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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Sociais
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
Tese de Doutorado
A inquietante estranheza na contemporaneidade
Patrícia Saceanu
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Março 2005
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ii
UFRJ
A inquietante estranheza na contemporaneidade
Patrícia Saceanu
Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Doutor em Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Rio de Janeiro
Março/2005
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iii
A inquietante estranheza na contemporaneidade
Autora: Patrícia Saceanu
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
Presidente, Prof.: _____________________________
Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Doutor
Prof.: ___________________________
Ana Maria Alencar
Doutor
Prof.: ___________________________
Teresa Cristina Carreteiro
Doutor
Prof.: ___________________________
Julio Verztmann
Doutor
Prof.: ___________________________
Regina Herzog
Doutor
iv
FICHA CATALOGRÁFICA:
Saceanu, Patrícia
A inquietante estranheza na contemporaneidade / Patrícia Saceanu.
Rio de Janeiro: UFRJ IP Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, 2005.
x, 228 f.
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica) UFRJ IP Programa de
Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2005.
1. Estranho. 2. Narcisismo 3. Agressividade 4. Psicanálise.
I. Pinheiro, Maria Teresa da Silveira (Orientadora) II. UFRJ - Instituto
de Psicologia Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. A
inquietante estranheza na contemporaneidade.
v
RESUMO:
A noção freudiana de Unheimlich a inquietante estranheza nos apresenta o aspecto
intimamente familiar daquilo que é muitas vezes sentido como estranho. A proposta
central desta pesquisa é investigar os possíveis modos de relação com este estranho,
dentre os quais enfatizamos a agressividade, que vemos manifestar-se tão freqüentemente
sob a forma de ódio. Apontamos que esta agressividade se constitui como uma contra-
face do narcisismo, estando presente desde a constituição do sujeito. Porém, ressaltamos
também a existência de uma crueldade dirigida ao estranho, que estaria para além do
narcisismo, e que se manifestaria sob a forma de indiferença com relação ao outro. O
objetivo deste trabalho é o de propor uma discussão sobre as formas como a
agressividade e a crueldade com relação ao estranho têm se apresentado na
contemporaneidade, levando em conta as especificidades do sujeito contemporâneo e sua
relação com a alteridade. Para isso, além da psicanálise, recorremos a outros campos de
saber como a literatura, a sociologia, a história, a filosofia, e também o cinema, buscando
instrumentos para a discussão deste tema. Finalmente, buscamos apresentar a
possibilidade de uma alternativa à agressividade e à crueldade contra o estranho a partir
das contribuições de Derrida, mais especificamente de seu conceito de hospitalidade,
procurando sempre enfatizar o papel que caberia à psicanálise neste contexto.
vi
RÉSUMÉ:
La notion freudienne de Unheimlich l’inquiétante étrangeté nous présente l’aspect
intimement familier de ce qui est, de nombreuses fois, ressenti comme étrange. Le
principal propos de cette recherche est d’ explorer les modes possibles de relation avec
cet étrange, parmi lesquels nous distinguons l’agressivité, que nous voyons si souvent se
manifester sous forme de haine. Nous soulignons que cette agressivité se constitue
comme autre face du narcissisme, elle-même présente depuis la constitution du sujet.
Cependant, nous insistons aussi sur l’existence d’une cruauté tournée vers l’étrange,
laquelle se trouverait au-delà du narcissisme et qui se manifesterait sous forme
d’indifférence envers l’autre. Le but de ce travail est de proposer une discussion sur les
façons dont l’agressivité et la cruauté, par rapport à l’étrange, se présentent dans la
contemporanéité, en prenant en compte les spécificités du sujet contemporain et sa
relation avec l’altérité. Par là, outre la psychanalyse, nous recourons à d’autres champs du
savoir comme la littérature, la sociologie, l’histoire, la philosophie et aussi le cinéma,
dans une quête d’instruments pour discuter ce thème. Enfin, nous cherchons à présenter
la possibilité d’une alternative à l’agressivité et à la cruauté contre l’étrange à partir des
contributions de Derrida et en particulier de son concept d’hospitalité, en nous efforçant
de toujours souligner le rôle qui reviendrait à la psychanalyse dans ce contexte.
vii
AGRADECIMENTOS
A Teresa Pinheiro, em primeiro lugar, que sem ela nada disso teria sequer começado.
A ela agradeço mais uma vez por ter acreditado em mim antes de mim, e por ter
continuado acreditando. Agradeço pela seriedade e a leveza com que me conduziu e me
acompanhou por todo o nosso caminho, ao mesmo tempo em que me permitia crescer e
fazer deste o meu caminho.
A Marie-Claude Lambotte, pela orientação atenciosa e a acolhida tão carinhosa durante o
ano em Paris, e pela generosidade com que me permitiu tanta liberdade de experimentar.
A Capes, pelas bolsas de mestrado, doutorado e doutorado-sanduíche, fundamentais para
a viabilização deste trabalho.
A meus pais e meus irmãos, por todo o amor e apoio desde sempre.
A cada um dos membros do grupo de pesquisa “Melancolia e doenças auto-imunes”,
pelas discussões tão ricas e o ambiente estimulante.
A todos os amigos que me acompanharam e me apoiaram desde o início, especialmente a
Flavia Brasil e a Carla Fraga.
viii
“Tudo o que não invento é falso”
Manoel de Barros
ix
SUMÁRIO
Introdução .......................................................................................................................................1
Capítulo I – O estranho-familiar .....................................................................................................8
- O Unheimlich freudiano .............................................................................................................11
- O estranho e a literatura ..............................................................................................................16
- Sobre “O homem da areia” .........................................................................................................19
- O estranho, o recalcado e a compulsão à repetição ....................................................................26
- “O estranho”: um texto “entre”, um conceito “indecidível” .....................................................32
- O estranho e o narcisismo: “indecidíveis” .................................................................................40
- “O espelho”, de Machado de Assis ............................................................................................49
Capítulo II - O estranho, a agressividade e a crueldade ................................................................54
- A agressividade: um dos destinos do estranho ...........................................................................55
- A agressividade como contra-face do narcisismo ......................................................................56
- Sobre “William Wilson”, de Poe ................................................................................................58
- O ódio na constituição do eu e do outro .....................................................................................62
- O narcisismo das pequenas diferenças .......................................................................................68
- A agressividade e a crueldade ....................................................................................................72
- A psicanálise deve pensar o social .............................................................................................81
- O estrangeiro e o racismo ...........................................................................................................86
Capítulo III – A agressividade e a crueldade com relação ao estranho na contemporaneidade ...93
Parte 1: Que contemporaneidade? ................................................................................................93
- A nova soberania imperial ..........................................................................................................95
- As novas formações subjetivas .................................................................................................102
- O narcisismo na contemporaneidade ........................................................................................106
- A fadiga do indivíduo soberano ................................................................................................112
- O lugar do Outro na contemporaneidade ..................................................................................116
x
Parte 2: Questões para hoje .........................................................................................................123
- O multiculturalismo tolerante e a neutralização das diferenças ...............................................124
- Não há mais estranhos e só há estranhos ..................................................................................128
- Há um novo racismo? ...............................................................................................................131
- O fim das “guerras” ..................................................................................................................138
- A razão do mais forte ................................................................................................................142
- O 11 de setembro ......................................................................................................................146
- O novo Outro do Ocidente ........................................................................................................151
- O “auto-imunitarismo” .............................................................................................................155
Capítulo IV – Crueldade e hospitalidade ....................................................................................160
Preâmbulo: “Dogville” e a soberana crueldade ..........................................................................160
- Sobre “Dogville” ......................................................................................................................162
- Por que “Dogville”? ..................................................................................................................171
. “Dogville” e a soberana crueldade da contemporaneidade ...........................................171
. “Dogville” e a soberana crueldade humana ..................................................................175
A impossível hospitalidade e a hospitalidade possível ...............................................................181
- Derrida e a alteridade ................................................................................................................183
- Sobre a hospitalidade ................................................................................................................188
- A hospitalidade condicional e a hospitalidade incondicional ...................................................193
- A crueldade sem álibi ...............................................................................................................198
- Derrida e a psicanálise ..............................................................................................................201
- O que cabe à psicanálise hoje? .................................................................................................207
Considerações finais ...................................................................................................................210
Referências bibliográficas ...........................................................................................................221
Introdução
Esta tese é resultado do desdobramento da pesquisa realizada para a dissertação
de mestrado intitulada “O estranho e seus destinos”
1
, onde abordamos o tema do estranho
a partir das formulações freudianas sobre o Unheimlich.
2
No texto dedicado à questão da inquietante estranheza - "O estranho"
3
- Freud
radicaliza a concepção psicanalítica de que "o eu não é senhor em sua própria casa"
4
,
apontando que aquilo que sentimos como estranho não é nada novo, mas sim
intimamente familiar, "aquilo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz"
5
.
Recorrendo à etimologia do termo alemão Heimlich, Freud mostra que este termo
comporta tanto o sentido de familiar quanto o de estranho - Unheimlich. Através deste
encontro dos contrários, consideramos que Freud indica um modo de articulação que não
se resume às oposições dualistas.
A íntima familiaridade da estranheza em questão no Unheimlich nos remeteu ao
tema da constituição do sujeito, do narcisismo como condição desta familiaridade que
podia mostrar-se tão estranha ao eu. Deste modo, consideramos o estranho como
tributário do narcisismo, que estranheza, no sentido do Unheimlich freudiano,
onde há familiaridade.
1
Saceanu, P. O estranho e seus destinos. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, UFRJ, 2001, inédita.
2
Os dois primeiros capítulos desta tese retomam algumas das principais idéias contidas na dissertação de
mestrado, articulando-as ainda com outros temas .
3
Freud, S., O Estranho [1919], ESB, RJ, Ed. Imago, 3
a
edição, 1990, Vol.XVII.
4
Freud, S., Uma dificuldade no caminho da psicanálise [1917], In op. cit., Vol.XVII, p.178.
5
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.301.
2
Procuramos mostrar que entre o estranho e o narcisismo, assim como entre o
Unheimlich e o Heimlich, haveria uma relação de continuidade, e não uma simples
oposição. A partir daí, consideramos que este modo de articulação poderia servir como
ponto de partida para uma reflexão que fosse além das dicotomias onde a diferença
permanece como um resto a ser expulso ou temido. Esta perspectiva constituiu uma das
principais bases daquela dissertação e mantém a sua importância nesta tese.
A idéia que nos guiava então era a de que, a partir de um encontro com a
estranheza, seriam possíveis “diferentes destinos”. Para esta investigação sobre o
estranho e seus destinos, seguimos uma valiosa indicação de Freud que, no texto sobre o
estranho, apontara que o discurso literário teria muito a contribuir quanto a este tema.
Assim, recorremos a diferentes contos que abordavam experiências semelhantes de
estranhamento, buscando usufruir da riqueza de deslizamentos permitida pelo texto
literário, explorando ainda a sua íntima relação com o discurso psicanalítico.
Nos textos psicanalíticos aos quais recorremos, principalmente de Freud e Lacan,
e também na maior parte dos textos da literatura sobre o estranho, encontramos o
Unheimlich associado à emergência da angústia, como se o Unheimlich e a angústia
fossem termos tão próximos, a ponto de se tornar difícil dissociá-los. A agressividade
também era geralmente ressaltada como uma conseqüência do encontro com a
estranheza, principalmente sob a forma de um embate com um “duplo” perseguidor.
Porém, nos instigava à reflexão a idéia de que também outros destinos seriam
possíveis a partir do estranhamento, destinos estes que não se resumiriam à angústia e à
agressividade.
3
Esta questão dizia respeito diretamente à clínica psicanalítica que, em nosso
entender, apresentaria justamente a possibilidade de uma outra forma de relação com a
estranheza – principalmente com o estranho mais íntimo. Promovendo o encontro de cada
sujeito com a estranheza do próprio inconsciente, a clínica psicanalítica permitiria que tal
estranhamento se tornasse ponto de partida para uma abertura, para mudanças de posição
subjetiva, para a produção do novo.
De fato, era necessário reconhecer que os destinos mais freqüentes do estranho
em situações cotidianas eram a emergência de angústia e a agressividade. Esta última,
tinha efeitos que ultrapassavam o campo da análise individual, implicando em fenômenos
sociais que, ao mesmo tempo em que nos pareciam exigir reflexão, escapavam a nosso
alcance naquele momento.
Este foi o ponto em que nos detivemos na dissertação de mestrado, certos de que
esta pesquisa continuaria. Este trabalho de doutorado apresenta a continuação daquele
caminho, desenvolvendo as questões que então nos provocavam:
Em primeiro lugar, consideramos que o Unheimlich freudiano poderia nos servir
como base para uma reflexão que não se restringisse a um fenômeno isolado - um
momento fugaz de vacilação da própria imagem - não muito freqüente no cotidiano e
ainda mais raro na clínica. A compreensão do Unheimlich, e tudo o que este fenômeno
havia nos permitido abordar - um modo de articulação não dualista; o papel indispensável
do Outro para a formação do ego; a dupla função, constitutiva e destrutiva, da
agressividade, etc. – nos levaram a estender este tema para uma discussão sobre o
estranho entendido como Outro, como alteridade.
4
Ao fazê-lo, nos vimos no delicado terreno de interseção entre a psicanálise e o
social. Considerando o estranho como alteridade, nos referíamos, ao mesmo tempo, à
relação de cada sujeito com sua estranheza mais íntima, mas também a temas como as
formações grupais, o narcisismo das pequenas diferenças, a relação com o estrangeiro e o
racismo, entre outros. Neste campo das relações com o Outro, a agressividade tão
freqüentemente manifesta era a questão que mais nos atraía a atenção, exigindo maiores
reflexões.
Apesar de reconhecermos as dificuldades desta interface com o social,
consideramos que este caminho não poderia ser evitado. Entendemos que, além de uma
necessidade, seria um dever da psicanálise empenhar-se neste diálogo com outros campos
de saber. Este foi um dos desafios que nos dispomos a enfrentar nesta tese, mesmo
sabendo que estaríamos apenas esboçando alguns passos em direção a uma tarefa tão
difícil quanto necessária.
Mais ainda, consideramos que a psicanálise não podia esquivar-se de pensar o
próprio tempo. É preciso reconhecer que atualmente a grande maioria das críticas
recebidas pela psicanálise não são mais dirigidas à sua novidade, como nos tempos de
Freud, mas sim ao fato de que ela teria envelhecido, e por isso teria se tornado
ultrapassada. O que nos motivou a enfrentar as dificuldades de uma reflexão sobre o
social, e mais especificamente sobre a contemporaneidade, foi a convicção de que a
psicanálise pode e deve contribuir de formas importantes quanto a questões muito graves
e urgentes.
Neste contexto, a questão que se tornou um dos focos centrais desta tese é a
discussão sobre as formas através das quais a agressividade com relação ao estranho se
5
manifesta na contemporaneidade, e o que é possível como alternativa diante disso. Nosso
horizonte permanece sendo a teoria e a clínica psicanalítica, de onde extraímos a
concepção de que outros destinos são possíveis a partir de um estranhamento.
Quanto ao tema da agressividade, foi preciso um passo além do ponto em que nos
detivemos na dissertação. Até então, havíamos considerado a agressividade como uma
contra-face do narcisismo, presente desde a constituição do sujeito. Como paradigma da
agressividade diante do estranho, considerávamos o fenômeno do duplo, onde predomina
um embate dual, imaginário, segundo a lógica do “ou eu ou ele”.
Porém, no aprofundamento deste trabalho, fez-se necessário reconhecer e nomear
algo que estaria para além da agressividade imaginária, e que não poderia ser
compreendido, muito menos justificado, a partir de um funcionamento narcísico ou
sexual.
Nesta reflexão, seguimos as formulações da segunda tópica freudiana, mais
especificamente as afirmações de Freud em “O mal-estar na civilização”.
6
Naquele
momento, Freud foi mais além, ao referir-se a uma agressividade derivada da pulsão de
morte, como uma força autônoma, onde o que está em jogo não é mais a auto-
conservação ou a sexualidade. Neste ponto, trata-se de um além do princípio do prazer,
além até mesmo da agressividade à qual se referia até então.
Consideramos necessário, a partir daí, o estabelecimento de uma distinção
metapsicológica entre o que chamamos de agressividade, e aquilo que passaríamos a
denominar crueldade. Reservamos este último termo para as manifestações da ordem da
pulsão de morte, força sem fim, para além do princípio do prazer, além da sexualidade,
do narcisismo e da auto-conservação.
6
Freud, S. O mal-estar na civilização [1930], In op.cit., Vol.XXI.
6
Com relação ao estranho, propomos pensar que na agressividade haveria uma
dinâmica narcísica em jogo, com predomínio do registro imaginário, onde a familiaridade
do estranho seria negada, recalcada. Neste caso, ao outro caberia o lugar de inimigo, alvo
de ódio, como exemplifica o fenômeno do duplo ou, com relação às formações grupais, o
“narcisismo das pequenas diferenças”.
na crueldade haveria uma negação ainda mais radical, sob a forma de uma
recusa da familiaridade do estranho, onde o outro seria desconsiderado, transformado em
“coisa”, como totalmente estranho, diante do qual o sujeito não é capaz de identificação.
Com relação a esse Outro, estranho radical, a indiferença substituiria o ódio como afeto.
A recusa da familiaridade do estranho pode chegar ao ponto extremo de negar-se o
“estatuto de humano” do estranho, o que faz com que não reste qualquer identificação
possível, abrindo-se o caminho para todas as formas de violência.
Chegamos assim à formulação de nossa questão mais específica, de pensar como
a agressividade e a crueldade com relação ao estranho se apresentam na
contemporaneidade. Para isso, recorremos a alguns autores psicanalistas, sociólogos,
filósofos, entre outros que nos permitem traçar um panorama a partir de suas análises
da atualidade, visando contextualizar nossa reflexão.
Buscamos também na literatura usufruir mais uma vez das contribuições que o
discurso literário é capaz de oferecer, como verificamos no trabalho anterior. Desta vez,
recorremos ainda ao cinema, mais especificamente a um filme que nos permite abordar
de modo privilegiado os temas da contemporaneidade que mais nos interessam.
7
No campo da filosofia, encontramos em Jacques Derrida
7
a possibilidade de uma
interlocução privilegiada. A este filósofo de pensamento audacioso, Kofman
8
denominou
“um filósofo Unheimlich”, devido à peculiaridade de sua escrita, capaz de se situar
“entre” filosofia e literatura, e também por ser “estranho” a toda uma tradição metafísica,
que mantém suas bases sobre as oposições dualistas. Além disso, sempre de modo
desconstrutivo, Derrida torna-se estranhamente próximo da psicanálise.
Derrida não se furtava a refletir acerca de política, economia, direitos humanos,
pena de morte, enfim, sobre as questões do mundo, sem evitar as implicações éticas e
políticas de seu discurso. Pensar e agir, para Derrida, nunca foram opostos; dizia que, ao
fazer filosofia pode-se intervir no mundo.
Compartilhando de sua perspectiva e incitados pela provocação de sua leitura,
retomamos o instrumental psicanalítico, convencidos de que a psicanálise não pode nem
deve recuar diante dos desafios da contemporaneidade.
7
Alguns dos livros de Derrida utilizados ao longo desta tese não estão disponíveis em português, logo, as
traduções são nossas. Nas citações cujas traduções consideramos mais delicadas, mantemos os originais em
notas.
8
Kofman, S. Lectures de Derrida. Paris, Ed. Galilée, 1984.
8
Capítulo I – O estranho-familiar
O conceito freudiano de inconsciente implica numa subversão a partir da qual o
“estranho” passa a ser concebido como um dos aspectos do psiquismo, evidenciando que
a unidade presumida pelo sujeito é habitada por uma alteridade: "o eu não é senhor em
sua própria casa"
9
, somos divididos, estrangeiros para nós mesmos.
No texto dedicado à questão da inquietante estranheza - "O estranho"
10
("Das
Unheimliche") - Freud radicaliza esta concepção, própria do pensamento psicanalítico,
mostrando que aquilo que sentimos como estranho não é nada novo, mas sim
intimamente familiar, "aquilo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz"
11
.
Consideramos que "O estranho" é um texto muito rico, que trata, por vezes de
modo não muito explícito, de questões fundamentais da psicanálise, incluindo sua teoria e
clínica. Apesar de ser um texto anterior ao "Além do princípio do prazer"
12
, onde a
segunda tópica seria estabelecida, "O estranho" aponta claramente para as principais
formulações que fundamentam esta segunda tópica, que marca uma importante virada no
pensamento freudiano. Neste sentido, poderíamos considerá-lo um texto “entre” a
primeira e a segunda tópica, posição esta que nos parece privilegiada por permitir
diversas discussões, como pretendemos demonstrar.
A partir de um cuidadoso estudo etimológico do termo alemão Heimlich - o
familiar - Freud nos mostra o encontro dos contrários, que Heimlich é um termo que
9
Freud, S., Uma dificuldade no caminho da psicanálise [1917], In op. cit., Vol.XVII, p.178.
10
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit.
11
Ibid, p.301.
12
Freud, S., Além do princípio do prazer [1920], In op. cit., Vol. XVIII.
9
comporta tanto o sentido de familiar quanto o de estranho - Unheimlich. Deste modo,
suas formulações, neste texto, são fiéis a esta constatação semântica. Evidenciando este
encontro dos contrários, Freud nos permite vislumbrar um caminho para além das
oposições dualistas.
Recorreremos aqui às contribuições de Derrida, que ressalta a importância do
texto freudiano “O estranho”, e da própria noção de Unheimlich. O filósofo considera
este um texto “mais aberto”, menos preso a implicações metafísicas e, deste modo, mais
próximo de sua leitura. Em sua proposta de desconstrução, dentre os textos freudianos,
Derrida aborda este texto “marginal”, diante do qual afirma sentir-se bastante “em casa”.
Quanto à noção de Unheimlich, Derrida considera este um termo “indecidível”, e por isso
tão privilegiado para uma abordagem que vise ir além das simples oposições.
O aspecto de íntima familiaridade da estranheza em questão no Unheimlich nos
leva a abordar ao tema da constituição do sujeito, do narcisismo como condição desta
familiaridade que vemos muitas vezes mostrar-se tão estranha ao eu. É a partir daí que
concebemos o estranho como tributário do narcisismo, já que só há estranheza, no sentido
do Unheimlich freudiano, onde há familiaridade. A constituição de uma imagem própria,
seu papel indispensável na constituição do eu e, ao mesmo tempo, a fragilidade e o
estatuto de ficção deste eu, assim como a exterioridade desta imagem própria, que "eu
é um outro"
13
, são algumas das questões com as quais nos deparamos nesta reflexão.
Consideramos que entre o estranho e o narcisismo, assim como entre o
Unheimlich e o Heimlich, haveria uma articulação “indecidível”, entendida como uma
relação de continuidade, para além de uma simples oposição. Acreditamos que a questão
13
Frase do poeta Rimbaud que Lacan cita em alguns momentos como, por exemplo, no texto A
agressividade em Psicanálise
[1948] in Escritos, RJ, JZE, 1998, p.120.
10
do estranho pode servir como ponto de partida para uma reflexão que possa ir além das
dicotomias onde a diferença é sempre excluída. Nas simples oposições - dentro ou fora,
eu ou outro, estranho ou familiar - o mesmo é sempre mantido, mesmo que seja pela
negativa, não havendo lugar para a alteridade.
Nesta reflexão acerca do Unheimlich, neste capítulo e ao longo desta tese,
recorreremos à literatura em alguns momentos, por considerarmos que o discurso literário
pode ser fonte de uma incomparável riqueza de associações. Neste sentido seguimos uma
indicação de Freud que, com relação ao tema do estranho, afirma que a experiência do
Unheimlich é algo tão fugidio que a ficção o demonstra melhor, produzindo-o de modo
mais estável e articulado: "O estranho, tal como é descrito na literatura (...) merece na
verdade uma exposição em separado. Acima de tudo, é um ramo muito mais fértil do que
o estranho na vida real..."
14
Assim, nos mostra claramente que é possível encontrar algo
do discurso psicanalítico fora do seu dispositivo, principalmente na literatura.
Neste uso da literatura seguimos também as indicações de Derrida, que sempre
reafirmou seu fascínio pela literatura, essa “instituição que permite dizer tudo”
15
,
permeando seu próprio texto com “enxertos” (greffes) literários, a ponto de torná-los
textos “entre” filosofia e literatura. O que pretendemos seguir de Derrida é este uso da
literatura, onde esta não é evocada para comprovar, ilustrar ou fundamentar qualquer tese
filosófica, mas empresta sua capacidade de “abalar” todo discurso que se pretenda
unívoco.
14
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.310.
15
Derrida, J. Circonfissão in Bennington, G. e Derrida, J. Jacques Derrida. RJ, JZE, 1996, p.149, nota 40.
11
O Unheimlich freudiano
Neste capítulo sobre o tema da inquietante estranheza nos propomos a trabalhar
detalhadamente o principal texto onde Freud aborda este assunto. Trata-se de uma
publicação de 1919, cujo título é justamente "O estranho", e que nos parece merecer uma
atenção maior do que aquela que lhe tem sido usualmente dispensada.
Freud inicia este texto afirmando que o estranho relaciona-se com aquilo que é
assustador, com o que provoca medo e horror, buscando definir "que núcleo comum é
esse que nos permite distinguir como 'estranhas' determinadas coisas que estão dentro
do campo do que é amedrontador"
16
, numa tentativa de delimitar qual a especificidade do
estranho. Neste sentido, afirma que "o estranho é aquela categoria do assustador que
remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar"
17
, mostrando que é justamente
algo de mais intimamente familiar que pode tornar-se inquietantemente estranho.
Afirma que sua investigação começara a partir de uma série de casos individuais,
tendo sido mais tarde confirmada pelo exame do uso lingüístico. Porém, anuncia que
nesta exposição faria o caminho inverso, iniciando o artigo por um cuidadoso estudo
etimológico, onde examina cada nuance do termo alemão Unheimlich.
Consideramos importante retomar este percurso, mesmo que não nos detenhamos
de modo exaustivo em discussões semânticas. Freud inicia sua análise etimológica do
Unheimlich, adjetivo formado por Un, prefixo de negação + Heim, casa, lar, doméstico,
mostrando que Heimlich é um termo que pode desenvolver-se num sentido ambíguo, até
16
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.276.
17
Ibid, p.277.
12
coincidir com seu contrário, Unheimlich. Freud toma isto como uma confirmação,
inscrita na própria língua, da hipótese psicanalítica que relaciona o estranho àquilo que
nos é mais intimamente familiar.
Esta constatação da íntima correlação entre termos aparentemente contraditórios
não lhe pareceu de todo surpreendente. Em 1910, no texto "O sentido antitético das
palavras primitivas"
18
, Freud se mostrava muito interessado pela descoberta de alguns
filólogos, que afirmavam que seria comum encontrar, nas línguas primitivas, palavras
comportando sentidos contraditórios. Seguindo estes estudos lingüísticos, afirma que isto
não se daria por acaso, mas sim pelo fato de que os conceitos seriam construídos a partir
de comparações. Neste sentido, exemplifica: "se sempre houvesse luz, não seríamos
capazes de distinguí-la da escuridão, nem de ter o conceito de luz".
19
Assim, todo
conceito seria dependente de seu contrário e, inicialmente, poderia ser comunicado
evidenciando este contraste. Referindo-se ao modo de estruturação da linguagem, Freud
afirma que só aos poucos o homem teria sido capaz de separar dois lados de uma antítese
e de pensar cada um deles sem uma comparação consciente com o outro. Deste modo, a
princípio disporíamos de apenas uma palavra para descrever dois contrários, nos pontos
extremos de uma seqüência de qualidades ou atividades, como por exemplo: forte-fraco,
longe-perto.
18
É importante lembrar que este texto foi bastante criticado por lingüistas, que apontam a precariedade da
teoria que Freud apresenta com relação ao desenvolvimento da linguagem. Porém, acreditamos que apesar
das inúmeras críticas que são dirigidas a Freud, muitas das quais mostram-se de fato pertinentes em seus
contextos, principalmente com relação a seus estudos da Bíblia, de História, antropologia, entre outros;
estas mesmas obras mantêm-se como referências fundamentais, naquilo que nos permitem pensar certas
questões do campo psicanalítico.
19
Cf. Freud, S., O sentido antitético das palavras primitivas [1910], op. cit., p.143.
13
Freud articulou esta constatação com sua teoria acerca dos sonhos, afirmando que
as línguas primitivas se comportariam de modo análogo aos sonhos que desconsideram
a “categoria dos contrários”
20
- logo, ao funcionamento do inconsciente.
O que nos interessa ressaltar aqui não é a controversa aproximação que Freud
propõe entre o funcionamento dos “povos primitivos”, das crianças, dos sonhos ou do
inconsciente, mas sim o fato de que, deste modo, ele nos chama a atenção para uma
possibilidade de articulação onde o que está em jogo não é uma simples contradição, mas
séries de associações, capazes de derivar um sentido inverso. É isso que voltaremos a
observar mais adiante, acerca do Unheimlich.
Assim, podemos observar que a afirmação de Freud acerca do estreito vínculo
entre o estranho e familiar, nos mostrando aquilo que considera uma "prova etimológica",
que veremos a seguir, de como o Heimlich chega a coincidir com o Unheimlich, tem por
base toda uma idéia sobre o funcionamento do inconsciente. É neste sentido que
acreditamos que o texto "O estranho" ultrapassa aquilo a que se propõe, apresentando
elementos importantes para uma pesquisa sobre a dinâmica do inconsciente.
Mesmo não sendo nosso objetivo um estudo lingüístico aprofundado, não
poderíamos deixar de notar que este foi um ponto fundamental para Freud em suas
formulações sobre o estranho. Seguindo o percurso freudiano, constatamos que a
etimologia também pode nos ser de grande valia para abordar nosso objeto de estudo, não
como tentativa de definir de modo unívoco "o que é Das Unheimliche", mas nos servindo
de base para futuras articulações.
20
"O modo pelo qual os sonhos tratam a categoria dos contrários é bastante singular. Ela é simplesmente
desconsiderada. O
não não parece existir no que diz respeito aos sonhos. Eles mostram preferência
particular por combinar os contrários numa unidade (...) os sonhos se sentem livres para representar
qualquer elemento por seu oposto (...)" - Freud, S.,
A interpretação dos sonhos [1900], op. cit., p.305.
14
Pesquisando em diversos dicionários, Freud observa que várias línguas não têm
uma palavra exata para esta "particular nuance do que é assustador", antecipando
justamente todo o problema de tradução com o qual nos deparamos.
A tradução brasileira das obras de Freud (ESB) adotou o termo estranho para o
alemão Unheimlich, e este permaneceu como o termo mais comumente adotado em
artigos e publicações sobre o tema, porém, muitas vezes encontramos também termos
como sinistro, inquietante, assustador, entre outros. Optamos por manter aqui o termo o
estranho para das Unheimliche, porém, é importante estarmos atentos para algumas
alterações de significado que poderiam ameaçar a riqueza que reside na ambigüidade do
termo alemão. Em alguns momentos utilizaremos também traduções aproximadas como o
estranho-familiar ou a inquietante estranheza. Esta necessidade que surge em alguns
momentos, de usar mais de uma palavra para tentar traduzir o Unheimlich freudiano
mostra a complexidade do termo alemão e a imprecisão de sua tradução brasileira mais
freqüente.
21
Em seu estudo, Freud aponta que o que lhe interessa é mostrar que entre os
diferentes matizes de significados da palavra Heimlich - pertencente à casa, familiar,
doméstico, íntimo - um que é idêntico ao seu oposto, Unheimlich. Verifica que a
palavra Heimlich é ambígua, comportando idéias, não contraditórias, mas muito
diferentes. Por um lado, refere-se ao que é familiar e agradável, por outro, tem como
conotação possível "algo escondido, por trás das costas de alguém, sem que os outros
21
Cf. Hanns, L. A., Dicionário comentado do alemão de Freud. RJ, Imago, 1996, p. 231-239. O autor
contrasta o termo alemão
das Unheimliche com o estranho, mostrando que o estranho pode evocar uma
idéia de alteridade, de um outro externo, forasteiro, diferente e esquisito, o que afasta-se daquilo que Freud
denomina
Unheimlich. Além disso, ao traduzir-se Unheimlich como estranho, perde-se as conotações de
uma sensação inquietante e fantasmagórica, de algo que cerca o sujeito sorrateiramente. Com o termo
o
estranho
também não se transmite a idéia da íntima familiaridade desta estranheza, o que é algo
fundamental em
das Unheimliche.
15
saibam".
22
Logo, é um termo que comporta sentidos distintos, que vão desde o familiar e
conhecido, passando por secreto e oculto até inquietante, estranho.
Hanns
23
retoma o estudo lingüístico apresentado por Freud, mostrando o ponto de
torção onde Heimlich passa de familiar e conhecido para inquietante e estranho: aquilo
que é secreto e oculto pode ser familiar e conhecido para quem participa de um segredo,
por exemplo. Por outro lado, pode ser algo inquietante e estranho para os outros
excluídos. entre as conotações do adjetivo Unheimlich, Hanns ressalta aquela que se
refere a algo de insidioso, sussurrado e secreto, como a sensação de algo grandioso que se
arma sorrateiramente, de modo súbito, em torno do sujeito. um conteúdo
fantasmagórico que o torna inapreensível e inefável, dotado de uma certa irrealidade ou
de um realismo fantástico. O adjetivo mantém ainda uma acepção de estranhamento
indefinível e imprevisível, diferente do sentimento de pânico diante de um fenômeno
avassalador, catastrófico e bem definido.
Este estudo etimológico é apontado por Freud como um precioso recurso para a
abordagem do Unheimlich, por demonstrar sua íntima relação com o Heimlich. Porém,
sabemos que a apreensão deste tema não poderia pretender-se completa, sob pena de
perdermos a riqueza que reside justamente na possibilidade de associações que o
Unheimlich nos permite. O que nos vale enfatizar aqui é a relação de continuidade entre o
Heimlich e o Unheimlich que percebemos a partir da etimologia dos termos, e que nos
servirá de ponto de partida para uma reflexão acerca das oposições dualistas.
22
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.280.
23
Hanns, L. A., Dicionário comentado do alemão de Freud, op. cit., p.231.
16
O estranho e a literatura
Após o estudo lingüístico sobre o estranho, ao buscar exemplos de situações que
provoquem estranheza, Freud ressalta a grande importância da literatura para o estudo
deste tema. Acreditamos que é como uma tentativa de abordar algo que beira o
inapreensível, o indizível, que Freud aponta a literatura como um recurso fundamental
para a abordagem do estranho. Entendemos isso como uma indicação de que o único
modo de nos aproximarmos deste ponto onde as palavras parecem faltar, é justamente
pelas palavras.
Como afirma Freud, e é o que percebemos de fato ao percorrer a obra dos
principais autores que exploram o tema da estranheza, a experiência do Unheimlich é
algo tão fugidio que a ficção o demonstra melhor, produzindo-o de modo mais estável e
articulado. Freud afirma que isso se deve ao fato de que, na ficção, o autor dispõe de mais
meios para a criação de efeitos de estranheza, sem a necessidade de submetê-los ao teste
de realidade.
Neste ponto, nos encontramos no delicado terreno da interseção entre psicanálise
e literatura, ou ainda, no centro das relações ambivalentes de Freud com os grandes
escritores. Freud atribui um importante papel à literatura em seus estudos e permeia toda
a sua obra com citações de seus escritores preferidos. Porém, podemos perceber que seu
uso da literatura apresenta-se de diferentes modos, exercendo funções variadas em seu
texto. Apesar de não pretendermos aqui um aprofundamento nestes modos de apropriação
da literatura por Freud, consideramos importante ao menos mostrar a sua complexidade.
17
Em artigo acerca das relações entre Freud e os escritores alemães, Rouanet
distingue três registros em que funcionaria a literatura na obra de Freud:
24
O primeiro é o registro legitimatório, onde os escritores são convocados como
aliados e precursores, como "avalistas" de verdades controvertidas, afirmadas pela
psicanálise. Neste registro Freud cita Schiller, por exemplo, atribuindo a este último a
autoria do dualismo psicanalítico fundamental - fome e amor. Deste modo, segundo
Rouanet, a literatura transforma-se em aliada da psicanálise, ajudando-a a legitimar-se,
mostrando que, por mais estranhas que pareçam, as teses psicanalíticas podem ser
confirmadas pelos grandes escritores.
no registro hermenêutico a literatura aparece como um objeto a ser
interpretado. É desse modo que Freud faz uma exegese de várias obras literárias numa
perspectiva psicanalítica. Rouanet cita como exemplo a clássica interpretação freudiana
da Gradiva, de Wilhem Jensen, onde o delírio do jovem arqueólogo que imagina ver uma
patrícia romana perambulando pelas ruínas de Pompéia é interpretado como uma fantasia
resultante de reminiscências de sua infância, recalcadas.
Por último, Rouanet aponta o registro clínico: considerando a livre circulação
entre a literatura e os processos inconscientes, a literatura pode tornar-se parte do material
clínico com que o analista trabalha. Muitas vezes as obras literárias afloram nas
narrativas dos pacientes ou aparecem nos sonhos, lapsos ou chistes, inclusive do próprio
Freud.
Porém, observamos que esta divisão entre três registros, proposta por Rouanet,
nem sempre se apresenta nitidamente demarcada no texto freudiano. Na utilização por
24
Rouanet, S. P., Filósofos e escritores alemães in Perestrello, M. (org.), A formação cultural de Freud,
RJ, Imago, 1996, p.223.
18
Freud do texto em que nos deteremos logo a seguir, "O homem da areia", poderemos
observar o registro hermenêutico, na interpretação psicanalítica dos personagens, mas
também o registro legitimatório, que Freud busca confirmar ali sua teoria acerca da
articulação entre o estranho e o recalcado.
Devemos observar ainda, sobre os modos de apropriação da literatura por Freud
que, em diversos momentos, ele inclinou-se sobre o texto literário buscando a origem do
gênio, a reconstrução fantasmática do autor e a função da arte para o sujeito. Neste
sentido, Gay afirma:
"(...) deduzir de uma obra fáceis inferências sobre seu criador era uma tentação
permanente para os críticos psicanalíticos. Suas análises dos criadores e dos
públicos da arte e da literatura ameaçavam se tornar, mesmo em mãos habilidosas
e delicadas, exercícios de reducionismo (...)".
25
Por outro lado, em algumas passagens, Freud teve o cuidado de negar que a
psicanálise pudesse lançar alguma luz sobre os mistérios da criatividade e reconheceu os
problemas de se pretender fazer uma "psicanálise aplicada". Em seu discurso preparado
para a cerimônia de recebimento do Prêmio Goethe, justamente onde era reconhecido, ele
mesmo, como um grande escritor, Freud parece desculpar-se, em nome da psicanálise,
respondendo às críticas que poderiam advir "por termos ofendido o respeito que lhe é
devido ao tentarmos aplicar a análise a ele próprio [Goethe], por termos degradado o
grande homem à posição de objeto de investigação analítica".
26
Assim, consideramos importante reconhecer a ambigüidade e a complexidade nas
relações de Freud com a literatura e os grandes escritores. Porém, escolhemos seguir aqui
apenas uma proposta, em certos momentos vislumbrada por Freud, de utilização do texto
25
Gay, P., Freud: uma vida para nosso tempo, SP, Companhia das Letras, 1995, 7
a
ed., p.297.
26
Freud, S., O prêmio Goethe [1930], op. cit., Vol. XXI, p.244.
19
literário enquanto possibilidade de enunciação daquilo que este tem em comum com o
discurso psicanalítico.
Freud reconhece que os escritores exploram o mesmo terreno que o psicanalista e
assim podem chegar a conclusões semelhantes, mesmo que por caminhos diferentes.
Parece ser neste sentido, observando a estreita afinidade que pode haver entre a
psicanálise e a literatura, que Freud escreve uma carta a Arthur Schnitzler, na qual deixa
transparecer sua admiração e sua identificação com este escritor a quem chega a
considerar seu duplo
27
, como mostra a passagem a seguir:
"Acho que evitei um contato com o senhor por uma espécie de medo do duplo (...)
O seu determinismo, como o seu ceticismo - que as pessoas chamam de
pessimismo - o seu estar possuído pelas verdades do inconsciente, pela natureza
impulsiva do ser humano, o seu abalar das certezas culturais convencionais, a
aderência de seus pensamentos à polaridade do amor e da morte, tudo isso me
emocionava com uma secreta familiaridade (...) Assim cheguei à conclusão de que
o senhor sabe por intuição - é verdade que devido a uma aguda observação de si
mesmo - tudo o que descobri depois de fatigantes trabalhos com outros
homens".
28
É a partir desta afinidade que acreditamos que a literatura pode nos servir como
instrumento para enriquecer, problematizar, questionar ou mesmo elucidar certos temas
aos quais a psicanálise também se dedica.
Sobre "O Homem da Areia"
29
Para esta reflexão acerca do Unheimlich Freud se dedica a analisar "O Homem da
Areia", de Hoffmann, a quem considera "um escritor que, mais do que qualquer outro,
27
Sobre a proximidade entre Freud e Schnitzler, cf. Kon, N. M., Freud e seu duplo, SP, EDUSP, 1996.
28
Jones, E., A vida e a obra de Sigmund Freud, Vol. 3, RJ, Imago, 1989, p.430-431, apud Kon, N. M.,
Freud e seu duplo
, op. cit., p.127.
29
Hoffmann, E. T. A, O Homem da Areia [1815] in Contos Fantásticos, RJ, Ed. Imago, 1993.
20
teve êxito na criação de efeitos estranhos".
30
Ao observarmos alguns elementos com
relação a este conto e ao gênero literário em que se insere - o fantástico - esta escolha de
Freud nos parecerá ainda mais rica.
Segundo Todorov
31
o conto fantástico surge a partir de uma “inclinação pelo
velado, o irracional e imprevisível”, sustentando uma posição oposta às tendências
intelectuais que consideravam um mundo submetido a uma causalidade rigorosa,
convencidos dos poderes da razão. Todorov considera esta expressão literária como "a
consciência intranqüila deste século XIX positivista".
Porém, é importante notar que este gênero também teve forte influência do
positivismo, incorporando elementos do discurso científico para afirmar a sua própria
semântica. Essa tentativa de mostrar uma "fundamentação científica" em suas produções
é observável nos textos de Hoffmann que, como veremos a seguir, usa temas como a
dupla personalidade, por exemplo, algo muito discutido pelos alienistas da época. Assim,
o fantástico não efetua um rompimento absoluto com a realidade, mas beira seus limites,
e isso sim é fonte de horror. Os elementos cotidianos, imagens "possíveis", são mais
inquietantemente estranhos do que aquilo que é totalmente sobrenatural, impossível.
32
Deste modo, a essência do fantástico é resumida por Todorov: "Num mundo que é
exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-
se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo
familiar".
33
Diante disso, aquele que percebe o fato deve optar: ou trata-se de uma ilusão
dos sentidos, de pura imaginação, e assim as leis do mundo permaneceriam as mesmas;
30
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.284.
31
Todorov, T., Introdução à literatura fantástica, SP, Ed. Perspectiva, 1992.
32
Em "O Homem da Areia", como veremos, Hoffmann não se refere a aparições sobrenaturais ou
demoníacas, mas usa imagens da vida cotidiana, jogando assim no limite entre o possível e o impossível,
através da multiplicação de duplos.
33
Todorov, T., Introdução à literatura fantástica, op. cit., p. 30.
21
ou o acontecimento foi real, é parte integrante da realidade e, neste caso, esta realidade
estaria regida por leis desconhecidas. Ao escolher uma dessas opções passa-se do
fantástico para um de seus gêneros vizinhos, como o "maravilhoso" ou o "absurdo", por
exemplo. O fantástico ocuparia justamente o tempo desta incerteza, da vacilação
experimentada por um ser que reconhece as leis naturais, frente a um acontecimento
aparentemente sobrenatural: "'Cheguei quase a acreditar': eis a fórmula que resume o
espírito do fantástico. A absoluta como a incredulidade total nos levam para fora do
fantástico; é a hesitação que lhe dá vida".
34
Hoffmann é considerado o "mestre do fantástico" e Freud submete seu conto "O
homem da areia" a uma análise cuidadosa, visando encontrar a confirmação de sua
hipótese segundo a qual o estranho remeteria àquilo que nos é mais intimamente familiar.
Este conto foi bastante discutido por Freud e vários de seus comentadores, por tratar-se
de uma rica apresentação de elementos associados ao estranho, como por exemplo a
figura do autômato e diversos instrumentos óticos.
Em linhas gerais, o conto tem início com as recordações de infância de Natanael,
um jovem que não consegue banir as lembranças ligadas à morte misteriosa de seu pai.
Ele relata os fatos estranhos que lhe aconteceram: uma súbita aparição lhe despertara
terríveis pressentimentos, fazendo-o lembrar-se da história do "Homem da Areia",
"aquele que joga areia e arranca os olhos das crianças desobedientes", figura que tanto lhe
apavorava quando era criança e ouvia as histórias contadas por sua mãe. Natanael
acredita reconhecer este fantasma de horror de sua infância na figura de um vendedor de
instrumentos óticos que lhe aparece de modo repentino. Associa ainda este personagem
com o advogado Coppelius, um homem que também lhe causava horror quando criança.
34
Ibid, p.36.
22
O jovem suspeitava que Coppelius, este homem assustador, teria alguma ligação com a
morte de seu pai.
Natanael narra suas terríveis lembranças de infância, quando teria presenciado as
experiências misteriosas de seu pai e do advogado Coppelius que, juntos, trabalhavam no
escritório manipulando um braseiro incandescente. Certa noite, o menino teria sido
flagrado espionando-os e sofrera então terríveis ameaças por parte de Coppelius, que
gritava que arrancaria os olhos do garoto. Pouco tempo depois, o pai de Natanael morreu
numa explosão neste mesmo escritório e o advogado Coppelius desapareceu da cidade.
No conto, Natanael, um estudante, depara-se com Coppola, um vendedor de
instrumentos óticos que lhe desperta horror pela semelhança com os fantasmas de sua
infância, mas também uma certa atração, pelos instrumentos óticos que lhe oferecia.
Natanael compra um pequeno binóculo de Coppola, através do qual passa o observar
Olímpia pela janela, apaixonando-se cegamente, sem perceber que se tratava de uma
boneca.
Freud comenta sobre o caráter narcísico do amor de Natanael por Olímpia, mas
não se aprofunda no tema, que é mencionado apenas numa nota de rodapé
35
, onde lembra
uma passagem do conto em que o criador da boneca Olímpia afirma que os olhos deste
autômato eram justamente os olhos de Natanael. Freud centra-se na questão da castração,
simbolizada pela perda da visão, e interpreta o personagem Natanael como um jovem
incapaz de amar uma mulher por causa de sua fixação no pai pelo seu complexo de
castração.
36
35
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.291, nota 1.
36
Podemos verificar aqui tanto um uso legitimatório da literatura, pelo qual Freud procura mostrar que a
relação entre a castração e o efeito de angústia e estranheza estaria presente no texto de Hoffmann, e
também um uso hermenêutico, nas interpretações sobre a "fixação no complexo de castração" de Natanael,
23
Sendo um dos pontos de partida desta tese a articulação entre o estranho e o
narcisismo, como veremos adiante, consideramos importante ressaltar aqui as metáforas
óticas que permeiam todo este conto, assim como o amor narcísico de Natanael por
Olímpia, aquela que possui seus olhos, a quem ele olha sem ver aquilo que todos vêem -
o fato de tratar-se de uma boneca - que pode percebê-la como um espelho, como
perfeita correspondência de seus anseios.
37
Acerca do conto, Freud discorda de que o tema da boneca Olímpia seja o principal
elemento fonte de estranheza. Observa que o próprio autor aborda a questão da boneca
com um tom de sátira, ridicularizando a idealização que o jovem faz de sua amante.
38
Para Freud, a questão central é mesmo o Homem da Areia, aquele que arranca os olhos
das crianças, imagem do pai castrador.
39
Voltando ao conto, após um acesso de loucura ao perceber Olímpia como uma
boneca de fato, a quem faltavam os olhos, Natanael parece recuperado e volta para sua
noiva, Clara. Porém, a última passagem do conto mostra que o horror continuava. Do alto
de uma torre, acompanhado de Clara, Natanael observa através de seu binóculo a
aproximação do terrível advogado Coppelius, o que lança o jovem novamente em um
por exemplo. Além disso, em nota de rodapé Freud arrisca uma referência à biografia de Hoffmann:
"Hoffmann foi filho de um casamento infeliz (...) a relação do escritor com o pai foi sempre assunto dos
mais delicados para aquele."
- Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.291, nota 1.
37
"Sentado ao lado de Olímpia, as mãos dela entre as suas, falava de seu amor com entusiasmo e vibração
em termos inflamados que ninguém poderia compreender, nem ele mesmo, nem Olímpia. Bem, talvez ela
entendesse, pois olhava-o fixamente, suspirando sem cessar: "Ah... ah... ah!' Ao que Natanael respondia:
'Ah, esplêndida mulher, exemplo do amor que nos prometem na outra vida, espírito profundo no qual se
reflete todo o meu ser!', e outras coisas semelhantes, enquanto Olímpia apenas suspirava repetidamente:
'Ah... ah!'."
(Hoffmann, E.T.A., O Homem da Areia, op. cit., p.138).
38
No final do artigo sobre o estranho Freud aponta o cômico como um dos recursos capazes de evitar a
estranheza diante de um texto.
Cf. Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.313. Sobre isso, ver ainda
Kupermann, D.
Ousar rir: humor, criação e psicanálise. RJ, Ed. Civilização brasileira, 2003; onde o
autor aponta o humor como um dos fatores que permitem que o estranho não seja apenas fonte uma
angústia paralisante.
39
Andrade, R.A.S, em sua tese de doutorado L'heritage romantique allemand dans la penseé
freudienne
, Paris VII, 1990; também ressalta o fato de que Freud centra-se apenas na articulação do
estranho com o complexo de castração, deixando de lado toda a problemática narcísica em questão, tema
que o autor considera fundamental nesta análise de "O homem da areia".
24
acesso de loucura. Transtornado, tenta atirar a noiva do alto da torre, terminando por
jogar-se do parapeito, enquanto o Homem da Areia (Coppelius) desaparece na multidão.
Sobre esta cena final, consideramos importante ressaltar alguns detalhes aos quais
Freud não se refere, mas que podem ser percebidos numa releitura do conto. A descrição
da cena final por Freud não é incorreta, mas é incompleta. Num primeiro momento, do
alto da torre, são os olhos de Clara que Natanael mira através de seu binóculo, como
lemos na passagem a seguir:
"Automaticamente, Natanael pôs a mão no bolso; achou o binóculo de Coppola.
Dirigiu-o para a planície... Clara estava diante das lentes! Um estremecimento
convulsivo percorreu suas veias e seu pulso. Pálido como a morte, fitou-a
fixamente... De repente os olhos dela, girando em suas órbitas, expeliram raios de
fogo; ele começou a uivar terrivelmente como um animal acuado; começou então
a saltar no ar e, entre gargalhadas aterradoras, gritou estridentemente:
'Bonequinha de madeira, gire', e com uma violência formidável pegou Clara para
precipitá-la de cima, mas ela, com um medo desesperado da morte, agarrou-se
com firmeza à balaustrada."
40
Podemos notar que neste olhar de Clara algo que deixa Natanael tomado de
horror e desencadeia toda a cena. No alto da torre, o jovem evoca o poema que escrevera
para a noiva, um poema sinistro, onde narra o aparecimento do terrível Coppelius, que
surgia decidido a impedir seu casamento com Clara. O poema descreve os olhos da noiva
que saltam sangrando e, em brasa, são jogados numa roda de fogo, que gira de modo
terrível. Natanael descreve, neste poema, o terror de ver-se contemplado pela morte, nos
olhos da noiva.
41
Este mesmo poema fora evocado por Natanael quando se deparou com
Olímpia sem os olhos, como uma boneca sem vida. Nesta situação, enlouquecido, ele
40
Hoffmann, E. T. A., O Homem da Areia, op. cit., p.145.
41
"Natanael olhou nos olhos da noiva; mas era a morte que o contemplava calmamente nos olhos de
Clara."
Hoffmann, E. T. A., O Homem da areia, op. cit., p.131.
25
gritara: "Roda de fogo! Gire, bonequinha de madeira, gire...", citando um trecho deste
poema assustador que escrevera para Clara.
No alto da torre, na cena final, podemos observar que há uma convergência
sinistra de várias cenas e personagens, diante do que, aniquilado, só restou a Natanael sair
de cena, precipitando-se no vazio. Natanael viu o olhar de Clara através dos binóculos de
Coppola, aqueles mesmos através dos quais via Olímpia. Há uma superposição de Clara e
Olímpia, como mostra a associação entre o terrível poema dedicado à Clara e as frases
desconexas que ele gritara diante de Olímpia. A figura de Coppola, o vendedor de
instrumentos óticos e ladrão de olhos, faz-se presente através do próprio binóculo. A
visão, através deste mesmo instrumento, do temido advogado Coppelius, fecha o círculo
de horror onde o personagem se aniquilado, contemplado pela morte. Diante destas
cenas que coincidiram através das lentes, é como se Natanael "atravessasse o espelho",
passando da identificação especular, de ver-se nos olhos da amada, para ser visto pela
morte.
