Download PDF
ads:
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
Ivan Neves Marques Júnior
O riso segundo Cícero e Quintiliano:
tradução e comentários de
De oratore, livro II, 216-291 (De ridiculis) e
da
Institutio Oratoria, livro VI, 3 (De risu)
São Paulo
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Ivan Neves Marques Júnior
O riso segundo Cícero e Quintiliano:
tradução e comentários de
De oratore, livro II, 216-291 (De ridiculis) e
da
Institutio Oratoria, livro VI, 3 (De risu)
Dissertação apresentada ao
Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, como
parte dos pré-requisitos para a
obtenção do título de Mestre em
Literatura Latina.
Orientador: Prof. Dr. José Rodrigues
Seabra Filho
São Paulo
2008
ads:
Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação
(CIP)
Marques Júnior, Ivan Neves, 1971-
O riso segundo Cícero e
Quintiliano: tradução e comentários
de De oratore, livro II, 216-291
(De ridiculis) e da Institutio
Oratoria, livro VI, 3 (De risu) /
Ivan Neves Marques Júnior São
Paulo: Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da
Universidade de o Paulo
(Dissertação de mestrado), 2008.
1. Marco Túlio Cícero 2.
Marco Fábio Quintiliano 3.
Literatura Latina 4. Século II e I
a.e.c. Século I 5. Retórica 6.
Oratória – I. Título
RESUMO
Este trabalho é uma tradução de dois excertos de dois tratados retóricos que
tratam do uso do riso na oratória: um deles situado entre os parágrafos 216 e 291 do
livro II de De oratore de Marco Túlio Cícero, chamado De ridiculis, e o outro, um
capítulo todo, o terceiro, do livro VI da Institutio Oratoria de Marco Fábio Quintiliano,
denominado De risu, com comentários sobre os aspectos da utilização do riso no
discurso oratório, a relação estabelecida entre os dois textos e os itens acolhidos por
Quintiliano em De risu do texto de De ridiculis, de Cícero.
Palavras-chave: Retórica, Oratória, Riso, Cícero, Quintiliano, urbanitas,
facetiae.
ABSTRACT
This work is composed by a translation of two excerpts of two essays on Rhetorics
that focus the laughter in oratory: one of them is located from the paragraph 216 to the
paragraph 291 of De oratore’s book II by Marcus Tullius Cicero, untitled De ridiculis;
and the other one, a whole chapter, the third of the book VI of Institutio oratoria by
Marcus Fabius Quintilianus, untitled De risu, with comments on the aspects of the
laughter use in oratorical discourse, the relations between the two texts, and the items
from Cicero's De ridiculis utilized by Quintilian in De risu.
Keywords: Rhetorics, oratory, laughter, Cicero, Quintilian, urbanitas, facetiae.
ÍNDICE
Apresentação 1
Esclarecimentos 4
Abreviaturas e Símbolos 5
Introdução 6
De oratore, livro II, 216-219 (De ridiculis) 29
Institutio Oratoria, livro VI, 3 (De risu) 90
Conclusão 147
Bibliografia 153
AGRADECIMENTOS
ÀQUELE que me criou, me atendeu, me ama e É TUDO para mim.
À minha amada esposa, Ana Paula, pelo amor, pelo incentivo, apoio, paciência, ajuda,
carinho e compreensão.
A Lia de Abreu Sacchetta, minha outra mãe, pelo apoio, compreensão e carinho.
À minha mãe, Eunice, pela abdicação, orações, doação, amor e compreensão.
Ao meu pai, Ivan, pela origem do que sou e pela presença, mesmo à distância.
À minha avó Regina, pela vida.
A Marília, minha irmã, pelo amor, carinho e atenção.
A Sônia, pelo carinho e amizade.
A Adriano de Paula Rabelo, meu chapa, pela companhia, paciência e apoio.
A Ana Paula Mussel, pela ajuda, carinho e grande amizade.
A Liliana Laganá, pelo apoio, ajuda, incentivo e instrução.
À saudosa professora Dra. Ingeborg Braren, que me acolheu, instruiu e confiou a mim
esta tarefa.
Ao Prof. Dr. José Rodrigues Seabra Filho, pela acolhida, orientação, instrução.
Ao Prof. Dr. Pablo Schwartz Frydman, pela acolhida, orientação, instrução e incentivo.
Ao Prof. Ms. Hélio Requena da Conceição, meu primeiro mestre, pelo incentivo, apoio
e instrução.
Ao Prof. Dr. Marcos Martinho dos Santos, pela instrução.
Ao Prof. Dr. Paulo Martins, pela confiança e incentivo.
Ao Prof. Dr. João Ângelo de Oliva Neto, pela instrução bibliográfica.
A Benta, minha sogra, pelo apoio, amizade, carinho e exemplo.
Ao meu irmão Marcos, pela ajuda oportuna.
Ao Bruno, meu sobrinho, pela alegria e o sorriso.
Ao Ivan, pela amizade.
A Noemi, pela amizade.
Aos meus tios, Moisés, Zaqueu, Márcia Regina, Evani, Ana, Máximo, pela companhia
em família.
A Henrique e Leon Lobl, meus patrícios, pela amizade, companhia religiosa e acolhida.
Ao Flamarion, pela instrução e amizade.
A Samara, amiga para todas as horas.
Aos amigos Ricardo Conceição, Tereza, Ana Cristina, Eduardo, Renata e Luís.
A Dulci, Camila, Melissa e Adilson, pela preciosa amizade.
A Marilena, pela dedicação e alimento.
A Mel, razão do meu sorriso.
A Babi, que, mesmo longe, me faz sorrir.
Ao Joe, que sempre está aqui.
Ao Ito, a Luíza e ao Zé, pela alegria, companheirismo e amizade preciosa.
Aos funcionários da Biblioteca Florestan Fernandes, pela ajuda.
Ao professor Carlos Zélio Dimant, pela companhia religiosa e carinho.
Ao Sérgio, companheiro de moradia que se tornou meu chapa, pela acolhida e amizade.
Ao Paulinho, pela amizade e companhia esportiva.
Ao Adalgiso, companheiro de moradia, pela amizade.
Dedico este trabalho a minha amada esposa, Ana Paula,
a mulher da minha juventude,
pelo amor que vive nos meus sonhos e faz um sonho minha vida.
Em homenagem à Profª Dra. Ingeborg Braren, in memoriam.
“D’us preparou-me riso,
portanto todo aquele que ouvir rirá
comigo” (Bereshit 21:5-6).
1
APRESENTAÇÃO
Este trabalho tem três objetivos: 1 Traduzir dois excertos de dois tratados
retóricos que tratam do uso do riso na oratória: um deles situado entre os parágrafos 216
e 291 do livro II de De oratore de Marco Túlio Cícero, pela crítica especializada
chamado de De ridiculis em referência ao parágrafo 217, no qual o personagem do
diálogo oratório
1
Antônio diz ter lido alguns livros escritos pelo gregos sobre o riso sob
o tulo De ridiculis; o outro, um capítulo todo, o terceiro, do livro VI da Institutio
Oratoria de Marco Fábio Quintiliano, denominado De risu em referência ao parágrafo
22 em que o retor refere aos textos gregos chamados περ γελοου (De risu). 2
Comentar os textos por meio de notas de rodapé explicativas. 3 Colher, a partir de uma
aproximação comprovada entre os textos, o que Quintiliano acolhe do texto de Cícero
através do prisma de cinco perguntas feitas por César no parágrafo 235 de De ridiculis,
a saber: O que é o riso? Onde se encontra? É próprio ao orador utilizá-lo? Até que ponto
o orador pode utilizá-lo? Quais são os gêneros oratórios de ridículo?
Traduzi os textos diretamente do latim utilizando as edições da Belles Lettres
para ambos. Para De ridiculis utilizei aquela editada e traduzida por Edmond Courbaud
e para De risu aquela realizada por Jean Cousin. A fim de confrontar minha tradução,
solucionar trechos obscuros, verificar e conferir que arranjo fizeram outros tradutores
em seus idiomas (sobretudo ao traduzir as anedotas e os ditos ridículos ou picantes) fiz
uso de outras edições em inglês (Loeb Classical Library: da Institutio Oratoria a
tradução de H. E. Butler, e de De oratore a tradução de E. W. Sutton), em italiano
(Editora Bur: da Institutio Oratoria a tradução e notas conjuntas de Cesare Marco
Calcante e Stefano Corsi com introdução de Michael Winterbottom; de De oratore, a
tradução conjunta de Mario Martina, Maria Ogrin, Ilaria Torzi e Giovanna Cettuzzi
com introdução de Emanuele Narducci. Editora Mondadori: da Institutio Oratoria a
tradução de Simone Beta e Elena D’Incerti Amadio com introdução de George
Kennedy) e em espanhol (Editora Gredos: de De oratore, a tradução, introdução e notas
de José Javier Iso).
Antes da tradução estabeleci uma introdução que cumpre objetivo duplo e
simultâneo: primeiro, situar o leitor no ambiente dos textos traduzidos; segundo,
1
Gênero ao qual pertence a chamada obra da maturidade de Cícero.
2
mostrar os pontos em comum entre esses textos, e conseqüentemente indicar o diálogo
entre ambos e observar em Quintiliano itens acolhidos a partir de Cícero.
Para construir as notas de rodapé explicativas abordei os textos através de alguns
aspectos que os próprios textos revelaram pertinentes. Verifiquei em que pontos cada
uma das cinco perguntas feitas por César no parágrafo 235 de De Ridiculis foram
respondidas pelo próprio Cícero e, quando foi necessário, inseri algum comentário para
esclarecer ou elucidar. O mesmo fiz em De risu, que não estabelece diretamente as
mesmas perguntas, mas as responde, ainda que indiretamente. Anotei soluções,
escolhas, ajustes impossibilidades de traduções de determinados trechos quando os
textos isso exigiram. Inseri comentários sobre palavras técnicas, referências e citações.
Procurei nas obras de Cícero e Quintiliano outras instruções e prescrições sobre figuras,
tropos e outros elementos retóricos (p.ex.: metáfora, alegoria, ironia etc.) quando, nos
exemplos, alguns deles que se revelaram mais importantes ou abriam a possibilidade de
algum comentário, tomando o cuidado, porém, de não estender muito esse
procedimento para não incorrer no desagrado de explicar anedotas, palavras ou assuntos
ridículos e também para que, agindo assim, minha intervenção não ocupasse o espaço
dinâmico dos textos traduzidos. Apontei em que situações o riso se mostra mais
utilizável, a saber, nas altercações e toda vez que o embate entre os oradores exija a
tentativa de deslocar beneuolentia de um para o outro (cf. Quintiliano, VI 4 e De
inuentio I, 23–25). Fiz pequenos resumos biográficos para que o leitor tivesse ao menos
uma parca idéia de quem era a pessoa citada em um excerto ou exemplo, tarefa em que
evitei me estender também para que o fugisse do gênero do qual este trabalho faz
parte [auxiliaram-me nesta tarefa as obras Dictionary of classical antiquities de Oskar
Seyffert (Boston: Little, Brown, and Company,1894) e A dictionary of Greek and
Roman biography and mythology de William Smith (London: John Murray, 1867)].
Indiquei os pontos em que os textos estabelecem um diálogo ou em que alguma
referência externa a eles, como p. ex., a citação de algum verso ou parágrafo em outra
obra de Cícero ou outro autor. Lembrei ainda alguma curiosidade ou coincidência entre
algum gênero ou exemplo e noções do quotidiano. Discorri (às vezes mais brevemente
outras vezes menos) sobre os conceitos de urbanitas, facetiae, rusticitas, ars etc.
baseados em literatura moderna existente ou mesmo na clássica; decerto, esta última
atende por si só em muito à demanda por instruções a respeito desses termos.
3
Introduzo o trabalho: 1 ambientando, em um primeiro momento, De ridiculis e
De risu no contexto de De oratore e da Institutio Oratoria; 2 traçando sucintamente
evidências que comprovam a influência do texto de Cícero na obra de Quintiliano.
Mostro seis aspectos do texto de Cícero que se repetem em Quintiliano: a tópica em que
os dois textos estão inseridos (um brevíssimo resumo da primeira parte desta introdução
ambientação); as inumeráveis citações que Quintiliano faz a respeito de Cícero
(algumas diretamente de De ridiculis, outras de obras diversas além de De oratore); as
palavras técnicas em suas acepções e usos; as imprecisões na categorização dos gêneros
de facécia em Cícero e gêneros de urbanidade em Quintiliano; os exemplos de ditos
ridículos repetidos por Quintiliano os gêneros de ridículo de Cícero e Quintiliano; o uso
das cinco perguntas de César (De ridiculis, § 235) na tentativa de estabelecer uma arte e
doutrina a respeito do riso, que embora não estejam explicitamente adotadas por
Quintiliano em De risu, se fazem presentes no decurso do texto.
4
ESCLARECIMENTOS
No decorrer da introdução, utilizei alguns termos técnicos que são resultado de
todo processo tradutório e analítico. Pretendendo atender à uniformidade dos termos da
tradução, mas, necessitando introduzir o texto, precisei utilizar os termos “dito picante”,
“dito ridículo”, “anedota”, “gracejo”, “urbanidade”, “facécias” em acepções
aproximadas do que seria a piada ou a tirada humorística ou ridícula, ou mesmo anedota
e riso” e “ridículo” com a acepção genérica da matéria, sem a necessidade de uma
precisão maior. O mesmo ocorreu com as palavras “juízes” e “ouvintes”, que no
trabalho são sinônimos. Nos dois casos, utilizei, por vezes, um ou outro termo para
evitar a redundância. Noutras vezes tentei determinar com menor imprecisão a palavra,
o gênero ou o exemplo do qual falava. Repeti esse procedimento nos comentários nas
rodas de rodapé e na conclusão quando isso se mostrou necessário.
Ao formatar a tradução optei por intercalar os respectivos parágrafos em latim e
em português (p. ex.: § 1 em latim seguido do § 1 em português; § 2 em latim seguido
do § 2 etc.), colocando o texto latino em itálico. Em decorrência dessa opção, ocorreu
que em alguns parágrafos o período o terminava naquele em que ele iniciou,
terminando apenas no seguinte, se estendendo, em outros casos, por mais de dois
parágrafos. Por isso, preferi não assinalar as rupturas causadas nos períodos pela
mudança de parágrafo nem alterar a construção sintática dos mesmos, a fim unicamente
de preservar a integridade dos textos tal qual foram escritos.
Quanto às notas de rodapé, procurei inseri-las somente quando o texto abria
espaço para tanto e reservei para mim a opção de não colocar alguma que resultasse
imprecisa ou desnecessária. Em alguns momentos, necessitei indicar uma verificação
em outro parágrafo e a nota correspondente àquela referência. Nesses casos, indiquei o
parágrafo em questão e acresci a abreviatura n.” ou “nn.” (nota ou notas). Por fim,
pretendi que o trabalho todo fizesse prevalecer a beleza, a similaridade e a importância
dos textos traduzidos. Espero tê-lo conseguido.
Já no texto conclusivo, resolvi, devido ao gênero dessa parte do trabalho,
introduzir os parágrafos de De ridiculis e De risu que fazem referência um ao outro
dentro de parênteses e espaçados por um barramento. Optei por esse procedimento
unicamente para evitar o cansaço e cumprir a brevidade requisitada em um texto de
encerramento.
5
ABREVIATURAS E SÍMBOLOS
§: parágrafo
§§: parágrafos
a.e.c.: antes da era comum
cf.: conforme ou conferir
e.c.: da era comum
i.e.: isto é
n.: nota;
nn.: notas
p.ex.: por exemplo
p.:página
pp.: páginas
Quint.: Quintiliano
Cic.: Cícero
v.: vide ou veja-se
vol.:volume
6
INTRODUÇÃO
1 A inserção de De ridiculis no livro II de De oratore e de De risu no livro VI da
Institutio Oratoria
1.1 De ridiculis em De oratore
O pequeno tratado sobre o riso, também chamado De ridiculis, se insere no
Livro II de De oratore, especificamente onde Cícero começa a tratar da inuentio.
2
O livro II
3
inicia-se com Cícero dirigindo-se ao irmão Quinto falando sobre a
família, Crasso, Antônio, de fatos da vida e sobre a arte,
4
de cuja digressão afirma que
“todas as artes possuem sua autonomia, mas a eloqüência não possui um campo
definido.”
5
Começava o segundo dia na casa de campo de Crasso em Túsculo, onde
estavam o anfitrão Licínio Craso
6
, Marco Antônio,
7
Quinto Múcio Cévola Augur,
8
Caio
2
Compõem também o livro II a dispositio e a memoria.
3
Como se sabe, no livro I, após o preâmbulo (onde Cícero dedica De oratore ao irmão Quinto e expressa
seu desejo em dedicar-se, agora que esmaduro, à oratória, à literatura e à filosofia, o obstante novas
preocupações tenham de permitir-lhe um tempo em que possa dedicar-se à escrita) a introdução do
diálogo fictício entre Lúcio Licínio Crasso, o anfitrião em Túsculo, Marco Antônio – o avô do triúnviro –,
P. Sulpício Rufo, Quinto Múcio Cévola Augur e Caio Aurélio Cota. Num primeiro momento Crasso,
Cévola e Antônio discutem a respeito do objeto, da definição e dos limites da oratória (1–107). Depois o
mesmo Crasso, Cota e Cévola, tratam das qualidades exigidas do orador e dos conhecimentos que dele se
exigem (107–62).
4
V. nota 101.
5
Cf. De oratore II, 5.
6
Lúcio Licínio Crasso nasceu em 140 a.e.c. (cf. Brutus 161) e tinha 49 anos na suposta época do diálogo
de De Oratore. Foi educado pelo pai com grande cuidado e recebeu instrução do celebre historiador e
jurista Lucius Caelius Antipater (cf. Brutus 102). Crasso figurava uma liderança entre a douta aristocracia
romana, da qual foi seu mais ilustre orador antes de Cícero, de quem foi tutor na infância. De fato, Cícero
tinha enorme admiração por Crasso, que para ele era o modelo de orador. De tal modo isso era evidente,
que as falas de Crasso em De Oratore reproduzem as opiniões de Cícero.
7
Marco Antônio nasceu em 143 a.e.c. (cf. Brutus 161) e foi ado triúnviro. Quando foi pretor em 103
a.e.c. pôs fim à pirataria na Cilícia (província romana na Ásia Menor), sendo premiado pelo feito. Foi
censor seis anos mais tarde. E quatro anos depois da suposta data do diálogo de De Oratore foi morto por
Mário quando jantava na casa de um amigo. Cícero costumava dizer que ele era um dos maiores oradores
de Roma. Ao introduzir Antônio e Crasso em De Oratore, Cícero não só lhes presta homenagem, como
também indica os oradores que o influenciaram.
8
Quinto Múcio Cévola Augur participa apenas do primeiro livro De oratore. Foi primo de Quinto Múcio,
o jurisconsulto, que foi nsul em 133 a.e.c., tio de Quinto Múcio Cévola Pontífice e também sogro de
Crasso com quem aprendeu o Direito. Eminente jurisconsulto foi pretor em 121 e cônsul em 117 a.e.c.
Possuía uma firmeza e caráter como a de poucos em Roma, chegando certa vez a enfrentar Sula em 88
a.e.c. quando este quis declarar Mário como inimigo público. Na ocasião, Cévola respondeu a Mário que
mesmo que ele o matasse (com efeito, o ameaçava), ainda assim o teria o seu voto para tornar inimigo
alguém que salvara Roma e a Itália.
7
Aurélio Cota
9
e Públio Sulpício,
10
quando ali chegaram Lutácio Cátulo
11
e seu irmão,
Júlio César Estrabão.
12
Assim, depois dos cumprimentos e de uma pequena conversa
entre aqueles que estavam e os novos visitantes, a palavra
13
foi dada a Antônio, que
ficou incumbido de falar sobre a inuentio. Ao começar sua intervenção, ele primeiro diz
que ainda que não haja uma arte da eloqüência, nada de mais esplêndido do que um
orador completo, e depois faz um elogio à ela na forma de belíssimas perguntas sobre a
oratória: “Que canto mais doce pode ser encontrado do que um discurso harmonioso?
Que poema mais apto do que um período artificioso? Qual ator mais jucundo ao
imitar a verdade do que o orador a defender um caso real? Que é mais refinado e sutil
do que uma seqüência de pensamentos agudos? Que é mais admirável do que iluminado
pelo esplendor de palavras? Que é mais completo do que um discurso repleto de
conteúdos?”. Então, expõe quais são os três gêneros de discurso: o gênero deliberativo
(que trata sobre uma ação do futuro), o demonstrativo ou epidítico (que trata sobre uma
ação do presente) e o judiciário (que trata de uma ação do passado).
14
A seguir, faz
algumas considerações sobre o gênero demonstrativo, um paralelo entre a historiografia
e a oratória, e outros comentários e prescrições. Trata ainda das competências do orador
(ele deve estar preparado para falar sobre qualquer assunto e não pode recusar um que
seja, deve falar do mal e do bem, do honesto e do desonesto, do útil e do inútil, do
virtuoso e do vicioso etc.), sobre os elementos da arte e mais adiante, entre os
parágrafos 78–84 dos tipos de causas e das cinco partes (membra) do discurso, que são:
1 a inuentio, onde se encontra aquilo que se vai dizer; 2 a dispositio, onde se organiza
aquilo que se encontrou; 3 a elocutio, que adorna com palavras as idéias obtidas na
inuentio; 4 a memoria, que o próprio nome explica o que vem a ser; 5 a actio, que é a
9
Caio Aurélio Cota era da mesma idade de Sulpício Rufo. Pertencia ao partido de Rufo, mas não aderiu
ao movimento por reformas radicais a que seguiu seu amigo. Foi cônsul em 75 a.e.c. E morreu no ano
seguinte após alguns pequenos sucessos militares como procônsul na Gália.
10
Públio Sulpício Rufo. Era discípulo de Crasso. Nasceu em 124 a.e.c. tinha 33 anos à época de De
ridiculis era um dos jovens (o outro é Cota) participantes que no diálogo possuem um papel menor e que
estão ali menos para intervir do que para aprender. Rufo destacou-se em atuações políticas. Sendo uma
das maiores esperanças da aristocracia, acabou, depois do assassinato de seu grande amigo Druso,
aproximando-se dos movimentos populares, que lutavam por reformas radicais em Roma.
11
Quinto Lutácio Cátulo, irmão do César, foi nsul em 102 a.e.c. Era conhecido por sua cultura e
helenismo. Em sua época o político mais culto dentre todos. Não se destacou pela oratória, embora
fossem evidentes sua elegância e pureza de estilo. Depois de 87 a.e.c. passou a pertencer à lista de
inimigos de Mário, que depois de inúmeras contendas, lhe permitiu o suicídio.
12
Júlio sar Estrabão Vopisco. Irmão uterino de Quinto Lutácio Cátulo. Foi cônsul em 90 a.e.c. O riso
era a principal característica da oratória de César e nisso ele era superior aos seus contemporâneos.
Decerto, foi por isso que Antonio e os demais tanto pediram para que sar tratasse sobre o riso em De
ridiculis.
13
De oratore foi constituído por seu autor no gênero diálogo oratório.
14
Cf. §§ 41–73.
8
execução do discurso. Mais adiante, depois de tratar dos talentos e qualidades desejáveis
num orador e da escolha de um modelo a imitar, além de outras considerações não
menos importantes, Antônio chega propriamente ao campo da inuentio, ao qual, como
dissemos, o discurso sobre o riso, De ridiculis, pertence.
Surgem então os três objetivos do orador: probare, conciliare e mouere. O
probare consiste em provar que o orador defende a verdade. Antônio explica que no
probare duas coisas importam ao orador: aquelas que não dependem dele, a saber, os
fatos, os documentos, as pessoas etc., e aquelas que dependem do seu engenho. O
orador deve descobrir o ponto fundamental da causa. Ademais, ele demonstra a
conformidade dos princípios ali expostos com os de Aristóteles e, numa digressão,
discorre sobre a relação entre dialética grega e a retórica, apresentando depois os loci
argumentorum.
Se no probare o foco do orador está em direção à causa, daqui em diante,
15
tanto
no conciliare quanto no mouere, o que importa são os seus interlocutores, seus ouvintes,
seu público.
Assim, Antônio passa a tratar da importância do conciliare, que consiste em
captar a simpatia dos ouvintes para o êxito na persuasão. Ora, isso se dá na configuração
de dois aspectos essenciais na captatio beneuolentiae:
16
o θος e πθος. A configuração
do θος do orador e de seu cliente é de extrema importância para o sucesso da causa. Os
costumes, os princípios, as ações e a vida do orador e de seu cliente devem ser
apreciados pelos ouvintes e também é importante que o oposto ocorra ao adversário.
Vão a favor do orador o tom de voz suave, um rosto afável, o comedimento das palavras
e o parecer contrariado ao ter de tratar de algo com maior dureza. De resto, a
tranqüilidade, o recato e a discrição dispõem o juiz favorável à causa, ao orador, ao
cliente. O efeito é especial se o caráter do orador se mostra verdadeiro, íntegro, sincero,
e o de seu cliente, de forma semelhante, pareça ser honesto, justo, cumpridor dos
deveres religiosos
17
e vítima de uma injustiça.
Quanto ao πθος, interessa ao orador que os sentimentos dos juízes estejam
voltados ao favor ao orador e de seu cliente. Seus afetos devem tornar-se predispostos a
salvar o cliente; é importante que o medo, o ódio, a alegria, a tristeza, a complacência, a
15
Do parágrafo 178 ao 216.
16
Importa anotar que a captatio beneuolentiae não é um recurso exclusivo do exórdio. Ela tem muita
utilidade também na peroração.
17
Para com seus antepassados, como era costume na religião romana.
9
compaixão etc. sejam excitados a favor da causa. Mas, para que esse efeito se assegure,
é importante que o orador também esteja movido, de forma sincera e sem fingimento
algum, pelos mesmos sentimentos que deseja despertar. Trata-se de um processo em
que o πθος se funde ao θος do orador de tal modo que o ouvinte termina percebendo
nele, orador, um homem sincero e bom tomado por algum sentimento que condiz com
seu caráter.
Antônio apresenta ainda as regras que constituem os recursos do mouere, que
normalmente ocorre na peroratio, conforme instrui Cícero em De inuentione (§§ 98–
109).
18
Este recurso consiste em levar os ouvintes a um estado de ânimo favorável à
causa através do despertar de sentimentos, a depender da causa, de complacência ou
piedade, ódio, ira, alegria, compaixão, afeto, simpatia, antipatia ou outro qualquer.
Antônio insiste naquele processo que se explicou como uma fusão do πάθος ao ἦθος.
Os sentimentos que o orador quiser despertar no ouvinte devem ser nele também
despertados e este orador deve se apresentar como um homem honrado, contido e
tranqüilo, disposto a mudar de comportamento somente quando uma injustiça se
avizinha e ameaça seu cliente.
Tratando do mouere desde o parágrafo 178, quando ali passou a discorrer sobre
o θος do orador e de seu cliente e do πθος desejável de imprimir nos ouvintes, a
intervenção de Antônio chega até o pequeno tratado do riso no parágrafo 216, onde
começa De ridiculis. É onde a prescrição dos afetos culmina: num recurso que a arte
não pode contemplar por completo e que tanto se mostra mais interessante quanto
parece ser mais eficiente. Com efeito, Antônio preceitua, no início do parágrafo 216,
que se substituam os sentimentos impressos pelo adversário por outro contrário.
Desfazer aqueles sentimentos mais densos, aliviar o ouvinte e torná-lo simpático por
algo mais suave, leve, desimportante é a função do riso.
Cícero não trata o mouere dentro de seu campo mais comum, a peroratio, como
faz Quintiliano. Isso se explica porque o escopo dessa parte de De oratore é a inuentio,
que o exige que o trato dessa doutrina da parte da retórica venha incluso naquele
outro de parte do discurso (a peroratio). Também de se esperar que a presença do
mouere, nessa parte do livro II, traga à memória não somente as doutrinas da narratio,
argumentatio e da refutatio, partes do discurso relacionadas ao probare, escopo oratório
18
A teoria da peroratio está baseada em Aristóteles, cf. Retórica 1419b, 10–1420a.
10
tratado na inuentio, mas também as doutrinas do exórdio e da peroração, relacionadas
ao conciliare e mouere, respectivamente.
1.2 De risu na Institutio Oratoria: Da peroração
1.2.1 Proêmio
No proêmio Quintiliano faz uma longa queixa sobre a perda da mulher e dos
filhos.
1.2.2 Capítulo I
A peroração é composta por duas partes: recapitulação e afetos.
A recapitulação deve ser breve e permeada por figuras. Este era o único tipo de
peroração adotado pelos atenienses e pelos filósofos. Da escolha dos primeiros,
Quintiliano diz acreditar que o motivo não pode ser outro senão a proibição de se
excitar os sentimentos em Atenas. Dos últimos, Quintiliano diz não se espantar, afinal
os filósofos não têm em grande conta o homem passional. De resto, a recapitulação tem
espaço em outras partes do discurso.
Os afetos podem ser movidos tanto pelo acusador quanto pelo defensor.
Quintiliano explica que no exórdio o orador deve procurar conquistar a simpatia dos
juízes de maneira moderada. Mas na peroratio é importante despertar seus sentimentos
para que eles, ao julgar a causa, estejam inclinados ao cliente e à causa pelo afeto.
O acusador pode suscitar a ira, o ódio, o aborrecimento, mostrando que o crime
de que acusa o réu é atroz e um fato infeliz, miserável. Cabe ao acusador distanciar o
juiz dos pedidos de misericórdia que serão feitos pelo acusado, dizendo entre outras
coisas que o crime por ele cometido não somente é o mais atroz como o mais digno de
compaixão. Falando o acusador sobre a infelicidade do réu (mesmo sendo ele um
inimigo), de seu abandono e de sua família, e lamentando a situação em que o réu se
enredou, adiantar-se-á e neutralizará os pedidos semelhantes que o réu vier a fazer. Por
outro lado, na peroratio o acusador deve, como em nenhuma outra parte do discurso,
excitar a animosidade, a ira, o rancor. Toda infâmia deve recair sobre o réu. E mesmo ao
11
dizer que o réu é digno de compaixão, o acusador deve lembrar ao juiz da sua obrigação
de julgar a causa com justiça.
O defensor, por sua vez, deve alegar a dignidade do acusado, suas boas
inclinações e intenções. Isso pode ser feito mostrando feridas de guerra se ele as tiver,
suas boas ações e as de seus antepassados. Deve também despertar a compaixão dos
juízes dizendo dos males por que passou o réu no passado, das dificuldades por que
passa no presente e das por que terá de passar se for condenado. As prosopopéias, bem
como o falar com coisas inanimadas, funcionam muito bem nessa parte do discurso. No
entanto, o orador deve evitar se estender nos pedidos de compaixão, afinal nada seca
mais facilmente do que as lágrimas.”
19
Além das palavras, o orador pode também despertar os sentimentos por meio das
coisas. O acusador pode mostrar um punhal manchado de sangue ou as vestes
ensangüentadas do morto ou discorrer sobre a má vida pregressa do acusado, sua
indignidade. o defensor pode mostrar em trajes miseráveis a família do acusado.
Quintiliano chega a dizer que essa viva pintura da miserabilidade da família do réu e a
mostra de sua dignidade podem vir a salvá-lo.
Na parte final do livro I, Quintiliano alerta sobre a necessidade de habilidade
para despertar os sentimentos, pois se orador não consegue despertar as lágrimas, o
afeto mais forte de todos, deve contentar-se com as inclinações internas dos juízes.
Quintiliano prescreve que se não como mover os sentimentos, de se provocar o
riso, pois não outro jeito. Na peroratio o orador não deve mover os sentimentos
como deve também tentar esvaziá-los. Por fim, o orador deve ser movido pelos mesmos
sentimentos que deseja despertar. O retor repete ainda que o mouere tem seu lugar no
exórdio e sobretudo na peroração. Mas em qualquer parte da oração ele pode ser muito
útil, desde que seu processo se faça com moderação.
1.2.3 Capítulo II: Afetos
A peroratio é o lugar principal dos afetos. O mouere adfectus é não somente o
recurso mais eficaz como também, entre todos anteriores, é o mais difícil de ser posto
em prática. Pois oradores habilidosos em manipular os argumentos necessários para
provar sua tese, mas nem todos estão aptos a mover os sentimentos dos juízes a ponto,
19
Cícero, De inuentione I, 109.
12
às vezes, de quase transformá-los. Há, com efeito, um poder que domina os tribunais:
ali quem reina é a eloqüência. Quanto aos argumentos, eles nascem das próprias causas
e são mais numerosos na parte que está em melhor situação, de modo que nesse caso o
advogado pode vencer a causa apenas pela força dos argumentos, nesse caso ele apenas
faz aquilo que é seu dever. Porém, quando a violência dos sentimentos do juiz o afasta
da verdade, entra o papel do orador. Por outro lado, o se aprende a mover os
sentimentos pelas informações do cliente nem por meio dos livros. Demais, os
argumentos convencem os juízes de que a justiça está do lado do orador, mas são os
afetos que os movem. Assim, quando eles começam a sentir que vão favorecer,
aborrecer, compadecer-se etc., aí eles já têm como deles a causa do orador.
Os sentimentos despertados nos juízes se dividem em dois tipos: o primeiro foi
chamado pelos gregos de θος (caráter, moral) e em latim se traduz por mores; o
segundo foi denominado πθος (paixão, sentimentos), em latim adfectus. Quintiliano
enumera várias definições baseadas em comparação sobre essas duas categorias de
sentimentos: o πθος revela um sentimento passional, o θος um sentimento calmo e
tranqüilo; o πθος comanda, o θος convence; o πθος agita, o θος aplaca, amaina; o
πθος age num tempo limitado, o θος é um movimento contínuo. Toda discussão cujo
argumento se baseia no que é honesto e útil, no que se deve fazer e não fazer ou o que
se pode fazer ou não, pode ser chamado de θος. Para Quintiliano, ainda que alguns
afirmem que a comiseração e as desculpas sejam próprias da peroração (com o que ele
concorda em parte), esse não é o recurso único na peroração. Para ele o θος e o πθος
possuem a mesma natureza. A diferença entre eles é que o último é mais intenso que o
primeiro.
1.2.3.1 Descrição de θος
O θος está ligado, antes de tudo, à bondade, àquilo que não é somente calmo,
tranqüilo, mas também gentil, humano, favorável e agradável àqueles que ouvem. A
grande virtude do θος reside nisto: a expressão do orador se faz de tal modo, que tudo
o que ele disser revelará o seu bom, honesto e íntegro caráter. Concluindo, o recurso do
θος requer um homem honesto e gentil, o que deve ocorrer também a seu cliente.
13
grande vantagem na procura pela persuasão se o orador emprestar à causa a garantia de
sua honestidade.
1.2.3.2 Descrição de πθος
Quintiliano equipara o θος à comédia e o πθος à tragédia. O πθος abarca
sentimentos como a ira, o medo, o ódio, a compaixão. Há, com efeito, dois tipos de
medo: aqueles que possuímos e aqueles que infligimos aos outros. O mesmo vale para o
ódio. Na peroração, de se usar da amplificação, que ocorre, por exemplo, quando
dizemos que uma causa grave excede as outras em gravidade ou quando pintamos um
mal comum como insuportável. A força da eloqüência não consiste somente em causar
nos juízes os afetos que a própria natureza poderia causar, mas sim em excitar aqueles
que eles não sentem e avivar aqueles que eles já possuem.
Finalizando o capítulo II, Quintiliano prescreve ao orador provar dos mesmos
dos sentimentos que tentar excitar. Afinal, resultaria ridículo
20
se o orador quisesse
provocar quaisquer sentimentos sem mostrar ter sido também tomado por eles. Se o
orador quiser falar com verossimilhança, deve parecer sentir os afetos que busca
imprimir nos juízes. Há, segundo Quintiliano, uma técnica para que o orador consiga
mover a si mesmo. É o que Quintiliano chama de imaginação.
21
E ela consiste numa
atitude simples: que o orador, ao representar os fatos como aconteceram, procure
colocar-se no lugar de alguém que está em perigo.
20
Sem o trocadilho e sem a noção de ridículo presente neste trabalho.
21
No texto imagine, de imago,-onis.
14
2 A influência de Cícero no texto de Quintiliano
2.1 Tópica
22
Ao conduzir a discussão do mouere, sobretudo a excitação dos sentimentos,
23
o
conteúdo que antecede tanto De ridiculis quanto De risu conecta os dois pequenos
tratados e o faz numa progressão tal que ambos culminam a doutrina da manipulação
dos afetos dos juízes. Estão presentes nos parágrafos que antecedem De ridiculis e De
risu questões como a necessidade e eficiência do mouere na peroração,
24
a constituição
do θος do orador e de seu cliente como fator de sucesso na persuasão, a definição e o
funcionamento do πθος
25
e, enfim, a prescrição do mover os afetos dos ouvintes.
Quanto à tópica, o lugar onde o riso se insere e se manifesta é, primeiro, dentro da
inuentio e depois dentro da doutrina do mouere ou da peroração, que são próximas e
pertinentes à mesma parte do discurso. Como se disse anteriormente, em De oratore
Cícero trata do riso dentro da inuentio no campo de um dos objetivos do orador, o
mouere. Quintiliano também insere a matéria na elocutio, mas diferentemente de
Cícero, demarca a presença do riso dentro da peroratio.
2.2 Citações
Outro fator que aproxima os dois textos são as recorrentes citações de Cícero na
obra de Quintiliano.
26
no começo de De risu o retor o coloca como o príncipe da
eloqüência latina que possuía uma admirável urbanidade.
27
Na verdade, as citações de
Cícero em De risu não se resumem ao início do tratado: elas praticamente permeiam De
22
Cf. Curtius (1996: pp.121–122).
23
Em geral, como o próprio Quintiliano diz (VI, 2, 20), a peroratio é por excelência o lugar das plicas,
das desculpas e do mover dos sentimentos, mas isso não quer dizer que estes recursos estejam s na
peroração.
24
Lembro que Cícero não inclui a peroração no livro II, mas trata do probare, do conciliare e do mouere,
os dois últimos, sobretudo o último, relacionados à peroração.
25
Mais evidente em Quintiliano, mas indiretamente presente em Cícero.
26
Refiro-me ao De risu especificamente.
27
As observações sobre a urbanidade de Cícero e sobre a acusação de seu suposto exagero no uso do riso
se estendem até o parágrafo cinco.
15
risu do começo ao fim.
28
Além disso, verifica-se num segundo momento a coincidência
de gêneros, exemplos, equívocos e doutrina entre De ridiculis e De risu.
2.3 Palavras técnicas
Em De ridiculis, o conjunto dos gêneros de ridículo chama-se genera
facetiarum, que o próprio denomina diretamente nos parágrafos 218 e 239. O termo
facetia é encontrado também em Brutus 177),
29
onde Cícero faz um elogio a Júlio
César Estrabão,
30
cujas virtudes incluíam a urbanidade. Ora, como instrui Edwin
Ramage (1960 e 1963),
31
isso faz entender a autoria de Cícero na ligação de facécia com
urbanidade ao mesmo tempo em que inclui a acepção humorística de urbanitas na obra
de Quintiliano. Além disso, Cícero alinha o dito picante à urbanidade no parágrafo 231
de De ridiculis.
Em De risu, o gênero de riso é a urbanitas, cuja acepção é sabida pela crítica
32
tomada tanto dos conjuntos quanto dos gêneros de ditos ridículos. Quintiliano não
indica diretamente a existência de gêneros de urbanidade. Por isso, estabeleci a
nomenclatura genera urbanitatis, a fim de indicar um nome aos gêneros de ridículo em
De risu à maneira do que ocorre em De ridiculis. Para tanto, fiz apenas colher o termo
genus e adequá-lo à acepção de humor de Quintiliano, que é, a saber, a urbanitas.
Essa concepção de urbanitas em Quintiliano é um atendimento ao conceito
humorístico em Roma que começou a tomar corpo à época de Cícero
33
e que não se
ausenta de sua obra
34
e se prova quando Quintiliano iguala a fala picante à urbanidade:
“Por outro lado, assim como desejo que o orador fale com urbanidade,
também não quero que ele pareça, em todas as ocasiões, querer mostrar
isso explicitamente. Por isso é que ele não deve falar picantemente todas
28
O nome de Cícero aparece nos seguintes parágrafos de De risu: 8, 18, 20, 23, 24, 39, 42, 43, 47, 48, 49,
51, 55, 56, 67–69, 73, 75–77, 84, 86–88, 90, 96, 98, 108, 109, 11.
29
Além de ocorrer em Brutus, o termo aparece também em Orator (§ 90).
30
Um dos protagonistas de De oratore.
31
V. De ridiculis, § 217, n. 106, § 219, n. 117; De risu, § 8, n. 355, § 17, n. 362).
32
V. HANSEN, João Adolfo. “Retórica da agudeza”. In: Letras Clássicas, nº 4. São Paulo: Humanitas
FFLCH/USP, 2000: p.319.
33
Em De ridiculis (§ 231), Cícero usa o termo urbanidade com a acepção de “riso”.
34
RAMAGE, E. S. Early roman urbanity”. In: The American Journal of Philology, vol. 81, No. 1: 1960,
pp. 65-72; Urbanitas: Cicero and Quintilian, a contrast in attitudes”. In: The American Journal of
Philology, 1963, vol. 84, No. 4, pp. 390-414.
16
as vezes que puder e preferirá por vezes perder algum dito picante a
diminuir sua autoridade.”
35
O que se prova também ao indicar o lugar do riso:
O riso possui seu lugar, como diz Cícero, em alguma torpeza ou
imperfeição, chamadas de urbanidade quando apontadas nos outros e
estultice quando recaem sobre os mesmos que estão falando.
36
O termo ainda se repete em De risu quase sempre em contextos em que
Quintiliano discute sobre definições, gêneros exemplos do riso oratório. Quanto à
facécia, gênero de ridículo em Cícero, Quintiliano alinha facetiae ao riso nos parágrafos
4, 20 e 42 de De risu.
Por outro lado, a citação da definição de urbanitas de Domício Marso, nos
parágrafos finais de De risu, está ali apenas para espelhar a de Quintiliano. Com efeito,
o retor afirma que algo de equivocado na definição do poeta, embora ela esteja
congruente com a sua em alguns poucos aspectos.
Nos textos, as palavras “picante”, “ridículo”, “tempero”, “gracejo” “dito
picante”, “dito ridículo” etc. são a expressão mais comum em toda esta matéria. Por
isso, procurei, na tradução, obedecer a ocorrência em latim do termo a partir das
escolhas iniciais, que anotei quando necessárias, traduzindo-as conforme o texto as
apresentava. Evitei a todo custo alterar a progressão dos textos. Deste modo, tanto nas
explicações das notas de rodapé, quanto nesta introdução, bem como na conclusão,
alguns destes termos têm o sentido mais comum neste objeto de estudo, que é o riso.
Mas em outras vezes eles possuem um sentido mais preciso. Neste caso, abri notas
quando o texto, por si só, não podia, pelo contexto, deixar evidente em qual acepção a
palavra ocorria.
2.4 Imprecisões
Tanto Cícero quanto Quintiliano deslizam em algumas imprecisões
terminológicas ao tentar definir ou categorizar os genera ridiculorum dentro de
35
De risu, §30.
36
De risu, § 8.
17
categorias pré-determinadas. Cícero deixa imprecisa uma definição ao caracterizar o
ridículo estendido no discurso como facécia em Orator 87), e chamá-lo em De
ridiculis (§ 218) de cauillatio (cavilação).
37
Quanto à categorização, Cícero se confunde
em dois momentos. O primeiro, ao utilizar o mesmo termo com duas acepções
diferentes, uma no parágrafo 218 onde distribui os genera facetiarum em cauillatio e
dicacitas (gêneros de facécias cavilação e mordacidade) e outra no parágrafo 239,
quando os distribui então em gêneros de facécias de assunto e de ditos. E o segundo ao
distribuir outros três gêneros de facécias no parágrafo 248 (quando os havia
distribuído com aquela nomenclatura idêntica no parágrafo 218, redistribuído no
239, e descrito e exemplificado entre os §§ 239–247) com a mesma nomenclatura usada
nos dois primeiros casos (§§ 218, 239) adicionando um terceiro gênero (gênero de
facécias de assuntos e de ditos), misto desses dois primeiros gêneros (de assuntos e de
ditos).
38
Quintiliano por sua vez, também deixa escapar algumas imprecisões quanto à
organização de seus genera urbanitatis ao não constituir claramente sua categorização
de ditos ridículos. Ela é um misto dos modelos encontrados nos §§ 218 e 284 de De
ridiculis. No parágrafo 22, o retor faz uma bipartição que é desenvolvida somente a
partir do parágrafo 39.
39
No vigésimo terceiro e vigésimo quarto parágrafos uma
tripartição, da qual desenvolve apenas o último gênero.
40
Além disso, ele também não
explica qual o funcionamento desse sistema nem submete um ao outro, como faz Cícero
nos parágrafos 218 e 239.
Duas hipóteses podem tentar explicar os motivos daquilo que em Cícero e
Quintiliano não podemos chamar de erros, mas sim de imprecisão, ademais,
justificáveis.
É preciso explicar que o riso, segundo Cícero
41
e Quintiliano
42
não é matéria que
possua uma arte e, por conseguinte, uma doutrina. Não obstante, ambos manifestem o
desejo da existência de uma arte do riso.
43
Ora, a própria existência de De ridiculis e De
risu não é outra coisa senão a tentativa de tal empreendimento. Cícero e Quintiliano
definem, preceituam, classificam e exemplificam sobre a matéria. No entanto, eles
37
V. De ridiculis, § 218, n. 114.
38
V. § 239, n. 177.
39
V. §§ 39 e 45 e nn.
40
A partir do § 84.
41
De ridiculis, §§ 216–220, 229, 231.
42
De risu, §§ 11, 14.
43
De ridiculis, §§ 232, 248; De risu, § 16.
18
mesmos parecem perceber (justamente nos parágrafos em que manifestam o desejo de
encontrar uma arte sobre o riso) a dificuldade da tarefa logo no início
44
de seus
pequenos tratados. Decerto, o riso, como diz Quintiliano, possui uma força
poderosíssima e irresistível, mas se sua natureza é sua mestra
45
(ou seja, os tempos, as
circunstâncias, o improviso, o engenho, agudeza) a arte passa a ter sobre um papel
quase nulo. Essa natureza do isso não permite, portanto, um conjunto de regras pré-
estabelecido, e por conseguinte, não uma doutrina correspondente. Por outro lado, o
riso funciona muito bem nos embates, nas altercações, nos momentos em que a agudeza
e o engenho do orador necessitam agir com agilidade, presteza, instantaneidade.
46
Não à
toa Quintiliano afirma que “tudo fica melhor na resposta do que na provocação.”
47
Sendo assim, que matéria tão flexível, tão natural e tão poderosa caberia em um
conjunto de preceitos (arte) e poderia ser ensinada (doutrina) quando seu uso se
quase em momentos de improviso?
Como disse, duas hipóteses podem justificar as imprecisões na categorização do
riso em Cícero e Quintiliano. A primeira é justamente essa característica assaz flexível e
natural da matéria, que se, de um lado, permite aprender pelo estudo, pela prática, pelos
exemplos, por outro dificulta uma categorização cabal e definitiva. A segunda, difícil de
provar, é a distração e o excessivo gozo que proporcionam os ditos picantes que, de tão
agradáveis, afastam da seriedade e dos assuntos sérios.
2.5 Exemplos
Coincidem também em De ridiculis e De risu alguns exemplos de anedotas e
ditos ridículos cujos motes e personagens são idênticos ou, em alguns casos, com a
mudança apenas de personagens. Disso aponto três exemplos: o dito ridículo sobre
Mêmio, que se considerava tão alto que batia com a cabeça no arco de Fábio em De
ridiculis, § 267, que Quintiliano acolhe em De risu 67); a anedota de um siciliano
cujo amigo se queixava certa vez dizendo que a esposa se enforcara num de figo, a
quem ele respondeu: “Por favor, dá-me uma muda dessa árvore para eu plantar!”, que
Quintiliano reproduziu no parágrafo 88; a frase de Caio Claudio Nero, citada no
44
De ridiculis, § 217; De risu, §§ 1, 6.
45
De ridiculis, § 247.
46
De ridiculis, §229; Quintiliano VI, 4
47
De risu, § 13.
19
parágrafo 248 de De ridiculis sobre um servo ladrão: “Ele é o único em casa a quem
nada fica escondido ou trancado”, que Quintiliano acolhe em De risu50).
2.6 Arte e doutrina
A respeito da doutrina, tanto observei que ambos os textos insistem
marcantemente sobre a ausência de uma arte ou doutrina que tratasse o riso
48
quanto
percebi que mesmo assim eles tentam traçar algum método que seja compatível com a
matéria. Em Cícero encontramos primeiro a indicação de que o uso do ridículo não está
ligado a algum método (arte) e sim que a capacidade de fazer rir está ligada à natureza,
i.e., provocar o riso é algo nato
49
e na medida de cada um.
50
Quintiliano deixa isso
implícito quando diz que o dom de Demóstenes não era exatamente usar o
riso,
51
deixando isso evidente quando diz:
52
“a natureza não apenas exerce influência alguém seja mais agudo e
habilidoso para a invenção humorística (pois isso pode seguramente ser
ensinado por uma doutrina); no entanto algumas pessoas possuem um
decoro tão especial do corpo e do rosto, que as mesmas coisas parecem
ser menos urbanas quando ditas por outras pessoas.”
53
Além disso, eles concordam não somente a respeito da impossibilidade de
aprender a utilizar o riso por meio de alguma arte,
54
exercício ou professor,
55
como
também sobre a necessidade da preceituação de algum método para o seu uso.
56
Em
resumo, Cícero e Quintiliano dizem que saber provocar o riso é algo relacionado à
natureza, um talento natural, portanto; que se tentou empreender algum método sobre
assunto sem sucesso; que nisso a arte não é necessária; que não existe a possibilidade
em aprender a utilizá-lo por meio de uma arte. Ora, se é assim, o que justifica dois
tratados sobre a matéria com definições, gêneros, recomendações e exemplos os mais
48
Talvez em De oratore (Cf. § 233) tenha sido a primeira vez que, em latim, se falou sobre o riso.
49
Cf. De risu, § 12.
50
Cícero diz ainda que no uso do riso a arte não é necessária.
51
Cf. De risu, § 2.
52
Cf. De risu, § 11.
53
De ridiculis, § 232.
54
Cf. De ridiculis, § 227.
55
Cf. De risu, § 14.
56
Cf. De ridiculis, 232 e De risu, §§ 15–16.
20
diversos e numerosos? Acredito que a resposta esteja no teor implícito de dois
parágrafos, um de Cícero, outro de Quintiliano. Quando Cícero diz:
“Quem, com efeito, o poderia aprender estas coisas com facilidade ou
de algum modo? Mas eu creio que nestes preceitos força e utilidade.
Não que pela arte sejamos conduzidos a encontrar o que dizer, mas que
sigamos aquelas que pela natureza, pelo estudo e pelos exercícios,
confiamos serem retas ou entendamos serem ruins, para que saibamos ao
que elas devam referir-se.”
Entendo que todas aquelas negativas sobre a capacidade e o aprendizado do uso
do riso não desautorizam a formulação de uma arte ou doutrina que tente justamente ao
menos dirimir a suposta impossibilidade de organizar um conhecimento sobre a matéria.
É o que vejo subjacente em Quintiliano quando ele diz:
“A urbanidade é rara na oratória e não oriunda de uma arte própria, mas
emprestada do uso.
57
Por outro lado, nada impediu a composição de
matérias apropriadas ao assunto, de tal maneira que fossem compostas
controvérsias misturadas a jovialidades e que até temas específicos
fossem propostos aos jovens como exercício.
58
Ademais, se fossem
compostas com um pouco mais de todo ou até se fosse misturado algo
sério nelas, essas mesmas /discussões/ (chamadas de ditos picantes), que
costumávamos dizer em certos dias de liberdade festiva, poderiam trazer
algo útil do que agora é uma prática dos jovens ou dos que se
divertem.”
59
Chamo a atenção para o último período, pois ali o retor chancela, pelo
subjuntivo condicional, a elaboração desse método que pretende saber o que é, onde se
encontra, a quem é próprio e em que medida, e quais são os gêneros do riso na oratória.
57
De risu, § 14.
58
Ibid., § 15.
59
Ibid., § 16.
21
2.6.1 As cinco perguntas de César em De ridiculis, § 235
Refiro-me às cinco perguntas elaboradas por Júlio César Estrabão no parágrafo
235 de De ridiculis, quando foi instado a discorrer sobre o riso, que foram, a meu ver, a
abordagem escolhida por Cícero para estabelecer uma arte e doutrina nima que seja
sobre o ridículo na oratória.
As perguntas são colhidas deste trecho de De ridiculis:
60
“E para não vos demorar por muito tempo, exporei muito sucintamente
aquilo que penso a respeito deste assunto. A respeito do riso cinco
coisas que devem ser perguntadas. Primeira: o que é o riso; segunda: onde
é encontrado; terceira: se é próprio do orador querer provocar o riso;
quarta: a que ponto o orador pode utilizá-lo; quinta: quais o os
gêneros do riso?”
2.6.1.1 O que é o riso?
“O que é o riso” é o ponto mais intrigante de todo o corpus constituído por De
ridiculis e De risu simplesmente porque tanto o orador quanto o retor não respondem à
pergunta. Por isso, mais demoradamente do que o recomendado, mas com a intenção de
não deixar nada às escuras, expus na nota 165 as observações das repetidas buscas que
efetuei nos dois textos à procura de um ponto que pudesse determinar com clareza que
ali o retor ou o orador respondiam efetivamente à pergunta. As afirmações de Cícero
“Quanto ao primeiro, o que é o próprio riso, por que ajuste é causado,
onde se encontra, por que modo aparece e de repente irrompe, por que,
desejando contê-lo, não podemos segurá-lo e por qual modo ocupa ao
mesmo tempo os pulmões, a boca, as veias, os olhos e o rosto, que o
explique Demócrito, porque isso não é pertinente a este discurso e, se o
60
De ridiculis, § 235.
22
fosse, não me envergonharia todavia não saber o que também não sabem
aqueles que isso prometem.”
61
e de Quintiliano,
“o fato de haver vários juízos dos homens a seu respeito, porquanto ele
não é entendido por meio de algum princípio racional, mas por um certo
movimento do ânimo que não sei se pode ser explicado.”
62
indicam que a aparência do ato de rir não lhes passou desapercebida. No entanto, além
de não se mostrarem como uma definição, elas apresentam apenas parte do resultado
final ou inicial de um processo que em linhas gerais consiste em um ponto de partida,
que é o ato provocador do riso (um dito ridículo, anedota etc.), um processo cognitivo
(comparação com algum conhecimento ou informação precedente) uma motivação (uma
surpresa, admiração, encanto etc.) e reações químico-físicas no corpo humano.
2.6.1.2 Onde se encontra o riso?
A segunda pergunta “Onde o riso é encontrado?” poderia, talvez, ser reescrita algo
como “Do que se ri?” ou “Que coisas e situações são dignas de riso?”. A noção de que o
riso se encontra no que é torpe, disforme ou vicioso vem de Aristóteles
63
e está presente
tanto em Cícero quanto em Quintiliano em adjetivos do tipo “feio”, “deformado”,
“torpe”, que se ligam a termos como escárnio, derrisão, caçoada. Para além dessa
acepção do lugar onde se encontra ridículo, encontradas nos parágrafo 239, 242, 243,
248, Cícero aponta a inexorabilidade de se expor ao ridículo:
“Quem, com efeito, pode mover-se sem que se vejam os vícios
64
enquanto Quintiliano adiciona o substantivo imperfeição à afirmação de Cícero no
parágrafo 236 de De ridiculis:
61
De ridiculis, § 236.
