de transmissão de cultura e de conhecimentos. Nesse modelo, as interações
entre as crianças não são valorizadas como espaço de desenvolvimento e aprendizagem.
Elas são geralmente entendidas como bagunça e desordem, e são imediatamente
repreendidas pelo adulto, quando elas não acontecem na hora e nos espaços certos (Branco
& Mettel, 1995).
Episódio II – “Que coisa feia!”
ATIVIDADE: O corpo humano: importância e higiene dos dentes. As crianças estão sentadas no
chão, em roda, uma do lado da outra. A professora está passando agachada, pela frente de cada
criança. Ela está apresentando uma sacola com um objeto dentro (uma dentadura). Cada criança, na
sua vez, coloca a mão dentro da sacola e manuseia o objeto até conseguir adivinhar o que é.
TEMPO: 8h25
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:05
A professora está apresentando a sacola para M9,
quando vira o rosto em direção a M11 e M12, que
M11 e M12 estão sentados um do lado do
outro, aguardando a apresentação da sacola.
M12 empurra M11 com a perna.
M11 reage empurrando M12 e os dois se
envolvem em um confronto físico.
116
estão a sua direita.
P3: Não!! Não!!
Faz um movimento da cabeça em direção à câmera
de vídeo, bem na frente dela.
P3: Olha! Está aparecendo tudo lá!
A professora vira o rosto novamente para M9 e
continua apresentando a sacola para ele.
M11 e M12 param de brigar, olham para a
professora e para a câmera de vídeo.
Ao intervir no conflito entre as duas crianças, a professora metacomunica sua forte desaprovação
em relação às ações das crianças através do tom da voz, que foi bastante enfático. Além disso, a
professora usa o registro em vídeo da atividade como justificativa para acabar com a situação de
confronto. Ao mesmo tempo, a fala da professora indica que espera um ‘bom comportamento’ por
parte das crianças, em função da gravação.
(2) 00:06
A professora pára de apresentar a sacola para M9 e
vira o corpo em direção a M11 e M12.
P3: Que coisa feia! Muito feio! Vai levar lá para
aquelas escolas, todas bonitas, para ver vocês, e aí
vocês brigando!? É M12! Então que é M12!? Está
de brincadeira!
A professora se vira e apresenta a sacola para
M10, que é a próxima criança, pela ordem da roda.
M11 e M12 começam se empurrar novamente
com as pernas.
M11 e M12 olham para a câmera de vídeo e
para a professora alternadamente. Os dois
param de brigar e esperam a apresentação da
sacola.
A professora interfere novamente junto a M11 e M12, uma vez que a primeira interferência não
teve o efeito esperado e as duas crianças continuaram a se empurrar. Na segunda interferência, o
tom de voz foi mais enfático do que na primeira, indicando o aborrecimento da professora com a
situação. Além de comunicar e metacomunicar sua desaprovação e desapontamento em relação às
ações das crianças, a professora coloca as duas em evidencia perante o grupo e a pesquisadora. A
fala da professora esteve voltada para enfatizar a inadequação das ações das crianças, assim
como a necessidade de eliminar o conflito, em função da situação de gravação.
No segundo episódio, a professora interferiu em um conflito interpessoal entre duas
crianças. A atitude, a estratégia usada e as falas da professora indicaram que sua
intervenção esteve voltada para a eliminação do conflito e não para sua resolução. Em
nenhum momento do episódio a professora esclareceu o problema entre as crianças, nem
para ajudá-las a buscar uma solução diferente do confronto físico. Embora seja importante
que as crianças construam habilidades para resolver seus próprios conflitos interpessoais,
também é importante a mediação do adulto nos momentos em que as estratégias de
resolução das crianças se mostram inadequadas (DeVries & Zan, 1998).
Ao intervir no conflito, a professora colocou em evidencia, de forma negativa, as
ações das crianças perante o grupo e perante a pesquisadora. Além de avaliar
negativamente (“Que coisa feia! Muito feio!”) o comportamento das duas crianças, a
117
professora metacomunicou sua desaprovação em relação às ações delas através do tom da
voz (“Não!! Não!!”) e do uso de frases (“Está de brincadeira!”), cujo significado não ficou
claro no momento da intervenção, mas que sinalizaram a inadequação das ações. Além
disso, a estratégia de intervenção usada pela professora acabou criando uma situação de
ambigüidade para as crianças. Ao mesmo tempo em que a professora sinalizou, na sua fala
(“Vai levar lá para aquelas escolas, todas bonitas, para ver vocês, e aí vocês brigando!?”),
que não desejava que as crianças ficassem em evidencia de forma negativa perante a
pesquisadora, mas foi ela própria que as colocou nessa situação chamando a atenção para o
conflito. A estratégia usada para interferir no conflito pode ter gerado uma situação
constrangedora para as crianças.
A interferência da professora mostrou-se eficiente desde a perspectiva do controle
do comportamento e da disciplina, uma vez que as ações das crianças foram inibidas e o
conflito foi eliminado. No entanto, vale a pena questionar qual é o real significado dessa
intervenção, desde a perspectiva do desenvolvimento moral. Ao colocar em evidencia a
inadequação das ações das crianças, a professora teve a possibilidade de induzir um
sentimento de culpa em relação à transgressão de uma regra anteriormente estabelecida
para o grupo: não pode brigar. No entanto, os motivos morais que sustentam essa regra não
foram contextualizados na situação de conflito, perdendo-se, assim, a possibilidade de
refletir sobre questões morais a partir de uma experiência cotidiana das crianças.
A ênfase na eliminação do conflito em detrimento de sua resolução adequada e da
reflexão sobre as questões morais que co-existem em sua sinaliza dois pontos importantes
em termos de desenvolvimento moral. Por um lado e como colocado anteriormente, indica
a grande ênfase no controle do comportamento e na disciplina em detrimento do
desenvolvimento moral. Embora disciplina e moralidade sejam conceitos que se inter-
relacionem, o segundo não pode ser restrito ao primeiro. Por outro lado, indica uma visão
negativa do conflito interpessoal, que deixa de ser uma interação fundamental para o
desenvolvimento moral e social da criança, para se constituir uma interação que deve ser
evitada a qualquer custo (DeVries & Zan, 1998; Galvão, 2004).
Episódio III – “Ai, todo mundo coloca a culpa em mim!”
ATIVIDADE: Fazendo dentes com massinha. As crianças e a professora estão sentadas no chão,
em roda. A professora explica que eles receberão um pedaço de massinha para fazer dentes, com a
dentadura como modelo. Lembra que os dentes são pequenos e que a massinha não é para comer.
TEMPO: 9h39
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 01:16
118
P3: Vou pegar aquela dentadura, de novo.
A professora pega a dentadura e senta novamente na
roda.
P3: Vocês vão olhar a dentadura e vão fazer uns
dentinhos como a dentadura. Tudo bem? Vamos lá.
P3: Que que foi?
A professora vira o rosto para M5, cruza as mãos
encima das pernas e fica com o olhar fixo em M5.
M12 levanta da roda, entra e sai do
banheiro, ficando em pé, do lado da
professora.
M12: Tia.
M12: Quando eu cheguei no banheiro, eu...
eu levantei a... a tampa. Tava fechada. Ai,
quando eu levantei, tem papel lá dentro.
M6 acompanha o rosto da professora e faz
um comentário.
M6: Foi M5!
M5: Eu?! Eu?!
A professora, ao virar o rosto para M5 com as mãos cruzadas e o olhar fixo, metacomunica para o
grupo que a criança foi a transgressora da regra. Esse julgamento não tem como base elementos
concretos, uma vez que a professora não tentou esclarecer a situação junto à criança. A atitude da
professora é imitada pelas crianças, que também culpam M5. Dessa forma se estabelece um
conflito na turma. Além disso, a criança é colocada em evidencia perante o grupo, antes de
qualquer esclarecimento.
(2) 01:18
P3: Quem foi depois de M5?
P3: Oh, M6! Não! Senta! Foi uma pessoa depois de
M5. Quem foi?
P3: Não. Você fez..., você fez as fezes. Eu falei que
era para colocar o papel aonde?
A professora aponta para M8 e faz uma pergunta.
P3: Quando você foi urinar, tinha papel no vaso?
P3: Tinha! Vai lá, de novo, pegar o pau para tirar.
(Olhando para M5.)
P3: Ué! Mas se você coloca o papel no vaso, você
quer que os outros tirem! Não é você que joga papel
no vaso toda vez que faz cocô!?
M12: Ninguém.
M6 levanta e entra no banheiro.
F1: M8
M8: Só fiz xixi.
M5: Não, eu fui... eu fui foi fazer xixi.
M5 fica em silêncio.
M8: Tinha.
M5: Mas eu já tirei!
M5 coloca as mãos na frente do rosto e
continua falando.
M5: Eu já tirei! Ai, todo mundo coloca a
culpa em mim!
Neste trecho, a professora tenta esclarecer a situação junto às outras crianças, mas mantém a
acusação em relação a M5. A criança tenta se defender sem sucesso. M5 primeiro mente, dizendo
119
que foi fazer xixi, sendo desmentido pela professora. Em uma segunda tentativa de resolver a
situação, ele mostra seu desapontamento com a acusação e a atitude do grupo em relação a ele. A
professora reitera a acusação e a justifica a partir de ações anteriores.
Através do tom da voz, a professora metacomunica sua desaprovação em relação às supostas
ações de M5. Ela é bastante enfática e ríspida na sua fala. Se M5 colocou o papel no vaso, cabe a
ele reparar as possíveis conseqüências da transgressão.
(3) 01:19
P3: Quem jogou?
P3: Ah, M4! Ah, M4!
A professora olha para a câmera de vídeo. Depois,
olha para M5.
P3: Desculpa M5. Dessa vez, não foi M5, foi
injustiça.
A professora olha para M4 e sugere que peça
desculpas para M5.
P3: M4! Desculpa-me M5. Fui eu que joguei...
P3: ...Então, vai lá e traz um pau para tirar o papel do
vaso.
A professora olha para M12, ainda em pé do lado
dela.
P3: E você... vai lá no banheiro da tia B.
A professora olha para M5.
P3: Desculpa M5. Não foi você que derramou o
papel no vaso. Eu só achei que tinha sido você.
Desculpa. Vamos lá então!?
A professora levanta e começa distribuir a massinha.
M4: Eu joguei um pedacinho.
M4: Eu.
M4: Eu joguei um pedacinho. (Ri)
Algumas crianças riem.
M4 olha para M5 e faz o que a professora
sugeriu.
M4: Desculpa.
M4 levanta e sai da sala.
M12 sai da sala.
M4 assume a culpa, resolvendo o conflito. A reação da professora diante da transgressão de M4
foi notoriamente diferente. A professora adota uma atitude menos enfática e exigente, chegando
até ‘brincar’ com a criança (“Ah, M4! Ah, M4!”). As crianças acabam imitando a postura da
professora e riem da situação.
A partir da intervenção de M4, veiculam-se questões significativas em nível moral: a acusação
injusta de M5, o fato de M4 assumir a culpa tempo depois do conflito se estabelecer, e a possível
empatia de M4 em relação a M5.
O terceiro episódio da sessão mostrou-se interessante para o estudo, em função das
questões morais que nele se veicularam. Em um primeiro momento, as ações e interações
entre a professora e as crianças da turma se orientaram para a resolução de um conflito em
função da transgressão de uma regra estabelecida com anterioridade (não jogar papel no
vaso), passando por questões de justiça, uma vez que uma criança da turma foi acusada
120
injustamente de transgredir a regra. Em um segundo momento, a professora pede desculpas
à criança injustamente acusada.
A transgressão da regra foi comunicada para a professora por uma das crianças.
Diante da comunicação, a professora interveio a partir de um pré-julgamento baseado em
situações anteriores. Uma vez que em outros momentos, a criança ‘culpada’ (M5) tinha
transgredido a regra, jogando papel higiênico no vaso sanitário, e ela tinha usado o vaso
minutos antes do episódio, a professora presumiu que fosse ela a transgressora da regra.
Esta presunção foi explícita e punitiva (“A professora vira o rosto para M5, cruza as mãos
encima das pernas e fica com o olhar fixo em M5”) levando as demais crianças a culpar
M5 (“Foi M5!”). M5 reagiu se defendendo e reclamando ser alvo de injustiça. Estabeleceu-
se, assim, um conflito entre a criança acusada, por um lado, e a professora e o restante das
crianças da turma, por outro. Conflito que precisava ser resolvido, pois a professora exigiu
de M5 a reparação da transgressão, tirando o papel higiênico do vaso com um pau.
Na resolução do conflito e da transgressão da regra, a professora assumiu um papel
central, decidindo por si só quem era o ‘culpado’, ao invés de lançar a questão para as
crianças, deixando que estas discutissem a regra, a transgressão e as formas de reparação.
Ela simplesmente acusou M5, e ordenou-lhe a reparar o seu ‘erro’. Falas como: “Foi uma
pessoa depois de M5. Quem foi?”,” Quem jogou?” indicaram a orientação da professora
para achar o transgressor, em detrimento de uma discussão sobre as questões de
moralidade veiculadas em aquele momento. As crianças, por sua vez, participaram de
acordo com a orientação da professora. Neste contexto repressivo, surpreende que M4
tenha confessado o seu ‘crime’!
No trecho 3, a professora procura compensar a injustiça cometida com M5, após o
transgressor se responsabilizar por suas ações. Pede desculpas para M5 e solicita a mesma
atitude por parte da criança que tinha jogado o papel no vaso. Reconheceu seu erro perante
o grupo, esclarecendo para todos a injustiça cometida. A atitude da professora não só
indicou sua preocupação em relação aos sentimentos e necessidades de M5, como mostrou
para as crianças a possibilidade e importância de compensar o erro e a injustiça. Mas será
que apenas pedir desculpas foi suficiente para ‘compensar’ a acusação autocrática feita
anteriormente?
Como colocado por DeVries e Zan (1998), a oportunidade de compensar a injustiça
cometida com uma criança é importante para o desenvolvimento moral. Entretanto, e ainda
de acordo com as autoras, vale a pena ressaltar algumas questões relativas a essa
compensação. Nos casos em que a injustiça é cometida pelo grupo, aqui pela professora (o
121
que nos parece ainda mais grave), as autoras sugerem e esclarecem a importância do
próprio grupo discutir sobre a injustiça e estabelecer as formas que usará para compensar a
mesma, levando em conta a opinião da criança injustiçada em relação à compensação. Essa
discussão não só permite que a criança coloque seus sentimentos sobre a situação, como
também possibilita o desenvolvimento da empatia por parte do grupo. Além disso, as
autoras alertam em relação aos pedidos de desculpa sugeridos pelo adulto. De acordo com
DeVries e Zan (1998), os pedidos mecânicos de desculpa podem ser insinceros e operar
contra o descentramento e o desenvolvimento da empatia, uma vez que as crianças pedem
desculpa porque o adulto solicitou e não porque, de fato, vejam a importância do pedido.
Em relação a essa última questão, vale a pena ressaltar que M4 pareceu ter
assumido a responsabilidade pela transgressão em função de um sentimento de empatia em
relação a M5. No entanto, essa questão não foi abordada, nem destacada como exemplo, de
nenhuma forma. Os motivos da atitude de M4 podiam abrir o espaço para incentivar
atitudes pró-sociais entre as crianças.
Dados Gerais da Sessão 2
Data: 13/03/2008
Horário e tempo: 8h06 – 9h08 (1 hora e 2 minutos de gravação)
Local da gravação: Sala de aula
Atividades: Recolhendo o dever de casa
Trabalhando com quantidades: o número 7
O som das letras
Procurando palavras com a letra “B”
Episódio I – “Desculpa amigo”
ATIVIDADE: Recolhendo o dever de casa. As crianças estão sentadas no chão, em roda. Cada
uma tem em mãos a pasta com o dever de casa. A professora está passando pela roda, para recolher
as pastas.
TEMPO: 8h08
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:02
A professora acaba de recolher as pastas de dever
de casa e vai até as prateleiras, para guardá-las. Ela
passa perto de M4 e pergunta sobre o que ele tem
na boca.
P3: Ei, ei, ei! O que você está fazendo? Cortou um
pedaço do tapete e pôs na boca!?
A professora continua andando e começa organizar
as pastas nas prateleiras.
M3 está sentado no seu tapete e tem um
pedaço de EVA (do próprio tapete) na boca.
M8: Não foi ele.
M4: Foi ele que puxou. (Apontando para
M3, que está sentado do lado dele, mas um
pouco afastado.)
122
M8: Foi M3.
M2: Aquele ali (apontando para M6) ou o
gordinho? (Apontando para M3, que tem o
mesmo nome de M6.)
M3 olha fixamente para M2, olha para a
professora e fica calado, com expressão
séria.
Neste trecho se instaura um conflito entre M2 e M3, em função da zombaria e desrespeito do
primeiro. M3 não manifesta verbalmente seu desconforto, mas o metacomunica através do olhar e
da expressão do rosto.
Nesse contexto, olhar para a professora pode se constituir um pedido de ajuda e de interferência
no conflito.
(2) 00:03
A professora pára de organizar as pastas e olha para
M2.
P3: M2, se você está querendo se aparecer demais,
dá licença! Não fica falando não, que ele tem
nome!
P3: Desculpa amigo. (Olhando para M12.)
P3: Pôe ser! Vamos lá continuar. Vamos contar
quantas crianças tem na sala.
A professora pega o ábaco e começa a contagem
pelas meninas.
M8: É M3.
M2: Desculpa amigo. (Repete a fala da
professora em tom mecânico)
A professora coloca em evidencia o conflito entre as duas crianças e interfere diretamente no
mesmo. Através do tom da voz e da frase usada, a professora metacomunica seu desapontamento
em relação às ações de M2, que deve compensá-las pedindo desculpas. O pedido de desculpa
surge de forma mecânica, indicando que não teve empatia por parte de M2.
No primeiro episódio da sessão 2, uma das crianças se referiu a um colega de forma
zombeteira e desrespeitosa, colocando-lo em evidencia de forma negativa perante o
restante do grupo. A criança alvo da gozação não se colocou verbalmente em relação à
atitude do colega, mas metacomunicou que a situação foi desconfortável com seu olhar e a
expressão do rosto. Diante do conflito que se estabeleceu entre as duas crianças, a
professora parou de recolher o dever de casa e interferiu diretamente.
A intervenção da professora colocou em evidencia o conflito entre as duas crianças
e mostrou sua insatisfação com relação à zombaria e desrespeito, indicando que é
inadequado fazer piadas e gozações em relação aos outros. Expressões como: “...se você
está querendo se aparecer demais, dá licença!” e “Pôe ser!”, denotam o espantou e
aborrecimento da professora com a situação, assim como, a inadequação das ações da
criança (M2).
Entretanto, ao interferir no conflito desde uma postura de reprovação, a professora
colocou em evidencia, de forma negativa, a criança que zombou do colega. Ao mesmo
123
tempo em que ela desaprovou a atitude de desrespeito e criticou a criança, assumiu uma
postura critica, ressaltando que a criança estava se exibindo na frente dos outros. Em
função disso, a professora acabou transmitindo uma mensagem bastante ambígua. Se por
um lado, a criança deve respeitar o colega, não zombando dele, nem o criticando
negativamente perante os outros, por outro, o adulto pode criticar negativamente a criança
perante os colegas. A postura critica da professora foi contraditória e reforçou a assimetria
da relação adulto-criança.
A professora adotou uma posição central na situação de conflito, indicando para as
crianças como deviam resolvê-lo e assumindo o problema delas. Como podemos observar
no protocolo de registro e análise, em nenhum momento a professora se dispôs a conversar
com as crianças sobre o que aconteceu, assim como restringiu a possibilidade de
participação ativa delas na resolução do seu próprio conflito.
Para resolver o conflito, a professora sugeriu pedir desculpas, a modo de
compensação. Como vimos no episódio anterior, a compensação pode ser uma estratégia
adequada na hora de resolver transgressões de regras e conflitos morais. A compensação
não só possibilita o restabelecimento da relação após o conflito, como tamm, pode
ajudar o perpetrador a manter uma imagem positiva aos olhos de si mesmo e das outras
crianças (DeVries & Zan, 1998). No entanto, no episódio que analisamos, a compensação
imposta acabou acontecendo de forma mecânica, operando contra o descentramento e o
desenvolvimento da empatia entre as crianças.
Em função das considerações anteriores, podemos concluir que a situação de
conflito, apesar de rica em termos de moralidade, não foi aproveitada como possibilidade
de construção conjunta de crenças e valores morais e estratégias de negociação e
compensação. A dimensão moralidade esteve presente na dinâmica das interações mais
uma vez indicando heteronomia.
Episódio II – “Vou lembrar uma regra ali”
ATIVIDADE: Trabalhando com quantidades: o número 7. As crianças estão sentadas no chão, no
espaço da roda. A professora está em pé, na roda também. Ela tem um ábaco na mão e conta a
quantidade de meninas, meninos e crianças que há na sala. A maioria das crianças acompanha
oralmente a contagem. Algumas contam com os dedos.
TEMPO: 8h11
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:05
P3: Tem bastante menino! Vamos ver a quantidade
a mais que tem de... (Pára de falar e olha para M7
que está dando a resposta.)
P3: Não, não grita, não! Meninos. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7,
M7: 10! 10!
As crianças contam junto.
124
8, 9, 10. 10 meninos a mais.
A professora olha para M7, depois olha para M3.
P3: Oh M3, chega mais um pouco para lá, para
perto do amigo lá, que a outra (aponta para F1) está
muito aqui na frente. Você, M2, chega para perto de
M3, e F1 fica perto de M2.
Agora, oh! Vou lembrar uma regra ali (apontando
para o cartaz com as regras da sala). Viu M7! Viu
M3! Viu M2! M5! Quando o outro fala, o que se
faz? (Fala com o dedo perto da orelha.)
M7: 10! Eu falei 10!
M2: Eu também! (Falando em voz baixa.)
M2: Escuta.
M7 se mostra interessado por participar e acaba dando a resposta antes da professora fazer a
contagem junto com o grupo, que parece ser o objetivo dela. Diante da participação eufórica de
M7, a professora interfere solicitando que não grite e relembrando uma regra que M7 acabou de
transgredir. Através do tom da voz, a professora expressa impaciência e reprovação em relação à
participação e interrupção de M7. Embora a professora pergunte para as crianças sobre a regra,
sua atitude é autoritária e a regra é relembrada de forma irritada. Os motivos da regra não são
apresentados e a mesma não é negociada em função da motivação das crianças (M7 e M2).
(2) 00:07
A professora olha para M7 e continua sua fala.
P3: Ouve, escuta. Então, vamos ver se hoje
acontece isso. E falar baixo, não falar gritando não.
Você já conversou hoje demais.
A professora começa andar em direção às
prateleiras. Passa perto de M7 e fala com ele.
P3: M7 você ouviu!?
A professora guarda o ábaco e volta para seu lugar
na roda. Pega uma caixa com números de EVA e
começa organizar o material para a próxima
atividade.
M7 abaixa a cabeça e fica em silêncio.
M7 continua em silêncio.
A interferência da professora em relação a M7 continua. No entanto aparecem elementos novos
como o estabelecimento de outra regra: falar baixo. A fala da professora (“Você hoje já conversou
demais.”) e a forma como ela insiste na interferência, podem denotar que a questão não é só a
transgressão das regras, mas a interrupção dela e da organização da atividade, segundo seu
planejamento. M7 fica visivelmente constrangido, uma vez que foi exposto perante o grupo.
No segundo episódio da sessão 2, as interações da professora com uma das crianças
da turma se centraram na re-apresentação de duas regras já estabelecidas: saber ouvir e
falar baixo. M7, em função do seu desejo e interesse por participar da atividade e oferecer
a resposta, acabou transgredindo as duas regras. Em função da transgressão, a professora
interveio relembrando as regras para o grupo.
Em primeiro lugar, é importante analisar os motivos pelos quais as duas regras
foram re-apresentadas em aquele momento específico. Embora a professora colocasse para
as crianças que devem ouvir as pessoas que estão falando, os motivos da re-apresentação
125
das regras não ficaram suficientemente claros, uma vez que a professora especificou para a
criança transgressora que ela ‘já tinha conversado demais e estava na hora de escutar’.
Nesse sentido, a re-apresentação das regras parece que esteve mais orientada para a
disciplina, do que para o respeito pela pessoa que estava falando. Além disso, os motivos
morais e sociais que sustentam as regras não foram contextualizados, perdendo-se, assim, a
possibilidade de reflexão sobre questões morais a partir de uma experiência cotidiana.
A forma como a professora interferiu em relação às ações da criança, acabou
colocando-la em evidencia perante o grupo. Além de chamar a atenção da criança
diretamente, seu tom de voz denotou impaciência e reprovação: “Não, não grita, não!”,
“Viu M7!”, “M7, você ouviu?!”. A intervenção da professora pode ter induzido um
sentimento de culpa em relação à transgressão das regras, gerando uma situação
constrangedora para a criança, que ficou em silêncio e com a cabeça baixa. Por outro lado,
é importante sinalizar que a forma como foi realizada a interferência pode acabar inibindo
o desejo e interesse das crianças em participar da atividade.
Uma vez que a pessoa que estava falando era a professora, podemos dizer que a
transgressão das regras gerou um conflito entre ela e M7. Conflito que foi resolvido
assimetricamente pelo adulto, uma vez que a criança não teve a oportunidade de se colocar,
nem negociar em função de seus interesses. A situação de conflito também se evidenciou
na impaciência e reprovação do adulto em relação às ações da criança.
Dados Gerais da Sessão 3
Data: 14/03/2008
Horário e tempo: 7h57 – 9h28 (1 hora e 31 minutos de gravação)
Local da gravação: Sala de aula
Atividades: Roda de conversa
Escrevendo a palavra Páscoa
Dia do brinquedo
Desenho sobre a Páscoa
Saída para o parque
Episódio I – “Mas eu paguei com dinheiro que eu tinha”
ATIVIDADE: Roda de conversa. As crianças estão sentadas no chão, em roda. A professora está
em pé, do lado da roda, com o material das primeiras atividades na mão. As crianças e a professora
conversam sobre uma atividade que fizeram no final do dia anterior. A atividade consistiu em
pintar a casca de um ovo cozido, como símbolo da Páscoa. Durante a atividade, a professora
explicou e conversou com as crianças sobre o significado da Páscoa. Cada criança levou o ovo para
casa. As crianças prestam atenção na conversa da roda e participam respondendo as perguntas da
professora.
TEMPO: 7h58
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
126
(1) 00:01
P3: O que a gente vai fazer hoje? Nós vamos
continuar a aula de ontem. Tem gente que não veio
ontem, aí perdeu o ovinho. Não foi? Um ovinho
muito legal! Não foi? É sobre vida nova!
A: M8 comeu o meu.
P3: Apesar do outro ter comido o dela. (Olhando
para M8 e sorrindo.)
P3: Mas em casa chegou a dar... Tinha que dar para
alguém da família. Chegou a dar?
A professora olha para M10.
A: Nossa!
P3: Ué! Ela não quis!?
P3: Que isso gente!?
A: M8 deu para o pai dele. Ainda falou...
P3: Você explicou o que era?
P3: Que que você falou para a sua mãe? Na reunião
eu vou puxar as orelhas (sorrindo). Que que você
falou para sua mãe?
P3: Não! Fala!
P3: Tá, pintou! E o que que significa aquele ovo?
P3: Ah! Você não disse o que era. Ela achou que
fosse qualquer coisa. Então, tá certo. Ela não sabia.
Algumas crianças riem.
M8 sorri.
M4: Eu também comi o meu em casa!
A maioria das crianças responde, ao mesmo
tempo, que deu o ovo para alguém da
família.
M10 levanta o braço, solicitando um tempo
para falar.
M10: Eu dei para minha mãe, só que a
minha mãe não quis não.
M10 faz um gesto de negação com a cabeça.
M10 faz um gesto de afirmação com a
cabeça.
M10 fica em silêncio, olhando para a
professora.
M10: Que a gente pintou o ovo por fora.
M10 fica em silêncio, olhando para a
professora.
Neste trecho, a professora e as crianças conversam de forma descontraída sobre a atividade do dia
anterior. A professora se mostra preocupada com a produção das crianças e encoraja a
participação delas na conversa. De forma geral se estabelece um contexto afetivo positivo entre as
crianças e a professora.
(2) 00:06
A professora olha para M6.
P3: Agora, M6. Eu fiquei triste com M6, porque
alguém, lá fora... Eu ouvi daqui, que eu sai daqui
2h, 2h30. Teve alguém que andou quebrando o ovo
de M6.
M6: Tia! Tia! (Com o braço levantado,
solicitando um tempo para falar.)
M6: Eu sei. Foi M9. (Apontando para M9.)
127
P3: Pôe ser! Fiquei triste com o negocio.
P3: Ele cuidando tanto do ovo! Foi lá e quebrou o
ovo dele! (Olhando para M9.)
M9: Eu não sabia que estava quebrando.
No trecho 2, o grupo se engaja na discussão sobre um conflito entre duas crianças da turma. É
importante ressaltar que a criança prejudicada no conflito sinaliza seu interesse em falar e discutir
sobre o acontecido. No entanto, é a professora que expõe o conflito para o grupo e centraliza a
discussão em torno dela. A professora se coloca de forma afetiva em relação à situação (“Fiquei
triste com o negócio”) e metacomunica, através do tom da voz, seu desapontamento em relação às
ações de M9.
M9 sinaliza que a situação aconteceu sem querer. No entanto, os acontecimentos não são
esclarecidos no marco da discussão. A professora adota uma postura acusadora (“Ele cuidando
tanto do ovo! Foi lá e quebrou o ovo dele”), sem saber exatamente o que tinha acontecido.
(3) 00:07
P3: Como que você pagou?
P3: Com dinheiro! Meu Deus do céu!
P3: Mas o problema não era o dinheiro. Não era que
você tinha feito com carinho? (Olhando para M6.)
M9: Mas eu paguei.
M9: Com dinheiro que eu tinha.
M6 olha para a professora.
M5: Ele que pediu. (Apontando para M6.)
M6: É.
M6 faz um gesto de afirmação com a
cabeça.
Neste trecho, as crianças explicam a estratégia de reparação que elas negociaram, na hora do
conflito. Diante da estratégia, a professora comunica de forma explícita sua desaprovação e
transmite suas crenças e valores: quando as coisas têm valor afetivo não devem ser reparadas
através do dinheiro. Mas não sugere o que podia ser feito.
Embora a estratégia de reparação não seja adequada de acordo com as crenças e valores
colocados pela professora, é importante ressaltar duas questões significativas para o
desenvolvimento moral. As crianças tentaram resolver o conflito entre elas de forma autônoma,
percebendo a necessidade e importância de uma reparação nesse contexto. Essas duas questões
não foram percebidas, nem abordadas na discussão sobre o conflito.
(4) 00:08
P3: E aí? Como que ficou?
P3: Não, não podia quebrar o ovo dele! Não estava
certo! Olha as idéias! Olha que idéia essa!! Podia
quebrar o ovo dele!? Não!!
A professora olha para M6.
P3: Aí, como que você fez? Você chegou em casa e
como que você fez? Quebrou muito?
P3: Muito!
M12: E aí o outro podia quebrar o ovo dele!
M12 fica em silêncio olhando para a
professora.
M6 faz um gesto de afirmação com a
cabeça.
128
P3: Ah tá! Só rachou! Então, não foi muito não.
Deu para ajeitar a vida! Tá bom, então. Vamos
continuar. Ontem, vocês viram a palavra Páscoa e a
gente estudou o que é a Páscoa. Hoje, a gente vai
escrever a palavra Páscoa, ver com que letra
começa. Vamos ver quem vai levar a caixinha.
Hoje, vai dar para ter parque, porque ontem não
choveu. Tá bom? Também tem brinquedo
pedagógico.
A professora vai para frente da roda, com o ábaco
na mão.
P3: Vamos ver quantas meninas tem hoje.
M6 fez um gesto de afirmação com a
cabeça.
M9: Só trinquei!
As crianças observam e acompanham a fala
da professora. Todas estão em silêncio.
F1: Duas.
No trecho 4, a discussão em relação ao conflito continua. Uma vez que a estratégia de resolução
das crianças foi inadequada, outra criança da turma (M12) sugere pagar na mesma moeda,
quebrando o ovo de M9. A professora interfere comunicando e metacomunicando seu espanto e
desaprovação em relação a essa idéia, no entanto, não discute ou procura outras estratégias de
resolução junto com as crianças. Nesse contexto, o conflito fica sem uma solução adequada.
Apesar da motivação e do engajamento das crianças na discussão, a professora fecha a mesma em
função da próxima atividade, que acaba prevalecendo. A fala da professora nesse fechamento se
mostra contraditória em relação às anteriores: como só rachou, então a questão não é tão
importante e podemos continuar.
O primeiro episódio da sessão 3 mostrou-se, também, muito interessante para o
estudo, em função das questões morais que nele se veicularam. Em um primeiro momento,
as ações e interações entre a professora e as crianças da turma se orientaram para a
apresentação das atividades do dia, retomando as atividades do dia anterior. Como
podemos observar no protocolo, a professora estabeleceu um clima de descontração, no
qual as crianças da turma, e inclusive a acompanhante, tiveram a possibilidade de
participar e interagir. Algumas frases e gestos da professora (“Apesar do outro ter comido
o dela - Olhando para M8 e sorrindo”, “Na reunião eu vou puxar as orelhas - Sorrindo”.)
indicaram que em aquele momento se estabeleceu um contexto afetivo positivo. Além
disso, a professora se preocupou por saber o que tinha acontecido com a produção das
crianças e encorajou a participação delas na conversa.
No segundo momento do episódio, as ações e interações entre a professora e o
grupo se orientaram para a discussão e resolução de um conflito entre duas crianças. No
dia anterior, uma das crianças (M6) teve seu ovo quebrado por outra (M9), na hora da saída
da escola. As crianças tentaram resolver a situação através de uma compensação sugerida
pela criança prejudicada. Essa compensação, em função de sua inadequação, foi alvo da
discussão entre a professora e o grupo.
129
Nessa discussão, como na conversa precedente, as crianças tamm tiveram a
possibilidade de participar, colocando-se a partir de suas opiniões, crenças e valores.
Mesmo assim, a professora assumiu uma posição central no direcionamento da discussão,
controlando a participação das crianças em função dos seus objetivos. Ou seja, as crianças
puderam participar e discutir a questão, mas a discussão não devia se tornar o foco da roda.
Embora a professora tenha aberto um espaço para discutir a situação de conflito, sua
orientação preliminar era a apresentação das atividades do dia. Questão que ficou evidente
no fechamento da discussão, quando a professora indicou que a situação de conflito não
era tão importante e que eles deviam continuar a rotina estabelecida.
Os indicadores do direcionamento e papel central da professora na discussão
apareceram em pequenos momentos de sua fala e intervenção. Ao começar a discussão
sobre o conflito, foi a própria professora que levantou a questão junto ao grupo. No
entanto, M6 que teve o ovo quebrado estava pedindo a palavra para falar sobre a situação.
Abrir o espaço para as próprias crianças colocarem suas percepções sobre o conflito pode
ser uma estratégia importante para reconhecer, validar e aceitar os sentimentos e
percepções das crianças sobre o acontecido. Além disso, as crianças teriam a oportunidade
de esclarecer os motivos que geraram a situação de conflito e, assim, ter mais elementos na
hora de sugerir possíveis soluções. Como podemos ver no protocolo, não ficou claro se o
conflito surgiu por uma ação proposital de M9 ou se foi a partir de um acidente. De acordo
com a fala de M9, a situação aconteceu sem querer. No entanto, os acontecimentos não
foram esclarecidos e a professora adotou uma postura acusadora (“Ele cuidando tanto do
ovo! Foi lá e quebrou o ovo dele”), sem saber exatamente como o ovo quebrou.
No decorrer do episódio, a professora avaliou como inadequado o conflito entre as
crianças e a solução que elas deram ao mesmo, expressando seus sentimentos em relação à
situação e suas crenças e valores morais. A professora colocou para as crianças que o
problema não era o valor monetário do ovo, mas o valor afetivo do mesmo (“Mas o
problema não era o dinheiro. Não era que você tinha feito com carinho?”), indicando,
assim, que as crianças deviam resolver de outra maneira. As colocações da professora
foram aproveitadas por uma criança da turma, que se referiu à possibilidade de resolver
pagando na mesma moeda: “E aí o outro podia quebrar o ovo dele!”. Diante da resposta da
criança, a professora reagiu indicando sua reprovação de forma enfática: “Não, não podia
quebrar o ovo dele! Não estava certo! Olha as idéias! Olha que idéia essa!! Podia quebrar o
ovo dele!? Não!!”.
