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TESE DE DOUTORADO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA
AMOR PELA METADE
Incidências da impossibilidade na esfera do amor
SANDRA NISKIER FLANZER
2004
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA
AMOR PELA METADE
Incidências da impossibilidade na esfera do amor
SANDRA NISKIER FLANZER
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutora.
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Rio de Janeiro
Julho de 2004
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AMOR PELA METADE
Incidências da impossibilidade na esfera do amor
SANDRA NISKIER FLANZER
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Tese de Doutorado submetida ao corpo docente da Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de Doutora.
Aprovada por:
Prof.a ____________________________ - Orientadora
Ana Beatriz Freire
Prof.a ____________________________
Regina Herzog
Prof.a ____________________________
Anna Carolina Lo Bianco
Prof.a ____________________________
Dionysia Rache de Andrade
Prof.a_____________________________
Ines R.B.Loureiro
Rio de Janeiro
Julho/ 2004
3
FICHA CATALOGRÁFICA
FLANZER, Sandra Niskier
Amor Pela Metade- Incidências da impossibilidade
na esfera do amor. Rio de Janeiro: UFRJ,
Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, 2004.
X, 205f.
Tese (Doutorado) - Teoria Psicanalítica.
1.Amor 2. Impossível 3. Psicanálise 4.Tese
I. Universidade Federal do Rio de Janeiro
II. Título
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço à CAPES pelo apoio financeiro dado a esta pesquisa.
À Ana Beatriz Freire, pela orientação pertinaz que empreendeu a este trabalho.
Tive o privilégio de ser presenteada por seus comentários tanto firmes quanto doces,
empregados desde o início de modo tão decisivo e respeitador quanto somente fazem
aqueles que possuem a arte de bem ouvir o outro. À você, Ana, o meu mais eloqüente
obrigada.
À Anna Carolina Lo Bianco e Regina Herzog, importantes companheiras de
outros carnavais, responsáveis por sugestões precisas e enriquecedoras, proferidas seja
por ocasião dos “Seminários para mestrandos e doutorandos do Departamento de Teoria
Psicanalítica da UFRJ”, seja por ocasião do exame de qualificação. Suas presenças,
efetivamente, qualificaram este trabalho.
Agradeço à Ines Loureiro, primeiramente pelo carinho com que acolheu o
convite de atravessar a Dutra para comparecer a esta defesa de tese; mas também pela
rica coordenação que empreendeu, aos encontros do Curso sobre Estética proferido no
segundo semestre de 2001, pelo departamento de Teoria Psicanalítica da UFRJ.
Agradeço à Dionysia Rache de Andrade, por honrar-me com seu comparecimento
nesta banca, bem como pela presença constante e marcante no percurso de minha
formação.
Aos colegas do Tempo Freudiano - Associação Psicanalítica, pelas
interlocuções frutíferas que muito contribuíram no desenvolvimento desta tese. Em
especial, o meu muito obrigada a Ricardo de Sá, Ana Cristina Manfroni, Luíza
Ribeiro e Valmir Sbano.
Agradeço à amiga Marisa C. Solberg, que tão bem soube fazer companhia na
realização desta tese, reenviando-me nas horas precisas aos lugares mais adequados,
coisa que só os bons companheiros são capazes de fazer. Soube, melhor dizendo,
5
acompanhar os passos tão solitários quanto necessários com os quais caminham e
tropeçam os que se arriscam ao cumprimento desta extenuante tarefa.
A Roberto Flanzer, por ter sido sempre, afinal de contas, a minha decisiva
inspiração, meu grande amor, meu inseparável parceiro. Seja nos percalços
informáticos, ou nas derradeiras horas em que me pus noutra ‘esfera’, bem como nas
outras horas (e, porque não dizer, nas tantas horas que ainda virão). Por ter sempre
acreditado no meu percurso profissional e pessoal, e ter oferecido o suporte familiar
necessário para a realização desta tese. Contrariamente ao que tentei expor neste
trabalho, sua presença confirma que, apesar de tudo, o amor é possível.
À Bruna e Paula, por não terem deixado de ser as vivazes e saltitantes criaturas
que são, apesar das minhas recentes ausências – nem sempre radicalmente consolidadas,
graças as suas vigorosas existências. Por consistirem na mais alta expressão do meu
amor, e também por terem, com tamanha propriedade, ensinado-me a amar
incondicionalmente, ainda que também tenham me ensinado que todo amor exige
algumas condições.
Agradeço a meus pais: amores certeiros, acertados e assertivos.
6
AMOR PELA METADE
Incidências da impossibilidade na esfera do amor
RESUMO:
Esta pesquisa lança foco sobre o tema do amor, sob o prisma da teoria
psicanalítica, particularmente ressaltando-se a questão da incompletude revelada pela
falta constitutiva do sujeito. O movimento amoroso do sujeito, ao dirigir-se ao objeto na
busca de sanar a hiância engendrada em sua própria estrutura, é algo proveniente de
uma perda, ao mesmo tempo em que o relança ao destino de uma totalidade
repetidamente fracassada. Enfatiza-se, na presente pesquisa, a defasagem, bem como a
disparidade, constatadas entre o sujeito e o Outro (ou entre o homem e uma mulher),
privilegiando, nesta diferença, o encontro com o impossível, ali engendrado. O
impossível, noção articulada ao registro do real, torna-se impresso nas mais variadas
formas de experiência amorosa vividas pelo sujeito. Inicia-se a pesquisa abordando o
conceito de transferência, a fim de elaborar essa noção de impossível. Avalia-se, na
seqüência deste conceito, as características do estatuto do objeto em Freud e Lacan,
perpassando, para tal, pelas as noções de narcisismo e de luto. Destaca-se a questão da
incompletude revelada no contexto da Psicologia do amor freudiana, sob a égide da
noção lacaniana de desejo; bem como são sublinhadas as interfaces entre o amor e a
morte, e entre o amor e o ódio. Finalizando, examina-se o estatuto do gozo, imerso nas
relações de amor, e a presença do vazio inerente à feminilidade, evidenciado no interior
da chamada esfera amorosa.
7
L’AMOUR À MOITIÉ
Les incidences de l’impossibilité dans la sphère de l’amour
RESUMÉ:
La présente recherche est centrée sur le thème de l’amour, à travers le prisme de la
théorie psychanalytique, faisant ressortir notamment la question de l’incomplétude mise
à jour par le manque constitutif du sujet. Le mouvement amoureux du sujet, lorsqu’il
s’adresse à l’objet afin de remédier à la béance engendrée dans sa propre structure,
provient d’une perte et à la fois le relance vers le destin d’une totalité qui a
incessamment échoué. On y met en relief le décalage, aussi bien que la disparité, qui
peuvent être constatés entre le sujet et l’Autre (ou entre l’homme et une femme),
privilégiant, dans cette différence, la rencontre avec l’impossible qui y est engendré.
L’impossible, notion articulée au registre du réel, devient imprimé dans les formes les
plus variées de l’expérience amoureuse vécues par le sujet. Afin d’élaborer cette notion
d’impossible, on commence cette recherche par l’étude du concept de transfert. À la
suite de ce concept, on évalue les caractéristiques du statut de l’objet, selon Freud et
Lacan, en examinant, pour ce faire, les notions de narcissisme et de deuil. L’accent est
mis sur la question de l’incomplétude mise à jour dans le contexte de la Psychologie de
l’amour freudienne, sous l’égide de la notion lacanienne de désir. On souligne aussi les
articulations entre l’amour et la mort, entre l’amour et la haîne. La recherche se termine
sur l’examen du statut de la jouissance immergée dans les relations d’amour, et la
présence du vide inhérent à la féminité mis en évidence à l’intérieur de ce qu’on appelle
la sphère amoureuse.
8
A meu amor Roberto: como par, você é ímpar.
À memória de Ilana Ryfer – quem tão bem,
nessa vida, soube amar e ser amada.
9
SUMÁRIO
- Introdução...............................................................................................................
1
- Capítulo 1: O amor desde o começo
13
1.1- Transferência: o amor de Freud...........................................................................
14
1.2- O ímpar do par....................................................................................................
32
1.3- De Éroménos a Érastes - o caminho da análise..................................................
43
- Capítulo 2- Onde já o amor, jaz a perda
51
2.1-Ensaio sobre a sexualidade no campo da incompletude.......................................
52
2.2- Do narcisismo ao luto, jaz o objeto.....................................................................
63
2.2.1- Amor narcísico.........................................................................................
63
2.2.2 - No amor, algo se perde, mas tudo se transforma.....................................
74
2.3 – Do objeto que faz falta.......................................................................................
81
- Capítulo 3 – É possível amar e ser feliz ao mesmo tempo?
88
3.1- A cisão na esfera do amor...................................................................................
91
3.2- Quando o amor “deixa a desejar”........................................................................
105
3.3- O amor na abertura do inconsciente....................................................................
113
3.4- A morte no amor..................................................................................................
117
- Capítulo 4 – “A morte leva em carro de ouro nossos amores defuntos
126
4.1: Amar é “mal-estar”..............................................................................................
127
4.2- Do ódio do amor..................................................................................................
141
- Capítulo 5 – Entre um homem e a mulher, está o real
154
5.1- O encontro “amorgoso”.......................................................................................
155
5.2- Da morte que carrega a vida, à morte que a vida carrega....................................
164
5.3- O amor é fogo!.....................................................................................................
167
5.4- Esse obscuro objeto do desejo.............................................................................
179
- Conclusão: Do resto do amor................................................................................
187
- Bibliografia..............................................................................................................
198
10
INTRODUÇÃO:
Certa vez, escutei de um sujeito o seguinte relato angustiado: “Ontem, mais uma
vez, eu estava tentando, havia horas, pegar no sono, mas não conseguia. Nesses
momentos em que deito em minha cama a fim de descansar, é o contrário que me
acontece: sou acometido por infindáveis pensamentos, minha cabeça não para de girar, é
como se eu estivesse conectado com todo o universo. Estes pensamentos em ampla
conexão universal não servem para nada, nada têm a ver comigo. Ontem, inclusive,
pensei coisas que vinham de tão longe, que é como se viessem de Marte, ou de Vênus”.
Imediatamente, após escutar esta narrativa, lembrei-me de um famoso livro de
auto-ajuda intitulado “Homens são de Marte, mulheres são de Vênus”.
1
O sujeito
certamente tinha conhecimento deste livro, e então intui que aquilo a que seu discurso
se referia não era, afinal de contas, coisa de outro planeta, nem algo tão distanciado
assim de suas questões subjetivas, ainda que a complexidade de sua questão passasse a
quilômetros de distância do que proferem os livros de auto-ajuda. Este relato, tal como
pude apreender, se referia, isto sim, ao que a estrutura neurótica tem de mais pulsante,
palpitante e latejante a nos revelar sobre aquilo que separa o homem de uma mulher: o
amor.
Ainda que este sujeito estivesse assustado com o fenômeno que repetidas vezes
o acometia, chegando a indagar se estaria ficando doido, por presumir-se “em conexão
com os pensamentos do universo”, seu discurso não ilustra senão justamente a posição
do sujeito neurótico diante do significante, o qual, afinal de contas, opera de modo a
realizar suas infindáveis conexões metonímicas. Por mais “de outro planeta” que os
pensamentos lhe parecessem, sendo ligados às amarras do simbólico, eles não poderiam
ser provenientes de um lugar tão longínquo assim. Ao contrário: suas divagações
colocavam em cena uma outra distância, essa, sim, insuperável: o brusco intervalo entre
o homem e uma mulher, ou, melhor precisando, entre o sujeito e o Outro.
Pretendo abordar, na presente tese, a questão da falta que se articula ao amor,
sob o prisma da teoria psicanalítica, enfatizando esta imensa distância, este espaço, esta
defasagem existente entre o sujeito e o Outro, privilegiando, portanto, nesta minha
1
Best Seller escrito por John Gray (1996).
11
leitura, o encontro com o impossível
2
, impresso pela experiência amorosa. Somos
herdeiros de uma civilização e de uma cultura que atribuem ao amor a expectativa de
um encontro absoluto. As histórias as quais crescemos ouvindo, os contos infantis que
outrora ninaram nossos sonos (e minaram nossos sonhos) reverberam em nós a certeza
de que a felicidade pode e deve ser encontrada através das relações amorosas, tal como
anunciara Freud em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), a propósito do
mito de Aristófanes, no qual duas metades, separadas entre si, visam a unir-se
novamente no amor. Freud disserta ao longo de toda a sua obra sobre o irrestrito
interesse do indivíduo pelo outro sexo, sua incessante busca desta outra metade, para
sempre elidida. Mas também articula o permanente e irremediável fracasso desta
alternativa, incansavelmente vislumbrada pelo sujeito.
Portanto, por trás deste ideal esférico, inteiro, espreita-se, desde os primórdios da
concepção freudiana, a idéia de que este suposto e tão almejado encontro não é senão
um reencontro, isto é, um retorno já incompleto a algo extraviado. Veremos como Freud
pode nos dar indícios de um real
3
concernente à dimensão amorosa, seja através de seus
questionamentos acerca da veracidade e autenticidade do amor de transferência (que se
aproximariam mais de uma realidade), seja através de elementos que apontam para um
vazio a partir e sobre o qual a análise pode vir a operar, com seus efeitos e
transformações para a vida do sujeito. Verificamos, em Freud, a nítida idéia de que os
laços amorosos estão fadados ao desencontro e ao insucesso, de forma que, embora ele
não pudesse contar com o registro do real, formulado posteriormente por Lacan, esta
falta, presente nos investimentos de amor, evidencia-se ao longo de toda a sua obra.
Com Lacan, as premissas que fundamentam a noção de incompletude
4
são
levadas à sua radicalidade. Seu ensino nos conduz a asseverar que o amor possui uma
2
Refiro-me à noção de impossível tal como situada no ensino de Lacan: algo que resta sem significação,
que não pode ser plenamente significado pela linguagem, designando um ponto de opacidade concernente
à articulação entre os três registros (real, simbólico e imaginário), postulados por Lacan ao longo de seus
Seminários. Portanto, a impossibilidade própria ao campo amoroso será retratada sob este viés: sua
condição de constituir algo irredutível à ordem simbólica.
3
Deve-se salientar que Freud, obviamente, não contava com a conceituação lacaniana do registro do real:
algo que se produz pelo discurso, mas que é irredutível a este. Aqui, portanto, trata-se de servir-se desta
elaboração lacaniana, lançando foco sobre a leitura dos textos freudianos.
4
A incompletude será tomada, aqui, tal como é formulada pela matemática: em oposição à completude,
isto é, à uma relação de complementaridade, na qual as partes se juntam e fazem o “um” (questão
colocada a partir do número racional, onde, qualquer relativização deste “um” – as frações, por exemplo -
prima por mantê-lo intacto.A incompletude é definida, nos ensinamentos lacanianos, como estando em
relação à esta completude, suposta e designada pelo significante. Sobre este assunto, sugiro a leitura do
artigo de Francisco Leonel, O phalo e o nome do pai no Seminário 5 de Lacan (2002). A completude,
afirma ele, “corresponde à incidência mais básica do significante, ela é o primeiro tempo do corte que
12
estreita articulação com aquilo que, ao sujeito, irá sempre faltar. Ao tomar em mãos o
estatuto do inconsciente freudiano e caracterizá-lo como sendo o discurso do Outro, no
qual o sujeito recebe, sob forma invertida, a sua própria mensagem recalcada, Lacan
credita ao campo das relações humanas um definitivo liame com o registro do
simbólico, portando este uma impossibilidade de tudo significar. Desta maneira,
descerra-se para o sujeito a dimensão do real, enquanto aquilo que escapa ao simbólico,
que não pode ser abarcado pela linguagem. Eis a citação lacaniana, proferida em A
Psicanálise e seu ensino (1957), de onde parto, para tais considerações: “Aquilo de que
o amor faz seu objeto é o que falta no real; aquilo em que o desejo se detém é a cortina
por trás da qual essa falta é figurada pelo real” (1957:440).
Entrevê-se, portanto, a noção de desejo contida nestas formulações as quais ora
me incumbo de averiguar, noção presente, precisamente, neste movimento do sujeito de
buscar reparar a ausência que lhe é concernente, designando, através deste ponto de
vista, a situação amorosa. Ao postular o objeto a como sendo o objeto por excelência,
que se revela por elementos fragmentários, despedaçados, constituindo o resto de uma
operação de divisão - de um corte estrutural que prima por fundar tanto o sujeito quanto
o objeto - o destino da humanidade torna-se assim traçado, tal como podemos
depreender do ensino de Lacan: não há, de fato, encontro que se revele totalizante, entre
o sujeito e o Outro. O campo da linguagem decreta a posição metonímica do desejo
humano, atribuindo aos investimentos objetais o caráter fugidio das representações.
Aproveito para interpolar que optei, para o desenvolvimento desta tese de
doutorado, investigar esmiuçadamente os textos freudianos, por considerar que este
material escolhido – sejam os textos mais densos, que abarcam os pontos centrais de sua
teorização, sejam os mais remotos, sutis, menos conhecidos, de onde ousei extrair uma
leitura interpretativa – necessitam ser relembrados, uma vez que referendam a
perspectiva da falta presente no amor. Desta forma, confesso que estes pequenos mas
consistentes textos constituíram o meu lastro, ainda que isto não signifique dizer que eu
tenha, nesta tese, me limitado a estacionar nas arestas e nos acostamentos freudianos.
Ao contrário: foi o ensino de Lacan, renovador e revitalizante da obra freudiana, que me
permitiu lançar a presente ótica sobre estes textos específicos.
Devo admitir também, a título de introdução, que tenho a impressão de que
jamais deixarei de me surpreender com a súbita evidência de que basta que um sujeito
afasta o falante da natureza. A completude especifica o domínio próprio onde se decide a questão do
sujeito. Esse domínio é justamente o fechamento da condição humana na ordem significante”(2002:14).
13
se depare com algum mal-estar em sua vida, com algo que, por assim dizer, não ande lá
tão bem das pernas, no terreno do amor, para que este sujeito nos procure, deite-se no
divã, ponha-se a falar, e... prontamente
5
, como num passe de mágica, comece a nos
amar - visto que ele supõe que possamos fazer alguma coisa em nome da sua amargura.
E, de fato, podemos: ao transformar estes sofrimentos em demanda de análise, uma
nova direção se lhe desponta. Seria o mesmo que afirmar que, ao transformar em
palavras aquilo que há de inoperante em seu sofrimento, o que se lhe oferece é uma
escuta sobre os paradoxos, entraves, percalços e desvarios representados pelo seu
sintoma. Trata-se de realizar uma escuta sobre o modo como um determinado sujeito
goza o amor. A este movimento, chamamos transferência, e é aí onde tudo começa.
Surpreendentemente.
O amor de transferência, comportando-se de modo ora perturbador e barulhento,
ora silencioso e intransponível, na dimensão clínica, é um movimento que traz em seu
rastro uma estruturação narcísica, baseando-se num ideal de completude e de harmonia
vislumbradas pelo sujeito, pois segue os desfiladeiros de uma falsa promessa de que, ali,
ele poderá encontrar a felicidade através de um Outro. Foi sobre este cenário que Freud
fundou a sua Psicologia das massas: o amor podendo prestar-se a fins inteiramente
igualitários, de forma que anule as incômodas discórdias e chegando até, inclusive, a
pretender dissolver a diferença entre os sexos (discordância mais exemplar, imposta
pela pulsão, desunida por excelência). Temos vastas notícias do aspecto imaginário com
o qual o amor se consagrou para alguns psicanalistas, sendo ele corolário da premissa de
que o amor visaria somente a reciprocidade, a simetria, a complementaridade - idéias,
certamente, a serem subtraídas de uma análise. De fato, o amor se presta a esta função
encobridora. Esta é uma metade, uma possível visada sobre o amor. Todavia, seria esta
intenção suficientemente bem-sucedida? Seria esta perspectiva ampla o bastante para
deflagrar o que ali se insere de mais constitutivo para o sujeito? Penso que não, pois
aquilo com que o sujeito se depara numa transferência analítica não é senão a presença
de um Outro, o grande Outro, deveras desafinado e desencontrado frente a estas
ambições estritamente recíprocas, afirmando inexoravelmente o caráter da alteridade
que ali se encerra. Então, afinal, qual seria a outra metade do amor?
Proponho asseverar o estatuto do amor como sendo esta dimensão da
experiência que comporta uma disparidade inerente à estruturação do sujeito, e que
5
Esta situação, na verdade, não se dá tão prontamente assim: veremos que tanto Lacan quanto Freud
definem o amor como anterior à própria transferência, já trazido na bagagem do sujeito.
14
manifesta, através de seus movimentos, aquilo que há de mais pungente e angustiante
para ele, justamente devido ao fato de recolocar em causa, na vivência mais cotidiana, a
sua incompletude, bem como a desarmonia das pulsões.
Falar do amor através da perspectiva do sujeito e do analista: é a isto que me
destino. Todavia, argumenta Lacan, não é possível falar sobre o amor: tudo que se pode
dizer sobre o amor é precisamente que não se pode falar dele. Então, esta teimosa tese
tem por finalidade abordar alguns aspectos da experiência amorosa naquilo que ela
contém de ruptura, de partição, de impossibilidade de aplacar a falha constitutiva do
sujeito, bem como sublinhar suas incidências para a situação analítica. O paradoxo no
qual estou inserida para discorrer sobre tais considerações poderia, então, ser descrito na
seguinte frase: o amor, ele próprio, não tem cura (é um sinal da vivacidade estrutural do
sujeito, resultado de uma perda inerente, que se manifesta através dos séculos na
cultura), assim como o amor não pode ser o responsável pela cura analítica (já que
constitui uma face exemplar de resistência), mas ele comporta, sem dúvidas, algo
intrínseco a esta cura. Pois o amor é responsável por veicular o desejo do sujeito –
dimensão da cura por excelência. Falar do amor, portanto – na medida do possível – não
é senão abordar a sua imanente pungência. O amor, mesmo incompleto, ele constrói
laços, conforme afirmara Freud, mas ele próprio os torna nós cegos. Estes nós
constituem aquilo que pretendo enfocar; não elucidar, nem desvendar, nem
desvencilhar, mas sublinhar.
Inicio esta tese movida pela seguinte questão: este impossível, significante
utilizado para nos referirmos ao registro de real, não estaria apresentado, revelado,
concernido, posto em jogo, no que tange à situação amorosa? Não seria o amor uma via
privilegiada, por onde o trabalho analítico pode operar para um sujeito, justamente na
medida em que ele traz à cena transferencial uma incompletude, algo que resta como
encontro desconcertante, marca prodigiosa da falta?
Quando nos reportamos à nossa experiência - pessoal e profissional -
verificamos que ali, exatamente no amor, o que há de mais central no tocante à estrutura
do sujeito fica radicalmente evidenciado. Trata-se da idéia de que o amor se origina de
uma falta, idéia que pode ser, entre aspas, facilmente comprovada, tanto em nossa
experiência cotidiana quanto na teoria e prática analíticas. Entretanto, o que pretendo
ressaltar é que o amor é um lugar, repito, privilegiado, onde esta falta irá se recolocar
para o sujeito, sendo com isto que ele terá de se haver, caso consinta em ser
entrecortado pela experiência da análise. O amor se origina numa falta, esta falta é o que
15
o motiva e causa, mas é à falta que ele retorna, a falta é seu destino inexorável. É a
partir deste lugar que podemos operar.
O amor, súbita irrupção da realidade segundo Freud, interrompe o desenrolar da
cena analítica - eis a sua face de resistência -, mas o faz de modo a produzir efeitos. Há
uma dimensão de fogo, um aspecto queimante, no amor de transferência. Dimensão
talhadora, que imprime marcas, experimentada pelo sujeito como real, e que o coloca
radicalmente diante de suas perdas. Sobre as manifestações sombrias desta falta
apresentada para o sujeito, que sugiro abordar como estando incluída na própria
dinâmica da situação amorosa – uma vez que o amor é o sinal, o operador e a via
reveladora da incompletude – seus indícios estariam sugeridos por Freud desde os
primórdios de suas considerações teóricas. De fato, apesar de se dedicar a este tema por
décadas a fio, a teoria sobre o amor, em Freud, restou incompleta. Este talvez seja o
primeiro aviso para o qual devemos atentar: o fato inconcluso da teorização freudiana
acerca do amor reitera a impossibilidade que lhe é própria. O amor constitui um tema
incompleto para Freud e para nós, seus seguidores.
Inicio esta tese examinando alguns elementos concernentes ao campo da
transferência, a fim de demonstrar os impasses contidos nesta tão específica situação de
amor, bem como imensamente responsável pelo advento da psicanálise. Procuro
destrinchar algumas premissas freudianas acerca da transferência, certos anúncios
dotados de paradoxos, que conferem a este conceito tanto a sua mais fértil graça quanto
a sua maciça complexidade. Este primeiro capítulo contém, ainda, algumas das
principais dissertações realizadas por Lacan acerca da transferência, no Seminário 8.
Veremos como, na situação transferencial, trata-se de uma relação ímpar, que convoca o
sujeito ao desejo (uma vez que Lacan aponta para a diferença entre amar e ser amado),
através da demarcada disparidade que ela comporta, pois que há uma não-
correspondência explícita presente na relação analista-paciente.
No Capítulo 2, a fim de avalizar os meandros da impossibilidade concernente ao
amor, detenho-me na teorização do estatuto do objeto, com suas proximidades e
diferenças nas teorizações de Freud e Lacan. Reporto-me, para tal, aos textos onde
Freud trabalha os desfiladeiros da libido e a relação do sujeito com o objeto perdido,
anunciando sempre a presença de uma ausência: Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905), Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), Luto e melancolia
(1914) e Além do princípio do prazer (1920). O exame destes textos é permeado pelas
considerações lacanianas que fundamentam e complementam os postulados freudianos a
16
respeito da noção de objeto. Ao consagrar o estatuto do objeto a, Lacan permite
deslanchar em solo definitivo a noção de que há uma incompletude em jogo, no que
tange à situação amorosa: o objeto a resulta de uma operação de cisão, constitutiva tanto
do sujeito quanto do objeto. Examinarei este aspecto sob o exemplo do fort-da,
averiguando os meandros da estruturação do sujeito, bem como sua posição em relação
às perdas amorosas.
No Capítulo 3, evoco os artigos freudianos sobre a psicologia do amor, textos
que versam sobre o impossível da coincidência entre amor e sensualidade, para ilustrar
o impraticável do encontro sexual. Novamente encontra-se articulada, neste Capítulo, a
noção de desejo, como estando particularmente veiculada pelo amor, uma vez que o
encontro definitivo com a sua parte perdida vem a ser algo que, por imposições da
própria estrutura, fica sempre adiado para o sujeito. Realizo, neste contexto, uma
correlação destes textos freudianos com um artigo intitulado O tema dos três escrínios
(1908), a fim de destacar que aquilo com que o homem se depara, ao dirigir-se a uma
mulher, é sempre o espectro da morte.
No Capítulo 4, abordo duas interfaces possíveis ao tema do amor: amor e morte,
e amor e ódio. A primeira é contextualizada contando com a teorização da pulsão de
morte, tão imprescindível para a psicanálise, tomando como ponto de partida o texto O
Mal-estar na civilização (1930), abrindo caminhos para a averiguação das
especificidades atribuíveis ao registro do real. O real, enquanto promovedor de uma
ruptura, está presente em todas estas formulações acerca da parcialidade da satisfação
amorosa. Este aspecto foi dimensionado por Lacan no Seminário 20, Mais, ainda.
Quanto à segunda interface, examino os desfiladeiros do ódio, a fim de examiná-los
tanto no contexto cultural, quanto à sua pertinência em relação à estruturação do sujeito.
O quinto e último Capítulo consiste numa abordagem sobre o gozo, enfatizando
uma leitura que permite entrever que, tanto o gozo quanto o amor, são responsáveis por
reinstalar uma partição no sujeito
6
. Esta abordagem é realizada sob o prisma do
encontro com o estranho (Unheimlich), designando que, aquilo com o que o sujeito se
depara quando, porventura, efetivamente realiza um encontro amoroso, é a presença do
vazio e da morte. Para tal conjectura, perpasso por algumas referências de Freud e
Lacan a respeito do vocábulo “fogo”, do qual me sirvo ao longo de toda essa exposição,
6
Esta acepção, de “evocar a partição do sujeito”, é uma das possíveis visadas para a vasta noção
lacaniana de gozo. Estarei me referendando em pontos específicos dos seus Seminários, de onde se
depreende esta perspectiva do gozo (apenas uma entre as muitas que Lacan constitui ao longo do seu
ensino).
17
a fim de realizar um paralelo com o amor, o qual, no Capítulo 5, encontra seu ponto de
chegada. Para fundamentar as considerações acerca do vazio que se evidencia na
impossibilidade do encontro amoroso, percorro a noção de feminilidade.
Não pretendo, aqui, procurar resolver de forma decisiva todos os embaraços e
percalços referentes ao amor. A psicanálise nos mostra, sem dúvida, certos caminhos, e
eu escolhi seguir alguns destes, referendada por um enfoque específico, e que está longe
de ser o único possível. O que intento, embora de forma não completa, é traçar algumas
considerações sobre o que o amor compõe de fraturas tangentes ao sujeito, o que ele
carrega de imperfeito, bem como sublinhar o que está concernido teoricamente neste
mal-estar que ele infringe, a cada fissura, em cada sujeito.
A experiência cotidiana - carga pesada de cada dia - demonstra ao sujeito o
quanto lhe é difícil ser feliz no amor. Na clínica, esbarramos com seus sintomas,
manifestos através das tantas idiossincrasias, presentes nas relações amorosas, e que
teimam em reivindicar lugar cativo em sua neurose estrutural. Estes sintomas são tanto
responsáveis quanto proeminentes deste falho, insuficiente e mal-sucedido amor, na
medida em que eles já se insurgem como corolário da confrontação com o impossível,
emanada da situação de enamoramento. Assim, para além de intencionar recensear estes
“amores impossíveis” - relativos à posição neurótica por excelência, especificamente
histérica -, que se manifestam para nós nos discursos do sujeito, esta tese tem por
propósito enfocar, até a medida do possível, o impossível no amor.
Desta forma, todo amor caracteriza-se por ser - assim desejo expressá-lo - um
“amor pela metade”. Nos dois sentidos que o termo comporta (pois que há duas
metades!). Primeiro, no sentido de que nós amamos a outra metade. Temos um vasto,
incondicional e terminante amor por nossa metade perdida. Isto nos parece mais
evidente, daí o destino rudimentar de consagrarmos o amor como aquilo que visa a
completude inalcançável. Mas, num segundo enfoque, o amor é “pela metade”, na
medida em que ele não se completa, não se coaduna em significantes plenos, não
arredonda. Evidencia-se sempre pela metade. Eis seus paradoxos: por ser amplo, o amor
é aquilo que obtura. Por ser incondicional, o amor condiciona. É aberto em seus limites.
O amor é um problema, e não uma solução. O amor é sempre o sinal da falta de amor.
O amor, certamente, perspectiva o encontro no amor. Entretanto, ele é sempre o
flagrante, a notícia, a dura lembrança da condenação à falta de amor. Neste sentido,
“amor pela metade” é um título que sublinha a divisão pertinente à própria noção de
amor. O campo do amor estaria, pois, dividido em duas metades: por um lado, ele
18
representa a busca desgarrada do sujeito, frente ao reencontro com o objeto perdido, ao
encobrimento proporcionado pela ilusão que é capaz de promover. Esta seria uma
visada imaginária da função do amor. Por outro lado, entretanto, ele é a experiência de
um encontro com o cavo inevitável que se interpõe à satisfação total, vácuo estrutural
do sujeito, responsável por relançá-lo a algo de novo, original e criativo sob suas
repetições. O que está em jogo nesta metade é a presença do impossível, a categoria do
real, em sua estreita ligação com o simbólico. Esta é a parte desta esfera que me
interessa investigar.
Embora se deva destacar o fato de que não há uma divisão assertiva do amor, no
que tange à sua disposição aos três registros (real, simbólico e imaginário). O amor irá
se articular em uma relação de concomitância com estes registros, cuja lógica particular,
tal como Lacan designa a partir da imagem do nó borromeano, os envolve, os contorna.
Seria errado supor que há um caminho a ser seguido na análise com relação ao amor - a
perspectiva do real, por exemplo - a despeito das outras, e que garantisse seus efeitos de
forma definitiva. Ademais, o amor só pode ser considerado em sua ligação com a
linguagem. Assim, trilharei um percurso teórico que privilegie as incidências do real
sobre o amor, ainda que anuncie, de saída, que esta noção se encontra articulada aos três
registros em termos de um nó. Melhor dito, discorrerei sobre os “nós” do amor, para
além do “nós” do amor, promovido pela ilusão imaginária.
A respeito desta topologia, Lacan, no Seminário 8, a propósito das considerações
que traça sobre O Banquete, de Platão, pontua que os leitores poderiam alegar que o
problema deste diálogo filosófico consiste no fato de manifestar a dificuldade de se
dizer, sobre o amor, alguma coisa que se sustente. Entretanto, ele afirma que aquilo que
Platão nos mostra com O Banquete, para além disso, é que “o contorno desenhado por
esta dificuldade nos indica o ponto onde se situa a topologia fundamental que impede de
dizer sobre o amor alguma coisa que se sustente” (1960/1:50).
Lacan designa que este diálogo de Platão se localiza, historicamente, “na origem,
não somente do que se pode chamar de uma explicação do amor em nossa era cultural,
mas de um desenvolvimento desta função, que é, em suma, a mais profunda, a mais
radical, a mais misteriosa das relações entre os sujeitos” (1960/1:169). Inspirando-se
nesta afirmação lacaniana, vale ressaltar que o amor, certamente anterior a este ponto de
vista que a psicanálise permite, à nós, elucidar (de ser uma função), esteve presente
desde o início da cultura a que pertencemos.
19
Sempre houve, nas civilizações que antecedem a nossa, a existência de variadas
ideologias do amor. No entanto, estas ideologias constituem diferenças em relação à
noção de amor tal como fora tomada pela cultura ocidental. Na cultura oriental, o amor
sempre estivera relacionado a uma tradição religiosa, derivado de uma ou outra
doutrina, não caracterizando, assim, um pensamento autônomo. No ocidente, por sua
vez, o amor tomou a via filosófica, destacando-se da religião predominante (a tomar
como exemplo o amor na filosofia de Platão, que critica as práticas religiosas, bem
como o amor cortês, veementemente reprovado pela Igreja).
Segundo Rougemont, em O amor e o Ocidente, o amor nem sempre esteve
associado ao erotismo. Ele é, isto sim, algo exclusivo da civilização ocidental a que
pertencemos. O autor data o período e o lugar do nascimento do amor: Provença, entre
os séculos XI e XII. De acordo com Octavio Paz, em A dupla chama -amor e erotismo,
entretanto, haveria uma distinção a ser feita entre o “sentimento amoroso” e a “idéia de
amor”, adotada especificamente em cada cultura, distintivamente. O primeiro, de fato,
pertenceria a todos os tempos e lugares, e a vasta literatura com a qual contamos, que se
incumbe do tema do amor, seria a melhor prova da universalidade deste “sentimento
amoroso”. Ao passo que a “idéia de amor” - inclinação passional por uma pessoa,
transformando o objeto erótico num indivíduo “livre e único” - se diferenciaria do
erotismo, sendo, esta sim, abraçada por uma sociedade e uma época determinadas
(1994:35).
Vale destacar que, de fato, estas noções psicanalíticas que se imiscuem ao campo
do amor, fundamentadas nos ensinos de Freud e Lacan, são, em si mesmas, dotadas de
um certo hibridismo: erotismo, sexualidade, sensualidade, desejo, gozo, para citar
alguns termos, tão imbricados entre si. Devo anunciar que não me inseri na prerrogativa
de destrinchar cada uma destas noções, nem mesmo de fazer clarear seus pontos de
similaridade, ou suas diferenças. Ao contrário, decidi tomá-las na exata medida de seus
impasses, de suas sombras, admitindo as vastas interseções que estas noções
comportam.
Ainda que não pudesse deixar de contar com esta ampla bibliografia acerca do
amor, tal como fora postulado anteriormente à psicanálise, esta tese tem como foco
principal o mergulho nos textos freudianos e lacanianos. Foram estes os referenciais que
escolhi perseguir, a fim de avaliar o que a psicanálise pode nos ensinar sobre o amor,
em sua face extremamente pulsante em nossos dias. Nos estudos realizados para a
execução desta tese, acentua-se o caráter contemporâneo deste amor aqui retratado, que
20
vem a ser um amor intermediado pela noção de falta, tão presente na teoria
psicanalítica, e ao mesmo tempo tão vivaz em sua prática. Assim, estarei abordando o
amor neurótico, tal como a psicanálise nos oferece apreender: fragmentado em suas
raízes e incompleto em seus encontros.
Aproveito a analogia para aludir que as “raízes” do romantismo se diferem das
“raízes” do amor elaborado por Freud, conforme podemos depreender da leitura do livro
de Inês Loureiro, O carvalho e o pinheiro, no qual evidenciam-se as proximidades e as
distinções (priorizando estas últimas) entre o Romantismo e a psicanálise. Segundo a
autora, estas duas correntes constituem “madeiras diferentes”: enquanto o estilo
romântico comporta a nostalgia de uma totalidade perdida, “o intuito de reencantamento
do mundo” (2002:27), Freud realiza um desvio e uma transformação sobre a herança
romântica na qual se banhara, uma vez que em nenhum momento de sua obra ele aspira
“à completude ou a algum tipo de transcendência” (2002:27). De fato, veremos como,
apesar de ter se inspirado no Romantismo, Freud empreendera definitivos passos na
direção de estabelecer um campo - prático e teórico - que engendra de modo sem
precedentes a presença de uma impossibilidade.
Para encerrar estas primeiras considerações, lanço a seguinte analogia, para que
ela sirva de direção, e para que possa acompanhar o percurso que se inicia a seguir.
Diria que o amor é como um mágico diante de sua platéia, que promete, através do
suspense ao qual lança seus curiosos espectadores, retirar da cartola um objeto
definitivo, fonte de alegrias e risadas, capaz de preencher as expectativas sangradas e
doloridas dos que a ele assistem. O sujeito é esta criança ali sentada defronte ao mágico,
esperando avidamente que da cartola possa se desdobrar um objeto milagroso, imbuído
somente de bons fluidos, capaz de acalentar seus inquietos desejos. Colocamo-nos,
enquanto sujeitos, à espera disto, muito embora valha lembrar que não estamos, na
maioria dos casos, em uma posição inativa em relação ao amor - na medida em que
assistimos a ele, mas desejamos, acima de tudo, ser assistidos por ele.
E o que emerge de dentro da cartola? O nada. Ela está vazia. No real da vida, a
cartola está vazia, e teremos que lidar com isto. O que o sujeito busca encontrar no
objeto jamais corresponde ao que ele, de fato, dali vê despontar. O que se acha para
além da cartola é apenas o recurso que a determina enquanto cartola, lugar depositário
das esperanças ardentes do sujeito. Não há objeto que apareça, a não ser de forma
pontual, frugal. O que se encontra para além da cartola não é o objeto, não é a alegria
que ele promove, na bela atividade de inebriar. Mas apenas o recurso da mágica.
21
Pois o amor é justamente este recurso. Deparamo-nos ali com um vazio, com a
falta daquele ilusório objeto cuja promessa insistimos, repetidamente, em manter acesa,
em permanente suspense. Enquanto sujeitos, visamos propriamente ao objeto que dali
possa advir e nos surpreender. Todavia, o analista não visa senão à mágica. Vislumbra o
que ela promove, sempre e novamente, de inaugural. Esta é a visada do presente
trabalho.
Desejo, através desta tese, ressaltar primeiramente a nossa complexa curiosidade
humana, nosso tórrido impulso pulsional ali fecundado, no ato mesmo de esperar que
algo libertador advenha do mágico e enigmático amor. Mas desejo ressaltar, com ainda
mais ênfase, o inerente aspecto da surpresa, ao notarmos, nada mais nada menos, a
presença do vazio que, este sim, frente à abertura da cartola, inexoravelmente lhe cabe
como uma luva.
22
Capítulo 1:
O AMOR DESDE O COMEÇO
23
1.1- Transferência: o amor de Freud:
“Os fatos explicarão melhor os sentimentos. A
melhor definição do amor não vale um beijo da
moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo
antigo demonstrou o movimento andando.”
Machado de Assis
7
Abordar o campo da transferência é aludir ao que há de mais pungente nos
relacionamentos amorosos: a transferência põe em prática, encena e anima o terreno do
amor, de forma particularmente fecunda. Ao mesmo tempo em que o amor é um tema
que atinge frontalmente o ponto mais sensível da experiência do pessoal do sujeito
(operando um liame com o mais radical de sua estrutura), no contexto da experiência
analítica ele é também o que se presentifica de mais intenso. Ao evidenciar o amor
inerente ao psiquismo humano, a transferência faz transparecer o que há de central na
estrutura do sujeito, demonstrado na experiência carnal e sangrenta de seus movimentos
cotidianos mais tradicionais. O que intento abordar a respeito do amor só importa
porque seu lastro - principalmente para o analista, que é defrontado diariamente com os
embaraços da clínica - consiste numa vivência real, engendrada pela transferência. No
interior deste conceito, concentra-se o que há de mais agudo a ser destacado sobre o
amor, ou seja, o aspecto lancinante nele contido, bem como um específico encontro com
a impossibilidade.
No presente capítulo, farei a exposição de alguns elementos pertencentes ao
conceito de transferência, elaborados por Freud e por Lacan. Digo ‘alguns’ elementos,
visto que não pretendo abraçar este conceito – tão vasto na teoria psicanalítica – de
modo a dar conta de tudo que ele evoca, mas sim realizar uma leitura específica que
prioriza aspectos tangenciais à questão do impossível revelado pelo amor. Com Lacan,
temos a notícia de que tudo aquilo que o sujeito pode saber sobre o amor, ele o faz
amando. Assim, é sobre o caráter tanto vívido quanto vital da experiência amorosa – tão
bem expresso na citação de Machado de Assis – que discorrerei no presente capítulo, ao
fazer transcorrer alguns elementos próprios da transferência.
“Nossos tratamentos são tratamentos por amor!”, declara Freud, numa sessão de
quarta-feira, em 30 de janeiro de 1907. A psicanálise surge evidentemente de uma
7
Assis, M.: O espelho. In: Melhores contos (1984:35).
24
situação amorosa. Freud confere ao amor um caráter central da experiência analítica. O
médico Breuer, no interior das pesquisas com o método catártico (hipnose), e
esquivando-se desta situação de enamoramento que ali irrompe, é substituído pelo
jovem Freud, que decide não recuar ante as curtas rédeas que se impunham ao
tratamento - e ali mesmo inaugura o campo de onde extrairá o conceito de transferência.
As descobertas de Breuer são relembradas por Freud no artigo História do
movimento psicanalítico (1914), embora ele já as tivesse, anteriormente, descrito e
detalhado. O que havia de principal nestas descobertas (das quais Freud se serve para ir
mais além) era o fato de que os sintomas das pacientes, pacientes histéricas, se
baseavam em cenas traumáticas do passado que haviam sido esquecidas. A terapêutica
proposta no princípio, então, consistia em fazê-las “lembrar” e “reproduzir” essas
experiências traumáticas, a partir da técnica da hipnose, isto é, a catarse (1914:17).
Freud afirma que ambos, ele e Breuer, foram os responsáveis, “simultaneamente e em
conjunto”, pela concepção teórica acerca do processo de conversão histérica (1914:18).
Entretanto, Freud não se resignou diante dos resultados obtidos através dos
experimentos hipnóticos. É a ele que atribuímos a insistência na talking cure, a cura
pela palavra, termo sugerido pela paciente Anna O., referindo-se a este novo gênero de
tratamento que ali se configurava, elemento crucial daquilo que irá permitir a Freud,
mais tarde, consolidar o conceito de transferência. Breuer era médico de Anna O.
(Bertha Pappenheim), e, para evocar os termos empregados por Safouan em A
transferência e o desejo do analista, “tudo nos indica que esta a quem devemos a
invenção da psicanálise era realmente uma histérica arquetípica” (1991:18). Breuer
propusera-se a atendê-la até o momento em que Bertha veio a declarar o seu amor por
ele. A partir daí, recusou-se a realizar este tratamento, por considerar que as fronteiras
que o margeavam estariam sendo ultrapassadas.