62
De risu, § 6.
63
Poética, 1449 a 34 sg.
64
De ridiculis, § 233.
23
“O riso possui seu lugar, como diz Cícero, em alguma torpeza ou
imperfeição, chamadas de urbanidade quando apontadas nos outros e
estultice quando recaem sobre os mesmos que estão falando,”
65
o que mostra a influência de Cícero também nesse aspecto.
A noção de que o riso está ligado ao que é censurável pela total falta de beleza
ou pela imperfeição ou pelo desajuste, foi ampliada em Bergson (1983), que acrescenta
à essa a idéia de que tudo que se coloca fora de moda ou com rigidez quebra da
normalidade. O riso para Bergson é o castigo do automatismo ou do desajuste em
relação ao que é tido como padrão ou rotineiro.
66
Ora, ainda que ampliado, o conceito
de ridículo de Bérgson e de outros autores, como Thomas Hobbes,
67
Baldassare
Castiglione,
68
Laurent Joubert,
69
deve totalmente ao conceito de Aristóteles, Cícero e
Quintiliano. Afinal tudo aquilo que é rígido ou sai da rotina ou está fora de moda passa
a estar, devido ao vício perene ou momentâneo, exposto ao riso.
Outro aspecto do lugar do riso está associado à natureza e à ocasião.
70
Em outras
palavras, a natureza da situação ou das coisas e o momento propício ao riso. Essa
relação entre o riso, a circunstância e o momento se insere no quesito moderação, que
por sua vez se enquadra na resposta à quarta pergunta: Até que ponto o orador pode
utilizar o riso?”
2.6.1.3 É próprio do orador utilizar o riso?
Além da resposta positiva, a questão da utilidade do riso nos leva a observar as
vantagens do seu uso no discurso. De fato, Cícero diz que muita vantagem se obtém nos
processos por meio da amenidade e das facécias,
71
porque ela é benévola àquele que as
desperta, porque as pessoas apreciam as agudezas, a resposta a um ataque. Demais, o
riso serve para temperar o discurso semelhantemente ao sal que espalhado na comida,
65
De risu, § 8.
66
BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação do cômico / Henri Bergson; tradução Nathanael C.
Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983
67
HOBBES, Th. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil (Tradução de João
Paulo Monteiro). São Paulo: Abril Cultural, 1979.
68
CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão (Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada e revisão de
Eduardo Brandão). São Paulo: Martins Fontes, 1997.
69
JOUBERT, L. Treatise on Laughter (Translated by Gregory David De Rocher). Alabama: University of
Alabama, 1980.
70
De risu, § 11.
71
De ridiculis, § 219.
24
sem exagero, dá a ela o seu sabor.
72
Além disso, o riso se ajusta nos momentos do processo em que o antagonismo
entre o orador e seu adversário se torna mais pido e agudo, como p. ex.: a altercatio
73
ou na sua obtenção de vantagem através da fala ou do tipo de causa em processo.
74
Nesses casos o riso serve para enfraquecer, constranger, diminuir, afugentar e refutar o
adversário. O riso pode auxiliar também a constituir o θος do orador, ao mostrá-lo
como um homem polido e urbano,
75
e combater o πθος administrado pelo adversário,
ao abrandar a tristeza e a severidade das coisas.
76
Em Quintiliano essa utilidade do riso coincide com a de Cícero e mostra toda a
utilidade do riso para conquistar o favor dos juízes ao aliviá-los do cansaço e saturação
da recapitulação e, sobretudo, dissolver os sentimentos tristes,
77
de ódio e de ira
78
ocasionado pelo mouere adfectus.
Ora, toda a vantagem do riso reside justamente naqueles aspectos que se resumiu
nos capítulos que antecedem De ridiculis em De oratore e De risu na Institutio
Oratoria. estão presentes tanto o mover dos sentimentos tristes, como comiseração,
piedade, clemência; quanto o ódio, a ira e outros afins, que são justamente os
sentimentos que o riso pode neutralizar. Assim, De oratore e Institutio Oratoria
antecedem de forma semelhante seus pequenos tratados sobre o riso, e o riso para
ambos possui a utilidade de dissolver qualquer tipo de sentimento mais grave e mais
sério, angariando, por conseguinte, a simpatia dos juízes, o que estabelece entre os
textos mais um diálogo.
2.6.1.4 Até que ponto o orador pode utilizar o riso?
A moderação no uso do riso é insistentemente preceituada por Cícero e
Quintiliano. Ambos censuram com convicção o uso de um humor aproximado da
rusticidade e dos bufões, mimos e pantomimos.
Se num momento a configuração do θος exigiu um homem honrado pela
72
Cf. De ridiculis, § 274, 275, 279; De risu, § 19.
73
V. Institutio Oratoria VI, 4.
74
V. Cícero, De inuentione I, 23-25
75
Importante lembrar como se verá na questão da moderação que o orador deve evitar o somente o riso
dos bufões como também qualquer um que parece bruto, deselegante, inadequado.
76
De ridiculis, § 236.
77
De risu, § 1.
78
Ibid., § 9.
25
bondade e pela honestidade, agora também faz parte de seu θος evitar terminantemente
a vulgaridade e tudo o que remeta à rusticidade. Opõem-se então urbanidade
79
e
rusticidade.
80
A primeira se caracteriza, por um lado, segundo a definição de
Quintiliano, como uma “virtude na qual nada de inconveniente, nada de rústico, nada de
grosseiro, nada de exótico (nem quanto ao pensamento, às palavras, à voz ou aos gestos)
pode ser encontrado,”
81
e por outro como a expressão do humor em cero e
Quintiliano, conforme instrui Edwin Ramage a respeito da urbanidade
82
no mundo
romano antigo,
83
e em Cícero e Quintiliano mais especificamente.
84
Cícero defende primeiramente que a perversidade exacerbada e a miséria
extrema não devem ser motivos de riso e que o orador deve respeitar o máximo possível
as pessoas a fim de não ofendê-las, sobretudo aquelas que lhe são mais queridas.
85
E
depois, no parágrafo 238, preceitua a moderação ao gracejar. Mais adiante, ele passa a
apontar quais os tipos de humor devem permanecer à distância do orador: a imitação
dos mimos e pantomimos, a mordacidade típica do bufão,
86
os maneirismos do farsista
87
e, por fim, as caretas e as obscenidades.
88
Quintiliano, como em todo De risu, encontra apoio em Cícero em mais esse
aspecto do riso oratório. Seus preceitos a respeito começam no parágrafo 28 e
completam o preceito de Cícero a respeito das pessoas: é importante que o orador leve
em conta o lugar onde usa as palavras, pois a linguagem chula convém aos rudes, e as
alegres e moderadas convém a todos. Depois, já no parágrafo 29, imita Cícero ao
preceituar que o orador permaneça longe da mordacidade do bufão e da imitação dos
mimos, além de toda obscenidade. De resto, Quintiliano instrui também que o orador
não fale picantemente em todas as ocasiões (apenas quando necessário),
89
não seja
escarnecedor numa causa atroz nem zombeteiro numa que inspira comoção,
90
não se
79
Cf. De ridiculis, § 236.
80
De risu, § 17.
81
V. De risu, § 107.
82
V. De ridiculis, §§ 231, 236; De risu, §§ 4, 8, 30.
83
RAMAGE, E. S..Early roman urbanity”. In: The American Journal of Philology, vol. 81, No. 1:
1960, pp. 65-72.
84
RAMAGE, E. S..Urbanitas: Cicero and Quintilian, a contrast in attitudes”. In: The American
Journal of Philology, 1963, vol. 84, No. 4, pp. 390-414.
85
De ridiculis, § 237.
86
Ibid., § 244-247.
87
Ibid., § 251-252.
88
Ibid., § 253.
89
De risu, § 30.
90
Ibid., § 31.
26
mostre petulante
91
e, enfim, que utilize do riso com dignidade, pois isso custa caro se
seu preço é a honra.
92
Como apontei mais acima, a tipologia do riso do orador põe em oposição a
rusticidade e a urbanidade. Sobre isso, é importante anotar que, além da definição de
urbanitas de Quintiliano (De risu, § 107), da qual se define também a rusticitas,
93
pois
ela é o seu contrário, há também um tipo de humor característico do vulgo e do
camponês. Nesse ambiente, o riso tinha espaço nas mais diversas festas que ocorriam
anualmente entre as pessoas dessa classe social, entre elas estavam as Saturnalia, que
começavam em 17 de dezembro e homenageavam Saturno; as Lupercalia (em
homenagem a Luperco ou Pan), iniciadas em 15 de fevereiro; as Liberalia, em 17 de
março (que eram festas em honra de Baco); e as Floralia, que eram jogos florais em
honra a Flora, a meretriz, e ocorriam em abril. Nelas, o riso estava marcado através das
grosserias, obscenidades, inversões, licenciosidades, bebedeiras etc., que caracterizam
esses doze dias de festa. Também faziam parte desse riso rústico os mimos que tiveram
sua origem no helenismo e consistiam originalmente em representações extemporâneas
ou imitações ridículas de aspectos da vida comum em algumas festas e se
transformaram mais tarde em farsas dramaticamente construídas, e as pantomimas, que
eram danças mímicas com acompanhamento musical, geralmente sem palavras, e que já
era popular entre os gregos nos tempos clássicos. É justamente dessa categoria de
humor e situações que tanto Cícero quanto Quintiliano instruem ao orador para que se
mantenha afastado ao gracejar.
2.6.1.5 Quais são os gêneros do ridículo?
Como vimos, os gêneros de riso são introduzidos por Cícero e Quintiliano em
vários pontos dos tratados e das mais diversas formas. Quanto aos supostos equívocos
na categorização dos modelos de ditos ridículos, tanto de um quanto de outro já discorri
mais acima, ao separar uma parte exclusiva para o assunto com fim de mostrar que
também nisso Quintiliano se assemelha a Cícero no trato da matéria.
91
Ibid., § 33
92
Ibid., § 35.
93
Ramage (1961: p. 484) afirma ser difícil isolar as peculiaridades do discurso rústico porque, em
primeiro lugar, isso depende na maior parte das vezes por uma observação randômica espalhada pelas
obras de Cícero e depois porque se tratam de definições e descrições intangíveis.
27
Quintiliano reutiliza alguns exemplos de anedotas, respostas ridículas ou ditos
ridículos, para com eles ilustrar sua categorizações que, como se viu, condizem apenas
em parte com aquelas determinadas por Cícero. Entre esses exemplos lembramos a
resposta de Cátulo a Filipe, que lhe indagava: “Por que ladras?”, ao que ele respondeu:
“Porque vejo um ladrão!”
94
; a anedota do siciliano que, ouvindo um amigo queixar-se
de que a esposa se enforcara num de figo lhe disse: Por favor, dá-me uma muda
dessa árvore para eu plantar!”
95
; e aquilo que Nero disse a respeito de um ssimo
escravo: “Ninguém pode ser considerado mais fiel que ele. Para ele nada está escondido
ou trancado.”
96
Por outro lado, relativizadas aquelas imperfeições de categorização, podemos
ver que uma boa quantidade de ditos ridículos (alguns baseados em figuras, outros em
tropos, outros em tópicos oratórios etc.) também coincide entre Cícero e Quintiliano. A
meu ver, os exemplos mais marcantes são o uso da metáfora, da ironia e da alegoria
para a criação de ditos ridículos.
97
No entanto todos revelam, além de criatividade, a
obediência aos critérios de moderação preceituados. Na medida do possível, e tendo em
mente não me estender mais que os textos traduzidos, analisando indefinidamente
gêneros e exemplos, procurei no corpo da tradução mostrar como esses recursos
funcionam em alguns exemplos de gêneros de facécia ou urbanidade. Quando foi
também possível, apontei se Quintiliano acolhia diretamente algum gênero, se o inseria
em outra categoria ou se dele fazia outro uso.
De fato, os exemplos de ditos ridículos apresentados por Cícero e Quintiliano
são inúmeros e fazem parte de uma grande lista: constam entre ambos exemplos de ditos
ridículos advindos de hipérboles, uso de versos e provérbios, paronomásia,
ambigüidade, interpretação de nomes, fatos da história etc.
Juntamente com os outros aspectos vistos até aqui, sobretudo as cinco perguntas,
tentarei expor, ao concluir este trabalho, quais desses gêneros e exemplos são acolhidos
por Quintiliano.
***
94
Cf. De ridiculis, § 220; De risu, § 81.
95
Cf. De ridiculis, § 278; De risu, § 88.
96
Cf. De ridiculis, § 248; De risu, § 50.
97
V. De ridiculis, §§ 261-262 e De risu, §§ 61, 68, 69.
28
Documentada a relação entre os dois textos nos mais variados aspectos, resta
colher do texto de Quintiliano aquilo que ele acolhe de Cícero. Abordei De risu por
meio das cinco perguntas feitas por César no parágrafo 235 de De ridiculis. Através da
busca da definição, do motivo, do seu importante auxílio ao orador no exercício da
persuasão, dos aspectos da moderação no seu uso e do elenco dos gêneros e suas
categorizações, pude abordar o texto de Quintiliano com o mesmo método que Cícero
utilizou para tratar da matéria. Utilizar então as perguntas para colher de Quintiliano o
que ele colhe de Cícero se revelou adequado, correto, necessário e oportuno, muito
longe de uma escolha. Com efeito, não haveria opção melhor do que aquela
determinada por Cícero, que, sendo anterior, influenciou Quintiliano. Este escreveu De
risu permeado não somente pelo teor dessas perguntas, como também por outros
aspectos que acredito já ter demonstrado aqui e que espero deixar visíveis ao concluir o
trabalho.
29
MARCVS TVLLIVS CICERO
De oratore II, 216–291
(De ridiculis)
Tradução e Notas
216 (LIV) “[...]Suauis autem est et uehementer saepe utilis iocus et facetiae; quae,
etiam si alia omnia tradi arte possunt, naturae sunt propria certe neque ullam artem
desiderant. In quibus tu longe aliis mea sententia, Caesar, excellis; quo magis mihi
etiam aut testis esse potes nullam esse artem salis aut, si qua est, eam tu potissimum nos
docere."
216 [...] “Por outro lado,
98
o gracejo é suave e muitas vezes extremamente útil,
99
como também o são as facécias,
100
que de fato estão relacionadas à natureza e não
98
O pequeno tratado sobre o riso, também chamado De ridiculis, se insere no Livro II de De oratore,
especificamente onde Cícero começa a tratar da inuentio.O livro II inicia-se com Cícero dirigindo-se ao
irmão Quinto falando sobre a família, Crasso, Antônio, de fatos da vida e sobre a arte, de cuja digressão
afirma que “todas as artes possuem sua autonomia, mas a eloqüência não possui um campo definido.”
Começava o segundo dia na casa de campo de Crasso em Túsculo, onde estavam o anfitrão Licínio
Craso, Marco Antônio, Quinto Múcio Cévola Augur, Caio Aurélio Cota e Públio Sulpício, quando ali
chegaram Lutácio Cátulo e seu irmão, Júlio César Estrabão. Assim, depois dos cumprimentos e de uma
pequena conversa entre aqueles que estavam e os novos visitantes, a palavra foi dada a Antônio, que
ficou incumbido de falar sobre a inuentio. Ao começar sua intervenção, ele primeiro diz que ainda que
não haja uma arte da eloqüência, nada há de mais esplêndido do que um orador completo, e depois faz um
elogio à ela na forma de belíssimas perguntas sobre a oratória: “Que canto mais doce pode ser encontrado
do que um discurso harmonioso? Que poema mais apto há do que um período artificioso? Qual ator mais
jucundo ao imitar a verdade do que o orador a defender um caso real? Que é mais refinado e sutil do que
uma seqüência de pensamentos agudos? Que é mais admirável do que iluminado pelo esplendor de
palavras? Que é mais completo do que um discurso repleto de conteúdos?”. Então, expõe quais são os três
gêneros de discurso: o gênero deliberativo (que trata sobre uma ação do futuro), o demonstrativo ou
epidítico (que trata sobre uma ação do presente) e o judiciário (que trata de uma ação do passado). A
seguir, faz algumas considerações sobre o gênero demonstrativo, um paralelo entre a historiografia e a
oratória, entre outros comentários e prescrições. Trata ainda das competências do orador (ele deve estar
preparado para falar sobre qualquer assunto e não pode recusar um que seja, deve falar do mal e do bem,
do honesto e do desonesto, do útil e do inútil, do virtuoso e do vicioso etc.), sobre os elementos da arte e
mais adiante, entre os parágrafos 78–84 dos tipos de causas e das cinco partes (membra) do discurso, que
são: 1 a inuentio, onde se encontra aquilo que se vai dizer; 2 a dispositio, onde se organiza aquilo que se
encontrou; 3 a elocutio, que adorna com palavras as idéias obtidas na inuentio; 4 a memoria, que o
próprio nome explica o que vem a ser; 5 a actio, que é a execução do discurso. Mais adiante, depois de
tratar dos talentos e qualidades desejáveis num orador e da escolha de um modelo a imitar, além de outras
considerações não menos importantes, Antônio chega propriamente ao campo da inuentio, ao qual, como
dissemos, o discurso sobre o riso, De ridiculis, pertence. Surgem então os três objetivos do orador:
probare (que consiste em provar que o orador defende a verdade), conciliare (que consiste em captar a
simpatia dos ouvintes) e mouere (que consiste na capacidade do orador em levar os ouvintes a um estado
de ânimo exigido pela causa que ele defende). Na seqüência, Antônio discorre sobre a importância do
conciliare para o êxito na persuasão e desenvolve as regras que constituem os recursos do mouere, que
são, a princípio, despertar nos ouvintes, a depender da causa, sentimentos de complacência, ira, piedade,
indignação etc. Daí a possibilidade de provocar o riso é uma alternativa à qual pode recorrer o orador para
desfazer os efeitos pelo primeiro recurso mouere (piedade, compaixão etc.). Dessa parte do livro II (e, por
conseguinte, da inuentio) se inicia De ridiculis, que se estende do § 216 até o § 291.
30
requerem arte
101
alguma, ainda que todas as outras coisas possam ser transmitidas por
uma arte
102
. Nos quais, a meu ver, tu, sar, excedes de longe aos outros;
103
pelo que,
99
Cf. Quint. (VI, 3,1 e nn.): Huic diuersa uirtus quae risum iudicis mouendo et illos tristes soluit adfectus
et animum ab intentione rerum frequenter auertit et aliquando etiam reficit et a satietate uel a fatigatione
renouat (Diversa a essa, /há/ uma virtude que provocando o riso do juiz não somente dissolve os
sentimentos tristes, como também afasta com freqüência o ânimo da atenção aos fatos, bem como
algumas vezes o reanima e renova da saturação e da fadiga). Semelhante a Quintiliano, a introdução do
tratado do ridículo em Cícero se refere ao outro recurso que tem por objetivo ganhar a simpatia do juiz ou
dos ouvintes, a saber: a excitação dos sentimentos de comoção ou piedade para com a causa do cliente
conforme a própria causa requeira e dependendo do θος que o orador queira desenhar para si e para seu
cliente perante aqueles que o ouvem ou aquele que julgará a causa. Parece também semelhante a
Quintiliano, o efeito que o riso pode causar nesses sentimentos, se quem os excita é o adversário. Assim,
se o advogado da causa contrária quis despertar sentimentos de afeto, piedade, comoção, emoções
diversas a respeito de seu cliente e de sua causa, o riso pode funcionar na anulação desses efeitos,
tornando a atenção e simpatia do juiz ou dos ouvintes favoráveis à sua causa, e ao mesmo tempo
desfazendo aquela impressão positiva provocada e conquistada pelo adversário. É dessa situação que
resulta a utilidade dos “gracejos” e das “facécias”.
100
Iocus e facetiae são elementos opostos àqueles sentimentos de ódio, ira, indignação, comiseração,
complacência, piedade etc. No entanto, facetiae é o termo escolhido por Cícero para definir o instrumento
do ridículo oratório. Isso se evidencia, de um lado, pela maior quantidade de ocorrências da palavra em
De ridiculis (nas mais diversas formas morfológicas) e, por outro, pelo fato de que essas ocorrências se
fazem quase que totalmente com o objetivo de caracterizar, preceituar e categorizar o termo. Quanto ao
termo iocus, observamos que sua presença no texto se equivale ao termo facetiae (cf. §§ 216, 229, 238,
239, 248, 285 etc.), mas em uso comum durante o discurso, diferentemente de facetiae que se configura
em gêneros nos parágrafos 218 e 239 (v. §§ 251, 252).
101
Não somente neste parágrafo, mas também nos demais, a palavra arte refere-se ao conceito de Ars
(τέχνη): um conjunto de regras extraídas da experiência, que preceituam determinado fazer criativo de
modo que este se torne perfeito e adequado à vontade de seu realizador e não se permita a ação do acaso
em sua execução; cf. Quintiliano II, 17, 41: Confirmatur autem esse artem eam breuiter. Nam siue, ut
Cleanthes uoluit, ars est potestas uia, id est ordine, efficiens, esse certe uiam atque ordinem in bene
dicendo nemo dubitauerit, siue ille ab omnibus fere probatus finis obseruatur, artem constare ex
perceptionibus consentientibus et coexercitatis ad finem utilem uitae, iam ostendimus nihil non horum in
rhetorice inesse (v. também Cícero, Brutus 29, 111, Cleantes, Frag. 790). No trecho anotado, primeira
aparição do termo em De ridiculis, a tradução literal poderia ser “transmitidas pela arte” ou “transmitidas
por um método ou conjunto de regrasou ainda ensinadas por um método ou arte ou conjunto de
regras”. No entanto, por um lado, essa preposição determinante que rege o agente da passiva, poderia
proporcionar à palavra “arte” o sentido hodierno de arte como obra artística em contraposição às obras
não artísticas como, p.ex., uma pintura cubista em oposição a uma planta de engenharia destinada à
construção de um edifício, o que me obrigou a retirar o artigo definido na preposição na forma sintética e
colocar um indefinido na forma analítica para que aquela acepção hodierna enfraquecesse, fortalecendo
assim a acepção técnica do termo. Por outro lado, preferi manter a palavra técnica no corpo da tradução,
para que ela mostre, como acontece no texto latino, que o termo “arte” engloba o somente este aparato
técnico obtido pela experiência e transformado em teoria, como também a constituição de uma doutrina,
que tem a finalidade de instruir e a prerrogativa de ser transmitida (cf. Quintiliano I, 14, 5; Cícero, De
inuentione I, 5, 7; De oratore I, 4, 15).
102
Cf. § 218. Em De inuentione § 98–106), Cícero prescreve uma partição (precisamente uma
tripartição) e os lugares-comuns que devem ou podem constar na peroração não fazendo constar ali o riso
como recurso ou lugar-comum. Por outro lado, o próprio Cícero diz em De oratore 184) que o recurso
do mouere (incluindo aí por gica o riso) pode ser usado, além de na peroração, também no exórdio e na
narração, e isso faz saber que embora De oratore não trate da peroração especificamente onde De
ridiculis se situa, o recurso do riso dali pertencente é lembrado. Conclui-se então, a partir dessas
observações e do trecho anotado (lembro: “que de fato estão relacionadas à natureza e não requerem arte
alguma, ainda que todas as outras coisas possam ser transmitidas por uma arte”), que provavelmente o
uso do riso não se encaixa numa doutrina semelhante ao que ocorre em De inuentione, uma vez que ele
tem seu habitat na altercação, no jogo existente entre o discurso e a réplica, entre esta e a tréplica, entre a
fala ou pergunta e a devida resposta, como aponta Cícero aqui mesmo em De ridiculis (§§ 219, 220, 223-
226, 229, 230) e Quintiliano em De risu § 4, 7, 11–14, 75, 81). Por outro lado, como o próprio cero
31
de novo a meu ver, podes ser testemunha de que não existe arte alguma que trate das
palavras picantes
104
ou se existir, és o mais apto a nos ensiná-la.”
217 Ego uero, inquit, omni de re facilius puto esse ab homine non inurbano quam de
ipsis facetiis disputari. Itaque cum quosdam Graecos inscriptos libros esse uidissem ‘de
ridiculis’, non nullam in spem ueneram posse me ex iis aliquid discere. Inueni autem
ridicula et salsa multa Graecorum nam et Siculi in eo genere et Rhodii et Byzantii et
praeter ceteros Attici excellunt –; sed qui eius rei rationem quandam conati sunt
artemque tradere, sic insulsi exstiterunt, ut nihil aliud eorum nisi ipsa insulsitas
rideatur.
217 “Na verdade disse César –,
105
julgo ser mais fácil para um homem não
inurbano
106
discutir a respeito de qualquer outro assunto do que sobre as facécias.
107
Eu,
diz (§ 232), o relativo distanciamento desses matizes retóricos não impede que preceitos sejam
estabelecidos a respeito do riso.
103
Sobre a superioridade de César: v. §§ 23, 98; III 8, 30; Brutus 48, 117 (festiuitate ... facetis); De
officiis I, 37, 133.
104
Tradução literal: “não existe arte alguma que trate sobre os sais”. A palavra salis em latim tem o
sentido de sal em português. No texto ela possui a acepção de algo que funciona como um tempero do
discurso (cf. Quintiliano VI, 3, 19: Salsum igitur erit quod non erit insulsum, uelut quoddam simplex
orationis condimentum, quod sentitur latente iudicio uelut palato, excitatque et a taedio defendit
orationem. Sales enim, ut ille in cibis paulo liberalius adspersus, si tamen non sit inmodicus, adfert
aliquid própriae uoluptatis, ita hi quoque in dicendo habent quiddam quod nobis faciat audiendi sitim.
(“Portanto, a palavra picante será semelhante àquilo que não é insosso, como que um simples tempero do
discurso, que é sentido por uma percepção latente, tal qual acontece com o paladar, e que estimula e
afasta o discurso do tédio. De fato, são coisas picantes: assim como o sal espalhado na comida com um
pouco de abundância mas sem exagero a ela algo do seu próprio gosto, também o dito picante
possui no discurso algo que cria em nós a sede de ouvi-lo”). Como em português é raro, senão inexistente,
o uso do termo “sal” com essa acepção e, além disso, existe em nossa língua o termo “picante” com
sentido de algo que provoca gracejo e/ou humor e/ou riso misturando esse sentido ao conteúdo sério de
um discurso, preferi substituir o termo “sal” pelo termo “picante” (acrescido de palavras”), que preserva
aquela noção de “tempero” ou de algo que provoca o apetite e ao mesmo tempo remete por si própria à
idéia de leve malícia ou de mordacidade. Demais, como expliquei no parágrafo 2 (n. 344) de De risu por
que lá e ocasionalmente aqui traduzi dictum por “dito picante”, também devo explicar que neste parágrafo
não o fiz do mesmo modo para preservar a essência da palavra conforme descrita acima. A ela somei o
termo em plural “palavras”, para que textualmente houvesse mais clareza, embora preferisse evitar a
perífrase “palavras picantes”.
105
O narrador que aparece entre as falas dos interlocutores é Cícero, que se dirige ao irmão Quinto.
106
O trecho original traz uma dupla negação: homine non inurbano. Em português essa duplicidade é
traduzida em simples afirmação (non inurbanus/urbano). Ocorre que em latim também o adjetivo
urbanus, o que deixa em perspectiva a possibilidade de Cícero ter pretendido demarcar o grau de
urbanidade que qualifica um homem a discorrer sobre as facécias. De acordo com Ramage (1963: p. 391)
a ocorrência de non inurbanus funciona em Rhetorica ad Herennium (IV, 51, 64) para caracterizar um
escravo polido ou inteligente, alinhado, simpático. Assim, se levarmos em consideração outro artigo em
que o próprio Ramage discorre sobre a urbanidade (Ramage, E. S. Early Roman Urbanity. In: The
American Journal of Philology, vol. 81, nº 1, 1960: pp. 65–72.), no qual ele estabelece três acepções para
32
depois que li alguns livros escritos pelos gregos, denominados De Ridiculis,
108
cultivei
alguma esperança de que poderia aprender algo deles. Encontrei muitas coisas ridículas
e picantes
109
dos gregos. Afinal, neste gênero sobressaem não somente os Sicilianos,
como também os Ródios, os Bizantinos e, acima dos demais, os Áticos.
110
Mas aqueles
que tentaram empreender algum método
111
e arte a respeito do assunto, tiveram
resultado tão insosso que nada neles seria risível, não fosse a própria insipidez.
218 Qua re mihi quidem nullo modo uidetur doctrina ista res posse tradi. Etenim
cum duo genera sint facetiarum, alterum aequabiliter in omni sermone fusum, alterum
peracutum et breue, illa a ueteribus superior cauillatio, haec altera dicacitas nominata
est. Leue nomen habet utraque res! quippe; leve enim est totum hoc risum mouere.
218 Motivo pelo qual, segundo minha opinião, parece que por nenhum modo
doutrinário
112
se possa tratar desse assunto. Com efeito, dois gêneros de facécias,
113
o termo urbanitas, entre elas a de que o conceito envolve uma idéía de refinamento desenvolvida pelo
habitante da cidade e outra que opõe o humor urbano ao rústico (cf. De officiis I, 29, 104), iremos
perceber a marcante diferença entre os termos urbanitas, que se desenvolve naturalmente em urbanus, -a,
- um, (cf. Quintiliano VI, 3, 21 e 94; Cícero, De officiis I, 29, 104), e o non inurbanus, que se desenvolve
de forma semelhante, denotando polidez e ausência de rusticidade; o que faz entender em certa medida
que está qualificado a discutir sobre as facécias qualquer “homem minimamente polido” ou que não tenha
mais no falar e nos modos (cf. Ramage, op. cit.: p. 66) os maneirismos do homem do campo. Dter eu
escolhido para a tradução a frase “não inurbano” não somente neste e nos demais parágrafos de De
ridiculis, como também em todas as ocorrências do termo em De risu.
107
Aqui o termo facetiae estabece uma relação com o termo non inurbanus. Isso não ocorre meramente
da forma como se explicou na nota anterior, mas sim conceitualmente. Se na nota anterior o texto indica
haver necessidade de aptidão para que um homem discorra sobre as facécias, ser o inurbano, aqui a
atenção recai sobre a relação existente entre o conceito de urbanitas e de facetiae. Conforme se disse,
facetiae parece estar em evidência para o resto do texto quando Cícero as mostra relacionadas à natureza
e não a uma arte, e quando permeia o texto com a palavra facetiae (e todas suas derivações morfológicas).
108
Talvez Cícero esteja se referindo ao livro II da poética de Aristóteles, ao περι γελοιού de Teofrasto e a
algum livro de Górgias sobre o riso. De qualquer maneira nenhum dos três chegou até nós, e há também a
possibilidade de Cícero ter lido outros textos que não estes (v. De risu, § 11).
109
Na nota 104 explico por que traduzi salsum por “picante”.
110
Pela gica da enumeração de povos, conclui-se que Cícero está se referindo unicamente ao povo
Ático, que se comportava da maneira como explica Quintiliano (XII, 10, 17): era um povo refinado e
sensível, mas que não suportava redundâncias. Segundo o próprio Quintiliano, essa característica foi
assimilada na definição do estilo oratório Ático, que se opunha ao Asiático, que também tem no povo
homônimo a origem da definição do seu estilo (O povo asiático sempre fora inclinado à pompa e à
ostentação). Um pouco sobre o estilo asiático e seu rival, o ático, se encontra em De risu, § 41.
111
Entende-se aqui rationem (ratio,-onis método) como doutrina, e esta com a acepção apresentada na
nota 101.
112
Cf. § 216, n. 101; Quintiliano II, 14, 5; Cícero De inuentione I, 5, 7; De oratore I, 4, 15.
113
Explico na nota 177, que tanto lá como aqui Cícero utiliza duas acepções para o mesmo termo, dúvida
agravada pelo fato de Cícero também incluir no § 243 o gênero de facécia de assunto entre os gêneros de
facécia cavilação sem incluir os outros (de palavras e de palavras e assunto, cf. §§ 239 e 248,
respectivamente) em algum outro gênero.
33
um dos quais distribuído igualmente pelo discurso, e o outro muito incisivo e breve;
aquele foi chamado pelos antigos de cavilação, e este de mordacidade.
114
Tanto um
como outro recebem um nome desimportante, porquanto todo ato de provocar o riso é
desimportante.
115
219 Verum tamen, ut dicis, Antoni, multum in causis persaepe lepore et facetiis
profici uidi. Sed cum illo in genere perpetuae festiuitatis ars non desideretur natura
enim fingit homines et creat imitatores et narratores facetos adiuuante et uultu et uoce
et ipso genere sermonis –, tum uero in hoc altero dicacitatis quid habet ars loci, quom
ante illud facete dictum emissum haerere debeat, quam cogitari potuisse uideatur?
219 Todavia, como dizes, Antônio, tenho visto que amiúde muita vantagem se obtém
nos processos por meio da amenidade
116
e das facécias.
117
Mas, de um lado, naquele
gênero de contínua graça no dizer,
118
a arte não é necessária afinal a natureza produz
os homens, cria os imitadores
119
e os narradores facetos, ajudando com as feições, a voz
e com o próprio gênero de discurso ;
120
por outro lado, qual o lugar da arte neste
114
As facécias que se estendem pelo discurso constituem um tipo de humor que se espalha por frases,
orações, períodos, capítulos etc. Já as facécias de mordacidade são aquelas momentâneas e agudas e
funcionam num instante preciso, exato. Em Orator 87), Cícero define o ridículo estendido no discurso
como facécia. Porém neste parágrafo este mesmo gênero de ridículo é denominado por ele como
cauillatio (cavilação), incluindo-a entre os genera facetiarum, o que redunda em certa confusão
terminológica.
115
A palavra leuis possui vários significados: algo leve, suave, sem importância, incosiderado, frívolo etc.
A nosso ver este adjetivo tem por finalidade introduzir (que se desenvolverá em parte até o parágrafo 229)
a diferença entre o peso da seriedade dos discursos e a brincadeira, leveza, desimportância da palavra
picante (cf. Quintiliano VI, 3, 1), cuja essência coincide com seu objetivo, que é esvaziar
momentaneamente do discurso aquela tensão natural dos assuntos sérios e proporcionar ao interlocutor
um instante de descanso e refrigério sem que se perca a continuidade do trabalho. Por isso, tentando
encontrar um termo em português que evidenciasse minimamente essa noção, optei pela palavra
desimportante, porquanto ela traz em seu corpo a palavra “importante”, fazendo lembrar a noção ali
presente que está enfraquecida pelo prefixo (des-).
116
Ao traduzir lepor procurei ajustar seu sentido ao da palavra leuis, dando aos dois uma indicação de
esvaziamento daquilo que é sério ou pesado, que é ademais o sentido dessas palavras em português. Os
termos opostos a elas apresentam-se no texto em palavras como seueritas ou semelhantes.
117
Cf. Ramage (1959: p. 253): “Elsewhere Cícero uses urbanus and urbanitas in company with facetious
and facetia words which immediately suggest sophisticated humor and wit”. V. De risu, § 8, n. 344.
118
Cavilação. Cf. § 216.
119
Cf. parágrafo 242.
120
Ao que parece, a natureza fornece aos narradores e imitadores facetos o decoro de seu gênero
discursivo.
34
gênero de mordacidade,
121
que um dito lançado facetamente deva prender antes que
haja sequer a possibilidade de pensar?
122
220 Quid enim hic meus frater ab arte adiuuari potuit, quom a Philippo interrogatus
quid latraret, ‘furem se uidere’ respondit? Quid in omni oratione Crassus uel apud
centum uiros contra Scaevolam uel contra accusatorem Brutum, quom pro Cn. Plancio
diceret? Nam id, quod tu mihi tribuis, Antoni, Crasso est omnium sententia
concedendum. Non enim fere quisquam reperietur praeter hunc in utroque genere
leporis excellens, et illo quod in perpetuitate sermonis et hoc quod in celeritate atque
dicto est.
220 Em que, com efeito, este meu irmão
123
pôde ter sido ajudado por alguma arte
quando, questionado por Filipe
124
por que ladrava, respondeu: ‘Porque vejo um
ladrão!’?
125
Em que ajudaria Crasso em vários tipos de discurso, ora diante dos
Centúnviros
126
contra Cévola,
127
ora contra o acusador Bruto,
128
quando discursava em
121
A saber: a dicacitas, o segundo gênero de facécia preceituado por César. Cf. § 218.
122
Dictum emissum haerere debeat, quam cogitari potuisse uideatur?: o texto empresta a imagem do arco
e da flecha para ilustrar o processo em que uma palavra picante é lançada de tal modo, que receptor não
tem como reagir.
123
Quinto Lutácio Cátulo, irmão por parte de mãe de César Estrabão (Cícero, De oratore II, 12 e 44). Lê-
se no início do Livro II de De oratore que ele e o irmão chegaram a Túsculo quando Antônio e Crasso
conversavam.
124
Lúcio Márcio Filipe. Cônsul em 91 a.e.c. e inimigo de Marco Lívio Druso (Cícero, Pro Rabirio I, 7-9)
que propusera no Senado mudanças de leis (entre elas a ampliação do senado e a concessão da cidadania
romana aos itálicos) às quais Filipe se opunha ferrenhamente (cf. Cícero De oratore I, 24; II, 315; III, 4;
Brutus 173; Quintiliano III, 89).
125
Filipe brincou claramente com a coincidência entre o sobrenome Catulus (Cátulo) e seu outro
significado cachorrinho (diminutivo de canis). Suspeita-se que a resposta de Cátulo refira a uma acusação
de concussão (cf. Cícero De oratore III, 1-7). o se encontraram referências sobre a data e o local onde
ocorreram essas provocações.
126
Membros de um tribunal constituído inicialmente por cem juízes e depois por cento e oitenta, que
julgavam os negócios civis em Roma ou nos municípios e colônias romanas, onde eram chamados de
Decuriões.
127
Quinto Múcio Cévola Pontífice (Tito Lívio, Ab Urbe Condita Periocha, Livro 86), contemporâneo de
Crasso (cf. Cícero De oratore I, 180) 140-82 a.e.c. e seu colega de consulado em 95 a.e.c. Como
procônsul reorganizou e pacificou a Ásia. Morreu assassinado por Lúcio Júnio Bruto Damasipo quando
talvez passasse do partido mariano ao silano (cf. Cícero De oratore II, 257 e Mommsen, 1975: pp. 378-
379).
128
Marco Júnio Bruto, filho de Marco Júnio Bruto. Sem ter se aplicado às funções militares ou políticas
ou ao direito civil, como fizera seu pai (cf.§ 225), passou a exercer a função de acusador (cf. § 226)
afinal, possuía certo renome como orador (cf.. Cícero Pro Cluentio 140) –, de onde angariou a fama de
especialista (cf. De Officiis II, 50) que, somada à sua outra de perdulário, extravagante e sórdido (cf.
Brutus 130; De Officiis II, 50), justificava a acusação de ter desonrado a reputação de sua família,
sobretudo a de seu pai.
35
defesa de Gneu Plâncio?
129
Pois esse talento que tu, Antônio, atribuis a mim deveria
segundo o parecer de todos ser atribuído a Crasso. Com certeza não se encontrará outro
orador tão excelente quanto ele nos dois gêneros de amenidades:
130
não somente
naquele que aparece na extensão do discurso, como também neste que se verifica na
rapidez e no dito agudo.
131
221 Nam haec perpetua contra Scaeuolam Curiana defensio tota redundauit
hilaritate quadam et ioco; dicta illa breuia non habuit. Parcebat enim aduersari
dignitati; in quo ipse conseruabat suam: quod est hominibus facetis et dicacibus
difficillimum, habere hominum rationem et temporum et ea quae occurrant, quom
salsissime dici possunt, tenere. Itaque non nulli ridiculi homines hoc ipsum non insulse
interpretantur;
221 Pois aquela contínua defesa de Cúrio
132
contra Cévola, que redundou do início
ao fim em certa hilaridade e gracejo, o possuía daqueles ditos breves.
133
Com efeito,
129
Embora seja também citado em Cícero (Pro Cluentio 140), o personagem e o processo movido contra
ele são, todavia, desconhecidos.
130
Neste parágrafo César parece culminar em certa confusão terminológica. No parágrafo 218 ele nomeia
dois tipos de facécias (a cavilação e a mordacidade). Ali o termo utilizado é genera facetiarum. Depois,
no parágrafo 219, ele afirma haver grande vantagem no uso da amenidade e das facécias Verum tamen,
ut dicis, Antoni, multum in causis persaepe lepore et facetiis profici uidi. neste parágrafo ele aponta
dois gêneros de amenidades (genere leporis e não genera facetiarum, como faz no parágrafo 218), que
desenvolvidos coincidem com os genera facetiarum do parágrafo 218. Embora o termo facetiae esteja
mais presente no texto do que a palavra lepor, o podemos afirmar que, neste parágrafo, Cícero, por
meio do personagem César, quis substituir facetiarum por leporis. Por outro lado, podemos, ao menos em
parte, justificar a imprecisão como uma espécie de adequação expectada do nero de discurso do qual
De oratore faz parte: o diálogo retórico.
131
Expus no § 2, (n. 344) de De risu por que traduzi a palavra dictum por “dito picante”. o obstante,
explico agora que obedecendo à divisão presente no § 219, que determina cavilação o gênero de facécia
estendido pelo discurso e mordacidade aquele que é incisivo, traduzi aqui o mesmo termo por “dito
agudo”. Aqui a palavra dicto (dictum,-i) o somente diz respeito ao último gênero, como também é
acompanhada do advérbio celeritate, completando a referência ao gênero de mordacidade. Com essa
acepção a palavra encontra correspondente em termos como o substantivo acutum, (cf. parágrafo 280,
acute), agudo, e acumen, que também traduzi por agudeza. Todas denotam a idéia numa palavra que tem
o objetivo de provocar ou, no popular, cutucar. Por isso, quando foi necessário, deixei aquela primeira
escolha e adeqüei o termo ao contexto (v. § 222).
132
Cícero se refere à causa curiana no livro I, § 180. Em linhas gerais, o caso é este: um homem havia
morrido e deixado a esposa supostamente grávida. Assim, deixou como herdeiro de seus bens o filho
póstumo e Mânio Cúrio, (por determinação do falecido ou da esposa) ficou como segundo herdeiro, caso
o primeiro falecesse antes de completar a maioridade. Ocorreu, porém, que a criança não nasceu e então
Marco Copônio, parente do falecido e próximo herdeiro depois de Cúrio, passou a questionar e exigir a
letra do testamento dizendo que este não tinha validade, porque o bebê não havia nascido. Foi então que
Cévola, o pontífice, e Crasso entraram na disputa, o primeiro a favor do cumprimento literal do
testamento, o segundo em defesa de Cúrio e da aequitas.
133
Ou seja: Cúrio utilizou a primeiro gênero de facécias, a cavilação; e não o segundo, a mordacidade.
36
ele respeitava a dignidade do adversário,
134
no que também preservava a sua própria,
porque é dificílimo para os homens facetos e mordazes ter em conta as pessoas, as
circunstâncias e observar as coisas que ocorrem e que podem ser ditas muito
picantemente. Assim, alguns homens ridículos interpretam não insossamente isto:
222 dicere enim aiunt Ennium, ‘flammam a sapiente facilius ore in ardente opprimi,
quam bona dicta teneat’: haec scilicet bona dicta, quae salsa sint; nam ea ‘dicta’
appellantur proprio iam nomine. [LV] Sed ut in Scaeuola continuit ea Crassus atque in
illo altero genere, in quo nulli aculei contumeliarum inerant, causam illam
disputationemque lusit, sic in Bruto, quem oderat et quem dignum contumelia iudicabat,
utroque genere pugnauit.
222 contam alguns que, de fato, Ênio
135
dizia: ‘É mais fácil para o sábio sufocar uma
chama numa boca flamejante do que reprimir ditos oportunos’;
136
isto é, ditos oportunos
que sejam picantes (bona dicta), pois os primeiros são chamados pelo nome próprio
(dicta).
137
Mas Crasso assim como ao falar contra vola os conteve e, naquele outro
gênero, em que não havia ponta alguma de sarcasmo, ironizou aquela causa e discussão,
do mesmo modo combateu a Bruto, a quem odiava e julgava digno de injúrias, tanto
com um quanto com outro gênero.
138
223 Quam multa de balneis, quas nuper ille uendiderat, quam multa de amisso
patrimonio dixit! Atque illa breuia, quom ille diceret se sine causa sudare: ‘minime’
inquit ‘modo enim existi de balneis’, innumerabilia huiusce modi fuerunt, sed non
minus iucunda illa perpetua. Quom enim Brutus duo lectores excitasset et alteri de
colonia Narbonensi Crassi orationem legendam dedisset, alteri de lege Seruilia, et cum
contraria inter sese de re publica capita contulisset, noster hic facetissime tris patris
Bruti de iure ciuili libellos tribus legendos dedit.
134
Conforme instrui Cícero (v. Orator 89).
135
Quinto Ênio (240-169 a.e.c.). Compositor do poema épico Annales sobre a história de Roma em 18
livros (cf. Cícero, Brutus 73).
136
Ênio, Scaenica CLXVII.
137
Expus em De risu 2, n. 344) porque traduzi o termo dictum (aqui modificado pelo adjetivo salsus,-
a,-um) por “dito picante”.
138
A saber, com a cavilação (cauillatio) e com a mordacidade (dicacitas).
37
223 Quantas coisas ele disse a respeito das salas de banho, que Bruto vendera
recentemente, quantas disse a respeito do patrimônio que este perdera! E aquelas breves,
quando Bruto dissera estar suando sem motivo e ele lhe respondeu: ‘Não me admiro,
pois acabaste de sair dos banhos’. Dessas, fez muitas outras. Mas não menos agradável
foi aquela contínua: Bruto, depois de fazer dois leitores levantarem-se, pediu para um
deles ler o discurso escrito por Crasso sobre a colônia narbonense e para o outro o
discurso sobre a lei Servília.
139
E como ele expusesse opiniões contrárias entre si a
respeito da república, este nosso amigo, muito facetamente, deu os três pequenos livros
sobre direito civil do pai de Bruto para que três pessoas os lessem.
224 Ex libro primo: Forte euenit ut in Priuernati essemus. ‘Brute, testificatur pater
se tibi Priuernatem fundum reliquisse.’ Deinde ex libro secundo: In Albano eramus ego
et Marcus filius. ‘Sapiens uidelicet homo cum primis nostrae ciuitatis norat hunc
gurgitem; metuebat ne, quom is nihil haberet, nihil esse ei relictum putaretur.’ Tum ex
libro tertio, in quo finem scribendi fecit tot enim, ut audiui Scaeuolam dicere, sunt
ueri Bruti libri –: In Tiburti forte adsedimus ego et Marcus filius. ‘Vbi sunt hi fundi,
Brute, quos tibi pater publicis commentariis consignatos reliquit? Quod nisi puberem
te, inquit, iam haberet, quartum librum composuisset et se etiam in balneis lotum cum
filio scriptum reliquisset.’
224 Então, do primeiro livro leu-se: ‘Sucedeu por acaso que estivéssemos em
Priverno’. E disse Crasso: ‘Bruto, aqui teu pai testifica ter deixado para ti um fundo em
Priverno’. Depois, do segundo livro leu-se: ‘Em Albano estávamos meu filho Marco
140
e eu’. E Crasso: ‘Homem sábio, certamente, como os primeiros de nossa cidade,
conhecia esta voragem do filho: temia que, depois de morto, pensassem que nada
tivesse deixado para ele.’ Então, do terceiro livro, no qual finalizou sua escrita (tantos
são, segundo me disse Cévola, os verdadeiros livros de Bruto) leu-se: ‘Em Tíbur
139
Em 118 a.e.c. Crasso defendeu a criação da colônia Narbonense. À época havia duas opinões
contrárias a respeito: o Senado em sua maioria se opunha, e a ordem eqüestre era a favor da fundação.
Depois, em 106, mudou de opinião, atendendo a uma proposta de lei de Quinto Servílio Cipião, que
pretendia limitar ou eliminar o monopólio da ordem eqüestre nos tribunais desde 112 a.e.c., quando Caio
Graco era tribuno. Essa lei ganhou o nome de Lex Seruilia (Lei Servília). Os discursos contraditórios que
Bruto deu a duas pessoas para que lessem eram justamente aqueles em que as posições de Crasso em 118
e 106 a.e.c. entravam em contradição.
140
Bruto.
38
estávamos, por acaso, meu filho Marco e eu’. Crasso perguntou: ‘Bruto, onde estão
esses bens que teu pai te deixou consignados em comentários públicos?’ Se não tivesses
alcançado a puberdade à época, disse, ele teria composto um quarto livro e teria
deixado escrito o fato de ter estado com o filho nos banhos’.
141
225 Quis est igitur qui non fateatur hoc lepore atque his facetiis non minus refutatum
esse Brutum quam illis tragoediis, quas egit idem, quom casu in eadem causa efferretur
anus Iunia? Pro di immortales, quae fuit illa, quanta uis! quam inexspectata, quam
repentina! Quom coniectis oculis, gestu omni ei imminenti, summa grauitate et
celeritate uerborum: ‘Brute, quid sedes? quid illam anum patri nuntiare uis tuo? quid
illis omnibus, quorum imagines duci uides? quid maioribus tuis? quid L. Bruto, qui
hunc populum dominatu regio liberauit? quid te agere? cui rei, cui gloriae, cui uirtuti
studere? patrimonione augendo? At id non est nobilitatis.
225 Quem há, portanto, que não confesse que por meio dessa amenidade e facécias
tenha sido Bruto não menos censurado do que com aqueles gestos dramáticos, que o
mesmo Crasso utilizou, quando por acaso durante a mesma audiência passava o funeral
da anciã Júnia
142
? Pelos deuses imortais, como foi grande aquela força! Quão
inesperada! Quão repentina! Quando com olhar agudo e todos aqueles gestos e num tom
ameaçador e com especial gravidade e rapidez de palavras disse: ‘Bruto, por que estás
sentado? O que queres que anuncie a teu pai aquela anciã? Ou àqueles todos cujas
imagens vês serem conduzidas? O que a teus ancestrais? O que a Lúcio Bruto, que
libertou este povo do domínio real?
143
Qual a tua ocupação? A qual deusa, a qual glória,
a que virtudes te aplicas? Aplicas-te a aumentar o patrimônio? Ora, isso não é digno de
um nobre.
141
Era costume entre os romanos que o filho acompanhasse o pai nos banhos até a puberdade somente.
142
Júnia pertencia à mesma gens de Bruto. Não se sabe qual o grau de parentesco entre eles, mas percebe-
se pela ausência de Bruto ao funeral de Júnia, que não era de proximidade.
143
Lúcio Júnio Bruto. Chamado por Cícero de Nobilitatis Vestrae Princeps O príncipe da vossa nobreza
(cf. Cícero, Brutus 53). A ele foi atribuído por Tácito o ato criador da república romana (Tácito,
Annales, XI, 22-24), da qual foi o primeiro cônsul (Tácito, Annales XI, 25).
39
226 Sed fac esse, nihil superest; lubidines totum dissupauerunt. An iuri ciuili? Est
paternum. Sed dicet te, cum aedis uenderes, ne in rutis quidem et caesis solium tibi
paternum recepisse. An rei militari? Qui numquam castra uideris! An eloquentiae?
Quae neque est in te et, quicquid est uocis ac linguae, omne in istum turpissimum
calumniae quaestum contulisti! Tu lucem aspicere audes? tu hos intueri? tu in foro, [tu
in urbe,] tu in ciuium esse conspectu? Tu illam mortuam, tu imagines ipsas non
perhorrescis? Quibus non modo imitandis, sed ne conlocandis quidem tibi locum ullum
reliquisti.’
226 E se o fosse, nada resta. O teu desregramento dissipou tudo. Aplicas-te, por
acaso, ao direito civil? É a ocupação de teu pai. Mas Júnia diz
144
que ao venderes as
casas, entre os bens móveis, nem ao menos o assento de jurisconsulto preservaste.
Acaso te aplicas às coisas militares? Tu que nunca viste um acampamento! Ou à
eloqüência? Da qual nada há em ti, e o que há na voz e nangua,
145
aplicaste tudo neste
torpíssimo proveito da calúnia!
146
Tu ousas contemplar a luz? Tu ousas olhar para teus
juízes? Tu no foro, tu na Urbe,
147
tu na presença dos cidadãos?
148
Tu não temes aquela
morta? Não temes aquelas imagens, não para imitá-las como para colocá-las em
algum lugar reservado por ti?
227 (LVI) Sed haec tragica atque diuina; faceta autem et urbana innumerabilia uel
ex una contione meministis; nec enim maior contentio umquam fuit nec apud populum
grauior oratio, quam huius contra collegam in censura nuper, neque lepore et
festiuitate conditior. Qua re tibi, Antoni, utrumque adsentior, et multum facetias in
dicendo prodesse saepe et eas arte nullo modo posse tradi. Illud quidem admiror, te
nobis in eo genere tribuisse tantum et non huius rei quoque palmam [ut ceterarum]
Crasso detulisse."
144
O verbo dicet tem o seu sujeito no parágrafo anterior. Com efeito, quando Crasso dizia aquelas
palavras a Bruto passava o funeral da anciã Júnia, Crasso aproveitou a oportunidade e passou a fazer as
perguntas para atacar Bruto.
145
Alusão à capacidade oratória de Bruto (v. § 220).
146
Alusão ao fato de Bruto ter se dedicado à função de acusador (v. § 220).
147
Como Roma era chamada.
148
“Tu, estar no foro, na Urbe, na presença dos cidadãos?”. Talvez Crasso quisesse dizer que Bruto,
perdulário e extravagante, não poderia freqüentar os mesmos lugares dos homens urbanos ou que, sendo
como era, pertencia menos à classe urbana que à rústica.
40
227 No entanto, essas palavras o dramáticas e divinas. Por outro lado, vós vos
lembrais das inumeráveis palavras facetas e urbanas utilizadas recentemente num
discurso seu. Pois então, jamais houve, sem dúvida, um debate maior nem um discurso
mais grave diante do povo nem mais realçado de amenidade e graça do que este, na
censura a um colega.
149
Em duas coisas concordo contigo, Antônio: que as facécias são
muito proveitosas no discurso e que não como aprender a utilizá-las por uma arte
sequer.
150
Mas me admiro verdadeiramente do imenso talento que atribuístes a nós neste
gênero, e não tenhas concedido (como fizeram os demais) o primeiro lugar a Crasso.”
228 Tum Antonius: "Ego vero ita fecissem," inquit "nisi interdum in hoc Crasso
paulum inuiderem. Nam esse quamvis facetum atque salsum non nimis est per se ipsum
inuidendum; sed quom omnium sit uenustissimus et urbanissimus, omnium grauissimum
et seuerissimum et esse et uideri, quod isti contigit uni, mihi uix ferendum uidebatur."
228 Então Antônio disse: “Eu em verdade assim teria feito, se nisso o invejasse
um pouco a Crasso. Pois ser faceto e picante não é de per si muito invejável, mas
quando um homem é o mais venusto e o mais urbano dentre todos e, além disso, não
somente o é, mas também parece ser o mais grave e o mais sério, o que a este nosso
amigo aconteceu, isso me parecia difícil de suportar!”
229 Hic cum adrisisset ipse Crassus: "Ac tamen," inquit Antonius "quom artem esse
facetiarum, Iuli, negares, aperuisti quiddam, quod praecipiendum uideretur. Haberi
enim dixisti rationem oportere hominum, rei, temporis, ne quid iocus de grauitate
decerperet; quod quidem in primis a Crasso observari solet. Sed hoc praeceptum
praetermittendarum est facetiarum, quom eis nihil opus sit. Nos autem quo modo
utamur, quom opus sit, quaerimus, ut in aduersarium et maxume, si eius stultitia poterit
agitari, in testem stultum, cupidum, leuem, si facile homines audituri uidebuntur.