130
Em relação a essa reação é importante fazer algumas considerações. A primeira
delas, é que esse tipo de reação pode acabar inibindo a participação das crianças e,
portanto, a possibilidade delas refletirem sobre as formas de resolver o conflito e
contrastarem seus pontos de vista, para assim, poder co-construir novas formas de
resolução e novas habilidades sociais. Como apontado por DeVries e Zan (1998), o adulto
não deve esperar que as crianças coloquem formas de resolução extremamente elaboradas
e adequadas, pois elas estão construindo suas habilidades sociais e aprendendo a refletir
sobre questões complexas. De fato, qual seria a melhor solução nesse caso?
A segunda consideração é que as crianças fazem julgamentos morais de acordo com
seu nível de compreensão da situação. Devolver na mesma moeda pode vir no sentido de
punir ou condenar quem ocasionou o prejuízo, fazendo sentido para as crianças em função
de seu nível de heteronomia (Piaget, 1932/1994). Sendo assim, é necessário que o adulto
aproveite as idéias das crianças para ajudá-las a construir outras soluções, diferentes das
duas crianças ficarem prejudicadas.
A partir das intervenções da professora vale a pena sublinhar outras questões que
podem ser significativas para o desenvolvimento moral. Como colocamos anteriormente, a
professora se colocou desde uma perspectiva afetiva em relação ao conflito e ao prejuízo
sofrido por M6. De acordo com alguns autores (e.g. Hoffman, 2000; La Taille, 1998), o
fato do adulto se colocar desde uma perspectiva afetiva faz com que ele assuma uma
posição menos autoritária, e também mais simétrica e próxima das crianças. Além disso, o
adulto ressalta a possibilidade de se descentrar e adotar uma atitude empática em relação
aos sentimentos do outro.
As crianças tentaram resolver o conflito entre elas de forma autônoma, percebendo
a necessidade e importância de uma reparação nesse contexto. Essas duas questões não
foram percebidas, nem abordadas na discussão sobre o conflito. Embora a estratégia de
reparação não fosse adequada de acordo com as crenças e valores colocados pela
professora (quando as coisas têm valor afetivo não devem ser reparadas através do
dinheiro) teria sido importante discutir e pensar com as crianças sobre todas as questões
envolvidas no problema. Procurar uma estratégia de compensação para resolver o conflito
e diminuir suas conseqüências negativas, envolve questões de justiça e empatia, que são
fundamentais em qualquer discussão moral acerca de eventos da vida real (DeVries & Zan,
1998).
Se por um lado a professora abriu o espaço para conversar e discutir sobre questões
importantes para o desenvolvimento social e moral das crianças, por outro, essa
131
oportunidade não foi aproveitada na sua totalidade, apesar do engajamento e interesse das
crianças. No final do episódio, a professora fechou a discussão simplificando a situação:
“Ah tá! Só rachou! Então, não foi muito não. Deu para ajeitar a vida! Tá bom, então.
Vamos continuar”. Dessa forma, a professora indicou que discutir e aprender a resolver os
conflitos interpessoais pode ser importante, mas não tão importante quanto realizar uma
atividade de contagem. Nesse sentido, a tarefa acadêmica prevaleceu como prioritária
diante da discussão e resolução do conflito entre as duas crianças.
Episódio II – “Você não é pai de ninguém!”
ATIVIDADE: Escrevendo a palavra Páscoa. As crianças estão sentadas no chão, em roda. A
professora está sentada no chão, também na roda. Ela começa introduzir a atividade de escrita, a
partir do que foi realizado no dia anterior.
TEMPO: 8h11
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:14
P3: Vamos lá! (Pegando as letras de EVA.) Ontem,
nós vimos os números. Quem não veio, viu F1, a
gente trabalhou com o número 7. Você já sabe.
(Olhando para F1.) Quem faltou, eu sei que já sabe.
A professora olha para as crianças.
P3: Agora, cruza as pernas, põe as mãos encima
das pernas. M3, chega para trás, você está na frente
de M4. F2, chega para trás, está na frente de M3.
P3: Agora!? Já!?
P3: Não! Viu, sim!
As crianças prestam atenção na professora e
começam se acomodar na roda, segundo as
orientações dela.
M4 e M5 estão sentados na roda, um do lado
do outro. M5 está se acomodando no espaço
e esbarra em M4.
M4 aponta para M5.
M4: Ele me chutou.
M5: Só que eu não vi!
M5: Não! Eu não vi! (Fica sério e com cara
de desapontado.)
Neste trecho, surge um conflito entre M4 e M5. A professora intervém desde uma posição de
autoridade e assume o conflito das crianças. Ela não deixa as crianças falarem sobre o
acontecido, nem tentarem resolver o seu próprio conflito. A tentativa de resolução por parte das
duas crianças podia ser importante para M4 que, ao se queixar com a professora, mostrou pouca
autonomia para resolver a situação diretamente com M5.
Ao interferir com M5, a professora o coloca em evidencia perante o grupo, de forma negativa. M5
explica que a situação não foi intencional, mas a professora indica que não acredita nessa
justificativa. Diante da atitude da professora, a criança fica visivelmente desapontada.
(2) 00:16
P3: Esse negocio aí, pode parar! Já expliquei que
você não pode!
M5: Não!
132
P3: Você não pode ficar batendo em ninguém da
turma! Você não é pai de ninguém! Eu estou
cansada de falar isso para você.
P3: Não vou repetir, não.
A professora olha para M12.
P3: Não. Não vai dar. Vamos lá, continuar. Ontem,
nós vimos o sentido da palavra Páscoa.
M5 abaixa a cabeça.
M5: Eu não vi, não.
M12 olha para M5 e levanta o braço,
solicitando um tempo para falar.
M12 abaixa o braço.
No trecho 2, a professora continua acusando M5, reprovando a criança. A professora relembra
para M5 a regra que ‘ele acabou de transgredir’. A regra é colocada de forma enfática,
autoritária e desconexa dos motivos sociais e morais que a sustentam. Além disso, a fala da
professora (“Você não pode ficar batendo em ninguém da turma! Você não é pai de ninguém!”)
acaba transmitindo uma mensagem bastante ambígua e questionável em termos de respeito e
moralidade.
Quando M12 pede a palavra, não permite sua fala e continua a atividade.
No segundo episódio
desta sessão, estabeleceu-se um conflito entre duas crianças
da turma. A criança atingida (M4), ao invés de resolver a situação de conflito com o
colega, queixou-se à professora, que interveio tomando partido a favor dela. Na
interferência da professora em relação ao conflito e as duas crianças se veicularam
questões fundamentais para o desenvolvimento moral.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a intervenção da professora não
esteve orientada para mediar a situação de conflito entre as duas crianças, ajudando-as a
esclarecer o problema e procurar estratégias para resolver a situação. A professora não
tentou esclarecer as causas do conflito, que parecer ter acontecido de forma acidental, uma
vez que as crianças estavam se acomodando no espaço da roda. A criança alvo da acusação
tentou esclarecer a situação sem sucesso, pois suas colocações não foram levadas a sério
pela professora. Ela não só não abriu o espaço para a criança se defender, como também
rejeitou suas explicações, indicando que não acreditava nas mesmas (“Não! Viu, sim!”). A
criança foi colocada em evidencia, de forma negativa, perante o grupo, gerando-se uma
situação constrangedora para ela, que ficou séria e visivelmente desapontada.
Ao acusar M5, a professora aproveitou para reapresentar regras estabelecidas com
anterioridade, assim como suas próprias crenças e valores em relação às ações dessa
criança. Por um lado, a fala da professora (“Você não pode ficar batendo em ninguém da
turma.”) deixou claro para a criança que ela não devia, nem podia bater nos colegas. Por
outro lado, a fala completa (“Você não pode ficar batendo em ninguém da turma. Você não
é pai de ninguém. Eu estou cansada de falar isso para você.”) acabou transmitindo crenças
133
e valores morais que reforçam a assimetria natural da relação adulto-criança. Ou seja, a
criança não pode bater no colega não por uma questão de respeito e cuidado com o outro,
mas porque ela não é o adulto responsável pela criança. Dessa forma, a professora acabou
transmitindo uma mensagem bastante ambígua e questionável em termos de respeito e
moralidade. Se por um lado, a criança não pode bater no outro, o adulto pode bater na
criança, desconsiderando questões importantes sobre o respeito e o cuidado com o outro.
Ainda em relação à intervenção junto às crianças, é importante ressaltar que o fato
dela não se dirigir à criança atingida (M4), pode acabar reforçando a sua dependência na
hora de resolver seus conflitos interpessoais. O fato da criança ter solicitado a intervenção
da professora pode ser considerado como um indicador de poucas habilidades e/ou
estratégias para resolver a situação de conflito, sem o auxílio do adulto. Ela poderia mediar
no sentido de ajudar a criança a procurar estratégias e desenvolver habilidades
interpessoais para resolução de problemas sem recorrer a uma figura de autoridade
(DeVries & Zan, 1998).
Ao final, professora inibiu a participação de uma criança (M12) em função da
atividade acadêmica, indicando, assim, que continuar a aula era mais importante que
discutir. A tarefa acadêmica prevaleceu diante da possibilidade de aproveitar a situação de
conflito como espaço de co-construção de aspectos da moralidade.
Episódio III – “Agora, vamos ver quem merece ir para o parque”
ATIVIDADE: Saída para o parque. As crianças estão sentadas às mesas, desenhando. Em cada
mesa há grupos de três ou quatro crianças. A professora anda pelo espaço da sala. Ela passa pelas
mesas, olhando os desenhos das crianças.
TEMPO: 9h16
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 01:19
A professora pára de andar e fica em pé, perto de
uma mesa, olhando para o espaço externo da sala.
P3: Como está fechando o tempo... (Olha para M3,
M9 e M10.) Oh M10! ...E eu estou com medo que
chova, e vocês já têm uma semana que não vão no
parque porque está chovendo, nós vamos logo lá, no
parque de fora. Quando a gente voltar, quem não
terminou, termina. Combinado assim? Tira a meia,
tira o sapato.
A professora olha para M3 e M10.
P3: M10, M3, vocês tiram a meia e o sapato e vão
ficar 10 minutos sem entrar no parque. Depois
entram.
M3, M9 e M10 estão sentados juntos. Eles
desenham e conversam ao mesmo tempo.
M9 fica em silencio após a interferência da
professora.
M3 e M10 continuam conversando.
M3 e M10 olham para a professora e
134
começam tirar sapatos e meias.
A professora se mostra atenciosa em relação às necessidades das crianças, que ficaram uma
semana sem parque em função da chuva, e modifica a rotina do dia para ir ao parque. Ela vai
estabelecendo as regras. A primeira regra relaciona-se diretamente com a atividade: quem não
terminou, vai acabar o desenho quando voltar. A segunda regra tem como objetivo manter a
ordem e a disciplina: as crianças não devem conversar, mas prestar atenção às orientações. Essa
regra é apresentada através da interação com M3, M9 e M10, que conversam e continuam
conversando após a fala da professora. A professora mostra-se autoritária e punitiva,
estabelecendo que elas ficarão sem parque por 10 minutos em função da conversa.
(2) 01:21
A professora vai até F2.
P3: Vamos lá, não vai ficar aqui, não. Não pode
ficar aqui sozinha. Não precisa tirar o sapato, você
fica comigo na parte de fora.
A professora olha o desenho de M12.
P3: Não é dessa maneira. E eu não quero ovo
voando em folha, não. Portanto, você não acabou
M12. Não faça qualquer coisa. Fazer uma linha para
mim não está com nada, não. Vai apagar e fazer de
novo. Quando voltar, a gente termina.
P3: Não terminou, não. Não quero coisa mal feita.
Não passou canetinha. Não terminou, não. Vamos
embora!
M5 levanta da cadeira, começa andar e olha
para a professora.
M5: Eu só vou guardar o casaco.
F2: Tia! Eu não quero entrar no parque.
M12 levanta da cadeira com seu desenho na
mão. Vai até a professora e mostra a folha.
M12 volta para a mesa, deixa o desenho
junto com seu material e tira os sapatos,
olhando para a professora.
M5: Tia! Eu já terminei.
M5: Puxa! Quem disse que eu fiz coisa mal
feita!?
M5 entra na fileira que está se formando no
centro da sala.
A professora recrimina M12 e M5 em relação ao desenho, indicando que devem desenhar de
acordo
com o que ela julga ‘bem feito’. Sua fala é autoritária e punitiva: “Eu não quero
ovo voando em folha, não”, “Não quero coisa mal feita”. M5 reage, indicando que não
gostou da interferência.
(3) 01:23
A professora olha para F1.
P3: Já tirou a meia e o sapato? F1, depois a gente
termina.
A professora olha para M6.
P3: M6! Não vai para o parque?
A professora olha para a fileira.
P3: Ah! Agora, vamos ver quem merece ir para o
parque. Mãos para trás e boca fechada.
F1 deixa o desenho na mesa e começa
guardar seu material.
M6 faz um gesto afirmativo com a cabeça.
135
A professora olha para F1 e F2.
P3: Meninas, vocês não vão?
P3: Tá.
As crianças tentam se organizar uma detrás
da outra.
F1: A gente está tirando.
As crianças estão se aprontando para sair da sala, enquanto a professora as chama e supervisiona
a organização para a saída. Ao olhar para a fileira, a professora coloca a participação no parque
como um merecimento em função do comportamento das crianças. Além disso, indica que todos
devem ficar em silêncio e tranqüilos (“Mãos para trás e boca fechada”). A possibilidade de
participara na atividade de parque, que no começo do episódio apareceu como uma necessidade
das crianças, passa ser uma recompensa, caso elas se comportem. A estratégia parece eficiente,
uma vez que as crianças começam se organizar na fileira.
(4) 01:24
A professora olha novamente para a fileira.
P3: Lembrete do parque. Oh! Não pode ir nos dois
gira-gira, já sabe por que. Na casinha alta... Psiu!
(Olhando para F1 e F2.) ...não pode porque... Espera
um pouquinho! (Olhando para F1 e F2, que
continuam conversando.) Eu estou repetindo para
não esquecer. Entrar no escorregador no contrário,
não pode.
P3: Eu estou conversando. Agora tem que me ouvir.
Não passar na frente, nem detrás do balanço. Não é
para rolar na areia, embaixo ainda está um pouco
molhada. Encima, eu já olhei, está mais ou menos,
dá para ir. Agora, se começar rolar na areia, nós
vamos voltar. Não jogar areia encima da cabeça de
ninguém. Se brigar... M10! ...sai, volta. Não é para
brincar de luta.
A professora olha para M4, que acabou de falar e
continua com o braço levantado.
P3: Oh! Já sabe o que que é. Não precisa repetir o
que eu falei.
A professora vai até a porta e abre. Faz um sinal
com a mão para que as crianças comecem sair.
F1 e F2 conversam do lado da professora.
F1 e F2 param de conversar e entram na
fileira.
M5: Oh tia! Verdade que...?
M4 levanta o braço, solicitando um tempo
para falar.
M4: Nem jogar terra no olho.
M4: Eu não vou repetir, não, tia. (Baixando
o braço.)
As crianças saem da sala.
A professora relembra as regras do parque. A maioria das regras está relacionada com o uso dos
brinquedos e do espaço do parque, restringindo a atividade livre das crianças. A forma como inibe
M4 e a reação da criança indica que o melhor é sempre ficar calado.
Na primeira parte do terceiro episódio da sessão, a professora mostrou-se flexível e
atenta às necessidades das crianças, modificando a rotina previamente planejada por ela.
Embora as crianças não tivessem a possibilidade de participar na decisão de modificar a
rotina, elas rapidamente acataram a decisão da professora e começaram se aprontar para a
136
atividade de parque. Para garantir a finalização adequada da atividade que estava
acontecendo, a professora estabeleceu como regra que acabariam o desenho após voltar do
parque. Diante disso, algumas crianças se aproximaram da professora para mostrar o
desenho e confirmar se tinham finalizado o mesmo. As intervenções da professora com
essas crianças (trecho 2) indicaram que a regra estabelecida ia além de finalizar o desenho.
Ou seja, não só era necessário acabar o desenho: era necessário realizar um desenho de
acordo com o que ela julgava como ‘bem feito’. Embora essa intervenção possa acontecer
com o objetivo de incentivar o esforço e o envolvimento das crianças na atividade criativa,
é uma intervenção que acaba restringindo a criatividade e autenticidade das crianças, que
devem adequar sua expressão individual ao padrão estabelecido pela figura de poder. É
importante assinalar que a possibilidade da expressão individual da pessoa, seja ela
artística, cognitiva, ou filosófica é de suma importância para o desenvolvimento moral.
Como colocado por Piaget (1932/1994), refletir sobre questões relativas à moralidade é um
exercício de expressão individual, que só é possível no marco de interações e relações mais
simétricas, nas quais todos os pontos de vista são levados em conta.
Ainda nesse primeiro momento do episódio, a professora estabeleceu outras regras
com o intuito de garantir o sucesso da passagem de uma atividade para outra. Ao intervir
com duas crianças (M10 e M3) que conversam, a professora deixou claro que era
necessário permanecer em silêncio total e prestar atenção a suas orientações (“Oh, M10!”).
Uma vez que o chamado de atenção não surtiu o efeito esperado, decidiu castigar as
crianças: “M10, M3, vocês tiram a meia e o sapato e vão ficar 10 minutos sem entrar no
parque. Depois entram”.
A exclusão das crianças da atividade de parque indica que ordem e disciplina são a
regra principal e que criança tem que ficar calada sempre. As interações entre as crianças
não são valorizadas como espaço de desenvolvimento e aprendizagem. Elas são quase
sempre entendidas como bagunça e desordem.
A ênfase na disciplina e no controle do comportamento das crianças apareceu em
outras intervenções da professora. No trecho 3 do episódio, o professora supervisionou a
fileira que estava se formando no centro da sala, estabelecendo que era necessário ficar em
silêncio e tranqüilo (“Mãos para trás e boca fechada”), para poder participar do parque. Na
fala completa da professora (“Ah! Agora, vamos ver quem merece ir para o parque. Mãos
para trás e boca fechada.”), a atividade livre no parque apareceu como um ‘merecimento’ e
não como uma necessidade das crianças, em função das especificidades do
desenvolvimento em sua faixa etária. No caso, prevaleceu o uso de uma atividade
137
importante e prazerosa para as crianças como instrumento de controle do seu
comportamento. Aqui houve uma contradição, porque no começo do episódio, ir para o
parque apareceu como uma necessidade das crianças. No trecho 3, a atividade passou ser
uma recompensa, caso as crianças seguissem todas as regras estabelecidas. A estratégia
pareceu eficiente, uma vez que as crianças começaram se organizar na fileira.
Antes da saída para o parque, a professora apresentou uma grande quantidade de
regras e informações de uma só vez, sem espaço para a participação das crianças. Nos
momentos em que as crianças solicitaram um espaço para falar, essa possibilidade foi
negada. A fala da professora (“Eu estou conversando. Agora tem que me ouvir.”), indicou
para as crianças não só que ela não estava disposta a ouvir ninguém, como que suas
instruções deviam ser ouvidas e seguidas com atenção.
A maioria das regras apresentada estava relacionada com o uso dos brinquedos e o
espaço do parque, e não com questões de respeito e cuidado com as pessoas durante a
brincadeira. Só duas das regras podem estar relacionadas com a questão do respeito e do
cuidado com o outro: não jogar areia na cabeça de ninguém e não brigar. Mesmo assim, os
motivos sociais e morais dessas regras não foram explicitados, nem discutidos com as
crianças. Além disso, as regras formuladas pela professora partiram sempre de uma
negação: “Não é para rolar na areia. Não jogar areia encima da cabeça de ninguém.” No
caso da regra “Não brigar”, a mesma foi enfatizada através da possibilidade de sanção (“Se
brigar... sai, volta.”), em detrimento da oportunidade de esclarecer e negociar os conflitos
de forma ativa por parte das crianças.
Dados Gerais da Sessão 4
Data: 17/03/2008
Horário e tempo: 8h03 – 9h31 (1 hora e 28 minutos de gravação)
Local da gravação: Sala de aula
Atividades: Caixa surpresa: a letra “P”
Organizando as fichas de nomes
Escrevendo palavras com a letra “P”
Trabalhando com quantidades: o número 8
Dobradura de um coelho
Episódio I – “Hoje eu trouxe um brinquedo para mostrar”
ATIVIDADE: Organizando as fichas de nomes. As crianças estão sentadas no chão, em roda. Elas
aguardam o começo da próxima atividade, que já foi anunciada pela professora. Primeiro,
organizarão as fichas de nomes no painel. Depois, escreverão palavras com a letra “P”. A
professora está em pé, frente à roda, lendo seu caderno de planejamento, mas de costas para as
crianças.
TEMPO: 8h24
138
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:21
P3: Ah!
A professora pára de ler e olha para M5.
P3: Hoje não é dia. Só sexta-feira, não é? Então, se
você trouxe, trouxe no dia errado.
P3: Ah! Mas, trouxe no dia errado.
A professora continua olhando o caderno de
planejamento. Senta na roda.
P3: Oi.
P3: Não. Nunca foi amanhã. Que dia que é o dia do
brinquedo?
P3: Sexta-feira. Amanhã que dia é? Se hoje é
segunda, amanhã é o que?
P3: Se hoje é segunda, amanhã é o que?
P3: Se hoje é segunda!
P3: Depois da segunda, no calendário, vem qual?
A professora aponta para M10 e coloca o corpo para
frente, para conseguir ouvir a resposta.
P3: Terça-feira. Muito bem! Garoto inteligente!
(Olhando para M10 e sorrindo.)
P3: Então. Oh! Segunda, terça, quarta, quinta,
sexta. (Contando com os dedos.) Se hoje é segunda,
amanhã é terça. Amanhã é dia do brinquedo?
P3: Quarta é dia de brinquedo?
P3: Quinta é dia de brinquedo?
P3: Só sexta. Tá longe! E essa sexta, vocês vão
estar em casa, porque é recesso... da Páscoa.
M5: Tia!
M5: Hoje eu trouxe brinquedo para mostrar.
F2: Mas, você trouxe, né? (Falando com
M5.)
F2: Mas, ele trouxe.
As crianças conversam entre elas, sobre um
boneco que uma criança ganhou.
F2: Tia. Tia. Oh, tia!
F2: Amanhã é dia de brinquedo?
F2: Sexta-feira.
M8: Quarta-feira
F2: Quarta-feira.
F2: Sexta.
M10 responde muito baixo, ininteligível.
M10 responde novamente, mas em voz
baixa.
Crs: Terça, quarta, quinta, sexta. (Junto com
a professora.)
Crs: Não!
Crs: Não!
Crs: Não!
M4: Ué! (Levantando os braços e se
139
P3: Então, vamos lá.
mexendo no lugar animado.)
F2: Tia. Tia. (Levantando o dedo.)
M5, M6 e M7 começam falar ao mesmo
tempo em voz baixa.
M5: Foi por pouco, que é dia de brinquedo.
M5 mostra seu interesse em apresentar um brinquedo que trouxe de casa. Outras crianças também
se mostram interessadas pelo brinquedo e argumentam a favor da apresentação do mesmo. A
professora lembra uma regra estabelecida: o dia do brinquedo de casa é na sexta-feira.
Estabelece-se uma negociação em relação à apresentação do brinquedo e, portanto, em relação à
mudança da regra. A professora, porém, é inflexível só na sexta-feira. Isto não se negocia.
(2) 00:26
A professora olha para M5, M6 e M7.
P3: Não. Não. Oh! F2 levantou o dedo, ela merece
ser ouvida. M6 chega para trás. M6, está na frente
ainda, M6. (Aponta com o dedo para F2.)
P3: Nossa! Que legal o que você está contando! Oh
Páscoa boa! Oh! Traz um pão de queijo para a tia,
viu. Ou um biscoitinho de queijo de Minas, que é
uma delícia.
P3: Nossa!
P3: Chega para trás. Eu só vou atender quem
levantar o dedo.
P3: Vai M5.
P3: Tá bom. Então vamos lá. M4.
P3: Eu já sei. Fala M7. Ótimo!
P3: Tá bom, então. Vamos lá. Oh, M12 rápido.
P3: É!? Então, chega para trás. M11, fala. A última.
P3: Ótimo! Então vamos lá. Nós, sexta-feira...
F2: Depois dos três dias de aula, eu vou para
a casa da tia Teresinha, em Minas Gerais.
M8 levanta o braço.
M11: Minas Gerais!?
C11: Minas Gerais é...
M4, M5, M7, M11, M12 levantam o dedo.
M8 baixa o braço.
M5: Sabia que quando eu acabar as férias,
eu vou brincar de espadinha.
M4: Eu estou estudando em outra escola
também.
M7: Um dia... é... a minha mãe me levou
para o cinema. Ela é casada.
M11: Que nem a minha.
C12: Eu... eu... tenho uma tia que se chama
Teresinha.
M11: Sabia que... (Fala muito baixo.)
M8 levanta o dedo, novamente.
140
Lembrando! Lembrando! Não, M8, senão a gente
só fica na conversa. Depois, vocês conversam mais.
Lembrando as letras...
P3: Não. Deixa acabar. Pode ser?
P3: Obrigada. Então, vamos lá. Rapidamente, eu
vou trazer aqui os meninos com uma letra, com um
som. (Pega as fichas de nomes.) Só para lembrar o
som, porque depois a gente vai formar palavras.
(Coloca as fichas de nomes no chão, de forma que
todos possam ver.) Vocês vem aqui, pegam a ficha
e põem no painel.
M8 abaixa o braço.
M13: “P”.
M13: Pode.
As crianças prestam atenção na explicação.
As crianças se mostram interessadas em conversar e interagir no contexto da roda. Embora a
professora abra o espaço para essa interação, suas falas indicam sua orientação para objetivos:
começar a atividade planejada. Se no começo ela se mostra atenta à fala de F2, depois assume
uma atitude diferente em relação às falas das outras crianças, que devem se colocar de forma
rápida para ‘não ficar só na conversa’.
A professora estabelece uma regra, voltada para a ordem e a disciplina: só merece ser ouvido
quem levantar o dedo. No entanto, muitas que levantaram o dedo não puderam falar.
No primeiro episódio da sessão 4, uma criança quis apresentar um brinquedo que
trouxe de casa. Outras crianças se motivaram com o brinquedo do colega e manifestaram
seu interesse argumentando a favor da apresentação do brinquedo, conversando sobre
outros brinquedos ou se engajando na discussão sobre o dia do brinquedo. Nesse contexto,
os participantes tentavam estabelecer uma negociação em relação a uma regra já
estabelecida: os brinquedos de casa devem ser apresentados na sexta-feira.
A professora, logo na sua primeira intervenção, indicou sua orientação para
continuar com as atividades planejadas e não levar em conta as orientações das crianças,
nem as circunstancias em que essas orientações se estruturaram. Ou seja, uma vez que as
crianças não teriam a atividade do brinquedo de casa nessa semana, em função do recesso
da Páscoa, elas estavam argumentando a favor de um espaço de interação que ficaria
prejudicado. Mas a professora não considerou este interesse das crianças. Foi inflexível:
“Hoje não é dia. Só sexta-feira, não é? Então, se você trouxe, trouxe no dia errado.” O
importante era a regra estabelecida em relação ao planejamento das atividades semanais,
em detrimento do interesse e das necessidades das crianças. Não aproveitou aqui a
oportunidade de co-construir e modificar de forma conjunta uma regra estabelecida, em
função do contexto (Páscoa) e das necessidades do grupo.
Na negociação estabelecida entre a professora e as crianças se veicularam aspectos
fundamentais para o desenvolvimento moral. A professora, ao se manter inflexível em
relação à regra, indicou que é importante respeitar a regra e os acordos já firmados, mesmo
141
quando esses acordos podem, de fato, ser negociados. Nesse contexto, a regra surgiu se
impôs como norma imutável, que deve funcionar independentemente das características do
contexto e das necessidades das pessoas (Piaget, 1932/1994).
Em relação a essa questão, DeVries e Zan (1998) apontam a importância de
modificar as regras junto com as crianças sempre que isso seja necessário em função da
situação ou dos interesses do grupo. Dessa forma, as crianças têm a possibilidade de se
deparar com a funcionalidade da regra e concebê-la como acordo necessário para
harmonizar os diferentes interesses e necessidades dos membros do grupo.
Na segunda parte do episódio, a professora lembrou outra regra: levantar o dedo
para falar. Várias crianças da turma conversavam em voz alta, enquanto uma criança
solicitou, da forma estabelecida, um espaço para falar. A situação foi aproveitada pela
professora para validar a regra, indicando que iria dar a mesma garantiria para falar para as
demais crianças: “Oh! F2 levantou o dedo, ela merece ser ouvida.”. A professora não só
incentivou a fala da criança, como também se mostrou interessada pelo que ela estava
contando (“Nossa! Que legal o que você está contando!”). Assim, várias crianças se
mostraram interessadas em participar, contando suas novidades para a turma. Uma vez que
a ‘chave’ para garantir a participação era a regra estabelecida, as crianças optaram por
segui-la, indicando sua motivação por participar e seu compromisso com a professora e
com a dinâmica da sala. Entretanto, a professora não seguiu as próprias regras e impediu a
participação das crianças que queriam falar em seguida. As interações da professora com
essas crianças tiveram como objetivo apressá-las em função da atividade acadêmica,
inibindo algumas crianças que falaram muito baixo ou que duvidaram sobre a possibilidade
de participar (“Tá bom. Então vamos lá. M4.”, “Vamos lá. Oh, M12 rápido.”, “M11, fala.
A última.” ).
Sendo assim, a regra “levantar a mão para falar” não foi respeitada pela professora.
Ela lembrou a regra apenas para calar as crianças que conversavam em voz alta, e
‘obstaculizavam’ o inicio da atividade acadêmica. A situação gerou uma sensação de
injustiça por parte das crianças e abriu o espaço para um conflito entre a professora e a
turma.
Episódio II – “Todo dia... Todo dia é a mesma criança”
ATIVIDADE: Escrevendo palavras com a letra “P”. As crianças continuam sentadas no chão, no
espaço da roda. Elas esperam pela professora, que vai começar a atividade de escrita. A professora
está sentada na roda, junto com as crianças. Ela organiza as letras de EVA, que usarão na atividade
de escrita.
142
TEMPO: 8h38
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
(1) 00:35
A semana passada, nós... nós formamos a palavra
Páscoa... O M9 vai sair do meio da sala e vai afastar
para trás. O M5 também.
P3: Não! M5 não. M8. Desculpa M5. (Olhando
para M5.) Oh, gente! Eu troco os nomes! F2 por
favor, forme a palavra Páscoa aí para mim.
(Colocando as letras de EVA no meio da roda.)
A professora olha para F3.
P3: Não é todo dia F2, não. Outro dia, eu não
peguei F2. Que negocio de todo dia F2! Eu estou
alternando. Que história é essa!? F2 não está vindo
aqui todo dia. Eu não chamo todo dia a mesma
criança.
A professora olha para M5.
P3: Eu não chamo todo dia a mesma criança. Não
venha para cima de mim, não! Eu sei quem estou
chamando!
M5: Eu!
As crianças se organizam na roda.
F2 vai até onde estão as letras para formar a
palavra solicitada pela professora.
F3: Todo dia F2!
F3 fica em silêncio.
M5: Todo dia... Todo dia é a mesma
criança.
No trecho 1, a professora chama F2 (que teve um tratamento diferenciado no episódio anterior)
para formar a palavra Páscoa. Duas crianças da turma (M5 e F3) mostram seu descontentamento
e reclamam diretamente da escolha da professora. Dessa forma, estabelece-se um conflito entre a
professora e as crianças. A professora reage se defendendo das ‘acusações’ das crianças e
indicando seu desapontamento em relação às mesmas. Quando diz “Não venha para cima de mim,
não!”, deixa claro quem manda e quem é a dona da verdade na sala de aula.
(2) 00:37
A professora olha para F2, que já está formando a
palavra.
P3: P-A-S-C-O-A
P3: Psiu! Páscoa.
P3: Obrigada. Lê o que você escreveu. Vamos lá!
P3: Tem alguma coisa errada?
P3: Tá bom. Então sente lá.
M6: É a mes...
F2 acaba de formar a palavra, enquanto as
outras crianças observam o que ela está
fazendo.
A palavra fica PASQCOA
F2: Páscoa.
F2: Não.
Como indica a fala de M6, o conflito continua. A intervenção da professora com a criança (“Psiu!
Páscoa.”) indica que ela não está disposta a abrir o espaço para resolver a questão. Nesse
contexto, as intervenções da professora parecem se orientar para a eliminação do conflito e o erro
na escrita da palavra lhe passa despercebido!
143
No segundo episódio da sessão, as interações entre a professora e as crianças da
turma se orientaram para a resolução de um conflito que surgiu a partir da possibilidade de
participar na atividade proposta. A professora solicitou a participação de uma criança
determinada (F2) que, coincidentemente, foi a criança que recebeu um tratamento
diferenciado no episódio anterior. Diante da escolha da professora, algumas crianças da
turma reclamaram, indicando seu desapontamento e questionando a escolha realizada:
“Todo dia F2!”, “Todo dia... Todo dia é a mesma criança”.
Ao invés de tentar esclarecer os motivos das colocações das crianças, abrindo assim
o espaço para uma compreensão adequada da situação, a professora optou por uma postura
defensiva, desconsiderando a importância das percepções das crianças, e se colocando
como dona da verdade. Através do tom de voz e das expressões usadas, a professora
metacomunicou seu incomodo com a situação, assim como pouca disponibilidade para
conversar ou negociar com as crianças. Expressões como “Que negocio de todo dia F2! Eu
estou alternando. Que história é essa!?” e “Não venha para cima de mim, não! Eu sei quem
estou chamando!” indicaram que somente ela sabe o que está fazendo.
Embora as crianças, em função da idade, não tenham os recursos necessários para
elaborar os motivos por trás da escolha da professora, elas se sentiram injustiçadas e
acabaram levantando questões morais muito importantes, através de suas reclamações.
Essas questões estão relacionadas com a igualdade de tratamento entre os membros do
grupo, a inclusão real de todas as crianças na atividade e o respeito pelas contribuições que
cada uma delas pode dar, de acordo com seu nível de conhecimento e habilidades. Em
relação a esta última questão, vale a pena acrescentar dois detalhes. O primeiro é que a
criança selecionada para escrever a palavra ‘Páscoa’ já sabia ler e escrever, fato que, com
certeza, já tinha sido notado por todas as crianças da turma. O segundo é que a criança
selecionada foi a mesma criança que recebeu um tratamento diferenciado no primeiro
episódio desta sessão. Após esse primeiro episódio, é compreensível que as crianças se
sentissem injustiçadas, embora essa não fosse a intenção da professora.
A negociação entre o professor e as crianças não pode ser totalmente simétrica, nem
estabelecida a partir do principio da igualdade absoluta, em função da assimetria natural
que caracteriza a relação adulto-criança. No entanto, é fundamental que o professor
negocie com as crianças e construa junto com elas estratégias de resolução adequadas para
os dois pólos da interação e do conflito.
144
2.4. Análise das Entrevistas com a Professora-Foco
2.4.1. Entrevista sobre as atividades estruturadas
Após a realização das duas atividades estruturadas, realizamos uma entrevista
específica com a professora-foco. Conforme explicitamos na seção Metodologia, essa
entrevista seguiu um roteiro específico, contendo questões relacionadas às atividades
estruturadas. Na entrevista, foi solicitada uma análise e avaliação das referidas atividades,
o que permitiu a reflexão da professora sobre sua prática pedagógica e as atividades
especificamente realizadas para a pesquisa. Outras perguntas sobre temas centrais para o
estudo também foram inclusas no roteiro.
No primeiro momento da entrevista, a professora teve a possibilidade de assistir
trechos do vídeo das duas atividades estruturadas. Também foi lhe entregue lápis e papel,
para que pudesse fazer anotações sobre os trechos selecionados, caso o considerasse
necessário. Os trechos apresentados à professora no marco da entrevista foram os
seguintes:
Atividade Estruturada 1:
- leitura e discussão do livro escolhido pela professora, para a atividade. (Episódio I
“Igual a gente faz”, de 00:06 a 00:17)
- atividade de mímica, realizada no segundo momento da atividade estruturada.
(Episódio II “Tá demorando demais!”, de 00:31 a 00:39)
- atividade de desenho, realizada no terceiro momento da atividade. (Episódio III
“É para o amigo ajudar”)
Atividade Estruturada 2:
- leitura e discussão do livro escolhido pela professora, para a atividade. (Episódio
II “Porque aqui não deixa”, de 00:15 a 00:20)
- apresentação e organização da atividade de desenho, realizada no segundo
momento da atividade. (Episódio III “Uma idéia boa!”)
Os trechos anteriores foram selecionados para a entrevista, uma vez que a partir
deles é possível analisar e avaliar as diferentes atividades programadas pela professora,
assim como a forma usada para direcionar estas atividades e a participação das crianças.
No segundo momento da entrevista, a professora teve a oportunidade de analisar e
avaliar as duas atividades estruturadas, a partir de nossas perguntas e seus próprios
comentários. Segue a análise das reflexões da entrevistada.
