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Sendo um dos pontos de partida desta tese a articulação entre o estranho e o
narcisismo, como veremos adiante, consideramos importante ressaltar aqui as metáforas
óticas que permeiam todo este conto, assim como o amor narcísico de Natanael por
Olímpia, aquela que possui seus olhos, a quem ele olha sem ver aquilo que todos vêem -
o fato de tratar-se de uma boneca - já que só pode percebê-la como um espelho, como
perfeita correspondência de seus anseios.
37
Acerca do conto, Freud discorda de que o tema da boneca Olímpia seja o principal
elemento fonte de estranheza. Observa que o próprio autor aborda a questão da boneca
com um tom de sátira, ridicularizando a idealização que o jovem faz de sua amante.
38
Para Freud, a questão central é mesmo o Homem da Areia, aquele que arranca os olhos
das crianças, imagem do pai castrador.
39
Voltando ao conto, após um acesso de loucura ao perceber Olímpia como uma
boneca de fato, a quem faltavam os olhos, Natanael parece recuperado e volta para sua
noiva, Clara. Porém, a última passagem do conto mostra que o horror continuava. Do alto
de uma torre, acompanhado de Clara, Natanael observa através de seu binóculo a
aproximação do terrível advogado Coppelius, o que lança o jovem novamente em um
por exemplo. Além disso, em nota de rodapé Freud arrisca uma referência à biografia de Hoffmann:
"Hoffmann foi filho de um casamento infeliz (...) a relação do escritor com o pai foi sempre assunto dos
mais delicados para aquele."
- Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.291, nota 1.
37
"Sentado ao lado de Olímpia, as mãos dela entre as suas, falava de seu amor com entusiasmo e vibração
em termos inflamados que ninguém poderia compreender, nem ele mesmo, nem Olímpia. Bem, talvez ela
entendesse, pois olhava-o fixamente, suspirando sem cessar: "Ah... ah... ah!' Ao que Natanael respondia:
'Ah, esplêndida mulher, exemplo do amor que nos prometem na outra vida, espírito profundo no qual se
reflete todo o meu ser!', e outras coisas semelhantes, enquanto Olímpia apenas suspirava repetidamente:
'Ah... ah!'."
(Hoffmann, E.T.A., O Homem da Areia, op. cit., p.138).
38
No final do artigo sobre o estranho Freud aponta o cômico como um dos recursos capazes de evitar a
estranheza diante de um texto.
Cf. Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.313. Sobre isso, ver ainda
Kupermann, D.
Ousar rir: humor, criação e psicanálise. RJ, Ed. Civilização brasileira, 2003; onde o
autor aponta o humor como um dos fatores que permitem que o estranho não seja apenas fonte uma
angústia paralisante.
39
Andrade, R.A.S, em sua tese de doutorado L'heritage romantique allemand dans la penseé
freudienne
, Paris VII, 1990; também ressalta o fato de que Freud centra-se apenas na articulação do
estranho com o complexo de castração, deixando de lado toda a problemática narcísica em questão, tema
que o autor considera fundamental nesta análise de "O homem da areia".