Lacan afirma, no Seminário 8, ser evidente que, nesta situação, tratava-se de
uma perfeita história de amor. Todas os indícios levam a crer que Breuer também
amava Bertha, num fervor conjugal tipicamente burguês
8
. Breuer retribuía o sentimento
de amor de sua paciente, e por este motivo arremeteu ante a tarefa de atendê-la. Este
fato, ocorrido no ano de 1882, denota que ainda foram necessários mais alguns anos
para que Freud viesse a conferir um significado a toda esta experiência, consagrada em
seus Estudos sobre a histeria (1895): no último capítulo deste texto ele se refere
8
Lacan, J.: (1960/1:16). O aspecto “burguês” do amor da época vitoriana, encontra-se vastamente
discorrido por Peter Gay, em A paixão terna.
25
especificamente à transferência, pela primeira vez. O que importa destacar é que Freud
fez deste “acidente inaugural” seu rumo para a fundação da práxis psicanalítica,
ressaltando aquilo que ela traz de mais ardente: o amor de transferência. De certa forma,
o conceito de transferência deve seu estatuto ao desejo de Freud, ali implicado.
A história do tratamento do Anna O. é também descrita por Ernest Jones em sua
biografia de Freud, mas deve-se notar que, quando este tratamento fora finalizado, a
paciente manifestava por Breuer uma forte “transferência positiva não analisada, de
natureza inconfundivelmente sexual” (1989,Vol.2:73). Esta notícia pontua o caráter
sexual, desde sempre impresso na cena analítica. Na primeira das Cinco Lições de
Psicanálise (1909), Freud retoma a narrativa do caso de Anna O., afirmando,
resumidamente - mas não sem causar impacto - que “as histéricas sofrem de
reminiscências” (1909:18), bem como anunciando aos médicos que, apesar de todo o
preparo e todo o eminente saber sobre anatomia, fisiologia ou patologia, em face das
particularidades dos fenômenos histéricos, todos eles estariam desamparados (1909:15).
Então, convocado pela questão sexual que ali se evidenciava, Freud inaugura a
psicanálise, que se propõe, conforme mais adiante o conceito de pulsão irá determinar, a
tratar do que está situado “entre o psíquico e o somático”, colocando de lado a técnica
da hipnose e o método catártico, heranças de Breuer, e lançando-se no campo
inegavelmente mais sombrio, arriscado e inovador da associação livre. O universo
clínico que se abre a partir da “cura pela fala” imputa à transferência e ao amor nela
engendrado uma importância sem precedentes.
Ora, mas a consagração do conceito de transferência está longe de ser uma
questão suficientemente esgotada em nosso tempo, mais de um século depois. Ao
contrário, esbarramos com as revelações, dúvidas, impasses e surpresas, advindas da
clínica psicanalítica. Afinal, em Observações sobre o amor transferencial (1914), Freud
sugere que devemos estar sempre atentos à questão de “como é que uma capacidade de
neurose se liga a tão obstinada necessidade de amor” (1914:217). Certamente é sobre
este alerta freudiano que lanço foco e me detenho, na presente tese, a fim de averiguar
os elementos que estão em jogo na configuração da estrutura neurótica, e que designam
ao amor este estatuto de ser uma “obstinada necessidade”.
O surgimento da transferência, diz Freud, “sob forma francamente sexual - seja
de afeição ou de hostilidade -, no tratamento das neuroses, apesar de não ser desejado
ou induzido pelo médico nem pelo paciente, sempre me pareceu a prova mais irrefutável
de que a origem das forças impulsionadas da neurose está na vida sexual” (1909:22).
26
Argumento decisivo, mais contundente inclusive do que qualquer outra descoberta
específica do trabalho analítico, para caracterizar aquilo que se deflagra na situação da
análise. Nos próximos capítulos veremos como esta sexualidade, desde a perspectiva
psicanalítica, será desde sempre formulada como uma fonte inesgotável de encontros
com uma impossibilidade, ali engendrada.
A análise nasce de um consentimento do sujeito em tomar a palavra para buscar
dizer aquilo que lhe falta no terreno do amor. Esta proposta é acatada pelo analista, que
irá atentar para uma verdade que se revela nas entrelinhas, verdade que ali também fala
pelo sujeito, através de seus fantasmas. Esta dinâmica constitui-se por incluir uma
dissolução, um corte radical entre o sujeito (que fala), e o analista (que escuta). A
análise, conforme admite Kristeva, em No princípio, era o amor, “faz pagar, no sentido
estrito do termo, o preço que o sujeito concorda em pôr para revelar que suas queixas,
os sintomas, os fantasmas, são discursos de amor para um outro impossível – sempre
insatisfatório, fugaz, incapaz de preencher minhas demandas e meus desejos” (1895:17).
A presença deste Outro impossível, Outro que faz descortinar a falha do sujeito
que ali consente em falar, é, por excelência, a situação sobre a qual desejo lançar foco.
Há um sujeito que fala, endereçando sua voz embargada ao Outro, e há o Outro, que ali
escuta, mas que, por ser Outro, nunca lhe responde à altura, fazendo necessariamente
retornar ao sujeito as notícias de sua incompletude estrutural. E o que o sujeito diz, nas
entrelinhas daquilo que fala? Ele diz deste afã da procura de uma completude perdida,
bem como também da sua dor de não conseguir alcançá-la. Façamos, neste ponto, um
passeio pelos textos freudianos sobre a transferência, a fim de esquadrinhar este
desencontro fundamental, ali concernido.
Freud inicia o texto A dinâmica da transferência (1912) lançando a idéia de que
a transferência decorre daquilo que o sujeito é, das marcas que ele carrega, de sua
posição subjetiva na vida. Trata-se, a princípio, de uma repetição, ou reimpressão:
“Deve-se compreender que cada indivíduo conseguiu um
método específico próprio de conduzir-se na vida erótica –
isto é,
na pré-condição para enamorar-se que estabelece,
nas pulsões que satisfaz e nos objetivos que determina a si
mesmo no decurso daquela. Isto produz um clichê
estereotípico, constantemente
repetido - constantemente
reimpresso - no decorrer da vida da pessoa, na medida em
que as circunstâncias externas e a
natureza dos objetos
amorosos a ela acessíveis permitam, e que decerto não é
27
inteiramente capaz de mudar, frente a experiências
recentes” (1912:133, meu grifo).
Por ocasião da análise do caso Dora, Freud já havia mencionado o caráter
“novo” e simultaneamente repetitivo, substitutivo, da transferência: “São novas edições,
cópias das tendências e dos fantasmas, que precisam ser despertadas e tornadas
conscientes pelo avanço da análise e cujo traço característico é de substituir uma pessoa
conhecida anteriormente pela pessoa do analista” (1905:08). Esta pré-condição para
enamorar-se nos aponta, de saída, um paradoxo com o qual o próprio Freud irá se
debater: o amor de transferência é algo verdadeiro, autêntico, e não somente uma
criação artificial que se restringe ao setting analítico. É um amor calcado nas tendências
do sujeito, suas articulações estruturais, já trazidas em seu bolso antes mesmo de que ele
se decida a cruzar a porta do consultório de seu analista. Mas, é bem verdade que a
leitura dos textos freudianos também nos oferece a idéia de que a transferência é um
efeito da análise, sendo produzida, reimpressa, na específica situação estabelecida entre
médico e paciente. Portanto, é situado desde um campo paradoxal que o conceito de
transferência se articula. Retomarei este aspecto mais adiante.
Freud, então, descreve que alguns impulsos sexuais acham-se à disposição do
consciente (estão dirigidos para a realidade), enquanto outros estão ocultos para o
indivíduo. Estes últimos, retidos, permanecem inconscientes, são desconhecidos e
impedidos de expansão, exceto pela via da fantasia. Freud sugere que “se a necessidade
que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade, ele está fadado a
aproximar-se de cada nova pessoa que encontre com idéias libidinais antecipadas”
(1912:134). Assim, cada novo investimento amoroso caracteriza-se por ser uma
repetição, ao mesmo tempo em que é sempre resultante de uma boa dose de
insatisfação, experimentada pelo sujeito. Grifo esta última perspectiva - de que o amor
de transferência surge a partir de uma necessidade não satisfeita -, uma vez que isto
afirma o caráter da falta que ele engendra, em seu próprio advento. Devemos considerar,
a partir de Freud, que o estado amoroso se origina numa falta.
Tanto é assim que, logo adiante, ele complementa: “É perfeitamente normal e
inteligível que o investimento libidinal de alguém que se acha
parcialmente insatisfeito,
um investimento que se acha pronto por antecipação, dirija-se também para a figura do
médico” (1912:134, meu grifo). O amor de transferência é abordado neste texto como
sendo um investimento da libido, um novo investimento, realizado pelo sujeito de modo
28
a reproduzir “séries psíquicas” já formadas; um investimento depositado na figura do
médico e que recorre a “clichês estereotípicos” já vividos, protótipos de relações já
experimentadas e, principalmente, que não foram plenamente realizadas ou satisfeitas.
Investimento, portanto, que, apesar de classificado por Freud como novo, traz à luz as
velhas dobras amassadas por onde cada sujeito, momentânea ou duradouramente, teria
se recostado.
Esta idéia de que o amor estaria calcado em “clichês estereotípicos” e “séries
psíquicas” nos levaria a considerar o amor como sendo meramente uma repetição sem
novidades. Para além disso, todavia, tenciono demarcar que o amor é a conseqüência de
um investimento do sujeito que foi parcialmente insatisfeito, e que não pode encontrar,
em seu destino, amarras suficientemente esgotáveis. O amor se acha “pronto por
antecipação”, isto é, o sujeito já se dirige ao consultório do analista a propósito de seu
desejo insatisfeito, não satisfeito de antemão. De modo que a transferência irá se
fundamentar nesta insatisfação. Mais que isso: ela põe em causa a insatisfação do
desejo
9
.
Examinemos de perto um segundo paradoxo contido na dimensão da
transferência, abarcando o que, na transferência, tange à resistência. Freud afirma que
“permanece sendo um enigma” a razão pela qual a transferência, na análise, aparece
como a “resistência mais poderosa ao tratamento”, enquanto, fora dali, é uma condição
de sucesso para a vida do sujeito: “À primeira vista, parece ser uma imensa
desvantagem, para a psicanálise como método, que aquilo que alhures constitui o fator
mais forte no sentido do sucesso, nela se transforme no mais poderoso meio de
resistência” (1912:135). O amor de transferência traz, em seu coração – e não utilizo
este termo em vão – este paradoxo diante do qual Freud não hesita: a cura do paciente
só pode se dar
através e apesar do amor de transferência.
Nas palavras de Michel Silvestre, em Amanhã, a psicanálise: “O amor está para
a transferência assim como a repetição está para o sujeito suposto saber: um obstáculo,
ao mesmo tempo em que um revelador” (1991:43).
10
Logo, trata-se de um amor
verdadeiro, mas composto de resistência. Amor real, de fato, uma vez que Freud
defende com veemência a idéia de que as características da transferência não devem ser
atribuídas à psicanálise, mas sim à própria neurose. O contexto clínico em que elas se
9
Veremos, no Capítulo 3, como esta idéia se coaduna com os ensinamentos de Lacan (o sujeito precisa
criar para si um desejo insatisfeito). Ao afirmar que a transferência põe em causa o desejo, refiro-me ao
caráter insuficiente promovido pela experiência analítica, que irá sagrar-se pela resposta, sempre parcial,
que o sujeito pode obter do Outro.
29
apresentam apenas lança luz sobre algo que já seria próprio do sujeito. Na vida comum,
entretanto, a transferência tende a ser encoberta, ao contrário da análise, onde esta é,
decididamente, sublinhada.
O tratamento analítico, atesta Freud, inicialmente consiste em fazer um
rastreamento da libido, de forma a “torná-la acessível à consciência e, enfim, útil à
realidade” (1912:137). O que ocorre é uma revivescência das imagos infantis. Vale
lembrar que ele aqui ainda está referido à primeira teoria pulsional. No momento em
que o trabalho analítico se depara com a libido retirada em seu esconderijo, diz ele,
“está fadado a irromper um combate” (1912:137). Daí deriva a resistência, como uma
força que se ergue contra o que fora evocado pela análise.
Freud se refere à resistência na seguinte situação: o paciente, para não falar de
seus problemas, se enamora e fala de amor. Neste ponto, lanço uma pergunta, não
apenas essencial para o que pretendo aferir, como também, a meu ver, dotada de
repercussões práticas para o psicanalista: por acaso não convém ao tratamento analítico
que o paciente fale de amor? Até mesmo por ser algo inevitável, não consistiria o amor,
predicado por uma parcela de insatisfação, dotado que é de uma inerente
impossibilidade, naquilo que o sujeito apresenta ao analista de mais real? Se o amor é
um vestígio da falta (resultado de investimentos libidinais outrora insatisfeitos), não há
como lhe virar as costas, num trabalho de análise. Presume-se então que, ao contrário,
convém à análise que o paciente fale de amor. Embora isto seja, de fato, um tanto
inconveniente para ambos, sujeito e analista.
Lembremos que o próprio Freud, na intenção de justificar a regressão da libido
e, conseqüentemente, a resistência do paciente, se reporta à relação do indivíduo com o
mundo externo, como sendo atravessada por uma “frustração da satisfação”. Então,
enquanto deflagrador de uma insatisfação, o amor, não há como deixá-lo do lado de
fora. Embora não devamos nos refestelar nele. Com isto pondero que, obviamente, ao
admitir no contexto clínico o campo amoroso, como sendo aquele através do qual o
paciente pode fazer transcorrer um discurso acerca de seus incômodos, o analista não
está em posição de ofertar ao paciente a sua comiseração, nem mesmo o seu interesse
próprio de ser amado. O analista estará, tão somente, acolhendo o que de mais
determinante a transferência pode oferecer ao trabalho analítico.
10
Irei mencionar novamente, mais adiante, a noção lacaniana de Sujeito suposto saber.
30
Se, por um lado, Freud indica que este amor não deve e nem pode ser
plenamente realizado, ele também afirma que este amor não deve ser desconsiderado.
Ele constitui a condição da análise, uma via por onde a transferência pode funcionar,
sendo esta a principal ferramenta da situação analítica. Determina Freud, em
Observações sobre o amor transferencial (1914): “É, portanto, tão desastroso para a
análise que o anseio da paciente por amor seja satisfeito, quanto que seja suprimido”
(1914:216). Eis, aí conclamado, o eixo fundamental do amor de transferência.
A análise não se dá sem o amor, embora ele não seja o foco princeps, a
finalidade mesma, do que ela intenciona alcançar. Na análise, temos de lutar contra as
resistências: “A resistência acompanha o tratamento passo a passo”, afirma Freud
(1912:138). Quando se apregoam os sinais de resistência, o analista pode inferir que se
aproximou de um ponto crucial para o paciente: “Onde há fumaça há fogo”, denuncia
ele, asseverando que se trata de um campo deveras minado, acalorado, mas do qual não
se pode esquivar. A transferência invariavelmente aparece na análise, desde o início,
como a “arma mais forte da resistência”, e sua intensidade e persistência consistem
numa expressão da resistência. Se o amor de transferência coloca em cartaz a
resistência, ao mesmo tempo deve-se considerar que é a resistência que coloca em
cartaz o amor, anunciando a falta, o furo e a impossibilidade, engendrados no amor.
Lacan, no Seminário 1, versando sobre a resistência e os processos de defesa
presentes numa análise, é lacônico ao afirmar que “a resistência é essa inflexão do
discurso ao se aproximar deste núcleo” (1953.4:48). Ele se refere, aqui, ao que Freud
definira, em Estudos sobre histeria (1895), acerca do “núcleo patógeno” dos pacientes,
como constituindo aquilo que é procurado numa análise, mas que, ao mesmo tempo, é o
que busca repelir o discurso – aquilo do que o discurso foge. Logo, a resistência é a
inflexão que o discurso toma ao se aproximar deste núcleo.
Se as características deste amor de transferência não devem ser atribuídas à
psicanálise, mas sim à própria neurose, isto nos fornece indícios de que o que está em
jogo é a posição do sujeito diante de suas escolhas amorosas, e que o analista deve se
oferecer a estas repetições para, a partir delas, operar. Diferentemente de outras
formulações que se prestam ao tratamento de doenças psíquicas, citadas por Freud, onde
a transferência também está presente com igual intensidade, mas não é levada a cabo
(nem sequer é enfocada), na situação analítica trata-se de identificá-la como tal,
considerar sua importância, acolhê-la, escutá-la, e, para incluir a dimensão do que
podemos esperar do tratamento, colher os seus efeitos.
31
O que me soa mais marcante, neste texto freudiano sobre a transferência, é a
consideração de que o surgimento, o aparecimento mesmo da resistência não vem senão
denunciar para o analista o que ali está concernido: o núcleo da questão subjetiva do
sujeito, seu eixo intensivo, cuja vivacidade devemos não abafar, nem utilizar como álibi
para nossas dificuldades, mas manejar. O analista surge ocupando um lugar conferido
pelo sujeito “meio por acaso”, para sustentar aquilo que de fato interessa ser destacado
acerca de sua subjetividade: a incompletude. Sobre esta ótica, Safouan, em A
transferência e o desejo do analista (1991), argumenta que o que está em jogo na
transferência, no cerne de seu próprio mecanismo, é uma substituição realizada por um
objeto “qualquer” (na medida em que qualquer analista pode ocupar o lugar deste
objeto), que vem a tomar o lugar de um outro objeto, este sim, o que está em causa. Isto
o autoriza à constatação de que “o amor é fundamentalmente indiferente ao objeto ao
qual remete, que este objeto, mesmo que seja o primeiro, não vale senão por uma outra
coisa, um outro objeto” (1991:24). Há um jocoso dito popular que bem ilustra este
desígnio: “Eu te amo, mas você não tem nada a ver com isso”. Este “outro objeto”, que
está em causa, é o que confere ao objeto “qualquer” (o analista) seu verdadeiro valor,
pelo fato de que o sujeito acredita ali poder reencontrá-lo.
A meu ver, a operacionalidade da transferência não advém do fato de que o
paciente sobreponha no analista a referência de um antigo objeto, uma pessoa outrora
perdida. Sua função consiste, isto sim, em que ali se produza uma abertura de tal sorte
que venha a revelar, ao sujeito, a defasagem entre uma coisa e outra. O analista como
objeto não vale senão “por uma outra coisa”, por ocupar o lugar desta outra coisa que ali
se destaca como estando ausente. Eis a importância da dinâmica desencadeada pelo
amor de transferência.
Freud pergunta-se porque este impulso, dirigido a este novo objeto, representado
pela figura do analista, serve ao paciente como resistência, e não como um facilitador a
mais, no sentido de viabilizar um campo fértil de proximidade entre os dois, o qual
tornaria mais fácil a fala e a “confissão” do paciente. Fundamentando-se nesta questão,
ele cita a ambivalência
11
contida na transferência, diferenciando a transferência positiva
(impulsos afetuosos) da negativa (impulsos hostis, que embaraçam o desenrolar do
tratamento). A transferência é uma resistência, sugere Freud. Mas é, também,
11
Termo que fora inicialmente adotado por Bleuler, para descrever este fenômeno (1912:141).
32
novamente ressaltando seu aspecto paradoxal, a condição fundamental para que a “cura
das neuroses” possa se dar. Nas palavras de Freud:
“Não se discute que controlar os fenômenos da
transferência representa para o analista as maiores
dificuldades; mas não se deve esquecer que são
precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço
de tornar imediatas e manifestas as pulsões eróticas ocultas
e esquecidas do paciente. Pois, quando tudo está dito e
feito, é impossível destruir alguém in absentia ou in
effigie” (1912:143).
Trata-se de um compromisso sinuoso para o analista, implicado no campo da
transferência. O amor que lá irrompe convoca-o, a todo o momento, a ter de
experimentar sua cota de angústia, para que, ao sujeito, seja possível dar o testemunho
de sua falta. É neste sentido que Lacan vem nos propor, nos Seminários 1 e 11, bem
como em A direção da cura e os princípios de seu poder (1958), que a resistência é
sempre do analista
. Poder-se-ia dizer que o analista é aquele que “suporta” o amor de
transferência, nos dois sentidos do termo: ele tanto está ali em posição de tolerar as
saliências, as rebarbas e os arroubos deste amor, como também em posição de sustentar,
escorar aquilo que, da insatisfação inerente ao amor, possa causar o sujeito em seu
desejo.
Temos, com Lacan, no Seminário 1, que “o fenômeno maior da transferência
parte do que eu poderia chamar o fundo do movimento da resistência” (1953/4:66). Eis
o paradoxo indissociável, angustiante, com o qual a experiência clínica conta, em sua
intensa operacionalidade: o amor de transferência e a resistência caminham associados,
não há um sem o outro.
Se, por um lado, o amor de transferência é uma resistência que interrompe a
comunicação do inconsciente (as associações se calam por se fixarem na pessoa do
analista), simultaneamente ela é o momento em que a interpretação do analista, que visa
o inconsciente, pode revelar todo o seu alcance. Assim, a transferência, tomada por
Lacan como “um nó” (no Seminário 11), consiste em ser, por um lado, um engodo –
pois, ao persuadir o analista de que ele possui aquilo que pode completá-lo, propondo-
lhe esta “falsidade essencial que é o amor”, o sujeito desconhece precisamente o que lhe
falta. Por outro lado, na medida em que é uma presença que serve de suporte a um
desejo velado, o analista é um “Che vuoi?” por excelência, fazendo surgir, a partir de
33
sua resposta silenciosa (a não-correspondência deste amor), a dimensão da falta, que
indica a presença do real
12
.
Lacan dedica-se, no Seminário 1, a acentuar esta face da resistência que se situa
precisamente “ao nível mesmo da emissão da palavra”, palavra como aquilo que
representa o campo simbólico, baseado no qual todo o processo de análise se desenrola.
A transferência, para Lacan, neste Seminário 1, é sempre uma transferência simbólica.
No entanto, “a palavra pode exprimir o ser do sujeito, mas até certo ponto, não chega
nunca a isso”, pontua (1953/4:128). A transferência, conforme insisto em salientar,
possui também algo de uma opacidade, um não-dito, sugerido pela própria linguagem,
algo que, ao sujeito, resta sempre por dizer. Isto se coaduna com a idéia de que o que
está em jogo ali é um amor insatisfeito, na medida em que, da parte do sujeito, haverá
sempre mais a pedir, assim como haverá sempre mais a dizer.
Dois anos após publicar A dinâmica da transferência (1912), Freud é levado a
redigir o artigo Observações sobre o amor transferencial (1914). Certamente, ainda
havia muito a dizer! Ele inicia o texto revelando que o enamoramento dos pacientes pela
figura do médico é algo bastante freqüente. Para um leigo instruído, afirma ele, “as
coisas que se relacionam com o amor são incomensuráveis; acham-se, por assim dizer,
escritas numa página especial em que nenhum outro texto é tolerado” (1914:209).
Quando, diz Freud, uma paciente se enamora do seu médico, parece a tal leigo que
seriam possíveis três desfechos para esta situação: ou eles se unem e iniciam um
relacionamento amoroso; ou eles se separam e abandonam o tratamento; ou eles iniciam
um relacionamento amoroso ilícito e que não se destina a durar para sempre (hipótese
condenada moralmente, segundo ele).
Obviamente, diz Freud, o psicanalista deve encarar as coisas desde um ponto de
vista diferente. O que acontece se a segunda alternativa for levada a cabo, e o
tratamento for abandonado? A paciente irá repetir este enamoramento com um próximo
médico, sucessivamente. Aspecto interessante: se não puder viabilizar seu amor por
aquele analista, ela amará outro, e mais outro... e assim por diante. O amor é um pedaço
do sujeito que “bate à porta” do Outro, qualquer que seja seu endereço. É algo inerente à
sua dinâmica, como nos adverte Freud, de forma que de nada serve, para o analista,
12
Irei me deter, ainda neste Capítulo, na perspectiva que estou tomando para caracterizar o registro do
real. Quanto à expressão Che vuoi?, traduzindo: “Que queres?”, trata-se da pergunta fundamental feita
pelo sujeito ao Outro, termo que Lacan toma emprestado do livro O diabo enamorado (1992), de Jacques
Cazotte, autor do século 18.
34
considerar toscamente - como fizera Breuer - que o enamoramento possa ficar do lado
de fora da porteira que encerra o contexto analítico.
Portanto, a cada paciente, cabem as seguintes escolhas: ou recuar diante do
trabalho, ou aceitar enamorar-se do seu médico, como um “destino inelutável”
(1914:210). Sublinho esta preciosa observação de Freud - o amor como sendo um
destino inelutável - uma vez que ela parece apontar para a única direção possível ao
tratamento, naquilo em que faz sobressair os percalços concernentes à situação analítica,
tão imbricados na idéia de que o enamoramento deflagra um lugar de falta. O amor de
transferência consiste em ser um destino inelutável: eis a advertência fatal com a qual
ambos, analista e sujeito, têm de se defrontar. De forma que não há como ludibriá-lo,
pois não há outro caminho senão aquele, ácido e tempestuoso, que passa pelo amor.
Estas possíveis escolhas (abandonar o tratamento ou aceitar enamorar-se do seu
médico, como um destino inelutável) não passam despercebidas aos olhos de Freud, ao
ponderar que, embora os parentes da paciente optassem pela primeira delas, para o
analista somente a segunda hipótese deveria ser considerada. Afinal, sobre a paciente,
avisa: “O amor dos parentes não pode curar-lhe a neurose”. E, indo mais além, anuncia
que a diferença consiste em que um amor por qualquer outro médico, “fadado a
permanecer oculto e não analisado, nunca poderá prestar ao restabelecimento da
paciente a contribuição que a análise dele teria extraído” (1914:211). O que está em
jogo, conforme se pode averiguar, é uma tomada de posição do analista diante das
dificuldades, apuros, obstáculos e também diretrizes que o amor de transferência
apresenta.
Estes percalços são postos em cena no exato momento em que se decanta o
enamoramento da paciente, na transferência. Diz Freud: “Por mais dócil que tenha sido
até então, ela repentinamente perde toda a compreensão do tratamento e todo o interesse
nele, e não falará ou ouvirá a respeito de nada que não seja o seu amor, que exige que
seja retribuído”.
13
A paciente abandona seus sintomas, não lhes presta a menor atenção,
suspende a cena analítica para, insistentemente, falar de amor. Torna-se patente para
Freud que isto implica numa sustação do processo analítico. Entretanto, volto a indagar:
como seria possível que a paciente não falasse de amor, situando este amor “fora”
daquilo que a análise, com toda a propriedade, faz reverberar? Como conceber que o
13
Freud,S.:(1914:211). Veremos, mais adiante, a propriedade que Lacan confere a este termo,
“exigência”, na direção de afirmar que todo pedido de amor (demanda) consiste em ser, na verdade, um
pedido de ser amado.
35
sujeito, em análise, admita expor ao outro os seus derradeiros frangalhos, sem estar
mergulhado no contexto de suas relações amorosas? Ademais, como o paciente poderia
falar daquilo que lhe é mais incômodo, eximindo uma fala de amor, se, justamente aí
reside seu maior martírio?
A analogia utilizada por Freud sobre este fato é contundente. Ele articula que,
nestas circunstâncias, há uma completa mudança de cena, como se, por exemplo, uma
representação teatral fosse interrompida por uma “súbita irrupção da realidade”. É tal
como se, após estarem todos os espectadores sentados, um grito de incêndio irrompesse
durante uma peça de teatro, exclamando –“Fogo!!!”, dando para o analista a falsa
impressão de que o tratamento tem de ser interrompido, ou até encerrado.
Entretanto, ao contrário, a experiência comprova que esta entrada em cena (aqui,
literalmente) do amor de transferência, representa o início, por excelência, do
tratamento analítico. Ainda que ela acene, veementemente, na direção de uma cessação
do trabalho da análise. Pois, o que vem a ser a instalação da transferência para um
sujeito e seu analista, senão a consagração deste anúncio, determinante e impetuoso, de
um ardente fogo, que ali se torna flagrante? No que consiste a transferência, senão na
causação deste arrebatamento desenfreado, abrasador e cáustico - como qualquer amor -
mas tão concernente a todo trabalho de análise que possa daí advir? Neste sentido, a
imagem trazida à tona por Freud é uma ilustração rigorosamente fecunda, ainda que
denuncie o ponto de queda, de vertigem, de paralisação, que estaria perigosamente em
jogo, podendo vir a colocar em xeque os desfiladeiros propostos pela análise.
Logo, é com isto que temos que lidar: o cartão de embarque do sujeito, rumo às
vias e canais por onde uma análise poderá guiá-lo, é também o seu passaporte de saída,
por trazer de lambuja os percalços, as mazelas e os desvarios com que se fundamenta. O
amor é aquilo que conduz o sujeito a implicar-se numa análise, embora este insista, por
quase todo o tempo, em implicar com ele... O amor é este fogo, bastante exaltado,
proveniente de uma falta já não inédita – entretanto, nunca sanada - e é isto que se
encena (e irrompe na cena) a cada começo de análise.
Se o enamoramento é algo utilizado pela resistência, a fim de estorvar a
continuação do tratamento, de desviar o interesse do trabalho e de colocar o analista em
uma situação canhestra, por outro lado, ele nos presta, como diz Freud, um inestimável
serviço. Freud, então, interroga: como deve agir o analista, a fim de não fracassar nesta
situação, se estiver certo de que o tratamento deve ser levado avante, apesar desta
transferência erótica, e se estiver convencido de que deve enfrentá-la, com calma? Em
36
primeiro lugar, Freud rechaça a idéia de que o analista deva propor à paciente que abra
mão de suas pulsões, as deixe de lado. Renunciar, suprimir ou sublimar seus impulsos
seria uma forma insensata e não-analítica de lidar com eles. Seria como se, “após
invocar um espírito dos infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos mandá-
lo de volta para baixo, sem lhe haver feito uma única pergunta!” (1914:213).
Este procedimento, ademais, não seria bem sucedido. Como sabemos, insiste
magistralmente Freud, “as paixões pouco são afetadas por discursos sublimes”
(1914:213). Então, ele nos sugere, isto sim, que levemos adiante o tratamento, “na
abstinência”. Esta abstinência considero como um teste que se impõe ao analista, a
partir do momento em que o amor do sujeito se manifesta, no sentido de evocar nele o
vazio concernente à sua própria falta. Sim, pois é preciso que o analista suspenda os
seus reais interesses de ser amado. Freud não se refere somente à abstinência física, nem
à privação de tudo que a paciente deseja, pois “talvez nenhuma pessoa enferma possa
tolerar isto” (1914:214 - Uma curiosidade: seria esta intolerância privilégio apenas dos
enfermos?). Mas ele afirma que o princípio fundamental é que se permita que a
necessidade e o anseio da paciente nela persistam, a fim de servirem de forças que a
incitem a trabalhar e efetuar mudanças. O que poderíamos oferecer, diz Freud, “nunca
seria mais do que um substituto, pois a condição da paciente é tal que, até que seus
recalques sejam removidos, ela é incapaz de alcançar satisfação real” (1914:214).
Aqui, temos a notificação daquilo que veio a se tornar uma noção importante na
teoria freudiana: a idéia de substituição. Freud confere este caráter aos atos-falhos,
chistes e sintomas (formações substitutivas), desde os primórdios de suas elaborações.
No quadro da economia da libido, trata-se de uma substituição por outra, de uma
satisfação ligada à redução das tensões. Na medida em que o desejo busca satisfazer-se,
o sintoma (para citar um exemplo) manifesta-se, sobretudo, como satisfação
substitutiva. Em O Inconsciente (1915), Freud alega que a formação substitutiva é um
derivado altamente organizado do inconsciente. Todavia, o que interessa ressaltar aqui,
tange à substituição no contexto do amor transferencial.
Este enfoque freudiano sobre o amor de transferência como algo substitutivo (já
que o objeto está perdido), leva-me a considerar que o amor de transferência está
colocado como algo que vem ocupar o lugar de uma perda, restaurar para o sujeito uma
falta, demarcada pelo complexo de castração. Tal como deduzo de suas elaborações, é
nesta direção que podemos considerar o amor de transferência como resistência: este
amor anuncia, deflagra, ressalta, traz à cena atualizada e reimpressa da transferência
37
uma dimensão de falta. Então, se o paciente ama porque resiste (hipótese freudiana), ele
também resiste porque ama. O amor revivifica e põe em cena algo de sua defasagem
estrutural.
Retomando o texto Observações sobre o amor transferencial (1914), Freud é
contumaz ao sugerir aos analistas que esta demanda de amor não seja correspondida.
Neste trecho, ele inclusive vai mais além: o problema é que, quando se trata de amor, já
não há mais chance de um encontro afortunado. O que ocorreria se o analista, livre e
desimpedido, aceitasse a oferta de amor de sua paciente? – pergunta-se Freud. E
responde com o célebre exemplo:
“O corretor de seguros, livre pensador, estava à morte e
seus parentes insistiram em trazer um homem de Deus
para convertê-lo antes de morrer. A entrevista durou tanto
tempo que aqueles que esperavam do lado de fora
começaram a ter esperanças. Por fim, a porta do quarto do
doente se abriu. O livre pensador não havia sido
convertido, mas o pastor foi embora com um seguro”
(1914:215).
Adiante, Freud nos adverte, categoricamente: “Se os avanços da paciente
fossem retribuídos, isto constituiria grande trunfo para ela, mas uma derrota completa
para o tratamento” (1914:215). Esta afirmação torna possível sustentar a idéia de que
aquilo que pode fazer operar uma análise é a manutenção da falta no amor.
O caminho do analista, então, passa a ser muito delicado, pois é uma via para a
qual não existem modelos que possam ser retirados de sua vida pessoal, que lhe sirvam
de recursos, que correspondam ao singular desta situação. O analista deve cuidar para
que não afaste ou descarte o amor transferencial, não deve repeli-lo nem “torná-lo
desagradável para a paciente”, mas deve, “de modo igualmente resoluto, recusar-lhe
qualquer retribuição” (1914:216). Eis a posição limítrofe na qual se situa o analista,
lugar ao mesmo tempo sutil e fundamental para o decurso do tratamento. É preciso
deixar vir à tona todas as precondições para amar, inerentes ao sujeito, todas as fantasias
que surgem de seus desejos sexuais, todas as “características pormenorizadas de seu
estado amoroso”. Assim nos sugere Freud.
A partir deste ponto, ele irá novamente se perguntar sobre a veracidade deste
amor. Seria o enamoramento, manifestado no tratamento analítico, irreal?
38
“O papel desempenhado pela resistência no amor de
transferência é inquestionável e muito considerável.
Entretanto, a resistência, afinal de contas,
não cria esse
amor; encontra-o pronto, à mão, faz uso dele e agrava
suas manifestações (...) É verdade que o amor consiste em
novas edições de antigas características e que ele repete
reações infantis. Mas este é o caráter essencial de todo
estado amoroso” (1914:218, meu grifo).
Todo estado amoroso, portanto, reedita as características concernentes à vida
sexual infantil do sujeito. Remete-as para o centro de um contexto atual, presente, e
igualmente (ou mais) intenso. É uma oportunidade radical, e sem dúvida ímpar, com a
qual o analista lida em sua clínica.
Não se pode contestar a genuinidade do amor de transferência: se, por um lado,
ele possui um grau de liberdade e mobilidade menor do que o amor da “vida comum”,
por outro, é reconhecido por sua eficácia, sua utilidade em alcançar o objetivo do amor,
pois, conforme afirma Freud, o amor transferencial, em sua força e ímpeto, não fica
devendo nada a ninguém, e “tem-se a impressão de que se poderia obter dele qualquer
coisa” (1914:218).
O enamoramento comum - fora dos limites da análise - afinal de contas, segundo
Freud, se assemelha mais a um fenômeno mental “anormal” do que “normal”. É como
se ele nos dissesse, dotado de uma doce e fatal ironia: amar é sempre, em qualquer caso,
uma desmesura. Não obstante, o amor de transferência é caracterizado por certos
aspectos especiais: ele é provocado pela cena analítica (ao mesmo tempo em que traz
antigos selos); é grandemente intensificado pela resistência; e, por último (e é o aspecto
mais importante), ele é “menos sensato”, menos interessado nas conseqüências, “mais
cego em sua avaliação da pessoa amada” do que no caso do amor “normal”.
Incluo, aqui, um parêntese acerca desta cegueira em relação à figura do analista,
própria do amor transferencial. Lacan, no Seminário 8, do interior de suas considerações
sobre a transferência, faz um pequeno comentário, não livre de certo gracejo, ao
ponderar que, para o bom andamento de uma análise, é indicado que o analista não seja
belo, que ele não prime pelo charme ou pela harmonia corporal. É profícuo para uma
análise que ele seja desprovido de qualquer encanto: “Em suma, a análise é a única
práxis na qual o encanto é um inconveniente. Quebraria o encanto. Quem já ouviu falar
num analista encantador?” (1960/1:21). Ao ser encantador, o analista perde todo o seu
encanto. Relembro a analogia que propus na Introdução desta tese: o amor é como o
39
espetáculo da mágica. É preciso que não se perca o encanto que mantém em suspenso –
e em suspense – aquilo que o sujeito vislumbra conter na cartola furada do campo do
Outro.
Ao analista cabe abandonar o convite de ver-se amado, idealizado. Posicionar-se
assim, na abstinência. Abrir mão de seu narcisismo e prezar, mais do que o amor ou o
fato de ser amado, a oportunidade única que se lhe apresenta, qual seja, a de oferecer
uma passagem condutora de efeitos para o paciente. Ao paciente, cabe “superar o
princípio do prazer” (1914:220 - lembremos que Freud, aqui, ainda se norteava pela
primeira tópica), e dar-se conta de sua incompletude, de sua realidade capenga, e da
inexorabilidade de sua falta: cartola vazia, mas não destituída de encantos. Estas não são
tarefas inócuas, para ambos os lados. Não há como sair ileso de tal incumbência, pois se
trata precisamente disso: há um corte margeando esta relação de amor, do qual ninguém
está imune.
De fato, Freud encerra este texto dizendo que “o psicanalista sabe que está
trabalhando com forças altamente explosivas e que precisa avançar com tanta cautela e
escrúpulo quanto um químico”. No entanto, indaga-se: “quando foram os químicos
proibidos, devido ao perigo, de manejar substâncias explosivas, que são indispensáveis,
por causa de seus efeitos?” (1914:221). Eis o imponente chamamento freudiano, o qual
nos cabe acatar.
A psicanálise, que, com Freud, lançou ao mundo um novo saber e acima de tudo
uma nova práxis, está há mais de um século apresentando seus enigmas e trazendo ao
debate sua operacionalidade. A transferência, pedra angular da teoria freudiana, não
subestima os distúrbios psíquicos e convoca o analista à responsabilidade de operar
desde um campo onde se situam e se experimentam importantes fontes desta substância
quente e explosiva que se chama angústia
14
: o campo do amor.
Eis aí manifestado um aspecto ardente, incendiário mesmo, tal como é possível
depreender da clínica e confirmar através das analogias utilizadas por Freud. Opondo-se
àquelas terapias que julgam poder prescindir do amor de transferência e restringir-se a
uma inócua administração de remédios, diz ele: “Na clínica médica sempre haverá lugar
para o ferrum (ferro) e para o ignis (fogo), lado a lado com as medicina. Esta é uma
alusão a um dito atribuído a Hipócrates: “Aquelas doenças que os remédios não curam,
14
A noção de angústia será abordada nos Capítulos 3 e 5.
40
o ferro cura; aquelas que o ferro não pode curar, o fogo cura; e aquelas que o fogo não
pode curar devem ser consideradas inteiramente incuráveis”
15
.
Para nós, trata-se do incurável de uma chama acesa, de uma chamada certeira e
incandescente, inserida no coração da chamada transferência. Trata-se - na medida em
que é disso que tratamos - do fogo do amor.
15
Eis a referência, tal como encontrada no texto freudiano (1914:221)- Aforismos, VII, 87 (trad. Inglesa,
1849).
41
1.2- O ímpar do par:
“O campo freudiano é um campo que, por
sua natureza, se perde. É aqui que a
presença do psicanalista é irredutível, como
testemunha desta perda”.
J. Lacan
16
Conforme já indicado, o que está posto, na cena transferencial, é uma
circunstância na qual há um sujeito endereçando a sua fala para um Outro. Situação
esta, fundamentada naquilo que Lacan se dedica em consagrar, em seu primeiro
Seminário (Os escritos técnicos de Freud, 1953/4), como o registro do simbólico. Neste
momento do seu ensino, Lacan se ocupa em conferir extrema importância ao
significante no decurso do tratamento analítico, ressaltando assim sua primazia, sua
representatividade e seus efeitos, retomando os artigos freudianos sobre técnica que
versam a respeito da transferência. Lacan promove ao campo da palavra, à função do
simbólico, aquilo que é fundamental para a compreensão da experiência analítica.
Isto permite delinear o terreno de onde teço estas considerações acerca do amor:
o campo da linguagem, que prima por demarcar uma incompletude intrínseca aos
dizeres do sujeito, na medida em que há ali implicado um impossível de tudo dizer,
sendo esta irredutibilidade essencial à própria linguagem. Então, o lugar da análise
define-se por ser o sítio onde, ao sujeito, é guardada a possibilidade de falar sobre esta
falta, engendrada no próprio dizer. Isto nos conduz a ponderar que, ao falar de amor,
numa análise, o sujeito não somente está dizendo daquilo que lhe falta (uma vez que o
endereçamento transferencial confirma que haja falta), como também está em posição
de recolocar a falta no enredo de seus dizeres (visto que ele não receberá, jamais, uma
resposta adequada).
Para designar alguns postulados lacanianos de onde extraio esta perspectiva da
incompletude do amor a partir do campo simbólico, reporto-me à última parte do
Seminário 1, onde Lacan determina que “toda significação reenvia a outra significação”
(1953/4:269). A palavra não possui somente um sentido, ou apenas um emprego, ela
comporta sempre um “mais-além” (1953/4:275). Assim, ele destaca a função criativa da
palavra, que instaura, na realidade, uma outra realidade. São referências que afirmam a
16
Lacan, J.: Seminário 11 (1964:122).
42
anterioridade do simbólico em relação ao sujeito, a presença da palavra como estando
situada antes mesmo de seu advento. Vejamos o que Lacan revela sobre o inefável do
discurso do sujeito, lugar onde o amor de transferência encontra-se alocado:
“O que é que Freud chama Übertrangung? É, diz ele, o
fenômeno constituído pelo fato de que, para um certo
desejo recalcado pelo sujeito, não há tradução direta
possível. Esse desejo do sujeito é interditado ao seu modo
de discurso, e não pode se fazer reconhecer. Por que? É
que há entre os elementos do recalque algo que participa
do inefável. Há relações essenciais que nenhum discurso
pode exprimir suficientemente, senão no que eu chamava
há pouco de entrelinhas” (1953/4:278).
Este enfoque que ora emprego, para abordar o amor - como esta experiência que
traduz uma falha no interior da relação do sujeito com o Outro - baseia-se nesta
concepção lacaniana que certifica a presença de algo que sempre resta como impossível
de ser abarcado pelo discurso, resto concernente à própria linguagem - da qual o sujeito
é efeito. Em outras palavras, refiro-me ao real
17
, que emerge nas entrelinhas do discurso
analítico.
Quando anuncio que esta premissa - da incompletude revelada pela linguagem -
fundamenta o tema do amor, refiro-me ao fato de que é pelo efeito da linguagem,
naquilo que ela não dá conta de significar, que, ao sujeito, é conferido este lugar cortado
e esvaziado, a partir de onde se depura a sua incansável busca amorosa; bem como na
medida em que esta experiência revela que não se pode conceber o discurso humano
como algo unitário: toda emissão de palavra está sempre concernida numa necessidade
interna de erro, nos ensina Lacan. Ao dirigir-se ao outro, o sujeito depara-se
inevitavelmente com um curto-circuito, dali proveniente. Assim, o amor fracassa em seu
destino de buscar fazer a totalidade do Um.
Ainda que estas considerações demarquem a conexão do amor com o registro
simbólico, no contexto do Seminário 1, Lacan postula o amor como estando referido
também ao registro imaginário. Segundo ele, o amor, “laço imaginário estabelecido na
transferência” (1953/4:132), mola imaginária da análise, participa, “no fundo, da ilusão”
17
Baseio-me, aqui, no aspecto irredutível do real. Remeto, neste ponto, à leitura do livro Porque os
planetas não falam? (1997), de Ana Beatriz Freire, onde se pode encontrar uma ampla abordagem sobre
esse assunto.