145
1. Objetivos das atividades estruturadas
P3 planejou diversas atividades específicas para cada uma das atividades
estruturadas porque achava importante explorar diferentes objetivos e habilidades como: a
interpretação oral do texto lido e das ilustrações, a dramatização ou representação corporal
das questões abordadas, e o registro gráfico (desenho e escrita) das mesmas. Além disso, a
subdivisão das atividades dinamizou a atividade principal, que ficou menos ‘amassante’
(segundo ela) e permitiu que as crianças se envolvessem e se concentrassem mais.
A professora escolheu a leitura de um livro para a realização das duas atividades
porque gosta de ler para as crianças, que adoram ouvir histórias. Por outro lado, ela pensou
no livro selecionado para as atividades, assim que recebeu nossa solicitação. Segundo ela,
já conhecia e tinha lido o livro, julgando-o adequado para trabalhar questões de moral.
As duas atividades estruturadas não foram planejadas de forma individual pela
professora-foco. O planejamento contou com a participação de todas as professoras do
período matutino e de um dos diretores da escola, que concordaram com a leitura do livro
selecionado e deram sugestões sobre as atividades específicas.
P3 considerou que as duas atividades realizadas se adequaram aos objetivos
solicitados pela pesquisadora: promover a discussão sobre questões relacionadas à
moralidade entre as crianças da turma. Segundo ela, o livro trata de questões relativas à
moral e, subsequentemente, são importantes para o desenvolvimento moral das crianças.
De acordo com a entrevistada, as crianças precisam saber o que elas podem e não podem
fazer, o que é certo e errado em nível de comportamento. Das questões apresentadas pelo
livro, P3 considerou como mais interessante a que trata da divisão do material, porque
ensina as crianças a dividir e ajuda na socialização. Disse, também, que as crianças tiveram
a oportunidade de participar e fazer colocações a partir de seu dia-a-dia.
As informações oferecidas pela professora sobre o planejamento das atividades,
mostraram-se valiosas para a pesquisa. Uma vez que as atividades foram planejadas em
conjunto pelas professoras do turno matutino e um dos diretores, podemos dizer que sua
estrutura e organização são representativas da prática pedagógica da escola. Além disso, o
fato do grupo de profissionais ter concordado com o material e tarefas selecionados indica
que acharam o planejamento adequado para as atividades solicitadas.
A partir da fala da professora, podemos ressaltar que ela incluiu suas próprias
orientações para objetivos na hora de planejar as duas atividades. Ou seja, estruturou as
duas atividades de forma que pudesse trabalhar habilidades de interpretação oral,
representação corporal e registro gráfico e escrito. Consideramos, porém, que tais
146
orientações para objetivos prevaleceram em relação aos objetivos solicitados, uma vez que
o planejamento das duas atividades não esteve voltado para abrir um espaço de co-
construção e discussão real sobre questões relativas à moralidade. Os objetivos solicitados
ficaram restritos ao material usado. Além disso, vale a pena lembrar que a maioria das
questões abordadas pelo livro “A gente pode... A gente não pode” não está relacionada à
moralidade, conforme vimos nas análises das atividades estruturadas.
2. Avaliação das atividades
A professora avaliou positivamente a interpretação e participação das crianças, nas
duas atividades estruturadas. De acordo com ela, as crianças fizeram interpretações a partir
de suas experiências cotidianas, adequadas às questões abordadas pelo livro. Também
aproveitaram a possibilidade de participar e se engajaram nas diferentes atividades.
Segundo a entrevistada, a melhor atividade em termos de participação foi a atividade de
mímica na primeira atividade estruturada. Ela gostou especialmente desse trecho, pois as
crianças fizeram representações boas e de acordo com o texto. Neste ponto, é importante
lembrar que não foi possível gravar em vídeo a preparação das representações por parte das
crianças, uma vez que estas foram organizadas no quartinho que serve para guardar
material. Em função disso, não temos informações sobre como foi essa organização, nem
se a mesma foi direcionada pela professora.
O direcionamento e a realização das atividades também foram avaliados de forma
positiva. De acordo com P3, ela conseguiu garantir um espaço de participação para todas
as crianças da turma, assim como conseguiu que as crianças se mantivessem motivadas e
atentas às atividades.
De forma geral, a professora ficou satisfeita com as duas atividades realizadas. De
acordo com ela só mudaria dois aspectos. O primeiro relacionado com a maneira como ela
direcionou as atividades, que lhe pareceu muito rápida e dinâmica. P3 concluiu que
diminuir seu dinamismo poderia ser importante para diminuir o nível de ‘agitação’ das
crianças da turma. O segundo aspecto foi relacionado com a possibilidade e necessidade de
usar recursos auxiliares para as atividades. P3 avaliou que nas atividades de leitura podia
ter usado recursos como fantoches e desenhos, que podem enriquecer as atividades e
motivar mais as crianças.
A avaliação realizada por P3 sobre a participação das crianças foi positiva. Vale
notar, porém, como enfatiza na entrevista a disciplina e o sucesso da atividade, ao longo da
avaliação. Para P3, orientar e direcionar as atividades do dia-a-dia de uma forma mais
147
adequada significa diminuir o nível de ‘agitação’ das crianças, que devem ficar atentas,
quietas e motivadas.
3. Conceitos norteadores
No marco da entrevista, a professora-foco se referiu à moral como o caráter da
pessoa ou o discernimento necessário para saber o que é certo e errado nas diferentes
situações do cotidiano. Uma pessoa correta moralmente tem bom caráter e age de forma
adequada em relação aos outros. Para agir da forma adequada, a pessoa deve seguir um
conjunto de regras relacionadas com o respeito pelo outro, a honestidade e o convívio
social. Essas regras nem sempre são seguidas por todos, mas são fundamentais em todos os
contextos: casa, escola e comunidade.
A partir dessa definição, a professora colocou o desenvolvimento moral como o
desenvolvimento de um bom caráter. Para esse desenvolvimento é fundamental que a
pessoa se depare com limites e regras claras, que vão estabelecer o que ela pode e não pode
fazer em relação aos outros, e nos diferentes contextos. Quando não há limites e regras
claras, a pessoa não consegue desenvolver um bom caráter.
Seguindo os conceitos anteriores, P3 se referiu à educação moral como um
conjunto de ações, que tem como objetivo principal passar para a criança as regras que
ajudam a respeitar o outro. Segundo ela, o professor precisa trabalhar várias questões de
comportamento, “.... falar porque que não pode bater, porque não pode quebrar o
brinquedo do outro, porque tem que dividir o material...”. O professor precisa ter o limite
firme em todo momento, porque só assim é que uma pessoa consegue se desenvolver
moralmente.
Nos conceitos abordados chama a atenção a ênfase da professora no papel ativo do
adulto nos processos de desenvolvimento e educação moral. De acordo com a fala de P3, o
desenvolvimento moral da criança está diretamente relacionado com a clareza e firmeza
com que o adulto coloca os limites e regras para ela. Também chama a atenção a ênfase na
dimensão comportamental da moralidade. Embora a professora se referisse à dimensão
subjetiva e valorativa da mesma (o sujeito consciente capaz de discernir o que é certo e
errado), a dimensão comportamental prevaleceu ao longo de sua fala. Esta questão se
mostrou com mais clareza na hora de conceituar o desenvolvimento e a educação moral.
De forma geral, podemos dizer que os conceitos elaborados por P3, durante a
entrevista, não são congruentes com suas ações no contexto das duas atividades
estruturadas. Primeiro pela escolha da atividade, e segundo por seu excessivo zelo em
148
manter as crianças caladas. A professora escolheu um material que tem como objetivo
principal apresentar limites e regras claras para as crianças. Ela própria direcionou a
atividade colocando os limites e regras que considerou mais importantes, de forma clara e
firme. No entanto, é importante lembrar que a maioria desses limites e regras não estavam
relacionados com o respeito pelo outro e sim com questões de disciplina, ordem e
organização.
2.4.2 Entrevista individual sobre o tópico da pesquisa
Entrevista P3 - Caracterização
A idade de P3 é 44 anos, sendo licenciada em Pedagogia (complementação).
Trabalha no turno matutino (regência) e vespertino (coordenação). Tem experiência em
educação de 27 anos, sendo 12 anos na Educação Infantil. Na escola atual, trabalha há 10
anos. Já lecionou em turmas do 1º Período (crianças de 4 anos), 2º Período (crianças de 5
anos) e 3º Período (crianças de 6 anos). No momento atua com crianças de 6 anos.
1. Percepção da formação profissional
P3 avaliou sua formação profissional como boa. De acordo com ela, todos os cursos
que fez foram importantes para o trabalho direto com a criança. Além disso, ao longo de
seus 27 anos de experiência na educação, teve a oportunidade de trabalhar com diferentes
faixas etárias, aprendendo a lidar com diversas questões do dia-a-dia da rotina escolar e das
crianças. Essa formação prática também foi fundamental para sua formação e tem se
complementado através dos cursos específicos realizados pela Secretaria de Educação. De
acordo com a entrevistada, o professor precisa se atualizar a nível teórico e procurar
materiais que apóiem o trabalho em sala de aula.
2. Percepção da profissão
A entrevistada referiu que começou trabalhar na Educação Infantil por ‘livre e
espontânea pressão’. Acostumada com um trabalho voltado para a alfabetização com
crianças mais velhas, achou difícil se adaptar as especificidades do trabalho com crianças
mais novas. Sendo assim, precisou de um tempo para adaptar seu fazer pedagógico aos
objetivos da Educação Infantil e às necessidades das crianças menores. A possibilidade de
trabalhar com todas as faixas etárias da Educação Infantil (1º, 2º e 3º Períodos) foi
importante para esse processo de mudança e adaptação. Após um tempo de experiência
percebeu que se adaptou melhor ao trabalho com as crianças do 3º Período (atual 1º Ano
149
do Ensino Fundamental), uma vez que são crianças que começam se interessar e trabalhar
questões de alfabetização.
P3 explicou que, após todo esse processo, começou a se sentir mais satisfeita em
relação a seu próprio desempenho e trabalho. Atualmente, gosta do trabalho que faz e está
mais identificada com a Educação Infantil. Além disso, a entrevistada enfatizou sua
satisfação em relação ao trabalho na escola como um todo, aos projetos pedagógicos que a
equipe pedagógica planeja e realiza, e à relação positiva com os colegas de trabalho.
3. Definição de criança e infância
P3 definiu a criança como um ser aberto às novidades que a rodeiam, curiosa e
muito inteligente. Um ser capaz de aprender e se desenvolver através de suas brincadeiras
e experiências cotidianas.
Em consonância com a definição de criança, a entrevistada ressaltou que a infância
é uma etapa de vida do ser humano. A etapa na qual se é criança e se tem a possibilidade
de desenvolver um conjunto de habilidades e conhecimentos, de forma lúdica e prazerosa.
É na fase da infância que a inteligência está mais aguçada e que a criança aprende ‘tudinho
ludicamente’.
4. Definição de Educação Infantil
P3 definiu a Educação Infantil como a base para a aprendizagem e o
desenvolvimento da criança. Na instituição escolar, a criança entra em contato com
diferentes conhecimentos e tem a possibilidade de se socializar, aprendendo a se relacionar
com os outros. Em função desses aspectos, é importante que a criança freqüente
instituições de Educação Infantil.
De acordo com a professora, os objetivos da Educação Infantil são variados e
devem abranger várias áreas do desenvolvimento e do conhecimento. A instituição escolar
deve propiciar à criança a oportunidade de desenvolver o pensamento lógico-matemático
através de atividades concretas, a possibilidade de desenvolver a criatividade e inteligência
para a pesquisa e, sobretudo, deve propiciar uma educação prazerosa através de atividades
lúdicas.
É importante ressaltar que, ao falar sobre os objetivos da Educação Infantil, a
entrevistada apontou que, antigamente, a Educação Infantil tinha objetivos muito soltos:
“... Era só brincadeira, sem objetivo nenhum. Soltou as crianças no parque, no pátio e o
professor não tinha que fazer nada”. Após as mudanças recentes, a Educação Infantil tem
objetivos mais específicos, que se concretizam em atividades inter-relacionadas.
150
5. Rotina do dia-a-dia
Ao falar sobre a rotina de sua turma, P3 descreveu um conjunto de atividades
diversificadas, que vêm ao encontro dos principais objetivos colocados por ela para a
Educação Infantil. Sendo assim, ela enfatizou atividades voltadas para a leitura, escrita,
habilidades e conhecimentos lógico-matemáticos e a motricidade. Entre as atividades
descritas pela entrevistada se destacaram as seguintes: o trabalho com o calendário, as
atividades de escrita, a brincadeira com jogos pedagógicos e as atividades de
psicomotricidade realizadas no pátio da escola.
De acordo com a entrevistada, as atividades anteriores têm objetivos específicos
como: a contagem, a noção temporal, a sistematização e fixação de letras e palavras, a
escrita com caixa alta e letra cursiva e o trabalho psicomotor voltado para a coordenação e
equilíbrio.
Quando questionada sobre a relação das atividades com o desenvolvimento moral
da criança, P3 esclareceu que as atividades mais importantes para o desenvolvimento
moral são aquelas que trabalham as partes do corpo e que têm como tema a educação
sexual. Para complementar sua fala, a entrevistada explicou que muitas crianças fazem
coisas que não deveriam fazer em sala de aula, como falar palavrões que fazem alusão aos
órgãos genitais. Após trabalhar com elas as partes do corpo, dar um nome científico e um
significado orgânico para as mesmas, as crianças mudam esses comportamentos. É
importante destacar, pois, que na fala de P3 o desenvolvimento moral apareceu relacionado
a questões de gênero e sexualidade (descoberta do próprio corpo), desvinculado do
processo de socialização. Este último não apareceu entre os objetivos da Educação Infantil
colocados pela entrevistada, que acabou privilegiando aspectos cognitivos e psicomotores.
6. Planejamento
Sobre o planejamento das atividades realizadas na sua sala, P3 colocou que planeja
tanto em conjunto com as outras professoras como sozinha. Além disso, tenta fazer alguns
planejamentos junto com a professora do mesmo período (no turno contrario), trocando
idéias importantes para o trabalho com as crianças da faixa etária de sua turma.
As crianças têm a possibilidade de participar de forma indireta nesse planejamento,
uma vez que seus interesses e necessidades são levados em conta. Além disso, disse que
costuma pedir para as crianças que avaliem a aula: se elas gostaram, se tem alguma critica
a fazer sobre as atividades e se gostariam de mudar alguma atividade. A partir dessa
avaliação, ela tenta modificar as próximas atividades, adequando-las às expectativas e
interesses das crianças.
151
Sobre a organização das crianças nas atividades, a entrevistada relatou que as
crianças costumam trabalhar de diversas formas, sempre de acordo com os objetivos
específicos de cada atividade. Enfatizou que as crianças trabalham tanto de forma
individual como coletiva nos diferentes espaços da sala: roda e mesas. No caso das
atividades coletivas, as crianças podem se organizar tanto em pequenos grupos como em
duplas, ou trios. As atividades coletivas permitem que as crianças com diferentes
conhecimentos e habilidades se ajudem mutuamente. Para que isso aconteça, ela costuma
organizar as crianças em grupos de trabalho heterogêneos, uma vez que já conhece as
habilidades e conhecimentos de cada uma.
7. Regras
De acordo com P3, em sua sala existemrias regras a serem respeitadas pelas
crianças. Essas regras são necessárias e são importantes para o funcionamento da turma.
Algumas das regras estão relacionadas com os horários da rotina, outras têm como função
evitar alguns ‘tumultos’ e respeitar os colegas. De acordo com a fala da entrevistada,
algumas dessas regras são as seguintes: Ir ao banheiro um de cada vez; levantar o dedo
antes de falar; ouvir os colegas; respeitar o limite do outro; não bater; não brigar; cuidar do
material escolar individual e coletivo.
A professora referiu que a definição dessas regras aconteceu logo na primeira
semana de aula, no espaço da roda. De acordo com ela, as crianças participaram desse
momento, mas ela induziu as regras que achava necessárias para essa turma específica.
Sendo assim, ela criou situações a partir das quais as próprias crianças criariam as regras
pretendidas. Após esse momento de definição, as crianças registraram as regras através do
desenho e da escrita e afixaram as mesmas no mural da sala. A professora também
confeccionou um cartaz com as regras e o afixou na porta do armário. De acordo com a
professora, os registros das regras são importantes para serem lembradas no caso de
transgressões. Às vezes, as próprias crianças lembram as regras constituídas, sem a
necessidade de sua interferência.
Em relação à possibilidade de modificar as regras, P3 especificou que estas podem
ser modificadas, uma vez que são flexíveis. Para exemplificar sua fala, a entrevistada
relatou que recentemente foi necessário modificar o quadro de regras em função de uma
criança:
... Por exemplo, depois que nós fizemos as regras, não tinha uma no quadro e aí nós
acrescentamos, que era justamente a de não brigar. Porque a gente tinha a regra de você
152
respeitar o amigo, mas não tinha a palavra brigar. Quando chegou outro amiguinho na sala,
batendo demais, a gente teve que acrescentar a regra ‘não brigar, não bater no colega’. Eles
pediram porque o garoto batia e brigava demais.
Sobre os principais mecanismos para garantir o respeito pelas regras, a professora
explicou dois, especificamente. De acordo com ela, o principal mecanismo usado quando
há transgressão de uma regra é conversar com a criança. Essa conversa, geralmente,
acontece de forma individual e é no sentido de lembrar a regra e explicar os motivos da
mesma. De acordo com ela, tenta não chamar a atenção da criança que transgrediu a regra
na frente dos colegas, para não gerar uma situação desconfortável:
... Eu não chamo a atenção naquela hora, eu chamo separado porque se não cria um clima
que não é bom, porque o que acontece na minha turma é que eu tenho alguns lideres
negativos, que estão esperando a oportunidade para pegar algum menino de cristo. Então,
se algum faz alguma besteira e não posso, diretamente, chamar a atenção, né? Eu chamo
assim: Fulano, fala mais baixo! Mas isso de você conversar, eu tenho que chamar
individualmente, porque se não a turma critica e é ruim. Goza da criança. Entendeu?
Quando a transgressão da regra envolve o dano físico, a estratégia relatada pela
professora tem como objetivo que as crianças conversem sobre o acontecido e cheguem a
um acordo. Caso as crianças não cheguem a esse acordo, ficam de castigo. P3 especificou
que os castigos estão relacionados com a perda de alguma atividade prazerosa: não
participar da brincadeira livre no parque ou na casinha, não participar das atividades de
brincadeiras psicomotoras no pátio ou dos jogos coletivos. Esta estratégia se mostra
eficiente, uma vez que as crianças querem participar na atividade.
Neste ponto da análise, é importante ressaltar algumas questões específicas.
Embora algumas das regras especificadas por P3 estejam relacionadas à moralidade, a fala
da professora indica uma ênfase em regras orientadas para a ordem e a disciplina. As
regras, além de ter o objetivo de evitar ‘tumultos’ na sala de aula, são estabelecidas pelo
adulto a partir de suas expectativas em relação ao comportamento das crianças. Por sua
vez, as crianças têm uma participação passiva no momento de definição das regras. Como
colocado por P3, ela canaliza a participação das crianças através das situações criadas por
ela. As estratégias apontadas por P3, mesmo na entrevista, estão voltadas para o controle
do comportamento das crianças em função da ordem e disciplina, e não para a discussão e
resolução ativa de situações que podem ser significativas para o desenvolvimento moral.
153
8. Conflitos
Para a entrevistada, os conflitos interpessoais fazem parte do desenvolvimento da
criança e da natureza do ser humano, que é um ser individual. Quando a criança entra em
contato com outras crianças diferentes, os conflitos são inevitáveis. Alguns conflitos
podem gerar crescimento, uma vez que a criança precisa aprender a resolvê-los de uma
forma adequada. No entanto, nem todos os conflitos são positivos, pois alguns podem gerar
uma situação traumática ou estressante para a criança, que não consegue resolvê-los. A
entrevistada colocou como exemplo desses conflitos negativos aqueles que envolvem dano
físico ou que desestimulam a criança em relação à escola.
De acordo com a professora, as crianças de sua turma não costumam ter muitos
conflitos em função de objetos (brinquedos, materiais etc.). A maioria dos conflitos que
acontecem em sala de aula está relacionada com reclamações que uns fazem em relação
aos outros, com a divisão do espaço e com os confrontos físicos.
Sobre a melhor forma de lidar com os conflitos entre as crianças, P3 colocou que o
ideal é deixar um espaço para que as crianças tentem resolver suas divergências entre elas,
sem a interferência imediata de um adulto. Quando as crianças não conseguem resolver os
conflitos sozinhas, o professor deve interferir chamando a atenção das crianças sobre o
acontecido, lembrando as regras estabelecidas e, se for necessário, retirando as crianças da
atividade para que pensem sobre o acontecido e cheguem a uma conclusão. Quando os
conflitos se repetem em função de uma criança específica, o professor deve conversar com
essa criança, de forma individual e mais enérgica. De acordo com a entrevistada, é
importante estabelecer limites claros para as crianças que não têm esses limites dentro de
casa.
9. Percepção da relação professor-criança
A entrevistada avaliou sua relação com as crianças da turma como boa. De acordo
com ela, é uma professora muito enérgica, mas ao mesmo tempo tenta ser boazinha com as
crianças. Costuma agradar as crianças em sala, seja dando algum brinquedo ou uma bala
para chupar. No entanto, os limites precisam ficar bem claros para que as atividades
aconteçam de forma adequada. As crianças precisam saber que tem hora para falar, hora
para fazer as atividades e hora para brincar. P3 disse que não costuma ter dificuldades com
as crianças, uma vez que sempre estabelece as regras da sala de forma clara.
154
10. O conceito de moral
Entrevistadora: O que você entende por moral ou moralidade?
P3: Moral ou moralidade? Eu penso na pessoa que tem caráter, que é boa, honesta,
que respeita as outras pessoas. Isso é no que eu penso quando se fala de moral. Para
mim moral se refere a uma pessoa que tem caráter, que tem personalidade positiva
e não negativa.
Ao falar sobre o conceito de moral, P3 enfatizou a dimensão subjetiva do mesmo.
Ou seja, ela se referiu à moral como uma opção individual que determina a postura da
pessoa perante os outros e o mundo em que vive. A entrevistada tamm enfatizou que a
moral deve ser vista como o respeito pelas outras pessoas para uma convivência
harmônica.
Além disso, a professora enfatizou que a pessoa precisa ter discernimento para
enxergar o que é certo e errado moralmente e ser capaz de seguir determinadas regras que
permitem o bom convívio entre todos, mesmo que essas regras não sejam seguidas por pela
maioria dos indivíduos. Para exemplificar essa questão, a entrevistada se referiu a regras
simples como não jogar coisas pela janela para não machucar quem está passando, e não
colocar as pessoas em risco no trânsito. Ao complementar o conceito de moral referido
num primeiro momento, a professora ressaltou a dimensão normativa do mesmo e chamou
a atenção para o sujeito consciente da ação moral.
Como exemplo de ações que podem ser consideradas certas ou erradas moralmente,
P3 colocou as seguintes:
-A honestidade. (Certo)
-O respeito pelas outras pessoas, pelo modo de ser do outro e pelos valores do
outro. (Certo)
-Desonestidade. (Errado)
-O desrespeito pelas pessoas. (Errado)
-O desrespeito pelas regras para o bom convívio. (Errado)
A entrevistada enfatizou que essas ações são certas ou erradas em todas as
circunstâncias. Entretanto, e devido às características da sociedade atual, fazer o certo
moralmente nem sempre gera uma situação positiva para a pessoa. A professora colocou
como exemplo a honestidade. De acordo com ela, muitas pessoas honestas não conseguem
progredir justo por serem honestas e fazer o que acham ético e correto.
155
De acordo com a entrevistada, existem diferenças entre regras morais e convenções
sociais, uma vez que as segundas nem sempre se referem a questões de moralidade. Mas,
determinadas convenções sociais podem estar relacionadas de alguma forma com a
moralidade, pois por trás delas subjaz o respeito pelo outro.
11. O conceito de desenvolvimento moral
Entrevistadora: O que é para você desenvolvimento moral?
P3: É desenvolver o caráter, ter bom caráter. Para desenvolver isso, você precisa de
pessoas que tenham limites, perto de você... Senão não consegue desenvolver. Ter
organização... No caso das crianças tem sempre que estar conversando, dizendo
não, dizendo sim. Quando você precisa dizer não, tem que dizer não e ser firme,
porque elas testam o tempo todo... assim, o limite que a gente está colocando para
elas.
O conceito de desenvolvimento moral colocado por P3 está em consonância com o
conceito de moral analisado anteriormente, salvo quando trata da moral enquanto
problemas relativos à sexualidade e regras voltadas para a disciplina. Uma vez que a moral
se refere à opção individual que determina a postura da pessoa perante os outros e o mundo
em que vive, o desenvolvimento moral pode ser entendido como o processo necessário
para desenvolver essa postura. De acordo com as palavras da professora, esse
desenvolvimento é possível na interação com o outro, que coloca os limites de forma clara.
A criança, para seu desenvolvimento moral, precisa desses limites firmes, colocados
através da conversa.
De acordo com a professora, a criança desenvolve a moralidade no convívio com
outras pessoas, no dia-a-dia. A família tem um papel fundamental nesse processo, embora
atualmente muitas famílias tenham dificuldades na hora de colocar os limites para as
crianças. Segundo a entrevistada, alguns pais delegam essa tarefa para a escola. Inclusive,
muitos solicitam diretamente que o professor cumpra essa função devido à dificuldade da
família. Outras instâncias como a escola e a comunidade podem participar desse processo
de desenvolvimento, mas a família tem o papel primordial. Para um melhor resultado em
termos de desenvolvimento moral, é necessário que a família, a escola e a comunidade
estejam integradas, todas trabalhando juntas e na mesma direção.
A partir das idéias anteriores, a professora enfatizou que a instituição de Educação
Infantil participa no processo de desenvolvimento moral da criança. Para ela, essa
participação é cotidiana e acontece através das intervenções relacionadas com o
comportamento das crianças. Quando o professor estabelece as regras e limites, está
156
trabalhando na direção do desenvolvimento da moralidade. Então, o professor precisa
prestar atenção nessas questões e chamar a atenção das crianças sempre que for necessário.
A fala de P3 enfatizou duas questões importantes. Por um lado, o papel ativo do
adulto no processo de desenvolvimento moral. Cabe à família, à escola e à comunidade
colocarem os limites necessários para a criança, que deve adequar se comportamento aos
mesmos. Por outro lado, o desenvolvimento moral ficou restrito à aprendizagem dessas
regras e limites, que vão canalizar as ações da criança em uma direção determinada.
Embora a entrevistada se referisse à dimensão subjetiva da moralidade em um primeiro
momento, ao longo de sua fala acabou prevalecendo a dimensão normativa e
comportamental da mesma, parecendo desconhecer as contribuições da psicologia para o
desenvolvimento moral.
12. Percepção da prática pedagógica (Análise das situações hipotéticas do roteiro)
Ao analisar as situações hipotéticas relacionadas com conflitos, a entrevistada
ressaltou estratégias de interferência diferentes às colocadas no começo da entrevista. Uma
das situações colocadas envolvia um conflito pela posse de um brinquedo, o qual foi
resolvido através da agressão física. A partir da situação específica, a professora explicou
que interferiria diretamente na situação, conversando com as crianças envolvidas no
conflito. Primeiro, perguntaria sobre o acontecido, para esclarecer a situação. Após esse
esclarecimento, ressaltaria para as crianças a inadequação de seus comportamentos e diria
como solucionar o conflito. De acordo com a professora, isso é o que ela costuma fazer em
sala de aula.
Em situações de transgressão de regras, a entrevista enfatizou as estratégias de
interferência colocadas anteriormente. Ela conversaria com as crianças sobre a
transgressão e sobre a regra. Quando o transgressor é uma criança, a conversa deve ser
individual. Quando o transgressor é o grupo todo, a conversa deve ser coletiva.
Dependendo da gravidade da situação, as crianças podem ficar sem uma atividade
prazerosa, para que elas possam perceber que suas ações foram inadequadas.
Com o intuito de ilustrar melhor a questão anterior, colocamos a resposta da
professora diante de uma situação hipotética, na qual um grupo de crianças tinha rabiscado
os desenhos do mural, na hora de sair para o recreio:
...Então, eu vou conversar com todo mundo e eles vão usar o tempo do recreio para eles...
Como eu te disse, eu sou bem enérgica. Eu volto com eles e o tempo do recreio... eu vou
usar para, justamente, levar eles a perceber que está tudo errado. Eles vão perder o recreio.
Quando eu acabar de falar, que eu sei que vou falar bastante, o tempo do recreio já acabou,
157
eu vou pegar o tempo do recreio. Por quê? Porque quando eles estavam rabiscando, já tinha
alguém que ter ido me chamar e não ficar rabiscando... Eu já vou fazer de uma maneira que
eles vão perder o recreio. No final, eu vou falar: Não passou o tempo do recreio? Passou.
Que que aconteceu? A gente não estava resolvendo? Estava. Então, ficamos resolvendo e
acabaram perdendo o recreio.
Ao analisar as situações de desrespeito, P3 ressaltou como melhor estratégia a
conversa com as crianças sobre o respeito com o colega e o respeito pelas diferenças
pessoais. De acordo com ela, essa conversa deve acontecer antes de qualquer incidente. Se
for possível, no começo do ano letivo o professor deve conversar com as crianças, para que
elas comecem entender que é necessário respeitar as outras pessoas.
De acordo com a entrevistada, essas estratégias estão em consonância com a
proposta pedagógica da escola. Também estão em consonância com as regras e
combinados estabelecidos com o grupo de crianças no começo do ano letivo, e com o
trabalho que ela realiza em sala de aula. Na discussão, entretanto, consideramos as
convergências discurso-prática de P3, bem como questionamos suas contradições e
ambigüidades.
3. Análise das Observações e Entrevistas com Demais Professoras do Turno Matutino
3.1. Análise de Episódios das Sessões de Observação Direta
Professora: P1, 18 anos de experiência em educação, 5 anos na Educação Infantil
Dados Gerais da Sessão 1
Horário e tempo: 7h – 11h (4 horas de observação)
Local da observação: Diferentes espaços da escola
Atividades: Chegada na escola; Formação; Sessão de filme; Brincadeira livre no parque;
Lanche; Escovação.
Episódio I – “Vamos lembrar o que a gente já combinou”
ATIVIDADE: Sessão de filme. As crianças foram da sala da turma até a sala de apoio e ludoteca
em fila, uma atrás da outra, com a mão esquerda estendida e tocando o ombro do colega da frente.
Entraram na sala de apoio e a professora solicitou que sentassem no chão, frente à televisão.
Enquanto as crianças se organizavam, a professora tomou as providencias necessárias para passar o
filme levado por uma criança. Algumas crianças procuravam onde sentar, outras conversavam e se
movimentavam pelo espaço.
TEMPO: 8h12 (Horário Inicial do Episódio)
PROFESSORA – P1 CRIANÇAS
01:12
P1: Todo mundo está sentado? Vamos sentar para
assistir.
As crianças que estavam em pé foram
sentando.
158
P1: Pronto? Todo mundo sentado? (Olhando para
as crianças.)
P1: Então vamos lembrar o que a gente já
combinou. Pode estragar as carteiras e mesas?
P1: Pode jogar papel no chão?
P1: Pode bagunçar e mexer nos brinquedos?
P1: Pode falar alto?
P1: Então todo mundo controle o corpinho, que o
filme já vai começar. Lembrem que a boquinha
faz parte do corpinho.
A professora apertou o play e o filme começou.
P1: Psiu! M7, é para deixar o colega escutar.
A professora sentou em uma cadeira, perto do
grupo de crianças.
Algumas crianças responderam que sim.
Crs: Não!
Crs: Não!
Crs: Não!
Crs: Não!
M7: Eh!
M8: Eh!
As crianças fizeram silêncio, para assistir o
filme.
No primeiro episódio, a interação da professora com as crianças se centrou na re-
apresentação e confirmação de um conjunto de regras que haviam sido anteriormente
combinadas com a turma. Essas regras estavam relacionadas, principalmente, com o uso do
espaço e com a manutenção da organização do mesmo: não estragar as carteiras e mesas,
não jogar papel no chão, não bagunçar e mexer nos brinquedos e não falar alto. Durante o
episódio, os motivos pelos quais essas regras específicas eram importantes para o grupo e
para a atividade não foram colocados pela professora.
Para re-apresentar e confirmar as regras, a professora optou por perguntar às
crianças se elas podiam realizar determinadas ações na sala. A forma como foram
realizadas as perguntas (“Pode jogar papel no chão?... Pode bagunçar e mexer nos
brinquedos?”), junto com o fato de serem regras conhecidas pelo grupo, canalizou a
resposta das crianças, que sempre responderam de forma negativa e de acordo com as
expectativas da professora. Nesse sentido, a fala da professora foi uma estratégia eficaz
para lembrar as regras que ela selecionou como importantes naquele contexto. No entanto,
prevaleceu uma atitude de passividade das crianças em relação à ação da professora. Como
159
podemos observar no protocolo de registro, a professora colocou as regras e a ação das
crianças se limitou a concordar com o que já tinha sido estabelecido em momentos
anteriores. Além disso, o tom mecânico e monótono das respostas das crianças indicou o
pouco envolvimento pessoal delas na re-apresentação e confirmação das regras.
No episódio, algumas falas da professora (“Então todo mundo controle o corpinho,
que o filme já vai começar. Lembrem que a boquinha faz parte do corpinho”), assim como
as demais regras, indicaram ênfase na disciplina e no controle do comportamento das
crianças, entendidas, geralmente, como fatores importantes para garantir o sucesso da
atividade realizada (Lima, 2000; Salomão, 2001).
Dados Gerais da Sessão 6
Data: 03/03/2008
Horário e tempo: 7h30 – 11h (3 horas e 30 minutos de observação)
Local da observação: Pátio interno e sala de aula
Atividades: Formação; Roda de história; Atividade psicomotora; Desenhando as partes do
corpo; Lanche; Escovação
Episódio I – “Senta ali!”
ATIVIDADE: Desenhando as partes do corpo. A professora solicitou que as crianças sentassem
nas cadeiras, pois ela precisava procurar e organizar o material para a atividade de desenho. As
crianças foram sentando e formando pequenos grupos, de forma espontânea. Elas começaram
interagir, enquanto esperavam o começo da atividade.
TEMPO: 8h50 (Horário Inicial do Episódio)
PROFESSORA – P1 CRIANÇAS
01:20
A professora olhou para M7 e M10.
P1: Você pode sentar na outra cadeira.
P1: Ontem você sentou aí. Não tem problema
sentar em outro lugar.
A professora foi até M7.
P1: Senta ali! (Apontando para a outra cadeira, que
estava vazia.)
A professora continuou procurando e organizando
o material da atividade.
M9, M10 e M13 sentaram juntos em uma
mesa.
M7 foi até M10.
M7: Eu vou sentar aí, é meu lugar.
M10 continuou sentado na cadeira, olhando
para M7.
M7: Mas eu quero sentar aqui.
M7: Eu quero aqui!
M7 sentou na cadeira indicada pela
professora.
160
M7: Eu não sou mais o seu amigo. (Falando
com M10.)
No primeiro episódio da sessão 6, as ações da professora e das crianças estavam
voltadas para a organização da atividade. Nesse contexto, aconteceu um conflito entre M7
e M10, que queriam sentar no mesmo espaço. A intervenção da professora no conflito
esteve voltada para apresentar uma forma de resolução do mesmo, sem a participação ativa
das crianças. A professora interveio no primeiro momento sugerindo que M7 sentasse em
outra cadeira, uma vez que ele tinha sentado no dia anterior no espaço disputado. Diante da
recusa da criança, a sugestão da professora chegou de forma imposta (“Senta ali!”), e sem
a possibilidade de negociação por parte das crianças.
Neste episódio, como em episódios anteriores, apareceram várias questões que
podem ser significativas para o desenvolvimento moral: a posição central assumida pelo
adulto em relação ao conflito das crianças, a pouca participação das crianças em sua
própria situação de conflito e a pouca possibilidade de co-construção de estratégias
conjuntas para a resolução da situação. Além disso, o episódio traz um elemento novo
relacionado com a possível sensação de injustiça, quando o conflito é resolvido desde uma
perspectiva assimétrica.
A sugestão da professora foi acatada por M7, que sentou na cadeira indicada. No
entanto, o conflito longe de se resolver, tomou outra direção. A fala de M7 (“Eu não sou
mais o seu amigo.”) indicou uma ruptura na relação das crianças em função do conflito e
da forma de resolução dada para o mesmo. Além disso, indicou a insatisfação da criança
em relação à resolução da situação de conflito, assim como pouco entendimento em
relação aos motivos pelos quais ele deveria sentar em outra cadeira. Questões relacionadas
ao fato de não ter um espaço pré-estabelecido para as crianças sentarem, e o direito das
crianças escolherem os lugares onde elas vão sentar não foram apresentadas, nem
discutidas nesse contexto. Em função disso, a solução dada pode ter aparecido para a
criança como uma solução arbitrária e injusta que não levou em conta seus desejos em
detrimento dos desejos do outro. Uma vez que as crianças não podem compreender todas
as ações do adulto, isto que pode gerar uma sensação de incompreensão e injustiça, sendo
importante esclarecer o problema sob todos os ângulos e com a participação das crianças
(DeVries & Zan, 1998).