149
V. Livro II, § 45.
150
Quando sar diz da arte que transmite o conhecimento sobre qualquer assunto, está falando em
doutrina. V. § 2, nota 101.
41
229 Aqui, tendo rido o próprio Crasso, disse Antônio: E, porém, quando negaste
que existe a arte das facécias, Júlio, mostraste algo que parece dever ser preceituado. De
fato, disseste ser oportuno considerar as pessoas, as coisas, os tempos, para que o
gracejo não diminua o que de gravidade no discurso. O que, em primeiro lugar,
certamente costuma ser observado por Crasso. Mas este é justamente o preceito que
manda omitir as facécias, quando elas o servirem para coisa alguma. No entanto,
perguntamo-nos por qual modo podemos utilizá-las, quando elas tiverem utilidade, por
exemplo, contra um adversário (se sua estultice pode ser censurada) e sobretudo contra
uma testemunha estulta, parcial, leviana, se facilmente parecerem que o público as
ouvirá.
151
230 Omnino probabiliora sunt, quae lacessiti dicimus, quam quae priores; nam et
ingeni celeritas maior est quae apparet in respondendo, et humanitatis est responsio.
Videmur enim quieturi fuisse, nisi essemus lacessiti; ut in ipsa ista contione nihil fere
dictum est ab hoc, quod quidem facetius dictum uideretur, quod non prouocatus
responderit. Erat autem tanta in Domitio grauitas, tanta auctoritas, ut, quod esset ab eo
obiectum, lepore magis eleuandum quam contentione frangendum uideretur."
230 Em geral, as palavras que dizemos quando somos agredidos são mais apreciáveis
do que aquelas que dizemos quando atacamos primeiro; pois não é maior a rapidez
da imaginação, a qual aparece na resposta, como também o próprio ato de responder é
inerente à humanidade. Com efeito, damos a impressão de que teríamos permanecido
quietos, não fosse termos sido atacados; como nessa discussão acima
152
, em que quase
nada do que foi dito (daquilo que parecesse mais faceto) foi outra coisa senão uma
resposta a uma provocação
153
. Ao contrário, em Domício
154
se encontrava tanta
gravidade, tanta autoridade que, qualquer coisa que fosse objetada por ele, parecia ser
mais mitigada pela amenidade do que aplacada pela contenda.”
151
Idem.
152
V. § 227 e nn.
153
V. § 2, nota 101.
154
Gneu Domício Aenobarbo, contemporâneo de Crasso. Ambos viviam em altercações (Cícero, Brutus
164). Em Valério Máximo (IX, 1.4) e Plínio (XVII, 3) encontramos um diálogo em que Domício censura
a luxuosidade da casa de Crasso. Macróbio (Saturnalia 2, 11) e Plutarco (Como tirar proveito de seus
inimigos, 88), contam a anedota da murena: Domício perguntou a Crasso: “É verdade que uma murena
morreu em vossa piscina e pranteaste por ela?”, ao que Crasso respondeu: “É verdade que enterraste
vossa esposa sem prantear por ela?”.
42
231 (LVII) Tum Sulpicius: "Quid igitur? patiemur" inquit "Caesarem, qui
quamquam Crasso facetias concedit, tamen multo in eo studio magis ipse elaborat, non
explicare nobis totum genus hoc iocandi, quale sit et unde ducatur; praesertim cum
tantam uim et utilitatem salis et urbanitatis esse fateatur?" "Quid, si" inquit Iulius
"adsentior Antonio dicenti nullam esse artem salis?"
231 Então Sulpício disse: “Que é então? Seremos pacientes com o fato de que César,
mesmo atribuindo as facécias a Crasso, se dedique muito mais a estudar o assunto e não
nos explique qual é a natureza e de onde deve ser tirado todo este gênero de gracejar;
principalmente quando reconhece a grande força e utilidade do dito picante e da
urbanidade?” “Que é, disse Júlio, se concordo com Antônio que diz não haver arte
alguma do dito picante?”
232 Hic cum Sulpicius reticuisset: "Quasi uero," inquit Crassus, "horum ipsorum, de
quibus Antonius iam diu loquitur, ars ulla sit! Obseruatio quaedam est, ut ipse dixit,
earum rerum quae in dicendo ualent; quae si eloquentis facere posset, quis esset non
eloquens? Quis enim haec non uel facile uel certe aliquo modo posset ediscere? Sed
ego in his praeceptis hanc uim et hanc utilitatem esse arbitror, non ut ad reperiendum
quid dicamus arte ducamur, sed ut ea, quae natura, quae studio, quae exercitatione
consequimur, aut recta esse confidamus aut praua intellegamus, quom quo referenda
sint didicerimus.
232 Aqui, como Sulpício se calasse, Crasso disse: “Como se dessas mesmas coisas
que Antônio vem falando algum tempo houvesse alguma arte! Como ele mesmo
disse, dessas coisas eficazes no discurso certa observação, que se pudesse produzir
pessoas eloqüentes, quem o o seria? Quem, com efeito, não poderia aprender estas
coisas com facilidade ou de algum modo? Mas eu creio que nestes preceitos força e
utilidade não para que pela arte sejamos conduzidos a encontrar o que dizer,
155
mas para
155
Ao que parece, Cícero diz aqui que os três preceitos (natureza, estudo, exercício v. nota seguinte)
funcionam na falta de uma arte sobre o riso na constituição da peroração nos moldes de De inuentione
98-106 ou mesmo da Retórica de Aristóteles 1419b, 10 1419 a. Em linhas gerais, o riso possui sim
tópicos de estudo e exercícios aprópriados, porém eles não se confirmam como uma arte e sim funcionam
melhor aproveitando a natureza do fato, ou das palavras ou das pessoas e a ocasião.
43
que (uma vez que tenhamos aprendido ao que elas devam referir-se)
156
sigamos aquelas
que, pela natureza, pelo estudo e pelos exercícios, confiamos serem retas ou entendamos
serem ruins.
233 Qua re, Caesar, ego quoque hoc a te peto, ut, si tibi uidetur, disputes de hoc toto
iocandi genere quid sentias, ne qua forte dicendi pars, quoniam ita uoluistis, in hoc tali
coetu atque in tam accurato sermone praeterita esse uideatur." "Ego uero," inquit ille
"quoniam collectam a conuiua, Crasse, exigis, non committam ut, si defugerim, tibi
causam aliquam recusandi dem. Quamquam soleo saepe mirari eorum impudentiam,
qui agunt in scaena gestum inspectante Roscio. Quis enim sese commouere potest, cuius
ille uitia non uideat? Sic ego nunc, Crasso audiente, primum loquar de facetiis et
docebo sus, ut aiunt, oratorem eum, quem quom Catulus nuper audisset, ‘faenum alios’
aiebat ‘esse oportere’.”
233 Então, César, eu também te peço isto: que, se assim te parece, discutas o que
pensas a respeito de todo este gênero de gracejar e que não venha a parecer (numa tal
reunião e numa conversa tão elaborada) que alguma parte da oratória tenha sido
esquecida, afinal tu assim o quiseste.” “Na verdade respondeu ele –, como exiges,
Crasso, que o convidado pague sua quota,
157
não começarei dando-te, se me esquivar,
algum pretexto ao recusar; ainda que costume muitas vezes admirar o atrevimento
daqueles que atuam na presença de Rócio.
158
Quem, com efeito, pode mover-se sem que
se vejam os vícios?
159
Assim eu, na presença de Crasso, falarei agora pela primeira
156
Segundo Platão, estas são as três condições para um homem alcançar a eloqüência: φσις (natureza ou
talento natural) natura, ingenium –; πιστµη (estudo, conhecimento) ratio, ars, doctrina –; µελτη
(exercício, dedicação, prática) diligentia, studium, industria (cf. Platão, Fedro, 269d).
157
Crasso era o anfitrião, daí ser ele quem exigisse a cota. Quanto a esta última, trata-se de uma cota que
os convivas deveriam pagar numa refeição em conjunto.
158
Quinto Rócio Galo, ator famosíssimo à época. Mais tarde cliente e amigo de cero (cf. Cícero De
oratore I, 251–261).
159
Bergson diz em várias partes de O riso sobre o ridículo despertado pelos movimentos dos corpos,
inclusive aqueles que rompem a normalidade ou se apresentam momentaneamente fora da moda ou dos
costumes (v. Bergson, H. O riso: ensaio sobre a significação do cômico tradução de Nathanael C.
Caixeiro –, Rio de Janeiro: Zahar, 1983).
44
vez
160
a respeito das facécias e ensinarei – eu, o porco,
161
como dizem –, a esse orador, a
quem Cátulo ouvindo há pouco dizia que seria oportuno que os outros comessem feno.”
234 Tum ille: "Iocabatur" inquit "Catulus, praesertim cum ita dicat ipse, ut
ambrosia alendus esse uideatur. Verum te, Caesar, audiamus, ut Antoni reliqua
uideamus." Et Antonius: "Perpauca mihi quidem restant," inquit "sed tamen defessus
iam labore atque itinere disputationis meae requiescam in Caesaris sermone quasi in
aliquo peropportuno deuorsorio." (LVIII) "Atqui" inquit Iulius "non nimis liberale
hospitium meum dices; nam te in uiam, simulac perpaulum gustaris, extrudam et
eiciam."
234 Então Crasso disse: “Cátulo queria fazer graça, sobretudo porque ele fala como
se fosse alimentado por ambrosia.
162
Porém, que a ti, César, ouçamos, para que vejamos
o restante de Antônio”. E Antônio: “Para falar a verdade, me resta muito pouco o que
falar, mas por outro lado, cansado do trabalho e da jornada de meus discursos,
descansarei no discurso de César como se estivesse numa providencial estalagem”. “Ora
disse Júlio –, dirás que minha hospedaria não é muito generosa; pois, assim que dela
gostares um pouco que seja, empurrar-te-ei e jogar-te-ei na rua.”
235 Ac ne diutius uos demorer, de omni isto genere quid sentiam perbreuiter
exponam. De risu quinque sunt quae quaerantur: unum, quid sit; alterum, unde sit;
tertium, sitne oratoris risum uelle mouere; quartum, quatenus; quintum, quae sint
genera ridiculi. Atque illud primum quid sit ipse risus, quo pacto concitetur, ubi sit,
quo modo existat atque ita repente erumpat, ut eum cupientes tenere nequeamus, et quo
modo simul latera, os, uenas, oculos, uoltum occupet –, uiderit Democritus; neque enim
ad hunc sermonem hoc pertinet, et, si pertineret, nescire me tamen id non puderet, quod
ne ipsi illi quidem scirent, qui pollicerentur.
160
Não se sabe ao certo se de Júlio César ou de Cícero; na literatura latina é talvez a primeira exposição
sobre as facécias com essa acepção. Orator, onde Cícero cita o termo facetiae, foi composto
posteriormente (em 46 a.e.c.) a De oratore (em 55 a.e.c.).
161
Alusão ao provérbio Sus mineruam docet (Um porco ensina Minerva), ou seja um ignorante querendo
ensinar um sábio (cf. Festo, 408; Cícero, Academica I, 5; Ad Familiares IX, 18, 3).
162
Ambrosia, alimento dos deuses. Alusão ao grande engenho de Cátulo e seu reconhecido helenismo (cf.
Livro II, § 28).
45
235 “E para não vos demorar por muito tempo, exporei muito sucintamente aquilo
que penso a respeito deste assunto. A respeito do riso cinco coisas que devem ser
perguntadas.
163
Primeira: o que é o riso; segunda: onde é encontrado;
164
terceira: se é
próprio do orador querer provocar o riso; quarta: até que ponto o orador pode utilizá-lo;
quinta: quais são os gêneros do riso. Quanto à primeira, o que é o próprio riso, por que
ajuste é causado, onde se encontra, por que modo aparece e de repente irrompe, por que,
desejando contê-lo, não podemos segurá-lo, e por qual modo ocupa ao mesmo tempo os
pulmões, a boca, as veias, os olhos e o rosto, que o explique Demócrito,
165
porque isso
163
Cícero estabelece em forma de perguntas cinco pontos pelos quais a matéria deve ser abordada. Todas
elas encontram de certa forma eco em De risu. De início, a primeira (o que é o riso?) termina por não ser
respondida neste tratado nem em De risu, como se verá adiante. A segunda faz referência a Aristóteles e
sua Poética quanto ao aspecto daquilo que está sujeito ao risível, conceitos que chegaram a autores como
Bergson, por exemplo. A terceira pergunta diz respeito à possibilidade do uso do riso por parte do orador.
Embora a própria existência de um tratado sobre o riso responda à questão, importa dizer quanta
vantagem o uso do riso traz ao orador na busca de seu objetivo maior, que é a persuasão. A quarta
pergunta traz à tona a questão da moderação, indicada tanto por Cícero quanto por Quintiliano. Demais, à
discussão acrescem questões como a oposição entre urbanitas e rusticitas, além da gênese de termos
técnicos do riso oratório, tais como facetiae, urbanitas etc. A quinta pergunta encontra resposta no elenco
de gêneros de ditos ridículos, que Cícero e Quintiliano organizaram cada um a seu modo.
164
Ubi sit: literalmente, “onde esteja”. César quer dizer onde o riso é encontrado, onde ele existe possível
de ser colhido. Por isso, preferi a construção passiva para traduzir este trecho.
165
Referência a Demócrito de Abdera: o filósofo risonho. As loucuras humanas o faziam rir como faziam
Heráclito chorar (Cf, Sêneca De ira II, 5; Horácio, Epistulae II, 1, 194). “O que é o riso?” é a primeira
pergunta na abordagem do riso oratório. Cícero e Quintiliano, porém, restringem essa discussão dentro
dos parâmetros de suas discussões maiores, a facetiae e a urbanitas como recursos do mouere dentro de
seus discursos sobre a oratória. Assim, se por um lado os textos (De ridiculis e De risu) convergem para
vários pontos em comum que se resumem a partir do parágrafo 235 do texto do orador e Quintiliano
também responde a tais perguntas, por outro lado, ambos se eximem de definir o que vem a ser o riso
própriamente. Para cada uma dessas perguntas presentes no referido parágrafo, encontramos algum
tratamento feito por Quintiliano. Porém, tanto Cícero quanto Quintiliano enquadram essa questão dentro
dos limites do interesse eleito por eles para tratar da matéria: a permissão do uso do riso por parte do
orador, a prerrogativa da moderação (que para Cícero chama-se facetiae e para Quintiliano vem a ser
urbanitas), as maneiras de utilizá-lo e seus gêneros. Em outras palavras, a importância sobre o que é o
riso não é a primeira para ambos; eles preferem tangenciar as características do processo que leva as
pessoas ao riso em algumas passagens do que tratar o assunto com mais demora. Entre as várias hipóteses
para essa escolha, podemos citar o fato de que eles se propuseram a tratar do assunto de forma breve, pois
se ocupavam, tanto em De oratore quanto na Institutio oratoria, de objetivos maiores (Como se disse, De
ridiculis e De risu são dois pequenos tratados sobre o uso do riso como um dos recursos do mouere). Isso
fica evidente quando César diz, no parágrafo 235 de De ridiculis, que sua explicação sobre o assunto seria
sucinta e o próprio Quintiliano, no parágrafo 102, ao dizer que havia demonstrado quais são os gêneros do
riso, disse deles ter tratado ligeiramente. Outra motivação para tanto seria a essência do que é, para Cícero
e Quintiliano, o riso na oratória. Deste modo, entre aquelas convergências apontadas acima, essa, a não
definição do riso, é mais uma; porquanto nem Cícero nem Quintiliano se ocupam de mostrar, ou definir
ou discorrer sobre o que isso vem a ser em essência. Ou seja, aqui uma convergência, se o pela
ausência de uma tarefa, uma vez que o conceito de riso está subjacente em alguns parágrafos ou na união
(mesmo que não coesa) de alguns deles, ao menos, pela imperfeição no trato desse aspecto da matéria.
Para ter uma idéia do que vem a ser uma definição do riso, procurei em tratados médicos ou filosóficos
autores que tratassem do assunto de forma ímpar ao modo como Cícero e Quintiliano ou outro autor dele
se ocupa. Assim, encontrei o nono capítulo de Controuersiarum Medicarum et Philosophicarum, onde o
médico Francisco Vallesio discorre sobre o processo do riso. Vallesio procura basear-se na idéias de
Fracastoro, que aponta, no capítulo 20 de seu de Sympathia & Antiphatia Rerum (VALLESIO, 1556: IX),
que o que move nos homens o riso é um sentimento de alegria e admiração. o obstante Vallesio se
46
detenha no debate, citado por ele mesmo, entre Fracastoro e Valeriola, para o qual somente o sentimento
de alegria promove o riso (idem ibidem), ele acaba por fazer menção ao processo sico em que se o
fenômeno. E não apenas isso. Em seu texto, observamos que aquela alegria e admiração, causadas pelo
prazer e pela novidade, respectivamente, são parte do processo em que o coração, movido pelas sensações
agora descritas, move os músculos, entre eles os do tórax, que, por decorrência, vibra o ele, mas
também o septo e a boca (idem ibidem). Essa idéia de que paixões internas, como a alegria, por exemplo,
induzem ao riso o foi defendida apenas por Vallesio e Fracastoro (De acordo com Skinner, com a
redescoberta da teoria clássica da eloqüência uma das características da cultura renascentista –, a teoria
clássica do riso foi igualmente despertada”). Opiniões iguais a essa em que o riso é acionado por um
sentimento interno de alegria, prazer, admiração e novidade, surgiram em autores como Juan Luis Vives,
que diz que o riso nasce da felicidade e do prazer (apud Skinner, 2004: p.26) ou Descartes, ao dizer que o
riso parece ser um dos principais signos da alegria” (ibid., op. cit., p. 27) ou Laurent Joubert, que,
aproximando o fenômeno do riso ao da tristeza, diz que qualquer coisa ridícula nos um prazer e uma
tristeza combinados” (ibid, op. cit., p. 29) ou ainda Fracastoro, ao dizer que “a causa da alegria”, do riso
por extensão, “deve ser sempre alguma forma de felicidade interior”, e que “as coisas que geralmente nos
levam a rir devem trazer alguma novidade de forma repentina e inesperada” (ibid., op. cit., p. 32). Todas
essas assertivas, como se vê, mostram que o riso nasce de um movimento do ânimo interior, também
citado por Quintiliano em De risu 6). E delas é importante observar a noção de que há um processo no
qual o riso é provocado nos sentimentos e se torna algo físico. Quando Cícero diz que é Demócrito quem
deve explicar o que esse processo vem a ser está, em verdade, se eximindo de efetivá-la. O resultado é
que passamos a perguntar que mecanismos físicos estariam envolvidos nesse fenômeno. Nas palavras de
Skinner (2004: pp. 32–33):
“‘as coisas que geralmente nos levam a rir (...) devem trazer alguma
novidade’ e devem aparecer diante de nós ‘de forma repentina e inesperada’.
Quando isso acontece, ficamos no mesmo instante admirados, o que, por sua vez,
gera em nós uma satisfação. A seqüência emocional é, portanto, a seguinte: ‘o
imprevisto e o inesperado dão origem à admiratio, que, por sua vez, origem à
delectatio, que por sua vez, provoca o movimento facial que chamamos de riso’”.
(...) “A razão pela qual a presença da admiratio é indispensável é que rimos
somente quando encontramos coisas novas e surpreendentes. É a presença da
nouitas que no conduz à admiração, e é nossa impressão de admiração que nos faz
rir.”
Nos parágrafos de De ridiculis em que algo neste sentido parece se efetivar, o que se encontra na verdade
são meios pelos quais poderíamos construir algo que se assemelhe a uma definição. No início, nos
parágrafos 216 e 218, aparecem tanto construções predicativas do que vem a ser o gracejo ou a facécia
(que não são o riso própriamente dito, mas aquilo que o provoca) quanto uma referência do que se disse
sobre o elemento que dispara o riso, que é o agradável (suauis) e o não sério (leuis). Ora, tanto uma
quanto a outra ocorrência não são uma definição, mas sim, como é a natureza desse tipo de construção,
predicados de um meio pelo qual o riso surge; embora seja possível saber que o gracejo e a facécia são
suaves (De ridiculis, § 218) e não sérios (ibidem, 216), também é possível entender que o riso em si, é um
gesto que está relacionado à suavidade e à brincadeira e, lembramos, isso se relaciona, mais
especificamente com a sensação de espírito que sentimos ao rir do que ao gesto. Afinal, às vezes a
gesticulação em si não é tão suave ou leve, como diz Quintiliano:
“Ele irrompe, muitas vezes, involuntariamente e não só se torna visível pela
expressão do rosto e da voz, como também sacode todo o corpo com sua força.”
Não obstante essas observações sejam importantes e proporcionem alguma noção, ainda que parca, de
como Cícero e Quintiliano viam o fenômeno, elas não são ainda a definição do que vem a ser o riso de
um modo igual ou semelhante ao que podemos encontrar nos autores já citados. E é especificamente disso
que o retor e o orador se eximem. Cícero aponta, no parágrafo especial 235, os aspectos sicos presentes
no ato de rir.
“por que modo e de repente irrompe, por que desejando contê-lo, não conseguimos
e por qual modo ocupa ao mesmo tempo os pulmões, a boca, as veias e o rosto”
47
ainda outro ponto observado por Skinner na sua discussão sobre os elementos provocadores do riso,
que coincide no texto De oratore com o fato de que se ri daquilo que é torpe e disforme (cf. De ridiculis,
§ 236). Nas próprias palavras de Cícero, “da deformidade e dos vícios dos corpos” é “que surge a matéria
suficiente para gracejar”. Disse-se, mais acima, sobre falta em definir o riso a partir do seu elemento
provocador. Agora, aqui vemos que o orador cita o elemento provocador, mas não o seu efeito. A
descrição do ato físico de rir ainda permanece incompleta. Nos parágrafos 236, 237, 238 e 239, Cícero
inicia o excerto dessa forma que aqui se expõe e o termina com as vantagens que para o orador na
moderação de seu uso. Em outras palavras, o que se poderia esperar de uma definição, se perde na
progressão semântica que entre esses parágrafos, pois a Cícero ali importa, na verdade, dizer que ao
apontar os vícios alheios e disso colher vantagens no discurso oratório nos tribunais, deve o orador conter
o seu uso e fazê-lo com moderação, para que, com isso, evite parecer não urbano; já que o riso desmedido
é visto como coisas de bufões e de pessoas sem cultura. Também Skinner caminha nessa direção quando
afirma que Cícero “aludiu” sim “à importância do inesperado” (Skinner, op. cit.: p. 31), mas que “seus
seguidores renascentistas deram muito mais ênfase a esse ponto” ao citar uma declaração bastante
pertinente de Maggi (apud ibidem, p. 33):
“Não tenho como expressar o tanto do meu espanto por Cícero não ter dito uma
única palavra sobre o tema da admiratio como uma das causas do riso, quando o
fato é que na ausência da admiratio nunca é possível que o riso ocorra.”
Depois disso, o texto de De ridiculis se afasta por completo de qualquer definição do processo físico do
riso. O mesmo processo acontece com o texto de Quintiliano. Porém, isso não se antes que ali
Quintiliano estabeleça relações de aparência com o que vem a ser o riso (expressas nos parágrafos 6, 7, 8,
11,19, 21 e 35). No sexto e sétimo parágrafos há, como em Cícero, uma construção predicativa que ao
dito ridículo as qualidades de falso, distorcido e não lisonjeiro. Predicados que, embora se liguem aos
gracejos e o especificamente ao ato de rir, podem dar uma pequena idéia da disposição de espírito de
quem ri e dos motivos que o levam ao fato. Porém, quanto à definição em si, clara e inequívoca,
Quintiliano (De risu, 6) é categórico:
“e segundo, vários são os juízos dos homens a seu respeito, porquanto ele o é
entendido por algum princípio racional, mas por um certo movimento do ânimo
que não sei se pode ser explicado.”
Este excerto, não obstante referir-se primeiro àquelas qualidades do dito ridículo (que é “quase sempre
falso, geralmente distorcido e nunca enaltecedor”) remete também ao processo pelo qual o riso surge e
que tem como um dos seus possíveis componentes provocadores (cf. Bergson, 1983) justamente o dito
ridículo. Todavia, sobre o mecanismo que promove desde, neste caso, a fala ridícula proferida e a
explosão do riso (seja em maior ou menor intensidade) Quintiliano afirma apenas desconhecer como isso
ocorre, sobretudo porque, em suas palavras, não nisso um princípio racional pelo qual ele possa ser
entendido (cf. De risu, § 6). Depois, no oitavo parágrafo, uma predicação semelhante àquela
encontrada em De oratore: o ridículo é dito como algo leve. no parágrafo décimo primeiro,
Quintiliano, se exime de explicar o processo pelo qual o riso nasce quando, dizendo não importar o que
vem a ser o riso, prioriza o fato de que o riso está principalmente baseado na natureza e na ocasião, e isso
se confirma quando, no decorrer do discurso, Quintiliano passa a tratar dos aspectos que envolvem a
produção do riso por parte da natureza e da ocasião. Por outro lado, o retor se aproxima, no final do
parágrafo dezenove, de uma explicação do que seria este processo que faz com que as pessoas soltem o
riso. Ele explica, através de uma analogia, que o uso do riso por parte do orador é picante, um tempero do
discurso, como o sal, que, posto na comida com a quantidade certa, dá-lhe um sabor característico,
próprio; ou seja, realça-lhe o sabor. Depois disso, ao terminar o parágrafo, afirma, como resultado da
analogia, que o uso do riso, moderado, por parte do orador causa naqueles que ouvem a sede de ouvir
suas palavras. E é justamente este um dos momentos daquele processo: a expressão ridícula proferida
proporciona uma reação no ouvinte. Para Quintiliano, o que importa é ressaltar a utilidade desse processo
sinestésico na utilização da urbanitas por parte do orador. O desencadeamento de reações físicas
provocadas por uma sensação é disparada quando “uma imperfeição individual ou coletiva pede correção
imediata” (BERGSON, 1983: p. 69) a fim de sublinhar e reprimir certa distração especial dos homens e
dos acontecimentos” (idem ibidem), não são em De risu uma questão não importante, mas um processo
cuja discussão não é necessária. Ao afirmar, no parágrafo 21, que o gracejo é tudo aquilo que é contrário
ao que é sério, Quintiliano refere-se àquilo que se disse sobre os parágrafos 216 e 218 de De ridiculis. Do
48
não é pertinente a este discurso e, se o fosse, o me envergonharia todavia não saber o
que também não sabem aqueles que isso prometem.
236 Locus autem et regio quasi ridiculi nam id proxime quaeritur turpitudine et
deformitate quadam continetur. Haec enim ridentur uel sola uel maxime, quae notant et
designant turpitudinem aliquam non turpiter. Est autem, ut ad illud tertium veniam, est
plane oratoris mouere risum: uel quod ipsa hilaritas beneuolentiam conciliat ei, per
quem excitata est; uel quod admirantur omnes acumen, uno saepe in verbo positum,
maxime respondentis, non numquam etiam lacessentis; uel quod frangit aduersarium,
quod impedit, quod eleuat, quod deterret, quod refutat; uel quod ipsum oratorem
politum esse hominem significat, quod eruditum, quod urbanum, maxime[que] quod
tristitiam ac seueritatem mitigat et relaxat odiosasque res saepe, quas argumentis dilui
non facile est, ioco risuque dissoluit.
236 Quanto ao lugar onde encontrar o riso (pois em seguida, é isso que se pergunta),
seu campo eslimitado por alguma torpeza ou deformidade;
166
porque as coisas que
fazem rir, de forma simples ou estridente, marcam e designam de maneira não torpe
alguma torpeza.
167
Por outro lado, respondendo à terceira pergunta, é claramente próprio
do orador provocar o riso; ou porque a própria hilaridade é benévola àquele que a
desperta ou porque todos adoram uma agudeza contida, muitas vezes, numa palavra,
sobretudo de quem responde, e às vezes também de quem ataca;
168
ou porque
enfraquece o adversário; ou o constrange, diminui,
169
afugenta; ou porque o refuta; ou
também, pode ser, porque mostra que o próprio orador é um homem polido, erudito,
urbano; ou, sobretudo, porque muitas vezes mitiga e abranda a tristeza, a severidade e as
coisas desagradáveis.
170
O gracejo e o riso dissolvem aquilo que não é fácil de ser
diluído com argumentos.
171
mesmo modo, portanto, que, no texto de Cícero, a definição não se completa, aqui igualmente seu autor
também se exime de defini-la.
166
O locus do riso é basicamente este: marcar uma torpeza ou deformidade ou imperfeição (De ridiculis,
§§ 236, 273; De risu, § 8) ou os vícios dos corpos ou presentes na vida das pessoas (De ridiculis, §§ 238,
239, 273).
167
Cf. Aristóteles, Poética, 1449 a 34 sg. (v. De risu, § 8 e nn.).
168
Cf. § 230 e Brutus, 197.
169
Cf. Brutus, 322.
170
Cf. De risu, § 1º.
171
Resposta à terceira pergunta (v. § 235 e De risu, § 1º).
49
237 Quatenus autem sint ridicula tractanda oratori, perquam diligenter uidendum
est,– [id] quod in quarto loco quaerendi posueramus. Nam nec insignis improbitas et
scelere iuncta nec rursus miseria insignis agitata ridetur: facinerosos [enim] maiore
quadam ui quam ridiculi uulnerari uolunt; miseros inludi nolunt, nisi se forte iactant.
Parcendum autem maxime est caritati hominum, ne temere in eos dicas qui diliguntur.
237 (LIX) Por outro lado, até que ponto o ridículo deve ser tratado pelo orador é a
quarta coisa que nos pusemos a perguntar, e isso deve ser tratado com grande atenção.
Pois nem a infame perversidade associada ao crime nem a miséria extrema fazem rir.
Com efeito, deseja-se que os facínoras sejam feridos com alguma força maior que o
ridículo; e não se deseja que os miseráveis sejam escarnecidos, a não ser que sejam, por
acaso, jactanciosos.
172
Por outro lado, deve-se respeitar o máximo possível a afeição das
pessoas, para que não digas temerariamente algo contra aqueles que são amados.
238 Haec igitur adhibenda est primum in iocando moderatio. Itaque ea facillime
luduntur, quae neque odio magno neque misericordia maxima digna sunt. Quam ob rem
materies omnis ridículorum est in eis uitiis, quae sunt in uita hominum neque carorum
neque calamitosorum neque eorum, qui ob facinus ad supplicium rapiendi uidentur;
eaque belle agitata ridentur.
238 Por conseguinte, essa moderação deve ser a primeira coisa a ser aplicada ao
gracejar.
173
Assim, muito facilmente são ridicularizadas aquelas coisas que não são
dignas nem de grande ódio nem de grande misericórdia. É por essa razão que toda a
matéria do riso está naqueles vícios que se encontram na vida das pessoas que não são
queridas nem desafortunadas e daquelas que por causa de seus crimes, parecem merecer
sofrer. Esses vícios, explorados com graça, são risíveis.
172
V. Aristóteles, Poética, 1453a 1.
173
Aqui e no parágrafo anterior, Cícero responde à quarta pergunta (v. § 235). A moderação ao usar o riso
é um preceito amplamente defendido por ele e por Quintiliano. Em linhas gerais, ambos afirmam que o
orador deve ter em conta as pessoas 237), os lugares e os momentos (§ 221) ser discreto e usar de
gracejos não típicos dos bufões ou dos mímicos (§§ 239, 238 e 247). Cícero chama o orador que obedece
a esses quesitos de faceto (v. §§ 219, 228, 241, 285), termo relacionado àquele que define o tipo se humor
adequado ao orador, a facécia (v. n. 1 e De risu, § 34).
50
239 Est etiam deformitatis et corporis uitiorum satis bella materies ad iocandum;
sed quaerimus idem, quod in ceteris rebus maxime quaerendum est, quatenus. In quo
non modo illud praecipitur, ne quid insulse, sed etiam, si [quid] perridicule possis,
uitandum est oratori utrumque, ne aut scurrilis iocus sit aut mimicus. Quae cuius modi
sint facilius iam intellegemus, quom ad ipsa ridículorum genera uenerimus. Duo sunt
enim genera facetiarum, quorum alterum re tractatur, alterum dicto.
239 Com efeito, é da deformidade e dos vícios dos corpos que surgem
suficientemente belas matérias para gracejar.
174
Entretanto a respeito desse assunto
perguntamos o mesmo que, nas demais coisas, se deve também perguntar: até que ponto
e por qual modo isso é preceituado para que não só não digas algo insulso, mas também
possas fazê-lo por meio do riso. Duas coisas devem ser evitadas pelo orador, a saber:
que o gracejo não seja como o de um bufão
175
ou de ummico.
176
Coisas cujos modos
entenderemos melhor, quando chegarmos aos próprios gêneros do riso. Dois são, enfim,
os gêneros de facécias
177
: dos quais, um está relacionado ao assunto
178
e o outro aos
ditos.
179
174
V. § 236; Aristóteles, Poética, 1449 a 34 sg. e De risu, § 8.
175
A bufonaria fazia parte de festas religiosas entre os gregos, como as Leneanas e as Antestérias. Nelas,
eles ficavam em cima de carroças caçoando e provocando as pessoas que por ali passavam. Nos
banquetes era bastante comum haver um bufão que divertia os convidados com paródias, imitações,
caretas etc. em troca de comida. Por isso eram chamados, em Roma, de parasitos. Em Plauto (Persa) se
encontra um bufão chamado Saturião que queria dar sua compilação de pilhérias como dote de sua filha
(v. Minois, 2003: p. 55-59). Cícero adverte também em Orator (88) a que o orador não use o riso típico
dos bufões e dos mimos. A asseveração para que o orador evite este riso reside em dois aspectos que
estão presentes na atuação do bufão. Como diz Aristóteles, ele está ali nas festas para fazer outros rirem;
ele é, portanto, o palhaço. Ora, não é este, em absoluto, o θος desejado pelos oradores. Por outro lado,
não é incomum que o exercício do bufão permita o uso de palavras chulas, rudes e que suas pilhérias se
aproximem do linguajar do vulgo. Também disso o orador deve manter distância, pois também não
condiz com o ἦθος desejado por quem quer produzir persuasão.
176
Kelsey (1907: p.7) afirma que Cícero censurava o uso deste tipo de riso devido a sua agressão
desnecessária e por ter a aparência de algo premeditado.
177
No parágrafo 218, Cícero utiliza o termo genera facetiarum para compor um conjunto formado pelo
gênero de facécia cavilação e o outro, mordacidade. Aqui o termo é repetido com outra acepção: os
gêneros recebem os nomes de facécia de assunto e facécia de palavras. Dos primeiros chama-se cavilação
o tipo de humor estendido pelo discurso e mordacidade aquele incisivo e breve. Destes, um está
relacionado aos assuntos (às coisas, aos fatos) e o outro às palavras. Duas acepções diferentes para o
mesmo termo entre as quais não podemos estabelecer uma relação parcial que seja. Além disso, cero
faz outra divisão, desta vez tríplice, no parágrafo 248, onde indica novamente, mesmo que indiretamente,
os genera facetiarum nos moldes dessa segunda acepção, adicionando, porém, uma terceira composta
pelas existentes facécia de assunto e de palavras. Importa demarcar que a descrição destes genera
facetiarum de assunto e de palavras se completa entre os parágrafos 239 (este) e 247. No entanto, aquele
editado depois do parágrafo 248 carece de uma organização correspondente à sua introdução. Explico:
Cícero aponta três gênera facetiarum no parágrafo 248: aqueles baseados nos assuntos, nas palavras, e um
terceiro misto dos dois primeiros; ocorre, porém, que na descrição dos neros o próprio Cícero não
distingue os dois últimos e os enumera seguidamente sem obedecer à sua primeira tripartição. Entre os §§
51
240 Re, si quando quid tamquam aliqua fabella narratur, ut olim tu, Crasse, in
Memmium, ‘comedisse eum lacertum Largi’, quom esset cum eo Tarracinae de amicula
rixatus: salsa, ac tamen a te ipso ficta [tota] narratio. Addidisti clausulam tota
Tarracina tum omnibus in parietibus inscriptas fuisse litteras, tria L.L.L. duo M.M.;
quom quaereres id quid esset, senem tibi quendam oppidanum dixisse: ‘lacerat
lacertum Largi mordax Memmius.’
240 O gênero de facécias de assunto se configura quando algo é contado na forma de
anedota, como outrora fizeste, Crasso, ao discursar contra Mêmio
180
dizendo que ele
mordera o braço de Lárgio
181
quando tivera uma rixa com ele em Tarracina por causa de
uma amiguinha. Picante. Mas, ela foi toda inventada por ti. E a ela acrescentaste este
arremate: ‘Então, em todas as paredes de Tarracina foram escritas estas letras, três
L.L.L. e dois M.M.’. E quando perguntaste a um velho da cidade o que isso significava,
ele lhe respondeu: ‘Lacera o lacerto de Lárgio o mordaz Mêmio.’
241 Perspicitis genus hoc quam sit facetum, quam elegans, quam oratorium, siue
habeas uere quod narrare possis, quod tamen est mendaciunculis aspergendum, siue
fingas. Est autem huius generis uirtus, ut ita facta demonstres, ut mores eius de quo
narres, ut sermo, ut uoltus omnes exprimantur, ut iis qui audiunt tum geri illa fierique
uideantur.
248–264 ele descreve os neros de facécias baseados nas palavras e os demais (os gêneros de assunto
e/ou os gêneros de palavra e de assunto) jazem sem distinção de categoria entre os §§ 264–287. Assim,
mesmo elencando os primeiros, a ausência de uma organização mais clara quanto ao segundo nos
impossibilitou de verificar o enquadramento dos gêneros em uma ou outra categoria. Todas nossas
tentativas nesse sentido resultaram se não confusas, ao menos discutíveis, pelo que preferi anotar estas
discrepâncias, que à sua maneira ocorrem também no texto de Quintiliano.
178
Preferi traduzir re tractatur por “assunto” no lugar de “fato”, como fizeram algumas edições, por
entender que o termo é mais abrangente e se adequa da melhor forma às nomenclaturas compostas, tais
como facécia de assunto ou facécias baseadas em assuntos.
179
Aqui especificamente, na denominação de gêneros, a palavra dictum é traduzida apenas por “dito”,
diferentemente, portanto, de outros momentos em que se traduziu dictum por dito picante. Para facilitar a
compreensão e a leitura resolvi transpor livremente a palavra do singular para plural.
180
Caio Mêmio, tribuno da plebe em 111 a.e.c. e pretor por volta de 104. Foi, antes de morrer, candidato
ao consulado. Mêmio era considerado um orador medíocre, mas mordaz (cf. Cícero, Bruto 247). Também
apresentado por Salústio como um tribuno hostil à classe dos nobres (Bellum Iugurthinum 27 e 30).
181
Não se encontrou referências sobre esta personagem. certa dúvida em saber se seu nome era
precisamente Lárgio ou Largo.
52
241 Percebeis quão faceto é este gênero, quão elegante, quanto ele é oratório, quando
tens algo verdadeiro que possas narrar (que, porém, deve ser salpicado com algumas
mentirinhas) ou quando o inventas. D’outra parte, esta é a virtude deste gênero: que
demonstres os fatos de tal maneira que os costumes, a conversa e as feições das coisas
que tu narras sejam representadas de tal modo que a todos aqueles que ouvem pareçam
acontecer e ser feitas ali mesmo
182
.
242 In re est item ridiculum, quod ex quadam deprauata imitatione sumi solet; ut
idem Crassus: ‘per tuam nobilitatem, per uestram familiam!’ Quid aliud fuit in quo
contio rideret, nisi illa uoltus et uocis imitatio? ‘Per tuas statuas!’ uero quom dixit et
extento bracchio paulum etiam de gestu addidit, uehementius risimus. Ex hoc genere est
illa Rosciana imitatio senis: ‘tibi ego, Antipho, has sero’, inquit; senium est, cum audio.
Atque ita est totum hoc ipso genere ridiculum, ut cautissime tractandum sit. Mimorum
est enim et ethologorum, si nimia est, imitatio, sicut obscenitas. Orator surripiat oportet
imitationem, ut is qui audiet cogitet plura quam uideat; praestet idem ingenuitatem et
ruborem suum uerborum turpitudine et rerum obscenitate uitanda.
242 Também ridículo de assunto em coisas que costumam ser tiradas de certa
distorção que na imitação; como disse o próprio Crasso: ‘Por tua nobreza, por vossa
família’. Por que outra coisa a platéia riu senão pela imitação feita com o rosto e com a
voz? Então quando disse ‘Por tuas estátuas!’
183
e estendeu o braço fazendo também um
pouco do gesto do adversário, rimos muitíssimo. Faz parte também deste gênero aquela
imitação que Rócio fez de um ancião: ‘Para ti, Antipho, é que eu as planto’
184
, disse.
Quando ouço isso, parece a própria velhice a falar. Contudo, todo o ridículo neste
gênero é tal que deve ser tratado com muito cuidado. A imitação excessiva assemelha-se
à obscenidade dos mimos e dos imitadores.
185
Ao orador importa ocultar a imitação,
182
O recurso que consiste em narrar algo de tal modo que tudo o que tudo pareça acontecer no local onde
o fato é contado chama-se euidentia e consta dos recursos da narrativa. Seu uso é preceituado por
Quintiliano (IV, 2, 64; VI, 2, 32; VIII, 3, 61-62) e Cícero (De oratore II, 326–329).
183
nessa frase talvez uma alusão a uma estátua de Lúcio Bruto alinhando-se com o braço estendido
aos sete imporadores romanos no Capitólio (cf. Leeman, apud Cícero, Sobre el orador, introducción,
traducción y notas de José Javier Isso. Madrid: Editorial Gredos, 2002, p. 312, n. 235).
184
Verso atribuído aos Sinefebos de Cecílio Estácio em imitação a Menandro (Cícero, De Finibus 1, 4).
Em De senectude 24 e Tusculanae disputationes I, 31, Cícero atribui a Estácio versos semelhantes a esse.
185
Denominados pelos gregos de ἠθολόγοι, estes imitadores de classe inferior saíam às ruas e aos
teatros fazendo imitações burlescas.
53
para que aqueles que o ouvem cogitem mais do que vêem. É preciso que ele, o orador,
mostre seu recato e pudor, e evite a torpeza das palavras e as coisas obscenas.
243 Ergo haec duo genera sunt eius ridiculi, quod in re positum est; quae sunt
propria perpetuarum facetiarum, in quibus describuntur hominum mores et ita
effinguntur, ut, aut re narrata aliqua, quales sint intellegantur aut, imitatione breuiter
iniecta in aliquo insigni ad inridendum uitio reperiantur.
243 Portanto, esses são os dois gêneros daquele ridículo baseado no assunto, os quais
pertencem às facécias contínuas. Neles os costumes das pessoas são descritos e são de
tal modo representados, que, narrado algum fato, reconhece-se quais sejam eles ou,
depois de feita brevemente uma imitação, ali se encontre algum vício marcante que nos
leva à derrisão.
244 In dicto autem ridiculum est id, quod uerbi aut sententiae quodam acumine
mouetur. Sed ut in illo superiore genere uel narrationis uel imitationis uitanda est
mimorum et ethologorum similitudo, sic in hoc ilis oratori dicacitas magno opere
fugienda est. Qui igitur distinguemus a Crasso, a Catulo, a ceteris familiarem uestrum
Granium aut Vargulam amicum meum? Non mehercule in mentem mihi quidem uenit:
sunt enim dicaces; Granio quidem nemo dicacior. Hoc, opinor, primum, ne,
quotiensquomque potuerit dictum dici, necesse habeamus dicere.
244 Nos ditos, porém, o ridículo é provocado por alguma palavra ou frase
provocante; mas como naquele gênero anterior, de anedota ou imitação, devem ser
evitadas aquelas semelhantes às dos mimos e dos imitadores; assim como neste gênero a
mordacidade típica do bufão também deve ser grandemente evitada pelo orador.
186
Por
que distinguiremos de Crasso, de Cátulo e dos demais, vosso amigo Grânio
187
ou
Várgula,
188
amigo meu? Não, por Hércules, isso nem me passa pela mente. São decerto
186
Quintiliano também assim orienta em De risu, § 29.
187
Quinto Grânio, amigo de Crasso e pregoeiro público. Conhecidíssimo pelo humor ácido, do qual
alguns exemplos são contados por Lucílio, 411 M (cf. Cícero, Ad Familiares IX, 2; Brutus 160 e 172).
188
Personagem desconhecido.
54
mordazes. Ninguém é mais mordaz do que Grânio. Esta é, em primeiro lugar, minha
opinião: não consideremos necessário dizer um dito picante todas as vezes que ele puder
ser dito.
245 Pusillus testis processit. ‘Licet’ inquit ‘rogare?’ Philippus. Tum quaesitor
properans ‘modo breuiter.’ Hic ille: ‘non accusabis: perpusillum rogabo’. Ridicule. Sed
sedebat iudex L. Aurifex breuior ipse quam testis etiam: omnis est conversus risus in
iudicem; uisum est totum scurrile ridiculum. Ergo haec, quae cadere possunt in quos
nolis, quamuis sint bella, sunt tamen ipso genere scurrilia.
245 Uma testemunha muito pequena se aproxima e Filipe pergunta: “Posso
interrogá-lo?”. Então o presidente do tribunal, que tinha pressa, respondeu: “Apenas
brevemente”
189
. Ao que respondeu Filipe: “Não terás do que me repreender: farei uma
pergunta bem pequena”. Ridículo. Mas ali estava sentado como juiz L. Aurifex,
190
que
era menor que a própria testemunha. Com isso o riso se voltou contra ele e este fato
ridículo se assemelhou totalmente ao de um bufão. Portanto são, pelo próprio gênero,
típicos dos bufões todos os gracejos que, embora elegantes, possam cair sobre aqueles
que não queremos.
246 Vt iste, qui se uolt dicacem et mehercule est, Appius sed non numquam in hoc
uitium scurrile delabitur : ‘Cenabo’ inquit ‘apud te,’ huic lusco familiari meo, C.
Sextio, ‘uni enim locum esse uideo.’ Est hoc scurrile, et quod sine causa lacessiuit et
189
No período Pusillus testis processit. ‘Licet’ inquit ‘rogare?’ Philippus. Tum quaesitor properans
‘modo breuiter.’ Hic ille: ‘non accusabis: perpusillum rogabo’, a palavra pusillus refere a imagem da
testemunha de pequena estatura que adentrava ao tribunal para prestar depoimento. A cena fica ridícula
quando Filipo, depois de perguntar se poderia interrogar a testemunha e ter obtido a permissão com a
condição de que fosse breve, afirma que perguntaria bem pouco. Ocorre que perpusillum funciona não
como complemento circunstancial de rogabo, mas também como um complemento verbal (acusativo) na
forma de adjetivo (concordando com o nome subentendido na ambigüidade quaesitum, i.e., pergunta).
Assim, o ridículo se faz ali pela ambigüidade da palavra perpusillum em referência à imagem da
testemunha de baixa estatura. Em português, preferi compensar a tradução utilizando farei uma
perguntapara traduzir rogabo e bem pequenapara perpusillum, para que no texto essa ambigüidade
ficasse mais clara do que se tivésse traduzido o trecho por “perguntarei bem pouco”.
190
L. Aurifex: personagem desconhecido. Não havendo vocábulo correspondente em português nos
dicionários, preferi manter a escrita latina do nome do juiz.
55
tamen id dixit, quod in omnis luscos conueniret. Ea minus, quia meditata putantur esse,
ridentur. Illud egregium Sexti et ex tempore: ‘Manus laua’, inquit, ‘et cena.’
246 Como Ápio
191
, que deseja ser mordaz e, por Hércules, o é. No entanto, ele
escorrega às vezes neste vício próprio do bufão: ‘Jantarei na tua casa disse ele a Caio
Séxtio,
192
um amigo íntimo meu, que é cego de um olho –, pois vejo que lugar para
um.’
193
Esse dito é típico de um bufão, não porque agride sem causa, como também
isso que ele disse seria aplicável a todos aqueles que em de um olho. Essas coisas,
por serem consideradas premeditadas, são menos risíveis. Por outro lado, a resposta de
Sexto foi, ela sim, brilhante e oportuna: ‘Lava as mãos – disse –, e janta.’
194
247 Temporis igitur ratio et ipsius dicacitatis moderatio et temperantia oratorem et
raritas dictorum distinguent a scurra, et quod nos cum causa dicimus, non ut ridiculi
uideamur, sed ut proficiamus aliquid, illi totum diem et sine causa. Quid enim est
Vargula adsecutus, cum eum candidatus A. Sempronius cum M. fratre suo complexus
esset: ‘puer, abige muscas?’ Risum quaesiuit, qui est mea sententia uel tenuissimus
ingeni fructus. Tempus igitur dicendi prudentia et grauitate moderabimur; quarum
utinam artem aliquam haberemus! sed domina natura est.
191
Não se sabe ao certo quem vem a ser este Ápio. Tanto é possível que ele seja o mesmo citado no §
284, o Appius maior, como que se trate de Cláudio Pulcro Ápio, pretor em 89 a.e.c., cônsul em 79 a.e.c. e
pai de Clódio, inimigo de Cícero (cf. Ad Att. 2, 21, 6), ou mesmo Cláudio Ápio, cônsul substituto em 130.
As referências não o precisas e algumas edições chegam a afirmar que a personagem é totalmente
desconhecida.
192
Também não encontramos referências seguras sobre a identidade desta personagem. Ainda que Cícero
se refira em Brutus 130) a um claudicante Caio xtio Calvino, a correspondência não se confirma,
seja porque aquele é manco e este de um olho, seja porque as referências históricas não confirmam
se tratar da mesma pessoa.
193
Algumas edições apontam que os pares dessa ambigüidade são as palavras olho e hóspede antecedidas
pelo artigo indefidinido “um”. Concordamos que há ali uma ambigüidade, mas não que ela se dê entre tais
palavras. Na verdade o par que forma este processo ridículo de gosto extremamente duvidoso é a palavra
hóspede e o fato de o anfitrião ver apenas com um olho. Assim, Ápio foi ambíguo ao dizer que havia
lugar para um como se fosse Caio Séxtio a falar, configurando-se assim um processo em que a
ambigüidade se forma com maior complexidade, entre uma palavra (uni locum) e um assunto (o fato de
Caio Séxtio ser cego de um olho representado por Ápio).
194
Esta expressão, “Lava as mãos”, era usada para conotar que determinada pessoa não era honesta ou
havia praticado algum crime. Como não sabemos ao certo quem era esta personagem Ápio,
desconhecemos também que incorreção haveria em seu caráter passível desta sutil censura asseverada por
Sextio. Talvez não fosse necessário que Sexto mandasse que ele lavasse as mãos, e que só tenha feito isso
para responder com sutileza à provocação de Ápio.
56
247 Portanto a atenção ao tempo, a moderação e temperança no uso da mordacidade
e a raridade dos ditos picantes distinguem o orador do bufão. E o que nós oradores
dizemos com causa, não para visarmos o ridículo, mas para fazer bom proveito de algo,
os bufões fazem, sem motivo, todos os dias. O que, com efeito, obteve Várgula
195
quando disse ao candidato A. Semprônio,
196
que viera com seu irmão Marco e o
abraçara: ‘Moço
197
, espante as moscas’? Buscou o riso, que é, a meu ver, o fruto mais
fútil do engenho. Em suma, temperaremos o tempo de dizer com a prudência e a
discrição. Oxalá disso derivasse alguma arte! Mas, é a natureza a sua mestra.
248 (LXI) Nunc exponamus genera ipsa summatim, quae risum maxime moueant.
Haec igitur sit prima partitio: quod facete dicatur, id alias in re habere, alias in uerbo
facetias; maxime autem homines delectari, si quando risus coniuncte re uerboque
moueatur. Sed hoc mementote, quoscumque locos attingam, unde ridicula ducantur, ex
eisdem locis fere etiam grauis sententias posse duci. Tantum interest, quod grauitas
honestis in rebus seuerisque, iocus in turpiculis et quasi deformibus ponitur; uelut
isdem uerbis et laudare frugi seruum possimus et, si est nequam, iocari. Ridiculum est
illud Neronianum uetus in furaci seruo: ‘solum esse, cui domi nihil sit nec obsignatum
nec occlusum’; quod idem in bono seruo dici solet.
248 Agora exporemos sucintamente os gêneros que provocam grandemente o riso.
198
Portanto, seja esta a primeira partição: aquilo que é dito facetamente encontra-se tanto
nos assuntos quanto nos ditos e, por outro lado, os homens deleitam-se imensamente se
o riso é provocado conjuntamente pelo assunto e pelos ditos.
199
Mas lembrai-vos disto:
195
Não encontramos referências sobre este personagem, que ao que parece é o mesmo do § 244.
196
Aulo Semprônio. Tito Lívio (XLV, 13) faz referência a um dos Semprônios que tinha um cognome
Musca, a cuja gens Aulo e Marco pertenciam. O nome da família é homônimo da palavra latina mosca,
daí Várgula ter mandado o moço (servo) espantar os insetos depois que Aulo Semprônio e o irmão Marco
dele se aproximaram.
197
A saber: o servo, o escravo.
198
Inicia aqui e se estende até o parágrafo 287 a descrição desses gêneros de facécias seguidos de
exemplos. Trata-se da resposta à ultima pergunta (“Quais são os gêneros do riso?”, cf. § 235). V. § 239.
199
Cícero estabelece aqui uma tripartição: as facécias baseadas nos assuntos, aquelas baseadas nas
palavras e, por último, as baseadas tanto nos assuntos quanto nas palavras. Quintiliano faz partição
semelhante nos §§ 248 e 252 (o último relembrando o primeiro) de De risu. No entanto, no § 57 o retor
aponta outra acepção para este terceiro gênero disposto aqui por Cícero, a facécia baseada nos assuntos e
nas palavras (maxime autem homines delectari, si quando risus coniuncte re uerboque moueatur), que
para ele, Cícero, consiste na simultaneidade. Lá, Quintiliano utiliza o verbo traho, -is, -axi, -actum, -ahere
(tirar, puxar, extrair, fazer sair) associado à palavra uis, uis (força) que está no ablativo, denotando a idéia
57
de qualquer consideração que eu trate, de onde o riso pode ser tirado, dessa mesma
consideração podem ser construídos, em geral, os discursos sérios. Interessa saber que a
gravidade se encontra nas coisas sérias e honestas e o gracejo naquilo que é quase feio e
algo deformado; tal como, com as mesmas palavras, podemos louvar um servo que tem
bom procedimento e caçoar dele, se assim o se comporta. aquela estória antiga e
ridícula neroniana
200
sobre um servo ladrão: ‘Ele é o único em casa a quem nada fica
escondido ou trancado.’
201
Isso se costuma dizer também de um servo bom.
249 Sed hoc eisdem etiam uerbis; ex eisdem autem locis nascuntur omnia. Nam quod
Sp. Caruilio grauiter claudicanti ex uolnere ob rem publicam accepto et ob eam
causam uerecundanti in publicum prodire mater dixit:’"quin prodis, mi Spuri?
Quotienscumque gradum facies, totiens tibi tuarum uirtutum ueniat in mentem’,
praeclarum et graue est; quod Caluino Glaucia claudicanti ‘ubi est uetus illud: num
claudicat? At hic clodicat’, Hoc ridiculum est; et utrumque ex eo, quod in claudicatione
animaduerti potuit, est ductum. ‘Quid hoc Naeuio ignauius?’ seuere Scipio; at in male
olentem: ‘Video me a te circumueniri’ subridicule Philippus. At utrumque genus
continet uerbi ad litteram immutati similitudo.