42
Freud não comenta, sobre esta cena, o fato de que a loucura do personagem é
desencadeada justamente a partir da visão do olhar da amada e, num segundo
momento, a aparição de Coppelius faz com que Natanael se precipite do alto da torre. O
que interessa a Freud é apontar a estranheza que se liga diretamente à figura do Homem
da Areia, à idéia de ter os olhos roubados, em sua articulação com a castração. Neste
sentido, para Freud, Natanael viveria a angústia com relação à morte do pai, tendo o
Homem da Areia assumido o papel de substituir o pai temido, castrador. Deste modo, o
Homem da Areia atuaria como perturbador do amor e o suicídio de Natanael se daria
42
Para uma análise mais detalhada de “O homem da areia”, segundo uma concepção lacaniana da angústia,
ver Mon, M.
O Homem da Areia ou o espanto se introduziu em sua vida in Cosentino, J. C. (org.). O
estranho na clínica psicanalítica. RJ, Contra Capa Livraria, 2001.
26
justamente quando este recuperaria sua amada Clara. Freud percebe uma descrição,
recorrente na clínica, de um jovem fixado no pai pelo complexo de castração, incapaz de
amar uma mulher. Assim, associa o estranho efeito do Homem da Areia à angústia ligada
ao complexo de castração.
Não discordamos de Freud acerca da articulação entre o Unheimlich e o retorno
do recalcado, mas acreditamos que podem ser trabalhadas ainda outras articulações
como, por exemplo, a questão da compulsão à repetição, como Freud também o faz em
seu texto, e ainda a questão do narcisismo. É importante ressaltar que não vemos
contradição no fato de que o Unheimlich possa ser pensado tanto em relação ao
recalcado, quanto ao narcisismo e a compulsão à repetição. Isto confirma a riqueza de
possibilidades que o tema oferece.
O estranho, o recalcado e a compulsão à repetição
É a partir de sua análise do conto "O Homem da areia" que Freud propõe uma de
suas afirmativas centrais - a articulação do estranho com o recalcado - anunciando duas
considerações que seriam a essência deste seu estudo sobre o estranho:
1) Se todo afeto transforma-se, se recalcado, em angústia, então
43
:
"Entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o
elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo recalcado que retorna. Esta
categoria de coisas assustadoras constituiria então o estranho; e deve ser
43
A tradução da ESB traz "reprimido" no lugar de recalcado, e "ansiedade" no lugar de angústia.
Substituímos os termos aqui para que a passagem se tornasse mais compreensível, de acordo com os termos
que adotamos ao longo desta tese.
27
indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente
assustador ou se trazia algum outro afeto".
44
2) Se é esta a natureza secreta do estranho, vemos porque o uso lingüístico
estendeu das Heimlich para seu oposto, das Unheimlich, "pois este estranho não é nada
novo ou alheio, porém algo que é familiar e muito estabelecido na mente, e que
somente se alienou desta através do processo de recalque".
45
É deste modo que Freud
compreende a definição de Schelling, do "estranho como algo que deveria ter
permanecido oculto mas veio à luz".
46
Assim, vemos que Freud articula de modo muito íntimo o estranho e o recalcado,
chegando a afirmar que o prefixo 'un', no termo Unheimlich, é justamente o sinal do
recalque.
47
Porém, Freud problematiza esta afirmativa: "Pode ser verdade que o estranho
(unheimlich) seja algo que é secretamente familiar (heimlich - heimisch), que foi
submetido ao recalque e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa
condição". No entanto, reconhece: "Nem tudo o que preenche essa condição - nem tudo o
que evoca desejos recalcados e modos superados de pensamento, que pertencem à pré-
história do indivíduo e da raça - é por causa disso estranho."
48
44
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.300.
45
Ibid, p.301.
46
Sobre esta apropriação da frase de Schelling por Freud ver Carvalho, B. O Unheimlich em Freud e
Schelling.
SP, Percurso Revista de Psicanálise, Departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae,
n
o
3, 1989. Com detalhes, este autor mostra que a frase que Freud busca em Schelling, filósofo do
romantismo alemão:
"O estranho é aquilo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz", é
interpretada por Freud como referente ao retorno do recalcado, mas, segundo Carvalho, no pensamento de
Schelling esta frase teria um sentido bem diferente: seu projeto romântico visava justamente uma
identificação entre sujeito e natureza, sem uma cisão entre eu e o outro. Se, para Freud, a estranheza viria
da perda destes limites, em Schelling são justamente estes limites as fontes do mal-estar. Assim, segundo o
filósofo romântico, o estranho só é possível num mundo cindido, não mitológico. O estranho seria
resultado de uma cisão, característica do homem moderno, foco e condição da própria psicanálise.
47
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.305.
48
Ibid, p.306.
28
Para refletir acerca desta questão, Freud considera fundamental distinguir o
estranho que realmente experimentamos daquele que simplesmente visualizamos ou
lemos, isto é, o estranho da ficção, principalmente da literatura. Freud verifica que aquilo
que é experimentado como estranho é mais simplesmente condicionado à sua tese central
- de que o estranho é algo familiar que foi recalcado - mas compreende menos exemplos.
Propõe então uma diferenciação em dois grupos, entre o estranho que provém do
"princípio de onipotência dos pensamentos" e o estranho que provém de complexos
infantis recalcados.
Superstições, crença em poderes secretos como a magia ou a bruxaria, são os
principais exemplos citados por Freud no que se refere ao princípio de onipotência dos
pensamentos, que estaria relacionado à antiga concepção animista do mundo, um estádio
de irrestrito narcisismo: "...tudo aquilo que agora nos surpreende como 'estranho'
satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de
nós...".
49
Na estranheza relacionada ao princípio de onipotência dos pensamentos haveria
uma supervalorização narcísica, pelo sujeito, de seus próprios processos mentais, o que
pode ser entendido como um mecanismo de defesa, como um modo de evitar o confronto
com as limitações que a realidade impõe, a impotência, a castração.
Retomando o tema sugerido em “Totem e Tabu”
50
, Freud propõe que cada sujeito
atravessaria uma fase correspondente ao estádio animista dos homens primitivos, que
acreditavam viver num mundo povoado de espíritos, como se fossem preservados
resíduos desta fase, ainda capazes de se manifestar. Logo, segundo Freud, a condição da
estranheza do que se refere à onipotência dos pensamentos é que nós, ou o homem
49
Ibid, p.300.
50
Freud, S. Totem e tabu [1913], In op. cit., Vol.XIII.
29
primitivo, acreditamos que estas possibilidades eram reais. Se hoje superamos este
modo de pensamento animista, ainda não nos sentimos seguros das novas crenças e as
antigas permanecem em nós. Então, quando acontece algo que parece confirmar estas
antigas crenças, isso é sentido como estranho. Freud ilustra esta afirmação com um
exemplo de sensação de "pronta realização de desejos": "Então, afinal de contas, é
verdade que se pode matar uma pessoa com o mero desejo da sua morte!"
51
Já o segundo grupo refere-se ao estranho que provém de complexos infantis
recalcados, do complexo de castração. Freud afirma que estes exemplos seriam menos
freqüentes na vida real do que o estranho do primeiro grupo, isto é, aquele que se refere
ao princípio de onipotência dos pensamentos. Afirma que quando o estranho origina-se
de complexos infantis a questão da realidade material não surge, que seu lugar é
ocupado pela realidade psíquica. Por isso, o efeito estranho ligado ao material recalcado é
tão poderoso na ficção quanto na vida real.
Freud considera a distinção entre estes dois grupos - o estranho que provém do
princípio de onipotência dos pensamentos e o estranho que provém do recalcado - muito
importante teoricamente. Porém, reconhece que as duas categorias da experiência de
estranheza nem sempre são nitidamente distinguidas, que as crenças primitivas têm
uma íntima relação com os complexos infantis, baseando-se neles.
Com isso, podemos observar que nos mesmos momentos em que propõe
categorias mais ou menos definidas, que pudessem dar conta do Unheimlich, Freud nos
deixa vislumbrar sempre um passo além.
51
Freud, S. O estranho, op. cit. p.308.
30
Neste mesmo sentido, ao buscar comprovar a articulação entre o estranho e o
recalcado através de alguns exemplos, é acerca da estranheza com relação à morte que
reflete, afirmando:
"Dificilmente existe outra questão, no entanto, em que nossas idéias e sentimentos
tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e na qual formas
rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como
a nossa relação com a morte."
52
Segundo Freud, o medo da morte é ainda muito intenso em nós e "pronto para vir
à superfície por qualquer provocação". Também Freud a marca do recalque, que
seria a condição para um sentimento primitivo retornar como estranho.
Freud exemplifica o retorno do recalcado justamente a partir da questão da morte,
porém, insiste em lembrar, em diversos momentos, que não representação possível
para a própria morte no inconsciente.
Entendemos que apesar de não abordar este tema explicitamente, neste texto
Freud percebia a necessidade de pensar para além do recalque. Assim, "O estranho", de
1919, pode ser considerado como uma apresentação de idéias que viriam a ser
desenvolvidas em "Além do princípio do prazer", em 1920, onde a segunda tópica seria
apresentada, a partir da formulação do conceito de pulsão de morte. Neste sentido,
devemos considerar grande a importância de “O estranho”, este texto “entre” - entre a
primeira e a segunda tópica, conforme retomaremos mais adiante.
Freud destaca a compulsão à repetição como um dos principais fatores capazes de
transformar algo assustador em estranho. Assim, pensa o estranho ligado ao "retorno
constante do mesmo", como um retorno involuntário da mesma situação que gera um
estranhamento, que se remete ao desamparo. um dano narcísico sofrido pelo sujeito
52
Ibid, p.301.
31
que se confrontado com o fato de que não possui o controle sobre uma determinada
situação, diante de uma "força demoníaca que nos impõe a idéia de algo fatídico,
inescapável"
53
, evidenciando o descentramento do eu.
Freud exemplifica a estranheza diante do retorno involuntário do mesmo narrando
uma experiência própria:
"Em certa tarde quente de verão, caminhava eu pelas ruas desertas de uma cidade
provinciana na Itália, quando me encontrei num quarteirão sobre cujo caráter não
poderia ficar em dúvida por muito tempo. Só se viam mulheres pintadas nas
janelas das pequenas casas, e apressei-me a deixar a estreita rua na esquina
seguinte. Mas, depois de haver vagado algum tempo sem perguntar o meu
caminho, encontrei-me subitamente de volta à mesma rua, onde a minha presença
começava agora a despertar atenção. Afastei-me apressadamente uma vez mais,
apenas para chegar, por meio de outro détour, à mesma rua pela terceira vez.
Agora, no entanto, sobreveio-me uma sensação que só posso descrever como
estranha, e alegrei-me bastante por encontrar-me de volta à piazza que deixara
pouco antes, sem quaisquer outras viagens de descoberta."
54
A partir desta passagem, Freud afirma que o fator de repetição involuntária torna
inquietante algo que de outro modo poderia ser indiferente, mostrando que no
inconsciente a predominância de uma "compulsão à repetição", de origem pulsional,
"uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer,
emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco (...) O que quer
que nos lembre esta íntima 'compulsão à repetição' é sentido como estranho".
55
Mas se "O estranho", de 1919, define a compulsão à repetição, que viria a ser
pensada em 1920 em articulação com a pulsão de morte, para além do princípio do
prazer; neste texto de 1919 a idéia do estranho como efeito do retorno do recalcado, mais
especificamente, da ameaça de castração, é uma idéia muito cara a Freud. Apesar de
53
Idem.
54
Ibid, p.296.
55
Ibid, p.298.
32
considerarmos este um texto que estaria de acordo com a segunda tópica, Freud não
parece preocupado em desfazer algumas aparentes contradições teóricas. Assim, neste
texto de 1919, Freud associa o estranho à compulsão à repetição, a algo que se impõe
como fatídico e inescapável, para além do princípio do prazer; mas também o associa ao
retorno do recalcado, ao desejo que retorna.
A partir daí, podemos perceber que neste ponto uma questão que permanece:
será que podemos designar de um mesmo modo tanto o estranho que se articula ao
recalcado que retorna quanto o que aponta para mais além? Retomaremos esta questão no
próximo capítulo, onde discutiremos a relação entre o registro narcísico e o mais além do
princípio do prazer.
“O estranho” – um texto “entre”, um conceito “indecidível”
Até aqui, dissemos que em “O estranho” Freud parte da etimologia para mostrar
um modo de funcionamento que não se esgota numa simples oposição: o Heimlich e o
Unheimlich são “dois lados de uma mesma moeda”, ou seja, o que é sentido como
inquietantemente estranho é algo intimamente familiar.
Afirmamos também que neste texto Freud esboça a sua segunda tópica e a
necessidade de se pensar um além do princípio do prazer. Com isso podemos dizer que a
sua primeira concepção dualista, que opunha as pulsões de auto-conservação do ego e as
pulsões sexuais, se mostrava insatisfatória. De fato, desde 1914, com o
desenvolvimento do conceito de narcisismo, Freud vinha encontrando problemas para
sustentar a sua primeira tópica, sobretudo a oposição entre as pulsões, já que fora
33
obrigado a reconhecer que o ego também era objeto (privilegiado) de investimento
libidinal, logo, investido pelas pulsões sexuais. Este impasse seria resolvido em 1920,
em “Além do princípio do prazer”, quando Freud opôs às pulsões sexuais a pulsão de
morte
56
. De todo modo, o que nos interessa ressaltar neste momento é que neste texto “O
estranho”, de 1919, Freud parecia reconhecer a necessidade de conceber um “além do
princípio do prazer”, e que por esta razão, entre outras
57
, este pode ser considerado um
texto “entre”.
Partindo desta constatação, acreditamos que este texto pode ter uma importância
bem maior do que aquela que lhe é usualmente atribuída. Vejamos por que:
Presente desde os primórdios da filosofia, mesmo antes da divisão platônica entre
o mundo inteligível e o mundo sensível ou, com Descartes, a oposição entre corpo e
alma, o dualismo marcou de maneira decisiva a filosofia moderna. Herdeiro desta
tradição, ao longo de toda a sua obra Freud procurou manter intacto aquilo que
denominou sua “intuição básica dualista”, ou seu “ponto de vista dualista fundamental”.
58
Sobre isso, Garcia-Roza
59
sublinha as diversas oposições dualistas que se
encontram no pensamento freudiano: o dualismo de princípios (princípio do
prazer/princípio de realidade), o dualismo tópico (inconsciente/pré-consciente-consciente
ou processos primários e processos secundários), o dualismo energético (energia
livre/energia ligada), e pulsional (pulsões de autoconservação/pulsões sexuais ou, depois,
pulsões de vida/pulsões de morte).
56
Veremos no próximo capítulo que, na verdade, este impasse só encontraria uma solução mais definitiva
ainda mais tarde, em 1930, no texto “O mal-estar na civilização”.
57
Veremos as outras razões que fazem deste um texto “entre” logo adiante, a partir dos comentários de
Derrida.
58
Freud, S. O ego e o id [1923], op. cit., p.62.
59
Garcia-Roza, L. A. O mal radical em Freud. RJ, Ed. JZE, 1990, p.141.
34
Porém, apesar de sua insistência sobre uma concepção dualista, as transformações
pelas quais passou a sua teoria, principalmente a teoria das pulsões, nos mostram que
Freud estava longe de se manter acomodado diante das oposições assim estabelecidas,
mesmo sendo fato que, da primeira para a segunda tópica, houve apenas um
deslocamento do ponto sobre o qual Freud faria incidir o dualismo: da oposição entre
pulsões de autoconservação do ego e pulsões sexuais, para a oposição entre pulsões de
vida e pulsões de morte.
Em comentário acerca do dualismo freudiano, Kofman considera que, mesmo
defendendo até o fim a sua “convicção dualista”, a obra freudiana abala de modo
irremediável os limites rígidos marcados pela lógica da consciência, barra as oposições
metafísicas do normal e do patológico, do cotidiano e do sublime, do ordinário e do
fantástico. A autora nos ajuda a pensar que o Unheimlich estaria ligado justamente a este
abalo das oposições dualistas, dos limites outrora garantidos: O sentimento de
Unheimlichkeit surge a cada vez que os limites entre imaginação e realidade se
apagam”.
60
Assim, entendemos que o texto “O estranho”, assim como a noção de Unheimlich
que ele nos traz, tem a riqueza de se situar num “entre”, de permitir uma leitura que
além das simples oposições.
Neste ponto podemos recorrer a Derrida, chamado por Kofman de “o filósofo
Unheimlich”, em primeiro lugar, devido à especificidade de seus escritos, que formam
híbridos, cruzando textos literários, filosóficos, psicanalíticos, sociológicos, lingüísticos,
religiosos, entre outros
61
, a ponto de muitos autores considerarem sua escrita como tendo
60
Kofman, S. Lectures de Derrida. Op. cit, p.54.
61
Ibid, p.18.
35
uma posição “entre”, principalmente entre filosofia e literatura. Além desta peculiaridade
da escrita derridiana, Unheimlich, Kofman ressalta que os próprios abalos que seu texto
produz fazem de Derrida um filósofo “Unheimlich”.
Segundo Ortega, o objetivo de Derrida seria mostrar como em tudo o que nos
parece natural, familiar, se esconde, ao mesmo tempo, o sinistro, o estranho, o
lúgubre”.
62
No mesmo sentido da afirmação freudiana sobre o duplo sentido do heimlich,
Derrida desenvolve uma leitura que parte do familiar, do natural e conhecido, e
desemboca no seu oposto.
A desconstrução
63
, leitura proposta por Derrida, consiste em desfazer, sem nunca
destruir, um sistema de pensamento hegemônico ou dominante. Desconstruir é de certo
modo resistir à tirania do Um, do logos, da metafísica (ocidental) na própria língua em
que é enunciada, com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de
reconstruções cambiantes; trata-se de trabalhar com os próprios conceitos filosóficos (da
filosofia clássica), questionando seus preconceitos. Não se descentra um discurso criando
uma outra linguagem; por isso, Derrida conserva no seu discurso os termos daquele que
visa desconstruir, não operando rupturas, mas apenas deslocamentos.
64
A história da metafísica é dominada por uma “metáfora da proximidade e da
presença” (logocentrismo), associada aos valores da segurança, estabilidade e
familiaridade. Para Derrida, no entanto, não existe reconciliação possível,
reestruturação de um centro ou certeza, nem conforto metafísico”. Trata-se de ressaltar o
fato de que “nunca estamos verdadeiramente em casa no mundo”. Neste sentido:
62
Ortega, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. RJ, Ed. Relume Dumará, 2000,
p.51.
63
Utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida em 1967 na Gramatologia, o termo ‘desconstrução’
foi tomado da arquitetura. Significa a deposição ou decomposição de uma estrutura
”. (Derrida, J. e
Roudinesco, E.
De que amanhã: diálogo. RJ, JZE, 2004, p.9)
64
Santiago, S. (org.). Glossário de Derrida. RJ, Ed. Francisco Alves, 1976, p.15.
36
“A desconstrução questionaria constantemente o estabelecimento de limites,
divisões arbitrárias, mostrando como toda identidade é necessariamente aberta
para a alteridade, ‘contaminada’ por ela. Toda ‘lógica da identidade’ (Adorno)
estaria dominada por uma violência que anula a diferença, a singularidade, a
particularidade e que reduz o outro ao mesmo”.
65
Kofman considera que a especificidade da leitura (e da escrita) derridiana torna
este autor “estranho” a toda uma tradição filosófica, ao mesmo tempo em que, por outro
lado, torna-o próximo da psicanálise, ela também “estranhamente inquietante aos olhos
de muitas pessoas”.
66
Como prova de sua admiração pela psicanálise, Derrida se dedicou a desconstruir
alguns textos e conceitos psicanalíticos. Dentre eles, ressaltou a importância de “O
estranho”, como texto e como conceito
67
, dispondo-se a desconstruí-lo. O valor atribuído
por Derrida ao texto freudiano do Unheimlich deve-se ao fato de que este seria capaz de
se situar num “entre”, conforme comentamos acima, posição análoga àquela do
Unheimlich enquanto conceito, que Derrida chama de “indecidível”:
O “indecidível”, para Derrida, seria uma alternativa à simples ambivalência, um
elemento que não se deixa compreender nas oposições clássicas binárias, sendo
irredutível a qualquer forma de operação lógica ou dialética. Implica na ausência de
significado transcendental, sem termos independentes, distinto do discurso da metafísica.
Como exemplo de indecidível, podemos ressaltar o pharmakon
68
- que não é nem
65
Ortega, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, op. cit., p.51. Retomaremos esta
perspectiva derridiana mais adiante nesta tese, no capítulo IV, quando discutiremos a questão das relações
com a alteridade.
66
Kofman, S. Lectures de Derrida, op. cit., p.54. Retomaremos esta questão da proximidade entre Derrida
e a psicanálise de modo mais aprofundado no último capítulo desta tese.
67
Em “Mes chances” Derrida afirma que o Unheimlich seria o conceito diante do qual se sente
estranhamente “em casa”, mais do que com qualquer outro. (Derrida, J.
Mes chances in Kerrigan, W.;
Smith, J. (orgs.) Revue Confrontations: Derrida. Paris, Ed. Aubier Flammarion, n
o
19, 1988, p.19-45).
68
Sobre o uso por Derrida deste termo, cf. Derrida, J. A farmácia de Platão. SP, Ed. Iluminuras, 1991.
37
remédio nem veneno.
69
Os indecidíveis, para Derrida, são termos que têm um valor
duplo, situando-se além das oposições metafísicas, ou mais exatamente, no espaço entre
elas.
70
Em La double séance”, mais exatamente numa longa nota de rodapé
71
, Derrida
retoma o texto freudiano “O estranho”, ressaltando a noção de Unheimlich. Insiste acerca
da cumplicidade deste texto com o seu, considerando este texto freudiano como um texto
que, debruçando-se sobre a ambivalência indecidível do Unheimlichkeit, seria ele mesmo
mais indecidível, menos fechado que outros:
“Em Das Unheimliche, Freud, mais atento que nunca à ambivalência indecidível,
ao jogo do duplo, à troca sem fim do fantástico e do real... ao processo da
substituição interminável, pode, sem contradizer esse jogo, fazer apelo a este e à
angústia de castração por trás da qual não se esconderia nenhum segredo mais
profundo, nenhuma outra significação, e à relação substitutiva, por exemplo, entre
o olho e o membro viril...”.
72
Sobre o comentário de Derrida, Kofman entende que o filósofo “abala” o texto
freudiano do estranho, graças a um certo corte:
69
Santiago, S. (org.). Glossário de Derrida, op. cit., p.49.
70
Derrida aproxima ainda o indecidível do inconsciente freudiano, indiferente à contradição (Derrida, J.
Positions: entretiens. Paris, Ed. Minuit, 1973, p.60, nota 6).
71
Derrida, J. La double séance in La dissémination. Paris, Ed. Seuil, 1972, p.300, nota 56. Derrida atribui
enorme valor às notas, assim como aos
enxertos (greffes), que formam o tecido de seu texto, operando
deslocamentos que formam uma estranha estrutura onde o que aparece à margem do texto pode ser tão ou
mais importante que o dito texto principal. Como sublinha Kofman, as notas em Derrida trazem a
radicalização do valor do
après coup em Freud. Trata-se ainda de um elemento próprio à escrita, tão
valorizada por Derrida, já que não se imagina um pé de página numa comunicação oral.
72
No original: « Dans Das Unheimliche, Freud, plus attentif que jamais à l’ambivalence indécidable, au jeu
du double, à l’échange sans fin du fantastique et du réel... au procès de la substitution interminable, peut,
sans contradire à ce jeu, en appeler et à l’angoisse de castration derrière laquelle ne se cacheraient aucun
secret plus profond, aucune autre signification, et au rapport substitutif, par exemple entre l’oeil et le
membre viril... » Derrida refere-se aqui a uma passagem do texto freudiano, “O estranho”,
op. cit., p.289.
38
Em seu texto, Freud enumera múltiplos casos de estranheza que parecem
dificilmente redutíveis a um núcleo único de sentido; todos repousam sobre uma certa
ambigüidade. Depois de ter citado o caso da loucura (inquietante, pois nos dá a impressão
de que processos automáticos se dissimulariam por trás do quadro habitual da vida),
Freud toma o exemplo do “Homem de areia” de Hoffmann. Aqui o efeito de estranheza
seria devido ao medo de perder os olhos, o que, como nos ensina o estudo dos sonhos,
fantasias e mitos, remete ao medo da castração. Assim, seria enquanto substituto da
angústia de castração que o medo de tornar-se cego produziria um efeito de estranheza.
73
Neste ponto, em seu texto, Freud prevê as objeções que poderiam ser feitas por
um “leitor racionalista”, que negaria tais relações de substituição, enfatizando a
concretude do medo da perda de um membro precioso. Porém, diz Freud, se este medo
não nos remetesse a outra coisa, mais profunda, não provocaria o efeito de estranheza:
assim, é necessário ser remetido de substituto em substituto de um recalcado que jamais
se mostra como tal.
Segundo Kofman, é neste sentido que Derrida ressalta o conceito de castração do
texto do estranho, radicalizando-o e transformando-o, ao articulá-lo ao duplo. Nesse
sentido a castração seria um vazio, marca que instauraria um jogo de substituições
infinitas.
Porém, Kofman considera que Freud vai mais além, “há mais jogo no texto de
Freud do que Derrida aponta”: segundo ela, para Freud, a angústia de castração não seria
o “significante último”; o “segredo propriamente dito” não estaria presente em lugar
nenhum, mas simplesmente postulado para dar razão à cadeia interminável de
73
Kofman, S. Lectures de Derrida, op. cit., p.71.
39
substituições. Neste sentido, Kofman entende que ’O estranho’ afirma antes o jogo que
a ‘verdade’, mesmo se esta última é colocada”.
74
Concordamos com a autora quanto ao fato de que, mesmo quando aponta a
angústia de castração como fonte de estranheza, Freud nos deixa vislumbrar um mais
além (como vimos acima, acerca da compulsão à repetição), não se contentando em
manter fechadas suas próprias constatações.
75
Assim, na primeira parte do texto, a partir do estudo etimológico do Unheimlich,
Freud reconstitui e reafirma a unidade do termo, apesar da contradição que ele encerra: a
ambivalência do termo Heimlich poderia ser explicada racionalmente, que “aquilo que
é familiar para uns, pode ser estranho para quem não participa de um segredo”, por
exemplo.
O segundo momento do texto freudiano consiste em listar os diferentes casos de
Unheimlichkeit. Neste ponto, segundo Kofman, acentua-se o caráter indecidível desta
noção: os diferentes casos citados parecem dificilmente redutíveis a um único núcleo de
sentido. No entanto, Freud mantém sua busca de unidade: o estranho seria uma categoria
do angustiante, algo recalcado que retorna. Deste modo, acentua mais o caráter de
familiaridade que de estranheza: a estranheza estaria no desconhecimento da
familiaridade; com este gesto, Freud tenta reduzir o estranho ao conhecido.
76
Porém, por outro gesto, Freud declara sua insatisfação diante da definição
rigorosa a que teria chegado e reconhece que o enigma não estaria desvendado: “talvez
seja verdade que o que sentimos como estranho é o mais familiar... mas nem tudo aquilo
74
Ibid, p.73.
75
E sabemos também que diversas leituras são possíveis do texto freudiano, vendo nele mais ou menos
“fechamentos”, daí a atualidade de Freud, até hoje relido e discutido.
76
Ibid., p.87.
40
que evoca desejos recalcados é sentido como estranho...”. Além disso, vimos que Freud
não se furta a remeter o estranho à compulsão à repetição.
Neste sentido, podemos dizer que o texto de Freud termina com uma certa
“indecisão”. É na complexidade deste gesto de Freud que, ao mesmo tempo, busca salvar
a univocidade, mas também o jogo, o encadeamento infinito de substitutos, que admite
contradições e que não passa pela consciência, interminável, que Derrida, com sua noção
de indecidível, encontra-se com a psicanálise.
O estranho e o narcisismo: indecidíveis
A partir do texto “O estranho”, conforme comentamos acima, diversas
articulações são possíveis. Tal riqueza, dissemos, deve-se ao fato de tratar-se de um texto
“entre”, que nos permite pensar para além dos dualismos, o que faz também com que este
se aproxime da leitura de Derrida, que o considera um texto indecidível, assim como a
própria noção de Unheimlich.
Neste ponto privilegiaremos uma articulação entre o estranho e o narcisismo,
procurando mostrar que estes se associam de um modo que também poderíamos
denominar “indecidível”: o estranho e o narcisismo, assim como o Heimlich e o
Unheimlich, o próprio e o estrangeiro, o eu e o outro, o interno e o externo, não seriam
dois opostos, mas sim "dois lados da mesma moeda".
77
Para justificar esta afirmação, será
77
Podemos recorrer neste mesmo sentido à figura topológica da banda de Moebius, trabalhada por Lacan
em diversos momentos importantes de sua obra (
Cf. Granon-Lafont, J. A topologia de Jacques Lacan, RJ,
JZE, 1990, ou ainda Darmon, M.
Essais sur la topologie lacanienne, Paris, L'Association Freudienne,
1990), que nos ajuda a pensar que dois lados podem estar contidos numa mesma superfície, afastando
assim uma ilusão de oposições. A banda de Moebius pode ser construída a partir de uma semitorção numa
faixa retangular, colando-se suas extremidades. Esta é uma superfície paradoxal onde apenas pontualmente,
num momento, pode-se estabelecer o avesso e o direito, mas em sua totalidade isso já não é possível, já que
41
necessário retomarmos algumas formulações que nos mostram como o estranho faz-se
presente na constituição do sujeito:
O estranho é descrito por Freud como um fenômeno experimentado pelo sujeito,
que revela sobretudo um distúrbio no ego, uma desorganização momentânea. Sabemos
que o ego constitui-se como uma unidade de modo precário, e que seu caráter ilusório é
notadamente pregnante. Trata-se de uma totalidade imaginária, fragmentada em sua
própria constituição. Freud concebe o ego como a instância que responde pela unidade do
sujeito, composto de identificações a traços diversos. Constituído como um "precipitado
de identificações", o ego revela em sua própria estrutura uma fragmentação. É formado
por identificações que podem ser até mesmo conflitantes entre si e sua desorganização é
uma possibilidade sempre presente.
78
Podemos dizer que a experiência de estranheza aponta para a impossibilidade da
completude ambicionada pelo ego, revelando sua precariedade. O ego tem sempre uma
possibilidade de desorganização naqueles momentos em que sua posição de "pobre
escravo submetido a três senhores"
79
, o mundo externo, o id e o superego, não se sustenta
de modo adequado.
Em "O estranho" Freud afirma que o ego arcaico, do narcisismo primário, ainda
não delimitado pelo mundo externo, pode projetar aquilo que sente como perigoso ou
desagradável, fazendo disso um duplo inquietante.
as duas faces da banda são postas em continuidade pela semitorção. A banda de Moebius pode nos servir
como um recurso para representar a subversão de aparentes dicotomias como, por exemplo, interior e
exterior. Para expressar a continuidade que se estabelece aí entre dentro e fora, Lacan criou ainda o termo
"extimidade", que conjuga o que é mais exterior àquilo que é mais íntimo ao sujeito.
78
Cf. Freud, S., O ego e o id [1923], op. cit.
79
Ibid.
42
O “fenômeno do duplo”
80
é apontado por Freud como o exemplo paradigmático
do Unheimlich e nos permite observar precisamente a relação entre o estranho e o
narcisismo. Em sua apresentação sobre o estranho, Freud aponta o fenômeno do duplo
como o tema de estranheza que mais se destaca dentre aqueles que poderiam ser
atribuídos a causas infantis. Afirma que o duplo pode apresentar-se sob diversas formas
como, por exemplo, uma acentuada semelhança entre personagens, fenômenos de
telepatia ou inúmeros modos de identificação: "Em outras palavras, uma duplicação,
divisão e intercâmbio do eu".
81
Segundo Freud, no narcisismo primário, o duplo pode ser um mecanismo ligado
ao princípio de onipotência dos pensamentos, como uma tentativa de negação da própria
morte. Porém, num segundo momento - que entendemos como não sendo cronológico -
uma inversão de seu aspecto e sua presença passa a evidenciar não a morte, como
também a castração, a impotência e a fragmentação da imagem narcísica, podendo tornar-
se fonte de angústia e ódio.
82
No fenômeno do duplo o surgimento de um outro que se apresenta como "o
estranho anunciador da morte".
83
A inquietante estranheza suscitada neste fenômeno é
própria do retorno do recalcado e nos assegura de que se trata de algo próprio a nós
80
O duplo é o exemplo clássico da experiência da inquietante estranheza, e foi muito desenvolvido pela
literatura romântica do século XIX. Este tema também já havia sido abordado de modo bastante
aprofundado em termos psicanalíticos por Otto Rank (Rank, O.,
Don Juan et le double [1914] (1932)
Paris, Éditions Payot, 1973), que explorou a ligação do duplo com reflexos em espelhos, sombras, espíritos,
crenças nas almas e o medo da morte. Rank enfatizara a articulação do duplo com o narcisismo, através do
temor do homem diante da ameaça de morte, baseando seus estudos na teoria freudiana desenvolvida até
então, 1914, principalmente no conceito de narcisismo. Freud, em 1919, utilizou-se dos estudos de Rank,
mas foi além do que este afirmara, mostrando que o duplo, além de ser relacionado ao narcisismo, articula-
se com a estranheza pela via da compulsão à repetição.
81
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.293.
82
Veremos um exemplo do duplo como fonte de ódio no próximo capítulo, onde discutiremos a questão da
agressividade a partir de um conto literário.
83
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.294.
43
mesmos, da ordem da repetição, que se impõe como inescapável.
84
Podemos entender
este fenômeno como uma tentativa de defesa de um ego inconformado com as suas
limitações, com a sua mortalidade, que coloca no exterior todo o material estranho que
causaria desprazer. Deste modo o ego busca proteção, mas só pode fazê-lo substituindo a
imagem do duplo benevolente, que antes bastava para protegê-lo, por uma imagem de
duplo malevolente para o qual expulsa a parte de destruição que não pode conter. O duplo
revela a divisão do ego que, diante deste duplo, percebido como um outro, exterior,
geralmente hostil e perseguidor no qual o sujeito não se reconhece, perde o domínio que
acreditara ter sobre si mesmo. Ao evidenciar a divisão do sujeito, o duplo faz sinal de
uma possibilidade ameaçadora de fragmentação do ego, logo, de perda de identidade,
que esta pressupõe uma unidade.
Podemos entender que assim como o narcisismo, que é uma condição do ego e
não uma "etapa a ser ultrapassada", o duplo é uma possibilidade que se mantém, mas que
pode receber novos significados em diferentes momentos da história do sujeito. Segundo
Freud:
"A idéia do 'duplo' não desaparece necessariamente ao passar o narcisismo
primário, pois pode receber novo significado dos estádios posteriores do
desenvolvimento do ego. Forma-se ali, lentamente, uma atividade especial, que
consegue resistir ao resto do ego, que tem a função de observar e de criticar o ego
e de exercer uma censura dentro da mente, e da qual tomamos conhecimento
como nossa 'consciência'."
85
Neste texto, Freud denomina "consciência" esta atividade especial que, em textos
posteriores, será atribuída ao superego. Assim, o próprio superego pode ser pensado
como um duplo do ego, sendo uma diferenciação deste, podendo tornar-se um
84
Freud associa o duplo tanto ao retorno do recalcado quanto à compulsão à repetição.
85
Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.294.
44
perseguidor deste ego, assumindo um caráter sádico. É bastante comum a aparição do
duplo como guardião da moral, crítico severo do sujeito, muitas vezes seu perseguidor.
Nisto nos servem de exemplo diversos contos da literatura sobre o duplo, que mostram a
projeção desta instância crítica, que assume vida própria, como um duplo autônomo,
estranho e fonte de terror para o sujeito.
Porém, Freud acredita que esta assunção pelo duplo das funções do superego não
seria suficiente para explicar seu caráter de estranheza. Assim, afirma que "a qualidade
de estranheza pode advir do fato de o 'duplo' ser uma criação que data de um estádio
mental muito primitivo, muito superado (...) em que o 'duplo' tinha um aspecto mais
amistoso".
86
Freud descreve ainda este fenômeno do duplo como o "efeito de defrontar-se com
a própria imagem, espontânea e inesperadamente." Aborda este tema justamente a partir
de uma experiência própria, cotidiana, favorecendo uma visão do duplo como algo
constitutivo, um fenômeno ao qual todos estamos sujeitos, ao menos momentaneamente:
"Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um
solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete
anexo, e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao
deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a
direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com
a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto
meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta
aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência".
87
Ao invés de assustar-se com seu duplo, num primeiro momento, Freud
simplesmente deixou de reconhecê-lo, sentindo antipatia pela imagem que julgou ser um
86
Ibid, p.295.
87
Ibid, p..309, nota 1.
45
outro. Freud se pergunta se a antipatia despertada por este duplo seria "um vestígio da
reação arcaica que sente o 'duplo' como algo estranho".
Entendemos que o caráter de estranheza de que se reveste a imagem do duplo,
num momento posterior, resulta de uma vacilação da delimitação entre interior e exterior,
o que nos remete à fase especular, ao narcisismo, onde isso não tinha efeito de
estranheza. Deste modo, o estranhamento é possível a partir da constituição do ego,
logo, também a partir da constituição de um objeto externo.
No texto sobre o narcisismo, de 1914, Freud aponta a importância do
investimento através do olhar dos pais para a constituição do ego, que é precedido pelas
fantasias narcísicas reparadoras que estes construíram, ao atribuírem o estatuto de "Sua
majestade, o bebê" àquele ser prematuro, desamparado e dependente de seus cuidados
para sobreviver. Há uma projeção das fantasias dos pais sobre a criança, que é então vista
como alguém capaz de realizar tudo aquilo que teria sido impossível ou negado aos pais:
"Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de
reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo,
que de muito abandonaram (...) eles se acham sob a compulsão de atribuir
todas as perfeições ao filho (...) ela será mais uma vez realmente o centro e o
âmago da criação - 'Sua majestade o Bebê ', como outrora nós mesmos nos
imaginávamos."
88
Deste texto sobre o narcisismo podemos depreender a função primordial do Outro
na constituição do ego, este Outro que atribui um estatuto de onipotência ao bebê
desamparado, que lhe um nome, um lugar e uma projeção no futuro. Entendemos que,
mesmo no auto-erotismo, a dependência de um Outro que possa mapear o corpo da
criança, erogeneizando-o. Em geral, associa-se o narcisismo ao amor de si mesmo, o que,
levado a um extremo, seria um estado de desconhecimento do outro e dos limites que este
88
Freud, S., Sobre o narcisismo: uma introdução [1914], op. cit., p.108.
46
impõe. Mas sabemos que o suposto enclausuramento narcísico, exige na verdade um
Outro, cujo desejo é o que dá consistência a "Sua majestade, o bebê".
Assim, consideramos importante enfatizar que uma reflexão acerca do narcisismo
é impossível sem que se leve em conta a função da alteridade. Neste ponto, pode nos
ajudar a formulação de Lacan acerca do estádio do espelho, que nos mostra justamente
como é fundamental a referência ao Outro, simbólico, responsável por apontar para o
espelho e anunciar para o bebê: "aquela imagem, é você".
Lacan descreve o estádio do espelho como uma identificação, a transformação
produzida no sujeito que assume uma imagem:
“A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda mergulhado
na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do
homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação
exemplar, a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial,
antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a
linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito”.
89
Assim, Lacan afirma que o ego se situa numa linha de ficção, irredutível, apesar
das "sínteses dialéticas pelas quais tenta resolver sua discordância de sua própria
realidade”
90
, e que a forma total do corpo, pela qual o sujeito antecipa, numa miragem,
sua maturação, lhe é dada como gestalt numa exterioridade. Seguindo estas
formulações vemos que a imagem própria é ao mesmo tempo exterior, o que nos fornece
elementos para entender como esta imagem pode tornar-se fonte de estranheza.
Lacan descreve o estádio do espelho como uma precipitação, da insuficiência para
a antecipação, onde está em jogo uma identidade alienante que marcará todo o
desenvolvimento do sujeito. Lacan nos mostra a função da imago da forma humana na
89
Lacan, J., O estádio do espelho como formador da função do eu [1949] in Escritos, op. cit., p.97.
90
Ibid, p.98.
47
formação do ego, através da captura, por parte da criança, da sua própria imagem no
espelho, ou da imagem de um adulto que lhe sirva de suporte. Para a criança pequena, em
função da descoordenação motora que decorre de sua prematuração, a imagem do outro
tem valor cativante, na medida em que antecipa uma imagem unitária do corpo, percebida
no espelho ou na realidade do semelhante.
É importante lembrar que esta concepção do estádio do espelho não deve ser lida
sob uma perspectiva desenvolvimentista. A imagem de um corpo fragmentado não é
nenhuma fase inicial, mas é a partir da unificação determinada pelo espelho que é
considerada, por retroação, a possibilidade de uma eventual fragmentação corporal, logo,
apenas a assunção da imagem unificante pode dar conta da possibilidade da sua perda.
Neste mesmo sentido, o simbólico não se coloca "só depois" de um primeiro momento
que seria apenas imaginário, mas está posto para o sujeito desde sempre.
A partir destas formulações de Lacan sobre o estádio do espelho, e também com o
conceito freudiano de narcisismo, entendemos que no fenômeno do duplo, que
comentamos acima, objetiva-se uma experiência do "eu é um outro", frase do poeta
Rimbaud que Lacan cita em diversos momentos de sua obra
91
, ao referir-se ao jogo
especular. Por um momento, numa irrupção pontual
92
, o eu apresenta-se de fato como um
outro, autônomo, destacado do sujeito. Então, mostra-se evidente o fato de que o eu é
uma imagem, o que é estranhamente familiar. Neste instante é ultrapassado o jogo
constitutivo da oscilação dentro-fora, e a imagem mostra-se fora, embora ainda ligada
ao eu: "eu, um outro". Consideramos importante ressaltar aqui a ambigüidade do duplo,
91
Cf., por exemplo, o texto A agressividade em Psicanálise [1948] in Escritos, op. cit., p.120.
92
É importante notarmos a temporalidade peculiar do Unheimlich - o instante - como expressa o
comentário de Lacan:
“‘De repente’, ‘subitamente’, vocês sempre encontrarão estes termos no momento da
entrada do fenômeno do Unheimlich..."
- Lacan, J., Seminário X, não publicado, aula de 19 de dezembro
de 1962.
48
que tem uma função constitutiva para o sujeito, ao mesmo tempo em que pode adquirir
um aspecto inquietantemente estranho, ameaçador e mortal.
Em "Os complexos familiares", Lacan examina a função do irmão, o pequeno
outro com que nos deparamos, para refletir acerca do ciúme e da inveja constitutivos,
enfatizando a identificação como o aspecto determinante da rivalidade entre irmãos.
Sobre aquilo que denomina "complexo fraterno", afirma que o irmão funciona como um
duplo, que ameaça e desestabiliza a identidade imaginária da criança com relação a sua
imagem no espelho. Nesse sentido, Lacan destaca a importância dessa "introdução
temporária de uma tendência estrangeira" para a formação do eu.
93
Introduzindo na
organização narcísica infantil a confrontação com a máxima semelhança e a inevitável
diferença, o irmão força o rompimento da prisão especular daquele que, até então, se
veria como idêntico a si mesmo.
Seguindo esta idéia, Lacan afirma que o ciúme entre irmãos não é apenas fundado
na rivalidade em torno do amor dos pais, mas na identificação do sujeito para com o
pequeno semelhante. O outro é rival, antes de mais nada, em relação à própria imagem
narcísica do sujeito: "cada parceiro confunde a parte do outro com a sua própria e com
ela se identifica".
94
Neste sentido, a imagem do duplo organiza a imagem do próprio
corpo: "O eu se constata ao mesmo tempo que o outro no drama do ciúme".
95
Assim, a presença do outro pode constituir uma luta da qual apenas um pode
sobreviver: "ou eu, ou ele". Porém, ao mesmo tempo, o outro é a esperança de que o eu
possa escapar do mergulho insuportável num jogo de espelhos sem fim. Então a presença
93
Lacan, J. Os complexos familiares [1938], RJ, JZE, 1985, p.38.
94
Ibid, p.32.
95
Ibid, p.39.
49
do outro também é solicitada como referência, como limite à onipotência narcísica do eu.
Vemos então como o eu e o outro, o estranho e o familiar, são indissociáveis.
Neste momento podemos retomar nossa afirmativa de que o estranho e o
narcisismo se articulariam de modo “indecidível”. Ao longo deste capítulo ressaltamos o
estreito vínculo do estranho com a questão da imagem, algo constitutivo da identidade,
do próprio ego. Como vimos acima, a partir das formulações de Lacan sobre o estádio do
espelho, esta imagem própria, ou melhor, esta imagem da qual o sujeito se apropria, lhe é
ao mesmo tempo exterior e pode tornar-se estranha. Assim, entendemos a relação entre o
estranho e o narcisismo, não como dois opostos, mas como "dois lados da mesma
moeda".
Também o próprio narcisismo pode ser pensado numa dupla vertente, indecidível,
entre auto-suficiência e auto-aniquilação. O narcisismo é constitutivo e estruturante, mas
também pode ser concebido em sua relação com a morte, no sentido de que a não
distribuição do investimento para o mundo dos objetos conduz à morte - real ou da libido
- que assim a libido não se renova, se esteriliza. Isso constitui um aparente paradoxo,
se considerarmos que o sujeito deve abrir mão de parte de si para sobreviver.
“O espelho”, de Machado de Assis
Seguindo a nossa proposta de articulação entre o narcisismo e o Unheimlich,
podemos lembrar que a ligação entre o estranho e o campo escópico é explícita em
grande parte dos contos fantásticos, apontados por Freud como fundamentais para o
estudo do tema em questão. A referência aos olhos, ao olhar e vários tipos de
50
instrumentos óticos, como óculos, lunetas, telescópios e espelhos, permeiam muitos
destes contos, como vimos em "O Homem da Areia", por exemplo. Em muitos outros
contos literários que despertam estranheza semelhante, encontramos o recurso a estes
elementos que remetem à visão, principalmente o espelho, onde o estranho aparece
inevitavelmente associado a uma vacilação da própria imagem.
Como exemplo podemos citar um conto de Machado de Assis, cujo título é
justamente "O espelho"
96
, que mostra com precisão a importância do outro na
constituição de uma identidade. Ao mesmo tempo, mostra o ponto extremo de uma
situação na qual se pretende que uma imagem responda pela totalidade de um sujeito.
Na cena inicial deste conto, cujo subtítulo é "esboço de uma nova teoria da alma
humana", alguns cavalheiros discutem metafísica à luz de velas, quando um deles -
Jacobina - dispõe-se a falar acerca da alma humana, revelando sua constatação pessoal:
"Em primeiro lugar, não uma alma, duas... Cada criatura humana traz
duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para
dentro (...) A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos
homens, um objeto, uma operação (...) Está claro que o ofício dessa segunda alma
é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem... Quem perde
uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros,
em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira".
97
Jacobina afirma ter chegado a esta conclusão a partir de um episódio pessoal, que
narra em seguida: "Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado
alferes da guarda nacional".
98
Tal fato tornou-se o centro das atenções da modesta
família que, orgulhosa, desde então passou a chamá-lo apenas de "senhor alferes".
96
Assis, M. de, O Espelho [1882] in Contos / Uma antologia, Vol. I, SP, Companhia das letras, 1998.
97
Ibid, p.402.
98
Ibid, p.404.
51
É neste contexto de entusiasmo que Jacobina aceita o convite de uma tia, que
morava num sítio "escuso e solitário", para uma estada em sua casa. A tia insistiu para
que ele levasse sua farda de alferes e o recebeu com todas as honras, tomando o hábito de
também chamá-lo "meu alferes": "Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho , como
dantes, e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o 'senhor alferes'."
99
Era
assim que todos o chamavam também no sítio, reservando para “o alferes" sempre o
melhor lugar à mesa, sendo o primeiro a ser servido. Foi quando a tia concedeu a
Jacobina a honra de pôr em seu quarto um valioso espelho:
"(...) um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa cuja
mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que
esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a
corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição."
100
Jacobina conta que todas essas coisas, "carinhos, atenção, obséquios",
provocaram nele uma grande transformação a tal ponto que "o alferes eliminou o homem
(...) Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos
das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o
que me falava do posto, nada do que me falava do homem."
101
Foi assim que Jacobina passou algumas semanas: "era exclusivamente alferes".
Porém, sua situação transformou-se quando seus familiares tiveram que partir de
repente e Jacobina viu-se só. Logo começou a ter sensações estranhas, "inexplicáveis",
"era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico".
102
99
Idem.
100
Ibid, p.405.
101
Idem.
102
Ibid, p.408.
52
O sono lhe dava alívio. Sonhava que se fardava e todos lhe chamavam novamente
"meu alferes". Isso lhe fazia sentir vivo, porém, quando acordava, voltava a mergulhar
em sua solidão absoluta, na angústia, no silêncio e naquilo que designou uma "terrível
situação moral".
Foi então que Jacobina deu-se conta de que, desde que ficara só, não olhara uma
vez para o espelho: "Não era abstenção deliberada, não tinha motivo, era um impulso
inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo (...)".
103
Ao fim de oito dias de solidão, finalmente decide olhar o espelho: "Olhei e recuei.
O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura
nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra."
104
Jacobina perdeu a
própria imagem diante do espelho e foi assim tomado por um pavor de enlouquecer.
Porém, subitamente, por um impulso, lembrou-se de vestir sua farda de alferes e,
imediatamente, recuperou no espelho sua imagem integral: "Era eu mesmo, o alferes, que
achava, enfim, a alma exterior".
105
Daí em diante, a cada dia, Jacobina vestia-se de
alferes e sentava-se diante do espelho por algumas horas. Assim pôde atravessar mais seis
dias de solidão.
Neste conto, vemos que o sujeito se conduz a reforçar sua identificação a uma
imagem, o alferes, o que lhe confere identidade e reconhecimento, apaziguando sua
angústia - ao menos temporariamente - que o estranhamento é recoberto pela colagem
a uma imagem unitária. Se por um lado isso lhe permite escapar da angustiante
despersonalização, fixa-o numa identidade alienante, restritiva por ser única.
103
Ibid, p.409.
104
Idem.
105
Ibid, p.410.
53
Este conto nos mostra ainda que a vacilação da imagem própria aparece
freqüentemente associada a uma incerteza sobre a própria sanidade, a sensação de
aniquilamento do eu, o desfalecimento do sujeito, a ameaça de despersonalização ou de
"perda da certeza de si".
106
A partir do que discutimos até aqui, podemos observar que no estranhamento
um efeito de fascinação, de captura pela imagem. Esta fascinação, que terminou por
destruir Narciso, é um primeiro momento no encontro com o semelhante, e o sujeito
sucumbe a ela se não for capaz de extrair daí a diferença que, para a constituição do eu, é
formadora.
Com relação ao mito de Narciso podemos observar que, capturado por uma
imagem, ele não é capaz de reconhecer a semelhança, marcando a diferença, tampouco há
um Outro que possa lhe apontar isso.
O lugar central da imagem no narcisismo, que talvez tenha permanecido
subestimado em proveito de um aspecto mais egoísta e autônomo, mostra-se claramente
na versão mais conhecida do mito de Narciso, a de Ovídio, como vemos na passagem a
seguir:
"Logo que procura saciar a sede, uma outra sede surge dentro dele [Narciso].
Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por
um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra
(...) Deseja a si mesmo, em sua ignorância (...) Não sabe o que vê, mas o que vê o
inflama, e o mesmo erro que ilude seus olhos lhe excita o desejo (...) Nem os
cuidados com a alimentação nem com o repouso, todavia, podem afastá-lo dali;
estendido na espessa relva, contempla, insaciável, a imagem mentirosa, e perde-se
devido aos próprios olhos."
107
106
Sobre a questão da "certeza de si", cf. Ferenczi, S., Fé, incredulidade e convicção sob o ângulo da
psicologia médica
[1913] in Obras Completas, Vol.II, SP, Martins Fontes, 1993 e Pinheiro, M. T. et al A
certeza de si e o ato de perdoar.
Cadernos de psicanálise, SPCRJ, Vol.14, n
o
17, 1998.
107
Ovídio, As Metamorfoses, Coleção universidade de bolso, p.59. Grifo nosso.
54
Segundo Lambotte, quando lemos que Narciso amava uma imagem ignorando sua
natureza e a quem pertencia, podemos perceber que o reconhecimento dessa imagem
resultaria de uma elaboração que envolve a necessidade de um juízo externo. Sobre isso,
a autora comenta:
"Fascinado por sua própria imagem, Narciso ilustra magistralmente o momento de
captação do sujeito pelo reflexo especular que Lacan descreve em ‘O estádio do
espelho’... mas, diferentemente do que se passa quando dessa fase - em que o
infans sofre de certo modo uma dupla identificação: por um lado com a imagem
virtual e, sob ela, por outro lado, com a da espécie - o personagem de Narciso, na
ignorância de toda referência externa, mergulha numa visão amorosa cujo
colorido passional expressa uma total confusão entre o eu e seu modelo".
108
Assim, vemos que o narcisismo é indissociável da constituição da imagem de si
mesmo, e que isso é possível a partir do Outro, logo, podemos afirmar que Um
onde há também uma diferença.
A seguir, partindo do Unheimlich freudiano em sua articulação indecidível com o
narcisismo, nos dedicaremos a pensar sobre o que se passa a partir deste instante de
estranheza. Nos próximos capítulos, o Unheimlich nos servirá como base para uma
discussão acerca dos modos de relação com o estranho, entendido como alteridade
radical, como diferença. Este modo de articulação que apresentamos ao longo deste
capítulo, que nos permite pensar para além das oposições dualistas, será mantido sempre
em nosso horizonte, por mostrar um funcionamento onde a diferença não é excluída, mas
tem função constitutiva e vital.