161
Episódio II – “Isso é feio e não se faz!”
ATIVIDADE: Desenhando as partes do corpo. A professora procurava e organizava o material
para a atividade de desenho. As crianças estavam sentadas nas cadeiras e em pequenos grupos. Elas
interagiam, enquanto esperavam o começo da atividade.
TEMPO: 8h52
PROFESSORA –P1 CRIANÇAS
01:22
A professora estava procurando e organizando o
material da atividade de desenho, de costas para as
crianças.
A professora olhou para M11.
P1: M11, não pode bater no amigo, nem o amigo
em você. Isso é feio e não se faz!
A professora continuou organizando o material.
P1: Gente pronto! Venha todo mundo para pegar o
material.
M8 e M11 estavam sentados juntos,
brincando de luta. Eles faziam de conta que
um batia no outro com espadas.
M11 bateu sem querer no rosto de M8.
M8 levantou e foi até a professora.
M8: M11 me bateu.
M8 voltou para seu lugar e continuou
brincando de luta com M11.
As crianças foram levantando para pegar o
material da atividade.
Embora no segundo episódio da sessão não se estabeleça uma divergência
específica entre as crianças (M8 e M11), o episódio mostrou-se interessante para nosso
estudo em função da intervenção da professora diante da queixa de M8.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a intervenção da professora não
esteve orientada para mediar e esclarecer a situação que não foi proposital, mas que
aconteceu em função da brincadeira das crianças. Como podemos observar no protocolo de
registro e análise, a professora (que estava de costas para M8 e M11) não tentou esclarecer
o acontecido, interferindo com M11 a partir da queixa de M8.
A intervenção da professora com M11 reduziu-se a lembrar duas regras
relacionadas com o cuidado e respeito pelo outro. No entanto, as duas regras foram re-
apresentadas de forma mecânica e desconexa dos motivos sociais e morais que subjazem
às mesmas. Elas foram re-apresentadas a partir de um julgamento de valor (“Isso é feio e
não se faz!”) da suposta ação da criança. Esse julgamento de valor (feio ou bonito, se faz
ou não se faz) pode ter uma relação maior com questões de polidez do que com questões
de moralidade (certo e errado, bom ou ruim). Enquanto a polidez lida com o ‘que se faz’
162
em determinado grupo social (La Taille, 2001), a moralidade lida com critérios de
julgamento, segundo os quais podemos analisar criticamente as ações humanas em relação
a nós mesmos e aos outros. Esses critérios nos permitem julgar o que é certo ou errado,
bom ou ruim, justo ou injusto para o ser humano (Freitag, 2005).
Ainda em relação à intervenção junto às crianças, é importante sublinhar que a não
intervenção com a criança aparentemente atingida (M8) pode acabar reforçando a
dependência da criança na hora de resolver possíveis conflitos com seus pares. O fato da
criança ter solicitado a intervenção da professora pode ser considerado como um indicador
de poucas habilidades ou estratégias para resolver a situação, sem o auxilio do adulto.
Sendo assim, podia ser importante a mediação do adulto no sentido de ajudar a criança
procurar estratégias de resolução e desenvolver habilidades interpessoais diferentes de
transferir a responsabilidade para uma figura de autoridade.
Professora: P2, 15 anos de experiência em educação, 8 anos na Educação Infantil
Dados Gerais da Sessão 2
Data: 26/02/2008
Horário e tempo: 7h32 – 11h (3 horas e 28 minutos de observação)
Local da observação: Diferentes espaços da escola
Atividades: Formação; Atividade psicomotora; Brincadeira livre na casinha; Lanche;
Escovação
Episódio I – “Tem que dividir!”
ATIVIDADE: Brincadeira livre na casinha. As crianças e a professora estavam no espaço da
casinha. As crianças brincavam com diferentes brinquedos e materiais. A professora estava sentada
ao lado de uma mesa, recortando material pedagógico para uma atividade.
TEMPO: 9h06 (Horário Inicial do Episódio)
PROFESSORA – P2 CRIANÇAS
01:34
A professora estava sentada na cadeira, recortando
material. A professora olhou para F1 e F2, que
estavam na frente dela.
P2: Tem que dividir.
F1 brincava com um carrinho de bonecas. A
brincadeira consistia em empurrar o carrinho,
que tinha uma boneca dentro.
F2 estava com uma boneca na mão, e
aproximou-se de F1.
F2: Me dá o carrinho para passear a minha
boneca.
F1 foi até a professora, com o carrinho na
mão.
F2 foi detrás de F1.
F1: Tia, todo mundo quer o carrinho. Eu
quero brincar com ele.
F2: Mas as outras pessoas também querem
163
P2: Então, é porque tem que dividir.
P2: Escuta! O que eu disse que tem que fazer!?
P2: Muito bem F1! É isso aí! Tem que dividir.
A professora continuou recortando o material.
brincar.
F1: Mas todo mundo fica pedindo.
F1: Tem que dividir.
F1 ficou parada, olhando para a professora.
F2 pegou o carrinho.
F1 e F2 voltaram para o lugar onde estavam
brincando.
F2 foi até F3, deixando o carrinho sozinho.
F1 pegou o carrinho de volta e começou
brincar.
F2 voltou, olhou F1 com o carrinho e ficou
brincando com a boneca.
No episódio I da sessão 2, duas crianças da turma (F1 e F2) tiveram um conflito em
função de um objeto. F1, que estava com o carrinho, pediu a ajuda da professora, que
acabou assumindo um papel central na resolução da situação.
A professora lembra às crianças que a regra é dividir os brinquedos. A regra foi
repetida por ela várias vezes sem outra elaboração, apesar das crianças indicarem, através
de suas falas, falta de compreensão de como isto poderia ser feito. As colocações de F1
indicaram que ela acatou as orientações da professora, mas as meninas não foram brincar
juntas, e o carrinho de bonecas foi para F2. O final do episódio, quando F1 tomou de volta
o carrinho, indica que o conflito foi resolvido com F2 desistindo do carrinho.
A professora interveio de forma ineficaz, pois apenas lembrou a regra e não sugeriu
como esta poderia ser cumprida. Através de sua fala (“Escuta! O que eu disse que tem que
fazer!?”) metacomunicou sua desaprovação em relação às ações de F1, que não queria
emprestar o brinquedo. Essa desaprovação gerou a desistência imediata do carrinho, o que
foi alvo de elogios. P2 poderia ter sugerido que as meninas brincassem juntas, cooperando,
mas não o fez, prevalecendo o padrão individualista ‘um de cada vez’. Não discutiu
questões importantes como as necessidades e desejos das duas crianças, a importância de
igualdade em relação ao uso de um material coletivo e as diferentes possibilidades de
solução conjunta, como a cooperação. Ela poderia sugerir que a divergência podia ser
resolvida através de acordos voltados para a interação e brincadeira conjunta.
Nesse contexto, as crianças não tiveram a possibilidade de se colocar de forma ativa
em relação ao seu próprio conflito, sugerindo e negociando estratégias de resolução a partir
164
de suas próprias necessidades e percepções da situação. De acordo com DeVries e Zan
(1998), quando as crianças precisam de ajuda para resolver seus próprios conflitos, o
professor pode intervir mediando a situação, e encorajando a autonomia das crianças para
resolverem suas próprias divergências. Como as crianças nem sempre têm idéias quanto a
soluções, o professor pode sugerir idéias para elas. As idéias propostas, e não impostas
através de regras pré-estabelecidas, abrem o espaço para a negociação interpessoal e
permitem que as crianças percebam várias possibilidades ou estratégias sociais de
resolução de seus conflitos.
Episódio II – “Se não fizer isso, não pode participara da brincadeira!”
ATIVIDADE: Brincadeira livre na casinha. As crianças e a professora estavam no espaço da
casinha. As crianças brincavam com diferentes brinquedos e materiais. A professora estava sentada
ao lado de uma mesa, recortando material pedagógico para uma atividade.
TEMPO: 9h15 (Horário Inicial do Episódio)
PROFESSORA- P2 CRIANÇAS
01:43
A professora estava sentada na cadeira recortando
material.
A professora olhou para M9 e M10.
P2: Tem que dividir.
A professora colocou o material na mesa, levantou
rápido da cadeira e foi até M9 e M10.
P2: M9, olha para mim! Olha para mim!
P2: Você não pode bater no colega e tem que
dividir! Se você não fizer isso, então não pode
participar da brincadeira!
A professora voltou para a cadeira e continuou
recortando o material.
M9 estava empurrando um carro (tipo um
andador), pelo apoio.
M10 chegou perto de M9, segurou no apoio
do carro e empurrou M9 pelo o ombro.
M9 e M10 começaram uma disputa pelo
brinquedo, puxando o apoio de um lado para
outro.
M10: Sai!
M9: Não, não!
M9 soltou o apoio do carro e bateu no rosto
de M10.
M9 pegou novamente o apoio do carro e
olhou para a professora.
M10 soltou o apoio do carro, pegou um
rastelo do chão e saiu correndo de um lado
para outro.
M9 começou empurrar o carrinho pelo
espaço.
165
No segundo episódio da sessão, a interação entre a professora e duas crianças (M9 e
M10) também se centrou na resolução de um conflito em função de um objeto. M9 e M10,
que queriam usar o mesmo carrinho, tentaram resolver a situação através do confronto
físico. No primeiro momento, a professora lembrou a regra estabelecida com anterioridade:
tem que dividir os brinquedos. Essa intervenção foi realizada de longe (a professora
continuava sentada na cadeira) e de forma mecânica, uma vez que não teve nenhuma
tentativa por parte do adulto de saber o que estava acontecendo entre as duas crianças.
O confronto físico entre os dois meninos continuou, suscitando uma segunda
intervenção por parte da professora. O fato de M9 ter batido no rosto de M10, mobilizou a
atenção da mesma. A forma como ela levantou da cadeira (rapidamente) e falou com M9
(“M9, olha para mim! Olha para mim!”), metacomunicou sua desaprovação e
desapontamento em relação às ações da criança. Adotou uma atitude punitiva,
estabelecendo que a transgressão das regras teria como conseqüência a retirada da criança
da atividade de brincadeira. Após essa intervenção, a situação de conflito se dissipou. M10
desistiu do carrinho e M9 continuou brincando com o mesmo.
A professora assumiu o papel central na resolução do conflito, indicando para as
crianças o que elas deveriam fazer. A sugestão em relação à possível resolução da disputa
pelo objeto mais uma vez consistiu apenas em lembrar a regra e não em promover a
interação das crianças para que estas encontrassem uma forma construtiva de resolver o
conflito. Como no episódio anterior, outras formas de resolução que não a desistência de
uma das crianças (como a interação e a brincadeira conjunta) não foram sugeridas como
possíveis soluções. As intervenções da professora se centraram nas ações das crianças,
indicando uma ênfase no controle do comportamento em detrimento de questões que
podem ser significativas para o desenvolvimento moral. Questões importantes como: as
necessidades e desejos das duas crianças, a importância da igualdade em relação ao uso de
um material coletivo, as diferentes possibilidades de solução conjunta e o respeito pela
integridade física do outro, não foram discutidas nesse contexto. Dessa forma, uma
situação cotidiana, na qual as crianças estavam envolvidas de forma afetiva, não foi
aproveitada como espaço de discussão e co-construção de valores importantes sobre o
respeito, a necessidade de negociação e o bom convívio com o outro.
A atitude punitiva da professora é mais um indicador da ênfase no controle do
comportamento e disciplina. Por outro lado, é importante ressaltar que a retirada da criança
da atividade não se constituiu uma estratégia recíproca em relação ao acontecido. Uma vez
que uma das crianças foi agredida, o que pode abalar a relação entre elas, a discussão com
166
as crianças sobre algumas estratégias de compensação podia ser importante. As estratégias
de compensação podem ajudar as crianças a restituir a relação e a confiança entre elas
(DeVries e Zan, 1998).
3.2. Entrevistas Individuais
Entrevista com P1 - Caracterização
A idade de P1 é 36 anos, sendo licenciada em Pedagogia, com Especialização em
Educação Ambiental. Trabalha no turno matutino (regência) e vespertino (coordenação).
Tem experiência em educação de 18 anos, sendo 5 anos na Educação Infantil. Na escola
atual, trabalha há 5 anos. Já lecionou em turmas do 2º Período (crianças de 5 anos). No
momento atua com crianças de 4 anos.
1. Percepção da formação profissional
P1 avaliou sua formação profissional como boa. De acordo com ela, os cursos
acadêmicos foram importantes para esclarecer questões de nível teórico. No entanto, a
formação prática, aquela que acontece no dia-a-dia, foi a responsável por lhe oferecer
recursos fundamentais para o trabalho direto com a criança e para a resolução das questões
que acontecem no cotidiano escolar. A partir dessa divisão entre a formação acadêmica e a
formação prática, a entrevistada avaliou a última como mais importante.
2. Percepção da profissão
De forma geral, P1 se mostrou satisfeita com seu trabalho e com a escola. Ao longo
da entrevista, ela avaliou de forma positiva a prática e a proposta pedagógica da instituição.
Em relação às atividades cotidianas, ressaltou que ela gosta de planejar e fazer as
atividades com as crianças, pois são atividades que envolvem a criatividade por parte do
professor. Também, referiu-se de forma entusiasmada aos projetos realizados na escola.
A satisfação com a profissão também apareceu vinculada à possibilidade de
trabalhar com as crianças pequenas. A entrevistada disse que trabalha na Educação Infantil
por uma escolha pessoal. Já teve a oportunidade de trabalhar com crianças de outras faixas
etárias e no Ensino Especial. Todas essas experiências foram importantes para ela, mas se
adaptou melhor ao trabalho com as crianças pequenas. De acordo com ela, as crianças
menores são mais receptivas e dão um retorno maior do trabalho para o professor. Além
disso, as crianças mais novas são mais moldáveis do que as crianças de 4ª. ou 5ª. Séries,
que costumam criar atrito com o professor, desrespeitando-lo.
Em relação às questões anteriores, a fala da entrevistada foi a seguinte:
167
...a Educação Infantil... ela parece que tem mais jeito, assim, da gente colocar, assim, um
pouco de... de valores. Você colocar mais aquela coisa de virtudes. Com os meninos
menores, eu acho mais fácil... eu acho mais fácil. Porque com os meninos adolescentes, por
exemplo, eu já sou baixinha. Então, e eles são maiores que eu, e eles já não têm aquele...,
aquele... aquela coisa que vem de casa, de respeitar, de saber calar. Então, o professor, para
eles, é apenas um... um..., é como se fosse, assim, um empregado deles. Muitos
adolescentes vêm assim, né? Mandam o professor calar a boca, eu já vi isso na Ceilandia,
meninos assim, da 4ª. e 5ª. Série, meninos que batem com você, assim, de testa. Então,
assim, eu não tenho esse chamado para trabalhar com criança maior. Porque as crianças
menores, elas já pegam, você já coloca mais valores, já vai moldando mais. Sabe aquele...
aquele ditado que meu avô dizia, que é de pequeno que coloca na linha, coloca no trilho?”
3. Definição de criança e infância
Ao definir criança e infância, P1 enfatizou que entre os dois termos existe uma
diferencia relacionada com o conceito de fase de vida e as características dessa fase. Em
função disso, o termo criança se refere a uma fase de vida pela qual todas as pessoas
passam:
...A criança eu vejo como aquele..., aquela fase... aquela fase que todo mundo é criança, eu,
tu, você, todo mundo é criança”. Já o termo infância está relacionado com as características
e necessidades típicas da fase: “...A infância já é aquela coisa do..., do..., do fazer
acontecer, do sonho, daquela coisa de... de imaginar, tem muita imaginação.
Sendo assim, a entrevistada ressaltou que: “... Nem toda criança tem infância, né?
Todo mundo passa..., todo mundo é criança, mas nem todo mundo tem infância, nem toda
criança tem infância, né?”. Para complementar essa idéia, a professora comparou as
possibilidades e condições de crianças que são marginalizadas e não têm a oportunidade de
freqüentar a escola, com as possibilidades e condições de crianças que têm oportunidades
diferentes.
4. Definição de Educação Infantil
P1 definiu a Educação Infantil como um período da educação, que tem conteúdos
próprios. Conteúdos que vêm ao encontro tanto da fase do desenvolvimento (criança)
como das características e necessidades típicas dessa fase (infância). Todos esses
conteúdos fazem da Educação Infantil um passo de preparação para a educação posterior.
Na fala de P1, a Educação Infantil apareceu como um período da educação
extremamente importante para a criança, uma vez que na Educação Infantil a criança tem a
possibilidade de realizar um conjunto de atividades voltadas para o desenvolvimento
cognitivo e motor. Para complementar e sustentar essas idéias, a entrevistada colocou
168
exemplos da sua experiência profissional e fez uma avaliação dos ganhos da criança que
freqüenta uma instituição de Educação Infantil, durante o período de tempo estipulado para
a mesma. De acordo com ela, é visível o desenvolvimento da criança que fez o percurso
completo da Educação Infantil (4, 5 e 6 anos de idade), quando comparada com a criança
que não fez esse percurso completo.
Ao falar sobre os principais objetivos da Educação Infantil, P1 ressaltou que um
dos objetivos prioritários no momento é a socialização da criança, entendida como: “... o
brincar, o fazer, o brigar, o disputar o brinquedo, saber... saber deixar o colega brincar,
saber escutar a vez do colega, essas coisas todas”. O outro objetivo principal da Educação
Infantil seria o desenvolvimento motor em termos de: “...adquirir coordenação motora,
coordenação corporal, fina, grossa, controlar seu corpo. Essas coisas assim...”.
5. Rotina do dia-a-dia
P1 descreveu um conjunto de atividades diversificadas, que vêm ao encontro das
questões levantadas por ela na categoria de análise anterior. Sendo assim, as atividades de
psicomotricidade, a brincadeira livre no parque, as atividades de desenho, pintura e
modelagem, dentre outras, fazem parte do dia-a-dia de sua turma. Nessas atividades, as
crianças não só desenvolvem as habilidades motoras ressaltadas por ela anteriormente,
como também precisam interagir e compartilhar.
Em função disso, todas essas atividades são importantes para a socialização da
criança. De acordo com P1:
...Eu vejo a importância de todas. Vejo a importância das atividades que a gente faz em
sala, mexer com tinta, pintar, colorir, deixar usar o material pelo grupo. Na casinha, às
vezes, um quer um brinquedo e o outro também, tem que falar: Tem que esperar. Tem que
saber esperar. Porque o amigo também tem que brincar, ele já pegou primeiro que você,
depois você troca. Aí, no inicio, é sempre assim, eles choram. Aí, depois, eles acabam
aprendendo que aquilo ali..., eles têm que esperar. Não tem como a gente ter 23 cavalinhos,
um para cada um. Até pelo objetivo, né? De saber dividir, de saber fazer a partilha. É, é
importante essas brincadeiras, porque aí eles aprendem que o espaço não é só para eles,
que eles têm que dividir, que vai ter que ceder a vez para o colega, que não pode quebrar
um brinquedo, se ele quebrar vai estar quebrando um brinquedo que não é dele, é da
escola. Eu vejo a importância nisso tudo. No parquinho, não jogar areia no outro, saber
brincar direito, saber brincar com o colega, ou, então, saber brincar sozinho. Obedecer
regras. Então, assim, eu vejo a importância em tudo, em todos os acontecimentos que
acontecem, eu vejo a importância de cada um.
Quando questionada sobre a relação das atividades do dia-a-dia com o
desenvolvimento moral da criança, P1 esclareceu que, no seu ponto de vista, algumas das
atividades podem ser importantes para o desenvolvimento moral, pois nelas surgem
169
questões relacionadas com a moralidade. Para explicitar sua idéia, a professora relatou o
seguinte exemplo:
... Ah, muitas delas. Brincar, por exemplo, aqui na casinha. É..., é..., eles brincam de
casinha. Aí, assim, tem aqueles que não aceitam brincar de casinha porque ele é homem. E
outros já brincam de casinha, junto com as meninas, né? Aí, sempre aparece: Tia, fulano é
mulherzinha! Que ele está brincando de casinha! Aí fala: Não! Brincar de casinha não
significa que ele é mulherzinha! Seu pai não ajuda sua mãe em casa? Aquele que tem, né?
Que mora junto ao pai. Seu pai ajuda sua mãe em casa? Ajuda. E então, seu pai é
mulherzinha? Não! Não, ele não é mulherzinha, não! Poe ser! Fazer coisa de casa não
significa que é mulherzinha. Sua amiga pode brincar com carros. Significa que ela virou
homem? Só pode pegar em carro quem é homem? Eu tenho carro, eu dirijo meu carro. Eu
sou homem? Não! Você é mulher. Então, é proibido mulher dirigir? Não. Então é! Tem
essas coisas, assim, que eles vêem como uma..., aquela coisa, de..., assim, ou é para
homem ou é para mulher, né?.
Antes de passar para a próxima categoria de análise, gostaríamos de ressaltar um
ponto relevante que surgiu nas respostas da entrevistada, e que versa sobre a relação entre
o processo de socialização e o desenvolvimento moral da criança. Ao falar sobre as
atividades da rotina e a importância das mesmas, a entrevistada desvinculou o processo de
socialização e o desenvolvimento moral da criança. A socialização apareceu relacionada à
interação entre as crianças e, especificamente, aos comportamentos sociais voltados para
dividir e compartilhar com o outro. A possibilidade de respeitar determinadas regras
também foi colocada como elemento importante da socialização. Já o desenvolvimento
moral apareceu como um aspecto relacionado com questões de gênero e sexualidade,
desvinculado completamente do processo de socialização da criança.
6. Planejamento
Sobre o planejamento das atividades realizadas em sala e na escola como um todo,
P1 colocou que a maior parte do planejamento é realizado em conjunto e de forma
coordenada pela equipe pedagógica, mas que cada professora planeja, também, atividades
específicas para sua turma. A professora especificou que, na época da pesquisa, planejava
muitas atividades sozinha e outras junto com a professora do mesmo período, no turno
contrário, trocando idéias importantes para o trabalho com aquela faixa etária específica.
As atividades planejadas em conjunto se organizam por temas ou em projetos
relacionados com as datas comemorativas. No caso específico de sua turma, a professora
colocou que as atividades desses projetos são adequadas à faixa etária das crianças, que são
as mais novas da escola. De forma geral, o interesse das crianças é levado em conta na
hora de planejar atividades específicas.
170
Sobre a organização das crianças nas atividades, a entrevistada relatou que as
crianças costumam trabalhar em pequenos grupos e em roda. Os pequenos grupos se
formam espontaneamente, de acordo com as afinidades das crianças. No entanto, em
alguns momentos ela precisa realizar trocas, para evitar conflitos.
7. Regras
De acordo com P1, em sua sala existemrias regras a serem respeitadas pelas
crianças. A maioria das regras está relacionada com os horários da rotina, algumas têm
como função evitar tumultos e respeitar os colegas. De acordo com a fala da entrevistada,
algumas dessas regras são as seguintes: Ir ao banheiro um de cada vez; toda vez que for ao
banheiro tem que lavar a mão e dar descarga; não sair da sala sem a tia saber; respeitar o
horário de lanche, pois não pode ficar comendo a toda hora; esperar os horários das
atividades (parque, casinha, vídeo); dividir o material; saber escutar a vez do colega; saber
brincar direito; não jogar areia no outro; não subir pela rampa do escorregador, subir pela
escada; cuidar os brinquedos; guardar os brinquedos da sala.
A professora referiu que a definição dessas regras aconteceu logo na primeira
semana de aula, no espaço da roda. De acordo com ela, as crianças participaram desse
momento e chegaram colocar algumas regras como: “...Tia, verdade que não precisa
chorar. Porque a gente não precisa pedir para ir embora mais cedo, né? Porque a mãe vem
buscar tal hora, né? ... Tia, não é que não precisa ficar abrindo a porta toda hora e sair da
sala?”. Em relação às outras regras, a professora esclareceu:
...Nós definimos com eles. Assim, eu dou a idéia, né? Eu dou a idéia. Você vai no banheiro
todo mundo lá, na sua casa, quando você vai no banheiro? Vai seu pai, sua mãe, sua avó,
seu irmão? Todo mundo, lá na sua casa, vai junto no banheiro? Não. Então, aqui, também é
a mesma coisa. Falo assim: Você vai no banheiro sozinho. Você vai lavar a mão. Você vai
dar descarga no vaso. E, depois, você volta para o lugar.
Em relação à possibilidade de modificar as regras, P1 especificou que nunca tinha
pensado nessa questão, mas que era possível:
...Olha, eu acho que pode. Eu acho que não tem nenhum problema, não. Assim..., de...
Agora, assim, modificar... Eu, geralmente, vou até o final do ano com essa mesma coisa:
Não entrar dois no banheiro. Você está fazendo xixi? Então, espera teu colega terminar,
vestir a roupa dele. Isso aí, a gente, geralmente, vai até o final do ano com as regras
estabelecidas no inicio: Não jogar areia no outro. Né? Aí sim, no final do ano, um... aí já
aprenderam, ninguém joga areia, ninguém faz nada. Assim, se é alguma coisa que não há
mais necessidade, eu acho que não teria nenhum problema de..., da gente rever as regras,
né? Agora, geralmente, nós vamos até o final do ano com o que foi iniciado. Os
combinados que a gente fez no inicio.
171
Sobre os principais mecanismos para garantir o respeito pelas regras, a professora
explicou dois, especificamente. De acordo com ela, o principal mecanismo usado quando
há transgressão de uma regra é conversar com a criança. Essa conversa, geralmente,
acontece várias vezes e é no sentido de lembrar a regra e explicar os motivos da mesma.
Quando a transgressão da regra provoca um machucado, a estratégia usada é
conversar com a criança, lembrar a regra e explicar que ela não está brincando direito, pelo
que precisa sair da atividade e refletir sobre o acontecido. P1 relatou o que ela diria para as
crianças nesse momento:
... Agora, se está jogando areia no outro colega: Se você jogar mais uma vez, a tia vai tirar
você do parque. Porque é legal areia no seu olho? Não! Então, não faça isso com o colega.
Ah! Tá jogando de novo?! Porque tem uns que vão para o parque e joga areia no outro
cinco ou seis vezes, e é aquela coisa que não pára, né? Então, assim: Você vai ficar sentado
aqui com a tia. Você vai ficar aqui, oh! 20 minutos sentado com a tia, pensando no que
você fez. Se é certo! Oh! O colega está com o olho vermelho por causa da areia. Isso é
certo? Não! Aí, passa uns 10 minutos: Já deu, pode voltar. Agora, se você jogar de novo
você vai ter que sair do parque. Porque não está brincando. Você não está obedecendo o
que a gente combinou! A gente não combinou isso.
Neste ponto da análise, é importante remarcar algumas questões relacionadas com
as regras da turma e com a definição das mesmas. A própria entrevistada esclareceu que as
regras da sala são definidas anteriormente pelos adultos da escola e que ela mesma dá a
idéia ou coloca essas regras de forma indireta. Sendo assim, a participação das crianças
nesse momento se restringe a concordar ou confirmar as regras que já foram estabelecidas
e que aparecem de forma desvinculada das interações concretas delas. Por outro lado,
várias das regras referidas pela entrevistada são regras voltadas para a organização da
rotina e do espaço, refletindo mais as necessidades do adulto do que as necessidades das
crianças, que colocariam regras em outro sentido.
Nos exemplos oferecidos pela professora, duas questões chamam a atenção. A
primeira é que na fala da professora, os motivos das regras não ficaram claros, mesmo
quando as regras estão relacionadas com o respeito e cuidado com o outro. A segunda é
que, nos momentos de transgressão, a conversa com as crianças parece estar orientada para
garantir a obediência da regra e não para explicar os motivos da mesma.
8. Conflitos
Para a entrevistada, os conflitos interpessoais fazem parte do desenvolvimento da
criança pequena, sobretudo aqueles que surgem em função de objetos. Esses conflitos
geram crescimento e colocam diante da criança o desafio de resolvê-los de uma forma
172
adequada. A partir de sua experiência, P1 esclareceu que no começo do ano esses conflitos
acontecem com mais freqüência, demandando mais intervenções por parte do adulto. Já no
final do ano, as crianças têm menos conflitos porque conseguem dividir melhor os
materiais e brinquedos.
Entre os conflitos mais comuns entre as crianças de sua turma, P1 assinalou os
conflitos pelos brinquedos e pelo espaço. De acordo com ela, esses conflitos surgem, na
maioria das vezes, porque as crianças estão aprendendo compartilhar. Outros conflitos
comuns são os atritos físicos como cuspir no outro, empurrar, unhar e bater com um
brinquedo. Esses últimos demandam maior atenção.
Sobre a melhor forma de lidar com os conflitos entre as crianças, P1 colocou que o
ideal é deixar um espaço para que as crianças tentem resolver suas divergências entre elas,
sem a interferência imediata de um adulto. Se as crianças não conseguirem resolver
sozinhas, se faz necessária a interferência do adulto para ajudá-las. Neste ponto, é
importante enfatizar que a fala de P1 é contraditória com sua prática pedagógica. Nos
episódios de conflitos analisados, a entrevistada assumiu o papel central na resolução dos
conflitos, indicando para as crianças o que elas deveriam fazer.
Quando o conflito tem como conseqüência um machucado, o professor deve
intervir lembrando os combinados e esclarecendo que as ações da criança não estão certas.
Além disso, a criança precisa sair da atividade e refletir sobre o acontecido, como
explicitado anteriormente.
9. Percepção da relação professor-criança
A entrevistada avaliou sua relação com as crianças da turma como muito boa. De
acordo com ela, recebe muitas declarações de carinho e afeto por parte das crianças. Em
vários momentos, ela retribui esse afeto. Disse que não costuma ter dificuldades com as
crianças, mas relatou que sentiu dificuldades com uma turma que era mais ‘danada’ e que
tinha um aluno com uma falta de limite tão grande que tumultuava o grupo. Segundo a
professora, precisou ficar firme em relação às regras estabelecidas e a sua autoridade.
10. O conceito de moral
Entrevistadora: O que você entende por moral ou moralidade?
P1: Eu..., eu me acho meio quadrada, sabe? Eu... eu... sou meio quadrada, assim... Hoje,
tudo é muito normal. Para mim, tudo não é normal, né? Então, existe criança que assiste
filme pornô, essas coisas de... A gente já teve aqui aluno que... que viu alguma coisa entre
pais e chegou aqui tentando imitar, fazer com o coleguinha, querer beijar na boca, e querer
fazer algo mais. Então, assim, eu vejo isso... Eu não vejo isso como normal. Acho que
criança, ela tem que ser criança na essência dela. Então, assim, o meu conceito de moral, eu
acho que... Eu acho que sou muito quadrada mesmo! Aí, eu falo assim: Gente! Eu acho que
173
isso aí não é uma coisa normal. Eu acho que isso aí é uma coisa assim... Não tinha que esse
menino estar presenciando isso, esse menino não tinha que estar fazendo isso. Então, assim,
na minha casa com os meus filhos, eu não deixo assistir Big Brother. Eu acho que isso não
é um conteúdo que tem moral nenhuma para criança estar assistindo. Sabe? Enquanto isso
pode ser muito normal, para algumas famílias, e todos aqui são um exemplo. Eu não acho
que é bom...
P1 não chegou dar uma definição específica para o termo moral. No entanto, as
colocações dela apontam uma relação entre o conceito de moral e questões de gênero e
sexualidade, como colocado por ela mesma no começo da entrevista.
A maioria dos exemplos que a professora colocou sobre ações certas e erradas
moralmente está relacionada com a sexualidade. Alguns deles se relacionam com o
respeito e a boa convivência. Os exemplos colocados foram os seguintes:
-Criança ser amigo, brincar juntos. (Certo)
-Criança não namorar. (Certo)
-Não falar palavrão. (Certo)
-Criança dormir cedo. (Certo)
-Criança não assistir filmes com conteúdo adulto. (Certo)
-Não bater no colega. (Certo)
-Não brigar com as pessoas. (Certo)
-Viver em paz. (Certo)
-Criança namorar. (Errado)
-Criança falar sobre sexo. (Errado)
-Apelar a questões de sexualidade na frente dos outros. (Errado)
-Expor a intimidade. (Errado)
Sobre a interrelação entre moral e convenção social, P1 esclareceu que existem
diferenças entre os dois conceitos. As convenções sociais estão mais relacionadas com
modismos, são modas estabelecidas pela modernidade. A moral é:
... aquela coisa de... Como tem na bíblia? Não tem na bíblia? Está escrito na bíblia. Que
você seja um homem de moral. Que que é moral? É aquilo ali..., que parece que você já
tem, já é aprendido ali, de... de... de berço, de família. Você aprende a moral ali. Tipo
assim, eu. Eu aprendi que eu não andava de saia mostrando o fundo da minha calcinha. Eu
aprendi isso, minha mãe e meu pai me ensinou isso.
Embora o conceito de moral não ficasse claro ao longo da entrevista, podemos
pensar que para a entrevistada a moral se refere a valores relacionados com questões de
174
sexualidade em primeiro lugar e gênero, incluindo em segundo plano o respeito no sentido
de uma boa convivência. Valores que são aprendidos, principalmente, no marco familiar.
11. O conceito de desenvolvimento moral
Entrevistadora: O que é para você desenvolvimento moral?
P1: Eu acho que é isso. Começar do..., do bebê, começar ali o desenvolvimento moral.
Esse... Ele vai... Mas, também, eu acho que isso pode ser relativo. Porque, às vezes, tem
criança que te um meio bem desordenado, uma família desordenada, e ela consegue,
assim..., consegue ter diferença. Ela consegue ser diferente... Tem quantas pessoas, hoje,
que são pessoas honestas, tem moral, tem desenvolvido um conceito sobre moral e teve
uma família desordenada. Não é? Ela consegue separar. Agora, existe aquele que não
consegue. Existe aquele que foi criado em aquele ambiente, em aquela desmoralização e
segue aquela linha, para ele também.
O conceito de desenvolvimento moral colocado por P1 trouxe elementos novos em
relação aos colocados anteriormente. Ao falar sobre o desenvolvimento moral, a
entrevistada fala, pela primeira vez, de valores morais como a honestidade, ressaltando
mais as questões relacionadas com o respeito e a boa convivência. De acordo com a
entrevistada, a criança desenvolve a moralidade a partir do convívio com a família, do que
a criança vê e ouve no marco familiar, do que é incentivado pelos pais. A família é o meio
mais importante para a criança e ela acaba reproduzindo o que esse meio oferece para ela.
Outras instâncias, como a escola, podem participar no desenvolvimento moral da
criança, mas:
... Então, eu vejo que a família é o papel principal. A escola também tem essa parte de
orientar, mas enfim, a família eu acho que mais, porque a família está ali, no final de
semana todo, ele está ali o resto do dia e a noite toda. Ele está ali, mas tempo com a
família. E a escola não pode assumir esse papel de família. A escola não pode ser paternal,
assim, ter esse papel de pai e mãe. Eu acho que a escola tem a função de escola, lógico que
moral também está presente.
Em consonância com as idéias anteriores, a Educação Infantil deve contemplar o
desenvolvimento moral no sentido de orientar sobre determinados valores e questões. Em
relação a essa orientação possível, P1 especificou:
...Assim, eu me vejo trabalhando isso com eles. Quando eu falo com eles, com meus
alunos. Assim: Não, você não vai beijar na boca. Você não é para ficar com essas
conversas de transar, de sei lá o que. Você é criança. Você está aqui para fazer isso, isso.
Aquelas coisas lá. Porque eu vejo que ele... ela vai estar queimando etapas. Ele vai estar
queimando etapas! Ele está no Jardim de Infância! Ele tem prioridade de infância e não
tem que estar preocupado, assim, se ele vai beijar na boca. Aquilo ali é fora de fase, ele não
está na fase disso. Ele vai estar em aquela fase, quando ele já estiver adolescente. Que ele
175
já estiver... quando ele ficar um rapaz. Que ele vai namorar. Isso ai é natural nessa fase,
não no Jardim de Infância. Essas coisas assim...
Nos conceitos de moralidade e desenvolvimento moral, observamos uma oscilação
entre valores relacionados com questões de sexualidade/gênero e valores relacionados com
o respeito ao outro no sentido de uma boa convivência. Esses valores foram ressaltados em
momentos diferentes, prevalecendo os primeiros. Já na prática pedagógica foram
enfatizadas as regras e limites, colocados de forma assimétrica e de acordo com as
necessidades e visão do adulto.
