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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFES - PPGDIR
MESTRADO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL
LEIDE MARIA GONÇALVES SANTOS
A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos
Modelos de MIGUEL REALE aplicada à Jurisprudência
Brasileira Contemporânea
VITÓRIA
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFES - PPGDIR
MESTRADO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL
LEIDE MARIA GONÇALVES SANTOS
A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos
Modelos de MIGUEL REALE aplicada à Jurisprudência
Brasileira Contemporânea
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Universidade Federal do
Espírito Santo, como requisito para obtenção do grau
de Mestre em Direito, na área de concentrão
Direito Processual.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Vieira Lima Neto
VITÓRIA
2008
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LEIDE MARIA GONÇALVES SANTOS
A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos Modelos de
MIGUEL REALE aplicada à Jurisprudência Brasileira Contemporânea
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
do Espírito Santo, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Direito em Direito
Processual.
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Francisco Vieira Lima Neto
Orientador
______________________________________
Prof. Dr. Hermes Zaneti Júnior
Membro
______________________________________
Profª. Drª. Brunela Vieira de Vincenzi
Membro
A Gil e Fred, por me encantarem todos os dias.
A Helinho, in memorian.
AGRADECIMENTOS
A conclusão deste trabalho permitiu-me apreender preciosas novas lições, reforçar lições
conhecidas e melhor cultivar algumas virtudes: a paciência, a persistência, a coragem para
vencer o medo do desconhecido e do novo, enfim... proporcionou-me um crescimento
inenarrável. Lões que me abriram os olhos e o interesse por tantos e diversos assuntos e
pelas relações e comportamentos da complexa vida em sociedade, que por si sós já me
autorizam a dizer que valeu a pena! Entretanto, talvez a maior de todas as lições tenha sido a
que a pesquisa científica não é um trabalho que possa ser construído individualmente,
sozinho. Não! A pesquisa exige uma conjugação de esforços, de opiniões, de teses e antíteses.
É um trabalho plural. Tal constatação, até mesmo por uma questão de fidelidade e lealdade,
impõe-me fazer alguns registros e agradecimentos àqueles que prestaram, de uma forma ou de
outra, uma importantíssima contribuição para o desenvolvimento dessa investigação.
Assim, precipuamente, agradeço a Deus, refúgio contra todas as tempestades, pelo dom da
vida.
À minha mãe, meu padrão de conduta, pelas lições de vida, pela coragem em todas as
adversidades e pelo amparo ao longo dessa jornada e à minha família, por sempre acreditarem
no meu trabalho.
À UFES, que me acolheu em toda minha vida acadêmica, desde os tempos da Engenharia.
Grande parte do que sou devo a essa Instituição. E, também, ao nosso Programa de Mestrado,
do qual, não tenho dúvidas, alcançará um nível de excelência a ser nacionalmente
reconhecido.
Ao Professor Dr. Francisco Vieira Lima Neto, de quem tenho o maior orgulho, pela
orientação segura e apoio incondicional ao longo de toda essa trajetória. A prontidão em
atender-me, as preciosas sugestões de bibliografia, de jurisprudência, as observações na
leitura dos textos, as interrogações formuladas, enfim ... Não foi fácil acompanhar o seu
ritmo! Quantos e-mails, quantos telefonemas... as lões apreendidas não se resumem às
páginas desse trabalho, nas quais a sua marca em cada uma delas e em cada capítulo.
Minha gratidão por tudo, principalmente pelo equilíbrio nos momentos mais difíceis.
Ao Professor Dr. Hermes Zaneti Júnior, que semeou a idéia dessa pesquisa, a quem tributo a
minha gratidão pelas instigantes discussões em sala de aula, as quais foram determinantes
para levar a termo esse trabalho. Que desafio! A sua maestria, combatividade e dedicação são
fontes de inspiração a prosseguir nessa caminhada.
À Professora Drª Brunela Vieira de Vincenzi, pelos ensinamentos que colhi em sua obra “A
Boa-Fé no Processo Civil e pela participação em minha banca de qualificação com
observações e questionamentos que me permitiram aprofundar a reflexão sobre o tema.
A todos os Professores do Mestrado, pela nobreza em compartilhar as experiências angariadas
nos escritórios, nos tribunais e nas incontáveis palestras proferidas de norte a sul do nosso
país.
Não poderia deixar de agradecer a alguns Professores, que, mesmo sem me conhecerem,
prestaram-me contribuições preciosas: Ao Professor Dr. Darci Guimarães Ribeiro, que além
do artigo de sua autoria, “O Sobreprincípio da Boa-Fé Processual como Decorrência do
Comportamento da Parte em Juízo”, indicou-me a obra fundamental do Professor Joan PiI
Junoy, El Principio de la Buena Fe Procesal” a qual, além do seu denso conteúdo, remete a
uma bibliografia riquíssima. Ao Professor Dr. Joan Picó I Junoy, que d’além mar, respondeu,
prontamente, aos meus e-mails, tanto dos Estados Unidos quanto da Espanha, aclarando
alguns pontos da aplicação da boa-fé objetiva no ordenamento espanhol. Agradeço, tamm, à
Professora Drª. Maria Celina Bodin por colocar-me em contato com a Professora Drª. Teresa
Negreiros, que num gesto de extrema grandeza, encaminhou-me o original de sua dissertação
de mestrado “Fundamentos Para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé”,
obra com publicação esgotada. O auxílio das bibliotecárias do STF e do STJ foi
imprescindível. Prontamente foram atendidas as solicitações feitas por e-mail, com posterior
postagem das cópias xerográficas de partes de livros e de periódicos, material indispensável
para desenvolvimento do trabalho.
À Thaís e Christina, tê-las como amigas pode ser um presente dos céus. Obrigada por
caminharem comigo esse caminho.
Aos colegas de classe agradeço a frutífera convivência.
RESUMO
O presente trabalho apresenta a boa-fé objetiva como paradigma a reger as relações
intersubjetivas no campo do Direito Processual Civil demonstrando a superação da aplicação
rigorosa das técnicas processuais pela inflncia de valores sociais, poticos e culturais. O
novo matiz impresso pela boa-fé objetiva no campo do Direito Processual Civil estabelece um
modelo objetivo de conduta social marcado pela lealdade e probidade, que impera como
standard jurídico para todos os que participam da relação jurídica processual. As garantias
constitucionais processuais, expressão do Estado Democrático de Direito, são otimizadas por
meio das balizas estabelecidas pela boa-fé objetiva como norma que rege a dialeticidade do
contraditório marcado pela cooperação leal e proba. A boa-fé objetiva, como cláusula geral
positivada no art. 14, inciso II do digo de Processo Civil, irradia o seu conteúdo em todos
os espectros do Processo Civil, por meio de modelos jurídicos constrdos pela jurisprudência
com o uso da pica, trazendo um novo foco de luz para o alcance da efetividade da prestação
da tutela jurisdicional.
Palavras-chave: Boa-fé objetiva. Modelos jurídicos. pica. Cláusulas gerais. Cooperação.
Lealdade.
9
PRESENTAZIONE
Lo scopo principale di questo lavoro è quello di presentare la buona fede oggettiva come
paradigma reggente dei rapporti intersoggettivi nel campo del Diritto Processuale Civile
dimostrando il superamento dell applicazione rigorosa delle tecniche processuali dall’influso
dei valori sociali, politici e culturali. La nuova sfumatura impressa dalla buona fede oggettiva
nel campo del Diritto Processuale Civile stabilisce un modello oggettivo di condotta sociale
segnato dalla lealtà e dalla probità che impera come standard giuridico per tutti coloro che
partecipano del rapporto giuridico processuale. Le garanzie costituzionali processuali,
espressione dello Stato Democratico di Diritto, sono ottimizzate attraverso le regole stabilite
dalla buona fede oggettiva come norme che regolano la dialetticità del contraddittorio
segnato dalla cooperazione leale e proba. La buona fede oggettiva, come causola generale
effettivata nell’art. 14, inciso II del Codice di procedura civile, irradisce il suo costrutto in
tutti gli espettri del Processo civile attraverso i modelli giuridici costruiti dalla giurisprudenza
con l’uso della Topica, portando un nuovo raggio di luce per il raggiungimento
dell’effettività della prestazione della tutela giurisdizionale.
Parole-chiave: Buona fede oggettiva. Modelli giuridici. Topica. Clausole generali.
Cooperazione. Lealtà.
9
A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos Modelos de MIGUEL
REALE aplicada à Jurisprudência Brasileira Contemporânea
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................................11
PARTE I BOA-FÉ OBJETIVA COMO PRINCÍPIO ÉTICO, TEORIA DOS
MODELOS, TÓPICA E SISTEMAS JURÍDICOS ABERTOS. .....................................15
Capítulo I - A Boa-Fé Objetiva no Direito Processual Civil: O Modelo Jurisprudencial
Construído pelo Supremo Tribunal Federal.................................................................15
1.1. A Boa-Fé Objetiva: Matizes de Sua Conceituação................................................. 15
1.2. A Boa-Fé Objetiva: Concepções Doutrinárias........................................................ 21
1.3. A Boa-Fé Objetiva como Norma Otimizadora das Garantias Processuais
Constitucionais............................................................................................................. 28
Capítulo II - A Teoria dos Modelos de Miguel Reale e sua Aplicação para Identificar
um Modelo Jurisprudencial de Boa-Fé Objetiva no Processo Civil.............................42
2.1. Notas Introdutórias................................................................................................42
2.2. A Construção dos Modelos Jurídicos.....................................................................46
2.3. Classificação dos Modelos Jurídicos......................................................................53
2.4. Dinâmica dos Modelos Jurídicos ...........................................................................55
2.5. A Opção por Modelos Abertos ..............................................................................58
Capítulo III - A Relevância da Tópica na Práxis Jurídica e a Tendência
Contemporânea pelos Sistemas Jurídicos Abertos: a complementariedade necessária
........................................................................................................................................62
3.1. A Tópica como Técnica de Identificação dos Problemas do Direito.......................62
3.2. Apontamentos Doutrinários à “Teoria Tópica de Viehweg”................................... 70
3.3. Concepções Doutrinárias sobre os Topoi ...............................................................74
3.4. Importância da Tópica na Construção Jurisprudencial............................................76
3.5. O Declínio da Codificação e a Construção do Pensamento Sistemático..................83
3.6. Concepções Doutrinárias sobre a Idéia de Sistema.................................................88
3.7. A Mobilidade como Tro Característico dos Sistemas Abertos.............................92
3.8. Pensamento Sistemático e Tópica.......................................................................... 94
Capítulo IV As Cláusulas Gerais: Fatores de Interação Sistemática e de Concreção
Jurídica.........................................................................................................................104
4.1. Cláusulas Gerais: Intercambialidade nos Sistemas Jurídicos Abertos e Criação do
Direito pelos Tribunais............................................................................................... 104
4.2. A Boa-Fé Objetiva: Fundamento Axiológico na Construção do Direito ............... 116
4.3. A Boa-Fé Objetiva como Elemento Estruturante na Construção de Modelos
Jurídicos Jurisprudenciais........................................................................................... 120
10
PARTE II A BOA-OBJETIVA NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL, ESTUDO
DO MODELO JURISPRUDENCIAL BRASILEIRO DE BOA-FÉ OBJETIVA,
MODELOS CONCRETOS AFERÍVEIS DA JURISPRUDÊNCIA EM PROCESSO
CIVIL............................................................................................................................... 127
Capítulo V – A Boa-Fé Objetiva Processual na Constituição Federal.......................127
5.1. A Boa- Objetiva como Instrumento de Ruptura da Dicotomia entre os Ramos do
Direito Público e do Direito Privado........................................................................... 127
5.2. O Fundamento Constitucional da Boa-Fé Objetiva Processual............................. 143
Capítulo VI - A Boa-Fé Objetiva no Processo Civil Brasileiro................................... 165
6.1. A Boa-Fé Objetiva como Diretiva Ordenadora do Comportamento Processual .... 165
6.2. A Boa-Fé Objetiva e o Abuso do Direito nos Domínios do Processo Civil........... 176
6.3. A aplicação boa-fé objetiva pelo Juiz: Virtudes e Cautelas................................... 185
6.4. Referências sobre a boa-fé objetiva processual na experiência legislativa de outros
povos ......................................................................................................................... 191
Capítulo VII - A Boa-Fé Objetiva na Jurisprudência Brasileira: Tentativa de
Visualização de um Modelo ......................................................................................... 198
7.1. O Trabalho da Jurisprudência na “Concreção Jurídica” da Boa-Fé Objetiva......... 198
7.2. As Manifestações da Boa-Fé Objetiva nas Figuras: Supressio, Surrectio, Tu Quoque
e Venire Contra Factum Proprium. ............................................................................ 207
7.2.1. Supressio e Surrectio .................................................................................... 207
7.2.2. A Proibição de Consubstanciar Dolosamente Posições Processuais – Tu Quoque
............................................................................................................................... 211
7.2.3. O Venire Contra Factum Proprium............................................................... 214
7.3. A Preclusão Lógica e a Boa-Fé Objetiva.............................................................. 220
Capítulo VIII - Modelos Concretos da Boa-fé Objetiva Aferíveis da Jurisprudência no
âmbito Processual Civil................................................................................................228
8.1. Introdução........................................................................................................... 228
8.2 A Boa-Fé Objetiva como Norma que Veda a Atuação Dolosa de Posições
Processuais................................................................................................................. 230
8.3 A Boa-Fé Objetiva Como Norma Otimizadora das Garantias Constitucionais
Processuais................................................................................................................. 235
8.4 A Boa-fé Objetiva como Norma que Veda o Venire Contra Factum Proprium no
Campo Processual Civil ............................................................................................. 245
8.5 A Boa-Fé Objetiva como Norma a Assegurar a Prestação da Tutela Jurisdicional em
Tempo Razoável ........................................................................................................ 257
8.6 A Boa-fé Objetiva como Norma Orientadora da Atuação do Poder Judiciário Frente
aos Jurisdicionados..................................................................................................... 266
Conclusão .....................................................................................................................273
Referências...................................................................................................................277
11
Introdução
O processo ao longo do tempo deixou de ser visto como instrumento meramente técnico de
aplicação de normas e alcançou um status que o coloca como autêntica ferramenta de
natureza pública indispensável para a realização da justiça e da pacificação social.
1
O rigor em
favor da técnica cede passo aos valores sociais, poticos e culturais, em razão dos quais todos
aqueles que, de forma direta ou indireta, participam da causa precisam conduzir-se de forma
proba, reta e leal. uma exigência de um modelo objetivo de conduta social que venha
imperar como um standard jurídico no seio processual.
Dentro deste contexto, o processo passa a desenvolver-se guiado não apenas pelas técnicas
processuais, mas nele sobrelevam os influxos dos valores sociais e, em especial, do dever de
lealdade e boa-fé como “bitolas” a ajustar a conduta de todos aqueles que dele participam.
O momento atual desnuda mudanças estruturais, procedimentais e técnicas, em que
paradigmas e dogmas são descontruídos com o surgimento, a toda evidência, de novos
modelos compromissados com o homem e os valores que lhe são inerentes.
No que tange à prestação da tutela jurisdicional, a atuação das partes é norteada por princípios
éticos que estabelecem balizas para o pronto agir no curso da relação jurídica entabulada, na
qual a dialeticidade é a marca de um contradirio que vem a revelar a cooperação das partes
na construção de uma prestação da tutela jurisdicional que espelhe a justiça do caso concreto.
O alvo da presente pesquisa é a boa-fé objetiva, entendida como uma regra padrão de
comportamento probo, leal e correto, ou seja, uma norma ética de conduta, a ser observada
por todos de forma objetiva (independente do estado psicológico do agente), cujo campo de
investigação é o Direito Processual Civil.
Como cláusula geral, cujo locus de positivação está no art. 14, inciso II, do Código de
Processo Civil, trata-se de disposão normativa que tem permitido um novo traçado ou um
novo desenho no âmbito processual civil. Embora possa parecer exagero, a boa-fé objetiva
1
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais In
Processo e constituição. Rio de Janeiro: Forense. 2004, p. 2.
12
tem contribuído para superação de dogmas processuais e para o estabelecimento de uma nova
ordem a reger o desenvolvimento do processo.
A boa-fé objetiva nos donios do Direito Processual Civil estabelece as balizas do agir
permitindo a harmonização do desenvolvimento das garantias constitucionais processuais.
Trata-se de reler os princípios e as garantias constitucionais”
2
sob a ótica da boa- objetiva.
O presente trabalho se propõe a analisar a jurisprudência dos Tribunais pátrios para perquirir a
aplicação da regra prescrita no inciso II do art. 14 do CPC que impõe esse agir leal e
cooperador nos meandros processuais e, ao final, afirmar ou infirmar a existência de modelos
jurisprudenciais calcados nesses princípios éticos.
O objeto do presente estudo, portanto, restringe-se, especificamente, ao Direito Processual
Civil, circunscrito à análise jurisprudencial com vistas à identificação de modelos jurídicos da
boa-fé objetiva nesse campo. Para tanto, será analisada a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal - STF, do Superior Tribunal de Justiça – STJ, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo
e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
3
A opção pela análise da jurisprudência das Cortes Superiores revela-se fundada no fato de se
irradiar para os Tribunais pátrios os entendimentos construídos. a opção pela análise da
jurisprudência do Rio Grande do Sul prende-se ao fato de naquele Estado ver-se a grande
2
DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 23.
3
Com este objetivo, nos julgados disponíveis nos sítios desses tribunais na internet (www.stf.gov.br,
www.stj.gov.br, www.tj.es.gov.br e www.tj.rs.gov.br) verificar-se-á a ocorrência da menção às expressões “boa-
” ou “boa-fé objetiva”, “boa-fé processual”, “lealdade processual” ou “lealdade e boa-fé” nas ementas de
acóros proferidos nas diversas áreas do direito.
Numa análise preliminar, na pesquisa efetuada nos sítios desses Tribunais na internet foram obtidos os seguintes
resultados: no sítio do STF: para a expressão “boa-féforam encontrados 118 acórdãos; a expressão “boa-fé
objetiva” não produziu nenhum resultado; quando consultado “boa-fé processualencontrou-se 01 acórdão que
faz menção ao termo; o verbete “lealdade processual” gerou 49 resultados; quando consultada a expressão
lealdade e boa-fé foi encontrado apenas 01 acórdão proferido em 1975.
A consulta no endereço eletrônico do STJ produziu um maior quantitativo de resultados para as expressões
consultadas, a saber: a expressão boa-gerou 963 resultados; a busca com a expressão “boa-fé objetiva”
trouxe 35 acórdãos como resposta; utilizando as palavras chave “boa-fé processual” foram obtidos 6 resultados;
com o verbete “lealdade processual” foram encontrados 34 resultados e para a expressão “lealdade e boa-fé”
foram gerados 15 resultados.
Quadra destacar que, embora o tenha sido feita a tabulação dos resultados, pode ser verificado que a grande
maioria dos resultados obtidos para expressões que não continham o adjetivo “processual” versava sobre direito
material, em especial, matéria relativa à posse e também à área de contratos e sobre direito do consumidor.
Foi realizada uma pesquisa nos sítios dos Tribunais de Justiça do Espírito Santo e do Rio Grande do Sul cujos
resultados apontam a existência de acórdão que fazem menção aos verbetes assinalados. Entretanto, embora não
tenha sido feita qualquer tabulação desses resultados, são indicativos que demandam análise para verificar se
atendem ao objetivo da pesquisa.
13
influência do iminente jurista Clóvis do Couto e Silva
4
, bem como do hoje Ministro
aposentado do STJ, Ruy Rosado de Aguiar, que também atuou em julgamentos notáveis da
aplicação da boa-fé objetiva no campo do direito obrigacional
5
. Por outro lado, a opção pela
análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Espírito Santo é mais do que justificada
pela contribuição que, por certo, essa pesquisa trará para a comunidade jurídica do Estado,
proporcionando uma discussão sobre a ética na reformulação da justiça contemporânea do
Brasil.
Sob essa perspectiva, o fruto dessa pesquisa a ser realizada no âmbito do Programa de s-
Graduação em Direito Processual da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGDIR-
UFES) é apresentar as conclusões sobre as investigações científicas acerca da existência ou
o de um modelo de boa-fé processual desenhado a partir das decisões prolatadas no âmbito
dos tribunais.
Sobreleva o estudo dos precedentes jurisprudenciais quer como fonte do direito, quer para
analisar a coerência com o ordenamento. A importância do estudo aprofundado das decisões
judiciais ou administrativas revela-se de extrema importância para aferir a sintonia existente
entre os textos legislativos e as demandas que afloram do meio social.
Em um segundo momento, procura-se, a partir de um referencial trico desenvolvido ao
longo do trabalho, verificar se nos citados acórdãos poderia ser detectado algum padrão, ou
seja, se neles uma coerência de entendimento sobre o conceito de boa-fé e suas
diversificadas manifestações e funções, fenômeno que permitirá visualizar a existência de
modelo(s) de boa-fé objetiva no campo do Direito Processual Civil brasileiro.
Em termos mais simples, investiga-se a existência, nas decisões desses Tribunais, de uma
linha comum que possa ser identificada e que permitiria concluir que aquelas Cortes
concebem a boa-fé objetiva processual de uma maneira específica, como, por exemplo, uma
regra jurídica que impede o uso abusivo e doloso de posições processuais ou proíbe o
4
Conforme destacado por Judith Martins-Costa, no que tange à aplicação da boa-fé como modelo no campo
obrigacional, “as decisões que iniciaram a trajetória de seu acolhimento como modelo jurisprudencial fazem
expressas referências à obra de Clóvis do Couto e Silva [...]”.MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé como
Modelo (uma aplicação da Teoria dos Modelos, de Miguel Reale) in Cadernos do Programa de Pós-
Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 354.
5
TJRGS, AC 591028295, Câm. Cível, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., Data do julgamento: 06.06.1991.
14
comportamento contraditório (vale dizer, uma aplicação no Direito Processual civil das
figuras venire contra factum proprium ou tu quoque).
No que tange ao campo teórico, como primeiro passo desta trilha, imprescindível se torna
explicitar a doutrina de Miguel Reale, para quem o Direito é composto de uma série de
modelos.
Ao analisar a teoria das fontes formais do Direito, Reale aduz que os modelos jurídicos
apresentam-se como uma nova perspectiva para essa teoria, uma vez que a sociedade
contemporânea, dinâmica e plural tal qual se apresenta, reclama por estruturas-modelos que
venham a abarcar as diversas e complexas questões que daí emerge, bem como que atendam à
dinamicidade própria da efervescência sócio-cultural desses novos tempos.
Neste sentido, a Teoria dos Modelos surge como uma via posta para atender aos anseios do
momento histórico-cultural das sociedades modernas, nas quais não se mostra suficiente a
existência de um feixe normativo que esboce um sistema fechado no qual impera o
formalismo cego e estático. Juristas e legisladores têm somado esforços para a implementação
de mudanças estruturais no Código de Processo Civil com o objetivo precípuo de fazer
comungar os dois grandes valores alçados a direitos fundamentais: segurança e efetividade na
prestação da tutela jurisdicional.
Sob esse enfoque, a boa-fé objetiva ocupa lugar de relevo na formatação dos modelos
jurídicos. Ocorre que, sem um conteúdo definido pelo legislador, essa modelação vai sendo
delineada na prática forense cotidiana.
Pode-se, já nesse ponto, inferir que a boa-fé objetiva, no âmbito processual civil na
contemporaneidade, apresenta-se como uma diretiva para que os escopos processuais venham
a ser efetivamente alcançados.
Esse, portanto, o delineamento do trabalho ora proposto.
15
PARTE I BOA-FÉ OBJETIVA COMO PRINCÍPIO ÉTICO, TEORIA DOS
MODELOS, TÓPICA E SISTEMAS JURÍDICOS ABERTOS.
Capítulo I - A Boa-Objetiva no Direito Processual Civil: O Modelo Jurisprudencial
Construído pelo Supremo Tribunal Federal.
Sumário: 1.1. A Boa-Fé Objetiva: Matizes de Sua Conceituação - 1.2. A Boa-Fé Objetiva:
Concepções Doutrinárias - 1.3. A Boa-Fé Objetiva como Norma Otimizadora das Garantias
Processuais Constitucionais.
1.1. A Boa-Fé Objetiva: Matizes de Sua Conceituação
“Boa-fé significa retidão, honradez e confiança, a confiança com que uma das partes espera
uma conduta leal da outra.”
1
Não é hodierna a dificuldade de se apreender uma precisa concepção do que vem a ser a boa-
objetiva, entretanto tal constatação reflete a amplitude do seu conteúdo e a vagueza que é
ínsita a tal instituto.
Dos domínios do Direito Civil, ao estipular um padrão de lealdade e probidade nas relações
privadas, ao âmbito do Direito Processual, ao veicular o imperativo da tutela da confiança e
do atuar probo e honesto, a boa-fé objetiva assume diversas faces, que delineiam modelos
jurídicos de comportamento e de atuação os quais têm a aptidão de fazer novas, vetustas
disposições legislativas, num trabalho engenhoso de adequação das emergentes situações
jurídicas com o ordenamento vigente.
A Constituição Federal de 1988 erigiu no seu art. 3º, inciso III, como um dos objetivos da
República a construção de uma sociedade solidária. Para o alcance do objeto posto nessa
1
DELGADO GONZÁLEZ, Bona fides”, en el Diccionario de D. Privado de Casso-Cervera, I, pp. 700 e segs.
apud DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 135, nota de rodapé nº
33.
16
diretriz a exigência da eticidade deve nortear as condutas de todos aqueles que comem a
sociedade, inclusive os que atuam no microcosmo do processo.
Paulo Cezar Pinheiro Carneiro destaca que “o processo passa a congregar dois aspectos que se
fundem: o plano técnico e o humano ou ético, não para criar normas, mas para desvendá-las,
descobri-las, potencializá-las, aprimorá-las, interpretando-as na linha dos escopos jurídicos,
sociais e poticos do processo moderno, que informam o estado democrático de direito.”
2
Nesse contexto, a boa-fé objetiva apresenta-se como vetor das condutas de todos os que
participam da relação jurídica processual, como valor que anima as garantias constitucionais
processuais com especial relevo para a definição dos contornos do devido processo legal, bem
como os corolários do contraditório e da ampla defesa. Pode-se dizer que a boa-fé objetiva
desvenda um novo olhar no desenvolvimento processual promovendo a potencialização e o
aprimoramento dos aludidos princípios constitucionais elevados à categoria de direitos
fundamentais os quais, sob o enfoque da boa-fé objetiva, têm o condão de estabelecer um
novo traçado para a prestação jurisdicional.
O direito o pode mais ser visto como um mero feixe normativo. A necessidade da
convivência ética da convivência pautada pelo respeito à boa-fé objetiva é um imperativo
reinante também na esfera processual civil. A ética que rege o desenvolvimento processual
impõe uma atitude cooperativa, fundada na lealdade e na probidade de todos aqueles que, de
uma forma ou de outra, participam da prestação da tutela jurisdicional, independentemente da
posição em que se encontrem. É a ética que dirige a sociedade que queremos ter”
3
.
Segundo Rui Stoco “[...] Se o Direito é uma invenção humana, um fenômeno histórico e
cultural, concebido como técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação social,
as leis são o seu instrumento de realização, enquanto amostras de comportamento que
traduzem a consciência social de uma era. [...] Por essa razão o intérprete ou o aplicador da lei
tem a importante função de servir de elo entre o passado, o presente e o futuro. Torna-se guia
2
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. A ética dos personagens do processo. Revista Forense. v. 358, Rio de
Janeiro: Forense. Nov. – dez. 2001, p. 352.
3
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica GildoLeitão
Rios. São Paulo: Martins Fontes. 2003, p. 492
17
e ponte para a transição, pois liga o passado à realidade atual e o presente às necessidades
futuras, sem romper definitivamente com as amarras do passado.”
4
A importância da cláusula da boa-fé é de tal envergadura que transcende os donios dos
ordenamentos jurídicos a tal ponto de se afirmar que “[...] O direito significa não somente
dirigir, mas também endereçar a vida e a boa-fé é uma expressão do ‘reto viver’.”
5, 6
Diez-Picazo advertia que “o conceito de boa-fé é um dos mais difíceis de apreender dentro
do Direito Civil e, é um dos conceitos que tem dado a mais apaixonada polêmica.”
7
Manuel Cachón Cadenas também assinala que, apesar de todo o esforço da doutrina e da
jurisprudência para circunscrever a noção da boa- processual, não tem sido possível
suprimir a indeterminação do conceito e a inevitável vagueza que a consubstancia.
8
Pi, por sua vez, afirma que “o princípio da boa-fé é uma das vias mais eficazes para a
superação de uma concepção excessivamente formalista e positivista da lei, que permite aos
juristas adequar as distintas instituições normativas aos valores sociais de cada momento
histórico.
9
A aplicação do princípio da boa-fé traz para o seio do ordenamento jurídico um elemento
externo a ele, extra jurídico, que passa a integrar a própria regra jurídica, cujo valor e
aplicação tem inquietado a doutrina.
10
Segundo Alípio Silveira o conceito de boa- possui uma grande variedade de significados,
todavia, todos possuem como cerne um conteúdo ético-social firmado na honestidade,
probidade, lealdade, que deve estar presente em todas as relações jurídicas e que não possui
4
STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002, p. 35.
5
CALDANI, Miguel Angel Ciuro. Aspectos filosóficos de la buena fe. In Tratado de la buena fe en el derecho.
Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 6.
6
No original: “el derecho significa no sólo dirigir sino enderezar la vida y la buea fe es una expresión del ‘recto
vivir’.”
7
DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 134.
8
CACHÓN CADENAS, Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de
ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial.
Centro de documentación judicial. 2006, p. 217.
9
PICÓ Y JUNOI, Joan. El debido proceso leal: reflexiones en torno al fundamento constitucional del principio
de la buena fe procesal. In Justicia: Revista de derecho procesal. n. 34. 2004, p. 150.
10
DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 15.
18
um conteúdo essencial que possa deduzido a priori. Essa elasticidade do conceito da boa-fé
relaciona-se com o meio social e com o momento histórico.
11
A doutrina e a jurisprudência têm sido pródigas no trato da boa-fé no que pertine ao direito
privado, dedicando especial atenção ao comportamento dos contratantes e à interpretação dos
atos efetivados no campo obrigacional. No que tange, especificamente, ao tema da boa-fé
objetiva no campo processual, o mesmo tem sido pouco explorado doutrinariamente, o que,
por si só, já justificaria a pesquisa ora empreendida.
Delinear a moldura que os Tribunais brasileiros têm dado à aplicação da boa-fé objetiva no
campo processual, bem como aferir a existência de modelos jurídicos formatados a partir das
decisões jurisprudenciais é o desafio que ora se propõe.
Ao tratar da aplicação da boa-fé no marco do Processo, Pi destaca que a primeira
interrogação que surge consiste em saber se as diversas regras ou pautas de conduta a serem
adotadas pelas partes estariam vinculadas ao que ele denomina por ‘princípio da boa-
processual’. A resposta advém de ensinamentos de diversos doutrinadores o que leva a
concluir que:
“Se por princípios do processo se entendem as ‘idéias que informam a regulação dos
mais importantes aspectos daquele’, isto é, as ‘idéias base de determinados
conjuntos de normas, idéias que se deduzem da própria lei ainda que o estejam
expressamente formuladas nela’, ou, a maneira ‘como o processo se constrói’, que
‘permita conhecer o comportamento dos sujeitos que intervêm no processo, suas
possibilidades, deveres e obrigações’, necessariamente chega-se a conclusão que a
boa-fé processual é um verdadeiro princípio, posto que, na idéia da boa-fé se
encontra ínsita o fundamento de distintas instituições processuais, existindo uma
multiplicidade de normas que tendem à sua proteção.”
12, 13
11
SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, pp. 226-227.
12
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 51.
13
No original: El primer interrogante que surge al analizar la aplicación de la buena fe en el marco del
proceso, es el de si las diversas reglas o pautas de conducta que deben adoptar las partes responden a un
principio general del proceso que podríamos denominar ‘principio de la buena fe procesal’. Si por principios
del proceso se entienden las ‘ideas que informan la regulación de los más importantes aspectos de aquél’, esto
es, las ‘ideas base de determinados conjuntos de normas, ideas que se deducen de la propia ley aunque no estén
expresamente formuladas en ellas’, o dicho de otro modo, el ‘cómo está hecho el proceso’ que permite ‘llegar al
conocimiento del comportamiento de los sujetos que intervienen en el proceso, sus posibilidades, cargas y
obligaciones procesales, necesariamente llegamos a la conclusión de que estamos en presencia de un verdadero
principio, el da la buena fe, puesto que […] la buena fe se encuentra ínsita en el fundamento de distintas
instituciones procesales, existiendo multitud de normas que tienden a su protección.”
19
“A boa-fé é um conceito jurídico indeterminado e, portanto, só podem ser feitas meras
aproximações conceituais sobre a mesma. Dessa perspectiva necessariamente genérica, a boa-
processual pode definir-se como aquela conduta exigível a toda pessoa, no marco de um
processo, por ser socialmente admitida como correta.
14, 15
À vista da vaguidade do conceito da boa-fé, estabelece-se o dinamismo na adaptação dos
valores éticos da sociedade aos valores normativos do ordenamento, o que deverá ser
averiguado em cada caso concreto. O conteúdo da boa-fé não pode ser estabelecido a priori,
sendo necessário socorrer-se da jurisprudência para saber se o comportamento de um litigante
encontra-se afinado, ou não, à mesma. Será a jurisprudência e não o próprio texto da lei que,
dinamicamente, traduzias regras a serem levadas em consideração para a concreção do
conteúdo da boa-fé.
16, 17
Como norma de comportamento leal, a boa-fé objetiva apresenta-se sob diversas facetas ou
nuances que se distinguem e se que manifestam à luz do caso concreto. “É norma nuançada
[...] na medida em que se reveste de variadas formas, de variadas concreções [...]. Não é
possível, efetivamente, tabular ou arrolar, a priori, o significado da valoração a ser procedida
mediante a boa-fé objetiva, porque se trata de uma norma cujo conteúdoo pode ser
rigidamente fixado, dependendo sempre das concretas circunstâncias do caso.”
18
14
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 69.
Idêntico conteúdo em: Id. El debido proceso leal: reflexiones en torno al fundamento constitucional del
princípio de la buena fe procesal. In Justicia: Revista de derecho procesal. n. 34. 2004, p. 151; Id.
Aproximación al principio de la buena fe procesal en la nueva ley de enjuiciamiento civil. In Revista Jurídica de
Catalunia. ANY c, n. 4. Barcelona: 2001, p. 953.
15
No original: La buena fe es un concepto jurídico indeterminado, y por tanto sólo pueden efectuarse meras
aproximaciones conceptuales sobre la misma. Desde esta perspectiva necesariamente genérica, la buena fe
procesal puede definirse como aquella conducta exigible a toda persona, en el marco de un proceso, por ser
socialmente admitida como correcta.”
16
Ibid. pp. 69-70. Idem PICÓ Y JUNOI, Joan. El debido proceso leal: reflexiones en torno al fundamento
constitucional del princípio de la buena fe procesal. In Justicia: Revista de derecho procesal. n. 34. 2004, p.
151.
17
No original: “Sólo desde esta perspectiva amplia se logra la continua adaptación entre los valores éticos de la
sociedad y los valores normativos del ordenamiento, correspondiendo al juez, en cada caso concreto, analizar si
la conducta procesal de la parte se adecua a la forma de actuar admitida pela generalidad de los ciudadanos.
Como se ha indicado, resulta imposible formular planteamientos apriorísticos sobre lo que resulta ser la buena
fe procesal, por lo que en muchas ocasiones deberemos que acudir a la casuística jurisprudencial para saber
cuándo una determinada actuación de un litigante la infringe o no. En definitiva, será la jurisprudencia, en
muchos casos, y no tanto la ley, la que nos indicará as reglas a tomar en consideración para concretar las
conductas procesales maliciosas.”
18
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 412.
20
Fazendo referência à concreção da cláusula da boa-fé objetiva, Wieacker destaca que o apelo
ao parágrafo 242 do BGB vincula também a jurisprudência futura aos princípios
jurisprudenciais anteriormente elaborados na aplicação daquele. Não obstante, essa
compreensão não deve obscurecer a compreensão dos limites que tenham sido
estabelecidos na estrutura do mesmo ordenamento jurídico ao conteúdo da cláusula geral.
19,20
Segundo Wieacker: “As novas criações ético-jurídicas que são invocadas, hoje, com base no
parágrafo 242 escapam totalmente à codificação e à exposição científica. O legislador não é
dono do futuro de sua sociedade, e a história tem sempre burlado o intento de dirigir seus
enormes poderes por canais previamente estabelecidos. Razão suficiente para que nossa tarefa
consista em desviar as calmas marés, dominá-las e dirigi-las para um trabalho que seja
útil.”
21,22
A boa-fé objetiva é um modelo de conduta social, ou, uma conduta socialmente considerada
como arquétipo, ou também uma conduta que a consciência social exige como dado
imperativo ético.
23, 24
A conceão da boa-fé objetiva para Diez-Picazo é posta nos seguintes termos:
“Outra coisa distinta é o princípio geral da boa-fé. Aqui a boa-fé [...] engendra uma
norma jurídica completa, que, ademais, se eleva à categoria ou ao patamar de
princípio geral do direito: todas as pessoas, todos os membros de uma comunidade
jurídica devem comportar-se segundo a boa-fé em suas recíprocas relações. Isso tem
significações: que devem adotar um comportamento leal em toda a fase prévia à
constituição de tais relações (diligência in contrahendo), e que devem também
comportar-se lealmente no desenvolvimento das relações jurídicas constituídas
entre eles. Este dever de comportar-se segundo a boa-fé se projeta, por sua vez, nas
19
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 85.
20
No original: “[…] apelación al parágrafo 242 vincula también la jurisprudencia futura a los constantes
principios jurisprudenciales que con anterioridad fueron elaborados para la aplicación de aquél. Sin embargo,
con todo ello no debe oscurecerse la comprensión de los límites que al rendimiento de una cláusula general han
sido establecidos en la estructura del mismo ordenamiento jurídico.
21
Ibidem. p. 98.
22
No original: Las nuevas creaciones ético-jurídicas que hoy suelen invocarse con base en el parágrafo 242
escapan totalmente como hemos ya señalado a la codificación y a la exposición científica. El legislador no
es dueño del futuro de su sociedad y la historia se ha burlado siempre del intento de dirigir sus enormes poderes
por cauces previamente establecidos. Razón de más para que nuestra tarea deba consistir en desviar las mareas
en calma, dominarlas y dirigirlas hacia un trabajo útil.”
23
DIEZ-PICAZO E GULLÓN. Sistema de derecho civil. vol. I, 10. ed. Madri: Tecnos. 2001, p.424. apud PICÓ I
JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 69. nota de rodapé
117.
24
No original: un modelo de conducta social o, si prefiere, una conducta socialmente considerada como
arquetipo, o también una conducta qua la consciencia social exige conforme un imperativo ético dado.
21
direções em que se diversificam todas as relações jurídicas: direitos e deveres. Os
direitos devem ser exercitados de boa-fé; as obrigações devem ser cumpridas de
boa-fé.”
25, 26
A boa-fé objetiva é “um standard ou um modelo ideal de conduta social. É a conduta social
que se considera paradigmática.”
27, 28
Os standards são diretrizes gerais de que o julgador pode servir-se para chegar a uma
solução mais justa baseada no exame das circunstâncias especiais do caso concreto. São
‘critérios axiológicos’ para julgar o comportamento de um dever ou de um direito.”
29
1.2. A Boa-Fé Objetiva: Concepções Doutrinárias
Ao longo dos anos, o Processo Civil tem passado por diversas mudanças com o único objetivo
de tor-lo mais eficiente, realmente, um instrumento apto para uma prestação jurisdicional
efetiva. As transformações cio-econômicas e políticas deram causa a muitas das reformas
implementadas no Direito Processual para moldá-lo às novas exigências daí decorrentes.
Entretanto, por mais que se empreendessem esforços para que as disposões legais pudessem
abarcar essa diversidade oriunda do viver social, a conclusão indubitável foi que a riqueza
oriunda das relações estabelecidas reclamava por um catálogo normativo que pudesse dar
maior perenidade à regulação dessas relações.
25
DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose
Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 12.
26
No original: Otra cosa distinta es el principio general de buena fe. Aquí la buena fe es ya un puro elemento
de un supuesto de hecho normativo, sino que engendra una norma jurídica completa que, además, se eleva a la
categoría o al rango de un principio general del derecho: todas las personas, todos los miembros de una
comunidad jurídica deben comportarse de buena fe en sus reciprocas relaciones. Lo que significa varias cosas:
que deben adoptar un comportamiento leal en toda la fase previa a la constitución de tales relaciones
(diligencias in contrayendo); y que deben también comportarse lealmente en el desenvolvimiento de las
relaciones jurídicas ya constituidas entre ellos. Este deber de comportarse según la buena fe se proyecta a su
vez en las dos direcciones en que se diversifican todas las relaciones jurídicas: derechos y deberes. Los
derechos deben ejercitarse de buena fe, las obligaciones tienen que cumplirse de buena fe.”
27
Ibidem., pp. 12-13.
28
No original: un standard o un modelo ideal de conducta social. Aquella conducta social que se considera
como paradigmática.”
29
DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 53. Com fundamento nas lições de Roscoe Pound, para quem “Todos os
standards implicam: 1) um certo juízo moral a respeito da conduta; 2)Não exigem um conhecimento judico
exato que tenha que ser exatamente aplicado, mas o emprego do sentido comum ou da experiência cotidiana; 3)
Não são formulados com caráter absoluto nem se lhes um conteúdo fixo, mas que dependem das
particularidades do caso.” (An Introduction to the philosophie of law, New York, 1945, p. 118. apud DE LOS
MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil Español.
Barcelona: Bosch. 1965, p. 54, nota de rodapé nº 28.
22
Nesse contexto, a codificação estática restou superada por disposições abertas, normas
fluidas, cuja plasticidade trouxe como penhor a aderência a cada momento histórico numa
perfeita adaptabilidade do contexto social com a ordem jurídica. Essas proposições,
materializadas por meio de princípios, cusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados,
viabilizaram a sincronia da ciência do direito com a dinamicidade emergente do tecido social.
É importante realçar que a figura da boa-fé assume duas conotações: a subjetiva e a objetiva.
No entanto, são figuras distintas que não podem ser confundidas.
A boa-fé subjetiva, que também é conhecida como boa-fé crença
30
, decorre de avaliação
individual e equivocada que a pessoa possui e que faz acreditar que está atuando conforme o
direito, o sujeito se encontra em completo estado de ignorância sobre as características da
situação jurídica. A pessoa acredita ser titular de um direito que, na realidade, não tem, porque
esse direito existe de maneira aparente.
31
Ou, segundo Amaral, a boa-fé subjetiva é a
convicção pessoal da inexistência de cio, um estado de espírito, relevante para os direitos
reais, [...]”.
32
A boa-fé objetiva não está inserida nesse contexto. “A boa-fé objetiva quer significar
segundo a conotação que adveio da interpretação ao § 242 do Código Civil alemão [...]
modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve
ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com
honestidade, lealdade, probidade”.
33
Teresa Negreiros assevera que é na normativa constitucional que se deve buscar os critérios
de interpretação e densificação da noção da boa-fé objetiva, visto que é “onde e para onde, em
última e definitiva instância, se radicam e convergem os princípios constitucionais”.
34
30
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé,
justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 132.
31
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 411.
32
AMARAL, Francisco. A boa-fé no processo romano. Revista Jurídica. vol. 1 n. 1. Rio de Janeiro: Faculdade
de Direito da UFRJ, 1995, p. 33.
33
MARTINS-COSTA, op. cit. P. 411. nota 31
34
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.
Dissertão apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito
Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
1997, p. 51.
23
Para corroborar esse entendimento a Autora traz à colação o entendimento de Ruy Rosado de
Aguiar Júnior:
“A boa-fé é uma cláusula geral cujo conteúdo é estabelecido em concordância com
os princípios gerais do sistema jurídico (liberdade, justiça e solidariedade,
conforme está na Constituição da República), numa tentativa de ‘concrão em
termos coerentes com a racionalidade global do sistema’”.
35
Essa visão leva Teresa Negreiros a concluir: Esta perspectiva, imposta pelo próprio
legislador, de se conferir à concreção do princípio da boa-fé um conteúdo constitucionalizado,
de forma a que esta se realize ‘em termos coerentes com a racionalidade global do sistema’,
importa, portanto, uma profunda revisão da conceituação dos princípios jurídicos e, bem
assim, da própria iia de sistema, fundado constitucionalmente.”
36
Não se podem vislumbrar as garantias processuais constitucionais dissociadas da boa-fé
objetiva. “A boa fé é princípio geral do direito e, portanto, princípio diretor ou vetor de todo o
ordenamento jurídico e, como tal, inamovível.
37
Essa concepção ou formulação do conteúdo
e da importância da boa-fé objetiva pode parecer, em um primeiro momento, estarrecedora.
No entanto, a harmonização das garantias constitucionais processuais conduz,
inexoravelmente, ao efetivo acesso à justiça.
Com efeito, a repercussão da atuação da boa-fé objetiva nas relações intersubjetivas conduz a
trilhar um novo caminho no campo do Direito Processual trazendo solução para grande parte
dos entraves na prestação de uma tutela jurisdicional efetiva.
São precisas as anotações de Dinamarco de que a grande lição a extrair da obra de
Cappelletti é a de que o acesso à justiça é o mais elevado e digno dos valores a cultuar no
trato das coisas do processo. [...] a solene promessa de oferecer tutela jurisdicional a quem
tiver razão é ao mesmo tempo um princípio-síntese e o objetivo final, no universo dos
princípios e garantias inerentes ao Direito Processual Constitucional. Todos os demais
35
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. “A Boa-Fé na Relação de Consumo”, in Revista de Direito do Consumidor,
nº 14, Revista dos Tribunais, São Paulo, abril-junho de 1995, p. 24.
36
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.
Dissertão apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito
Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
1997, p. 51.
37
CÓRDOBA, Marcos. Palabras iniciales in Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA,
Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. VII.
24
princípios e garantias foram concebidos e atuam no sistema como meios coordenados entre si
e destinados a oferecer um processo justo, que outra coisa não é senão o processo apto a
produzir resultados justos.”
38
O processo justo é o objetivo que tem sido perseguido. A maneira de alcançá-lo é o que tem
impulsionado os juristas de todas as épocas numa busca incansável. Várias fórmulas foram
apresentadas: a solução ideal ainda não foi encontrada.
Conciliar a certeza e a segurança jurídicas com a prestação de uma tutela em tempo razoável é
o dilema que atormenta a todos envolvidos na lide forense. Entretanto, essa constatação não
pode conduzir ao desencantamento nem, muito menos, levar ao descrédito desse valiosíssimo
instrumento da atuação estatal. A missão que se impõe é por demais nobre para deixar-se
vencer pelos percalços já encontrados ao longo dessa trajetória.
Os mecanismos estão postos: as garantias constitucionais processuais vistas hoje como pilares
que dão sustentação à atuação estatal na missão da justa composão da lide. Quer parecer que
a grande dificuldade está na habilidade para se trabalhar esses mecanismos. Dinamarco
adverte:
“É preciso [...] o se ofuscar tanto com o brilho dos princípios nem ver na
obcecada imposição de todos e cada um a chave gica da justiça, ou o modo
infalível de evitar injustiças. Nem a segurança jurídica, supostamente propiciada de
modo absoluto por eles, é um valor tão elevado que legitime um fechar de olhos aos
reclamos de um processo rápido, ágil e realmente capaz de eliminar conflitos,
propiciando soluções válidas e invariavelmente úteis.
A adoção dessa premissa metodológica manda, em primeiro lugar, que todos os
princípios e garantias constitucionais sejam havidos como penhores da obtenção de
resultados justos, sem receber um culto fetichista que desfigura o sistema. [...]
Muitas vezes é preciso sacrificar a pureza de um princípio, como meio de oferecer
tutela jurisdicional efetiva e suficientemente pronta, ou tempestiva; muitas vezes,
também, é preciso ler uma garantia constitucional à luz de outra, ou outras, sob
pena de conduzir o processo e os direitos por rumos indesejáveis.”
39
Judith Martins-Costa apresenta a boa-fé objetiva como topos subversivo”, expressão que a
ela mesma repercute com certa estupefação. Entretanto, como demonstra a autora, embora
seja um conceito que remonta à antiguidade, o mesmo permanece sempre atual e inovador na
ordem jurídica. Nesse sentido, são diversas as adjetivações que têm sido atribuídas ao tema
38
DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, pp. 21-22.
Destaques no original.
39
Ibidem. pp. 22-23.
25
‘expressão da s-modernidade’
40
, ‘femeno espantoso’
41
, ‘um mar sem margens’
42
, que
demonstram a amplitude do seu conteúdo e a inovação que o mesmo traz à ordem jurídica.
43
Demolombre denomina a boa como “a alma das relações sociais”
44
. Jean Cruet diz que “a
boa-fé é o lubrificante invisível que suaviza o funcionamento da máquina jurídica”
45
. “A boa-
purifica e dulcifica os textos rígidos da lei com o banho lustral de suas normas éticas.
46
,
afirma Milhomens. “Alma que preside a convivência social e todos os seus atos”
47
afirma
Clemente de Diego. Há, também, para alguns como A. Volanski, o conceito amplíssimo no
qual “a boa-fé é o próprio fundamento do direito”.
48
Fuzier Herman define o conceito amplo
de boa-fé de outra forma quando diz que é “a equidade que preside a interpretação e execução
dos contratos.”
49
Von Thur diz que não se trata de uma norma jurídica única. Mas de um
princípio de direito que informa diferentes normas e que às vezes se inclina diante de outros
interesses que o legislador julga mais importantes.”
50
Alsina Atienza sustenta que a boa-fé é
‘princípio genérico’ que possui a aptidão para solucionar casos concretos, de servir de
fundamento e de propiciar a adequação da lei ao caso concreto, atenuando a sua aparente
inflexibilidade.
51
Destaca Alípio Silveira que “a doutrina atribui à boa- o caráter de
40
STORME, Marcel. La bonne foi: expression de la postmodernité en droit, in La bonne foi, cit. p. 460 e segs.
apud MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. o
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 409.
41
Patrick Henri. La bonne foi, Actes du colloque organizé le 30 mars 1990 per la Conférence Libre du Jeune
Barreau de Lièg, ASBL, Éditios du Jeune Barreau de Liège, 1990, p. 5. apud MARTINS-COSTA, Judith. A
boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p.
409.
42
David-Constant. La bonne foi: une mer sans rivages, in La bonne foi, cit. p. 7 e segs. apud MARTINS-
COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos
Tribunais. 1999. p. 409.
43
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 409.
44
Code de Napoleon, XXIV, p. 376. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires:
Ediar. 1947, p. 229.
45
A vida do direito e a inutilidade das leis. trad. port. p. 182. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el
proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 229.
46
MILHOMENS, Jônathas. Da presunção de boa-fé no processo civil. 1. ed. São Paulo: Forense. 1961, p. 22.
47
El silencio en el derecho, p. 98. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires:
Ediar. 1947, p. 229.
48
Essai dúne définition expressive du droit basée sur la bonne foi. apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el
proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 229.
49
pértoire alphabetique du droit français, voz Bonne foi. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso
civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 229.
50
La buena fe en el derecho romano y em el derecho actual, trad. esp. En la Revista de derecho privado, Madrid,
1925, p. 337. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 246.
51
Efectos jurídicos de la buena fe, 1935, p. 4. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos
Aires: Ediar. 1947, p. 247.
26
princípio não apenas informador do texto legal, mas, também, fornecedor de soluções
praeter legem” para os casos a ela omissos.”
52
Jônathas Milhomens destaca que o “direito do século da técnica recolheu do passado os dados
da experiência. Sem quebra de linha evolutiva, apropriou-se da sabedoria dos romanos [...] e
engastou a bona fides em princípio. A boa-fé no direito moderno separado da moral, mas
o brigado com ela – se apresenta sob a forma de princípio.”
53
Darci Guimarães Ribeiro e em relevo a importância da boa-fé processual qualificando-a
como um sobreprincípio
54
, na seguinte transcrição:
“A boa-fé processual quer seja ela obrigação, dever ou ônus, quer esteja explícita
ou implícita, é, indiscutivelmente, um valor que paira acima de qualquer instituição
jurídica, porque, nas palavras de Couture, ‘el deber de decir la verdad existe,
porque es um deber de uma conducta humana.’
O processo tem, em certa medida, uma boa dose de verdade, porque no seu
conceito, em sentido social ou, como querem alguns, instrumental, ele é um
instrumento de realização da justiça, que está colocado à disposição das partes pelo
Estado, para que elas busquem a prestação da tutela jurisdicional, e nenhum
instrumento de justiça pode existir fundado em mentira.
[...]
Estas são as razões pelas quais a boa-fé processual é erigida à categoria de
sobreprincípio processual, que se sobrepõe aos demais, por possuir um interesse
público iminente, condicionando, sempre que possível, os demais princípios, e
coloca a verdade como apoio e sustento da justiça, que é a base do direito. O
sobreprincípio da boa-processual obriga as partes a agir e a falar a verdade em
juízo, pois, segundo Klein, ‘es principio geral que todo cuanto obste o dificulte los
objetivos del proceso debe ser evitado.’
[...]
A boa-fé processual caracteriza-se, pois, como um sobreprincípio do ordenamento
jurídico, posto que paira por cima dos demais princípios jurídicos,
conseqüentemente condiciona, determinando no espaço e no tempo, sua
interpretação.
Não se pode negar que os demais princípios processuais, inclusive aqueles
guindados à categoria constitucional, como por exemplo: o direito de ação, o
contraditório etc., não fiquem imunes ao dever supraconstitucional de agir e de falar
em juízo ou fora dele com boa-fé, com retidão e com lealdade.
55
52
SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 247.
53
MILHOMES, Jônathas. Da presunção de boa-fé no processo civil. 1. ed. São Paulo: Forense. 1961, p. 10.
54
O Autor esclarece que a expressão “sobreprincípio” é utilizada por analogia àquela consagrada por Pontes de
Miranda, regras de sobredireito, que segundo Pontes, significa “Ser de sobredireito não é ser de direito ‘anterior
o direito sobre que versa a regra de sobredireito, é ser por cima desse direito para o determinar no espaço, no
tempo, ou em sua interpretação.” PONTES DE MIRANDA, Tratado das ações. São Paulo: Revista dos
Tribunais. 1972, 2. ed. t. I, § 44, p. 245. O Autor observa, também, que Galeno Lacerda utiliza essa expressão
emprestada, quando qualifica as normas sobre nulidades como “normas de sobredireito processual”. LACERDA,
Galeno. O Código e o Formalismo Processual. Revista da AJURIS. n. 28. ano 10. Porto Alegre: AJURIS. julho.
1983, p. 11.
55
RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da
parte em juízo. Revista da AJURIS. vol. 31. n. 95 Porto Alegre: Ajuris. Set. 2004, pp. 76-78.
27
Afinal, que ‘femeno’ ou que ‘institutoé este que tem causado tamanha estupefação e,
ademais, desde os romanos, tem demonstrado a sua força para reger relações, estipular
comportamentos, transmudar o primado da autonomia da vontade
56
e, no âmbito processual,
tem servido para por em xeque ou, pelo menos, impor à reflexão dogmas e verdades que
pareciam tão absolutos?
Princípio ou sobreprincípio geral do direito? Cláusula geral de textura fluida tal qual “um mar
sem margens”, alma das relações sociais”, “fundamento próprio do direito”, expressão da
pós-modernidade”?
Essas são concepções que buscam traduzir a amplitude e a complexidade da boa-fé, que, no
seu matiz objetivo, flexibiliza os textos rígidos da lei e harmoniza as relações, que estabelece
a confiança e reprime a deslealdade, que faz surgir direitos e faz desaparecer direitos, que
impõe obrigações, que rompe paradigmas e estabelece paradigmas...
56
Clóvis do Couto e Silva destaca que: “O princípio da boa-fé endera-se sobretudo ao juiz e o instiga a formar
instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor
do conteúdo da relação obrigacional, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela outra parte. A
principal função é a individualizadora, em que o juiz exerce atividade similar à do pretor romano, criando o
‘Direito do Caso’. O aspecto capital para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir valor autônomo, não
relacionando com a vontade. Por ser independente da vontade, a extensão do conteúdo da relação obrigacional já
não se mede com base somente nela, e sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se
‘construirobjetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por
vezes, até mesmo ao controle das partes.” COUTO E SILVA,Clóvis. O direito civil brasileiro na visão de
Clóvis do Couto e Silva. FRADERA, Vera Maria Jacob de. (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997,
p. 42.
Nesse mesmo sentido Judith Martins-Costa assevera que “A concepção da obrigação como processo e como uma
totalidade concreta põe em causa o paradigma tradicional do direito das obrigações, fundado na valorização
jurídica da vontade humana, e inaugura um novo paradigma para o direito obrigacional, não mais baseado no
dogma da vontade (individual, privada ou legislativa), mas na boa-fé objetiva.” MARTINS-COSTA, Judith. A
boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p.
394.
Por sua vez, Tereza Negreiros destaca que “[...] A boa-fé objetiva é conceituada como um dever de recíproca
cooperação entre partes ligadas por um nculo obrigacional, e que, como tal, exige uma reformulação do
significado da autonomia da vontade à luz, precisamente, da normativa constitucional.” NEGREIROS, Teresa.
Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Dissertação apresentada como
requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de
Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 1997, p. 6.
28
1.3. A Boa-Fé Objetiva como Norma Otimizadora das Garantias Processuais
Constitucionais.
A ideologia norteadora da Carta Potica de 1988 imprime no campo do Direito Processual
Civil a consagração dos fundamentos éticos do processo. A garantia do devido processo legal
é efetivamente assegurada quando aliada a justiça formal à justiça substancial
57, 58
refletindo,
por
conseguinte, um processo que “seja intrinsecamente équo e justo segundo os parâmetros
ético-morais aceitos pela sociedade de qualquer época e país, que se revela capaz de realizar
uma justa verdadeiramente imparcial, fundada na sua natureza e na sua razão.
59, 60
Sob essa ótica, o Supremo Tribunal Federal, na sua precípua fuão de guardião da
Constituição Federal, teve oportunidade de se manifestar sobre o princípio do devido processo
legal, reconhecendo ser a máxima do fair trial uma das faces desse princípio e que, a garantia
de um processo justo e équo está imbricada à observância da boa-fé objetiva de todos os
sujeitos participantes do processo.
Sob o delineamento amplíssimo da concepção da boa-fé objetiva, sobreleva a sua aplicação
no âmbito do Direito Processual Civil, no qual o processo - como instrumento público - para a
consecução dos seus escopos social, potico, jurídico e pedagógico, tem na boa-fé objetiva o
norte a reger as atuações de todos os sujeitos processuais.
Na busca da realização dos aludidos escopos vale indagar: Como compatibilizar as garantias
constitucionais, que visam à efetividade do processo, expressas nos princípios do devido
57
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Abuso de Direito Processual no ordenamento jurídico brasileiro. In Abuso
dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 109.
58
“[...] a teoria que melhor atende às idéias do formalismo-valorativo [...] é aquela que entende o processo como
um procedimento em contraditório pensada por Elio Fazzalari. [...] o processo só pode ser encarado, a partir da
perspectiva do formalismo valorativo, como um procedimento em contraditório, jungido aos valores
constitucionais e devidamente demarcado pelas garantias processuais mínimas que configuram o devido
processo legal processual (art. 5º, LIV). Visa à produção do justo, sua indelével e irrenunciável vocação
constitucional, com o que também no domínio do processo e através dele se estará a construir uma sociedade
mais livre, justa e solidária (art. 3º, I, CRFB), fundada na cidadania e na dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e
III, CRFB).MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma Teoria Contemporânea do Processo Civil
Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 145.
59
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’( modelli a confronto). In Revista de
Processo. n. 90, ano 23. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr. – jun. 1998, p. 105
60
No original: Quest’ultima impone di considerare come dovuto ( e cioè: como due, debido o devido) non già
qualunque processo che si limiti ad essere estrinsecamente fair (vale a dire: correto, leale o regolare, sul piano
formale, secondo la law of the land), bensi un processo che sia intrinsecamente equo e giusto, secondo i
parametri di qualsiasi epoca e paese, in quanto si riveli capace di realizzare una giustizia veramente imparziale,
fondada sulla natura e sulla ragione.”
29
processo legal, da ampla defesa e do contraditório com o princípio constitucional da duração
razoável do processo? Onde estaria o ponto de equilíbrio? Qual a amplitude do devido
processo legal? Qual a extensão da ampla defesa? Até que ponto pode ser desenvolvido o
contraditório? Todas essas indagações encontram respostas que deságuam na aplicação da
boa-fé objetiva. Para a perfeita identificação do substrato oriundo do conteúdo da boa-fé
objetiva processual é que se lança o dos modelos jurídicos captados da fonte
jurisprudencial na solução veiculada em cada caso concreto.
Quadra por em relevo que as garantias constitucionais processuais não são de todo absolutas.
O manejo e a extensão de cada uma delas deve ocorrer de forma harmônica o que, de per si,
implica o alcance do ponto de equilíbrio que importará um processo justo”.
A iia de que as garantias constitucionais processuais seriam absolutas advém da ideologia
do Estado liberal. Nesse sentido vale trazer à colação as lições de Marinoni:
“[...] o direito liberal, diante da desconfiança em relação ao judiciário, foi obrigado a
não dar ‘elasticidade’ às noções de ampla defesa e contraditório, e assim tornou
inviável a tutela do direito antes da plenitude de cognição. [...] Os conceitos de
ampla defesa e de contraditório devem ser construídos a partir dos valores das
épocas. Quando a preocupação do direito centrava na defesa da liberdade do cidadão
diante do Estado, a uniformidade procedimental e as formas possam grande
importância para o demandado, nesse sentido a rigidez dos conceitos de ampla
defesa e contraditório assumia função vital para o réu. Entretanto, como não poderia
deixar de ser, a ampla defesa e o contraditório eram vistos como garantias em
relação ao Estado, e não como elementos que, quando conjugados, podem viabilizar
a formação de procedimentos adequados às necessidades das diferentes situações de
direito substancial [...] ”
61
Concorrem para refletir essas reminisncias da concepção liberal no digo de Processo
Civil o seguinte excerto:
“O que hoje parece evidente, não o era à época da promulgação do Código de
Processo Civil, em 1973. O processo judicial no Brasil, visto a partir de sua
disciplina constitucional, foi por muito tempo focalizado com um sistema de
garantias contra o arbítrio e o personalismo, impondo limitações ao poder de julgar
em nome da idéia de segurança jurídica, tão cara ao pensamento moderno.
Respaldada pelo discurso científico da modernidade, essa visão forjou processo
tendencialmente plenário, de feição cognitivista e pródiga recursividade. Tal modelo
buscava proteger os indivíduos contra os avanços do “Estado-Juiz”, impondo a
“certeza” como condição de atuação efetiva do Estado, projetando enormemente a
eficácia do princípio do contraditório e da ampla defesa, fixando consistentes limites
formais à atividade jurisdicional e oferecendo amplas possibilidades de revisão
61
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de antecipada, julgamento antecipado, e execução imediata da
sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 46.
30
hierárquica das decisões. A vocação à ordinariedade se fez evidente na própria
estrutura do Código,[...]. Pouca atenção se deu ao aspecto temporal do processo e o
seu descompasso, logo evidenciado, com a velocidade real da vida e com as
exigências dos novos direitos em afirmação.
62
Entretanto, para o perfeito alcance do conteúdo das normas processuais faz-se mister
compreender situar o momento histórico-cultural da sociedade. O direito advém da
experiência social, conforme já afirmado por Miguel Reale. Portanto, a essência das suas
normas não pode ser alcançada dissociada da realidade social e da sua situação histórica.
Nesse sentido adverte Ovídio Baptista:
“É indispensável, no entanto, ter presente que essas tentativas de formação de
sistemas, no que diz respeito ao direito, devem ser recebidas com reservas, pois o
fenômeno jurídico, como se com todas as expressões culturais formadoras das
ciências do espírito, é um ramo do saber humano que não se harmoniza com o
conhecimento sistemático, próprio da ciência da natureza. O direito, enquanto
ciência hermenêutica, busca o individual, em toda sua riqueza existencial e histórica,
e, mesmo admitindo que se descreva como sistema, como é próprio das ciências
explicativas, que buscam alcançar o domínio da natureza e a construção de
princípios e regras de validade universal, sua vocação natural orienta-o para a
compreensão do fenômeno humano, que será sempre situado historicamente. Esta
peculiaridade, comum a todo fenômeno jurídico, mostra-se ainda mais visível
quando se trata do direito processual, dado que este ramo da ciência jurídica tem de
tratar, necessariamente, de casos individuais, onde a construção de regras gerais
mostrar-se-á sempre uma tarefa limitada e precária.”
63
O processo, compreendido como fenômeno cultural, deve traduzir os valores e ideologias
reinantes no seio social, deve retratar a cultura reinante na sociedade a qual se dirige.
“Se no processo se fazem sentir a vontade e o pensamento de um grupo, expressos
em bitos, costumes, símbolos rmulas ricas de sentido, métodos e normas de
comportamento, então não se pode recusar a esta atividade vária e multiforme o
caráter de fato cultural. Nela, na verdade, se reflete toda uma cultura, considerada
como conjunto de vivências de ordem espiritual, que singularizam determinada
época de uma sociedade. Costumes religiosos, princípios éticos, hábitos sociais e
políticos, grau de evolução científica, expressão do indivíduo na comunidade, tudo
isto, enfim, que define a cultura e a civilização de um povo, de retratar-se no
processo, em formas, ritos e juízos correspondentes. Ele, na verdade, espelha uma
cultura, serve de índice de uma civilização.
64
Marinoni conclama: É chegado o momento do tempo do processo tomar o seu efetivo lugar
dentro da ciência processual, pois este não pode deixar de influir sobre a elaboração
62
AMARAL, Guilherme Rizzo e CARPENA, Márcio Louzada. (Coord.). Visões críticas do Processo Civil
Brasileiro: uma homenagem ao Prof. José Maria Rosa Tesheiner. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005,
pp. 23-24;
63
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da, GOMES, Fábio Luiz . Teoria geral do Processo Civil. 4. ed. rev. e atual.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006, pp. 11-12.
64
LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense. 2008, p. 4.
31
dogmática preocupada com a reconstrução do processo justo ou com aquele destinado a
realizar concretamente os valores e os princípios contidos na Constituição da República.”
65
O justo processo é interesse de toda a sociedade e obrigação do Estado. Os direitos e
garantias fundamentais estatdos na Constituição são também programas de ão e vetores
do Estado por exprimirem valores que direcionam os fins da sociedade.”
66
As garantias constitucionais processuais atuam como vetores na atuação jurisdicional dando
nova conotação axiológica às normas processuais, ressaltando que “o formalismo valorativo
deixa evidente o imbricamento entre o processo civil, a Constituição e a cultura, sendo esse
último, pois, o método mais adequado para estudar o direito processual civil
contemporâneo.
67
. Ademais, conforme asseverado por Mitidiero com escólio em Natalino
Irti - La Età della Decodificación - e em Zagrebelsky - Il Diritto Mitte Legge, Diritto,
Giustizia:
Vencida a ideologia de que il diritto si resolve nella leggi dello Stato’, própria
daquilo que muito adequadamente se chamou de mondo della sicurezza’ cuja
forma histórica de legislação é a forma-Código (com a sua indisfarçável marca de
‘auto-suficiência ‘completude e coerência’), temos de levar a sério a idéia de
Estado Constitucional, concretizando cotidianamente os direitos fundamentais e
reconhecendo que o direito, nessa quadra histórica, espraia para além do círculo da
legalidade estatal, buscando a sua unidade, suas potencialidades e seus limites nos
valores e nas normas constitucionais.”
68
Nessa perspectiva, a norma inserta no art. 14, inciso II do CPC traz uma nova moldura para as
normas processuais sob o espectro do Texto Constitucional. A absolutez dos direitos
fundamentais, como garantias liberais, já não perdura. O processo justo não compactua com
tal concepção. O Processo não é mero duelo das partes. A finalidade pública do processo
desborda os limites dos interesses das partes que são colocados na lide. Embora tenha sido
concebido com matiz subjetivista – o agir de acordo com a lei e com o direito – traduzido pela
boa-fé subjetiva, que se fazer uma releitura desse dispositivo legal com os olhar posto no
65
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de antecipada, julgamento antecipado, e execução imediata da
sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 16.
66
MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no Processo Civil
brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores. 2001, p. 61.
67
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 21.
68
MITIDIERO, Francisco. Processo civil e estado constitucional. Porto alegre: Livraria do Advogado. 2007, p.
106.
32
Texto Constitucional. Para tal desiderato, Mitidiero, parafraseando Denti, convida a que se
escreva “um novo capítulo da história jurídica”:
“[...] formalismo-valorativo, entendido esse como movimento cultural destinado a
concretizar valores constitucionais no tecido processual [...] à força do caráter
nitidamente instrumental do processo, trazendo novamente ao plano dos operadores
do processo a busca pelo justo. O todo é o instrumental, e a racionalidade que
perpassa o fenômeno é a racionalidade prática (quer na sua vertente processual,
tópica-retórica, quer na sua vertente material), resgatando-se, em outro nível
qualitativo, o pensamento do problemático para o direito processual civil. O
processo deixa de ser visto como mera técnica [...] assumindo a estatura de um
verdadeiro instrumento ético, sem que se deixe de reconhecer, no entanto, a sua
estruturação igualmente técnica. Tal é o momento que ora se está a viver:
fomalismo-valorativo, em que os valores constitucionais impregnam a técnica do
processo, escrevendo mesmo, como observa Vittorio Denti, um novo capitolo di
storia della nostra cultura giuridica.”
69
Os modelos jurídicos jurisprudenciais fundados na boa-fé objetiva desempenham importante
função otimizadora de todo o sistema processual ao promover a ordenação da aplicação das
normas processuais, bem como ao estabelecer uma aplicação prospectiva das mesmas, na
busca indissociável da efetividade do processo.
A eficácia do ordenamento jurídico processual está condicionada à observância da boa-
objetiva. Neste sentido, a aplicação das normas processuais encontra suas balizas na boa-fé
objetiva. É a boa-fé objetiva que permiti extrair a essência do conteúdo da norma para
aplicá-la ao caso concreto. Daí exsurge incontroverso que na multiplicidade de situações a
aplicação da norma tanto poderá ser ampliada quanto restringida, sendo que tal equilíbrio será
aferido na situação in concreto tendo por norte a efetividade do processo.
70
“Podemos, a partir de eno, dizer que o vobulo amplo para defesa não guarda
pertinência com ilimitado, porém, indiscutivelmente, significa extensa. Não conota
defesa pródiga, mas abundante. Isto porque o princípio constitucional da amplitude
de defesa é abrangente (não ilimitado), significando que tolera mitigações, em face
69
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, pp. 19-20.
70
Nesse sentido, traz-se à colação: - MULTA DE 20% PREVISTA NO ARTIGO 601 DO CPC. A utilização dos
meios de defesa, com base nos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, encontra
limites nos deveres processuais de lealdade e boa-fé e nos princípios da celeridade e efetividade do processo, que
têm o condão de assegurar à parte um processo rápido e útil, como garantia do direito fundamental de ação,
previsto na Constituição Federal. Assim, os meios legais para impugnação das decisões judiciais não podem ser
usados simplesmente para protelar a execução. A oposição vazia e impertinente da parte, com o flagrante e
deliberado objetivo de retardar o resultado do processo, atenta contra a dignidade da Justiça, e deve ser
combatida pelo Poder Judiciário. Dessarte, correta a sentença ao enquadrar a conduta da Ré no artigo 600, inciso
II, do CPC, e condená-la à multa prevista no artigo 601 do mesmo Código. (TRT R.; Proc. 21561-2007-011-
09-00-1; Ac. 30053-2008; Quarta Turma; Relª Desª Márcia Domingues; DJPR 26/08/2008). (sem destaques no
original)
33
da eficácia normativa da efetividade, alçada ao status constitucional do direito à
jurisdição e do devido processo legal, e não comporta dilações intermináveis,
mesmo em nome da perfeição da descoberta da verdade; mas contém certos
conteúdos indispensáveis no jogo da proporcionalidade.”
71
O direito à efetiva prestação da tutela jurisdicional importa atender à necessidade de outorga
da tutela do direito pelo processo. Nesse passo, o magistrado atua, sistematicamente, à luz das
diversas garantias constitucionais processuais incidentes sobre a lide e orientado para o
atingimento desse alvo. A aplicabilidade de tais garantias o possui extensão ilimitada. A
grande questão está no equacionamento dos valores segurança e efetividade. O direito de
defesa encontra limites no marco da duração razoável do processo.
A boa-fé objetiva no âmbito processual civil apresenta-se como norma que equilibra a
aplicação desses princípios na conjugação dos fatores segurança/certeza e celeridade na
prestação da tutela jurisdicional.
Nesse diapasão, a boa-fé objetiva é norma conformadora das garantias constitucionais
processuais aos interesses que se contrapõem nos donios do processo. Teresa Negreiros
propõe um enquadramento constitucional para o “renascimento da boa-fé”, o que implica
buscar na hermenêutica constitucional os caminhos para a aplicação do princípio. [...] O
princípio da boa-fé configura-se, nesta ótica, não como agente “subversivo” das
transformações na operação do sistema jurídico, mas como um resultado necessário de sua
conformação à “hierarquia de interesses fixada constitucionalmente.
72,73
Na concepção
formulada por lia Barbosa Abreu Slawinski
74
, a boa-fé objetiva é regra que vem
instrumentalizar valores constitucionalmente previstos”.
71
MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no Processo Civil
brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores. 2001, p. 80.
72
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.
Dissertão apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito
Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
1997, p. 12.
73
A proposição de Teresa Negreiros encontra-se alicerçada nas lições de Pietro Perlingieri: “Se o fundamento de
cada ramo do direito de um ponto de vista não somente formal, mas também substancial, deriva do quadro
constitucional, os atos e atividades devem ser influenciados, nos seus requisitos de validade e de eficácia e nos
seus próprios pressupostos, pela hierarquia dos interesses que resulta da análise das normas de uma Constituição
rígida, fonte privilegiada das relações pessoais, econômicas e sociais”. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito
civil : introdução ao direito constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Renovar. 1997, p. 285.
74
Contornos dogmáticos e eficácia da boa-fé objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris 2002, p. 191.
34
Dar interpretação subjetivista à norma do art. 14, inciso II do CPC, na atual quadra histórica, é
esvaziar o seu conteúdo. É ter uma visão míope da grandeza que dela advém. É querer a
perpetuação das concepções liberais individualistas em pleno século XXI. A elaboração
dogmática e doutrinária mantém-se renitente a ler essa cláusula como metanorma, como
garantia de que os direitos constitucionais serão garantidos em sua plenitude. Francisco
Antônio Barros e Silva Neto afirma: Se o dever de lealdade processual revela a crítica ao
liberalismo, é natural que o esforço da moralização do processo encontre resistência nos
setores mais conservadores da praxis forense e das academias.”
75
Entretanto, essa postura das
academias e dos tribunais não pode ser vista com naturalidade. É preciso libertar-se dessas
raízes. É preciso deixar para traz a concepção subjetivista da boa-aliada a bolo e má-fé. A
leitura do art. 14, inciso II do CPC com os olhos postos na Constituição Federal liberta-o
dessa concepção subjetivista e dá-lhe conotação objetiva imprimindo uma nova validade
dogmática.
A concepção liberal das garantias constitucionais processuais como absolutas endossa a visão
duelística do processo. Visão essa que não coaduna com o processo cooperativo, fruto da
leitura das normas processuais à luz da Constituição. A leitura do art. 14, II, do CPC - como
boa-fé objetiva - é norma que veda o agir individualista. É norma que limita o duelo irrefreado
no campo processual, é norma que veda o uso indevido do processo. A boa-fé objetiva limita
o uso das garantias processuais, no sentido advindo da idéia liberal, aplicando outras garantias
constitucionais. Trata-se de ler o princípio da ampla defesa, não como ‘defesa pródigaou
‘defesa ilimitada’, mas como ‘defesa necessária’. É ler a garantia do contraditório como
garantia de participação efetiva, participação na construção da decisão. É ler o devido
processo legal na sua feão substantiva e não meramente formal, é o devido processo leal, é o
‘devido processo justo’. É ler o princípio da igualdade ou da paridade de armas com os olhos
postos na boa-fé objetiva. Significa não se olvidar, na aplicação dessas garantias processuais,
de outras garantias constitucionais, tais como, justa, equidade, tutela jurisdicional adequada.
A boa-fé objetiva traz ínsita em seu conteúdo a noção de “correção processual”. É máxima do
comportamento correto. Atua no sistema jurídico como pretensão de correção. Nesse sentido
vale trazer à colação:
75
SILVA NETO, Francisco Annio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua
responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data
da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p.
13.
35
“O centro do aparato das garantias reconhecidas como fundamentais, tanto para o
processo civil, quanto para o processo penal, emanadas da Convenção Européia e do
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, resume-se na exigência da
correção processual, expressão que bem pode traduzir a palavra inglesa fairness e
hearing, constantes do art. 6º, I, da e do art. 14, I, do que qualificam o justo processo
(fair hearing). [...]doutrinador: ‘a mais expressiva componente do complexo de
implicações que a jurisprudência da Corte e da Comissão Européia extrai, de um
ponto de vista genérico, da idéia de corrão processual’, é certamente aquela que
se traduz no princípio da ‘igualdade ou paridade das armas’ entre as partes do
processo”
76
Aí está a grandeza da cláusula da boa-fé objetiva. Trata-se de norma cogente, norma de ordem
pública. Atua “independentemente da vontade dos interessados e mesmo contrariando tais
vontades, que são impotentes (=irrelevantes) para impedir a sua incidência, a qual é, assim,
inexorável.
77
É metanorma, atua estruturando a aplicação de outras normas processuais. É
norma que expressa a correção processual”. A boa-fé objetiva como correção processual”
encontra-se afinada à historicidade do direito. Alexy sustenta que a pretensão de correção do
direito importa em atribuir-lhe uma dimensão ideal necessária.
78, 79
Nesse ponto, vale trazer à baila que o princípio do devido processo legal pode ser definido
como a espinha dorsal do processo. É sobre tal princípio que o processo, em seu procedimento
em contraditório, se ancora. A relevância de tal princípio é incontestável, sendo diretriz
suprema do Estado Democrático de Direito.
Conforme bem apontado por Maria Rosynete Oliveira Lima, hoje, quase duas décadas após a
instalação da ordem jurídica pela Constituição Política de 1988, onde o princípio do devido
processo legal veio expressamente estampado, a doutrina e a jurisprudência mantêm o
76
CHIAVARIO, Mario. apud FAGUNDES FILHO, Henrique. A equidade e o processo justo In Processo e
Constituição: estudos em homenagem a Jo Carlos Barbosa Moreira. FUX, Luiz; NERY JR., Nelson;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006, p. 722.
77
ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: parte geral. Vol. I. 7. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2001, p. 122.
78
ALEXY, Robert; BULYGIN, Eugenio. La pretensión de corrección del derecho: la polémica Alexy/Bulygin
sobre la relación entre derecho y moral. Traducción e Introducción de Paula Gaido. Teoría Jurídica y Filosofía
del Derecho, n. 18. Bogotá: Universidad Externado de Colombia. 2001, pp. 28-29.
79
No original: “Para Alexi el análisis de la relación entre derecho y moral en el marco de la teoría del discurso
muestra a la pretensión de corrección como una dimensión ideal y necesaria del derecho, que lo conecta con la
moral universal procedimental. Según Alexi, la pretensión de corrección implica una pretensión de
justificabilidad. La pretensión de justificabilidad crea la posibilidad de presentar mejores contra-argumentos,
que pueden cambiar la práctica de la justificación en el futuro. Para Alexy justificar implica aceptar a otra
persona como un igual, y la pretensión de defender lo que se afirma no sólo frente al adversario sino frente a
cualquiera. Estas pretensiones de igualdad y de universalidad constituyen la base de una ética procedimental,
sobre la que se basa Alexy, y que toma fundamentalmente de Habermas. La conexión que la teoría del discurso
crea entre los conceptos de corrección, justificabilidad y generalizabilidad puede, conforme a Alexy, ser
transportada del derecho con la ayuda de la tesis de que el discurso es un caso especial del discurso práctico
general.”
36
interesse pelo tema não se discutindo mais a sua presencialidade normativa, mas a sua
significação no contexto jurídico brasileiro.
80
Nesse passo, o devido processo legal desdobra-se nas feições formal e substantiva como
matriz da segurança jurídica, tendo como corolários a ampla defesa, o contraditório e a
motivação das decisões.
Neste sentido são as lições de Dinamarco:
“O Direito Processual Constitucional põe o estudo do procedimento sob o enfoque
da garantia do devido processo legal e com isso o estudioso conscientiza-se de que
as exigências do Código constituem projeção de uma norma de maior amplitude e
mais alta posição hierárquica, sendo indispensável uma interpretação sistemática.
Daí para entender que o procedimento é um meio técnico para a efetividade do
postulado democrático da participação, o passo é pequeno e se vai chegando à
percepção das grandes linhas do que se chama justo processo (Augusto Mário
Morello), ou processo justo e équo (Luigi Paolo Comoglio).”
81, 82
Nelson Nerynior, por sua vez, destaca que:
“[...] bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of
law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiriam
aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa. É, por assim dizer, o
gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies.
[...]
Bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido
processo legal, e o caput e os incisos do art. 5º, em sua grande maioria, seriam
absolutamente despiciendos. De todo modo, a explicitação das garantias
fundamentais derivadas do devido processo legal, como preceitos desdobrados nos
incisos do art. 5º, CF, é uma forma de enfatizar a importância dessas garantias,
norteando a administração pública, o legislativo, e o judiciário para que possam
aplicar a cláusula sem maiores indagações.”
83
,
84
Daniel Francisco Mitidiero põe em relevo que:
80
LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 1999, pp. 174
e 176.
81
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. V. II. 5ª ed. São Paulo:
Malheiros Editores. 2002, p. 731.
82
Comoglio destaca as expressões equivalentes a processo “justo e équo” em diversos idiomas como: devido
processo legal, debido processo, processo equitativo, proceso justo, proceso limpio. COMOGLIO, Luigi Paolo.
Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’( modelli a confronto). In Revista de Processo. n. 90, ano 23. São
Paulo: Revista dos Tribunais. abr. – jun. 1998, p. 106. nota de rodapé nº 38.
83
NERY Junior, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8. ed. ver. ampl. e atual. com
as novas súmulas do STF e com análise sobre a relativização da coisa julgada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, – (Colão estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman; v. 21), pp. 60 e 70.
84
Em que pese o entendimento do notável Autor, o se pode negar a importância da explicitação de todos os
incisos que integram o art. 5º.
37
“Partindo de uma postura constitucional de processo, própria do formalismo-
valorativo, mostra-se fundamental a análise do devido processo legal processual
brasileiro, porque nele se encontra a disciplina mínima de nosso formalismo,
emanada diretamente de nossa Constituição, o nosso modelo constitucional de
processo civil, como observam Cândido Rangel Dinamarco e João Batista Lopes.
Cuidando o processo civil, no fundo, da domesticação do arbítrio estatal dentro do
processo, natural que a cláusula do due process of law erigida entre nós à categoria
de direito fundamental, formal e materialmente, galgue posição de destaque. O
devido processo legal processual brasileiro é o nosso modelo mínimo de processo
équo: da sua fiel consecução, pois, depende mesmo a própria obtenção da justiça
através do processo, uma vez que somente de um processo justo podem advir
decisões justas, como bem observa, entre outros, Marie-Emma Boursier.”
85
Ocorre que, diante de tamanha relevância do princípio do devido processo legal e das demais
garantias constitucionais processuais dele decorrentes, expressas, sobretudo, na ampla defesa
e no contraditório, desponta a boa-fé objetiva como norma otimizadora dessas garantias
constitucionais. Esses direitos ou garantias constitucionais processuais não são irrestritos e
o podem ser utilizados como armaduras para legitimar condutas que afrontem a boa-
objetiva dos sujeitos processuais.
Com a publicização do processo, a visão individualista e privatista do processo restou
superada por novos princípios processuais que deram nova roupagem aos institutos
processuais e à conduta a todos os participantes do processo, estabelecendo deveres a serem
observados no desenvolvimento do procedimento. Entretanto, as garantias processuais
constitucionais têm sido terreno rtil para a prática de atos descompassados com o dever de
lealdade de boa-. Conforme asseverado por Marcelo Abelha, especialmente a garantia do
contraditório ensejo a desvios de condutas processuais, visto que “fazendo uso indevido
desse princípio, e escondido nas vestes de um suposto contraditório, é que se praticam ilícitos
ou abusos processuais. Sob a alegação de que determinada conduta o poderia ser reprimida,
pois representaria uma ofensa ao contradirio, os litigantes de má-comumente invocam
este princípio para ‘legitimar’ a prática de abuso de direitos processuais. [...] é de se notar que,
sendo o processo o contraditório em movimento, o improbus litigator dele faz uso para obter
vantagens indevidas e antiéticas sob a cortina de fumaça do contradirio.”
86
Marinoni sublinha que “a ampla defesa e o contraditório, na época do direito liberal cssico,
eram pensados de maneira rígida, pois constituíam garantias de liberdade contra o artrio do
85
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma Teoria Contemporânea do Processo Civil Brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 41.
86
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Processual Civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2008, p. 258.
38
juiz, enquanto, no Estado contemporâneo, assumiram conformação elástica, por terem
passado a servir para a modelação de procedimentos adequados à tutela das novas
realidades.”
87
Em decisão paradigmática, sob a Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, unanimemente,
aquela Corte expressa essa posição:
“O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias
constitucionais voltadas apara a efetividade dos processos jurisdicionais e
administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das
regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma
exigência de fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal,
enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais.
A máxima do fair trial é uma das faces do devido processo legal positivado na
Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição voltado
para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu
pleno funcionamento, da boa-fé e da lealdade dos sujeitos que dele participam,
condição indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações
e processos jurisdicionais e administrativos.
Nesse sentido, tal princípio possui um âmbito de proteção alargado, que exige o fair
trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que
atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange
todos os sujeitos, instituições e órgão, públicos e privados, que exercem, direta ou
indiretamente, funções qualificadas constitucionalmente como essenciais à justiça.
Contrárias à máxima do fair trial – como corolário do devido processo legal, e que
encontra expressão positiva, por exemplo, no art. 14 e seguintes do Código de
Processo Civil são todas as condutas suspicazes praticadas por pessoas às quais a
lei proíbe a participação no processo em razão de suspeição, impedimento ou
incompatibilidade; ou nos casos em que esses impedimentos são forjados pelas
partes com o intuito de burlar as normas processuais.”
88
Em consonância com esse entendimento e sob a mesma fundamentação, encontra-se a decisão
proferida no julgamento do RE 529.733-1/RS. Dessa feita, a questão centrou-se em agravo de
instrumento interposto pelo INSS contra decisão que obstou o seguimento do Recurso
Extraordinário.
87
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de antecipada, julgamento antecipado, e execução imediata da
sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 47.
88
STF: RE 464.963-2/Go., 2ª Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. Decisão unânime. Julgamento em
14.02.2006, Publicação DJ 30.06.2006, Tratava-se de situação em que o patrono dos recorridos, Diretor-Geral do
Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Goiás, havia feito sustentação oral no julgamento da apelação. No
julgamento do Recurso Extraordinário foi reconhecida a nulidade dos atos processuais praticados pelo patrono
face à incompatibilidade do exercício da advocacia com o cargo de Diretor-Geral do Tribunal Regional Eleitoral,
nos termos dos arts. 4º, 27 e 28 do Estatuto da OAB. Ademais, no julgamento do RE 1999,088, DJ de 16.04.99,
que teve como Relator o Ministro Carlos Velloso, entendeu-se ser incompatível com a advocacia os cargos de
assessor de juiz e de desembargador, incompatibilidade essa assentada na ética e na moralidade pública. Na
situação em pauta, concluiu aquela Corte que o julgamento da apelação encontrava-se “contaminado por fortes
irregularidades e eventual suspicácia”, em clara afronta aos princípios da moralidade e do devido processo legal.