108
Verbete "Narcisismo" in Kaufmann, P. (org.), Dicionário enciclopédico de psicanálise - O legado de
Freud e Lacan, RJ, JZE, 1996, p.351.
55
Capítulo II - O estranho, a agressividade e a crueldade
Neste capítulo pretendemos discutir o fato de que o encontro com o estranho
freqüentemente desperta a agressividade. A partir de Freud e também recorrendo a
algumas contribuições de Lacan, veremos que tal posicionamento decorre do não
reconhecimento da familiaridade do estranho, onde a estranheza é fixada numa
exterioridade, o que pode ser seguido por uma tentativa de eliminar tal estranheza.
Retomaremos o tema do narcisismo, um dos pontos de partida deste trabalho,
como base para esta reflexão sobre a agressividade, discutindo o fato de que esta pode ser
pensada em articulação com o narcisismo, como sua contra-face, de modo análogo à
articulação indecidível proposta anteriormente entre o estranho e o narcisismo.
Consideramos necessário aqui o estabelecimento de uma distinção
metapsicológica entre o que chamamos de agressividade, e aquilo que denominaremos
crueldade com relação ao estranho: nesta última, propomos pensar que a familiaridade do
estranho seria negada de modo ainda mais radical e a pulsão de morte se manifestaria de
modo mais direto.
A agressividade e a crueldade com relação ao estranho costumam ter graves
conseqüências que implicam não cada sujeito em sua atitude diante de si mesmo e do
outro, mas também questões mais amplas, do social, que acreditamos que a psicanálise
não pode nem deve evitar. O ódio ao estrangeiro ou, mais especificamente, o racismo, são
temas com os quais nos defrontamos ao abordar esta questão do posicionamento diante
56
do estranho no contexto social. Nosso objetivo, neste sentido, é poder refletir sobre o
papel da psicanálise, e em que ela poderia contribuir com relação a estas questões.
A agressividade: um dos destinos do estranho
Na dissertação de mestrado intitulada “O estranho e seus destinos”, que serviu
como ponto de partida para esta tese, procuramos definir algumas possibilidades diante
da estranheza, considerando que a partir do instante em que o Heimlich se apresenta
como Unheimlich, afetando o sujeito ao fazê-lo vacilar, alguns diferentes destinos
109
são
possíveis. Dentre estes, ressaltamos o recobrimento por uma identidade, onde à
experiência do estranhamento segue-se uma tentativa de fixação a uma imagem especular
como recurso para afastar a angústia mostramos este destino no primeiro capítulo desta
tese a partir de “O espelho”, de Machado de Assis. Como um segundo destino do
estranho, apontamos a emergência da angústia, onde esta tentativa de recobrimento por
uma identidade falha, e o sujeito é tomado por uma angústia paralisante.
110
A
agressividade diante do estranho é o destino cuja discussão retomaremos detalhadamente
neste capítulo; e, finalmente, discutiremos também aquilo que chamamos de uma
“possibilidade de abertura para o novo”, destino que será retomado nas considerações
finais desta tese.
109
Com o uso do termo “destino”, procuramos manter uma certa ambigüidade de sentidos: algo que pode
ultrapassar a escolha voluntária de um sujeito, como uma “fatalidade”, um “acaso”, ou ainda pode designar
um caminho, uma direção, que implica numa escolha. Tal escolha, que chamamos de “destino do
estranho”, não se restringe à lógica do eu ou da consciência, mas leva em conta o posicionamento diante do
próprio inconsciente, do imprevisível.
110
A angústia é enfatizada tanto por Freud (Cf. Freud, S., O Estranho [1919], op. cit., p.300) quanto por
Lacan (
Cf. Lacan, J., Le Seminaire, livre 10 [1962-1963]. Paris, Ed. Seuil, 2004, aula de 28 de novembro
de 62) como o afeto em questão no fenômeno do
Unheimlich. Porém, consideramos importante enfatizar
outros possíveis destinos a partir de um encontro com a estranheza, mesmo que um primeiro momento seja
de emergência da angústia. Para uma discussão mais detalhada sobre o tema da angústia diante do estranho,
ver Saceanu, P.
O estranho e seus destinos. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, UFRJ, 2001, inédita.
57
Trata-se de uma reflexão que diz respeito diretamente à clínica psicanalítica, que é
o que nos move numa pesquisa teórica em psicanálise. A partir da clínica, entendemos
que a psicanálise pode apontar uma outra direção a partir do encontro com o estranho,
mesmo que neste caminho seja necessário passar pela angústia. Acreditamos que uma
análise possibilita uma abertura para as inúmeras possibilidades de sentidos para a
estranheza que em nós mesmos, talvez como o único modo de não perseguí-la do lado
de fora.
Porém, o que encontramos mais freqüentemente é a manifestação da
agressividade diante da estranheza, onde esta é projetada sobre um Outro externo com o
qual o sujeito evita identificar-se. Este “destino do estranho”, além de muito freqüente,
pode ter conseqüências bastante graves quanto a cada sujeito e também quanto ao social,
daí termos considerado a sua relevância e a necessidade de um maior aprofundamento
neste tema.
A agressividade como contra-face do narcisismo
Assim como mostramos no primeiro capítulo desta tese a articulação entre o
estranho e o narcisismo como dois lados da mesma moeda, pretendemos discutir aqui a
idéia de que também a agressividade e o narcisismo podem ser relacionados de modo
semelhante, o que nos servirá para pensar mais adiante acerca da função constitutiva da
agressividade quanto ao sujeito.
Recorrendo a Freud, encontramos em diversas passagens de sua obra tal idéia de
que narcisismo e agressividade podem ser concebidos em articulação. Em “Totem e
58
Tabu”
111
, por exemplo, esta idéia permeia sua descrição dos processos de identificação e
incorporação, através da qual demonstra que a fraternidade se funda na exclusão - é o que
narra o mito da horda primeva, segundo o qual "os irmãos se uniram, mataram e
devoraram o pai" – o que seria retomado de modo detalhado em textos mais tardios como
veremos adiante.
Freud segue a mesma idéia em “Luto e Melancolia”
112
, onde afirma que a
identificação narcísica é a primeira forma pela qual o eu escolhe um objeto, sempre de
modo ambivalente, já que a incorporação, que tem por imagem o canibalismo, inclui, por
definição, a destruição deste objeto. Fica evidente aqui a agressividade em questão, na
ligação entre a identificação narcísica e o aniquilamento do objeto.
Lacan, assim como Freud, articula intimamente narcisismo e agressividade: em
“A agressividade em psicanálise”, texto que apresenta muitos pontos em comum com "O
estádio do espelho", que comentamos anteriormente, Lacan afirma que a agressividade é
a tendência correlativa ao modo de identificação narcísica, que determina a estrutura do
eu. Afirma que a tensão induzida pela exterioridade e a estranheza da imagem especular
contém os fundamentos da agressividade. Isto está de acordo com o que discutimos no
capítulo I acerca do papel da alteridade na constituição do eu e com a constatação de que
"eu é um outro"
113
. Desde o início o eu se mostra marcado por uma relatividade
agressiva, tendência impressa nas relações fundadas no imaginário.
Podemos entender daí que uma relação imaginária, dual, tende a se esgotar num
jogo especular no qual o sujeito se perde ou se aliena. As formulações acerca do estádio
do espelho nos mostram que é o outro que está de posse de sua imagem, que o sujeito
111
Freud, S., Totem e tabu [1913], op. cit., Vol. XIII.
112
Freud, S., Luto e melancolia [1917] (1915), op. cit., Vol. XIV.
113
Lacan, J., A agressividade em psicanálise [1948] in Escritos, op. cit., p.120.
59
pode perceber-se na imagem deste outro. Trata-se de uma identificação alienante e
produtora de tensão, que tem como conseqüência imediata a necessidade de destruir esse
outro, fonte da alienação; é deste modo que Lacan aponta neste texto o narcisismo e a
agressividade como contemporâneos. De fato, "se meu eu está fora de mim", no outro, se
meu desejo por conseqüência é o desejo do outro, é preciso destruir este outro para que
eu possa ter um lugar. Daí a concomitância do narcisismo e da agressividade, que toda
relação dual, especular, é uma relação tanto constitutiva quanto mortal e deste impasse
há saída possível a partir do simbólico.
É nesse mesmo sentido que podemos retomar o tema do duplo, abordado no
capítulo I, como algo que pode ser tão constitutivo quanto mortal. Veremos a seguir uma
destas possibilidades, a partir da narrativa de Poe, onde o outro não exerce sua função
constitutiva, mas apenas ameaça o sujeito como um duplo autônomo, sombra
perseguidora, que se torna alvo de uma agressividade mortal.
Sobre "William Wilson", de Poe
114
Escolhemos abordar o tema da agressividade que pode ser desencadeada num
confronto com o duplo a partir da descrição, recorrente na literatura, de um embate
mortal onde o assassinato do duplo equivale ao suicídio do sujeito.
O conto "William Wilson", de Poe, nos fornece uma rica oportunidade de
observarmos esta agressividade dirigida ao duplo, como um estranho no qual o sujeito
insiste em não se reconhecer, projetando sua estranheza sobre este outro que se torna alvo
de ódio. Neste conto, narrado na primeira pessoa, Wilson descreve sua própria trajetória
114
Poe, E. A., William Wilson [1839] in Contos de terror, de mistério e de morte, J. Aguilar, RJ, 1975.
60
de terror e ódio, a partir do confronto com o duplo que lhe persegue desde a infância, até
seu final terrível.
Wilson começa relembrando seu período na escola, onde teria tido início seu
tormento. Afirma que era então um líder, que exercia seu poder sobre todos - menos um:
aquele que tinha seu mesmo nome e sobrenome. Esse xará competia em tudo com
Wilson, recusando submissão à sua vontade, o que despertava a ira do narrador.
Porém, Wilson reconhece, surpreso, sua ambivalência com relação ao rival: "Pode
parecer estranho que, a despeito da contínua ansiedade que me causavam a rivalidade
de Wilson e seu intolerável espírito de contradição, não pudesse eu ser levado a odiá-lo
totalmente”.
115
Assim, se por um lado Wilson sentia ódio por seu rival, também não
deixava de constatar aquilo que chama de uma "presunção de patrocínio e proteção" por
parte de seu duplo, numa mistura que nos faz pensar no aspecto amistoso do duplo no
narcisismo primário, só depois revestido de terror.
116
Wilson descobriu em seu rival algo que lhe remetia a "sombrias visões de minha
primeira infância", "recordações de um tempo em que a própria memória ainda não
nascera". Tinha uma "crença de haver conhecido aquele ser diante de mim em alguma
época muito longínqua, em algum ponto do passado, ainda que infinitamente remoto".
117
Nascidos no mesmo dia, freqüentavam a mesma escola, tinham altura e feições
semelhantes, e o mesmo nome. Logo que o xará chegou ao colégio, foi justamente com
seu nome que Wilson antipatizou, "porque o usava um estranho que seria causa de sua
dupla repetição". Repetição de seu nome, William Wilson, nome que lhe provocava
115
Ibid, p.84.
116
Cf. o capítulo I desta tese, onde abordamos as formulações freudianas sobre o duplo, como um
mecanismo ligado à onipotência narcísica, como uma tentativa de negação da castração e da morte, mas
que num outro momento pode justamente evidenciá-las, como "o estranho anunciador da morte".
117
Poe, E. A., William Wilson, op. cit., p.87.
61
repugnância, por considerá-lo "vulgar": um nome tão comum, que não era capaz de
marcar uma distinção.
Wilson reconhecia no próprio nome seu "ponto fraco" e descobriu também o
ponto fraco de seu rival - sua voz - que jamais passava de um sussurro. Porém, nem assim
ele era capaz de enfrentar seu duplo: "a despeito de seu defeito constitucional, até mesmo
minha voz não lhe escapava. Naturalmente, não alcançava ele meus tons mais elevados,
mas o timbre era idêntico e seu sussurro característico tornou-se o verdadeiro eco do
meu".
118
Pronunciando seu nome, o xará aproximava-se de Wilson sussurrando com sua
voz rouca "William Wilson", sempre que este se entregava a algum prazer proibido, seu
passatempo predileto. Diante disso, Wilson reconhece: "Seu senso moral (...) era bem
mais agudo que o meu..." Considera que poderia ter sido "um homem melhor e, portanto,
mais feliz", se não tivesse rejeitado os conselhos de seu duplo.
119
Podemos entender que, neste conto, o duplo aparece como guardião da moral,
crítico severo do sujeito e seu perseguidor. É como se a instância crítica assumisse vida
própria, como um duplo autônomo, estranho e fonte de terror para o sujeito.
120
Numa tentativa de aproximar-se do rival, disso que o atormentava, certa noite
Wilson iluminou o rosto de seu duplo enquanto este dormia. Porém, ao invés de lançar
alguma luz sobre a situação, Wilson foi tomado de terror diante do que viu. Manteve-se
na escuridão, incapaz de distinguir a semelhança e a diferença:
"Eram aquelas... aquelas as feições de William Wilson? Vi, de fato, que eram as
dele, mas tremi como num acesso de febre, imaginando que não o eram. Que
118
Ibid, p.86.
119
Idem.
120
Neste sentido é interessante notar a epígrafe deste conto de Poe: "Que dirá ela? Que dirá a horrenda
Consciência, aquele espectro no meu caminho?"
Poe, E. A., William Wilson, op.cit.
62
havia em torno delas para me perturbarem desse modo? Contemplei, enquanto
meu cérebro girava com uma multidão de pensamentos incoerentes. Não era assim
que ele aparecia - certamente não era assim - na vivacidade de suas horas
despertas. O mesmo nome! Os mesmos traços pessoais! O mesmo dia de chegada
ao colégio! E, depois, sua obstinada e incompreensível imitação de meu andar, de
minha voz, de meus costumes, de meus gestos! Estaria, em verdade, dentro dos
limites da possibilidade humana que o que eu então via fosse, simplesmente, o
resultado da prática habitual dessa imitação sarcástica?"
121
Horrorizado, com um tremor crescente, Wilson apagou a lâmpada e saiu
silenciosamente do quarto, abandonando o velho colégio, para nunca mais voltar.
Durante anos Wilson conseguiu afastar-se deste episódio, tentando esquecê-lo.
Porém, num momento em que se encontrava entregue ao vício do álcool, ao jogo e às
trapaças, seu rival reapareceu, voltando a persegui-lo com seus conselhos morais,
denunciando seu caráter aos colegas.
Daquele momento em diante, Wilson fugia em vão. Seu duplo o perseguia aonde
fosse, por todo o mundo. Em Roma, Paris, Viena, Berlim, Moscou, por toda parte,
estava seu rival, sempre censurando seus atos, sua "ambição, avareza, vinganças e
paixões", despertando "angústia, horror e vergonha". Até que, numa resolução
desesperada, Wilson decidiu: "não me submeteria por mais tempo à escravidão".
122
"Foi em Roma, durante o carnaval... Assistia eu a um baile de máscaras, no
palácio do napolitano Duque Di Broglio". Entregue aos excessos do vinho, Wilson
procurava, "com indigna intenção", pela bela mulher do velho Di Broglio.
123
Naquele momento, sentiu uma mão pousar sobre seu ombro e ouviu o sussurro do
rival. Tomado de cólera, agarrou o inimigo pelo pescoço, arrastando-o para um duelo.
121
Ibid, p.88.
122
Ibid, p.94.
123
Idem.
63
Trata-se da cena final do conto, onde se desenrola o embate imaginário entre
Wilson e seu rival. Atormentado, o personagem de caráter vil, perseguido por seu duplo
idôneo, mergulha num duelo mortal.
Cego pelo ódio, Wilson enterrou sua espada no peito do rival. Naquele momento,
ao feri-lo, alguém bateu à porta, mas teve sua entrada impedida por Wilson. Ao virar-se
novamente para o rival, foi com um enorme espelho que ele se deparou, aterrorizado
diante do próprio rosto manchado de sangue:
"Mas que língua humana pode adequadamente retratar aquele espanto, aquele
horror, que de mim se apossou diante do espetáculo que então se apresentou à
minha vista?(...) minha própria imagem, mas com as feições lívidas e manchadas
de sangue, adiantava-se a meu encontro..."
124
A última passagem do conto é uma frase ouvida, sem que se possa determinar
quem a diz. Wilson ou seu duplo? Já não havia a menor diferença:
"Venceste e eu me rendo. Contudo, de agora por diante, tu também estás
morto... morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu
vivias... e, na minha morte, por esta imagem, que é a tua própria imagem,
quão completamente assassinaste a ti mesmo!"
125
Esta passagem final nos remete ao aniquilamento do sujeito que se perde num
confronto imaginário, incapaz de escapar do embate direto, mortífero, com seu próprio
duplo. Não podendo reconhecê-lo como parte de si, tomado de ódio, o personagem
projeta o horror para fora buscando, cegamente, eliminá-lo. Porém, ao fazê-lo, aniquila-
se.
124
Ibid, p.95.
125
Ibid, p.96. Grifos do autor.
64
O ódio na constituição do eu e do outro
Como vimos a partir de "William Wilson" e também acompanhando as
formulações de Freud e Lacan acerca da agressividade, o ódio é o afeto sempre ressaltado
neste contexto, e muitas vezes vemos estes termos - ódio e agressividade - alternarem-se
quase como sinônimos.
Mantendo o narcisismo como nosso foco, veremos como Freud concebe a sua
articulação com o ódio. Freud situa o ódio, assim como o amor, como um afeto que está
em jogo desde a constituição do sujeito. Em "As pulsões e seus destinos" Freud busca
traçar aquilo que se pode denominar um "mito das origens", quanto à constituição do
sujeito. Se nos mantemos atentos para evitar uma leitura desenvolvimentista deste texto,
que suporia diversas etapas a serem ultrapassadas na constituição de um sujeito, podemos
encontrar algumas contribuições importantes:
Em primeiro lugar nos interessa ressaltar, deste texto, a afirmativa de Freud: "O
amor não admite apenas um, mas três opostos"
126
, a saber: a indiferença
127
, o ódio, e ser
amado. Estas três possibilidades, como veremos adiante, podem ser pensadas numa certa
ordenação lógica, o que nos serve para discutir uma questão relevante para o nosso tema:
a passagem da indiferença ao ódio.
Freud supõe um "eu-real originário", que faz equivaler ao eu do narcisismo
128
,
indiferente ao mundo externo. Afirma que este eu narcísico ama somente a si próprio, é
126
Freud, S., Os instintos e suas vicissitudes [1915], op. cit., p.154.
127
Retomaremos a questão da indiferença como um dos opostos do amor ainda neste capítulo, quando
discutirmos o tema da crueldade.
128
"Originalmente, no próprio começo da vida mental, o ego é investido pelas pulsões, sendo, até certo
ponto, capaz de satisfazê-las em si mesmo. Denominamos essa condição de 'narcisismo', e essa forma de
obter satisfação, de 'auto-erótica'".
Freud, S., Os instintos e suas vicissitudes [1915], op. cit., p.156. Neste
texto Freud não parece preocupado em diferenciar auto-erotismo, narcisismo primário e secundário.
65
auto-erótico, e corresponde ao que é agradável, numa situação que, para Freud, ilustra a
primeira oposição ao amor: a indiferença.
Seguindo o caminho descrito por Freud, num segundo momento, já sob o domínio
do princípio do prazer, o "eu-prazer" passa a introjetar o que, no exterior, lhe é fonte de
prazer e expulsa de si aquilo que, em seu interior, provoca desprazer.
Porém, é inevitável perguntarmos: o que é dentro e o que é fora neste momento?
Por enquanto, o que podemos perceber é que, se é possível determinar algum interior ou
exterior, isso se justamente nesse momento. É a partir da expulsão de algo de dentro
que se constitui um primeiro objeto, fora. Este objeto, é importante notar, foi parte do
eu, e seria impreciso considerá-lo apenas externo. Sendo assim, podemos lembrar aqui o
neologismo proposto por Lacan para nomear esta condição de estranha intimidade deste
objeto externo: "extimidade".
Seguindo com Freud, ele afirma: "Para o ego do prazer o mundo externo está
dividido numa parte que é agradável, que ele incorporou a si mesmo, e num
remanescente que lhe é estranho. Isolou uma parte do seu próprio eu, que projeta no
mundo externo e sente como hostil".
129
Então completa: "Quando, durante a fase do
narcisismo primário, o objeto faz a sua aparição, o segundo oposto ao amar, a saber, o
odiar, atinge seu desenvolvimento".
130
Freud supõe ainda um terceiro momento, no qual não se detém muito, quando se
daria a passagem do eu-prazer ao eu-realidade, sob o princípio de realidade, onde o
129
Ibid, p.158.
130
Idem.
66
terceiro oposto ao amar, o ser amado, coloca-se em questão a partir da polaridade ativo-
passivo.
131
O que consideramos importante ressaltar aqui, seguindo o pensamento freudiano,
é que na constituição do sujeito, quando surge o objeto, surge o ódio dirigido a este
objeto: "Logo no começo, ao que parece, o mundo externo, objetos e o que é odiado são
idênticos".
132
Assim, vemos que "o ódio surge quando a indiferença é negada e no lugar antes
ocupado pelo in-diferente emerge o diferente, o objeto".
133
Logo, a constituição do objeto
se ao mesmo tempo que a emergência do ódio: "O ódio ao mesmo tempo constitui o
objeto e se dirige a ele".
134
Apesar de Freud referir-se diversas vezes, em "As pulsões e seus destinos", à
questão da ambivalência fundamental entre amor e ódio e à constante possibilidade de
reversão entre estes, faz questão de enfatizar suas procedências distintas. Assim, afirma:
"(...) os verdadeiros protótipos da relação de ódio se originam não da vida sexual, mas
da luta do ego para preservar-se e manter-se".
135
Neste texto Freud trabalha ainda com o dualismo "pulsões de auto-conservação do
eu e pulsões sexuais", e enfatiza que o ódio não deriva da mesma fonte que a libido.
Assim, relaciona o ódio àquilo que atua como ameaça à preservação, ao narcisismo: "O
ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor. Provém do repúdio
primordial do ego narcisista ao mundo externo".
136
131
Em "A Negativa", de 1925, Freud retoma esta formulação de modo semelhante, porém, menciona
apenas dois momentos - o eu-prazer e o eu-realidade.
132
Freud, S., Os instintos e suas vicissitudes [1915], op. cit., p.158.
133
Pequeno, A., O ódio, paixão do ser in Latusa, Escola Brasileira de Psicanálise, RJ, n
o
3, 1999, p.36.
134
Idem.
135
Freud, S., Os instintos e suas vicissitudes [1915], op. cit., p.160.
136
Ibid, p.161.
67
Porém, longe de manter-se confortavelmente nesta oposição dualista, apesar de
recorrer a uma certa "anterioridade mítica" para justificar a distinção entre amor e ódio,
Freud ressalta que o amor é ambivalente e comporta o ódio. Sobre isso, escreve em
"Reflexões para os tempos de guerra e morte":
"Realmente, é estranho tanto à nossa inteligência quanto a nossos sentimentos
aliar assim o amor ao ódio; mas a Natureza, fazendo uso desse par de opostos,
consegue manter o amor sempre vigilante e renovado, a fim de protegê-lo contra o
ódio que jaz, à espreita, por detrás dele. Poder-se-ia dizer que devemos as mais
belas florações de nosso amor à reação contra o impulso hostil que sentimos
dentro de nós".
137
Sempre preocupado em enfatizar as procedências distintas do amor e do ódio, na
segunda tópica Freud recoloca esta questão, a partir da oposição entre pulsões de vida e
pulsões de morte. Deste modo, em "O ego e o id", afirma claramente: "Para a oposição
entre as duas classes de pulsões podemos colocar a polaridade do amor e do ódio".
138
Freud insiste na anterioridade do ódio com relação ao amor ao vinculá-lo à pulsão
de morte, que é, em termos míticos, a mais antiga das pulsões, anterior a Eros. Deste
modo, o movimento de expulsão passa a ser concebido como uma primeira fusão
pulsional onde, a serviço de Eros, a pulsão de morte é em parte desviada para o exterior,
passando a operar como pulsão de agressão.
No mesmo sentido da afirmação freudiana que situa o ódio em um ponto anterior
ao amor, Lacan aponta que o ódio é “o que mais se refere ao ser”.
139
Com relação ao
ódio, segundo a concepção lacaniana, Vieira afirma que esta seria uma forma primária de
apresentação do real "(...) que por definição é ruptura, ponto cego, será em sua irrupção
137
Freud, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte [1915], op. cit., p.338.
138
Freud, S., O ego e o id [1923], op. cit., p.58.
139
Segundo Freud, o ódio e o amor estão na origem do sujeito, de modo diferente do jogo de afetos que
vem animar o eu constituído. Lacan, nesse mesmo sentido, denomina o ódio, assim como o amor,
"paixões do ser", ao que acrescenta a ignorância.
68
sempre figurado como violência, desagregação e morte".
140
Lacan, desde o início,
relaciona o ódio à agressividade, privilegiadamente especular. Segundo Vieira:
"'Eu' e 'outro' não somos naturalmente dois. É a presença do 'Outro' que nos
separa e distingue. No caso do ódio, vela-se este Outro. A conseqüência é que eu e
o outro tendemos a Um. No Amor esta tendência à fusão é vivida como plenitude.
Inversamente, no ódio trata-se de sobreviver ao perigo da fusão, aqui
imaginarizada como destruição: 'só pode haver Um' (...) 'Só pode haver Um' é,
portanto, a raiz da agressividade, do ciúme e da inveja..."
141
Neste ponto, podemos nos referir ao conto de Poe, "William Wilson", cuja cena
final mostra justamente este ponto em que, na ausência de um Outro simbólico, prevalece
a lógica imaginária onde o "ou eu ou ele" mostra-se "nem eu, nem ele".
Lacan nos mostra, com o estádio do espelho, que tanto o amor como o ódio se
situam no eixo do narcisismo, onde a lógica especular permite qualquer inversão. Além
do amor e do ódio, ressalta também, dentre os afetos ligados ao narcisismo, a rivalidade,
a inveja, a fascinação. Com relação a esta última, o mito de Narciso ilustra este momento
de captura pela imagem especular de que nos fala Lacan em "O estádio do espelho",
como vimos no capítulo I. Fascinado pela própria imagem, Narciso ignora qualquer
referência externa e mergulha na total confusão com a própria imagem. No Seminário 10
Lacan comenta acerca da "armadilha narcísica", onde o sujeito se debate com sua própria
agressividade, que se volta contra ele quanto mais ele mergulha, como Narciso, na
fascinação da própria imagem.
142
Esta fascinação, que terminou por destruir Narciso, é
um primeiro momento no encontro com o semelhante, e o sujeito sucumbe a ela se não
for capaz de extrair daí a diferença que, para a constituição do eu, é formadora.
140
Vieira, M. A., A ética da paixão, RJ, JZE, 2000, p.187.
141
Ibid, p.188.
142
Lacan, J., Le Seminaire - Livre 10, op. cit., aula de 14 de novembro de 1962.
69
Podemos observar que "William Wilson", o conto de Poe que comentamos acima,
descreve uma situação de fascinação semelhante, onde o sujeito sucumbe, aniquilado pela
própria agressividade, sem um Outro que pudesse reconhecer a semelhança e marcar a
diferença.
143
O narcisismo das pequenas diferenças
A articulação entre o narcisismo e a agressividade é então confirmada pelo modo
como o ódio aparece desde o início, na constituição do eu, como vimos com Freud e
Lacan. Tal relação de continuidade é também enfatizada pela noção freudiana de
"narcisismo das pequenas diferenças"
144
, à qual faremos referência algumas vezes ao
longo deste trabalho, que nos servirá para pensar diversas questões com relação ao
tema do estranho.
Em 1921, no texto “Psicologia das massas e análise do ego"
145
, Freud desenvolve
este tema
146
, refletindo acerca da natureza das relações emocionais entre os homens em
geral e das principais características das formações grupais, visando explicar as alterações
na vida mental do sujeito num grupo. Afirma que em toda relação emocional íntima
143
Além da cena final, onde alguém que bate à porta tem sua entrada impedida por Wilson, ao longo de
todo o conto o narrador afirma que ninguém notava ou comentava nada acerca da semelhança entre ele e
seu duplo.
Cf. Poe, E. A., William Wilson, op. cit., p.86.
144
Esta expressão foi mencionada por Freud em 1918, no texto “O Tabu da Virgindade”, de onde
destacamos a seguinte passagem:
“Crawley, numa linguagem que difere apenas ligeiramente da
terminologia habitual da psicanálise, afirma que cada indivíduo é separado dos demais por um ‘tabu de
isolamento pessoal’ e que constitui precisamente as pequenas diferenças em pessoas que, quanto ao resto,
são semelhantes, que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador
desenvolver esta idéia e derivar deste ‘narcisismo das pequenas diferenças’ a hostilidade que em cada
relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os sentimentos de companheirismo e sobrepujar o
mandamento de que todos os homens devem amar ao seu próximo”.
- Freud, S., O Tabu da Virgindade
[1918] (1917), op. cit., Vol. XI, p.184.
145
Freud, S., Psicologia das massas e análise do ego [1921], op. cit., Vol. XVIII.
146
Neste texto, apesar de se deter neste tema do narcisismo das pequenas diferenças, Freud não utiliza esta
expressão, que só seria retomada em 1930, em "O mal-estar na civilização".
70
haveria resquícios de sentimentos hostis, o que não se percebe pelo fato destes serem
recalcados. Verifica nestes sentimentos uma expressão do narcisismo, fundamental para a
auto-preservação:
“Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com
quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do
narcisismo. Este amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo, e
comporta-se como se a ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas
específicas de desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência de
sua alteração".
147
Assim, Freud observa os traços de hostilidade presentes nas relações, seja entre
duas pessoas ou em unidades maiores, como cidades vizinhas ou famílias. Pensa como
raças aparentadas mantêm distância umas das outras, que cidades rivais em geral são
vizinhas, enfim, como a aversão é facilmente dirigida contra alvos muito semelhantes,
porém, que contenham sempre pequenas diferenças. Verifica nesses fenômenos uma
expressão do narcisismo, que atua como se qualquer divergência envolvesse uma ameaça
ao sujeito ou ao grupo.
Freud nos mostra que uma "mínima distância" é fundamental para que se
mantenham duas unidades, sem que estas se destruam mutuamente. Por outro lado,
reconhece a necessidade de aproximação entre os homens. Neste sentido, cita a parábola
de Schopenhauer, sobre os porcos-espinhos no inverno, que lembramos a seguir:
“Um grupo de porcos-espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia frio de
inverno, de maneira a aproveitarem o calor uns dos outros e assim salvarem-se da
morte por congelamento. Logo, porém, sentiram os espinhos uns nos outros, coisa
que os levou a se separarem novamente. E depois, quando a necessidade de
aquecimento os aproximou mais uma vez, o segundo mal surgiu novamente.
Dessa maneira foram impulsionados, para trás e para frente, de um problema para
o outro, até descobrirem uma distância intermediária, na qual podiam mais
toleravelmente coexistir”.
148
147
Ibid, p.129.
148
Ibid, p. 128.
71
Reproduzimos e ressaltamos esta passagem, pois esta nos permite perceber que a
necessidade de aproximação é tão vital quanto a necessidade de afastamento.
Consideramos bastante importante esta idéia, que será retomada mais adiante nesta tese,
quando veremos que estão sempre presentes, ao mesmo tempo, a hostilidade e a
necessidade de constituir laços sociais entre os homens.
Esta parábola nos serve para entender a concepção freudiana de narcisismo das
pequenas diferenças, que é justamente através destas “tentativas de aproximação e
afastamento” que se constituem unidades, que serão mantidas a partir das diferenças
assim estabelecidas. É deste mesmo modo que serão constituídas fronteiras, que não são
dadas de antemão, mas são efeitos das tentativas de aproximação e afastamento. Assim,
uma fronteira depende do movimento pelo qual dois lados buscam entrar em contato,
podendo ser concebida de modo relativo.
Dissemos então que o narcisismo das pequenas diferenças refere-se a unidades
que se mantêm justamente a partir dessas diferenças: “talvez não ser espanhol faça um
português”, “não ser flamenguista faça um tricolor”, e assim por diante. Sobre isso,
Barros
149
comenta que podemos pensar uma definição do limite imaginário do eu
tendo por referência o desejo do vizinho, ou seja, que a impressão de auto-suficiência
narcísica exige na verdade um Outro. Assim, o narcisismo das pequenas diferenças é um
narcisismo cujo suporte é, paradoxalmente, a permanente exclusão daquilo que constitui
a pequena diferença. Neste sentido, não uma busca por igualdade (“todos são iguais,
não há diferença”), mas sim por alcançar a unidade (“todos = 1”); este é o lado totalitário
149
Barros, R .R. A pequena diferença, entre pele e espinho in Revista Ágora, Programa de pós-
graduação em teoria psicanalítica, UFRJ, n
o
1, RJ, 1998.
72
do narcisismo das pequenas diferenças, que tem por base a exclusão. Logo, o narcisismo
das pequenas diferenças não diz respeito a um encontro de duas unidades, mas sim à
instauração de uma unidade imaginária cuja manutenção depende de se supor, ou nomear,
uma outra em oposição. Esta não deve ser de todo igual, nem diferente, da primeira, mas
deve mostrar-se como se tivesse, ou ameaçasse ter, a posse de algo a mais. É em torno
desse indefinível a mais, que consiste a pequena diferença, que se instaura o narcisismo.
A partir desta noção de narcisismo das pequenas diferenças podemos pensar em
questões que abrangem diversos patamares, que vão desde a simples tensão entre
vizinhos até os extremos do extermínio daquele que é considerado estranho.
Retomaremos mais adiante estes diferentes níveis quando abordarmos a diferenciação
entre a agressividade e a crueldade.
Ainda refletindo acerca das formações grupais, em "O mal-estar na civilização"
Freud ressalta que a possibilidade de descarga da agressividade em grupos rivais é um
fator fundamental para a sobrevivência “harmônica” de um grupo, para que esta
agressividade não seja descarregada em seu interior, gerando desagregação. Neste
sentido, tendo como referência o narcisismo das pequenas diferenças, afirma:
sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto
sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade.
Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades
com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros
aspectos, que se empenham em rixas constantes (...) Dei a esse fenômeno o nome
de 'narcisismo das pequenas diferenças' (...) Agora podemos ver que se trata de
uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão,
através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais
fácil".
150
150
Freud, S., O mal-estar na civilização [1930], op. cit., p.136.
73
Se retomarmos a idéia, que comentamos acima, de que o eu, desde o início, é
marcado por uma relatividade agressiva e que esta tendência se expressa nas relações
fundadas no imaginário, para pensar acerca das relações entre os homens, poderemos
considerar que o mandamento cristão "ama ao próximo como a ti mesmo", ao
fundamentar-se na identificação imaginária, traz em si, inevitavelmente, a agressividade.
Freud, em "O mal-estar na civilização", mostra sua perplexidade diante deste
preceito cristão, que se tornou uma das exigências ideais da sociedade civilizada,
considerando, surpreso: "Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de
valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão", e se pergunta: e se esse próximo for
um estranho para mim? "Não meramente esse estranho é, em geral, indigno do meu
amor; honestamente, tenho que confessar que ele possui mais direito à minha hostilidade
e, até mesmo, meu ódio".
151
Assim, Freud chega a fazer equivaler os enunciados "ama ao
próximo como a ti mesmo" e "ama teu inimigo", reafirmando que o próximo, naquilo que
ele tem de diferente e inassimilável, é facilmente objeto de ódio.
Porém, ao analisar este mandamento em “O mal-estar na civilização” Freud vai
mais além. Sua perplexidade diante de tal preceito faz com que ele se dedique
atentamente a esta reflexão para finalmente afirmar: algo para além do registro
narcísico, que não se esgota na necessidade de auto-conservação; para além disso, o
homem possui uma “inclinação para a agressão”...
A agressividade e a crueldade
151
Ibid., p.131.
74
Dissemos então que foi a partir de sua reflexão sobre este mandamento cristão
“ama ao próximo como a ti mesmo” - que Freud explicitou seu passo além, além do
narcisismo e do sexual. Retomaremos aqui parte do percurso freudiano com o intuito de
acompanhar detalhadamente este passo, que consideramos de fundamental importância
para nosso tema.
Em “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”
152
, texto em que também
buscara pensar as causas do mal-estar do homem na civilização, Freud considerara que o
grande “inimigo da civilização” seria a pulsão sexual, de acordo com as formulações de
sua primeira tópica. Naquele momento, Freud considerava a sexualidade como uma força
desagregadora, à qual a civilização faria face, inibindo-a em seu alvo, exigindo renúncias
estas sim responsáveis pelo “adoecimento psíquico” daqueles incapazes de sublimar
suficientemente.
Porém, sabemos que principalmente a partir do conceito de narcisismo que fez
com que Freud precisasse reconhecer que o eu também era investido libidinalmente, pela
pulsão sexual - a primeira tópica freudiana, mais especificamente a oposição entre pulsão
sexual e pulsões de auto-conservação do eu, foi irremediavelmente abalada.
153
Sempre buscando estabelecer uma lógica que lhe permitisse manter uma oposição
dualista, que justificasse um conflito de forças e escapasse do monismo proposto por
Jung, foi em 1920, em “Além do princípio do prazer”, que Freud definiu mais
152
Freud, S. Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna [1908] In op. cit., Vol.IX.
153
Freud, ele mesmo, comenta isso em “O mal-estar na civilização”, p.140.
75
explicitamente a sua segunda tópica
154
, através da oposição entre pulsões de vida e
pulsões de morte.
Neste ponto lembramos a leitura de Garcia-Roza
155
, que nos ajuda a perceber que
neste texto de 1920, onde Freud recorreu à biologia para buscar assegurar a sua
concepção da pulsão de morte, o dualismo freudiano ainda se encontrava bastante
ameaçado. A pulsão de morte era então identificada a uma “tendência a restabelecer um
estado anterior”, como um “retorno ao inanimado”, o que, problematicamente, também
seria aplicável à pulsão sexual. Até então, a destrutividade era vista como uma
metamorfose da pulsão sexual, logo, derivada da sexualidade, e não um princípio
autônomo.
Segundo a leitura de Garcia-Roza, com a qual concordamos, encontramos o
verdadeiro “além do princípio do prazer” exposto dez anos mais tarde, em “O mal-estar
na civilização”, a partir da afirmação da plena autonomia da pulsão de morte.
156
Neste texto de 1930, apesar de manter a sua perspectiva de que a civilização
impõe renúncias sexuais, isso já não era mais o principal para Freud, que afirmava então:
“além da renúncia sexual, a civilização exige ainda outros sacrifícios”. Estes “outros
sacrifícios”, bem mais difíceis que a renúncia sexual, dependeriam da renúncia à pulsão
de morte: o verdadeiro e maior obstáculo à civilização seria a “inclinação agressiva do
homem”, o que está para além do princípio do prazer. Freud vencia assim sua própria
resistência em reconhecer uma pulsão destrutiva como algo independente da sexualidade:
154
Apesar de considerarmos que no texto “O estranho”, de 1919, Freud já levava em conta esta concepção
de um além do princípio do prazer, o que se comprova pela sua insistência no tema da compulsão à
repetição, conforme comentamos no primeiro capítulo desta tese.
155
Garcia-Roza, L. A. O mal radical em Freud. RJ, JZE, 1990, p. 132.
156
Ibid, p.133.
76
não era mais possível negar a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não
eróticas”.
157
Dissemos que Freud partiu da análise do mandamento cristão “ama ao próximo
como a ti mesmo”, e entendemos a sua perplexidade diante de tal preceito justamente a
partir de sua formulação sobre a agressividade como uma disposição pulsional autônoma,
originária, do ser humano. É neste sentido que afirma:
“O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão
dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser
amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário,
são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa
quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não
apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os
tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de
trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-
lo. Homo homini lupus”.
158
Consideramos que a partir desta formulação freudiana uma virada que exige
uma certa revisão dos termos que passaremos a utilizar, tendo por referência a questão da
agressividade que tanto nos interessa.
Até aqui, comentamos acerca da agressividade, dissemos que esta pode ser
concebida em articulação com o narcisismo, como seu avesso. Afirmamos também que
esta agressividade é tão constitutiva quanto mortal, como exemplifica o fenômeno do
duplo, que mostramos a partir de “William Wilson”, e que esta agressividade imaginária
pode ainda ser observada com relação às formações grupais, através do narcisismo das
pequenas diferenças.
157
Freud, S. O mal-estar na civilização, op.cit., p. 142.
158
Ibid, p. 133. Grifos nossos, com o objetivo de marcar que apesar de reconhecer a onipresença desta
destrutividade, haveria também um princípio contrário, no sentido do estabelecimento de laços sociais.
77
Porém, entendemos que a partir do momento em que nos referimos à
agressividade tal como esta é definida em “O mal-estar na civilização”, passamos para
um outro registro, onde o que está em jogo não é mais apenas o narcisismo, a auto-
conservação e todos os fenômenos a isso relacionados - identidade, identificação,
projeção, etc. Neste ponto, entendemos que se trata de um “mais além”, mais além até
mesmo da agressividade. Diríamos então que se trata, nesses casos, da crueldade
159
,
termo que pretendemos reservar para ali onde se evidencia algo da ordem da pulsão de
morte, pulsão destrutiva, para além do princípio do prazer, além da sexualidade, do
narcisismo e da auto-conservação.
Lacan, no Seminário 7, retoma a análise freudiana do mandamento “ama ao
próximo como a ti mesmo”, incluindo questões como o bem, o mal e o gozo. Lacan
considera que haveria em “O mal estar na civilização” uma virada ética, onde Freud
colocaria em questão o gozo, que implica no mal – “ele é um mal porque comporta o mal
do próximo” e isso é o que seria o “além do princípio do prazer”.
160
Porém, alerta Lacan,
aqueles que preferem os contos de fada fazem ouvidos moucos quando se fala da
tendência nativa do homem à maldade, à agressão, à destruição e, portanto, também à
crueldade”.
161
Segundo a leitura de Lacan, o horror de Freud diante do preceito cristão do amor
ao próximo se deveria, em primeiro lugar, ao fato de que “o próximo é um ser malvado”.
Em segundo lugar, e mais importante, estaria o fato de que esta maldade também habita o
mais íntimo do próprio sujeito; e o que há de mais íntimo, diz Lacan, é o próprio gozo.
159
Decidimos pelo uso do termo “crueldade”, que é também privilegiado por Derrida, como veremos nos
próximos capítulos.
160
Lacan, J. [1959-60] O seminário – Livro 7. A ética da psicanálise. RJ, JZE, 1997, p.225.
161
Ibid., p.226.
78
Garcia-Roza comenta a formulação freudiana da pulsão de morte enquanto
destrutividade a partir da perspectiva kantiana do “mal radical”. Neste sentido, afirma
que, para Kant, haveria uma propensão natural ao mal, inerente ao ser humano, como
uma “tendência à transgressão da lei moral”; para Kant, a malignidade seria um desvio
com relação a esta lei. para Freud, comenta Garcia-Roza, a pulsão de morte não seria
apenas uma tendência, mas sim um princípio autônomo, e neste ponto Garcia-Roza
concorda com Lacan quanto ao fato de que haveria uma dimensão ética implicada na tese
freudiana de uma “maldade original do ser humano”.
Retomando então a nossa proposta de distinção entre a agressividade e a
crueldade, podemos afirmar que o que está em jogo na crueldade é a pulsão de morte
enquanto um princípio de destrutividade, o gozo do mal, pelo mal.
Porém, concluir simplesmente que “o homem é um ser mau” também nos parece
uma resposta insatisfatória para a complexa questão das relações do sujeito com o outro,
e consigo mesmo, pois implicaria em pressupor algo de inato e pré-determinado, o que é
muito distante da concepção psicanalítica.
Mas Garcia-Roza nos ajuda mais uma vez neste ponto: ao retomar o texto
freudiano “A negativa”, a partir dos comentários de Freud sobre a introjeção e a
expulsão, mostra que ali a pulsão sexual e a pulsão de morte são pensadas sobretudo
como princípios conjuntivo e disjuntivo.
162
Freud retomaria este sentido no “Esboço de
psicanálise”, afirmando que Eros tem por meta “produzir unidades cada vez maiores e,
assim, conservá-las”, enquanto a pulsão de morte tem por meta “desfazer nexos”,
“destruir as coisas do mundo”. Garcia-Roza, apoiando-se em Lacan, defende a visão
segundo a qual a pulsão de morte seria um princípio de disjunção, e por isso teria um
162
Garcia-Roza, L. A. O mal radical em Freud, op. cit., p.149.
79
aspecto de “criação a partir do nada”, como uma “vontade de recomeçar” e que, se
houvesse a ação exclusiva de Eros, todas as diferenças tenderiam a se dissolver numa
grande unidade final.
163
“O que o conceito de pulsão de morte coloca aos que se esforçam para apreender
o seu sentido não é a idéia de uma vontade maligna originária no homem, a
confirmação ontológica da fantasia sadiana, mas sim a tese de que o pulsional não
contém em si nada, nenhuma indicação, que nos torne capazes de diferenciar o
bem do mal”.
164
Assim, entendemos que o mal, tanto quanto o bem, não se colocariam no registro
da pulsão, mas sim resultariam de uma composição significante, no nível do princípio do
prazer: Não nenhuma capacidade natural que nos oriente na distinção entre o que é
bom e o que é mau...”.
165
Então, retomando a nossa discussão acerca da crueldade, diríamos que, sendo da
ordem da pulsão de morte, além do princípio do prazer, a crueldade não visaria
necessariamente o mal do outro ou do próprio sujeito, tampouco seu bem, é claro. Seria,
antes, uma descarga destrutiva, disjuntiva.
Aproximando finalmente esta discussão sobre a agressividade e a crueldade do
nosso tema mais específico – a relação com o estranho - podemos retomar as formulações
freudianas em “As pulsões e seus destinos”, que comentamos acima, onde Freud afirma
que “o amor teria três opostos – a indiferença, o ódio e ser amado”. Vimos que a
indiferença corresponderia ao primeiro estágio, do “eu-narcísico” que ainda
desconheceria os objetos; já o ódio viria num segundo momento, de emergência do objeto
por expulsão, onde surge o ódio dirigido a esse primeiro objeto externo. A partir daí,
163
Ibid., p.156.
164
Ibid., p.159.
165
Ibid., p.160.
80
podemos dizer que, na crueldade, além do princípio do prazer, o que estaria em jogo
como afeto não seria o ódio, mas, antes, a indiferença do eu-narcísico, onde o outro não
importa, nem seu prazer nem sua dor, nem seu bem nem seu mal.
Esta seria então a lógica da crueldade, o outro desconsiderado, transformado em
coisa, como totalmente estranho, diante do qual o sujeito não é capaz de nenhuma
identificação. Com relação a esse Outro, “estranho radical”, não haveria mais ódio,
apenas indiferença.
Entendemos que na agressividade, uma negação da familiaridade do estranho,
enquanto que na crueldade esta familiaridade seria recusada, de modo mais radical.
Vejamos esta hipótese:
A partir do texto “A negativa” de Freud e, mais ainda, a partir dos comentários de
Hyppolite
166
sobre este texto, é possível conceber uma diferença entre a denegação
(Verneinung), que implica no recalque, e a recusa (Verleugnung), negação mais radical.
Nesta diferenciação também contamos com a contribuição de Hanns
167
, que
define a Verleugnung – recusa ou desmentido como uma “tentativa de negar algo
afirmado ou admitido antes”. Não se trata de uma negação do conteúdo do objeto, mas da
contestação da veracidade de sua existência - o que é “desmentido” é a própria existência
do objeto. Esta recusa permanece tendo que ser reeditada, que o confronto com a
realidade não cessa (diferente da psicose). Nos escritos mais tardios de Freud,
principalmente a partir de “Fetichismo”, texto de 1927, o termo é utilizado
freqüentemente com referência ao mecanismo da perversão, entretanto, muitas vezes o
termo é empregado por Freud em sentido mais genérico.
166
Hyppolite, J. Comentário falado sobre a “Verneinung” de Freud in Lacan, J. Escritos, op. cit.
167
Hanns, L. A., Dicionário comentado do alemão de Freud, op. cit.
81
Enquanto isso, a Verneinung poderia ser traduzida como negação ou denegação.
Segundo Hanns, esta palavra se refere a “desalojar”, “colocar de lado”, no caso, o
material recalcado, que permanece próximo, pressionando pelo retorno, como nas
neuroses - para Freud a negação é uma forma de tomar conhecimento do que está
recalcado, no nível do julgamento.
168
Com relação ao estranho, nossa hipótese é a de que na agressividade a
familiaridade do estranho é negada, recalcada, enquanto na crueldade tal familiaridade é
recusada, desmentida. A recusa da familiaridade do estranho pode chegar ao ponto
extremo de negar-se o “estatuto de humano” do estranho, o que faz com que não reste
qualquer identificação possível, abrindo-se o caminho para as piores formas de violência.
O mecanismo da recusa, que Freud associou à perversão, implica na “coisificação” do
outro, tomado como puro objeto. A crueldade com relação ao estranho seria marcada por
um distanciamento que permite tratar ao outro como “coisa”.
Sabemos que para que haja identificação, como nos mostra Freud, é necessária a
força de Eros, pulsão sexual, através da libido desviada do seu alvo. Onde não há
identificação, entendemos que há um desligamento entre as pulsões, em que resta a
pulsão de morte como pura destrutividade, que pode manifestar-se sob a forma de
crueldade.
Diante deste estranho cuja familiaridade é radicalmente recusada, a indiferença
substitui o afeto do ódio. Entendemos que é a indiferença, e não o ódio, a marca maior da
crueldade, onde não reconhecimento da alteridade. na agressividade, marcada pelo
168
Já a Verwerfung, traduzida como forclusão ou repúdio, evoca a idéia de “descartar”, eliminar um
material rejeitado. Trata-se de uma resolução mais definitiva, característica da psicose, onde o sujeito se
livra do material, que é “arremessado para longe”. Foi este o termo usado por Freud no caso do Homem
dos Lobos. Lacan diferenciou mais explicitamente estes três termos, relacionando-os às três estruturas,
neurose, perversão e psicose. Em Freud muitas vezes os termos se misturam (Hanns, L. A.,
Dicionário
comentado do alemão de Freud,
op. cit.).
82
ódio dirigido ao objeto, haveria ainda algum resquício de reconhecimento do outro,
mesmo que fixado na figura do “inimigo”.
169
Porém, é importante advertirmos que embora tenhamos considerado necessária
para nossos fins a distinção entre a agressividade e a crueldade, tal diferenciação é
possível com fins teóricos, que na experiência geralmente se apresentam
combinadas.
170
Se é fato que há uma crueldade humana, inextinguível, que é derivada da
pulsão de morte, força constante, Freud enfatiza que esta crueldade inevitável pode e
deve ser desviada, de modo a não encontrar expressão sob a forma de destruição. Para
esta finalidade de desviar os impulsos destrutivos, Freud aposta em Eros, pulsão de vida,
na força da civilização, na tendência à união, nas identificações cuja energia é a libido, na
necessidade dos homens de viverem juntos, e aposta também na internalização dos
impulsos agressivos sob a forma de sentimento de culpa, a partir da formação do
superego.
171
No contexto social, Freud indica ainda a importância da criação de
“instituições internacionais de lei e direito”, como possibilidades de mediação da
crueldade que se manifestaria nas guerras, por exemplo, conforme veremos adiante.
Sobre isso, em carta a Romain Rolland, Freud afirma:
"Pertenço a uma raça que na Idade Média era considerada responsável por todas
as epidemias e que hoje é culpada pela desintegração do Império Austríaco e pela
derrota alemã. Tais experiências têm um efeito moderador e não propiciam a
crença em ilusões. Grande parte do trabalho da minha vida (...) foi [uma tentativa]
de destruir as minhas ilusões e as da humanidade. Mas, se essa esperança não
puder pelo menos em parte ser realizada, se no curso da evolução não
aprendermos a distrair os nossos instintos do ato de destruir a nossa própria
169
Como vemos nos casos do duplo, e do ódio (agressividade) a ele dirigido.
170
A esse respeito, devemos lembrar que Freud afirma em diversos momentos, inclusive em “O mal-estar
na civilização” (
op. cit., p.141), que Eros e Tanatos nunca aparecem isolados, mas sempre em articulação.
171
Para Freud, a culpa é o preço que pagamos pela ausência de descarga externa dos impulsos agressivos, e
a fonte do “mal-estar na civilização”, ao qual o título deste texto de 1930 se refere.
83
espécie, se continuarmos a odiar um ao outro por pequenas disputas e matar um
ao outro por um ganho mesquinho, se continuarmos a explorar, para a nossa
destruição mútua, o grande progresso que se fez no controle de recursos naturais,
que espécie de futuro nos aguarda?”
172
Como vemos, Freud, apesar de reconhecer a presença de um resto inassimilável
da "inclinação destruidora e inóspita" no homem, não se furta a pensar, sem ilusões, em
como é possível controlar a passagem ao ato das manifestações agressivas e cruéis.
A psicanálise deve pensar o social
Nesta reflexão acerca de temas como a crueldade e a agressividade, que implicam,
como veremos mais adiante, em questões como a guerra, a relação com o estrangeiro e o
racismo, nos encontramos no delicado terreno de interseção entre a psicanálise e o social.