12. Percepção da prática pedagógica (Análise das situações hipotéticas do roteiro)
Ao analisar as situações hipotéticas relacionadas com situações de conflitos, a
professora enfatizou a necessidade de conversar com as crianças e ajudá-las a procurar
outras formas de resolução, sempre no âmbito da negociação. O professor pode dar
sugestões como: trocar os brinquedos, emprestar um pouquinho e brincar junto.
Nas situações de transgressão de regras, enfatizou que a melhor estratégia é
explicar as regras e mostrar as conseqüências da transgressão. Se a transgressão da regra
provocou um machucado a criança precisa sair da atividade até aprender que é necessário
obedecer ao que foi combinado.
Nas situações de desrespeito, a entrevistada explicou que conversaria com as
crianças sobre a necessidade de respeitar as diferenças do outro. Essa conversa seria com o
grupo e no marco das situações específicas. Além disso, colocou que ajudaria a criança
desrespeitada, ressaltando as características positivas dela.
De acordo com P1, todos esses mecanismos estão em consonância com a proposta
pedagógica da instituição e são analisados e discutidos pela equipe pedagógica nos
momentos de coordenação.
Entrevista com P2 - Caracterização
A idade de P2 é 35 anos, sendo licenciada em Pedagogia com Pós-graduação em
Administração Escolar. Trabalha no turno matutino (regência) e vespertino (coordenação).
Tem experiência em educação de 15 anos, sendo 8 anos na Educação Infantil. Na escola
atual, trabalha há 4 anos. Já lecionou em turmas do 1º Período (crianças de 4 anos), e
ocupou o cargo de coordenadora (1 ano). No momento atua com crianças de 5 anos.
1. Percepção da formação profissional
P2 avaliou sua formação profissional como boa. Ressaltou que tanto os cursos
acadêmicos como a experiência em sala de aula foram importantes para sua formação
176
profissional. Os estágios realizados durante sua formação acadêmica foram fundamentais
para conhecer o cotidiano escolar e para definir sua área de atuação: a Educação Infantil.
2. Percepção da profissão
P2 se mostrou satisfeita com seu trabalho e com a escola. Ela avaliou de forma
positiva a prática e a proposta pedagógica da instituição, assim como o trabalho em
parceria com os colegas da escola.
A satisfação com a profissão também apareceu vinculada à possibilidade de
trabalhar com as crianças pequenas. De acordo com a entrevistada, trabalha na Educação
Infantil porque é apaixonada pelas crianças, em função de sua espontaneidade e
criatividade. Além disso, gosta de trabalhar em sala de aula, pois o contato com as crianças
é gratificante. Para ela, trabalhar na Educação Infantil: “...É... questão de afinidade... de
identidade”.
3. Definição de criança e infância
Para P2, o termo criança se refere a um conceito de faixa etária, a uma fase de vida
pela qual todas as pessoas passam. Já o termo infância está relacionado com as
necessidades típicas dessa fase e com as possibilidades de satisfazer as mesmas. Sendo
assim, a infância deve estar voltada para o lúdico e para o desenvolvimento de forma
prazerosa.
As definições de criança e infância delimitaram questões importantes sobre a
Educação Infantil, como veremos na próxima categoria de análise.
4. Definição de Educação Infantil
P2 definiu a Educação Infantil como um momento de aprendizado sistemático, que
deve ser prazeroso. Em função disso, a escola deve possibilitar que a criança descubra e
formule seus conhecimentos através da brincadeira. Além disso, a Educação Infantil
oferece uma oportunidade ímpar para a socialização das crianças pequenas, que saem do
ambiente restrito do lar. No Jardim de Infância as crianças têm a possibilidade de trocar
experiências e interagir com crianças que têm conceitos e vivencias diferentes.
A partir das idéias anteriores, a professora avaliou a Educação Infantil como um
período extremamente importante na educação das crianças. De acordo com ela, as
crianças têm ganhos fundamentais e visíveis quando freqüentam uma instituição de
Educação Infantil. Ao falar sobre os principais objetivos da Educação Infantil, P2 ressaltou
a socialização da criança, entendida como a possibilidade de aprender a interagir
adequadamente com os outros. Quando a criança chega na escola, pensa que é ‘dona do
mundo’ e não sabe interagir, dividir e compartilhar com o outro. Aos poucos e com a
177
intervenção constante do professor, ela começa interagir de forma adequada. Outros
objetivos importantes da Educação Infantil são o desenvolvimento cognitivo e o
letramento.
5. Rotina do dia-a-dia
P2 descreveu um conjunto de atividades diversificadas que acontecem no cotidiano
de sua sala, destacando as atividades voltadas para o desenvolvimento de habilidades e
conceitos matemáticos (calendário e trabalho com agrupamento de quantidades e dezenas),
as atividades de desenho, de letramento e psicomotricidade. Embora o cronograma da
turma contemple a brincadeira livre todos os dias, isso não é o que acontece na prática. De
acordo com a professora, essa atividade fica atrelada à realização de outras, voltadas para
os conteúdos das diferentes áreas do conhecimento e para os projetos sobre as diferentes
datas comemorativas.
Mesmo assim, a professora avaliou as atividades de brincadeira livre como muito
importantes em função de ter como objetivo principal a socialização da criança, e de
estarem relacionadas com as necessidades típicas da infância. De forma geral, a
entrevistada avaliou todas as atividades como fundamentais para o desenvolvimento
integral da criança, em função de seus objetivos específicos. Além disso, ressaltou que
todas podem ser importantes para o desenvolvimento moral, uma vez que no marco de
cada uma delas o professor tem a possibilidade de trabalhar questões relativas à
moralidade, como o respeito pelas regras de convivência e os acordos estabelecidos na
sala.
6. Planejamento
Sobre o planejamento das atividades realizadas, P2 colocou que a maior parte desse
planejamento é realizado em conjunto e de forma coordenada pela equipe pedagógica. A
professora também planeja atividades específicas para a sua turma. Sobre a participação
das crianças no planejamento, a entrevistada colocou que as crianças não participam de
forma sistemática, mas que seus interesses são levados em conta na hora de planejar e re-
planejar as atividades cotidianas.
De acordo com a professora, a maioria das atividades realizadas na sua sala
acontece de forma coletiva ou em pequenos grupos. Os grupos são organizados pelas
próprias crianças, de acordo com suas afinidades, mas em alguns momentos é preciso sua
interferência para evitar conflitos.
178
7. Regras
P2 referiu que na sua sala existem várias regras a serem respeitadas pelas crianças.
A maioria dessas regras tem como objetivo principal o comportamento adequado das
crianças nas atividades de sala e o respeito pelos colegas. De acordo com a fala da
entrevistada, algumas dessas regras são as seguintes: Respeitar o colega; respeitar a fila; ter
um comportamento adequado na hora do lanche; ter um comportamento adequado nas
atividades de sala, nas atividades de filme e no parquinho; organizar o material coletivo; ir
ao banheiro um de cada vez; respeitar o momento de cada um falar; dividir os brinquedos e
os materiais.
De acordo com a professora, essas regras foram definidas logo no começo do ano
letivo, junto com as crianças. A entrevistada referiu que, no momento dessa definição, ela
conversou com as crianças e explicou que todo mundo tem direitos e deveres. Os deveres
são os acordos ou regras estabelecidas, uma vez que eles são importantes para a
convivência na escola. Os direitos são as atividades prazerosas que acontecem no decorrer
da rotina: a brincadeira livre no parque e na casa de boneca, as brincadeiras de
psicomotricidade e os filmes. Os combinados da classe estão relacionados com esses
deveres e direitos, sendo que não cumprir um dever leva à perda de um direito. De acordo
com a entrevistada:
...Aí, se uma criança se comportou mal no parquinho, aí a gente tira ela do parquinho para
ela ficar observando os outros brincarem, para ela aprender como que faz. Porque ninguém
vem para cá, para a escola, para ser machucado pelo colega. É assim que eu coloco para
eles. Então, a gente tem que ter cuidado para não machucar ninguém. E... e... a... O grande
vilão é a agressividade! A questão é essa, a agressividade que as crianças trazem! Esse é o
grande vilão. Grave, né?.
Em relação à possibilidade de modificar as regras de acordo com as necessidades
do grupo, a professora colocou que isso é possível, mas que a maioria das regras tem que
ser respeitada sempre e não deve ser modificada.
Sobre os principais mecanismos para garantir o respeito pelas regras, a professora
explicou vários, assim como os momentos em que eles são usados. De acordo com ela, um
dos mecanismos usado quando há transgressão de uma regra é conversar com a criança. A
conversa seria no sentido de lembrar a regra já estabelecida. Outro mecanismo é retirar a
criança da atividade para que ela possa perceber que não está se comportando de um jeito
adequado e segundo o que foi estabelecido com antecedência. Quando a transgressão da
regra tem como conseqüência um machucado, a estratégia é lembrar a regra, retirar a
179
criança da atividade, solicitar que ela se desculpe com o colega e se comprometa com a
não transgressão da regra. Quando uma criança transgride as regras repetidas vezes é
importante conversar com a família ou levar a criança para a direção.
Nesta categoria de análise é importante ressaltar que, embora algumas das regras
colocadas pela professora se refiram ao respeito pelo outro, a maioria delas está
relacionada com questões de organização e de controle do comportamento das crianças no
contexto das atividades específicas. A ênfase na disciplina e no controle do comportamento
também apareceu na fala da professora, ao explicar a relação que ela estabelece entre
deveres e direitos. Relação que tem um caráter punitivo, e que coloca uma atividade
fundamental para as crianças como recompensa.
Por outro lado, a forma como as regras foram apresentadas para as crianças não
permite a participação ativa delas nesse momento de definição.
8. Conflitos
Para a entrevistada, os conflitos interpessoais fazem parte do desenvolvimento e do
processo de socialização da criança. No entanto, tem casos que fogem do padrão ‘normal’
pois manifestam uma agressividade intensa. Esses casos merecem uma atenção e um
encaminhamento especial, através da Secretaria de Educação.
De acordo com P2, os conflitos mais comuns entre as crianças de sua sala estão
relacionados com a partilha dos brinquedos e materiais, sobretudo alguns brinquedos da
casa de bonecas: “...Lá na casinha, tem lá o cavalinho, que é famoso, né? Então, todo
mundo quer o cavalinho. Todo dia tem que falar: Tem que compartilhar, cada um brinca
um pouco”. Além disso, algumas crianças costumam jogar areia na hora do parque e outras
revidam diante da situação.
Sobre a melhor forma de lidar com os conflitos entre as crianças, P2 colocou que o
ideal é levar a criança à reflexão sobre a postura dela e sobre como ela gosta que os outros
ajam com ela. De acordo com a professora, quando as crianças entram em conflito ela
conversa com elas e pergunta para a criança que agrediu se ela gostaria de receber esse tipo
de tratamento por parte de algum colega. Outra estratégia é conversar com os pais e tentar
fazer uma parceria com eles, pois muitas das questões que acontecem em sala de aula estão
relacionadas com a falta de limites das crianças. Quando o conflito envolve muita
agressividade por parte das crianças, é importante encaminhar a criança para a direção da
escola. Por um lado, a direção deve estar a par das questões que acontecem em sala e dar
um suporte para o professor. Por outro, a intervenção da direção se mostra eficiente quando
o professor não consegue lidar com a situação.
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Ao falar especificamente sobre os conflitos interpessoais, a entrevistada não se
referiu a uma das estratégias já apontada e enfatizada por ela em um momento anterior da
entrevista: retirar a criança da atividade para que possa perceber que ela não se comportou
de acordo com o estabelecido.
9. Percepção da relação professor-criança
A entrevistada avaliou como positiva sua relação com as crianças da turma.
Ressaltou que, embora seja uma professora rígida, costuma ser muito afetuosa com as
crianças e recebe o mesmo afeto por parte delas. P2 acha que é importante investir na
questão da afetividade, pois isso traz bons resultados para a dinâmica da turma e o
andamento das atividades. De acordo com ela, as crianças gostam dela e querem vê-la
feliz. Dessa forma ela consegue contornar muitas das questões de comportamento que
surgem no cotidiano.
O principal desafio relatado pela entrevistada é a questão da agressividade entre as
crianças. A professora explicou que não sabe lidar com essa questão e, muitas vezes, fica
nervosa. De acordo com ela, a questão da agressividade está relacionada com as vivências
que a criança tem no contexto familiar. Embora a escola invista cotidianamente nessa
questão através do estabelecimento de regras e limites claros, as crianças ficam a maior
parte do tempo no contexto familiar e, na maioria das vezes, têm uma vivencia e uma
prática contrária.
10. O conceito de moral
Entrevistadora: O que você entende por moral ou moralidade?
P2: O que eu entendo por moral!? Moral são os conceitos que a gente tem. Não é? Os
conceitos em relação à postura correta. Não é? A moral é tudo que vai a favor e contra isso.
É a postura adequada. A postura adequada, os valores. Uma postura adequada, que obedeça
um quadro de valores.
Ao falar sobre o conceito de moral, P2 enfatizou os valores morais que co-existem
na base da ação do sujeito, assim com a dimensão comportamental da moralidade. Ela se
referiu à moral como o conjunto de valores e conceitos que vão direcionar um
comportamento ou postura adequada diante da vida e dos outros, de forma geral. Esse
conjunto ou ‘quadro de valores’ é uma referencia importante para a pessoa. No entanto,
cada pessoa tem um ‘quadro de valores’ muito particular. Além disso, as situações
específicas podem influenciar na hora de agir a partir de determinados valores e não de
outros.
181
Como exemplo de ações que podem ser consideradas certas ou erradas moralmente,
P2 colocou as seguintes:
-Agressão. (Errado)
-Tudo o que viola o outro. (Errado)
-Todas as ações educativas que a escola tem. (Certo)
-Educar. (Certo)
-A questão de procurar dialogar. (Certo)
-A questão de oferecer carinho. (Certo)
-A questão do convencimento. (Certo)
-Levar à reflexão sobre o próprio comportamento. (Certo)
Segundo a professora, os últimos exemplos colocados por ela são certos
moralmente porque estão relacionados com a educação do outro, e os educadores sempre
tentam passar um valor positivo para as crianças.
Sobre a interrelação entre moral e as convenções sociais, a entrevistada colocou que
existem diferenças entre esses dois conceitos. As convenções sociais se referem a normas
de comportamento que foram estabelecidas culturalmente ao longo do tempo, mas que não
necessariamente se relacionam com o respeito pelo outro. Já a moral está relacionada com
o respeito pelo outro.
Antes de passar para a próxima categoria de análise, é importante chamar a atenção
sobre os exemplos de ações moralmente certas que a entrevistada colocou. Como apontado
por ela, esses exemplos se referem à prática pedagógica da professora, de forma específica,
e da instituição estudada, de forma geral. No marco da entrevista, P2 avaliou de forma
positiva suas ações educativas e as da instituição, indicando que ela acredita que a escola
faz um trabalho adequado em relação à educação moral das crianças.
11. O conceito de desenvolvimento moral
Entrevistadora: O que é para você desenvolvimento moral?
P2: Desenvolvimento moral é o processo de discernir o que é correto, o que não é, o que é
bom, o que é ruim. É buscar ser uma pessoa boa.
O conceito de desenvolvimento moral colocado por P2 trouxe elementos novos. Se
no conceito de moral a entrevistada enfatizou a dimensão da ação e as crenças e valores
morais que co-existem na base dessa ação, no conceito de desenvolvimento moral ela
enfatizou a possibilidade da pessoa analisar e/ou criticar a própria ação e/ou a dos outros,
segundo determinados critérios de julgamento (bom e ruim, correto e incorreto). Sendo
182
assim, ela enfatizou o desenvolvimento do juízo moral e colocou esse desenvolvimento
como um processo.
De acordo com a entrevistada, a criança desenvolve a moralidade a partir de sua
própria experiência em relação às interações que ela tem no seu cotidiano. Ou seja, a partir
do que ela gosta ou não gosta que façam com ela, ou do que ela experimenta como positivo
ou negativo na interação com o outro.
Nesse processo de desenvolvimento participam várias instancias como a família e a
escola. No entanto, é a família a instancia que tem um papel crucial “porque a família é o
grande sustentáculo da vida da gente”. A participação da escola no processo de
desenvolvimento moral é restrita, uma vez que a criança passa a maior parte do seu tempo
no contexto familiar. Em função disso, quando a família deixa uma ‘lacuna’ a escola não
consegue preenchê-la.
P2 apontou que a Educação Infantil deve contemplar o desenvolvimento moral,
uma vez que o compromisso da escola é educar e a educação tem que ser global. A escola
contempla o desenvolvimento moral em todos os momentos voltados para a socialização
da criança, sobretudo, naqueles que é necessário estabelecer a melhor forma de interagir
com os demais.
12. Percepção da prática pedagógica (Análise das situações hipotéticas do roteiro)
Ao analisar as situações hipotéticas relacionadas com situações de conflitos, a
professora enfatizou a necessidade de conversar com as crianças e levá-las a refletir sobre
suas próprias ações. A conversa teria como objetivos principais lembrar as regras
relacionadas com o respeito pelo outro e levar a criança a refletir sobre o que ela sentiria se
alguém a machucasse. Além disso, a professora solicitaria que a criança pedisse desculpas,
a modo de compensação, e se comprometesse a não agredir novamente o outro. Quando o
conflito envolve a disputa por brinquedos, a professora conversaria com as crianças,
sugerindo para elas a possibilidade de dividir o objeto ou de brincar em conjunto. A
conversa com as crianças seria no sentido de explicar que é melhor e mais prazeroso
dividir e brincar com o outro.
Nas situações de transgressão de regras, a entrevistada enfatizou que a melhor
estratégia é conversar com a criança sobre as mesmas. Além disso, seria importante
enfatizar, perante o grupo, que as ações da criança transgressora foram inadequadas e por
quê. A própria professora colocaria para o grupo que a criança transgressora não vai agir
novamente de aquele jeito.
183
Nas situações de desrespeito, a entrevista colocou que é necessário que a criança
peça desculpas, além de compensar de uma forma relacionada com a situação. Por
exemplo, se uma criança rabiscar o desenho de outra, ela deve pedir desculpas e apagar os
rabiscos. A criança desrespeitada deve aceitar as desculpas. Quando a situação de
desrespeito pode ser negativa para a auto-estima de uma criança, a entrevistada relatou que
procuraria estratégias de intervenção voltadas para resgatar a auto-estima dessa criança e
enfatizar suas qualidades, perante o grupo.
Ao relatar o que ela conversaria com as crianças, a professora usou frases como “eu
faria ele se desculpara com os outros”, “eu faria ele apagar o que ele riscou” e “levaria os
outros a desculpar”, indicando pouca participação por parte das crianças em suas próprias
situações de conflito.
De acordo com P2, todos esses mecanismos estão em consonância com a proposta
pedagógica da instituição.
4. Análise das Entrevistas com as Professoras do Turno Vespertino e Diretores
Após a apresentação das características referentes a cada um dos entrevistados do
turno vespertino, os dados de suas narrativas estão agrupados em categorias que têm por
objetivo auxiliar as principais tendências e contradições encontradas no estudo deste grupo
de participantes.
Professora P4 -
A idade de P4 é 38 anos, sendo licenciada em Pedagogia com habilitação para série
iniciais. Tem outros cursos como Magistério e Licenciatura em Letras (inglês e português).
Realizou um curso especifico para educadores de Educação Infantil oferecido pelo
CENEC. Trabalha no vespertino (regência) e matutino (coordenação). Tem experiência em
educação de 14 anos, todos na Educação Infantil. Na escola atual, trabalha há 4 anos. Já
lecionou em turmas do 3º Período (crianças de 6 anos), e ocupou o cargo de coordenadora
(1 ano). No momento atua com crianças de 4 anos.
Professora P5 -
A idade de P5 é 38 anos, sendo licenciada em Pedagogia com Especialização em
Educação Infantil. Trabalha no turno vespertino (regência) e matutino (coordenação). Tem
experiência em educação de 10 anos, sendo 7 anos na Educação Infantil. Na escola atual,
184
trabalha há 7 anos. Já lecionou em turmas do 1º Período (crianças de 4 anos), e ocupou os
cargos de coordenadora (2 anos) e vice-diretora (1 ano). No momento atua com crianças de
5 anos.
Professora P6 -
A idade de P6 é 48 anos, sendo licenciada em Pedagogia, com habilitação para
alfabetização e séries inicias e Pós-graduação em Administração Escolar. Participou do
Programa de Educação Pré-escolar (PROEP). Trabalha no turno vespertino (regência) e
matutino (coordenação). Tem experiência em educação de 22 anos, sendo 14 anos na
Educação Infantil. Na escola atual, trabalha há 4 anos. Sempre lecionou em turmas do 3º
Período (crianças de 6 anos). No momento atua com essa faixa etária.
Professora P7 -
A idade de P7 é 38 anos, sendo licenciada em Pedagogia, com habilitação para
alfabetização e séries inicias. Tem outros cursos como Magistério. Trabalha nos turnos
matutino e vespertino. Tem experiência em educação de 17 anos, sendo 7 anos na
Educação Infantil. Na escola atual, trabalha há 7 anos. Já lecionou em turmas do 1º Período
(crianças de 4 anos), 2º Período (crianças de 5 anos) e 3º Período (crianças de 6 anos).
Ocupou o cargo de coordenadora (1 ano). No momento atua com crianças de 4, 5 e 6 anos
que precisam de apoio psicopedagógico.
Diretor D1 -
A idade de D1 é 48 anos, sendo licenciado em Pedagogia, com habilitação em
Administração Escolar. Foi o único homem entrevistado. Tem outros cursos como
Magistério e Licenciatura em Educação Artística e Artes Cênicas. Trabalha nos turnos
matutino e vespertino. Tem experiência em educação de 13 anos, sendo 4 anos em cargo
administrativo na Educação Infantil. Na escola atual trabalha há 3 anos. No momento atua
em cargo administrativo.
Diretora D2 -
A idade de D2 é 41 anos, sendo licenciada em Geografia. Participou do Programa
de Educação Pré-escolar (PROEP). Trabalha nos turnos matutino e vespertino. Tem
experiência em educação de 20 anos, sendo 19 anos na Educação Infantil. Na escola atual
trabalha há 12 anos. Já lecionou em turmas do 2º Período (crianças de 5 anos). No
momento atua em cargo administrativo.
185
1. Percepção da formação profissional
Todos os entrevistados avaliaram sua formação profissional como boa. De acordo
com P4, P5, P6 e P7 o curso de pedagogia foi importante para esclarecer questões em nível
teórico. Já o curso de magistério e os cursos voltados para a Educação Infantil ofereceram
os recursos práticos para lidar com o dia-a-dia de sala de aula: como desenvolver os
conteúdos, abordar determinados assuntos com as crianças, contar histórias de forma
interessante e como organizar a rotina das crianças. Em função disso, a maioria dos
entrevistados (P4, P5, P6 e P7) avaliaram os cursos de magistério e profissionalizantes
como fundamentais para sua formação profissional. D2 também avaliou os cursos
oferecidos pela Secretaria de Educação como fundamentais para o trabalho cotidiano com
as crianças.
Ainda sobre sua formação acadêmica, os entrevistados (P4, P5, P7, D1 e D2)
esclareceram que nunca tiveram a oportunidade de estudar ou refletir sobre o
desenvolvimento moral da criança, mesmo tendo abordado questões relacionadas ao
desenvolvimento infantil. As informações obtidas nos cursos foram importantes para
nortear e embasar algumas de suas ações na hora de lidar com as crianças. No entanto, a
maioria dessas ações se consolidou com a experiência prática, que os entrevistados
colocaram como fundamental para sua formação profissional.
P5 esclareceu que nunca teve a oportunidade de estudar ou refletir sobre o
desenvolvimento moral da criança, mesmo tendo realizado uma especialização em
Educação Infantil. Muitas das questões relacionadas com o desenvolvimento moral são
refletidas a partir das situações que surgem no cotidiano.
2. Percepção da profissão
De forma geral, todos os entrevistados se mostraram satisfeitos com seu trabalho e
com a escola. Ao longo das entrevistas, avaliaram de forma positiva a prática e a proposta
pedagógica da instituição. Descreveram com luxo de detalhes as atividades realizadas no
dia-a-dia das diferentes turmas e da escola e se referiram de forma entusiasmada aos
projetos pedagógicos realizados na escola com a participação da maioria dos profissionais.
A satisfação com a profissão também apareceu vinculada à possibilidade de
trabalhar com as crianças pequenas. P4 e D2 especificaram que trabalham na Educação
Infantil porque são apaixonadas pelas crianças. De acordo com elas, as crianças pequenas
sentem o prazer da descoberta e participam com entusiasmo das atividades propostas. A
visão que elas têm das crianças apareceu com uma motivação fundamental para seu fazer
profissional e para uma avaliação positiva de sua profissão.
186
P5, P6 e P7 relataram que já tiveram a possibilidade de trabalhar com crianças mais
velhas e não se adaptaram. De acordo com as entrevistadas, as crianças menores são mais
receptivas e têm menos dificuldades do que os adolescentes, por exemplo. Em relação a
sua preferência pela Educação Infantil, as falas das entrevistadas foram as seguintes:
Eu... me identifiquei muito com a Educação Infantil. De 1ª. a 4ª. série eu sofria um pouco,
por ser crianças maiores. Porque... até uma questão de tom de voz... Eles me escutavam
pouco... E na Educação Infantil, por essas coisas assim, deles serem mais tranqüilos, mais
receptivos... me achei mais... me identifiquei muito. (P5)
...Eu acho que a criança menor, ela... Você olha nos olhos dela e ela sabe o que que você
está falando. Ela te respeita, entendeu? Mesmo que ela não queira, se você tem uma
psicologia, ela acaba respeitando, concordando. A criança pequena é cheia de sonhos e ela
não está ainda na fase de se envolver com os problemas familiares que ocorrem, com os
pais, né? Agora, os adolescentes não. Eles já estão revoltados, tem adolescente que
trabalha, que é flanelinha no meio da rua, que isso e aquilo. Então, aprende muita coisa
diferente, te responde, entra em atrito. Então, eu não sou o tipo de pessoa que concordo
com isso, eu não gosto de adolescente, não gosto de trabalhar com essa fase. (P6)
... Eu gosto de estar aqui. Para mim, é a melhor fase de trabalhar, é pequenininhos, assim,
que nem eles. Porque você pega eles de um jeito e você coloca do jeito que você quer! Só
você falar com eles, e eles te entendem, aí... Você consegue colocar coisas dentro da
cabecinha deles. Já, os maiores é difícil demais. Eles já vêm de casa com aquele... com
aquele negocio formado, né? E os pequenininhos não. (P7)
É importante ressaltar que as falas das entrevistadas ao se referir a receptividade
das crianças menores enfatizam o papel ativo do adulto na educação e no desenvolvimento
da criança, assim como o modelo unidirecional de transmissão de conhecimentos e cultura.
As crianças menores aparecem como mais susceptíveis à esse modelo unidirecional, no
qual o adulto tem um papel ativo.
Ao falar de sua satisfação com a profissão, D1 e D2 ressaltaram que a escola realiza
um trabalho satisfatório que é reconhecido pela comunidade de várias formas. Além disso,
conta com profissionais comprometidos que trabalham em conjunto e que têm uma
preocupação real pela educação das crianças menores.
3. Definição de criança e infância
De forma geral, os entrevistados definiram o termo criança como uma faixa etária
específica, e o termo infância como um conjunto de experiências ou vivencias adequadas
para essa faixa etária. No discurso dos profissionais, a infância apareceu como um
momento importante para a criança e para sua vida posterior. É na infância que a criança
começa aprender sobre as coisas e a se relacionar com elas, através de suas vivências
187
cotidianas. Sendo assim, a criança precisa de experiências positivas, tanto no núcleo
familiar como na escola.
Para P6, P7 e D2, a criança é um ser sonhador e ingênuo que tem muito para
aprender. Um ser inocente que precisa da orientação, do incentivo e da compreensão do
adulto. D2 enfatizou o fato da criança ter uma visão própria do mundo que a rodeia e das
questões que chegam até ela de várias formas, seja através da relação com os colegas, com
a família e pela televisão. Essa visão é muitas vezes ‘quebradinha’, ou seja, não
sistematizada, sendo tarefa do adulto ajudá-la nessa sistematização.
Nesta categoria, as falas de alguns entrevistados (P6, P7 e D2) ressaltam novamente
o papel ativo do adulto na educação e no desenvolvimento da criança. Somente P4 se
referiu à criança como uma pessoa que está descobrindo o mundo que a rodeia e que tem
necessidades específicas como: brincar, interagir com o outro, expressar suas idéias e
opiniões de forma espontânea, e conhecer o outro e a si mesmo como ser humano. De
acordo com esta profissional, essas necessidades são fundamentais e delimitam questões
importantes da Educação Infantil.
4. Definição de Educação Infantil
Todos os profissionais definiram a Educação Infantil como uma oportunidade
necessária e importante, que vai ajudar a criança a descobrir o mundo e entrar em contato
com o conhecimento. Contato importante para a relação que a criança vai estabelecer com
a escola e com o estudo, nos anos posteriores de sua vida escolar.
Na fala dos entrevistados, a Educação Infantil apareceu com um período da
educação extremamente importante para a criança, uma vez que nela a criança tem a
possibilidade de realizar um conjunto de atividades voltadas para seu desenvolvimento,
além de satisfazer sua curiosidade. P4 e P5 ressaltaram a possibilidade da criança se
socializar e brincar, sem deixar de lado questões relativas ao desenvolvimento cognitivo.
P4, P5, P7, D1 e D2 enfatizaram que a Educação Infantil não deve ser conteudista, nem
deve estar voltada, somente, para a alfabetização. Também ressaltaram que existe uma
cobrança por parte dos pais em relação ao ensino de determinados conteúdos, que acabam
predominando em relação a outros aspectos importantes para o desenvolvimento infantil.
Para P6, a Educação Infantil oferece a oportunidade de desenvolver a lógica
matemática, assim como todas as habilidades básicas para a leitura e a escrita. De acordo
com ela, uma criança bem alfabetizada, ‘bem trabalhada’, sobretudo com o currículo que a
Secretaria oferece, tem uma base fundamental para os anos posteriores de sua educação.
188
Todos os entrevistados colocaram a Educação Infantil como a base para o Ensino
Fundamental. Em relação a essa questão, P5, P6, P7 e D2 ressaltaram que é visível o
desenvolvimento da criança que fez o percurso completo da Educação Infantil (4, 5 e 6
anos de idade), quando comparada com a criança que não fez esse percurso. Quando a
criança faz o percurso normal sai do 3º Período lendo, escrevendo, desenhando bem e
realizando atividades físicas com desenvoltura.
Enquanto P4, P5, P6 e D1 colocaram o desenvolvimento de habilidades cognitivas
e a socialização como objetivos da Educação Infantil, P7 e D2 enfatizaram o
desenvolvimento global da criança, ressaltando que esse desenvolvimento global abrange
as diferentes áreas do conhecimento (música, artes, matemática, linguagem oral e escrita) e
a motricidade.
Podemos dizer que as diferentes idéias colocadas pelos profissionais são
contraditórias. Se por um lado a maioria deles (P4, P5, P7, D1 e D2) enfatiza que a
Educação Infantil não deve ser conteudista, por outro, acabam ressaltando o
desenvolvimento de habilidades cognitivas. As últimas fazem parte dos objetivos da
Educação Infantil e foram ressaltadas como ganho importante das crianças que freqüentam
esse nível da educação. Também são elementos implícitos da definição que a maioria dos
entrevistados deu: a Educação Infantil é a base para o Ensino Fundamental, é uma
oportunidade de entrar em contato com o conhecimento e estabelecer uma boa relação com
a escola e com o estudo.
O processo de socialização esteve presente na fala de quatro entrevistados, como
objetivo da Educação Infantil. Entretanto, não ficou claro o que os profissionais entendem
como processo de socialização. Para P4 e P5, a socialização é a possibilidade de brincar,
interagir e conviver com outras crianças. Para P7, a socialização ajuda a criança a
“entender que eles são um ser que faz parte de uma sociedade e que eles têm a sua
personalidade, a suas opiniões, e que eles... têm que saber conviver com as pessoas que
gostam dele e com as que não gostam dele também”. D1 colocou o processo de
socialização como a possibilidade de desenvolver algumas habilidades sociais que
garantem um bom convívio entre os seres humanos: o respeito pelo outro, o respeito pelas
normas e regras sociais e o cuidado com as pessoas.
5. Rotina do dia-a-dia
De acordo com todos os entrevistados, a escola realiza atividades diversificadas,
que vêm ao encontro dos principais objetivos da Educação Infantil. Sendo assim, as
atividades de motricidade, desenho, leitura e escrita, dentre outras, fazem parte do dia-a-dia
189
da instituição e são inseridas dentro de uma rotina que permite a organização da escola e
das turmas específicas, assim como o uso dos espaços coletivos por todos.
Além disso, muitas das atividades realizadas no dia-a-dia da escola se encaixam em
projetos pedagógicos elaborados em conjunto pelos profissionais da escola, durante a
coordenação. De acordo com os entrevistados, alguns desses projetos estão relacionados
com as datas comemorativas mais importantes e tentam ir além do significado da data,
trabalhando objetivos da Educação Infantil. Outros projetos pedagógicos que a escola
realiza estão voltados para a formação de hábitos como a leitura, a alimentação saudável e
a higiene.
Quando questionados sobre a relação das atividades com o desenvolvimento moral
da criança, todos os profissionais (P4, P5, P6, P7, D1 e D2) esclareceram que, no seu ponto
de vista, todas as atividades que privilegiam as interações entre as crianças são
fundamentais para o desenvolvimento da moralidade. É nessas atividades que a criança
tem a possibilidade de perceber o outro, e aprender a respeitar as diferenças e a
individualidade. Além disso, é no contexto dessas atividades que são colocadas regras e
normas importantes para o convívio e interação.
P6 complementou sua fala com exemplos como o respeito pelos símbolos pátrios, o
respeito pela religião e pelas diferenças religiosas, e a necessidade de disciplina. Em
relação aos dois primeiros exemplos, a entrevistada especificou:
Eu acho que você trabalha o tempo todo isso porque a gente está aprendendo a respeitar.
Você está aprendendo respeitar os símbolos da madre pátria, o meu Brasil! Você está
aprendendo respeitar a religião do outro, tem igreja católica, tem igreja de crente... A gente
tem que respeitar todas! Então, eu acho que você respeita, você trabalha a moral
diariamente. Em todas as atividades, com certeza.
Sobre a relação entre disciplina e moral, a professora enfatizou a importância da
criança cumprir com o dever dela e especificou que:
Ele cumprir com o dever dele, né? Você está trabalhando uma questão de moral. Criança
tem que ter os horários dela, toda criança tem que ter disciplina. Isso é importante, você
tem que ter disciplina em tudo na vida, porque se você não é uma pessoa disciplinada, você
não arruma nenhum emprego. Né? Então, eu falo isso para os pais, falo para a criança.
Na fala de P6, o desenvolvimento moral, a educação cívica e a disciplina se
superpõem.
190
D2 esclareceu que os profissionais da escola sempre colocam em foco os valores e
as virtudes. Relatou que no ano anterior à pesquisa, a equipe pedagógica planejou um
trabalho que teve como foco específico os mesmos. Como parte desse trabalho, foram
abordados temas como a cooperação e a amizade, através de atividades diversificadas
como a narração de historias e o teatro:
... A gente fez o ano passado um trabalho mais, assim, específico de valores e virtudes... A
gente fez assim, tinha momentos em que ficavam todos reunidos no pátio e a gente falava
sobre valores determinados, aí contava historinha, tinha dramatização. Então foi assim,
focado para determinados valores ou virtudes, uma época era um, depois outro... Por
exemplo, é... falava sobre cooperação, falava sobre amizade, etc.
De acordo com D2, esse tipo de trabalho sempre faz a diferença, pois é importante
sistematizar questões básicas que são fundamentais, embora a sistematização desses
aspectos possa parecer para D2 um ‘trabalho de mãe’:
... Então sistematizar a coisa da higiene, a coisa de... de... dar o cumprimento, coisas
básicas, a gente precisa cumprimentar: bom dia, boa tarde, boa noite, sorrir para as pessoas,
é... ajudar o coleguinha, não fazer brincadeiras que depreciem o coleguinha. Às vezes, você
pensa que basta dizer que não deve ficar gozando da cara do colega, mas às vezes a gente
precisa falar: Olha você tem que se colocar no lugar dele, você não pode fazer isso... Então
a gente faz um trabalho, tem uma hora que é bem de mãe, sabe?
A partir da fala de D2, podemos concluir que o projeto voltado para o trabalho de
virtudes e valores específicos estaria entre os projetos da escola que têm como objetivo
principal a formação de hábitos considerados fundamentais. Essas virtudes e valores
seriam transmitidos pelos adultos, de forma assimétrica e em momentos específicos. Além
disso, na fala de D2 o desenvolvimento moral apareceu relacionado a certas convenções
sociais (polidez) e à organização e hábitos do dia-a-dia.