249 Por outro lado, são das mesmas palavras e dos mesmos lugares que nascem
todas as coisas. Vede: por ter recebido um ferimento por causa da república, Spurio
Caruilius
202
manquejava gravemente e por essa causa tinha vergonha de andar em
de algo que é extraído ou até mesmo arrancado de algum lugar. Nesse caso, as palavras extraídas da força
dos assuntos (cf.: Acriora igitur sunt et elegantiora quae trahuntur ex ui rerum).
200
Caio Cláudio Nero, venceu Asdrúbal na batalha de Menauro durante a Segunda Guerra Púnica. Em
207 a.e.c. foi cônsul com Lívio Salinator, de quem fora antigo inimigo.
201
Quintiliano cita a mesma anedota em De risu, § 50. O retor o apresenta como exemplo de ridículo
nascido da multiplicidade e oposição de significados das palavras. Segundo o teor da última parte do
parágrafo, o processo por que surge este exemplo parece ser o mesmo apresentado em De risu.
202
Personagem incerto: Trata-se de Espúrio Carvílio Máximo, cônsul em 293 e 272 a.e.c. com Lúcio
Papírio Cursor ou Espúrio Carvílio Máximo Ruga, cônsul em 234 a.e.c. ou Espúrio Carvílio, liberto de
Carvílio Ruga, que, segundo Plutarco, foi o primeiro a abrir uma escola de gramática em Roma. Demais,
a identificação desta personagem não é consensual, algumas edições apontam como provável o primeiro,
outras o segundo e edições que o indicam quem vem a ser este Spurius. Quanto à tradução, em
português Spurius se escreve Espúrio. Ora, em nosso idioma este nome está ligado ao adjetivo espúrio”
que significa “adulterado”, “ilegítimo”, falso” etc. Por isso, independentemente da origem do nome,
preferi manter a grafia latina da palavra (Spurius) porque no parágrafo em questão o nome carrega um
caráter de virtude (um herói de guerra com marcas de batalhas no corpo), o que não condiz com a grafia
portuguesa, que, se fosse utilizada, poderia descaracterizar o personagem dentro do contexto do texto.
58
público. Sua mãe então perguntou: ‘Por que não sais, Spurio
203
querido? Quantas vezes
deres um passo, tantas vezes tuas virtudes te virão à mente’. Isso é grandioso e sério.
Mas somente aquilo que Gláucia
204
disse a Calvino,
205
que também manquejava, é
ridículo: ‘Onde está aquele velho dito: Acaso claudica? Este clodica.’
206
Tanto um como
outro advém do mesmo mote: o que pode ser considerado no fato de alguém manquejar.
‘O que de mais ignavo do que este Névio?
207
disse Cipião, com severidade;
208
já
Filipe disse de um modo um tanto ridículo a um homem que cheirava mal: ‘Vejo que
estou embodegado por ti.’
209
A semelhança das palavras abrange um e outro gênero, às
vezes mudando-se apenas uma letra.
210
250 Ex ambiguo dicta uel argutissima putantur, sed non semper in ioco, saepe etiam
in grauitate uersantur. Africano illi superiori coronam sibi in conuiuio ad caput
accommodanti, quom ea saepius rumperetur, P. Licinius Varus: ‘Noli mirari, inquit "si
non conuenit; caput enim magnum est’; et laudabile et honestum. At ex eodem genere
est: ‘Caluo satis est, quod dicit parum’. Ne multa: nullum genus est ioci, quo non ex
eodem seuera et grauia sumantur.
203
Idem.
204
Caio Servílio Gláucia, provavelmente tribuno da plebe em 101 a.e.c. e seguidor de Saturnino e Mário.
Segundo Cícero (Brutus, § 224) ele foi “... desde o nascimento (...) o mais ímprobo dentre os homens,
porém entre os principais foi o mais arguto, cálido e ridículo” /longe aut em post natos homines
improbissimus C. Servilius Glaucia, sed peracutus et callidus cum primisque ridiculus/ (cf. Smith, 1867:
v. 2, p. 272).
205
Provavelmente, Caio Séxtio Calvino. V. nota 192.
206
Referência ao registro lingüístico do vulgo: clodica no lugar de claudica (o oem lugar de au”). O
termo possui na acepção política uma conotação de falta de firmeza em opiniões e decisões.
207
Alguns manuscritos trazem ignauius e outro ignaus. Aqui o jogo de palavras é claro: o nome Naeuius
se confunde pelo som com o adjetivo ignauus, potencializando a censura ao comportamento de Névio.
208
Não há referências precisas sobre quem são estes Névio e Cipião. Quanto ao primeiro, trata-se
possivelmente do poeta Gneu Névio (270–201 a.e.c. aprox.), nascido em Cápua e que lutou na Primeira
Guerra Púnica e já conhecido em Roma em 235 a.e.c. ou de Marco Névio, tribuno em 184 a.e.c. Quanto a
Cipião, trata-se provavelmente de Públio Cornélio Cipião Africano (Maior), que derrotou Aníbal em
Zama (202 a.e.c.), pondo fim à Segunda Guerra Púnica. Aulio lio afirma que este último Névio
escreveu alguns versos ridicularizando Públio Cipião (Noites Áticas VIII), o que faz supor, mas
incertamente, que o Névio citado pelo texto seja este último: Marco Névio.
209
O verbo circumueniri embute sons que causam o riso pela paronomásia. Nele se encontram, pelo som,
as palavras circum (preposição ou advérbio: ao redor, em volta, em torno de), hircus (bode, cabra), e
ueniri (entre outras acepções, vir a ser, estar exposto, estar em uma determinada situação). Estes termos
juntos e somados à circunstância do homem que cheirava mal dão a entender que, metaforicamente,
Filipo estava cercado por um bode, que exalava seu cheiro característico. Em minha tradução tentei
solucionar a questão por meio do verbo embodegar, derivado da palavra bodega que tem, entre outras
acepções, o significado de “tornar uma bodega”, ou seja, emporcalhar”, “sujar” e, por extensão, cheirar
mal, embodear. Reconheço se tratar de um arranjo insuficiente, no entanto a escolha reproduz ao menos
uma parte do efeito que aquela paronomásia produziu no original.
210
Ao que parece, a ocorrência do o termo similutudo (complementado por uerbi) está ligada ao
fenômeno da paronomásia, apresentada e anotada no § 256.
59
250 As ditos derivados da ambigüidade
211
são consideradas particularmente muito
argutas, mas sua versatilidade não se sempre nos gracejos, mas sim muitas vezes nos
assuntos graves. O primeiro Africano tentava acomodar, num banquete, uma guirlanda
na cabeça; e como ela se rompesse com freqüência, P. Licínio Varo
212
disse-lhe: ‘Não é
de se admirar se não serve: na verdade a cabeça é grande.’
213
Palavras tão enaltecedoras
quanto honestas. Porém, do mesmo gênero temos esta outra: ‘É suficiente para Calvo,
que fala pouco.’
214
Em suma, nenhum gênero de gracejo que dele não se tomem
coisas graves e severas.
251 Atque hoc etiam animaduertendum est, non esse omnia ridicula faceta. Quid
enim potest esse tam ridiculum quam sannio est? Sed ore, uoltu, [imitandis moribus,]
uoce, denique corpore ridetur ipso. Salsum hunc possum dicere atque ita, non ut eius
modi oratorem esse uelim, sed ut mimum. (LXII) Quare primum genus hoc, quod risum
uel maxume mouet, non est nostrum: morosum, superstitiosum, suspiciosum, gloriosum,
stultum: naturae ridentur ipsae; quas personas agitare solemus, non sustinere.
251 E isto devo assegurar: nem todas as coisas ridículas são facetas. O que, com
efeito, pode ser tão ridículo quanto o farsista?
215
Ora, com a boca, com o rosto, com a
voz e, por fim, com o próprio corpo (a fim de imitar os costumes) ele faz rir. Posso dizer
que ele é picante, mas não na medida em que espero adequada a um orador,
216
e sim
para um comediante. O que neste primeiro gênero, que provoca o riso ao máximo,
211
V. De risu (§§ 47–49 e nn.). Cícero cita o uso da ambigüidade em outros lugares, tais como Orator
(121), De partitone oratoria (108, 138), De inuentione (I, 17, 88; II, 116-119, 142, 147), Topica (96).
212
Públio Lucínio Varo. Edil Curul em 210 a.e.c. e cônsul em 208 a.e.c.
213
As palavras magnum e caput remetem à posição de destaque de Africano (Públio Cornélio Cipião
Africano Maior, que derrotou Aníbal em Zama em 202 a.e.c.), daí o tom elogioso da fala. Talvez hoje
esse não fosse um elogio muito aprópriado, seria até incoveniente e ofensivo.
214
Trata-se provavelmente de Públio Licínio Calvo (IV-III a.e.c.) ou de Gneu Cornélio Cipião Calvo, tio
de Cipião Africano ou de Marco Cecílio Metelo Calvo, cônsul em 142. No trecho anotado, encontramos
ambigüidade em Caluo, que pode vir a ser adjetivo ou cognome de família e em est que pode ser o ver
“ser” ou “comer”; daí teríamos “Calvo come o suficente porque fala pouco” ou, como deixamos no texto,
“É suficente para Calvo, porque ele diz pouco”. Embora nossa escolha requeira um contexto que deva ser
criado por quem (Calvo quer dizer quem tem pouco cabelo, Calvo prefere falar e ouvir pouco porque é
de poucas palavras etc.), mantive aquela tradução porque nesse exercício a riqueza da ambigüidade é
maior do que a definição que na primeira opção. Optando por isso, percebi que obedeceria mais à
intenção do texto, que é indicar a ambigüidade.
215
Tipo de personagem grotesco.
216
Em De officiis (I, 104), Cícero diz que dois são os gêneros de gracejar: um deles é deseducado,
petulante, torpe, obsceno; o outro é elegante, urbano, engenhoso, faceto.
60
não é nosso. O rabugento, o supersticioso, o desconfiado e glorioso e o estulto são por si
só naturalmente risíveis. Nós costumamos censurar essas pessoas, e não representá-las.
252 Alterum genus est in imitatione admodum ridiculum; sed nobis tantum licet
furtim uti, si quando, et cursim; aliter enim minime est liberale. Tertium, oris
deprauatio, non digna nobis. Quartum, obscenitas, non solum non foro digna, sed uix
conuiuio liberorum. Detractis igitur tot rebus ex hoc oratorio loco facetiae reliquae
sunt, quae aut in re, ut ante diuisi, positae uidentur esse aut in uerbo. Nam quod,
quibuscumque uerbis dixeris, facetum tamen est, re continetur; quod mutatis uerbis
salem amittit, in uerbis habet leporem omnem.
252 Outro gênero bastante risível é a imitação. No entanto, podemos utilizá-la
furtivamente ou às vezes de passagem. De outra maneira, não é sequer de bom tom. Um
terceiro gênero, de caretas, não nos é digno. Um quarto, obscenidades, não não é
digno de dizer no foro, mas coisa apenas de festas liberais.
217
Subtraídas portanto tantas
coisas deste lugar oratório, restam os gracejos que podem ser colocados tanto nas coisas
como na palavra, conforme dividi antes; pois o que é faceto, seja qual for a palavra que
disseres, está ainda assim contido no assunto. Aquilo que depois de mudadas as palavras
perde a graça tem, nas palavras, toda a beleza.
253 Ambigua sunt in primis acuta atque in uerbo posita, non in re. Sed non saepe
magnum risum mouent; magis ut belle, ut litterate dicta laudantur: ut in illum Titium,
qui cum studiose pila luderet et idem signa sacra noctu frangere putaretur gregalesque
eum, cum in campum non uenisset, requirerent, excusauit Vespa Terentius, quod eum
‘bracchium fregisse’ diceret; ut illud Africani, quod est apud Lucilium: Quid Decius?
Nuculam an confixum uis facere? inquit;
253 Os ditos ambíguos são, em primeiro lugar, agudos e estão baseados na palavra e
não em um assunto. Contudo eles muitas vezes não provocam grande riso. Eles, na
verdade, são apreciados como ditos expressos com graça e elegância. Um exemplo disso
217
Cf. De officiis I,144.
61
é aquilo dito sobre Tício,
218
que gostava muito de jogar bola e de quem se suspeitava
que quebrasse, à noite, algumas estátuas sagradas. Um dia, como não viesse ao campo,
seus amigos lamentavam sua falta. Então Vespa Terêncio
219
o escusou dizendo que
Tício tinha quebrado um braço.
220
Outro exemplo é o que disse Africano, citado por
Lucílio: ‘Que, Décio? Acaso queres traspassar Núcula?’
254 ut tuus amicus, Crasse, Granius, "non esse sextantis."Et si quaeritis, is, qui
appellatur dicax, hoc genere maxime excellet; sed risum mouent alia maiorem.
Ambiguum per se ipsum probatur id quidem, ut ante dixi, uel maxime; ingeniosi enim
uidetur uim uerbi in aliud, atque ceteri accipiant, posse ducere; sed admirationem
magis quam risum mouet, nisi si quando incidit in aliud quoque genus ridiculi.
254 Como disse o teu amigo Grânio,
221
Crasso: ‘Não vale meia libra.’
222
E se
perguntais, ele, que é chamado mordaz, excede em muito neste gênero. Porém outras
coisas provocam maior riso. Como disse antes, o ambíguo por si mesmo é reconhecido
certamente como o ximo;
223
e parece, com efeito, que é próprio daquele dotado de
engenho poder aplicar a força de uma palavra em um sentido diferente do que as demais
pessoas entendem. Porém, isso provoca mais admiração do que riso, a não ser quando
também incide em outro gênero de ridículo.
255 (LXIII) Quae genera percurram equidem. Sed scitis esse notissimum ridiculi
genus, cum aliud exspectamus, aliud dicitur; hic nobismet ipsis noster error risum
mouet. Quod si admixtum est etiam ambiguum, fit salsius; ut apud Nouium uidetur esse
misericors ille, qui iudicatum duci uidet: percontatur ita: ‘Quanti addictus?’ ‘Mille
nummum.’ Si addidisset tantummodo ‘Ducas licet,’ esset illud genus ridiculi praeter
exspectationem; sed quia addidit: ‘nihil addo, ducas licet,’ addito ambiguo [altero
218
Tribuno da plebe em 99 a.e.c. Talvez este Tício seja aquele comentado por Cícero como um homem
eloqüente e agudo, mas que se mostrava risível por causa dos gestos físicos.
219
Desconhecido.
220
bracchium fregisse: A ambigüidade reside na dúvida se Tício quebrou o próprio braço ou o de uma
estátua.
221
O mesmo do § 244.
222
Moeda do valor da sexta parte de um asse. Seu peso: duas onças, ou seja, entre 48 e 66 gramas.
223
Cf. § 250.
62
genere ridiculi] fuit, ut mihi quidem uidetur, salsissimus. Hoc tum est uenustissimum,
quom in altercatione arripitur ab aduersario uerbum et ex eo, ut a Catulo in Philippum,
in eum ipsum aliquid, qui lacessiuit, infligitur.
255 Gênero este que por certo percorrerei. Mas sabeis de um conhecidíssimo gênero
de ridículo que é dizerem uma coisa, quando esperamos outra. Aqui o nosso próprio
erro faz-nos rir. E se a ele se misturar alguma ambigüidade, o efeito é mais engraçado
ainda; como em Nóvio,
224
onde parece ser misericordioso aquele que vendo ser
conduzido um adjudicado, pergunta: ‘Por quanto foi adjudicado?’ – ‘Por mil sestércios’.
Mas se ali tivesse somente acrescentado ‘Podes levá-lo, se quiseres’ a frase seria do
gênero do riso que surge contra o que se espera. Porém, como ajuntou ‘Nada acrescento,
podes levá-lo’, adicionando assim o ambíguo (outro gênero de riso) foi isso, para mim,
muito mais engraçado.
225
Este tipo de gracejo é muito venusto, quando, numa
altercação, uma palavra é tomada do adversário e com ela, como fez tulo contra
Filipe,
226
inflige-se aquele próprio que atacou primeiro.
256 Sed quom plura sint ambigui genera, de quibus est doctrina quaedam subtilior,
attendere et aucupari uerba oportebit; in quo, ut ea, quae sint frigidiora, uitemus est
enim cauendum, ne arcessitum dictum putetur –, permulta tamen acute dicemus.
Alterum genus est quod habet paruam uerbi immutationem, quod in littera positum
Graeci uocant παρονοµαταν, ut ‘Nobiliorem mobiliorem’ Cato; aut, ut idem, quom
cuidam dixisset: ‘eamus deambulatum’ et ille: ‘quid opus fuit de?’ ‘Immo uero’ inquit
‘quid opus fuit te?’ aut eiusdem responsio illa: ‘Si tu et aduersus et auersus impudicus
es.’
256 No entanto, como muitos são os gêneros de ambigüidade, dos quais existe uma
doutrina muito sutil
227
, convém estar atento e caçar as palavras para censurar; /processo/
em que diremos muitas coisas de forma aguda, ainda que evitemos aquelas palavras
224
Autor das atelanas gênero teatral originário da Campânia, de caráter cômico e que se aproxima da
farsa contemporâneo da época de De oratore (cf. Bardon, 1956: p. 164). Chegaram até nós quarenta e
quatro títulos e fragmentos. O trecho em referência se situa no 115 R(3).
225
A saber, nihil addo’ uerborum ou pecuniae. Provavelmente o personagem quis dizer: “Está muito
caro. Leve-o tu.”
226
Cf. § 220.
227
V. Livro II, 111.
63
mais frias (com efeito, é preciso tomar cuidado para que não se pense que a palavra es
fora do propósito). Outro gênero é aquele que possui uma pequena alteração das
palavras, variando, às vezes, uma letra, e que os gregos chamam de παρονοµατα
(paronomásia);
228
como faz Catão, que chama [Fúlvio] Nobilior de Mobilior;
229
ou,
quando o próprio Catão, como dissesse a alguém ‘Vamos passear’ e esse alguém lhe
respondesse ‘Que falta isso me faz?’ retorquiu: ‘É mesmo. Que falta tu me fazes?’
230
Ou
aquela resposta do mesmo: ‘Se estás atrás ou na frente, és um sem vergonha do mesmo
jeito’.
257 Etiam interpretatio nominis habet acumen, quom ad ridiculum conuertas quam
ob rem ita quis uocetur; ut ego nuper: Nummium diuisorem, ut Neoptolemum ad
Troiam, sic illum in campo Martio nomen inuenisse. (LXIV) atque haec omnia uerbo
continentur. Saepe etiam uersus facete interponitur, uel ut est uel paululum immutatus,
aut aliqua pars uersus; ut Stati a Scauro stomachante ex quo sunt non nulli qui tuam
legem de ciuitate natam, Crasse, dicant –: st , tacete, quid hoc clamoris? quibus nec
mater nec pater, tanta confidentia? Auferte istam enim superbiam. Nam in Caelio sane
etiam ad causam utile fuit tuum illud, Antoni, quom ille a se pecuniam profectam
diceret testis et haberet filium delicatiorem, abeunte iam illo, sentin’ senem esse tactum
trigintá minis?
257 A interpretação do nome também possui a sua agudeza, quando convertes em
riso o porquê se chama alguém daquele jeito; como eu mesmo disse recentemente a
respeito de Númio, o comprador de votos, que, como Neoptólemo próximo à Tróia,
achou seu nome no campo de Marte.
231
Todas essas coisas estão sustentadas na palavra.
228
Quintiliano não somente acolhe este gênero, como também apresenta no § 55 de De risu uma
interessante e divertida enumeração de ditos picantes disparados contra Verres (v. De risu, §§ 53–55).
229
Provavelmente Marco Fúlvio Nobilior, cônsul em 189 a.e.c. Supostamente, Catão censura a demasiada
afeição de Fúlvio Nobilior à cultura grega (Cícero, Brutus. 79) e em sua demasiada liberalidade de honras
militares (cf. Aulo Gélio V, 6, 24; Bardon, 1956: pp. 32–33).
230
Se no original a troca de letras transpôs a palavra de complemento circunstancial para verbal, o mesmo
não pude fazer em português. Por isso tentei dirimir a perda, transpondo os pronomes “isso” e “tu”
mantendo a mesma função sintática.
231
Semelhantemente a Neoptólemo, filho de Aquiles, que recebeu este nome por ter participado da guerra
de Tróia quando era muito jovem, Númio angariou esta alcunha porque era um diuisor, um alborcador de
votos (i.e., alguém que pagava os eleitores para que votassem em determinado candidato) e seu nome
coincidia com a palavra latina para dinheiro, numus.
64
Muitas vezes também um verso é interposto gracejosamente
232
(ora como o é, ora com
uma pequena mudança) ou alguma parte de um verso, como aquele de Estácio
233
,
pronunciado por Escauro
234
, que estava indignado; donde, dizem alguns, Crasso, nasceu
tua lei sobre a cidade:
235
‘Silêncio, calem-se, por que esta gritaria?’ ‘Naqueles que não
tem pai nem mãe tanta arrogância?’ ‘Deixai essa soberba de
lado.’
236
Ora, sobre Célio,
237
perfeitamente útil à causa foi aquele verso teu, Antônio (quando
aquela testemunha dissera que provera o dinheiro do próprio bolso e tinha um filho
muito libertino); tendo ele já saído, disseste:
‘Não te ressentes de ter tomado trinta minas de um velho?’
238
258 In hoc genus coniciuntur etiam prouerbia; ut illud Scipionis, cum Asellus omnis
se prouincias stipendia merentem peragrasse gloriaretur: ‘agas asellum’ et cetera.
Quare ea quoque, quoniam mutatis uerbis non possunt retinere eandem uenustatem,
non in re, sed in uerbis posita ducantur.
258 A este gênero ajuntam-se também os provérbios, como fez Cipião em resposta a
Aselo que se gloriava merecedor de estipêndios porque percorrera todas as províncias:
‘conduze um asninho...’
239
e as demais coisas’. Como essa aquelas que também não
232
Gênero também prescrito por Quintiliano. Os exemplos porém são diferentes (cf. De risu, §§ 96, 97).
233
Sobre Estácio v. n. 184.
234
Marco Emílio Escauro (v. §§ 265 e 280), de família decadente teve que ascender socialmente como
homo nouus (i.e.: o primeiro de sua família a conseguir uma das grandes magistraturas de Roma). Com o
apoio de Metelo foi cônsul em 115 e depois, a partir de 102, se tornou princeps senatus.
235
Trata-se da Lex Licinia Mucia de ciuibus rediguindis de 95 a.e.c., proposta por Crasso e Quinto Múcio
Cévola Pontífice durante seu consulado conjunto.
236
Estácio, 245 sg. R³.
237
Trata-se provavelmente de Caio Célio Caldo, tribuno da plebe em 107 a.e.c. e cônsul em 94.
238
Na comédia o verso diz respeito ao filho que tira dinheiro do pai para gastar em prazeres (cf. Com. inc.
fab. 45 R³.). No contexto do parágrafo, o verso faz alusão ao dinheiro utilizado em corrupção eleitoral.
239
Tibério Cláudio Aselo, da ordem eqüestre, foi privado de status social e reduzido à condição de um
aerarius (Cidadão privado do direito de votar e do serviço militar no exterior. Era a mais baixa classe de
cidadãos cujo encargo era pagar uma pequena taxa aera) por Cipião Africano. Ao reclamar Aselo da
censura (ocorrida em 142 a.e.c.) tentando fazer valer seus serviços militares, Cipião teria dito um destes
65
são baseadas nos assuntos, mas sim nos ditos (posto que não podem reter a mesma
venustidade se forem mudadas as palavras).
259 Est etiam in uerbo positum non insulsum genus ex eo, quom ad uerbum, non ad
sententiam rem accipere uideare; ex quo uno genere totus est Tutor, mimus uetus,
oppido ridiculus. Sed abeo a mimis; tantum huius genus ridiculi insigni aliqua et nota
re notari uolo. Est autem ex hoc genere illud, quod tu, Crasse, nuper ei, qui te rogasset
num tibi molestus esset futurus, si ad te bene ante lucem uenisset: ‘tu uero’ inquisti
‘molestus non eris.’ ‘Iubebis igitur te’ inquit ‘suscitari?’ Et tu ‘certe negaram te
molestum futurum.’
259 Há também um gênero engraçado baseado na palavra, que surge quando parece
que entendemos algo pela palavra e não pelo seu sentido.
240
Um exemplo cabal deste
gênero é O Tutor,
241
um antigo mimo,
242
extremamente ridículo. Mas, deixo aqui os
mimos. Quero somente que gêneros deste tipo de ridículo sejam notados como algo
insigne e conhecido. Por outro lado um exemplo deste gênero em que tu, Crasso,
disseste pouco àquele que perguntou se por acaso te incomodaria se ele viesse a ti
antes do amanhecer: ‘Tu, em verdade, não serás importuno’. ‘Darás ordem, então, para
que te levantem? disse aquele. E tu: ‘Certamente eu havia negado que me
incomodarias’.
260 Ex eodem hoc uetus illud [est], quod aiunt Maluginensem illum Scipionem,
quom ex centuria sua renuntiaret Acidinum consulem praecoque dixisset: ‘dic de L.
Manlio. – ‘uirum bonum’ inquit ‘egregiumque ciuem esse arbitror.’ Ridicule etiam illud
dois provérbios: Agas asellum, si bouem non agere queas, “Conduze um asninho, se o podes conduzir
um boi” ou Agas asellum, cursum non docebitur Conduze um asninho, o aprenderás a correr”. A
mensagem do primeiro provérbio visa instruir o interlocutor a se contentar com aquilo que tem, a do
segundo quer dizer no contexto entre Cipião e Aselo que aqueles préstimos militares de Aselo eram
considerados muito poucos para que ele fosse considerado um bom soldado. Incrementa mais ainda o
ridículo, o fato da palavra asellum ser o diminutivo de asinus, o que a entender uma censura ou
depreciação por parte de Cipião.
240
A saber: literalidade ou literalismo.
241
Mimo desconhecido.
242
Os mimos tiveram sua origem no helenismo e consistiam originalmente em representações
extemporâneas ou imitações ridículas de aspectos da vida comum em algumas festas. Mais tarde se
transformaram em farsa dramaticamente construída (cf. Curtius, 1996: p. 509; Smith, 1870, pp. 763–764).
66
L. [Porcius] Nasica censori Catoni; cum ille ‘ex tui animi sententia tu uxorem habes?’
‘Non hercule’ inquit ‘ex mei animi sententia.’ Haec aut frigida sunt aut tum salsa,
quom aliud est exspectatum. Natura enim nos, ut ante dixi, noster delectat error; ex
quo, quom quasi decepti sumus exspectatione, ridemus.
260 Oriundo do mesmo gênero é aquele antigo dito que contam sobre o que disse
Cipião Maluginense
243
quando, como representante de sua centúria, anunciou
Acidino
244
como cônsul. E depois que o arauto lhe perguntou ‘O que dizes de L.
Mânlio?’ ele respondeu: ‘Considero-o um bom homem e um cidadão notável’. Há ainda
aquela resposta de L. Pórcio Nasica
245
ao censor Catão, que lhe perguntara ‘Pensas, em
teu íntimo ter uma esposa?’: ‘Por Hércules, não pelo que sinto em meu íntimo’
246
, disse
ele. Essas frases são frias ou engraçadas quando outra coisa é esperada. Nosso erro,
como disse antes, nos deleita pela sua natureza. Quando somos frustrados quanto à
expectativa, rimos.
261 In uerbis etiam illa sunt, quae aut ex immutata oratione ducuntur aut ex unius
uerbi translatione aut ex inuersione uerborum. Ex immutatione, ut olim Rusca, quom
legem ferret annalem, dissuasor M. Seruilius: ‘Dic mihi,’ inquit ‘M. Pinari: num, si
contra te dixero, mihi male dicturus es, ut ceteris fecisti?’ ‘Vt sementem feceris, ita
metes’, inquit.
261 Nas palavras se encontram também aqueles ditos que derivam de um discurso
modificado (alegoria) ou da translação de uma palavra (metáfora) ou da inversão de
palavras (ironia). De alegoria
247
, temos o exemplo anterior de Rusca quando propunha a
243
Marco Cornélio Cipião Maluginense, pretor em 176 a.e.c.
244
Lúcio Mânlio Acidino Fulviano, filho de Quinto Fúlcio Flaco e filho adotivo de Lúcio Mânlio
Acidino. Foi pretor em 188 a.e.c. e cônsul com seu irmão Quinto Fúlvio Flaco em 179 a.e.c.
245
Desconhecido.
246
V. Quintiliano, VIII, 5, 1.
247
V. De risu 69 e nn. Cícero define alegoria em Orator (94) como a metáfora continuada no discurso (v.
§ 262 e nn. e De risu 68 e nn.). Como exemplo de alegoria, Cícero traz uma a resposta de Pinário Rusca a
Marco Servílio. Este fez àquele a seguinte pergunta: “Dize-me, Marco Pinário, se eu disse algo contra ti,
falarás mal de mim como fizeste com os demais?”. A resposta, alegórica, foi a seguinte: “Conforme
semeares, colherás.” No exemplo, a pergunta lançada por Servílio contém algo de risível, se
pressupusermos no trecho ut ceteris fecistia censura a um vício nos moldes do que o próprio Cícero
(De oratore, II, 236) e Quintiliano (VI, 3, 8) estabelecem. E, muito embora possa ser vista nessas palavras
uma adequação à noção contida no parágrafo 8 de De risu, que chama de urbanitas o apontar nos outros
os seus defeitos (Há uma referência indireta sobre a mesma idéia no parágrafo 289 de De ridiculis), sua
67
Lex Annalis
248
e M. Servílio, que tentava dissiduadi-lo,
249
disse: ‘Dize-me Marco
Pinário, se eu falar contra ti, falarás mal de mim como fizeste com os demais? E Rusca
respondeu: ‘Conforme semeares, colherás.’
250
262 Ex translatione autem, ut quom Scipio ille maior, Corinthiis statuam
pollicentibus eo loco ubi aliorum essent imperatorum, ‘turmalis’ dixit ‘displicere’.
Inuertuntur autem uerba, ut Crassus apud M. Perpernam iudicem pro Aculeone quom
diceret, aderat contra Aculeonem Gratidiano L. Aelius Lamia, deformis, ut nostis; qui
quom interpellaret odiose, ‘audiamus’ inquit ‘pulchellum puerum’ [Crassus]. Quom
esset adrisum: ‘non potui mihi’ inquit Lamia ‘formam ipse fingere; ingenium potui.
Tum hic: ‘audiamus’ inquit ‘disertum’. Multo etiam adrisum est vehementius. Sunt
etiam illa uenusta, ut in grauibus sententiis, sic in facetiis dixi enim dudum rationem
esse aliam ioci, aliam seueritatis; grauium autem et iocorum unam esse materiam –,
262 De metáfora
251
temos o que Cipião,
252
o velho, disse aos Coríntios depois que
estes lhe prometeram uma estátua no mesmo lugar onde estavam outros generais:
colocação na mensagem em forma de indagação parece justamente enfraquecer o suposto caráter dessas
palavras em prol da força que reside quando uma provocação (no caso, por meio de uma pergunta)
permite um contra-ataque (no caso, por meio de uma resposta, cf. De oratore, II, 230). De fato, tendo isso
em mente e aquilo que se disse a respeito do processo por que se constitui a alegoria, vê-se que no
processo do risível alegórico Marco Pinário absorve, levando-os para o campo do verídico, dois
pensamentos que podem se completar ou excluir um ao outro: “Rusca falava mal de quem fala algo contra
ele” ou Rusca possui um defeito que é falar mal de qualquer pessoa que lhe fala algo em contrário.”
Porém, ao transpor esse pensamento para o nível semântico de sua resposta (firmada no fato real do
exercício camponês de plantar e semear), demarcando um processo de causa e conseqüência, Rusca não
aniquilou o efeito risível já enfraquecido, como expôs seu interlocutor ao ridículo, caracterizando-o
como alguém que precisa ser lembrado das conseqüências de uma ação, e provocando, por conseguinte, o
riso, que, nesse exemplo, se deu não somente pela referida exposição do interlocutor de M. Pinário, mas
também pela transferência imaginativa feita pelos ouvintes, que transferiu não apenas a primeira carga
risível da primeira mensagem para a segunda, mas ainda uniu a alegoria da resposta a essa transferência,
proporcionando outra transferência de retorno, ut sementem feceris, ita metes”, que redundou, por sua
vez, no riso.
248
Lei que propunha uma idade mínima para o exercício da magistratura em Roma.
249
Toda proposta de lei gera um discurso deliberativo. Na deliberação atuam o defensor da lei e o
dissuasor, contrário à sua promulgação.
250
Não encontramos referências seguras sobre Marco Pinário Rusca e Servílio.
251
Cícero define a metáfora como a comparação breve em uma palavra (v. De oratore, III, 157; v.
Orator §§ 81, 92-94 e De risu § 61 e nn.). Quanto ao exemplo, a palavra técnica é translatio, e ela
enuncia a resposta dada por Cipião, o velho, aos Coríntios que lhe haviam prometido construir uma
estátua junto àquelas dos outros generais:
turmalis displicere
A comparação e, por conseguinte, a metáfora se encontra na palavra turmalis, cujo primeiro significado,
esquadrão ou pelotão, transferiu-se, numa comparação rápida (breve), para a palavra statuam, presente na
68
‘Pelotões não me agradam’. De ironia
253
temos o exemplo de Crasso, que diante do juiz
M. Perperna
254
fazia a defesa de Aculeão e, contra este, assistia Gratidiano
255
o
mensagem anterior, dos Coríntios. O processo metafórico se comprova aqui porque a palavra-exemplo
obedece aos critérios que configuram uma metáfora. De início, observamos que, em grau, verifica-se a
total semelhança entre o termo substituinte turmalis e o substituído statuam, que se porque a palavra
pelotão ou esquadrão se adequa ao conjunto semântico que se obtém da construção ubi aliorum essent
imperatorum. Mais, a transposição da palavra turmalis para o lugar de statuam foi tão bem sucedida que
alterou o conjunto restante no enunciado. Havia ali outras estátuas onde se queria construir uma para
Cipião, e como os agrupamentos militares não lhe agradavam, não queria uma sua onde existia, para
ele, um em forma de estátuas. Daí, talvez, venha o riso: dessa desaprovação de Cipião. Quanto ao tipo de
transposição, fica bem claro que se trata da substituição de um termo inanimado por outro animado, não
obstante possa se dizer que os pelotões reais pareçam estátuas, e as estátuas dos imperadores pareçam
pelotões de verdade.
252
Cipião, o velho.
253
Quintiliano define a ironia como a expressão de algo através de uma palavra que significa o seu contrário
(VIII, 6, 54; VI, 2, 15). Essa primeira e principal acepção de ironia é confirmada no livro IX (2, 46) da
Institutio oratoria. No primeiro caso ela é enquadrada entre as figuras trópicas e no segundo entre as figuras
de pensamento. Como tropo a ironia obedece, além dessa primeira acepção, àquela em que uma figura se
torna em tropo. Como figura, além de sua acepção primeira, ela se desenvolve em simulatio e dissimulatio,
Quintiliano aponta que ela pode ser usada para o descrédito do adversário (IX, 3, 29). Em De ridiculis § 262,
precisamente após o exemplo de metáfora, Cícero apresenta o primeiro de alguns exemplos de facécia irônica
ali contidos. A palavra técnica no exemplo em que Crasso usa de ironia contra o advogado L. Élio Lâmia é a
perífrase inuertuntur uerba, cujo termo inuersione, presente no parágrafo anterior (§ 261), relacionado com a
palavra uerba, tem a mesma acepção do termo contraria do 4parágrafo do capítulo do livro VIII e do
conteúdo da frase in utroque enim contrarium ei quod dicitur intellegendum est (em especial, as palavras
contrarium e intellegendum). Como se vê, termos diferentes expressam a mesma essência: a ironia se compõe
de uma palavra ou frase lançada cujo significado se entende pelo seu contrário. Seu uso está ligado ao elogio
ou ao vitupério (VIII, 6, 55) e ela está ligada à uoluntas do orador que, imbuído de angariar o favor dos
ouvintes à sua causa, a utiliza como um instrumento a fim de desfazer a teia de artimanhas do adversário,
expondo-o à vergonha ou à reprovação (cf. Lausberg, 1976: vol. 2, p. 85; Institutio oratoria VI, 1–2). E este é
o caso da historieta em que Crasso, numa causa em que ele defendia Aculeão contra Gratidiano, e era
insistentemente interrompido, diante do juiz M. Perperna, pelo advogado L. Élio Lâmia, homem, como se
dizia, de aparência desfavorável e que defendia Gratidiano. Ali, Crasso, como que num momento em que
perdeu a paciência, acabou por dizer Audiamus pulchellum puerum” (“Ouçamos o menininho lindo”)
apontando (mesmo que beirando a deselegância), através do contrário, para a falta de beleza de Lâmia. Nos
elementos da frase observamos que a insistência de Lâmia provocou em Crasso a impaciência expressa no
verbo audiamos e que o elemento inico consta na perífrase pulchellum puerum, cujo significado é
totalmente oposto ao que se via nas feições do advogado. Ocorre, porém, que o processo ridículo não parou
ali. Lâmia, percebendo a ironia, tentou desfazê-la ao dizer que não pudera forjar em si a beleza, mas o
ingenium; ao que Crasso prontamente respondeu Audiamus disertum(“Ouçamos o eloqüente”), em que o
termo irônico disertum, passa agora a significar o contrário do que quer dizer em seu sentido direto: Lâmia
não era o eloqüente como pensava (uma dúvida persiste: foi por Lâmia não ser considerado um orador
eloqüente ou foi o processo irônico da primeira fala de Crasso que provocou um maior riso em sua última
fala). O tipo de ironia aqui exposto coincide com a sua espécie mais comum, ou seja, aquela que atende o
quesito primeiro de expressar através do contrário aquilo que se quer realmente dizer. o se nas duas
falas irônicas de Crasso uma ironia mais elaborada, como seria o caso de uma dissimulatio ou simulatio, isso
nos parece claro. Porém, uma vida se estabelece quando se quer definir se nesse exemplo a ironia se
configura como um tropo ou uma figura de pensamento. Quintiliano inclui a ironia não somente entre os
tropos, como também entre as figuras de pensamento (cf. IX, 1, 3, 7). Entre os tropos ele não apenas a define
como o contrário daquilo que é mostrado (In eo uero genere quo contraria ostenduntur ironia est illusionem
uocant), como também indica a palavra latina para ironia: illusio. Ali, Quintiliano aponta ainda uma das
utilidades da ironia que se desenvolve a partir de sua configuração (ibid. VIII, 6, 55):
Et laudis autem simulatione detrahere et uituperationis laudare concessum est
Ela permite depreciar fingindo elogiar e elogiar fingindo depreciar
69
advogado L. Élio Lâmia,
256
que era feio, como sabeis. E como Élio o interpelasse de
modo insuportável, Crasso disse: ‘Ouçamos este menininho lindo!’
257
Com as risadas,
Lâmia disse: ‘Não pude forjar em mim a beleza, mas sim o engenho’. Então Crasso
completou: ‘Ouçamos então o eloqüente’, e muito mais veemente foi o riso.
258
Esses
acima são também engraçados tanto nas frases graves quanto nas facetas (disse
E diz que com a irrisão podemos dizer aquilo pelo significado do que estamos dizendo:
Aliquando cum inrisu quodam contraria dicuntur iis quae intellegi uolunt (cf. ibid. VIII, 6, 56)
Observamos então a presença de três definições de ironia mais duas de utilidade para este tropo apenas no
capítulo onde Quintiliano trata do assunto. Lembrando que nossa matéria de estudo é o riso, poderíamos dizer
que se encontra neste capítulo não a definição de ironia, mas ainda a recomendação para o seu uso na
forma do riso. Porém, Quintiliano a coloca também entre as figuras de pensamento, sobre as quais discorre
no capítulo IX da Institutio oratoria. Além de recomendá-la ali, como se disse acima, para o descrédito do
adversário e, por conseguinte, para o crédito do orador que a utiliza (ibid. IX, 3, 29), o retor traça uma
espécie de perfil desses dois tipos de ironia entre os parágrafos 44 e 46 do capítulo 4 do livro IX. No
parágrafo 44, depois de dizer que a palavra dissimulatio não expressa com a devida extensão a força de figura
do termo ironia, Quintiliano, tomando o cuidado de corroborar a definição de ironia que consiste em dizer
pelo contrário, estabelece quais seriam as diferenças entre a ironia trópica e a de figura. A primeira, para ele,
possui um caráter mais breve, conciso ou mesmo lacônico que a segunda. A ironia trópica se estabelece pela
palavra enquanto a de figura se estende para o campo do pensamento (do sentido das palavras) e até do tom
(o sentido pelo som) da voz (v. Haury, 1955: p.23). Os exemplos trazidos por Quintiliano ilustram muito bem
o que são esses dois tipos de ironia: como tropo, ele traz uma passagem das Catilinárias a quo repudiatus as
sodalem tuum, uirum optimum, Metellum demigrasti, onde a ironia está nas palavras uirum optimum; de
figura, ele exemplifica a ironia quotidiana e visceral de Sócrates, que, sapientíssimo, se apresentava como um
ignorante e admirador dos outros. Assim, para pensarmos o exemplo de Crasso (precisamente as palavras
pulchellum puerum e disertum) como um tropo, precisaríamos visualizar não somente as duas ironias como
dois processos isolados, e daí simplificados, como também entender que tanto pulchellum puerum quanto
disertum, se aproximam do exemplo das Catilinárias. E para dela pensarmos como ironia de figura,
deveríamos estender o processo irônico como que salpicado de alegoria, porquanto uma metáfora estendida
(alegoria), mia era muito feio, se estenderia à sua impaciência e impertinência associando os dois uitia em
um, apenas passível de censura. Feita essa extensão, o processo se completaria (ou se desenvolveria) na
segunda ironia, onde a palavra disertum concentraria a função de ironia, porque diria pelo contrário (Lâmia
não era eloqüente coisa alguma) e de censura, porque aqueles uitia passaram a indicar Lâmia como um
homem nada eloqüente.
254
Marco Perpena. Foi pretor em 95 a.e.c., cônsul em 92 com Caio Cláudio Pulcro e censor em 86 com
Lúcio Marco Filippo.
255
Marco Mário Gratidiano, filho de Marco Gratidio de Arpinoe e da irmã de Caio Mário. Foi adotado
por Marco Mário. Uma irmã de seu pai casou-se com o avô de Cícero. Foi tribuno da plebe em 87 a.e.c. e
duas vezes pretor, em 85 e 82 a.e.c., quando foi morto por ordem de Sila (cf. Mommsen, Theodor,
Historia de Roma (Tradução de A. García Moreno) Madrid: Aguilar, Tomo II, pp. 395-396, 460 e Cícero,
Brut. 169).
256
Não referências sobre este L. Élio Lâmia. Sobre o humor encontrado no binômio aparência-caráter,
v. Steel, 2006: p. 50 e Corbeil, A. Controlling Laughter: Political Humor in the Late Roman Republic.
Princeton: Princetotn University Press, 1996, pp. 14-56.
257
audiamus (...) pulchellum puerum: literalmente “ouçamos este menino lindinho”. Embora esta
tradução funcione a contento, preferi passar o diminutivo para o substantivo porque dessa forma o tom
pejorativo fica mais evidente, mais claro. Certamente numa construção substantivo/adjetivo a atenção se
volta não somente para o substantivo, como também, em alguns casos, sobre o primeiro elemento da
construção. Coincidência ou não, é o que ocorre no latim e é o que ocorre em português; daí eu ter
preferido, na tradução, acentuar a pejoração sobre o substantivo “menino” (menininho).
258
Aristóteles (Retórica, 1419b, 10) afirma que a um homem livre mais aprópriada é a ironia do que a
bufonaria, porquanto o homem irônico procura o próprio riso enquanto o bufão o dos outros (v. também
1127b, 24).
70
algum tempo, que um é o método do gracejo e o outro da severidade e que porém a
mesma matéria faz parte dos gracejos e das coisas sérias).
263 ornant igitur in primis orationem uerba relata contrarie, quod idem genus saepe
est etiam facetum, ut Seruius ille Galba, quom iudices L. Scribonio tribuno plebis ferret
familiaris suos et dixisset Libo: ‘Quando tandem, Galba, de triclinio tuo exibis?’
‘Quom tu’ inquit ‘de cubiculo alieno’. A quo genere ne illud quidem plurimum distat,
quod Glaucia Metello: ‘Villam in Tiburti habes, cortem in Palatio.’
263 Portanto, as palavras retorquidas em contrário constituem um dos principais
ornamentos do discurso que é ele mesmo um gênero muitas vezes faceto também –,
como aquilo que disse o famoso Sérvio Galba
259
quando propôs como juízes alguns
amigos seus
260
; e como dissesse Libo
261
, tribuno da plebe, ‘Quando sairás, enfim, Galba,
do teu triclínio?’
262
ele respondeu: ‘Quando tu saíres do cubículo alheio’. Não se
distancia muito deste gênero aquilo que disse Gláucia
263
a Metelo:
264
‘Tens uma vila em
Tiburto e um curral no Palatino’.
264 (LXVI) Ac uerborum quidem genera quae essent faceta dixisse me puto. Rerum
plura sunt, eaque magis, ut dixi ante, ridentur; in quibus est narratio, res sane difficilis.
Exprimenda enim sunt et ponenda ante oculos ea, quae uideantur et ueri similia, quod
est proprium narrationis, et quae sint, quod ridiculi proprium est, subturpia; cuius
exemplum, ut breuissimum, sit sane illud quod ante posui, Crassi de Memmio. Et ad hoc
genus ascribamus etiam narrationes apologorum.
259
Sérvio Sulpício Galba. Considerado homem de grande oratória, foi pretor em 151 a.e.c. e cônsul em
144 a.e.c. Quando era propretor na Espanha (em 150) combateu os Lusitanos com brutalidade e
deslealdade, chegando a massacrar sem piedade emissários de paz enviados pelos Lusitanos. Foi por isso
acusado por Lúcio Escribônio Libão, mas a denúncia resultou inútil.
260
Era praxe que a parte acusada propusesse alguns juízes da causa e a parte adversária recusasse o que
lhe aprouvesse. Ao que parece procedimento semelhante ainda hoje na escolha de jurados em crimes
contra a vida (talvez ambas partes tenham simultaneamente o direito de recusar quais e quais possíveis
jurados poderão compor o júri e quais serão dispensados).
261
Lúcio Escribônio Libão, tribuno da plebe em 149 a.e.c.
262
Sala ou mesa de jantar para três pessoas.
263
Caio Servílio
Gláucia (v. § 249).
264
Quinto Cecílio Metelo Numídio, um dos mais distintos membros de sua família, foi cônsul em 109
a.e.c. e esteve no comando na guerra contra Iugurta, obtendo nela grande sucesso, em parte graças aos
seus emissários C. Mário e Públio Rutílio Rufo. (v. Smith, 1867: vol. 2, p. 1059).
71
264 Demais, julgo ter falado sobre os gêneros de facécias baseados nas palavras.
Aqueles baseados nos assuntos são mais numerosos e, como disse antes, fazem rir mais,
entre os quais está a anedota; coisa certamente difícil. De fato, elas devem exprimir e
apresentar coisas que sejam verossímeis, o que é próprio da anedota, e que sejam um
tanto torpes, o que é próprio do ridículo, cujo exemplo (ainda que brevíssimo) é aquele
de Crasso sobre mio, que expus anteriormente.
265
A este gênero adicionamos as
narrativas em forma de fábulas.
265 Trahitur etiam aliquid ex historia; ut, quom Sex. Titius se Cassandram esse
diceret: ‘Multos,’ inquit Antonius, ‘possum tuos Aiaces Oileos nominare.’ Est etiam ex
similitudine, quae aut conlationem habet aut tamquam imaginem. Conlationem: ut ille
Gallus olim testis in Pisonem, cum innumerabilem Magio praefecto pecuniam dixisset
datam idque Scaurus tenuitate Magi redargueret: ‘Erras, inquit ‘Scaure; ego enim
Magium non conseruasse dico, sed tamquam nudus nuces legeret, in uentre abstulisse’;
ut illud M. Cicero senex, [huius] uiri optimi, nostri familiaris, pater: ‘nostros homines
similis esse Syrorum uenalium; ut quisque optime Graece sciret, ita esse nequissimum.’
265 Também se extrai algo da História.
266
Por exemplo: Sexto Tício dizia-se ele
próprio Cassandra,
267
ao que lhe respondeu Antônio: ‘Sim. Posso até nominar muitos
dos seus Ajaxes Oileus.’
268
Há, ainda, o que se extrair da similitude, que tem ou uma
comparação ou algo como uma analogia de imagens. Como exemplo de comparação,
265
Cf. §240.
266
Gênero acolhido por Quintiliano (v. De risu, § 98).
267
Cassandra. Foi a mais bela entre as filhas de Príamo e Hécuba. Em Agamêmnon de Ésquilo, Apolo
promete iniciá-la nas artes adivinhatórias desde que ela lhe concedesse os prazeres do amor. Cassandra
não cumpre sua promessa, e então Apolo a condena à incredibilidade dos homens (Há outro mito que diz
que Apollo tentara surpreender Cassandra em seu templo em Timbre, e como ela resistisse, ele lhe
aplicou essa mesma condenção. – Cf. Hygin. Fab. 93), o que aconteceu durante a guerra de Tróia, em que
Cassandra, predizendo as catástrofes que sobreviriam sobre os príamos, não era ouvida por nenhum de
seus habitantes.
268
Ajax, filho de Oileu, rei de Locros. Depois da tomada de Tróia, Cassandra fugiu para o templo de
Atena e ali se agarrou à estatuta da deusa. Então Ajax, considerado por alguns não somente um herói de
guerra, mas também um homem brutal, sob violência a levou para longe dali, onde foi entregue depois
como presa de guerra a Agamêmnon. Alguns outros dizem que Ajax estuprou Cassandra ali mesmo no
templo de Atena (v. Smith, 1867: vol. 1, p. 621). No parágrafo anotado, Antônio ao afirmar conhecer
esses “Ajaxes Oileus” se refere ao teor das práticas homossexuais de Tício, que ao dizer de si mesmo ser
uma Cassandra reclama que suas previsões não são ouvidas por ninguém.
72
temos o que Galo
269
disse quando, algum tempo, testemunhou contra Pisão
270
dizendo que muito dinheiro havia sido dado ao prefeito gio. E como Escauro
redargüisse dizendo da pobreza de Mágio,
271
respondeu-lhe: ‘Enganas-te, Escauro
272
, eu
não disse que ele tenha guardado seu dinheiro; mas sim que ele o tem como o homem
nu que reconhece uma noz estando com a barriga cheia delas’. Outro exemplo de
comparação é o que disse Marco Cícero, o velho, pai deste nosso amigo e um homem
excelente: ‘Nossos homens são semelhantes aos sírios venais: quanto melhor sabe
grego, tanto pior é.’
273
266 Valde autem ridentur etiam imagines, quae fere in deformitatem aut in aliquod
uitium corporis ducuntur cum similitudine turpioris; ut meum illud in Heluium
Manciam: ‘iam ostendam cuius modi sis’; cum ille: ‘Ostende, quaeso’, ‘demonstraui
digito pictum Gallum in Marian scuto Cimbrico sub Nouis, distortum eiecta lingua,
buccis fluentibus; risus est commotus: nihil tam Manciae simile uisum est; ut cum Tito
Pinario mentum in dicendo intorquenti: ‘tum ut diceret, si quid uellet, ubi nucem
fregisset.’
266 Por outro lado, as imagens também provocam, e muito, o riso. Elas remetem em
geral a algum vício ou deformidade do corpo com a semelhança do que é mais torpe,
como o que eu disse a Hélvio Mância:
274
‘Vou mostrar agora como és’, e, tendo ele
respondido ‘Mostra’, mostrei com o dedo um gaulês disforme, com a língua para fora e
com as bochechas caídas, pintado no escudo címbrico de Mário, abaixo das Novas
Tabernas. O riso foi contagiante: nada tão semelhante a Mância havia sido visto antes.
Outro exemplo é o que foi dito a Tito Pinário
275
que torcia o queixo ao falar: ‘Se queres
dizer algo, quebres primeiro a noz ’.
269
Desconhecido.
270
Não encontramos referências precisas sobre este Pisão. Algumas edições trazem-no como Lúcio
Calpúrnio Pisão Cesonino, porém não encontramos indicações concretas de qual dos Pisões foi
processado, como se vê aqui, por concussão.
271
Desconhecido.
272
V. nota 234 (§§ 257 e 280).
273
Embora não se refira especificamente ao exemplo, um anedota há contada por Plínio, o velho
(Naturalis historiae, XXIX, 14), dizendo que Catão, o Censor, dissera a seu filho para o se consultar
com médicos gregos porque aquela gente decidira pôr fim ao povo romano por meio daquela profissão.
274
Hélvio Mância, que era reconhecidamente feio (cf. Smith, William. A dictionary of Greek and Roman
biography and mythology: vol. 2, p. 914). Provavelmente o mesmo do § 274.
275
Desconhecido e pessoa diferente daquele Pinário citado no § 261 (Marco Pinário).
73
267 Etiam illa, quae minuendi aut augendi causa ad incredibilem admirationem
efferuntur; uelut tu, Crasse, in contione: ‘ita sibi ipsum magnum uideri Memmium, ut in
forum descendens caput ad fornicem Fabianum demitteret’. Ex quo genere etiam illud
est, quod Scipio apud Numantiam, quom stomacharetur cum C. Metello, dixisse dicitur:
‘si quintum pareret mater eius, asinum fuisse parituram.
267 Também provocam o riso as coisas que com o pretexto de minorar ou
engrandecer
276
são levadas a uma incrível admiração; como tu, Crasso /disseste/ numa
assembléia: ‘De tal modo Mêmio via a si mesmo grande, que, descendo ao foro, batia
com a cabeça no arco de Fábio.’
277
Ao mesmo gênero pertence a frase de Cipião diante
de Numância, quando perdeu a paciência com C. Metelo.
278
Contam que tenha dito: ‘Se
a mãe desse aí tivesse tido um quinto filho, teria parido um asno.’
279
268 Arguta etiam significatio est, cum parua re et saepe uerbo res obscura et latens
inlustratur; ut cum C. Fabricio P. Cornelius, homo, ut existimabatur, auarus et furax,
sed egregie fortis et bonus imperator, gratias ageret quod se [homo] inimicus consulem
fecisset, bello praesertim magno et graui: ‘Nihil est, quod mihi gratias agas,’ inquit ‘si
276
Minuere e augere são também termos técnicos de amplificatio, recurso invectivo incluso entre os
argumenta da parte do discurso argumentatio. No entanto, cero, assim como Quintiliano usa o mesmo
exemplo de Fábio incluso entre as hipérboles (v. De oratore, 203; De risu, § 67 e n.), não obstante Cícero
a incluir entre as figuras de palavras ou de pensamento destinadas a incrementar um argumento.
277
Chamado por Cícero de Fornicem Fabianum (cf. In Verrem I, 7), o arco de Fábio foi construído em
121 a.e.c. na margem oriental do Foro para comemorar o triunfo de Quinto Fábio Máximo sobre os
Arvenos e os Alóbroges. Como não se sabe a altura do arco, fica a dúvida se dito ridículo sobre Mêmio
(v. § 240) é uma ironia ou uma hipérbole. Por ser também desconhecida a altura de Mêmio (não obstante
Quintiliano cf. VI, 3, 67 afirmar que ele era muito alto) não como saber se o fato de Mêmio se
considerar muito alto (ita sibi ipsum magnum uideri Memmium) sendo apenas um pouco mais alto que a
altura dia dos romanos fazia dessa situação alvo de ironia ou se uma hipérbole na extensão integral
do período ita sibi ipsum magnum uideri Memmium, ut in forum descendens caput ad fornicem Fabianum
demittere, relevando aí, porém, a possibilidade de outra ironia constituída por Crasso como que
censurando uma possível auto-acepção errônea do próprio Mêmio. Demais, ainda a possiblidade de
que o arco fosse mesmo acessível a Mêmio, o que não nos parece muito provável. De qualquer modo, o
período em questão constitui um dito ridículo seja qual for a circunstância.