39
Em ação ordinária que tramitou no Juizado Especial Federal, julgada parcialmente
procedente, constou expressamente no dispositivo da decisão que as partes, se tivessem
interesse, poderiam recorrer, dentro do prazo de dez dias, a contar da intimação da sentença,
pela simples palavra ‘apelo’, não havendo necessidade de apresentar as razões e contra-razões
de apelação, as quais seriam consideradas, como remissivas, às respectivas manifestações das
partes no curso do processo, não havendo, entretanto, óbice para que, se houvesse interesse,
pudessem apresentar, no referido prazo, fundamentos suplementares. O INSS interpôs recurso
consignando tão somente a expressão ‘apelo’, desacompanhado, portanto, de razões do
recurso.
A Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Rio Grande do Sul não conheceu do
recurso por entender que a simples aposição da expressão ‘apelo’, desacompanhada das
razões e do pedido de reforma da decisão guerreada, não seria suficiente para devolver ao
juízo ad quem a matéria discutida. Ademais, no entender da Turma Recursal, os Juizados
Especiais Federais primam pela celeridade na prestação da tutela jurisdicional, o que não
coaduna com a proliferação de recursos manifestamente procrastinatórios.
O INSS manejou embargos de declaração, com fulcro nos princípios do devido processo legal
e da ampla defesa, para que fosse declarada a nulidade da parte do dispositivo da sentença que
versava sobre o procedimento para recurso, com a conseqüente abertura de novo prazo para
apresentação de razões recursais, sendo que tais embargos também não foram providos.
Nesse passo, o INSS protocolou recurso extraordinário, que não foi admitido sob a
fundamentação de ausência de pré-questionamento, fato esse que deu ensejo ao agravo de
instrumento.
No julgamento desse agravo de instrumento, o STF entendeu que, muito além da consignação
da expressão ‘apeloa discussão desbordava matéria de ordem constitucional – o princípio do
devido processo legal. Conforme destacado no voto do Ministro Gilmar Mendes, a decisão de
primeira instância “expressa e especificamente, prescreveu que a mera indicação ‘apeloseria
necessária e suficiente para instrumentalizar o recurso, com implícita reiteração do conteúdo
discursivo da peça inicial.”
89
89
AI 529.733-1/RS. STF. 2ª Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. Julg. 17.10.2006, DJU 01.12.2006, p. 097.
40
Outra não poderia ser a decisão daquela Corte senão corrigir o rumo da discussão, retomando
os trilhos do fair trial, como corolário do devido processo legal, e que como garantia de
participação leal, justa, e equânime, norteada pela boa-fé objetiva processual e que deve ser
observado por todo aparato jurisdicional.
Nesses termos, a boa-fé objetiva é reconhecida como expressão do fair trial, “projeção
concretizadora do devido processo legal”
90
, impondo um comportamento processual probo e
leal para o deslinde de um processo que tem por escopo a pacificação social materializada na
entrega de uma prestação jurisdicional justa.
O devido processo legal é o fundamento do “processo justo e équo” ou, do processo
limpo”.
91, 92
Ora, sendo a boa-objetiva uma das expressões do fair trial, resta inafastável a
relevância dessa cláusula geral no âmbito do Direito Processual Civil para a densificação do
due process of law.
Essa decisão proferida pela Suprema Corte pátria vem dar o tom e denotar a importância da
norma expressa no art. 14, inciso II, do Código de Processo Civil, que, na aplicação laboriosa
dos Tribunais pátrios, tem levado à construção de modelos jurídicos jurisprudenciais que m
representar o conteúdo da cláusula geral boa- objetiva no Direito Processual Civil.
A boa-fé objetiva é norma cogente
93
que rege as relações endoprocessuais e que possibilita o
desenvolvimento de um processo justo e équo. Anderso Schereiber e em relevo que o
nemo potest venire contra factum proprium expressa um interesse normativo po assim dizer
público, cogente, consubstanciado na tutela da confiança, na proteção da boa-fé objetiva e na
concretização dos valores constitucionais da solidariedade social e da dignidade da pessoa
90
Ext 633 / CH - Republica da China Extradição, Relator: Min. Celso de Mello, Julgamento:
28/08/1996 ,Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação
,
DJ 06-04-2001 PP-00067. Expressão utilizada pelo
Ministro Celso de Mello na redação do seu voto: “O direito ao fair trial que constitui projeção concretizadora
do postulado concernente ao devido processo legal [...].”
91
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’( modelli a confronto). In Revista de
Processo. n. 90, ano 23. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr. – jun. 1998, p. 148.
92
No original: “[...] per i grande valori di civilitá giuridica, insiti nella blasonate tradizioni del ‘due process of
lawangloramericano, sui qualli si fonda anche il modello internazionale di processo justo e èquo.”
93
Ao analisar a boa-fé objetiva no Projeto do novo Código Civil Junqueira assevera que o art. 421 do CC é
insuficiente por várias razões. Uma delas é porque não se sabe se se trata de norma cogente ou norma
dispositiva. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto do
Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais. ano 89, v. 775. São Paulo:
Revista dos Tribunais. maio de 2000, p. 12.
41
humana
94
. Na concepção de Ovídio Baptista da Silva o preceito contido no art. 14, inciso II,
do CPC é uma manifestação do princípio geral de boa-fé objetiva que se constitui, mais do
que um princípio, é o verdadeiro oxigênio sem o qual a vida do direito seria impossível.
95
Tomando de empréstimo a expressão formulada por Dinamarco em “A nova era do Processo
Civil” pode-se dizer que boa-objetiva também busca no processo civil “satisfazer o senso
do justo e do razoável [...] Ousar sem o açodamento de quem quer afrontar, inovar sem
desprezar os grandes pilares do sistema”.
96
É esse “fenômeno espantoso”, denominado boa-fé objetiva, que no seu multissignificativo
conteúdo possibilita a concretização do fair trial, do fair play, que será mais bem desnudado
nas páginas que se seguem.
94
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra
factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 261.
95
SILVA, Ovídio Araújo Baptista. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, v. I. p.110.
96
DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 31.
42
Capítulo II - A Teoria dos Modelos de Miguel Reale e sua Aplicação para Identificar um
Modelo Jurisprudencial de Boa-Fé Objetiva no Processo Civil.
Sumário: 2.1. Notas introdutórias 2.2. A construção dos modelos jurídicos 2.3.
Classificação dos modelos jurídicos 2.4. Dinâmica dos Modelos Jurídicos 2.5. A opção
por modelos abertos
2.1. Notas Introdutórias.
Haveria um modelo de boa-objetiva na jurisprudência brasileira? Para o deslinde dessa
questão mister se faz compreender a Teoria de Miguel Reale concernente à concepção dos
modelos jurídicos jurisprudenciais.
A Ciência Jurídica assume nova feição à medida que os fatos, os valores e as normas, que
comem a vida do direito, são alterados de modo inter-relacional. Exemplo disso, são as
repercussões ocorridas nas fontes do direito advindas das transformações potico-econômicas
que mudaram o cenário das relações Estado-Sociedade ao longo da história. A mudança do
objeto (o direito) e também a forma de investigá-lo (a ciência jurídica) decorre, por exemplo,
da prioridade atribuída a cada um desses fatores em relação aos outros, bem como da
correlação dialética entre os mesmos.
1
Para o entendimento dessa relação dialética e dinâmica na linha do tempo, Miguel Reale
destaca a importância das idéias de Benedetto Croce para a “compreensão histórica, ou, por
melhor dizer, historicista do Direito, a cuja luz este se apresenta como um ordenamento
concreto em constante mutação, isto é, não como simples conglomerado sistemático e
logicamente coerente de normas ou proposições normativas, mas antes como realidade social
viva, em pleno desenvolvimento.”
2
1
REALE, Miguel. Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol.
LVIII. 1982, p. 791.
2
Idem. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo: Sugestões
Literária. 1981, p. 2. Destaques no original.
43
Segundo Reale, para Croce “toda regra é a ‘previsão de uma classe de comportamentos
futuros”
3
Nesse panorama, Reale põe em destaque que:
“[...] nessa nova conjuntura histórica, sentiu-se a necessidade de uma nova
Dogmática Judica, revelando-se insuficiente uma solução redutível a meras regras
hermenêuticas, ou à simples valorização desta ou daquela outra fonte tradicional:
fortaleceu-se, em suma, cada vez mais a exigência do repensamento e revisão da
teoria das fontes, para atender-se através de estruturas normativas plásticas e
pluralistas, aos novos e diversificados objetivos sociais e políticos.”
4
Tal fato culmina, segundo Reale, com um novo enfoque no conceito de fontes e de estrutura
normativa, havendo o superamento do conceito de fonte material, “que deu lugar
definitivamente a distintos conceitos como os de fundamento ético, sociológico, histórico etc.
do Direito. Superava-se, em suma, o horizonte legislativo, para nos elevarmos ao horizonte
normativo.Reale chega a essa conclusão ao analisar a Teoria Pura do Direito de Kelsen.
Como ele mesmo adverte, pode parecer paradoxal “que num contexto histórico tão denso de
elementos factuais e axiológicos” destacar “uma doutrina que reivindicou não o Direito Puro
[...] mas a Ciência Jurídica pura”. Entretanto, Reale ressalta que, para ele, a inovação
fundamental de Hans Kelsen, nesse universo, foi a unificação do conceito lógico de norma,
abrindo lugar para uma nova e mais rica abrangência do campo normativo”.
5
Reale aponta como primeiro mérito de Kelsen a mudança de foco na teoria das fontes, que
deixa de ter a lei como ponto de referência e passa a abarcar distintas espécies normativas tais
como as decisões judiciais. Aquilo que era formalmente’ ou ‘essencialmente’ jurídico foi
confiado aos juristas.
6
De acordo com Reale, “[...] essa redução concomitante das leis, dos costumes jurídicos e das
decisões judiciais, com acréscimo das estipulações contratuais, ao denominador comum da
proposição jurídica [...]
7
trouxe um novo enfoque para a teoria das fontes que passa a ter
implícito em seu conceito o de “estrutura normativa”.
3
REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo:
Sugestões Literária. 1981, p. 10.
4
REALE, Miguel. Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol.
LVIII. 1982, p. 795.
5
Ibidem. pp. 795- 796. Todos os destaques no original.
6
Ibidem. p. 796.
7
Ibidem. p. 796. Todos os destaques no original.
44
Segundo Reale, “nos donios das ciências jurídicas, a teoria das estruturas culmina
necessariamente, numa teoria dos modelos, entendido como ‘estrutura normativa’.”
8
As estruturas normativas, agora, precisam ser conformadas de modo a que tenham uma
aplicação prospectiva, ou seja, a aplicação dessas estruturas precisa atender a demandas
futuras. Para tal concepção, Reale sustenta que a Ciência Jurídica precisa ser visualizada
segundo a Teoria dos Modelos”.
“[...] a teoria das fontes deve ficar adstrita ao momento genético das ‘estruturas
normativas’, as quais condicionam a existência de diversos ‘modelos jurídicos’.
Não se trata, a bem ver, de substituir as fontes pelos modelos, mas de correlacioná-
los a partir da observação fundamental de que as fontes são retrospectivas (volvem-
se para a origem da norma) enquanto que os modelos são prospectivos: referem-se
à norma enquanto esta se atualiza, assumindo distintos valores semânticos, ainda
que o ocorra qualquer mudança no seu enunciado verbal.”
9
Ao analisar a acepção dos termos ‘estrutura’ e ‘modelo’, Reale destaca que “[...] uma
estrutura adquire a qualidade de modelo quando, além de representar, unidiversificadamente,
dado complexo de significações, se converte em razão de ser ou ponto necessário de partida
para novos juízos futuros [...] ou, então, a novas valorações, como acontece no plano das
ciências humanas, no do Direito, em particular.”
10
No que tange às fontes formais do direito e os modelos jurídicos, Reale aduz que os modelos
jurídicos apresentam-se como uma nova perspectiva para a teoria das fontes formais do
direito, uma vez que a sociedade contemporânea, dinâmica e plural tal qual se apresenta,
reclama por estruturas-modelos que venham a abarcar as diversas e complexas questões que
afloram, bem como que atendam às “exigências de unidade metodológica da Ciência.”
11
.
Importa ressaltar que os modelos jurídicos não substituem as fontes antes lhes dão o conteúdo
na concretização da experiência social. A retrospectividade das fontes jurídicas está no fato de
as mesmas ficarem adstritas ao momento genético, momento da criação, enquanto que os
modelos jurídicos são prospectivos, visto que a sua dinamicidade acompanha a dinamicidade
das mutações ocorridas na sociedade.
8
REALE Miguel. O Direito como experiência: introdução à epistemologia judica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 147.
9
REALE, Miguel. Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol.
LVIII. 1982, p. 797.
10
Idem. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 7.
11
Op. cit. p. 167, nota 8.
45
Nesse sentido, Reale afirma que:
“[...] o conceito de ‘modelonos põe perante um momento autônomo da vida do
direito, quando a experiência jurídica se expande ou se projeta em formas objetivas
ou positivas, consubstanciando-se em estruturas racionais, nas quais os elementos
da estrutura social são focalizados segundo um repertório ou classe de
comportamentos válidos numa totalidade de sentido.
12
Ao traçar um paralelo entre as fontes jurídicas e os modelos jurídicos Reale destaca que:
“[...] o conceito de fonte jurídica é retrospectivo, enquanto o de modelo jurídico é
prospectivo; - na teoria das fontes prevalece o aspecto técnico-formal da vigência
das normas, ao passo que na dos modelos predomina o seu caráter operacional, em
função da eficácia dos comportamentos; a primeira ordena-se segundo uma escala
linear e hierárquica, que desce da lei até a cusula negocial, enquanto, à luz da
segunda, constituem-se e movem-se os modelos jurídicos, os quais se ordenam, de
maneira plural, na esfera do modelo legal, este sempre em expansão, compondo
todos, em conjunto, o macromodeo do ordenamento; - na teoria das fontes, as
normas legais fixam os limites da validade formal das fontes secundárias, enquanto,
na teoria dos modelos, o significado dos modelos legais é potencializado pelo das
normas subordinadas e vice-versa, ocorrendo as mutações do sentido de um e de
outros em uma correlação funcional; a teoria dos modelos, em suma, expressa a
experiência jurídica em toda a sua concreção e dinamicidade, atendendo, além do
mais, à dupla exigência do saber científico de operabilidade e comunicação.
13
Pode-se inferir que na dinamicidade da sociedade que exige uma pluralidade de soluções
sociais, poticas e jurídicas a teoria dos modelos jurídicos vem atender à exigência dessa
articulação entre a ciência jurídica e as relações ocorrentes no seio social. Os modelos
jurídicos têm essa notável aptidão de moldar essa multiplicidade de situações da estrutura
social ao modelo legal numa relação harmônica de operabilidade e ordenação mesmo com o
transcorrer do tempo.
Conforme assinalado por Reale, os modelos jurídicos representam o conteúdo das fontes
como dever-ser que se concretiza na experiência social, correlacionando-se com conjunturas
factuais e axiológicas.”
14
Com o dinamismo da sociedade atual, em que novas relações emergem com velocidade cada
vez maior, as estruturas construídas precisam ser revistas com freqüência para abarcar as
novas exigências que afloram cotidianamente no seio dos grupos sociais. A ciência do direito
12
REALE, Miguel. O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 172.
13
Ibidem., p. 173.
14
REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva.
1994, p. 31.
46
o pode quedar-se apática a essas novas realidades, antes precisa encontrar contornos que
assegurem perfeita adaptabilidade às peculiaridades da experiência dinâmica.
2.2. A Construção dos Modelos Jurídicos
No contexto das relações sociais os indivíduos subordinam-se a modelos de comportamentos
estipulados tanto por regras costumeiras, cristalizadas na convivência do grupo, quanto por
normas estabelecidas pelo ordenamento jurídico estatal. Independentemente de sanção
heterônoma, portanto, tais modelos impõem comportamentos almejados pelo grupo social aos
que se destinam. Formulando uma análise sociológica, Reale aponta que:
“Os indivíduos que se situam no âmbito de uma estrutura social absorvem, uns
mais outros menos, os standards ou esquemas de ação esperados ou desejados no
seio de seu grupo de tal modo que tais modelos se tornam forças efetivas atuantes
no comportamento de cada um, independentemente de sanções externas.
Constituem-se assim ‘sistemas de expectativas normativas’, com diversos graus de
eficácia, a às de tipo mais estável e solidário, dotadas de uma ‘base de
legitimidade’, admitida ou reconhecida pelos participantes, como se com as
instituições, ou modelos institucionais.”
15
Nesse contexto, vale trazer os apontamentos de Marcela Vareo sobre as lições de Manuel
Atienza e Juan Ruiz Manero :
“A terceira aproximação consiste em considerar a norma não em termos de casos
ou soluções, nem em termos de razões de agir, mas em conexão com os interesses e
as relações de poder existentes na sociedade. De um lado, a norma jurídica pode ser
considerada como o resultado ou o efeito de determinadas relações sociais, de outro
lado, as normas jurídicas modelam as relações intersubjetivas atribuindo poderes e
protegendo interesses de alguns sujeitos em relação a outros. Enfim, o poder que as
normas jurídicas colocam à disposição de certos indivíduos (ou grupos) é
empregado para modificar (ou, em geral, para incidir sobre) as próprias relações
sociais. [...]”.
16, 17, 18
15
REALE, Miguel.O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 153.
16
ATIENZA, Manuel, MANERO, Juan Ruiz. Tre approci ai principi nella vita dell diritto in P.
COMANDUCCI, R. GUASTINNI (a cuta di), Analisi e diritto. 1993, apud VAREJÃO, Marcela. I Modelli
Giuridici e L’ermeneutica in Miguel Reale in Rivista internazionale de filosofia del diritto. Milão: Giuffrè
editore, V. LXXII, série IV, out./dez. 1995, pp. 832-833, nota de rodapé n. 6.
17
No original: “Il terzo approccio consiste nel considerare le norme non in termine di casi e soluzione di ragioni
per agire, ma in connessione com gli interessi e le reazione di potere esistenti nella società. Da um lato, le
norme giuridiche possono considerarsi come il resultato o l’effetto di determinati rapporti sociali; dall’altro, lê
norme giuridiche modellano lê relazioni iersoggetive attibuendo poteri e proteggendo interessi di alcuni soggeti
nei confronti di altri. Infine il potere che lê norme giuridiche mettone a disposizione di certi indivudui (o gruppi)
è da loro impigato per modificare (o, in generale, per incidere su) i propri rapporti sociali. [...].”
47
Essa relação dinâmica dos modelos jurídicos com as mutações sociais foi inicialmente
apontada pelos jurisconsultos romanos ao tomarem plena consciência da existência de
formas de conduta reiteradamente seguidas por uma comunidade e como tais, suscetíveis de
serem objeto de uma disciplina normativa.
19
À luz dos modelos “as prescrições jurídicas
adquirem objetividade transpessoal, correlacionando-se entre si harmonicamente, como
expressões dos valores comuns de convivência”.
20
Nesse sentido, Reale destaca que:
“[...] a pré-determinação jurídico-normativa da conduta humana pressupõe a
correlação de dois valores aparentemente contrários, que consistem, de um lado, na
liberdade de agir e, de outro, na subordinação da ação a determinados parâmetros,
considerados obrigatórios em virtude de uma opção constante ou relativamente
duradoura no quadro de análogas conjunturas (e é o que ocorre na esfera do Direito
costumeiro) ou, então, por ter havido uma ‘opção de poder em função de
determinado resultado considerado legítimo e reclamado pelo interesse público.”
21
Dentro deste contexto, existem estruturas estáticas, construídas, que não atendem às
expectativas sociais o que ime a criação de modelos que indicam a direção desejável da
ação, sob a forma de fins e standards de comportamentos.”
22
No campo da experiência jurídica Reale salienta que as estruturas sociais apresentam-se como
‘sistemas de modelos’ compreendidos como “estruturas normativas que ordenam fatos
segundo valores, numa qualificação tipológica de comportamentos futuros, a que se ligam
determinadas conseqüências.”
23, 24
18
A primeira e a segunda aproximação são apontadas por Reale para quem as normas precisam ser dotadas de
obrigatoriedade e devem explicitar não apenas os comportamentos, mas também as competências.
19
REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova Fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, p. 164.
20
Idem., Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva.
1978, p. 18.
21
Op. cit., pp. 164-165, nota 18.
22
Reale lança mão dos ensinamentos de Parsons para descrever a formação das estruturas, para quem “o
conceito de estrutura importa no de função, cujo papel crucial é fornecer o critério e a importância de fatores
dinâmicos e dos processos, no interior do sistema: ‘a idéia de função, escreve ele, implica o conceito do sistema
empírico como um sistema em movimento. A sua estrutura é construída por um sistema de modelos
determinados que a observação empírica revela como tendentes a ser conservados, dentro de certos limites, ou,
segundo uma interpretação mais dinâmica, como tendentes a se desenvolver segundo um modelo empiricamente
constante (...).’’ PARSONS, Talcott. La théorie sociologique systématique et sés perspectives in La Sociologie
au Xxe Siècle, p. 49. apud REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica.
São Paulo: Saraiva. 1968, pp. 152-153.
23
REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 162.
24
Nesse mesmo sentido em REALE, Miguel. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e
ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p.17.
48
Na teoria realiana “Os modelos jurídicos se estruturam graças à integração de fatos e valores
segundo normas postas em virtude de um ato de escolha e de prescrição (ato decirio) [...]
que pode ser tanto do legislador ou do juiz, como resultar de estipulações fundadas na
autonomia da vontade.
”25
A elaboração de modelos está intrinsecamente relacionada à experiência “num trabalho
rigoroso e delicado de qualificação tipológica, que representa o cerne da pesquisa
científica.”
26
Trata-se de uma análise dinâmica de fatos concretos por meio da qual se busca
conhecê-los empiricamente e revelá-los como tendentes a serem conservados em
acontecimentos futuros.
“[...] é indispensável que o paradigma normativo seja isomórfico em relação à
experiência social, e que como tal se mantenha através das mutações operadas nela,
compreende-se a exigência metodológica de uma qualificação tipológica da
conduta humana, segundo critérios cada vez mais objetivos e seguros.”
27
Os modelos jurídicos são fruto da experiência jurídica. Não se concebe modelos jurídicos
divorciados da realidade. Eles são a expressão das soluções normativas que equacionam fatos
e valores, num trabalho engenhoso do jurista de fazer a conciliação destes com a norma
levando-se em conta o momento em que tal ocorre, ou seja, em conformação com os
paradigmas vigentes. Na vida dos modelos jurídicos, conforme concebe Reale, [...] o valor
opera sempre como mediador entre o fato e a norma, não se inserindo como componente de
nenhum desses dois termos.”
28
A construção de modelos jurídicos vem, pois, ao encontro da necessidade da desconstrução de
institutos vigentes, com a mudança de paradigmas e maior aderência à realidade a qual se
destina. “Ao falar-se em modelo, no âmbito da ciência do direito [...] se deve pensar em algo
que implica, de per si, a projão de comportamentos intersubjetivos referíveis à prefiguração
normativa positivada, com a correlação necessária entre a norma e situação normada, sentido
e efetividade de sentido, o que põe em realce a sua conotação ética.”
29
25
REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 163.
26
Ibidem., p. 165.
27
Ibidem., pp. 166.
28
REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, p. 168.
29
Op. cit., pp. 177-178, nota 25.
49
E prossegue Reale: “Que fizeram, na realidade, os legisladores e juristas, séculos a fio, senão
plasmar, em estruturas normativas, renovadas porções ou momentos da vida humana? E, na
prática, que tem sido a atividade dos advogados e dos juízes senão um permanente cotejo
entre situações concretas e os modelos objetivados nos códigos e nas leis, nos precedentes
jurisprudenciais, nas cláusulas dos testamentos e dos atos negociais?”
30
Reale exorta que “[...] já não se pode conceber a atividade jurisdicional divorciada dos
modelos teóricos que a Ciência Jurídica constitui, interpretando de maneira sistemática as
normas legais, à luz de fatos e valores originais ou emergentes de estruturas sociais.
31
Para melhor compreensão, ele esclarece a relação existente entre estrutura e modelo no
mundo jurídico:
Estrutura é uma ordenação de elementos interdependentes em função do todo, e
de meios correlacionados numa unidade de fins.”
[...] Se dada estrutura serve de
base a uma série ordenada e conjugada de atos tendentes a alcançar certos objetivos
visados, dizemos que ela tem o valor de um modelo. [...]”
Modelo é, pois, uma estrutura paradigmática que implica as diretrizes de ação
indispensáveis à consecução do objetivo proposto ou querido.
32
“[...] quando uma estrutura social adquire valor de paradigma, pondo-se como
padrão ou razão de comportamentos futuros, ela assume as características de uma
estrutura normativa, ou seja, de um modelo social (político, jurídico etc.)
Todo modelo social, e o jurídico em particular, é uma estrutura dinâmica e o
estática: é-lhe inerente o movimento, a direção no sentido de um ou mais fins a
serem solidariamente alcançados.
33
Para compreender a concepção da palavra “paradigma”, Reale traz à colação os ensinamentos
de T. Kuhn, para quem paradigma é a “idéia mestra segundo a qual se torna necessário
proceder a uma revisão de muitas teses ávidas como assentes, quer para substituí-las, quer
para retificá-las.”
34, 35
30
REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 178.
31
Idem., Jurisprudência e doutrina In Questões de Direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 19.
32
Ibidem, p. 19.
33
Ibidem, p. 20. Todos os destaques no original.
34
Citação de Miguel Reale em Paradigmas da cultura contemporânea. São Paulo: Saraiva. 1996, p. IX.
35
“No caso do direito (o direito posterior à Revolução Francesa) e isso é senso comum – aquele paradigma do
século passado, da lei e do juiz autômato, da lei geral universal, em que o juiz não tinha papel algum, ficou
ultrapassado. Veio, então, um segundo paradigma, no qual o juiz ganhou um papel importante – o que é
revelado, inclusive, pela quantidade de trabalhos de hermenêutica – e que trouxe mudanças no tipo de solução. E
é isso que Kuhn diz a propósito do paradigma: que paradigma é uma espécie de modelo de problema e de
solução que os operadores de uma determinada área de conhecimento usam para as questões com que se
defrontam. O paradigma, na visão de Kuhn, é um modelo teórico que serve a um grupo,, que se dedica a algum
tipo de conhecimento, para solucionar os problemas que se apresentam.” AZEVEDO, Antonio Junqueira de.
Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto do Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos
contratos. Revista dos Tribunais. ano 89, v. 775. São Paulo: Revista dos Tribunais. maio de 2000, p. 16.
50
Não sem razão que Reale sempre põe em evidência que:
“[...] os processos e métodos de criação do direito são retrospectivos, visto como
apontam para os fatos e valores passados que condicionaram o aparecimento das
regras que devem ser aplicadas. Os modelos jurídicos, ao contrário são
prospectivos, uma vez que representam, em síntese, uma previsão de determinado
comportamento futuro, considerado necessário toda vez que determinado fato vier a
acontecer: o modelo visa, pois, à realização de um ato futuro, exigido em razão do
bem comum, cujo valor objetivo e atualizado prevalece sobre a intenção originária
do órgão que o instaurou.”
36
“[...] normas judicas e modelos jurídicos não são termos sinônimos, sendo estes
espécies, ou melhor, especificações ou tipificações daquelas. Pode um modelo
jurídico coincidir, às vezes, com uma única norma de direito, quando esta surge
como uma estrutura, denotando e conotando, em sua formulação, uma
pluridiversidade de elementos entre si interligados numa unidade lógica de sentido,
mas geralmente, o modelo jurídico resulta de uma pluralidade de normas entre si
articuladas compondo um todo irreduvel às suas partes componentes.”
37
“[...] os modelos jurídicos representam uma nova linguagem expressiva do
conteúdo normativo das fontes do direito, ou, por outras palavras, que o conteúdo
normativo das fontes é melhor captado quando compreendido no sentido de
modelos, os quais constituem sempre como estruturas postas em razão dos fins que
devem ser realizados, sendo-lhes, pois, inerente um sentido prospectivo de dever-
ser (Sollen), tal como é o próprio direito, em que pesem as tentativas fisicalistas de
reduzi-lo apenas ao que é (Sein).
38
Segundo Reale a característica mais marcante dos modelos jurídicos é a sua natureza
prescritiva [...], ou seja, a sua específica e precisa função prática de reger, de maneira
objetiva, atos futuros.”
39
“[...] os modelos jurídicos [...] são [...] o resultado da ordenação racional do
conteúdo das normas reveladas ou formalizadas pelas fontes do direito, para atender
aos característicos de validade objetiva autônoma e de atualização prospectiva
dessas normas.”
40
[...]
“[...] há um sentido prospectivo ou vetorial em todo modelo jurídico, pois [...] este é
sempre de natureza normativa, e toda norma é emanada para reger atos ou
acontecimentos futuros.
41
Ao usar a expressão ‘modelo jurídico’ Reale adverte que não está a se referir a “nenhum
protótipo ideal, em algo que se ponha como alvo superior a ser atingido. Os modelos jurídicos
são antes modelagens práticas da experiência, forma do viver concreto dos homens, podendo
36
REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do
direito. São Paulo: Saraiva. 1978, pp. 54-55.
37
Idem., Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, pp.
29-30.
38
Ibidem, p. 30
39
Ibidem, p. 37.
40
Ibidem. p. 40.
41
Ibidem, p. 48.
51
ser vistos como estruturas normativas de fatos, segundo valores, instauradas em virtude de um
ato concomitante de escolha e prescrição.”
42
Tendo por marco que se o direito existe, é porque as atividades sociais se desenvolvem
segundo determinados esquemas de comportamento suscetíveis de previsão, devendo sobrevir
conseqüências iguais ou análogas toda vez que se verificarem atos qualificáveis devido ao seu
enquadramento em estruturas iguais ou análogas [...]
43
Reale reafirma a Teoria dos Modelos
Jurídicos contemporânea segundo a qual “a experiência do direito se desenrola segundo
modelos ou estruturas normativas, sendo umas de natureza prescritiva e outras de caráter
doutrinário ou dogmático. Os casos concretos, portanto, direta ou indiretamente, subsumem-
se a classes de conduta previamente previstas ou enquadráveis em esquemas análogos, graças
à contribuição mediadora e criadora do intérprete.”
44
Miguel Reale põe em relevo que “as estruturas sociais apresentam-se sob a forma de
estruturas normativas ou sistemas de modelos
45
para as quais a hermenêutica jurídica
propõe soluções jurídicas que “acompanham pari e passu os processos de transformação da
sociedade e do Estado.”
46
Essa dinamicidade da revelão do conteúdo do direito emana dos
valores histórico-culturais de cada época fixando as normas e os limites da exegese do Direito
de cada época.
47
“[...] toda Hermenêutica Jurídica é sempre expressão da estrutura histórico-
cultural na qual ela se insere e se desenvolve, podendo e devendo ser apreciada no
respectivo contexto.
48
Para a perfeita compreensão e alcance dos conteúdos normativos, faz-se mister fixar o
momento ao qual os mesmos se destinam, uma vez que “a clareza do Direito é uma categoria
42
REALE, Miguel.Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol.
LVIII. 1982, p. 798.
43
REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo:
Sugestões Literária. 1981, p.13.
44
REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo:
Sugestões Literária. 1981, p. 13.
45
Idem. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva.
1978, p.17.
46
Idem. Para uma hermenêutica jurídica estrutural In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo:
Saraiva. 1978, p. 72.
47
Ibidem, p. 72.
48
Ibidem, pp. 74-75.
52
histórica, variável segundo a posição do intérprete, em função da superveniência de novos
fatos e novas tábuas de valores.”
49
“Modelos jurídicos são, em suma, os que surgem na experiência jurídica como
estruturação volitiva do sentido normativo dos fatos sociais; modelos do Direito ou
dogmáticos são estruturas teoréticas, referidas aos modelos jurídicos, cujo valor
eles procuram captar e atualizar em sua plenitude. Em ambas as hipóteses, todavia,
por mais que se distingam os objetivos que os põem in esse, uma nota comum,
que é a natureza operacional própria dos instrumentos de vida e convivência
humana, governando tanto a intencionalidade volitiva dos modelos jurídicos como
a intencionalidade teorético-compreensiva dos modelos dogmáticos.”
50
[...]
“Elaborar um modelo jurídico é, por conseguinte, um trabalho de aferição de dados
da experiência para a determinação de um tipo de comportamento não possível,
mas considerado necessário à convivência humana. [...] entre o modelo jurídico
preferido ou reconhecido pela experiência deve haver uma correspondência
isomórfica, como condição de seu êxito operacional ou de sua efetividade. De certo
modo, por presumir-se que o modelo jurídico corresponda a um conjunto
motivacional fundado na análise objetiva de fatos sociais, como paradigma de
comportamentos normalmente previsíveis, proclama-se entre outras razões, a
obrigatoriedade universal do direito, não se admitindo, em regra, a ignorantia juris
como excusa de seu não-adimplemento.”
51
A construção dos modelos jurídicos relaciona-se diretamente com as exigências que emergem
da realidade social devendo haver uma perfeita imbricação entre as relações intersubsujetivas
e as estruturas normativas numa modelação prospectiva a qual os comportamentos devem se
conformar.
Os modelos jurídicos possuem como característica natural e própria a plasticidade, que lhes é
inerente em razão de serem instrumentos que expressam as estruturas sociais, que exigem de
per si dinamicidade.
Nesse cenário, os modelos jurídicos são construções representativas da aliança entre o
conteúdo normativo e a realidade social, numa relação dinâmica e inter-relacional, albergando
as mutações tanto de sentido quanto de valores que venham a emergir da realidade social. Os
modelos jurídicos, em razão dessa plasticidade e dessa prospectividade, mantêm-se sempre
atuais, projetando-se ou expandindo para estarem adaptados à realidade, fato esse que os
fazem sobrepujar as fontes.
49
REALE, Miguel. Para uma hermenêutica jurídica estrutural In Estudos de filosofia e ciência do direito. São
Paulo: Saraiva. 1978, p. 76.
50
REALE, Miguel. Para uma hermenêutica jurídica estrutural In Estudos de filosofia e ciência do direito. São
Paulo: Saraiva. 1978, p.18.
51
Idem. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva.
1978, p. 20.
53
2.3. Classificação dos Modelos Jurídicos
Reale e em realce a diferenciação necessária entres as fontes do direito e as estruturas
jurídicas representadas pelos modelos jurídicos. Enquanto o conceito de fonte é retrospectivo
os modelos jurídicos são prospectivos e podem possuir classificações distintas, em função das
fontes das quais promanam, em legais, jurisdicionais, consuetudinários e negociais.
Entretanto, os modelos jurídicos o ficam vinculados às fontes que lhes deram origem, pois
precisam estar continuamente adaptados à multiplicidade dos fatos sociais.
52
Segundo a teoria realiana, os modelos de direito podem ser classificados em duas espécies: os
modelos dogmáticos ou hermenêuticos, de caráter puramente teórico; e os modelos jurídicos
(stricto sensu), que possuem caráter prescritivo e obrigatório. Nestes, “existe a previsão ou a
prefiguração de uma ‘ordem de competências’, ou, então, de uma ‘ordem de conduta’, estando
sempre determinadas as conseqüências que advêm de seu adimplemento, ou de sua
violação.
53
Os modelos, lato sensu, em razão dessa natureza prospectiva, permitem uma visão antecipada
dos resultados a serem alcançados por meio de uma seqüência ordenada de medidas ou
prescrições.
54
“Cada modelo expressa, pois, uma ordenação lógica de meios e fins.”
55
Reale destaca que “modelo jurídico pode se expresso por uma única regra de direito, ou por
um conjunto de regras interligadas [...] : em ambos os casos, porém, há sempre uma ‘estrutura
normativa’ constituindo uma unidade de fins a serem atingidos, em virtude da decisão tomada
pelo emanador do modelo.”
56
Os modelos podem ser classificados como modelos jurídicos e modelos dogmáticos. Os
modelos jurídicos veiculam uma diretriz a ser seguida sendo, pois, prescritivos. Entretanto, a
sua prescritibilidade não se relaciona com vinculabilidade. Por prescrição deve-se entender,
dentre outros, os seguintes significados:
52
REALE, Miguel. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São
Paulo: Saraiva. 1978, p. 23.
53
REALE, Miguel. Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol.
LVIII. 1982, p. 798.
54
Ibidem., p. 797.
55
Ibidem., p. 798.
56
Ibidem., p. 798.
54
“[...] impositivo, que vincula o destinatário a único esquema de conduta; o
interpretativo, que determina o significado obrigatoriamente atribuível a um
dispositivo legal, o programático, que abre um leque de possibilidades de ação
segundo um plano traçado de maneira genérica; o dispositivo, que prevê uma
solução típica, aplicável na hipótese de não ter sido prevista outra pelos
interessados, ou ser inviável a via por eles escolhida etc.”
57
os modelos dogmáticos ou hermenêuticos “[...] são, fundamentalmente, estruturas
teóricas’, às quais cabe, de maneira primordial, a função interpretativa dos mencionados
modelos prescritivos, bem como dos processos de sua aplicação eficiente e justa.
58
Judith
Martins-Costa explica que a elaboração dos modelos dogmáticos ou hermenêuticos é
doutrinária e “cuja força é indicativa, argumentativa e persuasiva”.
59
Ao traçar a diferença entre modelos jurídicos prescritivos e modelos jurídicos dogmáticos
Reale assevera que “os primeiros dotados de imperatividade, como estruturas ou formas de
poder, originário ou derivado (modelos legais, costumeiros, jurisprudenciais e negociais) e os
segundo correspondentes a esquemas doutrinários não-cogentes, cuja função consiste em
dizer o que os modelos jurídicos significam e quais conseqüências eles devem resultar ‘in
concreto’.”
60
Na jurisprudência pátria, entretanto, constata-se uma forte influência do
bartolismo, referência feita ao português Bartolo de Saxoferrato, ao invocar a doutrina na
construção das decisões. Judith Martins-Costa destaca que “entre nós os juízes recorrem, em
suas decisões a largas citações da doutrina, nacional ou estrangeira. Por esta via, os modelos
doutrinários, largamente aceitos pela jurisprudência, são convertidos em modelos jurídicos
jurisprudenciais, estes sim marcadamente prescritivos, graças ao poder constitucionalmente
conferido ao juiz [...]”
61
.
Os modelos jurisdicionais são resultantes “do poder jurisdicional caracterizado pela
congruência de uma multiciplicidade de decisões judiciais.
62
São construídos na práxis
57
REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
pp. 180-181.
58
REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 180.
59
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale)
in Cadernos do Programa de Pós-Graduão em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 350.
60
REALE, Miguel. Jurisprudência e doutrina In Questões de direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p.
18. Destaques no original.
61
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale)
in Cadernos do Programa de Pós-Graduão em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 352.
62
REALE, Miguel. Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária. 1994, p. 31.
55
jurídica no incansável ofício dos juízes de interpretar as soluções normativas e aplicá-las ao
caso concreto.
2.4. Dinâmica dos Modelos Jurídicos
Os modelos jurídicos são de extrema importância na prestação da tutela jurisdicional, pois
como afirma Reale “o modelo jurídico pode ser tanto uma norma como um conjunto de
normas, desde que haja uma estrutura normativa que represente uma unidade de fins a ser
atingida, como síntese das decisões tomadas, o que pressupõe uma forma de poder de
decidir.”
63
Nesse passo os modelos jurídicos o são nenhum protótipo ideal ou como um
alvo a ser atingido, “são antes modelagens práticas da experiência, formas do viver concreto
dos homens”.
64
“[...] são antes estruturas normativas talhadas na concretitude da experiência
humana. São formas típicas plasmadas em contacto permanente com a vida humana, mudando
ou desaparecendo em função dos fatos e valores que nela operam.”
65
Corroborando esse entendimento, Reale afirma que “[...] quando se fala em modelo, na
Epistemologia contemporânea, o se pensa em um protótipo ou modelo ideal, em termos
platônicos ou mesmo weberianos, mas sim em uma estrutura que compendia sinteticamente as
notas identificadoras ou distintivas de dado segmento da realidade, a fim de ter-se dele uma
base segura de referência no plano científico.”
66
Seguindo essa compreensão “o modelo
jurídico [...] indica [...] o fim ou os fins concretos que se inserem no dever ser do Direito
correspondente ao complexo de regras objetivadas ou formalizadas segundo os requisitos
exigidos pelo ordenamento jurídico para que se possa falar em fonte de Direito.
67
Reale ressalta, entretanto, que quando se refere aos modelos jurídicos, no âmbito da ciência
do Direito, “sem os considerar meros esquemas gicos representativos da realidade social,
nem arquétipos ideais a serem alcançados [...]” ele está “[...] tratando dos modelos jurídicos
63
REALE, Miguel. Estrutura e fundamento da ordem jurídica In Estudos de filosofia e ciência do direito. São
Paulo: Saraiva. 1978, pp. 26-27
64
Ibidem, p. 27.
65
Ibidem, p. 28.
66
Idem., Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 37.
Nesse mesmo sentido em Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. 1994, p. 32.
67
REALE, Miguel. Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária. 1994, p. 32.
56
enquanto elementos operados pelo jurista em sua faina de juízes, advogados ou
administradores”.
68
Dessa forma, os modelos jurídicos se apresentam como o resultado da ordenação racional do
conteúdo das normas reveladas ou formalizadas pelas fontes do Direito, para atender aos
característicos de validade objetiva autônoma e de atualização prospectiva dessas mesmas
normas.”
69
Como o ordenamento jurídico “constitui-se como integração normativa cujos
elementos se articulam racionalmente”
70
a configuração de um modelo jurídico implica o
estudo de distintos processos normativos que, por sua natureza ou finalidade, exijam reductio
ad unum, isto é, interpretação e aplicação conjuntas.”
71
Reale reafirma que:
“Os modelos jurídicos – ao contrário dos modelos dogmáticos [...] - não são meros
entes conceituais, ou esquemas lógicos de qualificação de tipos de conduta social,
mas são as relações sociais mesmas enquanto se tornam estruturas normativas. [...]
os modelos jurídicos o antes a realidade social mesma, enquanto conjunto de
estruturas normativas, cada um deles correspondente a uma classe de
comportamentos possíveis, tão certo como o Direito é norma e situação normada,
num ato de concrão. Destarte, todo pensamento jurídico opera segundo
modelos, uns já postos ou vigentes, outros reclamados pela experiência social.”
72
Ao tratar das repercussões que o dinamismo das transformações sociais traz para o
ordenamento jurídico, Reale observa que existe um aparente antagonismo que as normas
jurídicas precisam conciliar: a preservação da estabilidade e a garantia do movimento e do
progresso.
73
Nas sociedades em mudança, a ordem jurídica precisa estar perfeitamente
estruturada para dar as respostas às novas demandas que emergem do meio social, o que
exige, também dinamismo na feitura e na aplicação das leis de modo a que essas não se
tornem obsoletas frente às novas demandas oriundas da multifacetada sociedade.
68
REALE, Miguel. Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária. 1994, p. 42.
69
REALE, Miguel. Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária. 1994, p. 34.
70
REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva.
1994, p. 34.
71
Ibidem, p. 34.
72
REALE, Miguel. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São
Paulo: Saraiva. 1978, p. 24.
73
Idem., A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do direito. São
Paulo: Saraiva. 1978, p. 52.
57
Essa insuficiência do direito em retratar a multiciplicidade das situações oriundas da vida de
relações também foi apontada por Caio Mário da Silva Pereira ao afirmar que “não seria
possível enclausurar na estática rigidez dos textos, o dinamismo do direito, consectário da
instabilidade da vida. Cada geração encontra novos problemas a resolver, novas idéias;
surgem sempre situações imprevistas, e é preciso que o direito possa dar-lhes assistência.”
74
Sob esse enfoque, Reale e em relevo que esse dinamismo social tem especial repercussão
na teoria dos modelos jurídicos ante a necessidade de atualização das formas jurídicas para
melhor correspondência à realidade.
75
Ademais, “[...] a correlação entre o modelo e o que é
modelado [...] justifica e exige a substituição de um normativismo jurídico lógico-formal por
um normativismo concreto. Por outro lado, como os fatos e valores, que informam o conteúdo
do modelo, se subordinam à emergência de novas configurações factuais, como é próprio dos
entes prospectivos [...]
76
o que exige que a norma seja concebida na dialeticidade dos fatos e
valores que devem integrar as estruturas normativas.
77
Reale adverte que:
“[...] a teoria dos modelos jurídicos não se exaure no plano lógico-formal ou
pragmático, implicando, obrigatoriamente, a análise das estruturas normativas em
função da vida jurídica, tanto no aspecto científico de sua ‘configuração normativa’
[...] como mesmo antes ou depois dessa estatuição lógico-normativa, ou seja,
quando o comportamento individual e o social vão adquirindo e preservando
‘determinadas formas de querer e de agir’ dotadas de difusa força cogente.”
78
Isso implica um constante construir e reconstruir dos modelos jurídicos para uma perfeita
aderência à realidade social.
74
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Boa-fé I. In Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 11. FRANÇA, R. Limonge
(Coord.). São Paulo: Saraiva. 1977, p. 485.
75
REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do
direito. São Paulo: Saraiva. 1978,p. 54.
76
REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva.
1994, p 34.
77
Ibidem., p. 35.
78
REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, p. 164.
58
2.5. A Opção por Modelos Abertos
Com vistas a abarcar um leque maior de situações oriundas do cotidiano, tem sido mais
recorrente a opção por modelos jurídicos abertos, ou seja, estruturas normativas plásticas, sem
conteúdo previamente definido, cujos contornos são traçados à vista das decisões proferidas
na solução do caso concreto. Dada a sua principal característica ser a elasticidade, permite que
diferentes situações possam se conformar dando maior dinamismo ao sistema jurídico.
Reale põe em relevo que:
“[...] esse processus de correção progressiva do conteúdo dos modelos jurídicos só
é possível porque estes, sobretudo em se tratando de modelos jurídicos abertos,
cada vez mais dominantes no Direito contemporâneo, possuem uma virtude
expansiva, ou elasticidade’, conforme terminologia de Pontes de Miranda, que
permite a adaptação de regra do direito a novas situações emergentes, sem mudança
em sua estrutura morfológica. É claro, porém, que chegado a certo estágio
evolutivo, torna-se impossível essa ‘autocorreção normativa’, impondo-se a
revogação do modelo jurídico, o que poderá implicar ou não em sua substituição. O
certo é que, enquanto não privada de vigência, o modelo jurídico vale e se impõe
prescritivamente, muito embora com significação independente da intenção inicial
de seus elaboradores, ocorrendo a sua morte como conseqüência de revogação,
como perda de validade formal, ou, excepcionalmente, por exaustão de eficácia,
nos casos já lembrados de desuso.
79
Corroborando esse entendimento, Reale destaca as “iias mestras de CESARE VIVANTE,
que haviam norteado o direito comercial italiano,”
80
com especial relevo para a “necessidade
de recorrer a princípios mais abertos, àquilo que POLACCO denominara de le finestre del
diritto’”.
81
Esse sentido vem ao encontro do que os filósofos do direito têm denominado de “livre
criação jurisprudencial do direito”. Kaufmann e Hassemer destacam que “a incompletude da
lei não é, ao contrário do que sugere a concepção positivista, uma falha: ela é apriorística e
necessária. A lei não pode nem deve ser formulada de modo inequívoco, visto ser concebida
para casos cuja diversidade é infinita. Uma lei fechada sobre si mesma, completa, sem
lacunas, inequívoca (se tal fosse possível) faria estagnar a evolução do direito. Isso também é
importante para a linguagem da lei.
82
79
REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, pp. 167-168.
80
REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de Direito. São Paulo:
Sugestões Literária. 1981, p. 5
81
Idem., p. 5.
82
KAUFMANN, A. e HASSEMER, W. (Org.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito
Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 193.
59
Corroborando esse entendimento, Reale pondera que “os modelos jurídicos, [...], são
entidades complexas, em cujo âmbito se coordenam regras de diversas categorias, cogentes e
fechadas umas, dispositivas ou abertas outras, o que demonstra a impossibilidade de
converter os modelos jurídicos em entidades rígidas, quando, ao contrário, é-lhes natural e
própria a plasticidade diversificada das estruturas sociais que normativamente expressam.”
83
As influências das idéias de BONFANTE e CHIOVENDA também são destacadas por Reale
quando ambos mostram que “o ordenamento jurídico não é estático, estando sujeito a
contínuas transformações, o que faz com que as mesmas normas jurídicas, com o correr do
tempo, passem a adquirir nova significação, bem diversa da visada originariamente pelo
legislador.
84
Reale traz à colação as lições de Ascarelli, para quem a norma jurídica, seja ela legal,
jurisprudencial ou costumeira, é algo de plástico, e adaptável às circunstâncias.
85
Nesse
sentido, “ele lembra a frase de BENJAMIN CARDOSO de que o direito deve ser estável, mas
o pode ser estático.
86
Nesse sentido, Reale destaca a idéia impregnada no pensamento de Ascarelli “do emprego de
standards’, ou como se prefere hoje dizer, de modelos abertos, que, aparentemente
possuem um valor programático, mas que, na realidade, ao mesmo tempo, orientam e balizam
a atividade do hermeneuta, permitindo-lhe achegar-se melhor às exigências que deram
origem às prescrições normativas. São as janelas do direito [...], e que o jurista não pode, nem
deve dispensar [...]”.
87
Ao analisar as fases de desenvolvimento do direito moderno, Reale acentua que, na terceira
fase
88
, afirma-se a concepção do direito como experiência concreta onde se estabelece uma
83
REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 181.
84
REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de Direito. São Paulo:
Sugestões Literária. 1981, p. 7.
85
Ibidem., p. 8.
86
REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de Direito. São Paulo:
Sugestões Literária. 1981, p. 8.
87
Ibidem., p. 14. Destaques no original.
88
Ao analisar as “Três Fases do Direito Moderno”, Reale ressalta, já no início, que não pode apontar eventos que
possam representar pontualmente os últimos duzentos anos, uma vez que foram permeados por múltiplos fatores
e tendências. (“As três fases do direito moderno” In Nova fase do direito moderno, pp. 93 e 94)
60
correlação diatica entre a realidade social e os modelos jurídicos.
89
Dentro desse contexto,
destaca a prevalência “tanto na legislação (modelos jurídicos prescritivos) como na doutrina
(modelos jurídicos hermenêuticos), de modelos normativos abertos, tornando-se cada vez
mais inconsistente a antiga distinção entre ‘normas jurídicas imperativase normas jurídicas
programáticas.
90
Sob esse enfoque, traz-se à colação os seguintes excertos:
“[...] a preferência por modelos abertos ou standards, torna-se uma exigência das
peculiaridades histórico-sociais de nosso tempo. Por modelos abertos entendo
aqueles que se desvencilham do casuísmo, de tal modo que a matéria é regulada
segundo classe ou nero de comportamentos, e não de conformidade com atos
particularmente configurados.”
91
[...]
“A técnica do Direito vai cada vez mais se orientando no sentido de dar preferência
àquilo que chamamos os ‘modelos abertos’, preferindo soluções normativas que
comportem maior plasticidade na sua adaptação à experiência corrente. Não mais a
norma rígida, como que prefigurando os casos de uma forma férrea, mas, ao
contrário, o delineamento de figuras normativas capazes de guiar aqueles que as
vão aplicar num contexto de casos não previstos.”
92
A característica marcante do sistema normativo contemporâneo é a vagueza, pondo em realce
a necessidade de que:
“a) no plano legislativo, dar preferência a modelos jurídicos abertos, não receando
recorrer a valores como o da eqüidade ou boa-fé, os quais servirão de elementos
mediadores da desejada concreção jurídica, incompatível com o mero dedutismo a
partir das disposições legais;
A primeira fase, delimitada por Reale pelo período compreendido desde a Revolução Francesa aa última
década do século XIX, a ênfase foram osdigos civis, isto é, “sistemas normativos que têm como protagonistas
os homens comuns” p. 95. Nessa fase, desenvolveram-se a Escola da Exegese, a Escola Histórica e a Escola dos
Pandectistas. Ademais, Reale destaca o normativismo jurídico estatal nos países da Common Law. De acordo
com Reale, a a última década do século XIX nos dois grandes sistemas de Direito do mundo ocidental
prevaleceu a compreensão da Dogmática Jurídica segundo três elementos que caracterizariam a Ciência do
Direito: ordem jurídica positiva, ocupa-se com as normas jurídicas e é uma ciência de sentido objetivo. . (Texto
elaborado com base no texto “As três fases do direito moderno” In Nova fase do direito moderno pp. 95-102)
A segunda fase tem início na primeira década do século XX. Nessa fase houve uma reivindicação pelo conteúdo
social do direito, que culminou com a salvaguarda de direitos sociais e com a concepção hermética do
ordenamento legal. Os costumes, a atividade jurisdicional, a doutrina ganham espaço nesse novo cenário. A
compreensão sistemática do aparato normativo e a nova concepção do poder jurisdicional, que podia
preencher os vazios normativos dão nova roupagem à Dogmática Jurídica. Entretanto, conforme bem assinalado
por Reale, essa fase é também marcada pela contradição existente entre a tão sonhada socialidade e a
estatilidade, decorrente das múltiplas tarefas abarcadas pelo Estado, com o fortalecimento de novas disciplinas
jurídicas como o direito tributário, o direito do trabalho e a maior projeção do direito administrativo. Aliado a
isso, Reale destaca a mudança ocorrida no conceito de norma, com relevo para os estudos de Kelsen. (Texto
elaborado com base no texto “As três fases do direito moderno” In Nova fase do direito moderno pp.101-113)
89
REALE, Miguel. As três fases do direito moderno In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, p.123.
90
REALE, Miguel. As três fases do direito moderno In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, p.124.
91
REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do
direito. São Paulo: Saraiva. 1978, pp. 55-56.
92
Idem. A sociedade contemporânea, seus conflitos e a eficácia do Direito In Estudos de filosofia e ciência do
direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 62.
61
b) no plano jurisdicional, conferir maior autonomia e poder criador aos juízes para
que a adaptação das normas aos fatos concretos não redunde em simples e perigosa
operação mecânica, mas constitua uma atividade predominantemente axiológica;
c) no plano hermenêutico, conceber o ato interpretativo como um todo estrutural,
no qual as diversas formas de exegese [...] se componham em função da natureza da
espécie normativa analisada in concreto [...];
d) no plano das fontes do direito, reconhecer que a sua natureza retrospectiva deve
ser completada pela visão prospectiva dos modelos jurídicos, cuja aplicação na
Ciência Jurídica ainda encontra descabida resistência apesar de ser um dos
instrumentos epistemológicos mais empregados das pesquisas científicas
contemporâneas; [...]”
93
À vista do que se expôs, pode-se concluir que a Teoria dos Modelos surge como uma via
posta para atender aos anseios do momento histórico-cultural das sociedades modernas, nas
quais não se mostra suficiente a existência de um feixe normativo que esboce um sistema
fechado onde impera o formalismo cego e estático, mas, como apontado por Reale, [...] os
modelos jurídicos representam formas ou fôrmas, [...] mas fôrmas flexíveis ou plásticas
[...].
94
Juristas e legisladores têm comungado esforços para a implementação de mudanças
estruturais nos digos de Processo para a adoção de modelos genéricos ou standards,
suscetíveis de configurar, de maneira flexível, uma grande classe de fatos ou eventos. Com a
aceleração das mudanças sociais, a técnica legislativa tende a alargar o campo de aplicação
dos standards, que resulta, por assim dizer, de uma visão panorâmica dos fatos sociais.”
95
Reale observa que “à medida que a legislação e a doutrina se desenvolvem e ordenam fatos,
o surgindo distintos modelos normativos, correspondentes a diversas estruturas sociais e
históricas. No fundo, a história do Direito é a história de seus modelos, de seus institutos,
instituições e sistemas normativos.”
96
93
REALE, Miguel. As três fases do direito moderno In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, p.124.
94
Idem., Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 38.
Nesse mesmo sentido em Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. 1994, p. 32.
95
REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do
direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 55.
96
Idem., Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária. 1994, p. 33.
62
Capítulo III - A Relevância da Tópica na Práxis Jurídica e a Tendência Contemporânea
pelos Sistemas Jurídicos Abertos: a complementariedade necessária
Sumário: 3.1. Apica como Técnica de Identificação dos Problemas no Direito. 3.2.
Apontamentos Doutrinários à “Teoria pica de Viehweg”. 3.3. Concepções Doutrinárias
sobre os Topoi. 3.4. Importância da Tópica na Construção Jurisprudencial. 3.5. O Decnio da
Codificação e a Construção do Pensamento Sistemático. 3.6. Concepções Doutrinárias sobre a
Idéia de Sistema. 3.7. A Mobilidade como Traço Característico dos Sistemas Abertos. 3.8.
Pensamento Sistemático e Tópica
3.1. A Tópica como Técnica de Identificação dos Problemas do Direito
A questão a que o presente trabalho se propõe a responder é sobre a exisncia ou não de um
modelo jurisprudencial de boa-fé objetiva no âmbito do Direito Processual Civil brasileiro.
Sob esse enfoque, a boa-fé objetiva ocupa lugar de relevo na construção dos modelos
jurídicos, acepção essa demonstrada no capítulo anterior. Por tratar-se de uma cusula que
o possui conteúdo definido pelo legislador como se no inciso II do art. 14 do digo de
Processo Civil, para a sua concretização importa trazer a lume o trabalho da jurisprudência
para atender aos casos concretos que lhes são levados à apreciação.
Para cumprir tal desiderato, a pica apresenta-se como um caminho posto, pois de acordo
com a tese de Viehweg “[...] a tópica desenvolve uma técnica de pensar o problema a partir da
retórica que se constitui num elemento constitutivo do pensamento jurídico e caracteriza a
estrutura do pensamento jurídico”.
1
Nesse passo, sobreleva destacar que se trata de problemas
jurídicos individualizados, que possuem características próprias, que os distinguem uns dos
outros. Daí a insuficiência do pensamento lógico-dedutivo para responder a esses problemas.
Por não serem “problemas em série” colocou em evidência, ou melhor, trouxe à tona a
inadequação do modelo traduzido pelos sistemas fechados de codificação.
1
DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência:
uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da ed. alemã, rev. e ampl. de
Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, pp. 11-12.
63
Estabelece-se, pois, uma premissa procedimental prática na qual sobressai a importância da
pica na abordagem dos problemas que são alvo da Ciência do Direito frente ao sistema. O
Direito é sempre problemático não se subsumindo em modelo axiotico. A pluridiversidade
dos problemas conduz, inexoravelmente, ao modelo indutivo segundo o qual que,
primeiramente, identificar o problema para, em um passo posterior, buscar a solução. O êxito
desse processo não prescinde da tópica. A tópica é a técnica que permite a identificação do
problema. Somente após uma perfeita identificação do problema é que se buscará, no sistema,
a solução adequada para o mesmo.
A construção dos modelos jurídicos jurisprudenciais tem em sua base a identificação dos
problemas para os quais tais modelos foram consolidados. A razão do modelo é definida pelo
problema que se pretende resolver e a estabilidade dos mesmos está na precisa identificação
do problema, o que demanda a atuação da tópica como ‘arte de identificação dos problemas’.
Como conseqüência, que se ressaltar que os modelos jurídicos não se confundem com
tipos normativos, pelo contrário, o estruturas dinâmicas com sobrevida determinada pelos
problemas a que se proem a resolver. À medida que o mais consigam responder ao
problema precisam ser reformulados ou substituídos.
Nesse sentido concorrem as observações de Miguel Reale no tocante à estabilidade e ao
“movimento” dos modelos jurídicos:
“A vida dos modelos jurídicos se desenvolve entre dois fatores operantes, um
visando à sua preservação e permanência, outro reclamando a sua reforma ou
substituição, o que assegura à experiência dos modelos jurídicos uma auto-
correção’, num processo de marcado feed-back, isto é, de contínua regeneração ou
realimentação, a qual se em função das mutações operadas no plano dos fatos,
dos valores e do próprio ordenamento normativo global, repercutindo
imediatamente nos domínios cambiantes da Hermenêutica Jurídica.”
2
Para se compreender o ciclo de vida dos modelos jurídicos não se pode perder de vista que,
como estruturas fático-axiológico-normativas, acham-se imersos na práxis social [...] assim
como desta não se libertam também os legisladores (lato sensu) os advogados e os juizes, isto
é, os que elaboram os modelos jurídicos e os que com ele operam.
3
Todas as mutações
ideológicas, políticas e econômicas operadas no meio social repercutem no significado dos
2
REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, p. 165. O texto Vida e morte dos modelos jurídicos” foi também publicado na Revista Brasileira de
Filosofia, São Paulo, v.148, out./dez., 1987, pp.291-297.
3
Ibidem., p.169.
64
modelos jurídicos tornando-os, por exemplo, cogentes e o meramente supletivos. Verifica-
se, pois, que há uma relação dialética da práxis social com os modelos jurídicos de forma a
ajustá-los á realidade.
4
Ao prefaciar a obra de Viehweg, Tércio Sampaio Ferraz Junior ressalta que o pensamento
científico, em sentido lato, precisa ter aptidão não para descrever e explicar os objetos de
um determinado campo de observação, mas, também, deve ter capacidade para prevê-los. Daí
as dificuldades das ciências humanas, pois além de terem de considerar a dinamicidade dos
comportamentos, não podem perder de vista não a variabilidade desses comportamentos,
bem como, a época e a cultura aos quais se prendem.
5
A amplitude das variáveis envolvidas nas relações intersubjetivas singulariza a Ciência do
Direito, que precisa ter aptidão para conciliar a dinamicidade dos comportamentos com os
aspectos axiológicos e culturais reinantes na ocasião.
Viehweg percebeu essa dificuldade correlacionar as teorias jurídicas à práxis -, que, na
verdade, à Ciência do Direito uma natureza peculiar. Entretanto, ele observa que, por
muito tempo, o pensamento teórico dos juristas comungou com a idéia de que a estrutura
formal do Direito poderia ser entendida pela lógica dedutiva. Implicava dizer, na visão de
Viehweg, que a interpretação era relegada a um plano secundário. As teorias jurídicas trazem
à lume conseqüências potico-sociais. No dizer de Viehweg são teorias com função social”.
6
Daí Tércio Sampaio Ferraz Junior compreender o seguinte sentido das conclusões do
pensamento de Viehweg:
“[...] as teorias judicas utilizam-se de um estilo de pensamento denominado
tópico. A tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não é um
conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação
de explicações propostas, critérios para selecionar hiteses, mas um modo de
pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo trico
como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos,
postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua
qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do direito são
abertas, delimitadas sem maior rigor lógico, assumindo significações em função
4
REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva.
1990, p. 169.
5
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de
Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, p. 2.
6
Ibidem., pp. 2-3.
65
dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras ‘fórmulas de procura’ de
solução de conflito.”
7
As precisas palavras de Viehweg merecem transcrição:
“O aspecto mais importante na análise da tópica constitui a constatação de que se
trata de uma técnica do pensamento que está orientada para o problema.
8
[...]
A tópica pretende proporcionar orientações e recomendações sobre o modo como
deve comportar uma determinada situação caso não se queira restar sem esperança.
Essa constitui, portanto, a cnica do pensar problematicamente.”
9
“Apenas o problema concreto ocasiona de modo evidente tal jogo de ponderação, que vem se
denominando pica ou arte de criação.
10
De acordo com Viehweg, fazendo uso das palavras
de Zielinski, isso significa dizer a arte de evocar, em cada situação da vida, as razões que
aconselham ou desaconselham dar um determinado passo, bem compreendidos ambos os
sentidos dessas razões, portanto, tanto as razões favoráveis quanto as contrárias.”
11
Esse ponto é realçado por Eduardo García de Enterría ao afirmar ser impossível desfazer a
contribuição conceitual e sistemática central da obra de Viehweg de que a “[...] ciência
jurídica tem sido sempre, e não pode deixar de ser uma ciência de problemas singulares, que
jamais poderia ser reduzida a um esquema mental axiomático-dedutivo.
12
,
13
A tese de Viehweg de uma estrutura tópica da jurisprudência é constrda por meio de um
traçado histórico que remonta às iias de Vico às quais agrega as idéias de outros autores que
também se dedicaram ao estudo da tópica, em outros âmbitos que não o jurídico, para
perquirir a relação entre a tópica e o saber jurídico.
7
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de
Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, p.3.
8
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 33.
9
Ibidem, pp. 33-34.
10
Ibidem., p. 34.
11
Ibidem., p. 34.
12
GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Prólogo In: Topica Y Jurisprudencia. Tradução de Luiz Diez-Picazo de
Leon. Madri: Taurus. 1964, p. 13.
13
[...] la aportación conceptual y sistetica central de esta obra, esto es, que la Ciencia jurídica ha sido
siempre, es y no puede dejar de ser una ciencia de problemas singulares, jamás reductible frente a ingenuos
intentos, siempre fallidos – al esquema mental axiomático-deductivo expresado en las matemáticas.
66
Viehweg traz à colação a compreensão de Curtius
14
sobre os topoi no âmbito da literatura, na
qual fica clara a operabilidade dos topoi não apenas como forma de traduzir uma
compreensão da vida e da arte, mas constr-la num movimento dinâmico de expiração dos
velhos tópicos e o surgimento de novos topoi.
Kelly Susane Alflen da Silva, no prólogo da obra “Tópica e Jurisprudência” destaca a
importância da tópica no processo decisório, nos seguintes termos:
“Muito embora o modo de pensar tópico de Viehweg tenha como eixos principais
as noções de problema e aporia, em realidade, o ponto é um problema concreto, um
dado real. Neste ponto está o aspecto medular, que faz da tópica uma doutrina
direcionada ao decisionismo e, tamm, desse ponto decorre que a tópica é
sensivelmente dotada de mobilidade que permite ser complementada por princípios
ou doutrinas tendentes à natureza da decisão.”
15
A tese de Viehweg publicada em 1953, em que a pica foi apresentada como o método de
pensar problematicamente, colocou no foco da discussão o pensamento fundado no problema
em relação ao pensar de maneira sistemática, aliado a isso suscitou a discussão se o sistema
jurídico seria aberto ou fechado.
16
Viehweg se reporta à dissertação elaborada por Vico em 1708 sob o títuloDe nostri temporis
studorium ratione”, que traduzido significa O modo de estudar de nosso tempo”. Nessa obra,
a real intenção de Vico era a de revelar “A conciliação do antigo e do moderno modo de
estudar”. O antigo todo científico é caracterizado por Vico como retórico, compreendia a
pica e o moderno, como crítico, modo de pensar cartesiano,.
17
“Vico caracteriza o novo método (crítico) do seguinte modo: o ponto de partida é o
primum verum, que não pode ser anulado [invalidado] pela dúvida. O amplo
desenvolvimento conseguinte se faz em consonância com o mesmo modelo da
geometria, i. e., segundo os cânones da primeira ciência verificável que, em geral, e
no possível, se ampara nas mais amplas conclusões concatenadas (sorites)
[deduções]. De modo contrário, o método antigo [tópica], apresenta-se assim: o
ponto de partida é dado pelo sensus communis (sentido comum reiterado, commom
sense), que procede por verossimilhança (verisimilia), alterna pontos de vista
14
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 39.
15
ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e
jurispruncia: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da ed.
alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 12. Destaques
no original.
16
Ibidem. p. 12.
17
Op. cit. p. 18, nota 14.
67
segundo os cânones da tópica retórica e, em particular, atua principalmente com
quantidade de silogismos.
18
Para Vico, as vantagens do todo crítico consistem na agudeza e na precisão (sempre que o
primum verum seja um verum)”
19
. o todo da pica, “[...] ensina a considerar uma
situação a partir de distintos ângulos e, a encontrar uma quantidade de pontos de vista. Deve-
se- intercalar diz Vico o antigo modo de pensar pico no novo, já que este sem aquele
o pode obter nenhum resultado”.
20
Viehweg recorre-se a Aristóteles para compreender o que venha a ser a pica. Aristóteles faz
uma distinção entre o que é apodítico e o que é dialético. O primeiro ele assinala como o
campo da verdade para a pretensão dos filósofos. O segundo, é considerado para ele [...] como
o terreno do meramente opinável, dos retóricos e dos sofistas.”
21
Daí concluir que a tópica
pertence ao terreno do que é dialético, não do apodítico.
22
O objeto da tópica são as
conclues dialéticas. Para Aristóteles, as conclusões dialéticas são aquelas que têm como
premissas pontos de vista respeitáveis e verossímeis. Daí compreender que [...] a pica tem
por seu objeto conclusões que decorrem de premissas que parecem verdadeiras com base em
uma opinião respeivel.
23
Topoi o para Aristóteles, então, pontos de vista empregáveis
em muitos sentidos, aceitáveis universalmente, que podem ser empregados a favor e contra ao
opinável e podem conduzir à verdade.”
24
Kelly Susane Alflen da Silva destaca que:
“Então, a tópica versus a argumentação possui um cariz em função estabilizadora
dos postulados contingentes e historicamente condicionados, e, por isso, tem como
base um pertinente consenso em torno do tido por evidente, que, logo mais, num
momento ulterior, por ser evidência consumada, não necessita propriamente de
fundamentação argumentativa. Nas palavras de Norbert Horn, isso significa que,
“O que a todos ou à maioria ou aos sábios parece verdadeiro, vale como
verdadeiro.” A tópica, pois, serve a um conceito dialético de verdade. Mas a um
18
ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e
jurispruncia: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da ed.
alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 19.
19
Ibidem. p. 19.
20
Ibidem. p. 19.
21
Ibidem. p. 22.
22
Ibidem. p. 22.
23
Ibidem. p. 24.
24
Ibidem. pp. 25-26.
68
conceito de verdade que não se confunde com dedução-lógica, que serve a uma
lógica – apodíctica -, mas tem como pressuposto o consenso pelo diálogo.
25
Segundo Aristóteles, [...] São os topoi, de fato, que podem nos ajudar, de um modo
suficientemente completo, a extrair conclusões dialéticas com relação a qualquer problema.”
26
Tércio Sampaio Ferraz Junior traz à compreensão que “[...] a dialética é [...] uma espécie de
arte de trabalhar com opiniões opostas, que instaura entre elas um diálogo, confrontando-as,
no sentido de um procedimento crítico.
27
Trata-se, segundo o Autor, da “virtude de saber
sopesar argumentos, confrontar opiniões e decidir com equilíbrio.
28
Cláudia Rosane Roesler destaca dois aspectos na abordagem de Viehweg à tópica aristotélica.
“A primeira delas é a divisão entre apodíctico e dialético e a segunda, a caracterização da
pica enquanto auxílio na discussão de qualquer tema, enfatizando o seu perfil de
instrumento para a construção argumentativa.”
29
Segundo a autora, no que tange à vinculação entre pica e dialética, “[...] a diatica vem
concebida por Aristóteles como uma arte de argumentação crítica, especializada em por à
prova, em testar os argumentos, independentemente de seu tema.” Aplicável em todos os
âmbitos do conhecimento é instrumento que permite aferir as contradições e as
conseqüências do raciocínio.
30
“[...] a dialética, na medida em que nos permite investigar uma
aporia em ambas as direções, nos possibilita discernir o verdadeiro do falso.”
31
“Como se , Aristóteles esboça na sua tópica uma teoria da dialética (entendida,
aqui, no sentido de arte retórica [...]), na qual ele proporciona um catálogo de
tópicos estruturado de modo flexível e apto a fornecer relevantes serviços à
prática.”
32
25
ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e
jurispruncia: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da ed.
alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 14.
26
Op. cit., p. 26, nota 24.
27
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de
Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, p. 5.
28
Ibidem. p. 5.
29
ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso racionalidade.
Florianópolis: Momento Atual. 2004, pp. 114-115.
30
Ibidem., p. 115.
31
Ibidem. p. 116.
32
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 30.
69
Já concernente à relação entre a tópica e a dialética com a retórica, a autora destaca que “[...] a
dialética seria a arte da argumentação crítica e a retórica a arte de investigar como os
argumentos podem ser apresentados com vistas à persuasão.”, já que, para Aristóteles, a
retórica é a arte de encontrar o que é persuasivo em cada caso. Seguindo esse raciocínio, a
Autora esclarece que [...] pode-se então considerar que a pica forneceria assim como o
fez para a dialética à retórica aquelas regras”, leis ou fórmulas genéricas que gozam de
aceitação e viabilizam a construção de argumentos persuasivos, os topoi.”
33
Após a análise da tópica aristotélica, Viehweg analisa a tópica em Cícero e destaca a maior
influência histórica da Tópica de Cícero em relão à de Aristóteles. Enquanto em Aristóteles
ganha relevo a distinção entre o apotico e o dialético, em Cícero encontra-se a distinção
entre ‘invençãoe ‘formulação do juízo’. A importância dos topoi como lugares de onde se
extrai o material
34
, na concepção dada por Aristóteles, é reconhecida por Cícero por meio de
uma linguagem figurada: “Assim como é cil encontrar objetos que estão escondidos, desde
que se determine e se prove o lugar em que se situam, do mesmo modo, se quisermos
investigar sobre uma matéria qualquer, temos que conhecer seus topoi”.
35
Numa análise comparativa entre a tópica de Aristóteles e a tópica de Cícero Viehweg pontua:
“[...] Aristóteles esboça na sua tópica uma teoria da dialética (entendida aqui, no
sentido de arte retórica), na qual ele proporciona um catálogo de tópicos estruturado
de modo flexível e apto a fornecer relevantes serviços à prática. É isso que interessa
a Cícero. Ele entende por tópica uma prática da argumentação que adota um
catálogo de tópicos, que com este propósito ele elaborou. Apesar de Aristóteles
tratar, ainda que de modo não exclusivo, mas em primeiro lugar, da formação de
uma teoria, para Cícero importa, ao invés, a aplicação de um catálogo de topoi.
36
Por sua vez, Tércio Sampaio Ferraz Junior traça um paralelo entre a tópica aristotélica e a
pica cicerônica, destacando:
“Os conceitos e as proposições básicas dos procedimentos dialéticos, estudados na
Tópica aristotélica, constituíam não axiomas nem postulados de demonstração, mas
topoi de argumentação, isto é, lugares (comuns), fórmulas, variáveis no tempo e no
espaço, de reconhecida força persuasiva no confronto das opiniões. A tópica, assim,
33
ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso racionalidade.
Florianópolis: Momento Atual. 2004, p. 118.
34
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 28.
35
Ibidem., p. 28.
36
Ibidem., p. 30.
70
estaria a serviço da ars disputations, caso em que as conclusões a que se chega
valem pelo efeito obtido, e é, pois, mais importante, uma bem feita elaboração das
premissas. É o que chamou Cícero de ars inveniendi. Cícero entendeu a tópica não
mais como uma teoria da dialética, mas como uma práxis da argumentação,
elaborando catálogo de lugares comuns aplicáveis ao exercício retórico.
37
Ao fazer a análise da pica e Civilística” Viehweg assegura que:
“[...] se é certo que a pica é a técnica do pensamento problemático a
jurisprudência, como técnica que está a serviço de uma aporia, deve corresponder
com os pontos essenciais da tópica. É preciso, por isso, descobrir na tópica a
estrutura que convém à Jurisprudência.
Tentaremos fazer isso e estabelecer os três seguintes pressupostos:
1) A estrutura geral da jurisprudência só pode ser determinada a partir do problema.
2) As partes integrantes da Jurisprudência, seus conceitos e suas proposições têm de
permanecer vinculadas de um modo específico com o problema e podem ser
compreendidas a partir dele.
3) Os conceitos e as proposições da Jurisprudência podem ser utilizados numa
implicação que conserve sua vinculação com o problema. Qualquer outra é preciso
ser evitada.”
38
Verifica-se que a tópica encontra lugar de relevo na práxis jurídica na abordagem dos
problemas num movimento circular que os tem como ponto de partida e como ponto de
chegada. Como ponto de partida, os problemas é que determinarão quais serão os ‘lugares
comuns’, ou alternativas para a solão dos mesmos. E como ponto de chegada tem-se o
culminar da solução eleita entre tantas propostas.
3.2. Apontamentos Doutrinários à “Teoria Tópica de Viehweg”
García de Enterría no trabalho de Viehweg a exaltação do labor diário do “jurista
experimentado”, visto que, segundo Viehweg, a pica precisa ser compreendida como um
pensamento que opera, por meio de ajustes concretos, a resolão de problemas singulares
partindo de diretrizes ou de guias que o são princípios lógicos dos quais se possa, por meio
da dedução, resolvê-los, mas loci communes que são revelados pela experiência.
39
,
40
37
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo o direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São
Paulo: Atlas. 2001, p. 322.
38
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 97.
39
GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Prólogo In: Topica Y Jurisprudencia. Tradução de Luiz Diez-Picazo de
Leon. Madri: Taurus. 1964, p. 14.
40
No original: “[...] importa retener sobre todo como enseñanza central para el jurista, aunque otra cosa pueda
ser para el historiador de las ideas o para el filósofo, que por tópica ha de entenderse aquí, como el autor
precisa, la ‘techné del pensamiento de problemas’, de un pensamiento que opera por ajustes concretos para
71
Nesse sentido, conclui García de Enterría soar acomo um paradoxo na obra de Viehweg,
um livro que reclama, para ciência do direito, sua humildade e suas limitações, frente ao
complexo de inferioridade diante das ciências exatas ou ‘axiomatizantes’, resultar na
ampliação dos horizontes dessa mesma ciência. Entretanto, assevera Enterría: “[...] outro é
nosso caminho e, portanto, nossa dignidade. Na sociedade de onde emergem incessantes
transformações e problemas jurídicos inéditos, ter plena consciência desse ensinamento é, sem
dúvida, o maior serviço que pode ser prestado às possibilidades reais da justiça.”
41, 42
Hermes Zaneti Júnior destaca que na concepção de Viehweg fica clara a “necessidade de se
criar uma teoria da prática”, o que, no entendimento de Zaneti traduziria a criação de
‘modelos jurisprudenciais’. Ao privilegiar a tópica de Cícero, em detrimento da pica de
Aristóteles, Viehweg busca construir uma “teoria para a argumentação forense”, pois para
cero interessavam os resultados obtidos com a aplicação da tópica no discurso concreto.
[...] trata-se de observar na tópica cicerônica [...] a difusão de uma técnica de resolução de
problemas
43
“Para Aristóteles, em outro sentido, a tópica era a projeção de uma teoria da
dialética, entendida como arte retórica, buscando mais as causas dos argumentos do
que a sua aplicação prática [...]. O objetivo de Cícero [...] era facilitar a
compreensão e criação de catálogos de tópicos para um jurista prático (os catálogos
especiais ou catálogos tópicos de segundo grau), encaminhando sua utilidade para a
localizão dos problemas a solucionar [...].
44
Hermes Zaneti nior destaca a crítica de Alexy
45
em oposição ao pensamento pico. No
entanto, faz uma releitura dessa crítica nos seguintes termos: [...] adotando a racionalidade
resolver problemas singulares partiendo de directrices o de guías que no son principios lógicos desde los que
poder deducir con resolución, sino simples loci communes de valor relativo y circunscrito revelados por la
experiencia.
41
GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Prólogo In: Topica Y Jurisprudencia. Tradução de Luiz Diez-Picazo de
Leon. Madri: Taurus. 1964, p. 18.
42
No original: Puede resultar paradójico que un libro como éste que reclama para la ciencia jurídica su
humildad y sus limitaciones resulte a la postre libertador y ampliador de horizontes, pero eses efectos son
siempre una virtud de la verdad, sea cual fuere, y no del poder y de la fuerza. No es poco librar al Derecho
como ciencia de esa suerte de complejo de inferioridad que ha venido padeciendo desde que el mundo moderno
perfeccionó las ciencias sicas o axiomáticas. Otro es nuestro camino y por tanto nuestra dignidad. En la
sociedad nueva en incesante transformación y penetrada de problemas jurídicos inéditos, tener plena
consciencia de esta enseñanza es, sin duda, el mejor servicio que pueda prestarse a las posibilidades reales de
la Justicia.
43
ZANETI NIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 87.
44
Ibidem., p. 87.
45
A crítica de Alexy à Teoria pica é no sentido de que a busca de premissas é generalizada demais, o
havendo uma diferenciação entre as diversas premissas plausíveis, por conseguinte subestimaria a importância
da lei, da dogmática e dos precedentes no processo de justificação das decisões jurídicas. ALEXY, Robert.
72
prática discursiva o discurso prático do caso especial, a tópica passa a ser um instrumento
para a verificação dos problemas e a lei, a dogmática e os precedentes formam os catálogos
picos especiais com que o jurista deve lidar para obter um discurso racional”
46
.
Corroborando esse entendimento, Kelly Susane Alflen da Silva assevera que:
“Isso diz respeito ao fato de um problema poder se fundar numa pré-compreensão,
num contexto dado previamente à compreensão, o que em Viehweg, relativamente
ao direito se leva à concretude em sua teoria do Basindoktrin, i. e., um substrato
ideológico estabilizador que serve de supedâneo a postulados jurídicos tidos por
geralmente certos e indiscutíveis para o funcionamento do direito. Em sendo o
direito formado por um corpus de postulados e opiniões às quais se atribui
absolutez, são dogmatizados, muito embora também opere sobre a base de seus
tópicos provenientes da consciência social. Então, a tópica é, originariamente, fonte
da dogmática! Mas, não só. A dogmática também é marco da própria tópica, é o
marco do que se encontra subjacente aos tópicos e que conformam a sociedade no
campo jurídico; serve de limite à admissibilidade de tópicos como argumentos.”
47
Margarida Maria Lacombe Camargo
48
destaca que a doutrina e a jurisprudência podem ser
utilizadas pela pica como “argumentos de autoridade”, pois traduzem uma opinião
reconhecida apresentando-se como premissas respeitáveis e fortes aptas a fundamentar uma
cadeia de raciocínio válido.
49
A ‘tópica de primeiro grau’ consiste no procedimento orientado por pontos de vista diretivos,
que não são explícitos. a ‘tópica de segundo grau’ consiste no procedimento que utiliza
catálogos de topoi, repertórios de pontos de vista disponíveis.
50
Encontra-se na pica de
segundo grau um “repertório, já pronto para ser usado, de pontos de vista, muito importantes e
Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação judica. 2. ed.
Tradução de Zilda Huchinson Schild Silva. São Paulo: Landy. 1990, pp. 30-33.
46
ZANETI NIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 88.
47
ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e
jurispruncia: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da ed.
alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, pp. 13-14.
48
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do
direito. Rio de Janeiro: Renovar. 2003, p. 154.
49
Judith Martins-Costa anota a importância no direito brasileiro da interpretação doutrinária nas decisões
judiciais influência essa advinda do ‘bartolismo’, O bartolismo “[...] na acepção que foi emprestada por Clóvis
do Couto e Silva, indica o fato de as sentenças judiciais refletirem as opiniões de autores de diversos sistemas
jurídicos, servindo-se os juizes de autores nacionais e de outros paises, ‘como se existisse ainda um ‘Direito
Comum’ supranacional’. Esta é uma especificidade própria do sistema jurídico brasileiro e que justifica a maior
abertura que as nossas sentenças têm para a doutrina, ‘que é, assim, fonte de direito’.” MARTINS-COSTA,
Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos
Tribunais. 1999, p. 241.
50
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 56.
73
amplamente aceitos, em forma de citações jurisprudenciais, pom sem nenhuma intenção
sistemática e em uma descurada ordem.”
51
Tércio Sampaio Ferraz Junior ao fazer referência àpica de segundo grau assevera que “[...]
Esta organização [...] é sempre limitada, não surgindo nem na forma rigorosa de deduções
lógicas, nem como sistemas unitários, abarcantes, como grandes hierarquias conceituais que
alcancem toda a realidade em questão. O raciocínio tópico que se vale dos repertórios de
topoi, vale, portanto, em certos limites [...].”
52
Judith Martins-Costa adverte que a técnica de raciocínio tópico é assistemático, pois o
raciocínio parte do caso particular e busca premissas que possam trazer a solução para aquele
caso particularmente analisado.
53
Nesses termos, Tércio Sampaio Ferraz Junior observa que “[...] qualquer que seja a tópica de
segundo grau, uma dedução sistemática dos topoi é uma impossibilidade. Na verdade,
qualquer tentativa nesse sentido altera a própria intenção da tópica que, sendo problemática, é
assistemática até por necessidade de produção de efeitos persuasivos de argumentação.”
54
Larenz assinala que a tópica, levada a cabo por Viehweg para aplicação na jurisprudência,
consiste em um procedimento que, vinculado ao caso, leva em conta discursivamente os
argumentos relevantes favoráveis e contrários à solução ponderada. Esses argumentos
relevantes são os topoi.
55
Larenz destaca que, na concepção de Viehweg [...] não existem apenas os ‘tópicos
universalmente aplicáveis de que tratam Aristóteles, Cícero [...], mas também outros que estão
comprovados para uma determinada disciplina’. Tópicos jurídicos serão, pois, argumentos
utilizados na solução de problemas jurídicos, e que podem contar neste donio com a
51
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 56.
52
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de
Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, p. 4.
53
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 44.
54
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo o direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São
Paulo: Atlas. 2001, p. 324.
55
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian. 1997, p. 170.
74
concordância geral, o consensus omnuim’.”
56
Nessa esteira, Viehweg qualifica como tópicos
jurídicos, dentre outros, ‘a tutela da boa-fé’.
3.3. Concepções Doutrinárias sobre os Topoi
Para Egon Schneider são topoi postulados como boa-fé, proteção de confiança, [...]
dignidade humana etc. [...] O mesmo autor qualifica também como picos os métodos ou
idéias diretivas da interpretação jurídica, assim como os conceitos jurídicos normativos e os
valorativos como equidade, justiça, [...] segurança jurídica, doutrina estabelecida e
jurisprudência estabelecida.”
57, 58
Bokeloh, por sua vez, cita como topoi os princípios que dão concretude à boa-fé como, por
exemplo, o venire contra factum proprium.
59, 60
A conceão de Wieacker sobre os topoi é expressa nos seguintes termos:
“[...] pontos de vista de probabilidade e força de convicção geralmente reconhecida
que se buscam para a decisão de um caso. Tais pontos de vista podem ser [...] desde
convencionais verdades comuns, regras e máximas da razão prática [...] e, em
particular para a obtenção do direito, os standards sociais, os precedentes
reconhecidos, os enunciados doutrinários que expressem a opinião comum dos
especialistas. A função que todos esses tópicos teriam para o raciocínio jurídico
seria a de servir de argumentos para a discussão. Esses argumentos fundamentam as
soluções obtidas da discussão.”
61, 62
56
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian. 1997, p. 203.
57
SCHNEIDER, Egon. Rechtspraxis und Rechtswissenschaft, cit. pp. 7-11 apud GARCIA AMADO, Juan
Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 133.
58
No original: son topoi postulados como la ‘buena fe’, ‘protección de la confianza’ [] ‘dignidad humana’
etc. [] el mismo autor califica también como tópicos los métodos o ideas directivas de la interpretación
jurídica, así como los conceptos jurídicos normativos e los valorativos, como ‘equidad’, ‘justicia’
‘practicabilidad’, ‘seguridad jurídica’, ‘doctrina estableciday ‘jurisprudencia establecida.
59
BOKELOH, A. Der Beitrag der Topik zur Rechtsgewinnung, cit. p. 28 apud GARCIA AMADO, Juan
Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 134.
60
“BOKELOH cita como topoi los principios que concretan el general de buena fe, como venire contra factum
proprium […].”
61
WIEACKER, Franz. Zur praktischen der Rechtsdogmatik, cit. p. 327 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio.
Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 130-131.
62
No original: Wieacker caracteriza los topoi como puntos de vista de probabilidad y fuerza de convicción
generalmente reconocida que se buscan para la decisión de un caso. Tales puntos de vista pueden ser [...] desde
convencionales verdades comunes (konventionelle Gemeinwahrheiten), reglas y máximas de la razón práctica
[…], y, en particular para la obtención del derecho, los standards sociales, los precedentes reconocidos, los
enunciados doctrinales que expresen la opinión común de los especialistas etc. La función de todos estos tópicos
tendrían en el razonamiento jurídico sería la de servir de argumentos para la discusión. Esos argumentos han
de fundamentar una convición general sobre la corrección de las soluciones obtenidas de la discusión.
75
Garcia Amado colaciona algumas noções de topos trazida pela doutrina, posteriormente à
obra de Viehweg, dentre as quais se destacam:
Na concepção de Esser os topoi são:
“[...] argumentos que gozam de um consenso geral no meio ou de grande
capacidade para alcançá-lo, consenso que se pretende trasladar a novas soluções
que do emprego dos topoi se sigam”
63,
64
, ‘fórmulas vazias’ que são dotadas de
conteúdo em cada caso
65,
66
, “argumentos retóricos, distintos dos argumentos
utilizados em cláusulas gerais, standards ou princípios, assim como a inovação de
máximas ou credos gerais de caráter ético, social ou político”
67,
68
, “a argumentação
tópica é parte da argumentação retórica, cuja finalidade não é demonstrativa, mas
persuasiva.”