6. Planejamento
Sobre o planejamento das atividades realizadas em sala e na escola como um todo,
a totalidade dos entrevistados colocou que a maior parte do planejamento é realizado em
conjunto e de forma coordenada pela equipe pedagógica, mas que cada professora planeja,
também, atividades específicas para sua turma. As atividades planejadas em conjunto se
organizam por temas ou em projetos relacionados com as datas comemorativas ou voltados
para a formação de hábitos importantes como a leitura, a alimentação saudável e a higiene.
As atividades específicas desses projetos são adequadas à faixa etária das crianças.
191
Sobre a participação das crianças no planejamento, os entrevistados colocaram que
as crianças têm a possibilidade de participar de forma indireta, pois os interesses delas são
levados em conta na hora de planejar determinadas atividades. P4 e P5 ressaltaram que as
crianças, pela idade, não podem ter uma participação ativa no planejamento e organização
das atividades e projetos realizados em sala.
De acordo com os entrevistados, a maioria das atividades realizadas na sua sala é
coletiva ou em pequenos grupos, em função da idade das crianças e dos objetivos das
mesmas. Os grupos podem ser organizados pelas próprias crianças, de acordo com suas
afinidades. Entretanto, as professoras interferem nessa organização com o intuito de
diversificar os grupos ou de resolver conflitos interpessoais. Segundo P4, as crianças
costumam escolher os mesmos colegas, não interagindo com todos. Nesses momentos, ela
costuma conversar com as crianças e tenta incentivar novas interações. De acordo com P6:
... Não posso colocar só crianças que são péssimas porque só têm a aprender coisas
péssimas. Então, eu separo. Que que eu faço? Eu separo e coloco um menino de bom
comportamento, tranqüilo, com um menino que tem um comportamento mais agitado. Isso
também facilita quando é um menino que sabe mais e outro que não sabe, um ajuda o
outro. O que que é construir? Eu acho que aproveitar a experiência do outro.
A fala dos profissionais da escola denota poucas possibilidades de participação das
crianças em relação às atividades e rotina do dia-a-dia. Além disso, enfatiza o controle do
adulto sobre as interações criança-criança. Podemos concluir que as interações, que
apareceram na categoria anterior como elementos importantes para o desenvolvimento
moral, são controladas pelo adulto em função dos objetivos pedagógicos e da disciplina.
7. Regras
De acordo com todos os entrevistados, em sala existem várias regras a serem
respeitadas pelas crianças. Os entrevistados avaliaram essas regras como fundamentais
para o bom convívio social. De acordo com as diferentes falas, algumas dessas regras são
as seguintes:
Regras: Não brigar em sala de aula; Não bater no colega; Não pegar o material do colega
sem pedir; Cuidar o material escolar do colega e da escola; Prestar atenção na professora e
na aula; Falar baixo; Ir ao banheiro um de cada vez; Toda vez que for ao banheiro tem que
lavar a mãozinha e dar descarga; Não pode sair da sala sem falar com a tia; Tem hora para
brincar; Tem que guardar os brinquedos da sala; Não falar palavrões; Respeitar os horários
das atividades; Todo brinquedo que eles pegarem tem que voltar para o mesmo lugar, no
mesmo cantinho; Só pode usar o brinquedo se a professora autorizar; Só pode brincar em
192
uma estante de brinquedos com a autorização da professora; Se tiver autorização para
brincar em uma estante específica, só pode brincar naquela, se tiver em outra, vai brincar
em outra; Respeitar o tempo e o grupo; se um grupo terminar sua atividade, precisa esperar
os outros grupos para realizar o rodízio juntos.
Todos os entrevistados referiram que a definição dessas regras aconteceu logo na
primeira semana de aula e contou com a participação das crianças. Após o momento de
definição das regras, elas foram registradas graficamente pelas crianças. Entretanto,
elementos na elaboração discursiva dos diferentes entrevistados, apontam a canalização da
participação das crianças em uma direção determinada e previamente estabelecida pelos
adultos.
D1 ressaltou que a definição das regras acontece sob o direcionamento do adulto
que já têm um repertorio de regras importantes para as crianças em função de sua
experiência:
...O professor, como ele é o adulto, ele vai orientando de forma que... contemple todas as
necessidades da sala. Ele já vai orientando quando está criando as regras. Como ele já
viveu isso em outros anos, então, tem um repertorio... conhece as necessidades das crianças
e pode criar..., junto com o aluno, as regras da sala, né?
De acordo com D2, as regras da escola são estabelecidas pela equipe pedagógica
nas reuniões de coordenação, já as regras de cada sala são definidas pelas professoras com
os alunos em forma de ‘combinados’. Quando questionada sobre a participação das
crianças na definição das regras em sala, a entrevistada esclareceu que ela acredita que essa
possibilidade exista, em função da sensibilidade da professora em relação às necessidades
e desejos das crianças. Como colocado por D2, a participação das crianças nos momentos
de definição das regras apareceu como uma participação indireta, que depende do adulto.
A possibilidade de modificar as regras também foi colocada nesse sentido.
P6 especificou que geralmente as crianças já conhecem essas regras e ela só precisa
perguntar, em seu exemplo de uma forma indutiva:
Bom, você gostaria que algum coleguinha teu te batesse? Não. Então o que a gente pode
fazer? Ah tia, não brigar na sala de aula. Você gostaria que o coleguinha pegasse seu
material escolar, jogasse no chão e quebrasse? Não. Então, a gente tem que cuidar o
material do outro e da escola. Por que precisa falar baixo? Ah tia, porque se todo mundo
falar alto meu ouvido doi!.
193
Sobre a possibilidade de modificar as regras em função das necessidades das
crianças e da turma, alguns entrevistados (P4, P5 e P7) apontaram que nunca tinham
pensado nesta questão, mas que as regras poderiam ser modificadas caso necessário. D1 e
D2 colocaram que as regras costumam mudar de um ano para outro, pois sempre aparecem
situações novas. De acordo com P6 é possível a modificação das regras em função das
necessidades da turma, que mudam em vários momentos. Às vezes, surgem questões novas
que precisam de regras específicas: “Assim, tem as regras e a gente vai mudando, fazendo
outras regras que precisa. Assim, joga coisa no chão, então tem que jogar no lixo. Se
precisar, a gente faz uma regra sobre isso. A criança tem que saber que o que ela está
fazendo não está certo”.
É importante sublinhar que as regras especificadas pelos diferentes profissionais
coincidem, inclusive com as regras apontadas pelas professoras do período matutino. Por
outro lado, a maioria das regras especificadas está voltada para a organização do espaço e
da rotina. Em função disso, podemos questionar até que ponto as regras surgem a partir das
necessidades das diferentes turmas e das crianças.
Sobre os principais mecanismos para garantir o respeito pelas regras, os
entrevistados explicaram aqueles que são mais usados por eles no dia-a-dia. Quando uma
criança não respeita ou burla alguma regra, ela precisa sentar e pensar sobre o que ela fez
de errado (P4, P5, P6, P7 e D2). Se for necessário, a criança perde a possibilidade de
participar na atividade (P5, P6, P7 e D2). Sempre é importante conversar com a criança, de
forma individual ou em grupo, para lembrar a regra e ressaltar o comportamento errado
(P4, P5, P6 e D2). Às vezes, é necessário conversar com os pais que têm mais poder em
relação à criança e podem conversar com ela ou optar por outras medidas como retirar
alguma coisa da criança e colocar mais limites (P5, P6 e D2).
Para P5, retirar a criança da atividade é uma estratégia eficiente. Geralmente a
criança não repete o comportamento errado, uma vez que ela quer participar de todas as
atividades.
P6 relatou que ela costuma conversar com a criança, enfatizando que uma vez que
ela não está cumprindo com seu dever e responsabilidade, não merece participar da
atividade. A conversa com a criança pode ser individual ou pode envolver o grupo, pois o
grupo ajuda a ressaltar o comportamento errado da criança.
D2 enfatizou na entrevista que as professoras discutem sobre essas questões na
reunião de coordenação e a orientação que elas têm é retirar uma coisa que dá prazer:
194
... Se o comportamento não está adequado, tenta retirar uma coisa que dá prazer, porque a
gente não pode..., né? Ninguém vai agredir um aluno, a gente não pode..., ninguém pega
em ninguém, então tem que fazer o quê? Então tem que fazer o seguinte, tirar uma situação
que ele goste... parquinho, por exemplo, é um ótimo canal para tirar o comportamento
negativo. Eu penso no parquinho, um lugar que eles adoram
.
Em um primeiro momento, a criança é retirada da atividade por 10 ou 15 minutos.
Após repetir a mesma atitude, a criança pode perder a atividade pelo restante do tempo que
a mesma for durar.
Todos os entrevistados ressaltaram que, em alguns momentos, a situação exige que
a professora procure a ajuda da direção para resolver questões relacionadas com a
transgressão de regras. Nesses casos, a direção funciona como uma instância de autoridade
maior que vai conversar com a criança, lembrando as regras estabelecidas com
anterioridade.
A partir das falas dos entrevistados, podemos concluir que as estratégias de
intervenção frente às transgressões de regras não estão voltadas para o processo de
internalização das mesmas, mas para o controle do comportamento e a manutenção da
disciplina e ordem (excetuando-se o exemplo de técnica indutiva acima apontado). O
caráter punitivo das estratégias e a exposição dos erros da criança perante os outros
chamam a atenção.
Somente D1 enfatizou a importância de explicar os motivos pelos quais as regras
existem. De acordo com o entrevistado, quando uma criança não respeita ou burla alguma
regra, é necessário conversar com ela sobre a importância da regra, os motivos pelos quais
essa regra existe e porque ela é necessária para o convívio na sala de aula. Se a conversa da
professora com a criança não surtiu efeito e a criança desrespeitar a regra novamente, ela
pode ser encaminhada para a direção da escola, onde vai acontecer outra conversa no
mesmo sentido:
...Aí, a professora conversa ou, quando está extrapolando, aí pode mandar para cá e,
aí, a gente vai conversar. A gente vai falar que ele tem que respeitar essas normas
ou... ou... as pessoas, respeitar as pessoas para... para... ele, também atingir os
objetivos, que é ele aprender e... conviver. E realizar todas as atividades com
sucesso.
8. Conflitos
Para todos os entrevistados, os conflitos interpessoais fazem parte do
desenvolvimento da criança pequena, pois ela ainda não sabe como resolver as questões e
195
diferenças com os outros. Segundo os profissionais, os conflitos interpessoais colocam
diante da criança o desafio de resolvê-los de uma forma adequada. Sendo assim, a criança
precisa achar soluções, estabelecer regras para ela e para o outro e colocar condições e/ou
limites nas suas interações. Entre os conflitos mais comuns entre as crianças, os
entrevistados assinalaram os conflitos pelos brinquedos e pelo espaço.
Embora todos tenham se referido à importância dos conflitos interpessoais no
desenvolvimento infantil, os entrevistados deixaram transparecer uma visão negativa dos
mesmos, ao longo da entrevista. Essa percepção negativa prevaleceu, contradizendo a fala
inicial dos profissionais.
Para P6, a maioria dos conflitos reflete aquilo que a criança viveu, sendo que
muitos têm como base a falta de limites. Então, os conflitos entre as crianças devem ser
transformados na hora que eles acontecem e, sempre que possível, antes de acontecerem.
Em relação ao último, a professora explicou que costuma fazer as interferências antes do
conflito acontecer: “Eu falo antes de acontecer, não pode deixar. Geralmente, quando
acontece, é na brincadeira livre. Quando está na casinha, quando está empurrando o
carrinho, aquela coisa assim... Então, não tem muito disso, não tem essa necessidade.”
Quando questionada sobre os conflitos mais comuns entre as crianças de sua turma, P6
respondeu:
Ah! Falar, falar! Eles falam muito alto! E conversam muito, falam muito alto, às vezes,
alguns alunos falam palavrões. Então assim, conflitos na minha sala não têm muitos não.
Eles têm o que a criança traz da casa. Eu acho que não tem muito..., assim, disciplina, não
tem muito limite, os pais não sabem dar limite, não sabem educar.
De acordo com P7, os conflitos são importantes para o crescimento das crianças,
mas a maioria acontece porque tem crianças que são agressivas e por nada batem. Muitas
vezes essa questão está relacionada com a falta de limites por parte da família. D1
concordou com a última colocação e acrescentou o fato de existirem famílias muito
permissivas. A criança acaba fazendo o que ela quer em casa e tenta fazer o mesmo na
escola.
Para D2, a maioria dos conflitos entre as crianças reflete o que as crianças estão
vivenciando em casa, uma vez que elas acabam reproduzindo na escola essas dificuldades.
Entre as dificuldades familiares que D2 ressaltou se encontram a carência de carinho, de
limites, de regras claras, de orientação e exemplos de ações inadequadas por parte dos pais.
Em função do anterior, a entrevistada ressaltou que a melhor maneira de lidar com os
196
conflitos das crianças é saber qual é a dinâmica familiar e a história das crianças. Entender
o que acontece com as crianças permite selecionar as estratégias que a professora usará
para mudar o comportamento delas.
As estratégias de intervenção diante dos conflitos interpessoais foram bastante
diversificadas e vão além de intervir antes do conflito acontecer (P5, P6, P7 e D2). Os
profissionais apontaram a importância de conversar com as crianças envolvidas e ressaltar
as conseqüências do confronto físico para a criança machucada (P4, P5, D1 e D2). Outra
estratégia de intervenção seria tirar a criança da atividade para refletir sobre o acontecido,
lembrando as regras e avaliando as ações da criança como certas ou erradas perante o
grupo (P4, P6, P7 e D2). Sobre a efetividade da última estratégia, P6 e D2 esclareceram
que, após retirar a criança da atividade, o conflito costuma não se repetir, pois a criança
quer brincar e evita entrar em conflito ou atrito com as outras.
Nesta categoria de análise, é importante sublinhar algumas questões, além da visão
negativa do conflito que prevaleceu. Ao colocar o conflito interpessoal entre as crianças
como uma conseqüência da agressividade e das questões familiares, os entrevistados
acabaram desconsiderando questões importantes do desenvolvimento infantil. As crianças,
que se encontram no começo de um longo processo de socialização, estão entrando em
contato e internalizando formas socialmente aceitas para a resolução de seus conflitos
interpessoais. Em função disso, é comum que as crianças resolvam seus conflitos através
do confronto físico com o outro, sendo papel do adulto ajudar as crianças a resolver e lidar
com os conflitos de formas adequadas. Entretanto, o fato de muitas crianças resolverem
seus conflitos através do confronto físico não significa que em alguns casos específicos
isto possa estar relacionado com questões familiares que precisem de um encaminhamento
determinado.
Chamam a atenção algumas especificidades da fala dos entrevistados. Quando
questionados sobre os principais conflitos entre as crianças, todos falaram sobre as disputas
por brinquedos e pelo espaço. Entretanto, ao descrever as estratégias de intervenção só
falaram sobre o confronto físico. Sendo assim, o conceito de conflito interpessoal se
confunde com uma das formas de resolução características da criança pequena: o confronto
físico. Essa questão pode estar na base da visão negativa do conflito interpessoal, que
prevaleceu na totalidade das entrevistas.
9. Percepção da relação professor-criança
Todos os entrevistados avaliaram como positiva sua relação com as crianças da
turma e da escola. De acordo com eles, essa relação é baseada no afeto, na compreensão e
197
no respeito, fatores importantes para diminuir algumas dificuldades e desafios que o
professor enfrenta em sala.
Alguns dos entrevistados (P4, P5 e P6) relataram que os principais desafios e
dificuldades em sala de aula estão relacionados com a agitação e a falta de limites por parte
de algumas crianças. Nesses casos, é necessário estabelecer regras e limites claros, que
devem ser cobrados o tempo todo. Conversar e atuar em parceria com a direção da escola e
com a família também é importante.
10. O conceito de moral
Ao falar sobre o conceito de moral, a maioria dos entrevistados (P4, P7, D1 e D2)
enfatizaram a dimensão comportamental e normativa. Ou seja, a moralidade apareceu
como um conjunto de ações e normas importantes para o convívio. As mesmas podem
variar de uma cultura para outra, são aprendidas desde cedo e no contexto familiar.
Para P5 e P6, a moral se define como um conjunto de valores que vão determinar a
forma da pessoa se colocar ante a vida e os outros. Esses valores são transmitidos por
várias instâncias sociais e, especificamente, pela família. Os valores que podem ser
considerados morais em um grupo, podem ser considerados imorais em outro. Dessa
forma, P5 e P6 enfatizaram a dimensão subjetiva da moralidade.
Sobre a relação entre moral e convenções sociais, os entrevistados (P4, P6, P7, D1 e
D2) explicaram que existem diferenças entre os dois conceitos, mas que regras morais e
convenções sociais geralmente se superpõem, dependendo do contexto e a situação.
Entretanto, chamam a atenção os exemplos colocados como ações que podem ser
consideradas certas ou erradas moralmente:
Certas: Ter uma fala amorosa ou carinhosa; Ser respeitoso, educado; Saber discordar do
outro ou ter tato para conversar; Respeitar o pai e a mãe, Ter comportamentos adequados
para se vestir ou não andar exposto demais; Saber se comportar em diferentes ambientes;
Não falar palavrões; Confiar nas pessoas; A professora se ‘comportar’ perante as crianças;
A professora falar corretamente com as crianças; A professora se vestir adequadamente
para o trabalho com as crianças; Ter uma boa conduta na hora de falar com as pessoas;
Respeitar as idéias e o modo de ser do outro; A honestidade; Não interferir nos valores
morais do outro; Não obrigar o colega a acreditar na mesma religião.
Erradas: A corrupção; Depreciar a pessoa ou tirar a auto-estima de alguém; Usar a
sexualidade para conseguir o que se quer; Uma pessoa tocar o corpo de outra incomodando
ou sem a outra consentir; O adultério; Imitar danças apelativas à sexualidade; Agredir;
198
Mentir; Dissimular; Invadir o espaço do outro sem o consentimento dele; Roubar; A
desonestidade.
Muitos dos exemplos colocados pelos entrevistados podem ser catalogados como
convenções sociais e não necessariamente como ações relativas à moralidade. Além disso,
vários exemplos estão relacionados com a sexualidade. Duas das entrevistadas (P4 e P6) se
referiram a questões de sexualidade na hora de exemplificar as diferenças entre convenções
sociais e moral. De acordo com elas, a homossexualidade é vista por muitos como uma
convenção social, uma vez que é aceita em nível social, mas não é certa moralmente, ou
seja, é imoral.
Nos exemplos colocados prevalecem as dimensões comportamental e normativa da
moralidade, uma vez que os mesmos foram elaborados em termos de ações e de normas
(falar corretamente, ter boa conduta, não agredir). Os exemplos relativos a valores sócio-
morais foram escassos (honestidade-desonestidade, respeito).
Além das questões anteriores, vale a pena ressaltar algumas idéias implícitas na
elaboração discursiva dos entrevistados. A primeira é o papel primordial da família na
educação moral. De acordo com todos os entrevistados, as ações, normas e valores morais
são aprendidos especificamente no contexto familiar. A segunda é o papel passivo do
indivíduo nessa educação moral. Ações, normas e valores morais são transmitidos e
aprendidos, mas não reconstruídos de forma ativa pela pessoa.
11. O conceito de desenvolvimento moral
Alguns entrevistados trouxeram elementos novos ao definir o conceito de
desenvolvimento moral. P4 especificou que o desenvolvimento moral “passa pelo
desenvolvimento da ética”. Vale a pena ressaltar que P4 foi a única entrevistada que falou
sobre ética, pontuando diferenças entre ética e moral. A entrevistada pontuou a natureza
mais social e coletiva da ética, e a moral como uma ética da ordem do sujeito. D1
conceituou o desenvolvimento moral a partir do modelo unidirecional de transmissão da
cultura, ressaltando o ‘papel passivo’ do sujeito (e especificamente da criança) no se
próprio processo de desenvolvimento:
Desenvolvimento moral. É o polimento de uma pedra bruta. A criança é como uma pedra
encontrada na natureza, aquela rocha, né? Então, o aperfeiçoamento do caráter, né? Com...
com esse desenvolvimento moral ele vai se aperfeiçoando, vai se formando. Então, é uma
pedra que vai sendo adaptada até se formar um brilhante. Acreditamos que é impossível
tornar o brilhante lapidado uma perfeição. Jesus Cristo conseguiu ser, então, a gente tem
que buscar. Aí, quanto mais nos aperfeiçoarmos, melhor vamos estar para nossa família,
para a sociedade. E mais confortáveis com relação a nós mesmos”.
199
De forma geral, a maioria dos entrevistados (P4, P5, P7 e D2) enfatizaram
novamente as dimensões comportamental e normativa da moralidade. O desenvolvimento
moral foi conceituado como a possibilidade de aprender regras e normas que norteiam o
comportamento, no sentido de uma boa convivência. Alguns entrevistados como P7 e P5
falaram também dos valores aprendidos no convívio com os outros.
De acordo com todos os profissionais, várias instâncias participam no
desenvolvimento moral da criança: a família, a escola (professores e colegas), a
comunidade, a televisão e diferentes grupos sociais que a criança pode freqüentar no seu
cotidiano. A família tem o peso maior, pois a criança passa a maior parte do seu tempo no
contexto familiar. Além disso, cabe a família dar um bom exemplo para a criança, colocar
limites e regras claras. A família é a instância que estabelece os padrões de comportamento
moral que a criança deve seguir. A escola tem um papel importante no desenvolvimento
moral, mas sua participação fica restrita a questões mais comuns ou restritas: não agredir,
não roubar, não mentir etc.
Em relação à última idéia, P6 fez colocações que chamaram nossa atenção. De
acordo com a entrevistada, a escola pode passar o que acha certo para a criança, mas não
tudo, pois no contexto escolar não se deve discutir determinados aspectos como a
sexualidade e a religião.
P5 acrescentou que a Educação Infantil deve contemplar o desenvolvimento moral
da criança no sentido de ajudar as crianças desprovidas de regras, limites e valores que
norteiam seu convívio com o outro. A escola também pode ajudar a criança a compreender
porque ela age de um jeito específico e mostrar que tem outras formas de agir em relação
aos outros.
D2 enfatizou que a Educação Infantil deve contemplar o desenvolvimento moral no
sentido de formar comportamentos adequados e transmitir regras morais como: pedir
licença para falar, falar um de cada vez, esperar a vez para ir ao banheiro, não por a mão no
outro e não pegar o lanche do outro. Na fala de D2 aparecem elementos já sublinhados ao
longo de nossa análise: convenções sociais e questões de sexualidade colocadas no âmbito
da moralidade. Vale a pena ressaltar que as regras morais colocadas por D2 coincidem com
as regras descritas pelos entrevistados, as quais fazem parte do cotidiano da escola e das
diferentes turmas.
200
De acordo com D1 e D2, a escola pesquisada contempla o desenvolvimento moral,
que faz parte do trabalho cotidiano. Na escola, os professores orientam a criança, falam
para ela o que pode e não pode (como no livro usado nas atividades estruturadas), o que é
certo e errado, e passam informações e/ou conceitos morais corretos. O maior desafio para
a escola é quando a família não cumpre seu papel, orientando ou oferecendo um modelo
negativo para a criança.
12. Percepção da prática pedagógica (Análise das situações hipotéticas do roteiro)
Ao analisar as situações hipotéticas relacionadas com situações de conflitos, a
maioria dos entrevistados (P4, P5, P6 e P7) enfatizou a necessidade de conversar com as
crianças e levá-las a refletir sobre suas próprias ações. Essa conversa pode acontecer em
grupo ou individualmente, dependendo da situação. Além dessa conversa e reflexão, seria
necessário ajudar as crianças procurar outras formas de resolução, sempre no âmbito da
negociação. Dependendo da situação de conflito, seria necessário retirar a criança da
atividade até ela refletir sobre suas ações e conseguir voltar para a atividade, ou
encaminhá-la para uma conversa com os diretores da escola.
D2 concordou com as estratégias anteriores e acrescentou outros elementos.
Dependendo da situação de conflito, seria necessário induzir a possibilidade da criança se
colocar no lugar do outro, favorecendo dessa forma a emergência da empatia. Nesse
sentido, D2 ressaltou frases como: “Olha como é que os colegas estão tristes! e Se fosse
você, você ia gostar?”
D1 também enfatizou a necessidade de conversar com as crianças sobre a situação,
esclarecendo os acontecimentos e lembrando regras importantes para o convívio e o
respeito.
Nas situações de transgressão de regras, todos os entrevistados enfatizaram que a
melhor estratégia é conversar com a criança sobre as mesmas. Caso as regras sejam
transgredidas após a conversa, a opção seria retirar a criança da atividade, sobretudo
quando há machucados ou agressões (P4, P5, P6, P7 e D2). Neste ponto, é importante
ressaltar que em falas anteriores, P4 explicou que não retiraria a criança de atividades
como o parquinho em função de comportamentos inadequados. Entretanto, na hora de
analisar e complementar as situações hipotéticas essa opção apareceu de forma clara na sua
fala, apontando aí uma contradição.
Nas situações de desrespeito, todos os entrevistados explicaram que conversariam
com as crianças sobre a necessidade de respeitar as diferenças do outro e incentivariam
comportamentos pró-sociais como a ajuda mútua, a cooperação e a amizade. A promoção
201
da empatia não foi ressaltada como uma estratégia a ser usada na hora de colocar e explicar
para a criança as regras relacionadas com o respeito pelo outro. P6 e D2 (D2 que antes
havia falado da técnica indutiva) especificaram que ajudariam a criança desrespeitada em
duas direções. A primeira, seria tentar resgatar a auto-estima dela. A segunda, seria ajudar
a criança a estabelecer formas de se defender, para que ela não fique sempre na posição de
defendida. Outro mecanismo colocado por D2, nas situações de desrespeito, foi o
mecanismo da reparação. Ou seja, a criança reparar de alguma forma (pedindo desculpas,
restituindo objetos etc.) o dano ou desrespeito ocasionado ao outro.
De acordo com a totalidade dos entrevistados, todos esses mecanismos estão em
consonância com a proposta pedagógica da instituição e são estratégias discutidas pela
equipe pedagógica. Retirar a criança da atividade é uma das estratégias mais eficientes,
pois as crianças costumam mudar seu comportamento.
VI - DISCUSSÃO
Nesta seção do trabalho retomaremos e integraremos os principais resultados
apresentados e discutidos de forma separada nas análises anteriores, com o intuito de
formular uma reflexão geral e estabelecer como o desenvolvimento moral permeia a
prática pedagógica da instituição pesquisada. Para isso, destacaremos os processos,
estratégias e características que permeiam as interações professora-criança, e que podem
ser significativos para o desenvolvimento moral. Também destacaremos os padrões de
consistência e inconsistência entre a elaboração discursiva dos profissionais da escola e as
interações concretas, bem como no interior de cada uma destas modalidades de
informação.
Com o intuito de organizar melhor esta reflexão e abranger questões importantes
para o desenvolvimento moral delimitamos alguns temas que servirão de eixo para a
discussão. Todos esses temas estão inter-relacionados com o desenvolvimento moral, como
explicitamos no capítulo Fundamentação Teórica.
1. Interações Professora-Criança no Cotidiano Escolar
Tanto nas sessões de observação direta como nas sessões gravadas em vídeo,
pudemos constatar o predomínio da assimetria nas relações professora-criança, o que não
significa que, em alguns momentos, as crianças não tenham tido a oportunidade de
participar de forma mais ativa em situações do cotidiano escolar.
Nas interações concretas analisadas, foi possível observar o papel central da
professora na organização e direcionamento das atividades do cotidiano. É a professora
que planeja, organiza e direciona as atividades, assim como estabelece as regras que vão
nortear as ações e interações das crianças. Em algumas das atividades analisadas, chamou a
atenção a ênfase quase exclusiva outorgada à ordem e à disciplina em detrimento do
interesse e motivação das crianças para participar das atividades e interagir entre elas.
Regras como falar um de cada vez e na oportunidade outorgada pela professora, não
conversar durante a atividade e manter uma postura corporal determinada apareceram com
o intuito de canalizar as ações das crianças em uma direção específica, evitando o contato
entre elas, sempre de acordo com a orientação para objetivo mais importante da professora:
realizar as atividades acadêmicas da forma esperada e estabelecida por ela.
202
Também foi possível observar a predominância das orientações para objetivo da
professora, em detrimento da inclusão das orientações e interesses das crianças em relação
ao tipo e estrutura da atividade a ser realizada. Em muitas das sessões analisadas,
observamos que as instruções da professora, em relação à estrutura e ao tipo de atividade,
foram unilaterais. Dessa forma, as orientações para objetivo da professora prevaleciam
deixando pouco espaço para o diálogo e a negociação das atividades.
Em consonância com o predomínio da assimetria nas relações professora-criança,
observamos que as interações criança-criança, na sua maioria, foram restritas e controladas
pela professora, inclusive em momentos mais livres da rotina escolar. Em nossas análises
chamou a atenção o fato da maior quantidade de interações criança-criança acontecerem
nos momentos em que a professora se ausentava da sala de aula ou estava ocupada com
outra atividade. Mesmo nas duas atividades estruturadas, que tinham como objetivo
‘promover o desenvolvimento moral’, as interações criança-criança foram escassas. As
poucas interações entre as crianças foram mediadas pela professora e permitidas, mas
limitadas em função da estrutura e organização das atividades. Dessa forma, as duas
atividades estruturadas não se constituíram momentos de discussão, entendida esta última
como uma co-construção das questões abordadas, com a participação ativa das crianças e a
possibilidade de trocas significativas para elas.
Contudo, também foram registradas em vídeo e constatadas nas entrevistas diversas
estratégias usadas pelas professoras para encorajar a interação e a ajuda mútua entre as
crianças, na hora de realizar algumas das atividades do planejamento. Essas estratégias
foram: realizar muitas das atividades em roda para possibilitar a socialização, organizar
atividades em pequenos grupos e incentivar ações pró-sociais entre as crianças como
ajudar os colegas na realização de algumas tarefas e dividir os materiais e brinquedos. De
acordo com a maioria dos profissionais da escola, essas estratégias são fundamentais para a
troca entre as crianças.
No entanto e ainda de acordo com a maioria dos entrevistados, essas estratégias
para a troca e ajuda mútua entram em conflito com o objetivo predominante de ordem,
disciplina e controle do comportamento das crianças. Em relação a essa questão, as
professoras especificaram que quando as interações e a organização espontânea das
crianças nos grupos de trabalho fugiam dos padrões de disciplina e comportamento
esperado, era necessária uma mudança nos grupos. Esta mudança buscava evitar situações
de conflito, deixando assim de lado a possibilidade das crianças discutirem idéias,
203
significados, crenças, valores e regras de convívio importantes e presentes na dinâmica de
suas interações concretas e no contexto de sala de aula.
O predomínio da assimetria nas relações professora-criançao só foi constatado
nas sessões de observação direta e nas sessões gravadas em vídeo, como também esteve
presente na própria elaboração discursiva dos profissionais da escola. De acordo com todos
os entrevistados, as crianças têm a oportunidade de participar na organização e
planejamento das atividades só de forma indireta, uma vez que as professoras têm a
possibilidade de levar em conta os interesses delas na hora de planejar e organizar as
atividades do dia-a-dia. A participação das crianças nos momentos de elaboração e
constituição das regras que vão reger suas ações e interações no contexto de sala de aula
também é ‘indireta’ (termo que não foi explicado) e passiva. Mesmo os entrevistados que
referiram a possibilidade das crianças participarem nesses momentos indicaram, através de
vários elementos de sua fala, que essa participação é canalizada na direção da constituição
de regras previamente discutidas e estabelecidas de forma assimétrica pelos adultos.
A visão passiva da criança no seu próprio processo de desenvolvimento e
aprendizagem transpareceu na elaboração discursiva da maioria dos profissionais da
escola. Seja na definição de criança e infância, na definição de desenvolvimento moral e,
inclusive, na percepção dos entrevistados sobre sua profissão. A criança apareceu como
uma pessoa que, em função de sua idade, precisa da orientação do adulto, pode e deve ser
educada, moldada, polida e colocada nos trilhos. Em várias entrevistas, o papel ativo do
adulto na educação e desenvolvimento da criança foi enfatizado, o que está em
consonância com o predomínio da assimetria adulto-criança observado nas interações
concretas.
Como exemplo da questão anterior, temos as falas específicas de P5, P6 e P7. As
entrevistadas enfatizaram que trabalham na Educação Infantil porque as crianças menores,
diferente das mais velhas, são mais receptivas e moldáveis: “Porque você pega eles de um
jeito e você coloca do jeito que você quer! (...) Você consegue colocar coisas dentro da
cabecinha deles. Já, os maiores é difícil demais” (P7). Ou seja, as crianças menores, em
função da idade aceitam mais facilmente o modelo autoritário e unilateral/assimétrico. Já
as crianças mais velhas têm a possibilidade de questionar o dito modelo.
De acordo com Piaget (1932/1994) as relações onde predomina a assimetria são
relações que se caracterizam pela posição de autoridade de um dos pólos que impõe ao
outro seus critérios, regras e formas de pensar. São relações constituídas, pois suas regras
são dadas de antemão e, portanto, são contraditórias com o desenvolvimento intelectual e
204
moral da criança, uma vez que ela não tem a possibilidade de participar de forma ativa
nesses processos.
No caso da relação professor-criança, a assimetria se traduz em uma posição de
autoridade ou de Mestre mais experiente, que tem a tarefa de tomar as decisões, direcionar
e controlar as ações das crianças, as quais têm poucas possibilidades de participar
ativamente em questões importantes do seu cotidiano escolar. O professor não só controla
e direciona a estrutura das atividades, mas também as interações entre as crianças que são
vistas, de forma geral, como um fator que atrapalha o andamento das atividades e a ordem
da sala. As interações entre as crianças ficam restritas aos momentos em que o professor
permite, ou aos momentos em que ele não está presente na sala, ou quando está ocupado
com outra atividade (Branco & Mettel, 1995).
De forma geral, a assimetria nas relações adulto-criança é característica do modelo
de transmissão unidirecional de conhecimentos e cultura. Segundo Valsiner (1994, 2007),
neste modelo cabe ao adulto transmitir os conhecimentos e significados culturais de forma
ativa, enquanto cabe à criança uma interpretação passiva dos mesmos. Sendo assim, o
modelo unidirecional restringe a possibilidade da criança significar e re-significar, de
forma ativa e a partir de sua experiência cotidiana, o conjunto de crenças e valores sociais
e morais que se veiculam no contexto de suas interações concretas e que são fundamentais
para seu convívio e relação com os outros.
No caso do desenvolvimento moral, Piaget (1932/1994) ressalta que as relações
assimétricas podem ser necessárias e inevitáveis no inicio da educação moral, mas se
permanecerem exclusivas podem ter conseqüências negativas para o desenvolvimento da
moralidade. As relações assimétricas podem ‘encurralar’ a criança na heteronomia moral,
uma vez que ela não tem a possibilidade de negociar seus próprios pontos de vista, nem a
possibilidade de se descentrar para poder compreender o ponto de vista alheio.
Ainda de acordo com Piaget (1932/1994), a possibilidade de discussão e
negociação de opiniões entre as próprias crianças constitui um aspecto fundamental para o
desenvolvimento da autonomia no juízo moral, e na forma como as crianças aprendem a
estabelecer relações entre si e com outras pessoas. Se as crianças não têm suas orientações
para objetivo (interesses) levadas em consideração e trabalhadas em situações de
negociação, restam-lhe poucas oportunidades para exercer sua autonomia através de
escolhas e de um posicionamento mais livre e ativo.
Quando a assimetria está presente nos momentos de definição, re-apresentação e
negociação de regras, as crianças não têm a possibilidade de negociar os acordos que vão
205
regular e coordenar suas ações no contexto do grupo e de sala de aula. Em função disso, as
regras surgem como acordos ou legislações estabelecidas assimetricamente por uma figura
de autoridade, e desvinculadas das necessidades das crianças. A impossibilidade de
participar dos momentos de definição, re-apresentação e negociação das regras cria um
contexto de dependência e de heteronomia, que se manifesta na forma como as crianças
tentam adequar suas ações às regras estabelecidas, mesmo que não as compreendam.
Convidar as crianças para participar ativamente no estabelecimento das regras é uma forma
pela qual o professor pode reduzir a heteronomia e promover a autonomia moral (Piaget,
1932/1994).
A partir do predomínio da assimetria nas interações professora-criança e do
contexto de dependência e de heteronomia que o mesmo pode criar, podemos nos
perguntar quais as possíveis implicações desses elementos no desenvolvimento moral das
crianças. Que habilidades de participação social, negociação e afirmação de suas próprias
posições e pontos de vista podem ser desenvolvidas nesse contexto? Que capacidades de
dialogo, interação e convivência genuína as crianças podem desenvolver, quando seus
pontos de vista e orientações para objetivo não são levados em consideração?