43
(1953/4:134). O termo ilusão será retomado por ele no Seminário 8, a fim de explicitar
o que, na situação transferencial, apresenta-se como uma fonte de ficção: na
transferência, o sujeito “fabrica”, “constrói” alguma coisa (1960/1:176). Por outro lado,
ele decreta: “É preciso, pois, que na concepção de Freud, a função do imaginário não
seja a função do irreal” (1953/4:138), sugerindo, assim, que o registro imaginário,
embora seja responsável por encobrir o real, não se restringe, todavia, ao irreal. De fato,
conforme já exposto, Freud confere ao amor de transferência um estatuto de
autenticidade: é um amor genuíno. Pretendo com isto inferir o ponto de vista de que o
amor da transferência, embora seja, segundo Lacan, uma mentira, uma ficção, é aquilo
que promove, de forma contundente, a aproximação do sujeito ao real.
Atentemos para uma frase que torna inócuo todo e qualquer impulso de tentar
resolver a questão de se Lacan teria tratado do tema do amor, neste Seminário 1, desde o
ponto de vista simbólico ou imaginário, induzindo-nos a considerar que, na verdade, o
amor conecta-se com os três registros: “Prefiro deixar à noção de transferência sua
totalidade empírica, marcando, entretanto, que ela é plurivalente e que se exerce ao
mesmo tempo em vários registros, o simbólico, o imaginário e o real” (1953/4:134).
18
Com isto, destaco que, embora o terreno amoroso se preste a uma primeira – e rasteira –
perspectiva imaginária, todavia, seus desfiladeiros apontam para uma função simbólica,
tal como Lacan a descreve, e que promove ao sujeito o confronto com o real, fatalmente
ali imbricado.
Sobre a concepção imaginária do amor, ainda no Seminário 1, Lacan anuncia:
“O amor distingue-se do desejo, considerado como relação-limite que se estabelece de
todo organismo ao objeto que o satisfaz. Porque seu ponto de mira não é a satisfação,
mas o ser” (1953/4). Mais adiante, ele afirma que não se pode falar do amor senão onde
a relação simbólica exista como tal, sendo o amor essencialmente “uma tentativa de
capturar o outro em si mesmo”, em si mesmo como objeto.
19
Esta perspectiva do amor, como sendo um movimento de buscar o ser, Lacan irá
caracterizar definitivamente no Seminário 20. Ali, contudo, evidencia-se um triplo
aspecto, contido na dinâmica amorosa, tal como indica Lacan: “o amor visa o ser, isto é,
aquilo que, na linguagem, mais escapa” (1972:55). Examinemos esta triplicidade. Por
18
Vale lembrar que, nesta ocasião, Lacan ainda não havia conferido ao real a sua roupagem mais
definitiva.
19
É possível notar como se desenrola, desde os primórdios das formulações lacanianas, uma clara
diferenciação entre o amor e o desejo. No Capítulo 3, sirvo-me desta distinção para averiguar de que
forma o amor se encontra articulado ao desejo, de modo a fazer reverberar para o sujeito os efeitos de
uma falta constitutiva.
44
um lado, há a dimensão imaginária do amor, que consiste na determinação de que, neste
movimento, o sujeito vislumbre o ser, ou seja, a unidade, a perspectiva do encontro. Por
outro lado, isto se configura para o sujeito de modo a denunciar aquilo que, imposto
pelo registro simbólico, não pode ser inteiramente dito, pois que escapa à linguagem,
escorrega das suas mãos. O que irá convocar necessariamente a presença do real,
inapreensível pelo simbólico. Eis o eixo no qual o amor se encontra amarrado: sua
concatenação é articulada pelos três registros.
Destaco agora duas conjeturas trazidas à baila por Lacan, que nos permitem
lançar um olhar crucial sobre a conceituação freudiana de transferência. São elas: a
distinção entre o amor e a resistência, e a disparidade inerente à situação transferencial.
A respeito desta primeira conjetura, Lacan inicia o Seminário 1 demonstrando que a
transferência articula-se intimamente com o fenômeno da resistência. Mais adiante, na
Lição VIII, ele retoma as definições feitas sobre os conceitos de resistência e de
transferência, pontuando:
“Ora, vocês sentem toda a distância que há entre a
resistência, que separa o sujeito da palavra plena que a
análise espera dele, e que é função dessa inflexão
ansiógena que constitui no seu modo mais radical, ao
nível da troca simbólica, a transferência – e este fenômeno
que manejamos tecnicamente na análise e que nos parece
ser a mola energética, como Freud se exprime, da
transferência, a saber, o amor” (1953/4:108).
Há uma separação, portanto, entre o amor e a resistência. Estas duas noções não
podem ser sobrepostas, ratifica Lacan. O amor, colocado em cena pela transferência,
contém uma dimensão de resistência, conquanto surja como tentativa de coser a falta a
qual se trata de lobrigar em uma análise. Todavia, enquanto mola energética, o amor é
também um operador para que algo desta falta possa se evidenciar. Por um lado, é
verdade que ele camufla, dissimula e disfarça o lugar conferido ao desejo - na medida
em que visa a que uma resposta de correspondência e simetria, obliterante, seja
conferida pelo analista. Por outro, é também fato (conforme demonstrarei no Capítulo 3)
que este desejo não pode se articular senão pelo viés do amor. Lacan, portanto, sustenta
o paradoxo no qual, conforme vimos, Freud se insere ao longo de toda a sua elaboração
acerca da transferência: a direção da cura analítica promove-se através e apesar da
transferência.
45
Lacan anuncia que a resistência - recurso do sujeito que, como vimos, Freud
localiza no centro da experiência analítica -, convém que não seja tomada “de ego a
ego” (1953/4:45). É preciso, argumenta, que haja ao menos, e sempre, um terceiro
termo nas interpretações da defesa. Se o amor de transferência, por um lado, não está
livre de seus efeitos intrínsecos de resistência, por outro, está colocado para o sujeito
como aquilo que irá permitir causá-lo no desejo. Isto se este amor puder, devido à
decisiva resposta do analista (ou a falta dela), ser empregado numa relação contrária à
da simetria, da reciprocidade, determinada nos diversos outros laços que o sujeito
estabelece alhures. Esta dissimetria, e o que está para além dela – a disparidade - é o que
eu gostaria de ressaltar agora, como sendo a segunda conjectura, revelada por Lacan,
que oferece um novo olhar, complementar ao paradoxo freudiano inerente aos conceitos
de transferência e de resistência.
Vejamos, primeiramente, o que o dicionário
20
nos apresenta como definição de
dissimetria e disparidade. A dissimetria é a falta de simetria, a desproporção
estabelecida entre duas coisas. Eis a definição de simetria: “Correspondência de
posição, de forma, de medida em relação a um eixo entre os elementos de um conjunto
ou entre dois ou mais conjuntos/ Harmonia resultante de certas combinações e
proporções regulares/ Na matemática: Disposição de duas figuras que se correspondem
ponto por ponto de tal sorte que os dois pontos correspondentes de uma e da outra
estejam a igual distância de um ponto, de uma reta ou de um plano dado”. Agora,
vejamos a definição de disparidade: “Diferença entre dois seres, duas coisas;
desigualdade; dessemelhança/ Despropósito; palavra ou frase insensata”. Há uma
diferença entre aquilo que é dissimétrico e aquilo que é díspar. O primeiro termo
designa uma relação, embora de negação, com a simetria. Pressupõe, assim, uma
simetria, uma proporção. Já o termo disparidade evoca uma impossibilidade, representa
o fato de que aquilo que um sujeito oferece a outro nunca corresponde ao que recebe em
troca, e vice versa. O descompasso é inerente, sendo também irreversível. E é disso que
se trata, na transferência.
Lacan, no Seminário 8, volta a sublinhar este tema, classificando o campo da
transferência, de saída, como contendo algo para além de uma simples dissimetria entre
dois sujeitos. Há um terceiro termo envolvido, tal como anunciara no Seminário 1. Em
outras palavras: é um terreno que se apresenta, desde o princípio (onde o amor já está
20
Koogan Houaiss digital, enciclopédia e dicionário (1998).
46
presente), como contrário àquilo que uma idéia de intersubjetividade pudesse dar conta
de elucidar. Assim, o lugar no qual se inscreve o fenômeno da transferência é,
sobretudo, um espaço que transcende a uma dissimetria, e estando mais próximo,
portanto, de uma disparidade: não há, na situação transferencial, a possibilidade de se
fazer par.
Assim, a transferência é um campo que eu classifico como sendo essencialmente
ímpar, ímpar pelo fato de comportar, por si mesmo, a ausência de um par
21
. E, já que
estamos falando de um amor ímpar (no sentido de ser inédito), podemos articular que o
amor de transferência é uma ficção, mas uma verdadeira ficção, que destina ao sujeito o
impossível de todo par. Este ineditismo está concernido ao próprio campo da
linguagem, que comporta, por excelência, a disjunção entre um significante e outro.
O que irá importar doravante - aquilo que Lacan ocupa-se em destacar na
experiência analítica - é que a transferência compõe-se inexoravelmente por seu caráter
de enunciação, isto é, aquilo que um sujeito diz para além do seu dito, ou, melhor ainda,
o fato de que ele diga coisas, o fato de ser um sujeito falante. Este caráter do dizer, da
enunciação, sobressai em relação ao que é pronunciado pelo sujeito, ou seja, o seu
enunciado. O que interessa conferir à transferência é o seu valor de enunciação,
enunciação proferida por trás do enunciado.
Pois o fenômeno da transferência, por estar manejado essencialmente pelo viés
da interpretação, encontra-se permeado pela ação da fala: a fala de um sujeito
endereçada a um Outro. Isto resulta da afirmação lacaniana de que a transferência, ela
mesma, está “colocada em posição de sustentáculo da ação da fala” (1960/1:175). Como
efeito, descobrimos, na experiência que a transferência imprime, que, enquanto estiver
lançado este endereçamento, a fala do sujeito se mantém, em seu estatuto particular: por
conter algo de indomável. A transferência, por mais que possa vir a sofrer os efeitos de
interpretação, guarda em si mesma uma espécie de “limite irredutível” (1960/1:175), um
limite àquilo que as significações podem dar conta de elucidar e fazer transparecer,
numa análise. Este limite é propriamente imposto pelo registro do simbólico, que
garante a metonimização da fala do sujeito, essa sim - por isto mesmo - ilimitada.
Vemos, com esta acepção, o quanto está flagrante na análise uma margem de
irredutibilidade, ou seja, o seu reduto estritamente ímpar, garantido pelo estatuto da
21
Sobre isso, remeto à lição proferida por Lacan no Seminário 2, intitulada: Par ou ímpar? Para além da
intersubjetividade, na qual Lacan discorre sobre “A carta roubada”, examinando seus desenlaces.
47
linguagem. Pois o ser, visado pelo sujeito ao falar, é também o que mais escapa na
linguagem. Detenhamo-nos nesta importante articulação lacaniana.
Ainda no Seminário 8, Lacan afirma que, no começo da experiência analítica,
estava o amor. Com isto, estabelece uma distinção em relação ao dito do qual se serve
Freud (“no começo era o verbo”), alegando que a transferência vem a ser o que há de
mais opaco, o núcleo propriamente dito da experiência analítica. É por isto que ele
propõe, para além deste dito “no começo era o verbo” - tomado pelos analistas como um
enunciado - que levemos em conta esta diferenciação, não desprovida, segundo ele, de
um certo mau jeito: “no começo da experiência analítica, vamos lembrar, foi o amor”
(1960/1:12). Amor, vale dizer, em sua opacidade nuclear, isto é, aquilo que verbo
nenhum é capaz de representar suficientemente.
Portanto, não se trata, na transferência, apenas de ser um lugar dissimétrico,
concebido pelo fato de haver dois sujeitos entre os quais a comunicação só pode ser
esparsa e falha, uma vez que esta se encontra submetida a uma série de mal-entendidos.
Na medida em que o simbólico garante à cena analítica uma irredutibilidade, trata-se,
para além disto, do fato de que esta relação, consagrada na situação transferencial, é
dotada de uma disparidade radical. Não é desejável que se faça um par, ou a paridade,
na cena montada a partir da transferência. Mais que isso, tal como avaliza a
incompletude imposta pela linguagem: não é nem mesmo possível que ali se faça um
par.
22
Lacan inicia o Seminário 8 abordando a estreita relação do amor com o campo
da linguagem. Mas, sobretudo, Lacan destina-se a analisar o importante texto filosófico
O Banquete, de Platão. As noções presentes na transferência, próprias ao ser falante, e
que ele intenciona ressaltar, encontram-se ali expostas. A conduta adotada por Freud,
distinguindo-se de Breuer, frente à questão do amor, Lacan a compara à de Sócrates.
Lacan diz que Freud escolhe, como Sócrates, “servir a Eros para servir-se dele”. Este
“servir-se” de Eros, vale ressaltar, é o lugar de onde começam os problemas para o
analista (1960/1:17). Mas, por que?
Lacan é preciso ao designar que a função da análise não pode ser a de visar o
bem
23
. O que a análise visa, para além do bem, é precisamente o seu Eros. O que a
transferência promove não é colocar como primeira finalidade o bem do paciente, nem
22
Persistirei, no próximo Capítulo, na intenção de demonstrar - uma vez inserido nesta dinâmica o
estatuto do objeto - o quanto as vicissitudes das relações amorosas encontram-se imbricadas nesta noção
de disparidade, imposta pela linguagem, no que ela traduz de hiância e descontinuidade.
23
Esta discussão acerca do “bem” fora realizada por Lacan, no ano anterior, ao longo do Seminário 7.
48
de forma preconcebida, nem de forma permanente. O que se visa, repito, é o Eros.
Freud, como Sócrates, também escolheu servir a Eros para servir-se dele, servindo-se
dele em concomitância. Sendo que Lacan destaca que o rigor desta escolha conferiu à
psicanálise a possibilidade de trilhar um caminho que desemboca no conceito de pulsão
de morte. A morte, que acompanha Eros, e que também está presente nos ensinamentos
de Sócrates, é decorrência deste Eros para o qual os corpos visam unir-se num só, Eros
enquanto uma força que, tanto para Freud como para Sócrates, almeja “unir
unitivamente” (1960/1:18).
Poder-se-ia indagar: assim sendo, o campo psicanalítico viria a ser um lugar
onde dois sujeitos se encontram e se desencontram, se enlaçam e desenlaçam, cada qual
com seu lastro de pulsão de morte? Onde dois sujeitos visam a fusão de seus seres em
um único e indissolúvel ser, ainda que coadunados a uma disjunção, inerente a esta
operação? Certamente, não é apenas disso que se trata. Lacan salienta justamente a
advertência de que este campo da transferência não se constitui como o campo da
intersubjetividade. O que está presente na transferência é precisamente a idéia de que
ela comporta algo que está para além da intersubjetividade. Nas palavras de Lacan:
“A intersubjetividade não seria aquilo que é o mais
estranho ao encontro analítico? Ali, basta que ela apareça
para que fujamos, certos de que é preciso evitá-la. A
experiência freudiana estanca desde que ela surge. E
floresce apenas em sua ausência” (1960/1:19).
Esta relação intersubjetiva, se assim se estabelecer numa análise, estará
condenando o florescer do tratamento, fadando-o a um desenrolar infértil, que
efetivamente não conduzirá o sujeito a nenhuma novidade. Portanto, é neste ponto que
deve diferir a relação analista-paciente das outras relações, ditas intersubjetivas, que se
prestariam, ente outras coisas, ao consolo e à sedução, para citar algumas artimanhas; e
que são encontradas, por exemplo, na two bodies psychology. Criticada por Lacan desde
as suas elaborações no Seminário 1, esta modalidade clínica não leva em conta que, se a
palavra for tomada da maneira como deve ser, e com o valor que lhe confere Lacan, isto
é, como sendo o ponto central da perspectiva clínica, será numa relação a três, e não
numa relação a dois, que a experiência analítica será formulada (1953/4:20).
Novamente, trata-se de uma disparidade, já que, a três, não há meios de se constituir um
par. A intersubjetividade colocada em cena na situação analista-paciente, é conveniente
49
que seja evitada, ou mesmo adiada pelo psicanalista, para que ali se possa deixar
entrever “uma outra captura, cuja característica é justamente a de ser, essencialmente, a
transferência” (1960/1:20).
Não seria isto que o chamado “terceiro elemento”, apontado por Freud em seus
textos sobre Édipo, como sendo aquilo que entra em cena para interditar a relação plena
entre a criança e sua mãe, para rasgar definitivamente a alternativa de um encontro
completo entre dois sujeitos, faz revelar? Com Lacan, a entrada do “terceiro” permite-
nos entrever a presença acintosa de uma desconjuntura basal, no campo das relações
humanas: o sujeito só pode ser “um” a partir do momento em que o “três” faz deles,
“um” e “dois”, elementos eternamente disjuntos
24
.
Rompendo com toda esta tradição que, tomando a cena clínica como um
encontro entre dois sujeitos, decorre numa desconsideração, numa neutralização ou, no
pior dos casos, num esvaziamento daquilo que de mais importante concerne à relação
analista-paciente, Lacan avança, no Seminário 8, trazendo à tona o problema do amor.
Em suas palavras, “a cela analítica, mesmo macia, não é nada menos do que um leito de
amor” (1960/1:22). Desta forma, ele anuncia que, na transferência, o que se exacerba é
o fato de que, ali, o analista se isola com o paciente para lhe ensinar. Ensinar o quê?
Justamente aquilo que lhe falta. Situação bastante específica, ainda por cima ao
considerarmos que, no interior desta transferência propriamente dita, aquilo que falta ao
sujeito ele irá “aprender amando” (1960/1:23).
Desta forma, se o analista certamente não está posicionado ali de modo a atentar
para o bem do paciente, ele o está com o propósito de que, para o sujeito, se torne
possível amar. Está ali para que o sujeito ame. Ainda que, vale dizer, isto não represente
um prognóstico nada tolo ou ingênuo, visto que o que está em causa é a assertividade do
campo do amor como contendo o que há de mais radical a ser tratado: a defasagem
inerente ao sujeito, a presença de sua falta estrutural, engendradas pela situação
amorosa. É verdade que o sujeito faz análise, no final das contas, para que possa
aprender a amar – mas sob o jugo de apreender, através do amor, aquilo que há de mais
real na sua estrutura.
Isto leva Lacan a indagar: então, o analista deve ensinar o sujeito a amar? E
responde sublinhando que haveria uma diferença entre o amor e o amar. Deste último,
podemos, como analistas, dar testemunhos de que sabemos algo sobre isto. Assim
24
Na verdade, trata-se de uma operação que traz como resultado um sujeito e um objeto (a). Veremos, no
Capítulo 2, as particularidades desta operação.
50
fizera, por exemplo, Sócrates. Quanto ao amor, por sua vez, Lacan nos lembra que
durante séculos a humanidade não fez outra coisa, ainda que não se tivesse chegado a
lugar algum, senão “debater sobre isso”. Acrescento: durante muito tempo o sujeito não
faz outra coisa senão debater-se com isso.
E é debatendo-se com isso que ele procura uma análise, que a solicita, a fim de
saber sobre o que fazer para aprender a amar. Embora ele não vá adquirir um saber
sobre o amor, uma vez que aquilo que se pode saber sobre o amor só se aprende amando
(e a transferência é o campo fértil onde esta experiência se promove), esta é sua
pergunta fundamental. Vemos, então, estampar-se o terreno do qual uma análise se
ocupa: o estádio fértil onde se descortina a falta do sujeito, em suas mais tenebrosas e
vivificadas aparições.
Sobre aquilo que o sujeito pode aprender numa análise, Lacan prossegue,
interrogando: e o que é ser sábio no amor? Eis a pergunta central em torno da qual,
segundo ele, gira o texto O Banquete. O que Lacan parece nos indicar é que a
psicanálise, enquanto teoria, não pretende nos ensinar sobre o que seria o amor, mas sim
que ela comporta um fazer-se valer de algo acerca do amar, inserido ali, no circuito
mesmo de sua experiência, que vem a ser a da transferência. Distinção importante, que
evoca conseqüências muito precisas para a dimensão clínica.
Sócrates, em O Banquete, é quem pode dar testemunho sobre o que é o amar,
bem como oferecer considerações sobre o que diria respeito à “estrutura do amor”, uma
vez inserido nesta que Lacan considera como tendo sido “a primeira transferência
analítica” (1960/1:24): Lacan é sensível para a relação de amor estabelecida entre
Sócrates e Alcibíades. O que se passa entre ambos, segundo ele, vai além dos limites
daquilo que constitui O Banquete. Alcibíades entra em cena, neste contexto, de modo a
fazer um desvio. Sua aparição é desafiadora, extraordinária, pois ele se apresenta
embriagado (talvez como todo sujeito, inebriado de amor), e de forma a subverter a
situação estabelecida, até então, no banquete. Alcibíades opera, assim, uma ruptura,
manifestando um desprezo pelas formas, pelas tradições, pelas leis, de modo que seu
personagem arrasta atrás de si uma potência, flagrada por seu caráter estritamente
perturbador. É nesta irrupção nada sóbria de Alcibíades que Lacan enxerga o que há de
mais particular a ser considerado sobre o amor, em sua relação com a transferência.
Retomarei adiante esta relação de Alcibíades com Sócrates, naquilo que Lacan
sublinha a respeito do amor. No entanto, friso este elemento com o qual é circunspecta a
relação da transferência, qual seja, a impossibilidade de se fazer par. A análise é ímpar
51
para cada sujeito, na medida em que não há análise senão perspectivando-se a
singularidade de cada paciente, bem como é ímpar na medida em que, ali, não se trata,
sobremaneira, de conceber um par. O amor de transferência, em sua articulação com o
desejo, é algo único, é um laço feito a três (por isso, melhor representá-la como um nó),
que segue o rastro da hiância que lhe compete.
52
1.3- De Éroménos a Érastes - o caminho da análise:
“Deixe-me confessar que devemos ser dois,
Apesar de nossos amores em si serem unos:
Assim estas manchas que comigo permanecem,
Sem a tua ajuda, têm de ser carregadas só por mim.
Nossos dois amores dizem a um só respeito,
Mas nas nossas vidas, uma amargura separada”.
William Shakespeare
25
Inicio o presente tópico citando uma frase que merece destaque, um ponto que
serve de guia para as formulações lacanianas, e que confere lugar ao par formado pelo
amado e pelo amante, Éroménos e Érastes, os dois parceiros próprios do amor: “O amor
é dar o que não se tem” (1960/1:41). Lacan irá se deter nesta citação, dado o seu valor
retumbante, em vários momentos da sua obra, a mencionar, os Seminários 5, 10, 11, e
20. É uma assertiva importante para consolidar aquilo de que se trata, e o que ora
destaco, no campo dos investimentos amorosos: o que está em jogo, no movimento de
amar próprio do sujeito, é uma perda constitutiva, uma falta radical e irrecuperável, que
ele tanto irá acirradamente buscar saldar, quanto se defrontar a ela infinitamente, a cada
enlace estabelecido.
Érastes, ou o amante, segundo Lacan, é o sujeito do desejo, e Éroménos, o
amado, vem a ser aquele, deste par, que é provido de alguma coisa, aquele que “tem
algo”. A questão proposta por Lacan é de averiguar se aquilo que o amado “tem” possui
alguma relação com aquilo que, ao amante - aquele que deseja - falta. Em outras
palavras, eis a pergunta que se evidencia: o que o sujeito ama possui alguma ligação
com aquilo que o outro “tem”? Observamos, no decorrer da exposição lacaniana, que
justamente não há como o sujeito aceder a este aspecto consistente, vislumbrado no
outro. Se o sujeito ama dando ao outro aquilo que ele próprio não tem, será também este
o retorno, o predicado que irá encontrar: no campo do Outro, algo falta, por sua vez.
É o que Lacan precisa, ao destacar o objeto agalma, objeto escondido no interior
do sujeito Sócrates. Sócrates seria o invólucro daquilo que representa este objeto do
desejo, denominado agalma. Alcibíades, em seu amor, espera muito de Sócrates. Esta
posição faz revelar uma estrutura na qual, segundo Lacan, se encontra o que “somos
capazes, quanto a nós, de articular como fundamental naquilo a que chamarei a posição
25
Shakespeare, W.: Pequenas verdades, sonetos (1998:60).
53
do desejo” (1960/1:171). O desejo apresenta-se como tal numa específica articulação
com a linguagem: é concebido com base na noção de metonímia, determinada pela
existência da cadeia significante – metonímia sendo entendida como este deslizamento
indefinido dos significantes sob a continuidade da cadeia significante.
Então, na medida em que surge algo – um objeto – que revaloriza este
deslizamento infinito, ele assume o lugar de objeto privilegiado (agalma); sendo este
objeto, todavia, responsável por estancar o deslizamento infinito. O objeto também
promove ao sujeito que este se reconheça ali, que nesta esfera deposite suas fantasias –
vindo a posicionar-se, para utilizar os termos que Lacan emprega, detido e fixado. O
objeto é aquilo que é supervalorizado pelo sujeito, tendo mesmo a função de “salvar
nossa dignidade de sujeito”, afirma Lacan (1960/1:173). Vemos que não é pouca coisa o
que o sujeito derrama, alastra e despeja sobre o objeto.
O amor vem a ser esta questão fundamental do sujeito endereçada ao Outro,
quanto ao que este pode lhe oferecer, quanto ao que tem, prontamente, a lhe responder.
Se, conforme apontado, aquilo que falta ao sujeito ele irá aprender amando, é no próprio
ato de amar que se recoloca a sua falta inaugural. A experiência amorosa, ela mesma,
compõe-se desta falta a qual se trata de abordar numa análise. O que não significa dizer
que o sujeito necessariamente aprenderá a amar, com a ajuda da análise. Ele irá
aprender - pois que já ama, inevitavelmente - irá aprender, amando, sobre aquilo que lhe
falta. Esta concepção possui uma distinção tanto sutil quanto fundamental para a direção
da cura. Há analistas que conduzem suas análises sob a crença de que, ao final de tudo,
o sujeito terá aprendido a amar. De fato, nas Conferências introdutórias sobre
Psicanálise (1916), Freud revela que os pacientes buscam uma análise com o firme
propósito de trabalhar e amar melhor. Mas é sobre o aprendizado de uma falta, evocada
pelo amor, que incide, verdadeiramente, a condução de uma análise.
O amor de transferência surge, então, neste ínterim, promovido por uma falha na
conjunção do sujeito com o seu objeto de investimento amoroso. Veremos como, no
Seminário 5, Lacan formula as relações do desejo do sujeito com aquele objeto no qual
este desejo se encontra fixado, sendo o desejo sempre o resultado de um “desejo de
outra coisa” (1960/1:42). No entanto, a presente dialética emanada por Sócrates, e
abordada no Seminário 8, faz, segundo Lacan, muito mais do que colocar em cena este
entroncamento do desejo. Ela “permite-nos ir mais além e captar o momento de báscula,
de virada onde, da conjunção do desejo com seu objeto enquanto inadequado, deve
surgir essa significação que se chama o amor” (1960/1:42).
54
Érastes e Éroménos são expressões gregas trazidas à baila para examinar as
posições passíveis de serem ocupadas pelo sujeito, em relação ao amor. Lacan as
considera, uma vez inseridas na dialética exposta em O Banquete, como sendo a base, o
ponto crítico, a articulação essencial, do problema do amor. Do lugar de amado, o
sujeito só pode obter como conseqüência um certo estancamento da via do desejo. Do
lugar de amante, ao contrário, ele pode desejar.
No entanto, devemos lembrar que se faz patente na clínica o quanto o sujeito
almeja ser amado. É nisto que consiste seu pedido, desde que se decide a procurar uma
análise; em outras palavras, é isto que sua demanda supõe ao Outro. Esta constitui a
manifestação trivial da neurose humana, este pedido que se insurge desde um lugar onde
a perspectiva de ser amado lhe promove o anúncio de um conforto, bem como lhe
imprime uma ilusão de que haveria uma posição a ser ocupada que primasse em lhe
dotar de satisfações.
Não devemos lançar sobre este desígnio uma ótica simplista. O movimento do
sujeito, de posicionar-se no lugar de ser amado, não se define somente por denunciar a
ingenuidade humana, a ilusionista tolice própria de nossa espécie, nem mesmo por
deflagrar o que seria apenas uma natural má vontade para com o que se refere ao desejo.
Mais que isto, esta tendência do sujeito a posicionar-se no lugar de amado anuncia um
nó estrutural, inerente à condição humana, pois, na medida em que o sujeito está,
constitutivamente, submetido ao desejo do Outro, ele está sujeito a este lugar mesmo, de
onde julga que o Outro possa vir a lhe amar. Querer ser amado provém do resultado de
uma condição basal do sujeito; é seu lastro, corolário de sua estrutura, do fato de estar
submetido ao desejo do Outro.
Todavia, adverte Lacan, é claro que, analiticamente, faz-se necessário ir além
deste ponto, desta posição. Fixado neste lugar, o sujeito não se abre à dimensão do
desejo. É a posição de amante, de desejante, que deve ser instaurada no âmbito de uma
análise. Eis, portanto, a atadura que cabe a uma análise desvencilhar. O lugar do amante
- sujeito do desejo, sujeito da falta - é um lugar que faz decantar a posição na qual o
sujeito estaria provido de algo, na qual ele teria algo: lugar positivado, contrário ao que
a análise visa, ou seja, a alternativa da confrontação com esta falta. Com Lacan,
depreende-se que:
55
“Todo o problema consiste em perceber a relação que liga
o Outro ao qual se dirige a demanda de amor à aparição
do desejo. O Outro não é, então, de modo algum, nosso
igual, o Outro ao qual aspiramos, o Outro que não o amor,
mas alguma coisa que representa, falando propriamente,
uma sua queda – quero dizer, algo que é da natureza do
objeto” (1960/1:172).
O que está em causa no desejo é um objeto, e não um sujeito. Indo um pouco
além, o problema posto pelo amor soa ainda maior do que esta dissimetria infligida ao
sujeito por forças desta circunstância, onde amado e amante consistem em ser duas
posições disjuntas, separadas, rompidas de uma unidade. A dificuldade do amor deve-
se, sim, ao fato de que aquilo que o amante deseja não está necessariamente em
conformidade com aquilo que o amado tem, ao fato de que há uma disparidade inerente
e incurável, entre aquilo que o desejante almeja e o que pode encontrar no amado. Esta é
a questão na qual está mergulhado o sujeito. Complicação para qualquer análise, a ser,
entretanto, escutada.
Repito que o inusitado (ímpar) da transferência, então, traz em seu eixo, mais do
que a dissimetria, uma disparidade, esta impossibilidade de que ali se conforme um par,
na medida em que, se, porventura, isto for promovido, será sob o preço de sua própria
derrocada. Retomemos a pergunta, a fim de contextualizá-la no Seminário 8: se a
transferência é algo ímpar, pois que não se compara a nenhum outro amor, seria ela,
então, uma falsidade? Lacan se refere novamente, neste Seminário, ao aspecto de
mentira, presente na situação analítica. Esta situação particular da análise, referida por
ele como uma “cela analítica”, e que ele designa como um leito de amor, deve-se ao fato
de esta ser sempre uma situação por vir (1960/1:22). Este aspecto inédito, de fato, está
sempre por vir, ele não é dado de saída - senão não seria inédito - e nem se trata de
desvendar algo do inconsciente que já esteja lá, posto de antemão. Então, segundo ele,
trata-se da situação mais falsa possível...
Em todo amor há um aspecto de mentira, sugere Lacan. Busquei demonstrar
como Freud se preocupou em articular essa questão, uma vez que há indícios de que
fora alvo, seguramente, de certas desconfianças. Afinal, convenhamos, como um leigo
poderia acatar com facilidade a idéia de que a cura para tantos distúrbios neuróticos
possa advir nada mais nada menos do que de uma falsa situação amorosa, como a
transferencial? Mas é desde este entrave que Freud se vê compelido a afirmar que,
56
embora posto em cena por uma circunstância totalmente artificial, nada pode ser mais
verdadeiro do que o amor de transferência.
Não há nada mais real do que o amor de transferência, embora ele seja, por
assim dizer, uma falsidade. Trata-se de uma criação, mas com valor de verdade (tal
como a fantasia, no contexto da descoberta da realidade psíquica). Enfatizo esta idéia, a
de que nada mais toca o real com tantas derivações para a análise do que o amor ali
imbricado. O amor de transferência é dotado de uma realidade própria, que se traduz em
inúmeros efeitos para a vida do sujeito. Efeitos
do real, que, ali, sob forma de novidade,
irão aparecer para o sujeito, e efeitos
no real, uma vez que a transferência opera de
forma a produzir estes efeitos. São efeitos, portanto, consagrados do e no real. De
maneira que, a meu ver, o que o amor de transferência comporta de mais real é
propriamente a existência do real que ele comporta.
Voltemos à temática das posições engendradas no amor (Érastes, o amante e
Éroménos, o amado). A demanda que encontramos exacerbada numa análise, ou seja,
aquilo que o sujeito pede ao analista é sempre uma demanda de que seja amado. Neste
sentido, o sujeito o faz desde o lugar de Éroménos. O pedido de amor é sempre um
pedido de ser amado. Na transferência, grifa Lacan, é preciso que esta demanda não seja
correspondida pelo analista, a fim de que isto possa, como corolário, lançar o sujeito a
uma posição desejante, ao lugar de amante. Como amante, ao sujeito torna-se possível
deparar-se com a sua falta, para daí confrontar-se com o seu desejo, ao contrário da
posição de amado, cuja camuflagem exercida confere o estabelecimento de uma certa
névoa, pairando sobre aquilo que, do desejo, possa advir.
Ao tomar a figura de Sócrates como exemplo, Lacan sugere que a transferência e
seu desenrolar na situação clínica situam-se na dependência do desejo do analista. É
somente a partir do desejo do analista que se pode interrogar a transferência, pois é este
desejo que irá ou não conferir um sentido verídico para a transferência do sujeito.
Sócrates se apresenta como “não sabendo nada”, senão as coisas do amor. A partir da
transferência, vemos emergir como essencial não somente a referência ao saber, mas
principalmente, a referência à suposição de saber. Tal como Sócrates, o analista é
interrogado pelo sujeito na qualidade de quem sabe, e “é precisamente nesse lugar em
que somos supostos saber que somos chamados a ser, e a não ser nada mais, a não ser
outra coisa, senão a presença real, e isso justamente na medida em que ela é
inconsciente” (1906/1).
57
Para este lugar no qual somos supostos a saber, Lacan lançou-lhe a fórmula
“sujeito suposto saber”, aferida nas duas primeiras lições do Seminário 9, A
identificação (1961/2), embora somente dois anos mais tarde (em 1964, com Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise- Seminário 11) ele irá associá-la à transferência.
Lacan se utiliza desta fórmula a partir do cogito de Descartes, mas para superá-la: ele
afirma que é preciso que possamos prescindir dela, pois se trata de uma “suposição
indevida”. Desafio anunciado para a nossa clínica.
Para Lacan, o sujeito suposto saber e o objeto a são as duas modalidades lógicas
de abordagem da transferência. No Seminário 11, ele designa que a transferência se
origina nesta suposição de saber, embora ele também esteja localizado no fim de uma
análise (1964). No Seminário XV, O ato psicanalítico, Lacan define: “o psicanalisando,
no início, pega seu cajado, enche seu embornal, para ir ao encontro marcado com o
sujeito suposto saber” (Lição 24/1/68). Todavia, o paciente jamais chegará
definitivamente a este encontro, pois, no final, a ilusão do suposto saber se bascula, e
ele é reduzido à função do objeto a.
26
O “problema do amor”, os impasses que ele coloca, propõe Lacan, consistem
naquilo que vai nos servir, na clínica, para compreendermos o que se passa na
transferência e, de uma certa forma, por causa da transferência (1960/1:43). E o que
encontra o paciente, quando chega ao consultório, munido desta suposição de saber, que
é imediatamente depositada sobre os ombros do analista, a partir de algo que ele não
sabe? Lacan responde, reafirmando as considerações de Freud, ao proferir: “no fim das
contas, o que vai encontrar, no término, quem segue este caminho, não é outra coisa,
essencialmente, além de uma falta” (1960/1:46). Afinal, o que caracteriza o Érastes, o
amante, é justamente aquilo que lhe falta, embora ele não saiba o que é que lhe falta,
devido ao modo como opera o inconsciente. O amado, Éroménos, também por sua vez
não o sabe. Todavia, seu não saber se refere a algo distinto – ele não sabe não aquilo
que lhe falta, mas aquilo que ele tem.
Sendo assim, destes termos, amado e amante, não se pode extrair, de forma
alguma, uma coincidência. “O que falta a um não é o que existe, escondido, no outro”
(1960/1:46), nos alerta Lacan. Eis aí o embaraço do amor. E não há como ficarmos
alheios a esta complicação, pois que estamos, enquanto sujeitos, bastante imiscuídos no
26
A noção de objeto a será tratada nos próximos capítulos. Quanto ao sujeito suposto saber, optei por
abordar telegraficamente esta noção, embora possamos considerá-la um tema tão amplo que constituiria,
por si só, uma nova tese. Destaco, entretanto, o que está contido de principal nesta fórmula: a idéia de que
o sujeito “derrama” sobre o Outro esta suposição de um saber que ele julga que possa vir a lhe completar.
58
fenômeno que ela designa. Não é preciso dialogar, nem dialetizar sobre o amor, uma
vez que “basta que se esteja nele, basta amar, basta ser presa desta hiância, dessa
discórdia” (1960/1:46), para se estar com a batata quente na mão.
O que, então, uma análise visa? Se o sujeito parte em busca daquilo que ele tem,
mas desconhece, o que vai encontrar é o que lhe falta. E a partir daquilo que lhe falta
que irá se articular, para ele, o que ele irá encontrar na análise, ou seja, o seu desejo
(1960/1:71). A análise visa a que a função do Érastes, do amante - uma vez que ele é o
sujeito da falta - venha no lugar da função do Éroménos, do objeto amado. É aí que se
produz a significação do amor (1960/1:47). Do lugar de objeto, que almeja ser amado
pelo outro - este lugar de passividade, tão propriamente um corolário das artimanhas da
neurose -, pode-se esperar ser substituído pelo lugar desejante, ou seja, por sua
atividade. A fim de materializar esta fórmula, esta orientação para toda análise, Lacan
cria uma bela imagem, intencionando fazer dela realmente um mito:
“Esta mão que se estende para o fruto, para a rosa, para a
acha que se inflama de repente, seu gesto de pegar, de
atrair, de atiçar é estreitamente solidário à maturação do
fruto, à beleza da flor, ao flamejar da acha. Mas quando,
nesse movimento de pegar, de atrair, de atiçar, a mão foi
longe o bastante em direção ao objeto, se do fruto, da flor,
da acha, sai uma mão que se estende ao encontro da mão
que é a de vocês, e neste momento é a sua mão que se
detém fixa na plenitude fechada do fruto, aberta da flor,
na explosão de uma mão em chamas – então, o que aí se
produz é o amor” (1960/1:59, meu grifo).
Quando, de objeto amado, o sujeito permite passar à condição de desejante;
quando passa de Éroménos a Érastes, então o que se produz é o amor. O amor,
articulado na transferência deste modo tão fecundo, pode ser concebido enquanto sendo
aquilo que se consagra como efeito de uma análise.
Há dois significados possíveis para o significante “acha”. Ela pode ser uma
“arma antiga do feitio de um machado (cavaleiro armado de escudo, lança e acha)”, e
pode ser também um “pedaço de madeira tosca para o lume, tora de lenha, cavaca (as
achas de uma fogueira)”.
27
De forma que o que se entrevê, neste mito lacaniano, é o
aspecto de armamento contido no amor, seu poder de fogo, por assim dizer, a sua
poderosa ferramenta. Além do mais, podemos também aferir que o que define uma
27
Extraído do Dicionário digital Koogan-Houaiss, 1998.
59
análise é o fato de que aquilo que o sujeito busca, no analista, não corresponde
exatamente ao que ele “acha”.
Ainda com Lacan, no Seminário 8: “Do amor, passamos assim ao desejo, e a
característica do desejo, enquanto Eros era, que Eros deseja, é que o que está em
questão, isto é, aquilo que ele é suposto levar consigo, o próprio belo, isso lhe falta”
(1960/1:69). Eis a contribuição que Lacan enxerga como trazida por Sócrates em O
Banquete: a dimensão do desejo, podendo ser acedida desde a posição do amante,
naquilo que faz abrir de perspectivas para o sujeito. Eis a visada de uma análise.
Encerro este tópico, a fim de passar ao exame do estatuto do objeto e da perda,
inseridos no campo da sexualidade, reportando-me às palavras de Lacan: “Digamos
melhor, digamos mais além – a transferência é algo que põe em causa o amor, que o põe
em causa muito profundamente no que se refere à reflexão analítica por ter introduzido
nela, como uma dimensão essencial, aquilo a que se chama a sua ambivalência”
(1960/1:71).
A transferência, casamento mediatizado pela falta, é uma relação, como todas as
outras, ambivalente. De certa forma também, assim como as outras, ela está fadada ao
fracasso: fracasso da tentativa de encontrar no Outro aquilo que se busca, em nome da
repetição de uma mesma obstinação, sempre malograda. Mas é também no coração
deste fracasso repetido que reside, propriamente, a razão do seu sucesso.
60
Capítulo 2:
ONDE JÁ O AMOR, JAZ A PERDA
61
2.1-Ensaio sobre a sexualidade no campo da incompletude:
“O que tu tens e queres saber (porque te dói),
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar que
abriu em tua vida a sua própria falta. A dor te
dói pelo avesso, perdida nos teus escuros. É
como alguém que come não o pão, mas a
fome. Sofres de não saber o que não tens e
falta, num lugar que nem sabes, mas que é na
tua vida, quem sabe é em teu amor. O que tu
tens, não tens”.
Thiago de Mello
28
No presente capítulo, rastrearei os principais elementos concernentes ao campo
sexual, campo no qual, conforme já explicitado, fundamentam-se as relações amorosas.
A sexualidade, para além de ser o viés por onde o amor se delineia, encontra-se
imbricada na noção de incompletude, uma vez que, conforme veremos, o estatuto do
objeto traz na bagagem as pulsões, em seu caráter de parcialidade das satisfações.
Não fora sem ótimas razões que o livro freudiano Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905) escandalizara a cultura da época quando lançado, causando então
embaraços e resistências: há, neste texto, um conteúdo inovador. Ali, Freud apresenta
sua revolucionária teoria da sexualidade, na qual atribui à infância referências sobre a
perversão, a polimorfia da libido e os investimentos amorosos ligados aos objetos,
instalados desde a mais tenra idade do sujeito.
A partir do lançamento deste livro, o mundo pode se deparar, não sem grande
susto, com a determinante existência da dimensão erótica, e, portanto, pulsional, contida
não somente nas relações humanas adultas, como também presente desde a tenra
infância. Esta dimensão instaura um abismo entre o que o sujeito destina ao objeto, no
intuito de que este lhe corresponda, e aquilo que dali lhe retorna, sempre em defasagem.
A sexualidade humana imprime no sujeito a marca do impossível da
complementaridade, numa definitiva diferença em relação ao reino animal. Valendo-me
das palavras de Octavio Paz, que tão bem descrevem esta distinção,
“Por mais estranhos que sejam os ajuntamentos animais,
uns ternos e outros ferozes, não há mudança alguma neles.
28
Mello, T.: Poema concreto, In: Faz escuro mas eu canto (1981:63).
62
O pombo voa e ronda a fêmea. A manta
29
devora o macho
depois de fecundada, mas esse processo é o mesmo, desde
o princípio.Aterradora e prodigiosa monotonia que se
converte, no mundo do homem, em aterradora e
prodigiosa variedade” (1994:17).
O mais surpreendente não reside somente no fato de Freud ter constatado a
existência da sexualidade na criança, tema o qual alguns autores já haviam se incumbido
de avalizar (a notícia desses antecessores de Freud é trazida por seu próprio punho, nas
várias notas de rodapé inseridas neste texto). O que se torna revolucionário é a presença,
em sua teorização, do estatuto do objeto ligado à pulsão, objeto que emerge como
resultado do movimento do sujeito em busca da satisfação, sendo este objeto, todavia,
falho, entrecortado e impresso pela imensa variedade decorrente dos desfiladeiros
pulsionais. Objeto, enfim, que se constitui por ser sempre parcial.
Desta forma, o descerramento da teoria da sexualidade, empreendido por Freud,
teve como efeito para a humanidade não somente a suspensão da ilusão de que o sujeito
poderia satisfazer-se com seus objetos de forma retilínea e direta, e apenas a partir da
puberdade. Freud introduz radicalmente o inverso desta fórmula, ao afirmar que a libido
busca se satisfazer desde os primórdios da vida do sujeito, e sempre por desvios, de
modo polimorfo e perverso
30
. O maior impacto, então, advém do fato de que esta
descoberta refere-se menos à sexualidade infantil do que ao “infantilismo da
sexualidade”, ou seja, da inclusão da fantasia na formação dos sintomas neuróticos. Diz
Freud, num texto contemporâneo a este, mas em cujo teor encontramos a revogação
explícita da sua teoria das neuroses de sedução traumáticas, em favor do implemento
das fantasias:
“Esclarecido esse ponto, caiu por terra a insistência no
elemento ‘traumático’ presente nas vivências sexuais
infantis, restando o entendimento de que a atividade
sexual infantil (seja ela espontânea ou provocada)
prescreve o rumo a ser tomado pela vida sexual posterior
após a maturidade. (...) Depois dessa correção, os
“traumas sexuais infantis” foram substituídos, em certo
sentido, pelo “infantilismo da sexualidade”.