69, 70
“[...] em um sistema jurídico aberto aos problemas, por contraposição a um sistema
axiomaticamente fechado, seus princípios fundamentais são os topoi; isto é, pontos
de vista pragmáticos de justiça material ou correspondente a fins jurídico-políticos,
que renunciam a esquema dedutivo cerrado e que, como pontos de partida retórico
da argumentação, afrontam o problema como aberto e por meio de enunciados de
razão ou de sentido comum geralmente aceitos.
71, 72
Para Nobert Horn, se pode admitir a denominação de topos, no âmbito do Direito, “[...] para
todo princípio básico que seja admissível, isto é, que esteja juridicamente reconhecido e se
possa invocar para obter ou fundamentar a decisão jurídica. Topoi seriam, por conseguinte,
tanto proposições jurídicas particulares como pontos de vista jurídicos e regras generalizáveis,
63
ESSER, Joseph. Vorverständnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung, cit., p. 155; Juristisches
Argumentieren im Wandel des Rechtsfindungskonzepts unseres Jahrhunderts, cit. pp. 13, 15 apud GARCIA
AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128.
64
No original: [...] son argumentos que gozan de un consenso general en el medio o de gran capacidad para
alcanzarlo, consenso que se pretende trasladar a las nuevas soluciones que del empleo de los topoi se sigan,
[…]
65
ESSER, Joseph. Unmerklicher und merklicher Wandel del Judikatur, cit. pp. 221-222;“Die Interpretation im
Recht“, en Studium Generale, 7/1954 (pp. 372-279), p. 378 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de
la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128.
66
No original: “son ‘formulas vacías’, que han de dotarse de contenido concreto en cada caso;
67
ESSER, Joseph. Motivation und Bergründung richterlicher Entscheiddungen, cit. p. 149; Unmerklicher
Waldel del Judikatur, cit. pp. 221-222 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica.
Madri: Civitas. 1988, p. 128.
68
No original: son argumentos retóricos, distintos de los argumentos basados en cláusulas generales,
standards o principios, así como de la invocación de máximas o credos generales de carácter ético, social o
político;”
69
ESSER, Joseph. Methodik des Privatreschts, en Thiel, M. (ed.), Methoden der Rechtswissenschaft. Teil I.,
Munich, R Oldenbourg, 1972 (pp. 3-37), p. 15 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica
jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128.
70
No original: “la argumentación tópica es parte de la aumentación retórica, cuya finalidad no es demostrativa,
seno persuasiva.”
71
ESSER, Joseph. Grundsatz und Norm, cit. p. 44 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica
jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128-129.
72
No original: “[...] en un sistema jurídico abierto a los problemas, por contraposición a un sistema
axiomáticamente cerrado, sus principios fundamentales son topoi; esto es, puntos de vista pragmáticos de
justicia material o correspondientes a fines jurídico-políticos, que renuncian a un esquema deductivo cerrado y
que, como puntos de arranque retórico de la argumentación, afrontan el problema como abierto y por medio de
enunciados de razón o de sentido común generalmente admitidos.
76
assim como regras formais (tipos de argumentação, por exemplo) que sejam usadas na
argumentação jurídica.”
73, 74
3.4. Importância da Tópica na Construção Jurisprudencial
A tópica, segundo Viehweg, foi de suma importância para a jurisprudência. Entretanto,
assegura que [...] é próprio dela fazer com que a Jurisprudência não se converta em um
todo”
75
, uma vez que por ‘método’ deve-se compreender “[...] um procedimento que, do
ponto de vista lógico, seja estritamente controlável, que estabeleça, por conseqüência, um
unívoco texto argumentativo, i. e., um sistema dedutivo.
76
A função dos topoi, segundo Viehweg, é servir à discussão dos problemas.
“No alterar de situações e de casos particulares se deve encontrar, pois, cada vez
mais, novas informações para se fazer tentativas de resolver o problema. Os topoi,
intervindo em auxílio, recebem em torno de si o próprio sentido do problema. Eles
remanescem sempre essenciais pelo fato de que eles recebem uma ordem com
relação ao problema. Em realidade, com relação ao problema que eles
acompanham, uma compreensão não é imodificável, e na mesma medida nem
adequada e conveniente ou inadequada. Eles devem ser entendidos funcionalmente,
como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento.”
77
Tércio Sampaio Ferraz Junior ressalta a importância da irrupção da pica no Direito, como
ferramenta para sua manutenção e atualização.
“A interrupção, indispensável no pensamento jurídico, desenvolve-se dentro do
estilo tópico: o que garante a permanência de uma ordem jurídica em face de certos
câmbios sociais no correr do tempo é justamente este estilo flexível em que os
problemas são pontos de partida que impedem o enrijecimento das normas
interpretadas. A própria interpretação dos fatos exige o estilo tópico, pois os fatos
de que cuida o aplicador do direito, sabidamente, dependem das versões que lhe são
atribuídas. Ademais, o uso da linguagem cotidiana, com sua falta de rigor, suas
73
HORN, Nobert. Topik in der rechtstheoreticher Diskussion”, en BREUER, D./SCHANZE, H. Topik, cit (pp.
57-64), p. 60 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p.129.
74
No original: En el ámbito del Derecho se puede admitir la denominación de topos para todo principio
básico que sea admisible, esto es, que esté jurídicamente reconocido y se pueda invocar para obtener o
fundamentar la decisión jurídica. Topoi serían, por consiguiente, tanto proposiciones jurídicas particulares
como puntos de vista jurídicos y reglas generalizables, así como reglas formales (tipos de argumentación, por
ejemplo) que se usen en la argumentación.
75
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 77.
76
Ibidem., p. 77.
77
Ibidem., pp. 39-40.
77
ambigüidades e vaguezas, condiciona o jurista a pensar topicamente. Por isso, em
seu raciocínio, ele sabe, de algum modo, que não há sistema em si que possa
resolver todos os problemas jurídicos.”
78
A importância estrutural da tópica no pensamento medieval levou a um esquema
representativo da mesma que consiste em: 1) estabelecimento do problema; 2) pontos de vista
próximos; 3) pontos de vista contrários e 4) solução.
79
Apica atua no sistema jurídico dentro de quatro campos:
1 Na interpretação: o pensamento interpretativo deve se mover dentro do raciocínio da
pica, visto que o ordenamento jurídico está sujeito a constantes modificações temporais,
pondo em realce o papel da interpretação e, por conseguinte, o da tópica.
80
2 Na aplicação do Direito: por meio de uma interpretação que modifique o sistema
promovendo uma extensão, redução, comparação, síntese, com vistas a dar soluções tanto aos
casos que podem resolvidos dentro do próprio sistema como para aqueles casos que não
encontram solução dentro do sistema. Nessa última hipótese, para a solão sem o auxílio do
legislador, só com o auxílio da interpretação.
81
3 No uso da linguagem: por meio da apreensão dos novos pontos de vista que asseguram a
dinamicidade no alcance das proposições veiculadas por meio de conceitos e proposições
sistematicamente incertos. Isso se dá com sucessivas interpretações e reinterpretações.
82
4 Na interpretação do estado de coisas: é uma forma da atuação da tópica que se encontra
fora do sistema jurídico, mas que nele repercute, visto que necessita torná-lo dinâmico em
sentido jurídico. Trata-se de uma recíproca aproximação entre os fatos e o ordenamento
jurídico. Segundo Viehweg, tal perspectiva foi descrita por Engisch como “permanente efeito
recíproco e da “ida e volta da perspectiva”.
83
Nesse sentido, a partir “[..] de uma
78
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo o direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São
Paulo: Atlas. 2001, p. 325.
79
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007 p. 70.
80
Ibidem., p. 88.
81
Ibidem., p. 88.
82
Ibidem. p. 89.
83
Ibidem., p. 90.
78
compreensão preliminar de coesão jurídica, forma-se a compreensão do estado de coisas, a
qual, por sua vez, repercute de novo sobre a compreensão do direito, sendo solucionado.”
84
Claudia Rosane Roesler sintetiza a tese de Viehweg nos seguintes termos:
“[...] para Viehweg, a pica permanece na Jurisprudência como sua estrutura na
medida em que esta orienta-se para o que o autor qualifica como ‘problema’. A
tópica é, deste modo, uma técnica de pensar por problemas.
[...]
O interesse do autor é dirigido, portanto, para a dimensão da tópica que pode-se
chamar formal, na medida em que dá estrutura à jurisprudência.”
85
Na concepção de Viehweg, ‘problema’ é [...] qualquer questão que consinta aparentemente
mais de uma resposta e que pressuponha, necessariamente, uma compreensão proviria,
conforme a qual toma o cariz da questão que se deve levar a sério, justamente se buscará,
pois, uma resposta única como solução.”
86
Judith Martins-Costa destaca dois elementos que estariam no núcleo dessa definição:
“a) o que faz com que uma questão se ponha com um problema é a existência de
distintas alternativas para o seu tratamento e, por conseqüência, de distintas
respostas, ou vias de atuação possíveis;
b) embora a possibilidade de diversas alternativas, o que se busca é uma resposta, o
que conduz à necessidade de uma decisão e, consequentemente, de uma eleição
entre as possíveis alternativas.
87
Nesse contexto, na “contramãodo ‘problema’ estaria o pensamento lógico-dedutivo, o qual,
em razão da completude normativa e indicação precisa da conseência, indica um único
caminho a trilhar.
Por outro lado, existem normas que não possuem essa rigidez e precisão. Dentre elas, Judith
Martins-Costa destaca as cláusulas gerais, cuja aplicação demanda que o jurista desenvolva o
seguinte procedimento: “a)determine o seu o campo e o seu grau de extensão – o que
significará concretizar o standard ou o valor ao qual ele reenvia e b) defina, punctualmente,
84
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, p. 90.
85
ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso racionalidade.
Florianópolis: Momento Atual. 2004, p. 142.
86
Op. cit. p. 34, nota 84.
87
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 366-367.
79
as suas conseqüências.”
88
Para resolução do problema, diversas alternativas e diversas
respostas serão apresentadas, cabendo ao jurista eleger a melhor solução dentre essas muitas
alternativas apresentadas que será o norte da sua decisão.
“A escolha do conteúdo que há de ser conferido à norma que caracteriza cláusula
geral, não estando indicado no texto legislativo, implica ponderações e valorizações
que se reportam a um âmbito de referência tecido por variadas escalas: os
precedentes, a história institucional, as opiniões consolidadas doutrinariamente, os
usos e costumes do tráfego jurídico, as soluções advindas do direito comparado. Os
precedentes, de modo especial, têm relevantíssima função de fixar, embora de
maneira não rígida, o concreto desenho dos valores aos quais reenviam as cláusulas
gerais, possibilitando a solução do caso.”
89
Qualquer atualização da tópica remete-se ao seu significado formulado no pensamento de
Aristóteles. O conceito de topos teria, antes de Aristóteles, um significado técnico,
relacionado com pontos de vista relativos a conteúdos ou de determinadas técnicas por meio
das quais o orador estaria em condições de realizar em cada ocasião as afirmações adequadas
a seus fins.
90
A tópica é para Viehweg uma “técnica do pensamento problemático”, na qual o ponto de
partida é um problema concreto, uma situação da vida real, um estado de coisas que Viehweg
denominou de ‘aporia’, no sentido de uma questão sem solução, sem saída. É esse problema
concreto que constitui a ‘tópica ou arte da invenção’.
91, 92
No dizer de Tércio Sampaio Ferraz Junior, o pensamentopico trabalha com ‘noções-chave’,
que trazem em si um sentido vago, que é determinado em fuão do problema, por isso está
88
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 367.
89
Ibidem., p. 368.
90
SPRUTE, J. Die Enthymentheorie der aristotelischen Rhetorik, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1982, p.
150 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 43.
91
GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 75.
92
No original: La tópica es para Viehweg una ‘técnica de pensamiento’ caracterizada por orientarse al
problema. De ahí que la defina como Techne des Problemdenkens, esto es, técnica del pensamiento de
problemas o, como DIEZ-PICAZO traduce entre nosotros, técnica del pensamiento problemático’. El punto de
arranque es un problema concreto, una situación de la vida real, un estado de cosas que configura lo que
Viehweg, utilizando un término que ha suscitado numerosas críticas, llama una ‘aporía’. Una aporía significa
para Viehweg una cuestión acuciante e ineludible, respecto de la que no está marcado un camino de salida
(weglosigkeit), pero que no se puede soslayar. Y es ese concreto problema el que desencadena un juego o
intercambio de consideraciones que constituyen lo que propiamente se denomina ‘tópica o arte de de la
invención.”
80
sempre posta e renovadamente em discussão, animando toda a jurisprudência como uma
‘aporia da justa.’
93
“Esses conceitos e proposições básicas do pensamento jurídico não são
formalmente rigorosos nem podem ser formulados na forma de axiomas lógicos,
mas são topoi da argumentação. A expressão topos significa lugar (comum). Trata-
se de fórmulas variáveis no tempo e no espaço, de reconhecida força persuasiva, e
que usamos com freqüência, mesmo nas argumentações não técnicas das discussões
cotidianas. [...].
No direito são topoi, nesse sentido, noções como interesse, interesse público, boa-
, autonomia da vontade [...].”
94
Hermes Zaneti Júnior e em relevo “[...] O reconhecimento da complexidade do direito, ao
mesmo tempo em que revela a ilusão da certeza e desestabiliza os conceitos estabelecidos
aprioristicamente, liberta o jurista. [...] liberta porque permite o questionamento sincero e
profundo das estruturas abstratas.”
95
Kelly Susane Alflen da Silva destaca que:
“A pica, pois, é muito mais diretiva, diretiva de modos de proceder na práxis
jurídica e de seus pressupostos. Segundo a tópica são relevantes os pressupostos de
partida – não os propósitos finais -, pelos quais as opções decisórias são factíveis de
serem colocadas em um contexto que lhes atribua sentido, e, assim, tornam-se
capazes de aceitação e consenso. É dizer, que, neste caso, se o consenso é o ponto
de partida da argumentação jurídica, distingue-se do consenso enquanto propósito
final da argumentação jurídica, pois neste último caso, seria possível a verificação
da racionalidade da decisão. Ou ainda, pode-se afirmar que se trata de reconduzir
todo juízo, com apoio em valorações topicamente argumentadas, a uma
plausibilidade que se apresenta como racionalidade social evidente, ou se trata de
retrotrair os argumentos a um nível tal em que tendem, precisamente, a um efeito de
coincidência.”
96
Menezes Cordeiro põe em relevo que:
“Em 1953, ao relançar a idéia básica de que o Direito é e permanece uma técnica de
resolução de problemas, THEODOR VIEHWEG traçou as bases da moderna
jurisprudência problemática.
[...]
Segundo Viehweg, o Direito só na aparência comportaria uma estrutura sistemática,
que possibilitaria a dedução de todas as suas proposições e competentes soluções a
93
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de
Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, pp. 3-4.
94
Ibidem., p. 4.
95
ZANETI NIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, pp. 85-86.
96
ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e
jurispruncia: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da ed.
alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 13.
81
partir de uns quantos axiomas de base. Na verdade, quatro planos decisivos
impossibilitariam tal contextura para a Ciência do Direito: a escolha dos princípios
de bases e seus conceitos é, logicamente, arbitrária; a aplicação do Direito requer,
perante as proposições pré-elaboradas, extensões, restrições, assimilações,
concentrações e passos similares; a necessidade de recurso à linguagem, sempre
multi-significativa, impossibilita derivações; a apreensão da matéria de facto,
condicionante de qualquer solução, escapa ao sistema.
97
A insuficiência de um sistema axiomático-dedutivo conduziria à natureza tópica do Direito,
entendida como “um processo especial de discussão de problemas [...].”
98
“[...] dado um problema, chegar-se-ia a uma solução; de seguida, tal solução seria
apoiada em tópicos, em pontos de vistas suscetíveis de serem compartilhados pelo
adversário na discussão, pontos de vista esses que, uma vez admitidos, originariam
respostas lógicas infalíveis.”
99
Entretanto, tal posicionamento foi fortemente rechado por Canaris, que defende a idéia do
pensamento sistemático do Direito em sentido não axiomático. Caberia a atuação da pica
setorialmente, como na integração de lacunas, na aplicação de conceitos jurídicos
indeterminados e de cláusulas gerais.
100
No que tange à aplicação das cláusulas gerais, Rui Rosado de Aguiar nior na tópica a
técnica mais apropriada para a concretização: “[...] Sendo a cusula geral uma norma que
permite a solução do caso, é apropriada para a sua aplicação a pica, que é "técnica de
pensamento orientado por problemas”, e serve para resolver a seguinte questão: o que, aqui e
agora, é o justo.
101
Para Menezes Cordeiro é essencial situar a tópica no contexto da metodologia jurídica. Nesse
sentido, Margarida Maria Lacombe Camargo na tópica uma mudança na discussão
metodológica característica do pós-positivismo. Conforme a Autora, com a obra de Viehweg
houve uma “mudança do eixo da discussão metodológica”, que, até então, repousava sobre o
todo sistemático, de matriz lógico-dedutiva. Entretanto, essa concepção positivista já não
97
MENEZES CORDEIRO, António. Perspectivas metodológicas na mudança do século. In: CANARIS, Claus-
Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A.
Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. VLVI.
98
Ibidem.. pp. XLVI-XLVII.
99
Ibidem., p. XLVI.
100
Ibidem., p. XLVI.
101
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Disponível em
http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/470, acesso em 10.11.2007, Artigo publicado tamm na Revista de
Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000 e na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, n. 18, 2000, p. 221-228.
82
mais atendia “às perplexidades e inseguranças causadas por um mundo de novos e variados
valores. [...] A lógica formal, de feição cartesiana, não dava mais resposta satisfatória à
complexidade das questões jurídicas.” Sob esse panorama, a obra de Viehweg traz uma nova
luz “[...] à necessidade de se construir uma teoria satisfatória para o direito, haja vista a
incapacidade de um sistema axiotico dedutivo fornecer fundamentos aceitáveis à prática
judicial.” Daí apresentar Viehweg o raciocínio pico para a resolução de problemas.
102
Francisco Amaral ressalta que, embora a tendência atual reconheça a importância da lógica
formal e combata veementemente a concepção silogística, o caminho posto é no sentido do
acatamento da contribuição “[...] da lógica dialética ou lógica da argumentação, que contesta
uma aplicação rígida e inflexível das leis, respeitando a dupla exigência do direito, de ordem
sistemática, que é a criação de uma ordem coerente e unitária, e da ordem pragmática, que é a
busca de soluções ideologicamente aceitáveis e socialmente justas.”
103
“[...] A tópica [...] faz parte natural do pensamento jurídico. Para livrar o direito da
tópica, seria necessária uma rigorosa sistematização dedutiva com meios exatos,
que pressupõe que os problemas do direito possam ser mais bem resolvidos por
essa técnica.
Se isso não se aceita, a jurisprudência (ciência do direito) tem de ser entendida
necessariamente como ‘um procedimento especial de discussão de problemas que,
como tal, é objeto da ciência do direito’.”
104
Segundo Garcia Amado, a especificidade dos problemas jurídicos na concepção dada por
Viehweg resulta da ‘aporia fundamental’ da ‘disciplina jurídica’ em seu conjunto, o que lhe
dá sentido e a faz necessária, é a questão do ‘que é o justo aqui e agora’.
105, 106
Na concepção de Hermes Zaneti nior, “a aporia fundamental do direito“[...] pode aqui ser
entendida como a dificuldade de ordem racional, que decorre exclusivamente de um
raciocínio ou conteúdo dele e lhe é intrínseca. Por isso se afirma que o direito é
essencialmente problemático, pois lida constantemente com a aporia da justiça.”
107
102
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do
direito. Rio de Janeiro: Renovar. 2003, pp. 135-150 passim.
103
AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar. 2000, p. 85.
104
ZANETI JÚNIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 86.
105
GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 77-78.
106
No original: “[...] en qué radica la especificidad de los problemas jurídicos […]. [] la ‘aporía
fundamentalde ‘la disciplina jurídica’ en su conjunto, lo que le da sentido e la hace necesaria, es la cuestión
de que ‘qué es lo justo aquí e ahora.
107
Op. cit., p. 90, nota 104.
83
3.5. O Declínio da Codificação e a Construção do Pensamento Sistemático
A grande questão colocada entre pensamento pico e pensamento sistemático remete,
inicialmente, à concepção do conceito de sistema no pensamento jurídico.
A gênese da idéia de sistema faz volver o olhar para a época do direito natural, ponto de
partida para um breve traçado histórico do desenvolvimento da Ciência do Direito. De acordo
com Wieacker a [...] exigência de um ‘sistema natural’, isto é, de um modelo imanente da
natureza e da sociedade que pudesse exprimir num sistema científico coerente e autônomo
108
teve inspiração nas ciências exatas, mais especificamente nas descobertas de Galileu e
Descartes, sem os quais a fase lógico-sistemática do jusracionalismo não teria sido
possível.
109
A metodologia desenvolvida para a ‘construção sistemática da experiência científica’ foi
levada a efeito mediante o desenvolvimento do raciocínio dedutivo orientado pela observação
empírica, que propiciou a constatação de leis naturais, seguidas de leis mais gerais e, por fim
de axiomas. Segundo Wieacker, foi por meio “deste progredir em direção a formulações cada
vez mais gerais que se formaram os sistemas fechados desta época a imagem fisicalista da
natureza de Newton [...] a Ethica more geometrico demosntrata de Espinosa, e com uma
importância não menor, os sistemas jusracionalistas.”
110
No jusracionalismo, a visão do homem ganha uma nova perspectiva: não mais como obra
divina, mas como elemento de observação das leis naturais da sociedade, para quais se busca
a mesma imutabilidade das deduções alcançadas na matemática e na física. Essa nova
antroplogia leva à construção de um “sistema fechado da sociedade, um direito natural’” à
semelhança do modelo lógico-dedutivo das ciências exatas.
111
Wieacker assinala que, sob a influência do mecanicismo de Galileu e do racionalismo de
Descartes, Pufendorf desenvolveu um sistema geral, por meio da dedução racional em
108
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Tradução de A. M. Botelho Espanha.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 284.
109
Ibidem. p. 285.
110
Ibidem., pp. 286-287.
111
Ibidem, p. 288.
84
cadeia e da observação empírica.”
112
Também, sob a influência de Descartes, Pufendorf
chegou à ligação entre dedução e indução, entre os axiomas e a observação, entre o método
sintético e o analítico, ligação que caracterizava o pensamento das ciências naturais desde os
Discorsis de galileu.”.
113
Ademais, “através da combinação de dedução e observação,
Pufendorf ensaiou o primeiro sistema de uma teoria do direito, que, no que diz respeito aos
seus pormenores (conclusões) [...] determinou o próprio conteúdo do direito natural, o tornou
mais aberto e o enriqueceu.”
114
Wieacker assegura que “[...] O sistema de Pufendorf
sobreviveu até hoje nos grandes códigos da Europa central, na medida em que estes se
baseiam na sistematização da ciência do direito comum pelo jusracionalismo. Em particular a
‘parte geral’ de muitos dos novos digos seria dificilmente pensável sem o trabalho prévio
de Pufendorf.”
115
O Código Civil francês, de 1804, e o digo alemão, de 1896, são os grandes marcos da era
da codificação, influenciando de lá para a construção catalogada das leis nos mais diversos
países.
Natalino Irti destaca que, na técnica de redação do Código Civil italiano, de 1865, os artigos
se desenvolvem segundo a lógica cssica de fattispecie e dos efeitos delas decorrentes, isto é,
hipóteses particulares das conseqüências jurídicas correlatas. A criação legislativa de um
repertório de figuras típicas para as quais o juiz pouco ou nada pode acrescentar na análise do
caso concreto em confronto à leitura do texto normativo. A técnica da fattispecie elimina ou
reduz ao máximo as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos fluidos. O digo é ‘desenhado’
tendo por característica a imutabilidade acompanhada da pretensão de completude e da
ambição de dar resposta a todos os problemas da realidade.
116, 117
112
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Tradução de A. M. Botelho Espanha.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 348.
113
Ibidem, pp.. 348-349.
114
Ibidem, p. 349.
115
Ibidem, p. 350
116
IRTI, Natalino. L’età della codificazione. Revista de Direito Civil, imobiliário, agrário e empresarial. ano
3. n. 10. out. – dez. 1979, pp.17-18.
117
No original: Il primo dato sta nella tecnica di redazionedel codice civile del 1865. Gli articoli si svolgono
secondo la logica classica di fattispecie ed effeti, cioé di ipotesi particolari e di correlative conseguenze
giuridiche. Il legislatore s’illude di creare un repertorio di figure e discipline tipiche, sicché il giudice poco o
nulla possa aggiungere all’accertamento del fato concreto ed alla lettura del testo normativo. Latecnica della
fattispecie elimina, o riduce al minimo, le clausole generali i concetti fluidi: al carattere dell’immutabilisi
accompagnano la pretesa della compiutezza e l’ambizione di dare risposta a tutti i problemi della realità.”
85
Entretanto, face às peculiaridades da Ciência do Direito, o positivismo e o formalismo foram
postos em xeque, uma vez que as considerações estritamente jurídico-positivas consideradas
intocáveis, que recusam quaisquer ‘referências metasicas’ ou ‘filosóficas’, marcadas pela
interpretação exegética dos textos, demarcam a fragilidade desse sistema reclamando por um
novo traçado metodológico para essa mesma Ciência.
118
“O primeiro óbice que se opõe ao formalismo reside na natureza histórico-cultural
do Direito. [...] sabe-se que o Direito pertence a uma categoria de realidades dadas
por paulatina evolução das sociedades.
119
O segundo obstáculo reside na incapacidade do formalismo perante a riqueza dos
casos concretos. Na verdade, todas as construções formais assentam num discurso
de grande abstração e, como tal, marcado pela extrema redução de suas
proposições. Quando invocadas para resolver casos concretos, tais proposições
mostram-se insuficientes: elas não comportam os elementos que lhes facultem
acompanhar a diversidade de ocorrências e, daí, de soluções diferenciadas.”
120
Nesse sentido concorrem as afirmações de Judith Martins-Costa sobre a metodologia adotada
na construção do Código Civil alemão e também na do Código Civil brasileiro:
“O sistema jurídico é visto de modo fechado como a concatenação das projeções
jurídicas obtidas mediante análise, de tal modo que elas formem, entre si, um
sistema de regras logicamente claro, em si logicamente livre de contradições e
sobretudo sem lacunas, para o que todos os fatos da vida tidos como jurídicos
possam logicamente subsumir-se numa das normas contidas pelo Código.”
121
Portanto, conforme asseverado por Menezes Cordeiro [...] a incapacidade demonstrada pelos
esquemas formalistas tradicionais e pelo juspositivismo em acompanhar as novas
necessidades enfrentadas pelo Direito.”
122
. “[...] constatam, no fundo, a insuficiência de
ambas essas posturas perante as necessidades da efectiva realização do Direito.”
123
“Eis, pois, o desafio. Confrontando com as insuficiências do formalismo e do
positivismo, o discurso jurídico tem de, como primeira tarefa, ampliar a sua base de
incidência. Todo o processo de realização de Direito, portanto todos os factores que
interferem, justificam ou explicam as decisões jurídicas, devem ser incluídos no
discurso juscientífico. Noutros termos, o discurso juscientífico deve ser integral.
124
118
MENEZES CORDEIRO, António. Dilemas da ciência do direito no final do século XX. In: CANARIS,
Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A.
Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, pp. XIII-XVI.
119
Ibidem, pp. XVIII-XIX.
120
Ibidem, p. XX.
121
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 225.
122
Op. Cit., p. XXVII, nota 118.
123
Ibidem, p. XXIII.
124
Ibidem, p. XXIV.
86
Essa insuficiência foi notada, também, por Clóvis do Couto e Silva ao deixar expresso que “a
idéia de Código, como totalidade normativa, corpus juris completo e acabado, não mais tem
sentido [...] A complexidade social atingiu um grau tão elevado, acarretou um número tão
grande de leis, que em todo mundo se observa a tenncia a reduzi-las ao indispensável.”
125
A integralidade desse discurso, no entanto, não poderia ser alcançada, exaustivamente, em
proposições normativas, o que denotava a incoerência das idéias de completude do sistema
codificado e de aversão à probabilidade da presença de lacunas no ordenamento. Tal
constatação levou a uma nova configuração normativa com a adoção de princípios gerais,
conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais etc.
Essa inexorável realidade era veementemente rechada pelos adeptos do positivismo e do
formalismo, fato esse que, por si só, não teve força suficiente para a manutenção de um
sistema jurídico enclausurado em suas próprias amarras.
“O Direito é um modo de resolver casos concretos. Assim sendo, ele sempre teve
uma particular aptidão para aderir à realidade: mesmo quando desamparado pela
reflexão dos juristas, o Direito foi, ao longo da História, procurando as soluções
possíveis.
126
[...]
“A concepção positivista da contraposição entre os sistemas interno e externo deve
ser superada, através da sua síntese. Definitivamente interligadas, a lógica imanente
do Direito e as proposições externas necessárias ao seu estudo e à sua
aprendizagem constituem um todo que só em abordagens analíticas pode ser
dissociado.”
127
“Por isso quando se fala em sistema, no Direito, tem-se em mente uma ordenação
de realidades jurídicas, tomadas nas suas conexões imanentes e nas suas rmulas
de exteriorização.”
128
Tal constatação levou ao pensamento sistemático do Direito como Ciência capaz de lidar com
a diversidade de comportamentos, de culturas, de fatores econômico-sociais. Para o equilíbrio
desse sistema tornou-se imperioso o delineamento debitolas de comportamento
129
que
visassem à estabilidade das sociedades o que conduziu “[...] desde logo, uma primeira iia de
125
COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito Civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro.
Porto Alegre: AJURIS: Revista da Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul. ano XIV. Jul. 1987, p. 147.
126
MENEZES CORDEIRO, António. Dilemas da ciência do direito no final do século XX. In: CANARIS,
Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A.
Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. XXIV.
127
Ibidem., p. LXIX.
128
Ibidem, p. LXIX.
129
Expressão utilizada por Menezes Cordeiro.
87
sistema: o Direito assenta em relações estáveis, firmadas entre femenos que se repetem,
seja qual for a consciência que, disso, haja.
130
“O Direito pressupõe, na verdade, uma repetição de fenômenos normativos,
enquanto acontecimentos dotados de dimensão social, independentes, em certos
estádios evolutivos, da própria consciência gnoseológica que, deles, exista.
A objectivação assim permitida não pode, no entanto, fazer esquecer que o Direito
é sempre um fenômeno cultural. A sua existência depende da criação humana e a
sua estruturação advém da adopção pelos elementos que compõem uma sociedade,
de certas bitolas de comportamento.
131
Nesse contexto, Menezes Cordeiro ressalta “[...] o relevo profundo que a arrumação
imprimida, pelo legislador, aos seus diplomas, assume em sede de soluções jurídico-
materiais”.
132
“As exigências renovadas de uma Ciência Jurídica clara e precisa, capaz de
responder a uma realidade em evolução permanente e que tenha em conta os actuais
acontecimentos hermenêuticos e as exigências de maleabilidade deles decorrentes
apontam para um novo pensamento sistemático.”
133
Nessa senda, Canaris coloca em evidência que:
“Longe de ser uma aberração, como pretendem os críticos do pensamento
sistemático, a idéia do sistema jurídico justifica-se a partir de um dos mais elevados
valores do Direito, nomeadamente do princípio da justiça e das suas concretizações
no princípio da igualdade e na tendência para a generalização. Acontece que um
outro valor supremo, a segurança jurídica, aponta na mesma direcção. Também ela
pressiona, em todas as suas manifestações seja como determinabilidade e
previsibilidade do Direito, como estabilidade e continuidade da legislação e da
jurisprudência ou simplesmente como praticabilidade da aplicação do Direito – para
a formação de um sistema, pois todos esses postulados podem ser muito melhor
prosseguidos através de um direito adequadamente ordenado, dominado por poucos
e alcançáveis princípios, portanto um Direito ordenado em sistema, do que por uma
multiciplicidade inabarcável de normas singulares desconexas e em demasiado fácil
contradição uma com as outras.”
134
Em apertada síntese, “[...] O papel do conceito de sistema é, no entanto, como se volta a
frisar, o de traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem
130
MENEZES CORDEIRO, António. Dilemas da ciência do direito no final do século XX. In: CANARIS,
Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A.
Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. LXIV.
131
Ibidem, p. LXVII.
132
Ibidem, p. LXIX.
133
Idem. A realização do direito. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na
ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian. 2002, p. CXII.
134
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 22.
88
jurídica.”
135
, que se contrapõe à “[...] idéia dodigo, no seu sentido tradicional e positivista,
como algo que incorpore a totalidade em seu universo a totalidade normativa de um país”
136
3.6. Concepções Doutrinárias sobre a Idéia de Sistema
Para a compreensão dessa visão sistêmica da Ciência do Direito oportuno se torna trazer à
colação a concepção de balizada doutrina, citada por Canaris:
“KANT caracterizou o sistema como a unidade sob uma idéia, de conhecimentos
variados ou, também, como ‘um conjunto de conhecimentos ordenados segundo
princípios’. No ‘Dicionário dos conceitos filosóficos de EISLER, define-se
sistema:’1. Objectivo: um conjunto global de coisas, processos ou partes, no qual o
significado de cada parcela é determinado pelo conjunto supra-ordenado e supra-
somativo (...)2. gico: uma multiciplicidade de conhecimentos, unificada e
prosseguida através de um princípio, para um conhecimento conjunto ou para uma
estrutura explicativa agrupada em si e unificada em termos internos lógicos, como o
correspondente, o mais possível fiel, de um sistema real de coisas, isto é, de um
conjunto de relações das coisas entre si, que nós procuramos, no processo científico
‘reconstruir’ de modo aproximativo’. Segundo SAVIGNY, o sistema ‘é a
concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos e as regras de Direito
numa grande universidade’, segundo STAMMLER ‘uma unidade totalmente
coordenada’, segundo BINDER, um conjunto de conceitos jurídicos ordenado
segundo pontos de vista unitários’, segundo HEGLER, ‘a representação de um
âmbito do saber numa estrutura significativa que se apresenta a si própria como
ordenação unitária e concatenada’, segundo STOLL um ‘conjunto unirio
ordenado’ e segundo, GOING uma ‘ordenação de conhecimentos segundo um
ponto de vista unitário.’”
137
Para Judith Martins-Costa, em sentido lato, [...] a noção de sistema supõe, portanto, na
matéria jurídica, pelo menos a reunião de certos elementos em um conjunto organizado e
ordenado e a unitariedade das fontes de sua produção.
138
Na definição de sistema há duas características que emergem:
“[...] a de ordenação e a de unidade; elas estão, uma para a outra, na mais estreita
relação de intermbio, mas são, no fundo, de separar. No que respeita, em primeiro
lugar, à ordenação, pretende-se, com ela [...] exprimir um estado de coisas
135
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 23. Todos os destaques no
original.
136
COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito Civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro.
Porto Alegre: AJURIS: Revista da Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul. ano XIV. Jul. 1987, p. 137.
137
Op. cit., pp. 10-11, nota 135.
138
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 41.
89
intrínseco racionalmente apreensível, isto é, fundado na realidade. No que toca à
unidade, verifica-se que este factor modifica o que resulta da ordenação, por não
permitir uma dispersão numa multitude de singularidades desconexas, antes
devendo deixá-las reconduzir-se a uns quantos princípios fundamentais.”
139
O traçado estrutural desse novo pensamento sistemático da Ciência do Direito é delineado por
Menezes Cordeiro, da seguinte forma:
“Tal pensamento pode ser comodamente indiciado através de quatro requisitos
presentes no sistema por ele postulado: trata-se de um sistema aberto, móvel,
heterogêneo e cibernético. Aberto no duplo sentido de extensivo e intensivo;
extensivo por oposição a pleno: admite questões a ele exteriores, que teo de
encontrar saídas; intensivo por oposição a contínuo: compatibiliza-se, no seu
interior, com elementos materiais a ele estranhos. Móvel por, no seu seio, não
postular proposições hierarquizadas, antes surgindo intermutáveis. Heterogêneo por
apresentar, no seu corpo, áreas de densidade diversa: desde coberturas integrais por
proposições rígidas até às quebras intra-sistemáticas e às lacunas rebeldes à
analogia. Cibernético por atentar nas conseqüências de decisões que legitime,
modificando-se e adaptando-se em função desses elementos periféricos.
140
Judith Martins-Costa faz a distinção entre sistema fechado e sistema aberto nos seguintes
termos: “O sistema fechado é o que se auto-referencia de modo absoluto é exclusivo e
excludente”. Por sistema aberto deve-se compreender [...] o sistema que se auto-referencia
de modo apenas relativo. Não é, portanto, excludente do que está em suas margens, possuindo
mecanismos de captação do seu entorno e de ressistematização destes elementos.”
141
Por sua vez, a Autora traça a diferença existente entre ‘ordenamento’ e ‘sistema’, vez que não
são termos sinônimos, sendo delineados os tros característicos do ‘ordenamentocomo o
[...] conjunto de normas que regulam a vida jurídica em certo espaço territorial. O sistema
exprime as ligações, nem sempre existentes, entre estas normas. O ordenamento é, assim, uma
espécie de ‘ecossistema’, que pode abranger uma ampla variedade de sistemas e subsistemas
normativos.”
142
Na visão de Francisco Amaral a idéia de sistema permite, não didaticamente, uma melhor
compreensão do direito, bem como do direito comparado ao possibilitar o confronto e o
139
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, pp. 12-13.
140
MENEZES CORDEIRO, António. A realização do direito. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento
sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, pp. CXII-CXIII.
141
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 42-43.
142
Ibidem., p. 43.
90
relacionamento entre os diversos sistemas integrantes do universo social. Ademais, traz a
compreensão dos valores e do modo de agir presentes na realidade social numa relação
indissociável com o sistema jurídico.
143
Larenz, por sua vez, destaca os empenhos da doutrina em trazer o sentido de sistema na
Ciência do Direito. Inicia pela concepção de sistema concebida por Engisch, que rechaça a
possibilidade de um sistema axiomático no campo jurídico. Entretanto, não descarta a idéia de
sistema e afirma que “[...] mesmo uma ordem jurídica que tacteie de caso para caso e de
regulação particular para regulação particular” seria desenvolvida “de acordo com princípios
imanentes que formam no seu conjunto um sistema”. Logo, a concepção de Engisch é de um
sistema de princípios diretivos que, coerentemente, se relacionam entre si, e que não
reclamam para si qualquer validade geral ou plenitude. Segundo Engisch, o sistema não
poderia ser lançado como uma rede sobre o direito”. Daí Larenz compreender, das aportações
feitas por Engisch, que o sistema precisa ser ‘desenvolvido continuamente a partir do
conjunto do Direito, das suas conexões de sentido imanentes, e tornar esse todo transparente e
compreensível enquanto uma conexão de sentido.”
144
Segundo Larenz, Esser faz a distinção entre sistema fechado relacionado à idéia de
codificação e sistema aberto relacionado à casuística e não admite a exclusividade da
pica para a resolução de problemas. Segundo Esser, em todas as culturas jurídicas repete-se
um processo circular de descoberta de problemas, formação de princípios e consolidação do
sistema.” Os critérios que fundamentavam, de modo comprovável, cada decisão dos
problemas individualmente analisados, eram apreendidos em conceitos que, por sua vez,
ofereciam um quadro racional de valoração no âmbito do qual a actividade de julgar se
poderia continuar a desenvolver.” Larenz esclarece que Esser não tem em vista conceitos
exaustivamente definidos, mas ‘conceitos-quadro’, cabendo à jurisprudência preenchê-los.
145
Adepto, também, à iia de sistematização do direito Larenz destaca que na concepção de
Coing todo o sistema “[...] condensaria o conhecimento alcançado na resolão de problemas
concretos: os princípios reconhecidos na sua relação recíproca, bem como as estruturas
materiais reconhecidas que se deparam no caso, no objecto da regulação.” Dessa forma,
143
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar. 2000, p. 120.
144
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian. 1997, p. 231.
145
Ibidem., pp. 232-233 passim.
91
Larenz observa que o sistema revela o trabalho que foi desenvolvido dando origem a novos
conhecimentos que servirão de base para ulterior desenvolvimento do Direito. Nesse contexto,
o trabalho sistemático permanece como uma tarefa contínua: que se tem de ter
consciência de que nenhum sistema pode dominar dedutivamente a totalidade dos problemas;
o sistema tem de permanecer aberto. É apenas uma condensação proviria”, adverte
Coing.
146
Larenz sintetiza as idéias de Engisch, Esser e Coing nos seguintes termos: “[...] o sistema
jurídico-científico tem de permanecer ‘aberto’, nunca tornado definitivo e, portanto, não
podendo nunca ter à disposição uma resposta para todas as questões [...].”
147
Das diversas análises das concepções sobre sistema na Ciência do Direito Larenz conclui:
“É-nos lícito acreditar que nos chega à mão, aqui e ali, um pedaço do fio cujo fim é
para nós oculto. Sendo assim, então para a Ciência do Direito [...], a única espécie
de sistema ainda possível é o sistema ‘abertoe, até certo grau, ‘móvel’ em si, que
nunca está completo e pode continuamente ser posto em questão, que torna clara a
‘racionalidade intrínseca’, os valores directivos e os princípios do Direito. A busca
de tal sistema e a orientação dada por ele em questões fundamentais é uma parte
constitutiva irrenunciável do labor judico.”
148
As concepções doutrinárias colacionadas vêm corroborar a iia de que se vive um constante
reconstruir da Ciência do Direito, na qual a pretensa exatidão dos textos normativos em uma
codificação que aspira por ser exaustiva, e na qual sobreleva a onipotência do legislador, cede
espaço a uma sistematização aberta aos influxos das novas e emergentes relações sociais, que
admite a presença de lacunas e faz uso de princípios gerais, conceitos jurídicos
indeterminados e cláusulas gerais estabelecendo um novo paradigma da práxis jurídica o
paradigma da concreção.
Conforme ressaltado por Judith Martins-Costa, o sistema jurídico visto como um ‘sistema
aberto’ “não mais se revela como uma mera servidão à lei, formalmente caracterizada [...]
afastando-se, por conseqüência, a idéia de que o Direito possa ser aplicado, interpretado e
146
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian. 1997, pp. 233-234.
147
Ibidem., p. 234.
148
Ibidem., p. 241.
92
desenvolvido a partir de si mesmo seja através das representações do legislador seja por
intermédio de um suposto ‘sentido imanente’”.
149
3.7. A Mobilidade como Traço Característico dos Sistemas Abertos
Os autores que concebem a idéia do Direito como um sistema aberto aos influxos do que está
em seu entorno apresentam como traço característico desse sistema, além da abertura, que lhe
seria inerente, a mobilidade. Canaris, adepto dessa corrente, apresenta as seguintes
considerações no que tange à mobilidade e à abertura dos sistemas:
“No que toca, em primeiro lugar, à abertura, encontram-se na literatura, utilizações
lingüísticas diferentes. Numa delas, a oposição entre sistema aberto e fechado é
identificada com a diferença entre uma ordem jurídica construída casuisticamente e
apoiada na jurisprudência e uma ordem dominada pela idéia de codificação; [...]
150
Na outra, entende-se por abertura a incompleitude, a capacidade de evolução e a
modificabilidade do sistema; neste sentido, o sistema da nossa ordem jurídica
hodierna pode caracterizar-se como aberto. Pois é um facto geralmente conhecido
e admitido o de que ele se encontra em uma mudança permanente [...].”
151
A ordem e a unidade m sido apontadas pela doutrina como características do conceito geral
de sistema
152
. Canaris faz, respectivamente, “a sua correspondência jurídica nas idéias da
149
MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. Revista dos
Tribunais. São: Revista dos Tribunais. n. 680. jun. 1992, p. 49.
150
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 103.
151
Ibidem, p. 104.
152
Em que pese a grande maioria doutrinária ser adepta da corrente que percebe o sistema jurídico como um
sistema aberto, não implica, todavia, que seja uma corrente unitária. Espelhada na doutrina dos biólogos chilenos
Humberto Maturana e Francisco Varella, que conceberam o conceito de autopoiese “para caracterizar seres
vivos, enquanto sistemas que produzem a si próprios” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. O direito como
sistema autopoiético. In Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol.
XXXIX, n. 163. jul. set. 1991, p. 185) uma corrente doutrinária, encabeçada por Niklas Luhmann, que
transpôs esse conceito de autopoiese para os sistemas sociais. Adepto dessa teoria Teubner, “discípulo de
Luhmann” afirma que “o sistema jurídico dos nossos dias pode ser visto como um sistema autopoiético de
segundo grau. Trata-se de um sistema constituído por actos de comunicação particulares gravitando em torno da
distinção ‘legal/ilegal’, que se reproduzem como actos jurídicos. Tais actos comunicativos são regulados por
expectativas jurídicas especializadas (que coordenam os processos sistemáticos internos da reprodução daqueles)
e definem, graças a sua especialização ‘normativa’, as fronteiras do próprio sistema judico. Nas suas operações,
o sistema jurídico constrói um meio envolvente próprio, a ‘realidade jurídica’, que aqui deve ser entendida no
sentido sistémico estrito de modelo externo do mundo exterior sendo nisso que reside a sua abertura cognitiva
ou informativa do sistema jurídico operativamente fechado.” TEUBNER, Gunther. O direito como sistema
autopoiético. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1989, p. 140. Entretanto, conforme destaca Engracía,
trata-se de recente evolução do pensamento filosófico e sociológico do direito. “Nunca será demais recordar que
a hipótese autopoiética originária (enquanto autopoiesis do biológico) surgiu em meados da década de setenta e
que sua transposição para o domínio das ciências sociais e humanas ocorreu apenas em meados da década de
oitenta, sendo certo que sua aplicação ao domínio das ciências jurídicas constitui evento recentíssimo”.
(ANTUNES, Engracía. Prefácio. In TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Fundação
Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1989, p. XXX.) Citado, também, por KANIJNIK, Danilo. Os standards do
93
adequação valorativa e na unidade interior do direito; [...].”
153
Nessa perspectica, segundo
Canaris “[...] deve-se definir o sistema jurídico como ‘ordem axiológica ou teleológica de
princípios jurídicos gerais’. [...].”
154
É importante destacar que essa concepção de Canaris não se restringe à ordem jurídica, mas
alcançaria também as proposições doutrinárias.
“Este sistema não é fechado, mas antes aberto. Isto vale tanto para o sistema de
proposições doutrinárias ou ‘sistema científico’, como para o próprio sistema da
ordem jurídica, o ‘sistema objectivo’. A propósito do primeiro, a abertura significa
a incompleitude do conhecimento científico, e a propósito do último, a
mutabilidade dos valores jurídicos fundamentais.
A função do sistema na Ciência do Direito reside, por conseqüência, em traduzir e
desenvolver a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica. A partir
daí, o pensamento sistemático ganha também a justificação que, com isso, se deixa
derivar mediatamente dos ‘valores jurídicos elevados’.”
155
Ao adotar a técnica legislativa com o uso das cláusulas gerais o legislador tem em mira
assegurar uma permanente atualização do direito legislado, sem que se tenha que recorrer a
alterações no seu texto.
“É característico para a cláusula geral o ela estar carecida de preenchimento com
valorações, isto é, o ela não dar os critérios necessários para a sua concretização,
podendo-se estes, fundamentalmente, determinar apenas com a consideração do
caso concreto respectivo.
156
Sob esse prisma tanto a jurisprudência quanto a doutrina desempenham papel de relevo na
construção do conteúdo veiculado pela cláusula geral.
convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. In: Revista Forense. vol. 353. jan. fev.
2001, p. 30. Embora seja recente, trata-se de uma teoria que instiga à investigação e ao aprofundamento. “No
sistema jurídico [...] se transmite a regulamentação de conduta, garantindo expectativas de comportamentos,
através de aplicações das normas do sistema, feitas por juízes ao decidirem lides, e também por particulares ao
fazerem um contrato, pelos legisladores ao elaborarem as novas leis etc. Fazer a aplicação do direito pressupõe
uma compreensão dele [...]. A compreensão de regras do direito, porém, pressupõe que se imagine sua aplicação
e possíveis resultados, dela, tendo em vista o sistema jurídico como um todo. E nessa circularidade auto-
referencial, reflexiva, que o direito, de forma recursiva, vai-se auto-produzindo, continuamente, enquanto
sistema autopoiético. GUERRA FILHO, Willis Santiago. O direito como sistema autopoiético. In Revista
Brasileira de Filosofia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. XXXIX, n. 163. jul. set. 1991, p. 196.
Para melhor aprofundamento sobre a teoria recomenda-se a obra de Teubner.
153
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 279.
154
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 280.
155
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 280
156
Ibidem, p. 142.
94
“O ‘sistema móvel está, legislativamente, entre a formação de previsões
normativas gidas, por um lado, e a cláusula geral, por outro. Ele permite
confrontar de modo particularmente feliz, a polaridade entre os ‘mais altos valores
do direito’, em especial a ‘tendência generalizadora’ da justiça e a
‘individualizadora’ e constitui, assim, um enriquecimento valioso do instrumentário
legislativo. Ele o deve, contudo, ser exclusivamente utilizado, antes
representando uma possibilidade legislativa entre outras, ligadas entre si.”
157
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira destaca a importância do papel do sistema no donio do
Direito Processual, face à capacidade de realizar a adequação valorativa e a unidade interior
da ordem jurídica.
158
3.8. Pensamento Sistemático e Tópica
Em sua obra datada de 1953, Theodor Viehweg defendeu a tese de que a estrutura do direito
o poderia ser captada com o auxílio do pensamento sistemático. A Ciência do Direito é,
pela sua estrutura, tópica.
159
A juízo de Viehweg, o ponto mais importante na consideração da pica constitui a
determinação daquela técnica de pensamento que será orientada pelo problema” sendo a
pica “a técnica do pensamento problemático.
160
Garcia Amado, ao analisar a tese de Viehweg sobre a inviabilidade do sistema lógico-
dedutivo, compreende que o desenvolvimento das iias de Viehweg sobre o sistema e sua
relação com a pica teve como ponto de partida a lógica dos juristas e não a lógica das
normas; no raciocínio a partir de um material dado e não na ordenação concreta desse
material. Poderia dizer que, no centro do interesse de Viehweg, estaria uma consideração
dinâmica do direito, em contraposição a um enfoque estático ou estrutural.
161, 162
157
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 282.
158
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo valorativo em confronto com o formalismo
excessivo. Revista de processo. n. 137. ano 31. São Paulo: Revista dos Tribunais. jul. 2006, p. 21.
159
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 243-245, nota 154.
160
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-
científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2007, pp. 33-34.
161
GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 146-147.
162
No original: Por otra parte puede ser clarificador tratar de delimitar a qué ámbito de lo jurídico se refiere
Viehweg cuando haba de la inviabilidad del sistema jurídico lógico-deductivo. […] al desarrollar sus ideas
95
Seguindo essa linha de raciocínio, o Autor afirma que, sendo a pica uma técnica de pensar
por problemas, e como os problemas não se incorporam de modo estável e definitivo em um
sistema dedutivo, antes são dinâmicos e se renovam continuamente no âmbito da sociedade à
qual se refere, a partir dos problemas se opera uma selão dos sistemas e não o inverso.
Destarte, os topoi seriam, por sua flexibilidade, intercambialidade e fácil renovação o
instrumento mais adequado para o enfrentamento dessa dinâmica de problemas frente à
rigidez e permanente defasagem da lei positiva. Daí concluir que a decisão jurídica de solução
de conflitos seria, portanto, o centro de interesse de Viehweg, partindo desse ponto para
analisar a possibilidade ou utilidade da idéia de sistema para a vida jurídica.
163, 164
É importante notar que, posteriormente à sua obra ‘Tópica e Jurisprudência’, conforme
abordado por Garcia Amado, Viehweg voltou ao tema do sistema jurídico, que, desta vez,
de forma mais ampla. “Em 1961 havia escrito que ao dizer que o pensamento jurídico não
se apresenta como um sistema dedutivo não significa dizer que não vestígio de sistema, de
ordenação coerente do conjunto.”
165, 166, 167
Ademais, conforme apontado por Garcia Amado, em 1968, no artigo intitulado
Systemprobleme in RechtsdogmatikViehweg assegura que o ordenamento jurídico é um
agrupamento que constitui um todo, dele se servindo o jurista. Trata-se, segundo Viehweg, de
sobre el sistema en su relación con el pensamiento tópico , Viehweg tiene puesto el punto de mira en la lógica de
los juristas, no en las normas, en el razonamiento a partir de un material dado y no en la ordenación concreta
de este material. [] Con otras palabras, en el centro de interés de Viehweg estaría una consideración
dinámica del Derecho, por contraposición a un enfoque estático o estructural.”
163
GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 147.
164
No original: Ya el primer y más general planteamiento de su teoría tópica parece indicar esta orientación.
La tópica sería aquella técnica del pensamiento que se orienta hacia el problema o ‘técnica del pensamiento de
problemas’, y los problemas no son algo que se pueda incorporar de modo estable y definitivo a un sistema
deductivo de reglas para su solución, sino que surgen, cambian y se renuevan continuamente en el marco de la
sociedad o grupo de que se trate. De ahí que a partir del problema se opera una selección de los sistemas, y no
a la inversa. Y, por lo mismo, los topoi serían, por su flexibilidad, intercambiabilidad y fácil renovación, el
instrumento más adecuado para afrontar esa dinámica de problemas, frente a la artificialidad, rigidez e
permanente desfase de toda decisión que no pretende más apoyo que el de la ley positiva en sus estrictos
términos.[…] La decisión jurídica de solución de conflictos sería, por tanto, el centro de interés de Viehweg y
desde él valora la posibilidad o utilidad de la idea de sistema para la vida jurídica.
165
VIEHWEG, Theodor. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, cit. P. 329. apud GARCIA AMADO,
Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 150.
166
No original: Ya antes, en 1961, había precisado que decir que el pensamiento jurídico no se presenta como
un sistema deductivo no significa decir que falta todo vestigio de sistema, de ordenación coherente del
conjunto.”
167
Nesse sentido a posição de Robles Morchón: “a tópica tem sido considerada como oposta ao sistema, quando
é evidente que em qualquer caso os catálogos de topoi constituem sistemas rudimentares. A tópica é contrária
somente ao sistema fechado.” ROBLES MORCHÓN, G. Epistemologia e Derecho. Madrid: Pirámide. 1982,
p.113. apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 150, nota
de rodapé 32.
96
uma construção sistemática que pode adotar diversas concepções, seja no sentido funcional
(sistema com função dogmática, que constitui a dogmática jurídica, e sistema com fuão
investigadora, que possibilita o conhecimento sobre o direito, visto o seu interesse ser o
cognoscitivo). Sob o aspecto estrutural os sistemas podem assumir diversas funções, dentre as
quais destaca o sistema pico, que provém da retórica e se apresenta como um sistema
argumentativo que se orienta pelo problema.
Segundo Viehweg “[...] o sistema tópico está em permanente movimento e cada formulação
do mesmo indica somente uma etapa argumentativa em relação à problemática, tal como esta
se apresenta. Pode, por isso, ser designado como sistema aberto, visto que deixa sua
deliberação aberta a novos pontos de vista. [...]”
168
Conclui Garcia Amado que, na acepção de
Viehweg, poder afirmar que a pica e sistema em sentido amplo não são excludentes, mas
são plenamente conciliáveis. A incompatibilidade maior seria entre pica e sistema dedutivo,
que a pica não pode configurar-se segundo o modelo dedutivo.
169
Sob essa ótica, é importante ressaltar que a boa-fé objetiva no campo processual, na qualidade
de standard ou modelo jurídico, tem a aptidão de permitir a aplicação no caso concreto, sem
uma definição à priori, pelo contrário, dada a sua característica polissêmica, móvel e fluida os
seus contornos são delineados à vista de cada problemática.
Nesses termos, trazemos à colação os apontamentos de Danilo Knijnik:
“[...] os standards não são como acertadamente observa Strache, regras
configuradas conceptualmente, às quais se possa efectuar simplesmente subsunção
por via do procedimento silogístico, mas pautas ‘móveis’, que têm de ser inferidas
da conduta reconhecida como ‘típica’, e que têm de ser permanentemente
concretizadas ao aplicá-las no caso a julgar. O standard é, segundo Strache, um
tipo real, mas é, ao mesmo tempo, sempre um tipo ideal axiológico. [...].”
170
“Portanto, todos os standards, paradigmas ou modelos de constatação, sob pena de
destruir-se a si próprios, são abertos. Deles o se podem esperar soluções lógico-
dedutivas. A regra que eles encerram deve, assim, ser hetero-integradas, ou seja,
completadas com base em critérios meta-jurídicos que, segundo o lugar-comum
tradicional, existem na sociedade.”
171
168
VIEHWEG, Theodor. Sustemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, cit. pp. 337-338 apud
GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 153.
169
GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 150-155.
170
KANIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. In:
Revista Forense. vol. 353. jan. – fev. 2001, p. 27.
171
TARUFFO, Michelle. La giustificazione delle decisione fondate su ‘standards. In: La regola del caso:
materiali sul ragionamento giuridico, Cedam, Milão, 1995, p. 267 apud KANIJNIK, Danilo. Os standards do
convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. In: Revista Forense. vol. 353. jan. fev.
2001, p. 27.
97
Ao analisar a relação existente entre pica e sistema, podem ser identificadas três posições
doutrinárias: 1) aqueles que vêem radical incompatibilidade entre ambos; 2) aqueles que
apontam uma tensão entre sistema e tópica e, por fim 3) aqueles que compreendem a
compatibilidade existente entre pensamento tópico e o pensamento sistemático ambos são
complementares.
172
Com relação a essa terceira corrente, Garcia Amado faz uma subdivisão em função da
importância atribuída à tópica e ao sistema:
173
a) Em primeiro lugar, estão aqueles autores que aludem uma necessidade de recíproca
complementação entre pica e sistemática sem, entretanto, que qualquer deles ocupe uma
posição de preemincia. Estão nesse grupo Frederich Müller e Esser.
b) Em um segundo grupo estão elencados os autores que, embora reconhecendo a
compatibilidade da tópica e do sistema, vêem que a tópica se sobressai, tais como Horn e
Egon Schneider.
c) Finalmente, aqueles autores que admitem a presença simultânea da sistetica e da tópica,
mas que põem em destaque a sistemática. Dentre eles encontra-se Canaris.
Segundo Canaris:
“A contraposição entre sistemática e tópica tem caráter dialético, uma vez que há
um condicionamento recíproco. Assim a teoria que se desenvolve com a ajuda da
sistemática se tem de provar ante o problema e receber dele sua justificação última,
assim, por outro lado, as propostas de solução obtidas partindo do problema recebe
força vinculante tão somente mediante sua inserção no sistema e nos valores
fundamentais do Direito válido. Afirma, inclusive, que os representantes do
pensamento tópico precisam reconhecer a existência de conexões gerais e internas
entre os objetos. Com isso, os catálogos de tópicos, na medida em que queiram ser
vinculantes e utilizáveis pela Ciência do Direito, e não uma mera aplicação do caso
concreto, somente podem ser obtidos com a ajuda desse ‘sistema interno’ de um
ordenamento. [...] Isso não significa dizer que o pensamento tópico está sempre
submetido ao pensamento sistemático. Existiriam aspectos do Direito nos quais a
tópica teria preeminência como, por exemplo, na concreção de conceitos que
necessitam de complementação valorativa ou em campos como o Direito
internacional privado [...].
174, 175
172
GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 159-160.
Tradução livre da autora.
173
Ibidem, pp. 160-166.
174
CANARIS, C.W., Die Feststellung von Lüncken in Gesetz, Berlin, Duncker & Humblot, ed.. 1983, pp.
107-108. También puede verse , del mismo autor, Systemdenken und Systembergriff in der Jurisprudenz, cit. p.
98
Canaris destaca que a tópica tem uma função de preeminência a cumprir dentro da Ciência do
Direito frente à insuficiência do pensamento sistemático:
“[...] sempre que faltem valorações jurídico-positivas suficientemente concretizadas.
Pois nesse caso, não só as possibilidades do pensamento sistemático deparam com
limites inultrapassáveis, como também se verificam, em regra, as características da
tópica: as normas só podem aqui ser preenchidas, em termos de conteúdo, através do
juiz, de tal modo que este deve actuar como legislador, decidindo, efectivamente,
acerca da máxima do ‘comportamento correto”; ele fica adstrito, no campo da sua
‘auto-valoração’, a considerar os valores e as intuições jurídicas, culturais e sociais
dominantes na comunidade jurídica em causa [...].”
176
Hermes Zaneti Júnior anota que as conclusões de Canaris “acabam por reforçar a prevalência
da tópica nos modernos ordenamentos jurídicos e no direito brasileiro posterior à Constituição
de 1988, em particular”. O autor gaúcho destaca que as afirmações de Canaris conduzem “à
prevalência, ou maior espaço, do método tópico na aplicação das cláusulas gerais e no direito
constitucional”.
177
Nesse panorama, Canaris e em relevo a aplicação da pica nos casos de lacunas da lei e
para o preenchimento das cláusulas gerais com valorões.
“Perante o pensamento sistemático, a tópica tem assim, aqui, uma função
complementadora inteiramente legítima a cumprir, pode-se mesmo dizer que, nesta
questão, se exprime de novo a ‘polaridade’ dos valores jurídicos mais elevados: a
tópica ordena-se na equidade, portanto na tendência individualizadora da justiça;
ela representa o processo adequado para um problema singular formulado o mais
estritamente possível ou uma argumentação de equidade, orientada para o caso
concreto, na qual, no essencial, nenhum ponto de vista discutível se pode rejeitar
liminarmente como inadmissível, tal como é típico do pensamento sistemático
abstracto, apoiado na tendência generalizadora da justiça.”
178
149 y sigs. apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp.
164-165.
175
No original: “Canaris, en Die Fesstellung von Lücken im Gesetz, afirma que la contraposición entre
‘Systemdenken y Problemdenken’ tiene carácter dialéctico, pues ambos se condicionan recíprocamente. A
como la teoría que se desarolla con ayuda de la sistemática se ha de probar ante el problema y recibir de él su
justificación última, así, por otro lado, las propuestas de solución que se obtienen partiendo del problema
reciben fuerza vinculante tan sólo mediante su inserción en el sistema y en los valores fundamentales del
Derecho válido. Afirma que incluso los representantes del pensamiento tópico han de reconocer la existencia de
conexiones generales e internas entre los objetos. Con ello, los catálogos de tópicos, en la medida que quieran
ser vinculantes y utilizables por a Ciencia del Derecho, y no una mera aplicación de la justicia del caso
concreto, sólo se pueden obter con ayuda de ese ‘sistema interno’ de un ordenamiento. Con todo esto no quiere
decir Canaris que el pensamiento tópico esté siempre totalmente sometido al sistema. Existirían incluso aspectos
del Derecho en los que aquél tendría preeminencia; por ejemplo, en lo relativo a la concreción de conceptos
necesitados de complemento valorativo, o en campos, como el Derecho internacional privado [].
176
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, pp. 269-270.
177
ZANETI JÚNIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 91.
178
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 272. Destaques no original.
99
Conforme destacado por Canaris “os pensamentos tópico e sistemático não são opostos
exclusivistas, mas antes se complementam mutuamente. Assim, eles não estão [...] isolados
um frente ao outro, antes se interpenetram mutuamente. Assim, também quando à pica seja
conferida a primazia, não se torna a sistemática totalmente sem sentido.
179
“[...] também na concretização das cláusulas gerais carecidas de preenchimento
com valorações, nas quais a tópica é bem mais que um mero auxiliar, surge uma
tendência clara para a sistematização. Não só as cláusulas gerais se devem
interpretar sempre à luz da ordem jurídica global, portanto sobre o pano de fundo
do sistema [...] como ainda, e, sobretudo, se verifica que a sua concretização ocorre,
largamente, através da formação de tipos, isto é, em parte, através da formação
clara de previsões normativas, pressionando-se, com isso, no sentido da
determinação sistemática. [...] Assim, o se deve abandonar totalmente a cláusula
geral à equidade e, com isso, ao pensamento tópico.”
180
“Antes releva, também nela, a simultaneidade das tendências individualizadora e
generalizadora da justiça e a esta última pressiona sempre no sentido da
sistematização.”
181
“De forma inversa, o âmbito virado, em primeira linha, para o pensamento
sistemático, não se conserva totalmente livre da tópica.”
182
“Não há, assim, uma alternativa rígida entre o pensamento tópico e o sistemático,
mas antes uma complementação mútua. Quão longe vai um ou outro determina-se,
em termos decisivos, de acordo com a medida das valorações jurídico-positivas
existentes, - assim se explicando também o facto de a tópica jogar um papel
bastante maior em sectores fortemente marcado por cláusulas gerais [...] ou em
áreas reguladas de modo lacunoso [...].”
183
Judith Martins-Costa entende ser equivocado o pensamento de Viehweg em contrapor
sistema e problema. Segundo a Autora existe uma relação de complementariedade entre
sistema e problema”. Dito de outro modo, o raciocínio jurídico o se desenvolve de uma
forma ‘puramente’ tópica nem puramente’ sistemático-dedutiva.”
184
Judith Martins-Costa assegura que, para perscrutar a significação e o alcance da boa-
objetiva torna-se necessária a utilização do pensamento pico, que alterou significativamente
a concepção de ‘sistema’ compreendido como sistema fechado, dotado em si mesmo de
plenitude lógica e que, portanto, apto a dar solões às mais diversas questões por meio do
pensamento lógico-dedutivo.
185
179
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 273.
180
Ibidem, pp. 273-274.
181
Ibidem, pp. 275-276.
182
Ibidem, p. 276.
183
Ibidem, p. 277.
184
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 370-371.
185
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 21.
100
Nessa senda, a técnica do pensamentopico aplicada à boa-fé objetiva rompe com a clausura
do sistema “[...] ou sistema de auto-referência absoluta, exclusivo e excludente de tudo o mais
que não estivesse em si logicamente contido [...]” aflorando [...] a ressistematização, seja das
próprias decisões judiciais, seja do material que progressivamente introduz no campo
normativo no qual situado o princípio.
186
No que tange à tópica, Luiz Roberto Barroso chama a atenção para o pensamento de
Canaris
187
nos seguintes termos: “Embora o pensamento do autor seja, em princípio, infenso à
pica, reconhece ele que a positivação de normas de textura aberta espaço à utilização do
referido método, sem perder de vista, contudo, a primazia das conexões sistemáticas que
conferem legitimidade à interpretação jurídica.”
188
Luiz Roberto Barroso chama a atenção para o uso das cláusulas gerais: “As cláusulas gerais
o são uma categoria nova no Direito de longa data elas integram a técnica legislativa
nem são privativas do direito constitucional podem ser encontradas no direito civil, no
direito administrativo e outros domínios. Não obstante, elas são um bom exemplo de como o
intérprete é co-participante do processo de criação do direito.”
189
No entanto, ao tratar das cláusulas gerais no âmbito do direito civil, Judith Martins-Costa
adverte que a doutrina e a jurisprudência ainda não se deram conta do novo matiz
metodológico que ditas cláusulas impingem ao ordenamento jurídico.
“[...] não é comum encontrar o seu adequado tratamento teórico-prático, de modo
que, em larga medida, permanecem elas como que sem voz, emudecidas. Nem são
chamadas a falar por meio da jurisprudência nem a doutrina tem percebido a sua
função de instrumento viabilizador do direito privado, segundo modelo que evite a
pulverização de suas normas em centenas de pequenos mundos, valorativamente
autônomos, em si mesmos fechados e conclusos e impermeáveis à incidência das
normativas constitucionais notadamente aquelas que, por consubstanciarem os
valores fundamentais do sistema visto em sua globalidade, teriam o condão de
operar a releitura e rejuvenescimento da legislação ordinária, de matriz civilista.
190
[...]
186
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 22-23.
187
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e
tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p 277.
188
BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. v. 28. n.
60. jul. – dez. 2004, p. 36, nota de rodapé 33.
189
Ibidem, p. 36, nota de rodapé n. 34.
190
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 25.
101
“Por isso hoje se entende ser preciso o encontro de um modelo de código pelo qual,
mantida a concepção sistemática, permita-se a sua abertura aos elementos externos
e mobilidade para enfrentar a mutabilidade da vida, possibilitando à prática
jurisprudencial coordená-lo com os demais elementos do sistema, notadamente os
valores constitucionais.”
191
A Constituição Federal imprime uma identidade normativa às normas processuais atribuindo-
lhes real significação. Essa identidade constitucional não se restringe às garantias processuais
formalmente especificadas. Há que se ter uma perfeita permeabilidade das diretivas
constitucionais nas normas processuais especialmente quando se está diante de cláusulas
gerais. No que concerne à necessária coordenação das normativas constitucionais com o
conteúdo a ser atribuído às cláusulas gerais Luiz Roberto Barroso acentua:
“Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se
erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente
satisfatórias. Assim: i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos
problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo.
Muitas vezes é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz
dos problemas, dos fatos relevantes, analisados topicamente; ii) ao papel do juiz,
não lhe cabe apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a
solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se co-participante do
processo de criação do direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer
valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções
possíveis.”
192
As transformações ocorridas tanto em relação ao papel da norma quanto em relação ao papel
do juiz quando se está diante de disposões normativas tais quais as cláusulas gerais são
destacadas por Barroso:
“As denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados contêm
termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um
início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as
circunstâncias do caso concreto. A norma em abstrato não contém integralmente os
elementos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como ordem pública, interesse
social, boa-fé, dentre outras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores
objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o
alcance da norma. Como a solução o se encontra integralmente no enunciado
normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele
terá que ir além, interpretando o comando normativo com a sua própria
avaliação.
193
191
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 26.
192
BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. v. 28. n.
60. jul. – dez. 2004, pp. 35-36.
193
BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. v. 28. n.
60. jul. – dez. 2004, p. 36.
102
Vozes de autorizada doutrina destacam que a relevância do princípio da boa- objetiva é de
tal ordem a ponto de “transformar o conceito de sistema e a própria teoria tradicional das
fontes dos direitos subjetivos e dos deveres.”
194
Nessa esteira, Judith Martins-Costa demonstra a inter-relação operada no conceito de sistema
à vista da concreção jurídica com base na boa-fé objetiva ao afirmar que [...] A adoção da
perspectiva traçada pelo problema das fontes de produção jurídica, sua criação,
desenvolvimento e transformação permitirá, por sua vez, percorrer o preenchimento gradual
da noção de sistema no direito e o correlato papel que foi reservado, a cada momento
histórico, à boa-fé objetiva [...].”
195
Ora, para que a noção de sistema seja construída gradualmente com as fontes de produção
jurídica mediante a operabilidade da concepção dada à boa-fé objetiva, tem-se como premissa
ou condição sine qua non a concepção de um sistema aberto, que se contrapõe ao hermetismo
dos Códigos, com tipificação cerrada, e ao modelo lógico-subsuntivo. Esse modelo de
codificação hermética, que pretende exaurir em suas normas todas as previsões de
comportamentos sócio-culturais, em que assenta o positivismo jurídico já não atende à
complexidade das novas relações oriundas das relações sociais em seus mais variados
espectros. Para libertar o direito desse hermetismo e permitir-lhe atender à complexidade
advinda das relações sociais a técnica legislativa de trabalhar com normas-principiais favorece
o trabalho de concreção jurisprudencial, dada a irradiação dessas normas na diversidade de
problemas que reclamam por solução.
Judith Martins-Costa, em precisa síntese, afirma:
“Com efeito, somente a partir do reconhecimento da necessidade de uma recíproca
coordenação entre o procedimento dedutivo e o indutivo, entre o sistema e o caso,
entre o método sistemático e o tópico, se poderá compreender como, como numa
estrutura formal como é a do direito codificado, emergem, continuamente,
elementos problemáticos, que são, por sua vez, sistematizados. Sistematização e
assistematização constituem, assim, a polaridade dialética na qual se desenvolve o
sistema aberto, eis que tendente à permanente ressistematização.”
196
194
COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil
brasileiro e português. (I Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p. 44.
195
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 28.
196
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 377.
103
É bem verdade que a obra de Judith Martins-Costa está fundada em uma análise no âmbito do
direito civil, mais especificamente, no campo do direito das obrigações, entretanto, as
concepções e conclusões por ela trazidas ao longo do trabalho não invalida a sua transposição,
ainda que com todas as cautelas necessárias, para o campo do Processo Civil.
Na trilha a que se propõe o presente trabalho, os riscos também estão presentes, e em muito
maior amplitude do que aqueles aos quais se refere a Autora, visto que não se pode olvidar do
caráter público do Direito Processual, ou seja, além dos interesses das partes em litígio estão
presentes os interesses do Estado na prestação jurisdicional efetiva. Entretanto, a conformação
da boa-fé objetiva como modelo jurídico, na acepção conferida por Miguel Reale e tratada no
capítulo anterior, revela um novo ângulo de visão na teoria das fontes do direito, o que
demonstra a relevância do estudo não, apenas no âmbito das relações privadas, mas, também,
nos donios do Direito Processual.
104
Capítulo IV As Cláusulas Gerais: Fatores de Interação Sistemática e de Concreção
Jurídica
Sumário: 4.1. Cusulas Gerais: Intercambialidade nos Sistemas Jurídicos Abertos e Criação
do Direito pelos Tribunais - 4.2. A Boa-Fé Objetiva: Fundamento Axiológico na Construção
do Direito - 4.3. A Boa-Fé Objetiva como Elemento Estruturante na Construção de Modelos
Jurídicos Jurisprudenciais
4.1. Cláusulas Gerais: Intercambialidade nos Sistemas Jurídicos Abertos e Criação do
Direito pelos Tribunais
O desenvolvimento histórico da ciência demonstra que os Códigos já tiveram a pretensão de
esgotarem em si mesmos todas as hipóteses que pudessem regular as relações sociais. Tal
pretensão era acompanhada por uma vinculação estrita do juiz à lei, vez que havia a idéia
prevalente de que as normas eram rigorosamente elaboradas de forma a não pairar quaisquer
sombras de dúvidas sobre o seu conteúdo e aplicação. O juiz era um autômato da lei, sendo-
lhe vedado qualquer juízo interpretativo.
Entretanto, esse tempo faz parte de um passado que deixou como lição que a vinculação cega
à lei e a rigorosa elaboração legislativa que pudesse veicular em si um sentido unívoco eram
impraticáveis diante da “vida na pluralidade das suas formas e na sua imprevisibilidade”.
1
“As leis, porém, são hoje, em todos os domínios jurídicos, elaboradas por tal forma
que os juizes e os funcionários da administração não descobrem e fundamentam as
suas decisões tão somente através da subsunção a conceitos jurídicos fixos, a
conceitos cujo conteúdo seja explicitado com segurança através da interpretação,
mas antes são chamados a valorar autonomamente e, por vezes, a decidir e a agir de
um modo semelhante ao do legislador.
[...]
O ponto de partida das nossas novas considerações terá de se ter a metódica da
própria legislação ao afrouxar o nculo que prende à lei os tribunais e as
autoridades administrativas. Pois se nos deparam hoje diversos modos de expressão
legislativa que são de molde a fazer com que o julgador (o órgão aplicador do
Direito) adquira autonomia em face da lei. Como modos de expressão desse tipo
1
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Tradução de J. Batista Machado. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, pp. 206-207.
105
distinguiremos: os conceitos jurídicos indeterminados, os conceitos normativos, os
conceitos discricionários, e as cláusulas gerais.”
2
As cláusulas gerais surgem como solução harmonizadora para um sistema flexível que tem a
capacidade de ajustar-se às novas demandas sociais e que tem a plasticidade por característica
marcante e a superação do fetichismo da lei e dos digos absolutos por disposições fluidas,
vagas.
As cláusulas gerais são definidas por Wieacker como “linhas de orientação, que, dirigidas ao
juiz, o vinculam e, ao mesmo tempo, lhe dão liberdade.”
3
Ao analisar a concepção estrutural
do Código Civil Alemão, no que tange à opção pelo uso de cláusulas gerais, tal qual a boa-fé,
Wieacker destaca que “[...] O legislador transformou o seu trabalho [...] em algo de mais apto
para as mutações e mais capaz de durar do que aquilo que era de esperar.”
4
No entanto, essa técnica legislativa não está imune a severas críticas no sentido de as
cláusulas gerais atribuírem ao juiz uma função que não estaria afinada ao seu ocio, o que
constituiria um perigo para a ordem jurídica. Tais críticas se baseiam no fato de ficar ao
alvedrio do juiz o preenchimento do conteúdo dessas cláusulas gerais [...] por não permitir e,
ao mesmo tempo esvaziar de sentido, qualquer atividade subsuntiva, desde que ela, por seu
turno, o remeta para a situação bem definida de uma moral estabelecida e de técnica
judicial firme.”
5
Wieacker e em relevo, ainda, que a utilização das cláusulas gerais evidencia o recuo do
formalismo jurídico à pretensão de completude e liberta o juiz da sua vinculação às hipóteses
elencadas precisamente na lei. Tal técnica legislativa traz modificações substanciais na função
da lei, que passa a ser [...] um elemento de social engineering [...]”, que traz uma nova
orientação jurídica ao colocar a cargo dos tribunais a apreciação do seu conteúdo, o que
confere ao juiz novas atribuições nas considerações da justiça do caso concreto.
6
2
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Tradução de J. Batista Machado. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, pp. 207-208.
3
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Tradução de A. M. Botelho Espanha.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 545.
4
Ibidem, p. 546.
5
Ibidem, pp. 546-547.
6
Ibidem, p. 626.
106
A vinculação estrita do juiz ao texto legal cedeu espaço a uma nova conformão sistemática
do direito, ante a presença das cláusulas gerais, manifestando uma nova relação do juiz com a
lei. Hoje, na verdade, a prática jurídica sente, com todo o direito, como sua tarefa mais
importante, não a solução sistemática ou conceitualmente justificada ou elegantemente
construída, mas a decisão do caso concreto de acordo com a razão jurídica nos quadros de
uma determinada ordem jurídica.”
7
Ao trabalhar com as cláusulas gerais o juiz precisa realizar o processo de concreção, que
consiste na individualização da regulação para o caso concreto. Depreende-se que “[...] o ônus
inafastável da operação com normas de textura aberta por meio da concreção está localizado
no seu preenchimento e na sua fundamentação.
8
Rui Rosado de Aguiar Júnior faz a seguinte advertência:
“Disso sobressai a responsabilidade do juiz de agir com extremo cuidado ao
estabelecer tal norma de dever, que ele usará como parâmetro para resolver o caso.
Deverá ter atenção para os valores da comunidade, saber quais as condutas
normalmente adotadas naquele lugar e naquelas circunstâncias e verificar de que
modo poderia a parte cumprir com tais expectativas.
Nesse trabalho criador, o juiz deve, mais do que em outras ocasiões, fundamentar
as suas decisões, porque ele deve explicar às partes e à comunidade jurídica como e
por que tais condutas foram consideradas as devidas na situação do processo, pois
foi nessa norma de dever (criada por ele para o caso) que alicerçou a solução da
causa.
É um trabalho bem mais complexo do que o da simples subsunção. Nesta, o juiz
tem a norma; definido o fato e escolhida uma das normas positivas aplicáveis, basta
explicar as razões dessas duas proposições para que se entenda a conclusão. No
caso da cláusula geral, contudo, primeiro se exige a definão da própria norma de
conduta, cujo conteúdo tem de ser encontrado para o caso, e somente depois disso
será feita a subsunção da conduta efetivada em relação a tal preceito.”
9
O trabalho jurisprudencial de concreção das cláusulas gerais traz como imperativo para o
magistrado a necessidade de ‘fundamentação racional e convincente para a finalidade de
7
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Tradução de A. M. Botelho Espanha.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 627.
8
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista da
AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. ano XXXIII. n. 103. set.-2006, p. 80.
9
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Disponível em
http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/470, acesso em 10.11.2007, Artigo publicado tamm na Revista de
Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000 e na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, n. 18, 2000, p. 221-228. Destaques nossos.
107
afastar abusos’ e, por seu turno, a doutrina, num trabalho de cunho crítico-construtivo,
também passa a exercer papel de relevo no controle da prestação jurisdicional.
10
Nessa esteira, Judith Martins-Costa realça o papel das cláusulas gerais na construção
jurisprudencial:
“Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais
dar resposta, previamente, a todos os problemas da realidade, uma vez que essas
respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por
nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como
metanormas, cujo objetivo é de enviar o juiz para cririos aplicativos
determináveis ou em outros espaços do sistema ou atras de variadas tipologias
sociais dos usos e costumes.”
11
Nesse mesmo sentido são os apontamentos de Wieacker sobre a aplicação da cláusula geral da
boa-fé no Código Civil alemão:
“Na medida em que a aplicação que da norma se faz na decisão judicial
considerada como realização daquela eleição - contém elementos volitivos ao lado
do juízo lógico, cada decisão constitui um elemento de uma nova criação do direito,
com se diz em nosso Continente “elaborando a lei”. Essa atividade é tanto mais
criadora quanto mais indeterminada seja a prescrição do legislador. [...] Por essa
razão, a aplicação de uma cláusula geral isto é, toda sentença baseada no
parágrafo 242 contribui para a criação do direito futuro, da mesma maneira que a
formação de um tecido se com o trabalho de cada golpe da agulha: traça uma
linha cuja direção não se pode estabelecer previamente.”
12, 13
A Cláusula geral da boa-fé objetiva, conforme asseverado por Judith Martins-Costa, atua
tecnicamente como metanorma”. As cláusulas gerais o possuem conteúdo definido
aprioristicamente, não possui nem conteúdo nem conseqüência. Diferem, portanto, dos
conceitos jurídicos indeterminados, visto que nestes o antecedente precisa ser preenchido, e,
uma vez preenchido, decorre, automaticamente, a sua conseqüência.
10
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concrão dos conceitos. Revista da
AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. ano XXXIII. n. 103. set.-2006, p. 92.
11
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 299.
12
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Traducción de Lose Luis Carro. Prologo de Luiz
Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 39-40.
13
No original: “En la medida en que la aplicación que de la norma se hace en la decisión judicial – considerada
como realización de aquella elección contiene elementos volitivos al lado del acto de juicio lógico, cada
decisión constituye un elemento de una nueva creación de Derecho, es decir, en cierto modo y también en
nuestro Continente ‘law in making. Y ello es tanto más así cuanto más indeterminada sea la preescisión del
legislador. [] Por esta razón, la aplicación de una cláusula general - esto es, toda sentencia basada en el
parágrafo 242 – contribuye a la creación del Derecho futuro, de la misma manera que cada golpe de aguja a la
formación del tejido: traza una línea cuya dirección no puede establecerse previamente.”
108
A compreensão da cláusula geral da boa-fé objetiva como metanorma descortina o horizonte
de sua funcionalidade. Na acepção dada por Humberto Ávila as metanormas “situam-se num
segundo grau e estabelecem a estrutura de aplicação de outras normas, princípios e regras.”
14
Trata-se, portanto, na expressão cunhada por Ávila, de postulado normativo aplicativo, visto
que “funcionam como estrutura para a aplicação de outras normas”
15
. As metanormas, ou
postulados normativos, não se confundem com as regras, nem com os princípios nem com os
sobreprincípios. Os postulados normativos aplicativos “estruturam a aplicação do dever de
promover um fim; [...] não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de
raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem
comportamentos”
16
.
Destarte, a cláusula geral da boa- objetiva atua, pois como metanorma ao direcionar o juiz
para a aplicação de outras normas. Tomando de empréstimo a expressão de Ávila, atua como
postulado normativo aplicativo, ou seja, “norma estruturante da aplicação de princípios e
regras”
17
Os postulados normativos foram definidos como deveres estruturais, isto é, como
deveres que estabelecem a vinculação entre elementos e imem determinada relação entre
elas”
18
Sob esse enfoque, a boa-fé objetiva, positivada no art. 14, inciso II do Código de Processo
Civil, deve ser interpretada como cláusula geral que possui a aptidão de atuar tecnicamente
como metanorma, estruturando a aplicação de regras e princípios afetos ao direito processual.
Judith Martins-Costa destaca que [...] constituindo ‘norma-princípio’, mais propriamente um
modelo, a boa-fé objetiva em sua concreta atuação opera articuladamente com outros
princípios e regras”.
19
Releva destacar que a atuação judicial por meio das cláusulas gerais não implica
discricionariedade na decisão. “Não se trata é importante demarcar desde logo este ponto
de apelo à discricionariedade: as cusulas gerais não contêm delegação de
14
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. ver. ampl.
São Paulo: Malheiros. 2006, p. 122.
15
Ibidem, p. 123.
16
Ibidem, p. 123.
17
Ibidem, p. 127.
18
Ibidem, p. 129.
19
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale)
in Cadernos do Programa de Pós-Graduão em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 373.
109
discricionariedade.”
20
Corroborando esse entendimento, Menezes Cordeiro pontifica: “[...] a
Ciência do Direito, com o seu método e seus objectivos, transcende o sistema que faculta a
sua aprendizagem e reprodução. Quando o sistema, voluntariamente ou por incapacidade,
deixe à boa fé, desamparada, uma solução, esta serve para, ainda aí, recordar que à Ciência do
Direito, e não ao arbítrio, compete decidir.”
21
“A concreção não é discricionária, mas atrelada a itens que proporcionam aos que lidam no
expediente forense maior mobilidade aos elementos do Processo Civil.” Sob essa perspectiva,
as decisões judiciais fulcradas na boa-fé objetiva, como cusula geral que é, não escapa ao
crivo de severo controle, o que ime em maior escala o rigor na fundamentação dessas
decisões. “Em busca da adequação procedimental e utilizando-se de cláusulas gerais, os
intérpretes da lei deverão exigir ‘excelente fundamentação’ das decisões inspiradas na
adequação fática do procedimento, em busca da maior efetividade das decisões judiciais.
Nesse aspecto repousa uma das mais intrincadas questões que circundam as ‘cláusulas gerais’,
senão a de mais destaque entre elas: o controle do uso e imposão de limites ao julgador.”
22
Essa foi, também, a preocupação de Wieacker ao tratar da aplicação da cláusula geral da boa-
fé veiculada no § 242 do Código Civil alemão.
“[…] a invocação ao parágrafo 242 vincula também a jurisprudência futura aos
constantes princípios jurídicos que anteriormente foram elaborados pela aplicação
daquele. No entanto, conm deixar claro que a compreensão dos limites que o
conteúdo de uma cláusula geral tem sido estabelecido na estrutura do próprio
ordenamento jurídico.”
23, 24
A tão aplaudida vagueza
25
atribuída às cláusulas gerais traz como conseqüência imediata a
complexidade do seu alcance, que nas palavras de Judith Martins-Costa “são proteiformes
20
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 299, nota 11.
21
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 1267.
22
HENRIQUES FILHO, Ruy Alves. As cusulas gerais no processo civil. Revista de Processo. São Paulo:
Revista dos Tribunais. ano 33. jan. 2008, p. 354.
23
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Traducción de Lose Luis Carro. Prologo de Luiz
Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 85.
24
No original: “[…] apelación al parágrafo 242 vincula también la jurisprudencia futura a los constantes
principios jurisprudenciales que con anterioridad fueron elaborados para la aplicación de aquél. Sin embargo,
con todo ello no debe oscurecerse la comprensión de los límites que al rendimiento de una cláusula general han
sido establecidos en la estructura del mismo ordenamiento jurídico.
25
Para Judith Martins-Costa houve uma imprecisão semântica de Engisch ao utilizar o termo ‘generalidade’
como atributo das cláusulas gerais, o que, segundo ela, promove uma confusão. Daí ela utilizar sempre o termo
110
porque assumem, seja qual for o ângulo de análise do estudioso, uma diversa significação.
São proteiformes, também, porque o exame de suas significações traz consigo uma longa lista
de problemas nucleares à teoria do direito e à dogmática jurídica, afastando, assim, qualquer
reducionismo ou simplificação de sua análise.”
26
“É que as cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o
ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda
inexpressos legislativamente, de standards, ximas de conduta, arquétipos
exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de diretivas
econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento
positivo.
27
Judith Martins-Costa, por sua vez, anota as modificações da técnica e da linguagem
legislativa, destacadamente na segunda metade do século XX, quando “assumindo a lei
características de concreção e individualidade”. Especialmente no que tange ao emprego das
cláusulas gerais, a Autora destaca que são “normas cujo enunciado, ao invés de traçar
punctualmente a hipótese e suas conseqüências, é intencionalmente desenhado como uma
vaga moldura, permitindo pela abrangência de sua formulação, a incorporação de valores,
princípios, diretrizes e máximas de conduta, originalmente estrangeiros ao corpus codificado,
bem como a constante formulação de novas normas [...].”