2. Regras: Desenvolvimento Moral ou Disciplina?
A partir da análise das observações, filmagens e entrevistas, concluímos que na
escola estudada existem diversas regras a serem respeitadas pelas crianças. Embora essas
regras fossem avaliadas pelos profissionais como regras importantes para o
desenvolvimento moral, a maioria delas apareceram como regras voltadas
fundamentalmente para o controle do comportamento das crianças e para a manutenção da
ordem e disciplina. A importância que se outorga ao controle do comportamento e à
manutenção da disciplina na sala de aula tem uma relação particular com o
estabelecimento de relações predominantemente assimétricas, assim como com o controle
das interações criança-criança, que discutimos anteriormente.
O controle do comportamento e a manutenção da disciplina na sala de aula são
elementos considerados importantes por muitos professores, pois eles garantem o sucesso
das atividades planejadas vistas como fundamentais em termos de conteúdos e objetivos
educacionais (Lima 2000; Salomão, 2001). Sendo assim, os professores se vêm na
obrigação de criar e usar uma serie de estratégias que vão manter as crianças atentas e
206
concentradas na atividade. De acordo com o estudo realizado por Lima (2000), essas
estratégias vão desde o estabelecimento de um conjunto de regras voltadas para diminuir
ou eliminar a conversa entre as crianças, pois ela atrapalha o desenvolvimento da aula, até
o pedido indireto de silêncio através de frases estereotipadas. O uso de sanções também faz
parte dessas estratégias e sua utilização é comum no cotidiano da escola.
Neste ponto, é importante ressaltar que os resultados do presente estudo coincidem
com os resultados do estudo de Lima (2000), não só de uma forma geral, mas também em
detalhes muito peculiares que chamam a atenção.
Lima (2000) realizou um estudo com professoras da 1ª série do Ensino
Fundamental, em diferentes escolas da rede de ensino publico do Distrito Federal. As
professoras que participaram do estudo referiram o uso de diversas regras para manter a
disciplina e o controle do comportamento das crianças. Entre as regras referidas pelas
participantes do estudo de Lima (2000) se encontram muitas das regras aqui observadas,
que foram colocadas pelas professoras de nossa pesquisa como regras importantes para o
desenvolvimento moral das crianças. Algumas delas são: falar um de cada vez, falar baixo,
não conversar durante a atividade e manter uma postura corporal adequada.
Por outro lado, as professoras entrevistadas e filmadas por Lima (2000) usavam
diferentes frases como: “tem criança que não está conseguindo controlar a boquinha!”,
“todo mundo controle boquinha”, quando a conversa das crianças começava ‘atrapalhar a
aula’. Essas mesmas frases foram observadas em nosso estudo, além do pedido reiterado
de silêncio através da interjeição “psiu”. O uso de sanções, que têm como objetivo retirar
uma atividade ou momento prazeroso da rotina, também fazem parte das estratégias
comuns entre os dois estudos.
Durante a pesquisa, observamos, também, que muitas das regras colocadas pelos
adultos não atendem as necessidades da criança e não são explicitadas de forma clara nem
em termos de motivos. A maioria das falas das professoras nos episódios de re-
apresentação e confirmação de regras se limitou a colocar as regras para as crianças, sem
enfatizar os motivos das mesmas e sem permitir a participação ativa das crianças nesses
momentos. Mesmo aquelas regras que podem ser importantes para o desenvolvimento
moral das crianças, pois estão relacionadas com o respeito pelo outro na sua condição de
ser humano e na sua integridade física e psicológica, foram colocadas para as crianças em
função da ordem e da disciplina e sem explicação, em muitos momentos. Dessa forma, se
perde a possibilidade de dialogar com as crianças sobre questões importantes da
moralidade, a partir das situações concretas do cotidiano.
207
Podemos encontrar um exemplo da questão anterior no Episódio I da primeira
Atividade Estruturada (trecho 2). A frase “A gente pode brincar com os amigos” foi
interpretada por uma criança como a possibilidade de dividir e compartilhar os brinquedos
com o outro. Entretanto, essa interpretação não foi aproveitada pela professora, na direção
de explorar mais os motivos sociais dessa partilha, a partir das próprias experiências das
crianças, que costumam ter conflitos em função dos objetos e brinquedos.
Como ressaltado por diversos autores (e.g. Puig, 1998; Rogoff, 2005) as situações
concretas do cotidiano que envolvem questões relativas à moralidade são de extrema
importância para o desenvolvimento. É nesses momentos que as crianças têm a
possibilidade de se deparar e aprender, de forma participativa, o conjunto de significados
sócio-morais que regem as ações e interações da comunidade e dos contextos em que
vivem e se desenvolvem.
O envolvimento das crianças na negociação das regras é um elemento muito
importante para o desenvolvimento moral, não só em função dos processos de construção,
compreensão e internalização das regras, mas também em função do processo de
construção do próprio conceito de regra (Piaget, 1932/1994). Ao participar ativamente da
negociação e estabelecimento das regras, as crianças têm a possibilidade de atuar como
legisladoras ativas dos acordos que devem reger suas ações e interações, no marco de
contextos e situações específicas relevantes para elas. Dessa forma, a regra deixa de ser
uma imposição unilateral e externa estabelecida por uma figura de autoridade, para se
constituir em acordo, ou legislação que tem uma funcionalidade determinada e que pode
ser estabelecida pelas pessoas envolvidas em função de seus interesses e orientações para
objetivo.
Ainda sobre essa questão, DeVries e Zan (1998) enfatizam a importância de
estabelecer, junto com as crianças, tanto regras negativas como afirmativas. Ou seja, regras
que não se centrem no caráter proibitivo da norma, em função da importância que esse
aspecto tem para a compreensão do próprio conceito de regra, como legislação que não
necessariamente é proibitiva. Tanto nos episódios analisados como nas entrevistas, a
maioria das regras apresentadas apareceu como regras negativas (não pode rolar na areia,
não pode brigar etc.), ressaltando o caráter proibitivo das mesmas. Dessa forma as
professoras acabaram limitando as possibilidades das crianças se descontraírem e
interagirem de forma espontânea. Se analisarmos essa questão a partir das idéias de
Valsiner (1989) sobre as zonas de desenvolvimento que o autor apresenta ao falar sobre o
desenvolvimento da criança, podemos concluir que a Zona de Movimento Livre (ZFM) das
208
crianças se identifica com a Zona de Ação Promovida (ZPA) pela professora. De acordo
com o autor, quando a ZFM é igual à ZPA o contexto de desenvolvimento se caracteriza
pela predominância do poder e da autoridade do adulto. Um exemplo claro disso apareceu
no Episódio III (“Agora vamos ver quem merece ir para o parque”), da terceira sessão
filmada na turma-foco. A professora-foco (P3) apresentou uma grande quantidade de
regras negativas, que limitavam consideravelmente as ações e interações das crianças
mesmo no contexto de uma atividade de brincadeira livre.
Autores como DeVries e Zan (1998) também enfatizam a importância do
envolvimento das crianças na formulação das regras em função de outros aspectos. De
acordo com as autoras, esse envolvimento pode ajudar as crianças a perceberem a
necessidade da regra e se sentirem co-autoras, fatores que podem promover o sentimento
de responsabilidade compartilhada em relação às regras estabelecidas pelo grupo e uma
maior disposição para o cumprimento das mesmas. Branco e Mettel (1995) também
ressaltam o papel da explicação clara e da negociação das regras para o comprometimento
com as mesmas. Além disso, convidar as crianças para participar ativamente no
estabelecimento das regras é uma forma pela qual o professor pode reduzir a heteronomia e
promover a autonomia moral (Piaget, 1932/1994).
Já sobre a importância de estabelecer regras e limites que venham ao encontro das
necessidades das crianças, autores como La Taille (1998) e DeVries e Zan (1998) apontam
que as regras e limites colocados desde a perspectiva adulta podem ser incompreensíveis
para as crianças, uma vez que elas não sentem a necessidade real dos mesmos. Por outro
lado, essas regras e limites podem ser colocados a partir de uma perspectiva apenas adulta,
que não leva em conta o nível de desenvolvimento e compreensão das crianças.
Como colocamos anteriormente, embora a maioria dos entrevistados referisse a
possibilidade de participação das crianças nos momentos de estabelecimento e constituição
das regras que devem reger suas ações e as do grupo, os próprios entrevistados apontaram
elementos que indicaram uma canalização dessa participação em função de regras
previamente discutidas e constituídas somente pelos adultos. Os profissionais da escola
mostraram uma preocupação excessiva com a determinação das regras que devem nortear
as ações e interações das crianças ao longo do ano letivo. Sendo assim, essas regras devem
ser delimitadas logo na primeira semana de aula, com o intuito de garantir que a dinâmica
da sala e das atividades planejadas aconteça da forma prevista. Chama a atenção o fato de
estabelecer as regras do grupo em um momento em que o grupo está nos primórdios de sua
constituição, e as crianças ainda não tiveram a possibilidade de sentir e perceber quais
209
regras e acordos podem ser importantes, ou fazer sentido, para suas interações. Também
chama a atenção o fato das regras serem as mesmas para os diferentes grupos de crianças,
o que sugere que essas regras são estabelecidas pelos professores sem levar em
consideração as especificidades e necessidades de cada turma.
Entre as estratégias voltadas para garantir o cumprimento das regras, podemos
ressaltar o uso ou a ameaça de sanções, a exposição dos erros da criança perante o grupo e
a re-apresentação mecânica das regras. Estes mecanismos foram constatados tanto nas
entrevistas como nas análises das sessões de observação direta e gravadas em vídeo. No
entanto, existem algumas inconsistências entre as ações concretas e a elaboração discursiva
dos profissionais, na hora de descrever seu fazer pedagógico nos momentos de
transgressão das regras. Embora muitos dos entrevistados referirem a importância de
conversar com as crianças, seja de forma individual ou coletiva, sobre a regra transgredida
e os motivos da mesma, a conversa acontece somente no sentido de re-apresentar a regra, e
muitas vezes, de comunicar quais as conseqüências de uma transgressão (sanção).
Podemos exemplificar a questão anterior a partir das análises da turma-foco. A
professora-foco explicou na entrevista que tenta não chamar a atenção da criança que
transgrediu a regra na frente dos colegas, para não gerar uma situação desconfortável.
Entretanto, nos episódios analisados, a exposição dos erros da criança perante o grupo foi
uma das estratégias de intervenção mais usadas por ela. Dessa forma, seu discurso neste
ponto é claramente contraditório com o seu fazer pedagógico.
O uso ou ameaça de sanções foi uma das estratégias mais ressaltadas nas
entrevistas, em função de sua eficiência como controladora das ações e do comportamento
das crianças. A sanção mais usada é a retirada da criança da atividade, como pudemos
constatar nas sessões de observação direta e nas gravadas em vídeo. De acordo com alguns
entrevistados, as crianças regulam o comportamento de acordo com as regras
estabelecidas, uma vez que desejam continuar participando das atividades, sobretudo se
são atividades prazerosas.
Nos episódios em que houve uso ou ameaça de sanções como estratégia para
garantir o cumprimento das regras, constatamos que a estratégia foi usada de forma
assimétrica pelas professoras, não sendo discutida pelo grupo de crianças. Além disso, a
sanção não apareceu como uma estratégia de compensação recíproca em relação às regras
transgredidas. Na sanção por reciprocidade, o objetivo da conseqüência é comunicar que
aquele que errou perturbou um relacionamento interpessoal (Piaget, 1932/1994). Esse tipo
de sanção, geralmente, contém um elemento de sofrimento para a criança, que pode
210
vivenciá-las como injustas. Contudo, este sofrimento não é infligido para finalidade de
sofrimento, mas é um resultado inevitável da quebra do vínculo de confiança.
De acordo com DeVries e Zan (1998), o uso de sanções pode ser uma estratégia de
compensação usada pelo professor, sempre que a mesma seja discutida pelo grupo de
crianças e seja recíproca em relação à transgressão. No caso específico da exclusão ou
retirada da atividade, as autoras enfatizam que essa conseqüência freqüentemente é difícil
de ser aplicada sem transformá-la em punição. Retirar a criança da atividade é uma
punição amplamente usada em diversas culturas (Rogoff, 2005), mas não é uma sanção de
reciprocidade. Ou seja, a sanção não se relaciona com a transgressão de forma
compensatória. Segundo DeVries e Zan (1998), essa sanção pode se basear na idéia
comum de que, se a criança sofre com a retirada da atividade, ela não errará ou transgredirá
as regras novamente. Esse sofrimento pode levar a criança a se ressentir com o perpetrador
do mesmo. Também pode levar a criança a sentir, intimamente, que é má e, portanto, negar
a auto-estima. As autoras, ainda, ressaltam que pode levar a criança a ser mais calculista da
próxima vez, para que o adulto não descubra seus erros ou transgressões. Sob esse ponto
de vista, DeVries e Zan (1998) esclarecem que essas sanções são arriscadas e estão mais
propensas a ser contra-produtivas, se o adulto deseja promover o desenvolvimento moral
da criança. No entanto, isto não significa que a retirada da criança da atividade quando não
quer colaborar seja sempre negativa. Tudo irá depender de como a questão é significada
entre o adulto e a criança, não havendo regras culturalmente e/ou intersubjetivamente
descontextualizadas na educação das crianças (Tobin, Wu & Davidson, 1989).
Neste ponto de nossa discussão, é importante lembrar que um dos profissionais
entrevistados (D2) enfatizou que as professoras discutem sobre questões relativas às regras
na reunião de coordenação, e a orientação que elas têm é retirar uma coisa que dá prazer.
Uma das atividades retiradas é a brincadeira livre no parque, a qual se constitui “um ótimo
canal para tirar o comportamento negativo” (D2). Colocada desta forma, pode-se dizer que
esta se torna em estratégia problemática para o desenvolvimento da criança.
Por último, gostaríamos de destacar que o planejamento das duas atividades
estruturadas pela professora-foco foi de certa forma consistente em relação às concepções
equivocadas de moral e desenvolvimento moral da maioria dos profissionais da escola. Os
entrevistados, ao falar sobre a moralidade, enfatizaram as dimensões normativa e
comportamental da mesma, restringindo moral a um conjunto de regras que vão direcionar
o comportamento do ser humano, ensinado pelos adultos, através de comunicação reiterada
ou através do exemplo. Comportamento este que deve ser caracterizado pela obediência,
211
boca fechada, e ausência de interações criança-criança que não sejam explicitamente
solicitadas pela professora (o que na prática, raramente acontece). O material selecionado
para as duas atividades estruturadas abordou um conjunto de regras (“pode” e “não pode”)
que pouco estiveram relacionadas com questões de natureza moral e de respeito pelo outro.
A grande maioria das regras abordadas pelo material (66% das regras apresentadas)
estiveram relacionadas com questões de habilidades físicas, higiene, ordem e disciplina, e
segurança das crianças. Além disso, eram dirigidas a crianças entre 3 e 4 anos, fazendo
muito pouco sentido para crianças mais velhas. Vale a pena lembrar que as duas atividades
estruturadas não foram planejadas apenas pela P3, pois segundo ela, foram pensadas em
conjunto pelas professoras do período matutino e um membro da diretoria. Isto, portanto,
sugerem que sejam, em certo grau, representativas do fazer pedagógico dos profissionais
da escola.
Esses resultados nos fazem concluir que, na visão dos profissionais, o
desenvolvimento moral está atrelado ao conceito de disciplina, em função das dimensões
normativa e comportamental da moralidade. Como colocado por Cortella e La Taille
(2007), atualmente há uma grande preocupação, por parte da escola e dos professores, de
trabalhar junto às crianças o tema dos valores e da moralidade. No entanto, essa
preocupação deriva, na maioria das vezes, de uma queixa de comportamento ou de uma
desobediência, geralmente ligada a aspectos disciplinares. Não se trata de uma
preocupação ética com a formação do cidadão, capaz de ter um posicionamento crítico e
autônomo frente à realidade e às crenças e valores socioculturais. Trata-se de uma
preocupação voltada para a resolução de problemas considerados objetivos e concretos por
parte dos professores e que estão relacionados com questões de obediência e autoridade.
3. Conflitos Interpessoais: Resolver ou Eliminar?
De acordo com muitos dos profissionais da escola, os conflitos interpessoais fazem
parte do desenvolvimento infantil e são importantes para o desenvolvimento moral das
crianças. No marco dos conflitos interpessoais as crianças aprendem interagir com o outro,
assim como compartilhar e resolver as diferenças. Os conflitos mais comuns são aqueles
que surgem em função dos objetos, do espaço e de desentendimentos pessoais. No
entanto, o conflito passa ter uma conotação negativa quando ele é resolvido através do
confronto físico, o que é comum entre as crianças pequenas. Esses conflitos apareceram na
elaboração discursiva dos profissionais como situações geradoras de angústia, que devem
212
ser evitadas a todo custo seja controlando o comportamento das crianças através das
sanções e das regras estabelecidas, ou interferindo antes que os conflitos se estabeleçam.
Para alguns dos profissionais, o conflito é um reflexo da falta de limite da família, assim
como de exemplos inadequados no contexto familiar. Para outros é um reflexo da
agressividade de algumas crianças, que por nada batem e entram em atrito com o outro.
Em resumo, se iniciam seu discurso falando dos aspectos positivos do conflito,
terminam por afirmar uma visão negativa do mesmo, e isto transparece nas interações
concretas das professoras com as crianças. Tanto nas sessões de observação direta como
nas sessões gravadas em vídeo, foi possível observar intervenções carregadas de
emotividade, por parte das professoras. Frases como “Não!! Não!!”, “Que coisa feia!
Muito feio!” e “Olha para mim!” acabam metacomunicando para as crianças a angústia do
adulto diante da situação de confronto entre as crianças, assim como sua desaprovação e
desapontamento.
De acordo com vários autores (Killen & Nucci, 1995; DeVries & Zan, 1998;
Valsiner & Cairns, 1992), as situações de conflitos interpessoais podem se constituir
oportunidades fundamentais para o desenvolvimento. Quando os conflitos interpessoais
são resolvidos através do confronto e da agressão física, eles demandam uma atenção
especial por parte dos educadores em função dos riscos em termos de segurança para as
crianças. Entretanto, ‘atenção especial’ não significa eliminar a possibilidade dos conflitos
acontecerem, controlando as ações e interações das crianças (Galvão, 2004). Tais conflitos
devem ser antes trabalhados, com a mediação dos adultos, seja este último incentivando as
crianças a conversar para encontrar formas de resolver o conflito (“Por que você não vai lá
conversar com ele?”, em Branco, 1989), seja o adulto dando sempre exemplos de resolução
construtiva de divergências.
Por outro lado, vale a pena sublinhar que as situações de tensão não precisam ser,
necessariamente, situações traumáticas. De acordo com Rey e Martinez (1989), as
situações portadoras de tensão, que são capazes de mobilizar os recursos da personalidade,
podem ser situações extremamente importantes para o desenvolvimento do individuo.
Ainda sobre a questão anterior, DeVries e Zan (1998) assinalam a importância da
atitude do professor frente aos conflitos interpessoais das crianças. As autoras ressaltam
que o professor deve manter uma atitude calma face ao estado de perturbação e de
descontrole emocional que as crianças podem atingir em alguns momentos. A
tranqüilidade do adulto na hora de resolver os conflitos interpessoais que envolvem
confronto físico pode ser percebida, pelas crianças, como um apoio na condução de suas
213
dificuldades. O que não significa, obviamente, que o professor não deva ativamente evitar
danos físicos entre as crianças.
A visão negativa do conflito também esteve presente nas descrições das principais
estratégias de intervenção nos momentos de conflito. De acordo com a maioria dos
entrevistados, quando os conflitos são resolvidos através do confronto físico é necessário
retirar as crianças da atividade para que reflitam sobre suas ações. A sanção foi a estratégia
de intervenção mais ressaltada nas entrevistas, sendo que também a observamos em alguns
episódios analisados.
Além da sanção, que abordamos anteriormente, os profissionais da escola
ressaltaram outras estratégias, que consideram importantes. Deixar as crianças resolverem
suas diferenças, conversar com as crianças sobre o acontecido, ressaltar as conseqüências
negativas do confronto físico e solicitar uma forma de compensação foram as estratégias
de intervenção descritas pelo grupo de entrevistados. Entretanto, a maioria dessas
estratégias não foi concretamente observada nos episódios de conflitos registrados e
analisados neste estudo.
Das estratégias anteriores, a única observada nos episódios da turma-foco foi a
solicitação de uma forma de compensação. As solicitações de compensação aconteceram
de forma mecânica e assimétrica, reduzindo-se a pedidos de desculpa. DeVries e Zan
(1998) alertam em relação aos pedidos de desculpa sugeridos pelo adulto. De acordo com
as autoras, os pedidos mecânicos de desculpa podem ser insinceros e operar contra o
descentramento e o desenvolvimento da empatia, uma vez que as crianças pedem desculpa
porque o adulto solicitou e não porque, de fato, vejam a importância do pedido.
Tanto nas sessões de observação direta como nas sessões gravadas em vídeo,
tivemos a oportunidade de analisar as intervenções das professoras em diferentes tipos de
conflito. Essas intervenções estiveram caracterizadas pela assimetria na interação
professora-criança, deixando pouco ou nenhum espaço de participação ativa das crianças
na resolução de seus próprios conflitos interpessoais.
Nos episódios de conflitos analisados, as professoras assumiram uma posição
central em sua aparente resolução, lembrando regras estabelecidas, estabelecendo a
possibilidade de uma sanção ou solicitando de forma mecânica uma compensação por parte
das crianças. De forma geral, as crianças não tiveram a possibilidade de se expressar
verbalmente de forma ativa em relação a seu próprio conflito, sugerindo ou negociando
estratégias de resolução a partir de suas próprias necessidades e percepções da situação.
214
A participação ativa das crianças em seus próprios conflitos é fundamental para o
desenvolvimento moral (Branco, 2003; Branco & Mettel, 1995; DeVries e Zan, 1998).
Quando as crianças têm essa oportunidade, elas podem colocar seus pontos de vista e
percepções sobre o acontecido, assim como negociar e co-construir estratégias de solução
adequadas para todos os pólos de conflito. Entretanto, é importante sublinhar que nem
sempre, e nem todas as crianças conseguem resolver seus conflitos interpessoais sozinhas,
sendo necessária e importante a mediação do adulto. Ou seja, o adulto na qualidade de
parceiro mais experiente pode ajudar as crianças na resolução dos conflitos, a partir das
possibilidades reais das mesmas, promovendo, assim, a aprendizagem e o desenvolvimento
de novas estratégias de solução.
Em dois episódios analisados (sessões de observação direta no turno matutino)
observamos algumas crianças solicitando a mediação das professoras para resolver
conflitos interpessoais. Em resposta à demanda das crianças, as professoras intervieram
lembrando regras estabelecidas com anterioridade ou dando uma solução pronta, sem a
participação das crianças. Intervenções que acabam por reforçar a dependência das
crianças na hora de resolver conflitos com seus pares. O fato das crianças terem solicitado
a intervenção das professoras pode ser considerado como um indicador de poucas
habilidades ou estratégias para resolver a situação sem o auxilio do adulto. Sendo assim, é
importante a mediação do adulto no sentido de ajudar a criança procurar estratégias de
resolução e desenvolver habilidades interpessoais diferentes de transferir a
responsabilidade para uma figura de autoridade. Dados referentes a pesquisas sobre
interações criança-criança na educação infantil apontam para a eficiência de intervenções
da professora do tipo “Vai lá e conversa com ele!”, ou então “E aí, o que vocês vão fazer
agora para resolver isso?” (Branco, 1989; Tobin & cols., 1989).
Outra estratégia observada nos casos de conflitos morais (relacionados com
questões de cuidado e respeito pelo outro) foi a re-apresentação das regras sem explicitar
ou conversar com as crianças sobre os motivos morais que subjazem as mesmas. De
acordo com Killen e Nucci (1995), re-apresentar a regra sem oferecer os argumentos
morais que existem na base dela é insuficiente no caso dos conflitos morais. É importante
ressaltar para a criança os motivos pelos quais essas regras existem, assim como as
conseqüências que a transgressão da regra pode ter para a outra pessoa envolvida na
situação de conflito. Além disso, re-apresentar regras como “não pode bater” e “não pode
brigar”, no momento de conflito, sem ajudar a criança a procurar outras formas de
215
resolução pode ser vivenciado pela mesma como uma impossibilidade de resolver sua
divergência com o outro.
Explicar as conseqüências da transgressão da regra a partir da perspectiva do outro,
pode, entretanto, ajudar a criança a se descentrar e levar em conta os sentimentos e
necessidades da outra criança, desenvolvendo a empatia (Hoffman, 2000). Esses dois
elementos são considerados importantes para o desenvolvimento sócio-moral, de acordo
com Piaget (1932/1994), Hoffman (2000), Staub (1991) e Branco (2003). A intervenção do
adulto no sentido de orientar as crianças a refletir sobre os sentimentos, desejos e
necessidades do outro pode ser mais efetiva do que lembrar uma regra que pode ser
contrária aos próprios desejos, sentimentos e necessidades das crianças envolvidas no
conflito. DeVries e Zan (1998) também enfatizam a importância de auxiliar as crianças a
levar em conta a perspectiva do outro nas situações de compartilhamento. De acordo com
as autoras, ajudar as crianças a verbalizarem sentimentos e desejos umas às outras e a
escutarem o que as outras têm a dizer, pode ser uma prática adequada na hora de dividir e
compartilhar os objetos e materiais.
É necessário ressaltar que alguns entrevistados como P2 e D2 têm noção da
importância da indução como estratégia de intervenção nos conflitos interpessoais.
Entretanto, não tivemos a oportunidade de observar isto durante a pesquisa.
Nos episódios em que o conflito professora-criança(s) esteve presente, o mesmo foi
resolvido assimetricamente pelo adulto. As crianças envolvidas não tiveram a oportunidade
de se colocar, nem negociar com base em seus interesses.
Quando o conflito interpessoal envolve a figura adulta, a participação ativa da
criança em sua solução passa ser fundamental, em função das características específicas
desse tipo de conflito. Como apontado por Salomão (2001), a negociação entre professor e
aluno não pode ser totalmente equilibrada, nem estabelecida a partir do principio da
igualdade absoluta. Se por um lado a relação entre o adulto e a criança se caracteriza por
um nível de assimetria natural, por outro, o adulto é responsável pela condução da própria
negociação e assume uma posição hierárquica diferenciada em relação à criança. No
entanto, é fundamental que o professor negocie com a criança e estabeleça uma interação
menos assimétrica para que a criança possa se descentrar, compreender o ponto de vista
alheio e co-construir estratégias de resolução adequadas para os dois pólos da interação e
do conflito.
Os conflitos entre o professor e as crianças, em função das últimas se sentirem
injustiçadas, são comuns e requerem uma atenção especial por parte do adulto. Nesses
216
casos é fundamental esclarecer o problema sob todos os ângulos, em função das questões
morais que subjazem à situação de conflito. Também é importante restabelecer o
relacionamento entre ambas as partes (Barreto, 2004).
Em relação aos conflitos por objetos, vale a pena destacar que a possibilidade de
cooperação e brincadeira conjunta não foi percebida pelas professoras observadas. Nos
conflitos analisados, as professoras acabaram encorajando a partilha dos brinquedos como
revezamento do brinquedo, dentro do contexto da brincadeira individual, e não como
cooperação. Ou seja, cada um precisava esperar sua vez de brincar com o objeto,
entendendo que a outra criança pegou o objeto primeiro.
Embora os profissionais da escola tenham colocado o conflito interpessoal como
um elemento importante do desenvolvimento moral das crianças, trechos de sua própria
elaboração discursiva e as ações concretas das professoras observadas nos momentos de
confronto apontam para uma visão negativa do conflito e uma tendência a inibi-lo. As
intervenções concretas nos momentos de conflito se orientaram para a eliminação e não
resolução do mesmo, em detrimento da possibilidade de aproveitá-lo como uma
oportunidade de co-construção e desenvolvimento de habilidades de negociação,
capacidades de dialogo, interação e convivência genuinamente respeitosa entre as crianças.
4. O Desenvolvimento Moral como parte do Currículo Oculto
Como colocamos anteriormente, todos os profissionais entrevistados enfatizaram
muito mais as dimensões normativa e comportamental da moralidade, ao conceituar a
mesma. De acordo com eles, a moral se refere a um conjunto de ações e normas
importantes para o convívio. Mesmo os profissionais que mencionaram a dimensão
subjetiva da moralidade, ressaltando o conjunto de crenças e valores culturais e individuais
que subjazem às normas e comportamentos morais, enfatizaram também as dimensões
normativa e comportamental durante a entrevista.
Em consonância com o conceito de moralidade destacado, para os profissionais da
escola, o desenvolvimento moral se refere à aprendizagem de um conjunto de regras,
comportamentos e valores que permitem a convivência civilizada e harmônica.
Tanto o conceito de moral como de desenvolvimento moral trouxeram aspectos
importantes relativos à qualidade da interação entre os seres humanos, questão
fundamental da moralidade. No entanto, precisamos ressaltar as contradições entre os
conceitos apresentados pelos profissionais da escola e outros elementos de sua elaboração
217
discursiva e ação pedagógica. Como discutimos anteriormente, essas contradições apontam
para uma redução do conceito de desenvolvimento moral ao conceito de disciplina.
Também indicam que o desenvolvimento moral faz parte do currículo oculto que se
veicula principalmente nas interações sociais do ambiente escolar, interações sociais que
parecem priorizar a disciplina, a ordem e o controle do comportamento.
A maioria dos profissionais (inclusive a professora-foco) se referiu à moral como
um conjunto de ações, normas e valores voltados para o bom convívio humano. Entretanto,
quando questionados sobre as regras da escola, a maioria das regras especificadas esteve
voltada para a organização do espaço e da rotina. Poucas regras estiveram relacionadas
com questões importantes para o bom convívio e o respeito pelo outro.
De acordo com os entrevistados, a Educação Infantil deve contemplar o
desenvolvimento moral da criança, no sentido de transmitir regras, limites claros e valores
morais corretos no cotidiano das atividades. A escola pesquisada contempla o
desenvolvimento moral, uma vez que orienta a criança em relação ao que ela pode e não
pode fazer, ao que é certo e errado. As regras e limites estabelecidos na escola têm essa
função, constituindo-se ferramentas importantes para a educação e desenvolvimento moral
das crianças. Mas ainda adotam uma perspectiva de transmissão unidirecional, e não
bidirecional como afirma uma perspectiva sociocultural construtivista.
Nenhum dos entrevistados se referiu ao desenvolvimento de um posicionamento
crítico e autônomo frente à realidade e às crenças e valores sócio-morais. A preocupação
com a formação ética do cidadão não esteve presente na elaboração discursiva dos
profissionais. Somente uma entrevistada se referiu à relação entre ética e moral.
As colocações dos entrevistados em relação ao desenvolvimento moral estão em
consonância com as atividades estruturadas realizadas pela professora-foco e planejadas
pelas professoras do turno matutino e um membro da diretoria. O fato da equipe
pedagógica ter selecionado um livro onde a grande maioria das regras (66% das regras
apresentadas) era voltada para a organização, segurança e possibilidades físicas das
crianças é contraditório com o discurso dos que se referiram à moral como um conjunto de
ações e normas importantes para o convívio. O material selecionado para as discussões
sobre questões de moralidade entre as crianças está, pois, em consonância com as regras
que os profissionais acreditam que irão promover o ‘desenvolvimento moral’ das crianças.
Isto se reflete na idéia subjacente a muitas das falas dos profissionais da escola: “A escola
contempla o desenvolvimento moral, uma vez que orienta a criança em relação ao que ela
pode e não pode fazer”.
218
Ao falar sobre as ações que podem ser consideradas certas ou erradas moralmente,
os entrevistados colocaram muitos exemplos que podem ser catalogados como convenções
sociais e não necessariamente como ações relativas à moralidade: não falar palavrões,
saber se comportar em diferentes ambientes, pedir para ir ao banheiro, falar em voz baixa,
etc. Além disso, vários exemplos estiveram relacionados com a sexualidade e a religião.
De fato, questões sobre sexualidade apareceram nas falas de seis entrevistados.
Uma das professoras chegou conceituar o termo moral a partir de questões relativas à
sexualidade:
Eu..., eu me acho meio quadrada, sabe? Eu... eu... sou meio quadrada, assim... Hoje, tudo é
muito normal. Para mim, tudo não é normal, né? Então, existe criança que assiste filme
pornô, essas coisas de... A gente já teve aqui aluno que... que viu alguma coisa entre pais e
chegou aqui tentando imitar, fazer com o coleguinha, querer beijar na boca, e querer fazer
algo mais. Então, assim, eu vejo isso... Eu não vejo isso como normal. Acho que criança,
ela tem que ser criança na essência dela. Então, assim, o meu conceito de moral, eu acho
que... Eu acho que sou muito quadrada mesmo! Aí, eu falo assim: Gente! Eu acho que isso
aí não é uma coisa normal. Eu acho que isso aí é uma coisa assim... Não tinha que esse
menino estar presenciando isso, esse menino não tinha que estar fazendo isso. Então,
assim, na minha casa com os meus filhos, eu não deixo assistir Big Brother. Eu acho que
isso não é um conteúdo que tem moral nenhuma para criança estar assistindo. Sabe?
Enquanto isso pode ser muito normal, para algumas famílias, e todos aqui são um exemplo.
Eu não acho que é bom... (P1)
Tanto a entrevistada anterior como a professora-foco, quando questionadas sobre a
relação das atividades com o desenvolvimento moral da criança, esclareceram que as
atividades mais importantes para o desenvolvimento moral são aquelas que permitem
trabalhar questões relativas à sexualidade e gênero. Para a professora-foco, as atividades
mais importantes para o desenvolvimento moral são aquelas que trabalham as partes do
corpo e que têm como tema a educação sexual.
A partir de grande parte dos dados podemos concluir que os profissionais da escola
definem os conceitos de moral e desenvolvimento moral desde a perspectiva da boa
convivência. Mas quando levam esses conceitos para a prática pedagógica, preocupam-se
quase que exclusivamente com regras de disciplina, em primeiro lugar, e questões de
sexualidade, em segundo.
Neste ponto é importante ressaltar que os entrevistados referiram que nunca tiveram
a oportunidade de estudar ou refletir sobre o desenvolvimento moral da criança, mesmo
tendo abordado questões relacionadas ao desenvolvimento infantil em sua formação
profissional. Nos momentos de coordenação, as discussões sobre questões de moralidade
se estabelecem em duas direções específicas: discussão sobre as regras e limites
219
necessários em sala de aula e discussão sobre as estratégias de intervenção nos momentos
de transgressão de regras e conflitos interpessoais.
Além das questões anteriores, outros elementos chamaram nossa atenção, como a
visão passiva da criança no seu próprio desenvolvimento moral, e o papel restrito da escola
na educação e desenvolvimento moral das crianças.
De acordo com os profissionais da escola, a criança aprende o conjunto de regras,
comportamentos e valores que permitem a convivência civilizada e harmônica, no marco
de diferentes instâncias e grupos sociais. No entanto, essa aprendizagem se caracteriza pelo
papel passivo da criança. Para a maioria dos entrevistados, a criança aprende a moralidade
a partir da orientação e do exemplo do adulto, através do ensino das regras e limites que
são colocados no dia-a-dia pelos outros, e a partir dos valores morais que são transmitidos
para ela. Ou seja, percebem a questão como sendo do âmbito de uma aprendizagem
passiva, e não sob uma perspectiva de desenvolvimento humano (Martins & Branco, 2001;
Vygotsky, 2004).
Vale a pena sublinhar que essa visão passiva da criança esteve presente no
planejamento e condução das duas atividades estruturadas que teriam por objetivo o seu
desenvolvimento moral. Lembramos que nas duas atividades foi apresentado para as
crianças um conjunto de regras, a maioria não relacionada com a moralidade, e as crianças
não tiveram a possibilidade de interpretar ou discutir as regras de forma autônoma e
conjunta. A interpretação das regras foi canalizada segundo as crenças e valores da
professora.
De acordo com a totalidade dos entrevistados, várias instâncias (família, escola,
comunidade, sociedade, televisão) podem participar no processo de desenvolvimento
moral da criança. No entanto, o desenvolvimento moral é uma tarefa por excelência da
família, seja porque a família é o contexto mais importante e de referencia para a criança,
seja porque a criança passa a maior parte do seu tempo com a família. É a família que deve
estabelecer os padrões de comportamento e as principais regras e valores morais que a
criança deve seguir. Nesse contexto, o papel da escola se restringe a transmitir e fornecer à
criança algumas regras e limites específicos e necessários para o convívio harmônico,
sobretudo, quando a família não é capaz de fazê-lo. De acordo com uma das entrevistas
(P6), a escola pode passar o que acha certo para a criança, mas não tudo, pois no contexto
escolar não se deve discutir determinados aspectos como a sexualidade e a religião. Essas
questões, que fazem parte do desenvolvimento moral, devem ser abordadas apenas pela
família.