31
29
Manta é um tipo de peixe, que chega a pesar seis toneladas.
30
Vale destacar que a perversão da sexualidade, a qual Freud se refere em Os três ensaios...(1905), não
deve ser confundida com a estrutura perversa, postulada por Lacan.
31
Freud, S.: Meus pontos de vista sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses (1906:258).
63
Abordemos, por instantes, esses passos de Freud. Alguns elementos da teoria
sobre a sexualidade já haviam sido esboçados por ele anteriormente aos Três
ensaios...(1905). Em sua investigação clínica acerca dos fatores causais da histeria, ele
já havia remontado à infância dos pacientes, fato ao qual alude nos primeiros parágrafos
de Comunicação Preliminar (de Breuer e Freud, 1893). No entanto, sua conceituação
teórica sobre a histeria, baseada nos efeitos traumáticos da sedução sexual ocorrida na
primeira infância, era fundamentada, nos anos anteriores a 1897, como contendo nada
mais do que um fator latente, capaz de vir à tona apenas por intermédio da figura de um
médico, e na vida adulta.
Foi então que, no verão de 1897, Freud se viu obrigado a abandonar sua teoria
sobre a sedução. Mais do que perseguir a veracidade dos fatos narrados pelas pacientes,
o que estava em causa, a partir daí, era a presença da chamada “realidade psíquica”. Na
Carta a Fliess de número 69 (1892-1899) ele consagra esta decisão, levando-o
inevitavelmente à conceituação da teoria sexual das neuroses, caracterizada pela idéia
de que a libido (energia sexual) atuava plenamente nas crianças mais jovens. Não se
tratava mais de inferir que os estímulos externos haviam sido os responsáveis pelo
trauma (embate com o qual Freud se deteve até então, na intenção de provar a origem e
a veracidade do aspecto traumático), mas de acatar a evidência de que uma sexualidade
fadada à insatisfação estava determinada para o paciente desde sempre, imersa em suas
patentes conseqüências.
O que desejo ressaltar é a confirmação, vinda notoriamente a partir deste texto,
de que a teoria psicanalítica da sexualidade nasce da constatação da existência de um
trauma psíquico, marcando uma defasagem irrecuperável entre o sujeito e seu objeto. É
oriunda, portanto, da investigação freudiana acerca deste trauma psíquico. Indo mais
além, e tomando o lado avesso da mesma moeda, tem-se a indicação de que o sexual é
sempre traumático.
Ao designar, em Os três ensaios...(1905), a fome experimentada pelo humano
como estando há quilômetros de distância da fome concernente ao animal (esta sendo
uma necessidade estritamente biológica), Freud caracteriza definitivamente o campo
pulsional, como distinto do instintivo. A pulsão, fronteira entre o somático e o psíquico,
promove ao humano uma organização de tal sorte que a realização e a satisfação totais
se encontram excluídas. Afirma Freud: “A princípio, a satisfação da zona erógena deve
ter se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apóia-se
primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se
64
independente delas” (1905:170). Mais adiante, ele pontua que “a necessidade de repetir
a satisfação sexual dissocia-se então da necessidade de absorção de alimento”
(1905:170). Neste contexto, o estatuto atribuído ao sujeito, em seu caráter
inexoravelmente pulsional, revela-se na letra da música popular que diz “a gente não
quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte...”.
32
A pulsão, então, irá - em sua acirrada e inquietante busca de satisfação - projetar-
se nos objetos mais variados, inusitados, embora não sem causar incômodos, daí seu
caráter aberrante. Com Freud, temos que “A onipotência do amor talvez nunca se
mostre com maior intensidade do que nestas aberrações. O mais nobre e o mais vil, por
toda parte da sexualidade, aparecem na mais íntima dependência mútua” (1905:152).
Em outras palavras, o amor - articulado neste texto como caracterizando todo e qualquer
investimento feito pelo sujeito, baseando-se na noção de libido - aloca-se neste território
complexo das aberrações, resultantes das fantasias, tão particulares à sexualidade
humana.
Foi neste contexto das fantasias sexuais que Freud lançou a idéia, central para
aquilo que desejo destacar, de que “a pulsão tem seu mais belo equivalente na fábula
poética da divisão do ser humano em duas metades – homem e mulher – que aspiram a
unir-se de novo no amor” (1905:128). Trata-se de uma referência ao mito de
Aristófanes, exposto em O Banquete de Platão, que concebe um ser formado pelo
masculino e pelo feminino, com quatro pés, quatro mãos (um andrógino, de sexo
composto), que fora cortado por Zeus em dois. Depois da divisão, “as duas partes, cada
uma desejando sua outra metade, reuniram-se e lançaram os braços uma em torno da
outra, ansiosas por fundir-se”.
33
O mito de Aristófanes refere-se à metade perdida do sujeito. Uma “necessidade
de restaurar um estado anterior de coisas” (1920:78). Para tal referência, faz-se
necessário considerar que o estatuto do objeto freudiano se consagra como incompleto,
de forma que o almejado encontro com este objeto já perdido é reiteradamente adiado.
Freud localiza este objeto, que teria sido o primeiro objeto de amor do sujeito, na figura
da mãe, mais especificamente no seio materno. A este primeiro objeto perdido
34
, todas
32
Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e S.Britto (Titãs): Comida. In: Jesus não tem dentes no país dos
banguelas (1987), gravadora WEA.
33
Esta referência encontra-se esboçada novamente em Além do princípio do prazer (1920:78).
34
Rabinovich descreve três diferentes perdas, ligadas ao objeto, presentes no contexto freudiano dos Três
ensaios...(1905): 1) A perda da satisfação da necessidade pelo surgimento do desejo. 2) A perda do objeto
real, que determina a estruturação do auto-erotismo. 3) A perda do objeto como objeto de amor, que
65
as outras representações objetais vêm substituir. Em suas palavras: “Não é sem boas
razões que, para a criança, a amamentação no seio materno torna-se modelar para todos
os relacionamentos amorosos. O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro”
(1905:209).
A psicanálise inaugurada por Freud se incumbe de tratar dos sintomas neuróticos
do sujeito partindo da premissa de que tais sintomas são um substituto – uma
transcrição, nas palavras de Freud – “de uma série de processos, desejos e aspirações
investidos de afeto” (1905:153), que extraem sua força da fonte da pulsão sexual. Os
investimentos da libido, realizados pelo sujeito, também se constituem por este aspecto
substitutivo, na medida em que remetem ao objeto perdido de outrora. Na puberdade, o
amor sexual genital passa a poder ser realizado, adquirido; no entanto, esta realização se
dá apenas de forma incompleta. A busca de reencontro com este objeto perdido é o que
caracteriza vivamente as relações amorosas.
Esta elaboração freudiana sobre o estatuto do objeto demarca uma importante
premissa no que tange ao tema do amor. Observando suas concepções acerca da
sexualidade - que ora tomo, a fim de ratificar o que fora destacado sobre a transferência
- torna-se claro como, de saída, instaura-se para o sujeito um descompasso entre este
último e o objeto que possa vir a lhe corresponder. A suposta troca perfeita torna-se
descartada do enredo amoroso. Lacan, no Seminário 4, pontua o mal-entendido
encomendado por alguns autores pós-freudianos
35
, ao prescreverem um amor primitivo
entre a criança e a mãe, estabelecido em perfeita reciprocidade, em exata
complementaridade entre o que a criança exige da mãe e o que esta lhe exige em troca.
Esta concepção, contrária a toda experiência clínica segundo Lacan, tende a obliterar a
evocação para o sujeito de tudo aquilo que pode sobrevir de suas “discordâncias
fundamentais”. Pontua ele: “De fato, a noção de um amor tão estritamente
complementar, e como que destinado por si mesmo a encontrar sua reciprocidade,
constitui uma evasão tão pouco compatível com uma teorização correta que os autores
acabam por confessar que esta é uma posição ideal, senão ideativa” (1956/7:64).
Certamente, o estatuto de objeto, ainda que, freudianamente, calcando seu
referencial primeiro na figura materna, não pode ser tomado de forma idealizada, como
se houvera, alhures e aquém, uma completude efetivamente vivida. Não cabe ser
funda enquanto tal a perda de amor para o sujeito falante, em El concepto de objeto em la teoria
psicoanalitica (1988:23).
35
Lacan refere-se, como exemplo do que intenciona registrar, à autora Alice Balint.
66
tomado como se fora complementar, uma vez estando esta inteireza desde sempre
evadida do campo das relações do sujeito com o objeto. Pois, ao calcar-se neste ponto
de vista ideativo, o analista incorre no perigo de fazer advir, como conseqüência, a idéia
de que este objeto completo poderia ser, em algum lugar, recuperado para o sujeito.
Por outro lado, não há dúvida de que este é o leme que norteia toda experiência
de amor: a expectativa, vislumbrada através da ilusão, da acepção de uma justa
recuperação do que fora subtraído. Entretanto, é preciso considerar que esta idealização
promovida pelo amor já decorre de uma perda imposta pela estrutura, já é um efeito da
linguagem, conseqüência da forma como se articula o registro do simbólico: anterior ao
sujeito, incompleto de antemão, e designando, por si mesmo, uma impossibilidade. A
sutileza desta teorização acerca do objeto facilmente nos escapa, até porque a neurose se
incumbe de tentar camuflá-la.
A relação do sujeito com o seu objeto só pode ser concebida como concernindo
uma falha, impossível de ser obturada. Poderíamos indagar: mas, e o auto-erotismo, não
situaria para o sujeito um indício de sua inteireza, de sua totalidade? Definindo a noção
de auto-erotismo, ainda em Os três ensaios...(1905), Freud postula, sobre o chuchar da
criança: “Como traço mais destacado dessa prática sexual, salientemos que a pulsão não
está dirigida para outra pessoa; satisfaz-se no próprio corpo, é auto-erótica” (1905:169).
Vale lembrar que, nesta ocasião, Freud encontrava-se sob a égide da primeira teoria
pulsional, apresentada da seguinte forma: pulsão de eu versus pulsão sexual, objetal.
Esta conceituação pulsional será detidamente elaborada por ele no artigo sobre o
narcisismo, conforme irei explorar logo a seguir. O que importa destacar é que este
chuchar é abordado como análogo à satisfação sexual. O ato da criança que chucha “é
determinado pela busca de um prazer já vivenciado e agora relembrado” (1905:170). É
remetido à cena da criança que “suga com deleite” um objeto – objeto este, livre de
qualquer propósito de nutrição, recolocando em jogo a experiência primitiva com o seio
materno – em que Freud se inspira para caracterizar o aspecto substitutivo da pulsão
sexual.
Lacan, no Seminário 11, confere uma anterioridade lógica ao auto-erotismo,
localizando-o como antecedente à pulsão. A pulsão, vinda de fora, instala a dimensão do
sujeito, no só-depois. No auto-erotismo, o sujeito estaria por vir, o que situa esta questão
desde um ponto de vista lógico: tanto o sujeito quanto o objeto resultam de uma
operação que, incidindo sobre ambos, determina o campo pulsional, como sendo
67
constituído por uma defasagem. Veremos, mais adiante, a confirmação desta premissa, a
partir do que Lacan designa por objeto a.
Antes, notemos como Freud constrói o pressuposto daquilo que liga o sujeito ao
objeto: se os investimentos são sempre substitutivos, as escolhas amorosas se baseiam
numa tentativa do sujeito de reviver, experimentar novamente, recolocar em cena algo
referente ao objeto perdido. Este é o postulado central no qual se fundamenta a teoria da
sexualidade freudiana: esta se insere num campo onde os objetos são polimorfos,
desviados, e os investimentos eróticos surgem para o sujeito sempre como uma tentativa
de resgatar algo que, num tempo primitivo, anterior, já fora perdido.
Acaso não estaríamos, neste ponto, em consonância com aquilo que Freud irá
articular somente sete anos mais tarde, nos artigos técnicos sobre a transferência?
Conforme tentei demonstrar em minha exposição do Capítulo 1, o que está em jogo na
transferência, entre outros aspectos, é este caráter substitutivo que a figura do analista
toma para o sujeito. Embora se deva destacar o fato de que Freud, nesta época, não
contava ainda com a presença teórica da pulsão de morte, fato consagrado após o texto
Além do princípio de prazer (1920), de forma que ainda se encontrava impossibilitado
de atribuir à transferência seu verdadeiro estatuto: de ser uma experiência que toca,
conforme Lacan nos permite considerar, o registro do real. Veremos como o texto Sobre
a introdução ao conceito de narcisismo (1914) indica o início da virada teórica
freudiana, rumo à conceituação da pulsão de morte.
A noção lacaniana do objeto a, bem como a função desencadeada pelo estádio
do espelho, na estruturação do sujeito, definem o terreno dessas questões. Todavia, vale
salientar que, tal como os textos freudianos se incumbem de demonstrar, entre o sujeito
e seu objeto de amor há fatalmente uma separação, tanto inerente quanto irreversível.
Separação que é composta, por assim dizer, pela falta que a anima. Parafraseando
Lacan, no Seminário 8:
“Será que nunca lhes chamou a atenção que, num dado
momento, naquilo que vocês deram aos que lhes são mais
próximos, alguma coisa faltou? E não apenas alguma coisa
faltou, mas algo que os deixa, a esses ditos mais próximos,
irremediavelmente em falta por vocês? E o quê? O fato de
serem analistas permite-lhes compreender isto: que, com
seus próximos, vocês só fizeram girar em torno da fantasia
cuja satisfação buscaram, mais ou menos, neles”
(1960/1:44).
68
No amor, eis que algo falta, sendo esta decalagem, ao mesmo tempo,
precisamente o que coloca o amor a funcionar. Pois esta parte que falta é o que relega ao
sujeito sua condição propriamente faltante, relançando-o ao seu desejo, que somente daí
poderá emergir. O amor, então, constitui este giro realizado pelo sujeito, estas tantas
voltas que ele dá em torno do objeto elidido, sob os auspícios da fantasia, promovendo
uma rotação infinita.
Se, para Freud, todo encontro é um reencontro com o objeto perdido, Lacan irá
potencializar esta questão, ao propor, no Seminário 11 – retomando a temática do mito
de Aristófanes – que há uma parte perdida e irrecuperável para o sujeito, uma vez tendo
havido um corte. Ele nomeia este desígnio como o “mito da lâmina”. Partindo da noção
de que o objeto não é capaz de satisfazer os anseios do sujeito, ele irá pontuar que este
objeto pleno e absoluto nunca, jamais, existiu. O mito da lâmina, exposto numa lição em
que versa sobre o amor (Do amor à libido, lição XV), denota para o psicanalista um
dado fundamental da estrutura do sujeito: refere-se ao que o ser sexuado perde na
sexualidade. Algo que Lacan localiza como sendo a libido – daí conceituando-a,
portanto, como órgão. A libido, enquanto pura pulsão de vida, enquanto indestrutível, “é
o que é justamente subtraído do ser vivo pelo fato de ele estar submetido ao ciclo da
reprodução sexuada” (1964:186).
O mito da lâmina vivifica algo muito importante a respeito daquilo que
intenciono destacar, na presente tese: a partir do momento em que se operou um corte,
em que houve uma cisão constitutiva incidindo sobre ambos, sujeito e objeto, não há
mais como tornar a juntá-los. O resultado desta operação de ruptura, da incidência desta
lâmina constitutiva, vem a ser o objeto a: um resto, uma sobra, que resulta desta cisão
inaugural. De modo que este mito confere sobre o ser andrógino, proposto por
Aristófanes, um estatuto mais radical: nunca houve um ser inteiro, anterior às pulsões.
Devemos considerar que o que há, na história da constituição do sujeito, é uma lâmina
afiada, a partir - e somente a partir - de cujo corte pode-se caracterizar a existência do
sujeito, demarcando, na ponta da faca, algo que se perde definitivamente, algo que se
subtrai, vindo a transformar a fantasiosa tentativa de reversibilidade num repetido e
frustrado desígnio. Assim, notamos advir, nas relações subseqüentes de amor, um
sujeito fatiado, amolado pelo corte, bem como um objeto sempre remanescente.
O objeto a, conceituado por Lacan, é um objeto que estaria representado, por
exemplo, no seio ou na placenta, sendo esta uma parte de si mesmo que, ao indivíduo,
escapa ao nascer, e que pode vir a simbolizar o mais profundo objeto perdido. A
69
placenta, tal como Lacan exemplifica nos Seminários 10 e 11, vem a ser este pedaço
subtraído, esta lasca, este fragmento, que nunca pertenceu nem ao sujeito nem ao outro.
É algo que se afirma por estar
entre os dois
36
. Esta parte elidida constitui, a posteriori,
sujeito e objeto, mas supondo uma defasagem, uma ruptura, determinando para ambos o
destino de constituírem-se já rasgados, maculados pelo desbaste, talhados enfim.
Nesta ilustração (o mito da lâmina) me inspirei para determinar o título da
presente tese: o “amor pela metade” evoca a imagem de uma esfera cortada ao meio,
cujo centro não promove ligação, e para cujo núcleo não há retorno possível, uma vez
que a ruptura operada demarca, na suposta esfera, os estilhaços que propriamente a
compõem. Há uma sobra, que não lhe permite coadunar-se novamente: seu resto-miolo,
seu cerne perdido, as suas idas lascas, disjuntas por esse instrumento incisivo e cortante
denominado por Lacan de lâmina.
Há uma expressão utilizada por Marcel Czermack
37
, para definir o aspecto
talhador presente no contexto da situação analítica: “faca só-lâmina”. A faca só-lâmina
é aquilo a que se encontram submetidos ambos, paciente e analista, na cena
transferencial. Ao cortar uma sessão, o analista também corta a si mesmo, na carne. O
talho incide sobre ambos. Assim, podemos articular que o que está lançado a qualquer
relação estabelecida pelo sujeito, ao se dirigir ao outro, é um corte preciso, demarcando
pedaços os quais não se pode novamente colar, e a partir de onde se promulga toda e
qualquer alternativa para o desejo humano. Ruptura irreversível e irremediável, para a
qual não há remendo possível, mas desde a qual o sujeito põe-se a trabalhar, caso
consinta em se lançar frente ao desejo que dali desponta.
Justifico, ainda um pouco mais, a minha escolha pelo título desta tese. Lacan
refere-se à transferência, no Seminário 8, como sendo uma elipse. Na lição intitulada A
derrisão da esfera, ele analisa o discurso de Aristófanes (1960/1:92), discurso partidário
deste impulso à fusão, que conduz cada um destes seres, “cortados em dois como um
ovo cozido”, a buscar, acima de tudo, a sua metade perdida, “aferrando-se a ela com
uma tenacidade, se assim se pode dizer, sem saída; perecer ao lado do outro pela
impotência em juntar-se a ele” (1960/1:93). Este personagem “esférico”, andrógino,
inventado por Aristófanes, leva Lacan a tecer preciosas considerações: trata-se de
imputar a esta esfera a presença de um corte, aquilo que Lacan irá chamar de uma
36
No capítulo 5, irei me deter neste aspecto: aquilo que se encontra entre o sujeito e o objeto, é o a.
37
Expressão trazida por intermédio de Antônio Carlos Rocha, presidente do Tempo freudiano –
Associação psicanalítica, num Seminário proferido em 2002.
70
derrisão. Não se deve considerar esta esfera somente em seu estatuto de conter uma
“boa forma”, uma tendência à perfeição, tão apregoada, por exemplo, pela psicologia
Gestaltista. Esta esfera, que tem a forma de uma bola, e que obceca o pensamento
antigo, sendo representativa de algo repleto, suficiente, semelhante a si mesmo (de uma
suposta reunião do amor que aglomera e aglutina), não é, todavia, o que Lacan enxerga
sob a pena de Freud. Para além do que vemos Freud postular sobre o amor, como uma
potência unificante pura e simples, uma atração sem limites, em oposição a Tanatus, diz
Lacan, “temos, correlativamente, e de maneira discordante, a noção tão diversa, e tão
mais fecunda, da ambivalência amor-ódio” (1960/1:94). Em outras palavras, Lacan
anuncia que o tema do amor, em Freud, constitui maior complexidade do que aquilo que
a imagem de uma esfera inteira permite deslindar.
Lacan situa historicamente o apreço da humanidade pela forma esférica,
passando por Copérnico, Pitágoras, Ptolomeu, entre outros, dimensionando para nós os
percalços da revolução astronômica. Tudo isso para alertar que o que está em jogo é
uma concepção puramente imaginária do universo, inteiramente pautada nas
propriedades da esfera, “definida como a forma que porta em si as virtudes da
suficiência, de modo que pode combinar nela a eternidade do mesmo lugar com o
movimento eterno” (1960/1:96). São referências que despontam a fim de nos revelar,
como diz Lacan, o “mecanismo da fascinação da forma esférica” (1960/1:98). Esta
ilustração, que nos é oferecida através de O Banquete, demonstra que o que está em
evidência, nestas formas onde “nada se prolonga e se deixa pegar” (1960/1:98),
fundamenta-se sempre na estrutura imaginária.
Mas, pergunta-se Lacan, a que se deve a adesão a estas formas, senão,
especificamente, à noção de castração? Segundo Lacan, o próprio discurso de
Aristófanes comprova a presença deste corte: trata-se, nesta fusão entre os seres
separados entre si, de que venham a “morrer num inútil abraço, ao se reunirem”
(1960/1:98). Como? Desatarraxando os seus genitais e imputando-os nos lugares
adequados. É assombroso, salienta Lacan, que a possibilidade de união se dê ao preço
de uma morte. Assim, o apaziguamento amoroso refere-se a algo que tem, no mínimo,
relação com “uma operação nos genitais do sujeito” (1960/1:98). Quer relacionemos ou
não tal alusão ao complexo de castração, Lacan determina que “isto não quer dizer,
simplesmente, que o órgão genital apareça ali como possibilidade de corte, e como
junção do objeto amado, mas que, literalmente, ele surge com este objeto, numa relação
de superimpressão” (1960/1:98).
71
Ao trazer para o terreno do amor a presença do corte dos órgãos genitais, Lacan
enxerga em O Banquete aquilo que, na teoria freudiana, o estatuto da sexualidade tratou
de consumar: a existência de uma incompletude, uma defasagem, atribuindo a esta cisão
a determinação de constituir, como resultado de uma operação divisória, tanto sujeito
quanto objeto.
Desse modo, o “amor pela metade” refere-se a esta ruptura, a este espaço vazio
que resta após a divisão, a esta marca, cicatriz que o sujeito carrega, resultante de sua
própria estruturação. O amor pela metade pode ser figurado na imagem desta esfera
cortada ao meio, por onde a operação de partitura faz emergir alguns resíduos, perdidos
para sempre - e para sempre almejados, por sua vez. Assim, o campo da sexualidade,
campo da incompletude por excelência, confere aos seres humanos o tórrido destino da
não-fusão. Pois o corte não implica senão em evadidos estilhaços, que fazem com que,
na tentativa de retorno, as duas metades afastadas não tornem jamais a se coadunar. Não
há conformidade possível, no campo do sexual, embora o amor, em sua dimensão
imaginária, insista em erguer sobre isto toda a sua pompa.
72
2.2- Do narcisismo ao luto, jaz o objeto:
2.2.1- Amor narcísico:
“O menino pergunta ao eco
Onde é que ele se esconde.
Mas o eco só responde: ‘Onde? Onde?’
O menino também lhe pede:
‘Eco, vem passear comigo!’
Mas não sabe se o eco é amigo ou inimigo.
Pois só lhe ouve dizer: ‘Migo’.”
Cecília Meireles
38
Reporto-me, aqui, a um artigo cuja ressonância é central em minha busca de
circunscrever a dimensão da perda no amor sob o prisma freudiano: Sobre a introdução
ao conceito de narcisismo (1914). Realizarei esta leitura de modo a entrecortá-la com a
formulação lacaniana do objeto a. Neste percurso, objetivo demarcar o estatuto do
objeto como representando algo que já se coloca, de saída, como definitivamente
perdido para o sujeito.
Este texto freudiano tem como principal função descrever a passagem existente
entre o auto-erotismo e o amor objetal. O narcisismo se determina por ser uma fase
intermediária necessária para tal passagem. A princípio, Freud se ocupa em conferir ao
narcisismo um papel importante no desenvolvimento sexual. Mas sua elaboração teórica
oferece margem a que se possa penetrar na complexa questão das relações entre o eu e
os objetos externos, representadas por uma defasagem - oriunda de uma perda - as quais
ora destaco. Todavia, vale sublinhar que este texto também revela os constrangimentos
de Freud, sua insatisfação em relação à teoria das pulsões, subentendendo-se uma
tendência a conferir certa presença à pulsão de morte, ainda que ele só venha a
conjecturá-la seis anos mais tarde. Seu interesse consiste em que se entrevejam os
enlaces amorosos ali descritos, uma vez que, rasteiramente, considera-se o estatuto do
amor como estando apenas associado ao narcisismo. Conforme já apontado na
Introdução desta tese, a meu ver, o ponto de vista narcísico abarca apenas a metade
desta complexa questão.
38
Meireles, C.: O eco, In: Ou isto ou aquilo (2002:93).
73
Resposta à “libido não-sexual” postulada por Jung, o artigo sobre o narcisismo
representa a sustentação freudiana da teoria da libido, sendo esta sobremaneira de
origem sexual. O narcisismo é um estágio normal da evolução da libido: energia sexual
que parte do corpo e se dirige aos objetos. Eis a sua proximidade inicial com o campo
do amor.
O que significa, pois, a afirmação de que o narcisismo se localiza na passagem
do auto-erotismo para o amor objetal? Conforme vimos no tópico anterior, o auto-
erotismo deve ser considerado desde um ponto de vista lógico. Para Freud, o primeiro
modo de satisfação da libido é o auto-erotismo: prazer que o órgão retira de si mesmo,
no qual as pulsões parciais procuram, cada qual por si, obter satisfação no próprio
corpo. O que sucede a isto é que o sujeito terá de se haver, cedo ou tarde, com a
constatação de que os investimentos voltados para si mesmo não são suficientes, ou
seja, cedo ou tarde tornará necessário que ele se dirija ao mundo externo em busca de
um objeto que o satisfaça.
O exemplo que ilustra fielmente este fato é o da alucinação do seio materno,
realizada pelo bebê. A criança, em um determinado momento primitivo, por não ter o
seio da mãe disponível, é impelida a alucinar a presença deste. No entanto, este recurso
alucinatório tende a ter uma curta duração, uma vez que, através dele, a criança não será
capaz de satisfazer sua fome. A alucinação não opera, portanto, de modo suficiente para
garantir a realização de suas necessidades. A noção de auto-erotismo, assim, situa o
próprio Freud frente a um problema teórico: a saída alucinatória pelo viés da
necessidade é uma hipótese que não se sustenta.
39
A única forma de resolvê-lo seria
considerando a existência do amor objetal. O auto-erotismo apresenta-se, sem dúvida,
como insuficiente, para o sujeito e para Freud.
Assim, a teorização da noção de objeto é demarcada por este passo adiante –
consagrado por Freud na última parte de Os três ensaios...(1905), sob o título de A
descoberta do objeto. O objeto freudiano, conforme já apresentado, é aquilo que resulta
do fato de as pulsões serem sempre parciais, conferindo uma diversidade e pluralidade
aos investimentos. Freud afirma, em Pulsão e seus destinos (1915), que o objeto da
pulsão “é aquilo
em que, ou por quem, ela pode alcançar seu objetivo”.
39
Vale notificar que muitos autores se incumbiram de avalizar que esta hipótese freudiana não se sustenta
– a satisfação da necessidade não é garantida pela alucinação - a citar, como exemplo, Laplanche (1985),
In: Vida e morte em psicanálise.
74
Não foi à toa que Lacan pôde oferecer um estatuto inteiramente novo ao objeto,
a partir do Seminário 10, culminando na formulação conceitual do objeto a. Para Lacan,
o objeto não pode ser representado por este “quem”, ou por este “em que”, uma vez
composto por fragmentos. O objeto lacaniano (a) não é redutível à coisa, mas apenas
identificado por alguns estilhaços: o objeto da sucção (seio), o objeto dos excrementos
(fezes), a voz e o olhar. Daí seu caráter de resto. É um objeto vazio, mas que, no
entanto, se define por ser um objeto primeiro, o qual não se pode presumir, e sim obter
apenas algumas indicações.
No Seminário 4, Lacan pontua que as noções relativas ao objeto, em Freud, já se
encontravam expostas desde o Projeto para uma psicologia científica (1887/1902).
Nestas concepções iniciais, segundo Lacan, “Freud insiste no seguinte: que toda
maneira, para o homem, de encontrar o objeto é, e não passa disso, a continuação de
uma tendência onde se trata de um objeto perdido, de um objeto a se reencontrar”
(1956/7:13). O que não significa dizer, em absoluto, segue ele, que este objeto possa ser
considerado plenamente satisfatório, harmonioso, mas da indicação de que “o objeto é
apreendido pela via de uma busca do objeto perdido” (1956/7:13), objeto do desmame
que fora circunscrito pelas primeiras satisfações da criança. Esta condição do objeto
freudiano irá delegar ao sujeito, fatalmente, uma posição nostálgica, bem como designar
seu permanente esforço na busca de religar-se ao que fora elidido.
O estatuto do objeto freudiano vem marcar, propõe ainda Lacan, a “redescoberta
de um signo de uma repetição impossível”, uma vez que nenhum objeto, obviamente,
tornará a ser o mesmo de outrora. Assim, desenha-se, neste cenário, “uma tensão
fundamental, que faz com que o que seja procurado não seja procurado da mesma forma
que o que será encontrado” (1956/7:13).
A partir das contribuições lacanianas, torna-se ainda mais manifesto aquilo que
está em jogo nos investimentos amorosos: o narcisismo visa subtrair esta espécie de
deformidade imanente ao sujeito, deformidade atávica que podemos, com Lacan, extrair
deste preceito de que o que se busca e o que se acha não se coadunam, seja da mesma
forma, seja numa mesma forma. Assim, aquilo que se busca e o que se acha não estão,
por assim dizer, em perfeita
conformidade. Indo mais além, torna-se possível considerar
que, em sua face narcísica, o amor é aquilo que
deforma o real (na medida em que
camufla, disfarça o real). O narcisismo é uma manobra do sujeito na busca de recuperar
a
boa forma. No entanto, ao contrário, o que é que ele encontra ali, senão uma pura
deformação? Muitas vezes, diga-se de passagem, é com isto que ele não se
conforma.
75
O aspecto desta forma passível de ser conferida ao eu fora elaborado por Lacan
em O estádio do espelho como formador da função do eu (1936), uma das iniciais
contribuições lacanianas à psicanálise, no qual ele aborda o reconhecimento prematuro,
por parte da criança, de uma forma unificada do seu corpo. Atentemos para o fato de
que a consolidação do eu – instância que se presta a ser o reduto narcísico por
excelência –, oferecida pela função do espelho, encontra-se elaborada por Lacan a partir
deste significante:
formador. Retomarei este texto lacaniano mais adiante.
Observemos como Freud concebe esta – que estou chamando de deformada –
relação objetal. Ainda no artigo sobre o narcisismo, ele nos ensina que, estruturalmente,
as pulsões sexuais estão, de início, ligadas à satisfação das pulsões do eu; somente
depois é que elas se tornam independentes destas, passando a vincular-se aos primeiros
objetos sexuais que propiciem cuidado e proteção (representados, no caso, pela mãe, ou
por alguém que desempenhe este papel para o sujeito). Já o amor objetal, Freud o
contextualiza nas pessoas adultas. Sobre as pacientes histéricas e os pacientes
obsessivos, por exemplo, a análise demonstra que as fantasias, criadas pela neurose, os
afastam da realidade. No entanto, assegura-nos Freud, eles “de modo algum cortam as
suas relações eróticas com as pessoas e as coisas” (1914:90). Eles passam, isto sim, a
retê-las na fantasia, ou seja, substituem os objetos reais por objetos imaginários, e vice-
versa, mantendo presos a si estes investimentos objetais, tal como “uma ameba e seus
pseudópodes”. Há, portanto, um investimento libidinal que se origina no eu, que
pertence ao eu, e que em parte é transmitido, direcionado, dirigido para determinados
objetos, estabelecendo o chamado amor objetal. O sujeito ama, segundo Freud, em
conformidade com o tipo anaclítico (de ligação, à mãe ou ao pai), ou em conformidade
com o tipo narcisista (eu ideal). Notemos como o amor, para Freud, no contexto do
narcisismo, vem a ser um movimento do sujeito em direção ao objeto que faz com que
este último lhe conceda uma espécie de roupagem, sob a pena de colocá-lo “em
conformidade” com algo, ou seja, como se o sujeito se moldasse ao objeto.
Através desta descrição, torna-se simples entender porque o amor é tomado
desde um ponto de vista narcísico. O amor seria sempre fruto deste movimento
maleável, flexível, de ligar-se aos objetos, a fim de recuperar a integridade do eu. Este
ponto de vista, articulado posteriormente por Lacan como sendo próprio do registro
imaginário, é elucidado nas descrições freudianas sobre a antítese existente entre libido
do eu e libido objetal: quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia. Afirma
ele: “A libido objetal atinge sua fase mais elevada de desenvolvimento no caso de uma
76
pessoa apaixonada, quando o indivíduo parece desistir de sua própria personalidade em
favor de um investimento no objeto” (1914:92). Destaca-se, portanto, este aspecto
moldável do sujeito em relação ao objeto, por ocasião de um enamoramento.
Freud anuncia, a propósito da hipocondria, que o homem enfermo retira seu
interesse das coisas mundanas, na medida em que não dizem respeito ao seu sofrimento.
Indo mais longe, o sujeito doente remove o seu investimento libidinal de seus objetos
amorosos: enquanto sofre, deixa de amar. Freud surpreende com a imagem que utiliza
para explicar a situação narcísica experimentada pelo sujeito, quando, atormentado pela
dor e pelo mal-estar orgânicos, deixa de se interessar pelas notícias externas (no caso,
trata-se do poeta que sofre de dor de dentes): “Concentrada está sua alma no estreito
orifício do molar” (1914:98). Os sentimentos de quem ama, sugere ele, por mais
avassaladores que sejam, são banidos pelos males corpóreos, e “de súbito substituídos
por uma indiferença completa”(1914:99).
Por outro lado, Freud se aventura a indagar o que é, afinal, que torna necessário
para a nossa vida psíquica ultrapassar os limites desse narcisismo e ligar a libido aos
objetos. E anuncia: “Um egoísmo forte produz uma proteção contra o adoecer; mas,
num último recurso,
devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos
destinados a cair doentes se, em conseqüência da frustração, formos incapazes de amar”
(1914:101, meu grifo).
Vemos aí esboçado um paradoxo relativo ao amor, aproximativo daquele
configurado na situação transferencial: por um lado, a neurose está representada nesta
retirada da libido para o eu, e suas resistências podem vir a se armar em nome de uma
proteção para o sujeito; por outro, aponta Freud, o amor é a única saída, a via mais
eficaz contra o adoecer. Amando, o sujeito evita ser acometido pelos males da doença.
Se, na enfermidade, o sujeito se incumbe de fazer retornar para si todo e
qualquer investimento libidinal, na relação amorosa a situação é diametralmente oposta.
O estar apaixonado, pontua Freud, consiste “num fluir da libido do eu em relação ao
objeto” (1914:118). O que ocorre quando o sujeito está enamorado é algo análogo,
segundo ele, à “intumescência do órgão sexual”, situação de excitação extrema,
decorrente deste forte investimento no objeto. Uma supervalorização sexual acentuada,
que se fundamenta no narcisismo original da criança, correspondendo a uma
transferência deste narcisismo original para o objeto sexual. Parafraseando-o:
77
“Essa supervalorização sexual é a origem do estado peculiar
de uma pessoa apaixonada, um estado que sugere uma
compulsão neurótica, cuja origem pode, portanto, ser
encontrada num
empobrecimento do eu em relação à libido
em favor do objeto amoroso” (1914:105, meu grifo).
Este empobrecimento do eu, descrito a partir de evidências clínicas, aponta para
algumas considerações acerca do inerente prejuízo, para o sujeito, de sua auto-estima. A
auto-estima é descrita por Freud como aquilo que “expressa o tamanho do eu”
(1914:115). De fato, percebemos que o sujeito pode facilmente abrir mão de suas
características pessoais quando está amando, situação que será detidamente narrada em
Psicologia das massas e análise do eu (1920), ocasião na qual Freud se propõe a
analisar o estado amoroso como sendo correlato ao estado hipnótico. Em nome de uma
unidade grupal, o sujeito se evanesce. No entanto, nada mais voltado para o eu do que a
posição de estar amando, pois ela implica na demanda de ser amado! Se há, no
narcisismo, uma retirada da libido do eu em favor do objeto, um esvaziamento, não
podemos deixar de perceber também que o caráter narcísico do amor não visa senão a
recuperação da boa forma do eu. O sujeito presta-se a encomendar ao objeto esta
recuperação, a despeito de um decréscimo de sua auto-estima.
É verdade, argumenta Freud, que, nas relações amorosas, o fato de não ser
amado reduz os sentimentos de auto-estima, enquanto que o de ser amado os aumenta:
“O amar em si, na medida em que envolva anelo e privação, reduz a auto-estima, ao
passo que ser amado, ser correspondido no amor, e possuir o objeto amado, eleva-a
mais uma vez” (1914:117). Entretanto, ele nos adverte: “A finalidade e satisfação em
uma escolha objetal narcisista consiste em ser amado” (1914:115).
Lacan reafirma esta idéia - amar é querer ser amado - em diversos momentos de
sua obra, a citar como exemplo o Seminário 8: a recusa ao movimento que permite ao
sujeito aceder à posição desejante, de Éroménos a Érastes, expõe esta questão. No
amor, o sujeito visa recuperar o investimento para si mesmo, como que por efeito e
conseqüência, através desta perspectiva subliminar de ser amado.
O artigo sobre o narcisismo contém, ainda, uma importante elaboração teórica:
Freud postula as noções de Ideal do eu e Eu ideal. O Ideal do eu, segundo Freud, é esta
instância que impõe ao sujeito severas condições à satisfação da libido, por meio de
investimentos em objetos. O que as pessoas visam atingir, como sendo sua fonte de
prazer e de felicidade, é tornar a ser seu próprio ideal, tal como na infância. Uma pessoa
78
poderá amar o que fora outrora e já não é mais, ou então aquele objeto que possua
atributos e qualidades que ela jamais teve. Sempre em conformidade com suas
características infantis, o sujeito mantém, no amor, a seguinte fórmula, não
desapercebida por Freud: “aquilo que possui a excelência que falta ao eu para torná-lo
ideal, é amado” (1914:118).
No Seminário 1, Lacan situa o amor como sendo um fenômeno que se passa no
registro imaginário, e que provoca “uma verdadeira subdução do simbólico, uma
espécie de anulação, de perturbação da função do ideal do eu. O amor reabre a porta –
como escreve Freud, que não usa meias medidas – à perfeição” (1953/4:166). Conforme
avança em suas postulações, Lacan também confere ao amor uma estreita relação com o
simbólico, registro onde as imperfeições, os lapsos, os erros de linguagem estão
certamente presentes. No Seminário 5, ele ressalta que o Ideal do eu comporta o estatuto
de ser também marcado pelo signo do significante. Indica ele, sobre o Ideal do eu:
“A questão é saber, em segundo lugar, de onde ele pode
partir. Ele pode constituir-se por uma progressão a partir
do eu, ou, ao contrário, sem que o eu possa fazer outra
coisa senão suportar o que se produz à revelia do sujeito,
pela simples sucessão de acidentes entregues às aventuras
do significante de criança mais ou menos desejada”
(1957:271).
Se o Ideal do eu é marcado pelo signo do significante, trata-se de considerar que
sua função de supor uma completude não se dá senão por uma defasagem, própria da
linguagem. De fato, a perspectiva do sujeito de sanar a sua divisão constitutiva não é
senão ideal, um ideal de obturar aquilo que carece ao eu, “sua excelência por
excelência”. Assim, no enamoramento, o objeto de amor não é senão este objeto que
ocupa o lugar do Ideal do eu, mas desde que consideremos que isso implica em algo
composto à revelia do sujeito.
Ao tentar promover um retorno ilusório a algo já perdido, retorno a um estado
anterior das coisas, o enlace amoroso é uma posição adotada por todo sujeito que busca
uma análise, na qual mantém a expectativa de que ali se promova, conforme salienta
Freud, uma “cura pelo amor, que ele geralmente prefere à cura pela análise” (1914:119).
Pergunto novamente: seria uma destituída da outra? Como divisar uma cura pela análise
sem que esta esteja, por assim dizer, necessariamente, contaminada pelo amor? É sobre
79
esta perspectiva que pretendo lançar foco, pois, se o amor comporta uma falta, e se,
conforme anuncia Freud, ele é endereçado a um objeto perdido desde sempre, então o
amor, embora responsável por estancar a cena analítica, também incumbe-se de veicular
os principais elementos a serem ali trabalhados.
É claro que, para além do amor, está o desejo. Eis a dimensão que cabe à análise
fazer ventilar para o sujeito. Veremos, no Capítulo 3, como isto se articula – o desejo é
veiculado pelo amor, nos ensina Lacan – mas ressalto desde já que não há como,
freudianamente inclusive, descartar as evidências de que o amor, numa análise,
promove o encontro do sujeito com a sua condição fundamentalmente desejante. Sobre
isto, Lacan é categórico, ao interrogar, ainda no Seminário 1, como é possível que os
neuróticos, tão entravados nas questões amorosas, entrem em transferência: “A
produção da transferência tem um caráter absolutamente universal, verdadeiramente
automático, enquanto as exigências do amor são, ao contrário, como todos sabem, tão
específicas... Não é todos os dias que se encontra o que é feito para dar a justa imagem
ao seu desejo!” (1953/4:167). O amor encontra na transferência a justa imagem de seu
desejo, num laço de tal sorte que, conforme Freud o definira, consiste em ser um
movimento que o analista já encontra pronto de antemão. Lacan classifica a
transferência, neste contexto, como um amor que “se produz antes mesmo que a análise
tenha começado” (1953/4:167).
É verdade que o amor faz manter a ilusão do caráter imperioso do eu. Mas, será
que isto se encontra dado para o sujeito, de antemão? Freud atesta que, de início, uma
“unidade comparável ao eu” não existe. Faz-se necessário o aparecimento de “uma nova
ação psíquica”, acrescida ao auto-erotismo, a fim de oferecer forma e lugar ao
narcisismo. Sobre esta famosa expressão – nova ação psíquica – vale remeter
novamente ao texto O estádio do espelho como formador da função do eu (1936), a
propósito de aferir o que Lacan também demonstra: esta nova ação psíquica é confiada
ao lactente a partir da sua imagem de inteireza projetada diante do espelho, antecedendo
a própria maturidade motora, e só podendo ser reconhecida através da palavra do Outro,
vivenciada com entusiasmo e fascinação. Lacan refere-se ao júbilo narcísico, ao
“espetáculo cativante” (1936:97), experimentado pelo lactente nesta situação, onde há
um Outro que o determina enquanto sujeito. Ante a sua forma, ofertada pelo espelho,
ele se serve do reconhecimento do Outro, sendo o Outro quem articula esta nova ação
psíquica necessária para fundamentar a instância do eu, com a caracterização narcísica
que lhe é peculiar.
80
Este estádio conserva uma relação com a identificação, qual seja, a
“transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (1936:97). Prima
por ser uma situação exemplar, onde se manifesta a presença da matriz simbólica, na
qual “o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da
identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função
de sujeito” (1936:97). Lacan dirá, ainda, que é neste momento que a mediatização do
desejo humano se bascula para o sujeito, sendo propriamente a partir desta báscula que
ele irá constituir seus objetos.
O narcisismo vem a ser, considerando do pressuposto lacaniano de um estágio
especular, uma estrutura que se postula numa anterioridade lógica à estrutura edípica.
Sistematicamente, num primeiro momento, é em nome de uma perda já constatada pelos
pais que o narcisismo se aloca. A criança, “sua majestade o bebê”, ocupa, na perspectiva
freudiana, o lugar da revivescência do narcisismo perdido dos pais. Ela determina para
estes últimos, nas palavras de Freud, “a reprodução de seu próprio narcisismo, que há
muito abandonaram” (1914:107). Esta concepção teórica pode ser claramente verificada
na clínica, manifesta sob as dificuldades com que os pais abordam os problemas (ou
sintomas) dos filhos. Há um ideal de perfeição em jogo, no amor dos pais pelos filhos,
aspecto que não fugiu à ótica de Freud, que pode ainda sublinhar, a respeito desta
postura paternal de ocultar e disfarçar as deficiências de um filho, que, necessariamente,
se trata de um corolário da negação da existência da sexualidade nas crianças. Negação,
portanto, das diferenças e disparidades que a sexualidade comporta, com todos os seus
efeitos. Com Freud, apreende-se que:
“No ponto mais sensível do sistema narcisista- a
imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade - a
segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O
amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil,
nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual,
transformado em amor objetal, inequivocamente revela
sua natureza anterior” (1914:108).
A perda do estado narcísico da criança remete os pais a seu próprio narcisismo
perdido. À sua particular sexualidade, sempre carente e defasada. Há uma falha em
jogo, a ser considerada, nesta passagem do narcisismo para o reconhecimento de um
lugar de alteridade. Assim, proponho interpolar esta passagem com a questão do luto (a
81
ser examinada no próximo item), uma vez que o trabalho do luto comporta o
reconhecimento, para o sujeito, do extravio de uma suplência. Em outras palavras, o
luto é aquilo que promove a decantação do objeto em termos da consolidação de uma
ausência; o luto consiste na passagem necessária do sujeito por aquilo que está
localizado, inevitavelmente, entre ele e o objeto, a saber, uma discrepância, ou um
vazio.
O conceito de narcisismo traz em seu rastro a idéia de que o amor venha a
restaurar uma perda ressentida, a idéia de que esta suplência perdida possa ser
recuperada. Isto induz a considerar que toda escolha amorosa será sempre uma escolha
narcísica. Porém, o narcisismo, instaurador do eu, ao mesmo tempo em que lhe fornece
uma consistência, lhe atribui o estatuto de reservatório da história das perdas do sujeito.
Afinal, o eu, diz Freud, se constitui como resultado da “sedimentação dos investimentos
de objetos abandonados”. São as suas perdas que estão ali marcadas, embora, em seu
movimento narcísico, o sujeito parta novamente na direção de camuflá-las. Logo, este
narcisismo, já remetido a uma falta, não perdura eternamente, suas manobras tendem a
capengar, lançando o sujeito de modo reiterado ao confronto com a castração,
sucedânea, logicamente, ao narcisismo.
Os investimentos do ideal do eu expressam-se como sendo incompletos,
insuficientes, apresentam uma ruptura de tal sorte que é justamente em seus próprios
barbantes que o sujeito se emaranha, ao amar: devido a esta falta, ele ama. Os objetos de
amor são amados precisamente por esta decalagem que comportam. O sujeito não ama
senão aquilo que carece ao objeto amado, talvez porque possa, assim, presumir que
tenha algo a oferecer na direção do seu preenchimento. Eis, revelada, a face
verdadeiramente espelhada do amor narcísico.
Mas o fundamental da questão do amor não reside somente no fato de que o
sujeito é constituído por uma perda. Está, também, localizado no próprio estatuto do
objeto, que, conforme radicalizado por Lacan, vem a consagrar-se tal como o sujeito:
rasgado, maculado, fragmentado e submetido a despojar-se da plenitude narcísica.
Assim, a completude que o sujeito vislumbra encontrar no Outro não se sustenta, senão
como ilusão, pois que este Outro, também ele, se constitui como manco e capenga.
Narciso apreciava a sua imagem refletida no lago, sem saber que era a si mesmo
que amava. Afogou-se na imagem oferecida pelo Outro, desconhecendo que, na
verdade, era por si mesmo que perdia o ar. E se o lago, este “falso Outro”, o amasse em
troca? Então Narciso se infernizaria. Encerro este tópico com um fragmento do poema
82
de Ferreira Gullar, que bem expressa as questões ora descritas, designando o inferno
também contido no cerne mais narcísico do amor:
“Se Narciso se encontra com Narciso, e um deles finge
que ao outro admira (para sentir-se admirado), o outro
pela mesma razão finge também, e ambos acreditam na
mentira. E a mentira se torna desespero. Amam-se assim
agora se odiando. O espelho, embaciado, Já Narciso em
Narciso não se mira: Se torturam, se ferem, não se largam.
Que o inferno de Narciso é ver que o admiravam de
mentira”.
40
40
Gullar, F.:De Narciso a Narciso, In: Toda poesia (1991:336).
83
2.2.2 – No amor, algo se perde, mas tudo se transforma:
“As fainas da viuvez trabalham uma horta nova.
Quem me condenará por minhas vestes claras?
O recém-nascido vai precisar de faixas.
É um tal amor o que prepara os ungüentos
Que obriga a divindade a conceder-se.
Até que esmaeçam,
Velo as coruscantes estrelas”.
Adélia Prado
41
Talvez não seja leviano afirmar que a perda constitui o problema central da
clínica psicanalítica. Quais são, afinal, as agruras expostas pelo sujeito em análise,
senão as conseqüências da posição que ele ocupa diante daquilo que lhe falta? Nesta
abordagem sobre o amor, o aspecto da perda interessa investigar. Como vimos, a perda
está desde sempre colocada à prova, na medida em que qualquer investimento amoroso
que o sujeito estabeleça surge de uma tentativa de re-significá-la – eis o que está
estruturalmente posto, desde o início de sua constituição. A perda está inexoravelmente
em jogo na situação analítica, até porque ela será permanentemente recolocada pela
própria disparidade contida na situação transferencial.
O artigo metapsicológico Luto e melancolia (1914) fora escrito por Freud
seguidamente ao texto sobre o narcisismo. A semelhança dos termos utilizados em
ambos é evidente, assim como sua seqüência teórica, caminho que ora pretendo esboçar.
Escolhi esta sucessão – em detrimento do percurso lógico comum, que vai do
narcisismo ao complexo de Édipo – por considerar que, através do luto, podemos
avaliar a perda de forma bastante pertinente e próxima ao tema do amor: naquilo que ela
comporta de mais pungente na experiência do sujeito.
Freud retrata as duas diferentes formas de perda para o sujeito: o luto e a
melancolia. Ele confere à melancolia um aspecto específico
42
. O objeto, que no trabalho
de luto é dado como perdido para o sujeito, ali não realiza a mesma função. Temos, com
Freud, que aquilo que o melancólico perde é a “capacidade de amar”, enquanto que,
após o trabalho de luto, o sujeito encontra-se apto a substituir o objeto perdido (“adotar
um novo objeto de amor”). Encarada por Freud como uma resposta patológica, a
41
Prado, A.: A profetisa Ana no templo, In Poesia reunida, (1991:172).
42
Há diversos autores que abordam a melancolia no contexto da estrutura psicótica. Sobre isso, aludo ao
artigo de Marcel Czermack, sobre a Síndrome de Cottard In: Paixões do objeto (1991), que nos oferece
inúmeros elementos a este respeito, bem como ao caso clínico exposto no artigo de Denise Sainte Fare
Garnot, inserido mesmo livro: A propósito da impressão de ser imortal. Não irei me deter nesta questão
estrutural, visto que este não é o aspecto que mais interessa ao presente tema. Tratarei desta manifestação
clínica tão somente na direção de salientar os aspectos referentes à perda do objeto.
84
melancolia se distingue do luto por não consistir numa atitude normal para com a falta
deste objeto, atitude que alocaria o sujeito em posição de, após um certo lapso de tempo,
poder superá-la.
Eis o que Freud postula acerca do luto: “O luto, de um modo geral, é a reação à
perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente
querido...” Já na melancolia ocorre que “a sombra do objeto recai sobre o eu” (1914:281).
O trabalho do luto consiste em renunciar ao objeto dado como perdido. Na
impossibilidade de lidar com o objeto enquanto perdido, o melancólico, sombreado,
perde a si mesmo. Sua posição resulta de um mal-reconhecimento do objeto enquanto
perdido. Entretanto, pondera Freud, não é tão simples distinguirmos esta diferença:
“O luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama,
encerra o mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda
de interesse pelo mundo externo - na medida em que este
não evoca esse alguém -, a mesma perda da capacidade de
adotar um novo objeto de amor (o que significa substituí-
lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que
não esteja ligada a pensamentos sobre ele. É fácil constatar
que esta inibição e circunscrição do eu é expressão de uma
exclusiva devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros
propósitos ou a outros interesses. E, realmente, só porque
sabemos explicá-la tão bem é que esta atitude não nos
parece patológica” (1914:276).
Mas, seria fácil explicar o luto? Ou, apenas na medida em que ele sugere,
invariavelmente, a notificação de algo que não tem, por si mesmo, nenhuma explicação?
Na clínica, pode-se notar quantas voltas em torno do objeto que lhe falta é capaz de
realizar o sujeito, para tentar dar conta daquilo que lhe escapa. Indagam os pacientes,
mergulhados na dor de sua perda amorosa: “terei agido de modo errado? E se eu não
tivesse feito o que fiz? E se tivesse feito aquilo que não fiz?”, e assim por diante.
A desconcertante tarefa do luto imposto pelas perdas nos acomete cotidianamente.
Reporto-me a um breve exemplo. Certa vez, vivenciei um episódio angustiante ao
conversar com uma amiga, que recém perdera o filho que carregava em sua barriga, após
18 semanas. Ela já havia sido obrigada a interromper outras três gravidezes, e então não
me vi, diante dela, em outra posição senão a de tentar consolá-la. Propus-me a lhe contar
histórias semelhantes, entretanto bem sucedidas, sempre felizes no desfecho; pus-me a
lhe indicar outros caminhos, oferecidos pela ciência, enfim, remeti aos recursos que
podia, na direção de ofertar-lhe algum conforto. Após meu longo e insuflado discurso,
85
recebido com silêncio por minha amiga, perguntei-lhe se o que estava dizendo era inócuo.
Então levei, de supetão, a seguinte resposta: “tudo o que você está me dizendo não é em
vão, mas é que a gente precisa ficar ouvindo um milhão de vezes, para ver se consegue se
convencer”. Em outras palavras, era como se ela tivesse me dito: não há como significar
esta perda.
Este episódio desencadeou a seguinte verificação: minha tentativa frustrada de
consolar, confortar, só fez atestar mais uma vez que, afinal, para certas perdas, não há
mesmo conforto possível. Sobretudo, levou-me a considerar, do alto de minha impotência
em querer, em vão, ampará-la, que não há o que se possa dizer a respeito do luto, a não
ser que se diga algo sobre a dor de não haver o que se possa dizer. Não há o que possa ser
dito sobre o objeto perdido, a não ser que ele está perdido. Esta é a única via eficaz para
que se promova uma significação sobre aquilo que há de irreparável na perda. O que não
é pouca coisa, há um árduo trabalho aí sugerido.
De fato, Freud se refere ao luto, em vários momentos do seu artigo, como
“trabalho de luto”. É claro que há um trabalho a ser feito, e que passa pelos dizeres do
sujeito em análise, pela possibilidade de conferir significação à perda sentida. Mas esta
significação será sempre insuficiente, devido à forma como se articula a própria
linguagem, e pelo fato de que as palavras não são capazes de tamponar o buraco da falta
que elas próprias comportam.
Em que consiste, portanto, o trabalho de luto, tão imprescindível segundo Freud?
Consiste no reconhecimento da perda do objeto de amor, para que novos investimentos
possam, sucessivamente, vir a se localizar. A perda do objeto faz expressar, para o
sujeito, a evidência, revelada pelo teste da realidade (Freud ainda se baseia na primeira
tópica), de que o objeto amado não existe mais. Isto lhe coloca de saída uma dura
exigência: de que a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. E,
convenhamos, eis uma tarefa dificílima para o sujeito! Não é à toa que esta exigência de
abandono do objeto irá provocar uma oposição, compreensível, por parte daquele. Pois
Freud é acintoso ao afirmar que “é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom
grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes
acena” (1914:276).
Remeto, neste contexto, a uma idéia esboçada por Freud em 1907, no texto O
poeta e a fantasia, onde pondera que “nada é tão difícil para o homem do que abdicar de
um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada;
apenas
trocamos uma coisa por outra!” (1908:150, meu grifo). A exigência de substituição
86
designa o sujeito à referência de uma falta, lhe exigindo que abdique do objeto. A
ausência do objeto, freudianamente, representa esta falta. Então, esta oposição que o
sujeito experimenta, assinalada por Freud, pode ser tão intensa que dê lugar a um desvio
da realidade e a um “apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória
carregada de desejo” (1914:277). Contudo, diz ele, o fato é que, “quando o trabalho do
luto se conclui, o eu fica outra vez livre e desinibido” (1914:277).
Neste sentido, proponho retomar um aspecto acima anunciado, sobre o
narcisismo: o eu vem a ser o reservatório da história das perdas do sujeito. Se o trabalho
de luto se realiza - e é desejável que ele se realize e até mesmo que se conclua -, esta
condição será favorável para que se propicie, para aquele sujeito, uma nova perspectiva
amorosa. No entanto, isso não quer de forma alguma dizer que aquele objeto deixará de
existir. Na clínica, pacientes conferem enorme importância a objetos que há muito já se
foram, que já não constituem mais os alvos de uma relação amorosa concreta, e, ainda
assim, é possível notar que algo do investimento libidinal ainda persiste. Tal como uma
espécie de “membro fantasma”, um pedaço elidido que ainda se presentifica, incomoda,
coça e acossa.
Com isso quero marcar o fato de que, como reservatório das perdas, o eu
continua a ser uma instância que determina que esses investimentos subsistem, sob a
forma de se tornarem parte da história do sujeito, uma espécie de reduto. Freud, bem
como a experiência clínica promovida pelo seu ensino, induzem à percepção de que o
trabalho do luto nunca pode, efetivamente, ser totalmente concluído. O sujeito está
marcado para sempre por seus laços amorosos. São como pedacinhos de perdas que eles
carregam na sacola da vida, estando esta por vezes mais pesada, por vezes mais leve.
Freud apresenta o exemplo da noiva abandonada pelo parceiro. E designa uma
diferença entre um objeto que tenha morrido e um objeto que tenha sido “perdido
enquanto objeto de amor”. O melancólico, postula ele, traz em análise uma fala sobre
suas perdas, de forma que ele possa muito perfeitamente falar sobre quem ele perdeu;
mas isto não significa que saberá dizer o que ele perdeu nesse alguém. Acaso não seria
assim, em todos os casos, a citar como exemplo o que escutei de minha amiga, acima
mencionado?
No trabalho de luto, é o mundo que se torna pobre, vazio, desprovido de
interesses. Na melancolia, é o próprio eu. Embora Freud esteja atento em oferecer ao
seu leitor uma clara distinção entre estes dois modos de lidar com a perda do objeto de
amor, há uma espécie de eclipse inerente às duas manifestações clínicas: ao afirmar, por
87
exemplo, que a chave do quadro clínico do melancólico está na autocomiseração, nas
auto-recriminações que são, na verdade, recriminações que o sujeito faz ao próprio
objeto (que, por estar internalizado, acabam se voltando para o próprio sujeito), assim
como que o que está em jogo é uma identificação com o objeto, Freud designa que estes
fatos são observados também nos sujeitos enlutados.
A relação objetal assim destroçada, obrigada subitamente a se desamarrar, causa
ao sujeito, de toda forma, um desapontamento brutal, que lhe exigirá inexoravelmente um
sério trabalho. A diferença, portanto, seria esta: ser ou não possível para um sujeito
realizar este trabalho de luto, reconhecer a perda aí imiscuída e acatar o aspecto de
renúncia ao objeto, proveniente de qualquer separação, bem como o caráter de
irrepresentabilidade próprio do registro simbólico.
Retomando mais uma vez o texto sobre o narcisismo (1914), podemos articular
que, para além destes casos extremados onde a perda se inscreve como decorrência de
uma morte concreta, ou desta situação na qual o objeto se distancia (situação de
abandono), o que está em causa no artigo Luto e melancolia (1914) é a notícia de que a
perda do objeto de amor consiste na perda do lugar narcísico como tal, perda deste
espaço que seria garantido pelo outro, lugar onipotente, onde se supõe que os pedidos
possam ser plenamente atendidos, os desejos plenamente realizados pelo outro, em
perfeita conformidade.
Cada relação amorosa (em seu começo, meio e fim, e não somente em seu
desfecho) convoca o sujeito novamente, a cada vez, a se defrontar com o seguinte:
aquilo que está em xeque, nos investimentos amorosos, é a derrisão da suposição de
completude, a vivência incômoda da falta. Poderíamos dizer com Lacan que, na
melancolia, o objeto da perda não ascende à dignidade da falta.
43
Freud, então, salienta que “a perda de um objeto amoroso constitui excelente
oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas se faça efetiva e
manifesta” (1914:283). Para além dos casos de morte, também os casos de desprezo,
desconsideração ou desapontamento podem designar à relação amorosa sentimentos
opostos de amor e ódio, reforçando uma ambivalência já inerente, constitutiva. Se o
amor pelo objeto não pode ser renunciado, refugiando-se na identificação narcísica,
“então o ódio entra em ação neste objeto substitutivo” (1914:284), evocando elementos
de hostilidade
44
.
43
Idéia esboçada por Lacan no Seminário 7 (1959/60).
44
Irei me dedicar ao tema do ódio, no tópico 2 do Capítulo 4.
88
Freud é cauteloso ao afirmar que é preciso que haja um tempo para que o
trabalho de luto se realize. Dentro da perspectiva que proponho (de que este estágio
pode ser aplicável a qualquer perda de objeto, tomado como análogo à saída de uma
posição narcísica), é necessário, de fato, que haja um tempo - distinto do cronológico -,
um tempo lógico possibilitador de que esta passagem se execute.
Esta renúncia ao objeto de amor, ferida aberta, só cicatriza mediante um trabalho
decisivo. Conforme argumenta Freud, “essa retirada da libido não é um processo que
possa ser realizado num momento, mas deve, por certo, ser um processo extremamente
prolongado e gradual” (1914:289). Freud, ao final do texto, confere ao luto e à
melancolia uma mesma fórmula, apontando que o que está em jogo para ambos é a
separação: “Esta característica de separar pouco a pouco a libido deve, portanto, ser
atribuída de igual modo ao luto e à melancolia, sendo provavelmente apoiada pela
mesma situação econômica e servindo aos mesmos propósitos em ambos” (1914:289).
A ambivalência, na qual o sujeito está imerso, por ser constitutiva, o faz travar
inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais “o ódio e o amor se digladiam; um
procura separar a libido do objeto, o outro defender essa posição da libido contra o
assédio” (1914:290). Esta ambivalência estrutural pertence, por natureza, ao recalcado.
A experiência traumática da perda, seguramente presente em toda relação amorosa (na
medida em que o objeto jamais corresponderá plenamente aos anseios do sujeito),
reaviva a relação do sujeito com o recalcado. Assim, tudo que se relaciona com esta
luta, oriunda da ambivalência, permanece retirado da consciência. Trata-se, então, de
evocar a luta para fazê-la trabalhar a serviço do luto.
O que importa destacar é o fato de que, a meu ver, narcisismo e luto são
companheiros inseparáveis: toda escolha amorosa já pressupõe uma perda, e é sempre
animado por esta incompletude que o sujeito teima em buscar, no objeto, o seu quinhão
de felicidade. Sendo que, a cada revelação de sua parcialidade, promulgada pelo objeto,
será novamente com as suas falhas que o sujeito irá de deparar.
Para finalizar as considerações sobre este texto, marco uma frase categórica de
Freud sobre este movimento do sujeito frente às suas perdas: “Desta forma, refugiando-
se no eu, o amor escapa à extinção” (1914:290). É visando a sua permanência, sua
perenidade, que o amor se instala de forma decisiva – embora não definitiva – no
sujeito. Freud encerra o artigo de forma descrente, alegando ainda não possuir meios
para saber o que determina a escolha pelo luto, bem como não saber de que forma
podemos ajudar os pacientes a abdicarem desta posição. No entanto, a contundência
89
desta frase levou-me à realização de um paralelo com as questões mencionadas no
tópico anterior, sobre o narcisismo.
Ora, se o investimento amoroso refugia-se no eu, como forma de subsistência,
isto só pode deflagrar uma posição na qual o sujeito, economicamente, se distancia de
sua própria incompletude, ou seja, da castração. A castração, oriunda de Édipo e para
além do narcisismo, é aquilo que evoca a noção do luto, a partir das referências teóricas
aqui apresentadas. Este empobrecimento do eu, descrito por Freud como tão
característico dos casos em que o sujeito se recusa a aceitar a perda do objeto de amor,
remete, em seus termos, ao estado narcísico propriamente dito. Se o amor é narcísico,
ele o é tanto quanto a recusa de sua falta.
Do narcisismo ao luto, portanto, há um trabalho a ser feito. Trata-se de um
trabalho que visa conferir lugar à perda, assim como firmar o próprio estatuto do objeto,
incompleto por natureza. Trabalho este que pressupõe a existência da castração, que irá,
em seu decurso, permitir ao sujeito certo acesso à maleabilidade das substituições
objetais. É desejável, clinicamente, que o luto seja realizado, luto que, nesta direção,
pode ser considerado como correlato da castração. Do narcisismo ao luto, há uma
passagem pela castração, através da qual o sujeito paga o preço de reconhecer a
incompletude do objeto amado, ainda que profundamente amado.
Consideremos o dito de Lavoisier, pertinente ao terreno da biologia e, no
entanto, insustentável no campo pulsional: se, no amor, algo se perde, através do luto
tudo se transforma. No luto, oferecem-se as condições para o aparecimento da
alteridade. Pois a ferida exposta da perda nunca se fecha, e é nesta abertura que alguma
novidade encontra espaço para se alocar. O novo só pode advir como resultado desta
fenda descerrada, desta fissura, que o trabalho de luto irá, mais do que tratar de
cicatrizar, oferecer um lugar, para que alguma alteridade se produza e opere para o
sujeito.
Finalizando, retomo alguns termos já articulados no item anterior: o amor se
expressa na busca da boa forma. Todavia, dimensionado como algo que transcende à
forma (uma vez que há a presença de uma perda), o amor pode ser aquilo que se trans-
forma. O amor é entrecortado por uma falta, mas, se for passível ao sujeito labutar,
sobre isso, um luto, garante-se a presença de alguma trans-formação.
90
2.3 – Do objeto que faz falta:
“Devo infinitamente ao ausente o discurso da sua
ausência. Ora, só há ausência do outro: é o outro
que parte, sou eu que fico. A ausência amorosa só
tem um sentido, e só pode ser dita a partir de quem
fica - e não de quem parte: eu, sempre presente, só
se constitui diante de você, sempre ausente.”
Roland Barthes
45
Aludo ao exemplo do fort-da, tal como fora descrito por Freud e posteriormente
interpretado por Lacan, a fim de argumentar sobre o que está em causa nesta perspectiva
da perda do objeto, para o sujeito. Pretendo, com isto, calçar ainda mais a idéia de que
este objeto está perdido desde sempre, fato condicional para a efetivação das relações
amorosas. Estruturalmente, o sujeito perde o objeto no momento mesmo de sua
constituição, simultaneamente a ela. E a perda do objeto o coloca, de saída, numa
posição de insuficiência, num lugar de falta; é no próprio ato de constituir-se que é
subtraído do sujeito o objeto que, por sinal, ele nunca teve. Como resto desta operação,
temos o objeto a, formulado por Lacan.
Freud serve-se de um modelo lúdico para caracterizar a dimensão da perda de
objeto para a criança. O exemplo da relação que se estabelece entre a criança e o objeto
- no caso, um representante da mãe - é descrita por ele a partir da brincadeira
confeccionada pela criança com um carretel. Freud evoca o exemplo deste jogo,
nomeado por ele como fort-da, no texto Além do princípio do prazer (1920). Neste
momento do texto, Freud se ocupava em discorrer acerca do momento inaugural do
trauma. Então, primeiramente, ele toma o cuidado de “limpar o terreno”, afirmando que
esta observação, feita por ocasião em que se hospedou por algumas semanas na
residência onde morava seu neto, um menino de um ano e meio, não correspondia a
uma tentativa de estudar as brincadeiras das crianças
46
, mas sim a poder situar, a partir
deste caso, seu caráter econômico.
O bom menininho era comportado, tranqüilo e dócil. Contudo, tinha o hábito
ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los
para longe, de modo a ter que buscá-los, após um certo trabalho. Enquanto assim
45
Barthes, R.: Fragmentos de um discurso amoroso (1988:27-29).
46
Embora Freud se ocupe do tema das brincadeiras infantis no seu texto O poeta e a fantasia (1908).
91
procedia, emitia o som “ó ó ó ó”, acompanhado por uma expressão de satisfação. Sua
mãe e os que o cercavam diziam se tratar da expressão alemã fort (ir embora). O
menino, então, passou a reproduzir esta cena, desta vez munido de um carretel de linha,
o qual arremessava para longe de suas vistas e depois trazia de volta, saudando com
alegria o seu retorno, ao emitir a palavra da (ali).
Freud, então, concluiu que a experiência retratava de forma lúdica o sinal da
renúncia ao objeto materno, o qual ele fazia ir e vir, de modo a harmonizar o aspecto
desagradável da vivência de separação da mãe, em conformidade com o princípio do
prazer. Transformando sua passividade em atividade, a criança elaborava, através da
brincadeira, o seu luto necessário, proveniente da experiência de separação do objeto.
No entanto, Freud titubeia diante da simplicidade de suas próprias
considerações, ao afirmar, ao final deste capítulo, que a constatação destes casos e
situações em que alguém transforma o desagradável num tema passível de ser elaborado
enquanto uma experiência prazerosa (casos que guardam em seu horizonte a produção
de um prazer) não possui utilidade para os fins da investigação psicanalítica, pois
pressupõe a dominância do princípio do prazer. Esses exemplos não fornecem provas do
funcionamento das tendências que estão para além do princípio do prazer, isto é,
tendências mais primitivas, ligadas à pulsão de morte, a qual Freud irá sancionar ao
final desse seu artigo, trazendo uma nova e definitiva roupagem para a teoria
psicanalítica.
Lacan evoca este exemplo, no Seminário 11, a fim de propor que, ao fazer
transcorrer ludicamente esta situação, o que a criança está, na verdade, colocando em
jogo, é a operação da repetição. No entanto, esta é uma repetição que traz à tona sua
diversidade mais radical. Tal como a criança que pede ao adulto que lhe repita, com
requinte de detalhes, sempre a mesma história de forma ritualizada, o que está presente
ali é uma insuficiência, na medida em que este pedido - de uma consistência distinta dos
detalhes, incluídos na narrativa da historinha - elucida que “a realização do significante
não poderá jamais ser bastante cuidadosa em sua memorização para chegar a designar a
primazia da significância como tal” (1964:62). Trata-se, para Lacan, de asseverar a
presença do simbólico, no escopo do exemplo do fort-da.
Desde o Seminário 1 ele já havia se incumbido de analisar esta brincadeira sob a
luz do registro simbólico, afirmando a presença, neste contexto, da materialidade da
palavra. No fort-da, o que estaria implicado seria o fato de que, neste vai-e-vem do
92
carretel, “o objeto passa, como que naturalmente, para o plano da linguagem”. Em suas
palavras: “O símbolo emerge, e torna-se mais importante que o objeto” (1953/4:206).
É verdade, assegura Lacan, que, ao brincar reiteradamente com o carretel, a
criança obstrui as conseqüências do sumiço da mãe, fazendo-se agente desta ausência.
Todavia, isto é secundário. O que ele prima por ressaltar, especialmente no Seminário
11, é que a ausência da mãe introduz um vazio, uma hiância, donde o que passa a faltar
não é a mãe enquanto figura em que a criança se projeta, mas sim o próprio carretel,
ligado à criança por um fio. Ali, no próprio carretel, manifesta-se a parte que se destaca,
se separa da criança. A ausência da mãe cria, para o sujeito, um fosso, um limite na
fronteira de seu domínio, limite ao qual o jogo do carretel vem responder.
Se, para Freud, a brincadeira do fort-da refere-se a uma tentativa feita pela
criança de dominar a lacuna deixada pela mãe, controlar o objeto de amor perdido, para
Lacan, ela retrata fielmente a entrada abrupta do significante na vida do sujeito,
escavando um fosso/poço em seus registros. Fenda irrecuperável, uma vez que o
significante é dotado de presenças e ausências, a serem necessariamente auferidas pelo
sujeito, desde cedo. Com Lacan, no Seminário 5, temos que “O que se produz da
relação com o objeto mais primordial, o objeto materno, efetua-se desde logo com base
em signos, com base no que poderíamos chamar, para dar uma imagem do que
queremos dizer, de moeda do desejo do Outro” (1957/8:263). Entre estes signos,
entretanto, estabelece-se uma divisão. Lacan adverte que nem todos os signos são
redutíveis ao que ele chama de “títulos de propriedade” - esta moeda de troca, passível
de escorar o sujeito dos efeitos do real, do irrepresentável, que ali se insere. O desejo do
Outro determina uma fissura na constituição do sujeito (doravante entrecortado), fissura
esta ilustrada com propriedade pelo fio de barbante.
O carretel não é somente a imagem da mãe ali representada, mas alguma coisa
do próprio sujeito que se destaca, embora ainda pertencendo a ele, e que ele ainda teima
em segurar com as mãos. É uma parte perdida do sujeito, tornada objeto, e com a qual a
criança “salta as fronteiras de seu domínio transformado em poço, e que começa a
encantação” (1964:63). O objeto carretel é precisamente onde devemos designar o
sujeito, na medida em que ali se reconhece - pelo fato deste jogo ser uma das primeiras
aparições a surgirem - o significante como a primeira marca do sujeito. Este objeto é
designado por Lacan como objeto a.
93
Melman (1991)
afirma que é na relação com a mãe que se faz o isolamento do
objeto a
47
. Este objeto a, no entanto, sentencia ele, está desde o início definitivamente
perdido. No início, “a mãe é primordialmente para a criança o grande Outro (...) Nesse
estágio, o que a concatenação significante que constitui o Outro faz ouvir ao pequeno
fala-ser – e é sem dúvida isso que é o mais surpreendente – é a pura falta, o buraco que
anima e conduz a cadeia em cascata” (1991:64).
O que se evidencia é a ausência da mãe, simbolizada pela atividade repetitiva,
mas sempre como causa da spaltung (cisão, divisão) do sujeito, de forma que, quando a
criança diz fort, ela visa não o retorno da mãe, mas a alternância com o da, e vice versa.
É sobre um fundo de ausência que a presença do objeto se determina, assim como a
ausência só pode se configurar enquanto relacionada com um fundo de presença. Lacan
demarca esta divisão, no Seminário 5:
“Como existência, o sujeito vê-se constituído desde o
início como divisão. Por quê? Porque seu ser tem de se
fazer representar alhures, no signo, e o próprio signo está
num lugar terceiro. É isso que estrutura o sujeito na
decomposição de si mesmo sem a qual nos é impossível
fundamentar, de alguma maneira válida, o que se chama
inconsciente” (1957/8:266).
O fort-da, portanto, constitui um exemplo lúcido daquilo que poderíamos
articular como sendo tão particular da estruturação do sujeito, e que tange à perda do
objeto: o que unifica o sujeito, conferindo-lhe alguma forma, alguma consistência
palpável, é nada menos do que a sua própria falta, sua inerente decomposição. É
enquanto privada de um pedaço que qualquer unificação pode ser averiguada por nós,
mortais; a unificação deve seu estatuto exclusivamente a uma ausência.
Vimos que a mãe fora classificada por Freud como sendo o objeto primordial,
primeiro objeto de investimento, do qual o sujeito se separa. Este preceito freudiano
fora levado à sua radicalidade por Lacan, na medida em que ele confere a este objeto
primitivo o estatuto de jamais ter existido como tal, ou seja, de ser fundado em
concomitância ao momento inaugural do sujeito, de forma que, uma vez constituídos,
tanto sujeito quanto objeto caracterizam-se por serem subtraídos de plenitude.
47
Melman, C.: Estruturas lacanianas das psicoses (1991:66).
94
Eis, então, deflagrada, a árida sina humana: enquanto sujeitos, já somos
entrecortados por uma falta determinante, a qual buscaremos freneticamente reparar, ao
longo de toda a vida, através do amor. Atentemos para o fato de que, no momento em
que se constitui para o sujeito a presença do Outro, presença que poderia ser tomada
imaginariamente como se oferecendo a afugentar sua solidão, em concomitância a isto
consolida-se a perda mais pulsante, o esvaziamento de um pedaço que jamais tornará a
ser inteiro. A presença do Outro, que pode trazer certo conforto ao desamparo, é
também aquela que anuncia o “buraco negro” do sujeito, pessoal e intransponível, sua
fenda irrecuperável. É enquanto inserido neste dilema que o sujeito busca o amor. É
desde este lugar - onde, tal como a criancinha da experiência do fort-da, ele se depara
com o poço definitivamente escavado em seus domínios - que ele salta rumo à
encantação promovida pelo amor.
Então, a presentificação do Outro traz como corolário a própria falta deste Outro,
designando a falta particular do sujeito e remetendo-o a uma solidão inaugural, que
certamente irá retornar em diversos momentos de sua vida. Lembrando o que Lacan
postula em O estádio do espelho como formador da função do eu (1936), o estádio
constitutivo do sujeito, conferido a ele pelo Outro, efetiva-se como sendo também o
lugar da perda deste Outro. No momento em que o Outro lança sobre o sujeito a
possibilidade de fazer dele uma unidade, ao designar: “você é Fulano”, neste mesmo
momento o sujeito passa a experimentar sua radical alteridade. Pois, ao constituir-se
como Fulano, se Fulano ele é, já não pode mais contar com Beltrano, e nem com
Cicrano, como partes coladas de si.
Creio ser a isso que a experiência do fort-da vem lançar alguma luz: o sujeito,
dividido e perpassado pelo real, aferra-se aos objetos que elege com enorme ímpeto, por
serem partes perdidas dele mesmo, na ilusão de que, porventura, estes objetos possam
vir a reconstituir as suas falhas, nesgas talhadas desde a origem. Mas os objetos não são
mais do que pedaços soltos, com os quais ele teima em fazer costuras, em coser a
ruptura. Logo, o sujeito se encontra em posição de estar sempre assim, pendurado, por
um fio... Apenso ao tal barbante do fort-da. É somente este breve fio que o faz ligado
aos objetos, fio que ele brinca de fazer ir e vir, pelos desfiladeiros desta teia. Embora,
quanto a este objeto fragmentado, o sujeito facilmente o coroe como o representante de
todas as suas expectativas de resgate, de restituição, de redenção.
Retomemos a lição lacaniana Do amor à libido, proferida no Seminário 11.
Lacan explicita que não lhe resta dúvidas de que os objetos, para a criança, estão
95
colocados desde o tempo mais precoce da fase neonatal (1964:186-7). Mas a pulsão só
tomará corpo, sugere ele, em função das representações que venha a fazer através dos
objetos. O mito da lâmina, já citado, exemplar desta divisão a qual estou ressaltando, e
que se refere àquilo que o ser sexuado perde na sexualidade, Lacan o coaduna com a
noção de libido. É, tal como uma ameba em relação aos seres sexuados, algo imortal.
Sobrevive a qualquer divisão, a qualquer intervenção cissípara. A libido, enquanto pura
pulsão de vida, Lacan a delibera como imortal, “irrepresável”, indestrutível. Os objetos
a, deste modo, são os representantes, as figurações desta parte subtraída do ser vivo pelo
fato de este último ser sexuado (1964:186). O seio materno ou a placenta, conforme
vimos, constituem a parte de si mesmo que cada sujeito perde ao nascer, algo que pode,
segundo Lacan, “vir a simbolizar o mais profundo objeto perdido” (1964:187).
O objeto perdido, portanto, conceituado por Lacan como objeto a, é aquele -
uma vez representado pelo seio e substituído por qualquer objeto que o sujeito venha a
eleger como objeto de amor - é aquele que nos anuncia a eternidade, a imortalidade, o
aspecto “irrepresável” da vida, ao mesmo tempo em que reafirma terminantemente a
perda disto. Parafraseando Lacan:
“A relação ao Outro é justamente o que, para nós, faz
surgir o que representa a lâmina – não a polaridade
sexuada, a relação do masculino com o feminino, mas a
relação do sujeito vivo com aquilo que ele perde por ter
que passar, para sua reprodução, pelo ciclo sexual”
(1964:188).
Lacan explicita, desta forma, a afinidade entre toda e qualquer pulsão com a
zona da morte, ali inerente, conciliando as duas faces da pulsão: ao mesmo tempo em
que presentifica a sexualidade no inconsciente, a pulsão representa, em sua essência, a
morte. A condição do sujeito vivo é, pois, a perda de sua imortalidade. Aqui reside o
aspecto da efemeridade do sujeito, na medida em que, ao se fazer representar, ele
padece de uma inteireza, já rompida. Por fundar-se a partir do significante, o sujeito
emerge inserido numa divisão. É desta forma que o inconsciente, imerso nesta
temporalidade lógica, constitui-se como aquilo que se abre para, logo em seguida, voltar
a se fechar.
Estes pressupostos endossam a idéia de que o amor se origina numa perda, e de
que o que há por trás do amor é a descoberta – sempre abafada – de que não há
96
completude que se sustente para o sujeito. A seguir, darei continuidade a esta idéia,
tentando demonstrar o outro lado desta mesma moeda, qual seja, o lado que revela
como, no rastro da relação de amor, esta falta estrutural é recolocada em cena. O amor
tem o ácido privilégio de ser este lugar onde a falta se reconstrói, a despeito de ter sido,
outrora, construído por ela.
97
Capítulo 3:
É POSSÍVEL AMAR E SER FELIZ AO MESMO TEMPO?
98
“Ninguém faz ‘favores’ à criatura amada. Faz o
que devia fazer, o que desejou fazer, o que não
podia deixar de fazer. A princesa que se casa com
um contínuo, um servente, ou um pastor, não faz o
mínimo obséquio. Faz aquilo que o coração exigia.
O duque de Windsor fez muito mais, pois
renunciou ao Império Britânico e não se dá ao
direito de se julgar superior à esposa. Ambos são
iguaizinhos, a mesmíssima coisa, pois o amor é,
como a morte, um nivelador absoluto”.
Nelson Rodrigues
48
.
A frase que nomeia o presente capítulo foi inspirada no título de um livro do
dramaturgo Nelson Rodrigues, onde ele revive as colunas diárias escritas e publicadas
no Jornal Diário da Noite, durante o ano de 1949. Ali, o autor se incumbe de responder
às cartas das leitoras – principalmente mulheres apaixonadas – que lhe indagam sobre o
amor: seus incômodos, seus desencantos, suas angústias. Ele se propõe a revelar, com
humor, e utilizando-se de um pseudônimo feminino, o que de mais candente se destaca
no universo das paixões: as agruras de uma busca fadada ao insucesso, os desencontros
promovidos pela vida amorosa, enfim, a insistente verificação de que, afinal, não se
pode amar e ser feliz ao mesmo tempo.
Tomei-o como título deste Capítulo, visto que pretendo abordar a presença de
uma falha na conjugação do amor com o gozo, da afetividade com a sensualidade, da
afeição com o prazer sexual. Efetivamente, segundo os ensinamentos de Freud, a partir
do recalque e da irreversível divisão que se coloca para o sujeito, não se pode amar e
gozar ao mesmo tempo. Porém, esta impossibilidade - freudianamente nomeada de falha
- representa também, precisamente, aquilo que irá permitir a capital abertura para o
desejo humano.
Para tais considerações, parto dos três textos freudianos inseridos nas
Contribuições à psicologia do amor (1910-1918), utilizados a fim de articular o que, a
meu ver, se evidencia de forma radical: o amor esboçado como um reencontro sempre
falho, e a existência da disparidade entre amor e erotismo. Estas diferenças entre si
apontam para uma impossibilidade de conjugação simultânea na dinâmica amorosa
vivenciada pelo sujeito, tal como exposta por Freud: com um objeto, o sujeito pode ter o
amor; com o outro, pode gozar do prazer sexual. Para Freud, o amor só pode ser
48
Rodrigues, N.: Não há sacrifício em amor, In: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo (2002:67-
8).
99
experimentado de modo incompleto. Trata-se da constatação de que, no campo dos
investimentos realizados pelo sujeito, pode-se entrever uma divisão. Irei articular esses
artigos com a leitura de O tema dos três escrínios (1913), texto freudiano onde se
exacerba a presença da morte no amor. Proponho uma seqüência lógica entre eles, que
serão expostos e discutidos a partir dos ensinamentos lacanianos.
Destacarei o caráter do desejo, subliminarmente presente nesta série de textos
freudianos. Pois é neste ínterim que o desejo pode comparecer, vindo salvaguardar
alguma existência para o sujeito. O desejo é tributário do estatuto estrutural que aqui se
apresenta, de forma fecunda, por Freud: é oriundo de uma disparidade inerente, do
desencontro intrínseco ao campo do amor. Veremos como, a partir de Lacan, o desejo
pode ser concebido como aquilo que, estando articulado ao amor, oferece a principal
dimensão a ser visada numa análise.
Parto, na direção de aferir tais preceitos, da seguinte pergunta: o que o homem
encontra, ao dirigir-se a uma mulher?
100
3.1- A cisão na esfera do amor:
O primeiro artigo das contribuições à Psicologia do amor, intitulado Um tipo
especial de escolha de objeto feita pelos homens (1910) traz duas premissas freudianas
a serem salientadas, ambas em consonância com o que fora exposto nos Capítulos 1 e 2.
A primeira vem a ser a idéia de que o amor surge como resultado de uma repetição de
protótipos parentais constitutivos para o sujeito. A segunda é a presença da noção de
substituição objetal, freqüentemente citada ao longo do texto.
Freud inicia este artigo pontuando a diferença entre um texto literário que fale de
amor e as considerações que possam ser feitas a respeito do amor enquanto advindas da
experiência clínica. Essas observações, sugere Freud, servem para justificar de modo
amplo “o tratamento estritamente científico que damos ao campo do amor humano”
(1910:149). Destaca-se, aqui, que Freud se encontra decidido a asseverar sua convicção
de que o tema do amor pertence ao terreno científico. Com isto, não faz senão sublinhar,
acima de tudo, a importância cabal que a questão do amor ocupa em sua teoria.
Mas é da experiência clínica que Freud retira elementos para discutir o que está
em causa nas relações amorosas. Sua prática oferece amplas oportunidades para que se
possa colher impressões sobre o modo como os neuróticos se comportam em relação ao
amor. Se, por vezes, Freud alega que estas questões se compõem como próprias de
indivíduos já largamente comprometidos - que lhe procuram a partir de uma
exacerbação de suas patologias -, por outro lado vêmo-lo afirmar, em diversos
momentos, que os aspectos retratados estão aptos a ocorrer em todo e qualquer sujeito,
levando-nos a considerar atentamente os elementos estruturais que estão em jogo nos
exemplos selecionados, não à toa, por ele.
Freud justifica o título deste primeiro artigo afirmando que, quando o material
clínico é favorável, ele nos conduz a uma acumulação de certas impressões, e isto faz
com que surjam, mais claramente, “tipos definidos”. A clínica freudiana, campo fértil
onde as manifestações amorosas se evidenciam, traz à tona as características da história
de amor pessoal do sujeito. Para o analista, trata-se de considerar um para-além deste
registro das histórias das perdas objetais, levantando o véu que ali se veicula de forma a
sombrear o aspecto de impossível, e, sobretudo, precipitando a abertura que se produz
na dissonância entre o sujeito e o objeto.
101
Então, Freud descreve este tipo definido de escolha de objeto, feita
exclusivamente por homens, cuja primeira precondição pode ser delineada como
específica: nela, deve necessariamente existir “uma terceira pessoa, prejudicada”. O
homem em questão jamais escolherá uma mulher livre e desimpedida, mas sim aquela
sobre a qual “outro homem possa reivindicar direitos de posse, como marido, noivo, ou
amigo” (1910:150). A segunda precondição para esta escolha objetal consiste em um
interesse por mulheres que sejam, de alguma forma, “sexualmente de má reputação,
cuja fidelidade e integridade estejam expostas a alguma dúvida” (1910:150). A mulher
casta, de conduta irrepreensível, soará ao interesse deste homem com profunda
indiferença. É preciso que ela esteja envolta minimamente em um murmurinho de
escândalo, ou até mesmo que seja francamente promíscua, para caracterizar frente ao
homem as precondições necessárias para esta escolha amorosa. Freud designa este tipo
de escolha como “amor à prostituta”.
A importância que destaco nas particularidades destas escolhas reside no fato de
que Freud estaria se referindo ao que podemos chamar, a partir dos ensinamentos
lacanianos, de elemento privilegiado do desejo humano. Embora não se utilize deste
significante em momento algum desses artigos, Freud não faz senão sublinhar o campo
do desejo, como aquilo que pode ser articulado a partir de uma falta
49
.
Sobre o desejo, Lacan argumenta, no Seminário 5, que, antes de Freud, os
estudos da economia humana tratavam de reduzi-lo ou até de elidi-lo, no intuito de
domesticá-lo, discipliná-lo, uma vez regidos por uma preocupação com a ética e com a
moral. Entretanto, pondera Lacan, é fundamentalmente “com os efeitos do desejo, num
sentido muito amplo – o desejo não é um efeito colateral – que temos, na psicanálise,
que lidar” (1957/8:261). Assim, não são meramente efeitos colaterais as curiosas
manifestações do desejo humano, postuladas por Freud nesses artigos. O desejo é aquilo
que se apresenta justamente quando algo falta ao sujeito, quando suas buscas amorosas
deparam-se com um limite, com um entrave em sua satisfação.
Eis como Freud descreve algumas características do comportamento do amante
em relação ao objeto que escolheu: estas mulheres são consideradas pelo homem como
objetos amorosos do mais alto valor. São relacionamentos que exigem do homem muito
dispêndio de energia psíquica, acarretando uma exclusão dos demais interesses. Este
49
Freud, efetivamente, refere-se poucas vezes ao termo “desejo”, nesses artigos. Na Interpretação dos
sonhos (1900), designara o termo Wunsch. No entanto, este significante, ao qual Lacan se dedica, está
radicalmente presente nas entrelinhas freudianas, conforme pretendo demonstrar.
102
objeto é sentido como o único a quem é possível amar, numa exigência de fidelidade
incessante e repetitiva, realizada pelo amante sobre si próprio. É curioso este aspecto: a
fidelidade ao objeto, típica do estado de enamoramento, e representada pela dificuldade
– já assinalada – que o sujeito encontra em abdicar de seus investimentos amorosos,
aqui se torna ilustrada. Consideremos que este atributo talvez não seja exclusivo dos
homens que adotam esse tipo de escolha objetal, mas concernente a todo amante.
Conforme sublinha Freud: “Essas características de relacionamentos amorosos, que ora
descrevo, revelam, muito claramente, sua natureza compulsiva, conquanto seja algo que,
até certo ponto, ocorra a qualquer pessoa que se apaixone” (1910:151).
Indo além, Freud afirma que a fidelidade e a intensidade típicas desta relação
não significam que um único relacionamento amoroso dessa espécie possa representar
toda a vida erótica da pessoa em questão, ocorrendo apenas uma vez na vida. Ao
contrário, “os relacionamentos apaixonados deste tipo repetem-se com as mesmas
peculiaridades – cada qual uma réplica exata dos outros – sempre e sempre, nas vidas do
homem deste tipo” (1910:151). Os objetos amorosos substituem uns aos outros,
freqüentemente, de modo que se forma “uma extensa série dos mesmos” (1910:151).
Novamente fica claro o preceito fundamental do que poderíamos chamar de uma teoria
freudiana do amor: o amor é sempre a repetição da substituição de protótipos arcaicos
da vida do sujeito. O amor é uma tentativa de retorno ao mais primitivo objeto, já
perdido. Diz ele:
“A escolha de objeto, que é tão estranhamente
condicionada, e esta maneira extremamente singular de se
comportar no amor, tem a mesma origem psíquica que
encontramos nos amores de pessoas normais. Derivam da
fixação infantil de seus sentimentos de ternura pela mãe e
representam uma das conseqüências desta fixação”
(1910:152).
No tipo aqui descrito, trata-se, para Freud, de que as características maternas
tenham permanecido impressas nos objetos amorosos, escolhidos mais tarde, e foram
transformadas em substitutos facilmente reconhecíveis da mãe. As condições para amar
e o comportamento no amor decorrem, assim, de uma “constelação psíquica”
relacionada à mãe. Neste contexto, Freud faz apelo ao complexo de Édipo
50
, alegando
50
Esta foi a primeira vez que Freud empregou o termo “complexo de Édipo” num artigo publicado,
embora o assunto já lhe fosse, há muito, familiar.
103
que a primeira precondição para este amor - de que haja um terceiro, injuriado - refere-
se, nada menos, do que ao pai. Quanto à segunda precondição, a princípio contraditória
em relação a esta intrusão teórica do complexo de Édipo, uma vez que, em sã
consciência, nenhum homem poderá justapor a imagem materna à de uma prostituta,
Freud justifica: “há muito tempo, descobrimos que o que, no consciente, se encontra
dividido entre dois opostos, muitas vezes ocorre no inconsciente como uma unidade”
(1910:153)
51
. Assim, os impulsos amorosos dirigidos a uma mulher de má reputação se
referem, de fato, à figura materna, na medida em que evocam fantasias acerca da
infidelidade da mãe (que o preteriu, em nome do pai; concedeu o privilégio da relação
sexual ao pai, e não a ele, o que consistiria infidelidade).
Esta experiência, na qual o sujeito se depara com a sexualidade da mãe, é vivida
por ele com um “misto de desejo e horror”. Aspecto que irei retomar mais adiante no
intuito de discutir a dosagem de angústia, bem como a presença da morte, que estão em
jogo na posição do homem diante de uma mulher. Vale frisar que o que está nas
entrelinhas dessas considerações freudianas é o aspecto da divisão subjetiva. Uma
divisão concernente ao inconsciente (expressa pela ambivalência), mas, sobretudo, uma
divisão estrutural, oriunda da castração, isto é, do fato de que, ao sujeito, é destinado um
lugar de perda constitutivo, ao qual as representações amorosas se dirigem com a
finalidade de fazer obliterar.
Para Freud, portanto, o amor se estabelece como conseqüência da relação objetal
parental. No amor comum, também sobrevive o protótipo materno da escolha de objeto;
entretanto, neste tipo de amor, ora por ele abordado, a diferença seria que a libido
permanecera fixada na mãe por um tempo alongado demais. Eis como Freud afirma
novamente o caráter da substituição, neste artigo: “Aprendemos pela psicanálise, que a
noção de algo insubstituível, quando é ativa no inconsciente, muitas vezes surge como
subdividida em uma série infindável. Infindável pelo fato de que cada substituto, não
obstante, deixa de proporcionar a satisfação desejada” (1910:153).
Veremos no artigo examinado a seguir como Freud irá atribuir à pulsão, e a seu
caráter irrepresável, a responsabilidade pela impossibilidade de um encontro amoroso
totalizante. Mas atentemos para o fato de que, uma vez posta em causa a parcialidade
das satisfações, ao sujeito resta um incessante movimento de remetimento ao objeto,
51
Freud, aqui, ainda se baseia na primeira tópica (Ics/Pcs/Cs).
104
objeto este que, por sua vez, não é capaz de completar, de suturar, objeto que não se
coaduna aos interesses do sujeito, daí o caráter infindável das buscas amorosas.
Não passa despercebido o fato, já tão marcante neste primeiro artigo, de que toda
esta abordagem de Freud aproxima-se do modo de funcionamento da estrutura
obsessiva. Vejamos sob que aspectos. O primeiro traço que chama a atenção é aquele
expresso propriamente na dinâmica da escolha amorosa: nada mais concernente à
estrutura obsessiva do que o atributo de que haja a figura de um outro, um semelhante,
que exerça a posse e o domínio sobre um determinado objeto que ele, sujeito obsessivo -
devido a este próprio impedimento -, passará a tomar como objeto do seu desejo. A
condição para o amor, de que haja “um terceiro, prejudicado” parece estar referida a
isso. Para o obsessivo, não há acesso ao objeto que se torne viável a não ser passando
pelo prejuízo de seu rival. No entanto, concomitantemente, ele se coloca em posição de
temer por este mesmo prejuízo, uma vez que, caso seu rival não esteja mais ali,
ocupando este lugar de empecilho, não há como ele sustentar o seu próprio desejo. O
desejo do obsessivo depende integralmente deste outro, que, ao mesmo tempo em que é
por ele injuriado, exerce o sustentáculo necessário para a articulação de seu desejo.
Extinguir o seu rival, numa certa medida, representa, para o obsessivo, aniquilar a si
mesmo. Esta idéia é reiterada nos textos freudianos seguintes.
O segundo artigo das Contribuições à psicologia do amor intitula-se Sobre a
tendência universal à depreciação na esfera do amor (1912). Suplementar ao texto Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud, neste artigo, desenvolve o
postulado concernente às duas correntes sexuais - a terna e a sexual -, demonstrando de
forma radical a disparidade existente entre amor e erotismo, determinando suas
diferenças e fadando-os a uma impossibilidade de permanência simultânea. Esta
disjunção instalada entre o amor e o desejo sexual se vincula com o que destaco como
ponto de impossível: a defasagem (falha), inserida na situação amorosa. Eis a
fundamental citação de Freud:
“Toda a esfera do amor, nessas pessoas, permanece
dividida em duas direções personificadas na arte do amar,
tanto sagrada quanto profana.
Quando amam, não
desejam, e quando desejam, não podem amar. Procuram
objetos que não precisem amar, de modo a manter sua
sensualidade afastada dos objetos que amam” (1912:166,
meu grifo).
105
Freud coloca de um lado o desejo sexual, a potência sensual, o erotismo, e do
outro lado a afetividade, a afeição, o amor. Mais do que uma dissimetria entre estas duas
correntes, esta divisão aponta, a meu ver, para uma disparidade (aqui, esta distinção se
aplica novamente), inefável para o sujeito, decorrente de sua divisão estrutural. Há uma
ruptura, uma cisão irrecuperável, no que tange ao campo do amor. O mais interessante -
e também o mais radical para o sujeito - é averiguar que não se trata somente de uma
falha, logicamente anterior, que o determine neste movimento amoroso em busca do
complemento. O mais lancinante consiste no fato de que esta falha restringe o encontro
amoroso a tal sorte, que é nesta falha mesma que o sujeito irá esbarrar
irremediavelmente, a cada vez que se põe a amar, a cada vez que se enlaça afetivamente
ao objeto. Eis o seu inferno, posto à prova pela neurose.
Pois esta falha em se combinar amor e sensualidade, Freud chamou de
“impotência psíquica”. Este ponto de impossível - a própria limitação da liberdade para
o sujeito - é também o elemento revelador de sua estruturação enquanto tal. A
impotência psíquica representa, segundo Freud, a principal razão que leva o sujeito à
análise. Desde o início de sua atividade clínica, desperta sua curiosidade o fato de que,
para alguns pacientes queixosos de impotência sexual, um malogro desta espécie só se
manifesta quando eles se encontram diante de determinadas pessoas, enquanto que, com
outras, nunca ocorre de tal tentativa vir a ser um insucesso. Torna-se evidente para ele,
então, que há uma característica do objeto sexual que dá origem à inibição da potência
masculina, experimentada por este sujeito como algo obstaculizante e alheio ao seu
voluntarismo.
Os casos de impotência psíquica, investigados por Freud, o levam a analisar os
processos psicossexuais envolvidos nos mesmos:
“Aqui de novo - como muito provavelmente em todas as
perturbações neuróticas - a origem da perturbação é
determinada por uma inibição na história do
desenvolvimento da libido antes que essa assuma a forma
que tomamos como sua terminação normal. Nos casos que
estamos considerando, duas correntes cuja união é
necessária para assegurar um comportamento amoroso
completamente normal,
falharam em se combinar. Podem-
se distinguir as duas como a corrente afetiva e a corrente
sensual” (1912:164, meu grifo).
106
A corrente afetiva constitui-se nos primeiros anos da infância. É formada com
base nos interesses da pulsão de auto-preservação e traz, desde o início, uma
contribuição das pulsões sexuais, de interesse erótico. Esta corrente corresponderia à
escolha de objeto primária, da criança. Mas o que vale sublinhar é a impossibilidade de
interseção inerente a estas duas correntes, conferindo ao sujeito uma cisão irrecuperável,
assim como a clara perspectiva de que não há o encontro perfeito, no que tange ao amor.
Então, a principal forma de se proteger contra esta perturbação, proteção à qual
recorrem os homens, tomados por esta divisão tão própria à esfera amorosa, vem a ser a
depreciação do objeto sexual, ao passo que ao objeto incestuoso é destinada a
supervalorização. Logo, o sujeito precisa depreciar o objeto para não se relacionar
sexualmente com aquilo que valoriza, idealiza, superestima. O idealizado só pode ser
amado, enquanto o depreciado é sensualizado. A depreciação é o preço que se paga pela
superestimação, revela Freud.
Uma vez consumada a condição de depreciação, a sensualidade pode se
expressar livremente e confere lugar para a obtenção de prazer, bem como para as
capacidades sexuais, que passam a se desenvolver. Esta direção impele Freud a retomar
o primeiro artigo desta série (acima trabalhado), alegando que podemos agora situar
melhor os motivos, ocultos sob as fantasias, que levam os meninos a degradar a mãe no
nível de uma prostituta. São esforços para, diz ele, “transpor a distância entre as duas
correntes amorosas, pelo menos em fantasia e, pela depreciação da mãe, adquiri-la
como objeto de sensualidade” (1912:167).
Conseqüência de fatores relevantes relacionados ao recalque
52
(como a fixação
infantil, a barreira do incesto e a frustração imposta pela puberdade), a impotência
psíquica é perspectivada como algo que pode ser encontrado em todos os seres humanos
civilizados, e que deve ser justificada como uma condição universal da cultura, e não
apenas como uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos. Daí o título do texto: a
tendência à depreciação é algo universal.
Causa impacto, no presente artigo, que Freud tenha podido, apesar de suas
referências curiosamente idiossincráticas, apoiar-se na experiência clínica para abordar
este elemento - a meu ver fundamental - da impossibilidade de reencontro oferecida
pelo amor. Ele, por exemplo, se preocupa em esclarecer que o prejuízo causado por uma
frustração inicial do prazer sexual se estende irrestritamente, pelo fato de que, mesmo
52
O recalque será definitivamente postulado por Freud num texto que leva este título, datado de 1915.
107
que uma liberdade seja concedida a este prazer, num momento mais tardio da vida do
sujeito (no casamento, por exemplo), ainda assim não chegará a proporcionar-lhe
satisfação completa. Se, no caso contrário, a liberdade sexual não for limitada desde o
início, o resultado não será melhor. Pois o valor psíquico das necessidades eróticas se
reduz “tão logo se tornem fáceis suas satisfações!” (1912:170). Nas palavras de Freud:
“Para intensificar a libido, se requer um obstáculo; e onde as resistências naturais à
satisfação não foram suficientes, o homem sempre ergueu outros, convencionais, a fim
de poder gozar o amor” (1912:170). Veremos logo adiante como Freud irá sacramentar
esta idéia, ao afirmar, em O tabu da virgindade (1918), a importância da proibição, para
que se torne possível ao sujeito articular o desejo, no cerne da experiência amorosa.
Portanto, qualquer investimento da libido requer um obstáculo, uma dificuldade.
Para gozar o amor, ou para que o desejo se consolide, faz-se necessária, ao sujeito, a
clara presença de um empecilho. Nos tempos em que não havia dificuldades que
impedissem a satisfação sexual (ele cita o declínio de antigas civilizações), o amor
tornava-se destituído de valor. Parece que Freud está mais uma vez se referindo ao
papel do recalque, como agente fundamental formador da cultura, bem como
estruturante do sujeito. Entretanto, a meu ver, o mais valioso desta consideração reside
na idéia de que o amor se fundamenta nesta noção de falta, e que esta falta - oriunda da
divisão imposta pelo recalque e representante do combustível através do qual qualquer
investimento amoroso pode vir a ser sancionado - será novamente frisada na experiência
amorosa. Se a libido requer um obstáculo para intensificar-se, isto significa dizer que é
quando a falta se impõe que o amor encontra campo fértil para se fazer localizar; bem
como designa, na contra-mão deste mesmo movimento, que a falta se articula e subsiste
nos meandros de qualquer escolha amorosa.
Freud irá se ocupar, ao longo de toda a sua obra, da questão paradoxal que as
restrições impostas pela cultura vêm denotar: ao mesmo tempo em que a civilização se
impõe como um empecilho ao descarrilamento dos desejos do sujeito, é exclusivamente
a ela que se deve a possibilidade de desejar. Em Totem e Tabu, texto de 1913, escrito no
meio tempo entre estes dois primeiros artigos das Contribuições à Psicologia do amor e
seu último, O tabu da virgindade (1918), Freud atesta que a proibição vem a ser o
principal elemento para a localização do desejo humano. A partir do tabu do incesto –
consumando o fato de que há uma mulher impedida, cujo acesso se encontra restringido
para o sujeito – e a partir, portanto, de uma proibição, é que o desejo se encontra apto a
se fazer representar. Este tema fora detidamente retomado por Freud anos mais tarde, no
108
texto O mal-estar na civilização (1930): só há o que possa ser desejado mediante um
objeto proibido: é como efeito de uma restrição que o desejo pode operar para o sujeito.
Ao anunciar as duas especiais características, presentes e necessárias, para que o
homem escolha uma mulher (que seja comprometida e que seja de má reputação), Freud
não está senão adiantando esta idéia de que a proibição é o elemento princeps que faz
jus ao desejo do sujeito. A tensão existente entre o proibido e a atividade sensual, tão
desconfortável para o sujeito, objeto de suas lamúrias e indignações, constitui nada
menos do que a fonte geradora de seu desejo. Isto me parece, de fato, merecedor de
destaque. Em geral, diz Freud, a importância psíquica de uma pulsão cresce em
proporção à sua frustração. O prazer sexual propriamente dito se origina numa
frustração, numa restrição. E mais tarde, quando este prazer sexual puder ser
concretamente representado (na puberdade), ainda assim não proporcionará ao sujeito
satisfação integral. Duro prognóstico para a humanidade. Novamente, trago à baila esta
questão fundamental: não há como amar e ser feliz ao mesmo tempo.
Detenhamo-nos, por instantes, num vivaz exemplo de Freud, que visa corroborar
esta idéia de que o que está em jogo é a própria natureza da pulsão, que é contrária à
realização e à satisfação completas: consideremos a relação de um beberrão com seu
objeto, o vinho. Não é admissível pensarmos que o vinho proporciona ao beberrão,
invariavelmente, a mesma satisfação? “Alguém já ouviu falar de que o beberrão seja
obrigado a trocar constantemente de bebida, porque logo enjoa de beber a mesma
coisa?” (1912:171). Ao contrário, alega Freud: o hábito constantemente reforça este
vínculo do homem com o vinho. Nunca se ouviu falar de um beberrão que precise
mudar de país (onde o vinho seja mais caro ou onde seja proibido beber), ou que
necessite criar qualquer obstáculo que seja, a fim de aumentar a satisfação que visa
obter com a bebida. Por que, então - indaga-se Freud -, a relação do amante com seu
objeto sexual será tão profundamente distinta?
Eis a sua resposta: “Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em
consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza da própria pulsão
sexual é
desfavorável à realização da satisfação completa” (1912:171, meu grifo). Não
teríamos, de antemão, a notícia, a referência, vislumbradas - embora ainda sem
contornos - de algo que só será definitivamente postulado alguns anos mais tarde
(1920), nomeado como a pulsão de morte? É verdade que a relação do sujeito com o seu
gozo (no caso, a bebida) mereceria uma discussão mais detida, pelo que comporta de
diferenças em relação à parcialidade da satisfação pulsional: uma coisa é o desejo
109
arrebatador do sujeito, quando vivenciado sem intermediação possível (numa relação
com o gozo), outra bem distinta é a restrição, imposta e reintroduzida pela castração,
deflagrada pelas situações ora descritas.
A temática do gozo na psicanálise mereceria, por si só, uma longa digressão a
respeito. Não desejo percorrê-la na presente tese, embora deva adiantar que me ocuparei
mais disso nos Capítulos 4 e 5. Saliento, no contexto desses artigos, o fato de que Freud
se reporta ao significante “desejar” para designar a possibilidade que cabe ao sujeito de
“gozar” – apenas no sentido de fruir - a experiência da sensualidade (a via sexual),
tecendo uma antítese com o significante “amar”, que estaria referido ao que o sujeito
idealiza no objeto. Os ensinamentos lacanianos certamente apontam para uma separação
entre o gozo e o desejo. Mas verificaremos, no próximo tópico, de que forma Lacan
coaduna os termos amor e desejo, estando o desejo articulado na demanda de amor.
Retomando Freud, dois fatores são destacados como os responsáveis por esta
dificuldade que confere à satisfação pulsional um caráter de incompletude, sendo o
primeiro a substituição do objeto, já tão sublinhada:
“Primeiramente, em conseqüência da irrupção bifásica da
escolha de objeto, e da interposição da barreira contra o
incesto, o objeto final da pulsão sexual
nunca mais será o
objeto original, mas apenas um sub-rogado do mesmo. A
psicanálise revelou-nos que quando o objeto original de
um impulso desejoso se perde em conseqüência do
recalque, ele se representa, freqüentemente, por uma
sucessão infindável de objetos
substitutos, nenhum dos
quais, no entanto, proporciona satisfação completa”
(1912:171, meu grifo).
O segundo fator deve-se ao fato de que “é absolutamente impossível harmonizar
os clamores de nossas pulsões sexuais com as exigências da civilização” (1912:172),
pois, como conseqüência do desenvolvimento da cultura, o sujeito é conduzido a
realizar uma renúncia, renúncia que ele obrigatoriamente deve fazer, a partir de sua
inserção na civilização. Este assunto, que, conforme abordarei no Capítulo 4, fora
tratado em O mal estar na cultura (1930), já havia também sido o tema central do
acréscimo que Freud se dispôs a oferecer à sua teoria da sexualidade, no texto Moral
sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), onde a questão da renúncia é
demonstrada com detalhes. Com Freud, ainda no presente texto, temos que “as pulsões
110
do amor são difíceis de educar; sua educação ora consegue de mais, ora de menos”
(1912:172).
O que a cultura é capaz de realizar com as pulsões amorosas é algo que custa, a
cada sujeito, uma ponderável perda de prazer. Assim, Freud sugere que possamos nos
reconciliar com a idéia de que, como corolário do desenvolvimento da cultura, a
renúncia e o sofrimento não podem ser evitados pela raça humana. Ademais, anuncia
ele, é absolutamente impossível harmonizar os clamores provenientes de nossa pulsão
sexual com as francas exigências da cultura. Assim, a persistência dos impulsos que
permanecem em atividade só pode ser experimentada, na vida sexual, sob a forma de
não-satisfação.
Se, como vimos, faz-se necessário um obstáculo, um limite para que o desejo se
localize e se faça representar, recoloca-se, portanto, o paradoxo sobre a condição do
sujeito: através do amor, ele obtém um suposto descanso, o amor é seu repouso
imaginário, mas o amor é também o que o reconduz, reiteradamente, a um encontro com
o impossível. Pois então, é preciso que o sujeito se reconcilie com esta idéia, conforme
sugere Freud. Trata-se de um bom desafio para a análise.
O último dos três artigos das Contribuições à psicologia do amor intitula-se O
tabu da virgindade (1918). Freud retoma a discussão sobre os tabus, já desenvolvida
anos antes, em Totem e tabu (1913), incluindo o especial enfoque da questão clínica da
frigidez das mulheres, de modo a traçar uma equivalência com o exame feito no artigo
anterior desta série, a respeito da impotência dos homens.
Ele se serve da tragédia de Hebbel, Judite e Holofernes, para ilustrar o
impossível do encontro sexual
53
. Judite era uma mulher cuja virgindade era protegida
por um tabu. Seu primeiro marido fora acometido por uma paralisia na noite de núpcias
e nunca mais ousou tocá-la. “Minha beleza - dizia ela - é como a beladona; seu deleite
traz a loucura e a morte” (1918:191). Certa ocasião, um garboso general se encontrava
nas cercanias de sua cidade. Ela, então, concebe um plano para seduzi-lo com sua
beleza, para em seguida destruí-lo. Depois de ser deflorada por este general cheio de
vigor e poder, ela “encontra forças na sua fúria para lhe cortar a cabeça, tornando-se
assim a libertadora de seu povo” (1918:191). A decapitação vem a ser, para Freud, o
símbolo substitutivo da castração. Desta maneira, Judite, a mulher que castra o homem
53
Esta premissa, elaborada por Lacan, será retratada no Capítulo 5. Por ora, refiro-me a ela apenas de
passagem, a fim de sublinhar o tema que estou focalizando nestes artigos freudianos.
111
que a deflorou, ilustra de forma rara este desejo, que seria na verdade, segundo ele,
análogo ao desejo de toda mulher inserida na relação sexual: o de castrar o homem.
Tomemos esta metáfora como sendo o protótipo da relação de amor: para ser
amado, é preciso contar com um outro castrado, uma vez que, como vimos, qualquer
investimento amoroso parte de uma perda, é endossado por uma falta. Ao sujeito, só é
possível amar a partir desta falta, pois é dela que parte o amor (e é ela que parte o
amor). Parafraseando Freud:
“Podemos então dizer, em conclusão, que o defloramento
não tem apenas a única e civilizada conseqüência de
amarrar a mulher permanentemente ao homem;
desencadeia, também, a reação arcaica de hostilidade para
com ele, que pode assumir formas patológicas, bastante
freqüentemente expressas no aparecimento de inibições
no lado erótico da vida marital” (1918:192, meu grifo).
Freud situa, neste contexto, a concreta observação de que segundos casamentos
tendem a ser mais bem sucedidos do que os primeiros, idéia que será retomada
posteriormente, em seus artigos a respeito do complexo de Édipo e da sexualidade
feminina. O caráter “marital” do amor, sua possibilidade de constituir um laço definitivo
e resguardado, encontra-se, aqui, sob suspeita, uma vez estando implicada a diferença
entre os sexos, já radicalmente concernida. Há, novamente, o indício do que Freud irá
sancionar como pulsão de morte: aquilo que é capaz de unir um casal é também o que
os desune, decisivamente.
O campo do matrimônio é tomado imaginariamente pelo sujeito como sendo um
terreno fértil onde todas as supostas trocas seriam felizes e factíveis. “Eu lhe completo e
você me realiza”, parece dizer cada metade do casal. Entretanto, conforme já indicado
no Capítulo 1, Lacan, no Seminário 5, situa que toda relação de amor “é constituída pelo
fato de que o sujeito dá essencialmente o que não tem. Toda a possibilidade de
introdução na ordem do amor pressupõe este signo fundamental para o sujeito, que pode
ser por ele anulado ou reconhecido como tal” (1957/8:264, meu grifo). De modo que, ao
anulá-lo, o sujeito não se entrega a outro caminho, senão o da impotência.
Freud atesta, ainda em O tabu da virgindade (1918), que o defloramento pode
ser vivenciado pela mulher como uma abrupta e obrigatória experiência de sujeição, o
que acarretaria uma frigidez. A frigidez feminina seria um corolário da dor proveniente
do ato sexual (pois o ato não corresponde às suas expectativas), assim como de uma
112
injúria narcísica experimentada pela mulher, decorrente da destruição de seu órgão (no
caso, o hímen). Daí advém o caráter hostil que a sexualidade comporta, tão bem
representado pela personagem Judite. A injúria narcísica e a perda de um órgão ilustram
notoriamente a confirmação de que, tanto para o homem quanto para a mulher há uma
falha inexorável no coração da relação sexual.
Mas, o que há de específico neste defloramento? Porque Freud o ressalta, afinal?
Ocorre que, no defloramento, há um derramamento de sangue. Há a emergência do
sangue. O “horror ao sangue”, enquanto algo que remete à origem da vida, é
evidenciado neste primeiro ato sexual, de forma que as pulsões mais primitivas vêm à
tona para o sujeito. Freud irá lembrar que o tabu ao sangue representa uma contenção,
uma proteção contra a “primitiva sede de sangue”, ânsia de matar, tão essencial ao
sujeito. Novamente nos deparamos com toda a hostilidade aí contida.
Freud situa o defloramento de maneira a salientar que a virgindade se constitui,
para a cultura da época, como um tabu (devemos nos deter nos aspectos universais
sugeridos por ele, aspectos estruturais, que são, portanto, observados
contemporaneamente na clínica). Todo e qualquer tabu, alega Freud, se justifica pelo
fato de que advém em decorrência de um perigo. Instituindo um tabu, o sujeito “não
separa o perigo material do psíquico, nem o real do imaginário” (1918:185). Toda vez,
ao longo da história, que o homem ergueu em sua cultura um tabu, é porque temia por
algo.
Assim, a primeira relação sexual de uma mulher, caracterizada por um
derramamento de sangue, exacerba um sinal real de perigo para o sujeito. Para o
homem, pontua Freud, o perigo consiste em que a relação sexual o convoca a
vislumbrar os seus próprios efeitos: de causar a flacidez de seu pênis. Note-se que
Lacan se deteve neste aspecto da flacidez do pênis, tão concernente aos meandros da
subjetividade humana, ao abordá-lo, nos Seminários 5 e 10 - a partir do que nomeou
por detumescência - como a função do resto, presente na perspectiva fálica do sujeito. O
falo em estado murcho, diz ele, está aí para nos lembrar que “o objeto cai do sujeito
essencialmente na sua relação ao desejo” (1962/3, Lição XIV:5). O falo é algo
promovido ao sujeito, mas sob a batuta de uma falta irredutível.
54
Avançando no que Freud anuncia sobre os sinais de perigo emanados da relação
sexual, para a mulher, por sua vez, há um receio generalizado, expresso em todas as
54
A falta articulada ao falo é designada por Lacan, neste contexto, como - ϕ.
113
suas regras de evitação (1918:184). Mas, então, seria a mulher, em geral, fonte de
perigos para o homem? Assevera ele:
“Talvez este receio se baseie no fato de que a mulher é
diferente do homem, eternamente incompreensível e
misteriosa, estranha, e, portanto, aparentemente hostil. O
homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado
por sua feminilidade e, então, mostrar-se ele próprio
incapaz” (1918:184).
A mulher, que, conforme veremos ao final deste capítulo, é definida por Freud
como um continente obscuro, revela, através de seu fluxo sanguíneo, a notícia da morte.
Assim, temos a exacerbação da idéia de que a sexualidade é sempre permeada,
entrecortada, visitada pela morte. A sexualidade humana é experimentada como perda,
como castração, trazendo em seu leme, desta forma ensangüentada, o encontro com o
real. Aferirei este aspecto no item 4 deste Capítulo.
Darei continuidade a esta exposição examinando, a seguir, a idéia de que este
encontro com o sexual, sempre falho, defasado e revelador de uma impossibilidade,
pode servir de abertura para a dimensão do desejo. Parto, para realizar tais
considerações, de uma interrogação proferida por Lacan, no Seminário 17: “O que é
esse desejo, que nada pode mudar, nem abrandar, quando tudo muda?” O amor,
prossegue ele, “é essa fragilidade cujo véu nós levantamos, é o amor ao que a verdade
55
esconde, e que se chama castração” (1969/70:49). O desejo, dimensão que promove a
falta, que promulga o nada enquanto tal, possui estreita relação com a castração, tal
como fora concebida por Freud, conforme estes pensamentos antes descritos nos
permitem enxergar. Mergulhemos, pois, nos meandros deste tórrido e insaciável desejo
humano.
55
Lacan situa a questão da verdade ao longo de todo o Seminário 17. Não me ocuparei desta temática,
mas vale destacar que ele a concebe sob o estatuto de ser um meio-dizer, sendo sempre apenas
parcialmente revelada pelo sujeito. Assim, o amor é postulado por Lacan, neste contexto, como aquilo
que “zomba da falta a ser da verdade” (1969/70:49).
114
3.2- Quando o amor “deixa a desejar”:
“Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada.
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.”
Vinícius de Moraes
56
Pretendo, neste tópico, ressaltar um aspecto dotado de repercussões clínicas.
Trata-se do lugar a ser conferido, pelo analista, à demanda, ou ao pedido de amor, como
sendo aquilo que possibilita a veiculação do desejo. A partir dos ensinamentos
lacanianos, é preciso considerar que a dinâmica amorosa (com seus aspectos
inconvenientes e constrangedores para o sujeito) não apenas faz parte do enredo
analítico como também constitui um meio privilegiado através do qual a operação da
análise pode se desenrolar.
Lacan, na Lição XX do Seminário 5, enfatiza esta visada clínica circunscrita ao
campo do amor. Ali, anuncia dois pontos fundamentais. O primeiro é a indicação de que
o desejo é veiculado pela demanda, de que o desejo não pode ser viabilizado sem a
demanda: é por esta e através desta via que o desejo se articula para o sujeito. O
segundo ponto revela que o desejo, por ser ele mesmo desejo do Outro, é uma dimensão
que traz consigo a presença de uma ausência radical para o sujeito, a presença da falta.
Esta falta seria, portanto, também veiculada pela demanda.
Nesta lição, Lacan se refere à dialética do desejo e da demanda, sendo estes dois
postulados como linhas intercambiáveis. O desejo, ao mesmo tempo em que representa
um “para além” da demanda, constitui-se, contudo, imbricado a ela. O desejo imiscui-se
na demanda. Conforme exposto no Capítulo 1, se o amor transferencial, configurado em
forma de demanda, evoca naturalmente uma resistência, naturalmente também, não é
sem ele que se põe a funcionar uma análise.
A demanda é designada por Lacan como sendo, sempre, um pedido de amor.
Associa-se a um plano imaginário, plano das relações especulares, da reciprocidade.
Campo no qual o sujeito se aliena, dependendo inteiramente (como uma criança
impotente) da fala do Outro. A problemática presente na transferência parece estar
subentendida aqui, uma vez que a demanda é propriamente aquilo que deflagra o início
56
Moraes, V.: Soneto do maior amor, In: Livro de Sonetos (1967:34).
115
de qualquer análise. Na demanda, há entre o sujeito e o Outro uma suposição de
correspondência. Lacan cita a relação da criança com a mãe como sendo o protótipo de
uma relação apoiada na demanda, relação entre “sujeitos dependentes”, conforme já
abordado no Capítulo 2.
Então, diz Lacan, “trata-se de ver quando e como o desejo do sujeito, alienado
na demanda, profundamente transformado pelo fato de ter de passar pela demanda, pode
e deve reintroduzir-se” (1957/8:370). Afirma, ainda, que “esta relação entre dois
sujeitos em torno da demanda, demanda ser complementada pela introdução de uma
nova dimensão” (1957/8:371), dimensão do desejo, que faça com que o sujeito seja
mais do que um sujeito dependente. Algo distinto deve então ser incluído, que venha a
garantir a originalidade e irredutibilidade do desejo do sujeito. Algo que o desloque
desta posição, dita pré-genital: “O que tem de ser introduzido, e que está ali desde o
começo, latente desde a origem, é que, além daquilo que o Outro demanda do sujeito,
deve haver a presença e a dimensão do que o Outro deseja” (1957/8:371).
Aquilo para o que Lacan nos adverte é a função desse desejo do Outro, no que
ele permite que “a verdadeira distinção entre o sujeito e o Outro se estabeleça de uma
vez por todas.” (1957/8:371). Função que promove a saída da relação especular e
recíproca com a mãe, relação pré-edípica. O desejo do Outro é, portanto, a dimensão
radical que retira o sujeito deste lugar de pedinte. E, pelo fato de o desejo do Outro ser
barrado, castrado, o sujeito necessariamente se defronta com o reconhecimento de seu
próprio desejo, também barrado. Daí o caráter vertiginoso, penoso e devassável desta
dimensão, da qual o sujeito tenta se resguardar: abrigar-se, proteger-se, visto que o
desejo do Outro o faz mergulhar na sua própria solidão - é um desejo já intermediado
pela castração, que o faz reviver as notícias da sua própria castração e o convoca a ter
que responder por si mesmo, a ter que dar o seu particular quinhão.
Portanto, o desejo do Outro, ao mesmo tempo em que relativiza a possível
completude vislumbrada pela demanda, paradoxalmente, garante ao sujeito seu lugar de
sujeito. Todavia, é fato notório da vida cotidiana, bem como é bastante clínica a
constatação do quanto cada sujeito se esforça para inebriar a dimensão do desejo.
Vejamos como e porque isso se dá, fundamentando-nos nas articulações teóricas que
Lacan realiza acerca da estrutura da histérica.
Lacan alude ao exemplo retirado do sonho da “Bela açougueira”, trabalhado por
Freud no quarto capítulo da Interpretação dos Sonhos (1900), a fim de discorrer sobre
os desfiladeiros do desejo. Eis o sonho, tal como descrito por Freud: a paciente queria
116
oferecer um jantar, mas só possuía em sua casa um pouco de salmão defumado. Era
domingo, as lojas estavam fechadas; assim, ela teve de renunciar ao seu desejo de
oferecer um jantar. Imbuída de curiosidade, ela, então, interroga Freud – que sempre
havia lhe afirmado a premissa de que os sonhos são realizações de desejos –
argumentando que, nesse caso, o seu desejo permanecera irrealizado. Freud lhe
responde, como bom analista e também bom judeu que era, devolvendo-lhe a pergunta:
quais teriam sido os elementos presentes neste sonho? E aí se deslancha a seguinte
narrativa de Freud: o marido de sua paciente, açougueiro, dissera-lhe que estava
engordando um bocado. Entre os esforços que faria para emagrecer, constava o de não
mais aceitar convites para jantar. Quanto a ela, havia muito tempo, desejava comer
caviar, mas pediu ao marido que não lhe desse caviar algum. Naturalmente o receberia,
se acaso lhe pedisse, mas fez o contrário, “de modo a poder continuar a implicar com
ele por causa disso”. O que isso quer dizer?
Com o exame deste sonho, destaca-se para Lacan a função do desejo da
histérica: é um desejo sempre, necessariamente, insatisfeito. No sonho - confirma Lacan
sobre a interpretação de Freud -, a paciente ocupava-se em criar para si um desejo
insatisfeito. Nas palavras de Lacan: “O desejo com que deparamos desde os primeiros
passos da análise, e a partir do qual se desenrola a solução do enigma, é o desejo como
insatisfeito” (1957/8:376). O enigma ao qual Lacan se refere é o enigma sustentado pelo
desejo do Outro. Esta é uma posição fundamental ocupada pelo sujeito - situado entre a
demanda e o desejo -, posição claramente delineada pelo sonho e tão presente na
estrutura histérica, uma vez que esta se encontra “suspensa na clivagem entre a demanda
e o desejo” (1957/8:376).
O que demandam as histéricas? - pergunta Lacan. Amor, responde ele. As
histéricas, assim como todos os sujeitos neuróticos, demandam amor. E o que as
histéricas desejam? Referindo-se ao exemplo do sonho, elas desejam caviar. Mas elas
também almejam, avidamente, que este caviar não lhes seja dado: pois, desta forma,
sustentam a tensão necessária à manutenção do desejo, noção que corrobora aquilo que
os artigos freudianos sobre a Psicologia do amor vêm demonstrar.
O sujeito se constitui a partir do desejo do Outro. Temos com Lacan que, “se é
necessário ao sujeito criar para si um desejo insatisfeito, é por ser esta a condição para
117
que se constitua para ele um Outro real
57
, isto é, que não seja inteiramente imanente à
satisfação recíproca da demanda, à captura inteira do desejo do sujeito pela fala do
Outro” (1957/8:377). Lacan anuncia aos analistas que, na clínica, trata-se sempre de
sublinhar o desejo para além da demanda - desejo, como vimos, não realizado. Isto
marca, segundo ele, a histeria como uma estrutura de base, que denuncia a clivagem
(spaltung) entre desejo e demanda. A histeria é tomada aqui como uma estratégia que
articula que o desejo não se realize. As histéricas, propõe Lacan, “como todo mundo,
demandam amor, só que, nelas, isso é mais incômodo”(1957/8:376). De fato, nada mais
perturbador, saliente e barulhento do que os desejos insatisfeitos. Trata-se de saber o
que é que o sujeito permitirá advir desta clivagem estrutural, tão bem encarnada pelo
desejo.
Retomando a idéia ressaltada por Lacan nesta lição, de que, na visada clínica,
este “mais além” da demanda (que o desejo comporta) está representado pelo próprio
pedido (não é veiculado sem ele), a manobra histérica, utilizada para sustentar o plano
do desejo, ainda que paradoxalmente reitere sua não realização (fato revelado pela
exigência incessante e incompleta da demanda), parece encenar isso com propriedade.
A histeria compõe-se por esta curiosa astúcia de designar ao Outro que deseje sempre
mais e mais... tal como se lhe determinasse uma boca aberta, faminta, sempre à espera.
Então, como se porta o analista, diante deste incômodo fato de estrutura? Lacan decreta:
“o sujeito histérico não sabe que não pode satisfazer-se na demanda, mas é
absolutamente essencial que, de sua parte, vocês o saibam” (1957/8:378). Concepção
que ratifica o que afirmara Freud, acerca da posição do analista na transferência: que
este deve conduzi-la na abstinência.
Assim, se todo pedido é um pedido de amor, a isto vem complementar-se a
fórmula lacaniana proferida no Seminário 8: amar é querer ser amado. Ora, esta posição,
sem sombra de dúvida, constitui o tal inferno marcadamente comprovado na experiência
do sujeito. Silvestre, em Amanhã, a psicanálise, descreve bem o que aqui designo como
inferno humano, em sua narrativa sobre o impetuoso estado amoroso para o qual é
jorrado o sujeito, na transferência:
57
Paira, sobre esta expressão, uma dúvida: Lacan estaria se referindo, neste contexto, ao registro do real,
na direção de conferir a este Outro um aspecto de impossibilidade? Ou ele estaria aludindo ao Outro real
no sentido de um Outro que se faz real, verdadeiro, para o sujeito? Decidi manter esta questão em aberto.
118
“As declarações de amor disfarçadas, alusivas,
codificadas, ou então diretas, e até mesmo impudicas; as
confissões de desconfiança, incredulidade, ou ceticismo
irônico; as petições de aberta hostilidade; os anúncios de
enfrentamento inapeláveis; as emboscadas astutas e
pacientes; o amor sabe tornar-se demanda imperiosa para
exigir, espera implorante para suplicar, reclamação
calculada para negociar. Mas é também a idéia fixa, a
enlouquecedora coerção associativa fora da sessão, o
surgimento enganador da silhueta do analista em cada
esquina, ou o eco de sua voz em cada ruído mal escutado,
a iminência de sua presença jamais realizada; o amor
torna-se perseguição, e o universo fervilha com o excesso
de seus signos” (1991:69).
Como se pode entrever, permanece aberta a goela de tudo que o sentimento de
amor pode introduzir no ser falante. Mas, por que será que o amor, recheado destes
enlaces angustiantes, presta-se a ser esta dimensão tão própria, tão fértil ao campo da
demanda? E por que será que é justamente aí, na cena amorosa, que se presentifica a
demanda para o sujeito? Parece-me que nada pode encenar tão bem, tão autenticamente
este aspecto irrealizado, como o campo do amor. Originado a partir de um ponto de
impossível, o amor vem como uma resposta ao vazio, sugerindo ao sujeito que poderia
haver, em algum lugar, um encontro perfeito... mas eis que o amor é também esta esfera
onde o caráter “guloso” do pedido se manifesta de forma voluptuosa, uma vez que não
há objeto que possa satisfazer plenamente o desejo, visto que o desejo é concernido
justamente para ser insatisfeito! Numa certa medida - utilizando-me dos termos
constitutivos com os quais estamos lidando, referentes ao exemplo do sonho trazido à
baila por Lacan - o caviar não existe senão para não ser comido; ele existe para ser
cozinhado, por assim dizer, em “banho maria”.
Pois, ao mesmo tempo em que advém com a pretensão de exercer o
preenchimento da incompletude, o amor não faz senão reacender o fogo do impossível:
fogo nada brando, ainda que temperado para durar. Assim, o amor se torna um elemento
que encarna, melhor do que qualquer outro na experiência pulsional, a posição vitalícia
de pedinte, própria do sujeito faltante (falante). Se o pedido de amor é tributário da
perda, da impossibilidade de encontro oferecida pelo significante, seu ponto de chegada
será sempre adiado, tratando-se, portanto, de um encontro irrealizável. Nesse sentido,
ratificando a analogia trazida por este sonho, o amor estaria referido a um desejo nada
minguado.
119
Retomando os artigos freudianos das Contribuições à Psicologia do amor(1910-
18), observamos ali de forma explícita uma ruptura instalada, própria do sujeito; uma
satisfação sempre intermediada, que se apresenta como defasagem, falha, deficiência.
Esta não coincidência dos objetos, exemplificada por Freud, para Lacan é estrutural,
constitutiva do sujeito, e, fundamentalmente, propiciadora do desejo. De fato, nada pode
ser mais desconcertado do que o amor entre os sujeitos neuróticos, a tomar novamente
como exemplo a “Bela açougueira”: se ela pede caviar ao marido para que este lhe seja
negado, não o faz senão para que assim eles possam, como diz Lacan, reiterando Freud,
“continuar a se amar loucamente, isto é, a implicar um com o outro, a se atazanar a
perder de vista” (1957/8:376).
Que o amor se veicule enquanto velando a castração, eis, de fato, um artifício
para o esquecimento da incompletude - constitutiva, estrutural. Mas, simultaneamente, o
estado amoroso configura-se como uma experiência que evidencia, reintroduz e relança
a castração. Para o analista, então, não é recomendável isolar a perspectiva amorosa do
campo da análise, descartá-la do enredo analítico. O analista é tentado, por vezes, pelos
mesmos motivos estruturais aos quais também está submetido, a opor com uma certa
simplicidade desejo e amor (pedido), como se um pudera dispensar o outro. A sutileza
aqui, que me parece determinante, é a sustentação de que a dimensão do amor é inerente
à do desejo; mais que isso, é a condição para que este se estabeleça. No interior da
dialética do desejo e da demanda, no ponto específico da veiculação que os concerne, é
através e apesar do pedido de amor que o desejo pode se articular.
O analista deve acolher o amor, mas não ceder a ele, pondera Freud. É
recomendável que ele não se renda aos encantos de ver-se apto a responder aos pedidos
do sujeito, sugere Lacan. Mais do que isso, e com base no exemplo do sonho da Bela
açougueira, temos a indicação clínica de que, a cada vez que o analista responde a um
pedido de amor, mais ele reacende para o sujeito a chama desta implacável fome,
subjacente, ali contida. Quanto mais oferta seus quereres ao sujeito, mais a coisa pega
fogo.
É isto que vem nos dizer a insaciabilidade da histérica. O caviar, o jantar adiado,
a dieta do marido da paciente de Freud, atestam o caráter faminto e sôfrego do desejo
humano, exacerbado na estrutura de base da histérica. Então, trata-se de entrever os
meandros deste apetite, aos cuidados de não o alimentarmos por demais, sob o jugo de
torná-lo ainda mais voraz.
120
É preciso demarcar que a direção da cura analítica, evidentemente, não se põe
ameaçada, se o analista puder suportar acolher o amor. Trata-se apenas (embora não
com simplicidade) de sustentar o que há de incendiário na transferência: tomando a
metáfora ora presente, não há outra forma de se fazer o tal cozimento em banho maria
(que evita o caviar ser devorado), ou seja, não há outro modo de propiciar ao sujeito
aceder ao seu desejo, senão acendendo este largo fogaréu.
O lastro de toda expectativa de tratamento, é bom que se repita, será sempre o
advir do sujeito frente a seu próprio desejo. Então, estas considerações não visam
realizar uma ode ao amor, mas sim abordá-lo com seu estatuto funcional: de ser uma via
privilegiada por onde o desejo pode ser articulado. O que está subjacente é a própria
estrutura da linguagem, que promove no sujeito a avidez das variações metonímicas,
sempre insuficientes.
Lembrando do artigo O tabu da virgindade (1918), Freud afirma o caráter
engolidor da mulher, frente ao homem: o horror por eles experimentado no encontro
sexual atesta veementemente a presença de uma voracidade, que o estabelecimento do
tabu visa conter.
É verdade que a entrada no campo do desejo implica, para o sujeito, em
sacrifícios no campo do amor. Freud debruçou-se sobre este tema em seus artigos sobre
Édipo e a sexualidade feminina. Em A dissolução do complexo de Édipo (1924), por
exemplo, afirmara que, nas duas possibilidades de se obter satisfação - de maneira
masculina (desejar a mãe), ou feminina (se colocar no lugar da mãe e ser amado pelo
pai) -, está vislumbrada a perda do pênis (a masculina como punição resultante e a
feminina como precondição). A satisfação do amor no campo edípico, assegura Freud,
deve custar à criança nada menos do que a subtração de seu pênis (1924:221).
Freud assevera ainda que a autoridade do pai é introjetada no eu, formando o
núcleo do supereu, perpetuando a proibição do incesto e o interdito, abrindo, assim,
caminhos para o desejo. O interessante é que este processo, ao mesmo tempo em que
preserva o órgão genital do menino (pois afasta o perigo da perda), por outro lado
paralisa-o, remove sua função (1924:221). A este afastamento do eu diante do complexo
de Édipo, Freud confere o nome de recalque. Não teríamos aqui novamente a revelação
dos embaraços da impotência psíquica, examinada no contexto da Psicologia do amor,
apresentando seu aspecto de ruptura e falha?
Com Lacan, podemos presumir que, de fato, não é possível desejar sem que isso
acarrete em sacrifícios no terreno amoroso. Portanto, é preciso ir além do amor, do amor
121
enquanto estando colado à demanda, pedido que suplica sua restituição e impede que o
sujeito se defronte com o desejo - que é sempre, como vimos, desejo do Outro. Cabe ao
analista segurar as rédeas desta via desejante, a despeito das manobras afugentadoras e
dos desvios desconcertantes que o amor sugere implantar. É preciso ir além do pedido
de amor, mas entretanto - e inevitavelmente - perpassando por ele. O amor - cuja origem
é um ponto de impossível e cuja experiência só faz reiterar o insaciável - é preciso
servir-se dele para, numa certa medida, prescindir dele.
A propósito do título deste tópico, eis porque o amor deixa sempre a desejar: por
se apresentar sempre insuficiente, ele reconstrói a falha cervical do sujeito, seus
desígnios não se completam. Mas ele também deixa o sujeito “a desejar”, pois
propriamente comporta, do alto de seu pedido, aquilo que permite reavivar o insaciável
do desejo.
122
3.3- O amor na abertura do inconsciente:
“Através de meus graves erros - que um dia eu
talvez possa mencionar sem me vangloriar deles -
é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação:
eu amo o Nada. A consciência de minha
permanente queda me leva ao amor do Nada. E
desta queda é que começo a fazer minha vida.
Com pedras ruins levanto o horror, e com horror
eu amo”.
Clarice Lispector
58
Para prosseguir a fundamentação da idéia de que o amor coloca em cena algo da
incompletude inaugural e estrutural do sujeito, incompletude esta que viabiliza o desejo,
irei me referendar nos Seminários 10 e 11 de Lacan, onde são tecidas importantes
considerações a este respeito. Vimos que, desde o Seminário 5, Lacan já havia
postulado o desejo da histérica como sendo o resultado do movimento do sujeito de
criar para si um desejo insatisfeito. É desde esta perspectiva que Lacan inicia o
Seminário 11, afirmando que o traço distintivo da histérica é precisamente este: no
movimento mesmo de falar (estando esta fala inserida no campo da linguagem, no qual
a incompletude está colocada de antemão) é que a histérica constitui o seu desejo
(1964:19).
Lembremos que foi o desejo da histérica que propiciou a abertura, feita por
Freud, das portas da dimensão clínica psicanalítica, abertura sagrada a partir do conceito
de inconsciente. A psicanálise se inaugura desde o (e por causa do) desejo da histérica,
enigma e artimanha diante dos quais Freud não esmoreceu.
Lacan, no Seminário 11, refere-se ao desejo como resultante do desejo do Outro,
como o que “é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do
Outro” (1964:203). Também teoriza que o inconsciente - aquilo que está sempre lá para
o sujeito - é determinado por uma claudicação. O inconsciente apresenta-se por uma
hiância, sempre aberta, da qual a neurose vem a se tornar uma cicatriz. Indaga Lacan: O
que é que Freud encontra no buraco, na fenda, na hiância característica do que causa o
inconsciente? E anuncia: encontra “algo que é da ordem do não-realizado” (1964:28).
Esta dimensão, adverte ele, não deve ser evocada no registro do irreal, nem do desreal,
mas sim, reafirma, no registro do não-realizado
59
.
58
Lispector, C.:A descoberta do mundo. (1984:143).
59
Ao utilizar esta expressão, Lacan parece se referir ao fato de que resta algo sobre o qual o registro do
simbólico não dá conta de significar totalmente. Algo que, por conta disso, reincide sobre o sujeito.
123
Hiância que pode ser mais bem descrita a partir do que Freud intitulou o
“umbigo dos sonhos”. Algo que permanece aberto, sem sentido, continuando
incessantemente a causar o sujeito, e cujas representações não dão conta de obliterar.
Trata-se de um “centro incógnito”, e do melhor exemplo daquilo que Lacan busca
postular como hiância (1964:28).
O que se representa do inconsciente, para Lacan, apresenta-se sempre como um
achado. E este achado “está sempre prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão
da perda” (1964:28). O inconsciente se abre para logo em seguida se fechar, numa curta
passagem à luz que perdura um instante, movimento temporalmente lógico, cujo
segundo momento, que é o do fechamento, confere a esta apreensão um caráter
evanescente. A descontinuidade é a forma essencial pela qual se apresentam os
fenômenos do inconsciente, ele se manifesta sempre “como o que vacila num corte do
sujeito – donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo” (1964:32).
Então, dado o caráter imprescindível do desejo, seu proeminente engendramento
na vida do sujeito e sua relevante presença na prática analítica, seria o desejo detentor
de um caráter ilimitado? Se, conforme exposto, o inconsciente é algo que está sempre
relançando a descontinuidade, se dele faz parte uma hiância que jamais se representa
totalmente, então o desejo é sem limites? Não!, adverte Lacan, e este é um paradigma
importante. O desejo, para a psicanálise - ao contrário do que irá predicar a psicologia
tradicional, que facilmente se debruça sobre o aspecto não-amestrável e infinito do
desejo humano – é um desejo limitado. O que a experiência da análise permite elucidar
é muito mais a função limitada do desejo, sugere Lacan. Todavia, se o desejo, por um
lado, é tido como limitado, por outro, pontua Lacan, Freud o toma como indestrutível.
Então, não seria bem esta a face do amor que cabe ao analista averiguar? O desejo
indestrutível, tal como a insistência pulsional, são os retratos mais fidedignos das
variadas possíveis manifestações, exemplarmente expressas nos movimentos do sujeito.
Ainda no Seminário 11, Lacan recorre aos termos tiquê e autômaton para
designar o estatuto do real. O real é o efeito de um encontro marcado, essencial, “ao
qual somos sempre chamados, com um real que escapole” (1964:55). A tiquê, termo
tomado emprestado do vocabulário de Aristóteles, Lacan o traduz por “encontro do
real”. Sua função é a do real como encontro, todavia, encontro enquanto podendo faltar,
sendo em sua essência um encontro faltoso. Já o autômaton seria o retorno, a volta, da
insistência dos signos comandados pelo princípio do prazer. Então a tiquê, o real, é o
que se vislumbra por trás do autômaton, e ela não pode ser confundida com os
124
elementos presentes na rememoração, ou na mera reprodução de uma conduta. Deve ser
aferida como estando ligada, isto sim, à repetição.
Esta distinção entre o lembrar e o repetir (a repetição estando para além da
lembrança), Freud havia conjeturado em 1912, no artigo Recordar, repetir e elaborar. A
repetição é aquilo que está sempre velado em uma análise, condição que vem a lançá-la
em uma posição muito diversa da transferência. De fato, é no Seminário 11 que Lacan
introduz a profícua distinção entre repetição e transferência. Não é somente pelo fato de
que o paciente repete, através do amor de transferência, que estes dois conceitos possam
ser sobrepostos. Há um real, que, em si mesmo, é marcado por determinar algo de
inassimilável. Para além daquilo que a fantasia é capaz de esconder, velar e revestir com
suas representações, o real vem demonstrar um indizível para o sujeito. Porém, o real é
aquilo que comanda as suas atividades. Podemos imaginar, assim, porque não é sem
uma boa dose de angústia que o sujeito vivencia esta perspectiva.
A experiência da perda, instalada de modo preciso na dinâmica amorosa,
consolida-se num campo no qual a angústia é inerente, campo introduzido por Lacan no
Seminário 10. De fato, as elaborações lacanianas sobre a noção de angústia comportam
a idéia de que “é do lado do real que temos que buscar a angústia, como aquilo que não
engana” (1962/3, Lição XIV:4). Se o desejo possui uma face enganadora, na medida em
que, no âmago de sua experiência, o sujeito pode se deparar com uma certa realização
deste (ainda que parcial), a angústia é descrita por Lacan como aquilo que se refere a
um resto inassimilável da operação do sujeito, resto este que, efetivamente, não se
camufla. Lacan destaca a fundamental oposição da angústia em relação ao estatuto do
medo, conforme abordado por Freud: enquanto o medo não possui um objeto, a angústia
não é sem objeto: o objeto da angústia é, precisamente, o objeto a, sendo este objeto
representativo do resto inassimilável do gozo.
No Seminário 10, delineiam-se importantes considerações sobre a relação da
angústia com o desejo. Lacan confere à angústia um tempo lógico anterior ao desejo.
Haveria, para o sujeito, três estágios, três tempos da sua operação, sendo eles,
respectivamente: o gozo, a angústia e o desejo. Partindo deste escalonamento, Lacan
avança no intuito de demonstrar a função - não mediadora, mas mediana - da angústia,
situada ali, entre o gozo e o desejo. Há, portanto, uma passagem necessária ao sujeito
para que o desejo se apresente, passagem que convoca a angústia. Isto implica em Lacan
afirmar que, através do gozo, do qual dispõe o sujeito, não se possui acesso ao Outro,
senão através deste resto, deste objeto a, que não pode, por sua vez (conforme já
125
abordado), ser definitivamente representado. Diz ele: “Ora, é justamente este dejeto,
esta queda, aquilo que resiste à significantização, o que vem a constituir-se no
fundamento como tal do sujeito desejante, não mais o sujeito do gozo (...); é aí por esta
via que o sujeito se precipita, se antecipa como desejante” (1962/3, Lição XIV:5).
Lacan confirma então que, para o sujeito, entre o seu gozo e o seu desejo, a
angústia reside como hiância fundamental. A angústia é um termo intermediário entre
gozo e desejo, enquanto que é, “franqueada a angústia, fundado sobre o tempo da
angústia que o desejo se constitui” (1962/3, Lição XIV:5). Assim, é neste contexto que
Lacan consagra a seguinte fórmula, fundamental para o tema aqui desenvolvido: “Só o
amor permite ao gozo condescender ao desejo” (1962/3, Lição XIV:8).
Que o amor represente o aspecto imaginário desta busca ao objeto, procura
incessante, fadada ao fracasso e despropositada, não lhe retira o seu propósito, aqui
sobressaltado por Lacan, de ser uma via condutora para o desejo. Caminho este que, por
estar associado ao da angústia, irá significar contundentemente a dura assertiva de que o
sujeito não ama sem uma pitada de penúria.
Nutrir uma ilusão de que o objeto um dia existiu de forma completa, e que fora
inconsoladamente perdido, remete o sujeito a uma posição de gozo. Mas é preciso
distinguir tal ponderação, numa análise. Que o suposto gozo advenha de uma
necessidade estrutural, inevitável, de imaginarizar o objeto, isto não quer dizer que
devamos, como analistas, ficar aí colados, refestelados. Pois, conforme afiança Lacan,
“propor-me como desejante, é propor-me como falta de a, e o que se trata de sustentar
no nosso propósito é isto: é que é por esta via que eu abro a porta ao gozo do meu ser”
(1962/3, Lição XIV:9).
Se o objeto da angústia é o objeto a, e se o amor é aquilo que, tal como a
angústia, faz o gozo transigir ao desejo, então o amor não é sem angústia. O que
convoca a tecer algumas considerações sobre esta dinâmica amorosa, agenciadora e
propiciadora do desejo, mas que também remete o sujeito a ter que pagar um preço, o
preço de uma perda de gozo, o custo do encontro com a sua incompletude, estampada
nas entrelinhas dos investimentos que dirige ao outro.
Parto, então, na direção de discorrer sobre um artigo freudiano onde se
imprimem as marcas deste encontro nada afortunado, encontro do sujeito com a
castração do Outro, com a porção de morte que lhe cabe, implicando assim,
sombriamente, no retorno da confirmação da sua própria castração.
126
3.4- A morte no amor:
“Não é que eu tenha medo de morrer.
Só não quero estar lá quando acontecer”.
Woody Allen
60
Neste tópico, estarei iniciando uma abordagem sobre o terreno mortífero do
amor, que se seguirá até o final desta tese. Estarei ratificando a presença da morte, que,
embora ingênua e pretensamente ignorada pelo sujeito que ama, deflagra-se como algo
constitutivo do próprio amor. Para tal, evoco um artigo no qual Freud analisa várias
situações semelhantes, em que um homem se encontraria sempre diante da escolha entre
três mulheres: O tema dos três escrínios (1913), vindo a constituir, nesta escolha, o nada
aprazível encontro com o vazio. Este pequeno artigo, surpreendente, traz sob a pena de
Freud – embora um tanto despretensiosamente – importantes elementos acerca da
posição humana diante do que viria a constituir a sua escolha amorosa, bem como o que
estaria em jogo nesta escolha: a saber, a própria morte. Considero-o uma retomada
lógica das idéias freudianas esboçadas por ocasião das formulações sobre a Psicologia
do amor, embora lhes seja cronologicamente anterior. Trata-se, ainda, de um texto
detentor de vários elementos novos, a serem também ponderados.
Freud se propõe a dissecar, a princípio, duas cenas shakespeareanas, uma
extraída de O mercador de Veneza, e a outra tomada de Rei Lear. Em O mercador de
Veneza, a bela e sábia Portia se incumbe, a pedido do pai, de esposar apenas um de seus
três pretendentes possíveis, sendo este o homem que viesse a escolher, entre os três
escrínios que ali se achavam à frente, o escrínio correto. Um escrínio era de ouro, o
outro de prata, e o outro de chumbo: o correto era aquele que possuía o retrato de Portia.
Dois pretendentes já haviam realizado as suas escolhas, mas sem sucesso: escolheram o
ouro e a prata. O terceiro, Bassanio, decide-se em favor do chumbo, e assim conquista a
noiva, a quem já amava antes mesmo de saber-se afortunado. Cada um destes três
pretendentes tem de explicitar as razões para tal escolha, através de um discurso que
louva o metal preferido, conquanto depreciando os outros dois. Desta forma, coube a
Bassanio a mais difícil tarefa: o que ele tinha a dizer sobre o chumbo obviamente não
era nada glorificador.
60
Frase retirada do livro Do Éden ao divã: Humor judaico, de M. Scliar (org).
127
Freud, então, alega que não é difícil suspeitarmos que, através deste tema antigo
(Shakespeare retira este oráculo de uma compilação medieval de histórias de autoria
desconhecida), há algo importante que merece ser interpretado, algo que concerne às
condições puramente humanas ali implicadas. O primeiro aspecto digno de nota é que
Freud realiza uma inversão, em relação às outras histórias e mitos em que se pode
encontrar o mesmo destino, ou seja, onde o assunto seria aparentemente o mesmo: a
moça escolhe entre três pretendentes. Esta inversão consiste em ressaltar que a situação
ilustra, na verdade, a posição de um homem como tendo que optar entre três mulheres
(no caso, representadas pelos escrínios), e não o contrário (a mulher como tendo que
decidir entre três pretendentes). Assim, é desde o ponto de vista masculino que Freud
tece suas importantes considerações, e por razões, a meu ver, explicitadas pela própria
dinâmica proposta pelo texto: não há como se fazer exprimir através de outro ponto de
vista senão o masculino, pois a mulher é aquilo que representa a pura presença da
morte.
Neste contexto, aproveito para esclarecer que o que pretendo sublinhar, embora
determinado por uma perspectiva masculina, na verdade se refere à posição de todo e
qualquer sujeito frente às suas escolhas amorosas. Em outras palavras, trata-se da
relação estabelecida do sujeito ao Outro.
Os escrínios, alega Freud, são como as mulheres, uma vez que estas são
simbolizadas por arcas, cofres, cestos, lugares fechados, enfim. A cena recortada de O
mercador de Veneza, portanto, revela a escolha de um homem frente a três mulheres,
esta sendo, como toda escolha, permeada pela morte.
Este mesmo conteúdo pode ser encontrado em outra cena de Shakespeare, agora
em um de seus dramas mais contundentes: O Rei Lear. O Rei decide dividir seu reino,
ainda em vida, por entre suas três filhas. Designara que o faria em proporção à
quantidade de amor que cada uma delas manifestasse por ele. As duas filhas mais
velhas, então, se rasgaram em elogios e louvores ao pai; enquanto a terceira, Cordélia,
recusara-se a fazê-lo. Em vez de reconhecer a presença do mudo amor que,
despretensiosamente, sua filha nutria por ele, e de recompensá-la, ele a repudia,
dividindo seu reino entre as duas primeiras, fato que veio a sacramentar a sua própria
ruína, bem como a ruína geral. Pergunta-se Freud: “Não é esta, mais uma vez, a cena de
uma escolha entre três mulheres, das quais a mais jovem é a melhor, a mais excelsa?”
(1913:369).
128
Assim, Freud se incumbe de destrinchar uma série de cenas, oriundas tanto dos
contos de fadas quanto da literatura, possuindo elas, nas situações evidenciadas, o
mesmo conteúdo: Cinderela (também a filha mais nova, preferida pelo príncipe à revelia
das duas outras), Psiqué (a mais bela das três irmãs, considerada como “Afrodite em
forma humana”, todavia, repudiada), etc. São distintas versões embaladas pelo mesmo
tema, qual seja, há três mulheres - sendo a terceira sempre a mais sublime - que devem
ser encaradas como estando representadas pelos três escrínios.
Ocorre que Freud constata que esta exímia terceira mulher é invariavelmente
aquela que possui uma qualidade bastante peculiar, para além de sua beleza: o
ocultamento. Cordélia, por exemplo, emudece, pois, diante do pai, ela “ama e cala”.
Cinderela, por sua vez, esconde-se do príncipe. A presença do ocultamento e da mudez,
característicos, portanto, da mulher, encontram-se, segundo Freud, insinuados no
próprio elemento chumbo. Enquanto o ouro e a prata são “gritantes”, propõe ele, o
chumbo é calado. Vale notar que a terceira mulher é sempre aquela que ganha o prêmio,
mesmo estando “oculta”.
É, então, que ele lança mão do paralelo destas escolhas amorosas com a morte.
Parafraseando-o: “Se nos decidirmos a encarar as peculiaridades de nossa ‘terceira’,
como concentradas em sua ‘mudez’, então a psicanálise nos dirá que, nos sonhos, a
mudez é uma representação comum da morte” (1913:371). Esconder-se e não ser
encontrada, tal como Cinderela, constitui o símbolo inequívoco da morte, e é com isto
que o pobre príncipe se depara. Tal como dirá respeito à morte o próprio aspecto de
palidez contido no chumbo, e também o silêncio sublinhado por Freud, que deve ser
interpretado como “sinal de se estar morto” – inclusive quando isto se dá na vida de
vigília, para além de suas aparições na produção de um sonho.
Acaso não seriam esses elementos suficientemente fortes para considerarmos a
presença de um espectro mortífero, em toda escolha de amor? Lacan, no Seminário 20,
edifica as dificuldades subsistentes no cerne da dinâmica amorosa entre o homem e uma
mulher. Afirma que aquilo que constitui o fundo da vida é o fato de que, com respeito à
relação entre os homens e as mulheres, “a coisa não vai. A coisa não vai, e todo mundo
fala disso, e uma grande parte de nossa atividade se passa a dizer isso”. No entanto, a
despeito deste fato, quanto à relação sexual, “na medida em que a coisa não vai, ela vai
assim mesmo” (1972/3:46). Os homens, as mulheres, são apenas significantes, de forma
que aquilo que um homem procura numa mulher, e vice versa, só se dá a título de
significante. Parafraseando Lacan: “Um homem procura uma mulher – isto vai lhes
129
parecer curioso – a título do que se situa pelo discurso, pois, se o que aqui coloco é
verdadeiro, isto é, que a mulher é não-toda, há sempre alguma coisa nela que escapa ao
discurso” (1972/3:46). Vemos flagrados, no artigo de Freud, esses escapes, relativos à
mulher.
Freud segue sua exposição recordando um conto de fadas de Grimm, intitulado
Os doze irmãos: um rei e uma rainha possuíam doze filhos, todos rapazes. O rei, então,
declara que, se o décimo terceiro filho for uma menina, sacrificará os doze filhos
homens. Ajudados pela mãe, os doze irmãos se refugiam numa floresta escondida e
juram de morte qualquer moça que porventura encontrem. Nasce uma menina, ela
cresce, e um dia toma conhecimento, através de sua mãe, de que tivera doze irmãos. Vai
procurá-los e, ao encontrar o mais novo, se oferece a morrer para, em sacrifício, salvar
seus doze irmãos. Mas estes a acolhem em sua casa. Um dia, ela colhe doze lírios do
jardim da casa e oferece-os aos irmãos. Neste momento eles se transformam em corvos
e desaparecem (os corvos representam a morte de seus espíritos). À moça, então, é dito
que, a fim de salvar os irmãos, deveria ficar muda por sete anos. Ela se decide a
emudecer - de certa forma a “morrer” pelos irmãos - e, após este feito, consegue, enfim,
libertá-los.
Freud mais uma vez designa esta mudez, presente também em outros contos de
fadas, como claramente representando a morte. Estas indicações, afirma ele, nos levam
a concluir que a terceira das irmãs a serem escolhidas é sempre uma “morta”. Mais que
isto, é a própria morte. A escolha entre três mulheres, feita por um homem, é sempre
livre; no entanto, incita Freud, ela recai na morte. Pois então, pode-se considerar que a
“livre escolha” de um homem por uma mulher, conforme sugerem estes exemplos, não
é propriamente uma “escolha livre”! Eis aí esboçada uma contradição, tal como
averiguada por Freud, uma vez que esta mulher apresenta-se como sendo encantadora,
bela, sábia ou leal. Contradição sim, visto que, afinal de contas, pondera ele, “ninguém
escolhe a morte e é apenas por fatalidade que se tomba vítima dela” (1913:376).
No entanto, esta contradição não lhe oferece enigma, mediante a interpretação
analítica que daí ele pode extrair. Ele novamente a situa como tendo por motivo o
próprio inconsciente, que prima por representar, num único elemento, seus pares de
opostos. Trata-se da ambivalência, tão descrita alhures por Freud (tal como fizera para
justificar a escolha do homem pela mulher de má reputação). Ele alega que a atividade
imaginativa é utilizada pelo sujeito, a fim de satisfazer os desejos que a realidade não
satisfaz. A substituição pelo oposto desejado, nestes exemplos, retorna a uma
130
“identidade primeva” (1913:377). De forma que a terceira irmã passa a ser não a morte,
mas a mais bela, a mais desejável e amada das mulheres.
De todo modo, esboça-se aí a presença concomitante do amor e da morte, essa
simultaneidade profundamente enigmática, e que me interessa ressaltar. Não podemos
deixar de nos impressionar com este pequeno texto freudiano, e suas considerações.
Façamos, entretanto, um pequeno desvio, a fim de fundamentar algumas deferências. A
mulher já havia sido descrita por Freud como um “continente obscuro”. Freud confessa
a Marie Bonaparte
61
sua perplexidade, ao concluir que, havia mais de trinta anos,
andava pesquisando a alma feminina, sem conseguir bons resultados. Foi neste contexto
que ele lhe lançou a famosa indagação: “O que quer a mulher?” Sua concepção
insatisfatória acerca da mulher levara-o a caracterizá-la como este continente
inexplorado, insondável; na verdade, algo que vem deflagrar as lacunas existentes em
sua própria teoria.
A caracterização da mulher como um continente obscuro revela o desagrado de
Freud com estas lacunas teóricas. Em 1924, ele confessa a Abraham: “o aspecto
feminino é extraordinariamente obscuro para mim”. Em 1932, escreve que seja o que
for que tivesse a dizer sobre a feminilidade, era “certamente incompleto e
fragmentário”.
62
Mas a coincidência na utilização deste termo, “obscuro”, tanto no que se refere à
conceituação sobre a mulher como no contexto desta análise que Freud realiza sobre as
cenas colhidas em O tema dos três escrínios (1913), não me é indiferente. Se a mulher é
o obscuro, a morte, não é senão por presentificar, em vida, uma parte da morte para o
sujeito, uma vez este estando submetido às suas próprias escolhas amorosas.
Assim, sob a leitura destes textos, pode-se aferir aquilo que Lacan evidencia, no
Seminário 20, para nós: a idéia de que o encontro sexual é sempre um encontro com a
morte. Notamos como a sexualidade freudiana, embora fundamentada na noção de
libido, é postulada desde sua origem como contendo desvios, buracos e hiâncias. Ela se
representa a partir de uma falta. Logo, o que um homem encontra numa mulher é a
perspectiva, na melhor das hipóteses, de que ele não pode encontrar nada ali. Trata-se
61
A princesa Marie Bonaparte fora, a partir de 1925, analisanda de Freud. Segundo este, ela sofria de
frigidez. Bonaparte permaneceu em Viena durante o período de análise, e, ao voltar para Paris,
empenhou-se em organizar o movimento psicanalítico francês. A essa altura, seu relacionamento com
Freud sofrera uma mudança, e ela passara de analisanda a sua amiga de confiança, e irrestrita benfeitora.
Suas correspondências com Freud são compostas pela interlocução acerca desta questão, que restava para
ele: “o que quer
a mulher (Was will das Weib)”?
62
Referência extraída da biografia de Freud realizada por Peter Gay.
131
da premissa lacaniana de que a relação sexual não existe
63
. Caso contrário, é a morte
mesma que ele irá encontrar. Então, o homem se posiciona deste modo, suspenso entre
estas duas alternativas: ou ele se lança ao infortunoso encontro com uma mulher (onde,
por seu próprio estatuto, reverberará a presença da morte), ou ele não toma uma mulher
como objeto de seu desejo e, com isto, é também com a morte que ele irá se confrontar.
O homem se acha, pois, apenso a essas duas escolhas. De forma que, invariavelmente,
reafirmo, sua livre escolha não é nada uma escolha livre. Está longe, distante mesmo, de
sê-lo.
Recorro à dialética sobre “a bolsa ou a vida”, analisada por Lacan no Seminário
11, para fundamentar o que se encontra exacerbado nesta escolha. Ali, não se trata de
uma opção volitiva, controlável, emanada dos quereres do sujeito. Trata-se, isto sim, de
que, na verdade, o sujeito não tem escolha. Ele é munido da incumbência de ter que
escolher entre dois destinos, inelutáveis. Se escolher a bolsa, tem a morte instaurada em
seus domínios (de que vale a bolsa sem a vida?). Se escolher a vida, tem a vida
amputada de um pedaço, presentificando, por corolário, um pedaço de morte, com o
qual ele tem inexoravelmente de se haver, uma vez que esta é a única escolha verdadeira
com a qual se pode contar. O sujeito é livre, mas apenas nesta medida: ele tem a
liberdade de morrer. Evocando novamente as Contribuições à psicologia do amor
(1910-18), acaso não podemos encontrar ali esboçado este mesmo aspecto, próprio às
escolhas amorosas? Não seria com isto que o homem se depara, a cada vez que toma,
por seu desejo, uma mulher?
Não foi à toa que Freud invertera o ponto de vista destas histórias aqui descritas,
tal como houvera feito por ocasião dos artigos sobre a Psicologia do amor, centrando no
homem, e não na mulher, a problemática essencial da escolha amorosa. Repito que, ao
sublinhar estas referências, estou me referindo ao movimento “do sujeito ao Outro”, e
não especificamente do homem à mulher. Apesar de não poder deixar de considerar que
haveria uma distinção entre estas posições: não é indiferente que se trate, aqui, do
homem propriamente dito, ainda que eu esteja sugerindo a generalização da questão,
como sendo própria de todo sujeito.
Retomando O tema dos três escrínios (1913), Freud argumenta que o que se
acha representado nestes exemplos são as três possibilidades de relação, todas
inevitáveis, que um homem pode ter com uma mulher: com a mulher que o dá à luz,
63
Lacan detém-se nesta premissa ao longo do Seminário 20, conforme irei apresentar no Capítulo 5.
132
com a mulher que será sua companheira e com a mulher que o destrói. Estas são, na
verdade, para Freud, as três formas assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de
um homem: a própria mãe, a mulher amada - que é escolhida de acordo com a
referência e o modelo materno - e a Terra mãe, onde o sujeito é recebido ao morrer. Ora,
o que se pode subentender destas afirmações, senão que, nesses encontros, faz-se
presente para o sujeito um retorno ao inanimado, manifestação, por excelência, da
pulsão de morte?
Quanto ao pai, Freud esclarece: a fim de evitar más interpretações, torna-se
necessário considerar que, no caso do Rei Lear, ele é um homem velho, e, como tal, as
três irmãs aparecem como suas filhas. Argumenta que um velho não seria capaz de
escolher entre três mulheres, de toda forma. No entanto, notemos que, apesar de
moribundo, ele ainda se encontra em posição de desejar ouvir delas o quanto é amado...
Incrivelmente, o homem condenado não se encontra disposto a renunciar ao amor destas
mulheres.
Neste ponto, farei algumas considerações acerca de uma seqüência lógica que
julgo estar contida nestes quatro artigos freudianos, descritos ao longo do presente
Capítulo. Trata-se de um percurso que tem como tema os desfiladeiros do investimento
amoroso, para o homem. A pergunta que o norteia é a seguinte: ao se dirigir a uma
mulher, o que é que o homem irá encontrar? Não seria reiteradamente a presença desse
espectro mortal?
No primeiro artigo, Um tipo especial de escolha feita pelos homens (1910),
Freud já anuncia que as características do campo do amor não são assépticas, nem
politicamente corretas, nem mesmo resolutas. Em sua concernente busca, elas estão
fadadas a caminhar em perfeita desarmonia. As escolhas do sujeito consistem em ser,
por assim dizer, meio “sujas”, mal-ajambradas, uma vez que contam com um objeto que
seja destituído de valor no campo social, e necessitando que haja em cena um terceiro
sujeito, prejudicado. Assim, o que o homem irá encontrar na mulher, ao buscá-la, é
postulado inicialmente por Freud como contendo uma certa dose de impureza.
Esta idéia torna-se veementemente declarada no texto seguinte, Sobre a
tendência universal à depreciação na esfera do amor (1912): Freud atesta que este
objeto escolhido é radicalmente maculado - há que ser assim, manchado e depreciado,
para que o sujeito possa dele gozar. Trata-se do quesito desfavorável à satisfação
completa no campo do amor, aqui representado pela falha em se combinar as duas
correntes: afetiva e sensual. Se, no primeiro artigo, ele considerava este tipo de escolha
133
pontual, restrita a casos especiais, no segundo artigo ele já indica o caráter universal
destas escolhas amorosas, irreversivelmente dotadas de lodo. Podemos pensar que o que
está em causa aqui se refere não somente ao fato de as escolhas serem provenientes de
todo sujeito, mas à condição propriamente “contaminada” de todo e qualquer objeto,
devido à sua - também inerente - cisão. Freud, aos poucos, vai encaminhando sua
exposição, alastrando o campo das escolhas amorosas, de forma a conspurcar o terreno,
à diferença de qualquer outro saber teórico que se disponha a retratar de forma “limpa”
as questões do amor. Entre o sujeito e o objeto, parece insinuar Freud, há uma poça de
lama. O sujeito da psicanálise é um sujeito “sujo”.
Pois esta “imundície” irá ganhar ainda mais espaço em seu artigo sucedâneo, O
tabu da virgindade (1918). Não podemos deixar de nos desassossegar diante do
acidente ali descrito, do desastre imputado a todo sujeito, e definitivamente trágico, da
vivência da primeira relação sexual. Um acidente com conseqüências para ambos os
sexos. Freud, tal como pondera sobre a questão do defloramento, nos adverte para esta
visada brumosa em que consiste a sexualidade humana: ela é dotada de sangue. O
derramamento de sangue, bem como o horror que a isto se segue, experimentado pelo
homem, são sinais desta inconveniência impressa à nossa espécie.
Assim, atentemos para o fato de que o que está em causa no amor é uma
abertura, uma ruptura, um rompimento, expressos em literalidade preciosa. A ruptura de
um órgão fechado, oculto, mudo e vazio, tal como descrevera Freud acerca da mulher,
ao final de sua obra. Após muito ter buscado a mulher, Freud depara-se nada menos do
que com o “buraco”.
Portanto, o que o homem encontra quando busca uma mulher é esta abertura
para o insondável, o sem-som, o silencioso do encontro amoroso. Se o que um homem
busca numa mulher é a satisfação de seus desejos, devemos também convir que o que
ele encontra é a notícia fatídica de um órgão sombrio e ensangüentado. O amor
freudiano, devemos afinal admitir, é povoado de sangue.
Esta idéia se coaduna definitivamente em O tema dos três escrínios (1913). Ali,
encontra seu ponto de chegada. Escolhi abordar este artigo em seqüência aos demais
selecionados (embora, repito, ele tenha sido escrito por Freud anteriormente ao último
dos artigos sobre a Psicologia do amor), por considerar que ele representa a culminância
daquilo que a busca do sujeito, no amor, pode vislumbrar. Como vimos, neste texto
Freud vocifera que aquilo que o homem escolhe o lançará sempre diante do oculto.
Trata-se de um exame minucioso sobre as escolhas masculinas, que, no entanto, conclui
134
o fato de que não existe, por assim dizer, a “boa” escolha. Logo, ao escolher, o homem
se depara... frente ao quê? À presença da morte.
Relembro os significantes freudianos, dali extraídos, após suas delongadas
referências à literatura e aos contos de fadas: o chumbo, o silêncio, a mudez, o
ocultamento, os lugares fechados. Este artigo prima por revelar que, diante de uma
mulher, a escolha do homem sempre irá recair na morte. Estes elementos são, conforme
expostos no decorrer do texto, associados à mulher.
Eis o percurso lógico que Freud realiza, ao longo destes quatro artigos: da
prostituta ruma a toda mulher depreciada, perpassando pelo sangue da mulher, até
encontrar, efetivamente, a morte. Estes elementos, recursos freudianos tornados
imagens, são metáforas retumbantes, que servem ao seu intuito de tentar dar conta
daquilo que está ali em causa o tempo todo: a presença do vazio, no terreno do amor.
Freud toma emprestadas estas ilustrações - retiradas de sua experiência clínica, e que
vão adquirindo força conforme ele avança em sua teoria - para tentar elaborar a seguinte
sentença anunciada: o que o sujeito encontra, quando busca o amor, é a morte. A
presença antecipada da pulsão de morte, caracterizada por ser ruptura e destruição, está
em jogo nestas relações de amor ora descritas.
Entre um homem e a mulher, encontra-se o lodo, a sujeira, e o i-mundo
64
, bem
como a rachadura, a ruptura e o vazio. São presenças circunscritas da morte, bem como
flagrantes vívidos do aspecto de divisão que a estrutura humana comporta. Nesta
direção, o amor - aquilo que é capaz de os unir, homem e mulher - seria também o
elemento mais revelador da imperativa impossibilidade de coesão que ali se insere.
Passo agora, portanto, ao exame da pulsão de morte, bem como do ódio, daí
oriundo, certamente não sem ótimas razões.
64 Lacan refere-se ao “i-mundo” para caracterizar aquilo que se opõe ao significante mundo (limpo,
claro). Este neologismo fora utilizado por ele no Seminário 17 (1969/70).
135
Capítulo 4:
A MORTE LEVA EM CARRO DE OURO
NOSSOS AMORES DEFUNTOS
65
65
Frase de Carlos Drummond de Andrade, In: O avesso das coisas (1987:105).
136
4.1: Amar é “mal-estar”:
“Sempre neste mundo haverá a luta, sem decisão
nem vitória, entre o que ama o que não há porque
existe, e o que ama o que há porque não existe.
Sempre, sempre, haverá o abismo entre o que
renega o mortal porque é mortal, e o que ama o
mortal porque desejaria que ele nunca morresse”.
Fernando Pessoa
66
Tratemos um pouco mais desse desassossego, tão próprio do campo amor. A
primeira parte do Capítulo 3 girou em torno de alguns comentários sobre a seguinte
interrogação: é possível amar e ser feliz ao mesmo tempo? Vimos como o amor
encontra-se intermediando a relação entre o gozo e o desejo, ainda que não dispensando
uma boa dose de angústia. Agora, vale colher o que Freud articulou sobre o amor
enquanto inserido na temática da felicidade, para aferir, em seguida, aquilo que o amor
carrega de mal-estar. Mal-estar este intimamente ligado à pulsão de morte.
Em O mal-estar na civilização (1930), Freud diz não conseguir descobrir em si
mesmo o “sentimento oceânico”, que lhe fora exposto por Romain Rolland: sensação
apaixonada, de eternidade, sensação ilimitada e sem fronteiras. Este sentimento
equivaleria a dizer que haveria, para o sujeito, a experimentação de um vínculo
indissolúvel, de “ser uno com o mundo externo como um todo” (1930:82). Freud afirma
que, certamente, não há nada de que possamos extrair mais certezas do que “o
sentimento de nosso eu”, que aparece como algo autônomo e unitário. Porém, esta
unidade possui uma aparência enganadora, que serve de fachada para o isso. Com
relação ao exterior, este eu apresenta-se com linhas de demarcação bastante nítidas em
relação ao isso. E então, Freud pontua:
“Há somente um estado – indiscutivelmente fora do
comum, embora não possa ser estigmatizado como
patológico – em que ele não se apresenta assim.
No auge
do sentimento de amor, a fronteira entre eu e objeto
ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus
sentidos, um homem que se ache enamorado declara que
“eu e tu” são um só, e está preparado para se conduzir
como se isso constituísse um fato” (1930:83, meu grifo).
66
Pessoa, F: Livro do desassossego (1986:235).
137
Com Lacan, a perspectiva da unidade, conferida pelo “eu e tu”, não encontra
possibilidade de alocação, de reverberação, senão imaginariamente. Freud sugere,
assim, que o amor restituiria, para o sujeito (sob a forma de ilusão, no eu), algo deste
“sentimento oceânico”, configurando-se como a restauração do narcisismo ilimitado.
Sobre o caráter sem limites do amor, Freud também o ressalta em Sexualidade feminina
(1931), artigo imediatamente sucedâneo a este: “O amor infantil é ilimitado, exige a
posse exclusiva, não se contenta com menos do que tudo!” (1931:266). Vejamos em
nome de que isso se dá.
Conforme já articulado anteriormente, o que está em jogo, na história da
constituição do sujeito é uma falta, cuja presença é sempre percebida pelo sujeito. O
amor, ou a tendência a atribuirmos a um objeto a incumbência de tornar-nos plenos,
justifica-se pelo fato da existência estrutural desta falta, que é recolocada, reavivada
pelo amor. Como reage o sujeito a partir deste fato, desta falta fundamental? A resposta
não pode ser outra: ele reage amando, por vezes alheio aos seus dissabores, perseguindo
avidamente o seu quinhão de felicidade.
Sugere Freud: “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós;
proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-
la, não podemos dispensar medidas paliativas” (1930:93). A dinâmica amorosa vem a
ser, portanto, esta medida paliativa, surgida como conseqüência das renúncias a que o
sujeito se submete, por estar vivo, por ser sexuado. O amor é novamente postulado, no
presente texto, como sendo uma satisfação substitutiva, satisfação que pode ser também
oriunda das artes, bem como da religião, e caracteriza-se por ser sempre uma ilusão
(embora isso não diminua seu nível de eficácia para o sujeito, graças ao papel que a
fantasia desempenha na vida psíquica).
Entretanto, a felicidade que os homens almejam encontrar, Freud a descreve
como episódica. O que pedem os homens da vida e o que desejam nela realizar? –
pergunta-se ele. A resposta não dá margem a dúvidas: “Esforçam-se para obter
felicidade, querem ser felizes e assim permanecer” (1930:94). Assim, o que decide o
propósito da vida é, simplesmente, o programa do princípio do prazer. Todavia, é
imanente ao sujeito perceber que as normas do universo são-lhe imensamente
contrárias... De modo que tudo seria um mar de rosas, se o aparelho em questão não
fosse o psíquico. Se alcançar o prazer e evitar o desprazer constituísse a única válvula
motora do aparelho psíquico, como explicar a aparição deste desprazer máximo, que vez
138
por outra assalta o sujeito, denominado angústia? Freud, inserido na própria dinâmica
imposta pelas articulações proferidas em O mal-estar...(1930), é levado a admitir a
existência de um para-além daquilo que intenciona o periférico programa do prazer.