278
Caio Cecílio Metelo Caprário, o quarto filho de Quinto Cecílio Metelo Mecedônico. Foi pretor em 117
a.e.c., cônsul em 113 da mesma era e censor em 102 com Cecílio Metelo Numídio (v. De risu, § 67).
279
O trecho faz referência às poucas qualidades de caráter ou intelectuais de Metelo. Quanto à construção,
ainda hoje se utiliza o período de gestação humana para hiperbolizar uma característica física de outrem,
sobretudo nos interiores do Brasil e em meio ao universo rústico. Uma expressão semelhante ao exemplo
é usada quando um interlocutor se refere a um homem hirto: “Se a mãe deste demora um pouco a
gestação, teria parido um macaco”.
74
malui compilari quam uenire’; ut Asello Africanus obicienti lustrum illud infelix: ‘Noli’
inquit ‘mirari; is enim, qui te ex aerariis exemit, lustrum condidit et taurum immolauit.
[Tanta suspicio est, ut religione ciuitatem obstrinxisse uideatur Mummius, quod
Asellum ignominia leuarit.]
268 Há também uma indicação arguta, quando uma coisa obscura e latente é
esclarecida por uma pequena circunstância e, muitas vezes, por uma palavra. Um
exemplo: Públio Cornélio,
280
homem, como se julgava, avaro e inclinado ao roubo, mas
também um general honrado, forte e bom, agradecia a C. Fabrício,
281
seu inimigo,
porque este o fizera cônsul, sobretudo numa guerra grande e grave. ‘Não há nada do que
me agradecer’, respondeu Fabrício, ‘se preferi ser roubado a ser vendido’. Outro
exemplo: Aselo
282
exprobava a Africano dizendo que ele oferecera um sacrifício de mau
agouro
283
, ao que respondeu Africano: ‘Não te admires, pois quem te devolveu os
direitos de cidadão, preparou o sacrifício e imolou o touro’ [existe uma suspeita de que
Múmio parecia ter oprimido a cidade sob a religião porque livrara Aselo da ignomínia].
269 Vrbana etiam dissimulatio est, quom alia dicuntur ac sentias, non illo genere de
quo ante dixi, cum contraria dicas, ut Lamiae Crassus, sed quom toto genere orationis
seuere ludas, quom aliter sentias ac loquare; ut noster Scaeuola Septumuleio illi
Anagnino, cui pro C. Gracchi capite erat aurum repensum, roganti ut se in Asiam
praefectum duceret: ‘Quid tibi uis,’ inquit ‘insane? Tanta malorum ciuium est
multitudo, ut tibi ego hoc confirmem, si Romae manseris, paucis annis te ad maximas
pecunias esse uenturum.’
280
Provavelmente filho de Públio Cornélio Rufino, ditador em 334 a.e.c. Foi cônsul em 290 a.e.c. e em
277, e ditador entre 289 e 285. Em 275 foi expluso do Senado por Fabrício e Quinto Emílio Papo porque
possuía dez libras de prata (cf. Valério Máximo II, 9,4; Aulo Gélio IV, 8; XVII 21; Quintiliano, XII, 1, 43
et alii.)
281
Caio Fabrício Luscino, cônsul em 282 e 278 e censor em 275 a.e.c., mas a primeira menção feita a seu
respeito se no ano 285 (ou 284) quando foi embaixador entre os Tarentinos e outros povos (cf. Díon
Cássio, Frag. 144). Foi “um dos mais populares heróis nos anais romanos, que, como Cincinnatus e
Curius, é o representante da pobreza e da honestidade dos bons velhos tempos.” (Cf. Smith, 1867: v.1, p.
841.
282
V. § 258.
283
Aquela censura de Cipião em que Aselo perdera o direito de pertencer à classe eqüestre havia sido
invalidada por Lúcio Mumio Acaico, que a considerara injusta e restituira os direitos de Aselo. Não
obstante, Aselo o se contentou e, ao se tornar tribuno da plebe em 139 a.e.c. resolveu se vingar de
Cipião acusando-o de haver mudado o lustrum (ritual de sacrifício) e por isso uma pestilência sobreviera
sobre a cidade.
75
269 A dissimulação
284
também é urbana quando são ditas coisas diversas das que
pensas, não naquele gênero de que falei antes, quando dizes o contrário (como Crasso
disse a Lâmia), mas sim quando com todo gênero de discurso brincas com severidade,
falando algo diferente do que pensas. Por exemplo, quando nosso Cévola disse a
Septumuleio de Anágnia (que fôra recompensado com ouro pela cabeça de Caio
Graco)
285
e que lhe rogava que fosse conduzido à Ásia como prefeito: ‘O que queres
para ti, insano? Tanta é a quantidade de cidadãos maus, que isto eu te asseguro: se
permaneceres em Roma, em poucos anos estarás muito rico’.
270 Hoc in genere Fannius in annalibus suis Africanum hunc Aemilianum dicit
fuisse egregium et eum Graeco eum uerbo appellat ερωνα; sed, uti ei ferunt qui melius
haec norunt, Socratem opinor in hac ironia dissimulantiaque longe lepore et
humanitate omnibus praestitisse. Genus est perelegans et cum grauitate salsum
quomque oratoriis dictionibus tum urbanis sermonibus accommodatum.
270 Em seus anais, Fânio
286
diz que Africano Emiliano
287
foi notável neste gênero,
que em grego é chamado de εἴρωνος. Mas, como fazem aqueles que conhecem melhor
este assunto, minha opinião é que Sócrates, com sua elegância e humanidade, sobressaiu
a todos no que tange à ironia e à dissimulação. Trata-se de um gênero assaz elegante,
picante que possui gravidade, e que se adapta tanto aos discursos oratórios quanto às
conversas urbanas.
284
Como se vê, para Cícero a palavra dissimulatio vem numa acepção diferente de Quintiliano (v. De
risu, § 85). No parágrafo 272 ele traz exemplos de dissimulatio sob outra acepção.
285
Septumuleio que se fingira de amigo de Caio Graco não hesitou em cortar sua cabeça e entregá-la ao
cônsul Opímio, que oferecera uma recompensa a quem a entregasse (cf. Valério Máximo IX, 4,1–3)
286
certa confusão a respeito de C. Fânio. Em Brutus 99) Cícero distingue dois deles, e em Ad
Atticum ele volta à questão, dizendo-se incapaz de separar um do outro com notada diferença. Por outro
lado, P. Fraccaro escreve que o Caio Fânio orador foi filho de M. Fânio e veio a ser genro de Lélio,
exercendo o consulado em 122, e que o historiador C. Fânio foi filho do pai homônimo e combateu em
Cartago ao lado de Tibério Graco em 146 a.e.c. (apud Bardon, H. La litterature latine inconnue. Paris:
Librairie C. Klincksieck, 1956, p. 106-108; Cf. Brutus 99 e 101; XXXI, 118; De legibus I, 6).
287
Públio Cornélio Cipião Emiliano Africano, o jovem. Era filho de L. Emílio Paulo, conquistador da
Macedônia, e foi adotado por Cipião Africano, filho daquele que derrotou Aníbal. Exerceu o consulado
em 147 a.e.c. e foi censor em 142 com L. Múmio.
76
271 Et hercule omnia haec, quae a me de facetiis disputantur, non maiora forensium
actionum quam omnium sermonum condimenta sunt. Nam sicut quod apud Catonem est
– qui multa rettulit, ex quibus a me exempli causa non nulla ponuntur, – per mihi scitum
uidetur, C. Publicium solitum dicere ‘P. Mummium quoiusuis temporis hominem esse’
sic profecto se res habet, nullum ut sit uitae tempus, in quo non deceat leporem
humanitatemque uersari.
271 E, por Hércules, todas estas coisas que discuto a respeito das facécias são
condimentos não maiores nos processos do que em todas as conversas. Pois, assim
como Catão faz referência (ele que mencionou muitas coisas sobre o assunto, algumas
das quais usei aqui como exemplo) a C. Publício (coisa que me parece muito ajuizada)
que costumava dizer que P. Múmio
288
era um homem para todas as horas; tanto é assim,
sem dúvida, que nenhum tempo existe na vida no qual não seja conveniente tratar um
assunto com elegância e humanidade’.
272 Sed redeo ad cetera. Est huic finitimum dissimulationi, quom honesto uerbo
uitiosa res appellatur; ut quom Africanus censor tribu mouebat eum centurionem, qui in
Pauli pugna non adfuerat, cum ille se custodiae causa diceret in castris remansisse
quaereretque cur ab eo notaretur, ‘Non amo’ inquit ‘nimium diligentis.’
272 Volto, porém, às demais coisas. algo próximo a esta dissimulação
289
quando
uma atitude viciosa é nomeada digna; como, por exemplo, quando Africano, censor,
apartava de sua tribo um centurião que não estivera presente na guerra travada por
Paulo: como o centurião dissesse que permanecera no acampamento para ali se manter
em guarda e perguntasse por que estava sendo castigado, Africano lhe respondeu: ‘Não
gosto de quem é dedicado em excesso.’
290
288
Não encontramos referências seguras sobre quem foram estes Caio Publício e Públio Múmio.
289
Se no parágrafo 269 Cícero define dissimulatio como falar algo diferente do que se pensa, aqui ela
consiste apenas em chamar de virtuosa uma coisa viciosa.
290
Lúcio Emílio Paulo Macedônico, edil curul em 193 a.e.c. e pretor em 191 na Espanha posterior, cônsul
na primeira vez em 182 e mais uma vez em 168, quando pôs fim à terceira guerra macedônica com a
vitória em Pidna em 168 (Foi o fim do império de Alexandre, o grande, 144 anos após sua morte, cf.
Mommsen, 1975: tomo I, pp. 1001-1003). Foi censor em 142 a.e.c. A punição em questão (afastar o
centurião de seu grupo) se deu vinte e seis anos depois, o que resulta estranho (e daí suspeita-se aqui de
algum tipo de erro) devido ao longo tempo entre a causa e a punição.
77
273 Acutum etiam illud est, quom ex alterius oratione aliud excipias atque ille uolt:
ut Salinatori Maximus, quom Tarento amisso arcem tamen Liuius retinuisset multaque
ex ea proelia praeclara fecisset, quom aliquot post annis Maximus id oppidum
recepisset rogaretque eum Salinator, ut meminisset opera sua se Tarentum recepisse:
"Quidni" inquit "meminerim? Numquam enim recepissem, nisi tu perdidisses.’
273 Há também agudeza quando colhes do discurso de outrem algo diferente do que
ele deseja. Um exemplo: Depois de ter perdido Tarento, Lívio Salinator
291
perseverou e
cercou a cidade, travando ali muitas batalhas notáveis. Anos depois, Quinto Fábio
Máximo
292
a retomou. Então, Salinator pediu-lhe recordar que ele, ximo, retomara a
cidade por obra sua. E a isso respondeu Máximo: ‘Por que não me lembraria? Eu nunca
a haveria reconquistado se tu não a tivesses perdido.’
293
274 Sunt etiam illa subabsurda, sed eo ipso nomine saepe ridicula, non solum mimis
perapposita, sed etiam quodam modo nobis:
homo fatuus,
postquam rem habere coepit, est emortuus.
et:
quid est tibi ista mulier? – Vxor. – Similis me dius
[fidius.
et:
quamdiu ad aquas fuit, numquam est emortuus.
291
Marco Lívio Salinator foi cônsul em 219 a.e.c. com Emílio Paulo, e ambos foram enviados contra os
Ilírios, onde obtiveram êxito. Depois, acusado de peculato, se ausentou de Roma e passou a viver em sua
quinta ficando fora de qualquer assunto político por vários anos. Voltou a Roma em 210 a.e.c. e
reassumiu seu lugar no Senado. Em 207, lutou ao lado de Caio Cláudio Nero (v. § 248) contra Asdrúbal
na batalha de Metauro, e com ele foi novamente cônsul em 204 a.e.c., época em que, censor, estabeleceu
uma taxa sobre o sal, daí o cognome Salinator.
292
Quinto Fábio Máximo Verrucoso (cf. Cícero, Brutus 57), foi cônsul em 233, 228, 215, 214, e 209
a.e.c. (cf. Momigliano & Schiavone, 1988–1993: vol. 1, p. 525,) recebeu este cognome (Verrucoso) por
causa de uma verruga negra que possuía sobre o lábio superior. Recebeu o também sobrenome de
Cunctator o contemporizador (cf. Tito Lívio 30, 26, 9) na segunda guerra púnica, por causa de sua
tática de não confrontar diretamente Aníbal, com a qual obteve êxito e fama. Foi também ditador em 221.
293
Cícero parece ter confundido o Marco Lívio aqui citado. O Marco vio que esteve no comando da
campanha de Tarento desde 214 a.e.c. chamava-se precisamente Marco Lívio Macato (cf. Tito Lívio
XXIV, 20; XXVI, 39; XXVII 25, 34; Smith, 1867: vol. 2, pp. 877-888). Em Da velhice (11) Cícero
comete o mesmo suposto equívoco.
78
(LXVIII) Genus hoc leuius et, ut dixi, mimicum, sed habet non numquam aliquid etiam
apud nos loci, ut uel non stultus quasi stulte cum sale dicat aliquid: ut tibi, Antoni,
Mancia, cum audisset te censorem a M. Duronio de ambitu postulatum, ‘Aliquando’
inquit ‘tibi tuum negotium agere licebit.’
274 As frases algo absurdas são também (e por isso mesmo, muitas vezes risíveis)
convenientes não somente aos mimos como também de alguma forma nós oradores
294
:
“Homem insensato. Depois que começou a enriquecer, morreu.”
e:
“O que esta mulher é tua? “Esposa” “É a tua cara, palavra!”
e:
“Enquanto freqüentou os banhos, nunca morreu.”
Como disse, este gênero é menos importante e próprio dos mimos. Mas possui, às
vezes, algum lugar entre nós oradores, como quando alguém não estulto diz algo como
que estultamente e com tempero;
295
assim como o que ncia
296
disse a ti, Antônio,
quando ouviu Marco Durônio
297
acusar-te de corrupção quando eras censor
298
:
‘Finalmente te será lícito tomar conta dos teus negócios’.
275 Valde haec ridentur et hercule omnia, quae a prudentibus [quasi] per
simulationem [non intellegendi] subabsurde salseque dicuntur. Ex quo genere est etiam
non uideri intellegere quod intellegas; ut Pontidius: ‘qualem existimas, qui in adulterio
deprehenditur?’ ‘Tardum’ ut ego, qui in dilectu Metello, quom excusationem
oculorum a me non acciperet et dixisset: ‘tu igitur nihil uides?’ – ‘Ego uero’ inquam ‘a
porta Esquilina uideo uillam tuam;’
294
Quintiliano cita o mesmo gênero em De risu (v. § 99 e 23).
295
A idéia de temperar uma fala ou discurso por meio do riso se encontra em De risu, § 19.
296
Provavelmente o mesmo Mância do § 266.
297
Marco Durônio, tribuno da plebe em 97 a.e.c., foi expulso do Senado pelos censores Marco Antônio e
Valério Flaco porque havia abolido a Lex Sumptuaria de 103. Por vingança acusou Marco Antônio de
prática de ambitus – disputa ilegal por cargos públicos –, Cf. Valério Máximo II, 9, 5.
298
Em 97 a.e.c.
79
275 Estas coisas fazem muitíssimo rir e, por rcules, todas aquelas que são ditas
com tempero e aparente absurdo por pessoas sensatas como que por simulação
299
(em
não entender). Deste gênero é também não parecer entender o que entendes, como
Pontídio: ‘O que pensas daquele que é pego em adultério?’ ‘Lerdo’. Ou, como eu que
no recrutamento disse a Metelo, quando não aceitou minha desculpa dos olhos e me
disse: ‘Então, tu o vês nada? Eu, em verdade, respondi –, da porta Esquilina vejo
tua vila!’
300
276 ut illud Nasicae: qui, quom ad poetam Ennium uenisset eique ab ostio quaerenti
Ennium ancilla dixisset ‘domi non esse’, [Nasica] sensit illam domini iussu dixisse et
illum intus esse. Paucis post diebus cum ad Nasicam uenisset Ennius et eum a ianua
quaereret, exclamat Nasica ‘domi non esse’. Tum Ennius: ‘Quid? Ego non cognosco
uocem’ inquit ‘tuam?’ Hic Nasica ‘homo es impudens: ego cum te quaererem ancillae
tuae credidi te domi non esse, tu mihi non credis ipsi?
276 Outro exemplo: Chegando Cipião Nasica
301
à casa do poeta Ênio e chamando-o
da porta, de de dentro respondeu-lhe a escrava dizendo que Ênio não estava. Não
obstante, Nasica sentiu que ela tinha dito isso por ordem de seu amo e que Ênio estava
mesmo em casa. Poucos dias depois, o poeta foi até a casa de Nasica e chamando-o da
porta, Nasica gritou de de dentro que não estava em casa. ‘Que é? E eu o conheço
tua voz?’, disse Ênio; ao que respondeu Nasica: ‘És um descarado! Quando te chamei
em tua casa e a escrava disse que não estavas, acreditei; agora eu próprio digo que não
estou e não acreditas?!’
299
Simulatio: Quintiliano relaciona esta palavra a outro gênero um tanto quanto diferente daquele ao qual
ela esta inclusa aqui. Enquanto Cícero não somente afirma que a simulatio consiste em o entender o
que o interlocutor disse, como também a relaciona as respostas de conteúdo um pouco absurdos,
Quintiliano, além de defini-la como “a idéia de possuir uma convicção inequívoca” (cf. De risu, § 85),
dela faz uma espécie variação num subgênero (o principal é a refutatio) que ele chama de confessionis
simulatio simulação de confissão (cf. De risu, § 81).
300
O ridículo se configura aqui semelhante ao exemplo do episódio da morte da murena em que Domício
censura a luxuosidade da casa de Crasso (v. § 230, n. 154). Neste exemplo a diferença reside numa
mistura do ridículo vindo de algo que não se entende embutido numa resposta com a censura do excesso.
A vila em questão é, provavelmente, a vila tiburtina, tão grande que mesmo alguém que enxergava mal
como César podia vê-la de muito longe.
301
o se sabe a qual Cipião Nasica o texto se refere. Tanto pode ser Públio Cornélio Cipião Nasica
Optimus, edil curul em 197, e cônsul em 191 a.e.c. e primo do primeiro Africano, como também pode ser
Cipião Nasica Corculum filho do Optimus, edil curul em 169, cônsul em 162 e genro do primeiro
Africano.
80
277 Est bellum illud quoque, ex quo is, qui dixit inridetur, in eo ipso genere, quo
dixit: ut, quom Q. Opimius consularis, qui adulescentulus male audisset, festiuo homini
Egilio, qui uideretur mollior nec esset, dixisset: ‘quid tu, Egilia mea? Quando ad me
uenis cum tua colu et lana?’ ‘Non pol’ inquit ‘audeo: nam me ad famosas uetuit
mater accedere.’
277 Há também um belo recurso, através do qual aquele que diz algo para
ridicularizar alguém é por este ridicularizado através do mesmo gênero de palavras: O
consular Quinto Opímio,
302
que na adolescência era muito mal falado,
303
disse a Egílio,
um homem fino que parecia afeminado mas não era: ‘ Que é de ti, Egília minha, quando
virás à minha casa com tua roca e tua lã?’ Então Egílio lhe respondeu: ‘Não, por
Pólux,
304
não me atrevo! Minha mãe me proibiu de me aproximar das mulheres de
fama’.
278 (LXIX) Salsa sunt etiam, quae habent suspicionem ridiculi absconditam. Quo in
genere est Siculi illud: cui quom familiaris quidam quereretur quod diceret uxorem
suam suspendisse se de ficu: ‘Amabo te,’ inquit, ‘da mihi ex ista arbore quos seram
surculos.’ In eodem genere est, quod Catulus dixit cuidam oratori malo; qui cum in
epilogo misericordiam se mouisse putaret, postquam assedit, rogauit hunc uidereturne
misericordiam mouisse: ‘Ac magnam quidem, inquit ; neminem enim puto esse tam
durum, cui non oratio tua miseranda uisa sit.’
278 Também são picantes aquelas coisas que possuem uma oculta malícia
305
do
ridículo. A este gênero pertence a frase de um siciliano cujo amigo se queixava certa
vez dizendo que a esposa tinha se enforcado num de figo: ‘Por favor, dá-me uma
302
Quinto Opímio, pretor em 157 a.e.c. e cônsul em 154.
303
Lucílio XI, 450.
304
Por não ter encontrado referências precisas, não posso afirmar que a interjeição “Por Pólux” era
pronunciada no trato feminino. Porém se assim é, o dito picante de Egílio ficou sobremodo incrementado
por essa sutileza.
305
Quintiliano acolhe o gênero e o termo (v. De risu, § 88 e n.).
81
muda dessa árvore para eu plantar!’
306
Ao mesmo nero pertence a frase que Cátulo
disse a um mau orador, que no epílogo de seu discurso julgava ter provocado
misericórdia e depois, ao sentar-se, perguntou se parecia ter obtido êxito: ‘E grande!
respondeu Cátulo –, aliás, não creio que haja alguém tão duro, a quem teu discurso não
pareça digno de misericórdia.’
279 Me tamen hercule etiam illa ualde mouent stomachosa et quasi submorosa
ridicula, non quom a moroso dicuntur; tum enim non sal, sed natura ridetur, In quo,
ut mihi uidetur, persalsum illud est apud Nouium:
‘quid ploras, pater?’ –
‘Mirum ni cantem? condemnatus sum.’
Huic generi quasi contrarium est ridiculi genus patientis ac lenti: ut quom Cato
percussus esset ab eo qui arcam ferebat, quom ille postea diceret ‘cave’, rogauit ‘num
quid aliud ferret praeter arcam.
279 A mim, por Hércules, muito me provocam o riso as palavras que expressam
irritação e um tanto de mau humor; quando não ditas por um rabugento então, é a
natureza dessas coisas que faz rir e não o tempero. Deste gênero exemplo muito
picante em Nóvio:
307
“Por que choras, papai?
“Estás surpreso que não estou cantando? Fui condenado, poxa!
Quase contrário a este é o gênero de ridículo paciente e calmo; como, por exemplo,
quando Catão foi machucado por um homem que levava uma arca. Como o sujeito lhe
dissesse ‘Cuidado’, perguntou-lhe Catão ‘Por acaso levas outra coisa além da arca?’
306
V. Quintiliano VI, 3, 88.
307
V. § 255.
82
280 Est etiam stultitiae salsa reprehensio; ut ille Siculus, cui praetor Scipio
patronum causae dabat hospitem suum, hominem nobilem, sed admodum stultum:
‘quaeso,’ inquit ‘praetor, aduersario meo da istum patronum, deinde mihi neminem
dederis.’ Mouent etiam illa, quae coniectura explanantur longe aliter atque sunt, sed
acute atque concinne; ut cum Scaurus accusaret Rutilium ambitus, cum ipse consul
esset factus, ille repulsam tulisset, et in eius tabulis ostenderet litteras A. F. P. R. idque
diceret esse ‘actum fide P. Rutili’, Rutilius autem ‘ante factum, post relatum’, C. Canius
eques Romanus, quom Rufo adesset, exclamat neutrum illis litteris declarari. ‘Quid
ergo?’ inquit Scaurus. – ‘Aemilius fecit, plectitur Rutilius.’
280 Há também uma maneira picante de repreender a estultice
308
; como disse aquele
siciliano, a quem o pretor Cipião
309
concedia como advogado um hóspede seu, homem
nobre mas sobremodo estulto: ‘Pretor, por favor, este advogado para o meu
adversário. Se fizeres isso, não preciso de nenhum.’ Provocam também o riso, as coisas
que por conjectura são explicadas muito diferentemente do que são, mas de maneira
aguda e engenhosa. Nas eleições para cônsul, Escauro
310
acusava Rutílio
311
de
corrupção. Aconteceu que Escauro venceu e Rutílio perdeu. Daí, Escauro passou a
escrever nas tábuas de Rutílio as seguintes letras: A.F.P.R. que dizia significar ‘Ato
feito por Públio Rutílio! E Rutílio, por sua vez, dizia que aquilo significava ‘Antes feito,
posteriormente relatado’. Então, C. Cânio
312
, cavaleiro romano que assistia a Rutílio
Rufo, exclamou que as letras não significavam nenhuma das duas coisas, ‘O que
então?’, perguntou Escauro. E o cavaleiro disse: ‘Aemilius
313
fez; perdeu Rutilius.’
281 (LXX) Ridentur etiam discrepantia: ‘quid huic abest, nisi res et uirtus?’ Bella
etiam est familiaris reprehensio quasi errantis: ut cum obiurgauit Albium Granius,
308
Este outro gênero acolhido por Quintiliano (cf. De risu, § 71).
309
Lúcio Cornélio Cipião Asiático, filho do nono Africano, irmão do grande Africano, e pretor na Sicilia
em 193 e cônsul em 190 a.e.c. (cf. Tito Lívio XXXIX, 44, 1).
310
V. §§ 257 e 265.
311
Públio Rutílio Rufo, pretor em 111 e cônsul em 105 a.e.c. Cícero diz dele e de Escauro (Brutus 110)
serem homens de grande indústria, prática e boas capacidades, mas destituídos de talento oratório. Porém,
Cícero também afirmava que Rufo era um homem íntegro e que a acusação de repetudis fora forjada por
uma conspiração de parte da ordem eqüestre. Rufo aceitou serenamente o exílio e não voltou mais a
Roma, estabelecendo-se em Smirna. O trecho anotado refere as trocas de acusações entre Escauro e Rufo.
312
Caio Cânio. Cícero assim o define em De officiis (III, 58): C. Canius, eques Romanus, nec infacetus et
satis litteratus, “Caio Cânio, cavaleiro romano, faceto e muito erudito.”
313
Marcus Aemilius Scaurus.
83
quod, quom eius tabulis quiddam ab Albucio probatum uideretur, [et] ualde absoluto
Scaeuola gauderet neque intellegeret contra suas tabulas esse iudicatum.
281 Ri-se também de discrepâncias: ‘O que falta a este senão a riqueza e a
virtude
314
?’ Engraçada também é a repreensão do amigo ao que está prestes a se
equivocar. Certa vez Grânio chamou a atenção de Álbio porque ele se alegrara muito
por Cévola ter sido absolvido depois que Albúcio encontrou algo em suas tábuas como
prova, e não percebeu que o juízo se deu justamente contra suas tábuas.
282 Huic similis est etiam admonitio in consilio dando familiaris: ut cum patrono
malo, quom uocem in dicendo obtudisset, suadebat Granius ut mulsum frigidum biberet,
simul ac domum redisset: ‘Perdam’, inquit, ‘uocem, si id fecero.’ ‘Melius est’ inquit
‘quam reum.’
282 Semelhante a esse gênero é aquele em que uma admoestação amiga e
aconselhadora. Um advogado ruim dizia que estava perdendo a voz. Então, quando
Grânio tentava persuadi-lo a que voltasse para casa e tomasse imediatamente vinho
melado frio, disse-lhe: Perderei a voz se fizer isso’; ao que lhe respondeu Grânio:
‘Melhor é do que perder o réu’.
283 Bellum etiam est, quom quid cuique sit consentaneum dicitur: ut quom Scaurus
non nullam haberet inuidiam ex eo, quod Phrygionis Pompei, locupletis hominis, bona
sine testamento possederat, sederetque aduocatus reo Bestiae, cum funus quoddam
duceretur, accusator C. Memmius: ‘Vide,’ inquit ‘Scaure, mortuus rapitur, si potes esse
possessor.’
283 Belo é também o gênero em que se diz o que é apropriado a cada um. Escauro
315
provocava certa indignação de alguns porque se apossara sem testamento dos bens de
314
Quintiliano insere esta frase dentro de outro gênero de urbanidade (aqueles que consistem em frustrar a
expectativa ou entender de outro modo o que foi dito, cf. § 84).
315
V. §§ 257, 265, 280.
84
Frígio Pompeu,
316
homem muito rico. Certa vez, Béstia
317
assistia-o como advogado
num processo quando passou um funeral. Então C. Mêmio,
318
o advogado de acusação,
disse: ‘Escauro, estão carregando um morto. Verifique se podes ser o herdeiro.’
284 Sed ex his omnibus nihil magis ridetur quam quod est praeter exspectationem.
Cuius innumerabilia sunt exempla, ut Appi maioris illius, qui in senatu, quom ageretur
de agris publicis et de lege Thoria et peteretur Lucullus ab eis, qui a pecore eius
depasci agros publicos dicerent: ‘Non est,’ inquit, ‘Luculli pecus illud: erratis’ –
defendere Lucullum uidebatur – ‘ego liberum puto esse; qua libet pascitur.’
284 Mas de todas essas, nenhuma provoca mais o riso do que aquela que vai contra a
expectativa;
319
os exemplos são inumeráveis. Um deles é o caso de Ápio, o velho.
320
Quando ele debatia no senado a respeito dos campos públicos e da lei Tória,
321
Luculo
começou a ser atacado pelos senadores que o acusavam de ter seu gado pastando em
campos públicos. Então, Ápio disse: ‘Errais senhores, aquele rebanho não é de Luculo’
– parecendo defendê-lo –, Eu o considero livre. Que paste onde lhe apraz’.
285 Placet etiam mihi illud Scipionis illius, qui Ti. Gracchum perculit. Quom ei M.
Flaccus multis probris obiectis P. Mucium iudicem tulisset: ‘Eiero,’ inquit ‘iniquus est.
Cum esset admurmuratum: ‘Ah,’ inquit, ‘P. C., non ego mihi illum iniquum eiero,
uerum omnibus.’ Ab hoc uero Crasso nihil facetius: cum laesisset testis Silus Pisonem,
quod se in eum audisse dixisset: ‘Potest fieri,’ inquit, ‘Sile, ut is, unde te audisse dicis,
iratus dixerit.’ Adnuit Silus. ‘Potest etiam, ut tu non recte intellexeris.’ Id quoque toto
capite adnuit, ut se Crasso daret. ‘Potest etiam [fieri], inquit, ‘ut omnino, quod te
316
Desconhecido.
317
Lúcio Calpúrnio Béstia, tribuno da plebe em 121 a.e.c. e cônsul em 111, concluiu com Marco Emílio
Escauro um acordo de paz com Numídia sem consultar o Senado. A atitude causou indignação e ele foi
condenado a uma pena que se desconhece. Por fim, terminou exilando-se de Roma em 90 a.e.c.
318
V. § 240.
319
Quintiliano faz desse subgênero de Cícero um componente de um gênero estabelecido pela divisão
encontrada entre os §§ 23-24 de De risu, dele apresentando exemplos nos §§ 64 e 84.
320
A mesma dificuldade de identificação que encontramos no § 246 se repete aqui. Devido à extensa lista
de nomes pertencentes à gens Claudia e à repetição de nomes, as referências se enfraquecem e não nos
permitem precisar a qual personagem o texto se refere.
321
Esta lei, de 119 a.e.c., leva o nome de seu propositor Thorius e trata de uma questão agropecuária: os
pastos públicos.
85
audisse dicis, numquam audieris.’ Hoc ita praeter exspectationem accidit, ut testem
omnium risus obrueret. Huius generis est plenus Nouius, cuius iocus est familiaris:
‘Sapiens, si algebis, tremes’, et alia permulta.
285 Também me agradam as palavras daquele Cipião
322
que abalaram
tremendamente Tibério Graco: como Marco Flaco
323
, depois de lançar-lhe muitos
ultrajes, propusesse como juiz Públio Múcio
324
, disse: ‘Recuso, é iníquo.’ E como
murmurassem,
325
replicou: ‘Oh! Senadores! Recuso-o o por ser injusto para comigo,
mas para com todos.’ Quanto a isso, nada mais faceto do que Crasso. Certa vez,
como fosse Silo testemunha num processo e prejudicasse a Pisão dizendo ter ouvido
algo contra ele, disse-lhe Crasso: ‘Pode ser, Silo, que este de quem ouviste tal coisa,
tenha falado isso com raiva?’ Silo admitiu. ‘Também pode ser que tu não tenhas
entendido corretamente?’ E a isso também consentiu balançando a cabeça; e de tal
modo, que acabou se entregando a Crasso: ‘Pode ser também que isso que dizes ter
ouvido, jamais tenhas ouvido realmente?” Isso de tal modo veio contra as expectativas,
que o riso de todos aniquilou o testemunho
326
. Nóvio
327
está repleto deste gênero, do
qual este gracejo é bem familiar: ‘Esperto: se tens frio, tremes’ e muitos outros.
286 (LXXI) Saepe etiam facete concedas aduersario id ipsum, quod tibi ille detrahit:
ut C. Laelius, cum ei quidam malo genere natus diceret indignum esse suis maioribus:
‘At Hercule,’ inquit, ‘tu tuis dignus.’ Saepe etiam sententiose ridicula dicuntur; ut M.
Cincius, quo die legem de donis et muneribus tulit, cum C. Cento prodisset et satis
contumeliose: ‘Quid fers, Cinciole?’ quaesisset: ‘Vt emas,’ inquit, ‘Gai, si uti uelis.’
322
Públio Cornélio Cipião Nasica Serapião, filho de Públio Cornélio Cipião Nasica Corculum (v. § 276),
cônsul em 138 e 133. Cícero descreve nas Tusculanas (IV, 23, 51) que perante a passividade de Múcio
Cévola (cônsul em 133 a.e.c.) diante da política de Tibério Graco, este Cipião ajuntou-se a alguns
senadores e matou não somente a Tibério Graco, como também a alguns de seus partidários.
323
Marco Fúlvio Flaco, cônsul em 125 a.e.c., era partidário dos Gracos e morreu no mesmo dia em que
Caio Graco morreu (cf. Cícero, Cat. I, 4; Philippicae VIII, 14).
324
Públio Múcio Cévola, pai de Quinto Múcio Cévola, homem de reconhecida integridade.
325
Os senadores murmuravam como se ali surgisse um escândalo dada a famosa integridade de Públio
Múcio Cévola.
326
Silo e Pisão: desconhecidos.
327
V. § 255.
86
286 Muitas vezes podes rebater ao adversário com a mesma coisa que ele aplicou
contra ti. C. Lélio
328
respondeu assim a um sujeito mal nascido que lhe dizia ser indigno
de seus ancestrais: ‘Mas, tu, por Hércules, és digno dos teus!’ Outras tantas vezes, diz-
se coisas ridículas sentenciosamente, tal como respondeu M. Cíncio
329
no dia em que
propôs a Lei dos dons e das divas e C. Centão,
330
aproximando-se, perguntou de
forma bastante agressiva: ‘O que propões, Cincinho? ‘Proponho, Caio, que compres, se
queres usar’.
287 Saepe etiam salse, quae fieri non possunt, optantur: ut M. Lepidus, quom ceteris
se in campo exercentibus ipse in herba recubuisset: ‘uellem hoc esset,’ inquit,
‘laborare.’ Salsum est etiam quaerentibus et quasi percontantibus lente respondere
quod nolint: ut censor Lepidus, quom cum M. Antistio Pyrgensi equom ademisset
amicique [quom] uociferarentur et quaererent, quid ille patri suo responderet, cur
ademptum sibi equom diceret, quom optimus colonus, parcissimus, modestissimus,
frugalissimus esset: ‘Me istorum,’ inquit, ‘nihil credere.’
287 Com bastante freqüência desejamos aquilo que não pode ser feito
331
, como
Marco Lépido
332
que, enquanto os outros se exercitavam no campo, recostou-se na relva
e disse: ‘Ah! Como eu queria que isso fosse trabalhar!’ Também é engraçado quando
ocorre de as pessoas perguntarem algo e insistirem a tal ponto que, com indiferença,
328
Caio Lélio, o jovem. Amigo de Cipião Emiliano. Cônsul em 140, foi considerado um dos mais
brilhantes oradores de seu tempo. É um dos protagonistas de De amicitia e está presente também em De
Re Publica. Reconhecido por Cícero como um homem muito jovial (cf. De Officiis I, 108).
329
Marco Cíncio Alimento, tribuno da plebe em 204 a.e.c., possível irmão do historiador Lúcio.
330
Não encontramos referências a respeito deste Centão. Algumas edições indicam-no como Caio
Cláudio Centão, cônsul em 240 a.e.c. e ditador em 213, ou seu filho homônimo, emissário do cônsul
Públio Máximo em 200 a.e.c., mas mesmo elas não o fazem seguramente.
331
Quintiliano introduz um gênero com construção semelhante quod fieri non potest ressaltamos
“semelhante” e não “idêntica” porque a flexão verbal pode derivar um matiz diferente de gênero de dito
ridículo. O exemplo trazido por Quintiliano que conta a anedota dos peixes que eram servidos de um lado
num dia e no seguinte do outro, se aproxima, por assim dizer, mais do fato absurdo (que Cícero organiza
aqui como gênero denominando de “frases absurdas”, cf. § 274). O exemplo apresentado aqui causa o riso
por meio de uma fala que expressa um desejo que não é possível, ao menos circunstancialmente. Assim,
embora estes gêneros sejam introduzidos por um aparelho frasal semelhante, seus exemplos vão a
direções diferentes quanto à semântica e quanto à obediência àquela divisão de Cícero e Quintiliano sobre
o ridículo de assunto e de palavras, o exemplo de Cícero se coaduna com o último (mais especificamente,
com a mistura de ambos o ridículo de palavras extraído de um assunto, cf. § 274) e o de Quintiliano
mais com o primeiro.
332
Semelhante ao caso de Ápio, o velho (n. 191), há aqui grande dificuldade de identificação da
personagem.
87
lhes respondam o que não querem; como é o caso de quando o censor Lépido
333
excluiu
M. Antístio Pirgense
334
da ordem eqüestre e seus amigos, que vociferavam e
perguntavam o que Marco Antístio iria responder ao pai quando fosse por ele
questionado por que fora dela excluido, não obstante Antístio fosse um colono ótimo,
muito parco, modesto e frugal: ‘Que não acredito em nada disso’, respondeu-lhes Marco
Lépido.
288 Conliguntur a Graecis alia non nulla, exsecrationes, admirationes, minationes.
Sed haec ipsa nimis mihi uideor in multa genera discripsisse. Nam illa, quae uerbi
ratione et ui continentur, certa fere ac definita sunt; quae plerumque, ut ante dixi,
laudari magis quam rideri solent.
288 Os gregos catalogaram algumas outras imprecações, admirações e ameaças. Mas
me parece que essas mesmas coisas foram excessivamente distribuídas por mim em
muitos gêneros; pois aquelas que são sustentadas pela força e expressão da palavra são
quase certas e definidas; as quais, na maioria das vezes (como disse antes), costumam
arrancar mais elogios do que risos.
289 Haec autem, quae sunt in re ipsa et sententia, partibus sunt innumerabilia,
generibus pauca. Exspectationibus enim decipiendis et naturis aliorum inridendis,
ipsorum ridicule indicandis, et similitudine turpioris et dissimulatione, et subabsurda
dicendo et stulta reprehendendo risus mouentur. Itaque imbuendus est is, qui iocose
uolet dicere, quasi natura quadam apta ad haec genera et moribus, ut ad cuiusque modi
genus ridiculi uultus etiam accommodetur; qui quidem quo seuerior est et tristior, ut in
te, Crasse, hoc illa quae dicuntur salsiora uideri solent.
289 Por outro lado aquelas que estão na própria coisa e no conceito possuem partes
inumeráveis e poucos gêneros. Em suma, provocam o riso ao lograr as expectativas, ao
ridicularizar a natureza dos outros [indicando risivelmente as nossas próprias],
335
333
Marco Emílio Lépido, cônsul em 187 e 175 a.e.c. e censor em 179.
334
Desconhecido.
335
Cf. De risu § 22-23.
88
aproximando as coisas na semelhança com o mais torpe, usando de dissimulação,
dizendo coisas com um quê de absurdo e repreendendo a estultice. E quem deseja falar
gracejosamente deve estar imbuído de uma natureza apta a estes gêneros e costumes, de
tal modo que até seu semblante se adéqüe a cada um destes gêneros. E quanto mais
formidável for seu ar de tristeza e severidade, como em ti Crasso, mais as coisas que
disser parecerão picantes.
290 Sed iam tu, Antoni, qui hoc deuersorio sermonis mei libenter acquieturum te
esse dixisti, tamquam in Pomptinum deuerteris, neque amoenum neque salubrem locum,
censeo ut satis diu te putes requiesse et iter reliquum conficere pergas." "Ego uero,
atque hilare quidem a te acceptus," inquit, "et quom doctior per te, tum etiam audacior
factus sum ad iocandum. Non enim uereor ne quis me in isto genere leuiorem iam putet,
quoniam quidem tu Fabricios mihi auctores et Africanos, Maximos, Catones, Lepidos
protulisti.
290 Mas agora, tu, Antônio, que disseste que este meu discurso seria para ti uma
hospedaria em que repousarias de livre vontade, tanto quanto desviastes de Pontino,
336
lugar nem ameno nem saudável, conto com isto: que te consideres suficientemente
descansado e retomes o restante do caminho.” “Eu, na verdade, alegremente fui
recebido por ti disse Antônio –, e não me tornei mais douto por ti, como também
mais audaz na arte de gracejar. não temo, com efeito, que alguém me considere tão
frívolo neste gênero, porquanto me colocaste no nível de Fabrício, Africano, Máximo,
Catão e Lépido.
291 Sed habetis ea, quae uultis ex me audire, de quibus quidem accuratius dicendum
et cogitandum fuit. Nam cetera faciliora sunt atque ex eis, quae dicta sunt, reliqua
nascuntur omnia. (LXXII) Ego enim quom ad causam sum adgressus atque omnia
cogitando, quoad facere potui, persecutus, quom et argumenta causae et eos locos,
quibus animi iudicum conciliantur, et illos, quibus permouentur, uidi atque cognoui,
tum constituo quid habeat causa quaeque boni, quid Mali. Nulla enim fere potest res in
336
Pântanos situados na Campânia (Itália).
89
dicendi disceptationem aut controuersiam uocari, quae non habeat utrumque: sed
quantum habeat, id refert. [...]
291 Mas tendes as coisas que desejastes ouvir de mim, acerca das quais haveria de
falar e refletir mais acuradamente, pois as demais são mais fáceis e todas as outras
restantes nascem destas que foram ditas. Eu, com efeito, quando me acerquei da causa,
meditando, tratei de todas as coisas a onde pude. Foi quando vi e conheci tanto os
argumentos da causa quanto as considerações com os quais conciliamos os ânimos dos
juízes e aqueles com os quais os comovemos. Então determino o que de bom e de
ruim em cada causa. Em geral, quase nada pode ser chamado às decisões ou
controvérsias no discurso, que não possua uma e outra coisa; mas o que importa é que
elas sejam tratadas. [...]”
337
337
Depois de César ter discorrido sobre o riso, a fala é devolvida a Antônio que tece então algumas
considerações finais a respeito da inuentio. Ele instrui a proteger os argumentos mais fortes, procurar a
simpatia dos ouvintes e tentar mudar seus sentimentos. Ora, esses o os objetivos do orador, cuja
presença nessas considerações finais fazem reforçar que eles devem permanecer em foco. Ademais,
duas regras Antônio aplica em seus discursos: não expor argumentos complicados e difíceis e não
provocar dano à própria causa. Apresentados exemplos e considerações a esse respeito chega ao fim o
trato da inuentio em De oratore. Ainda no livro II, Antônio tratará da dispositio e da memoria.
90
MARCVS FABIVS QUINTILIANVS
Institutio oratoria VI, 3, 1–112
(De risu)
Tradução e Notas
1 Huic diuersa uirtus quae risum iudicis mouendo et illos tristes soluit adfectus et
animum ab intentione rerum frequenter auertit et aliquando etiam reficit et a satietate
uel a fatigatione renouat. Quanta sit autem in ea difficultas uel duo maximi oratores,
alter Graecae, alter Latinae eloquentiae princeps, docent;
1 Diversa dessa
338
, /há/ uma virtude que provocando o riso do juiz não somente
dissolve os sentimentos tristes
339
, como também afasta com freqüência o ânimo da
atenção aos fatos
340
, bem como algumas vezes o reanima e renova da saturação e da
fadiga
341
. Entretanto, os dois maiores oradores, dos quais o principal da eloqüência
grega e o outro o principal da eloqüência latina, mostram o quanto ela é difícil;
2 nam plerique Demostheni facultatem defuisse huius rei credunt, Ciceroni
modum. Nec uideri potest noluisse Demosthenes, cuius pauca admodum dicta nec sane
ceteris eius uirtutibus respondentia palam ostendunt non displicuisse illi iocos, sed non
contigisse.
338
Nos três primeiros capítulos do livro VI, Quintiliano se ocupa dos aconselhamentos quanto ao uso do
mouere adfectus na peroratio. Nos dois primeiros, o retor trata do recurso que consiste em recapitular os
fatos (sem recair, porém, numa repetição fastidiosa ou a uma simples enumeração) e daquele que provoca
os sentimentos de piedade (comoção) em prol da causa defendida pelo orador. Em suma, o orador deve
não somente recordar brevemente seu ouvinte sobre seus argumentos, como também excitar seus
sentimentos de modo que sua atenção se volte favorável à sua causa e desfavorável à do adversário. A
estes Quintiliano soma, no terceiro livro, outro recurso: o riso. E este deve funcionar em contrapartida aos
efeitos provocados pelo mouere adfectus. Explico: aberta a possibilidade de réplicas e sabendo-se que
numa disputa judiciária (da qual o tipo de discurso é o mais amplamente tratado e discutido, inclusive em
De oratore e na Institutio oratoria) há uma altercação, certamente ocorrerá que, dependendo da causa, um
dos advogados recorra em mover os sentimentos do juiz. O riso então funciona, conforme aponta Cícero
(De ridiculis, § 236), justamente para anular essa benevolência captada pelo adversário por meio deste
recurso, neutralizando e tranferindo-a ao orador (cf. Quint. VI, 1–2).
339
Como se disse, aqueles que foram provocados pelo adversário através da excitação das emoções (cf.
V, 6, 2 e 5).
340
Referência à parte da peroratio em que o orador recapitula os fatos para colcoar a causa em evidência,
caso isso ainda não tenha sido alcançado. Além disso, Quintiliano prescreve um recurso semelhante no
livro IV (1, 49) onde fala sobre a prolepse no exórdio.
341
Renovando dos extensos trabalhos, da atenção aos argumentos, da peroração enfim, o riso provocado
pelo orador desfaz qualquer indocilidade do ouvinte e o deixa apto a predispor-se à sua causa.
91
2 pois um grande número de pessoas acredita que faltava a Demóstenes a
habilidade nesta matéria
342
e a Cícero a moderação no seu uso
343
. Demóstenes não pode
ser visto como se a recusasse, cujos pouquíssimos ditos picantes,
344
que seguramente
não estavam à altura de suas outras virtudes, evidenciam isto claramente: os gracejos
não o desagradavam, mas não era exatamente esse o seu dom.
3 Noster uero non solum extra iudicia, sed in ipsis etiam orationibus habitus est
nimius risus adfectator. Mihi quidem, siue id recte iudico siue amore inmodico
praecipui in eloquentia uiri labor, mira quaedam in eo uidetur fuisse urbanitas.
3 o nosso Cícero é considerado excessivamente afeito ao riso, não somente fora
do tribunal, mas também em seus próprios discursos. A mim em verdade parece ter
havido nele uma admirável urbanidade
345
, esteja eu julgando convenientemente esteja
eu deslizando em afeição desmesurada pelo principal nome da eloqüência
346
.
4 Nam et in sermone cotidiano multa et in altercationibus et interrogandis testibus
plura quam quisquam dixit facete, et illa ipsa quae sunt in Verrem dicta frigidius aliis
adsignauit et testimonii loco posuit, ut, quo sunt magis uulgaria, eo sit credibilius illa
non ab oratore ficta, sed passim esse iactata.
342
Cf. Orator 90.
343
Plutarco (Cíc. 50, 5 sg.) confirma a fama.
344
Cícero define pelo exemplo de Ênio o sentido do termo dictum (no plural, dicta) como dito picante (cf.
De ridiculis, § 222). Essa solução balizou a tradução desta palavra nos capítulos em que ela se apresentou
sozinha e o contexto exigia e/ou permitia. Quando isso ocorreu, optei pela expressão “dito picante”,
subentendido, portanto, o termo salsum na ocorrência em questão (p. ex.: §§ 28, 30 e 60). Por outro lado,
quando a palavra surgiu acompanhada de algum modificador, obedeci à construção ali presente,
utilizando a palavra traduzida “dito” acompanhada do devido modificador (p. ex.: §§ 6, 51 e 54). Em
outros casos a palavra era apenas um componente do período ou a retomada de algo que havia sido dito
antes, e isso não a incluía em nenhum desses casos (p. ex.: §§ 26, 104, 109, 111). Por fim, explico em De
ridiculis (§ 216, n. 104) por que traduzi salsum por “picante”.
345
Sobre urbanidade (urbanitas), v. § 8, n. 354.
346
Defendendo Cícero da crítica sobre a qualidade de seu humor, Kelsey (1907) exalta sua excelente
capacidade de persuasão (segundo Kelsey, Cícero, adepto do uso da inuentio, é inigualável entre os
oradores nesse quesito) e sua sensibilidade no uso do ridículo. Um dos argumentos usados por Kelsey,
talvez o principal, é justamente essa passagem de De risu, deixando claro que essa fama de Cícero
quanto ao humor derivou da má edição daqueles seus três livros sobre deus ditos ridículos e não sobre as
actiones de Cícero (cf. § 4 e 55).
92
4 De fato, ele disse muitas coisas facetamente
347
não apenas nas conversas
quotidianas, mas também em maior abundância e mais do que qualquer um nos debates
judiciários, bem como interrogando testemunhas. E mesmo aquelas palavras ditas com
demasiada frieza contra Verres, ele as atribuiu a outras pessoas e as pôs na categoria de
depoimento para que quanto mais vulgares fossem mais crível ficasse que elas não
haviam sido preparadas pelo orador, mas sim ditas aqui e ali.
348
5 Vtinamque libertus eius Tiro, aut alius, quisquis fuit, qui tris hac de re libros
edidit, parcius dictorum numero indulsissent et plus iudicii in eligendis quam in
congerendis studii adhibuissent; minus obiectus calumniantibus foret, qui tamen nunc
quoque, ut in omni eius ingenio, facilius quod reici quam quod adici possit inuenient.
5 Oxalá seu liberto Tiro,
349
ou outro qualquer que tenha publicado os três livros
sobre o assunto, tivesse sido menos indulgente com a quantidade de ditos picantes e
empregado mais juízo no escolher do que zelo no acumular.
350
Fosse isso, ele teria sido
menos exposto aos caluniadores, que, mesmo hoje, encontrarão nesse e nos demais
aspectos do seu talento mais facilmente o que retirar do que acrescentar.
6 Adfert autem rei summam difficultatem primum quod ridiculum dictum
plerumque falsum est [hoc semper humile], saepe ex industria deprauatum, praeterea
numquam honorificum; tum uaria hominum iudicia in eo quod non ratione aliqua, sed
motu animi quodam nescio an enarrabili iudicatur.
6 Além disso, acarreta à matéria uma extrema dificuldade: primeiro, o dito ridículo
é quase sempre falso (e este é sempre baixo), muitas vezes propositalmente distorcido, e
além do mais nunca enaltecedor; e, em segundo lugar, o fato de haver vários juízos dos
347
Referência à nomenclatura do riso oratório de Cícero definido em De ridiculis.
348
Cf. In Verrem, II, 1, 121.
349
o referências sobre o liberto Tiro. Quanto à existência dos livros que continham os dicta de
Cícero referências em Ad familiares (VII, 32; IX, 16). Em uma delas (XV, 21), inclusive, aparece o
nome de Trebonius (cf. Kelsey, 1907: p. 7) como seu prévio curador (v. Macróbio Saturnalia II, 1, 12).
350
Kelsey (1907: pp. 7–8), cita essa fama angariada por Cícero devido à escolha no ajuntamento
de seus ditos ridículos em três livros.
93
homens a seu respeito, porquanto ele não é entendido por meio de algum princípio
racional, mas por um certo movimento do ânimo que não sei se pode ser explicado.
351
7 Neque enim ab ullo satis explicari puto, licet multi temptauverint, unde risus, qui
non solum facto aliquo dictoue, sed interdum quodam etiam corporis tactu lacessitur.
Praeterea non una ratione moueri solet: neque enim acute tantum ac uenuste, sed
stulte, iracunde, timide dicta ac facta ridentur, ideoque anceps eius rei ratio est, quod a
derisu non procul abest risus.
7 De fato, não acredito que alguém possa explicar satisfatoriamente, ainda que
muitos tenham tentado, de onde vem o riso, que é provocado não por algum fato ou
dito mas também algumas vezes por certo toque do corpo
352
. Com efeito, o riso não
costuma ser provocado por uma só ação: não rimos somente por palavras e ações
realizadas de forma aguda e elegante, mas também pelas praticadas de forma estulta,
iracunda e medrosa. E é por isso que a natureza de sua matéria é perigosa, pois o riso
não se afasta muito do escárnio.
353
8 Habet enim, ut Cicero dicit, sedem in deformitate aliqua et turpitudine; quae
cum in aliis demonstrantur, urbanitas, cum in ipsos dicentis reccidunt, stultitia uocatur.
Cum uideatur autem res leuis, et quae a scurris, mimis, insipientibus denique saepe
moueatur, tamen habet uim nescio an imperiosissimam et cui repugnari minime potest.
8 O riso possui seu lugar, como diz Cícero, em alguma torpeza ou imperfeição
354
,
chamadas de urbanidade
355
quando apontadas nos outros e estultice quando recaem
351
Embora Quintiliano não marque textualmente a observação dos cinco aspectos que devem ser
observados quanto ao riso, como o faz Cícero no parágrafo 235 de De ridiculis, referências a elas podem
ser encontradas em De risu. A primeira delas, o que é o riso?”, à semelhança de Cícero também subjaz
no texto, mas não é respondida por Quintiliano. Parece, no entanto, que Quintiliano, diferentemente de
Cícero, reconhece ignorar o processo físico por que ocorre o riso. V. De ridiculis § 235 e nn.
352
Talvez o texto se refira ao toque em determinadas partes do corpo que causam o riso (chamado
popularmente de cócegas) ou ao que teoriza Plíinio, o velho, em Naturalis historia (XI, 198), e
Aristóteles em De partibus animalium (III, 10, 672, b10).
353
Derisu: Preferi “escárnio” a “derrisão” porque seu uso é mais comum e freqüente.
354
Referência à segunda pergunta a respeito do riso (cf. De ridiculis, § 235, 236 e Aristóteles, Poética
1449a 34 sg). Afirmativamente, Cícero e Quintiliano concordam que o riso tem seu lugar nas
deformidades e nos vícios das pessoas. Todavia, como diz Aristóteles (idem ibidem) e o próprio
94
sobre os mesmos que estão falando. Por outro lado, posto que possa ser visto como um
assunto menor, e amiúde provocado por bufões, mimos, tolos enfim, o riso possui,
contudo, uma força talvez poderosíssima e irresistível.
Quintiliano (cf. §§ 28–31), não será qualquer vício objeto do riso. Tendo em mente a acepção de Bergson,
que diz (1983: p. 26, 28) do riso um castigo do automatismo e um resultado da rigidez e da quebra da
normalidade e o efeito do monstrum descrito nos quarenta primeiros versos da Arte Poética de Horácio, o
riso (apontado no v. 5, observar-se-á que existe determinado ajuste para que um vício se mostre risível.