28
Segundo a Autora, a cláusula geral, sob o ponto de vista da técnica legislativa, pode ser
compreendida nos seguintes termos:
“[...] a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no
seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’,
‘vaga’, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é
dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (uma competência) para que, à
vista dos casos concretos, crie, complemente, ou desenvolva normas jurídicas,
mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema;
estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual, reiterados no
tempo os fundamentos da decisão, será viabilizada a ressistematização destes
elementos originariamente extra-sistemáticos no interior do ordenamento
jurídico.
29
‘vagueza’ para adjetivar a tessitura das cláusulas gerais. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito
privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 303.
26
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 273-274.
27
Ibidem, p. 274.
28
Ibidem, pp. 285-286.
29
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 303. Todos os destaques no original.
111
Karl Engisch apresenta as cláusulas gerais como um ‘conceito multissignificativo’, que tem
uma significação própria, e que não se confunde com os conceitos jurídicos indeterminados. É
um “conceito que se contrapõe a uma elaboração ‘casuística’ das hipóteses legais.” De acordo
com Engisch casuísticaé aquela configuração da hipótese legal (enquanto somatório dos
pressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particulares grupos de casos na
sua especificidade própria.”
30
Na concepção de Judith Martins-Costa: “O modelo da cláusula geral, portanto, seria o modelo
da ‘não-casuística’.”
31
“Desse modo, devemos entender por cláusula geral uma formulação da
hipótese legal que, em termos de grande generalidade, abrange e submete a tratamento
jurídico todo um donio de casos.”
32
“O verdadeiro significado das cláusulas gerais reside no domínio da técnica
legislativa. Graças à sua generalidade, elas tornam possível sujeitar um mais vasto
grupo de situações, de modo ilacunar e com possibilidade de ajustamento, a uma
conseqüência jurídica.”
33
Em oposição à casuística, Judith Martins-Costa destaca que [...] às cláusulas gerais é
assinalada a vantagem da mobilidade proporcionada pela intencional imprecisão dos termos
da fattispecie que contém, do que o risco do imobilismo é afastado por esta técnica porque
aqui é utilizado em grau mínimo o princípio da tipicidade.”
34
No que concerne ao aspecto estrutural entendido como a “conjugação de certa previsão
normativa (hipótese normativa) com determinadas conseqüências jurídicas (efeitos,
estatuição) que lhe são correlatas”
35
- das cláusulas gerais, Judith Martins-Costa ressalta a
existência de duas correntes: uma que considera as cláusulas gerais como “normas ou
preceitos jurídicos cujos termos são dotados de elevado grau de ‘generalidade’”, o que
significaria dizer que a particularidade estaria em a previsão normativa (fattispecie) abarcar
uma ampla gama de casos, que seriam determinados de acordo com um padrão objetivo de
conduta ou um valor juridicamente aceito. A sua aplicação dar-se-ia nos mesmos moldes, por
30
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Tradução de J. Batista Machado. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 228.
31
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 296.
32
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Tradução de J. Batista Machado. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 229.
33
Ibidem, p. 233.
34
Ibidem, p. 298.
35
Ibidem, p. 329.
112
exemplo, do pensamento desenvolvido quando se defronta com conceitos jurídicos
indeterminados. A outra corrente, de modo distinto, as cláusulas gerais como “normas
(parcialmente) em branco”, as quais exigem do juiz, para a sua concreção, socorrer-se de
referências extrajurídicas. [...] exige que o juiz seja reenviado a modelos de comportamento e
a pautas de valoração que não estão descritos nem na própria cláusula geral nem, por vezes,
no próprio ordenamento jurídico, podendo ainda o juiz ser direcionado pela cláusula geral a
formar normas de decisão, vinculadas à concretização de um valor, de uma diretiva ou de um
padrão social, assim reconhecido como arquétipo exemplar da experiência social concreta.”
36
Clóvis do Couto e Silva reporta-se à particularidade do pensamento de Wilburg, para quem a
abertura do sistema não se restringia a “receber aspectos e concepções extrajurídicos, mas por
conceber uma ‘abertura interna’ permitindo a formulação de soluções jurídicas por meio da
composição de diversas normas já pertencentes ao próprio sistema numa perfeita dialeticidade
harmonizada pela própria coerência que identifica o sistema”.
37, 38
Nesse sentido observa Rui Rosado de Aguiar Júnior:
“A cláusula geral, portanto, exige do juiz uma atuação especial, e através dela é que
se atribui uma mobilidade ao sistema, mobilidade que será externa, na medida em
que se utiliza de conceitos além do sistema, e interna, quando desloca regramentos
criados especificamente para um caso e os traslada para outras situações.”
39
Larenz opta por utilizar a nomenclatura “pautas carecidas de preenchimentopara se reportar
[...] quando a lei recorre a uma pauta de valoração que carece de preenchimento valorativo,
para delimitar uma hipótese legal ou uma conseqüência jurídica. [...]”
40
, dentre as quais
destaca a boa-fé.
Segundo Larenz:
36
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 329-330.
37
WILBURG. Zusammenspiel der Karfte, cit., pág. 379. apud COUTO E SILVA, Clóvis. O prinpio da boa-fé
no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira
de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p. 50. nota de rodapé nº 13.
38
Essa concepção é adotada por Judith Martins-Costa em A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no
processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 341.
39
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Disponível em
http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/470, acesso em 10.11.2007, Artigo publicado tamm na Revista de
Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000 e na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, n. 18, 2000, p. 221-228.
40
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian. 1997, p. 310.
113
“Tais pautas o são, por assim dizer, pura e simplesmente destituídas de conteúdo;
não são ‘fórmulas vazias pseudonormativas’ que seriam compatíveis com todas ou
quase todas as formas concretas de comportamento. [...] Estas pautas alcançam o
seu preenchimento de conteúdo mediante a consciência jurídica, que não só é
cunhada pela tradição, mas que é compreendida como estando em permanente
reconstituição. Os tribunais consideram-se de certo modo como ‘caixas de
repercussão’ dessa consciência jurídica geral [...].”
41
Na concepção de Larenz, a concretização das pautas carecidas de preenchimentocontribui
para futuras concretizações, de novos casos concretos a decidir, uma vez que são criados
pensamentos tipológicos, ou seja, o agrupamento de casos e o tratamento dos elementos
que para eles são típicos ou, a iia jurídica levada em consideração, servindo para uma nova
concretização.
42
“No que concerne às pautas carecidas de preenchimento valorativo, torna-se claro,
com particular nitidez, que a sua ‘aplicaçãoexige sempre a sua concretização, quer
dizer, a determinação ulterior de seu conteúdo, e esta por seu lado retroage à
‘aplicação’ da pauta a casos futuros semelhantes, pois que cada concretização
(alcançada) serve de caso de comparação e torna-se assim ponto de partida para
concretizações ulteriores. A pauta é ‘concretizada’ no julgamento do caso em que o
julgador reconha ‘aplicávelou ‘não aplicável’. Nesse processo de concretização
mediante julgamento de casos, a pauta é enriquecida no seu conteúdo e assim
desenvolvida. Aplicação do Direito e desenvolvimento do Direito caminham a par
e passo.
43
É importante destacar que, no âmago dos tribunais, se a crião do direito sem que ocorra
qualquer intervenção do legislador. Como as cláusulas gerais ou “pautas carecidas de
preenchimento” não possuem uma fattispecie autônoma, exigem a sua progressiva formação
pelo juiz tanto ao criar a fattispecie quanto ao traçar as suas conseqüências.
Nesse passo, essa criação do direito pelo juiz remete à construção dos modelos jurídicos
jurisprudenciais, fruto do catálogo de decisões judiciais, na acepção da “Teoria de Modelos de
Miguel Reale”. Significa dizer que, como os modelos jurídicos representam o conteúdo das
fontes eles estão intrinsecamente relacionados às fontes no que tange à sua dinamicidade,
historicidade e processualidade.
41
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian. 1997, p. 311.
42
Ibidem, p. 311.
43
Ibidem, pp. 311-312. Destaques nossos.
114
Clóvis do Couto é Silva destaca que as cláusulas gerais são “um convite para uma atividade
judicial mais criadora, destinada a complementar o corpus juris vigente, com novos princípios
e normas. O juiz é, também, um legislador para o caso concreto.”
44
Nesse contexto, o arquétipo exemplar da experiência social”, concretizado pelo juiz por meio
da cláusula geral, ingressa no sistema jurídico por meio delas, à medida que redunda na
construção do modelo jurídico o qual, de acordo com Miguel Reale, por sua natureza
prospectiva e prescritiva, serve de ponto de partida para novos juízos futuros, não podendo
olvidar que a concretização das cláusulas gerais somente se opera à vista do caso concreto.
45
A opção por sistemas abertos permite a criação de soluções jurídicas que dão concretude ao
conteúdo das cusulas gerais, além de permitir ao magistrado ‘caminhar’ pela teia dos
dispositivos legais num trabalho de formulação da norma jurídica para o caso concreto.
Conforme salientado por Hermes Zaneti nior, , hoje, uma necessidade premente de
desmistificar a teoria das fontes do direito, pois o processo não mais é visto como “técnica a
serviço de um sistema de direito privados ou de direitos do Estado”, mas, sim, “como
fenômeno de poder” cuja técnica é norteada pela ideologia.
46
A jurisprudência, nesse cenário,
sob a perspectiva do processo constitucional, encontra relevo, ante a nova conformação
estrutural normativa com a adoção do uso dos princípios, das cláusulas gerais.
Ao jurista já não mais se reserva uma atuação de autômato aplicador da lei num raciocínio
lógico-dedutivo. Pelo contrário, a atividade jurisprudencial desempenha um importante papel
na construção do direito, que não se restringe a uma influência subsidiária, mas uma atividade
criadora que se desenvolve na justiça do caso concreto, na jurisprudência da concreção.
Sob essa perspectiva, a boa-fé objetiva tem prestado um grande contributo na construção do
direito, conforme ressalta Menezes Cordeiro:
44
COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito Civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro.
Porto Alegre: Revista da AJURIS. ano XIV. Jul. 1987, p. 149.
45
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 334-345, passim.
46
ZANETI NIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 235.
115
“A primeira idéia da boa , como é sabido, andou em torno de uma delegação
expressa do legislador ao juiz para intervir nas lacunas, para suprir a inexistência de
regulações particulares ou para adaptar proposições jurídicas abstractas às
especialidades do caso concreto. Hoje, reconhece-se face à realidade insofismável
dos últimos sessenta anos, que a boa foi, de facto, utilizada para a criação de uma
série de institutos novos admitindo-se, ao lado de um Direito Judicial que visa
concretizar a lei, outros que pretendem colmatá-la, corrigi-la e complementá-la o
que, nem por isso, provocaria uma quebra na clivagem entre as funções legislativa e
judicial.”
47
A jurisprudência ocupa o patamar de fonte primária do direito numa denotação de clara
ruptura com a divisão estanque de poderes, na qual a atividade do juiz é de ‘dar conteúdo às
cláusulas gerais’, assim como aplicar princípios e trabalhar com conceitos jurídicos
indeterminados numa tarefa metodológica de construção do direito que traduzirá em
precedentes e modelos jurídicos jurisprudenciais. É certo que a responsabilidade do juiz
aumenta em razão direta a esse aumento de poder, entretanto nada que possa comprometer o
controle judicial tendo-se por norte o princípio da motivação das decisões judiciais, que
nesses casos, requer uma maior demonstração da construção refletida no provimento judicial.
Judith Martins-Costa destaca a importante contribuição da cláusula geral da boa- para a
mudança paradigmática da concepção de sistema. Segundo a Autora, a boa-fé é o caminho
pelo qual se permite a construção de uma noção substancialista do direito, atuando como um
modelo hábil à elaboração de um sistema aberto, que evolui e se perfaz dia-a-dia pela
incorporação dos variados casos apresentados pela prática social, um sistema no qual os
chamados operadores do direito passam a ser vistos como seus verdadeiros autores, e não
como meramente seus aplicadores, recipiendários ou destinatários.”
48
Dessume-se que, na órbita de um ordenamento jurídico configurado por um sistema aberto,
que permite influxos advindos das diversas esferas normativas e valorativas, o magistrado,
rompendo com o antigo e profundo viés que separa o legislador do aplicador da lei, passa a
criar o direito do caso concreto. Direito esse que, pelas reiteradas aplicações, consti e
reconstrói a norma, numa modelação que é delineada na estrutura dinâmica dos modelos
jurídicos jurisprudenciais que dão vida e conteúdo às “pautas carecidas de preenchimento
49
.
47
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 1267. nota de rodapé nº 182.
48
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 382.
49
Expressão tomada de empréstimo de Larenz para denominar as cláusulas gerais. LARENZ, Karl. Metodologia
da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997, p. 310.
116
4.2. A Boa-Fé Objetiva: Fundamento Axiológico na Construção do Direito
O dinamismo e a multiplicidade das relações sociais abrem espaço que foge do alcance da
regulação dos textos normativos propiciando que a boa-fé objetiva surja nessas zonas não
contempladas pela codificação com um relevo dogmático real: seja para assegurar a
reprodução do sistema; seja para abarcar áreas que ganham a característica de juridicidade,
seja para adaptar à nova realidade social textos jurídicos arcaicos, seja concretizando um
projeto que o legislador apenas sinalizou.
50
Torna-se imperioso, portanto, verificar qual a importância, qual o conteúdo da boa-fé frente
ao sistema jurídico.
A boa-objetiva nos ordenamentos jurídicos modernos tem alcançado posição de relevo.
Menezes Cordeiro destaca que “a boa-fé para além de transmitir elementos próprios do
sistema na sua globalidade, comunica ainda o seu próprio conteúdo o qual, conjuntamente,
como sempre, com o caso a decidir, tem, também, um papel no selecionar do material. Em
termos formais, pode proclamar-se que a boa-fé, apesar da sua vaguidade, quando não tenha
havido um processo adequado de concretização, não integra o vácuo regulativo da lacuna,
visto ser, ela própria, regulação.”
51
De uma ou de outra maneira a boa-fé objetiva vai concretizando num trabalho engenhoso da
jurisprudência a atualizar os textos normativos sem qualquer interveão do legislador
fazendo surgir o “direito jurisprudencial”. “A boa-fé permite a consolidação dessa dogmática
que, no sistema jurídico, e não, apenas, na lei tenha a sua força: por outro lado, pela sua
vocação expansiva, pode ser chamada a intervir em qualquer caso.”
52
A importância da cláusula geral da boa-fé objetiva dá mobilidade aos textos legais permitindo
que o seu conteúdo seja definido à vista do caso concreto.
“Com a edição de conceitos abertos como o da boa-fé, a ordem jurídica atribui ao
juiz a tarefa de adequar a aplicação judicial às modificações sociais, uma vez que os
50
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 46.
51
Ibidem, p. 1265.
52
Ibidem, pp. 47-48.
117
limites dos fatos previstos pelas aludidas cláusulas gerais o fugidios, móveis; de
nenhum modo fixos.
[....]
A concepção de sistema aberto permite que se componham valores opostos,
vigorantes em campos próprios e adequados, embora dentro de uma mesma figura
jurídica, de molde a chegar-se a uma solução que atenda à diversidade de interesses
resultantes de determinada situação.
53
Assim, a boa-fé tem essa dinamicidade que lhe é inerente, amoldando a cada caso concreto
uma solução jurídica aderente aos parâmetros de lealdade e de honestidade. Embora, como
afirma Judith Martins Costa,o se possa, a priori, tabular ou arrolar o significado da
valoração a ser procedida mediante a boa-, ela serve de fundamento para todo o sistema
jurídico e, como modelo jurídico, deve ser constrdo concretamente à vista de cada relação.
Ressalte-se que “as cláusulas gerais são normas jurídicas derivadas de um processo legislativo
constitucionalmente previsto, que as posiciona na categoria formal de leis. São normas
jurídicas dotadas de uma função peculiar, diferenciada das demais normas, por carregarem
uma amplitude semântica ou valorativa maior do que a generalidade das disposições
normativas”.
54.
Rizatto Nunes aponta que:
“[...] a boa-fé objetiva [...] erigida a verdadeira fórmula de conduta, capaz de, por si
, apontar o caminho para a solução da penncia.
Pode-se, a grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta
a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de
conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade
com parâmetros de lealdade e honestidade. Anote-se bem, a boa-fé objetiva é
fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e dever ser observada
em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio
esperado para a relação, qualquer que seja esta.
[...] o intérprete lança mão dela [boa-fé objetiva], utilizando-a como um modelo,
um standard (um topos) a ser adotado na verificação de cada caso em si. Isto é,
qualquer situação jurídica estabelecida para ser validamente legítima, de acordo
com o sistema jurídico, deve poder ser submetida à verificação da boa-fé objetiva
que lhe é adjacente. [...] A boa-fé objetiva é, assim, uma espécie de precondição
abstrata de uma relação ideal (justa), disposta como um tipo ao qual o caso concreto
deve se amoldar. [...] Ela é um modelo principiológico que visa a garantir a ão
e/ou conduta sem qualquer abuso ou nenhum tipo de obstrução ou, ainda, lesão à
outra parte ou partes envolvidas na relação, tudo de modo a gerar uma atitude
cooperativa que seja capaz de realizar o intento da relação jurídica legitimamente
estabelecida.
Desse modo, pode-se afirmar que, na eventualidade da lide, sempre que o
magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na
53
COUTO E SILVA,Clóvis. O direito civil brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. FRADERA, Vera
Maria Jacob de. (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, pp. 39 e 43.
54
JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas gerais no novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 22.
118
verificação de algum tipo de abuso deve levar em consideração essa consideração
ideal e apriorística pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações
e condutas, de forma adequada e justa.”
55
Quadra advertir que, frente à vagueza da cláusula geral da boa-fé, exige-se maior rigor na
fundamentação das decisões judiciais em homenagem à segurança jurídica tendo sempre por
certo que as decisões judiciais não escapam ao controle por meio dos recursos adequadamente
previstos na ordem jurídica.
Clóvis do Couto e Silva salienta que o é tarefa das mais simples dizer o direito a ser
aplicado ou dar concreção às cláusulas gerais, exigindo um trabalho conjunto dos magistrados
na criação do direito e dos demais juristas no controle dessas decisões para que não haja
espaço para o arbítrio.
56
Não obstante ser a boa-fé uma representação jurídica dotada de vasto conteúdo e,
independentemente da instituição jurídica em que esteja a atuar, o seu enunciado como
postulado básico tem fundamento constitucional e apresenta-se como uma das vias mais
fecundas para a efetivação do conteúdo ético-social na ordem jurídica ao estabelecer o
exercício dos direitos segundo esse padrão de conduta.
Mesmo que não estivesse expressamente positivada “[...] A conduta honesta é uma exigência
geral do sistema o que não quer dizer que num ou noutro ponto, e além de uma orientação
geral, a lei não toque no instituto.”
57
Nesse sentido, Clóvis do Couto e Silva defendia a aplicação da boa-fé objetiva
independentemente da presea de norma legal que, expressamente, já positivasse o seu
conteúdo:
“No direito brasileiro poder-se-ia afirmar que, se não existe dispositivo legislativo
que o consagre, não vigora o princípio da boa-fé no Direito das Obrigações.
Observe-se, contudo, ser o aludido princípio considerado fundamental, ou
essencial, cuja presença independe de sua recepção legislativa.
[...]
55
RIZZATTO NUNES. A boa-fé objetiva como paradigma de conduta na sociedade contemporânea. Revista
Jurídica. ano 52. nº 357. Porto Alegre: Notadez. jan. 2006, pp. 11-12.
56
COUTO E SILVA, Clóvis. O prinpio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil
brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p.
65.
57
LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 159.
119
Numa interpretação meramente gramatical, seria possível concluir, sem embargo de
consagrar-se um absurdo, que, se o aludido princípio da boa-fé não integra o
ordenamento legislativo, não pode exercer sua função limitadora do exercício
abusivo dos direitos subjetivos.
[...] Quando num código não se abre espaço para um princípio fundamental, como
se fez com o da boa-fé, para que seja enunciado com a extensão que se pretende,
ocorre ainda assim a sua aplicação por ser o resultado de necessidades éticas
essenciais, que se impõem ainda quando falte disposição legislação expressa.”
58
O fato de encontrar-se a cláusula da boa-objetiva expressamente positivada no digo de
Processo Civil facilita a sua captação e aplicação para resolão de litígios futuros, visto que
as soluções pretéritas servirão de pontos de partida. Com a positivação, a boa-fé objetiva atua
como ‘elemento de conexão’ na resolão do caso concreto.
59, 60
Entretanto, não significa dizer que a boa-fé, vista como princípio geral do direito, não traga
consigo essa mesma importância. Ocorre que, como norma expressa, a sistematização
jurisprudencial torna-se facilitada, visto que as decisões se reportam ao dispositivo legal que a
veicula, ao passo que, como princípio geral, ter-se-ia que analisar toda a matéria que serviu de
base na construção da decisão judicial anterior, o que demanda, além de maior dispêndio de
tempo, maior dificuldade na identificação das decisões pretéritas que serviriam como ponto de
partida para o caso sub judice.
61
A pretensão de reduzir o direito aos textos legais ou aos digos é questão ultrapassada pela
idéia dos sistemas abertos. A boa-fé, antes mesmo de positivada tinha aplicação como
58
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva.
FRADERA, Vera Maria Jacob (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, pp. 48-49. Idem em COUTO
E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro
e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, pp. 60-62,
passim.
59
COUTO E SILVA, Clóvis. O prinpio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil
brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p.
62.
60
Pedro de Albuquerque anota que “em outros ordenamentos muitas das dúvidas existentes acerca do real
alcance do princípio da boa fé no âmbito do processo explicam-se em virtude da ausência de uma norma paralela
à do art. 266º-A do Código de Processo Civil português.” Entretanto, ressalta o Autor português que “a
invocação da ausência de uma expressa consagração processual do dever de actuar de boa fé como uma
argumentação positivista, formal e conceptual insuscetível de convencer por não estar em causa uma limitação
ao exercício de direitos materiais ou substantivos, mas, sim, um limite geral ao exercício de posições jurídicas,
sejam elas quais forem, resultante da função social de todo e qualquer ordenamento jurídico.”
ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de fé, abuso de direito e
responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 76, nota de
rodapé nº 76.
61
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 342-344.
120
princípio geral do direito ou como comando jurídico a intervir nas relações jurídicas. “Certos
princípios, certos comandos jurídicos vivem antes mesmo que apareçam nos textos legais.”
62
Nesse contexto, Judith Martins-Costa ressalta a importante função da cláusula geral da boa-fé
como fator de mobilidade interna do sistema ao permitir permanente sistematização das
decisões e ressistematização dos valores levados em conta”.
63
4.3. A Boa-Fé Objetiva como Elemento Estruturante na Construção de Modelos
Jurídicos Jurisprudenciais
A cláusula geral da boa-objetiva endereça o Direito Processual Civil a ser constrdo com
uma nova roupagem que assegura operabilidade e dinamicidade no desenvolvimento das
cardeais garantias processuais. A boa-fé, imperativo ético de um agir leal, honesto, probo,
encontra-se em consonância com os valores sociais vigentes, os quais, mesmo no campo
processual, imprimem aos seus participantes uma nova maneira de atuarem e de se
conduzirem.
Essa normatividade que advém da boa-fé, segundo Miguel Reale, “exige que a conduta
individual ou coletiva [...] seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada
caso” o que significa dizer que “a adoção da boa-fé como condição matriz do comportamento
humano” traz ínsita [...] a exigência de uma ‘hermenêutica jurídica estrutural’, a qual se
distingue pelo exame da totalidade das normas pertinentes a determinada matéria.”
64
A Teoria dos Modelos” de Reale põe em relevo a importância do estudo aprofundado das
decisões judiciais e administrativas, elevando-o, inclusive, ao plano da investigação
científica, sobretudo, quando, sem condenáveis receios, se aponta a desatualização ou o
desacerto do julgamento, ou se enaltece a sua força teórica criadora, contribuindo-se, desse
62
MILHOMENS, Jônatas. Da presunção de boa-fé no processo civil. Rio de Janeiro: Forense. 1961, p. 35.
63
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 344.
64
REALE, Miguel. A boa-fé no Código Civil in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da
Arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais. ano 6, vol. 21, jul.-set. 2003, p.12. Texto inicialmente publicado
em “O Estado de São Paulo”, de 16.08.2003.
121
modo, em ambos os casos, para que a jurisprudência e a doutrina avancem de maneira
sincrônica.”
65
Não raras são as situações em que o modelo legal “faz remissão a comportamentos picos,
confiando à prudente discrição do juiz a sua configuração in concreto.
66
Nas situações em que
se remete a comportamentos típicos cabe à dogmática jurídica “determinar os ‘modelos de
conduta’ correlacionados com a previsão genérica do legislador. São os standards que em
como ponte de passagem entre o modelo legal e o caso concreto, pela concepção de ‘um tipo
dio de conduta social correta’, em função da qual cabe ao juiz julgar a hipótese ocorrente.
Os standards são modelos instrumentais, fundamentalmente empíricos e plásticos, como os
que determinam, segundo variáveis de lugar e de tempo, o que se deve entender, em tais ou
quais circunstâncias, por ‘boa-fé”, [...], abuso de confiança [...]”
67
Nesse mesmo sentido são as lições de Couto e Silva:
“Com a edição de conceitos abertos como o da boa-, a ordem jurídica atribui ao
juiz a tarefa de adequar a aplicação judicial às modificações sociais, uma vez que
os limites dos fatos previstos pelas aludidas cláusulas gerais o fugidios, móveis;
de nenhum modo fixos.”
68
[....]
“O princípio da boa-fé endereça-se sobretudo ao juiz e o instiga a formar
instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do
Direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da relação obrigacional, ou mesmo
negativo em face do Direito postulado pela outra parte. A principal função é a
individualizadora, em que o juiz exerce atividade similar à do pretor romano,
criando o ‘Direito do Caso’. O aspecto capital para a criação judicial é o fato de a
boa-fé possuir valor autônomo, não relacionando com a vontade. Por ser
independente da vontade, a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se
mede com base somente nela, e sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao
contrato, permitindo-se ‘construir objetivamente o regramento do negócio
jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, amesmo ao
controle das partes.
69
[...]
“A concepção de sistema aberto permite que se componham valores opostos,
vigorantes em campos próprios e adequados, embora dentro de uma mesma figura
65
REALE, Miguel. Jurisprudência e doutrina In Questões de Direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p.
21.
66
REALE, Miguel.O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 184.
67
Ibidem, p. 184.
68
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva.
FRADERA, Vera Maria Jacob (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, p. 39.
69
Ibidem, p. 42. Idem, O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil
brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, pp.
53-54.
122
jurídica, de molde a chegar-se a uma solução que atenda à diversidade de interesses
resultantes de determinada situação.
70
A opção por modelos jurídicos e em evidência os poderes dos juizes de darem efetividade
aos conceitos abertos, pois cabe a ele configurar o seu conteúdo no caso concreto. Judith
Martins-Costa destaca que a boa-fé “passou a conformar verdadeiro e próprio modelo
jurisprudencial”, pois “para a sua correta aplicação, não pode o juiz prescindir de articulação
coordenada, de outras normas integrantes do ordenamento, compondo-as numa unidade lógica
de sentido.
71
Ascarelli, citado por Reale, reconhece “a insuficiência dos processos puramente formais de
interpretação”
72
, bem como a indispensável necessidade de “recorrer a outros esquemas de
conteúdo ético, tais como os correspondentes à iia de boa-fé, [...].”
73
Por sua vez, Kaufmann chama a atenção para os “os conceitos jurídicos ou relevantes (ou
conceitos jurídicos impróprios)”, que são conceitos que derivam da realidade é
precisamente porque são retirados da realidade, e não produzidos pelo direito, que se chamam
conceitos jurídicos impróprios’”.
74
E que o utilizados para a formulação da norma jurídica.
Entretanto, Kaufmann assevera “o direito não recolhe esses conceitos sem mais com o seu
predicado na linguagem corrente, pois o direito tem de, nas suas hipóteses normativas,
ordenar, decretar, valorar, tem de fundamentar um dever e, em vista disso, os conceitos legais
têm sempre um significado normativo mais ou menos marcado (residindo a sua relevância
jurídica).
75
.
Sob essa perspectiva, Kaufmann ressalta a amplidão do conteúdo da boa-fé ao afirmar que
[...] assim como boa-fé (§ 242 do Código Civil) também não é conceito nenhum, mas sim
um pensamento directivo ou princípio, cujo ‘comentário’ que na verdade seria a
70
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva.
FRADERA, Vera Maria Jacob (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, p. 43
71
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale)
in Cadernos do Programa de Pós-Graduão em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p.356.
72
REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo:
Sugestões Literária. 1981, p. 14.
73
Ibidem, p. 14.
74
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 143.
75
Ibidem, p. 141.
123
concretização dum princípio jurídico dirigida ao direito positivo abarcará facilmente uma
mil páginas.”
76
Ao tratar dos modelos jurisdicionais Reale destaca que:
“A jurisdição é, pois, antes de mais nada, um poder constitucional de explicitar
normas jurídicas, e, entre elas, modelos jurídicos. Esse poder decisório se
desenvolve de duas formas distintas: normalmente, como exercício da jurisdição
enquanto realização das normas legais adequadamente aos casos concretos, isto é,
em função das peculiaridades e conjunturas próprias da espécie de experiência
social submetida a julgamento; e, excepcionalmente, no exercício da jurisdição
enquanto poder de editar criadoramente regras de direito, em havendo lacuna no
ordenamento.”
77
Marcela Varejão, citando Vicenzo Ferrari, acrescenta que “no nível social geral o direito o
é simplesmente regra, mas direcionamento geral da conduta mediante modelos, mais ou
menos típicos, coordenados ou coordenáveis institucionalmente [...]. Isto implica, sem vida,
certa estabilidade dos modelos jurídicos e certa segurança pelo fato de os atores sociais os
considerarem existentes, não em sua forma efetiva [...]. Com uma metáfora já em uso pelos
juristas, pode-se dizer que o direito age antes de tudo, na intenção dos sujeitos, na modelação
social: denominação extrda não da mesma forma, onde também os preceitos têm um grau
variável de imperatividade.”
78, 79
Reale denomina de “concreção jurídicaà idéia do direito que emana das exigências impostas
pelas experiências que afloram da multiciplicidade dos fatores que permeiam o dinamismo
social. Sob esse novo matiz, os juizes desempenham destacado papel, pois cabe a eles dar
efetividade a essa concreção com o alcance do sentido das normas legais às múltiplas e
particulares situações sociais.
80
Segundo Reale:
76
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, pp. 143-144.
77
REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva.
1994, p. 70.
78
FERRARI, Vicenzo. Funcione del diritto. Laterza, Bari, 1989, pp. 91.92 apud VAREJÃO, Marcela. I Modelli
Giuridici e L’ermeneutica in Miguel Reale in Rivista internazionale de filosofia del diritto. Milão: Giuffrè
editore, V. LXXII, série IV, out./dez. 1995, p. 841.
79
No original: “[...] a livello sociale generale della condotta attraverso l’influenza esercitata daí consociati,
reciprocamente mediante modelli, più o meno tipizati, coordinati o coordinabili instituzionalmente [...]. Cio
implica senza dubbio uma certa stabilità dei modelli giuridici e una certa sicurezza sul fatto che gli attori sociali
li considerano esistenti, nonchè sulla loro portata effetiva [...]. Com uma metafora già in usso presso gli stessi
giuristi, potremmo dire che il diritto funge anzitutto, nelle intenzioni dei soggeti, da modellistica sociale: termine
tratto non per caso dalla moda stessa, ove pure i precetti hanno um grado variabile di cogenza [...].”
80
REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do
direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 56.
124
“O atual movimento da clamada concreção jurídica, que corresponde à idéia de
direito como experiência, não reconhece o papel criador do juiz, como aplicador
dos preceitos normativos, mas também o valor dos princípios gerais de natureza
ético-jurídica (como por exemplo, os de eqüidade, boa-fé, probidade contratual, due
processo of law etc.) respeitados como diretivas e balizas na compreensão das
regras jurídicas.”
81
Não se pode perder de vista, entretanto, que “valores há que, uma vez revelados à consciência
popular, adquirem objetividade e força cogente, não obstante a sua originária fonte subjetiva e
individual. Tais valores atuam, então, sobre os comportamentos humanos como se fossem
modelos ideais, isto é, arquétipos inatos da conduta individual e coletiva.
82
Segundo Reale
são parâmetros axiológicos considerados de validade universal.” A esses parâmetros Reale
denomina de constantes ou invariantes axiológicas, recebidos e reconhecidos como se
fossem inatos quando, na realidade, representam pressupostos conjeturais necessários da
convivência humana.”
83
Segundo Luciana Vareo “[...] na linha dessa afirmação realiana se poderia ler a idéia de
ordem como “invariante axiológica’, como limite: uma ordem que se poderia chamar também
‘engenharia social’”.
84, 85
Pode-se, já nesse ponto, inferir que a boa-fé, no âmbito processual civil contemporâneo,
apresenta-se como uma diretiva para que os escopos processuais venham a ser efetivamente
alcançados. Constata-se a perfeita imbricação existente entre a boa-fé objetiva com o
princípio do devido processo legal que, num movimento harmônico, privilegia a visão
substantiva do processo.
Reale assevera que “[...] toda vez que os indivíduos constitrem, no calor da vida de todo o
dia, figuras jurídicas atípicas, indispensável que essa atipicidade pelo menos respeite a
tipicidade ética na experiência do Direito.
86
Nesse diapasão, a boa-fé objetiva estabelece as
81
REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do
direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 56.
82
REALE, Miguel. Historicismo axiológico e direito natural In Nova fase do direito moderno. São Paulo:
Saraiva. 1990, p. 47.
83
Ibidem, p. 47. Todos os destaques no original.
84
VAREJÃO, Marcela. I modelli giuridici e l’ermeneutica in Miguel Reale In Rivista internazionale de
filosofia del diritto. Milão: Giuffrè editore, V. LXXII, série IV, out./dez. 1995, pp. 831-832.
85
No Original: Infatti, fra le linee delle affermazioni realine si potrebbe leggere l’idea dell’ordine come
‘incariante assiologica’, come limite: un ordine che si potrebbe chiamare anche ‘ingegneria sociale.
86
REALE, Miguel. A sociedade contemporânea, seus conflitos e a eficácia do Direito In Estudos de filosofia e
ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 64.
125
balizas dos comportamentos de todos aqueles que participam do processo, delineando os
limites da ação e da reação que se desenvolve na dialeticidade do contraditório.
Para Reale, a boa-fé o constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que
condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos
legais e das cláusulas contratuais até suas últimas conseqüências. Daí a necessidade de ser ela
analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos
dispositivos emanados das fontes do Direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e
negocial.”
87
Não sem razão Dworkin afirma:
“O que é o direito? [...] o direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou
princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de
comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes
sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo
território, o poder ou o processo. [...] É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva,
dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna o
cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua
sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova
circunstância. [...] A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito
interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor
caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por
último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela
comunidade apesar de divididos projetos, interesses e convicções. Isto é, de
qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos
ser e para a sociedade que pretendemos ter.”
88
Sob essa ótica, a boa-fé objetiva aparece como um modelo de comportamento desejado pela
sociedade e imposto pelo ordenamento jurídico de tal maneira que os delineamentos do
conteúdo da boa-fé no sistema jurídico, mais especificamente, na seara processual civil,
implicam investigação criteriosa e reclamam pela criação do Direito pelos magistrados na
solução do caso concreto.
Somente a par do trabalho jurisprudencial é que se torna possível aferir modelos jurídicos
concretos da boa-fé objetiva, possibilitando extrair o conteúdo que tem sido atribuído pelos
87
REALE, Miguel. A boa-fé no código civil in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da
Arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais. ano 6, vol. 21, jul.-set. 2003, p.12. Texto inicialmente publicado
em “O Estado de São Paulo”, de 16.08.2003.
88
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica Gildo
Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes. 2003, p. 492.
126
Tribunais à cláusula geral da boa-objetiva estampada no art. 14, inciso II, do Código de
Processo Civil.
Miguel Reale realça que o estudo das estruturas e dos modelos vem sendo tratado de maneira
tímida pela doutrina e não se tem dada a devida dimensão que tais instrumentos trazem para
se compreender de maneira mais rigorosa a complexa experiência jurídica de nosso tempo.
89
Com estupefação , o Autor afirma: “Passados tantos anos, o que causa estranheza é a demora
verificada, por parte de jusfilósofos e juristas, em aplicar a teoria dos modelos no campo do
Direito, quer sob uma perspectiva teórica, quer um função de sua aplicação prática.”
90
No entanto, as aludidas constatações servem de força motriz a impulsionar o desenvolver da
presente pesquisa, cujo contributo está em apresentar à comunidade jurídica o conteúdo que
tem sido atribuído pelos Tribunais pátrios à cláusula geral da boa-fé objetiva nos donios do
Direito Processual Civil.
89
REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968,
p. 147.
90
Idem, Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p.
163.
127
PARTE II A BOA-OBJETIVA NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL, ESTUDO
DO MODELO JURISPRUDENCIAL BRASILEIRO DE BOA-FÉ OBJETIVA,
MODELOS CONCRETOS AFERÍVEIS DA JURISPRUDÊNCIA EM PROCESSO
CIVIL
Capítulo V – A Boa-Fé Objetiva Processual na Constituição Federal
Sumário: 5.1. A Boa-Fé Objetiva como Instrumento de Ruptura da Dicotomia entre os
Ramos do Direito Público e do Direito Privado 5.2. O Fundamento Constitucional da Boa-
Fé Objetiva Processual
5.1. A Boa-Objetiva como Instrumento de Ruptura da Dicotomia entre os Ramos do
Direito Público e do Direito Privado
A distinção entre direito público e direito privado remonta ao direito romano e reputa-se a
Ulpiano
1
a clássica diferenciação entre publicum ius e privatum ius
2
. Tal distinção trazia ínsita
a noção de supremacia dos interesses do Estado frente aos interesses privados mostrando
tratar-se de domínios nos quais o interesse público sobrepujava frente ao interesse privado.
Norberto Bobbio ao tratar da grande dicotomia: público/privado
3
assinala que os termos
público e privado ao ingressarem no pensamento potico e social ocidental tornou-se uma
daquelas “‘grandes dicotomias que servem para delimitar, representar, orientar o próprio
campo de investigação.” É importante ressaltar que, segundo Bobbio, quando se fala
corretamente em ‘dicotomia’ está a se referir a duas esferas ou universos estanques no sentido
de que um ente compreendido em uma delas não pode ser contemporaneamente
1
Publicum just est quod ad statum rei romance spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem.(O direito
público diz respeito ao estado da coisa romana, à polis ou civitas, o privado à utilidade dos particulares.).
Digesto, 1.1.1.2 apud. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, pp. 130-131.
2
Quando Ulpiano, pois, distinguia entre o jus publicum e jus privatum certamente tinha a distinção entre a
esfera do público, enquanto lugar da ação, do encontro dos homens livres que governam, e a esfera do privado,
enquanto lugar do labor, da casa, das atividades voltadas à sobrevivência.” FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio.
Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, p. 132.
3
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Terra e
Paz. 1987, pp. 13-31.
128
compreendido na outra, além de estabelecer uma distinção que é ao mesmo tempo total e
principal.
4,5
“Além do mais, pode-se dizer que os dois termos de uma dicotomia condicionam-
se reciprocamente, no sentido de que se reclamam continuamente um ao outro.”
6
A concepção de duas esferas ou dois ramos do direito tem levado à indagação se a boa-fé
objetiva, instituto que ganhou extrema relevância no âmbito do direito privado, mais
especificamente na teoria das obrigações, ao criar deveres e mitigar o dogma da autonomia
privada, encontraria aplicação também nos meandros do direito público, especialmente no
bojo do Direito Processual Civil.
Afinal, o que se questiona é a valorização ou a supervalorização desse instituto que, tido como
princípio geral do direito ou, de forma positivada, como cláusula geral, teria ressonância tão
ampla a ponto de desbordar os limites das relações privadas e imprimir uma nova concepção
às relações onde o portentoso poder estatal ter-se-ia que encurvar.
Para o deslinde dessa questão torna-se imprescindível um rápido lampejo pelas concepções
firmadas ao longo do desenvolvimento da Ciência do Direito, onde essa ‘dicotomia’ foi
desenvolvida e enraizada e as mutações que advieram com o caminhar dessa história.
René David observa que em todos os países da família romano-germânica se deu esse
agrupamento das normas jurídicas nos dois grandes ramos. Essa divisão foi firmada na
concepção de as relações entre governantes e governados exigirem normas diversas daquelas
que regulavam as relações entre as pessoas privadas, bem como pelo fato de os interesses
público e privado não poderem ser pesados em uma mesma balança.
7
Ainda, de acordo com Bobbio, a distinção entre direito público e direito privado direciona
para a teoria das fontes - do direito público, centrada na lei e, no direito privado o contrato.
No direito público vige o império da lei, norma vinculatória reforçada pela coação. nos
4
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Terra e
Paz. 1987, p. 13.
5
Segundo Bobbio, a divisão é total quando todos os entes a que a disciplina se refere devem ter nela lugar e é
principal, porque tende a convergir em sua direção outras dicotomias.
6
Ibidem, p. 14.
7
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. 3. ed.
São Paulo: Martins Fontes. 1996, p. 67.
129
domínios do direito privado, prevalecem as relações intersubjetivas reguladas pelo contrato
sob a égide da autonomia da vontade.
8
Por sua vez, na visão de Almiro do Couto e Silva, Ius publicum e ius privatum têm sentidos
simétricos ao das expressões lex publica e lex privata. A lex publica no direito romano
exprimia a vinculação que, pela palavra, se estabelecia entre os indivíduos e entre os
indivíduos e o Estado. lex privata designava os laços jurídicos entre os particulares
firmados também pela palavra, que hoje conhecemos como autonomia da vontade.
9
Pode-se observar que a dicotomia entre normas de direito público e normas de direito privado
é apontada
10
levando-se em consideração: 1)o fim da destinação da norma; 2) os sujeitos
destinatários
11
da norma e 3) o interesse ou utilidade da norma.
A concepção de diversos doutrinadores, sintetizada por Paulo Dourado de Gusmão,
12
é feita
nos seguintes termos: o direito público tutela o interesse da sociedade como um todo; o
Estado aparece revestido do seu poder de império; é um direito de subordinação; é um direito
desprovido de patrimonialidade; a tutela dos interesses está confiada a órgãos estatais; é um
direito irrenunciável. Em contrapartida, o direito privado tutela o interesse individual; de
caráter patrimonial; prevalece uma relação de coordenação; a tutela do direito pertence a
particulares.
13
8
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Terra e
Paz. 1987, pp. 17-19.
9
COUTO E SILVA, Almiro. Os indivíduos e o Estado na realização das tarefas públicas. In Revista de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar. n. 209, jul. – set. 1997, p. 44.
10
Nesse sentido LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Fritas Bastos. 1970, p.
100.
11
Para FERRARA o critério útil para delimitar os dois campos do direito positivo está na posição dos sujeitos na
relação jurídica. “A distinção entre direito público e privado tem seu fundamento na posição diferente dos
sujeitos nas relações jurídicas. Há relação de direito público quando o sujeito intervém como portador de
prerrogativas supremas, investido de poder de império, enquanto que nas relações de direito privado os sujeitos
se contrapõem em condições de paridade, em de igualdade.” Teoria das pessoas jurídicas. Madrid: Réus.
1929, p.692 apud MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. vol. 1. 3. ed. São Paulo:
Martins. 1972, p. 137.
12
GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução à ciência do Direito. 3. ed. rev. refundida. Rio de Janeiro: Forense.
1965, p. 156.
13
Anacleto de Oliveira Faria critica o critério da patrimonialidade, pois, segundo o Autor, hoje é cada vez mais
constante a presença do Estado em atividades industriais e, até mesmo, comerciais. FARIA, Anacleto de
Oliveira. Direito público e direito privado In Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 28. FRANÇA, R. Limonge
(Coord.). São Paulo: Saraiva. 1977, p. 45. Igual teor em: FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de Direito.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1970, p. 20.
130
Tércio Sampaio, indo um pouco mais além, vai buscar na tópica a formulação para o seu
pensamento e destaca a importância da dicotomia entre público e privado como pica de
segundo grau - “sistema de classificações ou critérios organizadores de critérios
classificatórios vale-se de distinções amplas, desenvolvidas historicamente no trato
dogmático do direito. [...] Tratando-se de lugares comuns, essas noções também não são
logicamente rigorosas, são apenas pontos de orientação e organização coerente da matéria,
que envolvem, por isso mesmo, disputas permanentes, suscitando teorias dogmáticas diversas,
cujo intuito é conseguir o domínio mais abrangente e coerente possível dos problemas.”
14
Anacleto de Oliveira Faria destaca que a distinção, em termos absolutos, de normas de direito
público e normas de direito privado é quase impossível, entretanto destaca a importância
dessa distinção já que, ao longo da história, a elaboração da ciência do direito se desenvolveu
em função dessa distinção. Tal distinção poderia ser justificada por razões de ordem histórica,
didática e, até mesmo, prática.
15
A importância da distinção entre direito público e privado, na concepção de Tércio Sampaio
Ferraz Junior, é ressaltada não, apenas, para ordenar os tipos normativos, mas para
sistematizar os princípios que para operar as normas de um ou outro grupo. São os “princípios
diretores do trato com as normas, com as suas conseqüências, com as instituições a que elas se
referem, os elementos congregados em sua estrutura. Esses princípios decorrem, eles próprios,
do modo como a dogmática concebe o Direito Público e o Privado. E esse modo, não podendo
ter o rigor de definição, é, de novo, pico, resulta de lugares comuns, de pontos de vista
formados historicamente e de aceitação geral.”
16
Nessa esteira, o Autor exemplifica que, no direito privado vige o princípio da autonomia
privada. Mesmo não estando vinculados ao princípio da estrita legalidade, existem outros
princípios que limitam o campo de atuação desses particulares, como o princípio da boa-fé,
que exige a lealdade e a proteção de confiança no campo obrigacional. Significa dizer que,
mesmo estando no campo do direito privado uma mitigação do princípio da autonomia
14
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed.
São Paulo: Atlas. 2001, p. 130.
15
FARIA, Anacleto de Oliveira. Direito público e direito privado In Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 28.
FRANÇA, R. Limonge (Coord.). São Paulo: saraiva. 1977, p. 46.
16
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed.
São Paulo: Atlas. 2001, p. 135.
131
privada. Sob o ponto de vista da dogmática, não obstante as distinções do direito emblico e
privado, ele é um só, e deve manifestar coerência e coesão.
17
De acordo com Ruggiero, o critério da utilidade leva a pressupor uma separação estanque
entre os ramos do direito público e do direito privado, entretanto, nem mesmo no direito
romano essa separação existia de forma tão absoluta e em nossos dias tal se mostra
completamente inadmissível. A distinção não pode ser fundamentada na utilidade da
norma.
18,19
Esse entendimento é compartilhado por Anacleto de Oliveira Faria ao assegurar que “se
encontram de tal modo misturados os interesses sociais e individuais, que se torna impossível
assinalar, com precisão, qual o interesse dominante, no que tange a qualquer norma.
20
De Zan afirma que “a teoria das esferas do independente entre o público e o privado está em
crise, e que se estabelecer uma relação entre elas.”
21
Afirmação essa que é comungada por
Pietro Perlingieri entendendo que “a própria distinção entre direito público e direito privado
está em crise.”
22
Segundo, Perlingieri, “[...] em uma sociedade como a atual, torna-se difícil
individuar um interesse particular que seja completamente autônomo, independente, isolado
do interesse blico. As dificuldades de traçar as linhas de fronteira entre público e privado
aumentam, também por causa da cada vez mais incisiva presença que assume a elaboração
dos interesses coletivos como categoria intermediária [...].
23
A concepção de direito blico e direito privado, que tem por fundamento o interesse
envolvido, embora perpetre ainda hoje, precisa ser analisada com temperamento em razão das
17
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed.
São Paulo: Atlas. 2001, pp. 137-138.
18
RUGGIERO, Roberto de. Instituões de direito civil. v. 1. tradução da 6ª edição italiana por Paolo
Capitanio. São Paulo: Bookseller. 1999, p. 76.
19
No mesmo sentido: FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais.
1970, p. 20.
20
FARIA, Anacleto de Oliveira. Direito público e direito privado In Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 28.
FRANÇA, R. Limonge (Coord.). São Paulo: Saraiva. 1977, p. 45. A mesma opinião vem expressa em FARIA,
Anacleto de Oliveira. Instituições de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1970, pp. 19-20.
21
DE ZAN, Júlio. Libertad, poder y discurso. Ross, Rosário, 1993, p.82 et seq apud LORENZETTI, Ricardo
Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera Maria Jacob Fradera da edição espanhol do livro Las
normas fundamentales de derecho privado. Editado em Santa Fé, Argentina, pela Rubinzal Culzoni Editores.
abril/1995, São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 224.
22
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil : introdução ao direito constitucional. Tradução de Maria
Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 53.
23
Ibidem, p. 53.
132
influências axiológicas decorrentes da própria relação que se estabelece entre o Estado e a
sociedade.
24
Sob essa perspectiva, Almiro do Couto e Silva adverte que, hoje, a noção de sistema jurídico é
conformada a partir da Constituição, “com toda a constelação ou ordem de valores que
abriga”. Por conseguinte, as normas infraconstitucionais são informadas ou orientadas por
esses valores.
25
Sob essa ótica, Célia Barbosa Abreu Slawinski ressalta a necessidade de “relacionar a
reunificação do Direito Civil à luz da Constituição à summa divisio do direito público e do
direito privado, uma vez que a interpenetração dos dois ramos reproduz o profundo grau de
alteração ocorrido nas relações entre o cidadão e o Estado, através de autêntica redefinição
dos espaços públicos e privados.”
26
Essa realidade conduz a uma conclusão inexorável, que rompe com essa rígida bipartição e
apresenta os dois grande ramos do Direito como duas realidades, que se auto-complementam
numa harmoniosa relação de reciprocidade representada sob a denominação de Estado
Democrático de Direito.
24
Menezes Cordeiro destaca que, apesar de ser possível considerar o direito sob esses dois prismas, não que
se falar em contraposição. “A intervenção do Estado em situações privadas e a utilização pelo Estado, de
técnicas privadas de gestão, levantam, como tantas vezes é repetido, dificuldades a uma separação rígida entre
Direito Privado e público. Esta deve ser entendida como uma caracterização global a vel de subsistemas, i.e.,
como uma coloração regulativa do subsistema privado, informado por vectores de liberdade e igualdade e do
subsistema público, dominado por regras de competência e por ius imperium. A natureza aberta desses
subsistemas permite, em cada um deles, a erupção de normas do outro, em obediência a fenômenos de absorção
teleológica. Não deve ceder-se à tentação fácil de, [...] tirar o significado à contraposição entre Direito Privado e
público. [...] Em ponderação cultural, o Direito privado assenta numa série de contributos romanísticos, fundidos
no Direito comum europeu e ordenados, aquando das codificações, em obediência a leituras determinadas. O
Direito público deriva do jusracionalismo, depois liberalizado e não apresenta uma sedimentação capaz de
suportar uma codificação. A nível teórico, o Direito privado traduz aspectos funcionais estáveis das relações
entre pessoas; sofre pouco com as intervenções legislativas e afirma-se mais por um modo de procurar soluções
do que pelas próprias soluções em si. [...] O Direito público integra uma área organizatória de nível superior,
bulindo com relações de submissão entre pessoas, de domínio do Estado e de controle directo sobre a produção e
distribuição de riqueza. [...] A nível prático, o qualificar de uma situação como privada ou pública decide do seu
domínio académico, literário, legal e judicial. A nível significativo-ideológico, que assumir o facto de, na
existência de um Direito comum, resistente ao arbítrio do contingente, residir a salvaguarda mais relevante do
desenvolvimento livre da pessoa humana. Esse papel é desempenhado pelo Direito privado. [...] Nada disso
deve, contudo, ser interpretado como ausência de permeabilidade entre os dois subsistemas ou como
minimização do Direito público, decisivo, afinal, para a definição das sociedades e para a efectivação definitiva
dos valores concebidos, no início a vel privado.” Menezes CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa
fé no direito civil. 3. reimpressão.Coimbra: Almedina. 2007, pp. 374-375. notas de rodapé nº 427 e 429.
25
COUTO E SILVA, Almiro. Os indivíduos e o Estado na realização das tarefas públicas. In Revista de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar. n. 209, jul. – set. 1997, p. 69.
26
SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu . Contornos dogmáticos e eficácia da boa-fé objetiva: o princípio da
boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2002, pp. 117-118.
133
Conforme ressaltado por Menezes Cordeiro, antes da bipartição entre direito público e
privado “as normas ‘privadas’ e ‘públicas’ entrelaçavam-se, a todas interceptando a boa-fé.
27
Entretanto, mesmo apartando as normas privadas das públicas a boa-fé, que no direito privado
centrou-se no direito das obrigações como vetor a proporcionar a igualdade e a liberdade,
alcançou também os donios do direito público, onde domina a competência e a soberania.
28
Por mais que se queira sistematizar tal dicotomia a grande dificuldade está, exatamente, na
tênue linha divisória que demarca os dois domínios. Situações há em que, embora os
interesses envolvidos pareçam estar tão somente no campo do direito privado, no entanto, em
uma análise mais percuciente poderá ser verificado que existem interesses extremamente
caros ao Estado e que reclamam por sua proteção.
Cada vez mais se estreitam as relações entre direito público e o privado. Institutos antes
situados estritamente no ramo do direito privado são utilizados pelo direito público e vice-
versa, numa harmônica convivência que visa, precipuamente, a paz social. Nesse contexto,
Perlingieri põe em relevo que [...] o Estado moderno não é caracterizado por uma relação
entre cidadão e Estado, onde um é subordinado ao poder, à soberania e, por vezes, ao arbítrio
do outro, mas por um compromisso constitucionalmente garantido de realizar o interesse de
cada pessoa. A sua tarefa não é tanto aquela de impor aos cidadãos um próprio interesse
superior, quanto àquela de realizar a tutela dos direitos fundamentais e de favorecer o pleno
desenvolvimento da pessoa.”
29
Nesse sentido, colimam os apontamentos de Hermes Lima de que um interesse recíproco
dos indivíduos na realização dos preceitos do direito público, bem como o Estado não se
mostra indiferente à aplicação dos direitos privados ou para que estes não sejam
transgredidos. “A ordem jurídica, couraça de proteção da ordem social [...]representa um
grande sistema composto tanto por normas de direito público como de direito privado.”
30
27
Menezes CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão.Coimbra:
Almedina. 2007, p. 374.
28
Ibidem, p. 374.
29
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil : introdução ao direito constitucional. Tradução de Maria
Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 54.
30
LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Fritas Bastos. 1970, p. 102.
134
Tanto é assim que, conforme salientado por Perlingieri, existe uma perfeita imbricação das
normas de direito privado no próprio texto constitucional, o que denota que, longe de haver
contraposição, uma perfeita unidade no ordenamento.
31
Percebe-se que uma intercambialidade entre as normas de direito público e de direito
privado e, especialmente, no que tange à aplicação da boa-fé objetiva, a sua aplicação não se
restringe aos domínios das relações privadas, sendo princípio que paira sobre os dois grandes
ramos do direito, auxiliando inclusive na superação dessa divisão.
Ao estipular no art. 14, inciso II, do CPC, o “dever das partes e de todos que de qualquer
forma participam do processo de proceder com lealdade e boa-fé” o legislador deixou clara a
ideologia a nortear o digo. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira assegura que apesar do seu
aspecto formal, seria completamente inadequado conceber o processo como instrumento
exclusivamente técnico.
32
Segundo o Autor, “mesmo as normas aparentemente reguladoras do
modo de ser do procedimento não resultam apenas de considerações de ordem prática,
constituindo fundamental expressão das concepções sociais, éticas, econômicas, ideológicas e
jurídicas, subjacentes a determinada sociedade e a ela características, [...].”
33
Nesse sentido, Alvaro ressalta que o Direito Processual não pode ser visto nos estritos
quadros de realização do direito material, mas sob a ótica dos valores constitucionais e dos
valores culturais onde o mesmo encontra-se inserido como ferramenta de natureza pública
para a realização da justiça e da pacificação social. uma mudança de paradigma que
estabelece um procedimento mais dinâmico e flexível, sem se tornar arbitrário, no qual os
juristas precisam estar atentos às particularidades do caso concreto para a aplicação de
princípios e o preenchimento de cláusulas gerais que passam a dar um novo direcionamento
na prestação jurisdicional em oposição ao positivismo e ao formalismo que por longo tempo
conduziram ao raciocínio lógico-dedutivo.
34
“Realmente, o processo de aplicação do direito mostra-se, necessariamente, obra de
acomodação do geral ao concreto, a requerer incessante trabalho de adaptação e a
de criação, mesmo porque o legislador não é onipotente na previsão de todas e
31
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil : introdução ao direito constitucional. Tradução de Maria
Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 55.
32
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo valorativo em confronto com o formalismo
excessivo. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 137. ano 31. jul. – 2006, pp. 10-11.
33
Ibidem, p. 11.
34
Ibidem, pp. 12-17, passim.
135
inumeráveis possibilidades oferecidas pela inesgovel riqueza da vida. [...] A sua
vez, o juiz não é uma máquina silostica, nem o processo como fenômeno cultural,
presta-se a soluções de matemática exatidão. Impõe-se rejeitar as teses da
mecanização da aplicação do direito.”
35
Sob essa perspectiva, a Constituição dita as pautas a serem desenvolvidas no âmbito
processual ao estabelecer a projeção concretizadora do devido processo legal no qual “revela-
se inegável a importância do contraditório do processo justo, princípio essencial que se
encontra na base mesma do diálogo judicial e da cooperação. A sentença final pode resultar
do trabalho conjunto de todos os sujeitos do processo. [...]. Esse objetivo ime-se alcançado
pelo fortalecimento dos poderes das partes, por sua participação mais ativa e leal no processo
de formação da decisão [...].”
36
Nessa moldura em que se encontra o Direito Processual, a boa-fé e a lealdade impedem que o
processo venha a sucumbir diante de exigências meramente formais, dissociado da verdadeira
finalidade da lei.
37
Todos os sujeitos precisam atuar de forma cooperativa, sem quaisquer
armadilhas ou artimanhas procedimentais tendo por lastro o princípio da confiança a reger as
relações endoprocessuais.
Sob o rótulo de que o Direito Processual pertence ao ramo do direito público, não pode o
processo ficar preso às amarras de um formalismo cego ou, nas precisas palavras de Galeno
Lacerda “na radicalização do rito, como um valor em si mesmo, em nome de um pretenso e
abstrato interesse blico, descarnado do verdadeiro objetivo do processo, que é sempre um
dado concreto de vida, e jamais um esqueleto de formas sem carne.”
38
Galeno Lacerda já advertia que [...] os valores e os interesses do mundo do direito o
pairam isolados no universo das abstrações; antes, atuam, no dinamismo e na dialética do real,
em permanente conflito com outros valores e interesses.”
39
Não pode o processo caminhar dissociado de valores humanos envolvidos nas lides que o
materializam. Não há outro interesse público mais alto, para o processo, do que o de cumprir a
35
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo valorativo em confronto com o formalismo
excessivo. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 137. ano 31. jul. – 2006, p. 19.
36
Idem, p. 17.
37
Ibidem, p. 28.
38
LACERDA, Galeno. O código e o formalismo processo. Revista da AJURIS. n. 28. ano X. Porto Alegre:
AJURIS. jul. 1983, p. 8.
39
Ibidem, p. 10.
136
sua destinação de veículo, de instrumento de integração da ordem jurídica mediante a
concretização imperativa de direito material.
40
Sobreleva o interesse de que [...] o processo
sirva, como instrumento à justiça humana e concreta, a que se reduz, na verdade, sua única e
fundamental razão de ser.”
41
É, exatamente, neste contexto, que a lealdade e a boa-fé dão uma conotação axiológica ao
regular desenvolvimento do processo numa conjugação harmoniosa da observância das
normas processuais plasmadas na dialética do contraditório informado pela cooperação leal e
proba daqueles que nele participam para o alcance da decisão que, retrate, simultaneamente, a
legitimidade da atuação estatal na prestação jurisdicional e a pacificação social com justiça.
O que se tem assistido hoje nas legislações são preceitos que primam pela lealdade e
probidade nas relações intersubjetivas. Tal não se verifica, apenas, no ramo do direito privado
que, especialmente no Brasil, com fundamento no art. , inciso I, da Constituição Federal,
traça como um dos objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária.
A exigência de comportamentos sob o enfoque da ética tem sido incorporada por todos os
ramos do direito e dele não se furta o Direito Processual. No Código de Processo Civil, am
da disposão expressa no art. 14, inciso II, a exigir de todos os que participam do processo
um comportamento afinado com a lealdade e a boa-fé, um leque de disposões expressas
que sancionam as condutas que destoam desse padrão de comportamento.
No âmbito processual a boa-fé encontra lastro também no texto constitucional, no que
concerne aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa
insculpidos como garantias processuais constitucionais. Daí se denota o relevo da cláusula da
boa-fé nos meandros processuais.
A importância da boa-fé é de tal magnitude que tem sido apontada como “um autêntico
princípio geral do direito
42,43
, que independe de positivação. Conforme salientado por
40
LACERDA, Galeno. O código e o formalismo processo. Revista da AJURIS. n. 28. ano X. Porto Alegre:
AJURIS. jul. 1983, pp. 10-11.
41
Ibidem, p. 10.
42
GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev.
atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 29. Tradução livre da autora.
137
González Pérez, a sua consagração expressa em uma norma legal não pode levar à conclusão
de que antes não existia, nem que por tal consagração possa perder a sua projeção de princípio
geral do direito, bem como não pode conduzir a uma conclusão apressada que negue a sua
aplicação geral. Pelo contrário, “o princípio da boa-fé é exigível em todos os atos jurídicos, no
exercício dos direitos e no cumprimento das obrigações.”
44, 45
“A boa-fé domina todo o tráfico jurídico, o só na órbita estreita do direito privado, mas,
inclusive, no direito público. Beitzke, por exemplo, [...] assinala como no funcionamento e
nas vicissitudes dos negócios jurídicos celebrados pelos entes públicos tem de preponderar,
também, como norma fundamental, os postulados da lealdade e da boa-fé. A boa-fé é
exigível, portanto, não só nas relações de direito privado stricto sensu, mas também nas de
direito administrativo ou nas de Direito Processual.”
46
De acordo com Larenz, “[...] A salvaguarda da boa-fé e a manutenção da confiança que é a
base das relações jurídicas e, em particular de toda vinculação jurídica individual, denotam
que a boa-fé não pode limitar-se às relações obrigacionais, mas é aplicável sempre que exista
uma vinculação jurídica, e nesse sentido pode concorrer, portanto, no Direito das coisas, no
Direito Processual e no Direito público.
47
Nesse sentido, Cossio aduz que a boa-fé não se aplica, apenas, em matéria contratual, mas se
estende a todos os demais direitos subjetivos, no sentido de que não se pode admitir o
exercício desses direitos de maneira contrária à boa-fé.
48
43
No Original: “[…] pero no se puede negarse que el de la buena fe sea un auténtico principio general del
Derecho.”
44
Ibidem, pp. 29-31, passim.
45
No original:“El hecho de su consagración en una norma legal no suponía que con anterioridad no existiera,
ni que por tal consagración legislativa hubiera perdido tal carácter. Pues si los principios generales del
Derecho, por su propia naturaleza, existen con independencia de sus consagración en una norma jurídica
positiva, como tales subsistirán cuando en un Ordenamiento jurídico se recogen en un precepto positivo, con
objeto de que no quepa duda su pleno reconocimiento.
“[…] El principio de la buena fe es exigible en los actos jurídicos, en el ejercicio de los derechos y en el
cumplimiento de las obligaciones.”
46
BREITZKE, Treud und Glauben bei Privatrechtsgeschäften der öffentlichen Hand. Monatschrift für deutsches
Recht, 7, 1º, 1953, apud DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p.
135, nota de rodapé nº 31.
47
LARENZ, Derecho de obligaciones. Ed. esp., Madrid, 1958, I, p. 144. apud GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El
principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p.
44.
48
COSSIO, Instituciones de derecho civil, cit. I, p. 144 apud GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general
de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 45.
138
Mesmo frente a tais apontamentos doutrinários, algumas razões têm sido sublinhadas em
oposição à aplicação da boa-fé no âmbito do direito público, em especial no direito
administrativo, fundadas na diferença entre as partes envolvidas, na distinção dos interesses
envolvidos e no princípio da legalidade que rege a atuação administrativa, o que justificaria
uma aplicação da boa-fé nesse âmbito diferente da boa-fé aplivel ao direito privado.
49
Entretanto, tal não pode prevalecer. Exatamente por desempenhar uma atividade que tem por
fim último o bem comum é que, também no âmbito do direito público, o princípio da boa-fé
tem vigência ou, até mesmo, “sua máxima vigêncianão existindo nenhum obstáculo para
criar dois mundos, duas esferas, com distinta submissão à boa-fé. Ademais, no que tange ao
imperativo da legalidade que rege a atuação no direitoblico, não exclui a ‘regulação íntegra
dessa atuação’. Tanto os poderes públicos quanto os administrados e jurisdicionados estão sob
o manto de uma mesma ordem jurídica que não pode compactuar nem tolerar atuações
desafinadas com os ditames de lealdade e probidade.
50
A aplicação da boa- objetiva no Processo Civil transcende aos interesses das partes
envolvidas na relação jurídica processual. Toda a sociedade tem interesse no resultado
produzido pelo processo, o somente as partes. Não se trata, apenas, de identificar a vitória
de um e a derrota de outro. O processo, antes que um método de debate é uma garantia
fundamental do homem que, tem no bojo do devido processo legal um conjunto de regras e
princípios que repercutem na segurança do direito.
51, 52
Para corroborar esse entendimento vale trazer à colação excertos de decisões proferidas pelo
Superior Tribunal de Justiça STJ que demonstram de forma paradigmática a aplicação do
princípio da boa-fé objetiva no âmbito do direito público, bem como a ruptura da dicotomia
dos ramos do direito público e privado:
49
SAINZ MORENO, Fernando. La buena fe en las relaciones de la Administración con los administrados, p.
312. apud GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed.
rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 45.
50
Ibidem, pp. 46-47, passim.
51
GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. El principio de la buena fe en el proceso civil. In Tratado de la buena fe en el
derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, pp.891-892.
52
No original: En cambio, si el proceso se mide por su eficacia y trascendencia, no habrá que analizar
únicamente la victoria de uno o el sinsabor de otro, porque la sociedad toda está interesada en eses resultado, y
la buena entre as partes será un principio ético a cumplir; […].
No hay que perder de vista en ambas situaciones, que el proceso es antes que un método de debate, una garantía
fundamental del hombre que, encolumna tras las condiciones del debido proceso, un conjunto de reglas y
principios que acondicionan la seguridad del derecho.”
139
No julgamento do Recurso Especial - REsp 45522/SP - a Primeira Turma daquela Corte, sob
a relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros, concluiu pela aplicabilidade da boa-
objetiva, nas relações envolvendo a administração pública, como instrumento de
harmonização da imperatividade do princípio da legalidade com os demais sustentáculos do
Estado Democrático de Direito, inclusive para segurança e proteção dos administrados nos
termos a seguir ementados:
ADMINISTRATIVO - ENSINO - FREÊNCIA A AULAS - FALTAS -
SUPRIMENTO - DL 1.044/69 - ESTUDANTE PRESO - ANALOGIA ATO
ADMINISTRATIVO - NULIDADE - SÚMULA 473 STE - TEMPERAMENTOS
EM SUA APLICAÇÃO.
1. É lícita a extensão, por analogia, dos benefícios assegurados pelo DL 1.044/69, a
estudante que deixou de freqüentar aulas, por se encontrar sob prisão preventiva,
em razão de processo que resultou em absolvição.
II. Na avaliação da nulidade do ato administrativo, é necessário temperar a rigidez
do princípio da legalidade, para que se coloque em harmonia com os cânones da
estabilidade das relações jurídicas, da boa—fé e outros valores necessários à
perpetuação do Estado de Direito.
III. A regra enunciada no verbete 473 da Súmula do STF deve ser entendida com
algum temperamento. A Administração pode declarar a nulidade de seus atos, mas
não deve transformar esta faculdade, no império do arbítrio.
53
No voto do Ministro Relator pode-se extrair os trechos seguintes, que demonstram o
entendimento daquela Corte sobre o assunto em pauta, o qual pela precisão do seu teor
merece reprodução:
“Percebe-se, assim, que a supremacia do interesse público sobre o privado deixou de
ser um valor absoluto.
Tal princípio, muitas vezes prestou-se a deformações, servindo de justificativa para
a implantação de regimes ditatoriais, tornou-se necessário temperá-lo com velhas
regras do Direito Privado, que homenageiam a boa e a aparência jurídica.
Em interessante monografia, a Professora Weida Zancaner traça fiel esboço do
estágio em que se encontra, hoje, o processo de composição entre o princípio da
legalidade e o da segurança jurídica:
“O princípio da legalidade, fundamento do dever de invalidar, obriga a
Administração Pública a fulminar seus atos viciados não passíveis de convalidação.
que a invalidação não pode se1 efetuada sempre, com referência a todas as
relações inválidas não convalidáveis que se apresentem ao administrador, em razão
das barreiras ao dever de invalidar.
Os limites ao dever de invalidar surgem do próprio sistema jurídico-positivo, pois,
como todos sabemos, coexistem com o principio da legalidade outros princípios que
devem ser levados em conta quando do estudo da invalidação.
Claro está que o princípio da legalidade é basilar para autuação administrativa, mas
como se disse, encartados no ordenamento jurídico estão outros princípios que
devem ser respeitados, ou por se referirem ao Direito como um todo como, por
exemplo, o princípio da segurança jurídica, ou por serem protetores do comum dos
cidadãos, como, por exemplo, a boa-fé, principio que também visa protegê-los
quando de suas relações com o Estado.
53
STJ: REsp 45522/SP. Primeira Turma. Relator Ministro Humberto Gomes de Barros. Julg. 14.09.94. DJ
17.10.94. Pág. 27.865.
140
Assim, em nome da segurança jurídica, simetricamente ao que referimos quanto à
convalidação, o decurso de tempo pode ser, por si mesmo, causa bastante para
estabilizar certas situações fazendo-as intocáveis. Isto sucede nos casos em que se
costuma falar em prescrição, a qual obstara a invalidação do ato viciado. Esta é,
pois, uma primeira barreira à invalidação.
Por sua vez, o princípio da boa-fé assume importância capital no Direito
Administrativo, em razão da presunção da legitimidade dos atos administrativos,
presunção esta que só cessa quando esses atos são contestados, o que coloca a
Administração Pública em posição sobranceira com relação aos administrados.”
Ademais, a multiplicidade das áreas de intervenção do Estado moderno na vida dos
cidadãos e a tecnicização da linguagem jurídica tornaram extremamente complexos
o caráter regulador do Direito e a verificação da conformidade dos atos concretos e
abstratos expedidos pela Administração Pública com o Direito posto. Portanto, a
boa-fé dos administrados passou a ter importância imperativa no Estado
Intervencionista, constituindo, juntamente com a segurança jurídica, expediente
indispensável à distribuição da justiça material. É preciso tomá-lo em conta perante
situações geradas por atos inválidos.
Com efeito, atos inválidos geram conseqüências jurídicas, pois se não gerassem não
haveria qualquer razão para nos preocuparmos com eles. Com base em tais atos
certas situações terão sido instauradas e na dinâmica da realidade podem converter-
se em situações merecedoras de proteção, seja porque encontrarão em seu apoio
alguma regra especifica, seja porque estarão abrigadas por algum principio de
Direito. Estes fatos posteriores à constituição da relação inválida, aliados ao tempo,
podem transformar o contexto em que esta se originou, de modo a que fique vedado
à Administração Pública o exercício do dever de invalidar, pois fazê-lo causaria
ainda maiores agravos ao Direito, por afrontar à segurança jurídica e à boa-fé.” (Da
Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos - Ed. RJ -1990 - págs.
58/9).”
No mesmo diapasão, colaciona-se trecho do voto do Ministro Relator Ruy Rosado de Aguiar
proferido no julgamento do STJ: REsp 141879/SP, no qual a boa-fé objetiva serviu de diretriz
a exigir da administração pública o dever lealdade de maneira a não frustrar a confiança
despertada nas relações com os cidadãos: “Sabe-se que o princípio da boa-fé deve ser
atendido também pela administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu
comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos
próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de estabelecer relações
em cuja seriedade os cidadãos confiaram.
54
Ademais, inobstante tratar-se de julgamento envolvendo contratos administrativos, vale trazer
à colão a ementa do acórdão proferido, recentemente, no julgamento do REsp 914087/RJ,
Relator Ministro JoDelgado, que demonstra o rompimento da dicotomia blico/privado
tendo por esteio a boa-fé objetiva a reger as relações, ainda que em um dos los encontre o
Estado representado por seus mais diversos entes.
54
STJ: REsp 141879/SP. Quarta Turma. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julg. 17.03.98. DJ 22.06.98.
Pág. 20.
141
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO
DO ART. 87 DA LEI N. 8.666⁄93.
1. Acolhimento, em sede de recurso especial, do acórdão de segundo grau assim
ementado (fl. 186):
DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO.
INADIMPLEMENTO. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 87,
LEI 8.666⁄93. MANDADO DE SEGURANÇA. RAZOABILIDADE.
[...]
3. Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais relacionados à
igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam mudanças de
paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato
administrativo que, desse modo, sem perder suas caractesticas e atributos do
período anterior, passa a ser informado pela não de boa-fé objetiva, transparência
e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual.
[...].”
55
Por fim, concernente ao interesse envolvido, “o caráter público de certos interesses não
implica oposição ou desvinculação dos interesses privados. [...] Os interesses públicos e os
interesses privados estão de tal modo implicados, que qualquer interesse público é também
interesse privado.
56
Ademais, há que se colocar de ressalto que “a proteção a boa-fé objetiva
também é manifestação do interesse blico”
57
. Nesse sentido, Anderson Schreiber destaca
que a mudança dos valores sociais e do próprio papel do direito privado veio [...] atrair para
a autonomia privada a incidência dos valores que compõem a ordem blica, eliminando as
fronteiras intransponíveis entre as duas noções”
58
.
Destarte, a boa-fé é exigível no exercício de qualquer ação e de qualquer direito. É um
princípio fundamental que tem sido enraizado nos ordenamentos jurídicos, tanto público
quanto privado, com as mais sólidas tradições éticas e sociais da cultura.
59, 60
Nessa perspectiva, Aldemiro Rezende Dantas nior demonstra a transposição da boa-dos
limites do direito privado para todos os outros ramos do Direito.
55
STJ: REsp 914087/RJ. Primeira Turma. Relator Ministro JoDelgado. Julg. 04.10.2007, DJ 29.10.2007, p.
190.
56
SAINZ MORENO, Fernando. La buena fe en las relaciones de la Administración con los administrados, p.
312. apud GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed.
rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 48.
57
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de
conhecimento. vol. I. Salvador: Juspodivm. 2008, p. 263.
58
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra
factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p 260.
59
GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. El principio general de la buena fe en el proceso civil. In Tratado de la buena fe
en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 891.
60
No original: La buena fe es exigible en el ejercicio de cualquier acción y de cualquier derecho. Este
principio fundamental cualquier ordenamiento jurídico, tanto público como privado, al enraizarlo con las más
sólidas tradiciones éticas y sociales de la cultura.”
142
“[...] boa-fé com destaque para o seu caráter normativo (ou seja, a boa-fé enquanto
norma de conduta) e a sua tenncia expansionista, de modo que a sua aplicação
passa a se dar em todos os ramos do direito. É que essa boa-fé agora se apresenta
como um princípio geral e fundamental, cujo assento pode ser encontrado
diretamente no tecido constitucional, mais precisamente na solidariedade social, que
se apresenta como um dos objetivos fundamentais da nossa República Federativa,
conforme se encontra no art. 3º, I, da Constituição Federal.
Ora, uma vez verificado que a boa-fé normativa tem fundamento constitucional e
que se constitui em um princípio fundamental, fica fácil de ser explicado o seu
caráter expansionista, ou seja, a sua extensão a todos os ramos do direito,
ultrapassando o apenas as fronteiras do direito civil, mas, muito mais do que isso,
indo além das fronteiras do direito privado, até se espraiar pelo direito público e pelo
Direito Processual, campos onde um perfunctório exame poderia transmitir a
errônea idéia de que o instituto da boa-fé o seria capaz de encontrar
aplicação.
61,62
Conforme assinalado por Joan Pi I Junoy, “[...] O princípio da boa-fé processual é a
manifestação no âmbito jurisdicional do princípio geral da boa-fé. Este, como destaca a
melhor doutrina, não somente produz eficácia no campo do direito privado, mas também no
direito público, para uma mínima preservação de condutas éticas em todas as relações
jurídicas.”
63, 64, 65
Na atualidade, sendo o processo instrumento necessário para o exercício da função
jurisdicional, as atuações maliciosas das partes tendentes a frustrar o seu correto fim não
podem ser legitimadas. A mudança do campo de percepção da natureza jurídica do processo,
ao assumir uma função pública em oposição à natureza privada que se dirigia apenas à defesa
dos interesses pessoais, impõe a atuação normativa da boa-fé objetiva também nos limites
processuais.
66
Pi afirma que “o princípio geral da boa-fé é uma das vias mais eficazes para dotar o
ordenamento jurídico de um conteúdo ético-moral, demonstrando um avanço nas civilizações
61
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá.
2007, pp. 22 e 23.
62
A referência da boa-normativa feita pelo Autor concerne à “boa-fé como norma objetiva de conduta.”
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá.
2007, p. 28, nota de rodapé nº 3.
63
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 28.
64
No original: “El principio de la buena fe procesal es la manifestación en el ámbito jurisdiccional del principio
de la buena fe. Éste, como destaca la mejor doctrina, no sólo despliega su eficacia en el campo del derecho
privado sino también en el público, en orden a preservar un mínimo de conducta ética en todas las relaciones
jurídicas.”
65
Montero Aroca e Lozano-Higuero são contrários à aplicação da boa-fé no âmbito processual, entendendo que
tal princípio é característico dos regimes totalitários, fascistas ou comunistas, pois somente o juiz que atuasse
nesses regimes para fazer justiça entre os homens. O juiz liberal e garantista se limita, mais modestamente, a
pretender fazer efetivo o direito positivo entre os cidadãos e a aplicar a lei. PICÓ I JUNOY, El principio de la
buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 29-30.
66
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 30.
143
tendente a superar a concepção excessivamente formalista e positivista da lei, o que permite
aos juristas adequar as disposições normativas aos valores sociais de cada época.”
67, 68, 69
A positivão da boa-fé objetiva no Código de Processo Civil suprime toda e qualquer
discussão sobre sua aplicabilidade nos donios do Direito Processual ficando, apenas, a
cargo da doutrina e da jurisprudência o preenchimento do seu conteúdo.
5.2. O Fundamento Constitucional da Boa-Fé Objetiva Processual
Sob as diretrizes do texto constitucional, que é onde o Direito Processual finca as suas raízes,
o processo emoldura-se numa relação dialética regida por princípios os quais, ao mesmo
tempo em que asseguram às partes garantias fundamentais, também impõem deveres a serem
observados no curso de toda relação jurídica. “Hoje acentua-se a ligação entre o processo e a
Constituição no estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos na esfera
fechada do processo, mas no sistema unitário do ordenamento jurídico: é esse o caminho, foi
dito com muita autoridade, que transforma o processo, de simples instrumento de justiça, em
garantia de liberdade.”
70
A preocupação com a efetividade do processo não pode relegar a plano secundário o dever de
lealdade de todos os seus participantes
71
, pelo contrário, lealdade e efetividade harmonizam-se
para o alcance dos escopos processuais. Todos os caminhos do processo são traçados por
balizas delimitadas pela lealdade processual e pela boa-fé objetiva as quais, uma vez
devidamente observadas, conduzem, inequivocamente, à efetividade da prestação da tutela
jurisdicional.
67
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 67.
68
No original: El principio de la buena fe es una de las as más eficaces para introducir un contenido ético-
moral en el ordenamiento jurídico, y supone otro avance más en el desarrollo de la civilización, tendente a
superar una concepción excesivamente formalista y positivista de la ley, que permite a los juristas adecuar las
distintas instituciones normativas a los valores sociales propios de cada momento histórico.
69
Nesse sentido, Picó destaca que “Couture ao estudar as tenncias modernas do Direito Processual civil
destacou a aparição de ‘uma corrente autônoma de pensamento no campo do Direito Processual’ caracterizada
por ‘propugnar a efetividade de um princípio de moralidade, uma concepção ética do processo’, o que justifica
que a idéia de um prinpio moral deve reger a conduta a processual ‘constituindo uma etapa da civilização’”.
COUTURE, E. J. Concepto, sistemas y tendencias del derecho procesal civil, en Revista del Colegiado de
Abogados, Buenos Aires: T. XXXII, 1954, n. 3, set. dez., p. 206. apud PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de
la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 67, nota de rodapé n. 108.
70
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo. 17. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros. 2001, p. 78.
71
IOCOHAMA, Celso Hiroshi. Litigância de má-fé e lealdade processual. Curitiba: Juruá. 2006, pp. 17-18.
144
O princípio da solidariedade e o dever de cooperação são apontados por Morello como sendo
as iias fundamentais do novo edifício jurídico, que sustentam o conjunto em uma
reconstrução da ética e na conformação das estruturas já estabelecidas.
72
,
73
A concepção do processo justo e équo, que permeia grande parte dos ordenamentos jurídicos
modernos, cuja matriz é desenhada nos textos constitucionais, e sob a qual as normas
infraconstitucionais precisam se amoldar, encontra-se refletida nos fundamentos éticos do
processo. “Da mesma maneira que a cláusula do devido processo legal transformou no tempo
a garantia de legalidade procedimental (ou garantia da justiça formal) na mais ampla garantia
de justiça substancial”, os textos constitucionais, ao conferirem aos valores éticos plena
legitimação e relevância jurídica, propiciam o constante ajustamento das formas de tutela
jurídica e da estrutura publicista do processo com os valores imperantes na sociedade ao
longo do tempo e, via de conseqüência, a sua aceitabilidade.
74, 75
“Isso significa, em última análise, que o processo não é apenas instrumento técnico,
mas sobretudo ético. E significa, ainda, que é profundamente influenciado por
fatores históricos, sociológicos e políticos. Claro é que a história, a sociologia e a
política hão de parar às portas da experiência processual, entendida como fenômeno
jurídico.
Mas é justamente a Constituição, como resultante do equilíbrio das forças políticas
existentes em dado momento histórico, que se constitui no instrumento jurídico de
que deve utilizar-se o processualista para o completo entendimento do fenômeno
processo e de seus princípios.”
76
A boa-fé objetiva tem matizes que são identificados quando da sua aplicação: a boa-fé reflete
lealdade, honestidade e fidelidade, quando no direito de fundo são exigidas ações positivas
72
MORELLO, Augusto M. El proceso justo: del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos. Buenos
Aires: Librería Editora Platense S.R.L - Abeledo-Perrot. 1994, p. 659.
73
No original: Dos son las ideas-fuerza, verdaderos arbotantes del nuevo edificio jurídico: el principio de la
solidariedad y el deber de colaboración (además de la búsqueda de la excelencia), que sustentan el conjunto en
una reconstrucción de la ética. Ellas conforman, en nuestra opinión, las grandes avenidas superadoras de lo
establecido e a las que tenemos que vivenciar, interiozándolas en la experiencia constante, pues únicamente a
través de las mismas, afirmaremos una evolución más civilizada […]
74
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionale e “Gisuto Processo” (modelli a confronto). In Revista de
Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. ano 23. n. 90. abr. – jun., 1988, p. 105.
75
No original: Si tratta di un aproccio valorativo che nell’ambito specifico della garanzie constitucionali
attinenti alla giustizia – mira consacrare stabilmente determinati fondamenti etici del processo, conferendo loro
una piena legittimazione e rilevanza giuridica nel dettare le scelte di civilità democratica che sono destinate a
condizionare, nel tiempo, il massimo grado de accettabilità morale delle forme di tutela giudiziaria e della
struture pubblicistiche, attraverso le quali la giustizia viene amministrata. Se ben si riflette, è il medesimo
aproccio che, nell’evoluzione dell’ ‘adversari syztem’ e della ‘due process clause’ degli ordinamenti
angloamericani, ha trsnformato, nel tempo, una garanzia di legalità procedurale (o di giustizia formale) in una
più amplia garanzia di giustizia sostanziale.”
76
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo. 17. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros. 2001, p. 79.
145
para estabelecer a relação jurídica em pauta. No Processo Civil, a conduta leal, honesta, e fiel
representa um cusula aberta que repousa um conteúdo ético no comportamento profissional
e como uma regra que governa a conduta das partes. A deslealdade, a desonestidade e a
infidelidade são sancionadas por normas processuais cujas penalidades são aplicadas no
provimento judicial.
77, 78
De acordo com Diez-Picazo:
“A boa-fé é considerada pelo ordenamento jurídico com uma pluralidade de
matizes e de conseqüências. Sem pretender fazer uma enumeração exaustiva das
mesmas podemos destacar as seguintes: […]
b) A boa-fé é considerada como uma causa ou uma fonte da criação de especiais
deveres de conduta exigíveis em cada caso, de acordo com a natureza da relação
jurídica e com a finalidade perseguida pelas partes através dela. As partes não se
devem somente aquilo que elas mesmas estipulam ou o que determina o texto legal,
mas a tudo o que em cada situação impõe a boa-fé.
c) A boa- é, finalmente, uma causa da limitação do exercício de um direito
subjetivo ou de qualquer outro poder jurídico.
O princípio da boa-fé comporta, então, uma série de limitações ao exercício dos
direitos subjetivos. Segundo Larenz, é inadmissível todo o exercício de direito
subjetivo que contravenha, em cada caso concreto, as considerações que dentro da
relação jurídica cada parte está obrigada a dotar em respeito da outra.”
79, 80
De Los Mozos, ao trazer a concepção da boa-fé objetiva, embora o faça no campo
obrigacional, o cerne do seu conteúdo também aplica-se às relações jurídicas processuais:
77
GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. El principio de la buena fe en el proceso civil. In Tratado de la buena fe en el
derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 895.
78
No original: La buena fe refleja lealtad, honestidad y fidelidad, cuando no derecho de fondo exige acciones
positivas para establecer la relación jurídica de que se trate. […] En el proceso civil, la conducta leal, honesta y
fiel se colige como un principio abierto que reposa un contenido deontológico, es decir, de ética en el
comportamiento profesional y como una regla que gobierna la conducta de las partes. La deslealtad, la
deshonestidad y la infidelidad encuentran normas procesales que las sancionan tomando cuerpo en multas
particulares o para entender que esa conducta supone una prueba en contra de quien la practica, etc. De alguna
manera, tiene consecuencias que se advierten en el resultado (la sentencia), al aplicar-se sanciones por
temeridad y malicia, o por interpretar en contrario la prueba producida con argucias desleales, o sancionando
al obstruccionista recalcitratante, etc.”
79
DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose
Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 19.
80
No original: “La buena fe es tenida en cuenta por el ordenamiento jurídico con una pluralidad de matices y de
consecuencias. Sin pretender hacer enumeración exhaustiva de las mismas podemos destacar las siguientes:
[…]
b) La buena fe es tenida en cuenta en segundo lugar como una causa o una fuente de creación de especiales
deberes de conducta exigibles en cada caso, de acuerdo con la naturaleza de la relación jurídica y con la
finalidad perseguida por las partes a través de ella. Las partes no se den sólo a aquello que ellas mismas han
estipulado o escuetamente a aquello que determine el texto legal, sino a todo aquello que en cada situación
impone la buena fe.
c) La buena fe es finalmente una causa de limitación del ejercicio de un derecho subjetivo o de cualquier otro
poder jurídico.
El principio de la buena fe comporta, pues, una serie de limitaciones al ejercicio de los derechos subjetivos. Es
inadmisible, dice Larenz, todo ejercicio de un derecho subjetivo que contravenga en cada caso concreto las
consideraciones que dentro de la relación jurídica cada parte está obligada a adoptar respecto de la otra.
146
Um dos aspectos mais intensos de aplicação do princípio da boa-fé encontra-se na expressão
da boa-fé objetiva [...]. Trata-se de um comportamento de fidelidade situado no mesmo plano
que o uso ou a lei que adquire função dispositiva. Daí sua natureza objetiva, que não se baseia
na vontade das partes, mas na adequação dessa vontade a um princípio que inspira e que
fundamenta o vínculo obrigacional[...].