Não é difícil encontrarmos argumentos para criticar uma “psicanálise aplicada ao social”.
Facilmente demonstramos a ingenuidade ou o reducionismo de teorias que pretendem
analogias diretas entre o psiquismo individual e o funcionamento de grupos, por exemplo.
Porém, acreditamos que esta dificuldade não deve representar um impedimento
para mais um esforço nesse sentido. Sabemos que o analista não pode se permitir nada
querer saber do que se passa à sua volta. Queira ou não, é interpelado pelos
acontecimentos - violência, guerra, discriminação - sinais do mal-estar na civilização,
cujos efeitos atingem diretamente cada sujeito e a sociedade. Portanto, é importante que
não se deixe de recolocar a questão: por que, ou como, a psicanálise pode, ou deve,
pensar o social?
172
Freud, S. Correspondência de amor e outras cartas. RJ, Ed. Nova Fronteira, 1982, p. 398, carta de 4
de março de 1923.
84
Sobre isso, Freud adverte:
"Eu não diria que uma tentativa desse tipo, de transportar a psicanálise para a
comunidade cultural, seja absurda ou que esteja fadada a ser infrutífera. Mas
teríamos de ser muito cautelosos e não esquecer que, em suma, estamos lidando
apenas com analogias e que é perigoso, não somente para os homens mas também
para os conceitos, arrancá-los da esfera em que se originaram e se
desenvolveram".
173
Freud se recusava a deduzir da psicanálise algum tipo de Weltanschauung, bem
como mostrava seu desprezo pelos "construtores de sistemas".
174
Como afirma Pontalis,
"o Welt, o mundo, não se deixa pensar como tal, principalmente quando o pensamento,
que é trabalho, que é movimento, pretende confundir-se com uma Schauung, com uma
visão".
175
A este respeito, Pontalis ressalta que o termo "análise" aponta justamente para o
desligamento daquilo que compõe uma massa. Evidencia a exceção, o resto, o
inconciliável, o que se opõe à meta de Eros: reunir, manter unido. Logo, no próprio
princípio de uma reflexão global sobre a civilização haveria algo estranho e até oposto ao
procedimento psicanalítico - daí o embaraço de Freud, que tendia a considerar
"idealistas" os discursos sobre a civilização. Assim, segundo Pontalis, "a moral de Freud
é silenciosa, não legisla nem prega. Tal como sua ciência, não se instala no universal,
mas o encontra como que por acaso, na apreensão do mais particular".
176
Com relação a esta interseção da psicanálise com o social vemos que, por vezes, a
própria psicanálise pode ser usada como tentativa de isenção de responsabilidades.
Muitas vezes encontramos tentativas perigosas de substituir um julgamento moral e
173
Freud, S., O mal-estar na civilização, [1930], op. cit., p.169.
174
Cf. Freud, S., Conferência XXXV - A questão de uma Weltanschauung [1933] (1932), op. cit.
175
Pontalis, J.-B. Atualidade do mal-estar in Perder de vista, RJ, JZE, 1991, p.17.
176
Ibid, p.18.
85
social por uma interpretação psicanalítica. Porém, entendemos que isso consiste numa
deturpação da psicanálise que, ao contrário, inova ao estender a responsabilidade de cada
sujeito, incluindo sob sua responsabilidade aquilo que lhe é estranho, como o próprio
inconsciente.
Castoriadis
177
comenta que, em geral, os autores que escrevem sobre as relações
entre psicanálise e política acabam se fixando de modo unilateral em textos onde Freud
faz incursões pelos domínios da filosofia, história e sociedade, principalmente “O mal-
estar na civilização”, “O futuro de uma ilusão”, entre outros. Critica esses autores-leitores
que quase sempre tiram conclusões pessimistas ou até “reacionárias” das implicações da
psicanálise quanto aos projetos de transformação social ou política. Castoriadis considera
que “... ao fazer isso, ocultaram-se questões substancialmente fundamentais e muito mais
importantes que as ‘opiniões’ de Freud”.
178
Muito mais importante do que o
posicionamento de Freud, explicitado em seus textos ditos “sociais”, Castoriadis
considera “a significação da própria psicanálise, como teoria e como prática”: “por que a
perspectiva prática, que é a da psicanálise no campo individual, seria automaticamente
tachada de nulidade, quando passamos ao campo coletivo?”. Neste sentido, considera
que o esforço por conhecer o inconsciente e transformar o sujeito implicaria em questões
como a liberdade, por exemplo, e questiona: “O conhecimento do inconsciente não pode
nos ensinar nada com referência à socialização dos indivíduos, portanto também quanto
às instituições sociais?”
179
Assim, afirma que mais importante que as “opiniões” de
177
Castoriadis, C. Psicanálise e política in O mundo fragmentado - As encruzilhadas do labirinto III. RJ,
Ed. Paz e Terra, 1992, p.151.
178
Idem.
179
Ibid, p.152.
86
Freud, são as significações da psicanálise como teoria e prática, que podem inclusive
“ultrapassar seu criador”.
Concordamos com Castoriadis quanto à importância da psicanálise enquanto uma
perspectiva que leva em conta o inconsciente e a ausência de soberania do eu sobre a sua
própria casa, assim como a concepção da pulsão de morte como uma força inesgotável,
para toda reflexão sobre o social. Porém, consideramos que também os textos em que
Freud trata mais diretamente de temas da psicologia coletiva são bastante relevantes.
Retomaremos mais adiante esta questão, no último capítulo desta tese onde, a partir das
contribuições de Derrida, veremos o quanto a psicanálise tem a contribuir numa reflexão
sobre o social.
Assim, feitas as devidas ressalvas, podemos retomar um texto onde Freud se
manifesta diretamente acerca de questões sociais, no caso, sobre a guerra
180
, visando
responder à pergunta fundamental daquele momento: "Por que a guerra?", através de
uma troca de correspondências com Einstein.
181
Freud, enquanto grande pensador, viu-se
intimado a responder não apenas às perguntas que seu trabalho lhe colocava e nos termos
que lhe eram próprios, mas àquelas que os "tempos atuais" supostamente formulavam,
exigindo resposta. Mesmo avisando sobre seu ceticismo quanto à possibilidade de
responder a tal questão, Freud nos mostra que a psicanálise tem a contribuir nesta
reflexão acerca da guerra, mais especificamente sobre a questão da agressividade, da
crueldade e do ódio, que ele relaciona à pulsão de morte, força que nenhuma ordem
política seria capaz de erradicar.
180
Freud, S. Por que a guerra? [1933] (1932), op. cit., Vol. XXII.
181
Sabe-se que Freud mostrou-se bastante cético com relação a esta proposta. Em carta a Ferenczi, onde
comenta esta troca de correspondências com Einstein, Freud afirma com ironia:
"Ele [Einstein] entende
tanto de psicologia quanto eu entendo de física, de modo que tivemos uma conversa muito agradável".
(Jones, E., 1957, p.187, apud Strachey, J. Nota do editor inglês in Por que a guerra?, op. cit., p.192).
87
Em sua carta a Freud, Einstein lhe pergunta: "Existe alguma forma de livrar a
humanidade da ameaça da guerra?"
182
E ainda: possível controlar a evolução da
mente do homem, de modo a torná-lo à prova (...) do ódio e da destrutividade?"
183
Em sua resposta, Freud relembra a horda primitiva, para afirmar o uso da
violência como um princípio geral nos conflitos entre os homens e reafirma a primazia da
pulsão de morte, considerando a violência algo inevitável ao longo de toda a história
humana. Chamado a apontar um "remédio para a humanidade", Freud só pôde remeter ao
conflito pulsional. Assim, afirma que a pulsão de morte é estreitamente relacionada com
as motivações da guerra, mostrando-se bastante reticente em apostar em alguma
alternativa. Considera uma ilusão qualquer tentativa de eliminar as inclinações agressivas
dos homens: "Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem."
Porém, afirma: "pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar
expressão na guerra".
184
Assim, se a agressividade é inevitável, expressão da pulsão de morte, talvez as
suas manifestações extremas como a guerra não o sejam. Em "Por que a guerra?", assim
como em outros textos
185
, Freud refere-se à agressividade como algo constitutivo,
insistindo na irredutibilidade dos conflitos tanto psíquicos quanto sociais e na
necessidade de fundamentá-los no dualismo inultrapassável das pulsões de vida e de
morte. Por isso, desconfia de todas as doutrinas que prometem a obtenção de um estado
sem conflitos, como a religião ou o comunismo, por exemplo.
182
Freud, S. Por que a guerra? [1933] (1932), op. cit., p.193.
183
Ibid, p.195.
184
Freud, S. Por que a guerra? [1933] (1932), op. cit., p.205.
185
Cf., por exemplo, "Reflexões para os tempos de guerra e morte" (1915), "Além do princípio do prazer"
(1920), "Psicologia das massas e análise do ego" (1921) e "O Mal-estar na civilização" (1930).
88
Freud afirma que as guerras poderiam ser evitadas por uma "instância
suprema", de direito e lei, que funcionaria a serviço da preservação da comunidade e da
vida cultural. No final do texto, depois de definida repetidamente como inevitável, a
agressividade aparece como "domesticável" pela ação da civilização, a partir de um
"fortalecimento do intelecto" e da internalização dos impulsos agressivos.
186
Assim, podemos entender a partir de Freud que a pulsão de morte, esta sim é uma
força inevitável, própria do humano. Porém, sua descarga sob a forma de agressividade,
crueldade e destruição, como ocorre na guerra, por exemplo, talvez possa ser evitada,
mesmo que seja através de frágeis meios. Esta afirmação da crueldade como
“inextinguível”, porém, passível de ser desviada, tem implicações que ultrapassam em
muito o campo da psicologia individual o que, em nosso entender, mostra a relevância da
concepção psicanalítica frente a outros campos de saber.
187
O estrangeiro e o racismo
Neste campo de interseção entre a psicanálise e o social, o estrangeiro pode ser
considerado como uma das figuras privilegiadas para uma abordagem do estranho e do
ódio por ele suscitado ódio à diferença questão sempre presente ao longo da história.
O estrangeiro que provoca atração e repulsa, é muitas vezes perseguido como um invasor
ou tido como um perseguidor. Pode ser inicialmente desprezado, mas num segundo
momento temido ou odiado, isto é, promovido da categoria de indiferente ao estatuto de
186
Cabe notar que em "Por que a guerra?", Freud usa praticamente como sinônimos os termos violência,
pulsão de morte, agressividade, ódio, pulsão de crueldade e pulsão de destruição.
187
Retomaremos esta questão no capítulo IV desta tese, onde discutiremos o papel da psicanálise numa
reflexão acerca da relação com o estranho na contemporaneidade, a partir das contribuições de Derrida.
89
perseguidor poderoso, contra o qual um “nós” se solidifica, a partir do fenômeno do
narcisismo das pequenas diferenças, que comentamos acima. Como vimos, a rejeição do
estranho-estrangeiro muitas vezes favorece a união dos semelhantes, ou seja, a
fraternidade se funda na exclusão.
Kristeva, no livro “Estrangeiros para nós mesmos”, discute a questão do
estrangeiro, tal como esta tem sido pensada ao longo dos tempos, analisando com este
intuito vários momentos em que o estrangeiro foi acolhido ou hostilizado. Seu ponto de
vista, como bem mostra o título do livro, é a inversão possibilitada pelo pensamento
psicanalítico, que nos mostra que cada sujeito é um estranho para si mesmo.
A autora define o estrangeiro como aquele que não faz parte do grupo, aquele
que não é dele, o outro. Do estrangeiro, em geral se notou isso, somente existe definição
negativa. Negativa do quê? Outro de qual grupo?”, questiona.
“Se voltarmos no tempo e nas estruturas sociais, o estrangeiro é o outro da
família, do clã, da tribo. Inicialmente, ele se confunde com o inimigo. Exterior à
minha religião também, ele pode ser o infiel, o herético. Não tendo prestado
fidelidade ao meu senhor, ele é nativo de uma outra terra, estranho ao reino e ao
império”.
188
Afirma então que o estrangeiro é definido principalmente segundo dois regimes
jurídicos: o direito segundo a terra, e o direito segundo o sangue: considera-se como
sendo do mesmo grupo aqueles que nasceram no mesmo solo (este é o regime que
perdura no direito dos EUA, por exemplo) ou então as crianças nascidas de pais nativos
(e aqui divergências entre as civilizações que elegem a mãe ou o pai como doadores
do direito de cidadania).
188
Kristeva, J. Estrangeiros para nós mesmos. RJ, Ed. Rocco, 1992, p.100.
90
Com a formação dos estados-nação, comenta, chegamos à única definição
moderna aceitável e clara da condição de estrangeiro: o estrangeiro é aquele que não
pertence à nação em que estamos, aquele que não tem a mesma nacionalidade. O grupo
do qual o estrangeiro não faz parte deve ser um grupo social estruturado em torno de um
certo tipo de poder político; o estrangeiro é então situado como benéfico ou maléfico para
este grupo social e seu poder e, por isso, deve ser assimilado ou rejeitado. O poder
político, do qual o estrangeiro é necessariamente excluído, pode não conceder ao
estrangeiro nenhum direito, ou torná-lo beneficiário de certos direitos. A regulamentação
política ou a legislação em geral são, ao mesmo tempo e paradoxalmente, aquilo que
permite colocar e talvez até melhorar o estatuto do estrangeiro, e o responsável
justamente pelo fato de existir estrangeiros. Retomaremos esta questão mais adiante com
Derrida, quando discutirmos no capítulo IV a questão da necessidade de haver alguma
forma de soberania para possibilitar o acolhimento do estrangeiro, ao mesmo tempo em
que esta mesma soberania o exclui.
Seguindo a nossa proposta de pensar a agressividade e a crueldade como reações
possíveis frente ao estranho e, para isso, observando os modos de relação com o
estrangeiro, o racismo se destaca como um fenômeno que não poderíamos deixar de
abordar.
Balibar define o racismo como um “fenômeno social total”, que se inscreve em
práticas (violência, desprezo, intolerância, humilhação, exploração, etc.), discursos e
representações, e se articula em torno de estigmas da alteridade (nome, cor de pele,
práticas religiosas, etc.). Estas seriam elaborações intelectuais do fantasma de profilaxia
91
ou de segregação a necessidade de purificar o corpo social, de preservar a identidade
individual e coletiva contra qualquer mistura, invasão ou “promiscuidade”.
189
Este autor lembra que “não racismo sem uma teoria”, e que as doutrinas dos
“ideólogos” racistas fornecem chaves de interpretação imediatas não para aquilo que
os indivíduos vivem, mas também para explicar aquilo que eles “são” no mundo social.
Nesse sentido exercem uma função que se aproxima da astrologia, da caracterologia, etc.
Entendemos que “falar sobre” o indivíduo é também constituí-lo, o que faz
lembrar a função de invenção narcísica do sujeito (bebê) pelo outro (pais), permitindo
assim a ilusão de uma identidade estável.
Pontalis busca pensar onde, em cada um de nós, se inscreveria a origem de um
processo cujo produto final pode ser o racismo. Ressalta que isto não significa dizer
"somos todos racistas", mas sim que a relação com o Outro, com o estranho, é
problemática para todos.
190
Neste sentido, considera importante uma distinção entre
xenofobia e racismo. A xenofobia é um sentimento, um movimento interno, que pode ou
não se traduzir num comportamento. Já o racismo é uma paixão, que se fundamenta numa
doutrina. Não no racismo uma oscilação entre atração e medo, mas resta a
convicção do ódio. "Daí haver, nesse sujeito (racista), uma espécie de amor por seu
ódio. O racista separa - 'cliva' - a atração e a rejeição que coexistem, bem ou mal, na
xenofobia..." Além disso, afirma: "...o racismo é coisa de grupo, conclama
necessariamente uma violência maciça."
191
189
Balibar, E., Y a-t-il un “néo-racism”? in Race, nation, classe: Les identités ambigües, Éditions de la
découverte, 1990, p.28.
190
Pontalis, J-B., Uma cara que não agrada in Perder de vista, op.cit., p.38.
191
Ibid, p.40.
92
Castoriadis define o racismo como uma exacerbação, uma transformação
especialmente violenta de uma característica quase universal das sociedades - a
incapacidade de se constituir como si mesmo sem excluir o outro e, em seguida, a
incapacidade de excluir este outro sem odiá-lo. Assim, o que vemos é um pensamento do
tipo: "Se eu afirmar o valor de A, devo também afirmar o não-valor de não-A".
192
Este
autor afirma que o racismo é algo mais específico que a pura exclusão da alteridade,
que nem toda exclusão descamba no racismo. O racismo não exclui, mas atribui ao
outro uma "essência má". Assim, coloca a questão: por que o que poderia se manifestar
como uma simples afirmação da diferença, ou até mesmo da superioridade de um diante
do outro se torna discriminação, confinamento, ódio, assassinato?
193
Como especificidade do racismo, Castoriadis ressalta o fato de que “ele não
permite que os outros abjurem”. O racista não visa a conversão do outro, mas a sua
morte, como se o outro fosse "inconvertível". Já uma simples rejeição, não racista,
poderia satisfazer-se com a derrota ou a conversão do outro. Logo, vemos a quase
necessidade de escoramento do imaginário racista em características físicas constantes,
irreversíveis. Isto nos leva a pensar que o que o racista evita, a todo custo, é encontrar-se
no objeto excluído. Como vemos no caso da constituição do "bode expiatório", por
exemplo, trata-se de constituir um estranho, por projeção, assegurando que este
permaneça fora.
Koltai
194
lembra que o racismo, como doutrina, surgiu associado ao discurso da
ciência. Apesar de suas pretensões anti-racistas e anti-nacionalistas, em diversos
192
Castoriadis, C. Reflexões sobre o racismo in O mundo fragmentado - As encruzilhadas do labirinto - 3,
RJ, Paz e Terra, 1992, p.37.
193
Ibid, p.34.
194
Koltai, C. Política e psicanálise. O estrangeiro, RJ, Ed. Escuta, 2000, p.117.
93
momentos da História a ciência acabou servindo de justificativa para aquilo que ela se
propôs a combater como, por exemplo, no caso das teorias acerca da "raça pura ariana".
Segundo Koltai, neste sentido o racismo pode até mesmo ser entendido como uma
resposta do sujeito moderno frente à universalização prescrita pela ciência. Quanto mais
o discurso da ciência se exercita no sentido da uniformização, mais o disforme tende a se
manifestar, e o que há de mais disforme e particular é o próprio gozo.
Retomando o que discutimos acima sobre a afirmação freudiana em “O mal-estar
na civilização” da “inclinação agressiva” do homem, força sem fim, derivada da pulsão
de morte, assim como os comentários de Lacan sobre este texto, no Seminário 7, que
relaciona isto que chamamos crueldade à questão do gozo; a partir daí, podemos dizer
que, no racismo, estão em jogo tanto o gozo do sujeito (racista) quanto o gozo do Outro.
A partir da reflexão proposta por Julien
195
, podemos tentar responder à questão:
por que incomoda tanto o fato do Outro estrangeiro gozar de modo diferente?
“Afinal, o Outro, no pleno gozo em que o suponho, provavelmente não pensa em
mim nem por um segundo. No entanto, irredutivelmente, vivencio seu gozo como
ligado à intenção de me privar... Vejo no Outro um gozo que, em contrapartida,
provoca meu ódio, porque consigo ver nele um privador, e não um semelhante
com quem possa me identificar. O ódio social nasce dessa suposição de saber
sobre o gozo do Outro...”
196
Assim, o autor mostra que este Outro surge como um "ladrão de gozo" e, se ele
goza em excesso, como se supõe, é porque alguém goza de menos. O sujeito moderno
estaria convencido de que o gozo existe e, se ele não goza, é porque este gozo foi
monopolizado por poucos.
195
Julien, P. O estranho gozo do próximo, RJ, JZE, 1996.
196
Ibid, p.45.
94
Diante disso, permanece a questão de se saber se seria possível outro modo de
relação com o estrangeiro que não incluísse o racismo e a discriminação. Sobre esta
questão, Pontalis manifesta sua desconfiança, afirmando que o preço a ser pago por uma
"reconciliação geral" poderia ser uma "redução ao homogêneo". A dificuldade, afirma, é
pensar em conjunto, sem apagar um dos termos da contradição: "de um lado, a
manutenção das diferenças, no que elas têm de irredutível... e de outro, a unidade do
gênero humano..."
197
Pontalis se pergunta: "Mas por que deveríamos, afinal de contas,
ser todos idealmente semelhantes, se todos somos, na realidade, diferentes?"
198
Afirma
que o racismo, como fenômeno de massa, poderia ter um fim com a possibilidade de
aceitação de identidades múltiplas, heterogêneas e móveis, e não o triunfo do Um, que é
necessariamente destrutivo.
Porém, este autor nos mostra como um excessivo "relativismo cultural" pode nos
levar mais a uma aceitação passiva de múltiplas identidades culturais do que a uma
verdadeira "experiência do estrangeiro" - que é fecunda no que faz vacilar a certeza, o
excesso de confiança no "próprio" e no "doméstico". Retomaremos esta questão no
próximo capítulo, onde veremos como o tema do estranho, inclusive do racismo com
relação ao estrangeiro, se manifesta na contemporaneidade. Nosso objetivo é pensar se é
possível um reconhecimento da diferença que não desperte apenas ódio ou indiferença,
mas que, para além de algum altruísmo narcísico ou da identificação imaginária com o
semelhante, seja possível um respeito à diferença, viabilizado pela verificação de uma
distância do eu a si mesmo e do eu ao Outro.
197
Pontalis, J-B., Uma cara que não agrada in Perder de vista, op.cit. , p.46.
198
Idem.
95
Capítulo III A agressividade e a crueldade com relação ao estranho na
contemporaneidade
Parte 1: Que contemporaneidade?
No capítulo anterior apontamos a agressividade e a crueldade como alguns dos
possíveis - e mais freqüentes - destinos da estranheza, onde esta é projetada pelo sujeito
sobre um Outro externo. Comentamos também que este tema nos permite pensar questões
que incluem outros campos de saber, e que consideramos a interface com outros discursos,
mais do que uma possibilidade de enriquecimento, um dever da psicanálise. É importante
notar que este dever de pensar o próprio tempo não se coloca apenas para a psicanálise de
hoje. Assim como Freud foi um pensador de seu tempo, que sempre contextualizou o
sujeito que descrevia, abrangendo temas que foram do funcionamento dos grupos à
política, incluindo sempre o social, entendemos que é dever da psicanálise atual pensar o
próprio tempo, se esta pretende se manter como um discurso a ser considerado relevante
e pertinente - no mundo de hoje.
Com o objetivo de discutir sobre as relações com o estranho tal como estas vêm se
apresentando na contemporaneidade, observando principalmente as manifestações de
agressividade e crueldade que lhe são dirigidas hoje, na primeira parte deste capítulo
recorreremos a alguns autores – psicanalistas, sociólogos, entre outros – que nos ajudarão a
traçar um panorama a partir de suas análises da atualidade, visando contextualizar nossa
96
reflexão. A partir destes elementos, na segunda parte deste capítulo, discutiremos algumas
das questões que consideramos mais relevantes sobre este tema.
Contextualizar esta reflexão sobre o sujeito e sua relação com o estranho implica em
recorrer, logo de início, a uma certa perspectiva histórica que nos permita identificar
algumas mudanças em curso que terão efeitos sobre os funcionamentos individual e
coletivo. Neste sentido, veremos neste capítulo que a partir de meados do século XX inicia-
se uma passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle que se caracteriza,
inicialmente, pelo desmoronamento dos muros que definiam as instituições a família, a
escola, a fábrica, o hospital, a prisão que exerciam sobre os indivíduos uma disciplina
rígida, onde os limites eram claramente definidos. Diluindo-se os muros institucionais,
vivemos na atualidade uma peculiar alteração das fronteiras entre as esferas pública e
privada, onde o controle passou a ser exercido através de redes flexíveis, sem que haja um
centro de poder claramente identificável. Neste contexto de globalização, a instabilidade é
a nova ordem, e ao tempo presente é atribuída toda a prioridade.
Estas mudanças implicam em transformações não só dos mecanismos de poder, mas
também das formações subjetivas produzidas neste novo contexto. A expansão das
tecnologias direcionadas para o aumento da auto-estima através da modificação artificial do
corpo e da personalidade, e a produção de uma publicidade espetacular da vida outrora
íntima e privada, onde a imagem aparente ganha um estatuto inédito, constituem os efeitos
mais significativos da cultura contemporânea com relação aos processos de subjetivação.
Se estas transformações afetam o modo de construção dos sujeitos, repercutem
diretamente também nos modos de relação com a alteridade. Quanto a isso, pretendemos
discutir nossa hipótese de que hoje parecem predominar, alternando-se, dois modos de
97
relação com a alteridade onde, de um lado, vemos uma tentativa de fusão com o outro,
onde sua alteridade é esvaziada ou, de outro lado, o sujeito parece se ver diante de uma
alteridade tão radical que não identificação possível com o outro, o que abre
perigosamente o caminho para toda forma de crueldade. Nestas duas possibilidades, que
não nos parecem opostas, vemos em comum o não reconhecimento da alteridade.
Discutiremos adiante com detalhes esta hipótese e cada uma das mudanças que
consideramos importante ressaltar na contemporaneidade, a partir das contribuições de
alguns autores.
A nova soberania imperial
Começaremos pela apresentação de algumas das principais formulações propostas
por Hardt e Negri em “Império”
199
, por considerarmos este texto bastante esclarecedor
com relação ao contexto sócio-político atual. É importante ressaltar que faremos aqui
apenas um breve recorte deste livro, que é bastante complexo, sem a pretensão de abarcar
muitas das discussões propostas pelos autores. Deste estudo acerca da passagem da
soberania moderna caracterizada pela organização do mundo em estados-nação para
uma soberania pós-moderna com fronteiras flexíveis privilegiaremos os dados que
nos permitem pensar sobre as novas concepções de identidade e diferença, e seus efeitos
sobre a relação do sujeito com a alteridade.
Na passagem de um mundo marcadamente dividido em estados-nação para a
“nova ordem política da globalização”, Hardt e Negri afirmam que haveria “um império
em expansão”, bastante diferente do imperialismo europeu e da expansão capitalista de
199
Hardt, M., Negri, A. Império. RJ, Ed. Record, 2001.
98
outrora. Os autores mostram que junto com o mercado e os modos de produção globais
surgiu uma ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando, uma nova forma de
soberania, e denominam “Império” a substância política que regula esse sistema global.
Nesta profunda transformação em curso os autores identificam a passagem de
uma sociedade disciplinar
200
para uma sociedade de controle
201
. Se antes, nas chamadas
sociedades disciplinares, o lugar claramente delimitado das instituições se refletia nas
subjetividades produzidas, hoje os limites entre público e privado se partiram,
desencadeando circuitos de controle por toda a esfera pública e íntima.
202
Assim,
atualmente, nas grandes cidades, os espaços públicos são cada vez mais privatizados e os
interiores cada vez mais isolados e protegidos, a tal ponto que muitas vezes se torna
impossível distinguir um dentro ou fora, privado ou público. Essa transformação - “não
existe mais lado de fora” - seria particularmente evidente quanto à noção de soberania
imperial e de mercado mundial, para os quais, em sua forma ideal, não exterior. Já não
existiria mais um “fora” também no sentido militar: não mais um poder soberano em
confronto com seu Outro, isto é, em oposição a um exterior claramente delimitado, mas
uma expansão progressiva de fronteiras para envolver todo o globo em seu domínio.
203
Sobre o mundo de outrora, dos estados-nação e do imperialismo colonial, Hardt e
Negri afirmam que seu método consistia em homogeneizar as diferenças sociais reais,
criando uma oposição dialética predominante, depois submetendo-a à identidade
européia. Uma das operações mais importantes do imperialismo moderno era dividir as
massas do globo em campos opostos, ou em diversas partes conflitantes. Hoje, junto com
200
Sobre este termo, cunhado por Foucault, cf. Foucault, M. Vigiar e punir. Petrópolis, Ed. Vozes, 1984.
201
Termo atribuído a Deleuze, cf. Deleuze, G. Conversações. RJ, Ed. 34, 1992.
202
Hardt, M., Negri, A. Império, op. cit., p.216.
203
Ibid., p.208.
99
as “celebrações dos fluxos ilimitados de nossa aldeia global”, sentiríamos uma certa
nostalgia destas nítidas fronteiras dos estados-nação. Porém, é necessário lembrar que a
realidade nunca foi dialética, tal como pretendia o colonialismo. A concepção dos autores
nos permite pensar para além das simples oposições como dentro/fora, bem/mal,
global/local, identidade/diferença, eu/outro. Hardt e Negri nos mostram de diversos
modos que a estrutura binária não é dada, mas é imposta artificialmente, e que a realidade
é sempre mais complexa.
A “nova soberania imperial”, segundo Hardt e Negri, assinala uma verdadeira
mudança de paradigma. Neste novo contexto, um poder autônomo, superdeterminado
com relação aos estados-nação, seria capaz de funcionar como o centro da nova ordem
mundial. O Império não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em
fronteiras ou barreiras fixas, é um aparelho de descentralização e desterritorialização que
incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão,
administrando entidades híbridas e hierarquias flexíveis por meio de estruturas de
comando reguladoras. Esta soberania do Império tem uma forma especial, descontínua,
ocorre nas suas margens, onde as fronteiras são flexíveis e as identidades fluidas: o
Império é virtual, e construído para controlar o evento marginal.
204
Porém, a virtualidade e a descontinuidade da soberania imperial não diminuem a
sua força. Os autores ressaltam que o Império é formado com base na capacidade de
mostrar a força como algo “a serviço do direito e da paz”. Assim, os mecanismos de
comando se tornam cada vez mais “democráticos”, sendo a exclusão ou a integração
social cada vez mais interiorizadas nos próprios “súditos”: o poder agora é exercido
mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação,
204
Ibid., p.58.
100
redes de informação, etc.), e os corpos. Denominam “biopoder”
205
essa forma de poder
que regula a vida social por dentro: “Na passagem da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle, um novo paradigma de poder é realizado, o qual é definido pelas
tecnologias que reconhecem a sociedade como o reino do biopoder”.
206
Essas
concepções de “sociedade de controle” e “biopoder”, segundo os autores, seriam os
aspectos centrais do Império. Quanto à “dimensão produtiva do biopoder”, mostram que
o trabalho produtivo tende a se tornar cada vez mais imaterial. O papel antes ocupado
pela força de trabalho operária, nas fábricas, está sendo preenchido pela força de trabalho
intelectual e comunicativa. Hoje as grandes corporações transnacionais, as grandes
potências industriais e financeiras, produzem não apenas mercadorias, mas também
subjetividades, necessidades, relações sociais, corpos e mentes, produzem produtores.
207
Consideramos importante ressaltar que os autores não definem este novo contexto
apenas em oposição a um “antes”, de modo exclusivamente comparativo ou nostálgico,
mas também de modo afirmativo, pensando a sua especificidade. Evitam definir a
transição para o Império apenas em termos negativos, como: “declínio dos estados-nação,
desregulamentação dos mercados internacionais, fim do conflito antagônico entre
entidades independentes, etc.”: “se o novo paradigma consistisse apenas nisso, suas
conseqüências seriam totalmente anárquicas”, e “o novo paradigma funciona em
termos inteiramente positivos”, afirmam.
Apesar desse Império ser bastante opressivo e ter um enorme poder de destruição,
Hardt e Negri consideram que não por que sentirmos saudades das antigas formas de
205
O termo “biopoder” baseia-se na concepção de biopolítica de Foucault. Cf. Foucault, M. História da
sexualidade
– vol.1. RJ, Ed. Graal, 1988.
206
Hardt, M., Negri, A. Império, op. cit., p.43.
207
Ibid., p.51.
101
dominação. Mesmo construindo suas relações de poder também com base na exploração,
reconhecem que o Império teria desempenhado um papel importante na eliminação do
colonialismo e do imperialismo e defendem que este seria um passo à frente com relação
ao estado-nação.
Assim, contra uma certa visão nostálgica, afirmam que o novo terreno imperial
oferece maiores possibilidades de criação e libertação, e que a globalização, desde que
provoque uma desterritorialização real das estruturas anteriores de exploração e
controle, é na verdade cláusula para libertar a multidão”.
208
Assim, acreditam que “as
forças criadoras da multidão que sustentam o Império são também capazes de construir
um ‘Contra-Império’, que seria uma organização política alternativa de fluxos e
intercâmbios globais”. Para desafiar o Império e resistir ao mercado global seria
necessário propor uma alternativa também em nível global; neste sentido, enfatizam o
potencial da migração, dos fluxos culturais, o nomadismo e a miscigenação, “o poder de
circular”, que seriam suas virtudes, “as primeiras práticas éticas no terreno do
Império”.
209
Aqui vemos como os mesmos instrumentos de “aprisionamento” e causadores de
sofrimento
210
por exemplo, a flexibilidade e a instabilidade - podem servir para a
“libertação”. Hoje os mesmos movimentos e tendências constituem tanto a ascensão
como o declínio do Império. Os poderes da ciência, do conhecimento, do afeto e da
comunicação seriam os principais poderes, e estão dispostos na superfície do Império.
211
208
Ibid., p.71.
209
Ibid., p.383.
210
Veremos mais adiante as novas formas de sofrimento que o sujeito experimenta neste contexto de
“flexibilidade e instabilidade”.
211
Hardt, M., Negri, A. Império, op. cit., p.387.
102
Consideramos esta idéia bastante importante, que nos permite pensar de modo
não reducionista. Porém, em alguns momentos, parece que é justamente numa certa
oposição dialética que os autores acabam caindo quando defendem, por exemplo, a
necessidade de uma “luta contra o Império”, como um “inimigo a ser combatido”, o que
suporia a idéia de que seria possível alguma ação de “fora”. Neste ponto, podemos
lembrar mais uma vez as formulações de Derrida sobre a desconstrução, onde nos mostra
que podemos desconstruir qualquer sistema ou pensamento “de dentro”, pois não
um “fora”, ao referir-se ao discurso metafísico, por exemplo. Neste mesmo sentido,
entendemos que não um “fora” do Império, por isso, ao invés de adotarmos os termos
de “libertação”, ou “luta contra o Império”, preferimos afirmar que qualquer
desconstrução é possível usando-se os mesmos recursos do Império. Assim,
ressaltamos que não pretendemos definir de modo simplista o “Império”, ou a divisão do
mundo em estados-nação, como alternativas positivas ou negativas em si, mas nosso
objetivo é observar e discutir seus mecanismos subjacentes, considerando as relações que
se estabelecem com o estranho nestes diferentes contextos.
O historiador Eric Hobsbawm, em entrevista publicada sob o título “O novo
século”, coloca algumas questões que nos permitem complexificar a tendência a
pensarmos em termos de pares de opostos. Chama a atenção para o fato de que é
fundamental nos perguntarmos sobre as conseqüências deste processo de
enfraquecimento do estado-nacional. Será algo bom ou ruim? Ainda não sabemos, afirma
o autor, que vantagens e desvantagens: “A questão para o próximo século [XXI] é
saber o que irá tomar o lugar do antigo sistema de potências que regia o mundo”.
212
O
fato é, segundo Hobsbawm, que hoje não se pode simplesmente ignorar os estados, “pois
212
Hobsbawm, E. O novo século: entrevista a Antonio Polito. SP. Ed. Cia das Letras, 2002, p.54.
103
não nada além deles no campo da política”. Por exemplo, com relação a um dos
principais problemas da atualidade - a distribuição de renda, da riqueza produzida -
ressalta o papel que só poderia caber aos estados:
“Pois bem, o único modo eficiente que conhecemos é a redistribuição da riqueza
por intermédio do estado e das autoridades públicas. Por esse motivo, creio que o
estado nacional continua sendo indispensável. Talvez suas funções econômicas
não o sejam tanto quanto antes, mas as redistributivas são mais importantes do
que nunca”.
213
Assim, podemos afirmar que certamente é necessário pôr em questão e limitar a
lógica da soberania estado-nacional: freqüentemente, é em nome dos direitos humanos
que esta soberania tem sido cada vez mais posta em questão, assim como a imunidade
dos soberanos - chefes de estado e generais -, ou a pena de morte - último atributo da
soberania do estado.
214
Entretanto, devemos concordar com as colocações de Hobsbawm
quanto ao fato de que seria imprudente e precipitado se opor a toda e qualquer soberania,
como se esta fosse um “inimigo a ser combatido”. A ausência de soberania ameaçaria,
além da figura do estado-nação, clássicos princípios como a liberdade e o respeito à
diferença. Neste sentido, a soberania do estado-nação pode, em certos contextos, se tornar
uma proteção indispensável contra certos poderes internacionais, contra hegemonias
ideológicas, religiosas, capitalistas, até lingüísticas. Retomaremos esta discussão sobre a
soberania, sua importância e, ao mesmo tempo, a necessidade de limitá-la, no próximo
capítulo, onde veremos a sua função quanto ao acolhimento do estranho. No momento, o
que nos interessa ressaltar é que devemos manter uma concepção que não se encerre num
213
Ibid., p.98.
214
Derrida dedicou-se muito a discutir a questão da pena de morte em articulação com a soberania, em
seminários, livros e entrevistas,
Cf. por exemplo, De que amanhã... diálogo. RJ, JZE, 2004, p.166-199.
104
dualismo que oporia bem e mal, tampouco interno e externo, eu e outro, como vimos
anteriormente.
As novas formações subjetivas
A partir dos elementos obtidos através do mapeamento das principais
características da contemporaneidade por Hardt e Negri, passaremos a uma reflexão
acerca de algumas transformações que notamos com relação às subjetividades neste
contexto. Como dissemos, tais mudanças nos interessam aqui na medida em que terão
efeitos sobre as formas através das quais estes sujeitos se relacionam com o estranho.
Sobre as novas formações subjetivas que encontramos hoje, Sennett
215
mostra
que, ao enfatizar a flexibilidade e atacar as formas rígidas de burocracia e rotina, o atual
sistema exige que os sujeitos sejam sempre ágeis, abertos a mudanças à curto prazo, e
assumam riscos continuamente, dependendo cada vez menos de leis formais. Neste
mercado sempre motivado pelo consumo, as mudanças são incessantes, e o autor mostra
que esta ênfase na flexibilidade e no curto prazo traz sérias conseqüências para o sujeito:
este funcionamento seria capaz de provocar uma “corrosão do caráter pessoal”,
principalmente quanto àquelas qualidades que nos dão o senso de uma identidade
sustentável.
Detendo-se numa reflexão acerca do mercado de trabalho atual, o autor mostra
que o sistema político e econômico predominante no contexto de globalização que ele
215
Sennett, R. A corrosão do caráter. RJ, Ed. Record, 5
a
edição, 2001.
105
denomina “capitalismo flexível” - implica num novo tipo de organização institucional,
em forma de “rede”, que não tem mais a clareza das estruturas hierárquicas anteriores, em
forma de “pirâmide”. Anuncia-se aqui uma “relação de poder sem autoridade”, que
desorienta os sujeitos, que “não ninguém acima que responda como proceder”.
216
Assim, com a sua ênfase na importância de se “correr riscos” permanentemente e a
ausência de autoridade, indiretamente propõe-se que o sujeito permaneça num estado
contínuo de vulnerabilidade e incerteza.
217
Com relação à questão do poder neste contexto, Sennett apresenta uma reflexão
que consideramos bastante importante: mostra que hoje o poder se mantém presente nas
cenas superficiais do trabalho em equipe, porém, a figura de autoridade - alguém que
assume a responsabilidade pelo poder que usa - está ausente.
218
Isto se deve ao fato de
que as modernas técnicas de administração buscam fugir do aspecto “autoritário”, mas,
fazendo isso, escapam também da responsabilidade por seus atos.
219
Neste contexto de
ênfase na flexibilidade, a “mudança” é sempre apontada como o agente responsável pela
face tanto positiva quanto negativa da instabilidade, então “somos todos vítimas”. Isso
deixa livres os que estão no poder para fazer mudanças visando apenas o presente, onde o
valor dado a cada sujeito é mínimo ou inexistente.
Hoje a instabilidade e a disposição de correr riscos não devem mais ser apenas
domínio de aventureiros ou de capitalistas de risco, mas tendem a se tornar uma
216
Ibid., p.97.
217
Bauman sugere o termo “modernidade líquida” para referir-se à contemporaneidade, em contraste com a
sociedade moderna anterior que denominou “modernidade sólida”: tudo está agora sempre sendo
permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência, daí a metáfora da
“liquidez” para referir-se ao estado da sociedade que se caracteriza por uma incapacidade de manter a
forma (
cf. Bauman, Z. Modernidade líquida. RJ, JZE, 2001).
218
Sennett, R. A corrosão do caráter, op. cit., p.136.
219
Veremos adiante que estas constatações se aplicam não só ao mercado de trabalho, mas também às
estruturas familiares atuais. No próximo capítulo retomaremos este tema da responsabilidade, questionando
“quem se responsabiliza pelo outro hoje?”.
106
necessidade diária enfrentada pelas massas. “Permanecer num estado contínuo de
vulnerabilidade é a proposta que, talvez sem perceber, os autores dos manuais de
negócios fazem quando celebram o risco diário na empresa flexível”.
220
Como conseqüência disso, conforme vimos acima, o autor aponta a “corrosão do
caráter”. Entendemos que o termo “caráter”, para Sennett, refere-se à adesão a
determinados valores pelos quais um sujeito procura ser reconhecido pelos outros. Logo,
em termos psicanalíticos, diríamos que estaria ligado à noção de identidade e às
instâncias ideais. Nos interessa ressaltar que, quando menciona esta questão da corrosão
do caráter, Sennett a articula com um dado que consideramos bastante importante, e que
vem sendo muito discutido nos meios psicanalíticos: o fato de que esta instabilidade, ou
esta “nova ordem”, tem efeitos marcantes sobre as narrativas que se estabelecem neste
contexto. Sennett observa isso com relação ao mercado de trabalho, afirmando que “falta
ao risco a qualidade de uma narrativa, em que um acontecimento leva ao seguinte e o
condiciona”: “o problema que enfrentamos hoje é como organizar as histórias de nossas
vidas, nossas narrativas, nosso futuro, num capitalismo que nos deixa à deriva”. Neste
tempo “acelerado e retalhado”, comenta, não lugar para o estabelecimento de uma
narrativa que organize a conduta do indivíduo, sugerindo motivos e apontando
conseqüências; assim, “mudança” passa a significar apenas “deriva”.
221
Apesar de descrever estas graves conseqüências do capitalismo flexível sobre o
sujeito, Sennett faz questão de sublinhar, no mesmo sentido de Hardt e Negri, que não
compartilha de uma visão nostálgica, que lamentaria apenas a perda dos velhos
220
Sennett, R. A corrosão do caráter, op. cit., p.97.
221
Ibid., p.27. Esta questão da especificidade da narrativa na contemporaneidade será retomada mais
adiante, ainda neste capítulo, e nos servirá para pensar a questão da agressividade e da crueldade com
relação ao outro.
107
referenciais estáveis da modernidade: “Nenhum de nós poderia desejar o retorno da
segurança de antes, aquela perspectiva hoje nos pareceria claustrofóbica”.
222
Assim,
considera que seria ingênuo lamentar o declínio do trabalho árduo da auto-disciplina, pois
este trabalho impunha pesados fardos e podia ser auto-destrutivo. Então, se é quase lugar-
comum dizer que as identidades modernas são mais fluidas que as divisões categóricas
nas sociedades de classes do passado, o autor lembra que esta “fluidez” também pode
significar maior descontração e adaptação.
223
Neste mesmo sentido, buscando pensar a especificidade dos tempos atuais ao
invés de restringir-se a comparações com o passado, Giddens
224
afirma que é bastante
comum a afirmação de que a contemporaneidade - que denomina “modernidade alta” ou
“modernidade tardia” - fragmenta e dissocia. Porém, este autor nos permite problematizar
esta discussão, através de seus comentários sobre as novas relações entre exterior e
interior. Afirma que podemos constatar, ao mesmo tempo, uma maior unificação, já que a
influência dos acontecimentos distantes sobre eventos próximos, e sobre as intimidades
do eu, se torna cada vez mais comum neste contexto de globalização:
“Tomados em conjunto, os diversos modos de cultura e de consciência
característicos dos ‘sistemas mundiais’ pré-modernos formavam um cortejo
genuinamente fragmentado de comunidades humanas. Por contraste, a
modernidade tardia produz uma situação em que a humanidade em alguns
aspectos se torna um ‘nós’, enfrentando problemas e oportunidades onde não
‘outros’”.
225
Deste modo, Giddens complexifica a questão, mostrando que hoje, por um lado,
mais fragmentação, como mostram diversos autores em comentários acerca do
222
Ibid., p.140.
223
Ibid., p.87.
224
Giddens, A. Modernidade e identidade. RJ, JZE, 2002.
225
Ibid., p.32.
108
“declínio do espaço público”, da noção de “bem comum”, da moral, etc; e também,
paradoxalmente, mais unidade: “A modernidade fragmenta e também une. Desde o nível
do indivíduo até o dos sistemas planetários completos, tendências à dispersão competem
com as que promovem a integração”.
226
Neste contexto, eventos distantes podem tornar-
se tão familiares ou até mais familiares que influências próximas, e podem ser integrados
nos quadros de referências da experiência pessoal. Giddens aponta muitas conexões entre
opções de estilo de vida e influências globalizantes; por exemplo, questões relativas à
reprodução, à ecologia, etc.: A globalização unifica a comunidade humana como um
todo – até certo ponto por causa da criação de riscos de alta conseqüência a que
ninguém que viva na Terra poderia escapar. Novas formas de cooperação são
necessárias...”.
227
O narcisismo na contemporaneidade
Diversos autores ressaltam o tema do narcisismo em suas análises acerca das
transformações pelas quais tem passado o sujeito contemporâneo e sua relação com o
outro. Sendo este conceito de narcisismo um dos pontos de partida desta tese, como
vimos nos capítulos anteriores, retomaremos aqui esta questão, visando compreender em
que ela pode nos ser útil para esta abordagem acerca das relações com o estranho nos dias
de hoje.
"A cultura do narcisismo" é uma das expressões que se tornou referência quase
obrigatória nas análises da contemporaneidade. Ao descrever a "personalidade narcísica
226
Ibid., p.175.
227
Ibid., p.207.
109
do nosso tempo", Lasch
228
afirmou tratar-se de "indivíduos indiferentes aos destinos da
vida pública e exclusivamente voltados para um hedonismo privado, que gira em torno do
consumo passivo de bens materiais". Num contexto de declínio da autoridade paterna e
de obediência aos padrões impostos pelos meios de comunicação de massa, Lasch
como efeito disso a criação de um “novo individualismo adaptado aos tempos
modernos”, onde ganhariam relevo estratégias de "sobrevivência narcísica" e “o ego seria
mantido em condições regressivas". Segundo o autor, o “homem narcísico” teria se
descartado de seu ancestral puritano e moralista para dar lugar a um novo homem,
pretensamente liberado e tolerante. Mas, afirma, a permissividade e a tolerância
existentes não significam respeito e aceitação do outro em sua diferença, mas sim uma
profunda indiferença com relação a tudo que não seja do interesse exclusivo do próprio
indivíduo. Para Lasch, “o narcisismo moderno é patológico”, porque se manifesta como
“necessidade de um ego regredido, submetido a um superego arcaico, dominado pela
pulsão de morte”.
Os termos dos quais Lasch se utiliza são marcadamente influenciados pela
psicanálise e pela psicologia em geral, e isso foi motivo de inúmeras críticas ao autor,
principalmente pelo uso de categorias psicológicas na explicação de fatos sociais. Dentre
estas críticas podemos destacar aquela formulada por Costa, em “Violência e
psicanálise”, que considera que Lasch incorre numa imprecisão quanto ao conceito de
narcisismo, e também quanto às categorias de normal e patológico: "A utilização do
228
Lasch, C. [1979] A cultura do narcisismo - A vida americana numa era de esperanças em declínio.
RJ, Ed. Imago, 1983.
110
narcisismo na crítica à sociedade de consumo tornou-se confusa e problemática porque
o conceito foi superestimado em seu potencial explicativo".
229
Depois das diversas críticas recebidas por "A cultura do narcisismo", Lasch
publicou “O mínimo eu”
230
, livro no qual antecipa muito do que diversos autores dizem
hoje acerca da contemporaneidade. Neste último livro, Lasch denomina a cultura atual
“cultura da sobrevivência”, e o eu que nela subsiste "mínimo eu", uma formação
defensiva que se originaria de uma transformação social profunda: a substituição de um
mundo confiável de objetos duráveis por um mundo de imagens oscilantes. Sobre a
questão do narcisismo, Lasch defendeu-se das criticas recebidas ressaltando que não se
tratava ali de egoísmo ou auto-interesse. Remetendo ao mito de Narciso afirmou que,
através do termo narcisismo, referia-se a uma confusão entre o eu e o não-eu, e não a um
simples enamoramento pela própria imagem: "O eu mínimo ou narcisista é, antes de
tudo, um eu inseguro de seus próprios limites, que ora almeja reconstruir o mundo à sua
imagem, ora anseia fundir-se em seu ambiente numa extasiada união”.
231
A grande
preocupação atual com a “identidade”, afirma Lasch, expressaria em certa medida esse
embaraço em se definir as fronteiras da individualidade. Assim, aquilo que o autor chama
de narcisismo se refere mais a uma perda da individualidade, do que à sua auto-
afirmação; refere-se a um eu ameaçado de desintegração e por um vazio interior.
Sobre a questão dos modos de produção atuais e o consumo de massa, Lasch
afirma que estes tendem a desencorajar a iniciativa e a autoconfiança, incentivando a
dependência e a passividade. O indivíduo tende a não acreditar em seu próprio
229
Costa, J. F. Violência e psicanálise. RJ, Ed. Graal, 1986, p.163.
230
Lasch, C. [1984] O mínimo eu - Sobrevivência psíquica em tempos difíceis. SP, Ed. Brasiliense, 5
a
ed., 1990.
231
Ibid., p.12.
111
julgamento, adotando uma performance teatral, onde “o eu se torna mais uma mercadoria
para o consumo”.
232
Na sociedade de consumo, "ser alguém" é consumir certos bens,
produtos e comportamentos. Para Lasch, é esta cultura organizada em torno do consumo
de massa que estimula o narcisismo.
Podemos aproximar estas modalidades de subjetividades acima descritas na “cultura
do narcisismo”, ou “cultura da sobrevivência”, da chamada "sociedade do espetáculo"
expressão introduzida por Debord
233
em 1967, e também usada até hoje por diversos
autores como referência à contemporaneidade. Sobre este termo, Debord afirma que “o
‘espetáculo’ é a afirmação da aparência”, e que este se apresenta como uma enorme
positividade, indiscutível e inacessível: “o que aparece é bom, o que é bom aparece”.
234
A
atitude que por princípio o espetáculo provoca é a da aceitação passiva, que não deixa
espaço para réplicas. Deste modo, comenta, o “espetáculo” esvazia o espaço público, a
discussão, o diálogo, através de pretensas “imagens que dizem tudo”, provocando uma
certa paralisia e hipnose: O espetáculo, como tendência a fazer ver... o mundo que não
se pode tocar diretamente, serve-se da visão como o sentido privilegiado da pessoa
humana... Ele [o espetáculo] escapa à atividade do homem... é o contrário do diálogo”.
235
Através desta articulação entre o espetáculo e o esvaziamento do espaço público, Debord
nos fornece instrumentos que retomaremos mais adiante para pensarmos a dificuldade atual
quanto ao reconhecimento da alteridade.
Apesar das importantes contribuições que podemos obter a partir das formulações
de Debord, não podemos deixar de considerar problemáticas algumas passagens de seu
232
Ibid., p.22.
233
Debord, G. A sociedade do espetáculo. RJ, Contraponto, 1997.
234
Ibid., p.16.
235
Ibid., p.18.
112
texto. Em diversos momentos Debord refere-se ao “Espetáculo”, em letra maiúscula, que
parece quase adquirir o estatuto de uma “entidade” a ser combatida. O autor deixa claro
que visa uma “luta contra a sociedade do espetáculo”, através de uma “revolução”,
enfatizando o aspecto politicamente engajado de seu texto. Em suas palavras, para
destruir de fato a sociedade do espetáculo é preciso que os homens ponham em ação
uma força prática”.
236
A idéia de uma “luta contra o espetáculo”, como se estivéssemos face a um
inimigo a ser combatido, pode soar hoje bastante ingênua. em outro momento, no
mesmo texto, podemos concordar com Debord quando ele nos chama a atenção para o
fato de que é evidente que nenhuma idéia pode levar além do espetáculo existente, mas
apenas além das idéias existentes sobre o espetáculo”.
237
Consideramos bastante
pertinente a colocação do autor quanto ao fato de que “o espetáculo” pode ser
“perturbado” a partir de seu interior. Tal como afirmamos com relação ao “Império”,
podemos lembrar mais uma vez as formulações de Derrida acerca da desconstrução,
onde ele nos mostra que qualquer pensamento ou sistema pode ser desconstruído a
partir de seu interior.
Veremos que a ênfase no “espetáculo” tem íntima conexão com o narcisismo e a
atenção ao próprio corpo e imagem. Sobre a questão do sujeito contemporâneo com
relação ao corpo e ao narcisismo, Giddens acredita que o que pode parecer apenas um
movimento geral em direção ao culto narcisista da aparência corporal, expressaria na
verdade uma preocupação muito mais profunda com a construção e o controle ativo do
236
Ibid., p.131. No prefácio à edição francesa de 1992, última edição lançada com o autor ainda vivo,
lembra mais uma vez: “
é preciso ler este livro tendo em mente que ele foi escrito com o intuito deliberado
de perturbar a sociedade espetacular
”.