Empiricamente, se ri de um rosto distorcido a imitar gestos, jeitos e maneira involuntárias de determinada
pessoa que não sejam dignos de pena ou comiseração. Mas não se ri se uma deformação física é resultado
de uma anormalidade da saúde de alguém ou de uma aberração qualquer. O riso preceituado por
Quintiliano não somente se afasta por completo desse último tipo de riso, impróprio, como também
determina maior cuidado e restrição no tipo de riso que deve ser provocado pelo orador.
355
Em seu artigo Early Roman Urbanity (The American Journal of Philology, vol. 81, nº. 1, 1960: pp. 65-
72) Edwin S. Ramage colhe em textos de Cícero provas do desenvolvimento do conceito de urbanitas à
época do último ano do orador. O primeiro conceito remete ao contraste entre a noção física de cidade e o
refinamento que ela proporciona (cf. Ad familiares VII, 6, 1; XVII, 1; III, 9, 1; Brutus 177; De oratore I,
17; Pro Roscio Amerino 120). O segundo diz respeito ao riso refinado. Ramage relembra diversos
parágrafos em que Cícero separa o humor do orador do humor dos bufões (cf. §§ 239, 244–246) e
reproduz um trecho de De officiis 104, em que isso se mostra bem claro. Trata-se deste trecho: Duplex
omnino est iocandi genus, unum illiberale, petulans, flagitiosum, obscenum, alterum elegans, urbanum,
ingeniosum, facetum. Cícero diz que dois o os gêneros de gracejar: um deles é deseducado, petulante,
torpe, obsceno; o outro é elegante, urbano, engenhoso, faceto. o terceiro conceito diz sobre os modos
do homem urbano, suas maneiras de falar quanto ao tom da voz e da pronúncia. Ramage também
apresenta, a partir de peças de Plauto e Terêncio, a oposição entre o homo urbanus e o homo rusticus,
especificamente quanto aos modos de vida. Ao citar a peça Vidularia, de Plauto, ele traz termos como
mollitia e umbra, relativos à vida na cidade em oposição como a vida laboriosa do campo. Em Adelphoe
de Terêncio, ele aponta a oposição entre facilitate e clemens (da cidade) e parce e duriter (do campo).
Demais, cita também Domicio Marso (De risu, §§ 102–108) e, em especial, a ênfase de Catão sobre as
características do homem urbano, para Ramage um gentleman, um cavalheiro. Já em seu trabalho
denominado Urbanitas: cero and Quintilian, a Contrast in Attitudes (The American Journal of
Philology, vol. 84, nº 4, 1963: pp. 390–414) Ramage diz que essa noção de urbanitas se insere no
interesse dos romanos em perpetuar sua herança. Assim, desde um tempo próximo ao de Cícero até o
primeiro século da era comum, o conceito de urbanitas se estabelece e se define até se mostrar mais exato
em Quintiliano do que em Cícero. Depois, alegando que alguns artigos que trataram sobre o tema
apresentavam pontos conflitantes (externos ou internos), Ramage reintroduziu a comparação entre a
urbanitas Cíceroniana e a quintiliana. Em processo semelhante ao que fez em seu primeiro artigo (“Early
Roman Urbanity”) ele enumera as ocorrências do termo em Cícero. Consta ali uma tentativa de
classificação de sinônimos de urbanitas, a exclusividade de ocorrência do termo entre a elite romana,
trechos onde Cícero comenta a respeito de um suposto “aroma da urbanidade”, a aproximação entre
urbanitas e humanitas, a diferença entre cultura e polidez nas acepções do termo, a relação da palavra
com a noção de cavalheirismo, a relação entre urbanitas, a proximidade entre a urbanitas e o estilo Ático
(cf. Orator 89), entre ela e o humor e, por fim, entre urbanitas e facetiae (Brutus 177). Mais adiante o
autor retoma essas informações para discorrer sobre o uso da urbanitas entre Cícero e Quintiliano. Assim,
ele afirma que à época de Quintiliano o termo passou a ser usado não apenas como uma noção abstrata de
humor, mas também para derivar seu produto, o ridículo ou o gracejo (em Quintiliano, como apontamos,
dito ridículo ou dito picante). Ramage desenvolve ainda a percepção encontrada em De risu sobre o
refinamento do homem urbano, oposição entre a urbanidade e a rusticidade (a primeira na definição de
Domício Marso e a segunda na de Quintiliano), a moderação no uso do riso e seu censurável exagero
(questão essa que transita pela doutrina de ἦθος e πάθος). Por fim, Ramage alinha uma comparação
entre as duas acepções de urbanitas: a de Quintiliano envolve um caráter formador na educação do
orador, a de Cícero possui uma acep vção intangível e quiçá abstrata compreendida a partir das
ocorrências em suas obras.
95
9 Erumpit etiam inuitis saepe, nec uultus modo ac uocis exprimit confessionem,
sed totum corpus ui sua concutit. Rerum autem saepe, ut dixi, maximarum momenta
uertit, ut cum odium iramque frequentissime frangat.
9 Muitas vezes, ele irrompe involuntariamente
356
e se torna visível não apenas pela
expressão do rosto e da voz, como também sacode todo o corpo com sua força. Por
outro lado, como eu disse, o riso transforma as situações mais pesadas, como, por
exemplo, ao abrandar com muita freqüência o ódio e a ira.
357
10 Documento sunt iuuenes Tarentini, qui multa de rege Pyrrho sequius inter
cenam locuti, cum rationem facti reposcerentur et neque negari res neque defendi
posset, risu sunt et oportuno ioco elapsi. Namque unus ex iis "immo", inquit, "nisi
lagona defecisset, occidissemus te", eaque urbanitate tota est inuidia criminis dissoluta.
10 Disso servem de exemplo alguns jovens de Tarento, que, depois de terem dito
muitas coisas ruins a respeito do rei Pirro durante a ceia, foram chamados a prestar
contas dessas atitudes, e não podendo negá-las nem justificá-las, esquivaram-se com um
riso e um oportuno gracejo. Um deles disse: “Sim, se a botilha não tivesse chegado ao
fim, ter-te-íamos matado”. Assim, toda aquela hostilidade acabou desfeita por meio
daquela urbanidade.
358
11 Verum hoc quidquid est, ut non ausim dicere carere omnino arte, quia
nonnullam obseruationem habet suntque ad id pertinentia et a Graecis et a Latinis
composita praecepta, ita plane adfirmo praecipue positum esse in natura et in
occasione.
356
Cf. De ridiculis, § 235 o que é o próprio riso, por que ajuste é causado, onde se encontra, por que
modo aparece e de repente irrompe, por que desejando contê-lo, o podemos segurá-lo e por qual modo
ocupa ao mesmo tempo os pulmões, a boca, as veias e o rosto.”
357
Cf. § 1º.
358
O episódio também aparece em Valério Máximo (V, 1, ext.3), Plutarco (Pyrrh. VIII, 11 sg) e Díon
Cassius (X, frag. 40, 47).
96
11 Na verdade, seja qual for sua natureza, da mesma maneira que não ouso dizer
que o riso carece completamente de arte,
359
porquanto seu uso requer algum cuidado e
preceitos pertinentes a ele compostos tanto pelos gregos como pelos latinos; também
afirmo, abertamente, que ele tem seu lugar principalmente na natureza e na ocasião.
12 Porro natura non tantum in hoc ualet, ut acutior quis atque habilior sit ad
inueniendum (nam id sane doctrina possit augeri), sed inest proprius quibusdam decor
in habitu ac uultu, ut eadem illa minus alio dicente urbana esse uideantur.
12 Indo mais longe, a natureza não apenas exerce influência nisto: que alguém seja
mais agudo e habilidoso para a invenção humorística (pois isso pode seguramente ser
ensinado por uma doutrina); no entanto algumas pessoas possuem um decoro tão
especial do corpo e do rosto, que as mesmas coisas parecem ser menos urbanas quando
ditas por outras pessoas.
13 Occasio uvero et in rebus est, <cuius est> tanta uis ut saepe adiuti ea non
indocti modo, sed etiam rustici salse dicant, et in eo, quid aliquis dixerit prior; sunt
enim longe uenustiora omnia in respondendo quam in prouocando.
13 Já a ocasião, por sua vez, está não somente nas circunstâncias (tanta é a sua força
que muitas vezes, auxiliados por ela, não somente os rudes, mas também os rústicos
falam picantemente) como também naquilo que alguém tenha dito antes. Com efeito,
tudo fica muito mais elegante na resposta do que na provocação.
14 Accedit difficultati quod eius rei nulla exercitatio est, nulli praeceptores. Itaque
in conuiuiis et sermonibus multi dicaces, quia in hoc usu cotidiano proficimus: oratoria
urbanitas rara, nec ex arte própria, sed ad hanc consuetudine commodata.
359
Cf. De ridiculis, §§ 216-218.
97
14 Acresce a dificuldade o fato de não haver exercício nem professor algum desta
matéria. É por essa razão que existem muitos homens mordazes nos banquetes e nas
conversas, porque é nesta prática quotidiana que progredimos. A urbanidade é rara na
oratória e não oriunda de uma arte
360
própria, mas emprestada do uso
361
.
15 Nihil autem uetabat et componi materias in hoc idoneas, ut controuersiae
permixtis salibus fingerentur, uel res proponi singulas ad iuuenum talem
exercitationem.
15 Por outro lado, nada impediu a composição de matérias apropriadas ao assunto,
de tal maneira que fossem compostas controvérsias misturadas a jovialidades e que até
temas específicos fossem propostos aos jovens como exercício.
16 Quin ipsae illae (dicta sunt ac uocantur) quas certis diebus festae licentiae
dicere solebamus, si paulum adhibita ratione fingerentur aut aliquid in his serium
quoque esset admixtum, plurimum poterant utilitatis adferre, quae nunc iuuenum uel
sibi ludentium exercitatio est.
16 Ademais, se fossem compostas com um pouco mais de método ou até se fosse
misturado algo sério nelas, essas mesmas /discussões/ (chamadas de ditos picantes), que
costumávamos dizer em certos dias de liberdade festiva,
362
poderiam trazer algo útil do
que agora é só uma prática dos jovens ou dos que se divertem.
360
Em De ridiculis Cícero já mencionava a inexistência de uma arte sobre o riso: nos parágrafos 216, 231
232, ele afirma o haver arte própria sobre a matéria; no § 217, afirma que as tentativas resultaram
frustrantes; no § 219, diz até que a arte do riso é desnecessária; no § 227, que o como aprender a
utilizar o riso por uma arte (v. nota anterior) e no § 229 afirma que se o há uma arte do riso, porém
preceitos que sobre ele podem ser estabelecidos.
361
Talvez a referência mais estreita entre este parágrafo e aquele em que Cícero expõe em De ridiculis a
respeito da inexistência de uma arte do riso esteja nos parágrafos 227 e 229, em que Cícero ao mesmo
tempo diz que, embora não exista uma arte própria do ridículo, sim algo a ser preceituado sobre ele.
Diz também que se deve ter em conta as pessoas, os fatos e a ocasião ao usá-la, o que condiz ao menos
em parte com o que defende Quintiliano, aqui dizendo que a arte do riso se por empréstimo do uso, da
prática (que certamente exige a atenção às pessoas, aos fatos, à ocasião).
362
Provável referência às Saturnalia, festa em homeangem a Saturno que tinha início em 17 de dezembro
e durava 12 dias, nos quais havia grande licenciosidade dos costumes e das palavras, daí talvez Horácio
tê-la chamado de libertas decembris (Sermones, II, 7, 4).
98
17 Pluribus autem nominibus in eadem re uulgo utimur: quae tamen si diducas,
suam quandam propriam uim ostendent. Nam et urbanitas dicitur, qua quidem
significari uideo sermonem praeferentem in uerbis et sono et usu proprium quendam
gustum urbis et sumptam ex conuersatione doctorum tacitam eruditionem, denique cui
contraria sit rusticitas.
17 Além disso, comumente chamamos uma mesma coisa por vários nomes: as quais
mesmo consideradas isoladamente, mostram particularmente sua própria força. Pois isso
também se diz urbanidade,
363
na qual vejo definida a linguagem que traz nas palavras,
através do som e do uso, um gosto próprio da cidade
364
e uma tácita erudição tomada
das conversas dos doutos; em suma, o contrário da rusticidade.
365
18. Venustum esse quod cum gratia quadam et uenere dicatur apparet. Salsum in
consuetudine pro ridículo tantum accipimus: natura non utique hoc est, quamquam et
ridicula esse oporteat salsa. Nam et Cicero omne quod salsum sit ait esse Atticorum,
non quia sunt maxime ad risum compositi, et Catullus, cum dicit:
"Nulla est in corpore mica salis",
non hoc dicit, nihil in corpore eius esse ridiculum.
18. É evidente que venusto é tudo o que é dito com graça e beleza. Conforme o
costume, consideramos picante o que é equivalente àquilo que é ridículo. Porém, esse
não é absolutamente o seu efeito natural, não obstante o dito agudo necessite ser
picante. Com efeito, Cícero disse que tudo o que é picante está relacionado aos
Áticos,
366
mas não disse isso porque os Áticos são especialmente inclinados ao riso. Do
mesmo modo, quando Catulo diz:
363
Quintiliano define a urbanitas aqui e no § 107, v. também § 8, n. 355.
364
Cícero fala em odor urbanitatis (o aroma da urbanidade) em De oratore III, 161.
365
O parágrafo coloca em evidência a oposição existente entre urbanidade e rusticidade (cf. Ramage,
1963: p. 406; n. 355).
366
Quintiliano (XII, 10, 17) argumenta que as maneiras dos áticos, refinadas e sensíveis, mas que não
suportavam redundâncias, ajudaram na definição do estilo homônimo, e que os modo de viver do povo
asiático, que sempre fora inclinado à pompa e à ostentação, foi assimilado na definição do estilo oratório
asiático. Os seguidores do estilo ático enalteciam-no como lúcido, simples e reservado [Para Keneddy
99
“não há um grão de sal no corpo”,
367
não quer dizer que nada no corpo dela é ridículo.
19. Salsum igitur erit quod non erit insulsum, uelut quoddam simplex orationis
condimentum, quod sentitur latente iudicio uelut palato, excitatque et a taedio defendit
orationem. Sales enim, ut ille in cibis paulo liberalius adspersus, si tamen non sit
inmodicus, adfert aliquid propriae uoluptatis, ita hi quoque in dicendo habent quiddam
quod nobis faciat audiendi sitim.
19 Portanto, a palavra picante será semelhante àquilo que não é insosso, como que
um simples tempero do discurso
368
, que é sentido por uma percepção latente tal qual
(1972: p. 242) “o aspecto mais interessante do neo-aticismo é sua tendência ao classicismo”], e criticavam
o asiático como pomposo e florido. Por outro lado, a citação neste parágrafo se refere à passagem entre os
§§ 87-90 de Orator, onde Cícero afirma que tudo o que é picante e saudável é próprio do estilo ático. A
referência não somente faz lembrar o embate entre os oradores seguidores deste estilo oratório e aqueles
do estilo asianista, como também dele faz parte: o teor do parágrafo 90 de Orator culmina a crítica que
Cìcero faz dos novos áticos (neo-áticos) ao dizer que nunca havia visto um deles utilizar os ditos picantes
e as facécias da maneira que ali ele precitua ao orador. Cícero, por sua vez, era acusado por alguns rivais
de se identificar como um orador asianista. E a acusação beirava o mau gosto quando autores como
Licínio Calvo, amigo do poeta Catulo (v. § 60), afirmavam que o estilo, além de redundante, de
repetições excessivas, frio quanto aos ditos picantes, era também quase afeminado (ibid., XII, 10, 12).
Cícero em resposta, por um lado, chamava esses dois e outros poetas de noui (novos) e, por outro, dizia
que a definição de Aticismo era mais ampla do que o Aticismo romano admitia. Em Tácito (Dialogus de
oratoribus, 18) lemos que Cícero chamava Calvo de exsanguem et aridum (exangue e árido), Brutus de
otiosum atque diiunctum (tedioso e disjunto), e que Calvo chamava Cícero de solutum et eneruem (mole e
efeminado) e Bruto a Cícero de fractum atque elumbem (efeminado e fraco). STEEL (ibid., pp. 58-59),
faz importante observação ao lembrar que se Demóstenes se igualava a Lísias, orador ático, quanto ao
grande estilo de Atenas, também é possível dizer que Cícero, equiparado a Demóstenes (como o aponta
Quintiliano em De risu, §§ 1-2) em poder oratório e estilo próprio, era também ele um aticista.
Retomando a citação feita por Quintiliano e o que ele disse sobre os áticos, duas justificativas podem
talvez ser encontradas para a disparidade entre o teor da citação e o que o retor quis dizer: a primeira diz
respeito ao que o próprio Quintiliano afirmou no parágrafo 3 sobre Demóstenes: “os gracejos não o
desagradavam, mas não era exatamente esse o seu dom.” Ora sendo ele um orador ático à altura de Lísias,
não caberia dizer agora que aquela não-inclinação para o riso se mostraria agora diferente, ou seja,
especial (“especialmente, ou afoitamente, inclinado ao riso”, cf. § 3); a segunda hipótese decorre em parte
da primeira e leva em consideração o que o parágrafo seguinte de De risu diz sobre temperar o discurso
com o riso, conotando claramente que seu uso requer boa dose de moderação. Em outras palavras, os
áticos possuíam além da saúde dos discursos, grande capacidade em ser picantes na medida correta, mas
não sabemos precisar se Quintiliano quis dizer os áticos no sentido amplo, geral, incluindo aqueles
inimigos literários de Cícero ou se acolheu também aquela assertiva do orador.
367
Cf. Catulo 86, 4. A pessoa em questão é Quíntia. A citação não está precisa, como se no poema em
sua íntegra e traduzido: Quintia formosa est multis,/mihi cândida, longa / recta est. Haec ego sic singula
confiteor, / totum illud ‘formosa” nego; nam nulla venustas, / nulla in tam magno est corpore mica salis.
/ Lesbia formosa est, quae cum pulcerrima tota est, / Tum omnibus una omnis subripuit ueneres.(Para
muitos Quíntia é formosa, para mim ela é cândida, alta, / ajeitada. Tudo isso eu admito, / mas nego em
suma aquele “formosa”. Pois nenhuma beleza, / nenhum grão de sal em tão grande corpo. / Lésbia é
formosa. Ela que toda lindíssima de todas roubou sozinha os encantos.
100
acontece com o paladar e que estimula e afasta o discurso do tédio. De fato, são coisas
picantes: assim como o sal espalhado na comida com um pouco de abundância (mas
sem exagero) a ela algo do seu próprio gosto, também o dito picante possui no
discurso algo que cria em nós a sede de ouvi-lo.
20 Facetum quoque non tantum circa ridicula opinor consistere; neque enim
diceret Horatius facetum carminis genus natura concessum esse Vergilio. Decoris hanc
magis et excultae cuiusdam elegantiae appellationem puto. Ideoque in epistulis Cicero
haec Bruti refert uerba: "ne illi sunt pedes faceti ac deliciis ingredienti molles", quod
conuenit cum illo Horatiano:
"molle atque facetum Vergilio".
20 Sou da opinião também de que o faceto não consista somente nas coisas
ridículas. E, de fato, Horácio não diria que o gênero de poesia concedido a Virgílio pela
natureza fosse faceto. Considero essa palavra aplicada mais à beleza e a uma elegância
esmerada. E é por essa razão que Cícero refere, nas epístolas, estas palavras de Bruto:
“Certamente aqueles pés são facetos e delicados e a delicadeza do caminhar lhes
leveza”. Isso se ajusta àquela afirmação de Horácio:
“Para Virgílio o gênero delicado e faceto.
369
21 Iocum uero id accipimus, quod est contrarium serio: nam et fingere et terrere et
promittere interim iocus est. Dicacitas sine dubio a dicendo, quod est omni generi
commune, ducta est, proprie tamen significat sermonem cum risu aliquos incessentem.
Ideo Demosthenen urbanum fuisse dicunt, dicacem negant.
21 Admitimos como gracejo aquilo que é contrário ao sério; pois fingir, espantar e
propor são às vezes um gracejo. A palavra dicacitas
370
provém, sem dúvida, de dicere
368
V. De ridiculis, § 216, n.104.
369
O verso se encontra nas Satirae 1, 10, 44-45. Na citação de Brutus, a palavra mollis refere-se talvez às
Bucólicas de Virgílio (Eclogae 2, 50; 3, 45; 4, 28; 5, 31 e 38; 7, 45; 8, 64; 10, 42).
101
(dizer), e é comum a todo este nero; propriamente, todavia, ela significa um discurso
que ataca a outras pessoas com o riso. Eis porque dizem que Demóstenes era urbano,
371
mas negam que fosse mordaz.
372
22 Proprium autem materiae, de qua nunc loquimur, est ridiculum; ideoque haec
tota disputatio a Graecis περ γελοου inscribitur. Eius prima diuisio traditur eadem
quae est omnis orationis, ut sit positum in rebus ac uerbis.
22 Mas o objeto desse assunto, do qual estamos falando, é o ridículo. E é por isso
que toda essa discussão é intitulada pelos gregos de περ γελοου (De risu). Sua
primeira divisão é a mesma daquela disposta em todos os discursos: o ridículo está
baseado nos assuntos e nas palavras.
373
23 Vsus autem maxime triplex: aut enim ex aliis risum petimus aut ex nobis aut ex
rebus mediis. Aliena aut reprendimus aut refutamus aut eleuamus aut repercutimus aut
eludimus. Nostra ridicule indicamus et, ut uerbo Ciceronis utar, dicimus aliqua
subabsurda. Namque eadem quae si inprudentibus excidant stulta sunt, si simulamus,
uenusta creduntur.
23 Seu uso se faz principalmente tríplice: provocamos o riso por coisas nossas, por
coisas dos outros ou por elementos neutros.
374
Da parte alheia censuramos ou refutamos
370
Para nós, mordacidade.V. De ridiculis, § 218.
371
Cf. § 2 e Orator, 90. A diferença entre Demóstenes ser urbano e não mordaz revela mais uma vez a
urbanidade como gênero de riso.
372
V. De ridiculis, § 218.
373
Cícero estabelece divisão idêntica em De ridiculis, § 248.
374
Nos parágrafos 22 e 23-24 Quintiliano traça duas categorizações de ditos ridículos baseadas em
Cícero. O parágrafo 22 de De risu é uma referência ao parágrafo 248 de De ridiculis, e o parágrafo 22 se
conecta ao § 274, que não consta nas categorizações de Cícero. Quintiliano, porém, não explica o
funcionamento entre a divisão desenvolvida no § 22 e o uso tríplice demarcado no §§ 23–24 nem submete
ou equipara um ao outro. Depois, o retor constitui esta tripartição a partir de outro ponto de De ridiculis
em que o ocorre categorização. Mais, apenas o segundo elemento dessa tripartição se apóia em Cícero.
Continuando, Quintiliano também não desenvolve os exemplos na seqüência da categorização, deixando
para fazê-la apenas no parágrafo 39. Entre este e o parágrafo 44 encontramos os exemplos dos gêneros de
urbanidade baseados no assunto, e entre os parágrafos 45–83 estão os gêneros de urbanidade baseados nas
palavras, o que atende àquela divisão do parágrafo 22. O desencontro aparece no parágrafo 84 quando
Quintiliano diz restar “os gêneros que consistem em frustrar a expectativa ou entender de outro modo o
que foi dito”, o que não confere com a tripartição dos parágrafos 23–24. Afinal falta o elenco de
102
ou rebaixamos ou rebatemos ou zombamos. De nós, falamos de forma ridícula e,
usando uma expressão de Cícero, dizemos algo um tanto absurdo.
375
E as mesmas
palavras que se mostram estultas se escapam aos imprudentes, são consideradas
venustas, se as simulamos.
24 Tertium est genus, ut idem dicit, in decipiendis exspectationibus, dictis aliter
accipiendis, ceteris, quae neutram personam contingunt ideoque a me media dicuntur.
24 O terceiro gênero,
376
como diz o mesmo Cícero, consiste em lograr as
expectativas
377
e em interpretar de modo diferente as palavras e as demais coisas que
dizem respeito a uma pessoa neutra. Por isso, chamo-o de intermediário.
378
25 Item ridicula aut facimus aut dicimus. Facto risus conciliatur interim admixta
grauitate: ut M. Caelius praetor, cum senam eius curulem consul Isauricus fregisset,
alteram posuit loris intentam (dicebatur autem consul a patre flagris aliquando
caesus); interim sine respectu pudoris: ut in illa pyxide Caeliana, quod neque oratori
neque ulli uiro graui conueniat.
25 Fazemos ou dizemos as coisas ridículas do mesmo modo. O riso é obtido por
uma ação à qual se mistura algo de sério, como uma história do pretor Marco Célio:
quando o cônsul Isaurico rasgou sua cadeira curul, ele a substituiu por outra reforçada
com tiras de couro (pois diziam alguns que, algumas vezes, Isaurico fora açoitado pelo
exemplos dos dois primeiros gêneros dessa tripartição, e o elenco que se desenvolve a partir do § 84 não
faz parte dos exemplos da bipartição do § 22. Em suma, o retor faz duas categorizações sem relacioná-las:
desenvolve a primeira, mas somente parte da segunda.
375
Cf. De ridiculis, § 284.
376
Somente neste parágrafo Quintiliano utilizou a palavra gênero, o que possibilita enxergar sua tentativa
de categorização de ditos ridículos. Portanto, assim como em Cícero, chamei esta categorização de genera
facetiarum, no que apenas obedeci à nomenclatura de Cícero, chamo as de Quintiliano de genera
urbanitatis não porque ele tenha assim as nomeado, mas em acordo com sua definição terminológica do
ridículo oratório, a urbanitas, com a presença do termo genus, que indica a existência de gêneros e
também para atender a necessidade de denominar o elenco de gêneros expostos em De risu, que ele vai
elencar a partir do parágrafo 39.
377
Este gênero, acolhido de Cícero (De ridiculis, §§ 284–285), faz parte de uma tripartição, enquanto em
De ridiculis é só um modelo entre os gêneros de ridículo de assunto.
378
Esta tripartição de Quintiliano encontra-se em Cícero, De ridiculis, § 289. Cícero, porém, não utiliza o
termo media.
103
pai).
379
Não obstante, a falta de pudor, como no caso do vasinho de Célio,
380
não
convém a orador algum nem a qualquer homem de respeito.
26 Idem autem de uultu gestuque ridículo dictum sit: in quibus est quidem sua
gratia, sed maior cum captare risum non uidentur; nihil enim est iis quae [dicenti]
salsa dicuntur insulsius. Quamquam autem gratiae plurimum dicentis seueritas adfert,
fitque ridiculum id ipsum, quod qui dicit illa non ridet, est tamen interim et aspectus et
habitus oris et gestus non inurbanus, cum iis modus contingit.
26 O mesmo se pode dizer também sobre a fisionomia e o gesto ridículo, os quais
possuem, decerto, sua graça. No entanto, o resultado é maior quando não se percebe que
queremos provocar o riso.
381
De fato, nada é mais insípido que aqueles que querem que
os chamemos de picantes. Por outro lado, ainda que a severidade de quem fala traga
algo muito agradável, pois o ridículo aparece quando quem fala não ri, todavia o
aspecto, a expressão e o gesto são talvez não inurbanos quando a medida é observada.
27 Id porro quod dicitur aut est lasciuum et hilare, qualia Gabbae pleraque, aut
contumeliosum, qualia nuper Iuni Bassi, aut asperum, qualia Cassi Seueri, aut lene,
qualia Domiti Afri.
27 Continuando, o dito ridículo ou é lascivo ou é hilário, como quase tudo em
Gaba;
382
ou contumelioso,
383
como mais recentemente em Júnio Basso;
384
ou áspero
como em Cássio Severo,
385
ou sutil como em Domício Africano.
386
379
Possivelmente o episódio aconteceu quando Públio Servílio Vácia Isaurico era cônsul e Marco Célio
pretor em 48 a.e.c. (v. Smith, 1867: vol. 3, p. 1.233).
380
Cícero, Pro Caelio 69. O vasinho em questão era a peça em que estava, como dizia a acusação, o
veneno para Clódia (Sobre Clódia, v. Smith, W. A dictionary of Greek and Roman biography and
mythology: vol. 1, p. 762).
381
Cícero orienta que assim se proceda ao provocar o riso (v. De ridiculis, § 289).
382
Gaba era um famoso bufão que viveu na época de Augusto. Juvenal (V, 4) e Marcial (I, 41, 16 e 10,
101, 2 e 3) também fazem referência a ele.
383
No parágrafo 74 há um exemplo de contumélia de Júnio Basso.
384
Júnio Basso era conhecido quando Quintiliano era ainda menino e viveu na época do consulado de
Crispo Passieno em 42 a.e.c. (cf. §§ 57 e 74).
385
Contemporâneo de Augusto, Cássio Severo introduziu um novo estilo de oratória e foi o primeiro a
abandonar o estilo dos então antigos oradores. Quintiliano diz que talvez ele merecesse um lugar melhor
entre os maiores oradores da Antiguidade. O mesmo Quintiliano diz ainda que Severo, de temperamento
104
28 Refert his ubi quis utatur. Nam in conuictibus et cotidiano sermone lasciua
humilibus, hilaria omnibus conuenient. Laedere numquam uelimus; longeque absit illud
propositum, potius amicum quam dictum perdendi. In hac quidem pugna forensi malim
mihi lenibus uti licere. Nonnumquam et contumeliose et aspere dicere in aduersarios
permissum est, cum accusare etiam palam et caput alterius iuste petere concessum sit.
Sed hic quoque tamen inhumana uideri solet fortunae insectatio, uel quod culpa caret
uel quod redire etiam in ipsos qui obiecerunt potest. Primum itaque considerandum est
et quis <et> in qua causa et apud quem et in quem et quid dicat.
28 Importa o lugar onde usamos as palavras, pois no convívio e no quotidiano a
linguagem chula convém às pessoas rudes
387
e a alegre convém a todos. Jamais
desejemos ofender alguém e longe de nós esteja o propósito de perder o amigo, mas não
a /piada/
388
. Certamente, numa disputa forense prefiro me permitir usar palavras
agradáveis
389
. Às vezes, é permitido falar com injúrias e asperezas contra os adversários
quando, com certeza, for possível acusar alguém abertamente e pedir, com justiça, a
cabeça de outrem. Mas, mesmo assim, parece desumano insultar a sorte de alguém, seja
porque é inocente ou porque uma injúria pode recair sobre aqueles mesmos que a
lançaram. Deste modo, deve-se considerar, antes de tudo, quem, em que causa, diante
de quem, contra quem e o quê se fala.
29 Oratori minime conuenit distortus uultus gestusque, quae in mimis rideri solent.
Dicacitas etiam scurrilis et scaenica huic personae alienissima est; obscenitas uero non
forte e passional, talentoso e de surpreendente mordacidade, possuía uma oratória áspera que fazia rir (cf.
X, 1, 116 e 117).
386
Segundo Quintiliano, que o conheceu ainda jovem (Plínio, o jovem, Livro Décimo das Epistolas II,
14), Domício Africano foi um dos maiores e mais maduros oradores da antiguidade (cf. X, 1, 118; XII,
10,11).
387
V. § 8, n. 355.
388
Aqui especificamente haveria a necessidade de traduzir dictum por “dito picante” (cf. § 2, n. 344). No
entanto, tomei a licença de traduzir o termo por “piada”, para assim poder utilizar um dito famoso entre
nós que consiste em dizer justamente sobre o oportunismo sempre presente em algumas pessoas que é
disparar um dito picante ou sarcástico sem levar em conta as pessoas (no caso, os amigos) ou o lugar ou a
circunstância.
389
Não em De risu uma afirmação direta autorizando o uso do riso por parte do orador, que vem a ser
a terceira pergunta sobre o riso (“É próprio de o orador utilizar o riso?”, cf. De ridiculis 235–236). A
possibilidade desse uso está menos subetendida nessa passagem do que nos parágrafos 1º, 12, 13, 17, 18-
20. No primeiro, as vantagens ali apontadas coincidem em parte com o teor da segunda parte do parágrafo
236 de De ridiculis, os demais deixam subentendido que é próprio do orador utilizar o riso.
105
a uerbis tantum abesse debet, sed etiam a significatione. Nam si quando obici potest,
non in ioco exprobranda est.
29 De modo nenhum convêm ao orador o rosto e os gestos disformes (que
costumam ser risíveis nos mimos). A mordacidade do bufão e teatral é assaz estranha à
sua persona.
390
Na verdade, não a obscenidade explícita deve permanecer longe de
suas palavras, mas também qualquer indício dela. Enfim, se em algum momento for
possível fazer alguma objeção, não é com o gracejo que se deve fazê-la.
30 Oratorem praeterea ut dicere urbane uolo, ita uideri adfectare id plane nolo.
Quapropter ne dicet quidem salse quotiens poterit, et dictum potius aliquando perdet
quam minuet auctoritatem.
30 Por outro lado, assim como desejo que o orador fale com urbanidade, também
não quero que ele pareça, em todas as ocasiões, querer mostrar isso explicitamente. Por
isso é que ele não deve falar picantemente todas as vezes que puder e preferirá por vezes
perder algum dito picante a diminuir sua autoridade.
31 Nec accusatorem autem atroci in causa nec patronum in miserabili iocantem
feret quisquam. Sunt etiam iudices quidam tristiores quam ut risum libenter patiantur.
31 Além disso, pessoa alguma suportará um advogado de acusação escarnecedor
numa causa atroz nem um advogado de defesa zombeteiro numa que inspira comoção.
Há sem dúvida alguns juízes austeros demais para aturar com boa vontade o riso.
32 Solet interim accidere ut id quod in aduersarium dicimus aut in iudicem
conueniat aut in nostrum quoque litigatorem; quamquam aliqui reperiuntur qui ne id
quidem quod in ipsos reccidere possit euitent. Quod fecit Longus Sulpicius, qui, cum
ipse foedissimus esset, ait eum contra quem iudicio liberali aderat ne faciem quidem
390
Cícero orienta de modo idêntico em De ridiculis, § 244.
106
habere liberi hominis: cui respondens Domitius Afer "ex tui," inquit, "animi sententia,
Longe, qui malam faciem habet liber non est?"
32 Costuma acontecer, por vezes, que aquilo que dizemos contra o adversário se
aplica ao juiz ou ao nosso cliente, se bem que alguns advogados que não evitam
aquilo que possa recair sobre eles próprios. Longo Sulpício fez algo assim. Possuindo
ele uma aparência horrível, disse, perante o juiz e contra um homem que pleiteava a
liberdade, que este não possuía sequer o aspecto de um homem livre; ao que lhe
respondeu Domício Africano: “De teu íntimo, Longo, a afirmação de que quem possui
um rosto feio não é livre?”
33 Vitandum etiam ne petulans, ne superbum, ne loco, ne tempore alienum, ne
praeparatum et domo ablatum uideatur quod dicimus: nam aduersus miseros, sicut
supra dixeram, inhumanus est iocus. Sed quidam ita sunt receptae auctoritatis ac notae
uerecundiae ut nocitura sit in eos dicendi petulantia; nam de amicis iam praeceptum
est.
33 Assim, devemos evitar que o que dizemos pareça petulante, soberbo, não
condizente ao lugar, inoportuno, premeditado e trazido de casa; pois, como disse acima,
o gracejo contra os infelizes é desumano. Mas há certas pessoas dotadas de tanta
autoridade e notável respeito que seria funesto dirigir-se a elas com petulância; quanto
aos amigos, já disse o que penso.
34 Illud non ad oratoris consilium, sed ad hominis pertinet: lacessat hoc modo
quem laedere sit periculosum, ne aut inimicitiae graues insequantur aut turpis
satisfactio. Male etiam dicitur quod in pluris conuenit, si aut nationes totae incessantur
aut ordines aut condicio aut studia multorum.
34 Este outro conselho diz respeito não aos oradores, mas a todos os homens: Ao
provocar alguém perigoso de atacar, deve-se fazê-lo de maneira que isso o cause
grave inimizade ou vergonhosa reparação. Além disso, o dito agudo lançado contra
107
muitas pessoas é inconveniente se afronta uma nação inteira ou uma classe social ou
condição ou interesse de muitos.
391
35 Ea quae dicet uir bonus omnia salua dignitate ac uerecundia dicet: nimium enim
risus pretium est, si probitatis inpendio constat. Vnde autem concilietur risus et quibus
ex locis peti soleat, difficillimum dicere. Nam si species omnis persequi uelimus, nec
modum reperiemus et frustra laborabimus.
35 Aquela palavra risível que o homem ilustre diz, é dita com toda a dignidade e o
respeito intactos. Com efeito, o riso custa caro, se seu preço é a honra. Por outro lado, é
muito difícil dizer onde se consegue o riso e em que lugares costuma ser procurado.
Pois, se quisermos perseguir todos os seus aspectos, não descobriremos a regra e
trabalharemos em vão.
36 Neque enim minus numerosi sunt loci ex quibus haec dicta quam illi ex quibus
eae quas sententias uocamus ducuntur, neque alii. Nam hic quoque est inuentio et
elocutio, atque ipsius elocutionis uis alia in uerbis, alia in figuris.
36 Decerto, não são menos numerosos nem diferentes os lugares dos quais tiramos
os ditos picantes do que aqueles de onde retiramos aquilo que chamamos de
pensamentos. De fato, também aqui há a invenção e a elocução, e a eficácia da elocução
está às vezes nas palavras e às vezes nas figuras.
391
Do parágrafo 25 até aqui, Quintiliano se ocupa em determinar os modos pelos quais o orador deve
utilizar o riso. Em resumo, o orador deve se afastar da falta de pudor (§ 25); evitar os gestos e fisionomia
ridículos (6); deve ter em conta antes de utilizar um dito ridículo os lugares (§ 28), as situações (§ 31) e as
pessoas § 32 e 34); não gesticular à maneira dos mimos nem ser mordaz à moda bufa e teatral 29) e
muito menos aproximar-se das obscenidades explícitas (§ 29); deve, enfim, querer ser mais risível do que
mostrar sê-lo 30). Ora, o teor dessas passagens responde perfeitamente à quarta pergunta sobre o riso
(De ridiculis, § 235), “Aque ponto o orador pode utilizar o riso?”, que cero responde nos parágrafos
237 e 238 de De ridiculis. Demais, os cuidados e as maneiras que devem ser observardos ao utilizar o riso
coincidem em grande parte entre os dois tratados. Tanto Cícero quanto Quintiliano (o primeiro afirmando
haver necessidade de grande atenção a este aspecto, e o segundo determinando dez parágrafos para tal
instrução) indicam claramente que o orador deve usar da moderação ao gracejar. Percebe-se também que
de certa forma o sucesso potencial do riso no processo de persusão requer e depende em certa medida da
atenção a esses cuidados.
108
37 Risus igitur oriuntur aut ex corpore eius in quem dicimus, aut ex animo, qui
factis ab eo dictisque colligitur, aut ex iis quae sunt extra posita; intra haec enim est
omnis uituperatio; quae si grauius posita sit, seuera est, si leuius, ridicula. Haec aut
ostenduntur aut narrantur aut dicto notantur.
37 O riso nasce do aspecto daquele contra quem falamos ou do seu caráter, que
encerra seus atos e palavras, ou de coisas externas a ele.
392
Dentro dessa categorização
todo tipo de censura: se ela for colocada de forma mais grave, é séria; se posta de
forma mais leve, é ridícula. E isso é mostrado com gestos ou narrado ou marcado com
palavras.
38 Rarum est ut oculis subicere contingat, ut fecit C. Iulius: qui cum Heluio
Manciae saepius obstrepenti sibi diceret: "Iam ostendam qualis sis", isque plane
instaret interrogatione qualem tandem se ostensurus esset, digito demonstrauit
imaginem Galli in scuto Cimbrico pictam, cui Mancia tum simillimus est uisus:
tabernae autem erant circa forum ac scutum illud signi gratia positum.
38 É raro ter a sorte de expô-lo ante os olhos, como fez Caio Júlio, que após ser
repetidas vezes interrompido aos gritos por Hélvio Mância,
393
disse-lhe: “Já te mostrarei
como és”; e como ele de pronto insistisse em perguntar com quem então se parecia, com
o dedo Mância mostrou a imagem de um Gaulês pintada num escudo címbrico, com o
qual Mância era parecidíssimo. Ora, havia nas vizinhanças do foro algumas tabernas
que tinham aquele escudo como sinal.
39 Narrare quae salsa sint in primis est subtile et oratorium; ut Cicero pro
Cluentio narrat de Caepasio atque Fabricio aut M. Caelius de illa D. Laeli collegaeque
eius in prouinciam festinantium contentione. Sed in his omnibus cum elegans et uenusta
392
V. De ridiculis, §§ 238-239.
393
Cícero conta a mesma historieta em De ridiculis (v. § 266 e nn.). Plínio, o velho, a reproduz também
(v. Naturalis historia XXXV, 25), mas ali o interlocutor de Mância não é Júlio César Estrabão, mas
Crasso.
109
exigitur tota expositio, tum id festiuissimum est quod adicit orator. Nam et a Cicerone
sic est Fabrici fuga illa condita:
39 Contar uma anedota é em primeiro lugar
394
algo sutil e da categoria de um
orador, como faz Cícero em Pro Cluentio a respeito de Cepásio e Fabrício, ou Marco
Célio
395
sobre aquela disputa entre Décimo Lélio e seu colega para ver quem chegaria
primeiro à província.
396
Em todos esses casos, a exposição toda exige elegância e
venustidade, porém aquilo que o orador adiciona é, sobretudo, agradabilíssimo. De fato,
assim Cícero contou a famosa fuga de Fabrício:
40 "Itaque cum callidissime se putaret dicere et cum illa uerba grauissima ex
intimo artificio deprompsisset: "Respicite, iudices, hominum fortunas, respicite C.
Fabrici senectutem", cum hoc "respicite" ornandae orationis causa saepe dixisset,
respexit ipse: at Fabricius a subselliis demisso capite discesserat"; et cetera quae
adiecit (nam est notus locus), cum in re hoc solum esset, Fabricium a iudicio recessisse;
40 “Então como acreditasse falar impetuosamente e como extraísse aquelas
palavras gravíssimas da sua mais profunda astúcia, disse: ‘Olhai, ó juízes, as sortes dos
homens, olhai a velhice de C. Fabrício’”. Quando disse várias vezes a palavra “olhem”
sob o pretexto de ornar o discurso, olhou ele mesmo, mas Fabrício ausentara-se do seu
assento com a cabeça abaixada etc. (o restante já é conhecido). Nessa história uma coisa
só interessa: Fabrício havia deixado o tribunal
397
.
41 et Caelius cum omnia uenustissime finxit, tum illud ultimum: "Hic subsecutus
quo modo transierit, utrum rati an piscatorio nauigio, nemo sciebat: Siculi quidem, ut
sunt lasciui et dicaces, aiebant in delphino sedisse et sic tamquam Ariona transuectum".
394
Entre este e o parágrafo 44, Quintiliano desenvolve os gêneros de urbanidade de assunto atendendo à
divisão e descrição de Cícero entre os §§ 239–243 (gênero de facécias de assuntos) de De ridiculis.
395
Trata-se do mesmo Marco Célio do parágrafo 25.
396
O episódio é desconhecido, porquanto o texto de Marco Célio não chegou até nós.
397
A intenção de Cepásio, que defendia o velho Fabrício em determinado processo, era causar comoção
nos juízes. No entanto, seja porque envergonhado seja porque sem esperanças de vitória, Fabrício saiu
furtivamente do tribunal com a cabeça abaixada, fato que provocou o riso nos ouvintes quando Cepásio,
que não percebera que Fabrício saíra, olhou para o lugar vazio deixado por seu cliente. Cícero narra este
episódio em Pro Cluentio 58 também.
110
41 Célio também contou uma história toda com extrema venustidade, depois na
parte final: Ele o seguiu de perto, mas ninguém sabia por que modo havia transposto o
mar, se com uma jangada ou em um navio de pescador. Os sicilianos é certo que são
lascivos e mordazes – diziam que ele havia montado em um golfinho e tinha sido assim
transportado tal qual Arion.”
42 In narrando autem Cicero consistere facetias putat, dicacitatem in iaciendo.
Mire fuit in hoc genere uenustus Afer Domitius, cuius orationibus complures huius modi
narrationes insertae reperiuntur, sed dictorum quoque ab eodem urbane sunt editi libri.
42 Cícero porém considera que é na narração que se manifestam as facécias, e no
ataque a mordacidade.
398
Neste gênero, foi admiravelmente venusto Domício Africano,
cujas muitas histórias encontram-se inseridas dessa mesma maneira em seus discursos,
embora também existam livros de ditos urbanamente agudos publicados por ele mesmo.
43 Illud quoque genus est, positum non in hac ueluti iaculatione dictorum et inclusa
breuiter urbanitate, sed in quodam longiore actu, quod de L. Crasso contra Brutum
Cicero in secundo De oratore libro et aliis quibusdam locis narrat.
43 Há ainda aquele gênero que consiste não em uma espécie de dardo de ditos e em
uma urbanidade expressa com brevidade, mas em alguma ação mais demorada, como
conta Cícero a respeito da disputa entre L. Crasso e Bruto, no segundo livro de De
oratore e em alguns outros lugares.
399
398
Em Orator 87, Cícero define o ridículo estendido no discurso (narração) como facécia. Porém este
mesmo gênero de ridículo é denominado por ele em De ridiculis (cf. § 218) como cauillatio (cavilação),
incluindo-a entre os genera facetiarum, o que redunda em certa confusão terminológica. Aqui Quintiliano
faz referência ao trecho pertencente ao Orator, todavia a acepção e o exemplo que seguem à referência se
referem às acepções que levam em De ridiculis 218) o nome de cauillatio e mordacidade e que são
desenvolvidas entre os §§ 239–243 (cavilação/assunto) e 244–247 (mordacidade/palavras).
399
O excerto a que Quintiliano se refere é este: Pela minha mesma opinião, parece que por nenhum
modo doutrinário possa-se ensinar a respeito desse assunto. Com efeito, dois gêneros de facécias, um
distribuído igualmente pelo discurso e o outro muito incisivo e breve. Os antigos chamaram o primeiro de
cavilação e o segundo de mordacidade. Tanto um como outro recebem um nome desimportante,
porquanto todo ato de provocar o riso é desimportante”. Ora, em De ridiculis, Cícero distingue esses dois
gêneros de facécias e mostra, ao desenvolver a acepção, como exemplo do discurso de Crasso contra
Bruto (v. De ridiculis §§ 222–226) citado aqui por Quintiliano. Ali, no texto de Cícero, essa acepção do
termo cavilação fica exemplificada pelo episódio citado. Cícero não o inclui em um suposto terceiro
111
44 Nam cum Brutus in accusatione C. Planci excitatis duobus lectoribus ostendisset
contraria L. Crassum patronum eius in oratione quam de colonia Narbonensi habuerat
suasisse iis quae de lege Seruilia dixerit, tris excitauit et ipse lectores, iisque patris eius
dialogos dedit legendos; quorum cum in Priuernati unus, alter in Albano, tertius in
Tiburti sermonem habitum complecteretur, requirebat ubi essent eae possessiones.
Omnis autem illas Brutus uendiderat, et tum paterna emancupare praedia turpius
habebatur. Similis in apologis quoque et quibusdam interim etiam historiis exponendis
gratia consequi solet.
44 De fato, como Bruto,
400
depois de ter apresentado dois leitores como
testemunhas, sustentasse no processo contra Gneu Plâncio
401
que Lúcio Crasso,
402
advogado de Plâncio, num discurso que fizera sobre a colônia narbonense, havia
persuadido os juízes do contrário daquilo que ele mesmo dissera sobre a lei Servília.
Crasso fez então vir três leitores e deu-lhes ele mesmo os diálogos do pai de Bruto para
que os lessem; e como eles contivessem conversas obtidas em suas residências, uma em
Priverno, outra em Albano, e a última em Tibur, passou a perguntar onde se
encontravam aquelas posses. Ora, Bruto havia vendido todas elas. Na época, era motivo
de muita desonra alienar uma herança paterna.
403
As apologias e, talvez, algumas
histórias narradas costumam alcançar beleza semelhante.
45 Sed acutior est illa atque uelocior in urbanitate breuitas, cuius quidem duplex
forma est, dicendi ac respondendi, sed ratio communis in parte; nihil enim, quod in
lacessendo dici potest, non etiam in repercutiendo;
gênero, como Quintiliano parece fazer aqui ao iniciar o período com a oração Illud quoque genus est, que
li e traduzi como o apontamento de Quintiliano para mais um gênero de facécias além daqueles dois por
ele citados anteriormente (cf. § 42 e De ridiculis, §§ 218–226).
400
V. De ridiculis, § 220.
401
Idem.
402
Lúcio Licínio Crasso, orador muito admirado por Cícero (que o escutou durante a juventude) e um dos
protagonistas de De oratore.
403
O episódio é contado quase que detalhadamente em De ridiculis (§§ 222–227 e nn.).
112
45 Mas na urbanidade é mais aguda e mais rápida a brevidade, cuja forma é decerto
dupla: o ataque ou a réplica. Todavia, seu método é, em parte, comum. Não há nada que
possa ser dito atacando que não possa ser dito também replicando.
404
46 at quaedam propria sunt respondentium. Illa etiam atque <etiam> cogitata
adferri solent, haec plerumque in altercatione aut in rogandis testibus reperiuntur. Cum
sint autem loci plures ex quibus dicta ridicula ducantur, repetendum est mihi non omnis
eos oratoribus conuenire,
46 Por outro lado, algumas palavras são próprias de quem está respondendo. Pois,
as palavras usadas para o ataque costumam ocorrer depois de uma reflexão; enquanto
estas, de réplica, são encontradas algumas vezes na contestação ou no interrogatório das
testemunhas. No entanto, como muitos são os lugares dos quais as palavras ridículas
podem ser tiradas, devo repetir que nem tudo convém ao orador,
47 in primis ex amphibolia, neque illa obscura quae Atellani e more captant, nec
qualia uulgo iactantur <a> uilissimo quoque, conuersa in maledictum fere ambiguitate:
ne illa quidem quae Ciceroni aliquando, sed non in agendo exciderunt; ut dixit, cum is
candidatus qui coci filius habebatur coram eo suffragium ab alio peteret: "Ego quoque
tibi fauebo";
47 principalmente aquilo que vem da ambigüidade,
405
nem daquela obscuridade
costumeira dos atores Atelanos nem daquela qualidade de palavras proferidas pelo mais
baixo vulgo, cuja ambigüidade beira o ultraje, e nem mesmo aquelas utilizadas algumas
vezes por Cícero, mas que não lhe saíram da boca durante o discurso
406
; como, por
404
Entre este e o parágrafo 83 Quintiliano desenvolve os neros de urbanidade de palavras atendendo à
divisão e descrição de Cícero entre os §§ 244–247 (gênero de facécias de palavras) de De ridiculis.
405
Cícero determina ambigüidade como gênero de facécia em De ridiculis (§§ 250, 254 e nn.). V. §§ 250,
253, 256 e nn. Quintiliano determina um tipo de ambigüidade a ser evitada e outra a ser acolhida pelo
orador (cf. §§ 48-51).
406
Quintiliano retoma a censura ao excesso de Cícero no uso do riso citado no § 3, nascida dos livros de
ditos ridículos publicados pelo liberto Tiro (ou outra pessoa), citados no § 5.
113
exemplo, o que ele disse a um candidato (tido como filho de um cozinheiro) que perante
ele pedia a outro que lhe desse o voto: “Eu também ajudar-te-ei”;
407
48 non quia excludenda sint omnino uerba duos sensus significantia, sed quia raro
belle respondeant, nisi cum prorsus rebus ipsis adiuuantur. Quare [non] hoc [modo]
paene et ipsum scurrile Ciceronis est in eundem de quo supra dixi Isauricum: "Miror
quid sit quod pater tuus, homo constantissimus, te nobis uarium reliquit".
48 digo isso não porque toda palavra de duplo sentido deva ser excluída, mas sim
porque raramente elas respondem com beleza; a o ser quando as circunstâncias
favorecem por si próprias à perfeição. Assim, naquela mesma fala de Cícero contra
Isaurico, do qual falei acima, quase algo de bufão: Admiro que teu pai, um homem
constantíssimo, nos tenha legado a ti, tão variado
408
”.
49 Sed illud ex eodem genere praeclarum: cum obiceret Miloni accusator, in
argumentum factarum Clodio insidiarum, quod Bouillas ante horam nonam deuertisset,
ut exspectaret dum Clodius a uilla sua exiret, et identidem interrogaret quo tempore
Clodius occisus esset, respondit "Sero": quod uel solum sufficit ut hoc genus non totum
repudietur.
49 Não obstante, desse mesmo gênero uma história especial: como o advogado
de acusação exprobrasse Milão argumentando que este havia feito uma emboscada
407
O gracejo está na homofonia entre o vocativo de coquus (coque) e o advérbio quoque, em que Cícero
parece deslizar num tipo de humor inapropriado. Em português esse jogo entre os sons se perdeu
totalmente.
408
Ao que parece, Quintiliano se refere ao episódio narrado no parágrafo 25. Se assim é, importa dizer
que a palavra “variado” traduz o adjetivo uarium, que tanto significa inconstante, variado, quanto sovado,
golpeado por açoites. O jogo com a palavra, com sobreposição de significados, fica claro em latim
quando o contexto é conhecido. Em português, porém, esse efeito acaba se perdendo, porque o termo
“inconstante”, que seria uma tradução mais adequada para expressar a instabilidade de Isaurico, não
coincide com “açoitado”, “sovado” ou até mesmo “surrado”. Para tentar dirimir a perda, escolhi então o
adjetivo “variado” no lugar do preferível “inconstante”, para que as primeiras sílabas da palavra façam
lembrar a palavra “vara”, que por metonímia traz à mente a idéia de “surra”, “sova” etc. Embora concorde
se tratar de uma tentativa quase vã, acredito que ao menos ela não prejudica o sentido geral do período.
De resto, se no parágrafo anterior reside uma censura ao humor de Cícero, exagerado segundo alguns (cf.
§§ 3 e 5), neste a censura é também de Quintiliano, porquanto esse dito ridículo se aproxima ao do bufão,
um tipo de humor que tanto Cícero (cf. De ridiculis, §§ 240, 244–247, 251; Orator 88) quanto
Quintiliano (cf. De risu, § 29) afirmam dever ser grandemente evitado pelo orador.
114
contra Clódio (o advogado tentava provar que Milão deixara os Bovilos antes da hora
nona e que esperara o momento em que Clódio saísse de sua vila) e como o interrogasse
repetidas vezes quando Clódio havia sido morto, cero disse: “Tarde!”. Um
exemplo desses é suficiente para que este gênero não seja de todo repudiado.
409
50 Nec plura modo significari solent, sed etiam diuersa: ut Nero de seruo pessimo
dixit: "Nulli plus apud se fidei haberi, nihil ei nec clusum neque signatum esse".