81, 82
“A boa-fé objetiva é um standard jurídico, ou um modelo de conduta social, ou uma conduta
socialmente considerada como arquétipo, ou uma conduta que a consciência social exige
conforme a dado imperativo ético.”
83
A boa-fé objetiva expressa um modelo de conduta social que se impõe nas relações jurídicas,
segundo o qual cada um deve ajustar suas condutas a um arquétipo imperante no meio social.
O comportamento segundo a boa-fé objetiva traduz-se não em limitações ou vedações de
condutas violadoras desse padrão, como também, impõe deveres anexos de cooperação,
esmero e diligência.
84, 85
De acordo com Couto e Silva, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, como fonte de
direitos e de obrigações, possui a aptidão de trazer, para os donios do direito obrigacional,
elementos de cooperação importando em flexibilização do polêmico vínculo dialético entre os
contratantes.
86
81
DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 45.
82
No original: Uno de los aspectos más intensos de aplicación del principio de la buena fe se encuentra en lo
que acotamos, con la expresión ‘buena fe objetiva’ []. En este caso la buena fe, como comportamiento de
fidelidad, se sitúa en el mismo plano que el uso o la ley, es decir, función dispositiva, de ahí su naturaleza
objetiva que no se halla en la voluntad de las partes, sino en la adecuación de esa voluntad el principio que
inspira y fundamenta el vínculo negocial.”
83
DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 138.
84
Ibidem, p. 139.
85
No original: Si la buena fe, considerada objetivamente, en misma, es un modelo o un arquetipo de
conducta social, hay una norma jurídica que impone a la persona el deber de comportarse de buena fe en el
trafico jurídico. Cada persona debe ajustar su conducta al arquetipo de la conducta social reclamada por la
idea ética imperante. El ordenamiento jurídico exige este comportamiento de buena fe, no sólo en lo que tiene
de limitación o de veto de una conducta deshonesta (v. gr. No engañar, no defraudar, etc.), sino también en lo
que tiene de exigencia positiva, prestando al prójimo todo aquello que exige una fraterna convivencia (v. gr.
Deberes de diligencia, de esmero, de cooperación, etc.).”
86
COUTO E SILVA, Clóvis. O prinpio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil
brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p.
47.
147
Nesse mesmo passo, tal é a manifestação da boa-fé objetiva ao estabelecer um padrão de
probidade no desenvolvimento da relação jurídica processual, dialeticamente constrda em
contraditório tendo por baliza a lealdade. “[...] a lealdade é um paradigma ético, que informa a
atividade no sentido do litigante agir de frente, sem chicanices, sem providências inesperadas,
mesmo que tais providências pudessem ser havidas como legítimas em circunstâncias
conjunturais outras.”
87
O contraditório no desenvolvimento da relação jurídica processual não possui extensão
ilimitada, sendo certo que dele decorrem deveres a serem observados “na tela publicista em
que hoje é desenhado o processo. [...] a concepção do contraditório como fonte de deveres
processuais eleva ao patamar da Lei Maior a base normativa para justificar a boa-fé
processual objetiva no ordenamento brasileiro, um imperativo constitucional da conduta ética
dos sujeitos processuais.”
88
Mesmo nos quadrantes de um processo norteado, por um lado pelo garantia do contraditório
e, de outro, pelo princípio dispositivo, a atividade dos sujeitos processuais que ser pautada
por uma conduta leal animada pela boa-fé objetiva. Os princípios do contraditório e
dispositivo não podem servir de âncoras para manobras desleais, cabendo ao magistrado
aferir, objetivamente, no caso vertente a observância ao dever, ex lege, de agir com lealdade e
boa-fé.
89
Sob esse enfoque, “[...] o contraditório legitimador da decisão final do processo ime o
exercício das posições subjetivas processuais de forma dialética, mas exige o respeito aos
deveres de cooperação e colaboração decorrentes de sua contemporânea acepção jurídico-
política, que visa, acima de tudo, a tornar efetiva a garantia no Processo Civil.”
90
A boa-fé objetiva processual está diretamente ligada ao uso adequado e racional do processo
devendo as partes agir de forma reta e leal frente aos seus deveres processuais buscando
87
ALVIM, Arruda. Tratado de Direito Processual civil. 2. ed. ref. e ampl. do Código de Processo Civil
comentado. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1996, p. 406.
88
CABRAL, Antonio do Passo. O contraditório como dever e a boa-fé processual objetiva. Revista de
Processo. ano 30. n. 126. São Paulo: Revista dos Tribunais. ago. 2005, p. 67.
89
ALVIM, Arruda. Resistência injustificada ao andamento do processo. Revista de Processo. n. 17. São Paulo:
Revista dos Tribunais. jan. – mar. 1980, p. 16.
90
VINCENZI, Brunela Vieira de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas. 2003, p. 44.
148
solucionar seus conflitos da melhor forma possível não se utilizando de mecanismos aéticos e
fraudulentos
91
.
Jônathas Milhomens, ainda sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, portanto em
uma época que sequer se cogitava da aplicação da boa-fé objetiva no âmbito processual e
muito distante se encontrava dos horizontes descortinados pela Constituição de 1988, já
evocava o dever de lealdade no âmbito processual, como máxima da arte jurisprudencial a
nortear o “jogo limpo” nos meandros das relações jurídicas processuais. Jurista de visão
prospectiva, antevia o que hoje tem se denominado de processo cooperativo, num esforço
conjunto de todos os envolvidos no desenvolvimento processual. Pela atualidade e precisão
do texto quadra trazê-lo à colação:
“Todos os sujeitos do processo partes, juízes, serventuários, auxiliares devem
agir no sentido da consecução de um fim estrito: a realização do direito ou, como diz
Pontes de Miranda, o ‘prevalecimento da verdade sobre a situação de direito
deduzida em juízo’.
O processo é meio, posto a serviço do homem, para esse fim social. O Estado, que
promete a prestação jurisdicional, o instrumento, mas exige que se lhe
precípua destinação. Pratiquem-se de boa-fé todos os atos processuais. Ajam as
partes lealmente; colaborem todos com o óro estatal, honestamente, sem abusos.
Da relação processual surgem poderes e deveres. Para o Juiz e para as partes, entre
si, e deveres de uma parte com a outra.
Os códigos não são sistemas perfeitos. O direito não se contém nos textos legais. Os
sistemas jurídicos o sistemas lógicos, nos quais o jurista descobre as máximas
gerais, os princípios fundamentais.
Não é mister que esteja escrito no texto legal, ad instar do que acontece com alguns
digos cantonais da Suíça, para se reconhecer que as partes e o advogados não
devem incoar conscientemente processos injustos. Entre os profissionais do pano
verde vigora a regra do jogo limpo’. Como liberar os partícipes da relação
processual desse liame ético-jurídico?
92
A prestação de uma tutela jurisdicional efetiva se espelha em um “processo justo e équo”, no
qual as garantias constitucionais não são simples promessas, mas que são concretamente
realizadas.
93
Tal desiderato importa uma atuação segundo balizas estabelecidas pela boa-fé
objetiva.
91
“Tanto as partes como terceiros que participam da lide têm o dever de firmar postura socialmente adequada,
colaborando com o Poder Judiciário na busca da efetivação da Justiça. Tal concepção fundamenta-se na idéia
fecunda de bem comum, a partir da eficácia do sistema jurídico-social empregado hodiernamente, sendo
pressuposto exigível básico de uma sociedade que deseja ser justa e solidária.” CARPENA, Márcio Louzada. Da
(des)lealdade no Processo Civil. Revista jurídica. Porto Alegre: Notadez , ano 53, n° 331. maio de 2005, p. 28.
92
MILHOMENS, Jônathas. Da presunção de boa-fé no processo civil. 1. ed. São Paulo: Forense. 1961, pp. 33-
34.
93
De acordo com Brunela Vieira de Vincenzi “[...] Garantir um processo giusto e équo é assegurar o due process
of law ou o fair procedure, em sua acepção concreta, mais ligada à realidade do que a seus aspectos meramente
formais.” VINCENZI, Brunela Vieira de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas. 2003, p. 45.
149
O devido processo legal como fundamento do processo justo e équo
94
se concretiza por
meio de um contradirio no qual as partes têm efetiva participação, com paridade de armas,
sob a direção de um juiz que, ao mesmo que é imparcial, dirige, ativamente, o processo para
que este se desenvolva em tempo razoável. A conjugação e operacionalização dessas garantias
constitucionais processuais não chegam a bom termo sem o amálgama da boa-fé objetiva.
Os parâmetros da lealdade e da boa-fé objetiva conduzem a uma atuação processual que
imprime certa expectativa lógica na prática dos atos processuais, sem causar surpresas ou
manobras protelatórias ao bom desenvolvimento do feito. As condutas praticadas em
manifesta afronta a esses postulados têm sido veementemente reprovadas pelos Tribunais.
Uma das facetas mais destacadas da atuação da boa-fé objetiva encontra-se representada na
proteção da confiança que há de se estabelecer entre os litigantes. De acordo com Larenz essa
proteção da confiança é inspirada pelo próprio ordenamento jurídico e pela vida em
coletividade: “O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do
outro [...] porque poder confiar [...] é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e
uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto de paz jurídica.”
95, 96
A tutela da confiança possui vinculação estrita com o princípio da igualdade das partes, visto
que, nas relações jurídicas, aquele que, legitimamente, confiou numa atuação não pode ser
tratado como se tal não tivesse ocorrido.
97
No âmbito processual civil, pela própria dialeticidade, característica do procedimento em
contraditório, a boa-fé objetiva intervém no desenvolver desse procedimento norteando o agir
de todos os intervenientes dessa relação jurídica processual. Conforme apontado por Larenz, a
aplicação da proteção da confiança não se aplica somente nos estreitos limites das relações
94
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’( modelli a confronto). In Revista de
Processo. n. 90, ano 23. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr. – jun. 1998, p. 148.
95
No original: El ordenamiento jurídico protege la confianza suscitada por el comportamiento de otro y no
tiene más remedio que protegerla, porque confiar poder confiar, como hemos visto, es condición fundamental
para una pacífica vida colectiva y una conducta de cooperación entre los hombres y, por tanto, de la paz
jurídica.”
96
LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução e Apresentação de Luiz Diez-Picazo.
Madri: Civitas. 2001, p. 91.
97
MENEZES CORDEIRO, António. Novas tendências da boa-fé in Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre
as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário. N. 52. set.-dez., 1998, p. 26. No mesmo
sentido em MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in
agendo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 51.
150
obrigacionais, encontrando vincia em todas as relações jurídicas e, até mesmo, naquelas de
direito público, conforme se infere do trecho que merece transcrição:
“[...] o comportamento ético-jurídico está em primeiro plano no princípio da boa-fé.
Dito prinpio consagra que uma confiança despertada de um modo imputável deve
ser mantida quando se creu nela. A suscitação da confiança é ‘imputável’ quando
aquele que suscita sabia ou tinha de saber que o outro ia confiar. Nesta medida é
idêntico ao princípio da confiança. Entretanto, o sobrepõe e vai mais adiante.
Demanda também um respeito recíproco diante de todas aquelas relações jurídicas
que requerem uma larga e continuada colaboração, respeito ao outro também no
exercício dos direitos e em geral o comportamento que pode esperar entre os
sujeitos que interm honestamente no tráfico. Este princípio encontrou expressão
no digo Civil alemão nos §§ 157 e 242 e no Código Civil suíço no artigo 2º.
Apesar da estrita formulação do § 242 do BGB, no direito alemão o preceito possui
o mesmo alcance que o suíço e não rege somente as relações obrigacionais.
Segundo a opinião atual, se aplica nas relações jurídicas de direito público.”
98, 99
“Lealdade é, pois, virtude do litigante que, embora não meça esforços para fazer prevalecer o
que entenda seja ser direito, assim age respeitando, mostrando a face, olhando nos olhos. Leal
é a parte que vê, no contrário, não o inimigo, mas o adversário circunstancial; é a que não
surpreende, a que mostra as armas de que dispõe, a que não atira pelas costas.”
100
O dever de lealdade na atuação das partes na relação jurídica processual “concerne à
obrigação de respeitar as chamadas ‘regras do jogo’, e comporta numerosos desdobramentos,
que se traduzem em outros tantos preceitos, dificilmente redutíveis a uma enumeração
exaustiva, mas cujo denominador comum talvez se possa identificar no respeito aos direitos
processuais da parte contrária e na abstenção de embaraçar, perturbar ou frustrar a atividade
do órgão judicial, ordenada à apuração da verdade e à realização concreta da justiça.”
101
98
LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução e Apresentação de Luiz Diez-Picazo.
Madri: Civitas. 2001, pp. 95-96.
99
“[...] el componente ético-jurídico está en primer plano en principio de buena fe. Dicho principio consagra
que una confianza despertada de un modo imputable debe ser mantenida cuando efectivamente se ha creído en
ella. La suscitación de la confianza ‘imputable’ cuando el que la suscita sabía o tenía que saber que el otro iba
confiar. En esta medida es idéntico al principio de la confianza. Sin embargo, lo sobrepasa y va más allá.
Demanda también un respecto recíproco ente todo en aquellas relaciones jurídicas que requieren una larga y
continuada colaboración, respeto al otro también en el ejercicio de los derechos y en general el comportamiento
que se puede esperar entre los sujetos que intervienen honestamente en el tráfico. Este principio ha encontrado
expresión en el Código Civil alemán en los §§ 157 y 242 y en el Código Civil suizo en el artículo 2º. A pesar de
la estricta formulación del § 242 BGB, en el Derecho alemán el precepto posee el mismo alcance que el suizo y
no rige lo en las relaciones obligatorias. Según la opinión actual, se aplica en las relaciones jurídicas de
Derecho público.
100
MILMAN, Fábio. Improbidade processual: comportamento das partes. Rio de Janeiro: Forense. 2007, p.
97.
101
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A responsabilidade das partes por dano processual no direito brasileiro.
In Temas de Direito Processual: primeira série. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 1988, p. 17.
151
A probidade processual é imperativo da atividade jurisdicional não estando cingida apenas
aos litigantes, mas a todos que participam do processo, exigindo uma conduta leal e proba
para que a prestação da tutela jurisdicional não venha ser fraudada por artimanhas que
deturpem fatos. Daí a necessidade de controle de todos os que intervêm no processo, visto que
o resultado final é obtido mediante o conjunto de atividades de todos.
Essa é a concepção do processo cooperativo: as partes coadjuvam na construção da solução
do caso objeto da lide. “Encara-se o processo como o produto de atividade cooperativa: cada
qual com suas funções, mas todos com o objetivo comum, que é a prolação do ato final
(decisão do magistrado sobre o objeto litigioso). Traz-se o magistrado ao debate processual:
prestigiam-se o diálogo e o equibrio. Trata-se de princípio que estrutura e qualifica o
contraditório.
102
No Código de Processo Civil português o princípio encontra-se expresso no art. 266.
Art. 266º do digo de Processo Civil de Portugal:
“Princípio da Cooperação.
1 Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários
judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com
brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.”
Destaque-se que a boa-objetiva aplica-se a todos os participantes do processo, daí não se
excluindo os magistrados e os tribunais. Sob esse enfoque é que se funda o processo
cooperativo, ao qual os magistrados e os Óros jurisdicionais também estão submetidos.
Portanto, a boa-fé objetiva impõe deveres de cooperação também a esses, relevando a
amplitude que o mesmo alcança frente aos magistrados, movendo-os da condição de meros
espectadores para uma posição de maestro da marcha processual. Didier destaca que o
princípio da cooperação “orienta o magistrado a tomar uma posição de agente-colaborador do
processo, de participante ativo do contraditório e o mais de um mero fiscal de regras”.
103
“O que, na realidade das coisas, o princípio da cooperação bem como outros que
lhe o conexos, como o da direção do processo e o incremento da inquisitoriedade
judicial vem, de algum modo, restringir é a passividade do juiz, afastando-se
claramente da velha idéia liberal do processo como uma luta’ entre as partes,
meramente arbitrada pelo julgador concepção essa, na nossa óptica, dificilmente
102
DIDIER Jr., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do
processo. São Paulo: Saraiva. 2005, p. 33.
103
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de
conhecimento. vol. I. Salvador: Juspodivm. 2008, p. 59.
152
conciliável como uma Constituição que, como a nossa, institui um Estado social de
direito.
[...]
O princípio da cooperação envolve duas vertentes: - a cooperação das partes com o
tribunal; - a cooperação do tribunal com as partes.”
104
A dialeticidade que advém do princípio da cooperação promove uma hermenêutica mais
afinada com o objetivo das normas, sem perder de vista o foco constitucional.
“Semelhante cooperação, além disso, mais ainda se justifica pela complexidade da
vida atual, mormente porque a interpretação da regula iuris, no mundo moderno,
pode nascer de uma compreensão integrada entre o sujeito e a norma, geralmente
não unívoca, com forte carga de subjetividade. Entendimento contrário padeceria de
vício dogmático e positivista. Exatamente em face desta realidade, cada vez mais
presente na rica e conturbada sociedade de nossos tempos, em permanente mudança,
ostenta-se inadequada a investigação solitária do órgão judicial. Ainda mais que o
monólogo apouca necessariamente a perspectiva do observador e em contrapartida o
diálogo, recomendado pelo método dialético, constrange à comparação, atenua o
perigo de opiniões preconcebidas e favorece a formação de um juízo mais aberto e
ponderado.
105
A tendência no direito processual atual é de acentuar os deveres éticos estabelecendo deveres
processuais não para as partes e para todos os intervenientes no processo, mas estendendo-
os aos magistrados na condução do processo e aos órgãos jurisdicionais nas suas relações com
os jurisdicionados.
106
Não se pode perder de vista que há, por parte dos jurisdicionados, uma
confiança legítima na atuação do poder judiciário, confiança essa ancorada na boa-fé objetiva.
“Partes e juízes devem cooperar entre si para que o processo realize a sua função em
prazo razoável (‘para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do
litígio’: art. 266-1). O apelo à realização da função processual aponta para a
cooperação dos intervenientes no processo no sentido de nele se apurar a verdade
sobre a matéria de facto e, com base nela, se obter a adequada decisão de direito. O
apelo ao prazo razoável aponta para a sua cooperação no sentido de, sem dilações
inúteis, proporcionarem as condições para que essa decisão seja proferida no menor
período de tempo compatível com as exigências do processo, ou, na ação executiva,
para que tenham lugar com brevidade as providências executivas. No primeiro
sentido poder-se-á falar numa cooperação sem sentido material; no segundo, duma
cooperação em sentido formal.”
107
104
REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Comentário ao Código de Processo Civil. vol. 1. 2. ed.
Coimbra: Almedina. 2004, p. 266.
105
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Garantia do contraditório. In: Garantias constitucionais do processo
civil. São Paulo: RT, 1999, p. 139. Ainda do mesmo autor, Poderes do juiz e visão cooperativa do processo.
Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, 2003, n. 27, p. 27-28; Efetividade e Processo de
Conhecimento. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1999, n. 96, p. 64-68.
106
FREITAS, Jo Lebre de. Introdução ao Processo Civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra:
Coimbra Editores. 2006, p. 163.
107
FREITAS, Jo Lebre de. Introdução ao Processo Civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra:
Coimbra Editores. 2006, p. 164.
153
A jurisprudência tem acenado nesse mesmo sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. BUSCA E APREENSÃO. AUSÊNCIA DE
NOTIFICAÇÃO PESSOAL. CONTRADIRIO. PRINCÍPIO DA
COOPERAÇÃO. A extinção do feito por falta de comprovação idônea da mora
sem a concessão de prazo que oportunize a parte para complementar a ausência de
requisito tido por essencial pelo julgador à procedibilidade da demanda, afronta a
garantia do contraditório e impõe "decisão-surpresa", mormente quando existente
decisão no processo, proferida em sede de controle de regularidade procedimental,
que entendeu por existente todos os requisitos de admissibilidade do exame do
mérito. Afronta à cooperação processual. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA POR
DECISÃO MONOCRÁTICA DA RELATORA. (TJRS; AC 70020307039;
Lajeado; Décima Quarta Câmara Cível; Relª Desª Judith dos Santos Mottecy; Julg.
14/12/2007; DOERS 08/01/2008; Pág. 48)
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. DANOS MORAIS. PRINCÍPIO DA
COOPERAÇÃO. ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO. O OCORRÊNCIA. 1.
Não há abuso de direito de ação a dar ensejo à indenização por danos morais,
quando o autor utiliza-se do Poder Judiciário, pleiteando legítimo direito. 2. Não só
o magistrado, mas, principalmente, as partes, devem observar o princípio da
cooperação, tendo como escopo o deslinde da prestação jurisdicional. 3. Apelo
improvido. Sentença mantida. (TJDF; Rec 2006.01.1.039795-3; Ac. 319.588;
Terceira Turma Cível; Rel. Des. Arnoldo Camanho; DJDFTE 09/09/2008; Pág. 93)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL.
PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO. REJEIÇÃO. MÁ-
E PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO. MÉRITO. EXECUÇÃO POR
QUANTIA CERTA. GARANTIA HIPOTECÁRIA. REGISTRO DA
HIPOTECA. BEM IMÓVEL INEXISTENTE. BENS OFERTADOS À
PENHORA DE DIFÍCIL LIQUIDAÇÃO. REJEIÇÃO PELO CREDOR.
PENHORA ON LINE. PROVA DE POSSIBILIDADE DE BLOQUEAR O
VALOR GLOBAL DA EXECUÇÃO NA CONTA DO PRINCIPAL
DEVEDOR. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E
PROPORCIONALIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Não possui razão de ser
a preliminar de intempestividade recursal se o recurso foi manejado, segundo
alegações do próprio agravado, quem suscita a presente preliminar, no dies ad quem
do prazo recursal, conforme faz certo o protocolo que consta na segunda folha do
recurso. Deixa-se de aplicar pena por litigância de má-fé no caso, por aplicação do
princípio da cooperação, que recomenda que o magistrado tome uma posição de
agente-colaborador do processo e não a de um fiscal de regras. Preliminar rejeitada.”
(TJES; AI 48079000237; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Carlos Henrique Rios
do Amaral; Julg. 22/05/2007; DJES 04/07/2007; Pág. 34)
AÇÃO DE DIVÓRCIO. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL.
OFENSA AO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO. NULIDADE DA
SENTENÇA. A cooperação processual, consagrado como princípio exponencial do
Processo Civil, tem como norte propiciar que as partes e o juiz cooperem entre si, a
fim de se alcançar uma prestação jurisdicional efetiva, com a justiça do caso
concreto, sendo inconcebível o indeferimento da petição inicial por irregularidades
constantes da petição inicial, das quais o autor sequer tomou conhecimento. (TJMG;
AC 1.0009.05.006309-9/001; Águas Formosas; Primeira Câmara Cível; Rel. Des.
Eduardo Guimarães Andrade; Julg. 21/08/2007; DJMG 04/09/2007)
A atuação conjunta das partes e do poder judiciário para a justa composição da lide tem
alcançado tamanha importância que a doutrina chega a denominar de comunidade de
154
trabalho”, ou seja, o que antes parecia pertencer tão somente ao Órgão jurisdicional espraia-se
para os jurisdicionados denotando a prevalência da democracia participativa nos meandros
processuais como concretização do fundamento constitucional de “construção de uma
sociedade livre, justa e solidária.”
“A progressiva afirmação do princípio da cooperação, considerado uma trave
mestra do Processo Civil moderno, leva freqüentemente a falar duma comunidade de
trabalho (Arbeitsgemeinschaft) entre as partes e o tribunal para a realização da
função processual. Esta nova concepção do Processo Civil, bem afastada da velha
idéia liberal duma luta arbitrada pelo juiz, revela bem a importância do princípio da
cooperação. Embora se tenha revelado, na prática, difícil o período de adaptação a
ela, a legislação portuguesa decorrente da revisão 1995-1996 constitui um passo
importante da sua imposição.
108
O dever de lealdade e de boa-foi “concebido para refrear os impulsos [...] dos litigantes e
de seus procuradores, no sentido de obstar que transformassem o processo em meio de
entrechoques de interesses escusos, com o emprego de toda série de embustes, artifícios
atitudes maliciosas [...].”
109
A boa-fé objetiva intervém para suprir as expectativas geradas nos membros da comunidade
de um agir fundado na honestidade, na retidão, na lealdade, expectativa essa especialmente
criada na contraparte da relação jurídica.
110
Alcides Mendonça Lima destacava que o atingimento dos escopos do processo somente
pode se verificar “quando o direito é alcançado em juízo, lisa e limpidamente, como
expressão da vontade do Estado e como emanação da Justiça. [...] Para ser alcançado este
objetivo, tão necessário à própria estabilidade social, é imprescindível que o ‘princípio da
probidade
111
, em suas várias e imprevisíveis modalidades envolva todos quantos atuem em
juízo, sem desvirtuar ou macular o julgamento.”
112
108
FREITAS, Jo Lebre de. Introdução ao Processo Civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra:
Coimbra Editores. 2006, p. 168.
109
LIMA, Alcides Mendonça. O princípio da probidade no digo de Processo Civil brasileiro. Revista de
Processo. ano 4. n. 16. São Paulo: Revista dos Tribunais. out. – dez. 1979, p. 27.
110
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 412.
111
O princípio da probidade não significa que esteja a se exigir que a “parte ofera ao adversário as armas para
que esse triunfe, mas, sim, obstar que, maliciosamente, use de meios que fraude a função jurisdicional.” LIMA,
Alcides Mendonça. O princípio da probidade no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. ano
4. n. 16. São Paulo: Revista dos Tribunais. out. – dez. 1979, p. 17.
112
LIMA, Alcides Mendonça. O princípio da probidade no digo de Processo Civil brasileiro. Revista de
Processo. ano 4. n. 16. São Paulo: Revista dos Tribunais. out. – dez. 1979, p. 41.
155
Bedaque destaca a necessidade do “[...] retorno ao interior do sistema processual, com o
objetivo de rever conceitos e princípios, adequando-os à nova visão desse ramo da ciência
processual, a fim de conferir a eles nova feição, a partir das necessidades identificadas na fase
instrumentalista.
113
Entretanto, esse “retorno ao interior do sistema processual” não pode ser motivado para
alcançar uma nova feição oriunda do processo como instrumento de realização do direito
material, mas do processo preocupado com a realização da justiça do caso concreto. De nada
adianta um processo centrado em si mesmo sem qualquer preocupação com o ordenamento
jurídico e com a pacificação social. Para tal empreitada faz-se necessário desapegar das
questões eminentemente técnico-processuais para alcançar a tonalização decorrente da visão
axiológica do processo impressa pela boa-fé objetiva.
A prestação da tutela jurisdicional pelo Estado para a resolução dos conflitos de interesses
emergentes da sociedade exige que o processo se desenvolva dentro de normas pré-
estabelecidas e segundo padrões de comportamento daqueles que nele atuam. Trata-se de
garantia constitucional à prestação de uma tutela efetiva, segundo a qual o processo se
desenvolve sem dilações indevidas assegurando-se às partes todos os meios de defesa para a
justa composição da lide sob a garantia do devido processo legal. Isso implica uma atuação
alheia a manobras desleais, ou seja, com observância da lealdade e da boa-objetiva de
forma a que o processo seja instrumento apto a alcançar os propósitos para os quais foi
instituído.
114
Para se conseguir uma conduta endoprocessual alinhada às finalidades de Justiça e do Direito
faz-se mister “o estabelecimento de uma série de regras entrosadas, mediante as quais se traça
o comportamento que as partes devem observar. Tais regras, em última análise, sintetizam-se
no princípio da lealdade processual.
115
113
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do direito material sobre o processo. 2.
ed. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 15.
114
PICÓ apresenta a boa-fé processual como critério de proteção dos seguintes direitos fundamentais: da
efetividade da prestação da tutela jurisdicional, do direito de defesa, da igualdade processual e a um processo
sem dilações indevidas ou dentro de um prazo razoável. Nesse sentido ver PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de
la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, pp. 81-91.
115
ALVIM, Arruda. Tratado de Direito Processual civil. 2. ed. ref. e ampl. do Código de Processo Civil
comentado. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1996, p. 386.
156
Importa ressaltar que a boa-fé objetiva “é, incontroversamente, regra de caráter marcadamente
técnico-jurídico, porque enseja a solução de casos particulares no quadro dos demais modelos
jurídicos postos em cada ordenamento, à vista das suas particulares circunstâncias. Solão
jurídica, repito, e não de cunho moral, advindo a sua juridicidade do fato de remeter e
submeter a solução do caso concreto à estrutura, às normas e aos modelos do sistema,
considerado este de modo aberto.
116
Menezes Cordeiro também enfatiza que a boa-fé objetiva “revela por concretizar nos moldes
do direito e, máxime, por decisões dos tribunais. [...] Poderá haver uma ‘boa ética’; mas a
moral não faculta a concretização da boa fé jurídica.”
117
A fidelidade à lealdade e à boa-fé traz como conseqüência para o âmbito processual o regular
exercício do amplo direito de defesa e do contraditório à medida que reprova a produção
extemporânea de provas, ou a ‘guarda de trunfos’, a produção manifestamente protelatória de
recursos. Ademais, sob a perspectiva do processo cooperativo, impõe-se um esforço conjunto
de todos os que participam do processo para que o provimento jurisdicional seja prestado em
tempo razoável e que espelhe a justa composição da lide.
O processo despe-se das vestes de instrumento meramente técnico e reveste-se de valores
socioculturais característicos de cada sociedade em cada momento histórico. As regras
formais são implementadas por meio de uma relação dialética entabulada entre as partes e o
órgão judicial numa construção que amplia o espectro de análise e conflui para o seio
processual todas as impressões relativas à lide contribuindo para a formação da prestação
jurisdicional. Os valores intrínsecos da democracia adquirem sua melhor expressão no âmbito
processual no princípio do contraditório – um contraditório renovado pela efetiva participação
dos litigantes num trabalho de cooperação e colaboração com o órgão judicial.
118
Sob esse
prisma, a observância às regras do jogo o pode ficar limitada ao aspecto procedimental
extrínseco” subtraindo-se do “controle o exercício exorbitante das faculdades processuais”.
119
116
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 413.
117
Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário.
N. 52. set.-dez., 1998, p. 31.
118
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A garantia do contraditório. Revista Forense. N. 346. Rio de
Janeiro: Forense. abr. – jun. 1999, pp. 9-19.
119
SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administraçãoblica e sua
responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
157
Fernando Luso Soares destaca que “[...] a justa composição da lide implica o diálogo que o
processo é. E que este não dispensa a boa fé – ou seja, lealdade, verdade, respeito mútuo, e até
mesmo, obviamente, a cooperação entre os litigantes. Entenda-se, porém, que se trata de uma
cooperação no contradirio.”
120
Nesse contexto, a igualdade ou paridade de armas reclama por uma atuação proba e leal, que,
sob a contínua vigilância do magistrado, há de se manter o perfeito equilíbrio na participação,
com as mesmas possibilidades de alegações, provas, impugnações para sustentar e
fundamentar as suas razões. Na hitese de ocorrência de situações que comprometam a
harmonia ou que desestabilizem a participação, cabe ao juiz, como condutor do processo,
implementar mecanismos que restaure ou restabeleça a paridade exigida.
121
“A volta ao interior do processo, para reconstruir conceitos, mostra-se imprescindível. [...] É
preciso conciliar a técnica processual com seu escopo. Não se pretende nem o tecnicismo
exagerado, nem o abandono total da técnica. Virtuoso é o processualista que consegue
harmonizar esses dois aspectos, o que implicará a construção de um sistema processual apto a
alcançar seus escopos, de maneira adequada.”
122
Nesse contexto, a boa-fé objetiva atua como mecanismo de conciliação da técnica processual
com os escopos perseguidos pelo processo. Quando da análise das decisões judiciais pode-se
conferir que não basta observância estrita e cega à técnica. É imperioso que o uso da técnica
esteja afinado pelo diapasão da boa-fé objetiva.
Nos termos do art. 14, inciso II, do Código de Processo Civil é dever das partes e de seus
procuradores comportar em juízo com lealdade e probidade. Calamandrei anota que, sob a
ótica do processo como um jogo, que ressaltar que, além de ser um jogo com regras
requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data
da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p.
79.
120
LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 159.
121
Adroaldo Furtado Fabrício destaca que a enorme dificuldade na aplicação das normas repressivas das
condutas processuais está na “identificação do ponto de equilíbrio entre a intrínseca e conceitual parcialidade dos
litigantes (e, em alguma medida ao menos, de seus advogados) e o dever de lealdade processual e de colaboração
com o Estado-juiz.”. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Relação entre as partes os juízes e os advogados: Brasil. In
XII Congreso mundial de derecho procesal: relaciones entre las partes, los jueces y los abogados. Ma.
Macarita Elizondo Gasperín (Relatora General). México: Instituto Nacional de Estudios Superiores en Derecho
Penal, A.C. División Editorial. 2004, p. 257.
122
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do direito material sobre o processo. 2.
ed. São Paulo: Malheiros. 1997, pp. 44-45.
158
claramente estabelecidas, o dever de lealdade e da boa- objetiva norteia a aplicação dessas
regras, coibindo as atuações que frustrem a lealdade e a probidade.
“Este dever, tão vago e indeterminado, não teria sentido algum em um processo em
que a atividade das partes e de seus defensores estivesse rigidamente vinculada por
lei em todas suas manifestações; por outro lado, adquire um significado muito
importante em um processo, como é o do tipo dispositivo, em que dentro dos
limites estabelecidos pelo Direito Processual se permite às partes um amplo campo
discricionário, dentro do qual cada uma delas é livre para escolher os movimentos
que lhe pareçam mais apropriados para vencer seu contrário. A lealdade prescrita
[...] é a lealdade do jogo: o jogo, ou seja, o
torneio de habilidade é lícito, mas não se
permitem artimanhas. O processo não é somente Ciência do Direito Processual,o
é somente técnica de sua aplicação prática, mas também leal observância das regras
do jogo, ou seja, fidelidade aos cânones não escritos de correção profissional que
indicam o limite entre a elegante e louvável maestria do esgrimista perfeito e as
torpes trapaças do vigarista. Destes cânones de lealdade e probidade, únicos que
restam para regular a conduta dos competidores dentro do campo discricionário, em
que não penetram as leis, o juiz é o fiscal: este, mesmo quando a violação a tais
cânones o seja de tal relevância que repercuta no mérito da lide [...] fiscaliza
ininterruptamente, [...] a conduta das partes no debate; e contra a que tenha faltado
à lealdade do contraditório pode adotar providências sancionadoras [,,,],
comparáveis às medidas de rigor que o árbitro inflige aos jogadores trapaceiros.”
123
Não obstante a presença de interesses colidentes no processo, as atividades desenvolvidas em
seu curso o possuem um contorno preestabelecido de maneira rígida. Sob a vigência do
princípio dispositivo, as normas processuais indicam direções que permitem um amplo espaço
no qual as partes elegem o movimento que lhes pareça mais apropriado para alcançar a
vitória. Esses movimentos precisam ser marcados pela lealdade e boa-.
124, 125
O dever de lealdade e boa-fé no marco da relação processual busca atender a um interesse que
o se restringe ao interesse das partes, mas o interesse público do Estado na prestação da
tutela jurisdicional. Para a proteção desses interesses conjuga-se a boa-fé objetiva como
princípio vetor de toda a atividade jurisdicional.
123
CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual civil segundo o novo código: estudos de direito
civil. Traduzido por Douglas Dias Ferreira. 2. ed. v. 3. Campinas/SP: Bookseller. 2003, pp. 233-234.
124
SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho.
Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 862.
125
No original: “[...] las actividades desplegadas por los sujetos participantes en el proceso no están todas
preestablecidas ni deben ser realizadas de un solo modo. En realidad, las normas del derecho procesal marcan
únicamente ciertas directivas muy elásticas, que dejan amplio margen a la iniciativa y a la elección individual.
Las partes mantienen un espacio de actuación enmarcado en la lealtad, probidad e buena fe que, […] el juez
debe vigilar. Este deber tan vago e indeterminado, no tendría sentido alguno en un proceso en que la actividad
de las partes y de sus defensores estuviese por ley rígidamente vinculada en todas sus manifestaciones. Sin
embargo, adquieren especial significado en u proceso de tipo dispositivo, en el cual se deja a las partes un
amplio campo discrecional, dentro del cual cada una de ellas es libre para elegir los movimientos que le
parezcan más apropiados para vencer a su contrario.
159
O fato de a lide representar uma disputa de interesses contrapostos não autoriza a que o
processo venha a ser propício ao desenvolvimento de artimanhas e astúcias. Na relão
jurídica processual a presença do Estado, representado na pessoa do juiz, é traço característico
diferenciador das relações de direito privado. Essa conotação publicista não abdica da
vigência da boa-fé objetiva a impor limites na atuação das partes e de todos os que participam
do processo orientando-os a procederem de maneira leal e proba.
Entretanto, a grande questão cinge-se à “conciliação entre a boa fé e a necessidade de certa
elasticidade de movimento das partes.”
126
Nesse passo, a lealdade, como conseqüência imediata da boa-objetiva, apresenta-se como
limite das atuações no curso do processo conotando as normas processuais com vistas ao
alcance do fair play. Nesse sentido são as observações de Helena Najjar Abdo:
“Diz-se que a lealdade processual é um dos limites legais que constituem exceção à
plena liberdade de atuação das partes. Considerando que, em tema de lealdade
processual, é ainda mais recorrente a comparação do processo a um jogo, os
referidos limites podem ser tidos como regras do jogo. Pois, se é certo que o
processo é um jogo entre as partes, então é igualmente certo que, como em qualquer
jogo, a atuação dos contendores deve estar disciplinada por regras de lealdade e
honestidade, as quais constituem o fair play e legitimam o resultado.”
127
A perspectiva blica do processo possui relação direta com a exigência da lealdade e da boa-
de todos aqueles que dele participam. O processo deixa de ser coisa das partes onde juiz
possuía uma função passiva de mero árbitro e passa a ser construído numa relação diatica,
dialogal, orientado pela lealdade e boa-fé cujo resultado transcende a solução do litígio do
caso concreto. O Estado e a sociedade têm interesse na solução dos conflitos e que, por fim, o
processo alcance o seu escopo de pacificação social.
128
O processo se despe das vestes de um jogo ou de um duelo, onde havia lugar para toda a
espécie de estratagemas, e se reveste de um procedimento em contraditório segundo o qual
126
ALBANESE, Il dolo processuale, p. 2. apud LUSO SOARES. A responsabilidade processual civil.
Coimbra: Almedina. 1987, p. 156.
127
ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman,
v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 128. Destaques no original.
128
Alípio Silveira reproduz trecho de Eduardo Couture na exposição de motivos do Projeto do Código de
Processo Civil uruguaio ao referir-se ao princípio da boa-fé: “No se puede olvidar que, en último término, el
proceso es una lucha dialéctica. Como toda lucha, tiene algunas reglas que castigan la infracción, pero el
luchador despliega todos los juegos de la habilidad para vencer sin violar las reglas.”COUTURE, J. Exposición
de Motivos del Proyecto del Código de procedimiento civil. Montevideo, 1945, g. 105 e ss. apud SILVEIRA,
ALÍPIO. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 267.
160
existem regras para a atuação das partes.
129
Sob a égide de tais regras, a atuação dos litigantes
deve estar em consonância com a boa-objetiva o havendo espaço para “surpreender o
adversário com lances que este não espera, como se aqui se tratasse de um jogo de xadrez
onde há pedras temporariamente escamoteadas”
130
. À luz da visão cooperativa do processo as
partes se coadjuvam numa relação diatica na qual o juiz participa ativamente na direção do
processo na busca permanente do equilíbrio das garantias constitucionais do devido processo
legal, do contraditório, da ampla defesa e da duração razoável do processo.
A vigência da boa-fé objetiva nos meandros do Direito Processual Civil requer o predomínio
do ‘jogo limpo(fair play) que não condena a habilidade, mas repudia as manobras desleais,
as trapaças e todo e qualquer artifício que impeça à contra-parte o exercio das suas
faculdades processuais ou que dificulte, ou torne mais gravosa, ou onerosa o exercício dessas
faculdades.
131
A influência da boa-fé no âmbito processual tem “remissão delimitativa”, conforme
entendimento de Fernando Luso Soares, para quem “a remissão da boa fé, para a estrutura
geral do sistema processual, seria de ordem limitativa: às partes compete, sem dúvida, o
impulso oficial, mas elas o devem fazer pedidos ilegais, articular factos contrários à
verdade, requerer diligências meramente dilatórias.
132
Mas não é . Segundo o Autor, no processo, a boa-fé resulta, também, impositiva a todo ele.
Nesse sentido, traz a concepção de Zani para quem “o problema da boa processual se
reconduz às questões fundamentais do conceito do processo e do seu fim.”
133
Consoante ensina Alípio Silveira “[...] a noção fundamental da boa-fé, que já os romanos
relacionava com a lealdade, honestidade e justiça da ppria conduta, há de atuar, ativamente,
129
Nesse sentido GARCEZ NETTO, Martinho. Despacho Saneador, Revista Forense, vol. CL, pág. 444. apud
SILVEIRA, ALÍPIO. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 265. “[...] Los esgrimistas
de las ordalías no pueden más ya vencer al adversario con las artimañas tan al estilo de la concepción duelística
del proceso, exhibiendo la nulidad, que avaramente guardaran para la sentencia final, la fase de los articulados,
con el hecho del despacho saneador, es la instancia única para la alegación de nulidades. El proceso moderno, en
su concepción publicista, en que el estado interviene a través de los órganos jurisdiccional, exige absoluta lealtad
de los litigantes ”.
130
LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 173.
131
PALACIO, Lino Enrique. Los deberes de lealtad, probidad e buena fe en el proceso civil. in Tratado de la
buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 815.
132
LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, pp. 155-156.
133
ZANI, La mala fede nel proceso civile. pp. 8 e 13. apud LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade
processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 156.
161
no quadro das relações jurídicas processuais, modelando a estrutura e a mecânica das mesmas,
inspirando e animando o seu funcionamento. Nisto reside uma das grandes condições
indispensáveis para que a instrução possa se realizar de maneira plena a nobre missão que lhe
incumbe.”
134
,
135
A boa-fé objetiva como pauta de conduta a guiar os litigantes impõe que no curso do
processo, de forma cooperativa, todos os fatos e provas relevantes ao deslinde da questão
sejam apresentados integralmente para a justa solução do litígio. O processo não pode mais
ser visto como uma arena de gladiadores. Existem regras preestabelecidas para o exercício da
defesa, sendo essas limitadas pela lealdade e boa-fé, inclusive para assegurar a paridade de
armas. Desde a petição inaugural do feito, o objeto da lide e a pretensão que se busca
precisam ser traçadas com inteira precisão, sem nada ocultar, para que a contraparte tenha
condições plenas de desenvolver a sua defesa.
136
De igual modo, a contestação deve espelhar fidedignamente as razões de defesa, sendo a
oportunidade para argüir questões relativas à legitimidade, competência do juízo,
litispendência ou até mesmo a coisa julgada do objeto posto em litígio em outro processo
findo.
Questão sobremodo relevante respeita-se às nulidades processuais. Cabe aos litigantes em
homenagem à boa-fé objetiva argüi-las no momento oportuno, sob pena de preclusão.
137
134
SILVEIRA, ALÍPIO. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 271.
135
No Original: La buena fe, esa noción fundamental que ya los romanos concebía como un sentimiento e
íntimo convencimiento de lealtad, honestidad y justicia de la propia conducta, ha de actuar activamente en el
cuadro de las relaciones jurídicas procesales, moldeando la estructura y la mecánica de las mismas, inspirando
y animando su funcionamiento. En ella reside una de las grandes condiciones indispensables para que la
instrucción pueda realizar de pleno la misión noble que le incumbe.”
136
Tal exigência também pode ser encontrada na legislação espanhola, conforme se pode inferir no texto de Joan
Picó e I Junoy: "En cualquier caso, constituye una manifestación de la buena fe procesal que en la formulación
fáctica del escrito (de la demanda -o la contestación en su caso-) se indique con precisión y claridad los hechos
que configuran la causa petendi y las pretensiones que se formulan (arts. 399.1 y 405 LEC), pues sólo así se
evitan situaciones confusas a la parte contraria, pudiendo ésta ejercer como es debido su derecho de defensa, a
la vez que se garantiza al juez el pleno conocimiento de lo que debe resolver. La necesidad de definir desde un
inicio el objeto del proceso comporta la imposibilidad de modificarlo con posterioridad, esto es, la prohibición
de la mutatio libelli (art. 412.1 LEC). Junto a esta preclusión de alegación fáctica, el art. 286 LEC prevé
expresamente la mala fe procesal como motivo para imponer una multa de hasta 600 euros para cuando se
pretenda introducir hechos nuevos o de nueva noticia sin causa justificada". PICÓ I JUNOY, Joan. El principio
de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 141.
137
Conforme ressaltado por Aldemiro Rezende Dantas Júnior, o art. 243 do CPC “é norma que com muita
clareza trata da aplicação concreta do princípio da boa-fé”. Nesse sentido, não pode a parte que deu causa à
nulidade pretender, posteriormente, argüir tal nulidade, sob pena de manifesta violação à boa-fé objetiva.
162
Sob esse prisma, a boa-fé objetiva, manifestada na lealdade processual, impede o uso de
manobras e artifícios que venham a perturbar o regular desenvolvimento das garantias
processuais estampadas no texto constitucional, fazendo do processo instrumento legitimador
de solução de controvérsias materializada na entrega da prestação jurisdicional.
138
Nesses termos, o dever de lealdade e boa-fé no âmbito processual impõe limites à conduta dos
participantes do processo como norma que estabelece o equilíbrio das outras garantias
constitucionais processuais.
O Direito Processual Civil como atividade consistente em fazer justiça e assegurar a
integridade e vitalidade da ordem jurídica”
139
não compactua com condutas desleais nem com
maquinações que levem a efeito, de maneira abusiva e distorcida, os mecanismos processuais
criados para a entrega da prestação jurisdicional. Os escopos do processo somente se
alcançam mediante condutas afinadas com as notas da lealdade e da boa- objetiva,
consistente no respeito mútuo das partes e na integridade da participação dos demais
intervenientes no processo.
Liebman já ressaltava que na estrutura contradiria, que é própria do Processo Civil, a
lealdade atua como um freio
140
às habilidades e às perspicácias dos contendores, ou seja, a
participação no processo precisa estar acorde com a probidade. Ela significa em substância
que, embora no processo se trave uma luta em que cada um se vale livremente das armas
disponíveis, essa liberdade encontra limite no dever de respeitar as regras do jogo e estas
exigem que os adversários respeitem reciprocamente em sua qualidade de contraditores em
juízo, segundo o princípio da igualdade de suas respectivas posições.”
141
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá.
2007, p. 140.
138
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual civil. 3. ed. vol. I. Tradução de Cândido Rangel
Dinamarco. São Paulo: Malheiros. 2005, p. 167.
139
Ibidem, p. 58.
140
Alcides de Mendonça Lima comunga da idéia que o dever de probidade processual atua como um freio na
conduta de todos os atuam no desenvolvimento do processo. LIMA, Alcides Mendonça. O princípio da
probidade no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. ano 4. n. 16. São Paulo: Revista dos
Tribunais. out. – dez. 1979, p. 19.
141
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual civil. 3. ed. vol. I. Tradução de Cândido Rangel
Dinamarco. São Paulo: Malheiros. 2006, p. 166. Destaques no original.
163
Pi assinala que “uma vez superada a visão bélica ou agonística do processo, este se
configura como um modo mais civilizado de resolução de conflitos onde a intervenção das
partes deve estar presidida pela boa-fé.”
142
A conduta das partes no processo deve ser orientada pela lealdade e pela boa-fé objetiva. “[...]
o processo procura a satisfação do interesse social da paz jurídica, através da aplicação da lei
ao caso concreto; o basta a composição, qualquer que seja, contando que ponha termo à
lide, como sucedia nos tempos primitivos, na fase embrionária do processo; o se quer a paz
a qualquer custo, mas sim dar razão a quem efetivamente a tem, segundo os ideais de justiça
reconhecidos pela norma.”
143
O digo de Processo Civil veicula no art. 14, inciso II, o dever de as partes e de todos
aqueles que de qualquer forma participem do processo procedam com lealdade e boa-fé.
Trata-se de cláusula geral que se aplica de forma ampla e irrestrita em todo o universo
processual e não apenas no processo de cognição
144
.
Segundo Arruda Alvim, a “lealdade e a boa-fé são princípios informativos do processo, de
caráter ético, abrangentes de toda atividade das partes, desde o início, durante todo o
procedimento, inclusive, no desdobramento recursal, como ainda, no processo executório
145
”.
Brunela Vieira de Vincenzi ao analisar os deveres processuais elencados no art. 14 dodigo
de Processo Civil, conclui:
“[...] a melhor interpretação e aplicação para o art. 14, com efeito, esna aceitação
efetiva de que ele contempla um feixe de deveres decorrentes da cláusula geral da
boa-fé (objetiva) que arrimados nas garantias constitucionais do contraditório
efetivo e do devido processo legal em seus postulados nimos, [...], poderão dar
ensejo à efetiva aplicação prática, e não teórica dos postulados éticos do
Processo Civil contemporâneo, que busca resultados e não somente o cumprimento
de rmulas estruturais preconcebidas em detrimento do direito material objeto do
processo e dos escopos da jurisdição.”
146
142
PICÓ I JUNOY, Joan. Aproximación al principio de la buena fe procesal en la nueva ley de enjuiciamiento
civil. In Revista Judica de Catalunia. ANY c, n. 4. Barcelona: 2001, p. 953.
143
SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. Abuso de Direito Processual: uma teoria pragmática. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2005, p. 115.
144
OLIVEIRA, Ana Lúcia Lucker Meirelles de. Litigância de má-fé. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.
55.
145
ALVIM, Arruda. Tratado de Direito Processual civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, v.2. p.
405.
146
VINCENZI, Brunela Vieira de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas. 2003, p. 98.
164
De fato, a probidade processual se insere no quadro das garantias constitucionais, como
consectário do aludido processo legal e co-irmã do processo sem dilações indevidas, da
isonomia processual, entre outras diretrizes. A inércia judicial diante da conduta de um
dos litigantes pode ser vergastada pela parte adversa, que possui direito à tutela justa e
tempestiva e, a fortiori, ao controle de probidade.”
147
147
SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administraçãoblica e sua
responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data
da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p.
77.
165
Capítulo VI - A Boa-Fé Objetiva no Processo Civil Brasileiro
Sumário: 6.1. A Boa-Fé Objetiva como Diretiva Ordenadora do Comportamento Processual
6.2. A Boa-Fé Objetiva e o Abuso do Direito nos Donios do Processo Civil –– 6.3. A
aplicação da Boa-Fé Objetiva pelo Juiz: Virtudes e Cautelas - 6.4. Referências sobre a Boa-Fé
Objetiva na Experiência Legislativa de Outros Povos
6.1. A Boa-Fé Objetiva como Diretiva Ordenadora do Comportamento Processual
A sociedade contemporânea tem assistido a uma contínua reformulação no âmbito processual
fundamentada, sobretudo, na busca da efetividade da prestação da tutela jurisdicional. Essa
tão almejada efetividade tem sido perseguida com a imposição de normas que estabelecem
uma conduta irrepreensível de todos os sujeitos que participam do processo.
Dentro deste contexto, a atenção se volta para a conduta dos atores processuais, que deve ser
pautada na lealdade, na improbidade e na cooperação não somente com a contraparte, mas
com o próprio Órgão jurisdicional, para que os provimentos emanados da relação jurídica
processual possam representar o justo e o équo.
Nesse diapasão Humberto Theodoro Júnior observa que “[...] A recuperação dos fundamentos
éticos no campo dominado pelo direito não se deu em apenas um ou outro segmento do
ordenamento jurídico. Todo o direito contemporâneo foi permeado pelos valores morais, a
começar, obviamente, da macroestrutura constitucional.
1
Essa diretriz ética se projeta desde o texto constitucional até o ordenamento
infraconstitucional, pondo em evidência que “[...] todo o ordenamento jurídico se acha
comprometido, a um tempo, com uma dupla perspectiva (a) em primeiro lugar, a própria
ordem jurídica revela seus prositos, suas metas, seu sistema; (b) em segundo lugar, a ordem
jurídica tem de relacionar-se com a perspectiva ética inafastável do comportamento humano
1
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litincia de má-fé
Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2006, p. 639.
166
em sociedade.”
2
Sob essa diretriz, a “[...] lealdade processual tem merecido cada vez mais
estar em foco, pois a sua eficácia tende a consolidar o processo como instrumento útil e
idôneo para seu objetivo de pacificação e educação.”
3
Os valores éticos permeiam todos os ordenamentos jurídicos modernos e, especial ateão,
tem sido dedicada às normas processuais com vistas à realização da justa que retrate um
processo efetivo. Falar de processo justo é falar de processo ético, no qual os sujeitos
processuais vinculam-se pelos princípios da lealdade e da boa-fé. “Não podem, em tal quadra
histórica, as leis processuais ser objeto de indiferea ética, nem muito menos hermeutica e
aplicação que não correspondam aos propósitos ideológicos de acesso à justiça por meios e
com resultados efetivamente justos.”
4
De acordo com a Ada Pellegrini “[...] Mais do que nunca, o processo deve ser informado por
princípios éticos. A relação jurídica processual, estabelecida entre as partes e o juiz, rege-se
por normas jurídicas e por normas de conduta. De muito, o processo deixou de ser visto
como instrumento meramente técnico, para assumir a dimensão de instrumento ético voltado a
pacificar com justiça.”
5
Essa lição vem ao encontro do sentimento dominante na doutrina processualista, conformando
com os contornos de justiça substancial que deve imperar na prestação jurisdicional. “Esse
destaque ideológico de justiçaprestigiada como um dos valores supremos da nação visa, no
campo da prestação jurisdicional, a consagrar, de maneira estável e bem determinada, os
fundamentos éticos do processo. Não se permite mais, portanto, que os procedimentos
judiciais sejam tratados como simples instrumentos de justiça formal, mas, sim, como uma
garantia muito mais ampla de justiça substancial.”
6
2
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litincia de má-fé
Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2005, p. 643.
3
IOCOHAMA, Celso Hiroshi. Litigância de má-fé e lealdade processual. Curitiba: Juruá. 2006, p. 17.
4
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litincia de má-fé
Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2005, p. 639.
5
GRINOVER, Ada Pellegrini. Ética, Abuso do Processo e Resistência às Ordens Judiciárias: o Contempt of
Court. Revista de Processo. Ano 26. N. 102. abr.-jun./2002, pp. 219-227.
6
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litincia de má-fé
Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2005, p. 640.
167
A preocupação em coibir o comportamento desleal das partes no curso do processo por meio
do uso de manobras ardilosas, de longa data inquieta os legisladores, tendo por razão precípua
o fato de ser o processo um instrumento essencial no desempenho das funções estatais. Nesse
cenário, o juiz já não pode assistir, inerte, o “digladiar” das partes, estando munido de
mecanismos legais para combater as multiformes manifestações de improbidade.
7
O Direito Processual é o caminho posto quando não o acatamento da vontade da lei
espontaneamente pelos seus destinatários. Vedada a autotutela, a necessidade da atuação
estatal por meio da prestação jurisdicional.
Bedaque ressalta que a “concepção axiológica de processo, como instrumento de garantia de
direitos, a visão puramente técnica não pode mais prevalecer, pois a ela se sobrepõem valores
éticos de liberdade e de justiça. Os princípios gerais de Direito Processual sofremtida
influência do clima” institucional e potico do país.”
8
Nesse passo, Arruda Alvim destaca:
“Como decorrência da colocação definitiva do processo no campo do Direito
Público (...) construiu-se toda uma teoria a respeito do problema da lealdade
processual, decorrente dessa posição assumida, de que resultou a concepção do
processo como um campo dialético, mas onde se deve observar princípios éticos.
[...] O comportamento leal e de boa-fé deve conformar a conduta dos litigantes.
[...]
A alta finalidade pública do processo civil, que consiste na verificação de fatos
ocorridos, como pressupostos da aplicação adequada da lei ao caso concreto (‘justa
composição da lide’, no dizer expressivo, mas menos preciso, de Carnelutti), o
pode, no direito positivo brasileiro, prescindir da colaboração ética das partes. Caso
contrário, o juiz teria que ‘lutar’, em realidade, ‘contra’ os próprios litigantes que,
por sua vez, lutariam violentamente, entre si, ao arrepio da mais elementar ética.
[...] Para se conseguir, pois, numa medida satisfatória, no campo do processo, um
comportamento compatível com as finalidades de justiça e do direito, fins
dinamizadores da atividade jurisdicional, mas cuja atividade depende da conduta
dos litigantes, necessário é o estabelecimento de série de regras entrosadas,
mediante as quais se traçam limites socialmente aceitáveis de comportamento, que
as partes devem observar. Tais regras, em última análise, sintetizam-se no chamado
princípio da lealdade processual.”
9
A maneira de ver o processo, de muito, vem sendo modificada. Os olhares são postos sob
uma nova ótica segundo a qual o processo precisa responder de maneira efetiva aos anseios
7
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A responsabilidades das partes por dano processual no direito brasileiro.
In Temas de Direito Processual: primeira série. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 1988, p. 16.
8
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do direito material sobre o processo. 2.
ed. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 19.
9
ALVIM, Arruda. Deveres das Partes e dos Procuradores no Direito Processual Civil Brasileiro: A lealdade no
Processo. Revista de Processo. Ano 18. N. 69. jan. – mar./93. Ed. Revista dos Tribunais. pp. 7 e 10.
168
daqueles que buscam a realização da justiça. O processo deixa de ser um instrumento em si
mesmo para ser instrumento legitimador da atuação estatal apto à realização da justiça.
“Fazendo eco às idéias plasmadas no campo do direito material, o Direito Processual
Civil tratou de amoldar-se aos ditames éticos. O processo, de instrumento de
realização da vontade concreta da lei, passou a ser visto como instrumento destinado
a proporcionar a ‘justa composição dos litígios’, tendo os Códigos de maneira geral
reforçado os poderes do juiz e sancionado as condutas processuais abusivas e
antiéticas.”
10
Na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, apresentada em 1972, pelo então
Ministro da justa Alfredo Buzaid, sobreleva o interesse público a que deve servir o processo
de dar a razão a quem, efetivamente, tenha razão, conforme se depreende da leitura daquele
texto que, pela sua precisão, merece ser transcrito:
“O processo civil é um instrumento que o Estado põe à disposição dos litigantes, a
fim da administração da justiça. Não se destina simples definição de direitos na luta
privada entre os contendores. Atua como já observara BETTI
11
, não no interesse de
uma ou de outra parte, mas por meio do interesse de ambos. O interesse das partes
não é senão um meio, que serve para conseguir a finalidade do processo, na medida
em que dá lugar àquele impulso destinado a satisfazer o interesse público da
atuação da lei na composição dos conflitos. A aspiração de cada uma das partes é a
de ter razão: a finalidade do processo é a de dar razão a quem efetivamente a tem.
Ora, dar razão a quem a tem é, na realidade, não um interesse privado das partes,
mas um interesse público de toda a sociedade.
Esse interesse blico não pode ser obstaculizado por condutas discrepantes com a ética e
com a lealdade processuais. Também na mesma Exposição de Motivos do diploma processual
de 1973, Buzaid acentua que:
Posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é
reprovável que as partes se sirvam dele, faltando tanto ao dever, da verdade, agindo
com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos, porque tal conduta não se
compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos
contendores para atuação do direito e realização da justiça. Tendo em conta estas
razões ético-jurídicas, definiu o projeto como dever das partes: a) expor os fatos em
juízo conforme a verdade; b) proceder com lealdade e boa-fé; c) o formular
pretensões nem, nem alegar defesa, cientes que são destituídas de fundamentos; d)
10
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litigância de má-fé –
Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2006, p. 643.
11
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto e Silva. Org.
Vera Maria Jacob Fradera. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva ao
escrever sobre “O Princípio da boa-fé no Direito brasileiro e português” (pp. 33-58) destaca que “Seguramente, o
primeiro jurista a mencionar, entre nós, a aplicação objetiva do princípio da boa-fé foi Emílio Betti.
Efetivamente no seu magnífico curso proferido na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, em 1958, salientava Betti a existência dos deveres de cooperação do devedor, resultantes da aplicação do
princípio da boa-fé.
169
não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou
defesa do direito (art. 17)”
Quadra pôr em relevo, no entanto, que essa concepção ética à qual se refere Buzaid não estava
à época ou seja, em 1973 - afinada à boa-fé objetiva. O momento histórico-cultural e
ideológico era distinto do momento contemporâneo, vez que impregnado pela “filosofia
liberal e individualista” na qual o processo era visto como uma arena de gladiadores onde as
partes, na luta pelos seus direitos, utilizavam de toda a habilidade e da astúcia. Nesse cenário,
o processo apresentava-se refratário a uma normatização que impusesse comportamento de
probidade para os contendores, reforçado pela iia de que a natureza dialética do processo,
guiado pelo princípio dispositivo que assegura às partes o agir livremente no desenvolvimento
processual, aliado ao fato de as partes sustentarem as suas próprias razões em defesa dos seus
interesses, favorecia essa luta irrefreada traduzindo essa concepção liberal e individualista.
12
A ideologia do Estado liberal, que por longo tempo impregnou a ciência jurídica, canalizou
para uma visão individualista dando ao processo o caráter de instrumento privado. Marcelo
Abelha destaca:
“[...] o direito de liberdade, quase irrestritamente protegido pelo Estado liberal,
também lançou seus tentáculos para o exercício dos direitos processuais. [...] num
regime liberal, o processo era visto como uma arena de guerra, onde os direitos
travavam uma batalha quase duelística. Nessa ‘guerra’ a interferência do Estado-juiz
deveria ser nima ou quase nenhuma, justamente para se manter na posição de frio
espectador e assim não cometer nenhuma restrição à liberdade individual das
pessoas. Portanto, pode-se dizer que na filosofia liberal era mínima a proteção legal
contra os atos de má-fé e abusos praticados no exercício dos direitos processuais.
[...] Enfim, justamente por causa desse caráter privado que sempre foi dado ao
processo, o se tinha noção da exata separação e autonomia do ilícito civil em
relação ao ilícito processual.
13
Conforme ressaltado por Francisco Antônio de Barros e Silva Neto, a tendência liberal
esmaeceu por décadas o controle da improbidade processual e enalteceu a ampla liberdade
das partes.”
14
12
BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo. ano 12, n. 47, São Paulo:
Revista do Tribunais. jul. – set. 1987, p. 95.
13
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Processual Civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2008, p. 255.
14
SILVA NETO, Francisco Annio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua
responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data
da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p.
18.
170
Buzaid destaca que o art. 14, II do CPC “regula a atividade honesta da partes”. “A lealdade,
como o étimo da palavra indica a toda evidência, consiste em pautar os atos em
correspondência com a lei. [...] A boa fé é a consciência de que a parte está usando o processo
sem intenção de descumprir a lei. O elemento subjetivo entra em conta, sobretudo para
distinguir do erro a boa fé, porque como diz Pontes de Miranda, ‘se pode errar sem fé’”.
15
A afirmação de Buzaid é no sentido que o Código de Processo Civil “adota uma feição
nitidamente subjetivista, fundada na consciência de retidão, no desconhecimento de possíveis
vícios de atividade”.
16
Resta inequívoco que esta disposição legislativa nasceu predestinada a dar suporte às atuações
fundadas na boa-fé subjetiva. Nasceu com a conotação da boa-fé crença, o agir segundo a lei,
segundo o direito. Naquele momento, os elaboradores do Código de Processo Civil não
anteviam o atuar segundo a boa-fé objetiva, concepção essa que projetou suas reminiscências
nas aplicações jurisprudenciais – a boa-fé aliada ao dolo, isto é boa-fé que se contrapõe à má-
fé. Tal concepção subjetivista é expressamente apontada por Buzaid ao afirmar:
“Entendeu, outrossim, o legislador brasileiro que não bastava estatuir deveres sem
estabelecer correspondentemente as sanções pela sua inobserncia, porque aquelas
normas acabariam por ter caráter programático ou atuar como simples
recomendação. Para dar real eficácia aos princípios enunciados no art.14, disciplinou
o Código de Processo Civil a responsabilidade das partes pelo dano causado (art. 16
usque 18).
17
Nesse sentido, a própria “expressão ‘litigância de má-fé’ denotaria matriz subjetivista,
exigindo ‘malícia’, ‘dolo’ ou outros elementos indicadores da atuação predestinada à violação
da regra de conduta.”
18
15
BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo. ano 12, n. 47, São Paulo:
Revista do Tribunais. jul. – set. 1987, p. 96.
16
SILVA NETO, Francisco Annio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua
responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data
da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p.
81.
17
BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo. ano 12, n. 47, São Paulo:
Revista do Tribunais. jul. – set. 1987, p. 95.
18
SILVA NETO, Francisco Annio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua
responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data
da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p.
14.
171
Dai advir a compreensão de que a positividade do dever de lealdade e boa-fé no inciso II, do
art. 14 do CPC, inserida na redação original do Código de 1973, ter sido concebida com cariz
eminentemente subjetivista. Esse cariz subjetivista ensejou uma aplicação acanhada do
dispositivo tanto por parte da doutrina quanto da jurisprudência. Francisco Antônio de Barros
e Silva Neto ressalta: “O digo de Processo Civil (CPC) estabelece o dever de boa-fé, mas
utiliza elementos de controle insuficientes e incoerentes entre si. A doutrina contribui para a
inefetividade do processo com teses herdadas das Ordenações, do positivismo, do liberalismo,
como o recurso à boa-fé subjetiva para a aferição do ilícito processual, a taxatividade do
elenco de condutas ímprobas, a negativa de poderes sancionatórios à jurisdição.
19
No entanto, o se permite mais interpretar os dispositivos dodigo de Processo Civil como
se fazia há mais de vinte anos. A sociedade mudou, a ordem jurídica é nova. Tais dispositivos,
para que sejam eficazes, precisam ser interpretados à luz da nova Ordem constitucional,
impregnada pela ideologia do Estado Democrático de Direito. que se fazer uma releitura
desses dispositivos com os olhos postos no presente: na nova Ordem constitucional e na
realidade social que reclama por efetividade na prestação da tutela jurisdicional.
Marinoni chama a atenção para a necessidade de se ter uma visão crítica “às novidades
legislativas no campo do Processo Civil, percebendo que todas elas estão ligadas às
modificações da sociedade e do Estado, as quais impuseram o esgotamento do Processo Civil
clássico”. que se ter a percepção de que os influxos das “transformações sociais e do
estado incidiram sobre o ‘novo Processo Civil’”. Segundo o Autor, somente com essa visão
aclarada é que se pode dar efetividade às as mudanças legislativas para que estas tenham
efetiva repercussão sobre a realidade social. Se o se alcançar a perfeita correlão do texto
legal com os valores que o fundamentaram inevitavelmente cairá no equívoco da “aplicação
fria e descompassada, como ainda conduz a uma leitura redutiva do novo’, pois tendente a
ver na nova lei o que existia na antiga.
20
19
SILVA NETO, Francisco Annio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua
responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data
da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p.
8.
20
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de antecipada, julgamento antecipado, e execução imediata da
sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 99.
172
Mitidiero trata da evolução do direito processual civil destacando três fases: praxismo,
processualismo e formalismo-valorativo. Com efeito, desde nossas mais fundas raízes
experimentávamos o praxismo como modelo processual. Esse quadro veio alterar-se com o
Código de Processo Civil de 1973, diploma normativo que inaugurou entre nós,
inequivocamente, o processualismo, impondo um todo científico ao Processo Civil à força
de constrões alimentadas pela lógica trico-positiva, evadindo-o da realidade.”
21
No modelo constitucional do Processo Civil o deslocamento da visão das normas processuais
a partir do texto Constitucional traz como decorrência lógica e inarredável a adequação dessas
normas ao panorama do Estado Democrático de Direito. Sob essa perspectiva, em paráfrase a
Teresa Negreiros
22
, o eixo legislativo desloca-se do campo processual para o campo
constitucional, segundo o qual a visão do jurista é ampliada para o sistema, compreendido
todas as irrupções axiológicas que dão um novo matiz às ordenações técnico-processuais.
Essa mudança de perspectiva que tem por eixo o texto constitucional descortina a fase
cunhada de “formalismo-valorativo que uma nova diretriz as normas processuais.
Mitidiero destaca:
“O formalismo-valorativo no Brasil desembarca com a Constituição de 1988. É nela
que devemos buscar as bases de um processo cooperativo, com preocupações éticas
e sociais. Superado aquele estágio anterior de exacerbação da técnica, de vida breve
entre nós, recobra-se a consciência de que o processo está para a concretização de
valores, não sendo estranho à função do juiz a consecução do justo, tanto que passa
a vislumbrar, no processo, o escopo de realizar a justiça do caso concreto, como bem
preleciona Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, convocando-se uma racionalidade
prática para condução do debate judiciário. Mais: a tomada de consciência de que a
força normativa da Constituição deve alcançar todo o direito processual civil, não
sendo esse outra coisa que não o próprio direito constitucional aplicado, fez acentuar
poderes do juiz no processo, armando-o de técnicas capazes de proporcionar ao
jurisdicionado o efetivo acesso à ordem jurídica justa, sem que, no entanto, essa
incrementação de poderes redunde em arbítrio, porque esse deve agir lealmente no
processo, observando e fazendo observar a garantia do contraditório, sobrando
evidente que, nesse panorama, o próprio conceito de jurisdição transforma
sobremaneira [...]”
23
21
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 38.
22
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.
Dissertão apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito
Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
1997, p. 91.
23
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, pp. 38-39.
173
Galeno Lacerda destaca que: “A grande inovação, a marca trazida pela nova Constituição,
consiste na notável abertura para o social. [...] Na verdade, todos nós, em nosso sistema
jurídico nas inúmeras faculdades nesse país, recebemos uma visão eminentemente
individualista do direito.” Entretanto, “[...] essa própria revolução, que agora se espraia no
nosso Direito, por imposição da Constituição [...].”importa abandonar a visão individualista
para se ter a visão do social, do coletivo. “Dessa análise resulta que, efetivamente, o direito à
jurisdição, hoje consagrado pela Constituição atual, está totalmente aberto para o social, para
o coletivo, através da legitimação dos entes coletivos. Essa é a grande revolão. [...] Isso
obriga a que se reescreva, que se repensem todas as categorias fundamentais do Direito
Processual. Tudo deve ser reescrito.”
24
Sob o esteio da Ordem constitucional a atuação das partes, dos procuradores e do juiz se
conjuga pela dialeticidade do processo que deve ter como moldura um prevalente
comportamento ético. Theodoro Júnior assevera que “[...] No âmbito do direito brasileiro,
essa esfera ética e potica do Processo Civil já se encontra plenamente consagrada pelo
direito positivo, não quanto aos deveres de lealdade e correção das partes, como também
em relação aos poderes de comando e as responsabilidades institucionais do juiz, para
reprimir a litigância de má-fé e assegurar a igualdade, a eqüidade e a economia processual, em
busca da justa prestação jurisdicional.”
25
A boa-fé objetiva, surge assim como um standard de comportamento, como um modelo de
conduta a ser seguido pelas partes, procuradores e juizes no processo. Esse modelo vai além
do texto da norma, pois como bem observado por Rizzato Nunes:
Acontece que, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de
modo racional lançando mão do repertório lingüístico do sistema normativo escrito.
Por vezes faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas
reais envolvidas, das justaposições das normas, dos conflitos de interesses, das
contradições normativas, de suas antinomias e até de seus paradoxos. Nesse
momento, então, para resolver racionalmente o problema estudado, ele lança mão
dessas fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a
solução do problema.”
26
24
LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense. 2008, pp. 245-254 passim.
25
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litigância de má-fé –
Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2006, p. 642.
26
NUNES, Rizatto. A Boa-Fé Objetiva Como Paradigma da Conduta na Sociedade Contemporânea. Revista
Jurídica. Ano 52. N. 357. Porto Alegre: Editora Notadez. Jan. 2006, p. 10.
174
A boa-fé objetiva expressa um comportamento de fidelidade e situa-se no mesmo plano da lei,
adquirindo uma função dispositiva, que independe da vontade dos agentes, mas da adequação
dessa vontade ao princípio que inspira e que fundamenta a relação jurídica.
27
A aplicação da
boa-fé objetiva desborda, assim, os limites das relações obrigacionais sendo aplicável em
todas as relações jurídicas, por pressupor um comportamento fundado na coerência recíproca,
em um comportamento devido e esperado que serve para modelar os vínculos jurídicos.
28
Menezes Cordeiro demonstra de forma lapidar a transposição da aplicação da boa-fé objetiva
do campo do direito civil para os donios do Direito Processual:
29
“Do Direito público, o primeiro sector atingido pela boa-fé foi o do Processo Civil.
A sua natureza instrumental perante o Direito Civil e certa tradição literária de
escrita sobre a boa-fé em processo terão facilitado a transposição. A jurisprudência
foi receptiva ao movimento, fazendo, desde cedo, aplicação da boa-fé no campo
processual.
A doutrina, [...] aceitaria a recepção da boa-fé, tal como emergia do §242 BGB, ao
Processo civil.
Perante tentativas de transposição pura e simples e sublinhado a necessidade de
adaptar a regra da boa-fé à realidade processual, que requereria, no campo deixado
aberto pela lei, uma liberdade especial dos litigantes, pronunciar-se-ia
BAUMGÄRTEL
30
. Na doutrina processual, tomou, entretanto, proporções
translativas um agrupamento de quatro tipos dos casos de aplicação da boa-fé: a
proibição de consubstanciar dolosamente posições processuais, a proibição de
‘venire contra factum proprium, a proibição de abuso de poderes processuais e a
‘supressio.”
31
Pedro Albuquerque anota a resistência da jurisprudência tedesca à aplicação da boa-fé
objetiva e da lealdade nos donios do Direito Processual, em razão da rigidez da estrutura
27
DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 45.
28
Ibidem, pp. 46-51, passim.
29
Menezes Cordeiro aponta que, antes da codificação alemã, o livro de Josef Trutter, Bona fides em
Civilprozesse Ein Beitrag zur Lehre com der Urteilsgrunde, de 1892, seguido do livro de Kaonrad Scheneider,
Treu und Glauben im Civilprozess, em 1903, embora defendendo teses opostas, introduziram, na literatura
processualista, o hábito de referir e tratar a boa-fé. MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da
boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 375, nota de rodapé nº. 431.
Destaca-se, ainda: BENKENDORF, TREUD UND Glauben im Zivil process, JW 1933, 2870-2872 (2872)
foca o relevo da boa fé no processo, mas chama a atenção para a sua indeterminabilidade, que tem por
semelhança à que reinaria no Direito Civil; WILHELM BELTZ, Treud und Glauben und die guten Sitten nach
neuer Rechtsauffassung und ihre Geltung in der ZPO (1937) defende a aplicação da boa no processo ob.
cit., 22 ss.; [...]” apud MENEZES CORDEIRO, Annio. Litigância de fé, abuso do direito de acção e
culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 84, nota de rodapé nº 217.
30
De acordo com Menezes Cordeiro, BAUMGÄRTEL “reconhece a aplicação da boa no Direito Processual
Civil, mas reclama que se proceda às adaptações necessárias, dado o espírito específico desse ramo jurídico”. Da
boa-fé..., p. 377. nota de rodapé 438.
31
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, pp. 375-378.
175
processual. A doutrina, por outro lado, manifestaria acolhimento à iia de um “dever geral de
honestidade processualde onde emanaria diversos deveres processuais.
32
A boa- objetiva no processo tem sido vista como um dever geral de honestidade
processual, de onde retira deveres processuais de relevo”.
33
Entretanto, tal como no direito
civil, a boa-fé objetiva, como cláusula geral, o possui um conteúdo definido, cabendo à
jurisprudência papel de relevo para o delineamento desse conteúdo no campo processual, ou
seja, a boa-fé precisa ser aferida no caso concreto. Destarte, significa dizer que a boa-fé não
pode ser definida ou averiguada com uma rígida conformação, conforme apontado por
Menezes Cordeiro:
“Sendo criação do direito, a boa não opera como um conceito comum. [...] face
ao alcance e riqueza reais da noção. A boa fé traduz um estádio juscultural,
manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio de certa
ordem sócio-jurídica.
[...]
A cientificidade da boa , tratando-se da Ciência do Direito, corresponde à
possibilidade efectiva de, com ela, resolver questões concretas. Há que partir destas
para determinar a regulação em jogo. Em tal desempenho, vai propor-se com
auxílio nas fontes, na doutrina e, em especial, na jurisprudência, o regime actual da
boa-fé, nas suas aplicações variadas.”
34
“A exigência da boa-é um caminho para que, mediante uma normatividade indeterminada,
se desenvolva a flexibilidade das soluções. A referência à boa-fé pode ser feita como
princípios ou como standards. Em geral, a boa-é vista como uma norma em branco que
permite a introdução de novos pensamentos jurídicos na ordem jurídica posta. Por sua vez, a
boa-fé pode servir como um conteúdo básico para a aceitação e a elaboração de normas.
[...].”
35,36
32
ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e
responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 69.
33
TRUTTER. Bona fides im civilprozesse. p. 155 e ss. apud MENEZES CORDEIRO, António Manuel da
Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão.Coimbra: Almedina. 2007, p. 376. nota de rodapé nº 435.
34
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 18.
35
CALDANI, Miguel Angel Ciuro. Aspectos filosóficos de la buena fe. In Tratado de la buena fe en el
derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, pp. 14-15.
36
No original: La exigencia de la buena fe es un camino para que, mediante una normatividad indeterminada,
se desarrolle la flexibilidad de las soluciones. La referencia a la buena fe pude hacerse en los sentidos de
principios o de ‘estándares’ a desarrollar. En general, la buena suela ser pensada como una ‘norma en blanco’
para la introducción de nuevos pensamientos jurídicos. A su vez, la buena fe puede servir como contenido
básico para a aceptación y la elaboración de normas. […].”
176
que se por em relevo que o foco do presente estudo é a aplicação da boa-fé objetiva no
Processo Civil, ou seja, a boa-fé dissociada do estado das pessoas “a boa-fé como algo
exterior ao sujeito, que se lhe ime. É a boa fé objectiva, que a lei nunca define”
37
6.2. A Boa-Fé Objetiva e o Abuso do Direito nos Domínios do Processo Civil
A grande questão que se coloca é compreender e definir o abuso do direito e a boa-fé objetiva.
Seriam duas figuras jurídicas ou institutos jurídicos distintos? Um seria decorrência ou
conseqüência do outro? Seriam duas figuras jurídicas distintas com uma zona de intercessão à
medida que ambas têm como finalidade comum limitar o exercício de direitos subjetivos?
A boa-fé processual é compreendida como retidão de ânimo, probidade, integridade e
honradez no atuar processual. É uma conduta exigida pela sociedade. No que tange ao abuso
do direito, tal se verifica quando o exercício anormal de um direito, quer seja porque a ação
excede os limites do direito ou porque se tenta burlar uma norma para lograr um resultado
proibido pelo ordenamento ou contrário ao mesmo. O abuso do direito, em uma ou em outra
hipótese, é, manifestamente, contrário à boa-fé objetiva .
38
No que tange ao abuso do direito, os seus limites com a violação da boa-fé objetiva são muito
tênues, o que somente poderia ser verificado na análise do caso concreto. A doutrina e a
jurisprudência têm formulado uma dupla concepção para o abuso do direito: o objetivo
anormalidade no exercício do direito - e o subjetivo atuação com o fim de prejudicar ou
desprovida de um fim legítimo. Entretanto, no que tange à diferenciação do abuso do direito
da violação à boa-fé tem-se afirmado que a boa-fé marca uma relação entre as partes na qual
se ime uma lealdade recíproca, enquanto no abuso do direito uma violação dos limites
formais dos direitos subjetivos, ou seja, são direitos legitimamente assegurados pelo
ordenamento os quais são atuados de forma abusiva.
39
37
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 24.
38
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, pp. 91-93,
passim.
39
Ibidem, pp. 93-96, passim.
177
A grande questão do abuso dos direitos processuais é saber se a presença de algum fator
subjetivo ou uma intencionalidade de provocar o dano, entretanto, na concepção de Peyrano,
o abuso dos direitos processuais deve ser aferido objetivamente. Segundo o Autor argentino
o é necessária a presença de dolo ou culpa para a ocorrência do abuso do direito,
necessidade, tão somente da ocorrência de dano. Esse dano não necessariamente de ser de
natureza patrimonial, visto que o simples retardamento ou demora nos trâmites processuais ou
a demora na execução da sentença como, por exemplo, pelo uso inadequado dos meios de
impugnação, caracterizam como danos processuais.
40
Nesse sentido, Menezes Cordeiro
afirma que “o abuso do direito, em suas múltiplas manifestações é um instituto puramente
objetivo”.
41
A boa-fé, por expressar os valores fundamentais do sistema jurídico, propugna que o exercício
dos direitos esteja afinado com os vetores fundamentais do próprio sistema. Essa sintonia
advém do manuseio da própria boa-fé. A boa-fé atua como diapasão. Significa dizer a boa-fé,
por não possuir um conteúdo abstratamente definido, exige, frente a vagueza desse postulado,
que seja mantida a necessária atenção ao “círculo sistema/problema”, e dentro desse círculo
o se esgotam as infindáveis “possibilidades criativas do sistema nem, conseqüentemente, as
possibilidades do abuso do direito.”
42
Para Diez-Picazo: “O exercício de um direito subjetivo está em oposição à boa-fé não
somente quando é usado para uma finalidade objetiva ou com uma função econômico-social
diferente daquela para a qual foi atribuída a seu titular pelo ordenamento jurídico, mas
também quando for exercitado de uma maneira ou nas circunstâncias que o fazem desleal, de
acordo com as regras que a consciência social impõe nas relações.”
43, 44
40
PEYRANO, Jorge W. Abuso de los derechos procesales. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA
MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 73.
41
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 77.
42
Ibidem, p. 76.
43
DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose
Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 19-20. Em igual sentido: La doctrina de los propios
actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 141.
44
No original: El ejercicio de un derecho subjetivo es contrario a la buena fe no sólo cuando se utiliza para
una finalidad objetiva o con una función económico-social distinta de aquella para la cual ha sido atribuido a
su titular por el ordenamiento jurídico, sino también cuando se ejercita de una manera o en unas circunstancias
que lo hacen desleal, según la reglas que la conciencia social impone al tráfico.”
178
A aplicação do abuso do direito pela jurisprudência, basicamente, tem sido caracterizada no
uso das impugnações das decisões judiciais, bem como no uso da via jurisdicional.
Concernente à interposição dos recursos, os Tribunais têm sido firmes em reprovar as
pretensões que objetivam tão somente procrastinar a entrega da prestação jurisdicional, uma
vez que completamente desprovidas de fundamento. Ressalta-se que, mesmo quando se trata
de parte pública, se esta maneja recursos em frontal oposição ao postulado da probidade
processual, tais condutas têm sido repelidas pelos Órgãos Judiciais.
45
O apelo à boa- objetiva veda o abuso do direito ou o exercício inadmissível de posições
jurídicas, direcionando o agir dentro de bitolas estabelecidas pelo sistema. São contrárias à
boa-fé objetiva as atuações que respeitem a exterioridade apenas formal, sem observar os
valores nucleares. Não são acolhidas condutas que frustrem expectativas legitimamente
geradas.
46
Na América Latina, conforme salientado por Eduardo Oteiza, vige “o respeito ao princípio da
boa-fé e lealdade processual, como pauta ética a qual devem adequar os comportamentos de
todos os intervenientes no debate processual. [...] O bem protegido é a finalidade do processo,
consistente em fazer justiça em cada caso concreto, procurando que a decisão se ajuste aos
fatos e ao direito vigente. Os obstáculos que alterem esse objetivo, mesmo que lícitos
juridicamente, alteram a noção de “devido processo”, consagrada como direito
fundamental.”
47, 48
45
Helena Najjar Abdo assinala que: “Segundo a experiência prática e a doutrina especializada, o terreno mais
rtil para a ocorrência de abusos no processo civil é a atuação das partes. [...] a qualidade de parte confere ao
sujeito processual a titularidade de diversas situações jurídicas subjetivas (ativas e passivas), consistentes em
faculdades, poderes, deveres e ônus, cujo exercício irregular pode configurar dentro de determinadas
circunstâncias abuso do processo.” ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. Coleção estudos de direito
de processo Enrico Tullio Liebman, v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 21. Destaques no original.
46
MENEZES CORDEIRO, António. Novas tendências da boa-fé in Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre
as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário. N. 52. set.-dez., 1998, pp. 25-26, passim.
47
OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales en America Latina. In Abuso dos direitos processuais.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 11.
48
No original: La iniciativa del Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal refleja la preocupación
compartida por los procesalistas con respecto al principio de buena fe y lealtad procesal, que supone una pauta
ética a la cual deben adecuar su comportamiento los sujetos intervinientes en el debate procesal, entendiendo
por tales al órgano jurisdiccional, las partes, y los protagonistas circunstanciales. El bien protegido mediante la
instauración de un determinado parámetro ético es la finalidad del proceso, consistente en hacer justicia en
cada caso concreto, procurando que la decisión se ajuste a los hechos y al derecho vigente. Los obstáculos que
alteren ese objetivo, aunque lícitos jurídicamente, alteran la noción de ‘debido proceso’, consagrada como
derecho humano en la región […].”
179
Menezes Cordeiro destaca que “apelar à boa implica sempre uma ponderação material da
solução existente, na sua globalidade. Isso não impede que a boa fé seja usada para
(re)confirmar decisões assentes em outros institutos: trata de uma sindicância salutar do
sistema sobre o problema.”
49
A importância da concretização da boa-fé objetiva e do abuso do direito levada a efeito pelos
Tribunais, conforme assinalado por Menezes Cordeiro, é um dos acontecimentos jurídico-
científico mais importantes dos dois últimos séculos. A boa-fé objetiva surge “como uma via
para permitir, ao sistema, reproduzir, melhorar, corrigir e completar as suas soluções.”
50
Segundo o Autor português [...] O instituto do abuso do direito traduz a aplicação, nas
diversas situações jurídicas, do princípio da boa . E o princípio da boa fé equivale à
capacidade que o sistema jurídico tem de, mesmo nas decisões mais periféricas, reproduzir os
seus valores fundamentais.”
51
Nesse mesmo passo Eduardo Jordão traz uma nova concepção do abuso do direito ao afirmar
que abuso de direito é um ato ilícito porque contraria o dever de boa-fé imposto por uma
norma do sistema jurídico, o princípio da boa-fé.”
52
Jordão filia-se à idéia de que não necessidade de dispositivo expresso a determinar a
proibição de atos contrários à boa-fé. A ausência de expressa disposição legal não implica
dizer que os mesmos sejam aceitos pelo ordenamento. Tal entendimento pode ser fundamento
na concepção de Castanheiras Neves para quem “não precisa o abuso de direito, para valer, de
qualquer prescrição positiva, uma vez ser um princípio normativo. E os princípios
normativos, ‘como expressões que são da própria idéia de Direito’, como ‘postulados
axiológico-normativos do direito positivo não têm que ser traduzidos em leis para
vigorarem.
53
49
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 79.
50
Ibidem, p. 78.
51
Ibidem, p. 91.
52
FERREIRA JORDÃO, Eduardo. Repensando a Teoria do Abuso do Direito. Salvador: Juspodium. 2006, p.
102.
53
CASTANHEIRAS NEVES, Antonio. Questões-de-facto Questões-de-direito: ou o problema metodológico
da juridicidade. Coimbra: Almedina, 1967. p. 529. apud FERREIRA JORDÃO, Eduardo. Repensando a Teoria
do Abuso do Direito. Salvador: Juspodium. 2006, p. 101.
180
Jordão ressalta que nos países onde não previsão expressa ao abuso do direito costumam
fundamentá-la no princípio da boa-, o que vem demonstrar a estreita relação entre
ambos”.
54, 55
Pode-se mesmo dizer que existe uma relação biunívoca entre a boa-fé e o abuso do direito: a
repressão ao abuso do direito advém do dever de agir de boa-fé. Os atos abusivos são atos que
contrariam ao dever jurídico da boa-fé.
Com efeito, a boa- apresenta-se como relevante valor jurídico a nortear o exercício dos
direitos subjetivos num trabalho de modelação das relações intersubjetivas que, conforme
assinalado por Jordão, independe de positivação visto que se encontra entranhado em todo o
ordenamento jurídico.
56
A aplicação do abuso do direito e da boa-fé objetiva nos donios processuais é indubitável.
Nenhuma posição jurídico-subjectiva está imune a uma sindicância, no momento do seu
exercício, feita à luz de valores fundamentais do ordenamento em causa.”