237
Idem.
113
corpo.
238
Assim, nos permite pensar que não se trata aqui apenas de um narcisismo
entendido como simples exaltação da imagem e da aparência, mas sim um narcisismo que
busca negar a finitude, superar a morte, como um projeto de transformação da natureza
num campo da ação humana. Giddens comenta que podemos ver isso em exemplos como
a reprodução assistida, a engenharia genética e vários tipos de intervenções médicas.
Afirma que “o corpo está se tornando uma questão de escolhas e opções”, e estas não
afetam apenas o indivíduo, já que há conexões próximas entre aspectos pessoais do
desenvolvimento corporal e fatores globais.
239
Comenta que hoje estaria em curso uma “segregação da experiência”, onde é raro
o contato direto dos indivíduos com eventos e situações que ligam a vida individual a
questões mais amplas de moralidade e finitude.
240
Nesse contexto, a falta de sentido
pessoal torna-se um problema psíquico fundamental na modernidade tardia. A
“autenticidade”, que pode se manifestar como uma exigência de “criatividade”, se torna
então o valor predominante e uma referência para a “auto-realização”, mas representa um
processo “moralmente atrofiado”, segundo o autor. É neste campo que a vergonha
241
vem
ocupando o primeiro plano, no lugar da culpa descrita por Freud. A vergonha estaria
ligada ao narcisismo, ao sentimento de insuficiência, tendo relação com a integridade do
eu e a identidade, diferente da culpa.
242
Neste contexto, a “autenticidade” substitui a
238
Giddens, A. Modernidade e identidade, op. cit., p.15.
239
Apesar de considerarmos muito importante esta questão da relação do sujeito contemporâneo com o
próprio corpo, precisamos nos restringir aqui a apontar a sua relevância, sem desenvolvê-la. Para essa
discussão, remetemos o leitor a Costa, J. F.
O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do
espetáculo
. RJ, Ed. Garamond, 2004.
240
Giddens, A. Modernidade e identidade, op. cit., p.15.
241
Sobre o tema da vergonha na contemporaneidade e nas novas subjetividades, ver Pinheiro, T. Depressão
na contemporaneidade
(no prelo) e Verztman, J. Vergonha, honra e contemporaneidade (no prelo).
242
Giddens, A. Modernidade e identidade, op. cit., p.66.
114
dignidade ou a honra – o que torna uma ação boa é o fato dela ser “autêntica” em relação
aos desejos do individuo.
Retomando o pensamento de Lasch, Giddens concorda que uma preocupação com
a sobrevivência de fato se apresenta hoje de modo bastante evidente, mas acredita que
isso não levaria necessariamente a uma “fuga para o mundo fechado do eu”, como
acredita o autor de “O mínimo eu”. Ao contrário, Giddens cita estudos que mostram, por
exemplo, que a partir da decadência da família nuclear, muitos estão reestruturando
ativamente novas formas de relações de gênero e parentesco, assumindo assim uma
postura de afirmação do novo. Logo, ao considerarmos a relevância de temas como o
narcisismo e a atenção ao próprio corpo e imagem na contemporaneidade, devemos ter
em mente que não se trata necessariamente de uma crítica negativa, em comparação a um
tempo anterior supostamente menos problemático, mas sim trata-se de observarmos a
especificidade das novas formas de subjetividade e de relação com o outro que vemos
predominar na atualidade.
243
A fadiga do indivíduo soberano
Neste mesmo sentido apontado pelos autores acima citados em seus comentários
acerca das transformações que constatamos nas subjetividades no atual contexto de
globalização, destacaremos aqui as contribuições de um autor Alain Ehrenberg - que
243
Por exemplo, sobre a questão do “culto ao corpo” na contemporaneidade, Costa comenta que apesar de
haver inegavelmente um lado nocivo da obsessão pelo corpo, devemos perceber também que pode-se
extrair “vantagens cognitivas, psicológicas e morais do aumento do interesse pelo corpo”: “
Cuidar de si,
aliás, pode ser o melhor meio de se colocar disponível para o outro. Pois, como mostrou Freud, as
melhores intenções se esfarelam diante da mais banal dor de dentes
”. (Cf. Costa, J. F. O vestígio e a aura:
corpo e consumismo na moral do espetáculo
, op. cit., p.20).
115
nos permite abordar as mudanças em curso através de uma leitura sociológica que leva
em conta o pensamento psicanalítico. Consideramos que este autor pode nos fornecer
valiosos dados para uma reflexão sobre as subjetividades que vemos surgir neste
contexto, a partir de sua reflexão acerca do atual "indivíduo soberano".
Em La fatigue d’être soi”
244
Ehrenberg busca entender por que e como a
depressão se impôs como a nossa principal manifestação de mal-estar na
contemporaneidade, e se pergunta em que medida ela revela as transformações do
indivíduo do fim do século XX. Afirma que a depressão alcançou esta posição no
momento em que o modelo disciplinar de gestão das condutas e as regras de autoridade e
de conformidade aos interditos, deram lugar a normas que incitam cada um à iniciativa
individual e estimulam o “tornar-se si mesmo”. A modernidade democrática fez de nós
“homens sem guias”, que devem construir seus próprios referenciais, que nenhuma lei
moral ou tradição nos indica de fora quem devemos ser ou como agir.
245
Afirma então
que a depressão seria algo como uma "fadiga de ter que se tornar si mesmo", uma
resposta ao ideal político que faz do homem um indivíduo soberano, "proprietário de si
mesmo".
O fato é que essa “nova soberania” não nos tornou todo-poderosos ou livres para
fazer o que nos convém. Ehrenberg nos mostra justamente qual é o preço que pagamos
por esta nova “liberdade”. A depressão se apresenta atualmente como "uma doença da
responsabilidade", onde predomina um sentimento de insuficiência, de um indivíduo
"cansado de ter que se tornar ele mesmo". Esta seria “a patologia de uma sociedade não
244
Ehrenberg, A. La fatigue d'être soi - Dépression et societé. Paris, Éditions Odile Jacob, 1998.
245
Sobre isso, Costa, citando autores como Luckman e Thompson, nos chama a atenção para o fato de que
a moralidade tradicional permanece presente e atuante na contemporaneidade, porém, teria sido remodelada
– “des-ritualizada”, “des-localizada” e, por vezes, “des-personalizada”. (
Cf. Costa, J. F. O vestígio e a
aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo
. RJ, Ed. Garamond, 2004).
116
mais fundada sobre a culpabilidade e a disciplina, mas sobre a responsabilidade e a
iniciativa". Hoje, “cometer uma falta quanto às normas” consiste menos em ser
desobediente do que ser incapaz de agir. Neste contexto que convoca permanentemente à
ação, a inibição e a impulsividade seriam as duas faces de uma mesma moeda.
Neste ponto podemos lembrar as formulações de Sennett acerca do declínio das
narrativas na atualidade, entendendo que a impulsividade (ou o ato) e seu avesso a
inibição ou a depressão constituem duas formas através das quais freqüentemente se
apresentam as novas subjetividades. Estas se caracterizam por narrativas bastante
diversas daquelas descritas por Freud, que implicavam em elaboradas construções
fantasmáticas, cujo paradigma seria o modelo de funcionamento da histeria.
246
Numa
revisão crítica das formulações freudianas sobre a dinâmica do psiquismo, Ehrenberg
afirma que o aumento da incidência de depressão verificado atualmente repousa sobre o
declínio da referência ao conflito sobre a qual se construía a noção de sujeito do fim do
século XIX: Assim como a neurose estava à espreita do indivíduo dividido pelos seus
conflitos, pela divisão entre o que era permitido ou proibido, a depressão ameaça um
indivíduo aparentemente emancipado de interditos, mas certamente dividido entre o
possível e o impossível”.
247
Deste modo, este autor nos fornece importantes recursos para uma reflexão acerca
das novas sintomatologias, tão discutidas pela psicanálise de hoje, quando muitos
analistas vêm reconhecendo a necessidade de deslocarmos a nossa atenção de um
território conhecido, onde o conflito, a culpa e a angústia dominavam, para quadros
246
Para uma discussão sobre o modelo da histeria e a possibilidade de se pensar um outro modelo, mais
próximo das chamadas “novas subjetividades”, ver Pinheiro, T.
Tornar-se uma outra na histeria e ser
uma outra no falso-self
in Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, Vol.VII, n
o
1, março
2004, p.09-19.
247
Ehrenberg, A. La fatigue d'être soi - Dépression et societé, op. cit., p.19.
117
onde predominam a insuficiência, o vazio e a compulsão. Nestas novas subjetividades,
nos mostra Ehrenberg, a referência é muito mais às normas de iniciativa do que às de
interdição e, deste modo, a constituição de uma identidade parece mais problemática do
que os conflitos de identificação descritos por Freud. Encontramos com freqüência
indivíduos cujas identidades parecem “cronicamente fragilizadas”: prisioneiros de uma
imagem tão ideal de si mesmos que os leva a uma paralisia, estes sujeitos têm uma
necessidade permanente de serem reafirmados pelo outro.
Mais especificamente no campo psicanalítico, podemos encontrar diversas
contribuições importantes acerca do sujeito e das novas patologias que se apresentam
neste contexto que descrevemos. Devido à complexidade do tema e à grande atenção que
demandaria tal reflexão, não poderíamos explorá-lo neste trabalho; porém, insistimos em
deixar indicada a sua relevância e pertinência quanto ao campo das novas subjetividades,
fazendo apenas algumas observações sobre aspectos que nos interessam especialmente.
Neste sentido, recorremos a Pinheiro que afirma que hoje, em muitos casos, “o olhar do
outro parece ter assumido um estatuto de verdade sobre o sujeito”, e "ser visto" passa a
ser condição de existência:
“As imagens do mundo contemporâneo, dos videoclipes, das propagandas, do
espetáculo, parecem remeter a um prazer indizível e ilimitado, ao gozo, distante das
imagens de Freud que remetem à sexualidade, valores, regras, interditos. As
imagens atuais não são capazes de construir uma produção discursiva bordada por
adjetivos, metáforas, hipérboles, remetem ao concreto do corpo enquanto imagem e
ao corpo das sensações ou do objeto capaz de produzir sensações. Neste sentido o
tecido fantasmático e a forma de construção fantasmática serão inteiramente
diversos do modelo da histeria, onde a cena fantasmática implica em movimento,
numa relação de causa e efeito entre os personagens...”.
248
248
Pinheiro, M. T. Escuta psicanalítica e novas demandas clínicas in Psychê, SP, ano VI, n
o
9, 2002,
p.170.
118
Diferentemente das subjetividades histéricas, que também valorizam a fala do
outro sobre si, mas que contam com um referencial interno para contrapor a essa fala, as
subjetividades a que nos referimos aqui parecem não dispor internamente de formulações
sobre si e, deste modo, a fala do outro se torna aquilo que ele é naquele momento.
249
Podemos lembrar aqui o conto de Machado de Assis, “O espelho”, que
comentamos no primeiro capítulo desta tese: o “alferes”, personagem do conto, nos
parece paradigmático deste sujeito acima descrito, que pretende que uma imagem
corresponda à sua totalidade. Trata-se de uma identificação ligada prioritariamente a uma
imagem especular. A imagem no espelho o alferes é a forma através da qual ele se
apresenta aos outros, e é a partir deste olhar do outro, de como o outro lhe vê, que ele
existe. Assim, o alferes é uma imagem, bem distante daquele sujeito introspectivo,
atravessado por conflitos interiores, descritos por Freud.
Em “A novas doenças da alma”, Kristeva comenta que a tendência a transformar
desejos em imagens caracteriza a vida psíquica na atualidade: hoje, impacientes por
ganhar e gastar, desfrutar e morrer, os homens economizam essa representação de sua
experiência a que chamamos vida psíquica”.
250
Deste modo, “o ato e seu avesso, o
abandono, substituem a interpretação do sentido”. Assim, descreve o homem atual:
“Umbilicado sobre seu quanto-a-mim, o homem moderno é um narcisista, talvez
cruel, mas sem remorso. O sofrimento o prende ao corpo ele somatiza... Se não
está deprimido, empolga-se com objetos menores e desvalorizados, num prazer
que não conhece a satisfação... Habitante de um espaço e tempo retalhados e
acelerados... O homem moderno está perdendo a sua alma... Este sujeito está
saturado de imagens que o sustentam e o substituem”.
251
249
Pinheiro, T.; Herzog, R. Impasses na clínica psicanalítica: a invenção da subjetividade. Trabalho
apresentado nos EGP, 2003, e publicado no
site http://www.estadosgerais.org
250
Kristeva, J. As novas doenças da alma. RJ, Ed. Rocco, 2002, p.14.
251
Idem.
119
Haveria claros benefícios nesta regulação pela imagem, afirma a autora: deste
modo escapa-se das inquietações metafísicas e da “busca de um sentido para o ser”.
Porém, vemos surgir dificuldades relacionais e sexuais, sintomas somáticos, mal-estar
generalizado, sentimento de vazio e artificialidade, que ainda levam muitos ao divã dos
analistas.
O lugar do Outro na contemporaneidade
A partir dos dados que obtivemos até aqui com as contribuições de perspectivas
histórica, sociológica e também psicanalítica, chegamos perto de nossa questão mais
específica, que se refere aos modos peculiares de relação com o estranho que temos visto
se manifestarem na contemporaneidade, dentre os quais se sobressaem as manifestações
de agressividade e crueldade.
Sobre esta questão, Miller
252
considera como especificidade das novas
subjetividades o que denomina “a inexistência do Outro”, de uma “idéia maiúscula”, ou
de um “senso comum” que regule as atitudes. Referindo-se aos inúmeros “comitês de
ética” que vemos atualmente, cuja existência seria franqueada justamente pela
inexistência do Outro, alerta que este funcionamento não nos abriria um campo que seria
o do “sonho da democracia”, onde todos os procedimentos seriam submetidos à
apreciação de todos, mas que talvez estejamos mais próximos, neste mundo gerido por
comitês de ética, de um campo de batalha, de uma guerra de todos contra todos, onde a
ordem é fazer de tudo para impor seu ponto de vista. Este seria um mundo onde "todos
252
Miller, J. A. O Outro que não existe e seus comitês de ética in La Cause Freudienne, Revue de
Psychanalyse - publication de L'École de la Cause Freudienne - ACF - nº 35, 1997. Tradução de Ondina
Maria Machado.
120
gozam e ninguém se responsabiliza pelo gozo". Assim, Miller afirma que enquanto o
“supereu freudiano produziu truques como o interdito, o dever, até mesmo a
culpabilidade” - termos que “supõem e fazem existir o Outro” - o supereu que predomina
na nossa civilização atual veicularia um imperativo diferente “Goza!”. Ao afirmar que
“o Outro não existe”, Miller nos adverte que o fato de termos superado aprisão do Um”
que o Outro representa, nos abre um horizonte no qual todas as esperanças nos são
permitidas e, ao mesmo tempo, toda a falta de esperança também.
A partir destas formulações acerca da inexistência do Outro na
contemporaneidade Lebrun, em La haine de la haine
253
, acrescenta algumas
contribuições importantes que nos permitirão articular o que dissemos até aqui acerca das
novas subjetividades e a questão que nos interessa, a agressividade e a crueldade com
relação ao estranho hoje. Lebrun refere-se a uma “transformação do simbólico” em curso
na contemporaneidade, lembrando que, nas sociedades patriarcais, o simbólico teria sido
vertical, assimétrico, fundado numa entidade transcendental de exceção, necessariamente
incompleto e regido pela lógica da falta; e isso tudo começou a ser questionado na
modernidade. Segundo o autor, hoje haveria a prevalência de um “simbólico horizontal”,
completo, sem transcendência, onde o outro é um semelhante, não havendo mais uma
figura de exterioridade que forneça qualquer garantia ou verdade última. Hoje, no mundo
globalizado, as verdades são construídas coletivamente, sob os princípios de democracia,
daí a sua “inconsistência”.
“Bem mais do que falar em termos otimistas ou pessimistas, direi que assistimos a
uma mudança de regime do social, uma mudança de regime simbólico. O que se
passa, com efeito, é que o lugar diferente, o lugar da exceção, seja este do chefe,
do pai, do mestre, do presidente, do rei, ou seja, daquele que está num lugar
253
Lebrun, J-P. La haine de la haine. In La mutation du lien social et sés effets sur les subjectivités.
Circulo psicanalítico do Rio de Janeiro, Seminário do dia 14 de agosto de 2004.
121
diferente dos outros, o reconhecimento coletivo da legitimidade de se estar num
lugar diferente dos outros não é mais evidente. Abandonamos um modelo de
sociedade onde o lugar de transcendência era evidente e espontaneamente
reconhecido como legítimo”.
254
Comenta que com o declínio das sociedades hierárquicas, cada sujeito é obrigado
a se ocupar de si mesmo, sem que qualquer um de heterogêneo, nem mesmo um Deus,
lhe diga como proceder. Lembra que por séculos buscamos esta liberdade, enfrentando
Outros, e ressalta, “enquanto fazíamos combates contra este Outro para nos liberarmos
dele, ainda lhe dávamos um lugar”. Na atualidade nos libertamos deste Outro, e isso tem
conseqüências cruciais. Hoje, teoricamente, “cada um tem o direito de fazer o que
quiser”, o compromisso é com o próprio desejo.
Costa mostra-se bastante crítico com relação a este tipo de afirmação segundo a
qual viveríamos tempos de perda da transcendência, considerando alarmistas estes
discursos que afirmam que “o Um, o Outro, o Transcendente religioso ou político
morreram”. Acredita que os indivíduos continuam atentos a princípios como a liberdade,
a igualdade e os direitos do homem. Porém, se os valores tradicionais não se perderam, é
inegável notar que estes foram reconfigurados. Assim, questiona: se não delegamos
mais à religião, ao trabalho, à política ou à família o papel de dar sentido à vida, o que
funciona como valor transcendente aos meros propósitos da auto-realização?”.
255
A esse
respeito, entende que essas instâncias não perderam toda a força normativa que tinham,
porém, teriam sido “privatizadas”, ou seja, deixaram de agir ‘institucionalmente’, por
254
Ibid., p.04.
255
Costa, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo, op. cit., p.189.
122
meio de regras impessoais e universais, para serem ativadas caso a caso, ponto por
ponto”.
256
Retomando Sennett e suas formulações acerca do mercado de trabalho atual,
entendemos que não se trata de dizer que não mais valores, tradição ou exercício do
poder, mas sem dúvida estes se apresentam hoje de modos inéditos. Na sociedade do
espetáculo, se não somos mais tão submetidos às rígidas regras de disciplina, os
mecanismos de controle estão por toda a parte, e o poder é exercido através de redes.
Neste contexto do funcionamento em rede, a figura de autoridade não é tão explícita e,
sobretudo, ninguém se responsabiliza pelo poder exercido.
Lebrun demonstra o quanto, neste contexto de um simbólico horizontal, o conflito
é evitado e temido, considerado perigoso, que não figuras de autoridade que
garantam sua resolução. Neste sentido, concorda com Ehrenberg na constatação de que
vivemos tempos distintos daquele descrito por Freud, onde predominava “o sujeito do
conflito”. Nos mostra que neste contexto de “declínio do conflito” crescem as
manifestações de ódio sem direção. Acredita que este simbólico horizontal disporia de
menos mecanismos de contenção da violência. Se antes, nas sociedades patriarcais, o
ódio era facilmente dirigido às figuras de exceção (muitas vezes misturado ao amor),
hoje, as figuras de autoridade temem e recusam esta posição. Observa que hoje então
teria se desenvolvido “o ódio do ódio” (“la haine de la haine”), onde estaria em jogo um
certo “gerenciamento do ódio”, que visa evitá-lo, “faz-se de tudo para evitar o conflito, a
confrontação”. Isso pode aparecer sob forma de um discurso do tipo, “eu penso isso, você
pensa aquilo, somos diferentes, fim de conversa”. Porém, nesta mesma sociedade que
256
Idem.
123
busca evitar conflitos e confrontações, a violência freqüentemente explode sem direção,
como um ódio passível de se ligar a qualquer objeto.
É neste contexto de evitação do conflito, onde escassez de figuras de
autoridade que assumam responsabilidades, que vemos a imagem ganhar um estatuto
inédito.
257
Na sociedade do espetáculo, ou na cultura do narcisismo, ao outro cabe apenas
reafirmar a frágil identidade de um sujeito “cansado de ter que se tornar ele mesmo”.
Nossa hipótese é a de que neste modo de funcionamento a alteridade é esvaziada a tal
ponto que freqüentemente deixa de existir. Seja através de uma fusão, onde o outro é um
igual, ou num total estranhamento, onde o Outro é de uma estranheza radical, vemos se
abrir o caminho para toda forma de crueldade.
Neste ponto podemos retomar a distinção que propusemos no capítulo anterior
entre os termos agressividade e crueldade, com relação ao estranho. Dissemos que na
agressividade, a familiaridade do estranho não é reconhecida, é negada (recalcada); o
que permitiria a crueldade seria uma recusa, mais radical, de qualquer familiaridade com
o estranho, que pode inclusive chegar ao ponto de lhe subtrair o estatuto de “humano”.
Vimos que este mecanismo de recusa é associado às perversões, onde o outro é tratado
como objeto, “coisificado”, diante do qual o sujeito é indiferente.
Calligaris - na conferência intitulada “Perversão: um laço social?” – afirma:
“O que mais me interessa na questão das perversões não é tanto a estrutura
perversa, que, evidentemente, é pouco comum, mas a facilidade com a qual o
neurótico se prende em formações perversas. Eu diria mesmo que a formação
perversa é o núcleo da nossa vida social, da vida social do neurótico...”.
258
257
Sobre isso, Costa comenta que “o lugar da autoridade foi tomado pela celebridade... a celebridade é a
‘autoridade’ do provisório
”. (Costa, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do
espetáculo
, op. cit., p.169).
258
Calligaris, C. Perversão – um laço social? Conferência realizada em 25/07/86, Salvador, Bahia,
transcrita pela Cooperativa Cultural J. Lacan, Salvador, 1986, p.10.
124
Neste sentido, o termo perversão não designaria nenhuma conduta sexual, mas
permitiria interrogar de uma nova maneira os fenômenos sociais, muitos dos quais
consistiriam em montagens perversas
259
. Podemos acrescentar que esta visão nos permite
refletir acerca das relações com o estranho na contemporaneidade, foco deste estudo:
Nestes termos, podemos afirmar que hoje predomina uma recusa em reconhecer a
familiaridade do outro, do estranho. Este estranhamento radical abre caminho para toda
crueldade, conforme mostramos no capítulo anterior. Se é fato que a crueldade não é algo
exclusivo da contemporaneidade, é importante observarmos como esta tem se
manifestado hoje: por exemplo, sob a forma de uma profunda indiferença pelo Outro,
que, como vimos, pode ser entendida como sendo ligada à crueldade.
Podemos afirmar que a indiferença diante do Outro é um traço básico do
capitalismo atual, “flexível”, cujas características apresentamos acima. Hoje, poucos
agentes operam decisões que têm efeitos sobre muitos, por exemplo, no mercado
econômico, no sistema global. Em grande parte das situações, os efeitos escapam ao
controle de quem os provocou, são efeitos planetários e, em certa medida, indeterminados
(imprevisíveis?). Porém, vemos que os efeitos destes atos sobre os quais ninguém se
responsabiliza - são considerados não imprevisíveis como irrelevantes para seus
objetivos pontuais.
Esta ausência de responsabilidade pode ser entendida como indiferença, que
implica na “coisificação” do outro, sob a forma como esta se apresenta na
contemporaneidade. Neste sentido, podemos dizer que o mais grave hoje não seria a
259
Melman sugere que a recusa (Verleugnung) seria o mecanismo predominante no contexto social atual -
“uma perversão generalizada”, diz, onde haveria uma dependência do objeto cuja captura assegura o gozo,
o que é incentivado pelo consumismo, por exemplo (
Cf. Melman, C. O homem sem gravidade (Gozar a
qualquer preço)
. RJ, Ed. Companhia de Freud, 2003).
125
exclusão ou a rejeição do outro, do estranho. O mais preocupante, neste contexto, seria a
indiferença que incide sobre indivíduos e setores inteiros da sociedade, considerados
“irrelevantes”.
Consideramos então esta indiferença com relação ao outro como uma das formas
de crueldade característica da contemporaneidade. Tal indiferença diante do outro
implica em não reconhecê-lo não alteridade - diferente do ódio, através do qual se
mantém algum lugar para o outro, mesmo que este seja o lugar de inimigo, perseguido ou
perseguidor.
A partir do que Sennett afirma sobre a fragmentação das narrativas na
contemporaneidade, e também das afirmações de Ehrenberg e Lebrun sobre o declínio do
conflito, podemos entender que o conflito depende de uma narrativa capaz de estabelecer
causalidades, que orientem a descarga de agressividade. Onde esta narrativa não se
sustenta, abre-se mais lugar para a crueldade: na negação do conflito a crueldade ganha
força. Sem uma narrativa, o Outro é totalmente estranho, perde toda a legitimidade, e não
identificação possível. A narrativa sobre o conflito inclui a possibilidade de construir
ou reconhecer uma familiaridade com o estranho.
É sobre este tema da agressividade e da crueldade com relação ao estranho,
procurando verificar a especificidade da forma como estas se apresentam na
contemporaneidade, que nos deteremos na próxima parte deste capítulo, tendo como base
os panoramas apresentados nesta primeira parte.
126
Parte 2: Questões para hoje
A partir dos comentários sobre a contemporaneidade apresentados na primeira
parte deste capítulo, passaremos agora a uma discussão acerca de algumas questões que
consideramos importantes sobre as formas como a relação com o estranho pode ser
concebida hoje, levando em conta principalmente as manifestações de agressividade e
crueldade que vemos dirigir-se ao outro na atualidade.
Seguindo este intuito, abordaremos necessariamente temas como o racismo, as
guerras e o terrorismo, questões sempre atuais, mas que adquirem novos aspectos com o
passar dos tempos. Quanto a estes temas, nossa intenção é mais uma vez poder recorrer a
outros campos de saber que contribuam para uma reflexão sobre o social, sem perdermos
de vista nossa base que é o discurso psicanalítico. Neste sentido, evitaremos abordar
situações específicas, privilegiando uma discussão sobre os mecanismos mais gerais dos
fenômenos, pois entendemos que é quanto a isso que a psicanálise tem mais a contribuir.
A única exceção será quanto ao “11 de setembro”, evento que consideramos necessário
nomear e comentar, por sua pertinência quanto ao nosso tema e por representar um marco
cujos efeitos continuam tão presentes quanto mal entendidos.
Antes de tudo, é necessário lembrarmos mais uma vez que as manifestações de
ódio e indiferença não são exclusividade de nossos dias, mas permeiam toda a história da
humanidade. Porém, consideramos que é possível verificar algumas especificidades na
forma como a agressividade e a crueldade têm se manifestado, e acreditamos que esta
forma está relacionada a características da contemporaneidade que descrevemos na
127
primeira parte deste capítulo, dentre as quais podemos ressaltar o declínio dos estados-
nação e a globalização, que levam às novas formas de soberania que comentamos; a
ênfase na individualidade, o curto prazo, a flexibilidade, a instabilidade e o culto à
imagem, que mostramos exercerem efeitos sobre as subjetividades e as relações com a
alteridade que se estabelecem neste contexto.
O multiculturalismo tolerante e a neutralização das diferenças
As análises do contexto social feitas por Hardt e Negri, que comentamos na
primeira parte deste capítulo, apontam para diferenças entre a modernidade e os dias de
hoje, que têm efeitos sobre a concepção do estranho e a relação com a alteridade. A partir
de seus comentários sobre a passagem da organização do mundo dividido em estados-
nação para o Império, vemos que enquanto a modernidade tinha por característica uma
tendência à coletivização, à valorização da ordem e da organização em torno de grandes
grupos, hoje se verifica uma tendência a substituir esta centralização por estratégias de
desregulamentação e privatização. Os autores ressaltam ainda o atual interesse pela
diversificação constante, pela "desordem" e a busca de "novas experiências" estimulada
pelo mercado organizado em função do consumo, interessado em manter essa busca
sempre insatisfeita e por isso constante.
A partir destes dados, Hardt e Negri nos mostram que hoje, no “Império”, as
diferenças são inclusive estimuladas e ressaltadas, que a diversificação, assim como a
fragmentação, estão amplamente de acordo com a sua lógica de funcionamento. Por isso,
os autores mostram-se bastante críticos com relação a um suposto respeito às diferenças
128
na sociedade global: o fascínio pós-modernista pelo “novo”, pelo “diferente”, casa-se
perfeitamente com os ideais capitalistas de consumo, é sua principal estratégia de
marketing.
260
Assim, denunciam o caráter ilusório desta atitude de acolhimento da
alteridade – o suposto “multiculturalismo tolerante pós-moderno” - afirmando que o
objetivo deste funcionamento seria justamente a neutralização das diferenças.
Neste sentido, nos chamam a atenção para um dado importante ao criticarem
algumas das teorias pós-modernistas e pós-colonialistas. Lembram que muitos destes
teóricos defendem uma “política da diferença, fluidez e hibridismo”, com o objetivo de
desafiar os binários essencialismos da soberania moderna. Porém, acreditam que a
afirmação dos hibridismos e das diferenças para além das fronteiras seria libertadora
apenas num contexto de hierarquias, identidades essenciais e divisões binárias. Hoje,
afirmam, as estruturas e lógicas de poder no mundo seriam imunes a essas “armas
libertadoras” da política da diferença pós-modernista, que “o Império também está
empenhado em abolir essas formas modernas de soberania e em permitir que diferenças
atuem através de fronteiras”. Então, o lema de “viva a diferença” parece, ao contrário,
reforçar o Império: Por melhores que sejam suas intenções, portanto, a política pós-
modernista de diferença não é ineficaz contra as funções e práticas da autoridade
imperial como pode até coincidir com elas e apoiá-las”.
261
Assim, se contingência, mobilidade e flexibilidade são o verdadeiro poder do
Império, a “solução” imperial não será negar ou atenuar as diferenças, mas afirmá-las e
incentivá-las. Neste contexto, múltiplas divisões étnicas, por exemplo, favorecem o
260
Hardt, M., Negri, A. Império, op. cit., p.170.
261
Ibid., p.160.
129
controle
262
, por isso a soberania imperial não é organizada em torno de um conflito
central, mas de uma rede flexível de micro-conflitos.
Hardt e Negri criticam duramente o que chamam de uma certa “estratégia
esquerdista reativa”, que afirmaria que “se a dominação capitalista é cada vez mais
global, então devemos resistir defendendo o local e construindo barreiras contra os
fluxos”. Consideram esta visão “localista” falsa e prejudicial: o problema seria a falsa
dicotomia entre global e local, segundo a qual o “global” acarretaria a homogeneização e
a identidade indiferenciada, enquanto o “local” preservaria a diversidade e a
heterogeneidade.
263
Entendem que esta perspectiva “romantiza” relações sociais e
identidades, supondo que as diferenças locais seriam “naturais”. Essa estratégia de defesa
do “local” seria até danosa, por negar o potencial de libertação que existiria dentro do
próprio Império, isto é, por negar o que há de positivo no Império, em termos de
liberdade, de circulação, etc. Neste sentido, o importante seria pensarmos como se a
“produção de localidades”, como a máquina social cria e recria as identidades e as
diferenças que se costuma entender como “locais”. A globalização, como a “localização”,
devem ser entendidas como regimes de produção de identidade e diferença, de
homogeneização e heterogeneização.
Sobre esta questão das diferenças no contexto de globalização, Hobsbawm,
comentando acerca de suas expectativas para o “novo século” (XXI), lembra o fato de
que o processo técnico da globalização requer um elevado grau de padronização e
homogeneização, e acredita que um dos grandes problemas do século XXI será definir
qual o nível máximo de homogeneidade, além do qual haveria uma reação aversiva, e em
262
Ibid., p.220.
263
Ibid., p.63.
130
que medida esse processo pode ser compatibilizado com a diversidade presente no
mundo.
264
Porém, se é fato notório que a globalização difunde amplamente modelos
ocidentais, tendendo a pasteurizar modelos diversos, sob o “rolo compressor do
progresso”, Hobsbawm nos chama a atenção para o fato de que, ao mesmo tempo, vemos
o grande sincretismo tornado possível por esta mesma globalização. No campo da cultura
popular, por exemplo, assistimos a uma assimilação de elementos diversos – a cultura dos
negros americanos, a cultura branca country, a latino-americana, e também as culturas
africana e indiana também propiciada pela globalização, mais especificamente pelas
tecnologias de comunicação e transporte.
265
Assim, devemos notar os dois lados deste
processo, o que pode nos servir para não lamentarmos apenas a tão comentada tendência
à homogeneização do mundo contemporâneo: além da grande proliferação dos modelos
dominantes, a globalização também permite a difusão de modelos minoritários a um
alcance outrora impensável, como se fosse possível também uma certa “globalização das
diferenças”.
Hobsbawm discorda da visão do acirramento das identidades locais como reação
à globalização; acredita que o que tende a prevalecer é a assimilação e o sincretismo
cultural, uma mistura entre as culturas e não necessariamente conflitos entre elas.
Considera uma utopia a idéia de que “um dia todos estarão falando inglês”: uma coisa é
a globalização, real e ampla; outra é o cosmopolitismo, ainda hoje bastante restrito”.
266
264
Hobsbawm, E. O novo século: entrevista a Antonio Polito, op. cit., p.75.
265
Ibid., p.132.
266
Ibid., p.135. Artigo da revista “Primeira leitura”, intitulado “Os últimos dias de Babel?”, cita dados que
indicam que atualmente 96% da população mundial fala apenas 4% das línguas existentes, e que projeções
apontam que 90% dos idiomas não sobreviverão à próxima geração. Porém, o artigo termina por concluir
que mesmo línguas em franca expansão hegemônica, como o inglês, raramente se tornam vernaculares,
incorporadas passivamente por uma dada população. Ainda que termos e expressões sejam muitas vezes
131
Assim, devemos notar que a globalização atesta uma série de contradições que,
segundo Derrida, “estariam destinadas a permanecer, como aporias”: “a globalização não
ocorre nos lugares e nos momentos em que se diz que ela ocorre” e, “em toda a parte
onde ela ocorre sem ocorrer, é para o melhor e para o pior”.
267
Nesta era chamada de
globalização, da qual muitos têm interesse em celebrar seus benefícios, escreve Derrida, a
heterogeneidade das sociedades humanas, as desigualdades sociais e econômicas nunca
foram tão graves e espetaculares na história da humanidade (já que hoje o espetáculo é
mais facilmente “globalizável”). Apenas alguns países e, nestes, apenas algumas classes,
se beneficiam plenamente dos processos de globalização. É neste sentido que Derrida
afirma que, em parte, a globalização não ocorreu, é um simulacro, um artifício ou uma
arma de retórica que dissimula um desequilíbrio crescente.
No entanto, afirma, onde quer que se acredite que a globalização esteja ocorrendo,
“é para o melhor e para o pior”
268
, o que se aproximaria da lógica do pharmakon,
“remédio e veneno”, que comentamos no capítulo anterior. Isso poderia ser observado,
por exemplo, com relação à questão dos avanços tecnocientíficos que, ao mesmo tempo
em que trazem maior “domínio sobre os seres vivos, aviação, novas teletecnologias, e-
mail, Internet, telefones celulares, etc.”; permitem a proliferação de armas de destruição
em massa, ou a difusão em ritmo cada vez mais acelerado de “guerras de imagens e
discursos”.
269
usados na comunicação local e corriqueira, em geral isso ocorre de modo complexo e criativo. Lembram
que muitas vezes esses efeitos beiram o cômico, como acontece por exemplo com o “portunhol” ou o
“hindlish” – inglês falado na Índia. O fato é que vemos formarem-se ativamente novos híbridos, muito
além de uma simples pasteurização.
267
Derrida, J. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos in Borradori, G. (org.) Filosofia em tempo de
terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida. RJ, JZE, 2004, p.131.
268
Ibid., p.133.
269
Ibid., p.134.
132
Não há mais estranhos e só há estranhos
A partir destes comentários que apresentamos acerca da relação com as diferenças
neste contexto de globalização, podemos dizer, sobre o nosso tema do estranho que, ao
contrário de muitas apologias da "nova tolerância pós-moderna", ou de seu suposto "amor
à diferença", a tendência de exclusão do estranho - visto como aquele que atrapalha a
ordem – mantém-se. Sobre esta questão, Bauman comenta que "uma vez que cada
esquema de pureza gera sua própria sujeira e cada ordem gera seus próprios estranhos,
preparando o estranho à sua própria semelhança e medida - o estranho agora é tão
resistente à fixação como o próprio espaço social”.
270
Nesses tempos de
desregulamentação, o Outro se revela múltiplo, localizável por toda parte, mutável
conforme as circunstâncias. Mas, de todo modo, poderíamos considerar que, hoje, o
principal critério de "pureza" seria a capacidade de participar do jogo consumista. Neste
sentido, conforme comentamos na primeira parte deste capítulo acerca da indiferença que
vemos se dirigir a diversos grupos sociais na atualidade, podemos dizer que hoje são
considerados indiferentes radicalmente estranhos aqueles que não têm participação e,
portanto, “não fazem diferença”, no mercado de consumo.
Dissemos também que neste modo de relação com o Outro, onde este é
considerado radicalmente estranho, se daria uma certa experiência do outro sem a sua
alteridade. É esta mesma lógica que Zizek considera presente em diversos segmentos da
sociedade de consumo. A partir de um provocativo paralelo, lembra que hoje
encontramos no mercado uma série de “produtos desprovidos de suas propriedades
malignas”: “café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool...”.
270
Bauman, Z. O mal-estar na pós-modernidade. RJ, JZE, 1998, p.23.
133
Segundo esta mesma lógica poderíamos incluir o sexo virtual “o sexo sem sexo”, a
pretensão de uma guerra sem baixas “uma guerra sem guerra”, etc. Zizek nesses
casos uma experiência do Outro sem a sua Alteridade”, análoga a certas experiências
com o estrangeiro onde estaria em questão, por exemplo, um Outro idealizado que tem
danças fascinantes e uma abordagem holística ecologicamente sadia da realidade,
enquanto práticas como o espancamento ficam ocultas...”.
271
Vemos freqüentemente o fascínio pelo “exótico estrangeiro”, admirado através
dos olhares atentos de turistas protegidos dentro de seus “guetos turísticos”, onde se
busca garantir uma certa segurança, uma proteção contra os perigos dos “selvagens”,
como a pobreza, sujeira e doenças. Não é difícil notar que não qualquer encontro
com o estrangeiro e sua alteridade, mas apenas a paralisia e a idealização pelo olhar
fascinado.
Por outro lado, é preciso que estejamos atentos a certos discursos sobre a questão
das diferenças que, na verdade, apagam as diferenças: “os diferentes são iguais”. Neste
sentido é importante notarmos que um excessivo "relativismo cultural" pode nos levar
mais a uma aceitação passiva de múltiplas identidades culturais do que a uma verdadeira
"experiência do estrangeiro" - que pode ser fecunda ao fazer vacilar as certezas, o excesso
de confiança no "próprio" e no "familiar".
Entendemos que as duas situações descritas acima evidenciam os dois modos de
relação com o outro predominantes na atualidade, segundo a hipótese que apresentamos
na primeira parte deste capítulo. No primeiro caso, há um Outro tão distante, com quem o
sujeito não é capaz de qualquer identificação o Outro que morre de fome na África,
271
Zizek, S. Bem-Vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas.
SP, Boitempo editorial, 2003, p.24.
134
que mora na favela, que pede esmolas na rua, etc. Já na segunda situação, o outro é um
semelhante, com quem o sujeito busca uma fusão, anulando sua alteridade. Nos dois
casos parece não haver o reconhecimento de uma alteridade que implicaria num meio
termo, “entre” estranheza e familiaridade. Neste ponto podemos afirmar que não uma
verdadeira oposição entre separação e identificação: é preciso que haja uma certa “não-
apropriação” do Outro, logo, uma certa separação, para haver uma identificação que
permita um laço social. Assim como a separação total que, como vimos, pode levar à
indiferença e à crueldade com relação ao outro, a ligação absoluta também é mortífera,
que a extrema proximidade que cola os sujeitos tampouco permite espaço para o
reconhecimento da alteridade.
Há um novo racismo?
Mostramos acima que devemos desconfiar de discursos que repetem lemas como
“viva a diferença”, ou que pressupõem que vivemos tempos de um “multiculturalismo
tolerante”. Dissemos que hoje se mantém a exclusão do estranho, tido como aquele que
atrapalha a ordem, e que haveria uma grande dificuldade quanto ao reconhecimento da
alteridade. Se os tempos atuais estão marcados por uma concordância quanto ao fato de que
a diferença não só é inevitável, como é boa e deve ser cultivada, veremos a seguir que esse
discurso pode ser usado inclusive como tentativa de legitimação de uma posição agressiva,
na defesa de ideais racistas, que afirmam que as diferenças são produtos humanos,
culturalmente produzidas, mas não devem ser misturadas.
135
Propomos a discussão da hipótese de que haveria uma especificidade no racismo
atual, que não se basearia mais em distinções entre raças. Diversos cientistas têm
comprovado a inadequação e o caráter arbitrário das divisões dos homens em raças. Dentre
eles podemos ressaltar o trabalho de Cavalli-Sforza
272
, geneticista italiano, que apresenta
uma tese que comprova a íntima relação entre material genético e cultura, permitindo um
profundo questionamento sobre o conceito de raça. Este autor defende a teoria segundo a
qual genes, povos e línguas são totalmente articulados, concluindo que as diferenças
genéticas entre os diversos povos são bastante superficiais e que, portanto, o racismo seria
uma falácia, passível de ser cientificamente desvelada.
O autor apresenta uma interessante abordagem de pesquisa histórica baseada na
análise da herança biológica, tendo percebido que usando informações de nossos genes
atuais é possível reconstruir boa parte de nossa história, desde pelo menos o Paleolítico.
Seria impossível entrarmos aqui nos meandros desta rica pesquisa, por isso, ressaltaremos
deste estudo sua conclusão, que demonstra a fragilidade e as simplificações das
classificações raciais.
Cavalli-Sforza mostra que a genética é tão fundamental em nossa constituição
quanto o são os ambientes cultural, social e físico em que vivemos, e que as diferenças
genéticas mais marcantes são as que existem entre indivíduos, e não entre populações ou
entre as ditas “raças” humanas. As diferenças de ordem genética entre as raças não
apenas são pequenas (e rapidamente se tornam ainda menores com a aceleração recente
dos meios de transporte e do intercâmbio migratório e cultural), como também são
superficiais, e podem ser atribuídas basicamente a reações aos diferentes climas em que
vivemos. Afirma que se observou que quase todo grupo humano de um vilarejo nos
272
Cavalli-Sforza, L. L. Genes, povos e línguas. SP. Ed. Cia das Letras, 2003.
136
Pirineus a uma aldeia de pigmeus na África apresenta distância média similar entre os
indivíduos: Não importa qual o tipo de marcador genético utilizado (dentre uma gama
bastante ampla), a variação entre dois indivíduos escolhidos a esmo numa população
será de cerca de 85% daquela existente entre dois indivíduos da população mundial
escolhidos aleatoriamente”.
273
Além disso, existem sérias dificuldades em se estabelecer uma distinção entre
diferenças genéticas e culturais, entre o inato e o adquirido. Afirma que para obter-se uma
“pureza” parcial, ou seja, uma homogeneidade genética que nunca ocorre
espontaneamente em populações de animais superiores, precisaríamos de, no mínimo,
vinte gerações de endogamia. O autor lembra que tamanha consangüinidade certamente
teria conseqüências severas sobre a saúde dos filhos. Assim, não é verdade que não
existe “pureza racial” na natureza, como se trata de algo absolutamente inalcançável e
mesmo indesejável.
A partir destes dados, o cientista se pergunta, afinal, o que poderíamos denominar
hoje uma “raça”, que este termo pressupõe um grupo de indivíduos que possam ser
reconhecidos como biologicamente semelhantes entre si e diferentes de outros. Lembra
que houve inúmeras tentativas científicas de classificar raças até o final do século XIX, e
que seus resultados, muitas vezes contraditórios, constituem um bom indício da
dificuldade do empreendimento:
“Darwin compreendeu que a continuidade geográfica frustraria toda tentativa de
classificar as raças humanas. Ele observou um fenômeno recorrente ao longo da
história: diferentes antropólogos chegaram a contagens totalmente discrepantes do
número de raças – de três a mais de cem”.
274
273
Ibid., p.50.
274
Ibid., p.47.
137
Assim, mostra que a grande maioria das classificações práticas é extremamente
simplista, e que a proposta de uma classificação mais aperfeiçoada poderia redundar
em fracasso. Deste modo, sugere então que se deveria abandonar qualquer tentativa de
classificação racial segundo critérios tradicionais.
275
Cavalli-Sforza termina discorrendo brevemente sobre “o futuro da humanidade”,
prevendo que haverá uma crescente mistura entre as populações, e que as diferenças
genéticas entre os grupos tendem a diminuir. Porém, acredita que a diversidade global
geral não mudará e que as diferenças entre indivíduos da mesma população irão
aumentar. E afirma, otimista: Portanto, haverá ainda menos motivos para o racismo, e
isso é bom”.
276
Entretanto, não podemos compartilhar do otimismo do geneticista quanto ao
futuro do racismo. Balibar
277
é um autor que se propõe a refletir acerca do racismo no
mundo de hoje, mostrando que a lógica racista permanece bastante presente na
contemporaneidade, apesar de ter passado por certas transformações. Questiona em que
medida convém falarmos de um “novo racismo” na atualidade, que hoje quase todos
concordam que não existem raças como unidades biológicas isoláveis, e que os
comportamentos dos indivíduos e suas aptidões não podem ser explicados por seus genes,
275
Apesar desta conclusão acerca da inadequação das classificações raciais, há uma questão polêmica que
gostaríamos apenas de apontar, apesar de não podermos discuti-la em profundidade: ainda assim o autor
considera que as diferenças genéticas podem ser importantes e úteis do ponto de vista prático, por exemplo,
por serem capazes de determinar as chances de se contrair determinadas doenças e da reação similar às
mesmas drogas; neste sentido, cita doenças como a anemia falciforme, que afeta sobretudo os africanos, e a
talassemia que afeta povos do sul da Europa (Cavalli-Sforza, L. L.
Genes, povos e línguas, op. cit., p.50).
Este tema é bastante controverso e tem sido tema de diversos artigos, não só em revistas especializadas,
mas também em jornais, como lemos em O Globo de 27/10/04, cujo artigo intitulado “Drogas étnicas
suscitam temor de racismo”, citava numerosos estudos americanos que associam variações entre raças e
aplicações em medicina, como por exemplo um medicamento para insuficiência cardíaca exclusivamente
voltado para negros.
276
Cavalli-Sforza, L. L. Genes, povos e línguas, op. cit., p.266.
277
Balibar, E. Y a-t-il un « néo-racisme » ? in Balibar, E. e Wallerstein, I. Race, Nation, Classe: les
idéntités ambigües. Paris, Éditions la Découverte, 1990.
138
ou pelo seu “sangue”, mas sim por seus pertencimentos culturais e históricos. Porém, este
autor mostra que hoje as diferenças biológicas foram substituídas por indicadores
culturais como a representação mais importante do ódio e do medo raciais, e denominou
este fenômeno “racismo diferencialista”, cuja teoria reconhece que não é possível a
divisão em raças humanas, mas considera as diferenças culturais como irredutíveis.
Hardt e Negri também comentam sobre a questão do racismo nos dias de hoje, e
mostram que, na verdade, a teoria racista atual coopta e recruta a seu favor os argumentos
do anti-racismo moderno. Por exemplo, podemos citar o caso da antropologia cultural,
que sempre foi orientada para o reconhecimento da diversidade das culturas e da
importância de sua permanência ao longo da história, e forneceu grande parte de seus
argumentos ao anti-racismo humanista e cosmopolita do pós-guerra, contribuindo
também na luta contra a hegemonia de certos imperialismos uniformizadores, e contra a
eliminação de civilizações minoritárias ou dominadas. Porém, hoje quase todos
reconhecem que as diferenças não são fixas e imutáveis, mas efeitos contingentes da
história social. É justamente nesta idéia que o atual discurso racista se apóia, defendendo
a manutenção das diferenças – desde que separadas. Neste sentido, o racismo imperial e o
anti-racismo moderno praticamente, e perigosamente, coincidem.
278
É justamente por
esse argumento relativista e culturalista que o racismo imperial pode não parecer racista.
Comentamos anteriormente que, para o funcionamento imperial, é inútil e até
perigosa a mistura de culturas diferentes: sérvios e croatas, hutus e tutsis, afro-americanos
e coreano-americanos, etc., precisam ficar separados. É importante acrescentar que os
micro-conflitos e esta fragmentação são até mesmo incentivados no Império, já que
favorecem o controle imperial (pelos danos causados, que enfraquecem os próprios
278
Hardt, M., Negri, A. Império, op. cit., p.211.
139
grupos), estimulam o consumo (“um produto exclusivo para cada perfil”), e mantêm
aquecida a milionária indústria bélica.
Balibar mostra que o racismo diferencialista utiliza-se da argumentação segundo a
qual a mistura das culturas, ou a supressão de “distâncias culturais”, corresponderia à
“morte intelectual da humanidade”. A teoria racista imperial não costuma se referir, ao
contrário do racismo moderno, a uma hierarquia entre raças superiores e inferiores.
Atenta ao “politicamente correto”, a divisão hierárquica hoje é vista como um “produto
cultural”, que surgiria da “livre competição”, como na economia de mercado. Porém, é
importante notarmos que se mantém, mesmo disfarçada, uma certa divisão em
hierarquias no novo racismo, que se expressa hoje na prevalência do “modelo
individualista”: as culturas consideradas “superiores” seriam aquelas que valorizam e
favorecem a iniciativa privada, o individualismo social e político, em oposição àquelas
que o inibem.
279
Vemos então que a biologia ou a genética não são os únicos modos de se
“naturalizar” os comportamentos humanos ou os pertencimentos sociais, e que a cultura
também pode funcionar como uma “natureza”, como um modo de enquadrar a priori os
indivíduos e grupos numa genealogia, numa determinação de origem imutável. Segundo
a doutrina do racismo diferencialista, se a diferença cultural irredutível seria o verdadeiro
“meio natural” do homem, então o apagamento dessa diferença provocaria
necessariamente reações de defesa, conflitos “étnicos” e aumento geral da agressividade,
o que seria “natural”. Nesse sentido, afirma Balibar, as doutrinas diferencialistas
naturalizam não só o pertencimento social, mas o próprio comportamento racista, a
279
Balibar, E. Y a-t-il un « néo-racisme » ?, op. cit., p.39.
140
agressividade social, seduzindo facilmente as massas ao apresentarem explicações para
sua própria “espontaneidade”, seus “movimentos irracionais de agressividade coletiva”.
Em sua análise, Balibar detém-se na questão dos imigrantes, principalmente na
situação atual dos árabes na França, e quanto a isso comenta que a assimilação lá exigida
para o sujeito “se integrar” à sociedade é freqüentemente apresentada como um
“progresso”, uma “concessão de direitos”. Observa que na Europa de hoje a categoria de
“imigrante” tem substituído a noção de “raça” no discurso racista. Ideologicamente,
afirma, o atual racismo europeu, centrado sobre o complexo de imigração, se inscreve no
quadro de um “racismo sem raças”, “diferencialista”
280
; trata-se de um racismo cujo tema
dominante não é a hereditariedade biológica, mas a irredutibilidade das diferenças
culturais. Aparentemente, esse racismo não postula a superioridade de um grupo em
relação a outros, mas “apenas” a incompatibilidade dos estilos de vida e das tradições e o
caráter nocivo do apagamento das fronteiras. Ressalta que não se trata de uma simples
operação de camuflagem do infame termo “raça”, nem de uma simples conseqüência de
transformações da sociedade. Este “novo racismo” estaria ligado ao novo contexto de
descolonização, um momento de inversão dos movimentos de população entre as antigas
colônias e suas metrópoles.
Sobre a especificidade deste racismo europeu atual, dirigido ao estranho-
imigrante, Enriquez
281
comenta que este sujeito que hoje abandona o próprio território em
busca de acolhimento em terra estrangeira, e que em geral passará a exercer atividades
rejeitadas, mas necessárias na sociedade, e sealojado em porções também rejeitadas do
território, é freqüentemente visto como um “intruso”. Estes imigrantes, como “nômades”,
280
Ibid., p.32.
281
Enriquez, E. Chemins vers l’autre, chemins vers soi in Mappa, S. (org.) Ambitions et illusions de la
coopération Nord-Sud : Lomé IV. Paris, L’Harmattan, 1990.
141
pessoas “sem terra”, errantes, sem laços, podem ser sentidos como uma ameaça de
dissolução da comunidade, como ladrões em potencial do fruto do trabalho comum.
Alguém “sem estado”, observa Enriquez, coloca sempre em causa o estado em que se
encontra, coloca em questão os preconceitos, estereótipos e costumes que estão na base
da sociedade, por isso é sentido como uma ameaça. Vindo de fora, este estranho não
considera as leis e costumes do lugar como derivados da natureza das coisas, mas como
uma construção particular e provisória. Este Outro faz lembrar que aquela cultura não é a
única, mas uma entre tantas outras, atravessada por conflitos e contradições. Uma pessoa
sem terra, sem estado, no entender de Enriquez, seria um símbolo do fluxo, da circulação
pulsional. Este nômade seria assim facilmente visto como portador de pulsões eróticas ou
destrutivas, sendo geralmente identificado ao “impuro”, ao “dejeto”, ao “risco de
infecção”.