409
Este exemplo ilustra o tipo de humor ambíguo calibrado e adequado bem utilizado por Cícero e que
pode ser preceituado. uma ressalva importante para o uso da ambigüidade: segundo Cícero, embora
identificada como facécia (de palavras, não de assunto), ela nem sempre provoca o riso (cf. De ridiculis, §
250). Por outro lado, a ambigüidade também é apreciada pela elegância e graça que ela proporciona ao
discurso. Cícero diz haver uma doutrina muito sutil a seu respeito (cf. De ridiculis, § 256) e Quintiliano
(VII, 9, 1-15) afirma que as espécies de ambigüidade o muitas, mas poucos são seus gêneros. Segundo
ele, dois gêneros principais: a ambigüidade de uma palavra e a ambigüidade de um grupo de
palavras, que se subdividem em um grupo de três gêneros. O primeiro deles, a homonímia, pode
engendrar o erro quando uma mesma palavra se aplica a várias coisas ou pessoas, como, por exemplo,
gallus (que significa tanto um animal – a ave – um país, um eunuco etc.) e Ajax (que, sem o epíteto, deixa
a dúvida: o poderosíssimo, filho de Telamon, ou o veloz, filho de Oileu?). O segundo gênero é aquele em
que uma palavra possui, na íntegra, um sentido e, quando dividida, cavilações ineptas, tais como ingenua
(nascida livre ingenua; de joelhos in genua) ou coruinum (corvino, relativo a corvo coruinum;
coração – cor; vinho – uinum). E o terceiro deles caracteriza-se pela composição de palavras e consiste na
adição de sons, casos etc. Lausberg (1976: vol. 1, p. 203) identifica esse gênero como o da ordem obscura
pouco inteligível na construção do conjunto da frase. Exemplos: in culto loco (em lugar cultivado),
inculto loco (em lugar não cultivado); Lecheten audivi percuisse Demean [Lacheten AGH: -tem laur.
XLV I.9 // demean f : -mea AGH mean Vindob. 3135 (...), apud Quintilien, Instution Oratoire (texte
établi et traduit par Jean Cousin), 1977: p. 179, n. 10.), onde não se sabe quem tenha ouvido: Laquete ou
Démea? Quintiliano afirma também, ao conceituar e classificar a ambigüidade precisamente no segundo
parágrafo do livro IX (singula adferunt errorem cum pluribus rebus aut hominibus eadem appelatio est)
que essa variedade de status legales (VII, 5, 6) produz erro (cf. Lausberg, 1976: vol. 2, pp. 384-85).
Segundo Quintiliano, a acepção e categorização de ambiguitas está, em outras palavras, relacionada à
concepção de proprietas (VIII, 2, 1) e improprietas (VIII, 2, 3), que por sua vez originam o defeito
chamado obscuritas (VIII, 2, 12). Entende-se por proprietas a propriedade de uma palavra para uma
determinada coisa e como improprietas a ausência disso. A obscuritas está relacionada entre os uerba
singula que por sua vez estão relacionados ao fenômeno da perspicuitas, que é subordinada à inuentio,
parte da retórica onde se discute os aspectos entre os quais consta o riso. Há, em suma, uma oposição
entre a perspicuitas como uirtus e sua descaracterização, que é a obscuritas, como uitium. Mediante tais
premissas, fica a impressão que a ambiguitas o seja apenas um uitium em contraposição ao que Cícero
diz sobre ela no parágrafo 253: magis ut belle et litterate dicta laudantur. Porém, mediante a afirmação de
Quintiliano em De risu (VI, 3, 48):
non quia excludenda sint omnino uerba duos sensus significantia
e sua presença entre os genera facetiarum organizados por Cícero, que a denotam como algo não
dispensável no uso oratório, resta a dúvida se a ambiguitas é de fato um uitium ou se alguma liberdade
em usá-la. Por dois modos se dirime essa incógnita. Um deles diz respeito ao zelo que o orador deve
exercer no uso desse status. O outro diz respeito à qualidade da ambiguitas quando se a concebe não
como sua acepção primeira e direta, um uitium, mas como uirtus (cf. Lausberg, 1976: vol. 2, pp. 384–85)
e se entende seu uso como uma licentia concedida ao uso da ambiguitas para o ornatus do discurso (cf.
Quintiliano, VIII, 3,15).
115
50 As palavras costumam ter não somente múltiplos significados, mas também um
oposto, como disse Nero a respeito de um péssimo escravo: “Ninguém pode ser
considerado mais fiel que ele. Para ele nada está escondido ou trancado.”
410
51 Peruenit res usque ad aenigma, quale est Ciceronis in Plaetorium Fontei
accusatorem, cuius matrem dixit dum uixisset ludum, postquam mortua esset magistros
habuisse. (dicebantur autem, dum uixit, infames feminae conuenire ad eam solitae, post
mortem bona eius uenierant): quamquam hic "ludus" per tralationem dictum est,
"magistri" per ambiguitatem.
51 A ambigüidade se aproxima do enigma, como nas palavras de cero ao
defender Fonteio contra Pletório, cuja mãe, disse Cícero, possuía em vida uma escola e
depois de morta mestres (dizia-se que, enquanto viva, mulheres infames costumavam
juntar-se a ela e que, após sua morte, essas mesmas mulheres venderam seus bens),
conquanto aqui a palavra escola é dita metaforicamente e mestres de forma ambígua.
411
52 In metalempsin quoque cadit eadem ratio dictorum, ut Fabius Maximus,
incusans Augusti congiariorum quae amicis dabantur exiguitatem, heminaria esse dixit
(nam congiarium commune liberalitatis atque mensurae) a mensura ducta inminutione
rerum.
52 O mesmo modelo de ditos cai também na metalepse,
412
como no exemplo de
Fábio Máximo
413
que, acusando a exigüidade de congiaria dada aos amigos de
410
Cf. De ridiculis, § 248 e n.
411
Marco Fonteio governador da Galia Transalpina entre 74 e 72 a.e.c. foi defendido por Cícero ( por
volta de 70) num processo em que era acusado de concussão (Pro Fonteio). Parte desse discurso de
Cícero foi perdida, nela estava a citação constante neste parágrafo (v. Smith, W. A dictionary of Greek
and Roman biography and mythology. Little, Brown, and Company, Boston, 1867: vol. 2, pp.179-180).
412
A metalepse deste exemplo não se faz exatamente por aquele modelo de substituição sinonímica de
uma palavra por outra que resulta numa impropriedade (o que explicaria o uso do verbo cadere). A
diferença entre esse modelo e o ocorrido no parágrafo inclui essa metalepse naquele modelo caracterizado
por uma relação algo remota ou parcial, e não de semelhança. A palavra heminaria vem de hemina que é
a sexta parte de um congio, palavra que origina congiaria. É essa relação de medidas que estabelece a
proximidade entre as palavras e que produz o riso (cf. Quintiliano VIII, 6, 37), Lebek (1978: pp. 275)
manifesta preocupação semelhante.
413
Paulo Fábio Máximo, cônsul em 10 a.e.c. [Bardon (1952), indica que Fábio Máximo foi cônsul em 11
a.e.c.]. A ele eram destinados muitos poemas de Ovídio compostos no exílio [PANI (1991), afirma que
116
Augusto, chamou a mesma através da medida tirada da escassez dos presentes de
heminaria, pois congiarium significa tanto liberalidade quanto uma determinada
medida.
53 Haec tam frigida quam est nominum fictio adiectis, detractis, mutatis litteris; ut
Acisculum, quia esset pactus, "Pacisculum", et Placidum nomine, quod is acerbus
natura esset, "Acidum", et Tullium, cum fur esset, "Tollium" dictos inuenio.
53 Esses ditos são tão frios quanto a formação de nomes
414
através de adição,
subtração e mudança de letras.
415
Encontro ditos tais como Asciculus, que passou a ser
chamado de Pasciculus, porquanto este fizera um pacto; ou Placidus, mudado para
Acidus, porque era ácido por natureza e Tullius, que por ser ladrão, veio a se chamar
Tollius.
416
54 Sed haec eadem genera commodius in rebus quam in nominibus respondent.
Afer enim uenuste Manlium suram multum in agendo discursantem, salientem, manus
iactantem, togam deicientem et reponentem, non “agere” dixit, sed “satagere”. Est
enim dictum per se urbanum "satagere", etiam si nulla subsit alterius uerbi similitudo.
54 Porém, esses mesmos gêneros respondem mais convenientemente nos assuntos
do que nos nomes.
417
Com efeito, Africano
418
, fazendo graça, disse sobre Mânlio Sura
que este, ao discursar saracoteava (satagere) e não atuava (agere), porquanto Mânlio,
419
ao falar, pulava, gesticulava e deixava cair a toga para recolocá-la depois. Aqui, o verbo
Ovídio depositava muita esperança em Germânico e Ovídio a fim de voltar a Roma]. Em um desses
poemas Ovídio pranteia a morte de Fábio Máximo (Epistulae ex ponto IV, 6, 9).
414
Ao tratar da ornatus no livro VIII, Quintiliano diz sobre a fictio (VI, 30-32), que é a criação de novas
palavras por meio da onomatopéia e da derivação.
415
Cícero liga este gênero ao fenômeno da paronomásia (v. De ridiculis, § 256), do que se conclui que
Quintiliano tenha acolhido a este gênero também.
416
Todos estes personagens são desconhecidos.
417
Do mesmo modo que Cícero apresenta a interpretação de nomes na sequência daqueles gêneros de
ditos ridículos originários da paronomásia, também Quintiliano os apresenta em ocasião semelhante (v.
De ridiculis, § 257).
418
A saber: Domício Africano (v. § 27, n. 386).
419
Desconhecido.
117
saracotear (satagere)
420
é por si mesmo dito urbano, sobretudo porque não outro
semelhante.
55 Fiunt et adiecta et detracta adspiratione et diuisis coniunctisque uerbis similiter
saepius frigida, aliquando tamen recipienda; eademque condicio est in iis quae a
nominibus trahuntur. Multa ex hoc <genere> Cicero in Verrem, sed ut ab aliis dicta:
modo futurum ut omnia uerreret [cum diceretur Verres], modo Herculi, quem
expilauerat, molestiorem <quam> aprum Erymanthium fuisse, modo malum
sacerdotem qui tam nequam uerrem reliquisset, quia Sacerdoti Verres successerat.
55 Do mesmo modo, os ditos frios são formados não somente através da adição e da
subtração de uma aspiração, mas mais freqüentemente também da divisão e da junção
de palavras, que devem ser, no entanto, algumas vezes aceitáveis. A mesma condição
vale para aqueles extraídos de nomes próprios. Cícero utilizou muito desse gênero
contra Verres, mas como que ditos por outras pessoas: ora dizia que ele varrera
421
todas
as coisas para adiante (daí ser chamado Verres); ora dizia que Verres molestara mais a
Hércules (de quem saqueara o templo) do que o javali de Erimanto;
422
ora dizia que ele
fora um sacerdote o ruim que deixara atrás de si verro, porquanto Verres sucedera
Sacerdote.
423
56 Praebet tamen aliquando occasionem quaedam felicitas hoc quoque bene
utendi, ut pro Caecina Cicero in testem Sex. Clodium Phormionem: "Nec minus,
Níger,” inquit, "nec minus confidens quam est ille Terentianus Phormio".
420
Embora entenda que o verbo saracotear usufrui do mesmo status que satagere em latim (não possui
semelhante em português) e os verbos saracotear e atuar possuam semelhanças fonéticas, preferi
transcrever os verbo em latim na tradução para que o jogo de palavras ficasse um pouco mais claro (v.
STEEL, 2006, p. 54; Macrobius,
Saturnalia
, 3. 14. 12.
421
Em latim Verro, -is, -i ou -si, -sum, -rere (v. In Verrem II, 19, 52; IV, 53).
422
Cf. In Verrem IV, 95.
423
Cf. In Verrem I, 121. O ridículo aqui se estabelece pelo jogo de palavras resultante da coincidência
entre o nome de Verres com o do animal suíno e do nome de Caio Licínio Sacerdote com o título.
118
56 É a boa sorte, todavia, que proporciona algumas vezes a ocasião para que esses
ditos
424
sejam bem usados, como faz Cícero em Pro Caecina, contra o testemunho de
Sexto Clódio Formião: “Não é menos negro nem menos descarado do que aquele
Formião de Terêncio.”
425
57 Acriora igitur sunt et elegantiora quae trahuntur ex ui rerum. In iis maxime
ualet similitudo, si tamen ad aliquid inferius leuiusque referatur: qualia ueteres illi
iocabantur, qui Lentulum "Spintherem" et Scipionem "Serapionem" esse dixerunt. Sed
ea non ab hominibus modo petitur, uerum etiam ab animalibus; ut nobis pueris Iunius
Bassus, homo in primis dicax, "asinus albus" uocabatur,
57 Logo, as palavras extraídas da força dos assuntos são mais acres e mais
elegantes.
426
Nelas a similitude é muito eficaz se, todavia, se referir a um assunto menor
e sem importância,
427
tal qual aquelas com as quais gracejavam nossos antepassados,
que chamaram Lentulus
428
de Spinther e Scipion
429
de Serapion. A similitude pode ser
procurada não somente nas características humanas, mas também nas dos animais,
como o exemplo de Júnio Basso que sendo homem instintivamente mordaz era
chamado por nós, meninos, de “asno branco.”
430
424
V. §§ 53, 54 e nn.
425
V. Cícero Pro Caecina 27. Formião era o nome do personagem de uma das comédias de Terêncio. Ao
que parece, os dois Formiões assemelhavam-se em caráter e na cor da cútis.
426
V. De ridiculis § 248.
427
Depois de determinar que a similitudo faça uma comparação não obscura e não desconhecida,
Quintiliano (VIII 3, 72-79) discorre sobre o uso da comparação na constituição do ornatus (Importa dizer
que outro tipo de similitudo, inclusa entre os argumenta, campo da inuentio, cf. Quintiliano V, 11),
campo da elocutio. Lausberg (1976: vol. 2 pp. 252-255), tentar estabelecer a partir do texto de Quintiliano
uma gradação do uso da similutudo, afirmando haver dela um grau mínimo, médio e máximo. Ocorre que
conferindo a teoria com o texto do retor, a gradação não fica muito clara, motivo pelo qual se torna difícil
apontar com absoluta certeza a que grau daqueles esses exemplos de ditos ridículos se aproximariam.
428
Publius Cornelius Lentulus (Públio Cornélio Lentulo), cônsul em 57 a.e.c. Lentulo recebeu este
cognome devido à sua semelhança sica com um ator chamado Spinther. Curiosamente, seu colega de
consulado, Metelo Nepo, era também parecido com outro ator, Panfílio (cf. Plínio, o velho. Naturalis
historia VII, 10; Valério Máximo, IX, 14, 4).
429
Públio Cornélio Cipião Nasica Serapião, filho de blio Cornélio Cipião Nasica Corculum, cônsul em
138 e 133 (v. De ridiculis, §§ 276, 285 e nn.). Cipião recebeu este cognome ao ser comparado a Serapião,
que poderia ser tanto um mercador de animais destinado ao sacrifício (cf. Valério Máximo IX, 14, 3–4)
quanto um mercador de porcos (cf. Plínio, o velho, Naturalis historia VII, 54 e XXI, 10); não obstante
serem talvez a mesma pessoa.
430
V. § 27. É dificil precisar a razão dessa alcunha de Júnio Basso. Ao que parece algum traço físico seu
o aproximava da figura daquele animal, no entanto qualquer conjectura aqui seria mera especulação.
119
58 et Sarmentus seu P. Blaessius Iulium, hominem nigrum et macrum et pandum,
"fibulam ferream" dixit. Quod nunc risus petendi genus frequentissimum est.
58 e de Sarmento
431
(ou Públio Blésio)
432
que chamou Júlio
433
homem negro e
magro e encurvado, de “gancho
434
de ferro”. Hoje em dia esssa maneira de procurar o
riso é muito freqüente.
59 Adhibetur autem similitudo interim palam, inseri solet parabolae: cuius est
generis illud Augusti, qui militi libellum timide porrigenti: "Noli," inquit, "tamquam
assem elephanto des".
59 Por outro lado, a similitude
435
costuma ora ser aplicada às claras, ora inserida
numa parábola, cujo modelo é aquela famosa frase que Augusto disse a um soldado que,
por timidez, se delongava em fazer um pedido: “Não ajas como se desses um asse a um
elefante.”
436
60 Sunt quaedam ui similia: unde Vatinius dixit hoc dictum, cum reus agente in
eum Caluo frontem candido sudario tergeret idque ipsum accusator in inuidiam
uocaret: "Quamuis reus sum," inquit, "<et> panem tamen candidum edo".
60 Algumas são semelhantes pela força: Vatínio
437
proferiu este dito picante
quando, sendo réu, limpava o rosto com um pano branco enquanto Calvo
438
discursava
431
Sarmento é conhecido pelas passagens de Juvenal (Satirae V, 3) e Horácio (Sermones I, 5, 51).
432
Não há referências seguras sobre quem foi Públio Blésio.
433
Desconhecido.
434
diversos significados para fibula. Trata-se de modo geral de uma peça em forma de colchete ou
fivela que tem uma de suas pontas travadas num outro objeto ou na outra ponta da mesma peça para
prender determinada coisa. Sem dúvida a descrição das características físicas de Júlio faz pensar em um
objeto curvo e sobremodo usado no quotidiano.
435
V. n. 427.
436
O mesmo dito encontra-se também em Suêtonio (Diui Augustus 53,2) e Macróbio (Satunalia II, 4, 3).
437
Públio Vatínio. Foi tribuno em 59 a.e.c., pretor em 55 e cônsul em 46. Cícero ataca Vatínio em Pro
Sestio (132–135) quando defendia Sestio e In Vatinium, discurso que Cícero escreveu do seu ataque ao
testemunho de Vatínio no processo contra Sestio, de 56 a.e.c. (v. Cf. Smith, W. A dictionary of Greek and
Roman biography and mythology: v. 3, pp. 1233–35).
438
Licínio Calvo, orador aticista (Quintiliano, X, 1, 115) e um dos noui poetae, como eram chamados por
Cícero os poetas modernos da época, entre eles Catulo, amigo de Lícinio, que acusou três vezes Públio
120
contra ele e, incomodado, seu acusador chamava a atenção para aquilo: “Embora eu seja
réu, como pão branco.”
439
61 Adhuc est subtilior illa ex simili tralatio, cum quod in alia re fieri solet in aliam
mutuamur (ea dicatur sane fictio): ut Chrysippus, cum in triumpho Caesaris eborea
oppida essent tralata et post dies paucos Fabi Maximi lignea, thecas esse oppidorum
Caesaris dixit. Et Pedo de myrmillone qui retiarium consequebatur nec feriebat:
"Viuum," inquit, "capere uult".
61 Até aqui, a similute mais sutil é a metáfora
440
que vem da semelhança, que
costuma ser realizada quando tomamos emprestada uma coisa de um lugar para aplicar
em outro (o que, sem dúvida, chama-se ficção); como fez Crisipo quando, num triunfo
de César, diversos objetos de marfim eram transportados de uma cidade fortificada e
poucos dias depois outros de madeira eram levados num triunfo de Fábio Máximo, disse
que aquelas eram, na verdade, caixas de César. E Pedo, que disse a respeito de um
gladiador mirmillo que acossava um retiarius e não o feria: “Ele quer pegá-lo vivo!”
441
Vatínio, partidário de César, de fraude eleitoral. A primeira vez em 58 a.e.c., a segunda em 55 e a última
em 54, provavelmente. Tácito afirma que o discurso de Calvo contra Vatínio na acusação de fraude
eleitoral de 55 a.e.c. era um modelo do uso da eloqüência. Por outro lado, tanto Cícero (Brutus, 283 sg.)
quanto Quintiliano (X, 1, 115) dizem de Calvo um orador dotado de muitos recursos.
439
Quamuis reus sum (...) <et> panem tamen candidum edo. O substantivo panem (pão) é homófono de
uma forma arcaica da palavra pannus,-i (pannis,-is: pano, pedaço de estofo) e o verbo edo (edo- edis, ou
es, edit, ou est, edi, esum, edere, ou esse: comer) é homônimo e homófono de outro verbo edo (edo, is, -
didi, -ditum,-dere: expor, produzir, apresentar). Embora o se possa provar se Vatínio conhecia essa
forma arcaica da palavra pannis,-is, considerei a possibilidade de que o autor da frase tenha se
aproveitado dessas coincidências vocabulares para demarcar sua inocência, o obstante o fato de que
fosse réu, ao passar o pedaço de estofo branco no rosto seguidamente a ponto de incomodar o acusador e
mostrá-lo branco, ele estava afirmando alegoricamente a certeza de que era inocente. O conjunto dessas
palavras coincide com a forma traduzida “pão branco” [escolhida o somente porque mais imediata e de
um sentido mais direto, como também porque a coincidência entre panis,-is (panem) e pannis,-is
(pannem, no processo alegórico) é apenas fonética (que funcionou, provavelmente, naquela situação, mas
não condiz para a tradução], o que remete ao fato de que os homens livres comiam o branco, panis
candidus (feito com uma qualidade mais refinada de farinha) enquanto os pobres e escravos comiam pão
grosseiro, panis cibarius.
440
V. § 68 e nn.; De ridiculis, § 262 e nn.
441
O gladiador mirmillo portava um escudo, uma espada e um capacete sobre o qual apontava a figura
talhada de um peixe. o gladiador retiarius portava uma rede e um tridente. Seu adversário comum era
logicamente o mirmillo, que também era rival do gladiador Threx, que portava um pequeno escudo, uma
proteção sobre um dos ombros e a famosa espada gladius.
121
62 Iungitur amphiboliae similitudo, ut a L. Gabba, qui pilam neglegenter petenti
"sic," inquit, "petis tamquam Caesaris candidatus". Nam illud "petis" ambiguum est,
securitas similis. Quod hactenus ostendisse satis est.
62 A similitude
442
pode juntar-se à ambigüidade, como fez Gaba
443
dizendo a um
homem que perseguia descuidadamente uma bola: “Assim disse-lhe –, do jeito que
persegues, pareces um candidato de César”; pois aqui, o verbo perseguir é ambíguo, e o
descuido é semelhante nos dois casos. Sobre isso, o que já mostrei até aqui é o
suficiente.
63 Ceterum frequentissima aliorum generum cum aliis mixtura est, eaque optima
quae ex pluribus constat. Eadem dissimilium ratio est. Hinc eques Romanus, ad quem in
spectaculis bibentem cum misisset Augustus qui ei diceret: "Ego si prandere uolo,
domum eo", "Tu enim," inquit, "non times ne locum perdas".
63 Demais, a mistura de certos gêneros com outros é muito freqüente e quanto
maior a mistura, melhor ela se apresenta. A regra das dissimilações é a mesma. Um
exemplo disso é a anedota de um cavaleiro romano que bebia durante um espetáculo.
Como Augusto lhe enviasse alguém para dizer-lhe: “Eu, se quero almoçar, vou para
casa”, ele lhe respondeu: “Mas tu não temes perder o assento.”
444
64 Ex contrario non una species. Neque enim eodem modo dixit Augustus praefecto
quem <cum> ignominia mittebat, subinde interponenti precibus: "Quid respondebo
patri meo?", "Dic me tibi displicuisse", quo Gabba paenulam roganti: "Non possum
commodare, domi maneo", cum cenaculum eius perplueret. Tertium adhuc illud, nisi
quod ut ne auctorem ponam uerecundia ipsius facit: "Libidinosior es quam ullus
spado", quo sine dubio et opinio decipitur, sed ex contrario. Et hoc ex eodem loco est,
sed nulli priorum simile, quod dixit M. Vestinus cum ei nuntiatum esset <necatum
esse>: "Aliquando desinet putere".
442
V. n. 310.
443
O mesmo Gaba do § 27.
444
Posteriomente o imperador autorizou a beber no teatro (cf. Marcial I, 26).
122
64 O gênero que vem do contrário não possui uma espécie. Com efeito, o modo
por que Augusto usou deste gênero não foi o mesmo utilizado por Gaba. A um oficial
que fora despedido com desonra e que alegava incessantemente com estas súplicas: “O
que responderei ao meu pai?” Augusto respondeu: “Diga que eu não gostei de ti.”
445
Gaba, por sua vez, respondeu assim a um homem que pedia emprestada sua capa de
viagem: “Não posso emprestá-la; estou em casa”, pois naqueles dias chovia em sua sala
de jantar. ainda um terceiro exemplo, cujo autor por discrição não revelarei: És
mais libidinoso que um eunuco”, na qual, sem dúvida, a expectativa é frustrada, mas a
partir do contrário. E desse mesmo lugar, mas com nenhuma semelhança com os
precedentes, a frase dita por Marco Vestino
446
quando lhe anunciaram que alguém
morrera: “Finalmente parou de feder.”
65 Onerabo librum exemplis, similemque iis qui risus gratia componuntur efficiam,
si persequi uoluero singula ueterum. Ex omnibus argumentorum locis eadem occasio
est. Nam et finitione usus est Augustus de pantomimis duobus qui alternis gestibus
contendebant, cum eorum alterum saltatorem dixit, alterum interpellatorem.
65 Se eu quiser enumerar um a um os risos dos antigos, carregarei este livro desses
exemplos e farei dele algo semelhante àqueles compostos de coisas engraçadas para
fazer rir. De todos os lugares de argumentos provém a mesma oportunidade. De fato,
não somente Augusto fez uso de uma divisão a respeito de dois pantomimos
447
que
contendiam com gestos alternados dizendo que um era o dançarino e o outro o
impertinente,
66 Et partitione Gabba, cum paenulam roganti respondit: "Non pluit, non opus est
tibi: si pluet, ipse utar". Proinde genere specie, propriis, differentibus, iugatis,
adiunctis, consequentibus, antecedentibus, repugnantibus, causis, effectis,
445
Este exemplo de dito ridículo é também contado por Macróbio (cf. Saturnalia II, 4, 6).
446
Marco Vestino Ático, cônsul em 65 a.e.c., embora fosse inocente da conspiração movida por Piso,
morreu por ordem de Nero (cf. Tácito, Annales 48, 52, 68, 69).
447
A pantomima era uma dança mímica com acompanhamento musical, geralmente sem palavras, e já era
popular entre os gregos nos tempos clássicos.
123
comparatione parium, maiorum, minorum similis materia praebetur, sicut in tropos
quoque omnis cadit.
66 como também Gaba lançou mão de uma partição: quando um homem pediu-lhe
emprestada a capa, ele respondeu dizendo: “Se não chove, ela não tem utilidade para ti;
se chover, eu mesmo a usarei.” Assim, do mesmo modo como tudo resulta em tropos, a
matéria semelhante aos ditos ridículos é fornecida
448
pelo gênero, pela espécie, pelas
propriedades, pelas diferenças, pelas afinidades, pelas circunstâncias de um fato, pelas
conseqüências, pelos antecedentes, pelas contradições, causas, efeitos, pela
comparação
449
de igualdade, superioridade e inferioridade.
67 An non plurima dicuntur <per hyperbolen? ut > quod refert Cicero de homine
praelongo, caput eum ad fornicem Fabium offendisse, et quod P. Oppius dixit de genere
Lentulorum, cum assidue minores parentibus liberi essent, nascendo interiturum.
67 Não serão hipérboles,
450
por acaso, um grande número de ditos? Como aquele
que Cícero refere, por exemplo, a respeito de um homem muito alto, ao dizer que ele
tinha batido a cabeça no arco de Fábio;
451
e de Públio Ópio,
452
que a respeito da família
dos Lentulos dizia que, uma vez que os filhos eram cada vez menores que os pais, ela se
extinguiria procriando.
448
Este parágrafo desenvolve a instrução contida no anterior. Dos mesmos lugares onde se colhem as
matérias, os tropos, para falar daquilo que é sério, se colhe também aquilo necessário para falar com
humor, urbanamente. Cícero traz a respeito instrução com semelhante teor (v. De ridiculis, § 248).
449
Há um tipo de comparação prescrito por Quintiliano (VII, 4, 12) e por Cícero (De inuentione, I, 15; De
oratore, I, 257) incluso tipos de defesa (Quintiliano VII, IV 1-20), campo da dispositio (cf. VII, 1, 1-2)
também utilizado no discurso deliberativo. Essa comparatio consiste em dizer que uma ão foi realizada
para prevenir um mal maior, caso em que a comparação se na escolha entre o que é ruim e o que é
menos ruim.
450
Quintiliano prescreve a hiperbóle como meio de mover os afetos na peroração (v. VI, 2, 24). No livro
VIII, 7, 72-76, ele a inclui entre os tropi. Cícero utiliza o mesmo exemplo (por meio dos termos técnicos
augere/minuere) para ilustrar também a hipérbole entre seus genera facetiarum (v. De ridiculis, § 267 e
n.), o que permite dizer que Quintiliano acolhe de Cícero também este gênero para os seus genera
urbanitatis.
451
V. De ridiculis, § 267.
452
Nas saturnalia (II, 3, 3) de Macróbio também um personagem com esse nome que cita um dito
ridículo de Cícero sobre a pequena estatura das pessoas da família Lentulo.
124
68 Quid ironia? nonne etiam quae seuerissime fit ioci paene genus est? Qua urbane
usus est Afer, cum Didio Gallo, qui prouinciam ambitiosissime petierat, deinde,
impetrata ea, tamquam coactus querebatur: "Age," inquit, "aliquid et rei publicae
causa". Metaphora quoque Cicero lusit, cum Vatini morte nuntiata, cuius parum certus
dicebatur auctor: "Interim," inquit, "usura fruar".
68 E sobre a ironia?
453
Porventura o se torna, mesmo a mais severa, quase um
gênero de gracejo? Dela, por exemplo, Africano
454
serviu-se urbanamente quando disse
a Dídio Galo,
455
que, com muito empenho, havia requerido o governo de uma província
e depois de obtê-la queixava-se de ter sido coagido a aceitá-la: “Faça alguma coisa que
seja também do interesse do Estado”. Também Cícero brincou por meio da metáfora
456
453
Não obstante Quintiliano tratar amplamente sobre a ironia, sobretudo no livro IX, expus no texto de
De ridiculis as definições e acepções sobre ela no desenvolvimento do exemplo de ironia ali mencionado
(cf. De ridiculis, § 262), as quais também são pertinentes às ocorrências da palavra em De risu.
454
A saber: Domício Africano.
455
A. Dídio Galo, curator aquarium durante o império de Calígula (40 e.c.) e sob o império de Cláudio
(50 e.c.) comandou o exército romano em Bosporus, sendo depois designado pelo mesmo Cláudio a
suceder Ostório na Britânia (v. Tácito, Annales XII, 15, 40; XIX 29; Agricola 14; Frontino De
aquaeductu urbis romae 102).
456
V. De ridiculis § 262 e nn. Ao discorrer sobre os tropi, no sexto capítulo do oitavo livro da Institutio
oratoria, Quintiliano estabelece para eles uma primeira e geral divisão: tropos de significação e tropos
de ornamento. Entre os tropi significationis (VIII, 6, 2) se encontra a metáfora, que segundo o próprio
Quintiliano, é a transposição do sentido de uma palavra sobre outro num processo de comparação em que
a metáfora é a sua forma mais breve (cf. De oratore, III, 157).
O retor exemplifica (VIII, 6, 9) isso à perfeição quando diz:
comparatio est, cum dico fecisse quid hominem ‘ut leonem’; tralatio cum dico de homine
‘leo est’
“Quando digo que um homem fez algo como um leão isso é comparação; quando digo
que tal homem é um leão, isso é metáfora”
Cícero, por sua vez, não só a define (De oratore III, 157):
Similitudinis est ad uerbum unum contracta brevitas, quod verbum in alieno loco,
tanquam suo positum
“A brevidade reduzida a uma só palavra é própria da comparação; palavra essa que,
posta num lugar alheio como se fosse seu”
como também condiciona sua validade mediante a qualidade dessa translação:
si agnoscitur, delectat; si símile nihil habet, repudiatur
“deleita, se for reconhecida e repudiada é, se nada possui de semelhante”
E tanto Cícero quanto Quintiliano estendem suas instruções sobre o tema. O primeiro aponta, entre os
parágrafos 155 e 160, a definição e as nuances de metáfora. Além da definição que se disse acima (a
metáfora é uma comparação reduzida numa só palavra e posta no lugar de outra como se fosse o seu)
125
quando lhe foi anunciada a morte de Vatínio,
457
de cuja noticia o autor tinha pouca
certeza: “Enquanto isso usufruirei dos juros”.
69 Idem per allegorian M. Caelium, melius obicientem crimina quam defendentem,
bonam dextram, malam sinistram habere dicebat. Emphasi A. Villius dixit ferrum in
tuccium incidisse.
69 O mesmo Cícero, através da alegoria,
458
dizia que M. Célio, advogado melhor na
acusação que na defesa, tinha a mão direita boa e a esquerda ruim
459
. Usando a ênfase,
A. Vílio disse que a espada de Túcio caíra sobre ele.
460
Cícero {depois de traçar um elogio dizendo que ela é algo semelhante a um vestido que cobre primeiro o
corpo e depois o adorna [A origem da metáfora reside, segundo Cícero, na pobreza de palavras
relacionadas a determinadas coisas (cf. De oratore, III, 115 e 158-159)] e é usada também pelos rústicos
que dizem brilhar a videira ou haver luxúria entre as plantas ou que o alegres as colheitas [Op. cit. III,
155]} ensina que tendemos ao uso da metáfora (ibid. III, 159-160) porque é uma marca do engenho
saltarmos os obstáculos (Mais precisamente transilire ante pedes posita) e escolher outras procuradas ao
longe (et alia longe petita sumere), ou porque utilizando-a conduzimos o ouvinte a outro plano sem
todavia distraí-lo daquela atenção (o que é um deleite máximo: alio ducintur cogitatione neque tamen
aberrat, quae maxima est delectatio), ou porque em cada palavra se obtém a coisa e toda semelhança (in
singulis uerbis res ac totum simile conficitur) ou porque toda translação que está empregada com a razão
se dirige aos sentidos, sobretudo à visão, que é o sentido mais agudo (omins translatio, quae quidem
sumpta ratione est, ad sensus ipsos admouetur, maxime oculorum qui est sensus acerrimus). Com efeito,
aquiescendo ao parágrafo 261 do livro III de De oratore, inalamos o aroma da urbanidade, percebemos a
“delicadeza” da humanidade, ouvimos o “murmúrio” do mar e degustamos a “doçura” dos discursos. E se
aproximássemos o exemplo do parágrafo 262 de De ridiculis às causas desse uso, poderíamos dizer que
também para fazer rir fazemos uso da metáfora. Demais, Cícero aponta quais seriam os efeitos a se evitar
no uso da metáfora, a saber: que a semelhança por ela estabelecida não seja maior nem menor que a coisa
comparada e que se a translação for muito dura, uma palavra que a abrande deve ser posta logo antes dela
(Op. cit, III, 162–64). E se esses últimos efeitos, a ser evitados, constituem o que se chama de grau ímpar
da metáfora, aqueles exemplos nascidos dos sentidos (inalamos o aroma da urbanidade, percebemos a
delicadeza da humanidade, ouvimos o murmúrio do mar etc.) constituem o grau totum simile, o campo
propriamente dito da metáfora. Em outras palavras, para que se identifique uma metáfora constituída de
modo adequado, faz-se necessário observar a obediência aos quesitos comparação figurada numa só
palavra e ao ajuste perfeito entre a palavra substituinte e a coisa comparada. Já Quintiliano, depois de
definir metáfora, estabelece, entre os parágrafos 9 e 11 do sexto capítulo livro VIII da Institutio oratoria
(Na verdade, Quintiliano estende a descrição por mais alguns parágrafos), quatro tipos de transposição
comparativa que é, em suma, a metáfora (Huius uis quadruplex máxime uidetur). A transposição de uma
coisa animada em substituição a outra animada: Cum in rebus animalibus aliud pro alio ponitur, ut de
agitatore ‘Gubernator magna contorsit equum ui’, aut ut Liuius Acipionem a Catone ‘adlatari’ solitum
refert; de uma coisa inanimada a outra inanimada: Aut (...) inanima pro aliis generis eiusdem sumuntur,
ut ‘Classique inmittit habenas’; de uma inanimada a uma animada: Aut pro rebus animalibus anima:
‘Ferron an fato moerus Argiuom occidit’; e de uma animada a uma inanimada: Aut contra: ‘sedet inscius
alto accipiens sonitum saxi de uertice pastor.’
457
V. § 60.
458
Cf. De ridiculis § 261 e nn. Para Quintiliano, a alegoria se define como uma metáfora continuada
numa frase inteira” (cf. IX, 2, 46). Em outras palavras, ela está para o pensamento como a metáfora está
para a palavra. Ou seja, enquanto a metáfora estabelece uma comparação através de signos diferentes, a
alegoria estende esse fenômeno para o campo da frase, onde uma mensagem toda se relaciona
comparativamente com uma outra mensagem anterior. Nas palavras de Quintiliano, a alegoria
126
70 Figuras quoque mentis, quae σχµατα διανοιας dicuntur, res eadem recipit
omnis, in quas nonnulli diuiserunt species dictorum. Nam et interrogamus et dubitamus
et adfirmamus et minamur et optamus; quaedam ut miserantes, quaedam ut irascentes
dicimus. Ridiculum est autem omne quod aperte fingitur.
70 A mesma regra compreende todas as figuras de pensamento (também
denominadas σχµατα διανοιας), com as quais alguns
461
matizaram espécies de ditos
ridículos. De fato, interrogamos, duvidamos, afirmamos, ameaçamos e optamos.
Algumas coisas dizemos como compassivos, outras como que encolerizados. O ridículo
é, por outro lado, tudo o que pode ser abertamente fingido.
71 Stulta reprehendere facillimum est; nam per se sunt ridicula; sed rem urbanam
facit aliqua ex nobis adiectio. Stulte interrogauerat exeuntem de theatro Campatium
Titius Maximus an spectasset. Fecit Campatius dubitationem eius stultiorem dicendo:
"<Non>, sed in orchestra pila lusi".
71 Repreender os ditos estultos é facílimo.
462
Eles são ridículos por si mesmos, mas
alguma adição vinda de nós produz uma coisa urbana. Um exemplo: Tício Máximo
proporciona nessa segunda mensagem, “um outro sentido por meio de outras palavras” (cf. VIII, 6, 48)
através daquilo que Lausberg chama de transferência imaginativa” (cf. LAUSBERG, 1976: v.2, p. 286,)
e o próprio Quintiliano de inuersio (cf. VIII, 6, 44). A alegoria consta, atendendo a uma nomenclatura de
Quintiliano (VIII, 6, 1), entre as figurae per immutationem, que são, por sua vez, tropos de pensamento
(Lausberg faz uma distinção entre os tropos de palavras isoladas, chamados de tropos pontuais, dos tropos
de pensamento. Ele instrui dizendo que os primeiros afetam pontos específicos do discurso, ao passo que
os últimos afetam toda a “superfície do pensamento”) ou figuras de pensamento, como afirma CURTIUS,
(1996: p. 81).
459
A alegoria se baseia aqui na técnica bélica que determina o escudo para ser usado com a mão esquerda
(defesa) e a espada com a mão direita (ataque). A mão boa de Marco Célio é sua habilidade em acusar e a
mão ruim sua ineficácia em defender. Como de regra, Cícero, citado neste parágrafo, faz aqui mais uma
censura à ocupação de acusador, além da citação da censura de Crasso à dedicação de Bruto a este ofício
(v. De ridiculis § 226). Em Brutus (273) ele relembra esta capacidade de Marco Célio em ser melhor
acusador que defensor.
460
Não referências seguras sobre quem eram estes personagens. Quanto ao dito ridículo, Quintiliano
define a ênfase como o efeito de amplificação de significado daquilo que se escreveu (IX, 2,3). Assim,
como o se sabe o contexto em que este dito ridículo se insere, mas através de seu conteúdo suspeita-se
que a hipotética morte de Túcio tenha sido involuntária, resta avaliarmos que, de um lado, não se trata de
ironia, pois não há um contrário plausível sendo dito ali, e, de outro, a cena se aproxima do absurdo (“... a
espada caíra sobre ele.”) quando a frase que a remete tem seu sentido amplificado para algo que vai além
de seu sentido primeiro (Túcio foi, na verdade, assassinado): o fato de uma espada cair (e não ser
apontada contra) sobre alguém sem que haja um sujeito praticando a ação.
461
Desconhece-se quem sejam.
462
Cf. De ridiculis, § 280.
127
perguntara estultamente a Compácio (que saía do teatro), se ele havia assistido ao
espetáculo. Compácio tornou-lhe então mais estulta a dúvida dizendo: “Não. Mas joguei
bola na orquestra”.
72 Refutatio cum sit in negando, redarguendo, defendendo, eleuando, ridicule
negauit Manius Curius. Nam cum eius accusator in sipario omnibus locis aut nudum
eum in neruo aut ab amicis redemptum ex alea pinxisset: “Ergo ego," inquit,
"numquam uici".
72 Como a refutação
463
esteja em negar, redargüir, defender e minorar, Mânio
Cúrio
464
negou de forma ridícula quando disse a seu acusador (que o havia pintado num
pano nas mais variadas cenas: ou nu na prisão ou sendo salvo do jogo por amigos): “Eu
nunca venci então?”.
73 Redarguimus interim aperte, ut Cicero Vibium Curium multum de annis aetatis
suae mentientem: "Tum ergo cum una declamabamus non eras natus". Interim et
simulata adsensione, ut idem Fabia Dolabellae dicente triginta se annos habere:
"Verum est,” inquit, "nam hoc illam iam uiginti annis audio".
73 Às vezes redargüimos abertamente, como fez Cícero dizendo a Víbio Cúrio
465
,
que mentia muito sobre sua idade: “Então quer dizer que quando declamávamos juntos,
tu não eras nascido?”; outras vezes, com assentimento simulado, como disse Cícero a
463
Lembramos que Quintiliano trata da inuentio nos livros IV, V e VI (da elocutio nos livros VII, VIII e
IX e da memoria e actio no livro XI), e mais especificamente das provas e da refutação no livro V,
capítulo 13. No § 2, o retor elenca por meio de verbos alguns meios pelos quais os advogados podem
estabelecer a refutação. Dos verbos aqui apresentados, apenas redarguo não se mostra identicamente ali,
apenas sinonimicamente. Por outro lado, Quintiliano aponta o verbo derideo, ligando o recurso do riso
aqui doutrinado ao uso no exercício desta parte do discurso e mostrando que o riso se nos processos
em que uma espécie de altercação se estabelece, ou seja, os movimentos persuasivos do adversário que
necessitam ser neutralizados ou enfraquecidos.
464
Talvez se trate do mesmo Cúrio descrito por Salústio em De coniuratione Catilinae (23, 1), mas com o
primeiro nome Quinto.
465
Víbio Cúrio, um dos comandantes da cavalaria do exército de César quando este iniciou a guerra com
Pampeu na Itália (cf. César, Commentariorum de bello ciuili I, 24; Cícero Epistulae ad Atticum II, 20; IX,
6).
128
respeito de Fábia,
466
mulher de Dolabela, que dizia ter trinta anos: É verdade disse
Cícero –, pois faz vinte anos que eu ouço isso”;
74 Belle interim subicitur pro eo quod neges aliud mordacius, ut Iunius Bassus,
querente Domitia Passieni quod incusans eius sordes calceos eam ueteres diceret
uendere solere. "Non mehercules," inquit, "hoc umquam dixi, sed dixi emere te solere".
Defensionem imitatus est eques Romanus, qui obicienti Augusto quod patrimonium
comedisset: "Meum," inquit, "putaui".
74 noutras vezes agradavelmente, quando algo que negas é substituído por algo
mais mordaz, como é o exemplo de Júnio Basso. Domícia, mulher de Passieno,
467
reclamava que ele a acusara de avareza dizendo que ela costumava vender seus sapatos
velhos; ao que ele respondeu: “Não, por Hércules! Eu jamais disse isso. Disse que tu
costumas comprá-los”. Um cavaleiro romano imitou este tipo de defesa ao dizer a
Augusto, que o acusava de ter comido o patrimônio: “Poxa,
468
pensei que fosse meu!”.
75 Eleuandi ratio est duplex: ut aut nimiam quis iactantiam minuat (quem ad
modum C. Caesar Pomponio ostendenti uulnus ore exceptum in seditione Sulpiciana,
quod is se passum pro Caesare pugnantem gloriabatur, "Numquam fugiens respexeris,"
inquit, aut crimen obiectum, ut Cicero obiurgantibus quod sexagenarius Publiliam
uirginem duxisset: “Cras mulier erit," inquit.
75 Há dois modos de minorar:
469
diminur quem é excessivamente jactancioso, como
o exemplo do episódio em que Caio César
470
disse a Pompônio, que se gloriava como
combatente que sofrera por sar, mostrando um ferimento recebido na boca durante a
sedição sulpiciana:
471
“Quem foge nunca olha para trás”; ou a acusação apresentada,
466
Primeira mulher de Públio Cornélio Dolabella (v. n. 71, § 79).
467
Crispo Passieno, cônsul em 42 e.c. (cf. Smith: v.1, p. 892).
468
Adicionei uma interjeição na oração para realçar a ironia.
469
V. § 72 e n.
470
Caio Júlio César Estrabão, irmão de Quinto Lutácio Cátulo (v. De ridiculis § 220 e nn.), um dos
protagonistas de De oratore e interlocutor principal de De ridiculis.
471
Sobre a sedição sulpiciana, v. Smith, W. A dictionary of Greek and Roman biography and mythology:
vol. 3, pp. 945-46.
129
como a resposta de Cícero àqueles que o acusavam de, sexagenário, ter desposado a
virgem Publília: “Amanhã mesmo ela será uma senhora”.
76 Hoc genus dicti consequens uocant quidam, estque illi simile quod Cicero
Curionem, semper ab excusatione aetatis incipientem, facilius cotidie prohoemium
habere dixit, quia ista natura sequi et cohaerere uideantur.
76 Alguns denominam conseqüente este gênero de ditos porque parecem, por
natureza, ser conseqüentes e formar uma continuidade. E ele é semelhante ao que
Cícero utilizou quando disse que o exórdio de Curião,
472
que sempre começava a
discursar desculpando-se pela idade, tornava-se mais fácil a cada dia;
77 Sed eleuandi genus est etiam causarum relatio, qua Cicero est usus in Vatinium,
qui pedibus aeger cum uellet uideri commodioris ualetudinis factus et diceret se iam
bina milia passuum ambulare: "Dies enim," inquit, "longiores sunt". Et Augustus,
nuntiantibus Terraconensibus palmam in ara eius enatam, "Apparet," inquit, "quam
saepe accendatis".
77 Mas outro gênero de diminuição
473
é a relação de causas. Não somente Cícero
fez uso disso contra Vatínio, que sendo doente dos s queria parecer curado e dizia já
poder percorrer duas milhas a pé; ao que Cícero respondeu: “É. Com certeza os dias são
bastante longos.”
474
E Augusto, quando alguns terraconenses anunciaram-lhe que uma
palma havia nascido sobre seu altar,
475
disse: “Percebe-se claramente o quão
frequentemente vós acendeis suas chamas.”
78 Transtulit crimen Cassius Severus; nam cum obiurgaretur a praetore quod
advocati eius L. Vaxo Epicurio, Caesaris amico, conuicium fecissent: "Nescio," inquit,
472
Provavelmente Caio Escribônio Curião, citado por Cícero em Brutus (§ 210 sg.)
473
V. § 72 e n.
474
O mesmo dito ridículo aparece em Macróbio (Saturnalia, 2, 4, 16), cujo autor é Augusto porém.
475
V. Tácito, Annales, 78.
130
"qui conuiciati sint, et puto Stoicos fuisse". Repercutiendi multa sunt genera,
uenustissimum quod etiam similitudine aliqua uerbi adiuuatur, ut Trachalus dicenti
Suelio: "Si hoc ita est, is in exilium", "Si non est ita, redis" inquit.
78 Cássio Severo
476
transferiu
477
a acusação. Quando repreendido por um pretor
porque seus advogados interrogaram aos gritos Lúcio Varo Epicúrio,
478
amigo de
César,
479
respondeu: “Desconheço quem tenha gritado, e acredito que foram os
estóicos.”
480
Muitos são os gêneros de rebater. O mais venusto é aquele incrementado
por alguma semelhança de palavras; como fez Tracalo:
481
dizendo-lhe Suélio “Se a
coisa está assim, vais para o exílio”, ele lhe respondeu “Se não está, retornas.”
482
79 Elusit Cassius Seuerus, obiciente quodam quod ei domo sua Proculeius
interdixisset, respondendo "Numquid ergo illuc accedo?" Sed eluditur et ridiculum
ridículo, ut diuus Augustus, cum ei Galli torquem aureum centum pondo dedissent, et
Dolabella per iocum, temptans tamen ioci sui euentum, dixisset: "Imperator, torque me
dona", "Malo," inquit, "te ciuica donare".
79 Cássio Severo eludiu a exprobração que um homem lhe fazia dizendo que
Proculeio o proibira de entrar em sua casa, respondendo: “Porventura eu lá apareço?”
Mas, com o ridículo pode-se eludir o ridículo, como fez uma vez o divino Augusto.
Como os gauleses o houvessem presenteado com um colar de ouro de cem libras e
Dolabela,
483
gracejando, mas tentando tirar vantagem com seu gracejo, lhe dissesse
476
V. § 27.
477
Verbo transfero, -fers, -tuli, -latum, -fere aparece no trato da refutatio descrito acima (Quintiliano V,
13; v. § 72 e n.), o que inclui este gênero de urbanidade entre aqueles mostrados mais acima.
478
Não se encontrou referências seguras que era Lúcio Varo Epicúrio. Algumas edições dizem-no parente
de Nônio Asprena, contra quem Cássio severo moveu um processo (cf. Suetônio, Diui Augustus 56).
479
César: subentendido Augusto.
480
A semelhança de nome permite o jogo de palavras que faz alusão ao embate filosófico entre
epicuristas e os estóicos.
481
Marco Galério Tracalo, cônsul em 68. Segundo Quintiliano (X, 119; XXI, 5,5; XXI, 10,10), foi um
dos mais distintos oradores de sua época.
482
Não há referências exatas sobre o contexto em que se deu este dito ridículo.
483
Públio Cornélio Dolabela. Foi apontado como membro dos quindecimuiri em 51, e no ano seguinte
acusou Ápio Cláudio de ter violado direitos soberanos do povo. Compelida pela conduta do marido, sua
esposa Fábia o deixou, e Dolabella então se casou com Túlia, filha de Cícero (v. Ad familiares II, 16, 5;
Smith: 1867: vol. 1, pp. 1058–59).
131
“Presenteia-me com o colar , imperador”, ele lhe disse: “Prefiro presenteá-lo com a
coroa cívica.”
484
80 Mendacium quoque mendacio, ut Gabba, dicente quodam uictoriato se uno in
Sicilia quinque pedes longam murenam emisse: "Nihil," inquit, "mirum; nam ibi tam
longae nascuntur ut iis piscatores pro restibus cingantur".
80 Podemos também eludir uma mentira com outra;
485
como fez Gaba quando um
tipo dizia ter comprado, na Sicília, uma moréia
486
de cinco pés de comprimento por um
uictoriatus:
487
“Novidade! disse ele Ali as moréias nascem tão grandes, que os
pescadores cingem-se com elas em lugar de cordas.
488
81 Contraria est neganti confessionis simulatio, sed ipsa quoque multum habet
urbanitatis. Sic Afer, cum ageret contra libertum Claudi Caesaris et ex diuerso quidam
condicionis eiusdem cuius erat litigator exclamasset: "Praeterea tu semper in libertos
Caesaris dicis," "nec mehercule," inquit, "quicquam proficio". Cui uicinum est non
484
Torquis (colar) possui, além dessa acepção a de condecoração militar a qualquer um que resgatasse um
romano das mãos do inimigo. A coincidência de nomes permitiu a Augusto responder como mesmo teor
ridículo dizendo que daria no lugar do caro colar uma Corona ciuica (Coroa cívica feita com folhas de
carvalho), que possuía um valor muito maior (a terceira na hierarquia das condecorações acima dela
estavam a Corona obsidionalis e a Corona triumphalis, a mais alta condecoração que uma pessoa poderia
obter), pois era um prêmio dado a quem salvasse um cidadão numa batalha e dava ao seu possuidor certos
prívilégios, como, por exemplo, insenção de impostos para si mesmo, para seu pai e para seu avô paterno.
Suetônio (Diui Augustus, XXV) afirma que raramente Augusto concedia esta honraria e que seu valor era
puramente honorífico, o que incrementa ainda mais o dito ridículo em questão (cf. Smith, 1870: pp 359–
363).
485
É claro o desenvolvimento dos aspectos da refutatio até este e o próximo parágrafo, como gêneros de
urbanidade (v. § 72 e n.).
486
Um tipo de peixe; o mesmo que Lampréia. Segundo Houaiss (2001, p.1960) “1 designação comum
aos peixes teleósteos, angüiliformes, da família dos murenídeos, de corpo alongado e quase cilíndrico,
revestido por muco, boca dotada de fortes dentes e uma nadadeira dorsal que se estende do dorso ao ânus.
1.1 peixe (Muraena helena) encontrado do Atlântico ao Mar Mediterrâneo, de até 1,50 m de
comprimento, com a coloração variando de amarela a marrom-escura com manchas esbranquiçadas;
moréia-comum”.
487
Moeda de prata do valor de cinco asses (unidade que seria de medida para as moedas, pesos e medidas
de Roma dividida em doze partes ou onças. Como moeda pesava originariamente uma libra ou doze onças
de cobre. Uma onça equivale ao peso entre 24 e 33 gramas) com a efígie de Victoria (deusa dos romanos).
Segundo o interlocutor de Gaba, o peixe foi comprado por um preço irrisório.
488
Ao que parece já vem de muito tempo as piadas em torno do exercício da pesca, sobretudo quando este
tipo de dito ridículo usa da mentira para provocar o riso. No interior do Brasil é bastante comum o riso
obtido por meio da “mentira de pescador”.
132
negare quod obicitur, cum et id palam falsum est et inde materia bene respondendi
datur, ut Catulus dicenti Philippo: "Quid latras?", "Furem uideo," inquit.
81 O contrário da negação é a simulação de confissão, mas até essa tem muito de
urbanidade. Assim fez Africano enquanto defendia uma causa contra um liberto do
imperador Cláudio César. Enquanto discursava, um sujeito da mesma classe social do
litigante exclamou: Agora tu falas sempre contra os libertos de César!” E Africano
respondeu: “Por Hércules, eu não faço progresso algum!”. Um recurso vizinho a este é
não negar a acusação, ainda que ela seja publicamente falsa e, sobretudo, se ela oferece
boa oportunidade de resposta; como fez tulo a Filipe que lhe indagava: “Por que
ladras?”. E ele respondeu: “Porque vejo um ladrão!”
489
82 In se dicere non fere est nisi scurrarum et in oratore utique minime probabile:
quod fieri totidem modis quot in alios potest, ideoque hoc, quamuis frequens sit,
transeo.
82 Dizer contra si mesmo
490
é algo quase dos bufões e, em geral, é muito pouco
apreciável em um orador. Os modos de se fazer isso são tantos quanto os modos de se
fazer contra outras pessoas; conquanto isso seja freqüente, passo adiante.
83 Illud uero, etiam si ridiculum est, indignum tamen est homine liberali, quod aut
turpiter aut inpotenter dicitur: quod fecisse quendam scio qui humiliori libere aduersus
se loquenti: "Colaphum," inquit, "tibi ducam, et formulam scribes quod caput durum
habeas". Hic enim dubium est utrum ridere audientes an indignari debuerint.
83 Na verdade, aquilo que é dito com violência e torpeza não é algo digno de um
cavalheiro, ainda que aquilo que se diz seja risível. Conheço certo sujeito que fez algo
assim. Ele disse estas palavras a um homem de condição inferior a sua, que lhe falava
como fala um homem livre: “Vou te dar um safanão e tu me darás razão porque tens a
cabeça dura”. Quem ouve uma frase como essa não sabe se ri ou se fica indignado.
489
V. De ridiculis §§ 220 e 255.
490
Cf. § 23 e De ridiculis §§ 274 e 289.
133
84 Superest genus decipiendi opinionem aut dicta a intellegendi, quae sunt in omni
hac materia uel uenustissima. Inopinatum et a lacessente poni solet, quale est quod
refert Cicero: "Quid huic abest nisi res et uirtus?" aut illud Afri; "Homo in agendis
causis optime uestitus"; et in occurrendo, ut Cicero audita falsa Vatini morte, cum
obuium libertum eius interrogasset "Rectene omnia?" dicenti "Recte". "Mortuus est!",
inquit.