57
Nesse sentido, Pedro Albuquerque ressalta que o direito de ação e de estar no processo,
embora sejam garantias constitucionalmente asseguradas, não é ilimitado: o Direito
Processual Civil encontra-se, também, subordinado ao princípio da boa-fé objetiva.
58
A figura do abuso do direito tem sido transplantada, com as necessárias adequações, do
direito civil para os donios do processo.
59, 60
O império da lealdade e da probidade para o
54
FERREIRA JORDÃO, Eduardo. Repensando a Teoria do Abuso do Direito. Salvador: Juspodium. 2006, p.
103.
55
Jordão traz à colação a observação feita por Pascal Ancel: a maioria dos autores estão hoje convictos do
liame muito estrito entre a não de abuso de direito e aquela da boa-fé”. ANCEL, Pascal; AUBERT, Gabriel.
“L’abus de droit en droit français et en droit suisse: deux approches. Dialogue”, L’abus de droit comparaisons
franco-suisses. Saint-Ettiene : Université de Saint-Etienne. 2000, p. 02, apud FERREIRA JORDÃO, Eduardo.
Repensando a Teoria do Abuso do Direito. Salvador: Juspodium. 2006, p. 103.
56
Ibidem, p. 105.
57
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 85.
58
ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e
responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 68.
59
PEYRANO, Jorge W. Abuso del proceso e conducta procesal abusiva. Revista de derecho privado e
comunitário. Buenos Aires: Rubinzal – Culzioni Editores. 1998, p. 69.
60
No original: “[...] estimo que el ejercicio abusivo del derecho tiene vigencia en el proceso como principio
general legislado por el Código Civil. Claro está que, como siempre sucede cuando se debe trasplantar una
noción nacida en otros ámbitos jurídicos, la teoría del abuso del derecho puede y debe ser objeto de algunos
ajustes cuando se pretende otorgale vigencia en el campo del proceso civil.”
181
terreno do Direito Processual, por meio de normas expressas, vem reafirmar a posição de
atribuir aos magistrados maiores poderes para reprochar as condutas abusivas perpetradas no
debate judicial.
61, 62
Oteiza observa que, na linha evolutiva do Direito Processual, a idéia absoluta dos direitos e o
processo visto como cerio de uma luta entre as partes na busca da satisfação de seus
próprios interesses foi superada pela publicização do Direito Processual, que passou a
reconhecer que sua missão excedia o mero interesse das partes. Tal fato foi determinante para
a imperatividade de standards de condutas definidas pela lealdade, probidade e pela boa-fé,
de acordo com as quais os participantes do processo devem pautar suas atuações. As
legislações atuais, ao veicular o princípio da probidade, destacam essa orientação publicista
do processo, nas quais a idéia de abuso do direito junto com o standard da boa-fé dão uma
nova orientação, o direito material e o instrumental são norteados pela idéia do bem comum.
Nesse novo cenário, o papel do juiz é realçado pelos poderes para sancionar todas as
manobras que intentem violar dito imperativo.
63, 64
Não se pode olvidar que o fim último do processo está diretamente relacionado à dignidade da
justiça, que sobreleva frente aos interesses particulares dos litigantes. Portanto, todos os
61
PEYRANO, Jorge W. Abuso del proceso e conducta procesal abusiva. Revista de derecho privado e
comunitário. Buenos Aires: Rubinzal – Culzioni Editores. 1998, p. 71.
62
No original: Hoy es innegable el imperio del principio de moralidad en el proceso civil, y también que
cuando el legislador se refiere a los deberes procesales de obrar con lealtad, probidad e buena fe no está
haciendo otra cosa que materializar el susodicho principio de moralidad. Y ya tampoco hay duda respecto de
que el tenor de las normas legales que consagran dichos deberes es revelador de que se está reconociendo a los
jueces y tribunales el poder-deber de prevenir y sancionar los actos abusivos perpetrados dentro del debate
judicial.”
63
OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales em America Latina. In Abuso dos direitos processuais.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, pp. 17-18.
64
No original: Es posible a esta altura establecer una línea de evolución entre aquella idea absoluta de los
derechos y el proceso visto como el escenario de una contienda entre dos partes que buscan la satisfación de su
propio interés, en el cual el órgano judicial funciona como un espectador al que sólo se le exige equidistancia e
imparcialidad. Del mismo modo que el factor ético y moral penetró con mayor intensidad en el ámbito propio
del ordenamiento civil relativisando el ejercicio de los derechos y obligando a guardar coherencia con su
finalidad, la publicización del derecho procesal al reconocer que su misión excedía el mero interés de las
partes, determinó que se adoptaran estándares de conducta debida definidos como principios de lealtad, buena
fe y probidad, que descubren verdaderas normas de justicia procesal de acuerdo con las cuales la actividad de
as participantes del proceso, en su más amplio sentido, encuentran un cauce a su conducta. El papel del juez
como director del proceso, con capacidad para controlar que el debate procesal no resulte entorpecido por
conductas que impidan u obstaculicen lograr una resolución justa del conflicto, va acompañado de poderes
para sancionar las actitudes reticentes, que tiendan a quebrantar dicho imperativo. El principio de probidad el
los códigos procesales de los países de la región que hemos comparado subraya la orientación publicística del
proceso en Latinoamérica, como norma propia y al mismo tiempo concordante con la idea de abuso del derecho
que, junto con el estandar de buena fe también reconocido en el derecho privado, importa dar un marco social
de comportamiento, en que la legislación de fondo y la instrumental resultan nítidamente emparentadas y
orientadas por la idea del bien comun.
182
sujeitos que participam do processo, de maneira direta ou indireta, submetem-se ao dever de
lealdade e boa-fé. Tal dever impõe o ajustamento das condutas a esse standard de
comportamento no desenvolvimento da dialética processual.
65
As atuações caracterizadas por abuso dos direitos processuais redundam no comprometimento
de uma prestação de uma tutela jurisdicional pronta e efetiva. Nesse sentido, Peyrano destaca
que muitas vezes o dano processual não é facilmente identificável. Entretanto “o ato abusivo
redunda em uma demora e alongamento dos trâmites que, de per si, pode invocar-se como um
prejuízo processual computável. Desse modo, “[...] o prejuízo processual que deve estar
presente para que possa qualificar o ato processual como abusivo, nem sempre e, fatalmente,
deve possuir natureza patrimonial.”
66
Menezes Cordeiro ressalta que, hoje, qualquer processo é submetido a uma sindicância do
sistema feita pelo crivo do abuso do direito e a expectativa é de que não haja retrocessos, pois
trata-se de um dos mais significativos avanços jurídico-científicos.
67
O abuso do direito, na concepção formulada por Menezes Cordeiro, apresenta-se, afinal,
como uma constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema,
entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria legítima.”
68
De acordo com Peyrano, o abuso do direito consiste em um princípio geral do Processo Civil
que proíbe o atuar processual abusivo que, habitualmente redunda em uma demora e um
alongamento no trâmite da lide, retardando a solão do conflito.
69
O ato abusivo, consoante Helena Najjar Abdo pressupõe a existência de dum direito
subjetivo, de titularidade do agente, que é exercido (a irregularidade está no exercício do
65
OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales en America Latina. In Abuso dos direitos processuais.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, pp. 9-10.
66
PEYRANO, Jorge W. Abuso de los derechos procesales. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA
MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 76.
67
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 49.
68
Ibidem, p. 49.
69
PEYRANO, Jorge W. Abuso del proceso e conducta procesal abusiva. Revista de derecho privado e
comunitário. Buenos Aires: Rubinzal – Culzioni Editores. 1998, pp 72 e 76, passim.
183
direito) de maneira anormal, com desvio de finalidade. [...] o ato abusivo reveste –se da
chamada aparência de legalidade.”
70
Menezes Cordeiro anota que o “abuso de direito é [...] uma mera designação tradicional, para
o que se poderia dizer ‘exercício disfuncional de posições jurídicas. Por isso ele pode
reportar-se ao exercício de quaisquer situações e não, apenas, ao de direitos subjetivos.”
71
Especificamente no campo processual civil, “a noção de abuso do direito trabalha sobre
distintos aspectos nos quais os instrumentos processuais são empregados de forma
disfuncional. O processo não logra cumprir sua finalidade por múltiplas manifestações nas
quais, em substância, se obstrui, dificulta ou altera seu objetivo de organizar um debate amplo
no qual o órgão jurisdicional possa brindar com uma solução justa.”
72
,
73
Para Peyrano, a figura do ‘abuso dos direitos processuais’ é uma figura mais ampla que a
figura do abuso do direito no seio do Processo Civil. Para o Autor, o abuso dos direitos
processuais implica não somente um exercício disfuncional, mas, também, um exercício
inadequado de poderes e também de deveres funcionais. “Numa descrição aproximativa de
dito instituto, pode-se dizer que é um inadequado exercício objetivo de poderes, deveres
funcionais, atribuições, direitos e faculdades em que pode incorrer qualquer dos sujeitos
principais ou eventuais intervenientes em dado Processo Civil, e que gera conseqüências
desfavoráveis para o autor do abuso.”
74, 75
70
ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman,
v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 19. Destaques no original.
71
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 76.
72
OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales em America Latina. In Abuso dos direitos processuais.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 31.
73
No original: La noción del abuso trabaja sobre distintos aspectos en los cuales los instrumentos procesales
son empleados en su forma disfuncional. El proceso no logra cumplir su finalidad por múltiplas manifestaciones
en donde, en sustancia, se obstruye, dificulta o altera su objetivo de organizar un debate amplio en el que el
órgano jurisdiccional pueda brindar una solución justa.”
74
PEYRANO, Jorge W. Abuso de los derechos procesales. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA
MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, pp. 69 e 71.
75
No original: “De todos modos, considero importante examinar atentamente qué es lo que entiendo encubre el
rótulo ‘abuso de derechos procesales” (ADP) porque, insisto, es una figura más amplia que la del abuso del
derecho en el seno del proceso civil. Es que aquélla implica no sólo un ejercicio antifuncional sino también un
inadecuado ejercicio de poderes y aún de deberes funcionales. Como fuere, por tratarse de género y especie
median entre ambos varios puntos de contacto. […]
Si bien como ya lo expresara aparece como dificultoso pergeñar una definición ideal de ADP, quizás se
pueda, en cambio, proponer una descripción aproximativa de dicho instituto, diciendo que es un inadecuado
ejercicio objetivo de poderes, deberes funcionales, atribuciones, derechos y facultades en que puede incurrir
184
Conforme assegura Menezes Cordeiro, “[...] Essa figura é um tanto residual, abrangendo
hipóteses de chicana e de arrastamento injustificado do processo.”
76
A boa- objetiva
intervém para reduzir ou aniquilar o abuso do direito, por se tratar de figura estranha ao
sistema.
Quando um dos sujeitos atua sem motivo legítimo, viola o princípio da boa-fé [...]. A relação
processual impõe aos partícipes do processo a obrigação de conduzir-se de acordo com a
finalidade própria de um debate dirigido para a resolução do conflito com justa.”
77, 78
O abuso de direitos processuais é configurado pelo uso das estruturas processuais para
satisfazer interesses que, embora citos, são manifestamente abusivos ou para a realização de
procedimento mais oneroso quando havia, à disposição, outro mais simples e que atenderia
aos mesmos fins. Esse agir denota transgressão à boa-objetiva e violadora da lealdade
processual.
79
Uma idéia inicial do abuso do direito pode ser traduzida como “mau uso ou uso irregular,
excessivo, de uma determinada prerrogativa ou faculdade conferida pela lei.”
80
Ao analisar a figura do abuso do direito Menezes Cordeiro observa que se trata de limitações
jurídico-subjetivas que somente são aferidas no caso concreto e que equivale, em termos
jurídico-positivos, a uma regra segundo a boa fé”.
81
O direito, sob a ótica de um sistema, que harmonicamente rege a convincia social, tem
exigências que lhe são inerentes para a manutenção do próprio sistema. O agir em
desconformidades com essa pauta de exigências dá azo ao abuso do direito, que importa em
disfuncionalidade. Dessa forma anota Menezes Cordeiro: “Um sistema jurídico postula um
cualquiera de los sujetos principales o eventuales intervinientes en un proceso civil dado, y que genera
consecuencias desfavorables para el autor del abuso.
76
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 378, nota de rodapé nº 442.
77
OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales en America Latina. In Abuso dos direitos processuais.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 22.
78
No original: “[...] Cuando uno de los sujetos obra sin motivo legítimo (en palabras de Josserand), quiebra el
principio de buena fe […]. La relación procesal impone a los partícipes del proceso la obligación de conducirse
de acuerdo con la finalidad propia de un debate dirigido a resolver un conflicto con justicia.”
79
PEYRANO, Jorge W. Abuso del proceso e conducta procesal abusiva. Revista de derecho privado e
comunitário. Buenos Aires: Rubinzal – Culzioni Editores. 1998, pp. 77-78, passim.
80
ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman,
v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 31.
81
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 71.
185
conjunto de normas e princípios de Direito, ordenados em função de um ou mais pontos de
vista. Esse conjunto, projecta um sistema de acções jurídicas portanto de comportamentos
que, por se colocarem como actuações juridicamente permitidas ou impostas, relevam para o
sistema. O não-acatamento das imposições e o ultrapassar do âmbito posto às permissões
contraria o sistema: há disfunção.
82
Nesse diapasão, [...] O abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos
jurídico-subjetivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas
concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integrem.”
83
Conforme destacado por Pedro Albuquerque, com escólio em Menezes Cordeiro “o abuso do
direito de modo amplo e cientificamente mais apurado, como exercício inadmissível ou
ilegítimo de posições jurídicas quando elas se apresentam no caso concreto como contrários
aos vectores do sistema, assente na concretização da boa fé.”
84
Em resumo, a boa-objetiva retrata uma norma ético-jurídica que estabelece as balizas de
atuação de todos os que participam da relação jurídica processual. A boa-fé objetiva
estabelece um padrão de comportamento baseado na lealdade e na probidade e visa
precipuamente à proteção da confiança despertada na contraparte. Por sua vez, o abuso do
direito processual caracteriza-se pelo exercício de um direito que contraria a boa-objetiva.
O abuso do direito caracteriza-se pelo uso de um direito legitimamente assegurado, entretanto
exercido de maneira disfuncional, de maneira anormal, promovendo um retardamento no
desenvolvimento do processo e, por conseguinte, na solução da lide.
6.3. A aplicação boa-fé objetiva pelo Juiz: Virtudes e Cautelas
82
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 72.
83
Ibidem, p. 73.
84
ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e
responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 89.
186
A aplicão da boa-fé objetiva nos diversos donios do Direito tem sido reconhecida pela
doutrina e pela jurisprudência. Solimine a atuação da boa-fé como fundamento de todo o
sistema jurídico independentemente de encontrar-se expresso ou não:
“A boa-fé se caracteriza por outorgar ao sistema jurídico uma nota de distinção que
aparece tanto na base ou fundamento do todo como das instituições ou normas
isoladas. Prova disto é que esse princípio tem aplicação não só no direito codificado,
mas também nos sistemas da common law, onde muitas instituições próprias do
sistema anglo-norteamericano constituem aplicações fundadas no princípio da boa-
como modo de incorporar ao campo do direito, valores ético-sociais, tais como o
respeito mútuo e a corrão nas relações.
[...]
O aludido princípio pode aparecer codificado ou não, entretanto isso não obsta a sua
existência.
85
,
86
Revela-se a importância desse instituto que, que por possuiu conteúdo elástico, possibilita
uma crião normativa não restrita aos textos legais sobrepujando o papel da jurisprudência
como vetor de adequação da legislação ao contexto social. É à luz dos casos concretos que a
boa-fé objetiva ganha conteúdo próprio numa conjugação de valores e de argumentos que
corporificam as decisões e que, por conseguinte, permitirão a formulação de modelos
jurídicos.
Nesse sentido concorrem os apontamentos de Francisco Amaral, exaltando a influência dos
juristas romanos, com a sua excepcional vocação para extrair [...] princípios e construções
jurídicas que afirmavam como universais. Sua fuão e seu mérito foi terem procurado
princípios e soluções para problemas sociais e casos concretos, atendendo às exigências da
vida e ao seu sentido de justiça. E, dentre esses princípios, que atuavam difusamente, sem
positividade jurídica, o da boa-fé.”
87
A concretização da cláusula geral da boa-fé objetiva, segundo Menezes Cordeiro, deu lugar à
criação de diversos institutos jurídicos que, hoje, já têm autonomia própria reduzindo o campo
85
SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho.
Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 861.
86
No original: El referido principio se caracteriza por otorgar al sistema jurídico una nota de distinción que
aparece en la base o fundamento del todo como de las instituciones o normas aisladas. Prueba de ello es que
dicho principio es de aplicación no solo a los derechos codificados sino también en sistemas como el Common
Law donde muchas instituciones propias del sistema anglo-norteamericano constituyen aplicaciones fundadas
en el principio de buena fe como modo de incorporar al campo del derecho valores éticos-sociales tales como el
respecto mutuo y la corrección en el trato.[…] Es decir, que el principio aludido puede aparecer codificado o
no, pelo ello no obsta a considerar su existencia, ya sea a través de normas aisladas o como base o fundamento
de las instituciones.
87
AMARAL, Francisco. A boa-fé no processo romano. Revista Jurídica. vol. 1 n. 1. Rio de Janeiro: Faculdade
de Direito da UFRJ, 1995, pp. 38-39.
187
de aplicação da boa-fé no sentido de não mais ser necessário reportar-se a ela para decidir o
caso concreto. Essa opinião do Autor português leva-o a concluir que [...] A boa fé originou
uma série de novos institutos jurídicos: provavelmente, as mais estimulantes e avançadas
criações jurídicas dos últimos dois séculos. Consumada essa criação, os institutos novos
agrupam-se e ordenam-se, no sistema, de acordo com as realidades a que respeitam,
adquirindo um tratamento cada vez mais próximo do Direito estrito. A boa mantém-se,
apenas, num núcleo apertado, onde ainda não foi possível uma intervenção normalizadora da
Ciência do Direito.”
88
Entretanto, não significa dizer que houve uma redução no campo de operatividade da boa-
objetiva. O próprio Menezes Cordeiro ressalta que os institutos autônomos retornam a ela
para efeito de apuramento dogmático. A Ciência do direito, na base dum tratamento
sistemático, corrige assimetrias, apura soluções, completa enquadramentos e alcança decisões
as mais diferenciadas e melhor justificadas. A boa fé mantém, assim, um importante papel
dogmático, mesmo perante questões já conhecidas.”
89
A capacidade de intervir frente a problemas novos, não contemplados pelos textos
normativos, à boa-objetiva um status de ‘regra de ouro’, pois legitima soluções que são
construídas numa reflexão que tem por base o problema e que se encaixam dentro de um
sistema aberto e móvel. Essa realidade permite aferir que não se pode abdicar desse conteúdo
móvel e fluido da boa-fé objetiva para a atualização legislativa sem a intervenção do
legislador.
No trabalho de formulação de modelos jurídicos construídos sob o esteio da boa-fé objetiva
fundamental se torna a identificação dos problemas para os quais as soluções são formuladas.
Nesse sentido, há que se considerar que não se trata de problemas abstratos, mas de situações
concretas para as quais há que se delimitar os seus contornos, e extrair a essência nele
representada. A partir dessa identificação é que se perquire a atuação da boa-fé objetiva como
solução do problema identificado e que possibilitaa utilização desse conteúdo em situações
futuras.
88
Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário.
N. 52. set.-dez., 1998, p. 29.
89
Ibidem, p. 32.
188
Quadra destacar que não se trata de um conteúdo fixo visto que para as novas situações que
se adequar esse conteúdo às suas peculiaridades num trabalho dinâmico de construção e de
reconstrução do modelo. Nesse cenário, a boa-fé objetiva assume contornos que o
apreendidos em função do momento social, cultural e histórico, o que permite uma dinâmica
atualização normativa sem que se requeira qualquer alteração legislativa.
O Código de Processo Civil ao estipular o “dever de todos aqueles que dele participam de
proceder com lealdade e boa-fé” veicula uma norma que, por ter natureza de cláusula geral, é
uma norma cuja ‘nuance’ é definida jurisprudencialmente à vista das controrsias a serem
solucionadas. Essas soluções o estão previamente estabelecidas, antes precisam ser
construídas buscando no sistema o conteúdo da boa-fé objetiva a ser aplicado naquela
situação.
Menezes Cordeiro ressalta o valor da boa-fé objetiva nos sistemas abertos e móveis como
instrumento de integração de soluções não encontradas no próprio sistema. A plenitude da
boa-fé objetiva encontra guarida exatamente, na abertura externa do sistema, “porquanto
admitindo a relevância jurídica de questões a ele estranhas, e que a boa fé, de resto,
historicamente, tem contribuído para localizar, solucionar e depois integrar no sistema [...].”
90
Conforme sintetizado por Menezes Cordeiro “[...] A boa apresenta de novo, excelentes
condições, para retornar o seu incansável e bem eficaz papel de perpetuação do sistema,
renovando-o, logo que necessário. O seu futuro está assegurado. De resto: já começou.”
91
No entanto, que se ter cautela na aplicação da boa-fé, visto que, face ao seu caráter
indeterminado e potencialmente expansivo, corre-se o risco de que se converta em uma
espécie de ordenamento alternativo
92
à ordem jurídica posta, apresentando-se como remédio
para todos os males, passando a ser invocado sem qualquer critério.
Anderson Schereiber alerta para a “superutilização da boa-fé objetiva” refletida em um
processo de invocação arbitrária da boa-fé como justificativa ética de uma série de decisões
90
Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário.
n. 52. set.-dez., 1998, p. 34.
91
Ibidem, p. 36.
92
CACHÓN CADENAS, Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de
ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial.
Centro de documentación judicial. 2006, p. 219.
189
judiciais e arbitrais, que nada dizem tecnicamente com o seu conteúdo e suas funções.” Nesse
passo, segundo o Autor, “a boa-fé objetiva aparece hoje, não obstante os propósitos meritórios
de sua aplicação, como fundamento de soluções que se chegaria, de forma mais eficaz e mais
adequada à luz do próprio sistema jurídico, pela aplicação direta de princípios constitucionais
[...].”
93
Corroborando o seu entendimento Schereiber evoca as lições de Menezes Cordeiro sobre as
críticas ao uso atécnico da boa-fé face ao desconhecimento do seu significado e do seu
alcance:
“[....] Mas porque a boa-fé mantém-se a nível juscientífico, como fonte efectiva de
soluções novas, a impossibilidade científica de captar o fenómeno, num retrocesso
gnoseológico surpreendente, ocorreu a mitificação do conceito. Na falta de um
captar da noção, procedeu-se ao seu arvorar lingüístico em princípio todo poderoso,
em regra fundamental que tudo domina, em teor ético-social do Direito ou em cerne
imanente de limitações internas de posições jurídicas. Esta linguagem
grandiloqüente, pitoresca, que domina a literatura e os espíritos dos juristas quando
da boa-fé se trate e, quanto ao conteúdo, profundamente vazia. A sua própria
ilimitação descaracteriza-o de tal modo que impossibilita o retirar de quaisquer
soluções reais. As remissões para ordens ou remissões ou sentimentos extra-
jurídicos mais acentuam o mito, rematado pela idéia comum, de que, por
inomeáveis implicações jusfilosóficas, a boa fé, de aplicações múltiplas e
incomportáveis, se torna de estudo difícil ou impossível. E entretanto, num remate
do divórcio, os tribunais progridem, encontrando soluções bem reais, com base na
boa fé. Destas há que partir para transcender o irrealismo metodológico, cientificar,
a nível superior, as conquistas mais recentes do Direito civil e pôr termo ao
anacronismo da mitificação da boa fé.”
94
Quadra destacar que o uso da boa-fé objetiva não pode ser tratado como um ‘slogan’, o que
redundaria no que de mais pernicioso, tal qual uma erva daninha, pois esvaziaria o seu
conteúdo. Torna-se urgente e imperiosa a “necessidade de se precisar, com algum grau de
segurança, o conteúdo da cláusula geral da boa-fé objetiva.”
95
“O princípio da boa tem de
ser algo mais, muito mais do idílico verbalismo jurídico.
96
O acesso a uma ordem jurídica justa” e o direito a um processo justo e équo” somente se
concretizam à medida que todos os participam da relação jurídica processual atuem segundo
as balizas da boa-fé objetiva. A concretização dos princípios constitucionais, que veiculam as
93
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra
factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 121, 122.
94
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, pp. 402-403.
95
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra
factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 125.
96
A firmação é do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, Cardona Ferreira, apud MENEZES
CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo. Coimbra:
Almedina. 2006, p. 79.
190
garantias processuais, encontra seu pleno funcionamento sob a atuação da boa- objetiva.
Trata-se do devido processo leal”, expressão cunhada por Joan PiI Junoy para descrever o
processo no qual as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da
ampla defesa e da duração razoável do processo são atingidas com a intervenção da boa-fé
objetiva.
97
A “tutela constitucional é o tema do nosso tempo
98
. Juristas e doutrinadores inquietam-se em
alcançar modelos processuais que transformem a promessa da prestação de uma tutela
jurisdicional efetiva em concreta “justa composão da lide”. “O desafio dos processualistas é
frontal e inescusável. A encruzilhada se polariza em duas alternativas incompatíveis: a do
processo formal [...] e a do processo justo.”
99
“A defesa em juízo não é alcançada simplesmente pela explicação e pela interpretação da lei e
das circunstâncias em causa, mas, além disso, e principalmente, é necessário ter muito
presente que os operadores têm de protagonizar um trabalho de cooperação eticamente
ajustado à boa-fé e no que respeita à sua repercussão, de um ângulo social, que derive
resultados mais tangíveis.”
100, 101
A concepção do “processo justodemanda um permanente trabalho de todos os que atuam na
seara jurídica, trabalho esse que deve estar afinado às expectativas que afloram do seio social.
“Cada geração deve definir o que entende por processo justo, reinventando-o ou ajustando,
sucessivamente, aos novos reclamos da sociedade. A ambição de um melhor processo é
universal e inacabável.”
102
,
103
97
PICÓ Y JUNOI, Joan. El debido proceso leal: reflexiones en torno al fundamento constitucional del principio
de la buena fe procesal. In Justicia: Revista de derecho procesal. n. 34. 2004,
98
MORELLO, Augusto M. El proceso justo: del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos. Buenos
Aires: Librería Editora Platense S.R.L - Abeledo-Perrot. 1994, p. 619.
99
Ibidem, p. 634.
100
MORELLO, Augusto M. El proceso justo: del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos.
Buenos Aires: Librería Editora Platense S.R.L - Abeledo-Perrot. 1994, p. 650.
101
No original: Para alcanzar los adecuados fines que se persigue asegurar la defensa en juicio según la
Constitución Nacional, no es bastante en estas horas explicar e interpretar la ley y las circunstancias de la
causa, sino además, y principalmente, tener muy presente que los operadores tienen que protagonizar una labor
de cooperación éticamente ajustada a la buena fe, u en lo que respecta a su repercusión, desde un ángulo
fuertemente social, que derive en resultados más tangibles.
102
MORELLO, Augusto M. El proceso justo: del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos.
Buenos Aires: Librería Editora Platense S.R.L - Abeledo-Perrot. 1994, p. 655.
103
No Original: Cada generación debe definir qué entiende por proceso justo, reinventándolo o ajustándolo –
sucesivamente – a los nuevos reclamos de la sociedad. La ambición de un mejor proceso es universal e
inacabable.”
191
6.4. Referências sobre a boa-fé objetiva processual na experiência legislativa de outros
povos
A boa-fé era conhecida no Direito Romano, tendo atuação difusa, visto não encontrar-se
positividade jurídica, consoante demonstra Francisco Amaral em sua tese para professor
titular daquela matéria, sendo, na época, aplicado tanto no direito material quanto no Direito
Processual.
104
Sob a ótica do direito privado, visualizamos que no direito estrangeiro, o Código Civil
Alemão de 1896 (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch), em seu parágrafo 242, positivou o
princípio da boa-fé objetiva, fortalecendo a importância de se estabelecer um comportamento
ético nas relações jurídico-sociais. Pom, somente após a Constituição de Weimar de 1919
foi que aquele dispositivo do BGB passou a ser aplicado pelos tribunais alemães tornando-se
conhecido como parágrafo de ouro e, portanto, tornando-se referência na doutrina e
jurisprudência alemãs
105, 106
.
A partir de então vários sistemas estrangeiros recepcionaram a teoria da boa-fé objetiva em
seus ordenamentos jurídicos, podendo destacar o digo Civil português, em seu art. 227 e o
código civil italiano, em seus artigos 1337 e 1375.
No que tange ao Direito Processual de outros povos, a análise dos textos normativos revela
que, impor um padrão ético de conduta nas relações processuais, é ação comum do legislador
estrangeiro, conforme se verifica no atual Código de Processo Civil da Itália, que adota o
Princípio de Lealdade não apenas em relação aos litigantes, mas também em relação ao juiz
da causa, consoante prescrevem o §1º do art. 88, art.96 e o art. 175.
107
“Art.88- Dovere di lealtà e di probità. Le parti e i loro difensori hanno il dovere di
comportarsi in giudizio con lealtà e probità. In caso di mancanza dei defensori a
tale dovere, il giudice deve riferirne alle autorità che esercitano il potere
disciplinare su di essi.
104
AMARAL, Francisco. A boa- no processo romano. Revista Jurídica. vol. 1 n. 1. Rio de Janeiro: Faculdade
de Direito da UFRJ, 1995, pp. 34 e 38.
105
CRUZ e TUCCI, Cibele Pinheiro Marçal. Teoria geral da boa-fé objetiva. Revista do Advogado. São Paulo.
ano 22. nº 68. dez. 2002, p. 106.
106
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 375.
107
RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da
parte em juízo. Revista da AJURIS. vol. 31. n. 95 Porto Alegre: Ajuris. Set. 2004, p. 74.
192
Art.96- Responsabilità aggravata. Se risulta che la parte soccombente ha agito o
resistito in giudizio com mala fede o colpa grave, il giudice, su istanza dell'altra
parte, la condanna, oltre che alle spese, al risarcimento dei danni, che liquida,
anche di ufficio, nella sentenza.
Art.175-Direzione del procedimento. Il giudice istruttore esercita tutti i poteri
intesi al più sollecito e leale svolgimento del procedimento.
A relevância da positivação da boa-fé processual no ordenamento jurídico espanhol resta
evidenciada, visto que o princípio encontra-se citado de forma indireta no art. 118 da
Constituição Espanhola e, de forma mais direta, no art. 247, apartado da Ley de
Enjuiciamiento Civil e nos artigos 11 e 437 da Ley Orgánica del Poder Judicial - LOPJ.
“Art.118- Es obligado cumplir las sentencias y demás resoluciones firmes de los
jueces y tribunales, acomo prestar la colaboración requerida por éstos en el
curso del proceso y en la colaboración requerida por éstos en el curso del proceso
y en la ejecución de lo resuelto.
Artículo 247. Respeto a las reglas de la buena fe procesal. Multas por su
incumplimiento.
1. Los intervinientes en todo tipo de procesos deberán ajustarse en sus actuaciones
a las reglas de la buena fe.
2. Los tribunales rechazarán fundadamente las peticiones e incidentes que se
formulen con manifiesto abuso de derecho o entrañen fraude de ley o procesal.
3. Si los tribunales estimaren que alguna de las partes ha actuado conculcando las
reglas de la buena fe procesal, podrá imponerle, de forma motivada, y respetando
el principio de proporcionalidad, una multa que podrá oscilar de treinta mil a un
millón de pesetas, sin que en ningún caso pueda superar la tercera parte de la
cuantía del litigio.
Para determinar la cuantía de la multa el tribunal deberá tener en cuenta las
circunstancias del hecho de que se trate, así como los perjuicios que al
procedimiento o a la otra parte se hubieren podido causar.
4. Si los tribunales entendieren que la actuación contraria a las reglas de la buena
fe poda ser imputable a alguno de los profesionales intervinientes en el proceso,
sin perjuicio de lo dispuesto en el artículo anterior, darán traslado de tal
circunstancia a los Colegios profesionales respectivos por si pudiera proceder la
imposición de algún tipo de sanción disciplinaria.
Artículo 11
1. En todo tipo de procedimiento se respetarán las reglas de la buena fe. […].
Artículo 437
En su actuación ante los Juzgados y Tribunales, los Abogados son libres e
independientes, su sujetarán al principio de la buena fe […].
A Argentina também apresenta a lealdade processual como o elemento essencial para a
constituição da justiça, que no caso pode-se subtrair esse entendimento no art. 34, 5º, do
Código de Processo Civil e Comercial da Nação Argentina:
“Art. 34- Son deberes de los jueces:
(...)
193
5º- Dirigir el procedimiento, debiendo, dentro de los mites expresamente
establecidos en este Código:
d) Prevenir y sancionar todo acto contrario al deber de lealtad, probidad y buena
fe.”
O Código de Processo Civil de Portugal, expressamente, veicula o dever de boa-fé processual
no art. 266º-A e no art. 456º traz a noção de má-fé, conforme se infere, verbis:
“ARTIGO 266.º-A
(Dever de boa fé processual)
As partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do
preceituado no artigo anterior.
ARTIGO 456.º
(Responsabilidade no caso de má fé - Noção de má fé)
1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização
à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamentoo devia
ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão
da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente
reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da
verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito
em julgado da decisão.
3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido
recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé.”
Na Alemanha, com a reforma de 1933, surge no § do § 138 da ZPO o dever das partes de
dizer a verdade, o qual é fortalecido pelo § 826 do BGB, dispositivo que prevê uma obrigação
de indenizar danos causados por condutas maliciosas e falsidades, o que reafirma a presença
da boa-fé tanto no Código Processual Civil quanto no Código Civil alemão
108
.
Dessa forma, no direito alemão, conforme ensinamento de Menezes Cordeiro, conclui-se que
houve uma transposição da boa-fé do direito civil para o Direito Processual de forma que, a
natureza instrumental
109
do processo, foi o fator facilitador de aplicação da boa-fé no campo
processual. Partilhando do mesmo pensamento Benkendorf, Wilhelm Beltz, Bernhardt,
108
RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da
parte em juízo. Revista da AJURIS. vol. 31. n. 95 Porto Alegre: Ajuris. Set. 2004, p. 74.
109
“O processo em seu sentido social ou, como querem alguns, instrumental, é um instrumento público eficaz,
legítimo e verdadeiro de realização da justiça que foi colocado à disposição das partes pelo Estado, para que elas
possam buscar a prestação da tutela jurisdicional, e nenhum instrumento de justiça pode sobreviver fundado em
mentira, em conduta ímproba, em má-fé, motivo pelo qual o comportamento da parte influenciará a convicção do
juiz.” RIBEIRO, Darci Guimaes. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento
da parte em juízo. Revista da AJURIS. vol. 31. n. 95 Porto Alegre: Ajuris. Set. 2004, p. 76-77.
194
doutrinadores alemães, também reconheciam a recepção da boa- do § 242 do BGB no
processo
110
.
Ao analisar a aplicação da boa-fé objetiva processual no direito comparado pode-se verificar,
a título exemplificativo, que a preclusão lógica também enquadra-se na figura do venire
contra factum proprium como exigência do respeito ao agir leal e probo imposto pela boa-fé
objetiva.
Nesse sentido, Pi afirma: “O exercício livre de um direito pode ver-se limitado quando vai
de encontro à própria conduta do seu titular, agindo de forma incoerente, isto é, da má-fé.
Conseqüentemente, a conduta observada por uma pessoa em um determinado momento pode
vincular-lhe, restringindo possíveis atuações posteriores, que serão inadmissíveis quando
pretenda fazer valer um direito contrário à sua própria conduta praticada anteriormente,
frustrando a confiança daqueles confiaram naquele agir”.
111, 112
No direito comparado, tem sido vasta a aplicação jurisprudencial da boa-fé objetiva
processual conotando o seu riquíssimo conteúdo.
A doutrina dos atos próprios, admitida no ordenamento espanhol como norma que impede
comportamentos contraditórios, portanto violadores da boa-fé objetiva, tem sido expressa
pelos Tribunais nos seguintes termos: “Tanto a doutrina do Tribunal Constitucional como a
doutrina deste Tribunal considera que o princípio da boa protege a confiança que,
fundadamente, foi depositada no comportamento alheio e impõe o dever de coerência no
próprio comportamento. Dito princípio implica a exincia de um dever de comportamento
que consiste na observância, no futuro, dos atos anteriormente praticados e aceitar as
conseqüências vinculadas que advêm dos próprios atos.”
113
,
114
110
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 375.
111
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 113.
112
No original: "El libre ejercicio de un derecho puede verse limitado cuando va en contra de la propia
conducta de su titular, actuando de forma incoherente, esto es, de mala fe. En consecuencia, la conducta
observada por una persona en un determinado momento puede vincularle, restringiendo sus posibles
actuaciones posteriores, que serán inadmisibles cuando pretenda hacer valer un derecho en contra de su propia
conducta previamente realizada, traicionando así la confianza que los terceros hayan podido depositar en él.".
113
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 113, nota
de rodapé nº 227. Sentença do Tribunal Supremo (STS) – sala 3ª.
114
No original: Así, la STS (Sala 3ª) de 5 de junio de 2001 [...] destaca em su f.j.16º que ‘tanto la doctrina del
Tribunal Constitucional como la Jurisprudencia de este Tribunal considera que el principio de buena fe protege
195
A concepção da boa- objetiva no campo processual também pode ver-se formulada pelo
Tribunal Supremo espanhol nos seguintes termos:
“Efetivamente esta sala vem reiterando que a exincia de ajustar o exercício dos
direitos às pautas da boa constitui um princípio informador de todo o
ordenamento jurídico, que exige reprovar as atitudes que não se ajustam ao
comportamento honrado e justo [...] equivale a sujeitar-se em seu exercício aos
imperativos imanentes do ordenamento positivo [...], é dizer os imperativos éticos
que a consciência social exige. [...] Finalmente, [...] é numerosa a jurisprudência
desta Sala o atraso desleal ou exercício tardio desleal como conduta contrária à boa
.
115, 116
Da mesma forma, a jurisprudência portuguesa recorre à boa-fé objetiva para reprovar as
condutas processuais desleais, conforme pode-se inferir dos julgados colacionados:
“Neste domínio são de realçar os deveres de diligência e de boa processual.:- O
primeiro obriga os sujeitos processuais a "reagir contra nulidades ou irregularidades
que considerem cometidas e entendam relevantes dar-se na sua própria negligência
no acompanhamento... não podendo naturalmente escudas diligências ou audiências
para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a actos em
que estiverem presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam
deixar de se aperceber";- O segundo impede que os sujeitos processuais possam
"aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo
dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um "trunfo,
para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a
suscitarem e obterem a destruição do processado". (confrontar Ac.nº. 429/95 do
Tribunal Constitucional).
la confianza que fundadamente se puede haber depositado en el comportamiento ajeno e impone el deber de
coherencia en el comportamiento propio. Lo que es tanto como decir que diche principio implica la exigencia de
un deber de comportamiento que consiste en la necesidad de observar de cara al futuro la conducta que los
actos anteriores hacían prever y aceptar las consecuencias vinculantes que se desprenden de los propios
actos’”.
115
Dispovel em http://www.poderjudicial.es/jurisprudencia/. Acesso em 29.01.2008, Id Cendoj:
28079110002001100679; Órgano: Tribunal Supremo. Sala de lo Civil; Sede: Madrid; Nº de Recurso: 378/1996;
de Resolución: 189/2001; Procedimiento: RECURSO DE CASACIÓN; Ponente: JESUS CORBAL
FERNANDEZ; Tipo de Resolución: Sentencia. Citado por PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe
procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 78, nota de rodapé nº 144 e por CACHÓN CADENAS,
Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de ley procesal.
GUTIÉRREZ-ALVIZ CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial. Centro de
documentación judicial. 2006, p. 217.
116
No original: “Efectivamente esta Sala viene reiterando que la exigencia de ajustar el ejercicio de los
derechos a las pautas de buena fe constituye un principio informador de todo el ordenamiento jurídico que exige
rechazar aquellas actitudes que no se ajustan al comportamiento honrado y justo (S. 11 de diciembre de 1.989).
El ejercicio de los derechos conforme a las reglas o exigencias de la buena fe (art. 7.1 del Código Civil; y para
procesal arts. 11.2 LOPJ y 247 de la Ley de Enjuiciamiento Civil 1/2000) equivale a sujetarse en su ejercicio a
los imperativos éticos exigidos por la conciencia social y jurídica de un momento histórico determinado,
imperativo inmanente en el ordenamiento positivo (Sentencias 4 marzo 1.985, 5 julio 1.989, 6 junio 1.991).
Implica la necesidad de tomar en cuenta los valores éticos de la honradez y la lealtad (Sentencias 21 septiembre
de 1987, 8 marzo 1991, 11 mayo 1992, 29 febrero 2000), es decir los imperativos éticos que la conciencia social
exige (Sentencia 11 mayo 1.988). […] Y finalmente, la alusión al art. 1.961 carece de razón de ser porque no se
da ningún planteamiento de prescripción extintiva en el caso, a lo que solo cabe añadir (a los meros efectos
dialécticos) que es numerosa la jurisprudencia de esta Sala sobre el retraso desleal o ejercicio tardío desleal
como conducta contraria a la buena fe (entre otras, sentencias de 21 mayo 1.982, 6 junio 1.992 y 4 julio 1.997).
[…]
196
Assim, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a
possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e,
evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique no final da respectiva
audiência, ou no prazo de argüição da irregularidade, se existiu alguma deficiência.
E nem sequer se argumente com razões gongóricas de impossibilidade burocrática
uma vez que realizada a respectiva dilincia impende sobre o tribunal que efectuou
o registro a obrigação de facultarpia no prazo máximo de oito dias após a
realização daquele-artigo 7º do citado D.L.”
117
“2.2. [...] É que sobre as partes faz a lei impender o dever de cooperação,
prescrevendo o artigo 266º do CPC que "na condução e intervenção no processo,
devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre
si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do
litígio".
A consagração expressa do dever de boa processual (artigo 266º-A), apresenta-se
como reflexo e corolário desse princípio da cooperação.
Boa não observada nos presentes autos, revelando-se fundada a condenação dos
réus.”
118
“O recurso integrará um abuso do direito de acção quando se recorra apenas por se
recorrer sabendo-se que assim se atrasa a definição do problema. Nesse caso o abuso
integrará, ainda, a por se estar a fazer uso manifestamente reprovável de um
meio processual e a entorpecer a justiça.”
119
“Quando o titular de um direito se deixou cair em uma longa inércia sem proceder
ao respectivo exercício, de modo susceptível de criar na contraparte a convicção de
que a posição jurídica substantiva se encontra consolidada, nela tendo investido a
confiança, as suas expectativas e o seu capital, é ilegítimo e abusivo o exercício do
direito, que, por isso, o deve ser reconhecido, independentemente da consciência
abusiva. Litiga de nos termos do artigo 456º/2 e 3 do Código de Processo
Civil, aquele que deduz pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, ou altera
conscientemente a verdade dos factos, fazendo um uso manifestamente reprovável
do processo, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, de entorpecer a aão da
justiça, ou de impedir a descoberta da verdade. A litigância de má pressupõe a
parte tenha procedido com intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico).
120
“As reclamações e outros meios previstos na lei processual, embora não tipificados
como incidentes, podem ser tributados se qualificados como abuso processual.
Assim, a argüição de nulidades da decisão recorrida, que deve ser apreciada pelo
tribunal a quo pode ser tributada como incidente quando se traduzir em abuso
processual ou expediente dilatório.
121
À vista do exposto, conclui-se que o riquíssimo conteúdo da boa-fé objetiva no campo
processual transcende as fronteiras territoriais, numa clara demonstração que a justa
117
STJ: Process nº 06P1934 Relator Santos Cabral Data do acórdão: 13/09/2006,
118
STJ: Processo nº 02A2185, Relator: Ferreira Ramos , Data do Acórdão: 15/10/2002.
119
STJ: Data do acórdão: 21/09/1993, Relator Costa Raposo. apud ALBUQUERQUE, Pedro.
Responsabilidade processual por litigância de fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude
de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 78.
120
STJ: Data do ardão: 01/06/2001, Relator Ferreira de Almeida. apud ALBUQUERQUE, Pedro.
Responsabilidade processual por litigância de fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude
de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 78.
121
RP: Data do acórdão: 30/04/2001, Relator Fonseca Ramos. apud ALBUQUERQUE, Pedro.
Responsabilidade processual por litigância de fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude
de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 78.
197
encontra-se comprometida com os valores ético-jurídicos evidenciando o apogeu do
paradigma da concreção jurídica a descortinar a jurisprudência como fonte do direito.
198
Capítulo VII - A Boa-Fé Objetiva na Jurisprudência Brasileira: Tentativa de
Visualização de um Modelo
Sumário: 7.1. O Trabalho da Jurisprudência na “Concreção Jurídica” da Boa-Fé Objetiva
7.2. As Manifestações da Boa-Fé Objetiva nas Figuras: Supressio, Surrectio, Tu Quoque e
Venire Contra Factum Proprium 7.2.1. Supressio e Surrectio 7.2.2. A Proibição de
Consubstanciar Dolosamente Posições Processuais – Tu Quoque – 7.2.3. Venire Contra
Factum Proprium – 7.3. A Preclusão Lógica e a Boa-Fé Objetiva.
7.1. O Trabalho da Jurisprudência na “Concreção Jurídica” da Boa-Fé Objetiva
O papel criador da jurisprudência, muita vezes negado sob o assombro da discricionariedade,
torna-se cada vez mais necessário e acentuado nas sociedades contemporâneas [...] como
fator de adaptação do direito às profundas transformações da nossa realidade social.
1
A superação da iia do direito codificado, com a introdução das cláusulas gerais, traz ínsita a
necessidade da concreção jurídica, visto que a interpretação axiotica não se torna
possível.
Nesse contexto, o juiz é instado a desenvolver um trabalho de criação
2
à luz do caso concreto
frente à variedade ou à amplitude dos potenciais conteúdos que podem advir do
preenchimento das cláusulas gerais. Conforme anotado por Judith Martins-Costa “atuando aí
as cláusulas gerais como elemento ao mesmo tempo unificador e vivificador dos
ordenamentos.”
3
1
CAPPELLETTI, Mauro. Juizes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris. 1993, reimpressão, 1999, p. 7.
2
Conforme ressaltado por Mauro Cappelletti, Jeremy Benthan utilizou, há mais de um século e meio, a
expressão direito judiciário (‘judiciary law’) para expressar que no ordenamento inglês o juiz não apenas
declarava o direito o existente, mas era, na realidade, o “criador do direito”. CAPPELLETTI, Mauro. Juizes
legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris. 1993,
reimpressão, 1999, pp. 17-18.
3
MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. Revista dos
Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 680. jun. 1992, p. 54.
199
Com o superamento do positivismo, “há uma viragem metodológica no campo da
interpretação jurídica, passando-se do ‘paradigma da aplicação’ para o paradigma da
construção jurisprudencial.
4, 5
A subsuão [...] é, via de regra, meio apto para a interpretação das normas que encerram
tipos fechados, estanques, compostos por estatuições diretas, que não demandem qualquer, ou
quase nenhuma, integração valorativa.”
6
“A revolta contra o formalismo é apontada por Cappelletti como uma das causas da
crescente e inevitável criação do direito pelos tribunais. “Em todas as suas expreses, o
formalismo tendia a acentuar o elemento da lógica pura e mecânica no processo
jurisdicional.” A nova concepção do Estado, abarcando as mais diversas áreas a intervir
impunha uma nova abordagem do direito legislado por meio de técnicas que permitissem a
constante aderência dos catálogos normativos à realidade social.
7
A mudança de perspectiva implica o abandono do raciocínio lógico-subsuntivo para
sobrelevar o pensamento sistemático, no qual, sem soluções pré-elaboradas, apresenta
induvidosa necessidade de criação do direito. Essa mudança paradigmática, conforme
ressaltado por Francisco Amaral, importa o superamento “do paradigma da aplicação, próprio
4
AMARAL, Francisco. O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma
da aplicação ao paradigma judicativo-decirio. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. v. 32. n. 100. p.
120.
5
“O primeiro paradigma do direito posterior à Revolução Francesa se baseava inteiramente na lei e na segurança
da lei – naquela idéia de que a lei deve ser universal, geral, prever tudo com precisão e ser, tanto quanto possível,
completa. O papel do Juiz nesse paradigma era o de um autômato. É o famoso juiz ‘boca da lei’, la bouche de la
loi, na linguagem de Montesquieu. Esse paradigma, no começo do século XX foi alterado, foi substituído pelo
segundo paradigma, que hoje alguns estão chamando de ‘sistema aberto’. Nesse sistema, o ponto central deixou
de ser a lei e passou a ser o Juiz. Para isso, o direito passou a utilizar conceitos jurídicos indeterminados e
cláusulas gerais, que são ‘nões-quadros’, nas quais o juiz tem maior liberdade de decisão. AZEVEDO,
Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto do Código Civil na questão da
boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais. ano 89, v. 775. São Paulo: Revista dos Tribunais. maio de
2000, p. 11. Entretanto, na concepção formulada por Junqueira, “[...] O paradigma, que antes era o da lei, passou
a ser o do juiz e, agora, é o da solução rápida do caso concreto. Hoje, estamos fugindo do juiz. Essa fuga não é
um problema do judiciário; ele deve decidir o que é da sua missão, da sua vocação, que é o conflito real, o ‘caso
difícil’, que exige ponderação. Mas o juiz é um julgador e, quando não necessidade de julgador, não é preciso
o juiz. Nesse sentido há uma fuga do juiz.” Idem, p. 16.
6
MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista da
AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. ano XXXIII. n. 103. set.-2006, p. 78.
7
CAPPELLETTI, Mauro. Juizes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris. 1993, reimpressão, 1999, p. 31-34, passim.
200
do normativismo-positivista sempre cultivado, para uma outra perspectiva, a do paradigma
jurisprudencialista [...].”
8
As cláusulas gerais, dada a sua vagueza e fluidez de conteúdo, são normas que demandam a
construção e a especificação do seu conteúdo pelo trabalho laborioso do jurista diante do caso
concreto.
A boa-fé objetiva situa-se nesse espectro, sendo certo que somente na análise das
particularidades da situação que está a reclamar o deslinde é que o juiz poderá desenvolver
um trabalho de conjugação pico-sistemático para construir a solução que reflita perfeita
adaptabilidade da ordem jurídica aos valores imperantes na sociedade.
Ao tratar do standard ético traçado pelo princípio da boa-fé Diez-Picazo deixa claro que o
se trata de “uma ética material-normativa, de validade universal e de caráter atemporal
9
.
[…] a definição desta ética não é um assunto das convicções ou concepções imperantes ou
generalizantes de uma comunidade histórica. É um assunto da classe ou do estamento dos
juristas como únicos intérpretes possíveis. É uma ética jurídica.”
10, 11
Nesse diapasão Menezes Cordeiro assegura que “a boa- objetiva é entendida como do
domínio do direito jurisprudencial: o seu conteúdo adviria não da lei, mas da sua aplicação
pelo juiz.”
12
A concreção da boa-fé, ou suas manifestações, advém das ‘máximas da arte jurisprudencial’,
isto é, dos modelos jurídicos criados por meio das decisões judiciais na análise individual e
particular de cada caso levado à apreciação jurisdicional.
13
Destarte, a atuação jurisprudencial
8
AMARAL, Francisco. O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma
da aplicação ao paradigma judicativo-decirio. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. v. 32. n. 100. p.
137.
9
DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose
Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 15
10
Ibidem, p. 15.
11
No original: “[…] la definición de esta ética no es un asunto de las convicciones o concepciones imperantes o
generalizadas en una comunidad histórica. Es un asunto de la clase o del estamento de los juristas, como únicos
intérpretes posibles. Es una ética jurídica.
12
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 43.
13
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 44 e 47, passim.
201
manterá o conteúdo da boa-fé sempre atualizado sem que seja necessária qualquer alteração
legislativa.
Aldemiro Rezende Dantas Júnior observa:
[...] a boa-fé é buscada em virtude da determinação legal, mas o seu conteúdo o
está [...] nem poderia estar na lei, mas sim, na própria decisão judicial, que deverá
buscar-lhe o melhor preenchimento para as circunstâncias do caso concreto, em
exame. Em outras palavras, a compreensão da boa-fé objetiva decorre muito mais da
atividade jurisprudencial do que da análise teórico-doutrinária dos textos legais.
É evidente que, com a evolução da jurisprudência, torna-se possível que os estudos
se encaminhem para uma sistematização da matéria, o que facilita sobremaneira a
análise dos casos futuros, que se torna cada vez mais segura, uma vez que, em sua
maioria, tais casos tenderão a ser enquadrados nas situações organizadas de modo
científico. [...]
[...] no entanto, não se pode perder de vista que as decisões judiciais jamais se
consolidarão até o ponto de esgotar todas as novas hipóteses que poderão surgir,
vale dizer, sempre surgirão situações que aentão não haviam sido abordadas, com
nuances e características próprias, o que faz com o estudo de fenômenos como o da
boa-fé esteja em evolução permanente e contínua, sempre havendo espaço para
novas construções e, ao mesmo tempo, sempre havendo uma necessária e
insuperável indefinição conceitual.
14, 15
Diez-Picazo apresenta a idéia do princípio da boa como uma via de introdução de um
Direito Judicial, que supõe um desvio ou uma ruptura com o direito legislado.
16
Segundo Esser, a boa-fé “não representa nenhuma regra de direito legislado, mas pontos de
partida para a formação concreta de normas jurídicas. Os comentários dizem a verdade: que a
norma aqui não é encontrada interpretativamente através do princípio, mas sim obtida por
síntese judicial.”
17
Trata-se de um trabalho engenhoso realizado pelos tribunais, que é o de construir um
arcabouço normativo a partir da concretização das cláusulas gerais, tais quais a boa-
objetiva que, para a aplicação no caso concreto sob análise, tem como ponto de partida as
soluções formuladas em casos anteriormente decididos.
14
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá.
2007, pp. 37-38.
15
Essa organização científica do conteúdo da boa-fé a que se refere o Autor enquadra-se na concepção da
“construção dos modelos jurídicos jurisprudenciais” concebida por Miguel Reale. É importante ressaltar que a
dinamicidade na construção jurisprudencial do conteúdo da boa-fé objetiva é refletida no que Reale define como
“vida e morte dos modelos jurídicos.”
16
DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose
Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 17.
17
ESSER, Grundsatz u. Norm cit., 150-151 apud MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa
fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 43. nota de rodapé 69.
202
Nesse sentido, as cláusulas gerais rompem “o dogma da separação dos poderes estatais, que
interdita ao Judiciário atuar, em regra, como legislador positivo”
18
. “O alcance para além do
caso concreto ocorre porque, pela reiteração dos casos e pela reafirmação, no tempo, da ratio
decidendi dos julgados, se especificará não o sentido da cláusula geral mas a exata
dimensão da sua normatividade. Nessa perspectiva o juiz é, efetivamente, a boca da lei não
porque reproduza, como um ventríloquo, a fala do legislador, como gostaria a Escola da
Exegese mas porque atribui a sua voz à dicção legislativa, tornando-a, enfim e então,
audível em todo o seu múltiplo e variável alcance.”
19
Menezes Cordeiro adverte que a boa-fé objetiva não comporta uma interpretação-aplicação
clássica subordinada a um simples processo subsuntivo.
20
Nessa esteira, Diez-Picazo destaca
a necessidade de dotar de unidade ou homogeneidade o direito que irrompe por meio do
princípio da boa-, obriga por uma parte um trabalho da doutrina, que é um trabalho de
classificação e de tipificação das linhas de atuação da jurisprudência e que exige, também, um
trabalho de uniformidade dos critérios de onde dimana esse direito que advém do trabalho
jurisprudencial.
21, 22
Aliado a essa idéia, De Los Mozos destaca que a aplicação da boa-fé remete a um processo
valorativo “análogo ao que tem lugar na criação do Direito, e que comporta a função criadora
do jurista.
23
Na aplicação da boa-fé objetiva, “deve-se levar em consideração os fatores do caso concreto,
tais como status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica
do standard, de tipo meramente subsuntivo.
24
18
STJ: AgRg no MANDADO DE SEGURANÇA 13.505 - DF (2008/0082984-5), Relator Min.Napoleão
Nunes Maia Filho, DJ 22.04.2008,
19
HENRIQUES FILHO, Ruy Alves. As cusulas gerais no processo civil. Revista de Processo. São Paulo:
Revista dos Tribunais. ano 33. jan. 2008, p. 345.
20
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 42.
21
DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose
Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 17-18.
22
No original: “La necesidad de dotar de unidad u homogeneidad al Derecho judicial que irrumpe por la vía del
principio de la buena fe, obliga por un parte a una labor doctrinal, que es una labor de clasificación y de
tipificación de las líneas de actuación de la jurisprudencia, que en el libro se lleva a cabo muy adecuadamente,
y exige también una labor de uniformidad en los criterios (creencias, convicciones etc.) de donde dimana ese
Derecho judicial.”
23
DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 17.
203
Para Menezes Cordeiro “[...] A boa-fé objetiva, embora jurídica, parece escapar à lei. Na fase
anterior à formão de um direito jurisprudencial seguro, ela implica uma atividade judicante
que, sem mediações normativas, deixa face a face o sistema global e o caso a resolver. E
como o Direito jurisprudencial, a formar-se, é sempre parcelar, deixando, em crescimento
permanente, áreas por cobrir, o fenômeno se mantém.
25
O significado da boa-fé tem caráter essencialmente tópico, porque seu conteúdo se nutre da
pica pelo intérprete no processo de aplicação do direito, que se desenvolve no caso
concreto, sendo o problema, e não o sistema, o centro do pensamento jurídico. Torna-se
impossível estabelecer um conceito geral da boa-fé, visto que da mesma emana uma série de
orientações que, em cada caso, tem-se uma conotação distinta de acordo com as normas e com
as instituições com as quais se relaciona.
26
A importância da jurisprudência para a concreção da cláusula geral da boa-fé é destacada por
Larenz nos seguintes termos:
A densidade da jurisprudência em torno do §242 BGB é inabarcável. Basta para
convencer-se olhar a qualquer comentário do Código Civil. [...] No entanto, faz-se
necesrio verificar o problema de como tem avançado a jurisprudência da
concreção de uma ‘cláusula geral’ o amplamente concebida e como continua
avançando. Para isso há que sublinhar duas coisas: a cláusula geral o é uma
‘fórmula vazia’, na qual cada um pode introduzir o que nesse momento lhe venha
na mente. Tem um conteúdo, ainda que o esteja precisamente delimitada e não
possua uma definição. numerosas constelações de casos nos quais todos diriam
que uma conduta nas circunstâncias dadas é inconciliável com a boa-. [...] Por
outro lado: cabalmente porque não há uma definição, não se pode levar a cabo uma
subsunção. A boa-fé não é um conceito, mas um princípio, formulado como a
forma exterior de uma regra de direito, que não é adequado para que se realize uma
aplicação imediata em cada caso particular, porque necessita de uma concreção. A
concreção se realiza, como sabemos, passo a passo, e para isso alguns fatores de
orientação que servem como elos e são necessárias valorações adicionais que, no
entanto, se tem que manter dentro do marco previamente estabelecido. A um desses
fatores de orientação a própria lei invoca: os usos do tráfico.
27, 28
24
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 411.
25
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 43.
26
DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil
Español. Barcelona: Bosch. 1965, pp. 20-21.
27
No Original:mediante la invocación de la buena fe pude considerarse inadmisible el ejercicio de un derecho
(por ejemplo, la excepción de prescripción) por existir una ‘conducta contradictoria’, cuando el ejercicio del
derecho es contradictorio con el anterior comportamiento del interesado (es llamado venire contra factum
proprium) y la otra parte se ha adaptado al sentido de ese comportamiento anterior. Aquí, es de nuevo muy
clara la conexión con el principio de la confianza.
El grosor de la jurisprudencia en torno al §242 BGB es inabarcable. Basta para convencerse echar una ojeada
a cualquier comentario del Código Civil. […] Sin embargo, hay que plantear el problema de como ha avanzado
204
Para Wieacker: “Na medida em que da aplicação que da norma se faz na decisão judicial -
considerada como a realização daquela eleição - contém elementos volitivos ao lado do ato de
juízo lógico, cada decisão constitui um elemento de uma nova criação do direito, que é dizer,
em determinada maneira - e também em nosso continente law in making (construir a
norma). E é tanto mais assim quanto mais indeterminada seja a prescrão do legislador. […]
Conseqüentemente, a aplicação de uma cláusula geral - isto é, toda a sentença baseada no
parágrafo 242 - contribui para criação do direito futuro, da mesma maneira que cada batida da
agulha à formação do tecido: traça uma linha cujo sentido não pode ser estabelecido
previamente.”
29, 30
Clóvis do Couto e Silva observa “as cláusulas gerais liberam os legisladores e atribuem a
faculdade de especificar ou individualizar o seu conteúdo aos juízes, para que restabeleça,
com o tempo, o processo através do qual do ‘Direito do Caso’ chega-se à formulação de
‘normas novas’, extraindo-se dele as ratione decidendi.”
31
Concorrem nesse sentido as lições de Wieacker: “[...] O problema fundamental de uma
cláusula geral como a do parágrafo 242 concerne à relação do juiz com o Direito escrito.
la jurisprudencia en la concreción de una ‘cláusula general tan ampliamente concebida y cómo continúa
avanzando. Para ello hay que subrayar dos cosas. Primero: la cláusula general no es una ‘fórmula vacia’, en la
cual cada uno pueda introducir lo que en ese momento le venga en gana. Tiene un contenido, aunque no esté
precisamente perfilada y no posea la forma de una definición. Hay numerosas constelaciones de casos en los
cuales todos dirían ahora mismo que una conducta en las circunstancias dadas es inconciliable con la buena fe.
[…] Por otra parte: cabalmente porque no hay una definición, no se pueda llevar a cabo una subsunción. La
buena fe no es un concepto, sino un principio, formulado con la forma exterior de una regla de derecho, que no
es adecuado para que se realice una aplicación inmediata en cada caso particular, porque está necesitado de
concreción. La concreción se realiza, como sabemos, paso a paso, y para ello hay algunos factores de
orientación que sirven como eslabones y son necesarias valoraciones adicionales que, sin embargo, se tienen
que mantener dentro del marco previamente establecido. A uno de estos factores de orientación lo invoca la
misma ley: los usos del tráfico.
28
LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução e Apresentação de Luiz Diez-Picazo.
Madri: Civitas. 2001, p. 97.
29
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 39-40.
30
No original: “En la medida en que la aplicación que de la norma se hace en la decisión judicial – considerada
como realización de aquella elección contiene elementos volitivos al lado del acto de juicio lógico, cada
decisión constituye un elemento de una nueva creación de Derecho, es decir, en cierto modo y también en
nuestro Continente – ‘law in making’. Y ello es tanto más así cuanto más indeterminada sea la prescripción del
legislador. [] Por esta razón, la aplicación de una cláusula general - esto es, toda sentencia basada en el
parágrafo 242 – contribuye a la creación del Derecho futuro, de la misma manera que cada golpe de aguja a la
formación del tejido: traza una línea cuya dirección no puede establecerse previamente.”
31
COUTO E SILVA, Clóvis. O prinpio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil
brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p.
66.
205
Conseqüentemente, a classificação do material deve fundar-se na relação correspondente entre
a aplicação do direito baseada no parágrafo 242 e o restante da regulação legal.”
32, 33
Ao tratar do parágrafo 242 comoconcreção de um plano legal de ordenação (officium
iudicis)” Wieacker destaca que [...] o parágrafo 242 é simplesmente a via para uma adequada
realização pelo juiz do plano de valoração do legislador”.
34
Clóvis do Couto e Silva ressalta que, a concepção da boa-fé objetiva veiculada no parágrafo
242 do digo Civil alemão o foi, originalmente, de conferir ao juiz os extraordinários
poderes de criação jurisprudencial. “Não se pensou de nenhum modo em atribuir ao juiz a
função fundamental de criar o direito. [...] Não era um dispositivo posto dentro do
ordenamento com a finalidade de legitimar a criação jurisprudencial, sobretudo para reduzir
os rigores da aplicação do direito estrito.”.
35
O § 242, no pensamento dos autores do digo,
veio, tão-somente, como um reforço ao §157, na interpretação dos contratos segundo a boa-fé.
Entretanto, em que pese o ter sido vislumbrada pelos legisladores a criação jurisprudencial
advinda da aplicação da boa-fé objetiva, o certo é que a boa-fé objetiva transcendeu os limites
do direito material alcançando os demais ramos de direito, rompendo com os paradigmas até
então vigentes e descortinando um novo horizonte normativo a reger a relações
intersubjetivas.
A operacionalização da boa-fé objetiva por meio dos tribunais permitiu o estabelecimento do
paradigma da concreção jurídica” atribuindo aos magistrados o papel inovador de criar o
direito.
Esse processo de criação é sintetizado por Wieacker ao perceber a tensão existente entre a
estrutura normativa legal do direito escrito e a aplicação judicial do direito baseado nas
32
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 50.
33
No original: El problema fundamental de una cláusula general como la del parágrafo 242 concierne a la
relación del juez con el Derecho escrito. Por consiguiente, la clasificación del material debe fundarse en la
correspondiente relación entre la aplicación del Derecho basada en el parágrafo 242 y el resto de la regulación
legal.
34
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 52.
35
COUTO E SILVA, Clóvis. O prinpio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil
brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, pp.
46 e 47.
206
cláusulas gerais tal como a da boa-fé objetiva. Conforme observado pelo Autor, esse
processo de criação pode ser sintetizado nos seguintes termos:
“[…]a tensão entre a estrutura normativa legal e a aplicação judicial do direito
também ocorre em nosso caso e faz necessária uma classificação similar:
a) O juiz atua no cumprimento estrito do ordenamento jurídico escrito e em virtude
de seu do officium iudicis’ se limita a concretizar o projeto previamente
estabelecido e idealizado na regulação legal.
b) O juiz atua com maior liberdade e praeter legem”, quando exige às partes que
no exercício ou na defesa de seus direitos se comportem de maneira justa. […]
c) Finalmente, a aplicação do §242 se realiza contra legem, por meio da ruptura
que a jurisprudência empreende tanto em um novo direito judicial, de que vai além
da realização de um projeto legislativo, como da salvaguarda do direito e da justiça
no comportamento concreto das partes.”
36, 37
Nesse passo, sobreleva o estudo dos precedentes jurisprudenciais quer como fonte de direito,
quer para analisar a coerência com o ordenamento, mas, mais do que isso, deve servir como
“substrato a partir da qual se constrói ou se reconstrói a teoria afirmada”
38
. “É importante
frisar que toda decisão judicial encerra uma operação complexa de raciocínio, não podendo
ser considerada como um fim último, mas, sim, como um destacado elemento no processo
contínuo de resolver pendências no foro do direito. O Judiciário não se presta exclusivamente
para decidir conflitos concretos, mais ainda deve cuidar para que as suas decisões possam
servir de orientação para casos futuros”.
39
Deve-se ter presente que as normas que contêm cusulas gerais, por serem dotadas de uma
vagueza semântica que lhes é ínsita, permite ao intérprete utilizá-las nos mais variados e
imprevistos casos, com variadas interpretações, fazendo com que essas normas jurídicas se
mantenham sempre atuais correspondendo aos anseios da sociedade durante vários momentos
históricos.
36
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 51.
37
No original: […] Con todo, la tensión entre la estructura normativa legal y la aplicación judicial del
Derecho se da también en nuestro caso y hace necesaria una clasificación semejante:
a) El juez actúa en cumplimiento estricto del ordenamiento jurídico escrito y en virtud de su ‘officium iudicis’ se
limita a concretar el proyecto previamente establecido y planificado en la regulación legal.
b) El juez actúa con mayor libertad y ‘praeter legem’, cuando exige a las partes que en ele ejercicio o defensa
de sus derechos se comporten de manera justa. […]
c) Finalmente, la aplicación del 242 se realiza ‘contra legem’, mediante la ruptura que la jurisprudencia
acomete hacia un nuevo Derecho judicial, que va más allá, tanto de la realización de un proyecto legislativo
como de la salvaguardia del Derecho e la justicia en el comportamiento concreto de las partes.
38
PENTEADO, Luciano de Camargo. Figuras parcelares da Boa-fé objetiva e venire contra factum proprium.
Revista de direito privado, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 252-278, 2006,
39
CRUZ E TUCCI, José Rogério, Precedente judicial como fonte do direito, São Paulo, RT, 2004, p. 25.
207
Dessa maneira, um dispositivo legal que prescreva que as partes devem respeitar a boa-fé no
curso da relação processual seguramente se manterá atual por séculos, pois o que variaao
longo do tempo será apenas o significado a ser atribuído à boa-fé.
A boa-fé objetiva apresenta-se como verdadeira pauta orientadora da aplicação e da criação
do direitoocupando “renovado interesse na temática metodológica da realização das normas
jurídicas como atividade institucional de decisão dos problemas jurídicos”. “A discussão
metodológica atual enfatiza a busca da solução justa para o caso concreto, ressaltando a
importância dos valores, princípios, conceitos indeterminados e cláusulas gerais na aplicação
e na realização do direito.” Aí é que está a importância da atividade jurisprudencial na
transformação da cláusula geral da boa-fé em proposição jurídica positiva cujo conteúdo é
construído e reconstruído diante das diversas manifestações dos casos concretos.
40
7.2. As Manifestações da Boa-Fé Objetiva nas Figuras: Supressio, Surrectio, Tu Quoque e
Venire Contra Factum Proprium.
7.2.1. Supressio e Surrectio
Como manifestação típica do abuso do direito, a supressio importa a impossibilidade de não
mais poder ser exercida uma posição jurídica em razão de certas circunstâncias e por já ter
transcorrido certo lapso temporal, e por contrariar a boa fé.
41
Supressio é a expressão proposta para traduzir Verwirkung, isto é, a situação em que incorre
a pessoa que, tendo suscitado noutra, por força de um o-exercício prolongado, a confiança
de que a posição em causa não seria actuada, não pode mais fazê-lo, por imposão da boa-fé.
A sua aceitação no Processo é pacífica, levantando apenas dúvidas quando, através dela, se
tente flexibilizar a presença dos prazos rígidos, típicos do direito não-adjectivo. A
problemática real escondida pela supressio o aconselha uma transposão simples do
Direito Civil para o processo, neste domínio.
42
40
AMARAL, Francisco. A boa-fé no processo romano. Revista Jurídica. vol. 1 n. 1. Rio de Janeiro: Faculdade
de Direito da UFRJ, 1995, pp. 33 e 35.
41
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 56.
42
Idem, Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 378. nota de rodapé nº 443.
208
Caracteriza-se a supressio o não exercício de um direito por um determinado lapso de tempo,
situação na qual esse direito não mais pode ser exercido, pois, do contrário, frustraria a
confiança da contraparte violando a boa-fé. Seria “uma demora desleal no exercício de um
direito.”
43
No campo processual, conforme assinalado por Menezes Cordeiro, a aplicação da supressio é
limitada em razão das rígidas disposições sobre os prazos processuais, sendo que, o exercício
do direito, extemporaneamente, é alcançado pela preclusão ante a dinamicidade do caminhar
do processo.
44
Segundo Menezes Cordeiro, a utilização da supressio como dispositivo destinado a
complementar as regulações legais sobre a influência do tempo nas relações jurídicas foi
preconizada por Jünger Schmidt.
45
No Tribunal do Rio Grande do Sul restou configurada a surrectio em ão de prestação de
alimentos. Ajuizada ação de alimentos do neto em face do avô, a mesma foi julgada
procedente. Em sede de apelação, a sentença foi reformada desonerando o avô da prestação de
alimentos. Entretanto, mesmo com decisão favorável, por meio de embargos de declaração o
avô renunciou à exoneração obtida judicialmente afirmando que não fora assistido por
advogado e que não seria sua a assinatura. No julgamento dos embargos, o Desembargador-
Relator afirmou que a sentença já havia transitado em julgado, entretanto havendo interesse, o
avô poderia entabular um acordo e submetê-lo à homologação judicial.
O fato é que o avô continuou prestando alimentos por um período de vinte meses, quando,
então, aviou ação de exoneração de prestação de alimentos, tendo o processo sido extinto sem
julgamento do mérito, por entender que, no julgamento dos embargos já havia sido exonerada
a prestação da pensão e que, portanto, faltava interesse processual ao autor. Contudo, por
economia processual, autorizou que fosse determinado ao óro pagador o cancelamento do
desconto em folha da pensão alimentícia.
43
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 779.
44
Ibidem, p. 803. nota de rodapé nº 571.
45
Ibidem, p. 816.
209
Essa sentença foi objeto de apelação interposta pelo neto. O apelado (o avô), em contra-
razões, alegou que havia sido exonerado da prestação de alimentos quando do julgamento dos
embargos infringentes (da outra ação).
No julgamento dessa apelação, verificou o Tribunal que estava diante de uma situação fática
(a prestação de alimentos perdurou por mais vinte meses, com desconto em folha) e de uma
situação jurídica (provimento judicial exonerando a prestação alimentar). A situação jurídica
transitou em julgado em 12.2001, a ação de exoneração da prestação alimentícia foi proposta
em 08.2003.
Ademais, o Tribunal ressaltou que a renúncia do avô foi expressa nos seguintes termos
Declaro, para os devidos fins de direito, que renuncio aos direitos emanados da decisão
exarada em sede de embargos Infringentes (processo nº. 70003114832), comprometendo-se a
continuar pensionando o meu neto PATRICK H. A., conforme estabelecido na sentença.”
À vista das situações de fato e jurídica, o Tribunal entendeu que, após a decisão na ação de
prestação de alimentos, que transitou em julgado, foi criada uma nova relação jurídica,
distinta da anterior, concluindo pela presea da surrectio, nos seguintes termos:
“A surrectio expressa a circunstância do surgimento, de forma complementar ao
direito legislado, contratado ou judicial, de um direito não existente antes (em
termos jurídicos). Direito este que, na efetividade social, vinha sendo
considerado como presente.
[...]
Para haver surrectio, o que se requer, portanto, é uma previsão de confiança, pois a
repetição sistemática, constante e continuada de um determinado comportamento
cria direito, de modo a imputar ao prejudicado a boa-fé subjetiva do beneficiário.
Direito esse que se consubstancia na expectativa, a ser mantida pelo menos como
probabilidade, da regularidade e continuidade da situação fática subjacente, ou, por
outro lado, da ausência de qualquer outra solução ou resolução diferente.
Essa é exatamente a situação dos autos.
Por fim, o apelado sequer trouxe na sua inicial explicação acerca da permanência
do pensionamento, mesmo passado 1 (um) ano e meio da exoneração. Bem de ver
ainda que poderia ter simplesmente requerido o cancelamento do desconto nos
próprios autos da ação de alimentos.
O fato do apelado não ter requerido nos autos da ação de alimentos a cessação dos
descontos reforça a idéia de que criou-se uma nova obrigação, decorrente de uma
nova relação jurídica baseada na boa-fé objetiva, que deve nortear os contatos
sociais da vida de relação.
Essa nova relação deve ser enfrentada pelo juiz a quo, examinando o trinômio
alimentar, trazido pelo próprio apelado na inicial.
Assim, o feito comporta julgamento de mérito, com o exame do trinômio alimentar
(necessidade, possibilidade e proporcionalidade).
210
Destarte, foi dado provimento à apelação para desconstituir a sentença.
Na concepção de Schmidt, as regras codificadas quanto ao influxo da efectividade sobre a
regulação jurídica constituem, até pela sua diversidade, leges speciales. Sobre elas, como
complementação do Direito legislado, ergue-se a lex generalis, suscetível de revestir dois
aspectos: ora faz desaparecer um direito que não corresponda à efectividade social é a
supressio ora faz surgir um direito não existente antes, juridicamente, mas que, na
efectividade social, era tido como presente – é a surrectio.
46
A supressio e a surrectio, conforme observado por Schmidt, são figuras diretamente ligadas à
repercussão do tempo nas situações jurídicas.”
No que tange à surrectio, para que a mesma reste configurada “[...] exige-se um certo lapso de
tempo, por excelência variável, durante o qual se actua uma situação jurídica em tudo
semelhante ao direito subjectivo que vai surgir; requer-se uma conjunção objectiva de factores
que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito; impõe-se a ausência de
previsões negativas que impeçam a surrectio.”
47
Para Diez-Picazo a figura da supressio é caracterizada como ‘atraso desleal’:
“Segundo tem estabelecido a doutrina e a jurisprudência alemãs, um direito
subjetivo ou uma pretensão não pode ser exercitada quando o titular não não se
preocupou durante muito tempo de fazer valer esse direito ou essa pretensão, mas
que, inclusive, deu lugar com sua atitude omissiva a que o adversário de pretensão
pudesse esperar, objetivamente, que o direito não mais seria exercitado. O exercício
do direito em tais casos se torna inadmissível. Três são os elementos da figura que
examinamos: a omissão no exercício do direito, o transcurso de um período de
tempo e a objetiva deslealdade e intolerabilidade do posterior exercício atrasado.”
48,
49
46
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 816.
47
Ibidem, pp. 821-822.
48
DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose
Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 21-22
49
No original: “[] El retraso desleal. Según han establecido la doctrina y la jurisprudencia alemanas un
derecho subjetivo o una pretensión no puede ejercitarse cuando el titular no sólo no se ha preocupado durante
mucho tiempo de hacerlos valer, sino que incluso ha dado lugar con su actitud omisiva a que el adversario de la
pretensión pueda esperar objetivamente que el derecho ya no se ejercitará. El ejercicio del derecho en tales
casos se torna inadmisible. Tres son los elementos de la figura que examinamos: la omisión del ejercicio del
derecho; el transcurso de un periodo de tiempo y la objetiva deslealtad e intolerabilidad del posterior ejercicio
retrasado.
211
Conforme ressaltado por Menezes Cordeiro, a supressio não se confunde com caducidade,
decadência, preclusão, pois esses institutos assumem outros significados técnicos que
traduzem efeitos e não causas.
50
7.2.2. A Proibição de Consubstanciar Dolosamente Posições Processuais – Tu Quoque
Menezes Cordeiro aponta que a Proibição de Consubstanciar Dolosamente Posições
Processuais “tem sido aprofundada no Direito civil em torno da locução tu quoque e que se
trata de uma via que poderia ser aproveitada com mérito no processo.”
51
Tal regra é aflorada quando uma “pessoa viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso,
exercer situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído.
52
Uma pessoa que
desrespeita uma orientação ou um comando não pode, a seguir, exigir que outro venha
observá-la. Conforme observado por Menezes Cordeiro, a contradição não está no
comportamento, mas no padrão ou ‘bitolas’ utilizadas no julgamento de si mesmo e de
outros.
53
No Código Civil, em matéria contratual, o tu quoque encontra-se expressamente previsto no
art. 476 do CCB, que estabelece a exceptio non adimpleti contractus, ou exceção de contrato
o cumprido. A disciplina veiculada no aludido dispositivo é que uma parte que não cumpriu
com a sua obrigação não pode exigir que a outra cumpra.
Wieacker ao tratar da figura do tu quoque ressalta que:
[...] somente a fidelidade jurídica pode exigir fidelidade jurídica. [...] O tu quoque
impede que a outra parte, especialmente na defesa, recorra a normas jurídicas que
ela mesma não cumpriu. A exceção de aquisição de um direito de má-fé tem seu
50
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 56.
51
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 377. final da nota de rodapé 440. Exemplificando esse tipo de concretização, Menezes
Cordeiro traz à colação decisão na qual “por força de comportamento honesto no processo, derivado da
prescrição da boa - §242 BGB uma parte não pode beneficiar do não decurso de um prazo cuja notificação,
que produziria a interrupção, foi dolosamente impedida.” Idem op. cit.
52
Ibidem, p. 837. Idem, Litigância de fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra:
Almedina. 2006, p. 60.
53
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 843.
212
fundamento na conhecida ‘regra de ouro’ de tradição ética: ‘o que o queres que te
façam, o o faças a outro’. [...] Essa regra se baseia em uma lei estrutural das
comunidades jurídicas, segundo a qual, os sujeitos jurídicos criam, eles mesmos, os
critérios segundo os quais eles devem ser julgados. As comunidades jurídicas se
vêem, pois, permanentemente integradas, isto é, criadas e mantidas pela conduta de
seus membros. E determinam, portanto, o standard que um pode reclamar enquanto
sujeito jurídico. [...] Em outras palavras: a exigência de reciprocidade é um elemento
da exigência de igualdade.
54, 55
Ao analisar a figura do tu quoque Aldemiro Rezende Dantas Júnior destaca:
“[...] está ligado ao mesmo vetor axiológico que orienta o brocardo segundo o qual
ninguém será ouvido quando invocar em seu favor a própria torpeza. De modo mais
específico, se um sujeito violou uma determinada norma jurídica (que pode ser legal
ou contratual), não lhe será possível que, posteriormente, venha a pretender exercer
a mesma situação jurídica que essa norma lhe havia atribuído, pois é intuitivo que
fere de morte a ética que uma pessoa possa desrespeitar um comando normativo e,
ao depois, vir a pretender exigir que terceiros acatem esse mesmo comando por ela
desrespeitado.”
56
Conforme ressaltado pelo Autor, “a expressão significa, literalmente, algo como ‘até tu’,
indicando surpresa pelo fato de que alguém tente se beneficiar de sua própria irregularidade
no agir”
57
, reportando-se à célebre frase de Júlio César: “Tu quoque, Brutus, fili mi!”
Menezes Cordeiro observa que “o venire contra factum proprium poderia, em leitura
apressada, integrar o tu quoque.Entretanto, analisando as bases de um e de outro instituto e
ainda que se alargassem as bases do venire o Autor demonstra a impossibilidade dessa
integração: “Recorde-se que o vcfp é proibido em homenagem à proteção de confiança da
pessoa que se fiou no factum proprium. [...] Embora no tu quoque seja de valorar o que não
tem sido feito a posição da contraparte que prevarica em segundo lugar, não que lhe
inserir uma situação de confiança similar ou paralela à que informa o vcfp.”
58
54
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 66-67
55
No original: [] solamente la propia fidelidad jurídica pode exigir fidelidad jurídica. [] Un caso de
aplicación más concreto es la fórmula ‘tu quoque’, que impide a la otra parte, especialmente en la defensa,
recurrir a normas jurídicas que ella misma no cumplió.
La excepción de adquisición del derecho de mala fe tiene su fundamento en la conocida regla de oro de
tradición ética: ‘lo que tu no quieras que te hagan no se lo hagas tu a otro’. [] Esta regla se basa en una ley
estructural de las comunidades jurídicas, según la cual los sujetos jurídicos se ven, pues, permanentemente
integradas esto es, creadas e mantenidas por la conducta de sus miembros. Y determinan por tanto el
standard que uno puede reclamar en cuanto sujeto jurídico. […]
Con otras palabras: la exigencia de reciprocidad es un elemento de la exigencia de igualdad”.
56
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: 2007, p.
378.
57
Ibidem, p. 379.
58
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 843.
213
Nesse mesmo sentido, Aldemiro Rezende Dantas nior defende a impossibilidade dessa
integração das figuras do tu quoque e do venire contra factum proprium. Segundo o Autor, “a
essência do venire repousa na proteção à boa-fé, enquanto o cerne do tu quoque se encontra
na repressão à má-fé.”
59
Para melhor compreensão o Autor faz a seguinte esquematização:
“[...] as situações que levam ao venire contra factum proprium têm por escopo a
proteção à boa- do outro sujeito, ou seja, da contraparte, podendo ser assim
esquematizada: a) um dos sujeitos adotou um determinado comportamento; b) em
virtude desse comportamento, surgiu no outro uma confiança sobre qual seria o
comportamento posterior; c) esse comportamento posterior, no entanto, veio a
contrariar o primeiro, de modo a ser quebrada a confiança da contraparte; d) a
proibição ao venire, então, terá a finalidade de proteger essa confiança que foi
quebrada, e que em última análise, [...], concretiza a proteção à boa-fé.
[...]
Na figura do tu quoque, no entanto, não se mostra indispensável o surgimento dessa
confiança na contraparte, pois o que se busca reprimir é a má-fé, a malícia do sujeito
que adotou valorações diferentes para uma mesma situação jurídica.
60
A figura do tu quoque estabelece um padrão de convincia em sociedade norteado pela
observância das normas que exigem reciprocidade de todos os seus membros. Nesses termos,
todos estão sujeitos às situações jurídicas decorrentes dessas normas. Aquele que viola a
norma jurídica não pode pretender que o outro a observe. As bitolas’ de comportamento são
aplicáveis a todos, indistintamente, por veicular esse padrão ou standard jurídico.
No que tange à manifestação da boa-fé objetiva na figura do tu quoque, o STJ negou
provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança nº. 14.908/Ba no qual restou
configurado o comportamento contradirio do recorrente consistente no tu quoque.
A situação em pauta refere-se a oficial de registro de imóveis afastado de suas funções porque
teria cometido diversos crimes em razão de sua função. O acusado impetrou mandado de
segurança contra seu afastamento, sob a alegação de violação ao às garantias constitucionais
processuais, mas não obteve sucesso. Inconformado, interpôs Recurso Ordinário.
Entretanto, aquela Corte entendeu que a pretensão do recorrente “contraria a lógica jurídica e
a razoabilidade”, visto que, dentro do devido processo legal, restaram apurados indícios
veementes da prática de condutas ilegais no exercício de funções, bem como, da quebra do
sigilo bancário, por ordem judicial, foram apurados fortes indícios do cometimento dos crimes
59
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: 2007, p.
388.
60
Ibidem, p. 388.
214
a ele imputados, o que configuraria comportamento contradirio, conforme trecho da ementa:
“Alegar o recorrente que o afastamento de suas funções, bem como a devida apuração dos
fatos em face a fortes indícios de cometimento de crimes contra a administração, inclusive já
com a quebra do sigilo bancária decretada, fere a direito quido e certo, é contrariar a lógica
jurídica e a razoabilidade. A bem da verdade, essa postura do recorrente equivale a
comportamento contraditório expressão particular da teoria dos atos próprios -, sintetizado
no anexim tu quoque, reconhecido nessa corte nas relações privadas, mas incidente, também,
nos vínculos processuais, seja no âmbito administrativo ou judicial.
61
Na situação sob análise fica patente a contrariedade da conduta exigida pelo Recorrente ao
exigir a observância de normas processuais as quais ele mesmo não observou. Invocar direito
líquido e certo de permanecer no cargo é contrariar a fidelidade jurídica exigida de todos os
membros da comunidade, visto que, dentro do devido processo legal, foram apurados diversos
indícios de crimes que o mesmo teria cometido, o que redunda em clara manifestação do tu
quoque.
7.2.3. O Venire Contra Factum Proprium
No ordenamento espanhol o venire contra factum proprium encontra o seu equivalente na
Teoria dos Atos Próprios, a revelar que ninguém pode colocar-se em contradição com seus
próprios atos, exercendo conduta com outra anteriormente deliberada e juridicamente eficaz.
Derivada do princípio da boa-fé, e da exigência de observar nas relações jurídicas um
comportamento coerente, constitui um limite ao exercício de direitos subjetivos. O princípio
da boa-não tem sua aplicação restringida na relação jurídica que mediará entre as partes,
mas também ao processo no qual se desenvolve a controvérsia com a finalidade de preservar a
segurança jurídica. O ordenamento jurídico ime aos sujeitos o dever de proceder com
retidão e honradez, resultando daí inadmissível que os litigantes contravenham seus próprios
atos, assumindo uma atitude contraditória com uma conduta anterior juridicamente
relevante.
62
61
STJ: RMS 14.908, Proc. 2002/0063237-1/BA, Segunda Turma, Decisão Unânime, Relator Ministro Humberto
Martins, Julg. 06.03.2007, DJU 20.03.2007, Pág. 256.
62
SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho.
Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 860-861, passim.
215
O venire contra factum proprium é uma manifestação do abuso do direito, o qual postula
estruturalmente duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo.
que a primeira o factum proprium é contraditada pela segunda venire. O óbice que
justificaria a intervenção do sistema residiria na relação de oposição que, entre ambas, se
possa verificar.”
63
De acordo com Diez-Picazo:
“A doutrina moderna, sobretudo a doutrina alemã, elaborou, com base na
jurisprudência dos tribunais, uma série de supostos típicos aos quais parece
aplicável a idéia de que a boa-fé opera um limite ao exercício dos direitos
subjetivos. Estes casos podem ser enumerados do seguinte modo:
1º) Venire contra factum proprium: [...] ninguém pode vir contra seus próprios atos.
Com isso se quer dizer que o ato de exercício de um direito subjetivo ou de uma
faculdade é inadmissível quando com ele a pessoa se coloca em contradição com o
sentido que, objetivamente, e de acordo a boa-fé havia que dar a sua conduta
anterior. A regra veda uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta
anterior.
[...]”
64, 65
Segundo Menezes Cordeiro, o venire pode se configurar de maneira positiva por uma ação
contrária àquilo que o factum proprium faria esperar e será negativo quando o factum
proprium é contrariado por uma omissão.
66
O fundamento da regra segundo a qual ninguém pode ir contra seus próprios atos, reside
precisamente no princípio da boa-fé, como assim admite unanimemente a doutrina
jurisprudencial.
67, 68, 69
63
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 50.
64
DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose
Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 21-22.
65
No original: La doctrina moderna, sobre todo la doctrina alemana, ha elaborado, con base en la
jurisprudencia de los tribunales, una serie de supuestos típicos a los cuales parece aplicable la idea de que la
buena fe opera como un límite del ejercicio de los derechos subjetivos. Estos casos pueden enumerarse del
siguiente modo:
1º ‘Venire contra factum proprium’. [...] nadie pude venir contra sus propios actos. Con ello se quiere decir que
el acto de ejercicio de un derecho subjetivo o de una facultad es inadmisible cunado con él la persona se pone
en contradicción con el sentido que objetivamente y de acuerdo con la buena fe había que dar a su conducta
anterior. La regla veda una pretensión incompatible o contradictoria con la conducta anterior. […]
66
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 50.
67
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 113
68
No original: “[...] el fundamento de la regla según la cual nadie puede ir contra sus propios actos, reside
precisamente en el principio general de la buena fe, como así lo admite unánimemente la doctrina
jurisprudencial
216
Para Diez-Picazo a atuação de acordo com a boa-fé é uma exigência de um comportamento
coerente. Significa dizer que, dentro de uma relação jurídica a confiança suscitada deve ser
honrada ou, não deve ser frustrada com um comportamento incompatível com ela. Daí advir
que, a exincia de um comportamento coerente está estreitamente relacionada à boa-fé e à
proteção da confiança.”
70, 71, 72
Por outro lado, Wieacker apresenta “o parágrafo 242 como máxima de conduta ético-
jurídica”. O § 242 do BGB veicula a cláusula geral da boa-fé objetiva, conhecido como
parágrafo de ouro” por estabelecer um padrão de comportamento ético.
Nesse contexto, são inadmissíveis as condutas que não se coadunam com a boa-fé ou que
sejam com ela contrárias.
73
“Há que incluir nesse contexto, todas aquelas máximas em virtude
das quais se exige judicialmente a uma parte processual uma conduta condizente com uma
ético-jurídica, embora essa exigência não esteja vinculada a uma censura ético-jurídica.”
74, 75
Dentre essas máximas destaca-se venire contra factum proprium” e “tu quoque”.
Concernente ao ‘venire contra factum proprium’ Wieacker destaca:
“Esta máxima expressa de forma a essência da obrigação de comportar-se de
acordo com a boa-fé que, a partir dela, ilumina a totalidade do princípio. A
inadmissão da contradição com uma própria conduta prévia se baseia na exigência
da fidesconfiança – que, fundamentalmente, impõe a manutenção da palavra, o
pacta sunt servanda’, e a restrição do dever de prestação iníqua através do
princípio da boa-fé foi levada a cabo pelo antigo conceito romano dafides’, através
69
Picó refere-se à doutrina de DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch, 1963,
pp. 143 e 229 e PUIG BRUTAU, J. La doctrina de los actos propios. Barcelona: Ariel, 1951, pp. 102, 103, 112 e
115.
70
DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de lo propios actos. Barcelona: Bosch, 1963, p. 142.
71
No original: Una de las consecuencias de obrar de buena fe y de la necesidad de ejercitar los derechos de
buena fe, es la exigencia de un comportamiento coherente. La exigencia de un comportamiento coherente
significa que, cuando una persona, dentro de una relación jurídica, ha suscitado en otra con su conducta una
confianza fundada, conforme a la buena fe, en una determinada conducta futura, según el sentido objetivamente
deducido de la conducta anterior, no debe defraudar la confianza suscitada y es inadmisible tota actuación
incompatible con ella. La exigencia jurídica del comportamiento coherente está de esta manera estrechamente
vinculada a la buena fe y a la protección de la confianza.
72
“A idéia de ‘coerência do comportamentoe da ‘exigência de comportamento coerente’, como derivação da
boa-fé, adveio de BETTI, ‘Obbligazioni’, p. 91, também Teoria generale del negozio giuridico, 2. ed. Torino,
1950, p. 480 e segs, apud DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch, 1963, p.
142, nota de rodapé nº 51.
73
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 59.
74
Ibidem, p. 60.
75
No original: Hay que incluir en este apartado todas aquellas máximas en virtud de las cuales se exige
judicialmente a una parte procesal una conducta personal ético-jurídica, aunque esta exigencia no se vincula
con una censura ético-jurídica (‘dolus praesens’).
217
do elementar entendimento de que a concepção textual do vínculo devia ser
substituída por uma concepção leal do mesmo. Resumindo: em lugar da letra, o
espírito da obrigação. O elemento duradouro nesse processo de mudança ético-
jurídico vinha constituído pela virtude jurídica da constantia’, da lealdade, que
torna incompatível a contradição própria com a responsabilidade jurídica. O
princípio venire contra factum propriumestá profundamente arraigado na justiça
pessoal, a cujo elemento mais interno pertence à verdade.”
76, 77
O venire contra factum proprium opera [...] por força da situação de confiança suscitada na
contraparte, que o Direito entende dever proteger.
78
O livre exercício de um direito pode ser limitado quando contrarie conduta anterior de seu
titular, atuando de forma incoerente. Significa dizer que, uma conduta realizada por alguém
pode limitar futuras atuações se com estas forem incompatíveis por frustrar a confiança
depositada por terceiros naquele primeiro agir.
79, 80
Menezes Cordeiro assinala que a fundamentação dogmática da proibição do venire assentada
na doutrina da confiança importa tornar inadmissível a conduta contrária à legítima confiança
depositada no factum proprium. “[...] o princípio da confiança surge como uma mediação
entre a boa fé e o caso concreto.”
81
Diez-Picazo anota que:
76
WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-
Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 60-61.
77
No original: Esta máxima expresa de forma tan inmediata la esencia de la obligación de comportar-se de
acuerdo con la buena fe que a partir de ella se alumbra la totalidad del principio. La inadmisión de la
contradicción con una propia conducta previa se basa en la misma exigencia de ‘fides’ que fundamentalmente
impone el mantenimiento de la palabra, el ‘pacta sunt servanda’, y la restricción del deber de prestación inicua
a través del principio de buena fe, fue llevada a cabo por el antiguo concepto romano de la ‘fides’ a través del
elemental entendimiento de que la concepción textual del nculo debía ser sustituida por una concepción leal
del mismo. Dicho más concisamente: en lugar de la letra, el espirito de la obligación. El elemento duradero en
este proceso de cambio ético-jurídico venía constituido por la virtud jurídica de la ‘constantia’, de la lealtad,
que hace incompatible a la contradicción propia con la responsabilidad jurídica. El principio ‘venire contra
factum proprium’ esta profundamente arraigado en la justicia personal, a cuyo elemento más interno pertenece
la veracidad.
78
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 813.
79
PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 113.
80
No original: “El libre ejercicio de un derecho puede verse limitado cuando va en contra de la propia conducta
de su titular, actuando de forma incoherente, esto es, de mala fe. En consecuencia, la conducta observada por
una persona en un determinado momento puede vincularle, restringiendo sus posibles actuaciones posteriores,
que serán inadmisibles cuando pretenda hacer valer un derecho en contra de su propia conducta previamente
realizada, traicionando así la confianza que los terceros hayan podido depositar en él.”
81
MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo.
Coimbra: Almedina. 2006, p. 51.
218
“[...] o fato de que uma pessoa trate, em uma determinada situação jurídica de obter
a vitória em um litígio agindo contraditoriamente com uma conduta anterior,
constitui um proceder injusto e desleal. A pretensão assim defendida não pode
prosperar, nem pode ser acolhida, devendo ser sancionada, visto que a falta de
lealdade com tenha sido formulada deve ser desestimulada. A inadmissibilidade do
venire contra factum proprium’ é viável por derivação necessária e imediata de um
princípio universalmente reconhecido que impõe o dever de proceder lealmente nas
relações jurídicas: a boa-fé.”
82, 83
O venire contra factum proprium na acepção dada por Alejandro Borda significa que “[...] A
ninguém é cito ir contra seus próprios atos quando estes são expressão do consentimento de
quem os executa e obedecem ao desígnio de criar, modificar ou extinguir relações de
direito.”
84, 85
O alcance da boa-fé objetiva permeia todos os sistemas jurídicos. Conforme destacado por
Solimine o seu campo de aplicação não se restringe ao do direito codificado podendo ser
encontradas manifestações da boa-fé objetiva fundamentando institutos até mesmo da
common law como ocorre com a figura do estoppel, versão inglesa da ‘doutrina dos próprios
atos’ aplicável para impedir que uma pessoa negue suas próprias condutas quando o outro se
guiou nas mesmas e adaptou àquelas o seu modo de proceder.
86
,
87
82
DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los actos propios. Barcelona: Bosch. 1963, p. 133.
83
No original: “[...] el hecho de que una persona trate, en una determinada situación jurídica, de obtener la
victoria en un litigio, poniéndose en contradicción con su conducta anterior, constituye un proceder injusto y
falto de lealtad, y que, en un caso semejante, la pretensión así defendida no debe prosperar, ni ser acogida, sino
que la falta de lealtad con que ha sido formulada debe ser sancionada con la desestimación. Así se comprende
que la inadmisibilidad de ‘venire contra factum proprium’, que no es sostenible como un autónomo principio
general del Derecho, sea fácilmente viable como derivación necesaria e inmediata de un principio general
universalmente reconocido: el principio que impone un deber de proceder lealmente en las relaciones de
derecho (buena fe0.
84
BORDA, Alejandro. La teoría de los propios actos. Buenos Aires: Abeledo-Perrot. P. 52. apud SOLIMINE,
Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I.
CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 861.
85
No original:”A nadie le es lícito ir contra sus propios actos cuando estos son expresión del consentimiento de
quien los ejecuta y obedecen al designio de crear, modificar o extinguir relaciones de derecho.”
86
RUBISNTEIN, R. Iniciación al derecho inglés. (trad. Jardí) apud SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la
estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. RDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed.
Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 861.
87
No original: El referido principio se caracteriza por otorgar al sistema jurídico una nota de distinción que
aparece tanto en la base o fundamento del todo como de las instituciones o normas aisladas. Prueba de ello es
que dicho principio es de aplicación no solo a los derechos codificados sino también en sistemas como el
Common Law donde muchas instituciones propias del sistema anglo-norteamericano constituyen aplicaciones
fundadas en el principio de buena fe como modo de incorporar al campo del derecho valores ético-sociales tales
como el respeto mutuo y la corrección en el trato.
[…]
Otro caso típico es el estoppel o ‘stoppel’, versión inglesa de la denominada doctrina de los actos propios,
aplicable para impedir que una persona repudie sus propios actos o conductas cuando otra persona se ha
guiado en los mismos y ha adaptado a aquéllos su modo de proceder. En tales casos, la ley no admite una
repudiación, pusto que de lo contrario, no sería justo y equitativo.”
219
De acordo com Judith Martins-Costa, na common law o instituto do estoppel “cujo campo de
aplicação primordial é o processo e cuja função é flexibilizar o formalismo processual
vedando à parte, que, por suas declarações, atitudes, atos, enfim, conduziu a outra parte a
modificar a sua posição em seu próprio detrimento, respondendo à idéia de inadmissibilidade,
de, no processo, alegar e provar fatos contradirios com a aparência que a mesma parte que
produz tais alegações e provas havia criado.”
88
Judith Martins-Costa, com amparo em Alejandro Borda e Moisset de Espanés, explica que a
proibição de comportamento contraditório no processo, consagrada através do instituto anglo-
saxão do estoppel, funciona como um freio à atuação manifestamente contrária a uma posição
anteriormente assumida, impedindo a negativa ou a afirmação de um fato oposta ao praticado
em momento anterior. Pelo instituto do estoppel “entende-se estabelecida uma presunção iure
et de iure que impede juridicamente que uma pessoa afirme ou negue a existência de um fato
determinado, em virtude de haver anteriormente executado um ato, feito uma afirmação ou
formulado uma negativa em sentido precisamente oposto [...].”
89
Esse entendimento é
comungado por Aldemiro Rezende Dantas Júnior, ressalvando que o estoppel não se confunde
com o venire “ainda que com ele guarde algumas semelhanças, uma vez que a eficácia do
estoppel é similar a algumas das fuões desempenhadas pelo venire.” Ressalta que, como
apontado por Judith Martins-Costa, “o estoppel é de uso processual, ligado às provas (em
virtude de presunção juris et de jure) [...]
90
Diez-Picazo explica que a figura anglo-saxônica do estoppel, surge da Teoria dos Atos
Próprios que impede ao litigante atuar em contradição com sua conduta anterior,
configurando-se como uma das regras do fair play processual.
91
As aludidas posições doutrinárias vêm denotar que a figura do venire contra factum proprium
tem plena aplicação não no âmbito das relações privadas, mas também no âmbito
processual.
88
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e pica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 462-463.
89
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale)
in Cadernos do Programa de Pós-Graduão em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 369.
90
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá.
2007, p.297.
91
DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los actos propios. Barcelona: Bosch. 1963, p. 67.
220
7.3. A Preclusão Lógica e a Boa-Fé Objetiva
Situações há, no âmbito processual, nas quais o venire contra factum proprium assume a
denominação de preclusão lógica, consoante entendimento sustentado por balizada doutrina
92
e jurisprudência.
De fato, a análise da jurisprudência levou a concluir que muitas decisões resolvidas sob o
fundamento da preclusão lógica, na verdade, prestigiam a boa-fé objetiva no âmbito
processual manifestada na figura do venire contra factum proprium.
Para melhor compreender o instituto da preclusão lógica o se pode olvidar que o processo
se desenvolve segundo uma sucessão de atos que são praticados dentro de uma ordem pré-
estabelecida com vistas a assegurar a duração razoável, a segurança e privilegiar a não-
surpresa. “Justifica-se, pois a preclusão pela aspiração de certeza e seguraa que em matéria
de processo, muitas vezes prevalece sobre o ideal de justiça pura e absoluta. Trata-se, porém,
de um fenômeno interno, que só diz respeito ao processo em curso e às suas partes.”
93
O Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE 219435/MG e declarar a ocorrência da preclusão
lógica colocou em relevo a ordem que há de reinar nos meandros processuais. O entendimento
daquela Corte Constitucional pode ser sintetizado na seguinte expressão: O Direito é
orgânico e dinâmico, não se podendo, sem autorização normativa, voltar a fase ultrapassada”.
O Relatório daquele julgado conta de que em ação de execução fiscal que tramitou no
Estado de Minas Gerais o Tribunal de Justiça mineiro julgou “improcedente o pedido
formulado nos embargos à execução fiscal, sufragando tese no sentido da inexistência de
direito à imunidade tributária pleiteada” tendo ficado assentado que se tratava de empresa de
previdência privada. Contra essa decisão foram interpostos embargos declaratórios, que não
foram conhecidos. A empresa, então, manejou o Recurso Extraordinário buscando demonstrar
que se enquadrava como entidade de assistência social.
92
Nesse sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. Rio
de Janeiro: Forense. 2002; JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense.
2003; SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire
contra factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007,
93
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense. 2001, p.
468.
221
O julgamento do Extraordinário que teve início no dia 30.09.1998, sob a relatoria do Ministro
Marco Aurélio, que conhecia do recurso e dava-lhe provimento, foi interrompido frente a
pedido de vistas formulado pelo Ministro Maurício Correa. Entretanto, em 16.12.1998, O
Município recorrido protocolou petição revelando que a Empresa havia quitado o débito
objeto da execução fiscal e requereu a Intimação da Recorrente para que se manifestasse
sobre a perda do objeto do recurso e a desistência da ação. A decisão prolatada nessa decisão
foi nos seguintes termos: “1 - Uma vez prolatada sentença, ainda que concorra a vontade do
réu, descabe agasalhar desistência da ação. A manifestação de vontade das partes não se
sobrepõe à prestação jurisdicional, a ponto de simplesmente fulminá-la. 2 Indefiro o pedido
de extinção do processo. 3 Diga à Recorrente na execução fiscal sobre a perda do
objeto extraordinário, ante a notícia do pagamento do tributo alvo do conflito de interesses. 4
– Publique-se.
Inconformada a Recorrente aduziu que a questão de fundo não estava no débito em si, mas na
controvérsia da imunidade tributária requerendo, por conseguinte, o julgamento do Recurso
Extraordinário oportunidade em que o Ministro Relator, Marco Aurélio, reafirmou “saltar aos
olhos a preclusão lógica a obstacular a seqüência do julgamento”.
A decisão ficou assim ementada:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PREJUÍZO. LIQUIDAÇÃO DO DÉBITO
ENVOLVIDO NA DEMANDA. PRECLUSÃO LÓGICA. Uma vez liquidado pelo
contribuinte o débito que motivara a execução fiscal e o ajuizamento dos embargos
à execução que, decididos, geraram a interposição do recurso extraordinário,
impõe-se a declaração de prejuízo deste último. Descabe transmudar a ação de
embargos à execução em ação simplesmente declaratória objetivando elucidar
questão referente à imunidade tributária. O Direito é orgânico e dinâmico, não se
podendo, sem autorização normativa, voltar a fase ultrapassada.”
94
Sob esse espeque, são traçados “limites ao exercício de determinadas faculdades processuais,
com a conseqüência de que, além de tais limites, não se pode usar delas”. A essa
conseqüência Chiovenda atribui o nome de preclusão”, cuja essência está na perda, ou
extinção, ou consumação ou, como quer que se diga, de uma faculdade processual pelo fato
de se haverem atingido os limites prescritos ao seu exercício”.
95
,
96
94
STF: RE 219435/MG. Tribunal Pleno. Relator Min. Marco Aurélio. Julg. 06.05.1999, DJU 13081999; p.
00019.
95
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. v. III. Tradução do original italiano
Instituzione di diritto procesuale civile. 2. ed. por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller. 2002, p. 184.
222
A preclusão lógica tem sido entendida como “incompatibilidade lógica” a significar a
realização de atividade incompatível com o exercício da faculdade”.
97
Diz-se lógica a preclusão quando um ato não pode mais ser praticado, pelo fato de se ter
praticado outro ato que, pela lei, é definido como incompatível com o já realizado, ou que esta
circunstância deflua inequivocamente do sistema.
98
Corrobora esse entendimento a jurisprudência colhida no âmbito dos Tribunais:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INTENÇÃO DE REJULGAMENTO DE
DEMANDA ONDE SE DECIDIU PELA IMPOSSIBILIDADE DE RECORRER
APÓS HOMOLOGAÇÃO DE PEDIDO DE DESISTÊNCIA DA EXECUÇÃO
FISCAL FORMULADO PELO EXEQÜENTE POR OCORRÊNCIA DA
PRECLUSÃO LÓGICA. INEXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS
AUTORIZADORES DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. NÃO-
CONHECIMENTO. APLICAÇÃO DE MULTA. 1. O Estado embargante não
logrou apontar omissão, contradição ou obscuridade no decisório embargado,
ressaltando-se que, contrariamente ao entendido pelo ilustre Procurador subscritor
dos embargos ora em exame, a contradição a autorizar o uso desta via recursal é
aquela existente entre um fundamento e outro do julgado ou entre a fundamentação
e a parte dispositiva do julgado e não contradição "entre a manifestação do Estado
feito em todo o iter dos autos e o contido no acórdão". 2. Embargos declaratórios
opostos numa tentativa indisfarçada de rejulgamento da causa, repisando o
embargante todos os fundamentos aduzidos na Apelação e no Recurso Especial. 3.
Embargos de declaração não conhecidos com aplicação da multa do art. 538,
parágrafo único, de 1% (um por cento) sobre o valor da causa, a ser paga ao
embargado.
99
“PROCESSUAL CÍVEL. INADMISSIBILIDADE DO RECURSO. PRECLUSÃO
LÓGICA. RECURSO NÃO CONHECIDO. I - A preclusão lógica decorre da
incompatibilidade entre a vontade de recorrer e os atos do processo, como o acordo
extrajudicial firmado pelas partes. II - Autocomposição homologada pelo
96
Chiovenda classifica a preclusão em temporal, lógica e consumativa. A preclusão temporal ocorre quando um
ato não pode mais praticado em razão de já ter fluido o prazo determinado para tal prática; a preclusão
consumativa ocorre com a prática do ato cabível naquele momento, obstando que o ato seja praticado
novamente. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. v. III. Tradução do original
italiano Instituzione di diritto procesuale civile. 2. ed. por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller. 2002, p. 184.
Nesse mesmo sentido, dentre outros: ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao Código de Processo
Civil. vol. II. Rio de Janeiro: Forense. 1989; ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: parte geral.
Vol. I. 7. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001, p. 507; GRECO FILHO, Vicente.
Direito processual civil brasileiro. 2. vol. São Paulo: Saraiva. 2002, p. 23. THEODORO JÚNIOR, Humberto.
Curso de direito processual civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense. 2001, p. 468.
97
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. v. III. Tradução do original italiano
Instituzione di diritto procesuale civile. 2. ed. por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller. 2002, p. 184.
98
ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: parte geral. vol. I. 7. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2001, p. 507.
99
STJ: EDcl-RESP 618642/MT. Primeira Turma. Relator Min. José Augusto Delgado. Julgamento em
08.03.2006, DJU 18.04.2006, Pág. 218.
223
magistrado de primeiro grau, falta de pressuposto processual reconhecido. III -
Apelação não conhecida.”
100
“PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO.
ACORDO. PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DO FEITO. PRECLUSÃO LÓGICA.
A parte que realiza acordo nos autos pratica ato incompatível com a pretensão de
anulação do feito. Operada a preclusão lógica a decisão é no sentido de negar
seguimento ao recurso. Agravo de Instrumento. Decisão Monocrática negando
seguimento.
101
“PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. INTEMPESTIVIDADE.
QUESTÃO APRECIADA. PRECLUSÃO TEMPORAL E LÓGICA. RECURSO
CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. Ao ter vista dos autos e nenhuma insurgência
deduzir sobre a decisão que reconhece a intempestividade do recurso, a parte deixa
consumar-se a preclusão temporal, ou seja, deixa de praticar o ato no momento
processual cabível, demonstrando, com sua omissão, conformidade com a decisão
de intempestividade recursal. 2. Verifica-se a preclusão lógica quando, após o
julgamento do recurso de apelação interposto pela segunda ré, a primeira ré, cujo
recurso de apelação foi tido como intempestivo ainda em primeiro grau, interpõe
Agravo Interno, onde se insurge exclusivamente com relação ao mérito da causa,
sem nada argüir, novamente, acerca da tempestividade do recurso de apelação. 3.
Recurso conhecido e desprovido.”
102
“PROCESSO CIVIL. PETIÇÃO DE DESISTÊNCIA DA AÇÃO.
HOMOLOGAÇÃO PELO RELATOR. AGRAVO REGIMENTAL, DO PRÓPRIO
AUTOR QUE REQUEREU A DESISTÊNCIA, SUSCITANDO
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA PARA HOMOLOGAÇÃO DA DESISTÊNCIA.
FALTA DE INTERESSE RECURSAL. AGRAVO REGIMENTAL NÃO
CONHECIDO. I - Não se reconhece interesse recursal àquele que requer a
homologação de desistência de pedido rescisório, e depois se insurge contra aludida
homologação, ainda que por motivo de competência absoluta, pois lhe foi prestada
a jurisdição requerida, qual seja, a extinção do feito sem julgamento de mérito (art.
267, VIII do CPC). II - Há incompatibilidade entre a desistência voluntária, por
procurador com poderes específicos e a vontade recursal, em decorrência da
preclusão lógica; ainda mais que, ao invés de abreviar o curso do processo, estaria
se admitindo uma dilação, implicitamente o pretendida pela parte.”
103
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRELIMINAR DE PRECLUSÃO LÓGICA.
ACOLHIMENTO. RECURSO NÃO CONHECIDO. A parte que expressamente
concorda com a decisão, dela não pode ulteriormente recorrer, em face da preclusão
lógica.”
104
“PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. PRELIMINAR EX. OFFICIO DE
AUSÊNCIA DE PREPARO. DESERÇÃO. VIOLAÇÃO DO ART. 511, DO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. PARTE SOB O PÁLIO DA ASSISTÊNCIA
JUDICIÁRIA GRATUITA. PAGAMENTO DAS CUSTAS RECURSAIS APÓS
INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. PRECLUSÃO LÓGICA. RECURSO NÃO
CONHECIDO. 1. O recorrente deve juntar à petição de interposição do recurso,
100
TJES: AC 024.04.900755-2, Quarta Câmara vel, Relator Desembargador Subst. Samuel Meira Brasil
Junior, Julgamento em 15.10.2004, DJES 10.02.2006,
101
TJRS: AI 70007277254/Agudo, Décima Segunda Câmara vel, Relator Des. Marcelo Cézar Müller,
Julgamento em 02.10.2003.
102
TJES: AgRg-EDcl-AC 024.00.001326-8. Segunda Câmara Cível. Relator. Des. Subst. Izaias Eduardo da
Silva. Julg. 28.11.2006; DJES 15.12.2006.
103
STJ: AGRAR 1131/DF. Segunda Seção. Relatora Ministra tima Nancy Andrighi; Julgamento em
08.11.2000; DJU 05.02.2001; pág. 00069.
104
TJES: AI 024.03.900250-6; Primeira Câmara Cível; Relator Des. Arnaldo Santos Souza; Julg. 07.10,2003;
DJES 15/12/2003
224
pena de não conhecimento do apelo, por deserção, comprovante de que
providenciou o respectivo preparo, nos termos do art. 511, do Código de Processo
Civil. 2. Se o recorrente, estando sob o pálio da Assistência Judiciária Gratuita,
efetua o pagamento das custas recursais extemporaneamente, configura preclusão
lógica, a ensejar a aplicação do art. 511, do digo de Processo Civil.”
105, 106
O STJ no julgamento do Recurso Especial nº. 624.836/Pr enfrentou a questão da preclusão
lógica. No caso levado à apreciação daquela Corte, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais e Renováveis - IBAMA que figurava como em ação de
desapropriação, peticionou, em 06.11.2002, com fulcro no art. 46 do Código Processo Civil,
que dispõe sobre o litisconsórcio facultativo, “o desdobramento do litígio em processos
distintos para cada autor” e em 08.11.2002 contestou a referida demanda. “O juízo de
primeira instância, por sua vez, considerou prejudicado o pedido de interrupção do prazo para
contestação apresentado naquela ocasião.” Inconformado, o IBAMA manejou agravo de
instrumento, o qual foi improvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Rego, nos seguintes
termos:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. LITISCONSÓRCIO ATIVO FACULTATIVO.
LIMITAÇÃO PELO JULGADOR. IMPOSSIBILIDADE. PRECLUSÃO. A opção
para a formação de litisconsórcio facultativo é da parte, não podendo o juiz, pela
própria característica de facultativo, determinar que o autor componha com
litisconsortes no pólo ativo. Contudo, correta a decisão que reconheceu ter ocorrido
a preclusão da oportunidade de impugnar a formação de litisconsortes ativos,
porquanto o réu deveria tê-lo feito antes de apresentar a defesa, consoante art. 46,
parágrafo único, do Código de Processo Civil.”
Buscando a reforma do aludido acórdão, o IBAMA interpôs o Recurso especial. O voto do
Ministro Relator Franciulli Netto consignou expressamente:
“Nos termos da primeira parte do parágrafo único do artigo 46 do Estatuto
Processual Civil, "o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao
número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou
dificultar a defesa". Verifica-se que o magistrado possui a prerrogativa de limitar o
litisconsórcio facultativo com enfoque na célere solução da lide e, bem assim, para
facilitar a defesa.
Na mesma linha, no que alude à segunda parte do parágrafo único do artigo 46 do
Código de Processo Civil, o réu, com o fito de facilitar sua defesa, podeformular
105
TJES: AC 024.00.010521-3; Primeira Câmara vel; Relator Des. Annibal de Rezende Lima; Julg.
01/04/2003; DJES 12/06/2003.
106
No mesmo sentido: TJRS: AG-Int 70008200370/Cachoeira do Sul, cima Oitava mara Cível, Relator
Des. Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, Julgamento em 17.06.2004, TJRS: AI 70007362833/Tramandaí,
Décima Nona Câmara Cível, Relator Des. Mário JoGomes Pereira, Julgamento em 16.10.2003. TJRS: AI
70007915531/Novo Hamburgo, Décima Nona Câmara Cível, Relator Des. Mário José Gomes Pereira,
Julgamento em 26.12.2003. TJRS: AgRg 70007411812/Porto Alegre, Décima Nona Câmara Cível, Relator Des.
Mário José Gomes Pereira, Julg. 18.11.2003. TJRS: AG-Int 70007453673/Tramandaí, Décima Nona Câmara
Cível, Relator Des.rio José Gomes Pereira, Julgamento em 09.11.2003.
225
pedido ao magistrado, a fim de que seja limitado o litisconsórcio facultativo. O
pleito formulado pelo réu, segundo a dicção do dispositivo legal mencionado,
"interrompe o prazo para a resposta, que recomeça da intimação da decisão".
Constata-se, sem maiores esforços, que o pedido do réu ao Juízo, no sentido de
limitar os litisconsortes facultativos, tem em mira, exclusivamente, facilitar a defesa
a ser apresentada por ocasião dos meios processuais colocados à sua disposição.
No caso particular dos autos, observa-se que o proceder do réu ao oferecer a
contestação está a configurar uma nítida incompatibilidade com o objetivo da
norma legal, o qual, repita-se, é facilitar a defesa do réu. Ora, se o réu pede a
limitação do litisconsórcio facultativo e, em seguida, apresenta sua contestação; não
falar em dificuldade da defesa, pois, à evidência, esta restou validamente
exercida.
A questão trazida pelo recorrente está a demonstrar a figura da denominada
preclusão lógica, a qual, segundo o magistério do mestre José Frederico Marques,
a que decorre de incompatibilidade da prática de um ato processual com outro
praticado. Se o inquilino, na ação de despejo, purga a mora, dá-se a preclusão
de seu direito processual de contestar a ação" (cf. "Instituições de Direito
Processual Civil", edição, Campinas S.P. revista, atualizada e complementada
por Ovídio Rocha Barros Sandoval, Millennium Editora, p. 347, 2000).”
107
A conduta adotada pelo IBAMA foi manifestamente contraditória e afigura-se em total
descompasso com a boa-fé objetiva que deve nortear os atos das partes.
Na seara recursal, Barbosa Moreira alerta para a ocorrência do venire contra factum proprium
em situações nas quais a impugnação à decisão é, manifestamente contraditória, com ato
anteriormente praticado. Explica o Autor:
“Não se configura renúncia (tácita) ao direito de recorrer a prática, pela parte, de
qualquer ato do qual diretamente resulte, no processo, em verdadeira relação de
causa e efeito, a decisão a ela desfavovel: v.g., a desistência da ação, a renúncia
ao direito postulado, o reconhecimento do pedido. Em regra, nesses casos, será
inadmissível o recurso porventura interposto por aquele que a provocou: seria
logicamente contraditório admitir-se a impugnação da decisão por quem tenha
agido com o fito de fazê-la surgir. A ninguém é dado usar as vias recursais para
perseguir determinado fim, se o obstáculo ao atingimento desse fim, representado
pela decisão impugnada, se originou de ato praticado por aquele mesmo que
pretende impugná-la; no fundo trata-se de aspecto peculiar do princípio que proíbe
o venire contra factum proprium, e o impedimento ao recurso, em perspectiva
dogmática, subsume-se na figura denominada preclusão lógica, que consiste, como
é sabido, na perda de um direito ou de uma faculdade processual pelo fato de se
haver realizado atividade incompatível com o respectivo exercício. Trata-se aqui,
no entanto, de fatos impeditivos do direito de recorrer, já a renúncia é fato extintivo
desse direito.”
108
Flávio Cheim Jorge
109
, ao investigar o chamado interesse de recorrer, analisa a questão sob o
ângulo dos atos praticados pelas partes ou dos pedidos por elas formulados, constando-se que
107
STJ: REsp 624836/PR. Segunda Turma. Relator Ministro Domingos Franciulli Netto. Julgamento em
21.06.2006, DJU 08/08/2006,
108
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. Rio de Janeiro:
Forense. 2002, p. 340.
109
JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense. 2003, pp. 115-117.
226
impera como solução para esses atos a aplicação, na esfera recursal, do princípio da proibição
do venire contra factum proprium, cuja incidência é indiscutível no Direito Processual Civil.
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL INEXISTENTE. INTERESSE
RECURSAL. AUSÊNCIA. PRECLUSÃO LÓGICA. NÃO CONHECIMENTO.
Não se conhece de agravo de instrumento interposto com base no art. 544 do CPC,
quando inexistente o Recurso Especial. Tendo a UNIÃO, na instância ordinária,
concordado expressamente com a decisão da Corte, não pode reviver a questão
controvertida no grau extraordinário, por força da preclusão lógica, a teor do artigo
503 do CPC. Agravo regimental a que se nega provimento.
110
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. 1) preliminar de ausência da certidão de
intimação da decisão agravada, rejeitada. 2) preliminar de preclusão lógica. Falta de
interesse recursal. Acolhimento. Recurso não conhecido. A juntada da certidão de
intimação da decisão agravada permite que se afira a tempestividade ou o do
recurso. À falta dela, entretanto, é lícito ao agravante demonstrar a tempestividade
por outros meios. A prática de ato incompatível com o propósito de recorrer, a
exemplo do pedido de prazo para o cumprimento da decisão que se deseja
impugnar, implica em falta de interesse e, conseqüentemente, na falta de interesse
recursal.”
111
Dessa forma, o mencionado princípio coloca-se como integrante do próprio sentido da
segurança do direito devendo ser tratado como preceito que estabelece limitações ao exercício
dos direitos em particular que, em sede recursal, adota a figura da preclusão lógica
(Incompatibilidade gica): “que consiste na perda de uma faculdade processual pelo fato de
se haver realizado uma atividade incompatível com o exercício da faculdade”.
112
Anderson Schreiber, ao analisar o chamado comportamento contraditório no processo, leciona
que em geral essas situações de venire contra factum proprium se resolvem com institutos
positivados do Direito Processual Civil como a preclusão lógica, a falta do interesse de agir e
a exigência de celeridade processual. Contudo, observa-se que o fundamento teórico desses
institutos se justifica pela aplicação direta do princípio da proibição ao comportamento
contraditório, ou da boa-fé objetiva em seu perfil processual.
113
Didier, por sua vez, destaca que “a preclusão lógica está intimamente ligada à vedação ao
venire contra factum proprium (regra que proíbe o comportamento contraditório), inerente à
cláusula geral de proteção da boa-fé. Considera-se ilícito o comportamento contraditório, por
110
STJ: AGA 442218/MG. Segunda Turma. Relator Ministro Paulo Geraldo de Oliveira Medina. Julgamento em
21.11.2002; DJU 16.12.2002, pág. 00303.
111
TJES: AI 015.03.900043-3; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Arnaldo Santos Souza; Julg. 17/11/2004; DJES
15.02.2006,
112
JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense. 2003, p. 117.
113
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra
factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 228.
227
ofender os princípios da lealdade processual (princípio da confiança ou proteção) e da boa-fé
objetiva. [...] A preclusão não é efeito do comportamento contraditório (ilícito); a preclusão
incide sobre o comportamento contraditório, impedindo que ele produza qualquer efeito”.
114
verdadeira identidade entre a preclusão lógica e o venire contra factum proprium. Nesse
sentido, Didier afirma que “a idéia de preclusão lógica é a tradução, no campo do direito
processual, do princípio da boa- objetiva, mais especificamente do vetusto brocardo nemoo
potest venire contra factum proprium
115
. A preclusão lógica no bojo do direito processual é
sempre situação de venire contra factum proprium, entretanto o campo de configuração do
venire contra factum no campo processual desborda as situações nas quais se configura a
preclusão lógica.
114
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de
conhecimento. vol. I. Salvador: Juspodivm. 2008, p. 275.
115
Ibidem, p. 275.
228
Capítulo VIII - Modelos Concretos da Boa-fé Objetiva Aferíveis da Jurisprudência no
âmbito Processual Civil
Sumário: 8.1. Introdução – 8.2. A Boa-Fé Objetiva como Norma que Veda a Atuação Dolosa
de Posições Processuais 8.3. A Boa-Fé Objetiva Como Norma Otimizadora das Garantias
Constitucionais Processuais – 8.4. A Boa-fé Objetiva como Norma que Veda o Venire Contra
Factum Proprium no Campo Processual Civil – 8.5. A Boa- Objetiva como Norma a
Assegurar a Prestação da Tutela Jurisdicional em Tempo Razoável 8.6. A Boa-fé Objetiva
como Norma Orientadora da Atuação do Poder Judiciário Frente aos Jurisdicionados -
8.1. Introdução
Com propriedade, Judith Martins-Costa assegura que a boa-fé objetiva constitui uma norma
proteifórmica, que convive em um sistema necessariamente aberto, isto é, o que enseja a sua
própria permanente construção e controle.
1
É, justamente, na análise jurisprudencial que
pode-se constatar essa assertiva, à medida que fica hialina “a extensão da sua proteiformidade,
das suas nuanças e do seus campos de atuação.”
2
A tentativa de visualizar a formação de modelos jurídicos que pudessem ser construídos com
base nas decisões jurisprudenciais na seara do direito obrigacional, embasados nas funções
para as quais a boa-fé objetiva era invocada a operar, permitiu que Judith Martins-Costa
identificasse e sistematizasse três funções de atuação da boa-fé: a) função de otimização do
comportamento contratual; b) função de reequilíbrio do contrato e c) função de limite no
exercício de direitos subjetivos.
3
No campo do direito processual, por sua vez, Menezes Cordeiro assegura que seria possível
agrupar a atuação da boa-fé objetiva em quatro tipos de casos: 1) A proibição de
1
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 413.
2
Ibidem, p. 413.
3
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé como Modelo (uma aplicação da Teoria dos Modelos, de Miguel Reale)
in Cadernos do Programa de s-Graduão em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 357
e seguintes.
229
consubstanciar dolosamente posições processuais; 2) A proibição de venire contra factum
proprium; 3) A proibição de abuso de poderes processuais e a 4) supressio.
Na análise da jurisprudência dos tribunais-alvo da presente pesquisa, pode-se constatar a
aplicação da boa-fé objetiva como norma que visa precipuamente à estruturação de um
processo justo e équo. Na realidade, trata-se de por em evidência a nova moldura do Processo
Civil fincado nas premissas constitucionais de um contradirio que se estabelece na
dialeticidade das partes e do juiz, que comungam esforços para a construção da justiça do
caso concreto.
Os modelos jurisprudenciais da boa-objetiva refletem os ideais do processo cooperativo,
quais sejam garantir os direitos fundamentais da efetividade e da segurança na prestação da
tutela jurisdicional. A boa-fé objetiva como “norma-principial” irradia o seu conteúdo em
todos os espectros do Processo Civil regendo as relações inter-partes (autor e réu); as relações
entre o poder judiciário e os jurisdicionados; otimizando a aplicação das garantias
constitucionais processuais expressas pelo devido processo legal, pelo contraditório e pela
ampla defesa com vistas ao alcance da efetividade da prestação da tutela jurisdicional.
Da análise jurisprudencial levada a efeito pode-se constatar que a boa-fé objetiva no âmbito
do Processo Civil desempenha funções correlatas àquelas desempenhadas no campo direito
privado, quais sejam, de otimização, de equilíbrio e de limitação. Os institutos processuais
mais influenciados pela boa-objetiva estão diretamente ligados à atuação das partes no
exercício das garantias constitucionais materializadas na ampla defesa e no contraditório,
como corolários do devido processo legal.
Foi possível identificar que os meios de impugnação das decisões judiciais é terreno fértil
para a atuação da boa-fé objetiva com a finalidade precípua de resguardar a garantia da
efetividade na prestação da tutela jurisprudencial. Também como evidente manifestação da
construção do processo como uma “comunidade de trabalho” a boa-fé objetiva atua
eficazmente para assegurar a confiança legítima no poder judiciário, bem como para
estabelecer o dever de cooperação. Nesse diapasão, a boa-fé objetiva, como metanorma,
estrutura o a aplicação das demais normas processuais conforme se demonstra nos picos
seguintes.
230
8.2 A Boa-Fé Objetiva como Norma que Veda a Atuação Dolosa de Posições Processuais
O comportamento doloso de posições processuais é delineado nas situações em que as partes
alteram a verdade dos fatos ou que usam de manobras desleais na tentativa de alcançar o êxito
na demanda. Tais condutas são veementemente vedadas pela boa-fé objetiva que deve imperar
no âmbito processual.
Tal comportamento restou evidenciado no julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça do
Rio Grande Sul nos autos da apelação interposta em ação de execução.
4
Inconformado com a
sentença que extinguiu a execução de título extrajudicial o exeqüente interpôs recurso de
apelação sem, contudo, informar que, em Ação de Indenização, cumulada com Resolução
Contratual, anteriormente julgada, o pedido de resolução do contrato havia sido acolhido.
A matéria decidida se erigia em questão prejudicial, uma vez que possuía intima relação
com o título em que se fundava a Ação de Execução, pois este era originário do pacto
mencionado. O prosseguimento do feito viria afrontar a coisa julgada impondo-se que, se o
outro processo ainda estivesse em andamento, caberia, inclusive, que fosse ordenada a
suspensão da execução, pois aquele feito equivaleria aos embargos do devedor.
Como a matéria já havia sido julgada, inclusive com a resolão do contrato, acarretou a
extinção da execução.
Nesses moldes, restou caracterizada a violação ao dever de lealdade do apelante, com
aplicação de multa em razão de manifesta litigância de má-fé, nos termos do julgado:
“A atitude do apelante ao intentar a execução sem informar o resultado da ação
contra si ajuizada consagrou manobra desleal, acarretando prejuízo real aos
apelados.
-“O dever de lealdade ou probidade, destacado por Frederico Marques (ob. e v.
atrás cits, p. 374), abrange todas violações de caráter ético-jurídico, constituindo a
atuação franca, ação honesta, o fair-dealing, o fair-play, consoante, observa Barbi
(ob. , v e t., cits., p. 173, nº. 154), o “dever de veracidade” (art. 14, I); o “dever de
boa-fé” (art. 14, II, final) e o dever de não se formularem pretensões
cientificamente despidas de fundamento (art. 14, III) são particularizações daquele
princípio básico de lealdade (ou “princípio de probidade”, na preferência de
Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, ed. V. II,
pp. 77/78, anterior ao atual CPC, que se refere a “proceder com lealdade”, art. 14,
4
TJRS: AC 70006942197; Porto Alegre; 13ª Câmara Cível (Reg. Exceção); Relator Desembargador Marco
Aurélio de Oliveira Canosa, Julg. 14.09.2004.
231
II).” , conforme restou assentado no v. acórdão da colenda 6ª Câmara do 1(Tribunal
de Alçada Cível de São Paulo, quando do julgamento dos EI 376.861 (in CPC NOS
TRIBUNAIS, Darcy Arruda Miranda Junior e Outros, dezembro de 1992, artigos 1
a 103, fls. 194/195).
- No “dever de veracidade”, que compõe o prinpio básico de lealdade ou de
probidade, “... compreende-se não a proibição de falsear a verdade,
comissivamente, como tamm, a mera omissão de fatos, pois que esta configura
também a infringência daquele dever (Arruda Alvim, cit., v.II do Código de
Processo Civil Comentado, p.156); destarte, desdobra-se esse dever: “dever de
dizer a verdade” (Wahrheitspflicht) e o “dever de nada omitir” (Vollstanding-
heitspflicht) (v. Tornaghi, ob. e v. cits, p. 143).” (trecho do acórdão acima
mencionado).”
5
Essa mesma fundamentação foi utilizada no julgamento da apelão
6
interposta em sentença
que julgou extinta ação de execução que objetivava o recebimento de quantia relativa a
honorários advocatícios e custas processuais. A devedora, utilizando-se de manobras desleais,
apresentou comprovante de depósito, que além de divergente do valor da quantia devida, não
se referia à ação de cumprimento contratual, numa clara manifestação de litigância de má-fé.
O juiz relator fez consignar em seu voto que a probidade processual trata-se de dever e o de
ônus, na ideologia que norteou a elaboração do Código:
[...].Com efeito, a executada não agiu com lealdade, dever que lhe é imposto pela
legislação processual. Do magistério de ARAKEN DE ASSIS (Manual do Processo
de Execução, Editora Revista dos Tribunais, edição, 1998, fls.358/359), retiro a
seguinte passagem:
“Entre os abundantes propósitos moralistas do vigente Código de Processo Civil,
inçado de sanções e de advertências inúteis, ressalta-se o que programou o
comportamento desleal do executado. Foi bem apreendido por Mendonça Lima o
diagnóstico do legislador: “a execução é campo fértil para as chicanas, por via de
procrastinações e formulação de incidentes infundados”. A terapêutica alvitrada
chega ao excesso de proibir manifestações do devedor nos autos, agora se
materializando na aplicação de uma pena pecuniária, fixada pelo juiz, “em
montante não superior a 20% do valor atualizado do débito em execução”(art.601)
Este esquema, de resto desdobramento lógico das regras dos arts. 14 a 18, ostenta a
inegável vantagem de instruir um dever de lealdade. Eliminando dúvidas, e a
possibilidade de tratar-se de simples ônus, o texto consagrou a idéia de “dever, bem
conforme, aliás, com a deliberada intenção de Alfredo Buzaid”.
A atitude da devedora, buscando impedir a penhora, consagrou manobra
protelatória. Acarretou não só protelação ao término do processo, mas real prejuízo
para o credor, que, inclusive, teve interpor recurso, antecipando despesas
processuais, para possibilitar a continuação da execução.”
7
5
TJRS: AC 70006942197, Porto Alegre, Décima Terceira Câmara Cível (Reg. Exceção); Relator.
Desembargador Marco Aurélio de Oliveira Canosa; Julg. 14.09.2004.
6
TJRS: AC 70006947386, Caxias do Sul, Décima Terceira Câmara Cível (Reg. Exceção); Relator
Desembargador Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julg. 13.04.2004.
7
TJRS: AC 70006947386, Caxias do Sul, Décima Terceira Câmara Cível (Reg. Exceção); Relator
Desembargador Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julg. 13.04.2004.
232
O direito à percepção da tutela jurisdicional, escopo jurídico do processo, não coaduna com
condutas desleais em clara afronta à boa-fé objetiva que deve nortear a atuação de todos que
participam do processo.
Em decisão paradigmática o STJ não conheceu do Resp nº. 65.906
8
no qual a parte quedou-se
silente sobre matéria que ensejaria a nulidade da publicação da sentença que lhe tinha sido
desfavorável com o fito de que lhe fosse reaberto o prazo para interpor o recurso de apelação
e, por conseguinte, retardar a execução.
No acórdão, sob a relatoria do Ministro lvio de Figueiredo Teixeira, restou consignado que
O processo não é um jogo de espertezas, mas instrumento ético da jurisdição para a
efetivação dos direitos da cidadania”. Aquela Corte, em decisão unânime, reafirmou o
entendimento do Tribunal a quo no sentido de que a publicação dos atos processuais é
dirigida a todos os litigantes, que se encontrem em qualquer dos pólos processuais, com vistas
a dar-lhes ciência do andamento processual.
Tal entendimento impunha à parte o dever de alegar a nulidade no primeiro momento em que
dela tomou conhecimento. Não o fazendo, ocorreu o fenômeno da preclusão, conforme
preconizado no art. 245 do CPC. O STJ trouxe à colação as lições de Moniz Aragão que ao
comentar esse dispositivo e esclarecer a finalidade da norma, realça: “A disposão contida no
texto firma o princípio da preclusão como corolário do dever de lealdade. A parte deve alegar
a nulidade na primeira ocasião em que, dela ciente, tiver de falar nos autos; não o fazendo,
preclui-lhe a faculdade e o ato se convalida”
9
Sob essa linha de fundamentação o Acórdão ficou assim ementado:
I - O processo não é um jogo de espertezas, mas instrumento ético da jurisdição para
a efetivação dos direitos da cidadania.
II Nos termos da lei processual vigente, nos casos de intimação pela imprensa “é
indispensável, sob pena de nulidade, que da publicação constem os nomes das partes
e de seus advogados, suficientes para sua identificação (art. 236 - § 10).
III Não se tratando de nulidade absoluta, é necessário que a parte interessada a
denuncie na primeira oportunidade ao juiz da causa, a fim de que seja sanada sem
maiores prejuízos para o andamento do processo.
8
STJ: Resp. 65.906/DF, Turma. Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Julgamento em 25.11.97,
DJU de 02.03.98, p.93.
9
Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, Forense, 1983, 4 edição, n° 357, p. 359 apud .
233
IV Se a parte toma conhecimento da nulidade, tendo havido quatro intimações,
das quais, embora endereçadas à outra parte, constaram os nomes corretos da
recorrente e do seu patrono, não viola o disposto no art. 245, CPC, o acórdão que
afirma consumada a preclusão quando argüido o vício apenas na ocasião em que
publicada intimação comum ás duas partes.
Conforme realçado por Moniz Aragão o princípio da preclusão apresenta-se como corolário
do dever de lealdade das partes em sua atuação processual, pondo em evidência a frustração
de qualquer intento procrastinatório da parte a quem aproveita a nulidade. Significa dizer que,
nos donios do Direito Processual é imperioso o agir segundo as diretivas da lealdade e da
boa-fé objetiva para que o processo alcance o seu escopo precípuo da prestação da tutela
jurisdicional efetiva.
Nesse mesmo sentido, foi o acórdão
10
proferido no julgamento de embargos de execução no
qual as embargantes alegaram haver a presença de diversas outras empresas que integrariam o
litisconsórcio ativo, postulando direitos na cautelar, com as quais deveria, por conseguinte, ser
distribuído o ônus sucumbencial. Tal alegação não persistiu em razão de o embargado o
Estado do Rio do Grande do Sul ter apresentado documentos, integrantes do restante do
processo, por meio dos quais o juízo verificou que apenas as apelantes figuravam em
litisconsórcio ativo naquela ação.
A postura das apelantes colocou em evidência o dolo processual consistente na alteração da
verdade dos fatos, que pode se caracterizar por afirmações de fato inexistentes, negativa de
fatos existentes ou dar versão mentirosa a fato verdadeiro. Em razão da presença do dolo
processual ficou caracterizada a litigância de má-fé das apelantes numa clara violação ao
postulado da boa-fé objetiva.
O dever de proceder com lealdade norteou o julgamento de embargos de execução
11
no qual a
sentença exarada no processo principal, que não fixou aplicação de multa, uma vez que não
estipulou prazo para cumprimento da obrigação, já havia sido executada, tendo ocorrido,
inclusive, o trânsito em julgado.
10
TJRS: APL-RN 70005782685, Uruguaiana; Primeira Câmara vel, Relator Desembargador Carlos Roberto
Lofego Caníbal, Julg. 22.10.2003.
11
TJRS: RInom 71000534537, Porto Alegre, Primeira Turma Recursal Cível, Relatora Desembargadora Marta
Lúcia Ramos, Julg. 08.07.2004.
234
Diante dessa situação, tendo a obrigação sido cumprida, não cabia ao recorrido postular a
cobrança de multa, pois completamente indevida. Restou “evidenciado que o recorrido houve-
se com má conduta processual, deixando de observar o dever de proceder com lealdade e boa-
(art.14, II. CPC), formulando pretensão que sabia destitda de fundamento (art.14, III,
CPC), contra fato incontroverso (CPC, 17, I) eis que contra si pesava decisivamente a
sentença supra mencionada, tenho que deva sujeitar-se à penalidade fixada na lei.”
12
Situação análoga foi decidida pelo Tribunal do Rio grande Sul no julgamento de agravo de
instrumento interposto nos autos de execução fiscal que indeferiu liminarmente exceção de
incompetência. A Agravante alegou conexão e continência com ações declaratórias e
consignatórias já julgadas, até mesmo no segundo, grau.
13
Ao suscitar o incidente de exceção de incompetência, argüindo conexão e continência,
ocultando a informão de que a matéria havia sido decidida com a improcedência das
demandas, que já haviam sido julgadas até em segundo grau, o Tribunal entendeu estar diante
de conduta violadora da lealdade processual prevista no art. 14, inciso II, do CPC a qual deve
ser “reprimida porque em total desalinho com a seriedade que se espera e pressupõe nos
processos”.
14
O Tribunal do Espírito Santo, também, tem reprovado as condutas que afrontam a probidade e
a boa-fé processual, conforme se infere da seguinte ementa:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA APELAÇÃO CÍVEL. EMBOLIZAÇÃO.
PRÓTESE. LEI 9656/98. ADITIVO CONTRATUAL 13. MÁ-FÉ DA
EMBARGADA. RECURSO PROVIDO. (DO RECURSO ADESIVO
INTERPOSTO POR WALTER SANT ANA JÚNIOR). DANOS MORAIS.
RECURSO PROVIDO. 1 - Em que pese a segurada afirmar que o plano de saúde
contratado pelo autor não está sob a égide da Lei nº. 9.656/98, relevância não
apresenta, pois, o tratamento de que carece o autor encontra-se incluído na
especialidade neurocirurgia, que é prevista no contrato firmado. 2 - A empresa
embargada, ao não carrear aos autos o aditivo contratual nº. 13, e ainda, asseverar a
total ausência de previsão contratual, faltou indubitavelmente com probidade e boa
processual. 3 - Desta forma, restou claro que o dito serviço estava realmente
previsto por minuta contratual, devendo por óbvio ser prestado nos limites de seu
pacto. 4 - Em virtude da manifesta litigância de má-fé por parte da recorrida, deve
esta ser condenada nos moldes do art. 18 do CPC. 5 - Recurso provido. 6 - Em
decorrência do voto anterior, deve ser analisado o recurso de apelação adesiva
12
TJRS: RInom 71000534537, Porto Alegre, Primeira Turma Recursal Cível, Relatora Desembargadora Marta
Lúcia Ramos, Julg. 08.07.2004.
13
TJRS: Agravo de Instrumento 70006978233, Porto Alegre, Primeira Câmara Cível, Decisão Unânime Relator
Desembargador Irineu Mariani, Julg. 10.12.2003.
14
TJRS: Agravo de Instrumento 70006978233, Porto Alegre, Primeira Câmara Cível, Decisão Unânime Relator
Desembargador Irineu Mariani, Julg. 10.12.2003.
235
interposto pelo Sr. Walter Santana nior, que, no primeiro momento fora
considerado prejudicado. 7 - In casu, não qualquer possibilidade de se negar o
efeito negativo à subjetividade do apelante. 8 - Assim, restou caracterizado
devidamente a turbação, mormente psicológica, experimentada pelo ora recorrente,
o que por sirepresenta o dano moral in ré ipsa. 9 - Recurso provido.
15
A conduta da empresa seguradora de plano de saúde não coaduna com a probidade e com a
boa-fé que devem estar presentes nos limites processuais, pois faltou com verdade ao afirmar
que o tratamento de que carecia o segurado não possuía cobertura no plano de saúde
pactuado, bem como não trouxe aos autos o aditivo contratual, que seria prova inequívoca da
obrigatoriedade de prestar o serviço, eis que pactuado.
Seguindo esse mesmo entendimento o Tribunal do Rio Grande do Sul negou provimento à
apelação interposta com o intuito de reformar a sentença que, em ação cautelar de exibição de
documentos, determinou ao apelante a apresentação de contratos de bancários firmados com o
apelado.
16
Segundo aquela Corte, a negativa em fornecer as cópias dos contratos, sendo certo que a parte
os possuía, caracteriza, no mínimo, litigância de má-fé processual, afigurando-se como
sonegação de provas para instruir futura demanda. Tal postura não pode ser albergada pelo
Poder Judiciário, cabendo ao juiz zelar pela boa-fé processual para uma prestação
jurisdicional efetiva.
8.3 A Boa-Fé Objetiva Como Norma Otimizadora das Garantias Constitucionais
Processuais
Alçadas à categoria de direitos fundamentais a efetividade da prestação da tutela jurisdicional
e a segurança jurídica são, forçosamente, o resultado que se espera do processo. Entretanto,
parecem ser grandezas antagônicas ou um dilema indissociável.
15
TJES: EDcl-AC 24050171420, Terceira Câmara Cível, Relatora Desembargadora Substituta Elisabeth Lordes,
Julg. 18.09.2007, DJES 31.10.2007, Pág. 113.
16
TJRS: AC 70006130835, Passo Fundo, Vigésima Câmara Cível, Relator Desembargador Rubem Duarte, Julg.
24/09/2003.
236
A segurança no Processo Civil demanda uma cognição exauriente e, via de conseqüência,
ampla defesa e contraditório plenos. A efetividade, por sua vez, implica prestação da tutela
jurisdicional em tempo razoável. Eis o grande dilema.
A identificação da “fórmula” ou da “solução eleita” para conciliar e, ao mesmo tempo,
assegurar esses dois direitos fundamentais foi encontrada na boa-fé objetiva como norma que
baliza o comportamento de todos aqueles que participam do processo. Conforme apontado
por Menezes Cordeiro, a boa-fé objetiva atua como bitola a calibrar o comportamento dos
atores processuais. Ademais, não se pode olvidar que se trata de verdadeira sindicância
operada pela boa- objetiva nas posições jurídico-subjetivas desses atores processuais.
Diversas foram as condutas identificadas como violadoras da boa-fé objetiva no Direito
Processual Civil as quais guardam direta pertinência com o exercício irregular das garantias
processuais constitucionais conforme podem ser inferidas nas decisões que ora são relatadas.
Violam a boa-fé objetiva as condutas procrastinatórias que atentam aos deveres de probidade
e lealdade processual. Nesse sentido foi o posicionamento do Tribunal do Rio Grande do Sul
ao negar provimento à apelação interposta em face de sentença que havia julgado procedente
revisão de contrato de financiamento, garantido por alienação fiduciária. O apelante, em sede
recursal, fora intimado a juntar aos autos pia do contrato entabulado entre as partes sendo-
lhe estipulado o prazo de dez dias, tendo ele solicitado a dilação do prazo por mais trinta dias,
pedido esse deferido. Entretanto, transcorreu in albis o aludido prazo sem qualquer
manifestação do recorrente, em manifesta conduta violadora da lealdade e da probidade
processual além de obstar o exercício célere da prestação jurisdicional nos termos do art. 14,
II e V do CPC, sendo-lhe imposta multa com fundamento nos arts. 17, incisos IV e V e 18 do
Código de Processo Civil.
17
Nesses mesmos termos, decidiu a Corte gaúcha no julgamento do recurso de apelação contra
sentença que em ação de despejo foi julgada procedente a demanda, bem como houve a
condenação do procurador do réu por litigância de má-fé por entender que este provocou
injusto retardamento do feito em não devolver os autos retirados em carga, quando o processo
17
TJRS: AC 70017998337, Comarca de Guaíba, Décima Quarta Câmara Cível, Decisão Unânime, Relatora
Desembargadora Isabel de Borba Lucas, Julg. 04.10.2007.
237
estava prestes a ser julgado, ficando em seu poder por cinenta e um dias, sendo devolvidos
após intimação e sem qualquer justificativa.
18
Foi negado provimento ao recurso, mantida a aplicação da multa por litigância de má-fé, sob
o escólio das lições de Humberto Theodoro Júnior que, tratando do tema referente ao abuso
de Direito Processual, destacou o alargamento do dever de probidade no processo ao
pormenorizar as situações vetadas e cominar saões genéricas e específicas.
19
De acordo
com o acórdão “o referido princípio da probidade em relação às partes engloba não o dever
genérico de lealdade boa-fé que engloba as variantes do art. 14, mas também os
comportamentos enumerados no art. 17 do CPC, configuradores da litigância de má-fé.”
20
O Tribunal do Rio Grande do Sul reputou, também, como violadora da boa-fé objetiva a
postura adotada por empresa que, em sede de apelação, invocando o direito constitucional da
ampla defesa, viu o seu recurso ser provido, com a desconstituição da sentença para
possibilitar a realização da prova pericial por ela postulada. Entretanto, com o retorno dos
autos à origem, a autora, ora apelante, foi intimada por duas vezes (inclusive pessoalmente)
para depositar os honorários do perito, sem que houvesse qualquer manifestação, silenciando
em ambas as ocasiões.
Nos termos daquela decisão a atitude da autora, silenciando sobre o pagamento da perícia
por ela postulada e que, inclusive, deu causa a desconstituição da primeira sentença proferida
nos autos, por acolhimento de preliminar de cerceamento de defesa, mostra-se temerária e
protelatória, afrontando a boa-fé objetiva que deve circundar a relação processual.”
21
Em consonância com esse entendimento o STF reprovou o uso abusivo de prerrogativas
processuais, em nítida manifestação da deslealdade processual, ao julgar embargos de
declaração opostos contra decisão colegiada que negou provimento a agravo regimental e
aplicou multa ao agravante.
22
18
TJRS: AC 70000348631, Porto Alegre, Décima Sexta Câmara Cível, Decisão Unânime, Relatora
Desembargadora Genacéia da Silva Alberton, Julg. 08.11.2000.
19
Abuso de Direitos Processuais. Barbosa Moreira (Coord.). São Paulo: Forense. 2000, p. 98.
20
TJRS: AC 70000348631, Porto Alegre, Décima Sexta Câmara Cível, Decisão Unânime, Relatora
Desembargadora Genacéia da Silva Alberton, Julg. 08.11.2000.
21
TJRS: AC 70007789647, Horizontina, Décima Oitava Câmara Cível, Relator Desembargador Pedro Celso Dal
Pra, Julg. 30.06/.004.
22
STF: EDcl-AgReg. 532.506-7. Segunda Turma. Relator Ministro Cezar Peluso. Decisão Unânime. Julg.
05.06.2007, DJU 22.06.2007, p. 61.
238
Entendeu aquele Tribunal que o caráter abusivo da agravante se materializou na interposição
reiterada de recursos desprovidos de fundamentação jurídica: no Tribunal de Minas Gerais
manejou três embargos de declaração, sendo condenada ao pagamento de 1%, nos termos do
art. 538, § único, do CPC; no STJ foi derrotada em mais três ocasiões: agravo de instrumento,
agravo regimental e embargos de declaração. Dessa forma, o STF concluiu que A
condenação imposta no julgamento do regimental, portanto deve ser interpretada à luz desse
contexto de nítido abuso de prerrogativas processuais.”
23
Nos julgados analisados verifica-se, também, uma intrínseca relação entre o princípio do
devido processo legal e a boa- objetiva, podendo mesmo afirmar que esta se apresenta como
limite no desenvolvimento da ampla defesa e do contraditório, corolários daquele. “A
‘liberdade’ atribuída ao litigante ímprobo colide com as prerrogativas constitucionais da parte
adversa. [...] Logo, não se deve interpretar isoladamente o princípio do contraditório e da
ampla defesa, legitimando-se qualquer conduta processual realizada a pretexto de exercê-lo. O
marco de equilíbrio entre a probidade e a liberdade de ser alcançado mediante a visão
coordenada dos princípios constitucionais do processo.
24
Tal afirmativa encontra respaldo na
decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do recurso especial aviado
pelo Banco do Brasil.
O Banco do Brasil havia sido condenado em litigância de má-fé em acórdão que julgou
agravo interposto em ação de execução fiscal, em razão de citar de maneira reiterada
jurisprudência minoritária, ultrapassada ou firmada em casos de outra natureza com o firme
intuito de induzir o julgador em erro.
O STJ considerou correta a aplicação da multa ressaltando que “o direito à ampla defesa não é
irrestrito, visualizando-se má-fé na utilização de expedientes procrastinatórios e em atos que
visam a induzir o julgador em erro”.
25
23
STF: EDcl-AgReg. 532.506-7. Segunda Turma. Relator Ministro Cezar Peluso. Decisão Unânime. Julg.
05.06.2007, DJU. 22.06.2007, p. 61.
24
SILVA NETO, Francisco Annio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua
responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data
da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p.
35.
25
STJ: Resp. nº 383.883/SP. STJ, 2ª Turma. Relatora Ministra Eliana Calmon Alves. Julgamento em 17.12.2002,
DJU de 31.03.2003, p. 193. Destacamos.
239
Nesse diapasão o Tribunal de Justiça do Espírito Santo negou provimento a agravo interno em
razão da negativa de seguimento do recurso de apelação fazendo consignar expressamente
que:
“A ampla defesa, constitucionalmente assegurada a todos, não pode servir de
escudo para a falta de ética e o abuso de direito, em flagrante ofensa à inúmeros
valores também erigidos à categoria de princípios e garantias constitucionais. Na
medida em que nosso CPC, em seu artigo 14, consagra a boa-fé no processo, é de
concluir que todo o exercício de direito, ao menos no processo, depende da
observância da regra moral da boa-fé.
5) O recorrente, ao construir todos os argumentos de sua apelação em premissa
inverídica, incorreu na conduta descrita no inciso II, do artigo 17 do CPC, de modo
que é plenamente adequada a imposição da pena de multa, de 1% (um por cento)
sobre o valor da causa, nos termos do artigo 18, do Estatuto Processual.”
26
Tal decisão foi firmada em razão de o apelante alegar tardiamente vício que teria ocorrido na
intimação. Os defeitos na intimação ocorreram no juízo a quo. Na intimação da decisão que
indeferiu o pedido liminar formulado nos embargos de terceiros, por ele manejado, foi
omitido o nome do seu advogado tendo constado apenas o nome do próprio recorrente.
Mesmo assim ele tomou conhecimento da decisão e interpôs agravo de instrumento não
trazendo qualquer alegação sobre o vício da intimação. Ademais, interpôs recurso de apelação
contra a sentença não tendo, novamente, suscitado qualquer irregularidade na intimação.
Dessa forma, o agravante teve duas oportunidades para argüir o vício na intimação,
entretanto, optou por tornar silente deixando para argüir somente nesta fase processual.
Ressalta-se que, o cio na intimação não trouxe qualquer prejuízo para o agravante, tendo
tomado ciência da decisão, tanto assim que apresentou recurso por se insurgir contra ela.
Destarte, o agravante deixou-se guiar por conduta desleal, firmada em argumentos inverídicos
e, buscando encontrar abrigo sob o manto do princípio da ampla defesa, violou as normas
processuais no que tange à boa-fé objetiva, com comportamento processual reprovel pela
ordem jurídica.
27
26
TJES: AGIn-AC 026.04.002786-9 4ª Câmara Cível; Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes
Barcellos, Julg. 20.06.2006, DJES 08.08.2006, Destacamos.
27
Nesse mesmo sentido: TJES: EDcl-AC 012.04.005608-2; Câmara Cível, Decisão Unânime, Relator
Desembargador Álvaro Manoel Rosindo Bourguignon, Julg. 16.05.2006, DJES 14/06/2006, “Com base na teoria
da aparência, no respeito aos princípios da lealdade, da boa-fé e do prejuízo, e, ainda, conforme as peculiaridades
do caso concreto, de se considerar válido o ato citatório quando restar, inequivocadamente, demonstrado que
o representante legal da pessoa jurídica tomou conhecimento da existência da lide e do inteiro teor de seu
conteúdo.”
240
Nesse mesmo sentido é o teor do acórdão proferido pela Corte capixaba, que negou
provimento a agravo interposto em apelação, nos seguintes termos:
lV - É totalmente inconsistente a alegação de que a dívida inadimplida estaria
garantida por penhora, que não é corroborada por nenhuma prova sequer. Além
disso, trata-se de fundamento novo, não ventilado nas razões de apelação. O que
pretende o agravante, às escâncaras, é inovar na seara recursal, deduzindo nova
alegação, o que é vedado, face à preclusão consumativa. V - A ampla defesa,
constitucionalmente assegurada a todos, não pode servir de escudo para o abuso de
direito, em ofensa a inúmeros valores também erigidos à categoria de princípios e
garantias constitucionais. VI - Ficou claro que o agravante, ao interpor recursos e
mais recursos, sempre com a mesma tese dita infundada, abusa de seu direito de
defesa, chegando a inovar na esfera recursal, ao arrepio da preclusão consumativa, o
que justifica a manutenção da multa aplicada na decisão impugnada, na razão de 1%
(um por cento) sobre o valor da causa, com base no artigo 17 inciso VII, c/c artigo
18, caput, ambos do Código de Processo Civil. VII - Sendo manifestamente
infundado o agravo interno, que traz alegação inovadora, não ventilada nas razões de
apelação, de se aplicar a sanção prevista no § 2º, do artigo 557, do digo de
Processo Civil, multa que se fixa em 5% (cinco por cento) do valor corrigido da
causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito
prévio da penalidade. VIII - Recurso desprovido.
28
Em recente decisão o Tribunal de Justiça do Espírito reafirmou a sua posição relativamente
aos limites das garantias processuais constitucionais nos seguintes termos constantes da
ementa: “[...] VI. Não garantias e direitos absolutos, podendo-se dizer com firmeza que
nem mesmo aqueles catalogados como fundamentais representam exceção à regra. VII. A
garantia insculpida no art. 5º, inc. LV, deve ser encarada dentro de sua função social, sob pena
de ser consagrado o abuso de direito e até mesmo a chicana processual. VIII. A oposição de
resistência injustificada ao andamento do processo demonstra o acerto da condenação à multa
e à indenização por litigância de má-fé, merecendo reparo apenas o percentual relativo a esta
última, que deve ser reduzido de 10 (dez) para 5% (cinco por cento) do valor da causa, haja
vista o elevado valor desta.[...]
29
Manuel Cachón Cadenas manifesta-se contrariamente à aplicação da boa-fé processual como
limite das garantias constitucionais do processo. Nessa linha, o Autor afirma que o ‘caráter
omnicompreensivo
30
da boa fé processual é, também, aplicável às garantias constitucionais
28
TJES: AGInt-AC 56050004102, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes
Barcellos, Julg. 12.06.2007, DJES 16.07.2007; Pág. 42.
29
TJES: AC 11030751041, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos;
Julg. 20.03.2007, DJES 24.04.2007, Pág. 28.
30
Segundo o Autor, “o ‘caráter omnicompreensivosignifica que não vem circunscrito a uma determinada fase
processual, ou a uma determinada classe de atos processuais, mas que, teoricamente, pode referir-se a qualquer
atuação processual das partes e dos demais intervenientes no processo.” CACHÓN CADENAS, Manuel. La
buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ
241
do processo. Entretanto, a supremacia das garantias constitucionais do processo sobre
quaisquer outros critérios ou pautas de atuação processual traz como conseqüência que a
aplicação da boa-fé processual deve ser subordinada, sempre e absolutamente, às exigências
dessas garantias constitucionais o que leva a concluir que “nenhuma garantia constitucional
do processo pode ser limitada ao abrigo da boa-fé processual.
31
A boa-fé objetiva tem servido de diretriz interpretativa das normas processuais. Nesses
termos, é a exegese dada pelo Tribunal de Justa do Espírito Santo:
49064016 - PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. EXTINÇÃO DO
PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. ABANDONO DE CAUSA.
ART. 267, III DO CPC. INTIMAÇÃO PESSOAL. ART. 267, § 1º DO CPC.
MUDANÇA DE ENDEREÇO SEM COMUNICAR O JUÍZO. ÔNUS DA PARTE.
RECURSO DESPROVIDO. 1 - Em havendo abandono da causa, o § 1º do art. 267
do CPC determina que, antes de se declarar a extinção do processo (art. 267, III do
CPC), a parte seja intimada pessoalmente para suprir a falta em 48 (quarenta e oito
horas). 2 - A regra, entretanto, deve ser interpretada sistematicamente, submetendo-
se aos ditames do princípio da boa-fé processual. 3 - Se o autor promove mudança
de endereço sem comunicar ao Juízo, induzindo os serviços judiciários a trabalhar
inutilmente, não é razoável permitir que se proceda sua intimação por edital, numa
espécie de justificativa da própria desídia. 4 - Recurso desprovido.
32
Assim como o autor foi diligente em propor a ação, com a qual busca a proteção jurisdicional
para suposto direito violado, da mesma forma precisaria ser diligente em informar a mudança
de endereço para o perfeito prosseguimento do feito. A conduta por ele adotada em nada
informar ao judiciário sobre a sua mudança de endereço caracteriza violação à boa-fé objetiva
processual que impõe a todos o dever de agir de maneira leal.
Ademais, a boa- objetiva apresenta-se como limite ao exercício da ampla defesa no que
tange à juntada de documento novo. “Com efeito, o documento novo pode ser utilizado
mesmo em fase recursal, para que seja preservada a função instrumental do processo e desde
que o sejam feridos os princípios da lealdade e da boa-fé, e ausente a chamada guarda de
CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial. Centro de documentación judicial.
2006, p. 216.
31
CACHÓN CADENAS, Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de
ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial.
Centro de documentación judicial. 2006, p. 220.
32
TJES: AC 021.98.017237-9, Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Álvaro Manoel Rosindo Bourguignon, Julg.
14.05.2003, DJES 23.06.2003.
242
trunfos, vale dizer, o espírito de ocultação premeditada e o propósito de surpreender o juízo,
sendo sempre ouvida a parte contrária.”
33, 34
Seguindo essa trilha o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no julgamento de apelação
assim se manifestou sobre a juntada de documentos novos: “[...] não pode subverter o
princípio da lealdade processual [...]”
35, 36
A boa-fé objetiva apresenta-se, assim, com função otimizadora da ampla defesa sempre que
os participantes da relação jurídica processual fizerem uso de expedientes manifestamente
protelatórios ou que intentarem produzir provas ficando caracterizada a “guarda de trunfos”.
O contraditório e a ampla defesa alinhados com a lealdade e a boa-fé objetiva processual
impõem que o caráter dialético e cooperador do processo ocorram sem sobressaltos, e exige
que a participação de todos visem à tempestiva prestação da tutela jurisdicional.
Nesse passo, diversos são os julgados no âmbito do STJ que demonstram violar a boa-
processual os recursos que traduzem o mero inconformismo da parte com a decisão que lhe
foi desfavorável e se sustentam em teses superadas por aquela Corte e pelas instâncias
ordinárias.
37
33
STJ: AgRg-Ag 540217/SP, Quarta Turma, Relator Ministro Raphael de Barros Monteiro Filho, Julg.
08.11.2005, DJU 03.04.2006; Pág. 347.
34
Trecho do voto do Ministro Cesar Asfor Rocha, que foi acompanhado pela maioria.
35
TJRS: Apelação Cível 070020600094. Câmara Cível. Relator Desembargador Odone Sanguiné. Julg.
12.09.2007, DJ 19.09.2007.
36
Nesse mesmo sentido a jurisprudência daquela Corte:
- Apelação Cível 70020251138, Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Desembargador Odone
Sanguiné, Julgado em 08.08.2007, esse mesmo Tribunal registrou que a juntada de documentos novos com a
apelação “[...] atenta contra o princípio da estabilidade da demanda e da lealdade processual, surpreendendo a
parte contrária com a juntada de prova em que não oportunizado o contraditório e a ampla defesa.”
- Apelação Cível Nº 70017659871, 1 Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Desembargador
Orlando Heemann Júnior, Julgado em 05.07.2007: “A produção de prova após a sentença, sem que haja a devida
justificativa, escorada em motivo de caso fortuito ou de força maior, não pode ser admitida, sob pena de
subverter-se o procedimento e premiar-se quem não obedeceu as suas regras com a possibilidade de surpreender
o adversário.”
37
Os acórdãos proferidos pelo STJ, Turma, no julgamento dos recursos adiante identificados, sob a Relatoria
da Ministra Denise Martins Arruda ficaram assim ementados: “[...] O mero inconformismo da parte não
configura vício (omissão, contradição ou obscuridade) tampouco constitui hipótese de cabimento de embargos
de declaração. Os embargantes insistem de maneira censurável e contrária à boa-fé processual em tese
superada por esta Corte Superior. [...]” EDcl-EDcl-Resp 923.208, Proc. 2007/0026872-0/RS, Julg. 13.11.2007,
DJU 10.12.2007, p. 330; EDcl-EDcl-REsp 657-958, Proc. 2004/0064399-3/Pe, Julg. 06.11.2007, DJU
29.11.2007, p. 213; EDcl-AgRg-EDcl-Resp 628.327, Proc. 2003/0238479-7/Se, Julg. 05.06.2007, DJU
02.08.2007, p. 333; EDcl-EDcl-REsp 645.192, Proc. 2004/0017910-9/SC, Julg. 21.06.2007, DJU 02.08.2007, p.
335; EDcl-EDcl-REsp 621.540, Proc. 2003/0231625-0/MG, Julg. 05.06.2007, DJU 29.06.2007, p. 491; EDcl-
EDcl-AgRg-REsp 554.533, Proc. 2003/0108373-3/RS, Julg. 05.06.2007, DJU 29.06.2007, p. 489; EDcl-AgRg-
Ag 764.409, Proc. 2006/0080013-1/SP, Julg. 15.02.2007, DJU 19.03.2007, p. 287; EDcl-EDcl-REsp 576.926,
Proc. 2003/0131274-5/Pe, Julg. 12.12.1006, DJU 01.02.2007, p. 394; EDcl-EDcl-REsp 813.368, Proc.
243
É importante destacar que tal se aplica até mesmo à Fazenda blica. No julgamento de
agravo regimental em agravo de instrumento que manteve o entendimento de a Fazenda
Pública não estar dispensada do recolhimento da multa prevista no art. 557, §2º, do CPC.
“Com efeito, evidenciada a finalidade procrastinatória do recurso, seja em razão de
manifesta inadmissibilidade , seja pela ausência de fundamentação, é correta a
imposição de penalidade pecuniária prevista no Estatuto Processual. Note-se, o fato
de a Fazenda Pública incorrer em tal prática, não pode afastar o cumprimento de
um princípio de direito maior, qual seja, a preservação da boa-fé e o desestímulo a
atos processuais que obstruem e prejudicam a entrega da jurisdição da forma
melhor possível.”
38
Ainda no espectro da ampla defesa, os Tribunais têm invocado a boa-fé objetiva para reprimir
as pretensões e alegações destituídas de fundamento, uma vez que a conduta dos litigantes,
além de violar o dever de lealdade processual, decorrência imediata da boa-fé, compromete a
entrega da prestação jurisdicional de forma tempestiva. Tal foi o entendimento esposado pelo
STJ ao negar provimento ao agravo regimental no qual o agravante pretendia ver republicada
a decisão proferida no julgamento de embargos de declaração, com os nomes completos das
partes e de seus procuradores. Ocorre que, intimação foi efetuada em nome de advogado
regularmente constituído nos autos e sem que houvesse qualquer pedido expresso de
intimação exclusiva em sentido contrário. Ademais, esse mesmo advogado que constou da
intimação praticou todos os atos processuais desde a origem. Dessa forma, a conduta do
agravante, que por motivos de ordem administrativa do escritório, formulou tal pretensão
incorreu em violação ao dever de proceder com lealdade e boa-fé nos termos do art. 14, inciso
II, do CPC.
39
2006/0018673-0/RS, Julg. 14.11.2006, DJU 30.11.2006, p. 160; EDcl-EDcl-REsp 625.791, Proc. 2003/0231594-
7/MG, Julg. 24.10.2006, DJU 20.11.2006, p. 274; EDcl-EDcl-REsp 828.898, Proc. 2006/0054855-4/RS, Julg.
17.10.2006, DJU 07.11.2006, p. 262; STJ; EDcl-EDcl-REsp 800.271, Proc. 2005/0196721-8/SP, Julg.
19.09.2006, DJU 05.10.2006, p. 260; EDcl-REsp 920.491, Proc. 2007/0017986-7/RS, Julg. 13.11.2007, DJU
10.12.2007, p. 327; EEARES 509179, SP, Julg. 07.03.2006, DJU 27.03.2006, p. 157.
No mesmo sentido:
STJ: AGP 837, Corte Especial, Relator Ministro Antônio Pádua Ribeiro, Julg. 01.07.99, DJU 18.10.99, p. 0197.
“A persistência na utilização de procedimentos tendentes a aviventar questão reclusa é incompatível com a boa-
processual”.
STJ: EDcl-AgRg-Ag 421626, Turma. Relator Ministro Nilson Vital Naves, Julg. 23.11.2004, DJU
07.03.2005, p. 352. “[...] 2. Quando de todo sem cabimento os embargos, donde a conclusão de que pretendem
retardar se faça, de uma vez por todas, a coisa julgada, ou que não seja ela cumprida a bom tempo e a boa hora
(modalidade, tempo, lugar, etc.), os embargos têm caráter protelatório; nesse caso, o embargante está sujeito a
sanção processual. 3. É lícito que a sanção alcance não a parte (o litigante), mas também o seu procurador,
uma vez que a ambos compete proceder com lealdade e boa-fé. [...]”
38
Trecho do voto do Ministro Relator José Augusto Delgado no AgRg-Ag 703.632, Proc. 2005/0142875-7/MS,
Julg. 06.04.2006, DJU 02.05.2006, p. 253.
39
AgRg-EDcl-AgRg-Ag 580.449, Proc. 2004⁄0033120-8/MG, STJ, Turma. Relator Ministro Francisco
Peçanha Martins, Julg. 28.03.2006, DJU 27.04.2006, p. 142.
244
O Tribunal do Espírito de Justiça do Espírito Santo no julgamento de embargos de declaração
verificou que haviam sido ajuizadas duas demandas com as mesmas partes, o mesmo pedido e
mesma causa de pedir, que versavam sobre cobrança de seguro obrigatório em razão de
acidente automobilístico, sendo que a primeira demanda já havia transitado em julgado. Tal
conduta da parte autora caracteriza flagrante afronta à lealdade e à boa-fé processual com que
deve proceder todos os participantes do processo.
40
Também o Tribunal de Justiça Grande do Sul com fundamento na boa-fé objetiva negou
provimento à apelação interposta à vista de o recorrente ter inovado na lide. É que, de acordo
com a inicial dos embargos, alegaram a inépcia da inicial do feito executivo, uma vez que o
título, representado por contrato de abertura de crédito rotativo em conta corrente firmado
com a instituição bancária seria ilíquido. Afirmaram, ainda, que houve a perda da lavoura
acrescentando a cobrança de encargos ilegais pelo Banco. A sentença julgou parcialmente
procedente os embargos, acolhendo, apenas, a alegação da cobrança de comissão de
permanência. Já no recurso de apelação a alegação versou sobre a “contratação de seguro com
a instituição bancária, que com a perda da colheita iria implicar na o-exigibilidade do título
em execão.”
Destarte, aquela Corte entendeu ter havido “inovação processual muito embora o fato da
perda da lavoura ter sido ventilada quando do ajuizamento dos embargos, mas não
relacionado ao fato da contratação de seguro -, não sendo cabível, como é cediço, no sistema
processual e recursal estatdo pelo CPC, pois em evidente afronta ao disposto no art. 515 do
CPC.” Por conseguinte, concluiu que o princípio da boa-fé que deve reger o processo é a
boa-fé objetiva, a ser detectada tão-somente a partir do comportamento processual. Recorrer
inovando na lide configura, neste universo, infrão ao disposto no art. 14, incisos II e III, do
CPC, daí porque, de ocio, nos termos do art. 18 do predito diploma legal, condeno o
apelante ao pagamento de multa fixada em 1% sobre o valor da causa, por incidir na prática
da litincia de má-fé”.
41
40
TJES: EDcl-AC 35050130992, Câmara Cível, Relator Desembargador mulo Taddei, Julg. 17.07,2007,
DJES 31.07.2007, p. 22.
41
TJRS: Apelação vel 70006334411, Décima Sétimamara vel, Relatora Desembargadora Elaine
Harzheim Macedo, Julgado em 24.06.2003.
245
8.4 A Boa-fé Objetiva como Norma que Veda o Venire Contra Factum Proprium no
Campo Processual Civil
A proibição do venire contra factum proprium encontra-se inserida na vedação de
comportamentos contraditórios tendo por lastro a boa-fé concretizada na confiança que se
estabelece nas relações intersubjetivas. O exercio inadmissível de posições jurídicas,
consubstanciado no venire contra factum proprium, tem sido reprovado pelos Tribunais
pátrios conforme se denota das decisões colacionadas.
Inicialmente, quadra trazer à colação decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, que
alicerçado no venire contra factum proprium, não conheceu do agravo interno aviado contra
decisão que homologou pedido de desistência de ação de mandado de segurança. O agravante,
expressamente, desistiu do processo de mandado de segurança por quatro vezes. Homologada
a desistência, manejou o agravo sob a alegação de que havia mudado de opinião. Ou seja,
insurgiu “contra atos por ele mesmo praticados, de forma reiterada e clara”. Entretanto, aquela
Corte decidiu por não agasalhar tal pretensão por violar a proibição de venire contra factum
proprium surpreendendo a outra parte da causa. Tendo desistido do processo, faltava ao
agravante o interesse para recorrer – um dos requisitos para admissibilidade do recurso.
42
Nos termos assentados pelo STF, o princípio da confiança é inerente ao venire contra factum
proprium e é “uma das dimensões fundamentais do justo processo da lei (due processo of
law)”.
43
No âmbito do Superior Tribunal de Justa STJ, no julgamento do REsp 605.687 AM,
sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, foi dado “provimento ao recurso, para,
reformando o acórdão recorrido, julgar improcedente a ação movida pelo recorrido contra a
recorrente.” Trata-se de ação de conhecimento, com pedido condenatório de indenização por
danos morais, ajuizada em face de Telemazon Celular S/A Amazônia Celular.
44
42
STF: MS-AgR-ED 25742 / DF, Tribunal Pleno. Decisão por maioria. Relator Ministro César Peluzzo. Julg.
29.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 0074.
43
STF: MS 24927 / RO, Tribunal Pleno. Relator Ministro Cezar Peluzzo. Decisão por maioria. Julg. 28.09.2006,
DJU 25.08.2006, Pág. 0018.
44
STJ: REsp 605687 / AM, Turma. Decisão Unânime. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julg. 02.06.2006,
DJU 20.06.2006, p. 273.
246
O Autor não concordando com o valor cobrado em sua conta de telefone celular, ingressou
perante o Juizado Especial de Manaus com ão de inexigibilidade de bito em face à
empresa de telefonia. Na audiência realizada naquele processo a empresa de telefonia
solicitou ao juiz a juntada do detalhamento do registro das ligações telefônicas do celular do
ora recorrido, tendo sido deferido pelo juiz, com autorização do autor. Posteriormente,
ingressou com a ação condenatória sob a alegação de danos morais, pois, em razão do
detalhamento das ligações levada aos autos do processo que tramitou junto ao Juizado
Especial, havia passado por constrangimentos frente a clientes e amigos, uma vez que o fato
havia sido divulgado nos jornais. Ademais, alegou quebra de sigilo telefônico.
A sentença foi de improcedência, “primeiro porque a juntada do detalhamento do registro das
ligações telefônicas do celular do ora recorrido na audiência do outro processo foi autorizada
pelo juiz daquele feito e pelo próprio recorrido; segundo, porque apenas as partes e seus
advogados tiveram acesso ao detalhamento do registro das ligações; e terceiro, porque foi o
próprio recorrido quem noticiou o fato para a imprensa, não havendo, portanto, que se falar
em dano moral.”
45
Tal decisão ensejou recurso de apelação tendo a mesma sido reformada com o provimento do
recurso condenando a empresa de telefonia ao pagamento de indenização no valor de R$
70.000,00 (setenta mil reais).
Em sede de recurso especial, o STJ entendeu ter havido comportamento contraditório do
recorrido, visto que a postura por ele adotada ao ajuizar a ação de indenização por danos
morais era incompatível com os atos por ele praticados no curso do processo no Juizado
Especial, pois tinha havido a concordância do recorrido para que fosse carreado àqueles autos
o detalhamento das ligações telefônicas.
Conforme constou, expressamente, do voto da Ministra Relatora: Se isso não bastasse, como
se sabe, não estava o recorrido obrigado a fornecer prova contra si mesmo e, portanto, não
estava obrigado a autorizar a juntada, pela parte contrária, do detalhamento do registro das
ligações telefônicas do seu celular, o sendo lícito que se insurgisse contra tal fato após tê-lo
45
STJ: REsp 605687 / AM, Turma. Decisão Unânime. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julg. 02.06.2006,
DJU 20.06.2006, p. 273.
247
autorizado. Trata-se de aplicação do sábio ensinamento consagrado entre os romanos,
segundo o qualnemo potest venire contra factum proprium ”.”