Assim, hoje, junto com as “celebrações dos fluxos ilimitados de nossa aldeia
global”, sentimos uma certa nostalgia da “higiene colonialista”, de um tempo em que as
fronteiras pareciam mais nítidas e definidas, assim como os estranhos, mantidos a uma
distância mais “segura”. O fato é que as fronteiras são cada vez mais permeáveis a todo
tipo de fluxo, e nada pode trazer de volta os “escudos higiênicos das fronteiras coloniais”.
É neste sentido que Hardt e Negri afirmam: a era da globalização é a era do contágio
universal”.
282
O fim das “guerras”
282
Hardt, M., Negri, A. Império, op. cit., p.153.
142
Neste contexto de fronteiras permeáveis a todos os tipos de fluxos de pessoas,
povos inteiros, tecnologia, informação, cultura, religião, etc – afirmamos que os conflitos,
longe de terem se tornado mais raros, proliferaram sob a forma de micro-conflitos, o que
se casa perfeitamente bem com o funcionamento imperial.
Alguns autores têm se dedicado a pensar qual a especificidade dos conflitos que
temos visto se manifestar na contemporaneidade. É fato notório que o conflito entre
estados soberanos - aquilo que entendíamos até o momento como “guerra” - não se
apresenta mais do mesmo modo, o que exige novas reflexões.
Zizek é um dos autores que concordam quanto ao fato de que na nova ordem
global não existem guerras no sentido antigo, de um conflito regulado entre estados
soberanos em que se aplicavam certas regras (tratamento de prisioneiros, proibição de
certas armas, etc.). No contexto atual, afirma Zizek, restariam dois tipos de conflitos: os
chamados “conflitos étnico-religiosos”, que violam as regras dos direitos humanos
internacionais, e por isso não são considerados “guerras” propriamente ditas - o que
exigiria a presença de “intervenção pacifista humanitária” das potências ocidentais; ou
ataques diretos contra algum representante da “nova ordem global”, onde também não
haveria uma guerra propriamente dita, mas apenas “combatentes ilegais”, “criminosos
que resistiriam às forças da ordem universal”.
283
Hobsbawm também comenta sobre as guerras atuais, dedicando-se a pensar de
que modo a natureza geral da guerra mudou. O autor acredita que a grande novidade é
que a linha divisória entre os conflitos internos e os internacionais desapareceu ou tende a
desaparecer, o que pode ser verificado, por exemplo, através do fato de que hoje exércitos
283
Zizek, S. Bem-Vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas,
op. cit., p.113.
143
estrangeiros freqüentemente atravessam fronteiras nacionais para solucionar conflitos
internos em estados soberanos. Isto significa, segundo a análise do autor, que a distância
entre a guerra e a paz também diminuiu. Segundo Hobsbawm, esta seria uma das
conseqüências do fim da guerra fria: Durante esse período, a relativa estabilidade do
mundo baseava-se essencialmente em uma regra de ouro do sistema internacional: não
se atravessa a fronteira de outro estado soberano, pois isto resultaria num desequilíbrio
da balança de poder”.
284
Porém, as antigas regras de guerra e paz não se aplicam mais,
daí vermos tantas discussões sobre a legalidade ou ilegalidade de diversas guerras atuais,
manifestações de nossa perplexidade diante de fenômenos totalmente novos.
Além disso, podemos constatar também uma grande transformação das guerras,
ocasionada pelos avanços tecnológicos. Hoje o poder de destruição é bem mais preciso e
seletivo, o que permite restaurar a distinção entre combatentes e não-combatentes. Porém,
isso possibilita o recurso cada vez mais freqüente aos meios de destruição, “torna-se mais
fácil sucumbir à tentação de resolver os problemas com bombardeios”; e uma
subestimação dos riscos que se costuma denominar “danos colaterais”, como a morte de
inocentes e a destruição de infra-estrutura. Hobsbawm lembra ainda que devido ao
enorme hiato entre os povos que têm e os que não têm acesso à tecnologia, vemos hoje,
ao mesmo tempo, guerras de alta tecnologia, e outras onde prevalece o confronto corpo a
corpo, entre homens armados com facões.
Hardt e Negri, com relação a esta questão das guerras atuais, comentam o fato de
que temos assistido a um perigoso renascimento do conceito de “guerra justa”, conceito
este que era ligado às antigas ordens imperiais e à tradição bíblica. Hoje, ao poder único
do “Império” são permitidas “guerras justas” nas suas fronteiras - contra os “bárbaros” - e
284
Hobsbawm, E. O novo século: entrevista a Antonio Polito, op. cit., p.17.
144
internamente - contra os “rebeldes”. Porém, o conceito atual de “guerra justa” traria
inovações fundamentais com relação às noções antigas e medievais: hoje o inimigo,
como a própria guerra, é banalizado (reduzido a objeto de rotineira repressão policial) e
tornado absoluto (como Inimigo, uma ameaça total à ordem ética)”.
285
Através das novas
formas de intervenção por parte da máquina imperial, vemos que se trata de um poder
que se pretende “moral”, onde os “inimigos do Império” representam mais uma ameaça
ideológica do que um desafio militar (geralmente uma intervenção moral que prepara
o palco para uma intervenção militar).
286
Se é consenso entre diversos autores, como mostramos acima, o fato de que as
guerras hoje apresentam certas especificidades que as distinguem dos conflitos
predominantes na modernidade, Derrida vai mais além e propõe uma desconstrução do
próprio termo “guerra”, chegando a afirmar que este conceito teria chegado ao seu fim.
Derrida se pergunta “o que acontece hoje com a política e a ‘guerra’ quando o
velho fantasma da soberania do Estado perde a sua credibilidade”. Mantém entre aspas o
termo “guerra”, por considerar que estaríamos vivendo hoje um “fim da guerra”, do
próprio conceito de guerra, de toda guerra - internacional, civil, ou até de guerrilhas.
287
Mas ressalta que o fim deste conceito não significaria, de modo algum, a “paz”. Lembra
que tal conceito se liga à suposta soberania do estado, e do inimigo como um estado, ou
estado-nação. Porém, quando, nesse contexto de globalização, a racionalidade dos
direitos humanos invade a soberania dos estados-nação como em iniciativas
humanitárias, ONGs, no projeto de um tribunal penal internacional, etc. perdem sua
285
Hardt, M., Negri, A. Império, op. cit., p.30.
286
Ibid., p.55.
287
Derrida, J. Voyous. Paris, Ed. Galilée, 2003, p.174.
145
pertinência os conceitos de guerra, guerra mundial, ou mesmo inimigos; termos que
implicariam uma distinção entre força civil e militar, exército e polícia, etc.
288
Em “Estados-da-alma da psicanálise”, Derrida refere-se à “nova cena” estruturada
desde a Segunda Guerra Mundial, por “performativos jurídicos inéditos”: a nova
declaração dos direitos do homem – e da mulher -, a condenação do genocídio, o conceito
de “crime contra a humanidade”, a criação, em andamento, de novas instâncias penais
internacionais, a luta contra a pena de morte. No contexto desta “nova cena”, convoca: “É
necessário um novo discurso sobre a guerra. Nós esperamos, atualmente, novas
‘Considerações atuais sobre a guerra e a morte’ (Freud, 1915), ou um novo ‘Por que a
guerra’ (Freud, 1932), ou, pelo menos, novas leituras dos textos desse gênero”.
289
Derrida retoma esta mesma reflexão sobre a “guerra” no livro “Voyous”,
lembrando que uma nova violência se prepara, uma violência que não vem mais da
guerra mundial, nem de qualquer guerra, ou de algum direito de guerra: hoje não há mais
nada que possamos chamar rigorosamente de guerra, “... mesmo se, através de discursos
retóricos armados, temos necessidade de fazer crer que se parte em guerra, ou que se
prepara uma guerra contra tal ou tal força inimiga organizada como um Estado ou como
uma estrutura de acolhimento estatal do inimigo”.
290
É claro que ouvimos ainda o
barulho, o tumulto efetivo dessas mobilizações de “guerra”. Mas não devemos esquecer
que se trata de “projeções e denegações”, ou, “o que a psicanálise denominaria
288
Ibid., p.212.
289
Derrida, J. Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade. SP, Ed.
Escuta, 2001, p.21.
290
Derrida, J. Voyous, Paris, Ed. Galilée, 2003, p.214.
146
‘racionalizações’”
291
, ou seja, uma tentativa de nomear um perigo que não se sabe de
onde vem.
A razão do mais forte
Neste livro intitulado “Voyous”, partindo das transformações produzidas pela
globalização, incluindo a questão das “guerras” atuais, Derrida dedica-se a uma análise
crítica acerca da soberania nos dias de hoje, mais precisamente sobre a hegemonia
imperial. A partir deste contexto, nos mostra o que tem levado esta soberania imperial a
adotar o termo États Voyous” ou “Rogue Statespara referir-se a alguns estados, e o que
estaria por trás de tal denominação: Derrida lembra que a expressão Rogue States
apareceu no discurso diplomático americano após o fim da guerra fria.
292
Até os anos 60
o termo era pouco usado, e referia-se à política interna de regimes pouco democráticos,
que não respeitavam o “Estado de direito”. O uso do termo se intensificou nos anos 80 e
principalmente 90, após a dissolução do bloco comunista, tendo como referência um
suposto “terrorismo internacional”. Derrida considera esta denominação uma
“racionalização”, articulada pelos estados hegemônicos, que consistiria em acusar e partir
em guerra contra certos estados escolhidos como alvos.
291
Idem.
292
Ibid., p.137.
147
État Voyou” é a tradução francesa para Rogue State
293
: “Estado que não
respeita seus deveres diante das leis da comunidade e do direito internacional”.
294
O
termo voyou é geralmente um adjetivo pejorativo, jamais neutro, constitui quase
sempre uma acusação, uma avaliação normativa, referente à ordem. Além disso, voyou
é sempre o outro
295
, apontado pela ordem moral ou jurídica; o chamado “voyou” é aquele
que introduz a desordem na rua, na vizinhança. Sempre atento às questões etimológicas,
Derrida lembra que o termo inglês rogue” pode ser usado também para animais e
vegetais, referindo-se àqueles que apresentam comportamento desviante ou perverso, fora
das regras de sua própria comunidade. No reino animal, rogueé definido como uma
criatura diferente desde o nascimento: incapaz de se misturar ao bando, permanece
sozinho e pode atacar a qualquer momento, sem avisar”.
296
Se o termo voyouconsiste sempre em uma denúncia, uma queixa ou acusação,
vemos como esta denominação anuncia e começa a justificar uma sanção: o État-voyou
deve ser punido, contido, “pela força do direito e pelo direito da força”. Hoje alguns
estados acusam outros estados de serem voyous”, e entendem poder tirar daí
conseqüências “armadas”, usando a força, em nome de um presumido direito e de uma
“razão do mais forte”
297
, em ações que não sabemos mais como qualificar: exército ou
polícia, operações de guerra ou de manutenção da paz...
298
293
A tradução para o português, bastante imprecisa, costuma ser “Estados hostis” ou, ainda, por vezes
encontramos a expressão “Eixo do Mal” como referência a estes Estados.
294
Derrida, J. Voyous, op. cit., p.12.
295
Nunca se diz “je suis un voyou”, soa estranho em francês, comenta Derrida.
296
Derrida, J. Voyous, op. cit., p.135. Cabe pensarmos se tal denominação – “rogue” ou “voyou” –
implicaria numa certa “desumanização” do outro, a partir do que, como dissemos no capítulo anterior,
nenhum laço social é possível.
297
Com esta expressão Derrida refere-se à fábula de La Fontaine – “O lobo e o cordeiro” – cuja epígrafe -
“A razão do mais forte é sempre a melhor” - serve de ponto de partida para este livro, “Voyous”:
“Um cordeirinho bebia
Numa fonte de água pura.
Veio um lobo em jejum, em busca de aventura,
148
Derrida comenta que foi principalmente a partir de 1993, após o “desabamento”
da URSS, que os EUA inauguraram sua política de sanções e represálias contra os États
voyous”, declarando nas Nações Unidas que “agiriam de maneira multilateral se possível,
mas de maneira unilateral se necessário”. Para justificar essa “unilateralidade soberana”,
essa não-divisão da soberania, essa violação de uma instituição supostamente
democrática, para dar uma razão a essa “razão do mais forte”, era necessário decretar que
o tal estado tido como agressor ou ameaçador agia enquanto um État voyou”. Assim,
États voyous eram aqueles que os EUA definiam assim, ao mesmo tempo em que
agiam eles mesmos como “voyous”, de modo unilateral.
Durante a Guerra Fria, havia certa possibilidade de cálculo e previsão, de
“identificação com o inimigo” e sua lógica. A URSS tinha a mesma lógica ocidental, não-
suicida, logo, sensível aos recursos de dissuasão, o que permitia a segurança da
E que a fome a essas plagas conduzia.
‘Quem coragem te dá de sujar-me a bebida?
Disse-lhe a fera enfurecida:
Tu serás castigado em tua temeridade.
- Senhor, diz o cordeiro, Vossa Majestade
Em fúria não esteja;
Mas antes ela veja
Que estou aqui bebendo
A água correndo
Abaixo a vinte passos d’Ela,
E, em conseqüência, nunca eu ia poder
Sujar-lhe a água de beber.
- Tu a estás sujando, emenda a fera bruta,
E sei que, há um ano ou mais, critícas-me a conduta.
- Como o teria feito? Eu nem era nascido!
Retomou o cordeiro, e ainda estou mamando.
- Se não és tu, é o teu irmão.
- Não tenho irmão. – É um dos teus, garanto:
Pois me mantendes em afãs, (No original: “
Car vous ne m’épargnez guère”)
Tu, os pastores e os cães.
Já me disseram:
Vou vingar tantas maldades’. (No original : “
Il faut que je me venge”.)
Mato adentro, sem demora,
O lobo o arrasta e o devora,
Sem mais quaisquer formalidades”. (No original: “
Sans autre forme de procès”.)
298
Derrida, J. Voyous, op. cit., p.117.
149
possibilidade de previsão, baseada na identificação. Hoje, porém, esta violência não vem
mais de uma guerra entre estados, tampouco deriva de uma guerra civil, de uma
insurreição nacional, ou de um movimento de liberação destinado a tomar o poder sobre
um estado-nação. Atualmente a “ameaça” não vem mais de nenhum estado, nem de um
estado voyou”; o que torna inúteis todas as despesas retóricas, e militares, que visam
justificar o uso do termo “guerra”.
Assim, Derrida critica duramente o uso desta denominação États voyous”, e
conclui afirmando que, de fato, États voyous”, que todo estado soberano está
virtualmente e a priori em estado de abusar de seu poder e de transgredir, como um “État
voyou”, o direito internacional: algo de ‘État voyou’ em todo Estado”.
299
O uso do
poder de estado é originalmente excessivo e abusivo, como também é o recurso ao terror
e ao medo, que sempre foram a fonte última do poder soberano do estado, seja de modo
implícito ou explícito, grosseiro ou sutil - Alegar o contrário é sempre uma denegação,
uma racionalização”.
300
Considera que aqueles estados que se outorgam o direito de
denominar qualquer outro como voyou”, na verdade agem como voyous”; logo, “só
há États voyous, e não mais État voyou
301
; “este conceito chegou a seu limite e ao
fim de sua época”.
Assim, o fim dos États voyous”, assim como o fim das “guerras”,
corresponderiam ao fim de todo um funcionamento compreendido segundo uma lógica
binária, de oposições duais, onde os conflitos eram mais claros e delimitados, e o
“Outro”, ou o “inimigo”, era facilmente identificável.
299
No original : “Il y a de l’État voyou dans tout État”. (Ibid., p. 215)
300
Idem.
301
No original : “Il n’y a donc plus que des États voyous et il n’y a plus d’État voyou”.
150
“O 11 de setembro”
Depois de 1990 e do colapso dos estados comunistas que proviam a figura do
“inimigo” durante a Guerra Fria, comenta Zizek, o poder de imaginação do Ocidente
passou por uma década de confusão e ineficácia, procurando ‘esquematizações’
adequadas para a figura do Inimigo...”.
302
Porém, com “o 11 de setembro” - data que se
tornou sinônimo do evento que abalou o mundo em 2001
303
, o atentado contra as Torres
Gêmeas em Nova York - a figura do “inimigo” e a lógica de oposição do “bem contra o
mal” voltou a ser configurada, não mais tendo como alvo algum “império do mal”,
alguma entidade territorial, mas uma “rede mundial secreta” – quase virtual.
Logo após o 11/09 seguiu-se uma perigosa pressa em fechar sentidos; naquele
momento, para enfrentar a perplexidade, a tendência era o acirramento das identidades
(notou-se por toda parte uma exacerbação dos nacionalismos, sobretudo o americano), o
que tornava o terreno cada vez mais fértil para as piores formas de violência. Sem
maiores reflexões, assistimos ao recrudescimento de diversas manifestações do
“narcisismo das pequenas diferenças”
304
: “Eles”, os terroristas, os muçulmanos, o Islã, ou
até mesmo os árabes em geral, foram colocados no lugar de “Outro”, “tudo aquilo que
nós não somos”.
305
As palavras mais sensatas naquele momento foram as de alguns escritores e
filósofos, aqueles que lidam com a ficção e a linguagem, e que foram capazes de
302
Zizek, S. Bem-Vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas,
op. cit., p.130.
303
Derrida considerou “o 11/09 uma data indispensável para nos referirmos de modo breve a um evento ao
qual não corresponde nenhum conceito” (Derrida, J.
Voyous, op. cit., p.213).
304
Sobre esta noção de “narcisismo das pequenas diferenças”, e seu papel na constituição e na manutenção
dos grupos, ver capítulo II desta tese.
305
No próximo tópico veremos com mais detalhes o mecanismo de constituição deste “Outro-estranho”.
151
considerar os matizes da situação, enquanto a maioria dos políticos, movidos pelo
impacto do evento, retomavam o velho discurso do “bem contra o mal”, referindo-se aos
“inimigos” como “bárbaros” e guardando para si o título de “civilizados”.
306
Derrida foi
um dos filósofos que se dedicaram a analisar a situação, afirmando com veemência que
“um evento como o 11 de setembro requer uma resposta filosófica”
307
; criticou
duramente os discursos correntes, principalmente aqueles das mídias e da “retórica
oficial” que, em seu entender, confiariam fácil demais em conceitos como o de “guerra”
ou de “terrorismo”.
A escolha de designar esses atentados por uma data, “o 11/09”, segundo Derrida,
conferiu ao evento uma importância histórica, o que seria de interesse tanto das mídias
ocidentais como dos responsáveis pelo atentado. Este evento teria sido constituído como
um acontecimento público e político por uma potente “’midiateatralização’ calculada de
ambas as partes”. Aliás, essa “midiateatralização”, segundo o filósofo, seria parte
integrante e co-determinante deste evento.
308
A partir de uma análise do 11 de setembro, Derrida nos apresenta a sua hipótese
de que a época dos “États Voyous”, que teria começado com o fim da guerra fria, durante
a qual as duas superpotências acreditaram que poderiam manter a ordem no mundo a
partir do terror nuclear, teria tido seu fim anunciado, “de modo teatral”, no dia 11 de
306
Luis Fernando Veríssimo, em O Globo, 21 de setembro de 2001, no artigo intitulado “Nuances”,
alertava para o “perigo das simplificações”: “O que o mundo mais precisa no momento é de gente disposta
a insistir que não é bem assim, que nada, nunca, é bem assim. Precisamos de sofismas, desconversas e
‘peraís’ generalizados. Precisamos, urgentemente, de protelação criativa. Ou os simples nos matam”.
307
Logo após os atentados, entre outubro-dezembro de 2001, Derrida, assim como Habermas, concederam
longas entrevistas em Nova York, publicadas em livro em 2003, nas quais comentaram o evento do 11 de
setembro, respondendo ainda a questões acerca da globalização e do terrorismo, visando sempre discutir
nesse campo qual o papel que caberia à filosofia. O livro - “Le ‘concept’ du 11 septembre” - foi traduzido
e publicado no Brasil sob o título “Filosofia em tempo de terror: diálogos com Habermas e Derrida”, que
citamos aqui em alguns momentos.
308
Derrida, J. Voyous, op. cit., p.213.
152
setembro de 2001. Considera que algo se explicitou e confirmou naquele dia “um dia
que não foi tão imprevisível assim”. Segundo a perspectiva de Derrida, aquela ameaça já
havia sido imaginada desde a aparição do termo “État voyou”. Derrida considera o
“desabamento” da URSS marco inicial da época dos États voyous- como uma das
premissas do desabamento das duas torres. Mas até então, afirma, esta ameaça era
identificada, em sua origem, a estados, potências organizadas e estáveis, localizáveis,
“não-suicidas”. Junto com as duas torres do World Trade Center, comenta, teria desabado
“visivelmente” todo o dispositivo lógico, semântico, retórico, jurídico e político, que
tornava útil e significativa a denominação “États voyous”.
Derrida considera que o 11 de setembro consistiu num verdadeiro “trauma”, nos
EUA e no mundo; porém, não no sentido de uma ferida passada, que se teme que se
repita, como o são os traumas em geral, mas sim consistiu na “apreensão inegável de uma
ameaça ainda pior por vir”. Por isso, segundo ele, este traumatismo permaneceria
traumatizante e incurável, pois “vem do futuro”: através de seu horror, o 11 de setembro
fez com que esperássemos agora pelo pior.
309
Nesse sentido, afirma Derrida, nomear o evento por uma data, o 11 de setembro,
pode visar negar o futuro desta ameaça, a possibilidade de que o pior esteja ainda por vir.
Comparada às possibilidades de destruição e desordem caótica que podem estar
reservadas para o futuro, das redes informatizadas do mundo, o 11 de setembro
procederia ainda do teatro arcaico da violência destinada a atingir a imaginação: “poderia
se fazer bem pior amanhã, invisivelmente, em silêncio, muito mais rápido, de maneira
não sangrenta, atacando-se as redes informatizadas das quais depende toda a vida (social,
309
Ibid., p.148.
153
econômica, militar, etc.) de um ‘grande país’...” E prevê: “um dia se dirá: o ‘11 de
setembro’,... isto era ainda da ordem do gigantesco: visível e enorme!”.
Baudrillard foi também um dos filósofos que se preocupou em comentar o 11 de
setembro, como atestam as conferências feitas no Institute du Monde Arab, em Paris,
logo após o evento.
310
Em seu comentário, Baudrillard considerou a arquitetura das
Torres Gêmeas - uma “verticalidade concorrente” - como uma imagem do sistema
capitalista, “monólitos que não se abrem ao exterior”; em dupla, refletiam a si mesmas,
em simetria e clonagem. Afirmou então que entendia o 11 de setembro como uma
contestação violenta da globalização, que passou pela destruição daquela arquitetura.
311
Neste sentido, podemos dizer que o “efeito espetacular” do 11 de setembro, sem dúvida,
foi maior que qualquer dano material real que possa ter decorrido daquele atentado.
Baudrillard afirma que, habitualmente, em nosso universo midiático, a imagem aparece
no lugar do evento, substituindo-o, como se o consumo desta imagem esgotasse o evento.
Trata-se de um refúgio imaginário contra o evento, que é algo da ordem da
descontinuidade e da ruptura.
312
Este efeito espetacular, esta visibilidade excessiva, é capaz de produzir uma
paralisia do pensamento e da ação. As imagens do 11 de setembro, excessivamente
difundidas, repetidas à exaustão, são imagens que fazem ver tanto que acabam produzindo
um certo distanciamento. Como afirma Benedikt:
"Se o espetáculo vivo da tragédia alheia é capaz de despertar, por um lado,
desespero real, solidariedade, e identificação imediata com o sofrimento em tempo
real, traz à tona, por outro, um intenso sentimento de autopreservação inspirado
310
Estas conferências foram publicadas em conjunto com as palestras proferidas por Edgar Morin no
mesmo instituto, também sobre o 11 de setembro, sob o título
La violence du monde. Paris, Éditions du
Félin, Institute du monde arabe, 2003.
311
Ibid., p.14.
312
Ibid., p.16.
154
tanto pela estranha proximidade do acontecimento, a tela invadindo a sala de estar,
como por sua distância efetiva no Golfo, na Bósnia, na Alemanha nazista, nas
favelas”.
313
Entendemos que a repetição e a força das imagens espetaculares operam um efeito
de excessiva familiarização que, paradoxalmente, produz um distanciamento. De algum
modo, na cultura de massa, o espetáculo vivo da tragédia alheia tornou-se apenas parte da
vida. "Assistir ao sofrimento humano alheio pela TV, nos remete diretamente à nossa
própria sobrevivência; rapidamente atravessamos o espaço que separa o outro distante do
eu, concentrando-nos em nosso sentimento de auto-preservação...".
314
Zizek considera que a verdadeira “ameaça de longo prazo” seriam outros atos de
terrorismo de massa, comparados aos quais a lembrança do WTC seria pálida atos
menos espetaculares, mas muito mais terríveis:
“Longe de apontar para a guerra do século XXI, a explosão e colapso das torres
gêmeas do WTC em setembro de 2001 foram, pelo contrário, o último grito
espetacular da guerra do século XX. O que nos espera é algo muito mais estranho:
o espectro de uma guerra ‘imaterial’, em que o ataque é invisível – vírus, venenos
que podem estar em qualquer lugar ou lugar nenhum”.
315
Assim, conclui que “estamos entrando numa nova era de guerra paranóica em que
a principal tarefa será identificar o inimigo e suas armas”.
O novo Outro do ocidente
313
Benedikt, A. Imagine: responsabilidade e criatividade em tempos sombrios in Arán, M. (org.).
Soberanias. RJ, Contra Capa Livraria, 2003, p.113.
314
Ibid., p.114.
315
Zizek, S. Bem-Vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas,
op. cit., p.53.
155
Dissemos então que, a partir do 11 de setembro, o ocidente voltou a nomear um
“inimigo”. Hoje o “terrorista” é colocado no lugar de “Outro” do “ocidente globalizado e
civilizado”, um Outro aterrorizante, que não tem endereço (território), não é
“delimitável”, logo, não é “evitável”, não há imunização possível contra este “mal”. Este
Outro provoca repulsa, pânico, horror, e também fascínio.
316
Sua lógica de
funcionamento escapa à compreensão racional-ocidental: para “Eles”, a “vida”, a
“liberdade”, ou a “democracia”, não são os valores máximos. Trata-se de um novo
estranho, muito estranho...
Zizek lembra que hoje este “inimigo” - o “terrorismo” - é retratado como “o Um
exclusivo fanático e intolerante”, enquanto a “Nova Ordem Mundial” se apresenta como
“o universo tolerante das diferenças”, da coexistência entre culturas particulares. Deste
modo, o “terror” vem sendo gradualmente elevado ao equivalente universal oculto de
todos os males sociais.
317
Discutimos anteriormente, neste mesmo capítulo, acerca desta visão do Império
como sendo acolhedor com relação às diferenças; mostramos que muitas vezes trata-se,
na verdade, de tentativas de neutralização das diferenças. Comentamos também, em
diversas passagens, acerca dos perigos da lógica binária que pressupõe simples oposições
como o bem e o mal, e mostramos como este princípio implica em agressividade, e exclui
a alteridade. Se afirmamos agora, então, que ao “terrorismo” vem sendo atribuído este
estatuto de novo “mal” novo “Outro”, e novo “estranho” - nota-se a importância de
discutirmos atentamente este tema.
316
Ambigüidade presente na lógica especular, conforme comentamos no capítulo I desta tese. Com relação
ao 11/09, podemos lembrar que as vendas de livros sobre o Islã dispararam após o atentado.
317
Zizek, S. Bem-Vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas,
op. cit., p.132.
156
No mesmo sentido da desconstrução do conceito de “guerra” que comentamos
acima, Derrida considera fundamental a desconstrução do termo “terrorismo”. Ressalta
que a desconstrução deste termo tem uma importante preocupação ético-política, não se
tratando de um puro exercício de especulação filosófica: “quanto mais confuso é um
conceito, mais dócil ele é à sua apropriação oportunista”. É neste sentido que, na
entrevista publicada sobre o 11 de setembro, Derrida discute a expressão “terrorismo
internacional”, alertando para o perigo daquilo que considera “um conceito obscuro e
dogmático”. Mostra que conceitos como este podem ser utilizados pelas instâncias de
poder do modo que lhes pareça oportuno, como, por exemplo, depois do 11 de setembro,
quando uma maioria dos estados representados na ONU condenou algo que foi
denominado “terrorismo internacional”, autorizando os EUA a utilizarem “todos os
meios julgados oportunos e apropriados pela administração americana para se protegerem
diante do dito ‘terrorismo internacional’”.
318
Para Derrida, a desconstrução da idéia de
terrorismo seria a única conduta politicamente responsável, pois a utilização desta idéia
pelo estado poderia inclusive ter o efeito perverso de ajudar a causa terrorista.
319
Sempre recorrendo à etimologia, Derrida lembra que a história política do termo
“terrorismo” deriva da referência ao terror revolucionário francês, que foi exercido em
nome do estado, e que supunha justamente o monopólio legal da violência. A partir daí,
afirma com veemência que não deveríamos utilizar esta expressão terrorismo - como
referência ao que vemos na atualidade, pois hoje o “perigo” não vem mais de estados ou
regimes, ligados a uma nação ou território, que se pudesse denominar État voyou”. Isso
318
Derrida considera que, naquele momento, os EUA foram autorizados, eles mesmos, a agir como
“voyous”.
319
Borradori, G. (org.) Filosofia em tempo de terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques
Derrida
, op. cit., p.11.
157
tornaria inúteis todos os gastos de retórica, além dos gastos militares, para justificar os
termos “guerra”, ou “terrorismo”, e a tese segundo a qual a “guerra contra o terrorismo
internacional” deve visar certos estados que serviriam de sustentação para o terrorismo.
Derrida considera esses esforços para identificar os “estados terroristas” ou États
voyouscomo “racionalizações” destinadas a negar a angústia absoluta, o pânico ou o
terror diante do fato de que a ameaça não provém mais, nem está sob o controle, de
qualquer estado. Do mesmo modo, através destas mesmas “denegações e
racionalizações”, tenta-se desesperadamente fazer sobreviver “conceitos moribundos”
como “guerra” e “terrorismo”: não se trata mais de uma guerra internacional clássica,
pois nenhum estado a declararia contra os EUA, tampouco trata-se de uma guerra de
resistência a uma ocupação territorial, revolucionária ou de independência. Por isso não
seria pertinente aqui o termo “terrorismo”, que sempre esteve associado a guerras
revolucionárias, ou de independência, onde o estado sempre esteve envolvido.
Assim, vemos que “terrorismo” é um significante múltiplo, um nome que mascara
as diversas questões em jogo, encerrando toda reflexão: aquele que é designado
“terrorista” é banido, é como designá-lo um “voyou”, comenta Derrida.
O “terrorismo”, na visão de Derrida, tem intima relação com a globalização, e
utiliza-se largamente de seus recursos, dentre os quais podemos destacar a
“hipermidiatização” e a “super-oferta tecnológica”. Derrida lembra que os autores do 11
de setembro faziam parte justamente do “grupo de privilegiados” da chamada
globalização aqueles que dispõem do poder capitalista, da telecomunicação, de
tecnologias avançadas, da passagem de fronteiras, etc.
320
Mesmo que tenham pretendido,
320
Derrida, J. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos in Borradori, G. (org.) Filosofia em tempo de
terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida,
op. cit., p.131.
158
ou alegado, agir em nome daqueles prejudicados por esta mesma globalização, o fizeram
dispondo daqueles mesmos princípios e recursos que talvez negassem. A informação
globalizada em tempo real fornece ao “terrorismo” (assim como pode fornecer a muitas
outras formas de violência hoje), uma verdadeira “caixa de ressonância”, onde as ações
podem se exercer em qualquer lugar, que serão imediatamente repercutidas sobre toda a
cena pública internacional.
321
Acerca da “lógica do terror”, Derrida apresenta uma hipótese na qual encontramos
expressas muitas das idéias contidas nesta tese, nos permitindo articular com o terrorismo
aquilo que dissemos até aqui acerca da inquietante estranheza:
“Como estamos falando aqui de terrorismo e, assim, de terror, a mais irredutível
fonte de terror absoluto, aquela que por definição se encontra mais indefesa diante
da pior ameaça seria a que vem de ‘dentro’, desta zona onde o pior ‘exterior’ vive
com ou dentro de ‘mim’.
322
Minha vulnerabilidade é portanto - por definição e por
estrutura, por situação - sem limite. Daí o terror. O terror é sempre, ou sempre se
torna, pelo menos em parte, ‘interior’. E o terrorismo sempre tem alguma coisa de
‘doméstica’, se não nacional, em si. O pior e mais eficaz ‘terrorismo’, ainda que
pareça externo e ‘internacional’, é aquele que instala ou relembra uma ameaça
interior, at home, e relembra que o inimigo está também sempre alojado no
interior do sistema que ele viola e aterroriza”.
323
Conforme mostramos no primeiro capítulo, acerca do Unheimlich freudiano,
podemos lembrar que a constituição de um estranho freqüentemente se por projeção,
por expulsão de algo de dentro que é tido como mau e por isso rejeitado. Dissemos que o
estranho que causa angústia e agressividade tem sempre algo de intimamente familiar, e
321
Em colóquio intitulado “Pourquoi la guerre?”, organizado pelo Institut des Hautes Études em
Psychanalyse, em Paris, 2003, em resposta à questão formulada no título, Derrida respondeu: “Para que (ou
por que) a guerra hoje? Para a televisão!” (“
Pourquoi la guerre aujourd’hui? Pour la télé!”).
322
No original : « la pire menace, ce serait celle qui provient du ‘dedans’, de cette zone où le pire ‘dehors’
habite chez ‘moi’
» (Le ‘concept’ du 11 septembre, Paris, Ed. Galilée, 2004, p.145).
323
Derrida, J. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos in Borradori, G. (org.) Filosofia em tempo de
terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida,
op. cit., p.193, nota 7.
159
que em geral esta familiaridade é negada ou recusada, o que faz com que o sujeito se
torne ainda mais vulnerável diante do Unheimlich.
Neste contexto acima descrito, podemos dizer que “Eles”, os terroristas, foram
tomados como radicalmente estranhos, diante dos quais nenhuma identificação era
possível, o que despertou tanta angústia, agressividade e crueldade. Negando-se qualquer
familiaridade, a “Eles” foi atribuído “tudo aquilo que não aprovamos em nós mesmos”.
Vimos a mesma lógica se repetir tendo como alvo o outro lado: “’Eles’, os americanos,
“são tudo aquilo que nós não somos”, ou “tudo aquilo que rejeitamos em nós mesmos”
(“são consumistas”, “materialistas”, etc.). Deste modo, vimos prevalecer logo após o 11
de setembro aquela mesma lógica de oposições, da qual a única saída é o “ou eu ou
ele(s)”.
324
Porém, ao mesmo tempo, este evento singular nos parece permitir uma
reflexão que além desta dicotomia; e é isso que tentaremos mostrar a seguir, com o
conceito derridiano de “auto-imunitarismo”.
O “auto-imunitarismo”
Derrida afirma que os chamados ‘terroristas’ não são, nesse contexto, ‘outros’,
outros absolutos que nós, ‘ocidentais’, não conseguimos mais entender. Não devemos
esquecer que eles foram freqüentemente recrutados, treinados e até armados, e, por um
longo tempo, de várias maneiras ocidentais...”.
325
Neste sentido, mostra a íntima
familiaridade deste outro que pretendíamos que fosse totalmente exterior e estranho a
nós.
324
Tal como “William Wilson” diante do espelho (Cf. capítulo II).
325
Derrida, J. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos in Borradori, G. (org.) Filosofia em tempo de
terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida,
op. cit., p.125.
160
Nesta reflexão sobre o terrorismo e o contexto atual
326
, Derrida recorre ao
conceito de “auto-imunitarismo”
327
, a partir do qual podemos depreender uma maneira
bastante interessante de abordar esta dinâmica do estranho-familiar. Afirma que, ao se
referir à auto-imunidade, visa abordar todos os “processos de perversão da norma”, “da
autoridade da consciência, do eu”, levando em conta, na política, aquilo que a psicanálise
chamou de o inconsciente.
328
Chama de auto-imunização esta estranha lógica ilógica
pela qual um ser vivo pode espontaneamente destruir, de modo autônomo, aquilo que,
nele mesmo, se destina a protegê-lo contra o outro, a imunizá-lo contra a intrusão
agressiva do outro”.
329
Derrida entende que haveria uma “pervetibilidade auto-imunitária” da própria
democracia, isto é, haveria sempre a possibilidade de seu “suicídio auto-imunitário”.
330
Isto se deve ao fato de que a democracia é o único sistema que acolhe em si mesmo, em
seu próprio conceito, “a fórmula de auto-imunidade que chamamos de direito à auto-
crítica”, daí viriam tanto suas vantagens quanto a sua fragilidade.
331
Para Derrida, o “terrorismo” seria o “sintoma de uma doença auto-imune” que
atualmente ameaça a vida da democracia participativa. Neste sentido, os efeitos do 11 de
setembro nos EUA, poderiam ser considerados “auto-imunitários”
332
: a idéia de uma
guerra contra o “eixo do mal”, contra os “inimigos da liberdade e contra os assassinos da
democracia”, inevitavelmente restringiu, dentro do seu próprio país, as liberdades ditas
326
Este tema aparece, de modo semelhante, em “Voyous” e em “Filosofia em tempo de terror”, deste
modo, circularemos aqui entre estes dois textos.
327
Sobre a auto-imunidade, cf. Foi et savoir in La religion, Paris, Ed. Seuil, 1996; onde este conceito foi
introduzido por Derrida.
328
Derrida, J. Voyous, op. cit., p.155.
329
Ibid., p.173.
330
Ibid., p.59.
331
O paradigma desse processo auto-imunitário, para Derrida, seriam os totalitarismos fascista e nazista,
que chegaram ao poder de modo formalmente democrático.
332
Derrida, J. Voyous, op. cit., p.64.
161
democráticas ou o exercício do direito, ao estenderem-se os poderes de inquisição
policial, por exemplo. Deste modo uma democracia, que se defende de seus “inimigos
potenciais”, acaba se parecendo com seus inimigos, ameaçando a si mesma para se
proteger contra as ameaças.
Acredita que é justamente pelo fato de os EUA viverem segundo um direito e uma
cultura amplamente democrática, que eles puderam se abrir e expor sua maior
vulnerabilidade aos imigrantes, como nesse caso dos aprendizes de piloto suicidas, que
foram treinados justamente nos EUA, ajudados por cidadãos americanos, utilizando-se de
aviões americanos. Derrida problematiza então a questão: a democracia garante o direito
de pensar e agir contra ela? A democracia deve oferecer hospitalidade, “oferecer a outra
face”, aos seus inimigos?
333
A tese desenvolvida por Derrida é a de que o tipo de terrorismo responsável pelos
atentados de 11 de setembro não seria o primeiro sintoma de um “processo auto-imune”,
mas apenas sua manifestação mais recente. Lembra que ao longo de toda a Guerra Fria as
democracias liberais ocidentais armaram e treinaram seus futuros inimigos, de modo
quase suicida. A exibição simétrica do poder própria à Guerra Fria cedeu lugar a uma
disseminação de arsenais de armas nucleares, bacteriológicas e químicas. Hoje somos
confrontados à realidade de um conflito assimétrico que, enquanto tal, corresponderia a
um estágio mais avançado do processo de auto-imunização.
Derrida distingue então três tempos da “crise auto-imune” que teria por sintoma o
11 de setembro:
334
333
Ibid., p.66.
334
Derrida, J. Desconstruindo o terrorismo in Borradori, G. (org.) Filosofia em tempo de terror: diálogos
com Jürgen Habermas e Jacques Derrida,
op. cit., p.159-160.
162
O primeiro seria a Guerra Fria, um conflito que teria se desenrolado “mais na
cabeça do que em terra ou no ar”.
O segundo tempo auto-imunitário seria “pior que a Guerra Fria”, segundo
Derrida, sob um ponto de vista “histórico e psicológico”. Se o 11 de setembro deve ser
visto como uma conseqüência da Guerra Fria, ele marcaria também, sob o aspecto
histórico, a passagem ao que poderia ser “bem pior que a guerra fria”. Isto se deveria ao
fato de que, enquanto aquela se caracterizava por um equilíbrio entre duas forças,
nenhum equilíbrio é possível com relação ao terrorismo, que a ameaça não vem mais
de qualquer estado, é imprevisível. Psicologicamente, o que seria pior que a guerra fria,
neste caso, colocaria em questão a temporalidade do trauma, que seria direcionado para o
futuro: “toda experiência traumática opera uma ferida no futuro, assim como no
presente”.
335
O terceiro e último tempo desta “doença auto-imune” é o que Derrida denomina
“o círculo vicioso da repressão”: esta seria a fase “mais manifestamente suicida das três”,
e descreve o modo pelo qual “ao declarar guerra contra o terrorismo, a coalizão ocidental
engendra uma guerra contra si mesma”.
336
Entendemos que ao colocar “Eles”, os terroristas, como Outro absoluto, não
reconhecendo qualquer familiaridade, e dirigindo contra este alvo externo toda a sua
agressividade, uma reversão onde a agressividade volta-se contra o mesmo interior
que ataca, já que este estranho, Unheimlich, é também intimamente familiar.
Podemos considerar que uma das principais contribuições do conceito de “auto-
imunidade”, com relação ao nosso tema, seria a de constituir um terceiro termo na
335
Idem.
336
Ibid., p.161.
163
oposição clássica entre “amigo” e “inimigo”, bem e mal. Esta inclusão de mais uma
alternativa, este termo “entre”, consistiria num procedimento tipicamente desconstrutor,
que permite deslocar a tendência da metafísica tradicional de se apoiar sobre pares de
opostos irredutíveis.
Consideramos que com este conceito de auto-imunidade podemos situar um meio
termo entre o estranho e o familiar, que pode nos servir para pensar uma alternativa para
a exclusão da diferença, que aponta para a potencialidade destrutiva do que é
“próprio”. O auto-imunitarismo permite conceber uma alternativa à lógica e ao embate
dual, do bem contra o mal, por exemplo, que evidencia que o bem não corresponde ao
que está dentro, tampouco o mal corresponde simplesmente ao que está fora.
Neste sentido, Derrida aproxima a lógica do auto-imunitarismo do pharmakon,
remédio e veneno, como dois lados, não contraditórios, “indecidíveis”. O auto-
imunitarismo - mecanismo interno e externo - mostra que a defesa contra o estranho pode
se converter num ataque, na destruição de si mesmo tomado como um outro. A
estranheza íntima, quando não reconhecida, negada ou recusada, pode constituir um
inimigo tão ou mais poderoso quanto aquele inimigo-Outro externo, quando toda a
agressividade e crueldade que podem ser dirigidas ao estranho, voltam-se contra o
próprio sujeito.
164
Capítulo IV - Crueldade e hospitalidade
Preâmbulo: “Dogville e a soberana crueldade”
No capítulo anterior, comentamos e discutimos algumas questões acerca das
formas como a agressividade e a crueldade contra o estranho se apresentam na
contemporaneidade. Neste momento recorreremos a “Dogville”, um filme lançado em
2003, escrito e dirigido pelo cineasta dinamarquês Lars Von Trier, que nos chamou a
atenção por nos permitir refletir sobre tais manifestações de agressividade e crueldade
dirigidas ao estranho no contexto atual e, mais ainda, este filme nos pareceu um nítido
retrato da crueldade humana de modo mais amplo, como veremos adiante. Nosso objetivo
a partir deste filme, e isso se tornará mais explícito na segunda parte deste capítulo, é uma
discussão sobre possíveis alternativas diante desta crueldade contra o estranho, sobre a
qual “Dogville” nos servirá como referência.
Outro fator que favoreceu nossa escolha por este filme refere-se à sua forma, que
faz com que este seja exemplar, nas palavras de seu diretor
337
, de um “cinema fusional” –
entre cinema, teatro e literatura. Esta posição “entre” nos pareceu privilegiada para uma
abordagem como a que pretendemos aqui e, neste sentido, enfatizaremos o aspecto
literário do filme, tratando-o quase como um texto, assim como fizemos em capítulos
anteriores com relação aos contos literários. O deliberado aspecto literário de sua
337
Cf. entrevista a Cahiers du Cinema, n
o
579, maio/2003.
165
narração nos permite ainda aproximá-lo do pensamento de Derrida que, como dissemos
anteriormente, também pode ser situado num “entre” - entre filosofia e literatura.
338
Discutimos no primeiro capítulo desta tese a íntima relação entre a psicanálise e a
literatura, lembrando que Freud reconhecia que os escritores eram capazes de explorar o
mesmo terreno que o psicanalista, podendo chegar a conclusões semelhantes, mesmo que
por caminhos diferentes; e mostramos que o discurso literário oferece uma grande
possibilidade de enriquecimento ao discurso psicanalítico, especialmente com relação ao
tema do estranho. Neste mesmo sentido, consideramos que o cinema, assim como a
literatura
339
, pode contribuir para uma reflexão psicanalítica, que é aquilo que se mantém
como nosso horizonte ao longo de todo este trabalho, mesmo que em diversos momentos
façamos apelo a outros discursos. Sabemos que a psicanálise e o cinema são, na verdade,
contemporâneos, e podemos notar que diversos termos psicanalíticos - sonho, fantasia,
imaginário, identificação, etc. - encontram equivalentes no cinema.
Acreditamos que o cinema, tanto quanto a literatura, pode exercer ainda uma
função importante quanto ao espectador/leitor: a ficção contribui muito para o exercício
da habilidade de transitar entre diferentes espaços, de se colocar no lugar do outro, de
sentir seu sofrimento como se fosse nosso e também de podermos nos distanciar de nós
338
Retomaremos esta aproximação na segunda parte deste capítulo, onde comentaremos alguns dos temas
derridianos que encontramos em Dogville.
339
Sobre a proximidade entre o cinema e a literatura, Derrida comenta: “Entre a escritura de tipo
desconstrutivo que me interessa e o cinema há uma relação essencial. Trata-se da exploração, na escritura,
de todas as possibilidades de montagem, de jogos sobre os ritmos, de enxertos, mudanças de tom, trocas de
línguas, cruzamentos entre as disciplinas e as regras das artes. O cinema, neste ponto, não tem equivalentes,
salvo, talvez, a música. A escritura aspira e é inspirada por esta idéia de montagem. Além disso, a escritura
e o cinema deparam-se com a mesma evolução técnica, e em conseqüência estética, das possibilidades cada
vez mais finas, rápidas e aceleradas, oferecidas pela transformação técnica – computadores, Internet, etc.
Existe agora, de certo modo, uma grande oferta ou uma grande demanda de desconstrução, tanto na
escritura quanto no cinema. Tudo reside em saber o que fazer com isso. Cortar e colar, recompor e inserir,
tudo isso que o computador permite, aproxima cada vez mais a escritura da montagem cinematográfica, e
vice-versa. De modo que o cinema está prestes a se converter, paradoxalmente – a medida que aumenta seu
nível técnico – em uma disciplina mais ‘literária’”. (“O cinema e seus fantasmas”, entrevista publicada em
Cahiers du cinéma, n° 556, abril 2001).
166
mesmos como se fossemos Outro. Esta dinâmica, que poderíamos chamar de uma certa
experiência do “estranho-familiar”, pode ser bastante eficaz para suscitar reflexões e
discussões sobre temas como a questão da crueldade e o que é possível diante dela, como
é de nosso interesse aqui.
Sobre “Dogville”
“Dogville” - este “filme-literário-teatral” - articula brilhantemente o poder de
evocação e o impacto das imagens com a força das palavras, do texto literário. Seu
aspecto literário fica bastante evidente na forma como o filme é estruturado - dividido em
um prólogo e nove capítulos, cujos títulos (que reproduziremos abaixo) aparecem escritos
na tela. O aspecto teatral do filme é reforçado pelo cenário que, inspirado em Brecht
340
,
evidencia os artifícios de montagem, convidando o público a participar da encenação. As
locações têm marcação teatral, com suas indicações – “casa”, “pomar”, “cão”, entre
outras escritas em branco sobre o piso negro. Apesar da estranheza inicial provocada
pelo cenário atípico (ou melhor, por sua ausência, já que os personagens chegam a abrir e
fechar portas invisíveis para o público), a cidade assume um caráter verdadeiramente
universal, que passa a ser “recriada” pela fantasia de cada espectador. Estranhamente,
quase todos os personagens aparecem durante quase todas as cenas, como se pudéssemos
observá-los mesmo durante seus afazeres mais banais. A voz de um narrador, em off,
340
Em diversas entrevistas sobre o filme o diretor reconheceu sua inspiração em Brecht. No site oficial do
filme (http://www.dogville.dk) Lars von Trier afirma ainda que baseou-se na letra da canção “Pirate
Jenny”, ou “Jenny e os Piratas”, que Bertolt Brecht e Kurt Weill fizeram para a “Ópera”, e Chico Buarque
tornou conhecida no Brasil sob a forma de “Geni e o Zepelim” - a prostituta desprezada pelo povo de um
vilarejo provinciano passa a ser subitamente respeitada e adulada quando um bando de piratas exige, como
condição para não destruir o lugar, que ela sirva seu capitão por uma noite. A Jenny/Geni de Lars von Trier
é Grace, vivida por Nicole Kidman, que sofre o que seria o prólogo da personagem de Brecht.
167
apresenta a cidade e cada um de seus habitantes, e em muitos momentos é como uma voz
interior que revela o mais íntimo dos personagens.
A seguir, abordaremos o filme por capítulos, visando, ao mesmo tempo, transmitir
uma idéia geral da história e ressaltar as passagens que consideramos mais significativas
quanto às discussões que nos interessam. É preciso reconhecer que nosso relato não será
capaz de transmitir toda a riqueza de detalhes e nuances do filme e que, ao recontá-lo,
estaremos, intencionalmente, fazendo um recorte que enfatizará os aspectos que mais nos
chamaram a atenção, talvez deixando de lado elementos que poderiam ser considerados
mais relevantes por outro espectador-leitor. Nosso relato será permeado pela transcrição
de algumas falas do narrador e diálogos entre os personagens, que manteremos entre
aspas, e de considerações nossas, que visarão sempre uma articulação com o tema da
relação com o estranho:
- Prólogo: “Que nos apresenta à cidade e seus habitantes”
O narrador apresenta Dogville, pequena cidade localizada nas Montanhas
Rochosas dos EUA, suas casas modestas e cada um de seus moradores. São tempos
difíceis a história se passa durante a Grande Depressão dos anos 30 - a miséria impera,
e nota-se que a relação entre os habitantes da cidade contém bastante agressividade. São
apresentadas as reflexões filosóficas de Tom, um escritor fracassado, que realizava
intermináveis pesquisas sobre a alma humana e, mais especificamente, sobre o
reavivamento da moral dos habitantes de Dogville: “a cidade precisava de um dom (gift)
para ilustrar sua teoria sobre a aceitação”, diz o narrador. Tom buscava exemplos que
comprovassem a sua teoria sobre a falta de hospitalidade em Dogville. Ele se pretendia
168
um observador externo e isento, como se fosse capaz de enxergar todos os lados da
situação.
- Capítulo 1: “Tom ouve alguns tiros e conhece Grace”
Grace chega a Dogville fugindo de gangsters; faminta, rouba o osso do cão. Tom
se depara com a bela fugitiva: “Ela não havia escolhido Dogville no mapa ou decidido
fazer uma visita. Mas Tom sentiu de imediato que aquele era o lugar dela”, diz o
narrador. Os gangsters a perseguiam e Tom os despistou, ajudando-a. Porém, sua forma
de “ajudar” Grace, implicava em usá-la como um exemplo que comprovasse a sua teoria.
Na reunião do dia seguinte na igreja, Tom se esforçava para tentar exemplificar o
“problema humano da aceitação” diante de uma platéia pouco receptiva. Criticava a falta
de senso de comunidade entre os moradores da cidade, que rebatiam as críticas,
demonstrando agressividade entre eles e também dirigida a Tom. Diante de tal resistência
Tom decide, para convencê-los de que havia em Dogville um problema quanto à
aceitação, “ilustrar”: conta então os fatos da noite anterior, da chegada de Grace. A
platéia ouvia perplexa, enquanto Grace aguardava, passivamente, escondida na velha
mina, a decisão sobre seu destino. Decidiram permitir que Grace ficasse por duas
semanas, para que pudessem “julgar se seria possível confiar nela”.
Tom apresentou a Grace sua cidade amada, evidenciando sem rodeios as
entranhas, e a podridão, de cada um de seus habitantes: Olívia e June, a aleijada, que
viviam de favor na propriedade de seu pai; Chuck e Vera, o casal e seus sete filhos que se
odiavam; os Henson, “que ganhavam a vida raspando a boca de copos baratos para que
parecessem caros”; Jack McKay, “que estava cego e toda a cidade sabia, mas ele tentava
169
esconder isso”; Ben, o motorista da caminhonete que “bebia e visitava o bordel uma vez
por mês e se envergonhava disso”; Martha, “que cuidava da igreja até a chegada do novo
padre, o que nunca aconteceria”; Ma Ginger e Gloria, “que tinham uma loja muito cara e
exploravam o fato de que ninguém saía da cidade”. Grace achou tudo lindo e, em sua
postura sempre compreensiva, disse a Tom: “O que vejo é uma bela cidade, onde as
pessoas têm sonhos e esperanças, apesar das difíceis condições em que vivem”.