84 Restam os gêneros que consistem em frustrar a expectativa ou entender de outro
modo o que foi dito,
491
que nesta matéria são os mais venustos. O inesperado costuma
ser colocado não somente por aquele que ataca,
492
tal como aquilo que Cícero refere: “O
que falta a este senão a riqueza e a virtude?”
493
ou aquele outro de Africano: “O homem
mais bem vestido nas alegações”; como também na réplica, como fez Cícero depois de
ouvir a falsa notícia da morte de Vatínio
494
e quando encontrou um liberto deste
perguntou-lhe “Como vão as coisas?” e respondendo-lhe o homem “Estão bem”,
disparou: “Agora ele está morto mesmo!”
495
85 Plurimus autem circa simulationem <et dissimulationem> risus est, quae sunt
uicina et prope eadem, sed simulatio est certam opinionem animi sui imitantis,
dissimulatio aliena se parum intellegere fingentis. Simulauit Afer cum in causa subinde
dicentibus Celsinam de re cognouisse (quae erat potens femina): "Quis est," inquit,
"iste?" Celsinam enim uideri sibi uirum finxit.
85 muitíssimo riso em torno da simulação e da dissimulação,
496
as quais são
vizinhas e quase a mesma coisa, não obstante a simulação seja dar a idéia de possuir
uma convicção inequívoca
497
e a dissimulação fingir ter entendido muito pouco do que
491
Quintiliano inclui este gênero no parágrafo 23 e o desenvolve nos parágrafos seguintes a este, o que
não ocorre com os dois primeiros gêneros do referido parágrafo em parte alguma do texto. De qualquer
modo o texto de Quintiliano se baseia em De ridiculis, o que possibilita dizer, em certa medida, que
também estes gêneros o acolhidos por Quintiliano. O primeiro é exemplificado neste parágrafo e o
segundo se estende entre os §§ 85 e 90.
492
Cf. De ridiculis, § 284.
493
Cícero inclui esta frase dentro de outro gênero de facécia: discrepâncias (cf. De ridiculis, § 281).
494
Sobre Vatínio v. § 60.
495
V. §§ 68 e 84.
496
Sobre a acepção de dissimulatio em Cícero, v. De ridiculis, § 269.
497
Simulatio: Cícero usa o mesmo termo numa outra acepção de gênero (v. De ridiculis, § 275 e n.).
134
o outro disse.
498
Africano simulou quando, em uma causa em que diziam
sucessivamente que Celsina (que era uma mulher importante) sabia dos fatos,
perguntou: “Quem é este?” Ele fingiu ter tomado Celsina por homem.
86 Dissimulauit Cicero cum Sex. Annalis testis reum laesisset et instaret identidem
accusator: "Dic, M. tulli, <si> quid potes de Sexto Annali"; uersus enim dicere coepit
de libro Enni annali sexto:
"Quis potis ingentis causas euoluere belli?"
86 E Cícero dissimulou quando Sextus Annalis,
499
testemunha, havia prejudicado o
réu que ele, Cícero, defendia. E como o advogado de acusação instasse de quando em
quando dizendo: “Marco Túlio, se podes diga-me alguma coisa a respeito de Sextus
Annalis? Cícero então começou a citar versos do sexto livro dos Annales de Ênio
500
“Quem poderá explicar as causas de uma guerra tão grande?”
501
87 Cui sine dubio frequentissimam dat occasionem ambiguitas: ut Cascellio, qui
consultatori dicenti "Nauem diuidere uolo", "perdes", inquit. Sed auerti intellectus et a
solet, cum ab asperioribus ad leniora deflectitur: ut qui, interrogatus quid sentiret de eo
qui in adulterio deprehensus esset, tardum fuisse respondit.
87 A ambigüidade dá, sem dúvida, muita ocasião para esse gênero de dissimulação;
como fez Cascélio,
502
que a um consulente que lhe dizia “quero dividir o barco”,
498
Com essa acepção Cícero estabelece o gênero da simulatio (v. § 275). Comparando: “fingir ter
entendido muito pouco do que o outro disse” é para Cícero simulatio e para Quintiliano dissimulatio. Para
Cícero a dissimulatio está ligada à ironia.
499
Mantive a escrita latina para que a homonímia ficasse evidente no exemplo. Na tradução para o
português o sobrenome de Sextus (Sexto) seria escrito Analis e o nome do poema de Ênio seria escrito
Anais, o que faria a tradução perder o efeito cômico gerado pela homonímia dos nomes em latim.
500
Em Ad familiares (II, 6, 1), Cícero cita um Sexto Vílio, amigo de Milão, que era amante de Fausta,
filha de Sula, talvez a mesma citada por Horácio em Satirae (I, 2, 64).
501
Cf. Ênio, Annales, VI, 174.
135
respondeu: “Vais perdê-lo”. Mas a compreensão costuma também ser desviada de outro
modo, como no exemplo do homem que, interrogado sobre o que pensava de outro que
havia sido flagrado em adultério, disse: “Lerdo.”
503
88 Ei confine est quod dicitur per suspicionem, quale illud apud Ciceronem
querenti quod uxor sua ex fico se suspendisset: "Rogo des mihi surculum ex illa arbore
ut inseram"; intellegitur enim quod non dicitur.
88 Vizinho a isso é aquilo que é dito por malícia, tal qual refere Cícero: um homem
se queixava porque a mulher se enforcara num pé de figo; ao que o outro lhe respondeu:
“Por favor, dá-me uma muda daquela árvore para eu plantar.”
504
Aquilo que não é dito
pode, com efeito, ser entendido.
89 Et hercule omnis salse dicendi ratio in eo est, ut aliter quam est rectum
uerumque dicatur: quod fit totum fingendis aut nostris aut alienis persuasionibus aut
dicendo quod fieri non potest.
89 E por Hércules! todos os meios de falar picantemente consistem nisto: dizer
de modo diferente do que é reto e verdadeiro, o que acontece totalmente quando
fingimos nossa opinião ou a alheia ou quando dizemos coisas que não podem ser
feitas.
505
90 Alienam finxit Iuba, qui querenti quod ab equo suo esset adspersus: "Quid? tu,
inquit, "me Hippocentaurum putas?" Suam C. Cassius, qui militi sine gladio decurrenti
"Heus, commilito, pugno bene uteris", inquit, et Gabba de piscibus, qui, cum pridie ex
parte adesi et uersati postera die positi essent: "Festinemus, alii subcenant", inquit.
502
Jurista da época de Augusto (cf. Horácio, Ars Poetica, 371). Macróbio também cita este ocorrido em
Saturnalia, II, 6,2.
503
Cf. De ridiculis, § 275.
504
Em Cícero, esta frase é atribuída a um siciliano. De resto, é justo dizer que Quintiliano acolhe o termo
apontado por Cícero para identificar este gênero: suspicionem (cf. ibid. § 278).
505
O gênero apresentado por Quintiliano apenas se assemelha ao apresentado por Cícero em De ridiculis,
§ 287 e n.
136
Tertium illud Cicero, ut dixi, aduersus curium; fieri enim certe non poterat ut cum
declamaret natus non esset.
90 Juba
506
fingiu a alheia. Um homem queixava-se com ele dizendo ter sido
borrifado por seu cavalo, e ele respondeu: Quê? Pensas que sou hipocentauro?”
507
Caio Cássio
508
fingiu a sua ao dizer a um soldado que corria à batalha sem o gládio:
“Hei, camarada, usará bem os punhos, hã!?”. E Gaba,
509
que a respeito de uns peixes
que eram servidos num dia de um lado e, no seguinte, do outro, disse: “Vamos rápido,
pois estão jantando debaixo da mesa.” Um terceiro exemplo é aquele em que Cícero,
como disse antes, disse a Curião
510
que, certamente, não poderia ter acontecido que
declamasse quando não era nascido ainda.
91 Est et illa ex ironia fictio, qua usus est C. Caesar. Nam cum testis diceret a reo
femina sua ferro petita, et esset facilis reprehensio, cur illam potissimum partem
corporis uulnerare uoluisset: "Quid enim faceret,” inquit, "cum tu galeam et loricam
haberes?"
91 também aquela ficção
511
que vem da ironia,
512
da qual Caio César fez uso.
De fato, uma testemunha dizia que o réu a ferira nas coxas com uma espada; e como
fosse fácil refutá-la perguntando por que quisera deixar vulnerável justamente aquela
parte do corpo, disparou: “E o que tu querias que ele fizesse enquanto tu tinhas o elmo e
a couraça?”
506
Juba II, filho de Juba, rei da Numídia. Depois da morte de seu pai (46 e.c.), Juba foi levado cativo para
Roma. Lá, havendo conquistado as graças de César, recebeu excelente educação e se dedicou com
diligência aos estudos. Ainda jovem Augusto lhe devolveu o reinado que era de seu pai (v. Smith, 1867:
v. 2, p. 636).
507
O fingimento de Juba se fez dizendo que o homem o tinha visto como a parte humana do cavalo sobre
o qual estava montado.
508
Desconhecido.
509
Como em outras passagens, trata-se do mesmo Gaba do § 27.
510
V. § 73 e n..
511
A ironia do exemplo não se apresenta na sua acepção normal, dizer o inverso daquilo que se pensa,
mas sim na justificativa do injustificável baseado num fato inventado, constituído aqui por uma fictio que
se assemelha ao locus oratório incluso no trato dos argumenta (inuentio > argumentatio), que consiste em
apresentação de um argumento fictício. Nesse caso, o elmo e a couraça o a ficção que baseiam a ironia
de Caio César (cf. Quintiliano V, 10, 95).
512
Sobre ironia, v. § 68 e De ridiculis, § 262 e nn.
137
92 Vel optima est autem simulatio contra simulantem, qualis illa Domiti Afri fuit.
Vetus habebat testamentum, et unus ex amicis recentioribus, sperans aliquid ex
mutatione tabularum, falsam fabulam intulerat, consulens eum an primipilari seni
<iam> testato <rusrus> suaderet ordinare suprema iudicia: "Noli," inquit, "facere;
offendis illum."
92 Por outro lado, a melhor simulação é aquela feita contra aquele que simula, tal
qual o exemplo de Domício Africano. Domício, já entrado em anos, tinha feito um
testamento
513
e um dos amigos mais recentes, esperando algo para si na mudança do
documento, inventou uma história falsa e perguntou-lhe se deveria persuadir um velho
primipilo, que havia redigido seu testamento, a ordenar seu último desejo; ao que
respondeu Africano: “Não queiras fazer isso, pois o ofendes”.
93 Iucundissima sunt autem ex his omnibus lenta et, ut sic dixerim, boni stomachi:
ut Afer idem ingrato litigatori conspectum eius in foro uitanti per nomenclatorem
missum ad eum "Amas me," inquit, "quod te non uidi?" et dispensatori, qui, cum reliqua
non reponeret, dicebat subinde "Non comedi; pane et aqua uiuo", "Passer, redde quod
debes": quae π τ θος uocant.
93 Porém, as mais jucundas, dentre todas essas, são as rápidas e leves; as quais são,
por assim dizer, de boa digestão.
514
O próprio Africano mandou uma mensagem a um
cliente ingrato que fugia toda vez que o via no foro: “Amas-me porque não te vi?” e a
um despenseiro que o desfalcava e não repunha nem prestava contas e dizia
incessantemente “Não comi: vivo de pão e água”. Um dia Africano lhe disse:
“Periquito! Pague o que deves então”. A este gênero chamam de π τ θος.
94 Est gratus iocus qui minus exprobrat quam potest, ut idem dicenti candidato:
"Semper domum tuam colui", cum posset palam negare, "Credo," inquit, "et uerum".
513
Cf. Plínio, o jovem (VIII 18, 5).
514
Em De ridiculisstomachus” é utilizada numa situação oposta (v. De ridiculis, § 279).
138
Interim de se dicere ridiculum est, et, quod in alium si absentem diceretur urbanum non
erat, quoniam ipsi palam exprobratur mouet risum;
94 Prazeroso é o gracejo que exproba o menos possível, como o próprio Africano
respondeu a um candidato que lhe dizia: Sempre respeitei a tua casa” e ele respondeu:
“Acredito. É verdade” (mesmo que pudesse negar isso publicamente). Às vezes o
ridículo é falar de si mesmo e aquilo que não é urbano quando se fala de alguém
ausente, passa a ser risível se a pessoa está presente,
95 quale Augusti est cum ab eo miles nescio quid improbe peteret <et> ueniret
contra Marcianus, quem suspicabatur et ipsum aliquid iniuste rogaturum: "Non magis,"
inquit, "faciam, commilito, quod petis quam quod Marcianus a me petiturus est".
95 tal qual um exemplo de Augusto. Um soldado pedira-lhe algo de ímprobo, (cuja
essência desconheço) e como vinha ao seu encontro Marciano, de quem Augusto
desconfiava que fosse receber também um pedido injusto, disse alto ao soldado: “Do
que me pedes, ó soldado, não farei mais do que me vier pedir Marciano.”
515
96 Adiuuant urbanitatem et uersus commode positi, seu toti ut sunt (quod adeo
facile est ut Ouidius ex tetrastichon Macri carmine librum in malos poetas
composuerit), quod fit gratius si qua etiam ambiguitate conditur, ut Cicero in Lartium,
hominem callidum et uersutum, cum is in quadam causa suspectus esset:
"Nisi si qua Vlixes lintre euasit Lartius":
96 Também favorecem a urbanidade não somente os versos colocados
convenientemente,
516
seja inteiramente como são absolutamente fácil que Ovídio, a
partir do poema em quarteto de Macro,
517
tivesse composto um livro contra os maus
515
o referências seguras dizendo que este Marciano é o mesmo senador sob Tibério citado por
Tácito (Annales VI, 38).
516
Cf. De ridiculis, § 257.
517
Bardon (1956: pp.44–47) e Smith (1867: vol. 2, pp. 892– 93) citam o poeta Emílio Macro, que morreu
na Ásia em 16 a.e.c. No entanto, apenas o último cita mais um Emílio Macro, que viveu em 12 e.c.
139
poetas), o que fica mais agradável, se vier temperado por alguma ambigüidade; como
por exemplo, a frase de Cícero contra Lárcio, homem hábil e sagaz, que era suspeito em
uma determinada causa:
“A não ser que Ulisses Lárcio
518
tivesse fugido em sua jangada”;
519
97 seu uerbis ex parte mutatis, ut in eum qui, cum antea stultissimus esset habitus,
post acceptam hereditatem primus sententiam rogabatur:
"Hereditas est quam uocant sapientiam"
pro illo "felicitas est"; seu ficti notis uersibus similes quae παρδα dicitur;
97 seja com a mudança de uma parte dos versos, como o exemplo de um homem
antes considerado estultíssimo e que, depois de ter recebido uma herança, foi o primeiro
a ser chamado a discursar. A ele se atribui o seguinte verso:
“A herança é o que chamamos sabedoria
520
”,
onde “herança” substitui “fortuna”; seja inventando-os de modo que fiquem
semelhantes a versos conhecidos; procedimento conhecido como παρδα.
98 et prouerbia oportune aptata, ut homini nequam lapso et ut adleuaretur roganti:
"Tollat te qui non nouit". Ex historia etiam ducere urbanitatem eruditum est, ut Cicero
fecit cum ei testem in iudicio Verris roganti dixisset Hortensius: "Non intellego haec
Portanto, não obstante ambos se originarem de Verona, viveram em épocas diferentes. Ademais, nenhuma
das referêcias define qual desses Macros compôs o Carmen Tetrastichon, um poema em quartetos, que
Ovídio tranforma por meio de supressões e transposições em versos satíricos contra os maus poetas.
518
Cícero utilizou a proximidade sonora dos nomes (Lartius e Laetius, sobrenome patronímico de Ulisses
Odisseu) como coincidência do comportamento do primeiro com a vida de viagens e fugas do segundo
em sua volta a Ítaca.
519
A palavra lintre (lintres,-ium) denota uma embarcação pequena, frágil e, de certo modo, improvisada.
Por isso, adotei a palavra jangada para que essa acepção favorecesse a expressão deste dito ridículo sem
que se alterasse o sentido primeiro do termo e da frase.
520
O verso citado é um trímetro jâmbico de procedência desconhecida.
140
aenigmata"; "Atqui debes,” inquit, "cum Sphingem domi habeas"; acceperat autem ille
a Verre Sphingem aeneam magnae pecuniae.
98 também os provérbios adaptados oportunamente
521
, como a frase dita a um
homem mau que, caído, rogava para que o levantassem: “Quem o te conhece que te
levante.”
522
Com efeito, faz parte da erudição trazer a urbanidade a partir de fatos da
História.
523
Certa vez, Cícero interrogava uma testemunha durante o processo de Verres,
quando Hortênsio lhe disse: “Não compreendo estes enigmas”; ao que respondeu
Cícero: “Pois deverias, afinal tens uma esfinge
524
em casa.” De fato Hortênsio recebera
de Verres uma esfinge de bronze caríssima.
525
99 Subabsurda illa constant stulti simulatione; [et] quae nisi fingantur stulta sunt,
ut qui mirantibus quod humile candelabrum emisset: "Pransorium erit" ,inquit. Sed illa
similia absurdis sunt acria, quae tamquam sine ratione dicta feruntur: ut seruus
Dolabellae, cum interrogaretur an dominus eius auctionem proposuisset: "Domum,"
inquit, "uendidit".
99 As frases absurdas
526
estabelecem-se pela simulação de estultice de tal maneira
que, não fosse o fingimento, tratar-se-ia mesmo de estultice; como o que disse um
homem àqueles que se espantavam por ter ele comprado um candelabro muito simples:
“Este é bom para o almoço”,
527
disse. Por outro lado, quanto mais essas frases surgirem
de algo dito quase sem intenção mais acres elas se tornam; como, por exemplo, o que o
servo de Dolabela
528
disse a um tipo que especulava se seu senhor publicaria o leilão de
seus bens: “Ele vendeu /tudo/, até a casa/.”
529
521
Cf. De ridiculis, § 258.
522
A resposta é uma variante daquela encontrada em Horácio, Epistulae 1, 17, 61 sg.
523
Quintiliano acolhe mais este gênero de Cícero, que se encontra em De ridiculis, § 265.
524
A resposta de Cícero faz referência ao enigma da esfinge solucionado por Édipo.
525
Por duas vezes Plutarco cita esta resposta de Cícero a Hortênsio (cf. Moralia p. 255B; Vita Cíc. VII,
8).
526
Cf. § 23 e De ridiculis § 274 .
527
O candelabrum obviamente é usado para a noite. No almoço não se usa, daí o riso.
528
O genro de Cícero, v. § 79 e n.
529
Adicionei o pronome tudo” e o advérbio “atépara reforçar a expressão que quer dizer que Dolabela
havia vendido até mesmo a própria casa.
141
100 Deprensi interim pudorem suum ridículo aliquo explicant: ut qui testem
dicentem a reo uulneratum interrogauerat an cicatricem haberet, cum ille ingentem in
femine ostendisset: "Latus," inquit, "oportuit". Contumeliis quoque uti belle datur; ut
Hispo obicienti aspere crimina accusatori "<Men ex te> metiris?", inquit. Et Fuluius
Propincus legatario interroganti an in tabulis quas proferebat chirographus esset: "Et
uerus," inquit, "domine".
100 Às vezes, embaraçados, alguns se desfazem do constrangimento com algo
ridículo, como por exemplo um advogado de defesa quando perguntava a uma
testemunha, que dizia ter sido ferida pelo réu, se ela tinha alguma cicatriz. E como a
testemunha mostrasse uma enorme na perna, respondeu-lhe: “Melhor tivesse sido no
flanco”. Também o insulto, bem utilizado, é permitido: como fez Hispão
530
ao dizer a
um advogado de acusação que asperamente o acusava de vários crimes: “É com tua
régua que irás me medir?”. E Fúlvio Propinco
531
respondeu assim ao legatário que lhe
perguntava se o conteúdo das buas era escrito de próprio punho: “E é também
verdadeiro, senhor”.
101 Has aut accepi species aut inueni frequentissimas ex quibus ridicula ducerentur;
sed repetam necesse est infinitas esse tam salse dicendi quam seuere, quas praestat
persona lócus, tempus, casus denique, qui est maxime uarius.
101 Essas são as espécies mais freqüentes de ditos ridículos, que tomei extraídas
desses exemplos ou as encontrei eu mesmo. Mas é necessário que eu repita: são infinitas
as possibilidades de dizer de modo picante ou sério; e elas são oferecidas pelas pessoas,
pelos lugares, pelo tempo e pelo acaso, enfim, que é muito variado.
102 Itaque haec ne omisisse uiderer attigi: illa autem quae de usu ipso et modo
iocandi complexus sum adfirmarim <esse> plane necessaria. His adicit Domitius
530
Romano Hispão, retor romano que em 62 e.c. acusou Sêneca de associar-se a C. Pisão. Porém, a
acusação retornou contra ele pelo próprio (cf. Tácito, Annales I, 74, XVI, 17; Sêneca, o velho,
Controversiae II, 5, 20, IX, 3, 11).
531
Desconhecido.
142
Marsus, qui de urbanitate diligentissime scripsit, quaedam non ridicula, sed cuilibet
seuerissimae orationi conuenientia, eleganter dicta et proprio quodam lepore iucunda:
quae sunt quidem urbana, sed risum tamen non habent.
102 Assim, toquei nesses tópicos a fim de não parecer que me esqueci de algo. Por
outro lado, aquilo que abracei de seu próprio uso e do modo de gracejar assegurarei ser
especialmente necessário. Para este assunto contribuiu Domício Marso,
532
que escreveu
com especial dedicação alguns ditos o ridículos a respeito da urbanidade, palavras
ditas com elegância e que possuem um encanto próprio e agradável, mas convenientes a
qualquer discurso mais sério. Palavras certamente urbanas, mas que não contêm o riso.
103 Neque enim ei de risu, sed de urbanitate est opus institutum, quam propriam
esse nostrae ciuitatis et sero sic intellegi coeptam, postquam urbis appellatione, etiam
si nomen proprium non adiceretur, Romam tamen accipi sit receptum.
103 Seu trabalho não trata do riso, mas da urbanidade, que é própria da nossa cidade
e que começou tardiamente a ser entendida dessa maneira; tal qual Roma, que depois
que passou a ser conhecida como Urbe, veio a ser chamada somente assim, sem a
adição do nome próprio.
104 Eamque sic finit: "Vrbanitas est uirtus quaedam in breue dictum coacta et apta
ad delectandos mouendosque homines in omnem adfectum animi, maxime idonea ad
resistendum uel lacessendum, prout quaeque res ac persona desiderat". Cui si
breuitatis exceptionem detraxeris, omnis orationis uirtutes complexa sit. Nam si constat
rebus et personis, quod in utrisque oporteat dicere perfectae eloquentiae est.
104 Domício Marso a define assim: A urbanidade é uma virtude brevemente
condensada num dito, apta a deleitar e suscitar nos homens todo tipo de sensações. É
532
Domício Marso, poeta da era Augusta, cujos aspectos da vida particular não chegaram até nós. Marso
escreveu poemas de vários gêneros, porém os mais celebrados são seus epigramas. Marcial refere-se a ele
freqüentemente com grande admiração. Sabe-se incidentalmente que seus epigramas distinguiam-se por
sua licenciosidade e humor, além da severidade de suas sátiras (v. Marcial, II, 71,77; V, 5; VII, 99).
143
extremamente idônea para a defesa ou o ataque, consoante ao que requerem as coisas e
as pessoas”. Essa definição, excetuando-se dela o que diz a sobre a brevidade, comporta
todas as virtudes oratórias. Afinal, se ela se funda nas coisas e nas pessoas, importa
então dizer que é próprio da perfeita eloqüência tratar tanto de umas quanto de outras.
105 Cur autem breuem esse eam uoluerit, nescio, cum idem atque in eodem libro
dicat fuisse et in multis narrandi urbanitatem. Paulo post ita finit, Catonis, ut ait,
opinionem secutus: "Vrbanus homo [non] erit cuius multa bene dicta responsaque
erunt, et qui in sermonibus, circulis conuiuiis, item in contionibus, omni denique loco
ridicule commodeque dicet. Risus erit quicumque haec faciet orator".
105 Desconheço, todavia, por que quis Marso que a urbanidade fosse breve, se ele
mesmo (e no próprio livro) diz que a urbanidade na narrativa
533
encontra-se em muitos
autores. Pouco depois, referindo a opinião de Catão, ele faz esta definição: O homem
urbano será aquele capaz de dizer e responder bem, e que nas conversas, nos círculos,
nos convívios, mesmo nas assembléias e, enfim, em todo lugar sabefalar de forma
ridícula e convenientemente. Todo orador que fizer isso fará rir.”
106 Quas si recipimus finitiones, quidquid bene dicetur et urbane dicti nomen
accipiet. Ceterum illi qui hoc proposuerat consentanea fuit illa diuisio, ut dictorum
urbanorum alia seria, alia iocosa, alia media faceret: nam est eadem omnium bene
dictorum. Verum mihi etiam iocosa quaedam uidentur posse <in> non satis urbana
referri.
106 Se aceitarmos essas definições, tudo aquilo que é dito bem passará então a
receber o nome de urbanidade.
534
De resto, para Marso, que propôs aquela definição,
resultou lógica esta divisão: os ditos urbanos apresentam-se de forma séria, gracejosa ou
média. Ora, tudo o que pode ser dito bem possui essa mesma divisão. Para mim, no
533
Cf. §§ 42-44 e sg.
534
Definição de urbanidade de Quintiliano. Segundo ele, Marso não define claramente o que vem a ser a
urbanidade, uma vez que sua afirmação se confunde com a definição de dicere bene.
144
entanto, algumas frases, mesmo parecendo gracejosas, não são consideradas
suficientemente urbanas.
107 Nam meo quidem iudicio illa est urbanitas, in qua nihil absonum, nihil agreste,
nihil inconditum, nihil peregrinum neque sensu neque uerbis neque ore gestuue possit
deprendi, ut non tam sit in singulis dictis quam in toto colore dicendi, qualis apud
Graecos atticismos ille reddens Athenarum proprium saporem.
107 Pois na verdade, segundo meu entendimento, a urbanidade é a virtude na qual
nada de inconveniente, nada de rústico, nada de grosseiro, nada de exótico (nem quanto
ao pensamento, às palavras, à voz ou aos gestos) pode ser encontrado;
535
não obstante
ela não se encontre nem palavras isoladas nem na totalidade do que se diz exatamente
como, nos gregos, os aticismos davam aos discursos o sabor peculiar de Atenas.
108 Ne tamen iudicium Marsi, hominis eruditissimi, subtraham, seria partitur in tria
genera, honorificum, contumeliosum, medium. Et honorifici ponit exemplum Ciceronis
pro Q. Ligario apud Caesarem: "Qui nihil soles obliuisci nisi iniurias",
108 Contudo, para não obliterar a opinião de Marso (homem de extensa erudição)
/lembro que/ ele divide em três partes as expressões sérias: as honrosas, as injuriosas e
as intermediárias. Como exemplo do gênero de honra Marso pôs uma frase que Cícero,
535
Curtius chama de rusticitas a linguagem deselegante e áspera (Curtius, 1996: p. 126). Este riso romano
do camponês, cáustico, cru, natural, se manifestava em suas maneiras, em seu linguajar e em seus modos
de vida. Tudo isso era mais visível nas mais variadas festas rurais: As Saturnalia, que começavam em 17
de dezembro e homenageavam Saturno; as Lupercalia (em homenagem a Luperco ou Pan) iniciadas em
15 de fevereiro; as Liberalia, em 17 de março (que eram festas em honra de Baco); e as Floralia, que
eram jogos florais em honra a Flora, a meretriz, e ocorriam em abril. Nelas, o riso era desenfreado,
licencioso e agressivo. Havia injúrias de todos os tipos e medidas de agressões verbais, como, por
exemplo, nas Saturnalia, que ocorriam para preencher o espaço entre o ano lunar, oficial, e o solar, que
regia os trabalhos agrícolas. Nessa festa havia um ambiente de inversão: tochas e candeeiros eram acesos
durante o dia, havia a aclamação de um novo sol em plena meia-noite, os homens se vestiam de mulher e
simulavam vozes femininas nos cantos e nas danças. Tudo era inversão: os escravos usavam um chapéu
dos libertos chamado pilues libertatis, e comiam com seus senhores e lhes davam ordens até. Na segunda
sátira de Horácio, por exemplo, a um escravo seu é permitido dirigir-lhes censuras. O riso estava marcado
ali através das grosserias e obscenidades que caracterizam esses doze dias de festa. Nelas o riso esali
nas inversões, nas licenciosidades, nos vinhos etc. Como diz MINOIS, “um riso-evasão que (...) aniquila
o mundo real e o tempo” (cf. Minois, 2003: pp. 96-100). Sobre a oposição entre urbanidade e rusticidade,
cf.§ 8, n. 355.
145
em Pro Ligario, atribui a César: Tu que nada costumas esquecer, a não ser as
injúrias.”
536
109 et contumeliosi quod Attico scripsit de Pompeio et Caesare: "Habeo quem
fugiam, quem sequar non habeo", et medii, quod ποφθεγµατικν uocat et est ita, cum
dixit “neque grauem mortem accidere uiro forti posse nec immaturam consulari neque
miseram sapienti”. Quae omnia sunt optime dicta, sed cur proprie nomen urbanitatis
accipiant non uideo.
109 Como exemplo de frase injuriosa, expôs aquilo que Cícero escreveu a Ático a
respeito de Pompeu e César: “Tenho de quem fugir, não tenho a quem seguir.”
537
E, por
fim, como exemplo médio, que ele chama de ποφθεγµατικν (sentencioso), e assim é
quando Cícero disse: “A morte não pode ser grave para um varão corajoso nem
prematura para um cônsul nem mísera para um sábio.”
538
Todas essas frases o ditas
de forma perfeita, mas não vejo porque devam receber o nome de urbanidade.
110 Quod si non totius, ut mihi uidetur, orationis color meretur, sed etiam singulis
dictis tribuendum est, illa potius urbana esse dixerim, quae sunt generis eiusdem, <ex>
quo ridicula ducuntur et tamen ridicula non sunt, <ut> de Pollione Asinio seriis
iocisque pariter accommodato dictum est esse eum omnium horarum,
110 Nome esse, ao que me parece, que não deve corresponder somente à total
compleição do discurso, mas sim atribuído também às palavras isoladas. Diria que
podem ser chamadas urbanas aquelas palavras que são do mesmo gênero das quais
derivam aquelas que produzem o ridículo e, todavia, não são ridículas, como o exemplo
de Polião Asínio,
539
apto às palavras sérias e gracejosas e que foi chamado de homem
para todas as horas.
536
Cf. Pro Ligario, 35.
537
Cf. Ad Atticum, VIII, 7, 2.
538
Cf. In Catilinam, IV, 3,
539
Caio Polião Asínio (76 5 a.e.c.) foi político partidário de César e Antônio durante a guerra civil e
cônsul em 40 a.e.c. Foi também poeta, orador e crítico literário (v. Smith, 1867: v.3, pp. 436–38).
146
111 et de actore facile dicente ex tempore, ingenium eum in numerato habere: etiam
Pompei, quod refert Marsus, in Ciceronem diffidentem partibus: "Transi ad Caesarem,
me timebis". Erat enim, si de re minore aut alio animo aut denique non ab ipso dictum
fuisset, quod posset inter ridicula numerari.
111 Sobre um advogado
540
que com facilidade improvisava o discurso, dizia ele que
seu engenho estava em ter o dinheiro contado
541
; além disso, a frase (citada por
Marso) de Pompeu a Cícero, que desconfiava de seu partido: “Passe para o lado de
César, terás medo de mim.”
542
Essa, com efeito, seria colocada entre as frases ridículas
se fosse dita a respeito de algo menor ou com outra disposição de espírito ou, afinal, se
fosse dita por outro que não Pompeu.
112 Etiam illud quod Cicero Caerelliae scripsit, reddens rationem cur illa C.
Caesaris tempora tam patienter toleraret: "Haec aut animo Catonis ferenda sunt aut
Ciceronis stomacho"; stomachus enim ille habet aliquid ioco simile. Haec quae
monebam dissimulanda mihi non fuerunt: in quibus ut errauerim, legentis tamen non
decepi, indicata et diuersa opinione, quam sequi magis probantibus liberum est.
112 O mesmo vale para o que Cícero escreveu a Cerélia, que lhe perguntava por que
tolerava com tanta paciência o domínio de César: “Este tempo deve ser suportado com o
ânimo de Catão
543
ou com o estômago de Cícero”; com efeito a palavra estômago
possui aqui algo semelhante a um gracejo. Lembro que tudo o que expus não o fiz por
dissimulação. Se errei em alguma coisa, não quis, de qualquer modo, enganar os
leitores. Tendo eu indicado minha opinião e a contrária, qualquer um é livre para seguir
aquela que lhe parecer a mais correta.
544
540
O termo é em certa medida impreciso. A palavra actor se traduz tanto por advogado, quanto por orador
ou mesmo ator. Preferi a expressão advogado porque ela se adequa melhor ao contexto.
541
O mesmo dito ridículo se encontra em Sêneca, Contr. II, 5, 20.
542
Macróbio cita o mesmo episódio, v. Saturnalia, II, 3, 8.
543
Marco Pórcio Catão Uticense (95-46 a.e.c.), bisneto de Catão, o Censor. Opunha-se aos triúnviros e
quando sar conquistou o poder absoluto, suicidou-se em Útica depois de passar pelos mais variados
tipos de privações (v. Plutarco, Cato Maior; Salústio, Bellum Catilinae, 54; Tácito, Historiae, IV, 8;
Cícero, Ad Atticum, i, 18; XI, 9; Smith, 1867: v.1, pp. 645–650).
544
Quintiliano trata no próximo capítulo da altercatio, que ele explica ser um procedimento após a
apresentação das causas. Nela o objetivo é rechaçar os argumentos da parte contrária e isso se faz
147
CONCLUSÃO
Um dos objetivos deste trabalho foi reunir acolhimentos de Quintiliano obtidos
do texto de Cícero através do prisma de cinco perguntas feitas por sar, personagem
de De oratore, no parágrafo 235 de De ridiculis, a saber: O que é o riso? Onde se
encontra? É próprio de o orador utilizá-lo? Em que medida? Quais são os neros de
ridículo?
Para indicar o acolhimento, verifiquei a coincidência ou aproximação de teoria,
nomenclaturas, gêneros, modelos e exemplos. Sempre que algum desses aspectos foi
aproveitado referi a ocorrência e marquei, quando isso se mostrou necessário, a
diferença. Sem dúvida, não poucas definições, instruções e gêneros que se encontram
em Quintiliano foram obtidos em Cícero. Em De risu, amesmo alguns exemplos se
repetem.
Demais, os textos estabelecem um diálogo no estabelecimento da palavra
técnica que indique o riso oratório. Em um ponto de seu pequeno tratado (§ 20)
Quintiliano, ao citar Horácio, refere a palavra facetiae em sua forma facetum ecero,
em De ridiculis 231), cita o termo urbanitas em sua forma urbanitatis. Porém, a
influência Cícero em Quintiliano fica mais evidente quando verificamos que a tentativa
de Cícero em estabelecer uma arte e doutrina sobre o riso, que até então fora inexistente
ou insuficiente, se repete em Quintiliano.
Primeira pergunta 1: O que é o riso?
Em De ridiculis, César, o personagem, primeiro nega querer ou poder respondê-
la (De ridiculis, § 235) e depois, por força de outras definições, tais como o lugar onde
confutando as afirmações do adversário, desprezando-as, redimensionando-as e a as expondo ao
ridículo. Ademais, somado à utilidade do riso apontada na altercatio, Quintiliano sobre isso diz que não
outra parte do processo em que a urbanidade (como vimos em De risu) tenha maior emprego (v.
Kennedy, 1972: p. 507; Cícero, De inuentione I, 23–25). Ele prescreve ao orador moderação e paciência,
inteligência rápida (não espaço para reflexão) e uma mente atenta e aguda. Sobre agudeza ele ainda
indica sua importância na altercatio, sobre a qual, afirma (como faz em De risu a respeito da arte da
urbanidade, v. §§ 11, 14) não haver uma arte retórica que a ensine, mas que nela, por outro lado, encontra
apoio. Por fim, já no capítulo V, Quintiliano passa a tratar da dispositio, outra parte da retórica.
148
se encontra o riso (a segunda pergunta de César), apenas tangencia os aspectos que
estão envolvidos no mecanismo psíquico, emocional e físico do ato de rir. Algumas
vezes o texto se aproxima dos processos que disparam o riso, outras vezes do ato físico
do rir, mas sempre de negada, insuficiente, posta em segundo plano ou até acidental.
Quintiliano (De risu §§ 6, 7) diz haver vários juízos dos homens seu do riso,
que não é entendido por algum principio racional, e sim por um movimento do ânimo,
que Quintiliano afirma desconhecer. Mais à frente, no parágrafo 19, ele faz uma
interessante analogia sinestésica entre o uso moderado do riso no discurso, o tempero
que o sal à comida seu resultado, daí a sinestesia, que é “sentir sede” em ouvir um
discurso. De qualquer forma, os dois textos não trazem a definição explícita do que é o
riso, pois em nenhum parágrafo dos dois textos seus autores se detiveram na análise do
processo pelo qual o riso ocorre, o qual inclui elemento provocador, admiração, deleite
e processos físicos que envolvem o coração, os pulmões, o diafragma e os aparelhos
fonadores.
Segunda pergunta: Onde o riso é encontrado?
A noção de o riso se encontra nos vícios dos corpos, nas imperfeições, naquilo
que é quase feio ou deformado, enfim, naquilo que é torpe e imperfeito, vem de
Aristóteles (Poética, 1449 a 34 sg.) e é seguida tanto por Cícero (De ridiculis, §§ 236,
248, 266) quanto por Quintiliano (De risu, § 8).
Terceira pergunta: é próprio de o orador utilizar o riso?
A resposta é sim. É claramente próprio de o orador utilizar o riso (De ridiculis, §
236). Os ditos picantes, a urbanidade, as facetiae e os gracejos (De ridiculis, §§ 216,
229, 231) proporcionam várias vantagens (De ridiculis, § 219) para o orador no
discurso. Cícero (De ridiculis, § 236) aponta que a
“hilaridade é benévola àquele que as desperta ou porque todos adoram
uma agudeza contida, muitas vezes, numa palavra, sobretudo de quem
responde, e às vezes também de quem ataca; ou porque enfraquece o
adversário; ou o constrange, diminui, afugenta; ou porque o refuta; ou
149
também, pode ser, porque mostra que o próprio orador é um homem
polido, erudito, urbano; ou, sobretudo, porque muitas vezes mitiga e
abranda a tristeza, a severidade e as coisas desagradáveis. O gracejo e o
riso dissolvem aquilo que não é fácil de ser diluído com argumentos.”
Dessas vantagens Quintiliano acolhe, no primeiro parágrafo de De risu, essas
últimas, que é abrandar a tristeza e a severidade das coisas desagradáveis e a diluição de
coisas que os argumentos não conseguem com facilidade. Ele diz:
“Diversa a essa, /há/ uma virtude que provocando o riso do juiz não
somente dissolve os sentimentos tristes, como também afasta com
freqüência o ânimo da atenção aos fatos, bem como algumas vezes o
reanima e renova da saturação e da fadiga.”
Como se explicou, os sentimentos tristes, a seriedade e a atenção aos fatos
causam nos ouvintes a saturação e a fadiga. E isso pode ter sido provocado pelo
adversário (os sentimentos de tristeza, ódio, ira etc.) ou pela morosidade natural do
processo, que pode se mostrar evidente na recapitulação, parte da peroratio. Nesse caso
o elemento funciona como um elemento aliviador capaz de reverter uma situação
desfavorável ao orador.
Quanto às primeiras, o ataque, a resposta e o enfraquecimento do adversário,
Quintiliano o as acolhe em De risu, mas no capítulo IV do livro VI ao tratar da
altercatio. a utilidade do riso em mostrar o orador como um homem polido, urbano e
erudito se alinha ao que Quintiliano instruiu sobre a configuração do θος do orador nos
capítulo I e II também do livro VI.
Quarta pergunta: até que ponto o orador pode ou deve utilizar o riso?
Essa questão está ligada à moderação. E esta está contida na definição do gênero
de ridículo oratório, que em Cícero são as facetiae e em Quintiliano a urbanitas.
Quintiliano definiu tanto esta quanto aquela dizendo da primeira uma palavra
ligada à beleza e à elegância esmerada e da segunda uma linguagem dos doutos que se
150
revela o contrário da rusticidade e aquilo que apontado nos outros se configura em
gênero de ridículo (Cf. De risu, §§ 3, 8, 14, 17, 30 etc.).
Cícero por sua vez aproxima a urbanidade do dito picante (De ridiculis, § 231) e
deixa evidente por todo De ridiculis para ele o gênero de ridículo é a facécia (De
ridiculis, §§ 217, 218, 219, 225, 227, 229, 231, 233, 239 etc.).
Se por um lado os gêneros de ridículo (as facetiae e a urbanitas) embutem o
distanciamento do que é vulgar, rústico e obsceno, por outro, tanto Cícero quanto
Quintiliano apontam de quais gêneros de ridículo o orador deve se afastar, o que
permite dizer que o retor acolhe os preceitos de moderação anunciados por Cícero.
Portanto, para ele e Quintiliano o orador deve ao gracejar: ter em conta o lugar,
as pessoas e o momento, para que não diga algo não condizente, ofensivo, inoportuno
(De ridiculis, § 221, De risu, §§ 28, 33, 34, 35); saber adequar o dito ridículo à causa,
não incorrendo no erro de escarnecer em uma causa atroz ou de coisas dignas de grande
ódio ou zombar de uma miséria extrema ou em uma causa comovente (De ridiculis, §
237, 238/ De risu, § 31); evitar o riso do bufão, do mimo e do mímico e suas
obscenidades (De ridiculis, §§ 239, 242, 244, 245, 247, 252/ De risu, §§ 25, 29).
Quinta pergunta: quais são os gêneros do ridículo?
Os gêneros de ditos ridículos de Cícero são chamados genera facetiarum e em
Quintiliano, denominamos nós, genera urbanitatis. Como vimos, a categorização que
ambos estabeleceram não se completaram e, por conseguinte, não permitiram uma
observação mais precisa do que seria um quadro de ditos ridículos organizado por
categorias. No entanto, livre dessa categorização, foi possível verificar quais dos
gêneros de facécias de Cícero Quintiliano aproveitou entre seus gêneros de urbanidade.
Para aferir esse acolhimento determinei um critério simples que consistiu em observar o
modelo do exemplo em relação à sua nomenclatura em cada texto. Disso resultou que
alguns gêneros de ditos ridículos foram acolhidos do mesmo modelo e nomenclatura,
outros tinham o mesmo modelo mas nomenclaturas diferentes, outros apresentaram
variação de gêneros acolhidos, e enfim alguns outros mostraram certa proximidade de
modelos e gêneros, cujo acolhimento pode estar sujeito a algum critério interpretativo.
Devo adiantar que nem sempre a nomenclatura se formou por denominações de figuras
151
ou tropos ou outros elementos retóricos. Nesse caso reproduzi apenas a nomenclatura
contida no parágrafo onde o gênero foi colhido.
Os gêneros com o mesmo modelo e a mesma nomenclatura acolhidos são os
ditos ridículos formados por: anedotas (De ridiculis, §§ 240, 264/De risu, § 39);
metáfora (De ridiculis, § 262 /De risu, § 61); ironia (De ridiculis, § 262 /De risu, § 68);
alegoria (De ridiculis, § 261 /De risu, § 69); ambigüidade (De ridiculis, §§ 250, 253,
254 /De risu, § 47); hipérboles (De ridiculis, § 267/De risu, § 67); repreensão de
estultice (De ridiculis, § 280/De risu, § 71); simulação (De ridiculis, § 275, 276/De risu,
§ 85); malícia (De ridiculis, § 278/De risu, § 88); interposição de versos (De ridiculis, §
257/De risu, § 96, 97); adaptação ou uso de provérbios (De ridiculis, § 258 /De risu, §
98); frases absurdas (De ridiculis, § 274 /De risu, § 99); quebra de expectativa (De
ridiculis, § 284, 285, 289/De risu, § 64, 84). Há gêneros em que o modelo é igual, mas a
nomenclatura é diferente. Trata-se do gênero de ridículo que Quintiliano diz ser
formado por ditos frios (De risu, § 53,56) e que Cícero diz ser formado por paronomásia
(De ridiculis, § 256) e um gênero que consiste em fingir ter entendido o que o outro
disse, o qual Quintiliano chama de dissimulatio (De risu, §§ 85, 86) e Cícero de
simulatio (De ridiculis, § 275). Aqueles que apresentam variação a partir de gêneros
acolhidos são formados por: dissimulatio ex ambiguitas (De ridiculis, § 250, 253,
254/De risu, § 87); ambigüidade que se aproxima do enigma (De ridiculis, § 250, 253,
254/De risu, § 50); similitude com ambigüidade (De ridiculis, § 250, 253, 254 /De
risu,§ 62 ); fictio ex ironia (De ridiculis, § 262/De risu, § 91). Os gêneros com
proximidade entre modelos ou nomenclatura são estes: dito ridículo formado por
similitude (De risu, § 57-60) e por comparação (De ridiculis, § 265); dito ridículo
formado pelo desejo do que o pode ser feito (De ridiculis, § 287) e pelo dizer o que
não pode ser feito (De risu, §§ 89, 90).
Palavras de encerramento
Se em autores tão distintos como Cícero e Quintiliano pareça comum, ao tratar
de um assunto, reconhecer a possibilidade de ter se esquecido de alguma coisa ou de ter
errado em algum aspecto, como não o seria em um estudante?
152
Assim, à maneira de Quintiliano, a quem admiro, ressalto que se me esqueci ou
errei em alguma coisa não o fiz para enganar os leitores, mas por causa de alguma
limitação que será suplantada por mais estudo, tempo e incentivo.
153
BIBLIOGRAFIA
Básica
CÍCERO, Marco Túlio. De oratore (volume primeiro Livros I, II, texto original com
tradução de E. W. Sutton).
___________________. De l’orateur (livro II) (texto original com tradução de Edmond
Courbaud). Paris: Les Belles Lettres, 1966.
___________________. Dell’oratore (texto original com tradução para o italiano de
Mario Martina, Marina Ogrin, Ilaria Torzi e Giovanna Cettuzzi). Milão: BUR, 1994.
___________________. Sobre el orador (introdução, tradução e notas de José Javier
Iso). Madri: Gredos, 2002.
QUINTILIANO, Marco Fábio. La formazione dell’oratore (volume primeiro – Livros I-
IV, texto original com tradução para o italiano de Stefano Corsi). Milão: BUR, 2006.
________________________. La formazione dell’oratore (volume segundo Livros
V-VIII, texto original com tradução para o italiano de Stefano Corsi e Cesare Calcante).
Milão: BUR, 2001.
________________________. Institution oratoire (livros VI e VII, com tradução para o
francês de Jean Cousin). Paris: Les Belles Lettres, 1977.
________________________. Instituzione oratoria (volume primeiro, com tradução
para o italiano de Simone Beta e Elena D’Incerti Amadio). Milão: Mondadori, 2007.
________________________. Instituzione oratoria (volume segundo, com tradução
para o italiano de Simone Beta). Milão: Mondadori, 2007.
154
________________________. The Institutio oratoria (texto original com tradução de
H.E.Butler). Londres: Cambridge, Mass. : Harvard University Press, 1920–1922.
Obras de referência
ARISTÓTELES. Parts of animals (texto original com tradução para o inglês de A. L.
Peck). Cambridge, MA/London: Harvard University Press/Heinemann, 1961.
_____________. Poética (tradução de Eudoro de Souza). São Paulo: Ars Poetica, 2001.
_____________. Retórica (introdução, tradução e notas de Quintín Racionero). Madri:
Gredos, 1990.
ARISTÓTELES, HORÀCIO, LONGINO. A poética clássica (introdução de Roberto de
Oliveira Brandão, tradução de Jaime Bruna). São Paulo: Cultrix, 2005.
BENNETT, H. The Wit's Progress: A Study in the Life of Cicero.The Classical
Journal, Vol. 30, No. 4 (Jan., 1935), pp. 193-202.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico (tradução Nathanael
C. Caixeiro). Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
BOISSER, G. Cicéron et ses amis. Paris: Hachette, 1865.
CAMILO, Vagner. Risos entre pares; poesia e humor românticos. São Paulo:
Edusp/Fapesp, 1997.
COFFEY, Michael. Roman satire, its outlook on social life. Handem: Conn,1964.
CORBEIL, A. Controlling laughter: Political humor in the late Roman republic.
Princeton: Princetotn University Press, 1996.
155
COUSIN, Jean. Études sur Quintilien. Paris: Boivin, 1967.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e idade média latina. São Paulo:
Edusp/Hucitec, 1996.
FONTANIER, Pierre. Les figures du discours. Paris: Flammarion, 1977.
FRONTINO, Sexto Júlio. The stratagems and The aqueducts of Rome.
Cambridge/London: Harvard University Press, 1993.
GARAVELLI, Bice Mortara. Manual de retórica (tradução para o espanhol de María
José Vega). Madri: Cátedra, 1988.
HANSEN, João Adolfo. Retórica da agudeza. In: Letras Clássicas, 4. São Paulo:
Humanitas FFLCH/USP, 2000, pp.317-342.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do culo
XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas; Editora da Unicamp, 2004.
KENNEDY, George. Cicero’s De inventione and the Rhetorica ad Herennium. In: The
art of rhetoric in the Roman world: 300 B.C.-A.D. 300. Princeton: Princeton University
Press, 1972, pp. 103-148.
________________. Cicero and his younger contemporaries. In: The art of rhetoric in
the Roman world: 300 B.C.-A.D. 300. Princeton: Princeton University Press, 1972, pp.
149-300.
________________. Quintilian and his younger contemporaries. In: The art of rhetoric
in the Roman world: 300 B.C.-A.D. 300. Princeton: Princeton University Press, 1972,
pp. 487-552.
KENNEY, E. J. e CLAUSEN, W. V. (eds.). Historia de la literatura clasica (volume II
– Literatura latina). Madri: Gredos, 1989.
156
LAUSBERG, Heinrich. Manual de retórica literária: fundamentos de una ciência de la
literatura (tradução de José Perez Riesco). Madri: Gredos, 1976.
MACRÓBIO, Ambrósio Aurélio Teodósio. Saturnalia (texto original com comentários
de Jacobus Willis). Lipsiae: B. G. Tevbneri, 1963.
RAMAGE, E. S. Early roman urbanity. In: The American Journal of Philology, Vol.
81, No. 1: 1960, pp. 65-72.
_____________. Cicero on Extra-Roman Speech. In: Transactions and Proceedings of
the American Philological Association, Vol. 92, 1961, pp. 481-494.
_____________. Urbanitas: Cicero and Quintilian, a contrast in attitudes. In: The
American Journal of Philology, 1963, Vol. 84, No. 4, pp. 390-414.
SANTOS, Marcos Martinho dos. O monstrum da Arte poética de Horácio. In: Letras
Clássicas, nº 4. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2000, pp.191-265.
SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso (tradução de Alessandro Zir).
São Leopoldo: Unisinos, 2002.
STEEL, Catherine. Roman oratory. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
Obras de citações
CÍCERO, Marco Túlio. De amicitia (texto original com comentários de Valentín García
Yerba). Madri: Gredos, 1967.
___________________. Brutus (texto original com tradução para o francês de Jules
Martha). Paris: Les Belles Lettres, 1923.
157
___________________. L’excursus ridiculis (curadoria de G. Monaco). Palermo:
Palumbo, 1968.
___________________. La invención retórica (introdução, tradução e notas de
Salvador Núñez). Madri: Gredos, 1997.
___________________. De inventione, De optimo genere oratorium, Topica (textos
originais com tradução para o inglês de H. M. Hubbell). Cambridge, MA/London:
Harvard University Press/William Heinemann Ltd., 1976.
___________________. Lettres à Atticus (tradução de Édouard Bailly). Paris: Garnier
Frères, 1937-38.
___________________. De oratore (livro III), De fato, Paradoxa stoicorum, De
partitione oratoria (textos originais com tradução para o inglês de H. Rackham).
Cambridge, MA/London: Harvard University Press, 1992.
___________________. L’oratore (texto original com tradução de G. B. Pighi). Milão:
Mondadori, 2004.
___________________. Rhetorica ad Herennium (com tradução para o inglês de Harry
Caplan). Cambridge, MA/London: Harvard University Press/William Heinemann Ltd.,
1989.
___________________. De Senectute (com tradução para o inglês de William
Armistead Falconer). Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
___________________. The speeches: Pro lege Manilia, Pro Caecina, Pro Cluentio,
Pro Rabirio perduellionis (com tradução para o inglês de H. Grose Hodge).
Cambridge/London: Harvard University Press/ W. Heinemann, 1952.
___________________. Da velhice e Da amizade (tradução de Tassilo Orpheu
Spalding). São Paulo: Cultrix, 1964.
158
MARCIAL, Marco Valério. Epigrammi (texto original com tradução para o italiano de
Simone Beta). Milão: Mondadori, 1995.
OVÍDIO. Pontiques (texto original com tradução de Jacques André). Paris: Les Belles
Lettres, 1977.
PLÍNIO SEGUNDO, Caio. Historiae naturalis. Paris: Panckoucke, 1835.
PLUTARCO. Como tirar proveito dos inimigos, seguido de Da maneira de distinguir o
bajulador do amigo (tradução de Ísis Borges B. da Fonseca). São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
SUETÔNIO, Caio Tranqüilo. Les douze Césars. Paris: Garnier, 1955.
Dicionários
SARAIVA, F. R. dos Santos. Dicionário latino-português. Rio de Janeiro/Belo
Horizonte: Garnier, 2000.
SEYFFERT, Oskar. Dictionary of classical antiquities. Boston: Little, Brown, and
Company, 1894.
SMITH, William (ed.). A dictionary of Greek and Roman biography and mythology.
London: John Murray, 1867.
______________ (ed.). A dictionary of Greek and Roman antiquities. Boston: Little,
Brown, and Company, 1870.
159
Historiografia
BARDON, H. La litterature latine inconnue. Paris: C. Klincksieck, 1989.
HORÁCIO. Obras completas: odes, epodos, carme secular, sátiras e epístolas. São
Paulo: Edições Cultura, 1941.
_________. Les sermones d’Orace: satires et épitres. Paris: Hachette, 1940.
LÍVIO, Tito. Storiarum libri. Lipsiae: Hiltze, 1866.
__________. Ab urbe condita. Oxford: Oxford University Press, 1952.
MOMIGLIANO, A. & SCHIAVONE, A. (dir.). Storia di Roma. Torino: Einaudi, 1988-
1993.
MOMMSEN, Theodor. História de Roma (Tradução de A. Garcia Moreno). Madri:
Aguilar, 1975.
PARATORE, Ettore. A época de César. In: História da literatura latina (tradução de
Manuel Losa, S.J.). Lisboa: Calouste Gulbenkian, s/d, pp. 163-344.
________________. A época dos Flávios e de Trajano. In: História da literatura latina
(tradução de Manuel Losa, S.J.). Lisboa: Calouste Gulbenkian, s/d, pp. 677-790.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.
ODGERS, Merle M. Quintilian's Rhetorical Predecessors. Transactions and
Proceedings of the American Philological Association, vol. 66, 1935, pp. 25-36.
TÁCITO, Caio Cornélio. Anais (tradução de Leopoldo Pereira). Rio de Janeiro: SLP,
1964.
160
___________________. The Annals (textos originais cometados por Anthony John
Woodman e Ronald H. Martin). Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo