leitura, o encontro com o impossível
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, impresso pela experiência amorosa. Somos
herdeiros de uma civilização e de uma cultura que atribuem ao amor a expectativa de
um encontro absoluto. As histórias as quais crescemos ouvindo, os contos infantis que
outrora ninaram nossos sonos (e minaram nossos sonhos) reverberam em nós a certeza
de que a felicidade pode e deve ser encontrada através das relações amorosas, tal como
anunciara Freud em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), a propósito do
mito de Aristófanes, no qual duas metades, separadas entre si, visam a unir-se
novamente no amor. Freud disserta ao longo de toda a sua obra sobre o irrestrito
interesse do indivíduo pelo outro sexo, sua incessante busca desta outra metade, para
sempre elidida. Mas também articula o permanente e irremediável fracasso desta
alternativa, incansavelmente vislumbrada pelo sujeito.
Portanto, por trás deste ideal esférico, inteiro, espreita-se, desde os primórdios da
concepção freudiana, a idéia de que este suposto e tão almejado encontro não é senão
um reencontro, isto é, um retorno já incompleto a algo extraviado. Veremos como Freud
pode nos dar indícios de um real
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concernente à dimensão amorosa, seja através de seus
questionamentos acerca da veracidade e autenticidade do amor de transferência (que se
aproximariam mais de uma realidade), seja através de elementos que apontam para um
vazio a partir e sobre o qual a análise pode vir a operar, com seus efeitos e
transformações para a vida do sujeito. Verificamos, em Freud, a nítida idéia de que os
laços amorosos estão fadados ao desencontro e ao insucesso, de forma que, embora ele
não pudesse contar com o registro do real, formulado posteriormente por Lacan, esta
falta, presente nos investimentos de amor, evidencia-se ao longo de toda a sua obra.
Com Lacan, as premissas que fundamentam a noção de incompletude
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são
levadas à sua radicalidade. Seu ensino nos conduz a asseverar que o amor possui uma
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Refiro-me à noção de impossível tal como situada no ensino de Lacan: algo que resta sem significação,
que não pode ser plenamente significado pela linguagem, designando um ponto de opacidade concernente
à articulação entre os três registros (real, simbólico e imaginário), postulados por Lacan ao longo de seus
Seminários. Portanto, a impossibilidade própria ao campo amoroso será retratada sob este viés: sua
condição de constituir algo irredutível à ordem simbólica.
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Deve-se salientar que Freud, obviamente, não contava com a conceituação lacaniana do registro do real:
algo que se produz pelo discurso, mas que é irredutível a este. Aqui, portanto, trata-se de servir-se desta
elaboração lacaniana, lançando foco sobre a leitura dos textos freudianos.
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A incompletude será tomada, aqui, tal como é formulada pela matemática: em oposição à completude,
isto é, à uma relação de complementaridade, na qual as partes se juntam e fazem o “um” (questão
colocada a partir do número racional, onde, qualquer relativização deste “um” – as frações, por exemplo -
prima por mantê-lo intacto.A incompletude é definida, nos ensinamentos lacanianos, como estando em
relação à esta completude, suposta e designada pelo significante. Sobre este assunto, sugiro a leitura do
artigo de Francisco Leonel, O phalo e o nome do pai no Seminário 5 de Lacan (2002). A completude,
afirma ele, “corresponde à incidência mais básica do significante, ela é o primeiro tempo do corte que
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