Mas Grace logo percebeu o olhar desconfiado e pouco receptivo, de todos os
moradores, em sua direção. Foi quando Tom lhe disse, de modo provocativo: “Você tem
duas semanas para que te aceitem. Não faria mal um pouco de persuasão... Sua vida não
vale um pequeno jogo?”. Diante da pergunta de Grace sobre o que fazer, ele respondeu:
“O trabalho braçal te incomoda? Dogville te deu duas semanas, o que você dará a eles?”
Deste modo, Tom incentivava a instauração de uma relação perversa cujas conseqüências
talvez não fosse capaz de prever.
- Capítulo 2: “Grace segue o plano de Tom e parte para o trabalho braçal”
Grace andou pela cidade oferecendo, de modo doce e sedutor, uma hora de seu
trabalho a cada morador da cidade. As respostas variavam entre o sarcasmo e o desprezo:
Dogville não precisava de Grace. Foi quando Tom decidiu ir mais além em sua
provocação: propôs que ela oferecesse aquilo de que não se precisava, “que tal algo que
não precise ser feito?”. Aos poucos foram descobrindo que “havia muitas coisas que não
precisavam ser feitas em Dogville”; a oferta de Grace criou uma demanda que mais tarde
se revelaria sem limites. Grace passou a cuidar dos arbustos de groselha, cozinhava para
o caminhoneiro, cuidava da aleijada, conversava com o cego, enfim, fazia tudo o que até
170
então não era necessário. Tom, em sua arrogância, estava satisfeito, Grace agora dependia
dele: “Grace estava perdida no mundo e ele lhe mostrara um caminho”, diz o narrador,
como a voz interior de Tom.
- Capítulo 3: “Grace se entrega a uma provocação barata”
Foi feita na igreja uma segunda reunião, duas semanas após a chegada de Grace,
para decidir seu destino. Ela aguardava mais uma vez passivamente na mina, enquanto os
cidadãos votavam. Grace ouviu Martha tocar o sino 15 vezes, uma para cada voto,
permitindo que ela ficasse. Acreditava ter conquistado verdadeiros amigos em Dogville.
Foi quando começou a apontar os pontos fracos de cada um dos moradores da cidade. De
início isso teve efeitos positivos: aquela que viera de fora, enxergava e revelava a
cegueira de quem estava ali imerso.
- Capítulo 4: “Bons tempos em Dogville”
Naqueles tempos Grace parecia fazer parte da cidade. Era bem aceita e dava em
troca seu trabalho, pelo qual recebia um pequeno salário. Havia se tornado necessária a
Dogville, que passara a depender dela e de seus serviços: Grace era então “os olhos de
McKay, a mãe de Ben, a amiga de Vera, o cérebro de Bill, cuidava do pai de Tom...”.
Após três semanas, Grace ganhou um lugar, o velho moinho reformado para ela
por Tom e Ben, “onde um dia ficou o triturador de minério da cidade, do qual apenas o
pesado volante permaneceu”. Aquele lugar de acolhimento, quando Grace era necessária
e por isso bem amada na cidade, mais tarde passaria a ter outra função.
171
- Capítulo 5: “Finalmente 4 de julho”
Grace participava da vida comunitária, e trocou declarações de amor com Tom.
Naquele momento ela parecia fazer bem a Dogville: havia mais flores, Tom sentia amor
pela primeira vez, o órgão da igreja voltara a funcionar e havia música no ar.
Mas foi quando chegou o carro da polícia, que nunca antes estivera em Dogville,
anunciando uma grande recompensa pela captura de Grace: “Então as coisas mudaram
um pouco”. A presença dela passaria a “custar mais caro”; Dogville começaria a querer
mais compensações pelo “risco de abrigar uma fugitiva”, mesmo sabendo ser ela
inocente: decidiram que “ela devia trabalhar mais”. Além disso, seu salário seria
diminuído: “é apenas um gesto simbólico”, disse Tom. A exploração se tornaria cada vez
mais evidente.
Grace concordava com tudo, em sua inquietante bondade, dizendo a Tom, “se
você acha que isso é para o bem, concordo”. Grace pretendia compreender e perdoar a
todos e a todas as injustiças, sujeitando-se a tudo, agindo sempre em nome de um suposto
“bem”.
Então, Grace trabalhava sem parar, mas mesmo assim nenhum deles parecia
satisfeito. Ela passou a ser repreendida, proibida de passar por certos caminhos, como o
atalho entre os arbustos que, segundo Ma Ginger, seria “reservado àqueles que viviam ali
muitos anos”. Diziam assim, mesmo negando suas intenções, que Grace não fazia
parte daquele grupo. A agressividade começava a se manifestar ali, sob a forma de
discriminação daquela estrangeira.
- Capítulo 6: “Quando Dogville mostra os dentes”
172
A exploração de Grace tornava-se cada vez mais explícita. Grace passara a ser
chantageada, ameaçada, explorada por todos, inclusive sexualmente. Enquanto ela era
violentada pela primeira vez por Chuck, vemos em cena, no cenário sem qualquer
divisória, todos os personagens mantendo suas rotinas, indiferentes ao que se passava ao
alcance de suas vistas. Naquele momento a agressividade basculava para a crueldade com
relação à Grace.
- Capítulo 7: “Grace se enche de Dogville, deixa a cidade e volta a ver a luz do dia”
A crueldade vinha então de toda parte. Grace não agüentava mais e, aconselhada
por Tom, decidiu fugir de Dogville. Ben, o caminhoneiro, concordou em transportá-la
escondida, em troca de dinheiro. Porém, ele também a enganou, violentou e ameaçou,
trazendo-a de volta a Dogville e a seus moradores, de quem ela se tornaria prisioneira.
Naquele momento a cidade se uniu, superando qualquer rivalidade anterior, para
efetivar o encarceramento de Grace. Juntaram as correntes que separavam os arbustos de
groselha, o pesado volante do velho moinho abandonado, o sino da loja de Ma Ginger e a
coleira do cão Moses, e assim formaram o cruel “mecanismo de prevenção de fugas”, que
passaria a prender o pescoço de Grace. O lugar que lhe servira de abrigo se tornaria a
sede de seu confinamento.
- Capítulo 8: “Há uma reunião onde a verdade é dita. Tom deixa a reunião (mas depois
retorna)”
Grace perdera o direito à palavra e o estatuto de humana, o que permitia o
exercício das piores formas de crueldade: “A maioria dos homens da cidade a visitava à
173
noite para satisfazer as suas necessidades sexuais. As crianças tocavam o sino sempre que
isso acontecia. Mas, após ela ter sido acorrentada, tudo ficou mais fácil para todos. As
visitas noturnas não tinham mais que ser secretas pois não eram exatamente um ato
sexual, elas eram uma vergonha, assim como quando um caipira usa uma vaca. Nada
além disso”, diz o narrador.
Tom, vendo-se sem saída, propôs a Grace que ela lhes dissesse “tudo a respeito
deles mesmos”, “é para o bem deles”, disse Tom, que até então tentava manter-se na
posição de observador externo dos acontecimentos. Grace falou diante de todos os
moradores de Dogville na igreja, acorrentada. Rechaçaram suas colocações: “são
mentiras deslavadas”, diziam. Incomodados e ameaçados com a presença de Grace, que
não despertava apenas indiferença, mas também ódio e temor, exigiram que Tom
escolhesse um dos lados, livrando-os de Grace: “você está conosco ou contra nós?”.
Pressionado a posicionar-se, Tom sentiu que também “a sua própria fraqueza
moral fora descoberta por Grace”, e que “assim ruía todo o seu sistema filosófico”. Não
demorou a concluir que “o risco era grande demais”, “Grace era um perigo para a cidade
e para ele também”. Temendo Grace e, mais ainda, temendo ser identificado a ela e com
isso deixar de fazer parte daquele grupo, denunciou-a aos gangsters. Com este gesto,
Tom desencadeava o processo “auto-imune”, em que Dogville seria cúmplice de sua
própria destruição.
- Capítulo 9: “Dogville recebe a tão esperada visita e o filme termina”
Grace reconheceu facilmente o ronco do Cadillac, chegando a Dogville para
buscá-la. Os gangsters a livraram das correntes, levando-a para dentro do carro, onde
174
quem lhe aguardava era seu pai o chefe dos gangsters - de quem Grace fugia todo o
tempo, para surpresa geral. Na discussão entre Grace e seu pai diversas questões se
colocavam enquanto o povo de Dogville, agora do lado de fora, aguardava seu destino:
quem é mais arrogante? Grace, seu pai, Tom? É arrogante oferecer sempre a outra face?
Quem tem o poder de perdoar? A crueldade deve ser perdoada? Quem tem o poder sobre
a crueldade?
Após a conversa com o pai, Grace deu-se conta de que provavelmente teria agido
da mesma forma, identificando-se com os moradores de Dogville: “Grace parou e, ao
fazê-lo, as nuvens se dispersaram deixando a lua à vista. E então ela viu Dogville por
outro ângulo. Era como se a misericordiosa luz anterior finalmente se recusasse a
continuar encobrindo a cidade. De repente, não imaginava mais a groselha que surgiria
no arbusto e sim o espinho que ali se encontrava. A luz penetrava por cada fresta e falha
nas casas e nas pessoas. E, de repente, ela sabia muito bem qual seria a sua resposta. Se
ela tivesse agido feito eles, não poderia ter defendido nenhuma de suas ações e nem as
condenado severamente o bastante. Era como se a sua dor tivesse finalmente assumido o
seu devido lugar. Não. O que eles haviam feito não havia sido bom o bastante. E, se
alguém tivesse o poder de consertar as coisas esse alguém teria a obrigação de fazê-lo,
pelo bem das outras cidades, pelo bem da humanidade. E também pelo bem do ser
humano que era a própria Grace”, diz o narrador.
Então seu olhar mudou, ela voltou para dentro do carro, decidida a usar o seu
poder, aquele que herdara de seu pai mafioso, agindo como ele, “para fazer do mundo um
lugar melhor”: “o mundo ficará melhor sem essa cidade”, disse, para então ordenar a
destruição total, o incêndio da cidade e o assassinato de cada um de seus moradores.
175
Grace vingou-se de Dogville, devolvendo as agressões recebidas, na mesma moeda.
Assim o filme termina (e o público em geral vibra).
Por que “Dogville”?
- “Dogville” e a soberana crueldade da contemporaneidade
A partir de “Dogville”, podemos obter elementos para uma discussão acerca da
agressividade e da crueldade que vemos se manifestar nos dias de hoje, articulando-o
com dados que apresentamos no capítulo anterior.
Neste sentido, este filme pode ser “lido” como um retrato da contemporaneidade,
uma crítica aos mecanismos de funcionamento do Império, principalmente à sua lógica
de mercado. Podemos dizer que em “Dogville” se estabelece uma relação com Grace que
lembra o mercado organizado em torno do consumo. Tom propõe um pacto cruel que
instiga a população a agir de modo também cruel: Dogville te deu duas semanas, o que
você dará a eles?... que tal algo que não precise ser feito?”, disse Tom a Grace (cf.
capítulo 2 do filme), como se lhe dissesse - “ofereça o supérfluo, em breve ele se tornará
necessário”. Deste modo criou-se uma demanda, que em breve cresceria
descontroladamente. O supérfluo tornou-se rapidamente necessário - Grace era então os
olhos de McKay, a mãe de Ben, a amiga de Vera, o cérebro de Bill, cuidava do pai de
Tom...” (capítulo 4) - e os sujeitos mostraram-se capazes de tudo para obtê-lo. Grace
sujeitou-se passivamente, consentindo com este pacto cruel, onde se colocava na posição
de objeto.
176
Grace chegou a Dogville foragida, perdida, faminta, roubando o osso do cão.
Naquela posição, era presa fácil para tornar-se puro objeto de gozo. Grace se oferecia
todo o tempo como objeto, provocando um laço perverso. Tom a capturou como objeto,
como “ilustração” para sua teoria. Ao longo do filme, Grace manteve esta postura passiva
e resignada; lemos, por exemplo, que ela aguardou por duas vezes, escondida na velha
mina, acuada, a decisão sobre seu destino. Grace sujeitava-se passivamente de modo
masoquista - a qualquer decisão sobre seu destino.
Podemos retomar aqui as afirmações de Calligaris, que comentamos na primeira
parte do capítulo III, acerca do laço perverso. Cabe lembrar que, para Calligaris, o termo
“perversão” aqui não designaria uma conduta sexual, mas sim uma forma de laço social.
Quanto a isso, acrescentamos no capítulo anterior que, com relação à questão do
estranho, haveria na contemporaneidade uma recusa (Verleugnung) da familiaridade do
estranho, e que isso poderia ser observado através da profunda indiferença que vemos se
manifestar hoje diante de tantos Outros. Dissemos ainda que esta indiferença diante do
Outro, traço marcante do capitalismo atual, abre o caminho para o exercício de inúmeras
formas de crueldade.
Em “Dogville”, observamos a indiferença que se manifestava diante de Grace,
que chegou ao ponto extremo de fazê-la perder o estatuto de humana, como bem mostra a
passagem onde lemos: após ela [Grace] ter sido acorrentada, tudo ficou mais fácil para
todos. As visitas noturnas não tinham mais que ser secretas pois não eram exatamente
um ato sexual, elas eram uma vergonha, assim como quando um caipira usa uma vaca.
Nada além disso”, dizia o narrador (capítulo 8 do filme). A exploração e a crueldade com
177
relação a Grace se passava diante do olhar indiferente de todos os moradores da cidade,
que mantinham-se entretidos em seus afazeres banais.
Como vimos no capítulo anterior, a partir de Hardt e Negri e também de Sennett,
na sociedade de controle, ou no capitalismo flexível, principalmente com relação ao
mercado de trabalho, o funcionamento em rede, sem divisões hierárquicas bem
delimitadas, atua de modo a diluir também as responsabilidades pelo sofrimento: neste
contexto, a exploração e a desumanização são sempre apontadas como conseqüências
inevitáveis deste modo de funcionamento organizado em torno do consumo e do lucro.
“Dogville” pode ser visto também como uma crítica ao posicionamento
americano diante do mundo de hoje. Este aspecto foi enfatizado em diversas críticas e
comentários sobre o filme, e também em declarações de seu autor/diretor
341
. Neste
sentido, o alvo do filme seria a crença de que os americanos teriam como missão
“civilizar” o resto do mundo, os “bárbaros”, ou osvoyous
342
. Sob este ponto de vista, o
diretor parece denunciar a política externa americana, reproduzindo suas etapas de
dominação - do comércio injusto até a exploração cruel através da relação opressora
que os habitantes de Dogville estabeleceram com Grace. Apesar de reconhecermos que
esta é uma das associações possíveis a partir do filme, consideramos que outros aspectos,
que nos permitem pensar mecanismos de funcionamento mais gerais, são mais
enriquecedores com relação a nosso objetivo de discutir a especificidade das relações de
agressividade e crueldade com o estranho na contemporaneidade.
341
Cf., por exemplo, a entrevista reproduzida no site http://www.dogville.dk, ou ainda em Cahiers du
Cinema
, n
o
579, maio 2003; onde o autor afirmou que a referência aos EUA foi intencional e procurou
alimentar a polêmica em torno do anti-americanismo do filme. Também no Festival de Cannes de 2003,
afirmou que a decisão de filmar sobre os Estados Unidos – mesmo nunca tendo pisado lá - foi uma reação
às críticas negativas dos americanos a seu filme anterior, “Dançando no Escuro” (2000).
342
Sobre a questão da política americana com relação àqueles Estados considerados “voyous”, ver capítulo
III, parte 2.
178
Sobre isso, afirmamos, também no capítulo III desta tese, que o não
reconhecimento da alteridade seria um dos traços característicos dos dias de hoje, quando
veríamos freqüentemente, alternando-se, dois modos de funcionamento onde, de um lado,
uma tentativa de fusão com o outro, e sua alteridade é esvaziada ou, de outro lado, o
sujeito parece se ver diante de uma alteridade tão radical que não há identificação
possível com o Outro, o que abre perigosamente o caminho para a crueldade. Dissemos
que estas duas possibilidades não seriam opostas, mas apresentam em comum o não
reconhecimento da alteridade.
Podemos dizer que em “Dogville” não reconhecimento da alteridade, de
nenhum dos lados: Tom captura Grace como “ilustração de seu sistema filosófico”, não a
recebe como “estrangeira” em sua alteridade.
343
Grace, no mesmo sentido, “compreende”
demais a tudo e a todos, como se não houvesse diferenças. Nestas duas situações, a
alteridade é esvaziada a partir de uma excessiva familiarização com o estranho. no
outro extremo, de um estranhamento radical, devemos lembrar a passagem que
comentamos acima, acerca do momento em que Grace perde o estatuto de humana e seu
direito à palavra – naquele instante não havia identificação possível diante de uma
alteridade tão radical, e a crueldade era sem limites.
Em Dogville, tal como vimos Miller e Lebrun afirmarem, no capítulo anterior,
acerca das relações sociais na contemporaneidade, não havia qualquer instância simbólica
e alteritária reguladora, capaz de indicar aos sujeitos como agir, ficando assim sem
limites as manifestações de ódio. Mesmo que Tom tentasse assumir tal papel de
“guardião da verdade”, se pretendendo um observador externo e isento, a comunidade
343
Comentaremos com mais detalhes esta nossa afirmação na segunda parte deste capítulo, onde
discutiremos a questão da hospitalidade diante do estrangeiro, que implica numa abertura à sua alteridade.
179
não o reconhecia enquanto tal.
344
Vimos que a polícia jamais havia pisado em Dogville,
não havia prefeitura ali, e nem mesmo um padre. Como vimos, na ausência de uma
referência externa, a agressividade freqüentemente explode sem direção, como um ódio
passível de se ligar a qualquer objeto.
Finalmente, a partir destes dados que apresentamos acima, onde comentamos os
aspectos de “Dogville” que nos parecem retratar a contemporaneidade, podemos lembrar
as colocações de Derrida acerca do “auto-imunitarismo”: no momento em que Tom
“escolhe um dos lados”, e telefona para os gangsters, denunciando a presença de Grace,
anuncia-se a auto-destruição de Dogville. Porém, tal como dissemos no capítulo anterior,
com Derrida, acerca dos conflitos característicos da atualidade (por exemplo com relação
às “guerras” atuais, ou ao “terrorismo”), ninguém ali se dava conta deste “terceiro
termo”, da potência destrutiva interna. Em “Dogville”, como tão freqüentemente no
contexto atual, manteve-se a lógica dual do enfrentamento entre “amigo” e “inimigo”,
sendo este último papel atribuído a Grace. Porém, ao tentarem livrar-se dela, como se
fosse um mal exterior, destruiu-se a própria comunidade.
- “Dogville” e a soberana crueldade humana
Mais além de uma crítica à sociedade de controle, ao consumismo, ou à política
externa americana, consideramos que “Dogville” pode ser visto como um nítido retrato
da crueldade humana.
345
Se é fato, como procuramos mostrar anteriormente, que a
crueldade e a agressividade hoje se apresentam de formas peculiares que merecem a
344
E nem ele mesmo resistiu neste papel, no final, quando foi pressionado pela comunidade –você está
conosco ou contra nós?
” (capítulo 8) - escolheu um dos lados: o lado de “dentro” da comunidade, contra
Grace.
345
Mesmo que isso ultrapasse as intenções reconhecidas pelo autor/diretor.
180
nossa atenção, não podemos esquecer que tais manifestações de ódio e indiferença diante
do outro não são exclusivas da contemporaneidade.
Neste filme, a câmera aparentemente neutra e a voz do narrador onipresente
expõem o mais obscuro de cada personagem - revelam o cego, o aleijado, o bêbado, a
família que se odeia, e aqueles que “falsificam copos velhos para que pareçam novos”
(capítulo 1 do filme). Se fosse de fato apenas uma metáfora sobre os Estados Unidos, os
“culpados” seriam bem mais facilmente identificáveis: aqueles que exploram Grace,
“frágil e indefesa”, que no final apenas se vinga do mal que lhe fora infligido. Porém, em
“Dogville”, o que consideramos mais interessante para esta discussão é a perspectiva de
que ali nenhum dos lados tem a razão, não bons ou maus. O filme fala de uma teia de
comportamentos, de formas de agir e reagir em que a “mocinha” mostra-se tão agressiva
quanto o gangster que a persegue, ou o povo que a explora.
346
Em termos freudianos, “Dogville” mostra que “os homens não são criaturas
gentis... o seu próximo é, para eles... alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua
agressividade, a explorar a sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo
sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-
lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo...”.
347
Como afirma Freud, tal inclinação agressiva,
derivada da pulsão de morte, só pode ser desviada, jamais extinta
348
e, para esta função de
346
Grace era explorada cruelmente, mas ela também era arrogante em sua “benevolência cristã” - atribuía a
si um certo “poder”, o poder de compreender e perdoar, de “oferecer sempre a outra face”, por suposta
superioridade moral, social ou intelectual: “eles fazem o seu melhor, eles têm dificuldades...”, dizia Grace.
Deste modo assumia uma atitude de desprezo com relação aos outros, o que claramente contém elementos
agressivos. Além, é claro, de sua atitude inegavelmente agressiva na cena final, que comentaremos mais
adiante.
347
Freud, S. O mal-estar na civilização, op. cit., p.133.
348
Para uma discussão mais detalhada sobre este assunto, ver capítulo II – principalmente os comentários
sobre o texto de Freud “Por que a guerra?” - ou ainda a segunda parte deste capítulo IV, onde retomaremos
esta discussão.
181
fazer frente à agressividade, Freud aposta nas pulsões de vida, na internalização dos
impulsos agressivos, na necessidade de constituir laços sociais, na civilização.
349
Porém, conforme comentamos acima, a polícia jamais pisara em Dogville até
começar a busca por Grace, tampouco havia uma prefeitura ali, nem mesmo um padre. A
cidade era entregue à própria sorte, abandonada pelo poder público, perdida no meio das
Montanhas Rochosas, “lá onde a estrada termina”, imersa na miséria. Quem ou o que
poderia regular suas inclinações agressivas?
A relação entre os moradores da cidade, como fica claro no prólogo, continha
muita agressividade. Vemos isso na forma como se referiam uns aos outros, na forma
como Tom apresentava os aspectos negativos de cada um, nos olhares de ódio entre eles,
na forma agressiva como falavam com Tom e o criticavam na igreja. Se seguirmos com
Freud, que afirma que em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres
humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração
350
,
podemos dizer que Dogville, enquanto uma comunidade, corria perigo.
Porém, a partir da relação com Grace, a estrangeira, vemos que a agressividade
que ameaçava a vida comunitária encontrou um novo alvo, desta vez exterior. Eleita
como “bode expiatório”, Grace favoreceu a coesão entre os membros daquele grupo, que
se uniram contra ela, obscurecendo toda a rivalidade anterior: “É sempre possível unir um
considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para
receberem as manifestações de sua agressividade
351
, lembra Freud, que chamou a este
fenômeno “narcisismo das pequenas diferenças”, conforme comentamos no capítulo II
desta tese.
349
Cf. capítulo II.
350
Freud, S. O mal-estar na civilização, op. cit., p.134.
351
Ibid., p.136.
182
Grace, a inquietante estrangeira, vinda de fora, enxergava e revelava a cegueira de
quem estava ali imerso e os pontos fracos de cada um. Como vimos no capítulo III, com
as afirmações de Enriquez acerca do estrangeiro, alguém nômade, sem estado, coloca
sempre em questão o estado em que se encontra, seu modo de funcionamento, seus
estereótipos, preconceitos, leis, etc, que para aquele que vem de fora nada disso é
evidente ou necessário, mas apenas mais uma cultura entre tantas outras, atravessada por
conflitos e contradições. Deste modo, Grace colocou Dogville em questão; de início isso
teve efeitos positivos que, como vimos, o estrangeiro também desperta atração,
fascinação.
Porém, os primeiros sinais de agressividade se manifestaram através da
discriminação de Grace, dizendo-se, a princípio de modo pouco explícito, que ela não
fazia parte daquele grupo, com a proibição de que ela passasse por certos caminhos
(capítulo 5 do filme). Logo ela passaria a ser vista como um risco, uma ameaça de
dissolução daquela comunidade, ao apontar seus “defeitos”, como percebemos quando a
população pediu a Tom que “os livrasse de Grace, e daquelas mentiras e acusações”
(capítulo 8 do filme). Não demoraria para que a discriminação desse lugar à crueldade
contra a estrangeira, e o que prevaleceu foi a repulsa e toda a hostilidade que era de se
esperar: o lugar que foi inicialmente concedido a Grace, o velho moinho abandonado e
reformado para recebê-la - lugar de acolhimento - mais tarde se tornaria seu lugar de
confinamento e o pesado volante que estava desde o inicio passaria a servir para
prendê-la.
Na cena final (capítulo 9), onde se dá o diálogo entre Grace e seu pai, assistimos a
uma discussão sobre o poder, a crueldade, o perdão. Dissemos que Grace mostrava-se tão
183
agressiva quanto todos ali, não havia bons e maus. Grace parece dar-se conta da própria
agressividade e também da agressividade de Dogville, após o encontro com o pai. Por
identificação, percebeu que provavelmente teria agido da mesma forma que os
moradores da cidade.
Ali se abria para ela a possibilidade de alguma outra saída, após ter se dado conta
dos mecanismos em questão. Cabe perguntarmos então: Grace poderia ter escolhido outra
saída? Entendemos que sua atitude foi colada no pai, ela agiu como ele, identificada com
a sua lógica, imaginariamente. Do mesmo modo, agiu por identificação com os habitantes
de Dogville e sua agressividade, confirmando o predomínio do funcionamento especular.
Poderia haver uma saída simbólica, que incluísse um terceiro, para evitar o “ou eu ou
eles” - chamar a polícia, por exemplo? Vemos logo que haveria aí um problema, que a
polícia era corrompida, cúmplice de seu pai, fora da lei.
Grace manteve o mesmo princípio que a guiava anteriormente: em nome de um
suposto “bem”, decide que “o que eles haviam feito não havia sido bom o bastante”,
arrogando para si a função e o poder de velar por este bem. Entre o perdão e a vingança,
Grace escolheu esta última, identificada ao pai-gangster. Sua atitude, plena de
agressividade, não foi de todo inesperada: prevaleceu a lógica imaginária “ou eu ou
ele(s)” necessariamente agressiva.
352
Assim, à agressividade se respondeu com
agressividade: Grace ordenou a destruição total de Dogville, que consistiu no incêndio da
cidade e o assassinato de cada um de seus habitantes, incluindo a morte de crianças e um
bebê diante dos olhos da mãe, devolvendo na mesma moeda toda a agressão que sofrera.
352
Vimos esta mesma lógica dual prevalecer em diversos momentos do filme, por exemplo, quando a
população diz a Tom “você deve escolher entre nós ou ela”,
está conosco ou contra nós?” (capítulo 8).
184
Assim o filme termina, e em geral o público vibra. Por que vibramos com a
vitória do ódio, da vingança, do “olho por olho”?
“Dogville” é um filme sobre o ser humano e sua inclinação à agressividade e à
crueldade. O filme evita condenar e perturba a postura passiva do espectador, que tende a
procurar um culpado e uma vítima em oposição. Como dissemos, a forma deste filme,
principalmente a ausência de cenários, faz com que cada espectador precise imaginar
Dogville, construir suas casas, enxergar suas paisagens. Aos poucos, ele tende a se
identificar, sentindo o mesmo desejo de vingança de Grace, o que faz com que o filme se
torne muito mais eficaz. Neste sentido é interessante notarmos o entusiasmo que costuma
tomar conta da platéia ao assistir a reviravolta de Grace. Acreditamos que, deste modo,
um filme como este pode servir como ponto de partida para reflexão e discussões
importantes, ao permitir que cada sujeito coloque em questão a sua própria crueldade.
185
A impossível hospitalidade e a hospitalidade possível
Vimos em “Dogville” a crueldade reinar soberana, sem nada que lhe pudesse
fazer frente. A estrangeira facilmente tornou-se alvo de toda a agressividade daquela
comunidade, e sua resposta também foi agressiva: a lógica dual, “ou eu ou ele(s)”,
prevaleceu, à agressividade se respondeu com agressividade, e o final foi a destruição da
comunidade. Dissemos que “Dogville” acontece hoje e, mais ainda, que podemos ver ali
um retrato da crueldade humana, que existe desde sempre. A questão que nos provoca à
reflexão neste momento é, então: há alternativas para esta crueldade?
Em nossa “leitura” de “Dogville”, encontramos no filme alguns paralelos com
temas caros a Derrida, um autor cujo pensamento vem nos acompanhando desde o início
desta tese. Questões como a ética do dom, o perdão e seus fracassos e, sobretudo, a dupla
hostilidade/hospitalidade, são tão centrais em “Dogville” quanto no pensamento de
Derrida.
353
Destes temas derridianos sobre os quais o filme nos permite refletir,
ressaltaremos aquele da hospitalidade. A escolha deste tema deve-se ao fato de
considerarmos que a partir deste conceito um caminho indicado, uma possível
abertura, que aponta para a possibilidade de um “destino” diferente para a crueldade
humana. Veremos adiante que a partir do conceito de hospitalidade é possível uma
abordagem da questão da crueldade sem negá-la nem evitá-la: ao reconhecer a
hospitalidade, assim como a crueldade, como próprias do humano, abre-se a possibilidade
de “desvios”, de caminhos alternativos para a crueldade.
353
Encontramos também como paralelo entre “Dogville” e o pensamento de Derrida o fato, que
comentamos anteriormente, deste ser um filme “entre” - entre cinema, literatura e teatro - o que poderíamos
aproximar da escrita
Unheimlich de Derrida – entre filosofia e literatura.
186
O conceito de hospitalidade é bastante central na obra de Derrida, tendo se
tornado mais explicitamente presente em seus textos nos anos 90. É intimamente ligado à
questão da alteridade, base de sua filosofia da différance
354
: “... a différance não é uma
distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movimento de espaçamento... uma
referência à alteridade, a uma heterogeneidade que não é primordialmente
oposicional”.
355
Podemos dizer ainda que a própria leitura desconstrutiva que Derrida
propõe, inclui um exercício de hospitalidade
356
: Derrida faz com que as obras a serem
desconstruídas falem a partir do interior de si próprias, através de suas margens, suas
falhas, seus brancos, suas contradições, respeitando-as, sem procurar condená-las à
morte, daí a idéia de que a melhor maneira de ser fiel a uma herança é ser-lhe infiel,
isto é, não recebê-la à letra, como uma totalidade...”.
357
É também deste modo “hospitaleiro” que Derrida solicita
358
a psicanálise,
recebendo-a e respeitando-a em sua alteridade, sem buscar reduzi-la a um mesmo, porém,
sem se furtar a desconstruí-la, apontando seus limites. Derrida considera que a psicanálise
tem muito a contribuir numa reflexão sobre a crueldade, por ser o único discurso capaz de
abordar a crueldade sem álibi. A partir daí, procuraremos mostrar que a psicanálise
também tem muito a contribuir sobre o tema da hospitalidade e de suas impossibilidades,
354
“Neo-grafismo” proposto por Derrida, produzido a partir da introdução da letra “a” na escrita da palavra
différence.
355
Derrida, J.; Roudinesco, E. De que amanhã: diálogo. RJ, Ed. JZE, 2004, p.34.
356
Não seria demais dizer que a hospitalidade diante da alteridade foi uma questão central não só na obra
de Derrida, mas também em sua vida – quanto a isso, podemos lembrar aqui o filme-documentário
D’ailleurs, Derrida”, uma biografia do filósofo dirigida pela poetisa egípcia Safaa Fathy: após as
filmagens, Derrida e a diretora escreveram um livro a quatro mãos - “Tourner les mots” – onde ambos
reconhecem como tema central desta biografia o tema da hospitalidade (Derrida, J., Fathy, S.
Tourner les
mots – Au bord d’un film
. Paris, Éditions Galilée / Arte Éditions, 2000, p.23). No livro comentam ainda
que o termo “
ailleurs”, do título do filme, consistiria numa referência à alteridade (Ibid., p.104).
357
Derrida, J.; Roudinesco, E. De que amanhã: diálogo, op. cit., p.11.
358
Derrida utiliza-se do termo solliciter que vem de solus, em latim arcaico: o todo; e de citare: empurrar –
significando “sacudir com um abalo o todo”. Assim, entendemos que a desconstrução solicita, ao mesmo
tempo em que abala a totalidade do discurso a ser desconstruído (
Cf. Santiago, S. (org.). Glossário de
Derrida,
op. cit., p.87).
187
justamente por não recorrer a álibis para justificar a crueldade que tantas vezes faz limite
à hospitalidade.
Derrida e a alteridade
Neste capítulo nos centraremos no conceito de hospitalidade de Derrida; porém,
de início, é importante situarmos este conceito em sua obra, lembrando que a
hospitalidade deve ser referida a uma questão mais ampla e central o tema da
alteridade. Influenciado por Lévinas, toda a obra de Derrida é perpassada pela questão da
alteridade, do cuidado com a singularidade do outro, o que constitui uma preocupação
ética e política.
359
Derrida se interessa pelas formas pelas quais o outro elude o
entendimento mútuo e o consenso. Daí o realce à assimetria, à não-reciprocidade e às
falhas do entendimento mútuo nas suas análises”.
360
Deste modo, este autor defende uma
certa “positivação” do conflito e do dissenso, inevitáveis em todo encontro com a
alteridade: se garantirmos algum tipo de privilégio em re-unir e não em dissociar, afirma,
então não deixaremos espaço para o outro, para a alteridade radical do outro, para a
singularidade radical do outro. Para Derrida, a separação ou a dissociação não constituem
um obstáculo para a sociedade, para a comunidade, mas são justamente a sua condição.
361
Neste sentido, o importante no conflito é justamente a dissociação, e não uma perspectiva
de “solução” do conflito pela re-união, que exige sempre uma certa homogeneização e
supressão das diferenças.
359
Ortega, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. RJ, Ed. Relume Dumará, 2000,
p.52.
360
Ibid., p.53.
361
Ibid., p.78.
188
Consideramos esta colocação de Derrida bastante importante, principalmente para
a nossa reflexão que leva em conta os modos de relação com a alteridade e, mais
especificamente, as formas de crueldade que vemos ser dirigida ao estranho na
contemporaneidade. Comentamos nos capítulos anteriores o quanto a dimensão do
conflito parece esvaziada na atualidade
362
, e as conseqüências que isso traz, como o
aumento das manifestações de ódio sem mediação. Dissemos também que atualmente,
nas relações com o outro, freqüentemente alternam-se dois modos, que têm em comum o
não reconhecimento da alteridade: ora vemos tentativas de fusão com o outro, ora este
parece representar uma alteridade tão radical que não identificação possível, o que
abre perigosamente o caminho para toda forma de crueldade. É neste ponto que o
pensamento de Derrida nos parece importante, ao colocar o reconhecimento da alteridade
como algo tão fundamental.
Derrida nos mostra que a utopia de um mundo livre de conflitos teria
conseqüências desastrosas, que não existe consenso sem exclusão da alteridade. Para
ele, a defesa e o realce do conflito e da luta são compatíveis com um pensamento da
justiça, do dom, da hospitalidade, da responsabilidade.
363
No contexto desta reflexão, Derrida critica duramente o ideal de fraternidade da
Revolução Francesa, mostrando que o conceito humanitário de fraternidade esconde um
extraordinário poder discriminatório e agressivo: A mesma Revolução que proclamava a
fraternidade universal decreta a morte de seus inimigos...”.
364
Conforme comentamos no
segundo capítulo desta tese acerca do “narcisismo das pequenas diferenças”, a
362
Cf. capítulo III parte 1, principalmente a parte em que comentamos a afirmativa de Sennett sobre o
declínio da narrativa na contemporaneidade, ou os comentários de Lebrun sobre a evitação do conflito.
363
Ortega, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Op. cit., p.53.
364
Ibid., p.64.
189
manutenção de um grupo é favorecida quando a agressividade de seus membros é
dirigida a alvos externos, porém próximos, que contenham pequenas diferenças. Assim, a
estratégia discursiva contida na proclamação de uma fraternidade universal “todos os
homens são irmãos” - conduz freqüentemente à negação do estatuto de humanidade aos
indivíduos de outras raças, religiões, etc. E, conforme afirmamos aqui, a partir do
momento em que uma “desumanização” do outro, abre-se o caminho para as
manifestações mais cruéis.
365
Entendemos que, para Derrida, a lógica fraternalista se mostra uma perigosa
ilusão, que é necessariamente permeada pela agressividade que nega, funcionando
segundo a lógica dual “ou eu ou ele”, como bem nos mostrou o conto “William Wilson”,
de Poe. Na relação com a alteridade, para que haja de fato um encontro com o Outro,
mantido em sua diferença, deve haver necessariamente uma certa distância. Este
pensamento, neste sentido, é bastante de acordo com Freud que, conforme comentamos
no segundo capítulo, recorreu à fábula dos porcos-espinhos no inverno - cujo tema era a
necessidade da manutenção de uma mínima distância para que os animais não se
destruíssem mutuamente - para referir-se ao funcionamento dos grupos e à agressividade
que freqüentemente se manifesta aí.
Sobre isso, Ortega comenta que uma certa distância permite respeitar o outro e
promover a sensibilidade e a delicadeza necessárias para perceber sua alteridade e
singularidade, que o excesso de proximidade e intimidade leva à confusão: É
necessária uma distância entre os indivíduos para poder haver sociabilidade”.
366
A partir
daí, formula uma questão quanto à contemporaneidade que é de nosso interesse ressaltar:
365
Cf. capítulo II, onde apontamos a distinção entre agressividade e crueldade, e também no preâmbulo
deste capítulo, nosso comentário acerca do tratamento recebido por Grace em “Dogville”.
366
Ibid., p.110.
190
alguns autores afirmam que o fomento da solidão e da distância nas relações pode ser
preocupante no contexto sociopolítico contemporâneo, onde predomina uma ideologia
do individualismo liberal aliada aos imperativos do mercado”.
367
Ortega acredita, porém,
que é precisamente nesse contexto que se faz tão importante o cultivo de um ethos da
distância, solidão e silêncio, nesta sociedade dominada pela “tirania da intimidade”.
Sobre isso cita Sennett, em “O declínio do homem público”, acerca desta tirania da
intimidade que caracteriza a sociedade contemporânea, e que se manifesta numa “vida
pessoal desequilibrada e uma esfera pública esvaziada”: a ideologia da intimidade
transforma todas as categorias políticas em psicológicas. Hoje a “comunicação” é o
conceito básico da moderna teoria da sociedade, onde o “silêncio” é associado à
repressão. Assim criamos uma sociedade que incita à fala (vazia?), sobretudo à fala sobre
o sexo, “arcano de nossa identidade e intimidade”.
368
Deste modo, o que temos hoje é
uma valorização bem maior do “tornar-se conhecido” do que de “conhecer os outros”.
369
Nesta “sociedade íntima” perde-se a faculdade de uma sociabilidade sadia e
criativa para a qual é necessária uma certa distância e “estranhamento”. Introduzir uma
distância nas relações, comenta Ortega, não significa renunciar a nos relacionarmos e a
nos comunicarmos
370
, mas trata-se, antes, de levar a sério a incomensurabilidade
existente entre o eu e o outro, o que impede a sua incorporação narcisista; trata-se de
levar em conta a estranheza radical do Outro.
367
Ibid., p.83.
368
Ibid., p.110.
369
Quanto a isso seria difícil não lembrarmos dos onipresentes Reality Shows”, em que assistimos a
exibição de intimidades vazias; ou ainda podemos lembrar as infindáveis pesquisas de opinião e a
interatividade nos meios de comunicação, que fomentam ilusões de democracia e participação, num
incessante estímulo a que se diga, uma “livre expressão” que veicula falas vazias.
370
Ortega, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Op. cit., p.114.
191
Acreditamos que o pensamento de Derrida nos permite propor uma forma de
relacionamento que não exclui a alteridade, mas justamente leva em conta sua estranheza
radical. Derrida nos fala da importância da abertura àquele que chega, abertura àquilo que
acontece, de modo sempre imprevisível, que não se restringe a um funcionamento
narcísico:
“Se coisas chegam, se uns e outros chegam, sobretudo os outros, os chegantes, é
sempre como o impossível para além de todos os enunciados instituintes, para
além de todas as convenções, para além do controle, para além do ‘eu posso’, para
além da economia da apropriação... Se os outros chegam, de perto ou de longe, da
família ou do estrangeiro mais longínquo, eles o fazem, como tudo o que chega,
como todo evento digno desse nome, como tudo o que vem, sob a forma do
impossível, para além de toda convenção e de todo controle cênico...”.
371
Neste ponto poderíamos retomar “Dogville” numa tentativa de entendermos, a
partir destas contribuições de Derrida, senão o “porque” da crueldade que vimos se
manifestar ali, ao menos “como” a crueldade foi desencadeada naquele contato com o(a)
estrangeiro(a). Com os elementos que temos até aqui, podemos dizer que Grace não
chegou a Dogville de modo imprevisível: apesar de seu nome, que remete a uma “graça
divina”, Grace não “chega” nem “acontece” (arrive) como um dom (gift). Pelo contrário,
“algo” como Grace era esperado e buscado por Tom, o “intelectual”, para servir de
ilustração para sua “teoria sobre a aceitação e a moral dos habitantes da cidade”. Tom na
verdade não acolheu Grace, não teorizou a partir de sua chegada, Grace foi capturada
para ilustrar uma teoria já pronta, tendo sido logo de início mantida prisioneira por Tom e
seu “sistema filosófico”.
372
371
Derrida, J. Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade, op. cit.,
p.38.
372
Lembramos aqui a fala do narrador, quando Tom se deparou com Grace pela primeira vez (capítulo 1 do
filme): “
O nome da linda fugitiva era Grace. Ela não havia escolhido Dogville no mapa ou decidido fazer
uma visita. Mas Tom sentiu de imediato que aquele era o lugar dela
”.
192
Assim, mesmo que mais adiante no filme a agressividade e a crueldade tenham
se tornado explícitas (quando Grace foi feita prisioneira de todos os moradores de
Dogville) vemos que desde o início ela foi capturada. Grace foi recebida como um “dom
calculado”, o que, segundo Derrida, é necessariamente um engodo. Neste cálculo, exclui-
se a possibilidade de um encontro com a alteridade, não a surpresa do novo, do Outro
que chega ou acontece.
Discutiremos a seguir o conceito de hospitalidade tal como proposto por Derrida,
o que nos trará mais elementos pra entendermos como Grace tornou-se alvo de toda a
crueldade de Dogville ou, mais especificamente, como Dogville tornou-se uma “cidade
inóspita”.
Sobre a hospitalidade
Dissemos que o conceito de hospitalidade inscreve-se na obra de Derrida no
campo mais amplo da temática da alteridade. A hospitalidade, para Derrida, implica na
capacidade de se deixar afetar pelo outro, de se deixar expor, questionar, alterar,
desestabilizar, até mesmo desalojar, sem julgamentos prévios. A irrupção do outro, sua
chegada, para Derrida, é sempre um acontecimento singular, capaz de abalar a identidade
de quem o recebe, havendo sempre o risco de que outro seja tão Outro que revolucione o
próprio espaço ou quem o recebe. Poucas palavras são tão associadas à hospitalidade
como o termo “abertura”: abertura de si sobre o outro, sobre o exterior que, como
veremos, depende de uma abertura sobre si mesmo.
193
Para Derrida, o que é próprio do homem, à diferença do animal, é sua capacidade
de oferecer hospitalidade não a outro homem, mas também aos animais, plantas... e
aos deuses.
373
O homem seria capaz de ser hospitaleiro, não com relação a um outro
semelhante, mas também com relação a um Outro distante, estranho. Porém, assim como
a hospitalidade, também a crueldade é própria do humano, e Derrida em momento algum
negligencia este dado.
374
Vimos no segundo capítulo desta tese a relação entre o
narcisismo e a agressividade como dois lados de uma mesma moeda, indecidíveis, e
retomamos acima a questão da agressividade presente na retórica da fraternidade; neste
mesmo sentido, veremos que a hospitalidade é intimamente relacionada com a
hostilidade
375
: os meios hospitaleiros para receber e incorporar aquele que chega podem
incluir também medidas destinadas a neutralizá-lo; o mesmo espaço de acolhimento,
concedido àquele que chega, pode se tornar um espaço de confinamento e prisão.
376
Se é fato, como comentamos longamente no início desta tese, que o eu se constitui
em sua relação com a alteridade e que, antes de qualquer relação com o outro é
impossível falar de um eu, podemos dizer também que desde sempre aquele que recebe –
o “anfitrião” (hôte) - se encontra numa posição de "refém" (otage) do outro: a acolhida do
outro deixa o sujeito refém deste outro, sem o qual ele nada é. Nascimento comenta que
Derrida tira o máximo proveito da coincidência terminológica em francês entre hóspede
(hôte) e anfitrião (hôte) e, ao mesmo tempo, da proximidade dessas duas palavras com
373
Derrida, J. De l'hospitalité - Anne Dufourmantelle invite Jacques Derrida à répondre De
l'hospitalité
. Paris, Calmann-Lévy, 1997, p.124.
374
Retomaremos esta questão mais adiante, ao nos referirmos à “crueldade sem álibi”.
375
É importante lembrarmos que “host” é o radical de ambos os termos, hospitalidade e hostilidade.
Derrida chegou a propor o neologismo “hostipitalidade” (
hostipitalité”) como título de um de seus
seminários, de 21/02/1996.
376
Foi o que ocorreu com Grace em “Dogville”, conforme comentamos acima, o lugar que lhe havia sido
concedido como moradia, acolhimento, tornou-se sua prisão.
194
refém (otage). Tudo isso para referir-se à alteridade radical de que o sujeito é,
“indecidivelmente”, anfitrião, hóspede e refém.
377
Sobre a importância da alteridade na constituição do sujeito, Derrida afirma que
para se constituir um chez soi”, uma “casa habitável”, deve haver “aberturas, portas e
janelas”, deve haver uma passagem para o estrangeiro. Assim, a “mônada” do chez soi
deve ser hospitaleira para ser ipse”.
378
Neste sentido, “próprio” onde relação
com o estrangeiro ou, em outros termos, não há eu sem outro.
Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, Derrida afirma que não hospitalidade
sem uma certa soberania do soisobre o chez soi”, que se pode receber num
território sobre o qual se tem alguma soberania.
379
Então, a hospitalidade não depende do
fim de toda e qualquer soberania, o que de todo modo seria utópico e indesejável.
380
Derrida afirma que o termo “soberania” significa onipotência, poder sem limites e
incondicional; mas também implica os valores de liberdade e autodeterminação, e por
isso é difícil, e até perigoso, prescindir do termo.
381
Sobre esta relação entre hospitalidade
e soberania, Derrida lembra, por exemplo, que o “visa”, visto de autorização para a
entrada de estrangeiros num país, é símbolo e depende da soberania do Estado, de seu
poder de decidir quem entra ou não em seu território.
Quanto à questão da hospitalidade diante do estrangeiro ou, mais especificamente,
quanto à situação dos imigrantes na Europa de hoje, Derrida mostrou em seus atos e
377
Nascimento, E. Ética, política e violência original. Publicado no site http://www.estadosgerais.org
378
Derrida, J. De l'hospitalité - Anne Dufourmantelle invite Jacques Derrida à répondre De
l'hospitalité
, op. cit., p.57.
379
Ibid., p.115.
380
Cf. o comentário de Derrida acerca da soberania dos estados, discutida nesta tese no capítulo III - parte
1, onde citamos sua afirmação de que “a soberania não é um inimigo a ser combatido”, mas tem funções
importantes e que devem ser mantidas.
381
Cf. Derrida, J. O que quer dizer ser um filósofo francês hoje?” in Papel-Máquina. SP, Estação
liberdade, 2004.
195
escritos que sua noção de hospitalidade ia muito além de um conceito teórico, tendo feito
questão de se posicionar ativamente em termos políticos. Sobre a problemática da
imigração na França, país que adotou para viver ele mesmo como estrangeiro, imigrante
argelino, Derrida discordou com veemência daqueles que diziam que não haveria lugar
para acolher mais estrangeiros, e das afirmações segundo as quais a imigração teria
aumentado muito nos últimos anos, considerando-as como “fantasias temerosas daqueles
que se viam ‘invadidos’ pela imigração magrebiana”.
382
Afirmou então que não se tratava
de defender um apagamento das fronteiras ou dos vistos, que seria ilusório pretender
uma ausência total de controle dos fluxos migratórios. Tratava-se antes de reconhecer as
injustiças e as “fantasias securitárias”
383
em questão, para que fosse possível uma política
de imigração mais “hospitaleira” - generosa e responsável, apesar de não menos
calculada.
384
Então, vimos que tanto uma certa soberania quanto uma certa abertura (“as portas
e janelas” de que fala Derrida) são necessárias para possibilitar a hospitalidade. Se a
alteridade é aquilo ou aquele que chega, de modo imprevisível, sem que o sujeito esteja
preparado, paradoxalmente, é necessário um certo “preparo”, que consiste na abertura
que possibilita receber a diferença. Quando o outro chega, para que seja de fato Outro e
não uma projeção egóica do mesmo, cabe recebê-lo em sua estranheza e, para isso, é
382
Derrida, J.; Roudinesco, E. De que amanhã: diálogo, op. cit., p.78.
383
Em diversos momentos, por exemplo, em sua conferência no Colóquio Internacional Jacques Derrida,
na Maison de France, Rio de Janeiro, em 16/08/04, Derrida mostrou sua preocupação diante do fato de que
hoje a discussão sobre a justiça fica freqüentemente obscurecida pela discussão sobre a segurança.
384
Também quanto a este tema da hospitalidade diante do estrangeiro, Derrida mostrou seu engajamento
político em sua intervenção sobre a questão dos “
sans-papiers” na França e a polêmica da denominação
“delito de hospitalidade”, em 1996: uma família bretã havia abrigado, a título amistoso, amigos bascos em
situação ilegal. Segundo uma lei, o legislador poderia perseguir pessoas que, mesmo a título pessoal e
privado, recebessem em sua casa, ou em sua mesa, pessoas em situação ilegal. Sobre este episódio, Derrida
afirmou: “
Essa expressão [“delito de hospitalidade”] me pareceu chocante. De um só golpe, pois isso foi
também um golpe, a oferta de hospitalidade era associada a um ato de delinqüência
” (Derrida, J.;
Roudinesco, E.
De que amanhã: diálogo, op. cit., p. 76).
196
preciso um mínimo de afinidade e mesmo familiaridade com o estrangeiro, inclusive com
o nosso estranho-íntimo, a fim de que possamos não acolhê-lo enquanto Outro, mas
deixar que nossa “própria casa” seja alterada por sua diferença radical.
Quando apenas soberania sem esta abertura, o máximo que pode haver,
segundo Derrida, é uma “tolerância” ao outro. Derrida insiste na importância de uma
distinção entre o seu conceito de hospitalidade e aquele de tolerância, criticando este
último. Considera o termo “tolerância” demasiadamente permeado por uma tonalidade
religiosa, enraizado na noção cristã de caridade, e portanto inadequado para uma política
que se pretenda laica: Por certo a tolerância é antes de mais nada uma forma de
caridade. Uma caridade cristã, portanto, ainda que judeus e muçulmanos pudessem
parecer se apropriar desta linguagem também”.
385
Além deste sentido religioso,
acrescenta: Na França, a expressão ‘limite de tolerância’ era usada para descrever o
limiar além do qual não é mais decente pedir a uma comunidade nacional que acolha
outros estrangeiros, trabalhadores imigrantes...”.
386
Deste modo, sempre atento a
questões de linguagem, Derrida desconstrói a noção de tolerância, notando ainda que não
seria mera coincidência o fato de o discurso biológico ter se apropriado deste termo para
indicar a tênue fronteira que existe entre a integração e a rejeição: nos transplantes
(greffes) de órgãos, o “nível de tolerância” designa o limite para além do qual o
organismo renuncia a lutar para se manter em equilíbrio antes de sucumbir.
A distinção que ele opera entre essas noções de hospitalidade e tolerância não se
resume a sutilezas semânticas, mas designa aquilo que de primordial em sua
aproximação da ética e da política: a obrigação única de cada um de nós diante do outro.
385
Derrida, J. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos in Borradori, G. (org.) Filosofia em tempo de
terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida,
op. cit., p.137.
386
Idem.
197
Para Derrida, “a tolerância está sempre do lado da ‘razão do mais forte’, é uma marca
suplementar de soberania”; como se um soberano dissesse ao outro: “eu te deixo viver,
você não é insuportável, eu te permito um lugar em minha casa, mas não se esqueça, eu
estou em minha casa”.
387
Assim, a tolerância seria o contrário da hospitalidade, que Derrida propõe como
alternativa: “a tolerância é o inverso da hospitalidade. Em todo caso, é o seu limite”.
Porém acrescenta: é claro que mais vale uma tolerância limitada que uma intolerância
absoluta. Mas a tolerância permanece uma hospitalidade fiscalizada, sempre sob
vigilância, parcimoniosa e protetora da soberania”.