46
A conduta do “recorrido em vir a juízo, imputando a prática de ato ilícito à recorrente, pelo
fato de esta ter usado em processo anterior o detalhamento do registro de suas ligações
telefônicas com a sua autorização caracteriza clara violação à boa-fé objetiva
consubstanciada no venire contra factum proprium. Tal conduta não pode ser albergada pelo
Poder Judiciário frente ao dever das partes de proceder com lealdade e boa-fé no curso das
relações processuais.
Neste universo particular do Direito Processual Civil, destaca-se o caso decidido pelo
Superior Tribunal de Justiça em 1999 envolvendo matéria de contrato de seguro de vida e
danos pessoais. Ocorrido o acidente que vitimara o segurado, a seguradora se recusara a
aceitar os laudos que ele lhe apresentara na via administrativa, pois o seu departamento
dico não os considerou suficientes para provar a incapacidade do segurado.
Diante dessa decisão, a tima pros uma ação judicial e instruiu a inicial com os mesmos
laudos, documentos que na Contestação não foram aceitos pela seguradora, que requereu
produção de prova pericial ao juiz. Ultimada a perícia judicial e constatada a incapacidade
laboral do autor da ação, seu pedido foi julgado procedente.
A seguradora, contraditoriamente, em recurso de Embargos de Declaração suscita a
ocorrência de prescrição da pretensão do autor, cujo termo inicial do prazo seria a data
daqueles laudos que o autor apresentara a ela na esfera extrajudicial, antes de ingressar em
juízo.
O Tribunal rejeitou essa alegação, pois considerou que a seguradora não poderia argüir a
prescrição extintiva invocando a data dos laudos não-aceitos, pois não estaria agindo de boa-
fé. Decidiu o STJ: “a boa-fé objetiva, que também está presente no processo, não permite que
46
STJ: REsp 605687 / AM, Turma. Decisão Unânime. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julg. 02.06.2006,
DJU 20.06.2006, p. 273.
248
uma parte alegue contra a outra um fato que ela o aceita e para o qual exige prova
judicializada”
47
.
Vale dizer, o STJ considerou que, se para a seguradora aqueles laudos produzidos pelo
dico particular da vítima não eram documentos hábeis a provar o dano, da mesma forma o
dia em que haviam sido elaborados o poderia servir de marco inicial da contagem do prazo
de prescrição da pretensão do segurado. Se permitida essa postura contraditória da seguradora
de em um primeiro momento não aceitar os laudos como prova e depois pugnar pela sua
validade como elemento produtor de efeitos jurídicos contra a outra parte - haveria violação
da boa-fé objetiva na esfera processual.
Situação similar merece ser trazida à colação refere-se à execução de título executivo
extrajudicial materializado em contrato de compra e venda de direitos federativos de atleta de
futebol profissional, que foi objeto de análise pelo STJ em sede de recurso especial.
Em ação de execução movida pelo Sport Club Corinthians Paulista em face do Grêmio Foot
Ball Porto Alegrense, relacionada a dívida proveniente de operação de compra e venda dos
direitos federativos de atleta profissional de futebol, o Grêmio os embargos à execução
tendo sido julgados improcedentes.
Em recurso de apelação junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, inovando nas
razões recursais, o Grêmio alegou, em preliminar, a nulidade da execução por vício formal do
título executivo, visto que o contrato havia sido firmado apenas pelo presidente do clube.
No acóro conduzido pelo voto do Relator, Desembargador Vicente Barroco de
Vasconcellos, que não deu provimento à apelação, constou expressamente:
“[...] em que pese se tratar de inovação recursal, cabe conhecer da matéria com base
no § do art. 267 do CPC, cumprindo apenas salientar que não se trata de
pressuposto previsto no inciso IV do art. 267 do CPC, mas sim de questão relativa à
impossibilidade jurídica do pedido, hipótese do inciso VI do mesmo artigo.
Não merece prosperar a prefacial de nulidade da execução em razão de o contrato
que a embasa ter sido subscrito somente pelo então presidente do clube embargante,
pois a alínea “b do inciso X do art. 76 do seu estatuto dispõe que compete ao
presidente assinar juntamente com o vice-presidente de finanças os “cheques,
cauções, ordens de pagamento, letras de câmbio, notas promissórias, duplicatas de
47
STJ: REsp nº 184.573/SP, Turma, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julg. 19.11.1998; DJU
15.03.1999; pág. 00241.
249
fatura e título de crédito em geral”. Ou seja, inexiste em mencionado dispositivo
qualquer vedação ao presidente subscrever isoladamente em nome do clube
instrumento particular de compra e venda de jogadores, tulo executivo
extrajudicial. Não se pode confundir os títulos de crédito, inciso I do art. 585 do
CPC, com um instrumento particular assinado pelo devedor e duas testemunhas,
inciso II do mesmo artigo, como pretende o embargante, ora apelante.
Outrossim, não poderia o clube embargante se valer da própria torpeza, tentando
afastar a força executiva de um título executivo extrajudicial atras de um suposto
vício que ele mesmo deu causa.”
48
A matéria ao ser analisada no recurso especial não teve deslinde diferente. O STJ chancelou o
acórdão proferido pelo TJRS com amparo na boa-fé objetiva que alicerçou a conduta do
recorrido. Não poderia o recorrente venire contra factum proprium, uma vez que a negocião
foi empreendida tendo por lastro a legitimidade do presidente do clube para a formalização do
contrato, portanto não poderia, agora, em ação de execução pretender desconstituir o tulo
executivo sob o fundamento de vício formal. Segundo o STJ, reconhecer a nulidade do
contrato entabulado pelas partes por vício formal, implicaria afronta à boa-objetiva que
deve nortear os negócios jurídicos desde o ajuste até o seu cumprimento.
49
No campo do Processo Civil, mais precisamente no processo de execução, outra decisão que
se refere à figura do venire merece realce pelo conteúdo do voto do Ministro Ruy Rosado de
Aguiar. Na hipótese, o Ministro da Fazenda expedira umMemorando de Entendimento
comunicando que os devedores do Banco do Brasil que se apresentassem para negociar a
dívida bancária teriam seu processo de execução judicial suspenso. Ocorre que um devedor se
apresentou e o Banco não requereu a suspensão do feito, mas o juiz, a pedido do executado, a
determinou, o que levou o banco a recorrer.
O Ministro manteve a decisão judicial da instância inferior que determinara a suspensão da
execução sob o fundamento de que, diante da expectativa legítima criada nos devedores pelo
documento do Ministro da Fazenda, o Banco teria assumido comportamento contradirio e
ilícito, que constituía “venire contra factum proprium
50
”.
Nesse caso entende-se que, embora o Memorando de Entendimentoverse sobre matéria
administrativa, o Banco do Brasil ao se comprometer a suspender temporariamente a
48
TJRS: Apelação Cível 70008041204, Porto Alegre, 15ª Câmara Cível, Relator Desembargador Vicente
Barroco de Vasconcellos, Julg. 31.03.2004.
49
STJ: REsp 681.856/RS; Turma; Relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Julg. 12.06.2007, DJU
06.08.2007; p. 497.
50
STJ: REMS n° 6183/MG, turma; Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julg. 14.11.1995, DJU
18.12. 1995, p. 44573.
250
execução dos devedores que se apresentassem e renegociassem o débito, não poderia
prosseguir com a ação de execução e negar o caráter obrigacional do “Memorando de
Entendimento”, agindo com deslealdade no âmbito processual e contrariando a boa-fé
objetiva que deve disciplinar as relações processuais.
Verifica-se, pois, que a proibição do venire contra factum proprium encontra-se inserida no
Processo como vedação de comportamentos contradirios tendo por lastro a boa
concretizada na confiança que se estabelece entre as relações intersubjetivas. Menezes
Cordeiro
51
destaca que o venire contra factum próprio é defeso em homenagem à proteção da
confiança daquele que se fiou no factum próprio.
No Tribunal do Rio Grande do Sul inúmeras são as decisões nas quais o venire contra factum
proprium foi a base da fundamentação para o deslinde da questão. Em tais decisões a boa-fé
objetiva foi concretizada obstando a prevalência de condutas que são reprováveis no âmbito
processual por frustrar a confiança da contraparte.
Sob esse espectro, aquele Tribunal tem dado proteção à lealdade processual sob o seguinte
fundamento:
“O venire contra factum proprium é uma das modalidades de exercício
inadmissível de posições jurídicas institucionalizadas na moderna doutrina
européia, em especial a alemã, apresentando-se, na literatura mais recente, como
uma das formas de concretização do princípio geral da boa-fé, formulado no § 242
do Código Civil germânico e acolhido expressamente no direito positivo brasileiro
(Código de Defesa do Consumidor, art. 4º, III), e Código Civil, arts. 113 e 187).
Com base nesse princípio, protege-se a confiança de quem, por conduta da
contraparte, ainda que omissiva e não-intencional, seja levado a ter uma
representação dos fatos ou de suas conseqüências diversa da que realmente existe.
Prescinde-se, inclusive, para tal fim, da comprovação de que o responsável pelo
surgimento da confiança tenha agido com má-fé ou mesmo com culpa: é suficiente
que sua conduta, independentemente de qualquer consideração de ordem subjetiva,
tenha dado causa à representação de situação diversa da realidade.”
52
O trecho colacionado refere-se à decisão proferida no julgamento de agravo de instrumento,
no qual o agravado, três dias após a intimação da homologação da desistência por ele
formalizada, em ação revisional de contrato, por não ter mais interesse na lide, intentou ação
idêntica só que em outra comarca.
51
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra:
Almedina. 2007, p. 843.
52
TJRS: AI 70009039488, 13ª Câmara vel. Decisão Monocrática. Relator Desembargador Carlos Alberto
Etcheverry. Julg. 25.06.2004.
251
Aquele Tribunal assentou que [...] O comportamento do agravado, ao ajuizar a segunda ação,
configura caso típico de ‘venire contra factum proprium’, que consiste no exercício de uma
pretensão incompatível com o comportamento ou conduta concludente anterior, e que não
pode ser sancionada pelo direito por se configurar como atentatória à boa-fé de que, de forma
justificada, confiou na situação jurídica configurada primeiramente. Quem desiste de uma
ação, afirmando não ter mais interesse nesta, está autorizando a crença de que efetivamente
o mais lhe interessa a discussão que inicialmente pretendia travar.”
53, 54, 55
Verifica-se a aplicação do venire contra factum proprium para obstar a revisitação de matéria
decidida, quer por ter havido a anuência expressa da parte quer por inércia da mesma. Em
que pese a decisão ter por lastro o venire contra factum proprium como concretização do
princípio da boa-fé, é importante notar que o acórdão não faz nenhuma menção ao art. 14,
inciso II do CPC, numa clara demonstração da relutância ou da timidez da jurisprudência em
atribuir a validade dogmática própria ao dispositivo, qual seja, a feição objetiva da boa-fé.
O Tribunal do Rio Grande do Sul teve oportunidade de julgar apelação de sentença que havia
julgado improcedente embargos opostos em ação de execução fundada em instrumento de
confissão de dívida, uma vez que na ação de busca e apreensão, já transitada em julgado, tais
cláusulas já haviam sido analisadas.
56
53
TJRS: AI 70009039488, 13ª Câmara vel. Decisão Monocrática. Relator Desembargador Carlos Alberto
Etcheverry. Julg. 25.06.2004.
54
Acórdão de igual teor foi proferido no julgamento de agravo interno TJRS: AI 70012607651, 13ª Câmara
Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Carlos Alberto Etcheverry. Julg. 01.09.2006, “Trata-se de
agravo interno interposto [...] contra decisão monocrática [...] que deu provimento ao agravo de instrumento.
Informa a agravante [...] que a decisão deve ser reformada, porquanto o presente recurso foi interposto nos autos
de ação revisional que meramente reproduz postulação veiculada na Comarca de Porto Alegre, extinto em face
de desistência apresentada pelo contratante após indeferido o pedido de tutela cautelar. A ação revisional de
contrato onde proferida a decisão agravada, foi extinta, de ofício, com base no art. 267, VI, do CPC, uma vez
configurado o venire contra factum proprium nos exatos termos do excerto citado.
No mesmo sentido: TJRS: Apelação Cível Nº 70009365958, Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator
Desembargador Arno Werlang. Julg. 02.03.2006, Na situação sob exame a apelante havia requerido
explicitamente a desistência da ação, pedido que restou acolhido na sentença. Em sede de apelação alegou a
recorrente que a desistência havia sido requerida por equívoco do seu procurador. O Tribunal entendeu
configurada a preclusão lógica face à absoluta incompatibilidade entre a conduta anterior e o recurso interposto.
55
Em sentido idêntico TJRS: AI 70015731029, 1 Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relator
Desembargador Carlos Alberto Etcheverry. Julg. 22.06.2006, no qual o agravante, após interpor agravo retido
onde consignou, expressamente, que o mesmo deveria permanecer retido nos autos para que seja conhecido
como preliminar de eventual recurso de apelação”. Tendo o recurso sido recebido como agravo retido,
exatamente como postulado pelo recorrente, agora ele interpõe agravo de instrumento contra tal decisão, tendo
restado configurado o venire contra factum proprium.
56
TJRS: Apelação Cível 70013136379, 13ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Carlos
Alberto Etcheverry. Julg. 19.01.2006.
252
A apelante, em suas razões recursais, alegou que a decisão que julgou ação de busca e
apreensão foi omissa quanto à redução da multa de mora. Ocorre que, naquela ocasião não
foram interpostos embargos, o que levou o Tribunal a negar provimento à apelação, pois
configurado o venire contra factum proprium. O tribunal assentou que a inércia da apelante
criou uma legítima situação de confiança no demandado levando-o a crer que “aceitava a
dívida nos termos em que fora redimensionada em juízo de revisão.”
57
Na análise jurisprudencial também pode ser verificada a estreita relação entre o venire contra
factum proprium e o instituto da preclusão lógica. Em alguns dos julgados foi utilizada a falta
de interesse para agir ou a preclusão lógica quando, na realidade, poderia ter sido utilizada,
expressamente, a teoria dos atos próprios, pois os comportamentos das partes eram
completamente incompatíveis com posturas processuais anteriormente assumidas. Para se ter
uma idéia do afirmado, em decisão na qual restou configurado o venire contra factum
proprium foi colacionado o seguinte embasamento teórico-doutrinário :
“Neste rumo, a lição de Aguiar nior, ao ministrar que “a teoria dos atos próprios,
ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela
que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento
assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de
conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra
dos prinpios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao
previsto, com a surpresa e prejuízo à contraparte.” (Aguiar Júnior, Ruy Rosado de.
A Extinção do Contratos por Incumprimento do Devedor, ed. Rio de Janeiro,
Aide, 1991)
Segundo Renan Lotufo, “a locução venire contra factum proprium, significa o
exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido
anteriormente pelo exercente, ou seja, dois comportamento da mesma pessoa, que
são lícitos entre si, e diferidos no tempo. O primeiro comportamento, o factum
proprium, é contrariado pelo segundo.
O princípio do venire contra factum proprium tem fundamento na confiança
despertada na outra parte, que crê na veracidade da primeira manifestação,
confiança que não pode ser desfeita por um comportamento contraditório. Pode-se
dizer que a inadmissibilidade do venire contra factum proprium evidencia a boa-fé
presente na confiança, que de ser preservada. Daí o dizer de Franz Wieacker (El
principio general de la buena fe, p. 62): “...el principio del venire es una aplicación
del principio de la ‘confianza en el tráfico jurídicoy no una específica prohibición
de la mala fe y de la mentira”. (Código Civil Comentado, vol. I, Parte Geral, ed.
Saraiva, 2003, pág. 501/502).
Para Anderson Schreiber “O nemo potest venire contra factum proprium representa,
desta forma, instrumento de proteção a razoáveis expectativas alheias e de
consideração dos interesses de todos aqueles sobre quem um comportamento de
fato possa vir repercutir. Neste sentido, o princípio de proibição ao comportamento
contraditório insere-se no núcleo de uma reformulação da autonomia privada e
vincula-se diretamente ao princípio constitucional da solidariedade social, que
consiste em seu fundamento normativo mais elevado.” (A proibição de
57
TJRS: Apelação Cível 70013136379, 13ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Carlos
Alberto Etcheverry. Julg. 19.01.2006.
253
comportamento contraditório: tutela da confiança venire contra factum proprium,
Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pág. 269/270)
“Nestes termos, como já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça, para se ter
um comportamento por relevante, de ser lembrada a importância da doutrina
sobre os atos próprios. Assim, “o direito moderno não compactua com o venire
contra factum proprium, que se traduz como o exercício de uma posição jurídica em
contradição com o comportamento assumido anteriormente (MENEZES
CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, 11/742).”
58
Já a preclusão lógica encontra-se ancorada em base teórico-doutrinária a seguir transcrita:
“Preclusão lógica diz-se a impossibilidade em que se encontra a parte de praticar
determinado ato, ou postular certa providência judicial em razão da
incompatibilidade existente entre aquilo que agora a parte pretende e sua própria
conduta processual anterior. Por exemplo, o réu condenado pela sentença
comparece a cartório e paga o valor da condenação. Depois de praticar este ato,
estando ainda a fluir o prazo para recurso, volta a cartório para apelar da mesma
sentença.a aceitação da sentença, expressa pela conduta da parte de comparecer
espontaneamente ao cartório e cumprir a condenação, importa em ter-se por
preclusa a oportunidade para o recurso (art. 503).” (BAPTISTA DA SILVA,
Ovídio. Curso de Processo Civil. Volume I, 3
a
edição, Sergio Antonio Fabris
Editor, p. 173).
59, 60
58
TJRS: Agravo Interno 70013531694, 19ª Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relator Desembargador
Mário José Gomes Pereira. Julg. 13.12.2006. Todos os destaques no original.
59
TJRS: Agravo de Instrumento 70021573191, 10ª Câmara vel. Decisão Monocrática. Relator
Desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana. Julg. 01.10.2007, Todos os destaques no original.
60
Nesse julgado foi reconhecida a preclusão lógica da agravante que recorreu da decisão que indeferiu o pedido
de gratuidade da justiça e determinou o recolhimento das custas judiciais depois de ter cumprido a ordem antes
mesmo de recorrer. “No caso sub judice, tem-se que o cumprimento da ordem judicial se apresenta como
conduta incompatível com a intenção de demonstrar inconformidade contra mencionado provimento.”
Com igual teor o ardão proferido no julgamento TJRS: Apelação vel 70013025473, 10ª Câmara Cível.
Decisão Unânime. Relator Desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana. Julg. 10.11.2006, Desta feita, em
“Ação Cautelar de Exibição de Documento” foi proferida sentença julgando procedente a ação e determinando a
ré, agora apelante, que fornecesse os dados cadastrais referentes a titulares das linhas telefônicas indicadas na
inicial. Ao ser intimada da sentença “a demandada veio aos autos e referiu que em atenção à ordem da sentença
acostava documentos os quais atendiam ao pedido formulado pela demandante.” Logo, o cumprimento da ordem
veiculada na sentença é incompatível com a apelação interposta. O fundamento da decisão está na teoria dos atos
próprios, pois o cumprimento da ordem (fornecimento das informações pela demandada), primeiro
comportamento, – factum proprium é contrariado pelo segundo comportamento – a apelação.
No mesmo sentido:
- TJRS: Apelação Cível 70003065901, 13ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador rgio
Luiz Grassi Beck. Julg. 28.03.2006, Em ação cautelar de exibição de documentos, cuja sentença foi pela
procedência da ação, a apelante trouxe aos autos, junto com o recurso, os documentos reclamados pelo autor da
ação da cautelar. O Tribunal reconheceu ter ocorrido a preclusão lógica. A apresentação dos documentos
implicou cumprimento da decisão da qual pretendia se insurgir.
- TJRS: Apelação Cível 70016632085, Câmara Cível. Decisão Unânime. Relatora Desembargadora Íris
Helena Medeiros Nogueira. Julg. 27.09.2006, Em ação cautelar de exibição de documentos a demandada
apresentou os documentos e recolheu os valores sucumbenciais, cumprindo integralmente a condenação imposta
na sentença. Tal conduta afigura incompatível com o ato processual do recurso.
- TJRS: Agravo de Instrumento 70020961124, 1 Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relatora
Desembargadora Judith dos Santos Mottecy. Julg. 23.08.2007, O agravo de instrumento objetivou modificar
decisão interlocutória proferida em ação de busca e apreensão e reconvenção, que indeferiu a apresentação de
documentos de documentos pelo agravado para elaboração do cálculo do bito deste. O agravante, entretanto,
havia requerido no “juízo a quo o procedimento de cumprimento da sentença com a intimação do agravado para
pagar valor certo e determinado, inclusive com detalhamento do respectivo cálculo em anexo, tudo com base no
art. 475-J, do Código de Processo Civil.” Tal postura, demonstrou a resignação do agravante com a decisão que,
contraditoriamente, pretendeu, agora, combater. A apresentação da petição para cumprimento da sentença e a
254
Para corroborar o afirmado, vale trazer à colação ementa de acórdão proferido pelo Tribunal
de Justiça do Espírito Santo, no qual restou configurado o comportamento contraditório do
recorrente que, após entabular acordo de prestação de alimentos, homologado por sentença,
postulou em sede de apelação a anulação da sentença. Conforme assentado, “o direito
moderno não compactua com o venire contra factum proprium que se traduz como óbice ao
exercício de uma posição jurídica, em contradição com o comportamento assumido
anteriormente.” Cabe ressaltar que o julgado não se limitou a fundamentar a decisão com base
na falta do requisito de admissibilidade do recurso - interesse em recorrer – trazendo à
evidência a teoria dos atos próprios.
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. ACORDO HOMOLOGADO
POR SENTENÇA. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL
ACOLHIDA. 1) Caso a sentença seja meramente homologatória do acordo firmado
entre as partes, inexiste interesse em recorrer, porque não houve sucumbência, na
medida em que se concedeu exatamente o que foi requerido pelo autor e pelo réu.
2) Também inexiste interesse recursal, pois a extinção do processo veio em
decorrência natural da atitude tomada pela própria parte recorrente, o podendo
ser acolhida a pretensão de anular a referida sentença, posto que o Direito moderno
não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como no óbice
ao exercício de uma posição jurídica, em contradição com o comportamento
assumido anteriormente. 3) Recurso não conhecido.”
61
Nesse mesmo sentido:
“PROCESSO CIVIL/CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO DE ALIMENTOS.
ACORDO FIRMADO ENTRE AS PARTES HOMOLOGADO POR SENTENÇA.
PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE INTERESSE EM RECORRER ACOLHIDA.
AUSÊNCIA DE SUCUMBÊNCIA. RECURSO NÃO CONHECIDO. I- Apelação
cível em Ação de Alimentos. II- Para que se verifique a existência do interesse
recursal, faz-se necessário considerar a existência e a aplicação do princípio da
proibição do "venire contra factum proprium". De acordo com esse princípio, o
indivíduo que na sociedade adota uma certa conduta, e que por sua vez proporciona
o surgimento de efeitos fáticos, jurídicos e econômicos, carece de interesse
processual de ir ao Judiciário e adotar uma postura completamente diferente
daquela até então assumida. Na realidade, essa discrepância entre os
comportamentos das partes no processo, gera uma incompatibilidade lógica, ou
seja, opera-se uma preclusão lógica, em virtude da qual a parte perda a faculdade
processual devido ao fato de haver realizado atividade incompatível com o
exercício daquela. III- Tendo em vista que o apelante aquiesceu com o pactuado e,
conforme exposto, fora proferida sentença homologatória, não pode, posteriormente
aos seus atos, adotar uma conduta em sentido completamente oposto e recorrer da
referida sentença homologatória, afirmando, que fora completamente exonerado da
obrigação alimentícia em virtude de acordo anteriormente celebrado entre as partes
na Ação de Investigação de Paternidade c/c Alimentos. IV- Preliminar acolhida.
Recurso não conhecido.
62, 63
interposição do agravo o atos logicamente incompatíveis entre si, o que vem denotar a ocorrência da preclusão
lógica.
61
TJES: AC 048.04.009276-8, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes
Barcellos, Julg. 10.05.2005, DJES 10.08.2006.
62
TJES: AC 019.02.000414-9, Segunda Câmara Cível, Relator. Desembargador Substituto Fernando Estevan
Bravin Ruy, Julg. 19.09.2006, DJES 09.10.2006. Destacamos.
255
Como se verifica, a base trica da preclusão lógica é a mesma da teoria dos atos próprios:
impossibilidade da prática do ato face à incompatibilidade existente com ato praticado
anteriormente.
Diante desse quadro, a investigação levada a cabo revela que nas decisões pesquisadas as
hipóteses de preclusão lógica no Direito Processual estão na verdade sustentadas no dever de
observar a boa-fé objetiva, conforme se passa a demonstrar.
Em recente decisão o Tribunal do Rio Grande do Sul negou provimento à apelação interposta
por Brasil Telecom S/A em face de sentença que extinguiu, por falta de interesse recursal,
embargos de execução, uma vez que na ação de execução a empresa, agora apelante, efetuou
o pagamento da dívida nos moldes do cálculo apresentado.
64
Diante de tal situação aquele
Tribunal concluiu ser incompatível com a vontade de embargar a quitação da dívida objeto da
execução. Portanto, faltara ao embargante o interesse em recorrer.
Quadra destacar que no texto do acórdão constou, expressamente, “[...] a ausência de interesse
da ré que ao quitar os valores executados praticou ato incompatível com a vontade de
embargar [...]”
65
. Em que pese, no texto do acórdão não ter sido feita qualquer referência
expressa à teoria dos atos próprios, é notório que é uma situação pica da figura do venire
contra factum proprium, em homenagem à boa-fé objetiva que deve nortear o agir de todos
aqueles que participam do processo.
Em outra oportunidade, aquele Tribunal negou provimento à apelação que pretendia ver
reformada sentença que havia homologado laudo pericial realizada em ação cautelar de
produção antecipada de provas. De acordo com o que constou dos autos, o apelante, nos
63
Firmando apenas na falta de interesse em recorrer, o TJES no julgamento de apelação interposta, sendo que,
anteriormente, as partes haviam celebrado acordo, ainda que não homologado. O acórdão ficou assim ementado:
Celebrado acordo entre as partes, mesmo que ainda não homologado pelo juízo, não pode ser suscetível de
arrependimento unilateral, cabendo à parte que se sentir prejudicada a utilização dos instrumentos processuais
cabíveis para desconstituir o ato negocial Falece interesse recursal à parte que, tendo celebrado acordo
extinguindo o feito na forma do art. 269, III, do CPC, pretende questioná-lo por meio de recurso de apelação.
Sentença mantida. Recurso não conhecido. TJES: AC 024.99.011389-6, Quarta Câmara Cível, Relator
Desembargador Manoel Alves Rabelo, Julg. 24.11.2003, DJES 08.03.2004.
64
TJRS: Apelação Cível Nº 70019817725, 17ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Marcos
Aurélio dos Santos Caminha. Julg. 08.11.2007.
65
TJRS: Apelação Cível Nº 70019817725, 17ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Marcos
Aurélio dos Santos Caminha. Julg. 08.11.2007.
256
memoriais apresentados antes da prolação da sentença, havia requerido a homologação de dita
prova. Ademais, o apelante foi regularmente cientificado da nomeação do perito, tendo pleno
conhecimento da sua identificação, da sua qualificação e, inclusive, formulou quesitos para a
perícia técnica, “sem externar qualquer inconformismo com a referida nomeação.” Dessa
forma, o Tribunal entendeu ter ocorrido a preclusão lógica para, somente após a confecção do
laudo, insurgir no que respeita à qualificação técnica do perito, mesmo porque não foram
carreados aos autos qualquer prova que pudesse demonstrar a falta de capacidade técnica do
profissional para a realização da prova.
66
Na realidade está-se diante de situação caracterizadora do venire contra factum proprium,
ante a incompatibilidade lógica do comportamento apelante, que após praticar todos os atos
concordantes com a indicação do perito e para a realização da perícia, vem pôr em xeque a
qualificação do profissional. O que conflita frontalmente com a boa-fé objetiva
consubstanciada na lealdade processual.
Conforme afirmado, verdadeira identidade entre a preclusão lógica e o venire contra
factum proprium. A preclusão lógica no bojo do direito processual é sempre situação de
venire contra factum propriumincompatibilidade lógica entre os atos processuais praticados
- entretanto o campo de configuração do venire contra factum no campo processual não se
restringe às situações nas quais se configura a preclusão lógica.
Os julgados trazidos à colação, que demonstram a aplicação da boa-fé objetiva como norma
na qual se funda o venire contra factum proprium e a preclusão lógica, impendem observar o
traço característico diferenciador das duas figuras: venire contra factum proprium e preclusão
lógica. A preclusão lógica é um fenômeno interno, que diz respeito ao processo em curso
e às suas partes.”
67
o venire contra factum proprium pode manifestar-se em condutas cuja
contrariedade pode desbordar os limites processuais, ou seja, comporta a prática de atos
extraprocessuais cuja contrariedade será manifesta no interior do processo. Poder-se-ia
afirmar que o venire contra factum proprium interno” é denominado, no campo processual,
como “preclusão lógicae o venire contra factum proprium externo”, para o qual não
uma figura processual específica equivalente.
66
TJRS: Apelação Cível 70018560284, Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Artur
Arnildo Ludwig. Julg. 18.10.2007.
67
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense. 2001,. p.
468.
257
8.5 A Boa-Fé Objetiva como Norma a Assegurar a Prestação da Tutela Jurisdicional em
Tempo Razoável
A boa-fé objetiva, em sua feição dada pela lealdade processual, tem sido fundamento para
imprimir efetividade à prestação da tutela jurisdicional reprovando todas as manobras
recursais protelatórias, que possuem o tido intuito de retardar e/ou obstar a efetividade do
provimento jurisdicional.
O §2º, do art. 557 do CPC assim dispõe:
Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível,
improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência
dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal
Superior.
[...]
§2º. Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal
condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre 1% (um por cento) e 10%
(dez por cento) do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer
outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor.
No entendimento dominante no âmbito do STF a aplicação desse dispositivo visa a privilegiar
o postulado da lealdade processual conforme se pode inferir do trecho do voto do Ministro
Celso de Mello no julgamento AI-AgR 682.930/MG, verbis:
“Torna-se importante enfatizar que o disposto no §2º do art. 557 do CPC, além de
encontrar fundamento em razões de caráter ético-jurídico (privilegiando, desse
modo, o postulado da lealdade processual), também busca imprimir celeridade ao
processo de administração da justiça, atribuindo-lhe um coeficiente de maior
racionalidade, em ordem a conferir efetividade à resposta jurisdicional do Estado.
Esse entendimento que destaca a ratio subjacente à norma inscrita no art. 557,
§2º, do CPC põe em evidência a função inibitória da sanção processual prevista
no preceito em causa, que visa a impedir, na hipótese nele referida, o exercício
irresponsável do direito de recorrer, neutralizando, dessa maneira, a atuação
processual do “improbus litigator”.
Concluindo: o abuso do direito de recorrer por qualificar-se como prática
incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual constitui ato
de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos caos
em que a parte interpuser recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese
em que legitimará a imposição de multa.”
68, 69
68
STF: AI-AgR 682.930-2, MG; Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, Julg. 13.11.2007, DJU 19.12.2007,
Pág. 69.
69
Nesse mesmo sentido: STF: AI-AgR 680.165-5/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg.
16.10.2007, DJU 30.11.2007, Pág. 107; STF: AI-AgR-ED-ED 629.794-9/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro
Celso de Mello. Julg. 09.10.2007, DJU 09.11.2007, Pág. 73; STF: RE-AgR-ED-ED 478.951-5/RS, Segunda
Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 18.09.2007, DJU 11.10.2007, Pág. 56; STF: RE-AgR-ED-ED
478.243-0/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 14.08.2007, DJU 14.09.2007, Pág. 84;
STF: RE-AgR-ED-ED 255.235-6/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 26.06.2007, DJU
258
A via recursal é direito posto à disposição das partes da relação jurídica para expressar a sua
inconformidade e se insurgir com as decisões que lhes são desfavoráveis, entretanto o dever
de lealdade processual impõe limites a essa autuação quando conflitante com o ideal de
justiça perseguido pelo deslinde processual.
70
Nesses termos, na precisão interpretação dada
pelo STF no que tange à aplicação das multas previstas nos arts. 538, parágrafo único e 557,
§2º, ambos do CPC, as mesmas possuem “[...] função inibitória, pois visa a impedir o
17.08.2007, Pág. 90; STF: RE-AgR-ED-ED 406.432-4/PI, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello,
Julg. 27.03.2007, DJU 27.04.2007, Pág. 105; STF: AI-AgR-ED-ED 548.117-7/RJ, Segunda Turma, Relator
Ministro Celso de Mello, Julg. 04.09.2007, DJU 21.09.2007, Pág. 43; STF: RE-AgR-ED-ED 497.493-2/RJ,
Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 14.08.2007, DJU 14.09.2007, Pág. 85; STF: AI-AgR-
ED-ED 582.280-3/RJ, Segunda Turma, Relator. Ministro Celso de Mello, Julg. 17.04.2007, DJU 29.06.2007,
Pág. 142; STF: AI-AgR-ED-ED 562.668-3/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg.
27.03.2007, DJU 29.06.2007, Pág. 142; STF: AI-AgR-ED-ED 476.262-7/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro
Celso de Mello, Julg. 20.03.2007, DJU 29.06.2007; Pág. 142; STF: RE-AgR-ED-ED 469.882-0/PE, Segunda
Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 06.03.2007, DJU 29.06.2007, Pág. 142; STF: AI-AgR-ED-ED
422.464-6/DF, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 22.05.2007, DJU 29.06.2007, Pág. 142;
STF: RE-AgR-ED-ED 383.962-4/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 27.03.2007, DJU
29.06.2007, Pág. 142; STF: AI-AgR-ED-ED 599.521-4/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello,
Julg. 06.03.2007, DJU 22.06.2007, Pág. 62; STF: AI-AgR-ED-ED 541.424-6/RJ, Segunda Turma, Relator
Ministro Celso de Mello, Julg. 20.03.2007, DJU 22.06.2007, Pág. 62, STF: AI-AgR-ED-ED 352.907-5/BA,
Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 18.12.2006, DJU 23.02.2007, Pág. 39; STF: RE-AgR-
ED-ED 230.728-6, SP; Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 18.12.2006, DJU 23.02.2007,
Pág. 40; STF: AI-AgR 615.073-9/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU
02.02.2007, Pág. 136; STF: AI-AgR 614.629-9/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg.
21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 136; STF: AI-AgR 613.046-2/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso
de Mello, Julg. 28.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 135; STF: AI-AgR 612.714-2/MG, Segunda Turma, Relator
Ministro Celso de Mello, Julg. 28.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 135; STF: AI-AgR 612.379-5/MG; Segunda
Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 28.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 135; STF: AI-AgR 610.329-
4/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 12.12.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 134; STF: AI-
AgR 609.723-0/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág.
133; STF: AI-AgR 609.606-3/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU
02.02.2007, Pág. 133; STF: AI-AgR-ED-ED 587.285-2/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello,
Julg. 12.12.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157; STF: AI-AgR-ED-ED 586.710-4/RJ, Segunda Turma, Relator
Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157; STF: AI-AgR-ED 567.794-1/MG,
Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 152; STF: AI-AgR-
ED-ED 552.406-6/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 12.12.2006, DJU 02.02.2007,
Pág. 157; STF: AI-AgR-ED-ED 460.016-2/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg.
03.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157; STF: RE-AgR-ED-ED 459.685-7/RS, Segunda Turma, Relator Ministro
Celso de Mello, Julg. 12.12.2006, DJU 02.02.2007; Pág. 158; STF: RE-AgR-ED-ED 445.253-7/AC, Segunda
Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 03.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 158; STF: AI-AgR-ED-ED
251.931-3/SP, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 31.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157;
STF: RE-AgR-ED-ED 222.227-1/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 03.10.2006, DJU
02.02.2007, Pág. 158; STF: RE-AgR-ED-ED 220.344-1/SP, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello,
Julg. 03.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 158;
70
Nesse sentido os seguintes julgados do Tribunal de Justiça do Espírito Santo: TJES: AGInt-EDcl
24069003630, Primeira Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg.
19.06.2007, DJES 23.07.2007, Pág. 24; TJES: AGInt-AC 12079000118, Quarta Câmara vel, Relatora
Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 12.06.2007, DJES 16.07.2007, Pág. 37, cujo trecho da
ementa colacionamos: “[...]4. É certo que a parte pode utilizar-se do meio de impugnação próprio para
demonstrar o seu inconformismo e buscar a modificação da sentença que lhe seja desfavorável. Contudo, a partir
do momento em que o uso dessa faculdade carece de fundamento apto a ensejar a alteração do julgado,
revelando a intenção deliberada de retardar indevidamente a finalização do litígio e tornar efetiva a prestação
jurisdicional, em detrimento do interesse público e privado, sobressai o desvio de finalidade da via eleita e o
inequívoco abuso do direito de recorrer, conduta merecedora de sanção por litigância de má-fé prevista em Lei.”
259
exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como
instrumento de retardamento da solão jurisdicional do conflito de interesses”.
71
Diante de recursos manifestamente protelatórios, desprovidos de fundamentos jurídicos que
lhe venham dar sustentação, ou seja, quando manifestamente descabidos ante a ordem
processual vigente, torna-se imperiosa a atuação do órgão jurisdicional para coibir tais
práticas.
Em consonância com esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça – STJ tem asseverado
que [...] direito de acesso à via judicial não é ilimitado, exigindo-se da parte que mantenha
dentro do âmbito da razoabilidade a sua irresignação. Inibindo o abuso do direito de recorrer,
o atual digo de Processo Civil municia o órgão julgador de mecanismos aptos a coibir, por
exemplo, a interposição de recurso manifestamente protelatório (art. 17, VII). No caso
específico, destaca-se a previsão do art. 538, parágrafo único, que permite a incidência de
multa entre 1% e 10% do valor corrigido da causa, quando "manifestamente inadmissível ou
infundado" o recurso.
72, 73
É importante ressaltar que a boa-fé objetiva, além de servir de escudo de proteção das partes
envolvidas na relação jurídica processual primando pela lealdade que deve reger as suas
atuações, visa a salvaguarda da efetividade da prestação da tutela jurisdicional. Nesse passo, o
STJ teve oportunidade de se manifestar em julgamento de diversos recursos interpostos em
razão de não conhecimento de recurso especial, face à sua extemporaneidade. Tratava-se de
recurso especial no qual o recorrente, advogando em causa própria, buscava o pagamento de
honorários advocatícios, que no seu entender seriam devidos em decorrência de ão popular
por ele movida para deslocar monumento histórico no Município de Saquarema. Não tendo
sido conhecido o recurso, este interpôs, seguidamente, agravo de instrumento, agravo interno,
embargos de declaração e reiterados pedidos de reconsideração, além de diversas outras
petições, totalmente descabidas, no afã de ver acolhida a sua pretensão. Tais movimentações
71
STF: AI-AgR-ED-ED 619.821-4/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 23.10.2007,
DJU 30.11.2007, Pág. 127.
72
STJ: EDcl-AgRg-Ag 612.373, Proc. 2004/0081834-0/RJ, Quarta Turma, Rel. Min. lio Quaglia Barbosa,
Julg. 27.11.2007, DJU 17.12.2007, Pág. 176.
73
Nesse mesmo sentido: STJ: EDcl-AgRg-Ag 650.921, Proc. 2005/0000559-2/SP, Quarta Turma, Relator
Ministro lio Quaglia Barbosa, Julg. 21.08.2007, DJU 03.09.2007, Pág. 180; STJ: AgRg-AgRg-Ag 712.419,
Proc. 2005/0164485-2/MG, Quarta Turma, Relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Julg. 17.05.2007, DJU
0406.2007, Pág. 358; STJ: AgRg-Ag 740.181, Proc. 2006/0015243-2/MG, Primeira Turma; Relatora Ministra
Denise Martins Arruda, Julg. 21.09.2006, DJU 23.10.2006, Pág. 265.
260
processuais ocorreram de 06.2002 a 10.2005, desde o julgamento do agravo de instrumento
até o julgamento do último recurso pelo STJ, o que por si denota o comprometimento da
duração razoável do processo, o que levou aquela corte, no último julgamento, a expressar:
III - Resta evidenciado que o agravante busca prolongar indefinidamente o
exercício jurisdicional, olvidando por certo, que tal atividade é desenvolvida de
acordo com as regras e os princípios processuais cogentes, que devem nortear a
todos os operadores do direito. Não havendo previsão legal para a interposição de
tais petições, deve-se impor a declaração do trânsito em julgado, em virtude do
transcurso do prazo para a interposição do recurso próprio. lV - Evidenciado o
caráter manifestamente protelatório dos petitórios, bem como configurada a má-fé,
condena-se o recorrente a indenizar a parte contrária em 10% (dez por cento) sobre o
valor da causa (CPC, art. 18, § 2º). V - Notifique-se a OAB/RJ, com cópias das
decisões desta Corte Superior.”
74, 75
Essa orientação tem sido seguida pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, conforme excerto
do julgamento de agravo interno interposto em apelação cível:
“É certo que a parte pode utilizar-se do meio de impugnação próprio para
demonstrar o seu inconformismo e buscar a alteração da decisão que lhe seja
desfavorável. Contudo, a partir do momento em que o uso dessa faculdade carece
74
STJ: RCDESP-RCDESP-RCDESP-AgRg-AgRg-AgRg-AgRg-EDcl-AgRg-Ag 428788/RJ, Primeira Turma,
Decisão Unânime, Relator Ministro Franciscondido de Melo Falcão Neto, Julg. 20.10.2005, DJU 28.11.2005,
Pág. 190.
75
Nesse mesmo sentido:
- STJ: AgRg-Pet 3696/MG, Corte Especial, Relator Ministro Edson Carvalho Vidigal, Julg. 29.06.2005, DJU
29.08.2006, Pág. 133, que restou assim ementado: 1. A Quinta Turma desta Corte determinou a baixa imediata
do RESP nº 378.450 e aplicou multa à Embargante pelo intuito procrastinario do feito, tendo em vista a
oposição sucessiva de quatro embargos de declaração. 2. A incessante interposição de petições com vistas a
prolongar o exercício da prestação jurisdicional, impedindo o trânsito em julgado, não pode ser acobertado pelo
Judiciário. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal. 3. Agravo Regimental não provido.”
- STJ: EAERAG 387730/SP, Corte Especial, Decisão Unânime, Relator Ministro Edson Carvalho Vidigal, Julg.
12.02.2004, DJU 01.03.2004, pág. 00118, cuja ementa transcrevemos: “A interposição de recurso incabível não
suspende ou interrompe o prazo para a apresentação do recurso próprio, nem tem o poder de impedir o trânsito
em julgado do acóro (ou decisão) inadequadamente impugnado. Extinta a prestação jurisdicional e
determinada a baixa dos autos, independentemente da publicação do acórdão e de eventual interposição de
qualquer outro recurso. Evidenciado o caráter manifestamente protelatório da insurgência, bem como
configurada a má-fé, condena-se o recorrente a indenizar a parte contrária em 5% (cinco por cento) sobre o valor
da causa (CPC, art. 18, § 2º). O inusitado e manifesto desrespeito do advogado subscritor das petições a esta
Casa de Justiça, utilizando-se de meios manifestamente incabíveis, transformando o processo civil em panacéia
jurídica, atravancando o regular andamento processual, retardando o deslinde da controrsia de forma
inexplicável e sem precedentes, a par de configurada a inépcia, leva-se a que se oficie a OAB/SP, com cópia
desta.”
- STJ: EEARMS 2331/SP, Quinta Turma, Relator Ministro Gilson Langaro Dipp, Julg. 02.10.2001; DJU
29,10.2001, pág. 00216. “III - Os embargos de declaração, também denominados de "recurso integrativo",
devem calcar-se nos seus pressupostos, quais sejam: Omissão, contradição ou obscuridade. A sua utilização não
pode servir para achincalhar o rito processual. A sucessiva oposição do recurso, com o fito protelatório, onde o
Embargante pretende reapreciar matéria exaustivamente apreciada anteriormente, que desfavorável à sua
pretensão, autoriza a produção dos efeitos do julgado, independentemente da publicação do acóro embargado,
pois a jurisprudência do Pretório Excelso encontra-se senvel quanto a este pormenor. Precedentes: EREEDA
247.416/SP, AGAEDE 260.266/PB, REEDED 244.161/MG, EREEAE 167.787/PR E EDEXT 761-EU. lV -
Embargos de declaração rejeitados, determinando-se a imediata inclusão do recurso ordinário em pauta,
independentemente de publicação do acórdão, bem como da interposição de qualquer outro recurso.
261
de fundamento apto a ensejar a modificação do julgado, revelando a intenção
deliberada de retardar indevidamente a finalização do litígio e tornar efetiva a
prestação jurisdicional, em detrimento do interesse público e privado, sobressai o
desvio de finalidade da via eleita e o inequívoco abuso do direito de recorrer,
conduta merecedora da sanção por litigância de má-fé prevista em Lei. 10. Agravo
interno desprovido, com multa de 5% (cinco por cento) sobre o valor dado à causa
atualizado, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao
depósito da respectiva importância (art. 557, § 2º, CPC).”
76
Nesse mesmo sentido foi a decisão proferida no julgamento de embargos declaratórios
interpostos em acórdão que julgou apelação cível. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo se
manifestou nos seguintes termos:
“[...]
4. Os embargos declaratórios destinam-se a aclarar obscuridade, sanar contradição
ou suprir eventual omissão no julgado (art. 535, I e II, CPC). Ainda que para fins de
prequestionamento, os embargos de declaração somente são cabíveis quando houver
omissão, obscuridade ou contradição na decisão embargada. Desse modo, quando
manifestamente infundados, seja porque ventilam temas já expressamente decididos,
seja porque levantam argumentos totalmente irrelevantes ou desinfluentes, seja
porque lançam a esmo dispositivos legais inócuos, ditos violados, cujo exame o caso
concreto não obrigava, evidencia-se o caráter procrastinatório dos embargos de
declaração. 5. No presente caso, à evidência, não se justificava a oposição dos
embargos declaratórios, nem mesmo para fins de prequestionamento (
Súmula
98 do STJ
), pois já havia pronunciamento claro e explícito sobre a questão jurídica
aventada, revelando-se manifesta a intenção protelatória da embargante, provocando
o retardamento indevido da marcha processual, em detrimento do interesse público
na finalização do litígio, atitude merecedora da sanção prevista no
art. 538, par.
Único, do CPC
, até mesmo em caráter pedagógico. Precedentes do STJ. 6.
Embargos desprovidos, com multa de 1% sobre o valor da causa atualizado.
77
Corroborando esse entendimento a Corte capixaba aplicou a multa prevista no §2º, do art.
557, do CPC, face a agravo regimental interposto contra decisão prolatada no julgamento em
agravo de instrumento que não conheceu do recurso por o constar nos autos peça
comprobatória do substabelecimento do advogado que firmou a peça recursal. Ante tal
situação, não foi dado provimento ao agravo regimental, restando configurado o abuso do
direito de recorrer, nos seguintes termos da ementa:
“II . Se, a despeito das alegações veementes da Recorrente no agravo interno, está
ausente a peça de juntada obrigatória no bojo do recurso primitivo, está delineado o
abuso do direito de recorrer, mormente quando a parte sequer consigna o número da
página na qual estaria acostado o suposto substabelecimento. III. Sendo
flagrantemente infundado o agravo, está caracterizado o cenário perfeito para a
aplicação da multa prevista no § do art. 557 do CPC que, por critério de
76
TJES: AInt-AC 24020136966, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes
Barcellos, Julg. 06.11.2007, DJES 07.12.2007, Pág. 33.
77
TJES: EDcl-AC 35020009367; Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes
Barcellos, Julg. 13.11.2007, DJES 07.12.2007; Pág. 30.
262
razoabilidade, na hipótese deve ser fixada em 1% (um por cento) do valor corrigido
da causa.”
78
O STF ao analisar o cabimento do instrumento constitucional da reclamação colocou em
evidência a importância do processo como instrumento para acesso à ordem jurídica justa
impondo às partes, inclusive o poder público quando figura como parte na relação jurídico-
processual, o dever de agir norteado pelas balizas da lealdade e da probidade processuais
advindas da boa-fé objetiva.
“[...] PODER PÚBLICO E LITIGÂNCIA DE -FÉ - O processo não pode ser
manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela
frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes.
O litigante de má-fé ("improbus litigator")- trate-se de parte pública ou de parte
privada - deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional
dos juízes e dos tribunais, que não podem tolerar o abuso processual como prática
descaracterizadora da essência ética do processo. O ordenamento jurídico brasileiro
repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual.
O processo, em sua expressão instrumental, deve ser visto como um importante
meio destinado a viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, achando-se impregnado,
por isso mesmo, de valores básicos que lhe ressaltam os fins eminentes a que se acha
vinculado. - Hipótese dos autos que não revela dolo processual, embora evidencie
precipitação, por parte da União Federal, quanto à utilização do instrumento
constitucional da reclamação, eis que a decisão do STF, supostamente desrespeitada,
somente veio a ser pronunciada em momento posterior ao da prolação do ato judicial
reclamado.
79
Para corroborar esse entendimento, merece trazer à colação a seguinte ementa:
E M E N T A: RECURSO MANIFESTAMENTE INFUNDADO - ABUSO DO
DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA À PARTE
RECORRENTE (CPC, ART. 557, § 2º, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI
9.756/98) - PRÉVIO DEPÓSITO DO VALOR DA MULTA COMO REQUISITO
DE ADMISSIBILIDADE DE NOVOS RECURSOS - VALOR DA MULTA NÃO
DEPOSITADO - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NÃO CONHECIDOS.
MULTA E ABUSO DO DIREITO DE RECORRER. - A possibilidade de imposição
de multa, quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, encontra
fundamento em razões de caráter ético-jurídico, pois, além de privilegiar o postulado
da lealdade processual, busca imprimir maior celeridade ao processo de
administração da justiça, atribuindo-lhe um coeficiente de maior racionalidade, em
ordem a conferir efetividade à resposta jurisdicional do Estado. A multa a que se
refere o art. 557, § 2º, do CPC, possui inquestionável função inibitória, eis que visa a
impedir, nas hipóteses referidas nesse preceito legal, o exercício irresponsável do
direito de recorrer, neutralizando, dessa maneira, a atuação processual do improbus
litigator. O EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER E A
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. - O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas
incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual. O processo
78
TJES: AgRg-AI 012.05.900148-2, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes
Barcellos, Julg. 29.11.2005, DJES 24.01.2006.
79
Rcl-AgR-QO 1723 / CE CEARÁ, QUEST. ORD. NO AG. REG. NA RECLAMAÇÃO, Relator(a): Min.
CELSO DE MELLO, Julgamento: 08/02/2001, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação DJ 06-04-2001,
PP-00071.
263
não pode ser manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia
que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à
observância das partes. O litigante de má-fé - trate-se de parte pública ou de parte
privada - deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional
dos juízes e dos tribunais, que não podem tolerar o abuso processual como prática
descaracterizadora da essência ética do processo. O DEPÓSITO PRÉVIO DA
MULTA CONSTITUI PRESSUPOSTO OBJETIVO DE ADMISSIBILIDADE DE
NOVOS RECURSOS. - O agravante - quando condenado pelo Tribunal a pagar, à
parte contrária, a multa a que se refere o § do art. 557 do CPC - somente poderá
interpor "qualquer outro recurso", se efetuar o depósito prévio do valor
correspondente à sanção pecuniária que lhe foi imposta. A ausência de comprovado
recolhimento do valor da multa importará em o-conhecimento do recurso
interposto, eis que a efetivação desse depósito prévio atua como pressuposto
objetivo de recorribilidade. Doutrina. Precedente. - A exigência pertinente ao
depósito prévio do valor da multa, longe de inviabilizar o acesso à tutela
jurisdicional do Estado, visa a conferir real efetividade ao postulado da lealdade
processual, em ordem a impedir que o processo judicial se transforme em
instrumento de ilícita manipulação pela parte que atua em desconformidade com os
padrões e critérios normativos que repelem atos atentatórios à dignidade da justiça
(CPC, art. 600) e que repudiam comportamentos caracterizadores de litigância
maliciosa, como aqueles que se traduzem na interposição de recurso com intuito
manifestamente protelatório (CPC, art. 17, VII). A norma inscrita no art. 557, § 2º,
do CPC, na redação dada pela Lei nº 9.756/98, especialmente quando analisada na
perspectiva dos recursos manifestados perante o Supremo Tribunal Federal, não
importa em frustração do direito de acesso ao Poder Judiciário, mesmo porque a
exigência de depósito prévio tem por única finalidade coibir os excessos, os abusos e
os desvios de caráter ético-jurídico nos quais incidiu o improbus litigator.
Precedentes.
80, 81
O Superior Tribunal de Justiça reconheceu abuso do direito de ação ao julgar Recurso
Especial, que ficou assim ementado:
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. MEDIDA CAUTELAR. LITÍGIO
ENTRE VIZINHOS, EM FACE DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA QUE
RECONHECEU EXISTÊNCIA DE SERVIDÃO DE PASSAGEM EM FAVOR DO
IMÓVEL DE UM DELES. OBRAS ORNAMENTAIS REALIZADAS POR ESTE,
NO CURSO DA SERVIDÃO, QUE FORAM APONTADAS COMO TENDO
MERO CARÁTER DE PROVOCAÇÃO À OUTRA PARTE, EM FACE DA
ANTERIOR VITÓRIA JUDICIAL. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO EM SEDE
DE APELAÇÃO. RECONHECIMENTO, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, DA
PRÁTICA DE TUA LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, SEM QUE SE TENHA,
CONTUDO, APLICADO A RESPECTIVA MULTA. PROCEDÊNCIA DO
PEDIDO DE CONDENAÇÃO, A ESSE TÍTULO, DO ORA RECORRIDO.
NECESSIDADE, CONTUDO, DE IGUAL CONDENAÇÃO DOS
RECORRENTES, DE OFÍCIO, SOB RISCO DE DESPRESTÍGIO DA JUSTIÇA.
Não se reconhece violação ao
art. 535 do CPC
quando ausentes omissão,
contradição ou obscuridade na decisão recorrida. - Não se reconhece interesse de
recorrer à parte que obteve o provimento jurisdicional desejado. - Não se conhece
de Recurso Especial na espefica parte em que este se encontra deficientemente
fundamentado. - O Tribunal de origem reconheceu que o motivo da propositura da
presente medida cautelar foi uma 'conduta revanchista' que representava verdadeiro
80
AI-AgR-ED 193779 / PR PARANÁ, EMB.DECL. NO AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO,
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Julgamento:
13/06/2000, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação DJ 08-06-2001, PP-00014.
81
Nesse mesmo sentido: STF: RE-AgR-ED 244893 / PR, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello,
Julgamento: 09.11.1999, DJ 03.03.2000, Pág. 00080.
264
‘abuso de direito’; nesses termos, o é causa excludente da condenação por
litigância de má-fé a invocação do direito de acesso à justiça, pois não como
reconhecer que a proteção a um direito chegue ao ponto de justificar seu próprio
abuso. - Verifica-se, contudo, que o Tribunal de origem reconheceu a ocorrência de
litigância de -fé também pelos ora recorrentes, deixando de aplicar a respectiva
multa em face daquele argumento afastado em relação à conduta do recorrido.
Nesses termos, e sob pena de descrédito da justiça, é de se aplicar, de ofício, igual
multa àqueles, retirando-se, assim, o benefício financeiro que teriam se não tivessem
adotado o mesmo tipo de postura que criticaram em seu oponente. Recurso Especial
parcialmente provido; aplicação, de ofício, de multa por litigância de má-fé.
82
Pela precisão dos termos do voto da Relatora Ministra Nancy Andrighi, vale ressaltar:
A respeito da real intenção do ora recorrido, ao interpor a presente medida cautelar,
assim se manifestou o acórdão:
“O que se depreende da simples leitura das peças processuais é que a questão está
atrelada muito mais à indignação do apelado do que propriamente à suposta
turbação; entendo que o Poder Judiciário não deve ser invocado para agasalhar
conduta revanchista como a que moveu o apelado a intentar a presente medida.
As obras realizadas pelos apelantes enquadram-se no permissivo legal aplicável à
espécie e não representam qualquer abuso de direito; ao contrário, o apelado sim
ao intentar a presente demanda” (fls. 346).
Contudo, negou-se aplicação à pena de litigância de má-fé, conforme os seguintes
fundamentos, expostos nos embargos de declaração:
“(...) restou declarado no acórdão recorrido que a interposição da medida,
totalmente improcedente, não deveria ser assim considerada, por ser um absurdo
punir-se pecuniariamente, um cidadão de acessar à Justiça.
Ora, mesmo considerando a medida infundada, não vislumbro qualquer
contradição em não considerá-la ato de turbação a impor a cobrança de multa nem,
tampouco, como litigância de má-fé, eis que o embargado não praticou nenhuma
das hipóteses do artigo 17 do Código de Processo Civil.
Nenhuma multa será aplicada, neste grau de jurisdição, à parte que, achando que
detém um direito, mesmo que infundada a pretensão, ou mal formulada, ou absurda,
ajuíze uma ação perante o Poder Judiciário” (fls. 376 - sem grifos no original).
No julgamento do Resp nº 334.259⁄RJ, Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJ de
10.03.2003, ficou estabelecido, nos termos da ementa, que “Entende o Superior
Tribunal de Justiça que o artigo 17 do Código de Processo Civil, ao definir os
contornos dos atos que justificam a aplicação de pena pecuniária por litigância de
má-fé, pressupõe o dolo da parte no entravamento do trâmite processual,
manifestado por conduta intencionalmente maliciosa e temerária, inobservado o
dever de proceder com lealdade”, ao que se soma a necessidade de existência de
prejuízo à outra parte.
Dos trechos supra citados, especialmente do primeiro, verifica-se que o TA⁄PR
reconheceu, efetivamente, que o motivo da propositura da presente medida cautelar
era uma 'conduta revanchista' que representava verdadeiro 'abuso de direito',
deixando apenas de aplicar a multa do art. 17 do CPC em face da previsão
constitucional do direito de acesso ao Judiciário.
Mas o direito mal utilizado ao qual o acórdão se refere, na medida em que tal se deu
com abuso, pode ser, à evidência, esse mesmo direito de ação, sendo impossível
reconhecer-se que a previsão do art. 5º, XXXV da CF chegue ao ponto de justificar
sua própria violação, conquanto não há, mesmo no plano dos direitos e garantias
fundamentais, direitos que sejam absolutos.
82
STJ: REsp 816.453, Proc. 2006/0024235-4/PR, Terceira Turma; Relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi,
Julg. 22.08.2006, DJU 04.09.2006, p. 270.
265
Nesse sentido, já se manifestou o STF, em precedente relatado pelo i. Min. Celso de
Mello, que "O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o
postulado ético-jurídico da lealdade processual. O processo não pode ser
manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela
frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das
partes. O litigante de má-fé - trate-se de parte pública ou de parte privada - deve ter
a sua conduta sumariamente repelida pela atuão jurisdicional dos juízes e dos
tribunais, que não podem tolerar o abuso processual como prática
descaracterizadora da essência ética do processo" (Ed no Ag no RE nº 244.893-
1⁄PR, 2ª Turma, j. Em 09.11.1999).
Uma vez afastada a justificativa do acórdão para a não incidência da multa do art. 17
do CPC, pois a previsão constitucional de um direito não pode se erigir em
justificativa para que esse mesmo direito seja utilizado com abuso, e não sendo
possível ao STJ rever a conclusão do acórdão a respeito da má-fé do ora recorrido,
que se tem por configurada, assim como o prejuízo sofrido pelos ora recorrentes,
que é evidente em face da constatação de que foram demandados apenas em face de
desejo revanchista do autor, é de se reformar o ardão neste ponto, fazendo incidir
a multa por litigância de má-fé ao recorrido, com fundamento no art. 17, V, do CPC.
IV-b) Análise da conduta dos recorrentes. Conclusões do acórdão recorrido.
Esta é, contudo, apenas uma face da questão.
Proposta a ação, empenharam-se os ora recorrentes na contenda com nada menos do
que quatro embargos de declaração, dois deles de simples despachos do juiz, um
agravo de instrumento, uma apelação e um mandado de segurança contra a mesma
sentença e todos com o mesmo conteúdo, três reclamações sobre o que entenderam
serem atitudes prejudiciais tomadas pelo Cartório onde tramitou o processo e pelo
Tribunal a quo, uma questão de ordem e incontáveis petições, além do presente
recurso especial, no qual, como visto, insiste-se em obter provimento jurisdicional já
existente desde o julgamento da apelação, que lhes foi favorável no mérito,
repisando-se incansavelmente acusações não contra o oponente, mas tamm
contra o próprio Poder Judiciário.
Nesse contexto, em que se verifica a interposição pelos ora recorrentes, até o
momento, de quase uma dezena de recursos absolutamente incabíveis e
desnecessários, chama a atenção o fato de que, em todas as petições por estes
oferecidas, faz-se longa exposição sobre a necessidade de respeito irrestrito à Lei
10.173⁄01, que confere preferência à tramitação dos processos envolvendo interesses
de idosos. Há, inclusive, petição a fls. 311⁄314, que reclama de 'atos inexplicáveis
praticados pela Escrivania' no presente processo, configurados no que seria uma
estranha demora para o processamento da apelação dos ora recorrentes, no qual
consta o seguinte trecho:
“Tendo sido interposta a apelação (fls. 253⁄287), em outubro de 2003, os autos
foram conclusos ao E. Juízo 20 (vinte) dias após, contrariamente ao que prescreve a
Lei nº 10.173⁄01, gerando a inconformidade dos ora apelantes” (fls. 311).
A resposta do servidor responsável pelo Cartório, a fls. 316, dá conta, porém, de que
tramitavam pela Vara nada menos do que vinte e cinco mil processos.
A insistência dos ora recorrentes em ver suas irresignações - repita-se, na grande
maioria, absolutamente incabíveis de acordo com a técnica processual - analisadas
com extrema eficiência é tanta que levou o i. Relator dos embargos de declaração
julgados no TA⁄PR a se manifestar, em uma página inteira, sobre o modo como
aquele Tribunal procura respeitar o privilégio legal concedido aos idosos (fls.
374⁄375).
Em resumo, verifica-se nítido contraste na postura dos ora recorrentes, pois estes, ao
mesmo tempo em que exigem celeridade ímpar na tramitação dos processos de que
são partes, atuam no sentido de atulhar o Poder Judiciário com vários recursos e
petições absolutamente despropositadas, contribuindo, assim, para a morosidade do
sistema como um todo.
266
Sobre a conduta dos ora recorrentes, igualmente se manifestou o acórdão, durante o
julgamento dos últimos embargos de declaração interpostos por estes, nos seguintes
termos:
“Também, e pela mesma linha de raciocínio, não vislumbro qualquer ato de má-fé
processual a ensejar seu reconhecimento nos moldes do artigo 17 da Lei adjetiva,
vez que, se o abuso de direito pelo acesso à Justiça pudessem ensejar a aplicação de
multa como pretendem os embargantes, por certo que aos mesmos esta penalidade
já teria sido imposta por mais de uma vez” (fls. 377).
Portanto, e nos termos do próprio acórdão, as duas partes agem de má-fé desde o
início da ação, e a ambas deixou-se de aplicar multa pelo mesmo motivo, qual seja,
apenas em respeito ao direito de acesso ao Judiciário.
Contudo, a revisão desse fundamento em relação ao recorrido, conforme realizado
no item anterior, faz com que se afaste tal justificativa também em relação aos ora
recorrentes.
Mais uma vez, portanto, a partir da configuração da má-fé processual dos ora
recorrentes, nos termos do próprio acórdão recorrido, há que se superar o argumento
no sentido de que o direito de acesso à justiça permite condutas como as já relatadas
nestes autos para reconhecer, de ofício, nos termos do art. 18 do CPC, a necessidade
de condenar igualmente os recorrentes às penas da litigância de má-fé, com
fundamento no art. 17, VI, do CPC, pois estes vêm se notabilizando em propor, um
após outro e conforme relatado, incidentes manifestamente infundados no curso
da causa, sendo de se ressaltar que, segundo Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de
Andrade Nery, "(...) o termo incidente deve ser entendido em sentido amplo,
significando incidente processual (exceção, impugnação do valor da causa etc.),
ação incidente (ADI, reconvenção, incidente de falsidade, embargos do devedor,
embargos de terceiro, denunciação da lide, chamamento ao processo etc.) e
interposição de recursos" (Código de Processo Civil comentado. São Paulo: RT,
edição, 2002, pág. 303 - sem grifos no original).
83
8.6 A Boa-fé Objetiva como Norma Orientadora da Atuação do Poder Judiciário Frente
aos Jurisdicionados
É importante destacar que a boa-fé objetiva estabelece um padrão de comportamento leal,
probo, de todos os envolvidos no desenvolvimento do processo.
Em alguns julgados pode-se aferir a atuação da boa-fé objetiva a exigir esse comportamento
por parte do óro jurisdicional em relação às partes (autor e réu) da relação jurídica
processual.
Nesses termos, tem-se a atuação da boa-fé objetiva como norma apta a restabelecer o padrão
escorreito de aplicação das normas processuais que versam sobre o desenvolvimento do
contraditório e da ampla defesa e dos requisitos de admissibilidade de recursos.
83
STJ: REsp 816.453, Proc. 2006/0024235-4/PR, Terceira Turma; Relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi,
Julg. 22.08.2006, DJU 04.09.2006, p. 270.
267
Com fulcro na boa-fé objetiva das partes o Tribunal do Rio Grande do Sul entendeu ser
tempestivo os embargos de execução de sentença protocolizados trinta dias após a juntada aos
autos do mandado de penhora, embora nos termos do art. 738, inciso I, do CPC, na redação
vigente à época, tal prazo era de dez dias. Como no mandado, incorretamente, constou o prazo
de trinta dias, entendeu o magistrado que “[...] uma vez que é obrigatório constar no mandado
prazo para resposta [...] Se o prazo constou errado, deve-se proteger a boa-fé da parte que
confiou na aparência gerada por um documento oficial, vindo do próprio poder judiciário.
84
O STF
85
já teve oportunidade de se manifestar no sentido de que a atuação segundo a boa-fé
processual aplica-se “não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que
atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional”
86
Destarte, ao Órgão Jurisdicional impõe conduta norteada pela boa-fé objetiva nas suas
relações com os administrados para que o processo se revista dos adjetivos de “justo e
équo”.
Terreno fértil para irrupção da aplicação da boa- objetiva diz respeito aos prazos
processuais. O art. 183, do CPC, dispõe:
Decorrido o prazo, extingue-se independentemente de declaração judicial, o direito
de praticar o ato, ficando salvo, porém, à parte provar que o o realizou por justa
causa.
§1º. Reputa-se justa causa o evento imprevisto, alheio à vontade da parte, e que a
impediu de praticar o ato por si ou por mandatário.
2º. Verificada a justa causa o juiz permitirá à parte a prática do ato no prazo que lhe
assinar.
Em alguns julgados restou demonstrado que o justo impedimento adveio, exatamente, de
condutas adotadas pelo próprio poder judiciário, situações nas quais a boa-fé objetiva emergiu
para restaurar a lealdade nos meandros processuais. Esse entendimento é corroborado pelo
Superior Tribunal de Justiça que esposou o entendimento no sentido de que a parte não
84
TJRS: APL-RN 70005782685; Uruguaiana; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal;
Julg. 22.10.2003.
85
AI 529.733-1/RS. STF. 2ª Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. Julg. 17.10.2006, DJU 01.12.2006, p. 097.
e STF: RE 464.963-2/Go, Turma. Rel. Min. Gilmar Mendes. Decisão unânime. Julgamento em 14.02.2006,
Publicação DJ 30.06.2006.
86
RE 464.963-2/Go, 2ª Turma. Rel. Min. Gilmar Mentes. Decisão unânime. Julgamento em 14.02.2006,
Publicação DJ 30.06.2006.
268
pode sofrer prejuízos em razão de uma confiança depositada na regularidade de atos baixados
pela magistratura e normas expedidas pelo Poder Judiciário.
No julgamento do REsp 432.603, a 4ª Turma do STJ deu provimento ao recurso para
reconhecer a tempestividade da apelação interposta dentro de período em que, por Provimento
emanado do Conselho Superior da Magistratura, se achavam suspensos os prazos recursais,
dentro do princípio da boa-fé da parte, que, em assim agindo, o pode ser surpreendida por
contradições oriundas dos próprios órgãos do Poder Judiciário.”
87
Na situação examinada a sentença havia sido publicada no dia 13.12.99, por conseguinte, o
prazo recursal teve sua contagem iniciada em 14.12.99. Ocorre que, de acordo com norma
expedida pelo Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, não haveria a
fluição dos prazos processuais a partir de 21.12.99, sendo retomados a contar de 01.02.2000.
A recorrente protocolizou a apelação em 29.01.2000, que o foi recebida por ser considerada
como intempestiva, o obstante o Provimento do Conselho Superior da Magistratura dispor
sobre a suspensão dos prazos processuais.
No julgamento do Recurso Especial a 4ª Turma daquela Corte ressaltou que “se norma
suspendendo a fluição dos prazos, não se pode atribuir à parte, em absoluto, qualquer ônus,
justamente por haver confiado na regularidade dos atos baixados pelos órgãos da magistratura
local. A presunção é, em princípio, pela sua validade, e, dessa forma, a parte que age de
conformidade com os mesmos está coberta pela boa-fé, constituindo justo impedimento se,
porventura, deixa de agir de outra forma, iludida de que seu posicionamento, por estar em
consonância com tais regras, era o correto. [...] É o princípio da boa-fé processual, e do
respeito ao direito dos litigantes que, sobretudo, não podem ser surpreendidos por
contradições oriundas dos próprios órgãos do Poder Judiciário, data máxima vênia.”
88
Ainda sob o enfoque da justa causa’ ou justo impedimento relativamente aos prazos
processuais, o STJ no julgamento do REsp. 41.497 deu provimento ao recurso para
reconhecer a tempestividade de apelação interposta.
87
STJ: RESP 432603/SP, Quarta Turma; Rel. Min. Aldir Guimarães Passarinho Junior; Julg. 07.08.2003, DJU
15/09/2003, pág. 0032.
88
STJ: RESP 432603; SP; Quarta Turma; Rel. Min. Aldir Guimarães Passarinho Junior; Julg. 07.08.2003, DJU
15.09.2003, pág. 0032.
269
A apelação havia sido interposta junto ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 02.04.99, a
qual não foi conhecida por ter sido considerada intempestiva. Entretanto, conforme razões
recursais veiculadas no REsp, havia sido publicado aviso da Corregedoria-Geral de Justiça
daquele Estado constando explicitamente: “os prazos judiciais não correrão na Semana Santa,
recomeçando a contar a partir de de abril de 1991.” A 4ª Turma do STJ, embora
ressaltando a atecnia na utilização da ‘suspensão’, uma vez que, de prorrogação se tratava,
reconheceu a competência concorrente dos Estados para legislar sobre procedimentos em
matéria processual, nos termos do art. 24, inciso XI, da CF/88.
Em assim sendo, e tendo o próprio Tribunal reconhecido “válido o ato do Corregedor-Geral,
reputando-o assim ajustado à ordem jurídica estadual vigente quando da sua edição, concluiu
operada a suspensão dos prazos no interregno em apreço.”
89
Logo, a parte não poderia ser surpreendida na confiança depositada na disposição expressa em
norma válida, expedida pela Corregedoria-Geral de Justa, sob pena de o próprio órgão do
Poder Judiciário incorrer em violação da boa-fé objetiva com os integrantes da relão
jurídica.
90
Em consonância com esse posicionamento adotado pelo STJ, a boa-fé objetiva tem norteado
decisões no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com vistas à proteção da confiança dos
jurisdicionados em atuações do Poder Judiciário.
89
STJ: RESP 41.497/RJ, Quarta Turma; Rel. Min. Sálvio de Figueira Teixeira; Julg. 13.09.94, DJU 24.10.94,
pág. 28762.
90
Ressaltamos que, na ementa do acórdão, constou expressamente: “Se, diante da previsão expressa estabelecida
em aviso da Corregedoria-Geral de Justiça, a parte age na convicção de que suspensos os prazos durante o
interregno da semana santa, resta evidenciada a sua boa-fé, cumprindo, caso atestada a incompetência de referido
órgão judiciário para dispor acerca da matéria, reconhecer a justa causa a que alude o art. 183.CPC.”
Ora, não se trata de boa-fé subjetiva, calcada em erro escusável. Está-se diante de aplicação da boa-fé objetiva
expressa no art. 14, inciso II do CPC, que impõe o dever de lealdade processual como conseqüência imediata,
dela não podendo se furtar nem mesmo o Poder Judiciário. No acórdão sob exame restou assentado pelo STJ,
inclusive aexaltando a iniciativa do legislador local, “[...] em dar vida ao comando constitucional sediado no
inciso XI do art. 24 da Lei Maior, contribuindo eficazmente para o aprimoramento da tutela jurisdicional”, que a
norma expedida pela Corregedoria-Geral era norma válida decorrente da competência concorrente para legislar
sobre procedimentos em maria processual. Logo, não poderia o próprio Poder Judiciário negar eficácia a essa
norma, sob pena, até mesmo, de comprometer a segurança dos jurisdicionados.
270
Conforme acórdão proferido no julgamento de agravo de instrumento foi dado provimento ao
recurso de agravo para devolver ao agravante o prazo para apresentação de embargos em ação
de execução.
91
Trata-se de ação de execução na qual o executado foi citado por carta precatória para opor
embargos à execução que lhe fora proposta. Entretanto, o executado não ajuizou tais
embargos no prazo definido no CPC sob a alegação de não ter sido lançado no sistema
informatizado a juntada aos autos da carta precatória de citação.
Para o deslinde da questão o Tribunal entendeu que o sistema informatizado de consulta
processual desenvolvido pelo Estado e por ele utilizado para melhor desempenho da
administração da justiça, em que pese não substituir a publicação no Diário Oficial de Justiça,
de acordo com a legislação processual, “impõe-lhe deveres perante os jurisdicionados,
decorrente dos princípios gerais do direito, tais como a boa-fé objetiva e a proteção de
confiança gerada pela aparência criada pela introdução do sistema, já que, a par do uso
obrigatório para o atendimento constitui em atividade essencial à administração da justa.”
92,
93, 94
Ressalte-se que, nos termos do voto da Desembargadora Relatora, o sistema informatizado
conferiu eficiência ao serviço judiciário com sensível redução no movimento em busca de
informações sobre o andamento processual, sendo obrigatória, para o atendimento nos
cartórios, a apresentação do extrato das informações do andamento processual emitido no dia.
91
TJRS: AI 70009424623, Tenente Portela, Vigésima Segunda Câmara Cível; Relª Desª Maria Isabel de
Azevedo Souza; Julg. 05/10/2004.
92
TJRS: AI 70009424623, Tenente Portela, Vigésima Segunda Câmara Cível; Relª Desª Maria Isabel de
Azevedo Souza; Julg. 05/10/2004.
93
Nesse mesmo sentido: TJRS: AI 70009425976, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 05/10/2004, que ficou assim ementado: A adoção
pelo Poder Judiciário do sistema informatizado no qual são registradas todas as movimentações do processo para
atender à eficiência e à boa administração da justiça gera no jurisdicionado uma expectativa legítima de que estes
dados são verdadeiros e retratam a realidade do processo. Confiança protegida pelos princípios da boa-fé
objetiva e da proteção da confiança resultante da aparência criada que acarreta o dever de manter atualizados os
registros que devem refletir a realidade do processo, respondendo pela veracidade das informações. 2. A falta de
registro da juntada aos autos do processo da carta precatória de citação no sistema informatizado configura justa
causa para fins de restituição do prazo processual à parte por força dos princípios da proteção da confiança e da
boa-fé objetiva. Art. 183, § 1°, do CPC. Recurso provido.”
94
No julgamento do REsp 390.561/Pr, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJU 26.08.2002, p. 175, o
STJ reconhece que as informações prestadas por meio da internet são oficiais e merecem a confiança. O Acórdão
ficou assim ementado: Informações prestadas pela rede de computadores operada pelo Poder Judiciário são
oficiais e merecem confiança. Bem por isso, eventual erro nelas cometido constitui "evento imprevisto, alheio à
vontade da parte e que a impediu de praticar o ato.". Reputa-se, assim, justa causa (CPC, Art. 183, § 1º), fazendo
com que o juiz permita a prática do ato, no prazo que assinar. (Art. 183, § 2º).”
271
Ao implantar o sistema informatizado, revestindo-o de importância tal para a boa
administração da justiça, de uso obrigatório para o atendimento nas serventias, o Estado
avocou para si o dever de manter atualizado, diuturnamente, todos os seus registros, de modo
a retratar a realidade do processo, respondendo pela veracidade das informações.
Destarte, “o erro ou a omissão no registro de dados, no sistema informatizado, produz efeitos
jurídicos fundados nos princípios gerais da boa- objetiva e na proteção de confiança.”,
fundamentando a decisão daquele Colegiado em dar provimento ao recurso com a devolução
do prazo ao Agravante para oferecimento dos embargos.
O Agravo de Instrumento nº 70008674285, interposto naquele mesmo Tribunal, também
versou sobre prazo processo e das implicações decorrentes das informações prestadas por via
eletrônica. A agravante se insurgiu contra a decisão que considerou extemporânea a defesa
por ela apresentada, uma vez que no site oficial do Tribunal do Rio Grande do Sul constou a
data de 23.09.2003 para abertura do prazo para contestação. Sendo assim, o termo final seria
08.10.2003, data na qual foi protocolada a contestação.
No julgamento o Desembargador Relator, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, em decisão
monocrática, decidiu por conhecer do recurso e dar-lhe provimento, pois “a falha apontada na
petição de agravo decorre do próprio Estado, por defeito nos registros eletnicos do feito no
próprio serviço judiciário. Nessas circunstâncias, interfere em prol do jurisdicionado o
princípio da proteção da confiança legítima. Princípio esse que, consoante a melhor doutrina
permite o reconhecimento da proteção da boa-fé no direito público, na medida em que o
cidadão deve presumir que os órgãos públicos agem de maneira regular, circunstância que o
leva legitimamente a confiar na aparência de direito, suscitada pelo Estado, conforme a teoria
do direito privado da aparência. [...]
95
Situação análoga à dos prazos processuais diz respeito aos requisitos de admissibilidade dos
recursos. Especificamente, no que tange ao requisito do preparo o STJ, no julgamento do
REsp nº 347.860/SP, teve oportunidade de analisar a questão.
95
TJRS: AI 70008674285, Porto Alegre, Sexta Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira; Julg.
18/05/2004.
272
No Estado de São Paulo foi expedido o Provimento Conjunto 01/95, dos Tribunais de
Justiça e Alçada Civis, que trazia disposição expressa no sentido de que, no ato de intimação
da sentença ou do acórdão, deveria constar o valor do preparo recursal. Em que pese tal
disposição, a recorrente teve seu recurso não conhecido por ter sido caracterizada a deserção.
Na decisão da qual fora intimada não havia consignado o valor do preparo, tendo ela
requerido uma nova publicação da decisão, com a indicação do valor, posto que a anterior era
omissa. Tal pretensão foi acolhida, fato esse comprovado nos autos, oportunidade em que foi
efetuado o preparo.
A 4ª Turma do STJ deu provimento ao recurso especial afastando a preclusão consumativa e
determinando prosseguimento do exame da apelação pelo Tribunal, uma vez não fazer sentido
serem editados atos pelos Tribunais determinando normas para, posteriormente, serem as
mesmas desconsideradas pelos próprios óros julgadores, surpreendendo partes e advogados.
A exigência imposta no Estado de São Paulo, em que ser “desnecessária ou não em face da
Lei Federal processual, o certo é que as partes e os advogados não devem ser surpreendidos
por decies judiciais emanadas dos próprios Pretórios que editaram a norma, afastando-a, em
prejuízo daqueles que a seguiram de boa-fé.”
96
Quadra destacar que, tamm neste julgado o STJ e em relevo a confiança criada pelos
jurisdicionados frente aos atos emanados pelo Poder Judicrio. A vingar a decisão do
Tribunal do Estado de São Paulo, que considerou o recurso deserto, estar-se-ia jogando por
terra os deveres de lealdade e boa-fé com que devem agir todos os que participam do
processo.
Vê-se, pois, que a Corte Superior restabeleceu no âmbito daquela lide os valores éticos que
devem permear as condutas dos atores no âmbito processual.
96
STJ: RESP 347860, SP; Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Guimarães Passarinho Junior; Julg. 20/02/2003, DJU
07/04/2003, pág. 00291.
273
Conclusão
1) Os modelos jurídicos jurisprudenciais na Teoria de Miguel Reale são estruturas dinâmicas
que veiculam o conteúdo das fontes e expressam a relação que se estabelece entre o conteúdo
normativo e a realidade social, numa relação dinâmica que alberga as mutações axiológicas e
hermenêuticas que emergem da realidade social. São pontos de partida para futuros juízos,
podendo manter-se na estrutural inicialmente construída ou ser reformulada para adequar aos
imperativos vigentes.
2) A concepção advinda do Estado liberal, traduzida na visão do processo como um jogo ou
um duelo irrefreado entre as partes, onde o juiz atuava como mero árbitro, deixou como
reminiscências a higidez das garantias constitucionais processuais traduzindo uma concepção
individualista e refratária a uma normatização que impusesse comportamentos de probidade
para os contendores. Sob esse panorama, o art. 14, inciso II do CPC foi concebido numa
perspectiva estritamente subjetivista. Na expressa menção de Buzaid, a boa-nos meandros
do direito processual significava agir conforme o direito, de acordo com a lei. Esse dispositivo
do CPC não foi concebido para veicular a boa-fé objetiva, mas, sim, a boa-subjetiva a
boa-fé que se contrapõe à má-fé. Entretanto, o Processo Civil, sob uma perspectiva
constitucional, com as suas raízes estruturadas no Texto constitucional, permite transmudar
essa aplicação subjetivista da boa-fé, que estava afinada com aquele momento histórico-
cultural, para dar-lhe uma conotação objetivista a reger os comportamentos dos participantes
do Processo.
3) O inciso II do art. 14 do CPC possui a feição de cláusula geral, destituída de conteúdo
apriorístico, remetendo o juiz a um trabalho tópico de construção do seu conteúdo. Na
jurisprudência da concreção a boa-fé objetiva o art. 14, inciso II do CPC desempenha papel de
metanorma, estruturando a aplicação de outras normas (princípios e regras), revelando-se
como uma própria garantia para os jurisdicionados de que os outros direitos e garantias
constitucionais serão respeitados. A boa-fé objetiva é norma cogente, é norma de ordem
pública, atuando como postulado normativo aplicativo, na concepção cunhada por Humberto
Ávila, que transmuda a concepção do processo como uma arena de gladiadores para
sobrelevar a sua natureza pública, onde mesmo havendo interesses contrapostos, esses
interesses são defendidos com a observância da máxima do comportamento correto.
274
4) A boa-fé objetiva atua no Direito Processual Civil vinculada à idéia de pretensão de
correção no comportamento não das partes, mas, também, do juiz, estabelecendo deveres
de cooperação que fazem do processo uma ‘comunidade de trabalhoonde impera os deveres
de lealdade entre estes e a confiança legítima no poder judiciário. Nesse passo, a boa-fé
objetiva no campo processual civil desempenha importantíssima fuão corretiva.
5) O magistrado, rompendo com o antigo e profundo viés que separa o legislador do aplicador
da lei, passa a criar o direito do caso concreto. Direito esse que, pelas reiteradas aplicações
constrói e reconstrói a norma, numa modelação que é delineada na estrutura dinâmica dos
modelos jurídicos jurisprudenciais, que dão vida e conteúdo às cláusulas gerais ou ‘pautas
carecidas de preenchimento’ dentre as quais se destaca a boa-fé objetiva prevista no art. 14,
inciso II, do CPC. Essa mudança paradigmática favoreceu o florescimento da jurisprudência
da concreção, que veio atender à necessidade de recomposão tico-axiológico-normativa
rompendo com o pensamento lógico-dedutivo, no qual o juiz desenvolvia mero trabalho de
subsunção do fato à norma. Ademais, desmistificou a pretensão de completude dos catálogos
normativos e cedeu espaço aos sistemas abertos que têm por característica marcante a técnica
legislativa permeada por princípios, conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais
denominados de “janelas do direito”.
6) Neste contexto, a boa-fé objetiva no âmbito do Direito Processual Civil com o seu
multissignificativo conteúdo possibilita a concretização do fair trial, do fair play. Norteia o
agir segundo as ‘regras do jogoestabelecendo balizas para que o desenvolvimento dialético
da relação jurídica processual culmine com a construção da solução para o caso concreto.
Nesse contexto, a boa-fé objetiva tem um aspecto importantíssimo de função de correção
traduzida na máxima do comportamento correto.
7) A lealdade e a boa-fé dão uma conotação axiológica ao regular desenvolvimento do
processo numa conjugação harmoniosa da observância das normas processuais plasmadas na
dialética do contradirio informado pela cooperação leal e proba daqueles que nele
participam para o alcance da decisão que, retrate, simultaneamente, a legitimidade da atuação
estatal na prestação jurisdicional e a pacificação social com justiça.
8) A pesquisa realizada nos acórdãos dos Tribunais alvo da presente investigação permitiu
visualizar modelos jurisprudenciais construídos sob o fundamento da boa-fé objetiva que
275
podem ser catalogados da seguinte forma: a boa-objetiva como norma que veda a atuação
dolosa de posições processuais; a boa-fé objetiva como norma otimizadora das garantias
constitucionais processuais; a boa-fé objetiva como norma que veda o venire contra factum
proprium no campo processual civil; a boa- objetiva como norma a assegurar a prestação da
tutela jurisdicional em tempo razoável; a boa- objetiva como norma orientadora da atuação
do poder judiciário frente aos jurisdicionados.
8.1) A boa-fé objetiva como “norma-principial” irradia o seu conteúdo em todos os espectros
do Processo Civil regendo as relações inter-partes (autor e réu); as relações entre o poder
judiciário e os jurisdicionados; otimizando a aplicação das garantias constitucionais
processuais expressas no devido processo legal, no contraditório e na ampla defesa com o fim
precípuo da efetividade da prestação da tutela jurisdicional.
8.2) Foi possível identificar uma linha comum nas decisões analisadas da formulação da
concepção da boa-fé objetiva por aquelas Cortes permitindo mesmo afirmar que a boa-fé
objetiva estabelece linhas mestras de estruturação do Processo Civil para que este se revista
dos predicados de “justo e équo”.
8.3) Sob um novo ângulo, constatou-se que os Tribunais têm aplicado medidas punitivas tão-
somente para as condutas dolosas não tendo sido identificados julgados nos quais houvesse
aplicação de penalidade pela prática de atos não dolosos, mas violadores da boa- objetiva. A
constatação da aplicação de medidas punitivas somente diante da prática de condutas dolosas
revela que perdura um vício de compreensão da norma. Entretanto, o olhar do processo a
partir das diretrizes constitucionais transmuda o contéudo da norma expressa no art. 14, inciso
II do CPC para alcaar uma nova validade dogmática destituída de qualquer caráter
subjetivo. A constatação da utilização da boa-fé objetiva aliada ao dolo reafirma que os
magistrados ainda fazem uma aplicação acanhada desse instituto relutando em aplicá-la em
toda a grandeza do seu conteúdo.
8.4) verdadeira identidade entre a preclusão lógica e o venire contra factum proprium. A
preclusão lógica no bojo do direito processual é sempre situação de venire contra factum
proprium, entretanto o campo de configuração do venire contra factum proprium no campo
processual desborda as situações nas quais se configura a preclusão lógica. Impende observar
o traço característico diferenciador das duas figuras: venire contra factum proprium e
276
preclusão lógica. A preclusão lógica ocorre no interior do processo com a realização de atos
processuais incompatíveis entre si, portanto está diretamente vinculado ao processo em curso
e os que dele participam. o venire contra factum proprium pode manifestar-se em condutas
cuja contrariedade pode desbordar os limites processuais, ou seja, comporta a prática de atos
extraprocessuais cuja contrariedade será manifesta no interior do processo. Poder-se-ia
afirmar que o venire contra factum proprium interno” é denominado, no campo processual,
como “preclusão lógicae o venire contra factum proprium externo”, para o qual não
uma figura processual específica equivalente.
9) Pode-se concluir que a boa-fé objetiva processual desempenha relevante papel
aproximativo do direito à realidade, consolidando suas regras através da jurisprudência,
potencializando a sua aplicação e construindo modelos jurídicos próprios deste “femeno
espantosoque é a boa-fé objetiva.
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