220
Entretanto, para a maioria dos entrevistados, a instituição de Educação Infantil
participa no processo de desenvolvimento moral das crianças. Essa participação é cotidiana
e acontece através das intervenções relacionadas com o comportamento das crianças.
Quando o professor estabelece as regras e os limites, está trabalhando na direção do
desenvolvimento da moralidade. Então, o professor precisa prestar atenção nas questões
que surgem no cotidiano da sala de aula e no contexto das interações entre as crianças,
chamando a atenção delas sempre que for necessário. Para alguns dos entrevistados, essas
regras e limites devem ser colocados de forma clara, sobretudo, nos momentos de
transgressões e conflitos que envolvem o confronto físico.
Esse discurso está em consonância com as ações e interações concretas observadas
e analisadas ao longo da pesquisa. A maioria das intervenções analisadas se centrou no
controle do comportamento das crianças, através do estabelecimento de regras e limites
claros que foram colocados desde uma perspectiva assimétrica. Esse conjunto de
intervenções pontuais é entendido, pelos profissionais da escola, como um trabalho em prol
do desenvolvimento moral.
Nas entrevistas individuais analisadas, a maioria dos profissionais da instituição
colocaram o desenvolvimento global da criança como um objetivo da Educação Infantil.
Além disso, enfatizaram a importância e necessidade de uma Educação Infantil que seja
menos conteudista e que permita a inserção adequada da criança no mundo e na sociedade.
Entretanto, a preocupação com o desenvolvimento global da criança, de forma geral, e com
o desenvolvimento social e moral, de forma mais específica, não se destacou ao longo de
seu discurso. Essas idéias inovadoras da educação atual, não foram observadas de forma
plena no cotidiano da instituição, como constatamos pela inserção etnográfica, pelas
observações e demais etapas da pesquisa. A maioria das atividades e das ações dos
profissionais se orientou, principalmente, para a o desenvolvimento e aprendizagem de
habilidades e competências cognitivas em detrimento das habilidades e competências
sociais. A questão mais séria, porém, foi que as professoras não aproveitaram as situações
sócio-morais do cotidiano em prol do desenvolvimento moral das crianças.
Como constatamos em várias análises, situações concretas que envolviam questões
de moralidade e que podiam ser relevantes para as crianças não foram aproveitadas como
espaço de discussão, re-significação ativa e de co-construção de crenças, valores e regras
sócio-morais. Isto não significa que a escola não contemple de modo algum o
desenvolvimento moral, pois o mesmo acontece de uma forma ou de outra no contexto das
relações e interações sociais, seja na direção do posicionamento critico diante das crenças e
221
valores socioculturais (autonomia moral), ou na direção da aceitação passiva—ou simples
rejeição—dessas crenças e valores (heteronomia moral).
As questões analisadas até aqui indicam que o desenvolvimento moral faz parte do
currículo oculto acima discutido, que se veicula principalmente através das interações
sociais do ambiente escolar. Interações sociais que, no caso estudado, visam à ordem e à
disciplina em função do sucesso das atividades acadêmicas, exigindo que a criança regule
(ou iniba) sua iniciativa, autonomia e pensamento reflexivo. Entretanto, estes últimos são
aspectos fundamentais para o desenvolvimento moral da criança.
Afinal, podemos nos perguntar: Qual a ‘lição’ implícita de uma educação que visa à
ordem e à disciplina, em detrimento da iniciativa, da autonomia e do pensamento
reflexivo? Quais as implicações dessa educação na formação ética do cidadão? Nesse
contexto, até que ponto é possível desenvolver um posicionamento crítico e autônomo
frente à realidade, às normas sócio-morais e às crenças e valores socioculturais? No tópico
a seguir procuraremos levantar alguns aspectos para refletir, a partir de tais indagações.
222
VII - CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos resultados discutidos de forma integrada, gostaríamos de tecer algumas
conclusões e considerações finais com o intuito de contribuir para a reflexão crítica do
papel da escola no desenvolvimento global e, especificamente, no desenvolvimento moral
da criança.
Como colocamos ao final da discussão, a educação atual está permeada de idéias
inovadoras que ainda não foram incorporadas de forma plena no cotidiano das instituições
educativas. A escola, apesar de ter um discurso inovador, referente à educação integral da
criança, tem sua prática voltada para os princípios norteadores da educação tradicional,
onde educar é transmitir ou fornecer à criança determinados conhecimentos e significados
culturais, sem a sua participação ativa dela nesse processo. Esses resultados não são
exclusivos desta pesquisa, mas têm surgido em outros estudos (e.g. Lima 2000; Salomão,
2001; Palmieri & Branco, 2008) que apontam, assim, a necessidade de discussões e
estratégias que visem à reflexão crítica sobre e a transformação concreta das práticas
educativas, sobre a formação inicial e continuada dos professores e sobre os objetivos reais
da Educação Infantil.
É fundamental salientar a importância da reflexão e da consciência do educador no
que diz respeito às suas ações no contato com as crianças. Reflexão que é possível a partir
da avaliação construtiva e conjunta do fazer pedagógico dos educadores, nos espaços
constituídos para isso. Ou seja, é importante que os educadores tenham a possibilidade de
avaliar e refletir sobre suas próprias ações pedagógicas, junto com coordenadores,
orientadores e psicólogos escolares, nos espaços de coordenação e de orientação. Estes não
podem nem devem ficar restritos ao planejamento conjunto tradicional, nem ao
estabelecimento de regras e limites. O psicólogo escolar tem um papel fundamental nesse
processo de reflexão, não só por sua formação relativa ao desenvolvimento humano, como
pelas ferramentas e instrumentos que possui e que lhe permitem analisar a prática
educativa em função do desenvolvimento global da criança.
As interações professor-criança e criança-criança são fundamentais para o
desenvolvimento infantil, uma vez que é através da interação com o outro que os
significados culturais são transmitidos e ativamente processados (e.g. Branco, 2003;
Rossetti-Ferreira & cols., 2004). Além disso, a interação professor-criança favorece ou
inibe os diferentes tipos de interações criança-criança, dependendo do tipo de atividade
desenvolvida em sala de aula e do direcionamento da mesma (Branco, 1989; Branco &
223
Mettel, 1995). No entanto, essas interações não são alvo de reflexão crítica por parte dos
educadores, que centram seu trabalho no planejamento e direcionamento de um conjunto
de atividades pedagógicas que geralmente visam o desenvolvimento de habilidades
cognitivas, psicomotoras e de convenção social em determinada direção. Sendo assim, as
questões sócio-morais, que se veiculam nas interações professor-criança e criança-criança
passam a fazer parte de um currículo oculto, sendo negligenciadas ou não se constituindo,
de fato, como objetivos específicos e primordiais da escola, apesar de estarem presentes no
cotidiano da instituição (Branco, 1989, 2003).
Vários autores e pesquisadores (e.g. Barreto 2004; DeVires & Zan, 1998; Tacca,
2000; Galvão, 2004) têm apontado a importância de discutir a prática pedagógica para a
formação dos professores. É preciso criar oportunidades para se refletir sobre as ações e
situações da prática cotidiana, através de um conjunto de metodologias que se mostre
apropriado para tal. A análise de observações e situações gravadas em vídeo, por exemplo,
pode possibilitar uma compreensão crítica dos aspectos que geralmente passam
despercebidos pelos professores na dinâmica do cotidiano.
Barreto (2004) investigou, em formadoras de professores da Educação Infantil,
crenças sobre as relações entre práticas pedagógicas específicas e o desenvolvimento da
criança. No estudo, a autora propôs a análise de situações da prática cotidiana gravadas em
vídeo. As análises realizadas pelas formadoras que participaram da pesquisa versaram
sobre questões fundamentais do desenvolvimento e da Educação Infantil. Além disso, a
metodologia do vídeo mostrou-se propícia à reflexão sobre as práticas pedagógicas, pois
possibilitou a análise de aspectos fundamentais das interações professor-criança.
Em função dos resultados de sua pesquisa, Barreto (2004) enfatiza a importância da
análise da pratica pedagógica para a formação dos professores e ressalta que a análise dos
episódios, uma vez estruturados em narrativas, forma típica pela qual emolduramos nossa
experiência e memória, poderá facilitar a compreensão e envolvimento dos professores nos
processos de formação e desenvolvimento profissional.
Resumindo, a análise de episódios e situações específicas do fazer pedagógico
parece um recurso adequado e importante para possibilitar a reflexão crítica dos
educadores sobre sua própria prática educativa. Além disso, pode ser fundamental para a
formação continuada dos professores. Quando os episódios e situações analisados estão
relacionados ou envolvem questões relativas à moral, essa análise deixa de ser importante e
passa ser primordial, em função do caráter complexo e da natureza sociocultural da
moralidade.
224
Neste trabalho verificamos que os profissionais investigados, além de não saberem
bem conceituar o próprio desenvolvimento moral, na prática reduziram a questão da
moralidade à disciplina e à sexualidade. A moral não só diz respeito às relações sociais,
como também tem a sua origem nos relacionamentos interpessoais. Sendo assim, refletir
sobre as ações e interações concretas que podem ser significativas para o desenvolvimento
moral das crianças só é possível a partir da análise criteriosa e cuidadosa da dinâmica do
cotidiano escolar.
Ainda sobre a questão do desenvolvimento moral, na instituição pesquisada não foi
possível observar o aproveitamento das situações sócio-morais do cotidiano em prol do
deste desenvolvimento nas crianças. Como constatamos em várias análises, situações
concretas que envolviam questões de moralidade e que poderiam ser relevantes para as
crianças não foram aproveitadas como espaço de discussão, re-significação ativa e de co-
construção de crenças, valores e regras sócio-morais. Esta questão, junto com a idéia dos
profissionais de que a escola tem um papel bastante limitado em relação ao
desenvolvimento moral da criança, nos leva a questionar até que ponto a instituição escolar
se omite em relação à importante tarefa de formar cidadãos éticos. O cidadão ético deve ser
capaz de ter um posicionamento crítico e autônomo frente à realidade, à diversidade e às
contradições características de toda sociedade. Os educadores precisam, portanto, ter
consciência do importante papel da escola no desenvolvimento e educação moral do ser
humano. Desenvolvimento e educação moral e da cidadania não podem ficar restritos ao
contexto familiar e não podem ser reduzidos à ordem ou à disciplina.
A escola, por suas características, constitui-se um espaço privilegiado para o
avanço da democracia, da cidadania, do convívio e do respeito pelo ser humano. Cabe,
sim, à escola estabelecer espaços de reflexão e discussão sobre as diversidades e
contradições características da sociedade na qual estamos inseridos (Freire, 1999). Para
isso, é necessário que o ambiente sócio-moral da instituição escolar seja um ambiente mais
simétrico, no qual crianças e professores tenham a possibilidade de participar democrática
e ativamente das decisões importantes para seu cotidiano.
Quando falamos da formação do professor em relação ao desenvolvimento moral
das crianças não estamos falando de uma formação mecânica, conteudista, que se centre na
transmissão passiva de conhecimentos sobre como a criança desenvolve a moralidade. A
formação do profissional da educação deve propiciar-lhe o domínio do conhecimento
acerca do desenvolvimento da criança e capacitar-lhe a empregar métodos e técnicas
adequadas para sua educação, pois a questão não se resume ao cognitivo: crenças e valores
225
têm um papel central nesta questão (Branco, 2006; Martins & Branco, 2001; Shweder &
Much, 1987). No caso do desenvolvimento moral, é necessário testar e implementar
estratégias participativas que possam ser importantes tanto para a educação e
desenvolvimento das crianças, como para a formação dos professores.
O professor, interlocutor mais experiente, deve criar condições para a colaboração,
a compreensão e o respeito mútuo, a negociação dos conflitos interpessoais, o acolhimento
das divergências e diferenças, e a participação social ativa (Serrano, 2002). Entretanto, essa
não é uma tarefa fácil, sobretudo, se os educadores não tiveram e/ou não têm a
possibilidade de experiências participativas fundamentais em sua própria formação sócio-
moral. Em função disso, é importante que a implementação de estratégias participativas no
contexto escolar não se centre no desenvolvimento e educação moral das crianças, mas que
também envolva o desenvolvimento e a educação moral e ética dos profissionais. Embora
o desenvolvimento e a educação moral adquiram um relevo particular na infância e na
juventude, ambos são processos que duram a vida toda e que se inter-relacionam de forma
particular com as bases psicológicas do desenvolvimento da pessoa (Serrano, 2002).
Em relação aos objetivos da Educação Infantil, chamamos a atenção para as
divergências importantes que aparecem entre as ações efetivas dos professores e suas
elaborações discursivas. Embora os educadores coloquem o desenvolvimento integral da
criança como um dos objetivos fundamentais da Educação Infantil, as ações do cotidiano
escolar se orientam principalmente para o desenvolvimento e aprendizagem de habilidades
e competências cognitivas em detrimento das habilidades e competências sociais das
crianças. Acreditamos que essas divergências não são exclusivas do contexto escolar, mas
que elas surgem em função da inter-relação entre a escola e o contexto sociocultural onde
ela está imersa. Como colocado por Lima (2000), a sociedade está impregnada de
princípios que pregam a supremacia do ‘produzir’ em detrimento do ‘pensar’, o que
aparece na dinâmica escolar de diversas formas.
Muitas vezes, as divergências em relação aos objetivos da Educação Infantil
surgem em função da cobrança da sociedade como um todo, e da família de forma mais
particular. Como colocado pelos participantes de nosso estudo, existe uma cobrança por
parte dos pais em relação a ‘produção’ e, nesse contexto, o desenvolvimento e educação
integral das crianças não são tarefas fáceis. Sendo assim, é importante pensar no papel da
escola como instituição educativa em um contexto mais amplo. Até que ponto o papel da
escola pode e deve se restringir à educação das crianças? Quais as possibilidades reais de
226
discussões e trocas significativas entre a escola e a família? Até que ponto os espaços de
participação e negociação entre a escola e a família são efetivos?
Por um lado, a escola se queixa da cobrança dos pais e da falta de limites das
crianças no contexto familiar. Por outro, não aproveita os espaços de participação da
família no sentido de discussões e trocas significativas sobre o desenvolvimento e
educação das crianças. Os espaços e as estratégias de participação ativa de toda a
comunidade escolar precisam ser repensados desde diferentes ângulos e perspectivas.
Como colocado ao longo deste trabalho dissertativo, nossa pesquisa teve como
objetivo principal identificar e analisar elementos da prática educativa que possam ser
significativos para o desenvolvimento moral das crianças. Entretanto, nosso trabalho ficou
restrito a uma instituição de Educação Infantil, com características especificas que devem
ser levadas em consideração e que não permitem uma generalização, sobretudo, desde uma
perspectiva sociocultural. Sendo assim, novos trabalhos de pesquisa sobre o
desenvolvimento e a educação moral se fazem necessários. Acreditamos que os mesmos
possam ajudar na construção de um panorama mais detalhado sobre o tema que nos ocupa.
Como o desenvolvimento moral permeia as diferentes práticas pedagógicas que
coexistem em um mesmo, e em diferentes contextos socioculturais? Qual a percepção dos
profissionais da educação e dos pais sobre o papel da escola no desenvolvimento e na
educação moral das crianças? Qual a percepção das crianças sobre as intervenções
educativas dos professores nas questões sócio-morais do seu cotidiano? Que estratégias
participativas podem ser testadas e implementadas nos diferentes contextos escolares?
Quais dessas estratégias podem ser significativas para a comunidade escolar? Todas estas e
muitas outras são perguntas importantes.
Com certeza, novas pesquisas sobre o desenvolvimento e a educação moral irão
auxiliar na formulação de novas orientações para a prática educativa em geral. Sobretudo,
quando estas pesquisas buscarem, através de sua metodologia, realizar um mergulho no
cotidiano do contexto escolar e entender os significados socioculturais que servem como
base e norteiam a experiência educativa. Nesse sentido, podemos dizer que a metodologia
qualitativa utilizada no presente estudo mostrou-se adequada para identificar e analisar as
narrativas, os processos, as características e as estratégias através dos quais a organização e
o funcionamento da escola atuam na formação integral da criança.
227
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233
ANEXOS
234
ANEXO I
Protocolo de registro, transcrição e análise das sessões de observação direta e das sessões
gravadas em vídeo
ATIVIDADE:
TEMPO:
PROFESSORA – P3 CRIANÇAS
235
ANEXO II
Roteiro das entrevistas semi-estruturadas com as professoras
- Criação de um clima de confiança com o entrevistado, aquecimento inicial.
- Apresentação do entrevistador.
- Esclarecimentos em relação à pesquisa e aos objetivos da entrevista, ao sigilo em
relação à identidade e as respostas do entrevistado, e à necessidade do registro da
entrevista em áudio, o fato de não existir resposta certa versus errada, e que estamos ali
para aprender mais sobre o assunto.
Observações: Antes de marcar e realizar a entrevista, o entrevistado deve
preencher o termo de consentimento livre e esclarecido para a mesma.
- Gravar os dados de identificação da entrevista: data de realização, número de
entrevista (primeira ou segunda que o participante faz).
Registrar o horário do início da entrevista.
- Dizer: “Eu vou lhe fazer algumas perguntas sobre questões importantes para a
pesquisa. São perguntas para as quais não existem respostas certas nem erradas, sendo
assim, a idéia é que você responda cada pergunta de acordo com sua opinião.”
I.Dados e informações relevantes sobre o professor:
1. Há quanto tempo você trabalha na Educação Infantil?
2. Há quanto tempo trabalha na escola?
3. Qual é sua idade?
4. Qual é sua formação?
5. Como você vê sua formação profissional?
6. Qual é o cargo que você ocupa atualmente? Já ocupou outros cargos na escola?
Quais?
7. Com qual turma você trabalha? (Especificar a idade das crianças) Você já trabalhou
com outras turmas? Quais turmas? (Especificar as idades das crianças dessas
turmas)
8. Por que você trabalha na Educação Infantil?
II.Questões gerais sobre Educação Infantil:
9. Como você define criança e infância?
10. Como você define Educação Infantil?
236
11. Você acha que é importante, para a criança, freqüentar instituições de Educação
Infantil? Por quê?
12. O que você acha que a Educação Infantil deve propiciar à criança? (Explorar os
objetivos da Educação Infantil, na opinião do entrevistado).
III.Questões relativas à prática pedagógica da escola e do professor:
13. Você poderia descrever a rotina da sua turma? E da escola? (Explorar o conjunto de
atividades que normalmente acontecem no dia-a-dia da turma/escola)
14. Dessas atividades, quais você acha mais importantes? Por quê? Quais são os
objetivos dessas atividades? (Retomar cada uma das atividades descritas pelo
entrevistado, na pergunta anterior).
15. Você acha que alguma dessas atividades pode ser importante para o
desenvolvimento moral? Quais? Por quê?
16. Como você planeja as atividades que serão desenvolvidas com seus alunos?
(Sozinha? Junto com as outras professoras e/ou coordenadores?) Em algum
momento, as crianças participam desse planejamento? Em caso positivo, como e
quando?
17. Você poderia dar exemplos de atividades em que as crianças trabalham de forma:
Individual? Em duplas, ou em pequenos grupos? As crianças escolhem com quem
trabalham ou há uma organização de sua parte? Por quê? (Explorar como é a
organização da sala do entrevistado e o que ele acha sobre o trabalho individual e
coletivo por parte das crianças)
18. Na sua sala, existem regras a serem respeitadas pelas crianças? Quais são? Como
foram definidas essas regras? Como elas são comunicadas às crianças? (Explorar se
houve alguma participação por parte das crianças, na hora de definir as regras da
sala).
19. Em caso de alguma criança não respeitar (ou burlar) alguma regra, o que você faz
normalmente? Por quê? Você poderia descrever uma situação em que isso tenha
acontecido?
20. Para você, essas regras que as crianças devem seguir podem ser modificadas? Por
quê?
21. Quando as crianças se desentendem (brigam, batem, discutem), o que você faz
normalmente? Por quê?
237
22. Que tipos de conflitos, entre as crianças, são comuns na sua turma? Você poderia
dar exemplos?
23. O que você acha de conflitos entre as crianças? Qual a melhor maneira de lidar com
eles? Você poderia dar alguns exemplos? (Explorar a visão que o entrevistado tem
sobre os conflitos interpessoais)
24. Você poderia descrever como é sua relação com as crianças da turma? Com que
crianças você costuma ter mais dificuldades? Por quê?
IV.Questões relativas à moral e ao desenvolvimento moral – situações hipotéticas:
25. O que você entende por moral ou moralidade?
26. Dizer que alguma coisa, ou alguma ação, é certa ou errada é sempre uma questão
de moral? Por quê?
27. Você poderia citar exemplos de ações que você considera certas e erradas
moralmente? (
PEDIR VÁRIOS EXEMPLOS!) Por que você considera essas ações
certas ou erradas? Elas são sempre certas ou erradas, em todas as circunstancias?
Por quê?
28. Como você acha que a criança desenvolve a idéia do que é certo e errado
moralmente? Em sua opinião, a escola tem algum papel nesse processo? E a
família? E os colegas? Quem mais?
29. O que você acha que participa mais desse processo: a escola, a família, os colegas,
o que? Em que ordem de importância você vê essa participação? Essa participação
pode ser negativa ou positiva?
30. Dizem que existem diferenças entre regras morais e pura convenção social. Você
acha que essas diferenças existem? Que diferenças seriam essas? Você poderia dar
exemplos?
31. Viver situações de conflito pode ser bom para a criança? Por quê? Você poderia dar
exemplos?
32. O que é para você desenvolvimento moral?
33. Para você, a Educação Infantil deve contemplar o desenvolvimento moral? Por
quê? Em caso positivo, como?
34. A continuação, eu vou narrar quatro situações hipotéticas. Eu vou deixar o final de
cada uma delas em aberto, para que você possa dizer o que você faria nessas
situações, certo?
238
(a) Vamos imaginar que “Na sua turma, duas crianças estão
brigando por um brinquedo que pertence a uma delas. A criança que é dona do
brinquedo não quer emprestar, pois está brincando com ele. A outra criança quer
muito o brinquedo e, para consegui-lo, começa a puxar o brinquedo. A criança dona
do brinquedo reage, batendo e mordendo a outra. Você percebe a situação e ...”
(Após a resposta, perguntar por que ela faria isso e se essa interferência está de
acordo com a proposta pedagógica da escola. Explorar mais a situação.)
(b) Vamos imaginar que “As crianças da sua turma fizeram
vários desenhos que estão no mural da sala. Na saída para o recreio, uma criança
pega um lápis e começa rabiscar os desenhos em exposição. As crianças que estão
por perto reagem de várias formas, algumas ajudam a rabiscar os trabalhos, outras
reclamam e choram pelo que está acontecendo e outras querem até brigar com quem
está rabiscando os trabalhos. Você percebe a situação e....” (Após a resposta,
perguntar por que ela faria isso e se essa interferência está de acordo com a proposta
pedagógica da escola. Explorar mais a situação.)
(c) Vamos imaginar que “Uma menina da sua sala é bastante
lenta para aprender. Além disso, ela é super tímida, calada, e não muito atraente... Os
colegas começam a caçoar dela, dizendo que ela é burra e feia, e não aceitando
trabalhar junto com ela. Você percebe a situação e...” (Após a resposta, perguntar
por que ela faria isso e se essa interferência está de acordo com a proposta
pedagógica da escola. Explorar mais a situação.).
(d) Vamos imaginar que “Na hora do parque, as crianças ficam
correndo, tropeçando e esbarrando umas nas outras, algumas jogando sem querer
areia no rosto das mais novas. Uma criança machucada e aborrecida com a situação
procura você para se queixar do que está acontecendo na hora do parque. Você
percebe que essas situações têm acontecido em outros momentos e ...” (Após a
resposta, perguntar por que ela faria isso e se essa interferência está de acordo com a
proposta pedagógica da escola. Explorar mais a situação).
Essas foram as últimas perguntas da entrevista. Você gostaria de acrescentar alguma coisa
ou falar de alguma questão que não foi abordada?
Gravar e Registrar o horário de término da entrevista!
239
ANEXO III
Roteiro das entrevistas semi-estruturas com os diretores
- Criação de um clima de confiança com o entrevistado, aquecimento inicial.
- Apresentação do entrevistador.
- Esclarecimentos em relação à pesquisa e aos objetivos da entrevista, ao sigilo em relação
à identidade e as respostas do entrevistado, e à necessidade do registro da entrevista em
áudio, o fato de não existir resposta certa versus errada, e que estamos ali para aprender
mais sobre o assunto.
Observações: Antes de marcar e realizar a entrevista, o entrevistado deve preencher o
termo de consentimento livre e esclarecido para a mesma.
- Gravar os dados de identificação da entrevista: data de realização, número de entrevista
(primeira ou segunda que o participante faz).
Registrar o horário de início da entrevista.
- Dizer: “Eu vou lhe fazer algumas perguntas sobre questões importantes para a pesquisa.
São perguntas para as quais não existem respostas certas nem erradas, sendo assim, a idéia
é que você responda cada pergunta de acordo com sua opinião.”
I.Dados e informações relevantes sobre o funcionário:
1. Há quanto tempo você trabalha na Educação Infantil?
2. Há quanto tempo trabalha na escola?
3. Qual é sua idade?
4. Qual é sua formação?
5. Como você vê sua formação profissional?
6. Qual é o cargo que você ocupa atualmente? Já ocupou outros cargos na escola?
Quais? (Especificar se trabalhou como professor e as idades das crianças com as
quais trabalhou.)
7. Por que você trabalha na Educação Infantil?
II.Dados e informações sobre a escola e o corpo de professores e funcionários:
8. Quantas professoras trabalham atualmente na escola? Qual é a carga horária das
mesmas?
9. Quantos funcionários trabalham atualmente na escola? Quais são os cargos que os
mesmos ocupam?
240
10. Quantas crianças estudam atualmente na escola e como elas estão distribuídas?
(Pedir para o entrevistado especificar a quantidade de crianças de cada turno e de
cada período.)
11. A escola atende crianças com necessidades educativas especiais? Em caso positivo,
pedir para o entrevistado especificar quantas crianças atende e em que turma essas
crianças se encontram.
12. Qual é a clientela atendida pela escola?
13. A escola conta com alguma instancia participativa (APM, Conselho Escolar, etc.)?
Em caso positivo, pedir para o entrevistado descrever quais são os objetivos dessas
instancias, como elas funcionam e como é a participação das famílias nas mesmas.
III.Questões gerais sobre Educação Infantil:
14. Como você define criança e infância?
15. Como você define Educação Infantil?
16. Você acha que é importante, para a criança, freqüentar instituições de Educação
Infantil? Por quê?
17. O que você acha que a Educação Infantil deve propiciar à criança? (Explorar os
objetivos da Educação Infantil, na opinião do entrevistado).
IV.Questões relativas à prática pedagógica da escola:
18. Você poderia descrever a prática pedagógica da escola? (Explorar os objetivos
educacionais da escola, de acordo com a opinião do entrevistado).
19. A escola trabalha com projetos pedagógicos? Em caso positivo, pedir para o
entrevistado colocar exemplos de projetos pedagógicos desenvolvidos pela escola.
(Explorar se a escola já realizou ou pretende realizar algum projeto pedagógico que
considere importante para o desenvolvimento moral das crianças.)
20. Como são elaborados os projetos pedagógicos da escola? Quem participa da
elaboração dos mesmos?
21. Na escola funcionam os conselhos de classe? Em caso positivo, pedir para o
entrevistado que descreva como acontecem os conselhos de classe e quais os
objetivos dos mesmos. Você acha que os conselhos de classe podem contribuir para
o desenvolvimento moral das crianças? Por quê?
22. Na escola, existem regras a serem respeitadas pelas crianças? Quais são? Como
foram definidas essas regras? Como elas são comunicadas às crianças? (Explorar se
241
há alguma participação por parte das crianças, na hora de definir as regras da
escola).
23. Em caso de alguma criança não respeitar (ou burlar) alguma regra, o que a escola
faz normalmente? Por quê? Você poderia descrever uma situação em que isso tenha
acontecido?
24. Para você, essas regras que as crianças devem seguir podem ser modificadas? Por
quê?
25. O que você acha de conflitos entre as crianças? Qual a melhor maneira de lidar com
eles? Você poderia dar alguns exemplos? (Explorar a visão que o entrevistado tem
sobre os conflitos interpessoais.)
26. Como acontece a comunicação diária da escola com a família e/ou os responsáveis
pelas crianças?
27. A escola realiza atividades com a família e/ou responsáveis pelas crianças? Em
caso positivo, pedir para o entrevistado que descreva quais são essas atividades.
28. A escola realiza reuniões pedagógicas com a família e/ou responsáveis pelas
crianças? Em caso positivo, pedir para o entrevistado que descreva como
acontecem as reuniões pedagógicas e que assuntos são tratados nas mesmas.
(Explorar se nas reuniões pedagógicas já foram abordadas questões relacionadas ao
desenvolvimento moral das crianças.)
29. Que tipo de encaminhamento a escola faz quando alguma criança apresenta
dificuldades em sala de aula? (Solicitar algum exemplo.)
V.Questões relativas à moral e ao desenvolvimento moral – situações hipotéticas:
30. O que você entende por moral ou moralidade?
31. Dizer que alguma coisa, ou alguma ação, é certa ou errada é sempre uma questão
de moral? Por quê?
32. Você poderia citar exemplos de ações que você considera certas e erradas
moralmente? (PEDIR VÁRIOS EXEMPLOS!) Por que você considera essas ações
certas ou erradas? Elas são sempre certas ou erradas, em todas as circunstancias?
Por quê?
33. Como você acha que a criança desenvolve a idéia do que é certo e errado
moralmente? Em sua opinião, a escola tem algum papel nesse processo? E a
família? E os colegas? Quem mais?
242
34. O que você acha que participa mais desse processo: a escola, a família, os colegas,
o que? Em que ordem de importância você vê essa participação? Essa participação
pode ser negativa ou positiva?
35. Dizem que existem diferenças entre regras morais e pura convenção social. Você
acha que essas diferenças existem? Que diferenças seriam essas? Você poderia dar
exemplos?
36. Viver situações de conflito pode ser bom para a criança? Por quê? Você poderia dar
exemplos?
37. O que é para você desenvolvimento moral?
38. Para você, a Educação Infantil deve contemplar o desenvolvimento moral? Por
quê? Em caso positivo, como?
39. A continuação, eu vou narrar quatro situações hipotéticas. Eu vou deixar o final de
cada uma delas em aberto, para que você possa dizer o que você faria nessas
situações, certo?
(a) Vamos imaginar que “Em uma turma, duas crianças estão
brigando por um brinquedo que pertence a uma delas. A criança que é dona do
brinquedo não quer emprestar, pois está brincando com ele. A outra criança quer
muito o brinquedo e, para consegui-lo, começa a puxar o brinquedo. A criança dona
do brinquedo reage, batendo e mordendo a outra. Você percebe a situação e ...”
(Após a resposta, perguntar por que faria isso e se essa interferência está de acordo
com a proposta pedagógica da escola e por quê. Explorar mais a situação, de acordo
com as respostas do entrevistado.)
(b) Vamos imaginar que “As crianças de uma turma fizeram
vários desenhos que estão no mural da sala. Na saída para o recreio, uma criança
pega um lápis e começa rabiscar os desenhos em exposição. As crianças que estão
por perto reagem de várias formas, algumas ajudam a rabiscar os trabalhos, outras
reclamam e choram pelo que está acontecendo e outras querem até brigar com quem
está rabiscando os trabalhos. Você percebe a situação e....” (Após a resposta,
perguntar por que faria isso e se essa interferência está de acordo com a proposta
pedagógica da escola e por quê. Explorar mais a situação, de acordo com as respostas
do entrevistado.)
(c) Vamos imaginar que “Uma menina de uma sala é bastante
lenta para aprender. Além disso, ela é tímida, calada, e não muito atraente... Os
colegas começam a caçoar dela, dizendo que ela é burra e feia, e não aceitando
243
trabalhar junto com ela. Você percebe a situação e...” (Após a resposta, perguntar
por que faria isso e se essa interferência está de acordo com a proposta pedagógica da
escola e por quê. Explorar mais a situação, de acordo com as respostas do
entrevistado.)
(d) Vamos imaginar que “Na hora do parque, as crianças ficam
correndo, tropeçando e esbarrando umas nas outras, algumas jogando sem querer
areia no rosto das mais novas. Uma criança machucada e aborrecida com a situação
procura você para se queixar do que está acontecendo na hora do parque. Você
percebe que essas situações têm acontecido em outros momentos e ...” (
Após a
resposta, perguntar por que faria isso e se essa interferência está de acordo com a
proposta pedagógica da escola e por quê. Explorar mais a situação, de acordo com as
respostas do entrevistado).
Essas foram as últimas perguntas da entrevista. Você gostaria de acrescentar alguma coisa
ou falar de alguma questão que não foi abordada?
Gravar e Registrar o horário de término da entrevista!
244
ANEXO IV
Roteiro da entrevista semi-estruturada com a professora-foco
- Criação de um clima de confiança com o entrevistado, aquecimento inicial.
- Esclarecimentos em relação à pesquisa e aos objetivos da entrevista, ao sigilo em relação
à identidade e as respostas do entrevistado, e à necessidade do registro da entrevista em
áudio.
Observações: Antes de marcar e realizar a entrevista, o entrevistado deve preencher o
termo de consentimento livre e esclarecido para a mesma.
- Gravar os dados de identificação da entrevista. Registrar o horário do início da
entrevista.
- Dizer: Como parte da pesquisa, foi solicitado que você planejasse duas atividades, que
tivessem como objetivo principal promover a discussão sobre questões relacionadas à
moralidade, entre as crianças de sua turma. Você poderia planejar as duas atividades do
jeito que você achasse mais adequado, sempre que de acordo com o objetivo solicitado.
Para as duas atividades, você selecionou a leitura de um livro intitulado “A gente pode... A
gente não pode...”, dividindo o mesmo em duas partes.
Agora, nós vamos assistir trechos do vídeo das duas atividades, para relembrar
cada uma delas. Depois, eu vou lhe fazer algumas perguntas sobre as atividades realizadas.
São perguntas para as quais não existem respostas certas nem erradas. Sendo assim, a idéia
é que você responda cada pergunta de acordo com sua opinião.
Durante a apresentação do vídeo, você poderá fazer anotações sobre os trechos
selecionados, caso você considere necessário. (Entregar papel e lápis para a professora.)
I.Apresentação de trechos do vídeo das atividades estruturadas:
1. Apresentar os trechos selecionados para a realização da entrevista.
2. Você gostaria de assistir novamente algum dos trechos selecionados?
II.Questões gerais sobre os objetivos das atividades estruturadas:
3. Por que você escolheu a leitura de um livro para as duas atividades?
4. O que você achou do livro selecionado? Você o escolheu por algum motivo
especial?
5. Quais das questões apresentadas pelo livro, você acha mais interessante? Por quê?
(Se necessário, ver o livro usado nas atividades.)
245
6. Na primeira atividade, as crianças representaram, através de mímica, as questões
trazidas pelo livro. Por que você planejou essa representação? Você acha que foi
importante para a atividade? E para as crianças? (Explorar o objetivo desse
momento da atividade.)
7. Nas duas atividades, as crianças realizaram desenhos sobre o livro. Por que você
planejou a realização de desenhos? Você acha que foi importante para a atividade?
E para as crianças? (Explorar o objetivo desse momento da atividade.)
8. Antes do planejamento e realização das atividades, foi solicitado que as duas
atividades tivessem como objetivo principal promover a discussão sobre questões
relacionadas à moralidade, entre as crianças de sua turma. Você acha que as duas
atividades realizadas se adequaram ao que foi solicitado? Por quê?
III.Avaliação das atividades pela professora:
9. Como você avalia a realização das duas atividades? Por quê?
10. Qual era sua expectativa em relação à interpretação e à participação das crianças?
Como você avalia essa interpretação e participação?
11. Como você avalia sua atuação durante as duas atividades?
12. Você ficou satisfeita com as atividades?
13. Você faria hoje da mesma forma? Em caso negativo, pedir para o entrevistado que
explique o que mudaria e por que.
IV.Comentários:
14. Você fez alguma anotação sobre os trechos apresentados? Em caso positivo pedir
para o entrevistado ler e comentar as anotações realizadas. Indagar sobre questões
relevantes para a pesquisa a partir dos comentários do entrevistado.
V.Questões gerais sobre moral, desenvolvimento moral e educação moral:
15. Após assistir e analisar os trechos das atividades estruturadas, você poderia dizer o
que você entende por moral?
16. E por desenvolvimento moral?
17. O que é para você educação moral?
Essas foram as últimas perguntas da entrevista. Você gostaria de acrescentar alguma coisa
ou falar de alguma questão que não foi abordada? Registrar o horário de término.
246
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