388
A hospitalidade condicional e a hospitalidade incondicional
Esta hospitalidade vigiada, calculada, próxima do conceito de tolerância, Derrida
denomina “hospitalidade condicional” (ou “hospitalidade de convite”), e a ela opõe uma
“hospitalidade incondicional” (“hospitalidade pura” ou “hospitalidade de visita”). A
hospitalidade incondicional “consiste em deixar advir o visitante, o que chega
inesperadamente sem lhe pedir contas, sem lhe exigir o passaporte”
389
, isto é, consiste em
acolher aquele que chega, antes de lhe impor condições, “antes de saber e perguntar
qualquer coisa, mesmo seu nome ou um documento de identidade”. Mas esta
hospitalidade supõe também que nos enderecemos ao outro, singularmente, que o
chamemos reconhecendo-lhe um nome próprio, fazendo de tudo para lhe reconhecer, “até
mesmo perguntando seu nome, porém evitando que esta questão se torne uma ‘condição’,
387
Idem.
388
Ibid., p.138.
389
Derrida, J.; Roudinesco, E. De que amanhã: diálogo, op. cit., p.77.
198
uma inquisição policial ou um controle de fronteiras”. A hospitalidade pura, nas
formulações de Derrida, refere-se tanto à passagem de fronteiras de um país quanto à
vida cotidiana: está em jogo quando alguém chega, diante de um acontecimento qualquer,
ou mesmo quando o amor acontece.
Entendemos esta hospitalidade incondicional como um posicionamento ético, ou
mesmo como uma posição subjetiva, que seria como uma abertura, um “interesse
responsável” ou uma “curiosidade respeitosa” pelo Outro que chega, ou por aquilo de
Outro que acontece, que deve estar sempre no horizonte, já que é o que dá sentido a toda
hospitalidade.
Derrida reconhece que “a hospitalidade incondicional é impossível”
390
, e neste
sentido afirma: é claro que uma comunidade cultural ou lingüística, uma família, uma
nação (ou, podemos acrescentar, um sujeito), não podem deixar de suspender, ou mesmo
deixar de trair, esse princípio de hospitalidade absoluta, para se proteger, garantindo o
“próprio” e a “propriedade” contra a chegada ilimitada do outro, mas também para tentar
tornar o acolhimento efetivo, concreto.
391
Porém, ao “impossível” Derrida atribui uma positividade: “o impossível é aquilo
que acontece”.
392
Sobre isso, Ortega comenta que o impossível se distingue da utopia,
que é associada com freqüência ao sonho, à desmobilização, a um impossível que conduz
antes à renúncia que à ação”.
393
Em contrapartida, o “impossível” em Derrida daria seu
movimento ao desejo, à ação, à decisão, “esse impossível não é negativo, é uma
390
Outras figuras de incondicionalidade no pensamento de Derrida seriam o dom e o perdão, que estariam
para além do cálculo, da desculpa, da anistia, etc.
391
Derrida, J. O princípio da hospitalidade in Papel-Máquina, op. cit., p. 249. Como dissemos acima, a
hospitalidade depende da abertura, mas também depende de alguma soberania sobre o que é “próprio”.
392
No original: « Mais l’impossible n’est pas rien. C’est même ce qui arrive, par définition ». (Derrida, J.
Voyous, op. cit., p.204).
393
Ortega, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Op. cit., p.55.
199
afirmação”. A aporia é justamente este pensamento do impossível que não conduz à
paralisia: a experiência do impossível está ligada à indecidibilidade, que acompanha
toda decisão... não existindo nenhum código político capaz de justificar uma decisão....
O indecidível não é um momento que deva ser superado na busca do consenso, mas
acompanha toda decisão...”.
394
Neste sentido, vemos que a aporia ou o “impossível”
permite a manutenção do conflito, fundamental para que se mantenha aberto o caminho
para a alteridade.
Se é fato que a hospitalidade incondicional é impossível, é fato também que é
sempre em seu nome que se deve tentar determinar as melhores condições possíveis de
acolhimento, os limites e leis da hospitalidade condicional. É sempre em nome da
hospitalidade pura que se deve, para torná-la o mais efetiva possível, inventar as
melhores disposições, as “menos piores” condições, a legislação mais justa.
395
Derrida
reconhece que só a partir da criação de regras e condições torna-se possível que a
hospitalidade ocorra no social: “Daí as condições que transformam o dom em contrato, a
abertura em pacto de polícia, daí os direitos e deveres, as fronteiras, passaportes e
portos, daí as leis a propósito de uma imigração, cujo ‘fluxo’, como se diz, precisa ser
‘controlado’”.
396
Podemos entender então que não se pode fazer da hospitalidade incondicional um
conceito político ou jurídico, mas esta deve permanecer como algo da ordem do dom,
impossível. A hospitalidade incondicional expõe sem limites à vinda do outro, para além
do direito, para além da hospitalidade condicional, do direito de asilo, de imigração ou de
394
Ibid., p.55.
395
Derrida, J. O princípio da hospitalidade in Papel-Máquina, op. cit., p.250.
396
Ibid., p.249.
200
cidadania
397
, excede o cálculo jurídico, político ou econômico. Apenas a hospitalidade
condicional pertence à ordem das leis, regras ou normas éticas, jurídicas ou políticas
nacionais e internacionais.
uma relação paradoxal entre estes dois conceitos - hospitalidade incondicional
e condicional - indissociáveis e heterogêneos. Essas duas formas de hospitalidade, apesar
de irredutíveis uma à outra, não se contradizem, permanecendo heterogêneas ao mesmo
tempo em que fazem apelo uma à outra: Calcular os riscos, sim, mas sem fechar a porta
ao incalculável, ou seja, ao porvir e ao estrangeiro, eis a dupla lei da hospitalidade”.
398
Sobre a relação necessária entre as duas formas de hospitalidade, transcrevemos a
seguir uma citação que consideramos esclarecedora, ao mesmo tempo em que nos
suscitou algumas questões:
“A hospitalidade pura ou incondicional supõe que o que chega não foi convidado
para ali onde permaneço senhor em minha casa e ali onde controlo minha casa,
meu território, minha língua, onde ele deveria (segundo as regras da
hospitalidade condicional, ao contrário) se curvar de certa forma às regras em uso
no lugar que o acolhe. A hospitalidade pura consiste em deixar sua casa aberta
para o que chega imprevisivelmente, que pode ser um intruso, até mesmo um
intruso perigoso, eventualmente suscetível de fazer o mal. Essa hospitalidade pura
ou incondicional não é um conceito político ou jurídico. Com efeito, para uma
sociedade organizada que possui suas leis e quer manter o controle soberano de
seu território, de sua cultura, de sua língua, de sua nação, para uma família, para
uma nação que quer controlar sua prática de hospitalidade, é preciso de fato
limitar e condicionar a hospitalidade. Pode-se fazê-lo às vezes com as melhores
intenções do mundo, pois a hospitalidade incondicional também pode ter
efeitos perversos”.
399
Derrida não esclarece o que seriam esses tais “efeitos perversos” da hospitalidade
incondicional, que fazem com que ela deva ser limitada pelas leis que regem a
397
Derrida, J. Voyous, op. cit., p.205.
398
Derrida, J. O princípio da hospitalidade in Papel-Máquina, op. cit., p.250.
399
Derrida, J.; Roudinesco, E. De que amanhã: diálogo, op. cit., p.77. Grifos nossos.
201
hospitalidade condicional. Retomando mais uma vez “Dogville”, consideramos que
podemos avançar na compreensão de alguns destes efeitos perversos aos quais o autor se
refere: na falta de regras que regulamentem o acolhimento de quem chega, tudo de
melhor e tudo de pior é possível. “Dogville” mostra o perigo de se pretender aplicar, pôr
em prática, no campo político-social, uma hospitalidade incondicional. Sem regras, o
caminho fica aberto para toda exploração e crueldade, pois, como afirmou Freud, os
homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo podem
defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos
deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”.
400
Grace chegou e foi
recebida a princípio sem condições, sem regras, sem leis que regulamentassem seu
acolhimento. Sem qualquer contrato, ela tampouco tinha um lugar, permanecendo
totalmente estrangeira a Dogville, sujeita à vontade de seus anfitriões.
Desde o início (cf. capítulo 1 do filme) a oferta de acolhimento de Grace feita por
Tom, visava comprovar sua teoria segundo a qual Dogville teria problemas quanto à
aceitação, logo, Grace serviria como “exemplo”, “ilustração”, para a falta de
hospitalidade de Dogville, e não como tentativa de desenvolver a hospitalidade de seus
habitantes. Num certo momento (cf. capítulo 4 do filme), podemos até dizer que houve
alguma hospitalidade condicional - que tentava recobrir a agressividade através de
condições: Tom propôs que Grace trabalhasse, criando uma demanda onde antes nada
havia, Grace chegou a ter um lugar. Porém, foi justamente naquele momento que a
crueldade tornou-se mais visível através da exploração de Grace, Dogville passara a
400
Freud, S. O mal-estar na civilização, op. cit., p.133. Cf. também, sobre esta discussão, o capítulo II
desta tese.
202
precisar dela, ela trabalhava, dava algo em troca de seu acolhimento, mas tudo parecia
pouco: ali tudo que se dava era da ordem da dívida, nada da ordem do dom.
401
Assim, “Dogville” nos mostra que a hospitalidade condicional é “hospitaleira”
se a hospitalidade pura no horizonte. Sem esta última, a hostilidade indissociável de
toda hospitalidade reina soberana sob a forma de crueldade.
402
A vingança agressiva de
Grace na cena final do filme mostra ainda a impossibilidade do perdão que, segundo
Derrida, também só poderia ser incondicional.
A crueldade sem álibi
Se é fato, como vimos a partir de “Dogville”, que uma crueldade humana que
tende a reinar soberana, lançamos mão do conceito derridiano de hospitalidade por
acreditarmos que é possível uma outra posição – alternativa à crueldade - diante do
estranho-estrangeiro. É importante sublinhar que uma proposta de hospitalidade não
significa a negação da crueldade existente. Pelo contrário, a partir de Derrida, que retoma
Freud neste sentido, poderemos reconhecer a existência de uma crueldade sem álibi.
Reconhecer esta crueldade seria um primeiro passo no sentido de enfrentá-la - a
hospitalidade depende justamente do reconhecimento de uma crueldade sem fim - e neste
ponto Derrida ressalta o papel fundamental da psicanálise.
Em “Estados da alma da psicanálise”, texto da conferência proferida por Derrida
por ocasião da abertura do primeiro encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, em 2000,
em Paris, o filósofo comenta sobre o termo alemão utilizado por Freud para designar a
401
Sobre isso, Derrida afirmou: “No trato com o visitante, deve-se (il faut) abandonar o ‘deve-se’ (il faut),
que significa ao mesmo tempo aquilo que falta, o que se deve. Deve-se abandonar o espaço da dívida. Não
se trata de receber o outro por obrigação, isso não é hospitalidade, não é ética, é economia: eu devo, eu
pago. Não há hospitalidade sem dom, que deve acontecer para além da economia da troca”. (
Cf.
Conferência proferida no Workshop Jacques Derrida/René Major, RJ, Fundação Planetário, 2001).
402
É importante ressaltar esta observação, de que a hostilidade é indissociável da hospitalidade, daí a
necessidade de regulamentação, de condições que regulem tanto a hospitalidade quanto a hostilidade.
203
crueldade Grausamkeit que, à diferença dos termos latinos (cruor, crudus,
crudelitas), não teria ligação com o derramamento de sangue, mas designaria o desejo
de fazer ou de se fazer sofrer por sofrer, mesmo de torturar ou de matar, de se matar ou
de se torturar por torturar ou por matar, para sentir um prazer psíquico no mal pelo
mal, mesmo para gozar do mal radical...”.
403
Entendemos que esta crueldade, assim descrita por Freud, seria da ordem da
pulsão de morte, logo, para além da auto-conservação ou do narcisismo. A esta crueldade
humana, inextinguível que pulsional, seria possível apenas fazer frente, opor-se a ela,
tentando desviá-la, de modo a não ter expressão sob formas violentas. Conforme
comentamos no segundo capítulo desta tese, esta função de oposição, segundo Freud,
caberia a Eros, a pulsão de vida. no nível coletivo, social, Freud apostava nas
conquistas da civilização, em “instâncias supremas dotadas de poder” para fazer face à
crueldade manifesta nas guerras, por exemplo.
404
Freud denuncia o caráter ilusório de toda tentativa de erradicação das pulsões de
morte. Porém, comenta Derrida, Freud afirma que “é preciso”
405
cultivar uma via
indireta, sempre indireta, de combater a pulsão de crueldade. Para Freud, indireção,
“astúcia do meandro”, nisso consiste o “fazer jogar a força antagonista de Eros, o amor e
o amor à vida, contra a pulsão de morte”.
406
É neste sentido que Derrida comenta que,
para Freud, a crueldade seria sem fim, mas não sem contrário: pode-se pôr fim, estancar a
403
Derrida, J. Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade. SP, Ed.
Escuta, 2001, p.06.
404
“As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma
autoridade central a quem será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão
envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder.
Uma sem a outra seria inútil”. (Freud, S.
Por que a guerra?, op. cit., p. 201).
405
Diz Derrida: “’il faut’, como uma obrigação ética, jurídica e política” (Derrida, J. Estados-da-alma da
psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade
, op. cit., p.74).
406
Ibid., p.75-76.
204
crueldade sanguinária, pôr fim à guilhotina, etc, mas segundo Freud, uma crueldade
psíquica sempre restará aí, inventando novos recursos.
407
Esta “crueldade psíquica”, para
Freud, seria uma “crueldade da psique”, um estado da alma, do ser vivo, mas não
necessariamente sanguinária.
Derrida se pergunta se esta crueldade não seria um dos horizontes mais
apropriados à psicanálise ou, mais ainda, se seria este horizonte algo reservado à
psicanálise, algo que somente a ela seria dado tratar. Ao longo de sua argumentação,
considera que, de fato, a psicanálise abriria o único caminho que levaria a perguntar o
que poderia significar essa palavra estranha e familiar – ‘crueldade’”:
“(...) se essa coisa irredutível na vida do vivo é bem a possibilidade da crueldade
(a pulsão, se preferirem, do mal pelo mal, de um sofrimento que jogaria o jogo do
gozo de sofrer de um fazer sofrer ou de um fazer-se sofrer pelo prazer), então
nenhum outro discurso teológico, metafísico, genético, fisicista, cognitivista,
etc. saberia abrir-se para tal hipótese. Eles seriam, todos, feitos para reduzi-la,
excluí-la, privá-la de sentido. Se um discurso que poderia, hoje em dia,
reivindicar a causa da crueldade psíquica como assunto próprio, este é o que se
chama, de mais ou menos um século para cá, psicanálise”.
408
Neste sentido, considera que apenas a psicanálise seria capaz de “voltar-se para o
que a crueldade psíquica tem de mais própria”, “sem álibi teológico ou qualquer outro
álibi”: “A psicanálise, para mim... seria o outro nome do ‘sem álibi’”.
409
Então, caberia à
psicanálise falar da crueldade sem álibi, isto é, sem justificativas ou desculpas. O termo
“álibi” remete a crime e, sobre isso, Derrida lembrou que “a psicanálise de fato cometeu
um crime” “um crime contra a humanidade”, um golpe contra seu narcisismo, depois
407
Neste ponto Derrida aponta a divergência entre Freud e Nietzsche, para quem a crueldade seria “sem
termo” e “sem termo oponível”, isto é, sem fim e sem contrário (
Ibid., p.06).
408
Ibid., p.08.
409
Ibid., p.09.
205
dos golpes desferidos por Copérnico e Darwin
410
: a psicanálise não deixa de ser uma
agressão contra a religião, a cultura, o eu, etc.
A partir da posição freudiana, que Derrida considera como uma “política otimista
e pessimista” - “a crueldade é sem fim, mas não é sem contrário” - o filósofo se pergunta:
haverá, quanto ao político, ao geopolítico, ao jurídico, à ética, conseqüências, ao menos
lições a tirar da hipótese de uma irredutível pulsão de morte que parece inseparável disso
que se chama obscuramente crueldade? Deste modo, sugere que a psicanálise teria um
papel fundamental, podendo prestar grande serviço a outros campos como a política, por
exemplo:
“Quando perguntado sobre o que não vai [bem] numa globalização que começou
mais ou menos após a Primeira Guerra Mundial e nos tais projetos de direito
internacional, nos tais apelos ao abandono da soberania, pela constituição dessa
Sociedade das Nações que prefiguravam, então, as Nações Unidas em sua
impotência mesma de pôr fim à guerra e às exterminações mais cruéis, é sempre
em torno da palavra ‘crueldade’ e do sentido da crueldade que a argumentação de
Freud se faz ao mesmo tempo a mais política e, em sua lógica, a mais
rigorosamente psicanalítica”.
411
Seguindo este pensamento, Derrida se pergunta em que a psicanálise poderia
contribuir para uma reflexão sobre a ética e a política, mais especificamente na urgência
dos tempos atuais, sobre as “novas figuras históricas de uma crueldade sem idade, tão
velha quanto o homem”:
410
Cf. Derrida, J. Conferência proferida no Workshop Jacques Derrida/René Major, op. cit. Trata-se de
uma referência a Freud, S.
Uma dificuldade no caminho da psicanálise [1917] in op. cit., p.174. Neste
texto Freud afirma que a psicanálise seria um golpe contra o narcisismo humano, por ter evidenciado que
“o eu não é senhor em sua própria casa”. Este seria o “golpe psicológico”, após o “golpe cosmológico”,
desferido por Copérnico - que mostrou que a Terra não era o centro do universo; e o “golpe biológico”,
sofrido quando Darwin mostrou que o homem não é um ser muito diferente dos animais.
411
Derrida, J. Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade, op. cit.,
p.70.
206
“Será que – e, então, como – essa lógica pode induzir, senão fundar uma ética, um
direito e uma política capazes de medir-se de uma parte com a revolução
psicanalítica deste século [passado], de outra, com os eventos que constituem uma
mutação cruel da crueldade, uma mutação técnica, científica, jurídica, econômica,
ética e política, e étnica e militar e policial desses tempos?”.
412
Derrida e a psicanálise
Consideramos que valeria à pena nos determos um pouco mais em algumas das
considerações que Derrida tece acerca da psicanálise ao longo de sua obra. Se nosso
objetivo aqui é, desde o início, uma reflexão acerca do papel que cabe à psicanálise na
atualidade, convencidos de que um importante papel que lhe cabe, é de nosso extremo
interesse observar as colocações de Derrida, este leitor tão admirador quanto crítico da
psicanálise. Não pretendemos aqui realizar uma revisão exaustiva das inúmeras citações e
comentários que Derrida escreveu sobre a psicanálise, ou mesmo sobre Freud
413
, mas sim
consideramos interessante uma discussão sobre as críticas, a valorização, a convocação e
as provocações que Derrida faz à psicanálise, mais especificamente com relação ao tema
de nosso interesse aqui o papel que cabe à psicanálise nesta discussão sobre a
agressividade e a crueldade na contemporaneidade.
Logo de início, é importante notarmos que Derrida tem relações complexas com a
psicanálise. Por um lado, questiona seu desenvolvimento e seus limites; neste sentido,
interroga suas instituições e autoridades - o que explicitou em sua conferência de abertura
dos Estados Gerais da Psicanálise - e, notadamente, seu “modelo teatral de família”:
412
Ibid., p.72.
413
Citamos apenas a título de informação alguns textos principais onde Derrida tece considerações acerca
da psicanálise como: “Freud e a cena da escritura” (
in “A escritura e a diferença”, 1967), “La carte postale,
de Socrate à Freud et au delà” (1980), “Moi – La psychanalyse” (
in “Psyché: l’invention de l’autre”, 1987),
“Résistances – de la psychanalyse” (1996), “Estados da alma da psicanálise” (2001), “De que amanhã...”
(2004), entre outros.
207
“uma família sempre mais ou menos real, patriarcal e heterossexual, instalada na
diferença sexual como oposição binária”.
414
Derrida critica ainda as oposições
conceituais tão presentes nos textos metapsicológicos, como princípio do prazer e
princípio de realidade, introjeção e incorporação, etc; considerando-as “armas provisórias
ou ferramentas retóricas”, “suspeitas” pelo fato de terem se tornado “sólidas demais” e,
por isso, tão precárias, ficções teóricas cujo caráter de construção é muitas vezes
esquecido: ’O amigo da psicanálise’, em mim, desconfia não do saber positivo, mas do
positivismo e da substancialização de instâncias metafísicas ou metapsicológicas”.
415
Sobre isso, Alencar comenta que o aparelho discursivo e conceitual de que Freud
dispõe para elaborar seu objeto pertence à história da metafísica, portanto a uma tradição
logocêntrica. Na psicanálise, são os binarismos - imaginário/real, cotidiano/fantástico,
normal/patológico, primário/secundário, metafórico/literal... - que vão fazer de Freud
alvo também de um importante trabalho de desconstrução.
416
Neste sentido, podemos
dizer que Derrida não vai de encontro à psicanálise, mas sim a alguns de seus aspectos e,
sobretudo, àqueles que procuram fazer dela uma verdade metafísica.
Por outro lado, e não menos, em diversos momentos Derrida situa a psicanálise
como algo primordial, a ser levado em conta em todo discurso sobre a política e a
democracia, por permitir relançar questões como a responsabilidade e a hospitalidade. É
neste sentido que afirma: “... a visada da revolução psicanalítica, é a única a não
414
Cf. Derrida, J. Estados da alma da psicanálise..., op. cit.
415
Derrida, J. De que amanhã..., op. cit., p.208. Nesta entrevista feita por Roudinesco, ela lembra que
Derrida não se ocupou dos grandes textos metapsicológicos, mas se deteve sobretudo em textos
“especulativos” (como “Além do princípio do prazer”, por exemplo) ou nos textos ditos “marginais” (como
“O estranho”, por exemplo). Sobre isso, Derrida comenta: “
Prefiro em Freud as análises parciais,
regionais, menores, as sondagens mais aventureiras. Esses vislumbres às vezes reorganizam, pelo menos
virtualmente, todo o campo do saber
” (Ibid., p.207).
416
Alencar, A. Derrida e a psicanálise, Revista do corpo freudiano do Rio de Janeiro, n
o
17, fevereiro
2001.
208
descansar, a não se refugiar, em princípio, no que chamo um álibi teológico ou
humanista. Eis porque ela me parece aterradora, terrivelmente cruel, impiedosa”.
417
Neste sentido, Derrida considera a “potência invencível da psicanálise”
418
, chamando-a
em sua coragem, em sua “audácia de pensamento”, à invenção de “outras ficções
teóricas”, sempre necessárias.
O filósofo se inquieta diante do fato de que a psicanálise recorra tão
freqüentemente a “academismos”, corporativismos, dogmas, axiomas, etc., “como se a
psicanálise ainda não houvesse chegado para ela mesma”. Considera que ela a
psicanálise - ainda sai muito pouco de suas próprias fronteiras, internas e externas, que
ainda não se coloca suficientemente questões sobre a geopolítica, por exemplo, como se a
psicanálise permanecesse, apesar de sua presença em tantos países, “tão tímida, tão
fragilmente implantada, tão européia, tão ocidental...”. Neste sentido, Derrida solicita que
a psicanálise se pergunte mais sobre aquilo que ela supõe saber sobre si mesma, sobre a
“razão psicanalítica”. Quanto a isso ele a considera bastante “adormecida”, lenta,
sonolenta, um pouco ultrapassada pelos acontecimentos, esta psicanálise que ainda não
teria se dado conta de toda a dimensão do virtual tele-técnico, da “revolução tele-técnica
do possível”, seja a micro-eletrônica, a tele-virtualização, a rede “desierarquizada” do
World Wide Webou da genética.
419
Esta psicanálise ainda não teria refletido de modo
tão responsável (e deve-se sublinhar o peso que Derrida confere ao termo
“responsabilidade”, graças à psicanálise) quanto a situação política exige, sobre a guerra
e a pulsão de morte, ainda não teria tratado de questões como a pena de morte, a
soberania em geral, etc. Ele espera então que a psicanálise coloque em questão seus
417
Derrida, J. De que amanhã..., op. cit., p.207.
418
Ibid., p.208.
419
Cf. Derrida, J. Estados da alma da psicanálise..., op. cit.
209
próprios limites, que pense por ela mesma, soberanamente, mas numa outra forma de
soberania, que lhe permita articular-se com a ética, a ciência, o direito, a economia, a
política, etc.
Derrida alerta que não podemos encarar toda crítica à psicanálise como uma
“resistência a ser interpretada pela psicanálise”. Em “Estados da alma da psicanálise”,
enfatizou as “resistências do mundo à psicanálise” mas também as “resistências da
psicanálise ao mundo”. Lembra que hoje as críticas que a psicanálise recebe não são mais
à sua “novidade” como na época de Freud, mas, ao contrário, são críticas que afirmam
que ela teria envelhecido, que estaria “ultrapassada”.
O mundo, o processo de globalização do mundo, tal qual vai, com todas as suas
conseqüências - políticas, sociais, econômicas, jurídicas, tecnocientíficas, etc – sem
dúvida resiste, hoje, à psicanálise”.
420
Sobre isso, lembra que quanto às ciências físicas,
neuronais ou genéticas, Freud foi o primeiro a não rejeitá-las, mas a esperar muito
delas”.
421
Por outro lado, considera que “modelos positivistas ou espiritualistas, axiomas
metafísicos de ética, de direito e de política”, ainda nem sequer foram “desconstruídos”
pela revolução psicanalítica, e que eles ainda “resistirão a isso por muito tempo”.
422
Diante dessa resistência, considera, a psicanálise resistiria duplamente: E essa
resistência é também uma resistência a si própria. Há um mal, em todo caso uma função
auto-imunitária
423
na psicanálise como em tudo o mais, uma rejeição a si, uma
resistência a si...”.
424
Derrida considera esta resistência ao mundo como uma resistência
no interior de uma psicanálise que resiste a si própria, que se dobra em si mesma para
420
Ibid., p.16.
421
Ibid., p.17.
422
Idem.
423
É importante lembrar que esta auto-imunidade pode ser mais destrutiva do que qualquer ataque externo.
Sobre o conceito de auto-imunitarismo em Derrida
cf. capítulo III – Parte 2.
424
Derrida, J. Estados da alma da psicanálise..., op. cit , p.17.
210
resistir... para se inibir ela mesma, de maneira quase auto-imunitária”.
425
São
indissociáveis as forças de resistência à psicanálise e a resistência auto-imunitária da
psicanálise a seu entorno, como a ela mesma. A globalização resiste de maneira múltipla
à psicanálise, desautorizando-a a tocar em axiomas fundamentais de ética, direito e
política, assim como a psicanálise resiste de maneira múltipla e auto-imunitária,
encalhando ao analisar e mudar esses axiomas.
426
Sobre as transformações no mundo que caberia à psicanálise discutir, Derrida
refere-se à “nova cena estruturada desde a Segunda Guerra Mundial, por performativos
jurídicos inéditos”: a nova declaração dos direitos do homem e da mulher -, a
condenação do genocídio, o conceito de crime contra a humanidade, a criação, em
andamento, de novas instâncias penais internacionais, a luta contra a pena de morte:
“Se a psicanálise não leva em conta essa mutação, se não se engaja nisso... ela
será e o é, em larga medida deportada, ultrapassada, deixada à beira da
estrada, exposta a todas as derivas, a todas as apropriações, a todas as
amputações; ou, então, inversamente, ela continuará enraizada nas condições de
uma época que foi aquela do seu nascimento...”.
427
Diante disso, alerta: “se a psicanálise não está morta, ninguém pode duvidar que
ela é mortal”. A psicanálise é indelével, sua revolução é irreversível e, no entanto,
como civilização, ela é mortal”.
428
Respondendo à questão formulada por Roudinesco sobre “como manter a virtude
subversiva de Freud”, Derrida afirma:
425
Ibid., p.14.
426
Ibid., p.20.
427
Ibid., p.19.
428
Ibid., p.52.
211
“Tento fazê-lo, como a senhora disse, tanto em textos consagrados à psicanálise
como nos demais. A urgência atual não estaria em carregar a psicanálise para
campos onde ela até agora não esteve presente? Ou ativa? Não são, repito, as teses
freudianas que contam mais a meu ver, mas antes a maneira como Freud nos
ajudou a pôr em questão um grande número de coisas referentes à lei, ao direito, à
religião, à autoridade patriarcal, etc. Graças ao impulso do pontapé inicial
freudiano, pode-se por exemplo relançar a questão da responsabilidade; em lugar
de um sujeito consciente de si mesmo, respondendo soberanamente por si mesmo
perante a lei, pode-se utilizar a idéia de um ‘sujeito’ dividido, diferenciado, que
não seja reduzido a uma intencionalidade consciente e egológica”.
429
Neste sentido, entendemos que Derrida enfatiza como fundamental contribuição
da psicanálise o deslocamento operado por Freud ao mostrar que “o eu não é senhor em
sua própria casa”, ao afirmar o inconsciente como um sistema regido por leis próprias e
toda a dinâmica pulsional. Derrida afirma que Freud permitiria pensar questões como a
hospitalidade, a responsabilidade, o perdão, entre outras: tudo isso, a psicanálise teria
suficientemente desestabilizado para que toda suposta autonomia, ou toda alegada
espontaneidade, sejam para sempre desalojadas de seu solo, a partir do momento em que
as vemos do ponto de vista do inconsciente.
O que cabe à psicanálise hoje?
Em “Voyous”, onde Derrida discute questões de política atuais e mais
especificamente a questão dos États voyous”, conforme mostramos no capítulo anterior,
o autor encerra o livro com uma reflexão acerca de suas perspectivas para o futuro e,
neste sentido, enfatiza que a psicanálise, “passada ou porvir”, “que leva em conta o
inconsciente e o conflito de forças que ele impõe à identidade soberana”, teria algo de
fundamental a contribuir: no futuro deveríamos contar também com a lógica do
429
Derrida, J. De que amanhã..., op. cit., p.211.
212
inconsciente, com a idéia (e não com a doutrina) engajada por uma revolução
psicanalítica.
430
Derrida afirma que “às vezes é necessário, em nome da razão, desconfiar das
racionalizações”. Ressalta a importância de uma distinção, que reconhece ser frágil e de
difícil tradução para línguas não latinas, entre “racional” (rationnel) e “razoável”
(raisonnable): o razoável, tal como o entenderia aqui, seria uma racionalidade que leva
em conta o incalculável, o evento (événement) daquilo que vem ou daquele que vem.
Assim, para o futuro, aposta na possibilidade de uma “invenção poética de um idioma
singular, sem nacionalismos”, mas que inclua uma certa “responsabilização”. Ser
responsável aqui significaria manter uma certa razão: Este idioma seria um idioma
singular da razão...”.
431
Entendemos que Derrida refere-se aqui a uma razão que também leve em conta a
imprevisibilidade, o inconsciente, o Outro, pelo qual todo sujeito deve ser responsável.
Em “Donner la mort”
432
, Derrida refere-se ao conceito tradicional de responsabilidade,
que implicaria num compromisso ético com a comunidade. Neste sentido, ser responsável
seria responder diante de autoridades, públicas ou privadas, e explicitar para o grupo a
que se pertence a função e a finalidade de um certo agir. Porém, Derrida refere-se ainda a
uma outra concepção de responsabilidade, que seria “uma responsabilidade de, para, e
com o Outro”, e que se faz na maioria das vezes em silêncio, sem implicar a fala que nos
lança no mundo do comunitário. Indo além das palavras, como um segredo ignorado até
por seu portador, a responsabilidade absoluta implicaria no deslocamento do sujeito auto-
430
No original: “... les Lumières à venir devraient donc nous enjoindre de compter aussi avec la logique de
l’inconscient, et donc avec l’idée au moins, je ne dis pas avec la doctrine, engagée par une révolution
psychanalytique”.
(Derrida, J. Voyous, op. cit., p. 215).
431
Ibid., p.217.
432
Derrida, J. Donner la mort. Paris, Ed. Galilée, 1999.
213
centrado.
433
Entendemos que é neste ponto que a psicanálise teria muito a contribuir, ao
permitir relançar a questão da responsabilidade baseando-se na concepção de um sujeito
descentrado, regido por forças inconscientes, mas que mesmo assim deve responder por
seus desejos e atos.
Mas como se daria de fato esta contribuição que dissemos, concordando com
Derrida, que a psicanálise seria capaz de oferecer e, ainda mais especificamente, como a
psicanálise poderia contribuir hoje, diante das novas formas de agressividade e crueldade
que descrevemos até aqui? Sobre a questão da crueldade e do que cabe ao analista diante
disso, Derrida lembra que Freud mostrou que a polaridade amor/ódio não deve ser
entregue a julgamentos que a avaliem em termos de “bem e mal”:
“O psicanalista, enquanto tal, não tem de avaliar ou desavaliar, desacreditar a
crueldade ou a soberania sob um ponto de vista ético. Primeiro porque ele sabe
que não vida sem a concorrência das duas forças pulsionais antagonistas. Quer
se trate de pulsão de crueldade ou de soberania, o saber psicanalítico enquanto tal
não tem nenhum meio, nem direito, de condená-las. Ele é por esse aspecto e deve
continuar, enquanto saber, na neutralidade do indecidível...”.
434
Continuando a sua argumentação, Derrida afirma que “para passar à decisão, é
preciso um salto que expulse fora do saber psicanalítico enquanto tal
435
; donde a
questão: “quer dizer então que não nenhuma relação entre psicanálise e ética, direito
ou política?”. Existe, responde, mas deve haver uma conseqüência indireta e
descontínua: a psicanálise, enquanto tal, não produz ou não causa nenhuma ética,
nenhum direito, nenhuma política, claro, mas trata-se de responsabilidade, nesses três
domínios, de levar em conta o saber psicanalítico”.
436
Neste sentido, afirma, a
433
Cf. Nascimento E., Glenadel, P. (orgs.) Em torno de Jacques Derrida. RJ, Ed. 7 Letras, 2000, p.14.
434
Derrida, J. Estados da alma da psicanálise..., op. cit., p.78-79.
435
Ibid., p.79.
436
Idem.
214
transformação por vir em ética, direito e política deveria levar em conta o saber
psicanalítico e, “reciprocamente, a comunidade analítica deveria levar em conta a
história...”.
437
Neste sentido, entendemos que a tarefa da psicanálise quanto ao social não é a de
agir diretamente visando mudar leis e regras, por exemplo, mas sim mostrando seus
mecanismos ocultos (muitas vezes perversos). Não se trata de construir uma visão de
mundo - apesar de nem sempre escaparmos disso - mas de permitir um trabalho de
descolamento imaginário, de tecer redes simbólicas, sem as quais cada vez mais furos
através dos quais ressurge a violência. Através de seu modo de saber que nunca é pleno,
mas sempre aberto e sobredeterminado, a psicanálise permite colocar em questão toda
verdade que se pretenda absoluta. que não um Deus ou valores absolutos que nos
indiquem o que é o bem, o belo ou a verdade, nos resta a imprevisibilidade, nossa
liberdade de escolha, e a obrigação de sermos responsáveis não pelo que nos parece
familiar, mas também pelo estranho.
437
Ibid., p.80.
215
Considerações Finais
Ao longo deste trabalho, reafirmamos de diversos modos a constatação de que
não um eu sem um outro, familiar sem estranho, interior sem exterior. Dissemos que
assim como é fundamental a necessidade do igual, do mesmo, do próprio, também a
diferença é vital: como lembra Derrida, não casa habitável (chez soi) sem portas e
janelas, isto é, sem abertura ao Outro, ao estrangeiro, ao que vem de fora. Mostramos
que, sendo assim, a destruição do estranho freqüentemente implica na destruição do que é
próprio, como vimos a partir do conceito derridiano de auto-imunitarismo.
438
A partir da relação com o estranho, mostramos como são recorrentes as
manifestações de agressividade e crueldade dirigidas ao que está fora, e que isto seria
verificado desde a própria constituição do sujeito até a formação e a manutenção de
grupos. Sobre estas manifestações, observando as formas como estas se apresentam na
contemporaneidade, retomamos as formulações freudianas que apontam uma crueldade
própria do humano, sem fim, derivada da pulsão de morte. Mas, vimos que a partir do
momento em que reconhecemos esta “crueldade sem álibi”, torna-se possível a
construção de caminhos alternativos que conduzam ao estranho sem a necessidade de
destruí-lo. Assim, afirmamos que tal como a crueldade, também a hospitalidade é própria
do homem.
Porém, uma questão que permanece: como se abrir ao Outro sem abrir mão de
si mesmo, sem destruir o próprio, mas também sem destruir o Outro? Como preservar a
438
Cf. capítulo III – parte 2.
216
responsabilidade que nasce da proximidade - por identificação com o outro, atribuição de
semelhança, de subjetividade - desenvolvendo uma ética não apenas com relação ao
próximo, mas sobretudo com relação a um Outro distante, estranho? Sabemos que ao
transformarmos o próximo em um Outro distante, nos sentimos livres da responsabilidade
por este, e livres para qualquer ato de crueldade contra aquele com o qual não nos
identificamos, conforme comentamos anteriormente. Nosso intuito, diante desta questão,
é pensar como seria possível uma responsabilização não pelo familiar mas também
pelo estranho.
Acreditamos que a psicanálise tem muito a contribuir nesse sentido, como um
exercício de hospitalidade, de abertura ao estranho que em si mesmo, que é condição
para a abertura ao Outro. Entendemos que Freud, com suas clássicas formulações - "Wo es
war, soll Ich werden" (“onde era o isso, o eu deve advir”), e “o eu não é senhor em sua
própria casa” - nos permite depreender aquilo que chamaremos uma “ética da
hospitalidade”: “onde era o isso, o eu deve advir”, poderia ser entendido como uma
referência à importância do reconhecimento ou da hospitalidade diante da alteridade em
si mesmo e no Outro. a segunda formulação nos faz lembrar que por mais que haja uma
familiarização com a estranheza, “o eu nunca será o senhor em sua própria casa”, donde o
fato de que permanecem sempre abertas as portas ao estranho que chega, de modo
imprevisível.
Entendemos esta familiarização com a estranheza, ao mesmo tempo em que se
mantém uma abertura ao novo, como a própria hospitalidade incondicional, tal como
definida por Derrida, e que consideramos tão de acordo com a lógica psicanalítica. Como
afirma Derrida, a psicanálise nos permite conceber uma nova forma de soberania, uma
217
razão que leva em conta o inconsciente. Neste sentido, a hospitalidade incondicional seria
entendida como um posicionamento ético ou como uma posição subjetiva, de abertura -
incondicional - para o novo, ou para o estranho - em si mesmo e no Outro.
Esta deve ser também a posição do analista, de hospitalidade - neutralidade,
abertura e acolhimento com relação àquele que chega. Fédida, acerca do dispositivo
analítico, descreveu o "sítio do estrangeiro"
439
, como aquilo que "abre para a fala". Se o
analista é levado a se afastar deste sítio, se ele responde, numa concessão à comunicação
interpessoal, então se aniquila a relação necessária estranho/íntimo, e fala e escuta
tornam-se familiares: "Toda familiarização do representável no pensamento implica em
re-simetrizar a situação analítica (e, portanto, em aboli-la) na crença da 'relação
interpessoal'."
440
Ainda sobre a importância do estranhamento e da hospitalidade na clínica
psicanalítica, Aulagnier lembra a importância de que seja possível, em análise, o "prazer
do novo" e para isso é fundamental que o analista não imponha ao sujeito "um
equacionamento pré-estabelecido, pré-conhecido, pré-dirigido, de seu próprio mundo
psíquico"
441
, como se isso fosse possível. Neste sentido, a autora critica um certo tipo de
analista cuja "única tarefa consistirá em demonstrar-lhe (ao analisando) que todo esse
barulho não existia senão para ocultar uma história conhecida desde sempre - aquela
que Sófocles contava...".
442
Afirma que "não pode haver realização do projeto
analítico", a não ser que analista e analisando assumam o risco do novo, de que possa
surgir algo que coloque em questão seus conhecimentos mais seguros, e isso vale para
439
Cf. Fédida, P. O sítio do estrangeiro. SP, Ed. Escuta, 1996.
440
Fédida, P. Clínica psicanalítica: estudos. SP, Ed. Escuta, 1988, p.81.
441
Aulagnier, P. Um intérprete em busca de sentido - I. SP, Ed. Escuta, 1990, p.273.
442
Ibid, p.274.
218
ambos. Neste sentido, é fundamental que haja uma certa aceitação do desamparo para que
seja possível abrir espaço para o novo, que é sempre imprevisível.
443
Na clínica psicanalítica, vemos que o Unheimlich pode se manifestar como um
instante de terror, como uma surpresa angustiante, diante da abertura para o vazio que o
enigma aponta. Porém, acreditamos que o estranhamento, este momento disruptivo, é
também capaz de fazer vacilar as fixações imaginárias, permitindo a abertura para uma
possibilidade de mudança subjetiva. A partir do instante em que o Heimlich se apresenta
como Unheimlich, afetando o sujeito ao fazê-lo vacilar, acreditamos que é possível, para
além da angústia paralisante ou da agressividade, a emergência ou a produção de novos
significantes. Reconhecer que o Unheimlich pode ter um aspecto positivo é vislumbrar
uma possibilidade de construção para além desta experiência.
É importante ressaltar a importância da criatividade nesse sentido, condição para
a criação de novos nomes para o familiar surgido tão estranhamente para o sujeito. A
criatividade inclui ainda a possibilidade de transitar entre diferentes espaços, de se
colocar no lugar do Outro, de sentir seu sofrimento como se fosse o próprio e também de
poder tomar distância de si mesmo como se fosse um Outro. Trata-se de um jogo de
aproximação e distanciamento, de estranhar o familiar e de se familiarizar com a
estranheza.
Entendemos que a ficção, ou mais especificamente a literatura e o cinema, que
tanto ressaltamos ao longo desta tese, podem contribuir para o exercício desta capacidade
de se colocar no lugar do Outro que, como dissemos, é fundamental para possibilitar o
443
Podemos lembrar aqui “Dogville”, contrastando este posicionamento de abertura para o novo, que deve
ser o do analista, com a posição assumida por Tom diante de Grace. Tom capturou Grace, como tentativa
de encaixá-la numa teoria já pronta, o que foi um primeiro indício da ausência de hospitalidade de Dogville
(
cf. capítulo IV).
219
respeito e a responsabilidade pelo familiar e pelo estranho. Amós Oz lembra o quanto a
ficção é importante para o que denomina um "exercício de tolerância" mas que
preferimos chamar de um “exercício de hospitalidade”
444
: segundo este autor, a literatura
conteria “um antídoto ao fanatismo ao injetar imaginação em seus leitores”.
445
Mais uma vez recorrendo à literatura para abordar a questão do estranho,
lembramos aqui um conto que nos parece mostrar uma possibilidade de abertura para o
novo, de criação a partir de um estranhamento, onde este não permanece apenas como
fonte de angústia ou agressividade. "O espelho”
446
, de Guimarães Rosa, trata de um
fenômeno de perda da própria imagem diante do espelho próximo àquele que observamos
no primeiro capítulo desta tese em "O espelho", de Machado de Assis. Porém,
acreditamos que o conto de Guimarães Rosa mostra um “destino” bastante diferente a
partir de um impasse semelhante.
Este conto, narrado na primeira pessoa, inicia-se com um desafio ao suposto saber
da ciência: "O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que
seja na verdade - um espelho?"
447
Numa língua própria, de riqueza sem igual
448
, o narrador nos apresenta seu
conhecimento acerca dos espelhos e da nossa dificuldade de perceber a sutileza dos
fenômenos a ele relacionados:
"E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos
com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê
os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que
consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão.
Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a
444
Cf. capítulo IV, sobre a diferença apontada por Derrida entre os termos “tolerância” e “hospitalidade”.
445
Oz, A. Contra o fanatismo. RJ, Ediouro, 2004, p.33.
446
Rosa, J. G., O Espelho [1962] in Primeiras Estórias. RJ, Ed. Nova Fronteira, 1988.
447
Ibid, p.65.
448
Toda tentativa de recontar uma história contada por Guimarães Rosa traz uma perda inevitável da
riqueza de suas palavras, de sua escrita particular, mas tentamos transcrevê-lo ao máximo.
220
porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie
humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas
algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente..."
449
Conta que sempre, desde menino, temia os espelhos, "por instintiva suspeita".
Lembra os receios dos antigos, as superstições e as crenças daqueles que lhe cercavam na
sua infância, no interior. Porém, estes mesmos espelhos temidos não deixavam de
interessá-lo, despertando sua curiosidade: "Satisfazer-me com fantásticas não-
explicações? - jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o
monstro?".
450
Narra então um primeiro episódio de estranhamento da própria imagem, quando
era ainda "moço, comigo contente, vaidoso". "Descuidado", deparou-se com dois
espelhos que faziam jogo:
"E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao
derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem,
causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era - logo descobri... era eu,
mesmo!"
451
A partir deste episódio de estranhamento da própria imagem, ao invés de recuar, o
personagem se lançaria numa longa experiência:
"Desde aí, comecei a procurar-me - ao eu por detrás de mim - à tona dos espelhos
(...) Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo (...) O que se
busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente;
enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém,
era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio
aspecto formal (...)"
452
449
Rosa, J. G. O Espelho. Op. cit., p.66.
450
Ibid, p.67.
451
Idem.
452
Ibid, p.68.
221
Convencido de que isso seria possível, levara meses nessa busca, que denominou
"científica", tentando penetrar no "disfarce do rosto externo" para submetê-lo a um
"anulamento perceptivo" dos diversos componentes que o constituem, subtraindo da
imagem especular cada um de seus traços. Insistia em atravessar aquilo que denominou
uma "máscara", acreditando que para além desta, ao "devassar o núcleo dessa nebulosa",
encontraria a sua "vera forma". Com este intuito, tentava submeter cada um dos traços de
seu rosto a um "bloqueio visual", "aprendendo a não ver".
O primeiro destes traços por ele identificado e subtraído foi sua "semelhança
animal" com o que chamou de "sósia inferior" - a onça. O principal método utilizado
para subtrair estes traços, conta, era o "modus de focar, olhar não-vendo". Pouco a
pouco, sua figura começava a se reproduzir lacunar.
Num segundo momento, subtraiu o "elemento hereditário - as parecenças com os
pais e avós" e, em seguida, "o que se deveria ao contágio das paixões", "o que, em
nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem" e, ainda, "os efêmeros
interesses".
"À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu
esquema perceptivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de
boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E escurecia-se".
453
O
resultado inquietou-o a tal ponto que abandonou por um tempo as suas investigações,
passando meses sem olhar-se em espelhos.
453
Ibid, p.70.
222
Quando afinal, um dia, voltou a mirar-se: "Simplesmente lhe digo que me olhei
num espelho e não me vi. Não vi nada. o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol,
água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo."
454
Perplexo, conta aquilo que mais lhe estarreceu: não via os próprios olhos, "no
brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!" Despojara-se, "até a total
desfigura".
"E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal,
autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto
eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de
soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e
tudo o mais que na impermanência se indefine?”
455
Ao deparar-se com este nada o personagem se angustiara, e se empenhara na
busca por alguma transcendência. Perseguindo esta idéia de que havia algo por trás,
oculto, a ser descoberto, deparou-se com o fato de que "no fundo", "por trás", apenas
“nada”. Assim, conta que durante muito tempo nada via.
Porém, anos mais tarde, ao fim de uma ocasião de grandes sofrimentos, numa
época em que já amava, "já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria", só então,
depois: "o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos
tentando-se em débil cintilação, radiância." Foi então que pôde reencontrar, no espelho:
"Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor
razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto - quase delineado, apenas - mal
emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que:
rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só".
456
454
Idem.
455
Ibid, p.71. Neste ponto, lembramos uma passagem onde Lacan afirma: "Quando o homem, buscando o
vazio do pensamento, avança para o lampejo sem sombras do espaço imaginário, abstendo-se até mesmo
de esperar o que daí irá surgir, um espelho sem brilho mostra-lhe uma superfície em que nada se reflete."
-
Lacan, J.
Formulações sobre a causalidade psíquica [1946] in Escritos, op. cit., p.189.
456
Rosa, J. G. O Espelho, op. cit., p.72.
223
Apesar de empenhar-se na busca por uma alma transcendente, para além da
imagem, o que este personagem de Guimarães Rosa encontra é o “nada” por trás do eu.
Porém, diante desse nada, dispõe da criatividade como recurso para inventar, nomeando-
o. Assim, diferentes nomes são criados para designar aquilo de novo que emergir na
superfície do espelho. Mais adiante, o narrador observa o fato de "precisarem de toque e
timbre novos, as comuns expressões, amortecidas..."
457
Neste sentido, podemos observar que a riqueza da linguagem de Guimarães Rosa
está justamente na criação, que inclui esta invenção de neologismos, onde as palavras
recriadas ganham força e significados novos.
No fim do conto, a simples pergunta - "Você chegou a existir?" - é respondida
afirmativamente, porém mantendo seu ponto de interrogação - "Sim?"
458
Assim, entendemos que a criação desses novos nomes permitiram a esse sujeito
“novas existências”, a partir de uma abertura que mostra a possibilidade de re-invenção
permanente de novos sentidos, já que sentido último não há. Consideramos que esta
experiência descrita por Guimarães Rosa mostra um dos possíveis “destinos” do estranho,
aquele que pretendemos enfatizar como alternativa à angústia, à agressividade e à
crueldade, e que implica numa hospitalidade diante do Outro.
Dissemos que este conto retrata uma situação bastante semelhante àquela descrita
por Machado de Assis num conto de mesmo título, que comentamos no primeiro capítulo
desta tese. Porém, em Machado de Assis vimos um sujeito que se conduz a reforçar sua
identificação a uma imagem - o alferes - o que lhe conferia identidade e reconhecimento,
apaziguando a sua angústia, recobrindo temporariamente a inquietante estranheza. Este
457
Idem.
458
Idem.
224
fechamento imaginário impedia qualquer deslizamento, mantendo aquele sujeito preso a
uma possibilidade de existir. Com relação à clínica psicanalítica, podemos dizer que o
“alferes” lembra a condição daquele que chega em análise, colado a uma identidade - "eu
sou um fracassado", por exemplo - discurso que deverá vacilar.
Comentamos no capítulo III que também podemos considerar este conto de
Machado de Assis como um retrato de certos quadros que temos visto com freqüência na
contemporaneidade. Nos referimos àqueles sujeitos que parecem prisioneiros de uma
imagem ideal, de uma identidade fixa e frágil, e que se caracterizam por uma enorme
dependência do olhar de um outro que reconheça tal imagem. Neste sentido, naquele
conto de Machado de Assis, uma imagem o alferes o sustenta e substitui: ele é esta
imagem, dependente do olhar permanente do outro para existir. A ausência do olhar de
reconhecimento externo quando se viu sozinho - acarretou a perda da imagem deste
sujeito, a quem restou manter-se imobilizado diante do espelho para sobreviver
provisória e fragilmente.
"O espelho" de Guimarães Rosa, apesar de ter o mesmo título do conto acima
mencionado, mostra uma saída bastante diferente a partir da perda da própria imagem.
Aqui vemos o estranhamento funcionar como ponto de partida para a emergência ou
criação de novos sentidos, o que nos faz pensar no “destino” de uma análise, que faz
vacilar as significações fechadas e completas para que os sentidos possam deslizar. De
fato, esta é a nossa maior liberdade, a singularidade, que todo sentido depende de um
contexto, não havendo sentidos unívocos.
Sobre esta possibilidade de criação que apontamos no texto de Guimarães Rosa,
cabe ressaltar que é preciso distingui-la da “injunção a tornar-se si mesmo” – a exigência
225
contemporânea de originalidade, de que nos fala Ehrenberg.
459
Este autor mostra-se
crítico quanto imaginário que prevalece nos dias de hoje, do homem “flexível e criativo”:
numa sociedade em constante modificação, afirma, exige-se que o homem tenha suas
convicções tão fortes quanto flexíveis, "ele deve se erigir como uma escultura em
movimento e ser seu próprio artesão". Ehrenberg mostra o alto preço pago por este
sujeito “cansado de ter que se tornar si mesmo”, principalmente sob a forma de um
sentimento de insuficiência e da depressão.
Na contemporaneidade, entendemos que coexistiria uma “dupla injunção”: “seja
igual” (o mesmo, sem diferenças) e “seja diferente” (original, criativo). Esta segunda
injunção – “seja diferente” - é ilusória, já que se trata de “ser diferente”, mas desde que o
mesmo seja mantido; isto é, deve-se ser original e criativo, desde que submetido às regras
do espetáculo. Neste sentido, o que predomina é a invenção de uma imagem, voltada para
uma exterioridade, o que nos remete mais ao “alferes” que ao personagem de Guimarães
Rosa.
Neste último, entendemos que se trata da possibilidade de recorrer a invenções de
linguagem, simbólicas. Consideramos esta possibilidade de criação do novo a partir de
uma experiência de estranhamento como um dos “destinos do estranho” alternativo
àqueles que discutimos ao longo desta tese, como a angústia paralisante ou a
agressividade. Este seria o destino visado na clínica psicanalítica que, conforme
afirmamos anteriormente, possibilita a hospitalidade diante daquilo que surge
estranhamente para o sujeito seja a estranheza mais íntima, ou aquela que vem do
Outro. É neste sentido que acreditamos ser possível um encontro com o estranho que não
seja fonte de angústia, agressividade e crueldade. A psicanálise nos permite perceber a
459
Cf. capítulo III – parte 1.
226
estranheza que em nós mesmos, como uma maneira de evitar a destruição do Outro,
ou do próprio sujeito. O estranho está em mim, portanto, somos todos estrangeiros.
227
Referências Bibliográficas
ALENCAR, A. Derrida e a psicanálise, Revista do corpo freudiano do Rio de Janeiro,
n
o
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