Trata-se da asseveração do conceito de pulsão de morte.
A fim de examinar alguns de seus elementos, faz-se necessária uma retrospectiva
sucinta da teoria freudiana das pulsões. A princípio, Freud toma emprestada uma
expressão do poeta-filósofo Schiller: “São a fome e o amor que movem o mundo”
(1930:95). A fome, no caso, poderia de início ser compreendida como representando as
pulsões de auto-preservação, enquanto que o amor seria o representante da busca de
objetos - sendo que este último, embora voltado para os objetos, limitava-se ainda à
perspectiva da preservação da espécie: a pulsão seria tão somente a garantidora da
reprodução dos indivíduos. Para denotar a energia presente na pulsão objetal, Freud
introduziu o termo “libido”.
À medida que suas investigações prosseguiam, Freud se viu obrigado a designar
alterações fundamentais, responsáveis pela subseqüente conceituação do elemento
mortífero engendrado na dinâmica das pulsões. Pois ele pode notar que a fome,
enraizada na mais primitiva relação do bebê com o mundo que o cerca, não se ligava
estritamente ao leite materno, estando inserida numa específica intermediação com o
outro, que, para além de prover-lhe o leite, responsabiliza-se por determinar o sujeito
com seu desejo. A partir daí, qualquer função orgânica passa a estar atravessada pelo
psiquismo humano, já marcado por uma divisão constitutiva que confere a esta fome o
destino da impossibilidade de satisfação total. A insaciabilidade, conforme exposto, é
algo próprio do desejo.
O decisivo passo à frente freudiano é dado pela introdução do conceito de
narcisismo, ou seja, a descoberta de que o eu se encontra investido pela libido, sendo o
eu o reduto original de onde parte esta libido, que se dirige para os objetos, para
novamente retornar ao eu. Sendo as pulsões do eu também pulsões objetais, fato
observado pela evidência desta dinâmica narcísica, tornou-se inevitável que Freud
concedesse à sua teorização pulsional novo estatuto, a fim de evitar a seguinte
generalização (endossada, por exemplo, por Jung): de que a libido pudesse coincidir
com toda e qualquer energia pulsional.
Freud atentou, desta maneira, para o fato de que as pulsões não podiam ser todas
da mesma espécie. Virando a mesa sobre aquilo que havia conjecturado em
Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), no último
139
capítulo do texto Além do princípio do prazer (1920), ele definitivamente consagra,
através da constatação da existência da compulsão à repetição, a noção de que deveria
haver uma outra pulsão - contrária àquela que visa preservar toda substância viva e
reuni-la em uma unidade - que busca, ao seu revés, dissolvê-la. Isto equivale a dizer
que, lado a lado com Eros, há Tanatus, a presença da pulsão de morte, presença ainda
que silenciosa, operando no sentido da destruição. Estes dois modelos de pulsão,
segundo Freud, raramente se manifestam isolados um do outro, mas sim se mesclam em
variadas proporções. É desde o ponto de vista da mesclagem pulsional – asseverado por
Lacan em diversos momentos de seu ensino – que parto, a fim de examinar suas
manifestações no campo do amor.
Dois exemplos desta mesclagem, deste vínculo duplo, podem ser exemplificados
no sadismo e no masoquismo, posições adotadas pelo sujeito nas quais as tendências
libidinais e a pulsão destrutiva se coadunam, afirmando ao mesmo tempo os elementos
perigosos e hostis contidos no amor. No sadismo, alega Freud, a pulsão de morte
deforma o objetivo erótico em seu próprio sentido, ao passo que, simultaneamente,
satisfaz integralmente a pulsão erótica. A fim de distinguir a libido da energia
empregada pela pulsão de morte, Freud então classifica a primeira como uma
manifestação erótica, ou seja, exclusivamente tributária da pulsão de vida.
O princípio do prazer, conforme Freud é levado a verificar, é aquilo que fracassa
diante da repetição. A repetição da tentativa de promover o encontro absoluto, esta
também, por sua vez, malogra, pois que este encontro é impedido de agenciar-se de
modo decisivo, consumando, sempre novamente, a falta constitutiva do sujeito -
determinando o seu destino e a sua sorte. Logo, para retomar O mal-estar...(1930),
devemos ponderar que a possibilidade do sujeito de obter a felicidade não só se torna
episódica, como também é restringida por fatores derivados da própria constituição do
sujeito. Já a infelicidade, dirá Freud, esta se configura como sendo muito mais fácil de
ser experimentada.
Pois é a temática da infelicidade que conduz Freud a destacar quais seriam as
três fontes de desconforto para o sujeito, três direções a partir das quais o sofrimento o
ameaça. São elas: o próprio corpo (posto que está fadado à decadência e ao término), o
mundo externo (que pode voltar-se contra o sujeito “com forças de destruição
esmagadoras e impiedosas”), e, para finalizar, os relacionamentos com os outros
homens. Saliento este último item, uma vez que ele engloba os investimentos amorosos
feitos pelo sujeito: as relações humanas são definidas por Freud como uma via de
140
sofrimento e desprazer. Para além do corpo e da natureza, o campo das relações
amorosas caracteriza-se como sendo o mais desgastante, idéia por ele acentuada: “O
sofrimento que provém desta última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer
outro” (1930:95).
Deste modo, somos induzidos a considerar que, para Freud, o amor está muito
longe de ser um atestado de felicidade. “O inferno são os outros”, vociferara Sartre
(1944:167).
67
Donde os descaminhos experimentados pelo sujeito, a partir da
perspectiva amorosa, demarcam seu inferno pessoal e intransferível. É verdade que o
amor sexual é deliberado por Freud, neste texto, como aquilo que é capaz de
proporcionar ao sujeito uma “transbordante sensação de prazer”, oferecendo-lhe, assim,
o caminho para a busca da felicidade. Todavia, alega:
“Nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento
como quando amamos, nunca tão desamparadamente
infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou
o seu amor. Isto, porém, não liquida com a técnica de
viver baseada no valor do amor como um meio de obter
felicidade ”(1930:101).
Note-se a insistência, o caráter de teimosia pulsional, aqui destacado por Freud,
e do qual o sujeito se serve, através do amor. Mesmo sendo fonte de desconforto,
desprazer e infelicidade, ainda que constituindo o fiel representante do desamparo
(noção tão central, acentuada nas vicissitudes da pulsão de morte), o amor é persistente.
Ele não se liquida, e seus engendramentos reacendem no sujeito as esperanças de se
alcançar a felicidade. Talvez seja precisamente por isso: a teimosia do amor humano
não evidencia senão a sua mais verdadeira ligação com a da pulsão de morte, acintosa,
insistente e contumaz por definição.
Freud retoma o conceito de pulsão de morte enquanto inserido nesta
problemática da felicidade. É curioso notar como o amor se apresenta de modo
específico, nesta sua articulação: de forma a sustentar a tensão existente entre o
desamparo do sujeito e sua própria sutura. Assim, devemos perceber que o amor é uma
queimação, mas é também o ungüento. É um corte, mas é também sua costura. É a
cicatriz que deflagra aquilo que concerne tão intimamente ao sujeito: ali onde morde, o
67
Sartre, J.P.: Huis Close. In: Theátre.
141
amor também assopra; é dele que advém a queda, mas é através do amor que o sujeito
pode se reerguer... Pronto a recomeçar tudo de novo.
A pulsão de morte, contida no amor, define-se por esta teimosia revelada nos
movimentos do sujeito. O objeto lhe desaponta, e com tal intensidade que então o
desamparo lhe consome, ensandece a existência, mas, ainda assim, ele se lança
novamente ao amor, a fim de ser curado. Como se pode entrever, a infelicidade, descrita
por Freud, não é capaz de liquidar de uma vez por todas a pulsão. Assim como a
felicidade, ela é episódica. E lá se vai o sujeito, perambulando em seus desfiladeiros
pulsionais, alternando-se entre um lugar e outro, deste destino - já dito - inelutável..., de
um a outro amor.
E, entre um amor e outro, o que ele encontra é a repetição do fracasso. É o mal-
estar. Por isso, amar é mal-estar. Embora o sujeito possa contar (e como conta!) com
todo o bem-estar promovido pelo amor. “Amar é mal-estar”, na medida em que o sujeito
nunca está suficientemente “bem” no amor, e pelo fato de que, por ser o amor um
“episódio episódico”, mal ele está no amor, ele já não está mais.
Vejamos agora de que modo Freud discorre sobre a tensão entre a pulsão e a
cultura. O elemento da civilização entra em cena como a primeira tentativa de regular os
relacionamentos sociais, mas este mesmo elemento é o responsável por impor, ao
sujeito, inúmeras restrições. Os processos civilizatórios assemelham-se ao
desenvolvimento libidinal de cada indivíduo, sustenta Freud. A cultura é construída com
base numa renúncia à pulsão, conquanto ela pressupõe, exatamente, uma dose de não-
satisfação. A isto, Freud denominou “frustração cultural” (1930:118), como sendo o que
domina o grande campo dos relacionamentos entre os seres humanos. Como já fora
assinalado, esta é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar,
pois, nas palavras de Freud, “não é fácil entender como pode ser possível privar de
satisfação uma pulsão” (1930:118). Trata-se de uma tarefa laboriosa, entretanto crucial,
no tratamento analítico: a de saber o que o sujeito poderá fazer advir de seu desejo
insatisfeito.
Freud se ocupa em retomar a temática abordada em Totem e Tabu (1913), acerca
dos primórdios da constituição da cultura (que ele associa com a própria constituição do
sujeito). É curioso que ele analise, através destes dados, o aparecimento dos primeiros
laços afetivos, inseridos na estrutura da família, que formar-se-á baseada nos preceitos
dos quais a psicanálise irá se servir. É à presença do pulsional que ele se refere, quando
atesta que: “Pode-se supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido
142
um momento em que a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um
hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por
longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente”
(1930:119).
Embora ele aqui se refira à pulsão de vida, pode-se conjeturar que Freud, às
custas de muitas voltas, finalmente pôde instituir a pulsão de morte (para além das
satisfações sexuais), como um inquilino duradouro e permanente do sujeito, não mais
um visitante que possa ser dispensado, despejado. Ao contrário, é a pulsão de morte que
despeja o sujeito, vez por outra, de seu contrato egóico, tão temporário e insuficiente em
sua intenção de alojar as vastas derivações subjetivas, causadas pela pulsão. Nesse
sentido, se a felicidade e a infelicidade são acontecimentos episódicos, a pulsão, por sua
vez, vem para ficar. Mais que isso: é o sujeito que advém deste campo, vez por outra.
A cultura se baseia em restrições, impostas a fim de conservar o novo estado de
coisas, afirma Freud. Neste intuito, certos preceitos, então, tiveram de ser estabelecidos
com o propósito de constituir a vida comunitária, tendo como corolário o “poder do
amor”, que “fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a
mulher, em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada – seu filho. Eros
e Ananke (amor e necessidade) tornaram-se os pais também da civilização
humana”(1930:121)
68
. Destaca-se aqui novamente a perspectiva freudiana da perda,
estando presente desde a origem, situação da qual as relações humanas derivam, daí o
poder do amor.
Freud realiza uma digressão, com o propósito de retomar um ponto que havia
ficado em aberto sobre a questão do amor em seu artigo O futuro de uma ilusão (1927),
escrito três anos antes, e do qual o Mal-estar...(1930) é complementar. No texto de
1927, ele havia postulado que a noção aterrorizante do desamparo na infância, traz,
como conseqüência, o despertar de uma necessidade de proteção – proteção através do
amor. Esta proteção, segundo Freud, seria proporcionada pelo pai, e, uma vez que o
reconhecimento do desamparo é algo que perdura ao longo da vida do sujeito, torna-se
necessário aferrar-se à existência de um pai, sendo que “dessa vez, porém, um pai mais
poderoso” (1927:43). Este pai poderoso pode vir a ser representado por um governo
benevolente, pela ordem moral mundial, ou pela Providência divina. De toda forma, o
68
Sobre esta concepção freudiana do início da formação da cultura, Lacan confere um diferente ponto de
vista, no Seminário 17, o qual abordarei a seguir.
143
que está em evidência é um pai protetor, amoroso, instaurador de um lugar que permita
ao sujeito repousar frente ao seu desamparo e seu mal-estar.
Investiguemos esta digressão de Freud. O reconhecimento do amor como um
dos fundamentos da civilização leva-o a considerar também que o amor sexual é capaz
de proporcionar ao homem as mais intensas experiências de satisfação, oferecendo-lhe,
assim, algum acesso ao protótipo de felicidade. No entanto, esbarramos o tempo todo
com a presença, ao longo do texto, de referências que indicam que esta felicidade está
fadada a ser inalcançável, e que as relações amorosas se revertem incessantemente em
fonte de desprazer para o sujeito.
Ao buscar o caminho das relações sexuais, tornando o erotismo genital o ponto
central da vida, o homem torna-se dependente, de forma perigosa, de uma parte do
mundo externo, isto é, de seu objeto amoroso escolhido. Desta forma dependente, ele
expõe-se a um sofrimento extremo, caso venha a perder este objeto (conforme já
salientado no Capítulo 2). Então, haveria uma diferença, pontua Freud, entre o homem
comum, cujo investimento dirige-se a um objeto isolado, e aquele homem que,
protegendo-se contra a perda do objeto, desloca seu amor para “todos os homens” (ele
cita, como exemplo disto, São Francisco de Assis). Neste caso, houve uma alteração
psíquica de grande escala na função do amor. Este sujeito deslocaria o que mais valoriza
do ser amado para o “amar”, tornando-se supostamente independente da aquiescência de
seu objeto.
Acaso não podemos entrever nestas palavras de Freud a tônica contida na
distinção ressaltada por Lacan no Seminário 8, entre Éroménos e Érastes? Estaria a
dimensão do desejo colocada em jogo para este suposto sujeito, na medida em que ele
reverte, desloca-se da posição de amado para o lugar de amante? De toda forma, para
além dos termos revelados por esses exemplos freudianos extremados, não vejo a mais
remota possibilidade de algum sujeito estar afastado e distanciado a ponto de se tornar
independente da aquiescência do objeto, embora ele possa estar – é desejável que esteja
– em uma posição desejante, amante, em relação a ele.
Freud salienta que, na religião, há a presença daquilo que identificamos como
sendo uma das técnicas para a realização do princípio do prazer: a distinção entre o eu e
os objetos, ou entre os objetos propriamente ditos, é vigorosamente desprezada. Mas,
como seria possível desprezar esta diferença? A isto, portanto, Freud faz duas objeções:
“Um amor que não discrimina me parece privado de uma parte de seu próprio valor, por
fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo lugar, nem todos os homens são dignos
144
de amor” (1930:123). Tanto o amor sensual quanto aquele com sua finalidade sexual
inibida tenderiam, segundo Freud, a estender-se para o exterior, criando novos vínculos
com as pessoas. Em ambos os casos há a presença deste importante elemento, que
propriamente fundamenta a noção de amor articulada por ele neste texto: por um lado, o
amor se opõe aos interesses da cultura; ao passo que, por outro, a própria cultura
ameaça o amor com suas substanciais restrições. Há uma incompatibilidade, portanto,
entre amor e cultura, incompatibilidade por vezes rechaçada pelo sujeito, mas
inexorável a ele. Não há como fugir desta exterioridade imposta pela estrutura,
deflagrada com rigor na situação amorosa.
O resultado destas medidas restritivas infligidas pela cultura é que elas cerceiam
o gozo sexual. O acesso ao gozo, almejado pelo sujeito como irrestrito, constrange-se de
forma a tornar-se limitado (vale lembrar que, aqui, Freud conceitua a libido como
quantitativamente limitada), e isto determina o seguinte paradoxo, já examinado no
Capítulo 3: só se pode gozar a partir de uma restrição, ao mesmo tempo em que esta
restrição impõe uma barreira ao gozo.
Não é à toa que Freud conclui, acerca da impossibilidade de se obter uma
felicidade total: “As vezes, somos levados a pensar que não se trata apenas da pressão
da civilização, mas de algo da natureza da própria função, que nos nega satisfação
completa e nos incita a outros caminhos”(1930:126). Eis a presença demarcada da
pulsão de morte. Para justificar esta afirmação, Freud precisou contar com o acréscimo
de uma extensa nota de rodapé, na qual ele postula a idéia de que, pelo fato de sermos
divididos em duas metades simétricas, sendo uma feminina e outra masculina (contraste
que se desvanece no inconsciente, mas que persiste enquanto cisão), esta condição nos
levaria necessariamente a um fracasso em satisfazer ambos os interesses aí implicados.
Em suas palavras:
“Seja como for, se considerarmos verdadeiro o fato de que
todo indivíduo busca satisfazer tanto desejos masculinos
quanto femininos em sua vida sexual, ficamos preparados
para a possibilidade de que esses dois conjuntos de
exigências não sejam satisfeitos pelo mesmo objeto e que
interfiram um com o outro” (1930:127).
O trabalho freudiano calcado na experiência clínica o leva a considerar, portanto,
que há uma impossibilidade em jogo, articulada na relação amorosa. Trata-se de uma
impossibilidade estrutural, conforme a citação acima induz a considerar, uma vez que
145
este contraste entre o masculino e o feminino, articulado por Freud desde os Três
ensaios...(1905), indica uma divisão constitutiva do sujeito, a qual nenhum objeto é
capaz de aplacar. Naquele texto, ele afirma que os conceitos de “masculino” e
“feminino”, cuja compreensão corriqueira os faz parecerem tão inambíguos, são, na
verdade, bastante confusos. Devem ser empregados como “atividade” e “passividade”,
uma vez que a libido merece ser descrita como masculina, pois a pulsão é sempre ativa,
mesmo quando estabelece para si um alvo passivo.
69
Ainda em O mal-estar na cultura (1930), para Freud, de fato, as frustrações da
vida sexual são o que há de mais difícil para o neurótico tolerar. Assim, o neurótico cria,
através de seus sintomas, satisfações substitutivas; entretanto, estas também causam
problemas. Quanto a isso, ele é categórico:
“Quando um relacionamento amoroso se encontra em seu
auge, não resta lugar para qualquer outro interesse pelo
ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo;
sequer necessitam do filho que têm em comum para torná-
los felizes. Em nenhum outro caso Eros revela tão
claramente o âmago do seu ser, o seu intuito de,
de mais
de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso de
maneira proverbial, ou seja, através do amor de dois seres
humanos,
recusa-se a ir além” (1930:129, meu grifo).
Imaginemos uma cultura largamente dotada de casos como este: “indivíduos
duplos” (na expressão de Freud), que, libidinalmente satisfeitos em si mesmos, se
vinculem desta forma especialmente unívoca e auto-suficiente em torno de seus
interesses em comum. Se assim fosse, sugere Freud, “a civilização não teria que extrair
energia alguma da sexualidade” (1930:130). Entretanto, prossegue ele, este tão
almejado estado de coisas não é capaz de existir, nem mesmo nunca existiu! De modo
que podemos nos tranqüilizar: há a intranqüilidade estrutural, inerente à cultura e ao
sujeito, que está longe de subsistir, de recusar-se a sempre, e sempre mais um
pouquinho, ir além. Eros, ao encontrar-se proverbialmente com a sua metade perdida,
recusar-se-ia a caminhar avante; neste caso, seria o triunfo cabal da pulsão de morte, e
não haveria sujeito algum para contar a história. É verdade que a cultura constitui-se,
segundo Freud, por visar unir seus membros de maneira libidinal, através das
identificações e dos laços comunais, mas, contudo, isso se dá sempre de modo
69
Freud, S.: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905:207). Nota acrescentada ao texto em 1915.
146
embaralhado. Pois, para tal, faz-se tanto inevitável quanto imprescindível uma certa
restrição à vida sexual, inerente a esta operação, conforme já abordado.
É no contexto deste exame que Freud, então, tece ácida crítica ao mandamento
ideal: “amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Farei algumas considerações sobre
isto, a fim de introduzir o próximo tópico, no qual discorrerei sobre a temática do ódio.
Freud nos adverte que este mandamento só se justifica, enquanto mandamento, pelo fato
de que nada além disso vai tão radicalmente contra a natureza humana. A cultura,
habitada pela natureza humana - hostil - Freud a põe em xeque.
Certamente, se o que está posto para o sujeito frente ao encontro com o outro
sexo é um vazio, ou a morte, este “próximo”, este semelhante - que o mandamento
sugere que seja amado - não faz senão reacender para o sujeito a mais cabal
dessemelhança. O amor ao próximo, assim, não consiste senão em evidenciar uma
definitiva impossibilidade.
No Seminário 7, Lacan adverte que, ao horrorizar-se diante do mandamento
“amarás o teu próximo como a ti mesmo”, Freud indica que talvez seja justamente ao
tomarmos esta via que percamos o acesso ao nosso gozo. O horror de Freud não se deve
àquilo que o amor perspectiva, isto é, oferecer certa suplência ao que já é, por natureza,
descerrado (a pulsão de morte), mas à constatação de que há uma impossibilidade
imiscuída no amor, fenda aberta que, na proximidade com o outro, o sujeito é
convocado a experimentar. Pois, da presença do próximo, pode-se extrair uma “maldade
profunda” que nele coabita, vindo a deflagrar a existência desta mesma maldade
também no interior do sujeito. Indaga Lacan:
“E o que me é mais próximo do que este âmago em mim
mesmo, que é o de meu gozo, do que não me ouso
aproximar? Pois assim que me aproximo – é esse o
sentido do Mal-estar na civilização – surge essa
insondável agressividade diante da qual eu recuo, que
retorno contra mim, e que vem (...) dar seu peso ao que
me impede de transpor uma certa fronteira no limite da
Coisa” (1959/60:227).
Deve-se destacar, mais uma vez, o quanto está colocada em causa, na relação
entre o sujeito e o Outro, a presença de um espectro mortal. Por um lado, conferimos a
este outro, imaginariamente, a incumbência de nos salvaguardar do desamparo em que
147
estamos submersos, das vicissitudes pulsionais a que estamos submetidos, dos
infindáveis enigmas a que somos jorrados por conta daquilo que o simbólico não nos
permite, suficientemente, dissolver. Por outro, defrontamo-nos reincidentemente com o
real, com algo que sempre resta desta operação irresoluta, de forma que é isto que a
presença do outro nos revela, no plano mais radical de nossa estrutura.
Eis a direção, o sentido que pôde conferir Lacan, ainda no Seminário 7, para o
amor ao próximo: “O gozo do meu próximo, seu gozo nocivo, seu gozo maligno, é ele
que se propõe como verdadeiro problema para o meu amor” (1959/60:229). Assim, não
foi à toa que Freud se horrorizou, diante de tal mandamento: trata-se de ter podido
avistar propriamente o horror, ali concernido. A exigência deste mandamento, embora
Freud a localize como anterior ao cristianismo, permanece sendo estranha à
humanidade, isto porque, tendo-se elucidado o aspecto mortífero ali contido, ninguém,
em sã consciência, há de desejar faceá-la. Então, qual seria o sentido de tal preceito –
indaga Freud – se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável? Por que
devemos amar um estranho? (Freud pondera que o mandamento não se refere ao amor
às pessoas que fazem parte de nossas escolhas objetais, mas ao semelhante, ao
desconhecido - 1930:131). Então, ele articula que não somente este outro - um estranho
- é indigno do amor proveniente do sujeito, como também ele está mais fadado a receber
deste, isto sim, a sua hostilidade - e até mesmo seu ódio.
Enuncia Freud: “Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e
que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre
cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade”(1930:133). Esta agressividade, elemento que tanto problematiza as
relações humanas, tornando-as mais perturbadas, é também o que ameaça a própria
cultura, por sua presença desintegradora. A hostilidade é postulada como primitiva,
sobrepujando qualquer interesse em comum que possa fazer o papel inverso, de união:
“As paixões pulsionais são mais fortes que os interesses razoáveis”, argumenta Freud
(1930:134).
A agressividade, destrutiva em sua essência, aqui é formulada como anterior à
cultura, presente desde os primórdios da atividade psíquica do sujeito, não podendo ser
aplacada por qualquer sistema econômico ou social que venha a proclamar a igualdade
entre os homens. Não há economia ou modelo social, diz Freud, que dê conta das
diferenças intrínsecas à estrutura humana que nos constitui, à qual estamos submetidos e
148
que nos confere um desígnio no qual as pulsões, por si mesmas, não são capazes de
serem plenamente satisfeitas.
A agressividade compõe a base de toda relação de afeto e amor entre as pessoas:
“Se eliminamos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no
campo dos relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais
intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspectos,
se encontram em pé de igualdade” (1930:135). A natureza, prossegue Freud, “por dotar
os indivíduos com atributos físicos e capacidades psíquicas extremamente desiguais,
introduziu injustiças contra as quais não há remédio” (1930:135). Conforme ele já havia
ilustrado em Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos
(1925), os males inexoráveis, advindos da cicatriz adquirida pela constatação da
diferença inaugural entre os semelhantes, são, de fato, irremediáveis.
Desse modo, ele realiza um acréscimo à postulação de que a cultura é algo que
atende de forma inadequada às exigências humanas de um plano de vida que nos torne
felizes: não se trata somente de um sacrifício imposto ao campo da sexualidade, mas
também de um sacrifício dirigido a esta pulsão agressiva, que nos demanda a difícil
tarefa da tolerância. Devemos ser capazes de, em certa medida, domar nossa pulsão
destrutiva, em nome da preservação da cultura; e, porque não dizer (reavendo o paralelo
que ele mesmo propôs), em nome também da sobrevivência psíquica do sujeito. Mas,
Freud termina o artigo O mal-estar na cultura (1930) interrogando: até que ponto
conseguimos?
A difícil tarefa da tolerância admite o seguinte ponto crucial, mais determinante
inclusive do que as diferenças entre os sujeitos, impostas pela natureza: o fato de que a
proximidade do outro esbarra na hostilidade do próprio sujeito, que ele se recusa a
facear. Pois o que se descortina nestas circunstâncias é o ódio, constitutivo do sujeito,
ódio do qual ele prefere não saber - ainda que muitos dediquem suas vidas inteiras a
vivenciá-lo.
Remeto, a fim concluir este tópico sob a égide da temática da tolerância, ao
exemplo schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, aludido por Freud em
Psicologia das massas e análise do eu (1920), a propósito da natureza das relações
emocionais que coabitam os homens em geral. Eles se apinham em certo dia de inverno,
salvando-se da morte e do congelamento, um aproveitando o calor emanado do outro.
Logo, porém, sentem-se incomodados pelos espinhos, de forma a serem conduzidos a se
149
afastar. Ficam assim, indefinidamente, impulsionando-se para trás e para frente, de um
problema para outro, visto que...
“Nenhum deles pode tolerar uma aproximação demasiado
íntima com o próximo. As provas da psicanálise
demonstram que quase toda relação emocional íntima
entre duas pessoas, que perdura por certo tempo -
casamento, amizade, as relações entre pais e filhos -
contém um sedimento de sentimentos de aversão e
hostilidade, o qual só escapa à percepção em
conseqüência do recalque” (1920:128).
É como nos revela o chiste popular: “Como é que dois porcos espinhos fazem
amor? Com muito, muito cuidado...”. São inumeráveis os vai-e-vem desse espinhoso
movimento chamado amor – guardada a sua porção odiosa, sobre a qual me dedicarei a
explanar um pouco mais, a seguir.
Ao sujeito, está lançada a mesma sorte que a dos porcos-espinhos: ao acalentar-
se junto ao outro, depara-se com a brasa incômoda deste ardente fogo, proveniente da
proximidade larval que faz despontar a sua mais incinerada hostilidade. Todavia, ao
afugentar-se deste calor, ao procurar evitá-lo ou elidi-lo, corre o risco de congelar-se,
solidificando seu desalento num derradeiro entorpecimento: a consumação, por
excelência, da impotência psíquica.
150
4.2- Do ódio do amor:
“Eu te amo
Mas, porque
inexplicavelmente
Amo em ti algo
mais do que tu -
o objeto a minúsculo,
Eu te mutilo”.
J. Lacan
70
Este contexto de hostilidade abordado por Freud em O mal-estar na civilização
(1930) permite localizar a relação entre o amor e o ódio, que já havia sido indicada por
ele anteriormente, em Pulsão e seus destinos (1915). Este assunto fora retratado por
Lacan em vários de seus Seminários, a citar aqueles nos quais irei, por ora, me
referendar: 1, 5, 7, 17 e 20. O ódio – par romântico inseparável do amor, ainda que
dotado de uma face azeda e cítrica – é postulado por vezes como anterior, por vezes
simultâneo (na ambivalência), e em outros momentos advindo como conseqüência do
amor. Pretendo rastrear as referências que permitem revelar alguns elementos do ódio,
tal como fora elaborado por Freud e Lacan, uma vez que elas nos conduzem ao ponto
central do que estou buscando circunscrever, isto é, a idéia de que tanto o amor quanto o
ódio são determinados por uma falta, constitutiva do sujeito.
O ódio é caracterizado, em específicos momentos da obra de Freud, como um
sentimento mais antigo que o amor, cuja fonte reside na obtenção do desprazer,
perturbando o equilíbrio energético experimentado pelo sujeito; ao contrário do amor,
que se destaca por ser uma fonte geradora de prazer ao próprio organismo. Assim, tal
como sugere Freud, no início, estava o desprazer. Originalmente, o que há para o sujeito
é o incômodo e perturbador sentimento de ódio.
Em O mal-estar na civilização (1930), ao considerar a tendência à agressividade,
Freud determina que esta inclinação “constitui, no homem, uma disposição pulsional
original e auto-subsistente”, vindo a caracterizar-se como o maior empecilho para o
desenvolvimento da cultura. Esta última se prestaria a estar a serviço de Eros, cujo
propósito é a união. No entanto, a natural e primitiva pulsão de morte, bem como sua
hostilidade, aí imbricada, se opõe radicalmente a este programa da cultura. Qualquer
vínculo promovido pela dinâmica amorosa passa a estar, portanto, sob suspeita:
70
Lacan J.: Seminário 11 (1964:249).
151
apresenta-se como insuficiente. Freud correlaciona a agressividade com a pulsão de
morte, tanto original e primitiva, quanto inesgotável.
No texto Pulsão e seus destinos (1915), Freud realiza uma detalhada descrição
sobre a ambivalência amor x ódio. Apontando quais seriam as vicissitudes, os destinos
possíveis da pulsão, designa que um deles seria “a reversão ao oposto”. Isto significa
que há uma mudança da atividade para a passividade, e uma reversão do conteúdo da
pulsão, algo que somente pode ser observado, segundo Freud, neste exemplo isolado: a
transformação do amor em ódio. É particularmente comum, alega ele, encontrarmos
ambos dirigidos simultaneamente para o mesmo objeto, sendo esta coexistência o
modelo mais importante daquilo que ele irá denominar como ambivalência. “É
impossível duvidar que exista a mais íntima das relações entre esses dois sentimentos
opostos e a vida sexual” (1915:154), afirma, embora considere que tenhamos a
tendência a concluir que somente o amor constituiria um componente da sexualidade.
Preferiríamos achar que unicamente o amor seria o bastante para expressar aquilo de
que se trata no terreno sexual; entretanto, pondera Freud, esta idéia não elucida
suficientemente as dificuldades que aí se manifestam.
O amor, segundo Freud, ainda em Pulsão e seus destinos (1915), não admite
apenas um, mas três opostos. Além desta antítese ora descrita, entre amar e odiar, há
também a antítese entre amar e ser amado. Ademais, o amar e o odiar, considerados em
conjunto, constituiriam o oposto da condição de desinteresse, ou seja, de indiferença. De
maneira esquemática, Freud caracteriza assim os chamados “três opostos do amar”: 1)
O odiar; 2) O ser amado; 3) A indiferença.
71
Detenhamo-nos por um instante na questão da anterioridade do ódio, tal como
fora elaborada neste artigo freudiano: “Não se pode negar que o odiar, originalmente,
caracterizou a relação entre o eu e o mundo externo alheio com os estímulos que
introduz. (...) Logo no começo, ao que parece, o mundo externo, os objetos e o que é
odiado são idênticos”(1915:158). Se, posteriormente, os objetos vêm adquirir a
possibilidade de se tornarem uma fonte de prazer (e é, de fato, como ocorre), este objeto
amado é, ao mesmo tempo, incorporado pelo eu (tal como no narcisismo), de modo que,
lado a lado com o “eu do prazer purificado”, os objetos do amor coincidem com aquilo
que foi, a princípio, estranho e odiado.
71
Lacan elabora este tema a partir de um ponto de vista diferente. Ele compõe um esquema para aquilo
que denomina as “três paixões fundamentais” do ser: 1) Na junção do simbólico e do imaginário, esta
fenda, esta aresta, que se chama amor; 2) Na junção do imaginário e do real, o ódio; e 3) Na junção do
real e do simbólico, a ignorância. Seminário 1 (1953/4:308).
152
Quando a fase narcísica cede lugar à fase objetal, o prazer e o desprazer povoam
as relações entre o eu e o objeto. Por esse objeto ser fonte de prazer ou de desprazer,
neste último caso, a tendência do eu será a de afastar-se do objeto provedor de
sensações desagradáveis. Nas palavras de Freud: “Sentimos a repulsão do objeto, e o
odiamos; esse ódio pode depois intensificar-se ao ponto de uma inclinação agressiva
conta o objeto – uma intenção de destruí-lo” (1915:158). Se, segundo as considerações
freudianas, o ódio existe desde o princípio, de modo primitivo, sendo constitutivo do
sujeito, por outro lado, o ódio também é aquilo no qual o amor tende a reverter-se, como
efeito de uma frustração com o objeto que venha a desempenhar uma função
desprazerosa:
“O eu odeia, abomina e persegue, com intenção de
destruir, todos os objetos que constituem uma fonte de
sensação desagradável para ele, sem levar em conta que
significam uma frustração quer da satisfação sexual, quer
da satisfação das necessidades de auto-preservação”
(1915:160).
Segundo indicam estas referências, o amor, originalmente narcísico, passa
somente depois a tomar a forma do investimento objetal, ou seja, ele vincula-se a
atividades pulsionais ulteriores. Já o ódio tem como sua fonte as pulsões de auto-
preservação, e provém de um repúdio primordial do eu narcísico para com o mundo
externo, sendo uma expressão da reação de desprazer promovida pelos objetos. Afora
isso, ele irá se manifestar de modo a constituir a oposição mesclada ao amor. Afirma
Freud: “Se uma relação com um dado objeto for rompida, freqüentemente o ódio surgirá
em seu lugar, de modo que temos a impressão de uma transformação do amor em ódio”
(1915:161).
Então, se, constitutivamente, o ódio vem primeiro, por outro lado ele desponta
como o resultado da constatação de uma deficiência do Outro em suprir aquilo que o
sujeito lhe demanda. De fato, em seu artigo Sexualidade feminina (1931), bem como na
conferência sobre a Feminilidade (1933), Freud, no ponto mais distante em que suas
considerações acerca da mulher puderam chegar, afirma que, em razão do complexo de
Édipo, a relação da mulher com o seu primeiro objeto de amor - a mãe, cujo amor Freud
descreve como incomensurável - termina em franco ódio (1931:150). A menina se
afasta da mãe por esta ter falhado cabalmente: não lhe deu um órgão completo, não lhe
153
deu leite suficiente, compeliu-lhe a compartilhar seu amor com outros, nunca atendeu às
suas tenazes expectativas de amor e, finalmente, de início despertou a sua atividade
sexual para depois a proibir. Há um dano imputado ao sujeito, no cerne do desfecho
edípico, dano este irrecuperável segundo Freud, e que passa a ser acompanhado por
manifestações de hostilidade dirigidas aos objetos subseqüentes.
Assim, as relações amorosas caracterizam-se por conterem uma mesclagem com
o ódio, determinando para o sujeito a experiência de que, a cada encontro não realizado,
a cada investimento não correspondido, a cada desejo não satisfeito, o que se lhe
desponta é o mais primitivo e chamuscante ódio. Se o amor não permite sanar a falta
irrecuperável do sujeito, em concomitância, o que se deflagra é uma profunda
hostilidade dirigida ao objeto. Mas esta mesclagem não é algo tão simples de se
elucidar. Vejamos como a complexidade deste movimento encontra-se inserida e
alocada na própria elaboração lacaniana da noção de desejo.
O desejo, em si mesmo, Lacan o classifica como aquilo que comporta algo de
destrutivo para o sujeito. Trata-se de aferir que o desejo parte de uma defasagem
intrínseca à sua operação, que ele surge de uma discrepância, notada pelo sujeito em
relação ao Outro, sendo justamente devido a esta diferença que o desejo pode vir a se
articular. Lacan, no Seminário 5, pontua a estreita relação entre o desejo e o Outro.
Apesar de o desejo negar o Outro como tal - sendo isso que torna, por vezes, o desejo
intolerável -, é da natureza do desejo necessitar do apoio do Outro. “O desejo do Outro
não é uma via de acesso para o desejo do sujeito, é o lugar puro e simples do desejo”,
atesta Lacan (1957/8:415). Por isso é que, vez por outra, o sujeito irá rumar na direção
de evitá-lo, pois ocorre que este Outro, lugar que consiste e insiste em revelar-se para o
sujeito como pura queda, irá assinalar-lhe a sua própria derrisão.
Assim, o sujeito se encontra, por vezes, em posição de suspensão. Tornam-se
flagrantes as suas dificuldades de apropriar-se do seu desejo, uma vez que este traz de
lambuja a marca da falta do Outro, reverberando a falha particular do sujeito.
Destacando as especificidades da estrutura obsessiva, Lacan designa que o problema do
obsessivo está em “dar um suporte a este desejo – o que, para ele, condiciona a
destruição do Outro, onde o próprio desejo vem a desaparecer” (1957/8:415). Todo o
embaraço deste sujeito está em encontrar para o seu desejo algo que lhe dê a aparência
de um apoio, empreendimento realizado sem grandes esforços pela histérica. Se o
desejo, para o obsessivo, só pode se afirmar ao preço da destituição do Outro, visto que
é a condição imposta por sua estrutura, o que se nota é a derrocada, ou, na melhor das
154
hipóteses, a suspensão do seu desejo. Mas, poderíamos indagar, por que é daí que
provém a violência, o ódio?
No Seminário 20, Lacan empreende algumas considerações sobre o ódio que vão
mais além destas, proferidas por ocasião do Seminário 5 (que atestam a idéia de que o
ódio se encaminha na direção de assemelhar-se a uma destruição). O ódio, diz ele em
Mais, ainda, não é apenas querer o mal do outro - isto seria destruí-lo. O ódio, a
maldade, é aquilo que cai mal quando se quer o bem do outro e as coisas dão
infalivelmente errado, pois o outro não quer saber do ser do sujeito sabendo seu bem.
Neste sentido, articulado de modo irredutível com aquilo que vai mal no campo das
relações humanas, o ódio surge quando um sujeito quer o bem do outro, estando
imiscuído, irreversivelmente, ao amor. Isto conduz Lacan a postular que “o verdadeiro
amor desemboca em ódio” (1972/3:121-135).
Lacan cria, para designar a estreita relação entre amor e ódio, o neologismo
“odienamoramento”, ou “amódio” (hainamoration): um enamoramento feito de ódio e
de amor. Toda análise, inclusive, afirma ele, nos incita a este lembrete: de que não há
amor sem ódio (1972/3:122). As formulações lacanianas articuladas neste Seminário 20
dão conta de notificar que ele se refere ao ódio como aquilo que anuncia a presença de
um real na experiência do sujeito, ódio ao Outro radical, que revivifica a existência da
pulsão de morte. Neste sentido, devemos ressaltar a distinção entre este ódio real ao
Outro e o ódio da rivalidade, imaginário, que sustenta algumas de suas considerações
anteriores.
Lacan fundamentara, no Seminário 5, as questões ligadas ao ódio como estando
inseridas nas particularidades da estrutura obsessiva. No entanto, não pretendo entrar
nas especificidades desta estrutura, mas sim sublinhar as características do ódio naquilo
que perspectivam algo de universal para o sujeito. Eis o que sublinho, após estas
referências: o ódio vem em primeiro lugar, ele é inerente ao sujeito, resultado de sua
hostilidade basal para com o Outro – este Outro que tanto o constitui quanto o priva da
completude totalizante. No entanto, o ódio também é conseqüência da frustração do
sujeito diante deste Outro que, sobremaneira, não lhe confere o arredondamento
almejado. Assim, o ódio original é o ódio ao Outro, este que Freud propriamente aloca
no interior do conceito de pulsão de morte; distinguindo-se do ódio subseqüente,
derivado das relações objetais estabelecidas posteriormente, o ódio ao
outro, ao rival, ao
semelhante. Mas o fato é que ambos permeiam – lado a lado com o amor –
pontualmente, mas de modo decisivo, as relações humanas. Mesclam-se, misturam-se e
155
confundem-se, a cada demanda de encontro, dirigida pelo sujeito ao outro. Eis sua real
ambivalência, embora Lacan se levante contra este termo, chamado por ele de
“bastardo”, alegando que o que está em jogo para a psicanálise é o relevo que o
neologismo hainamoration permite introduzir, para nele inscrever a zona de sua
experiência (1972/3:122).
Vale lembrar que a ambivalência amor x ódio já havia sido mencionada também
por ocasião dos artigos freudianos sobre a transferência (1912, e seguintes). Freud
tomara emprestado de Bleuler o termo ambivalência, após uma conferência realizada
por este em Berna (1910), para designar tal situação. Ali, conjectura que há duas
manifestações possíveis para o laço transferencial: a transferência positiva e a
transferência negativa; sendo a primeira fonte de sentimentos amorosos, ternos e
eróticos (estes, inconscientes), destinados à figura do analista, e a segunda estando
permeada de sentimentos de hostilidade e agressividade. Observamos a miscigenação
implicada nestes sentimentos, no contexto da situação transferencial.
Nos comentários acerca do Homem dos ratos
72
, Freud situa lado a lado a
oposição entre amor e ódio, bem como a oposição entre o pai do paciente e sua amada,
designando a esfera conflitante que estaria em evidência: “Em nosso paciente, os
conflitos afetivos, que enumeramos um a um, não são contudo independentes uns dos
outros; estão fundidos em pares. Seu ódio pela dama se soma a seu apego ao pai, e vice-
versa” (1919:239). Há uma contradição entre ódio e amor, em cada uma das relações
estabelecidas por este paciente. A fim de situar esta luta travada entre amor e ódio pelo
homem dos ratos, conquanto experimentados por uma mesma pessoa, Freud sentencia:
“Sabemos que o amor incipiente com freqüência é
percebido como o próprio ódio, e que o amor, se se lhe
nega satisfação, pode, com facilidade, ser parcialmente
convertido em ódio. Os poetas nos dizem que nos mais
tempestuosos estádios do amor os dois sentimentos
opostos podem subsistir lado a lado, por algum tempo,
ainda que em rivalidade recíproca. Mas a coexistência
crônica de amor e ódio, ambos dirigidos para a mesma
pessoa e ambos com o mesmo elevadíssimo grau de
intensidade, não pode deixar de assombrar-nos. Seria de
esperar que o amor apaixonado tivesse, há muito tempo
atrás, conquistado o ódio ou por ele sido absorvido. E,
com efeito, uma tal sobrevivência protelada dos dois
opostos só é possível sob condições psicológicas bastante
72
Freud,S.: Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1919).
156
peculiares e com a cooperação do estado de coisas
presentes no inconsciente. O amor não conseguiu
extinguir o ódio, mas apenas reprimi-lo no inconsciente; e
no inconsciente o ódio, protegido do perigo de ser
destruído pelas operações do consciente, é capaz de
persistir e, até mesmo, de crescer” (1919:239).
O amor não apenas é incapaz de extinguir o ódio, como também este último
tende a ser alimentado, a cada desencontro promovido pela defasagem que está em jogo
neste movimento do sujeito, de demandar ao objeto. Então, se, no ódio, trata-se de
evitar ou até mesmo repelir a presença desconcertante do Outro, deteriorar este Outro,
estaria o sujeito livre, imune de tal destino incômodo, se acaso conseguisse afastar-se
deste objeto hostilizado? Não é tão simples assim, conforme aponta Lacan, no
Seminário 1:
“Aí mesmo, a dimensão imaginária é enquadrada pela
relação simbólica, e é por isso que o ódio não se satisfaz
com o desaparecimento do adversário. Se o amor aspira
ao ser do outro, o ódio quer o contrário, seja o seu
rebaixamento, seja a sua desorientação, o seu desvio, o
seu delírio, a sua negação detalhada, a sua subversão. É
nisso que o ódio, como o amor, é uma carreira sem limite”
(1953/4:316).
Amor e ódio, carreiras sem limite, são sentimentos que resultam da presença
constitutiva do Outro nos domínios do sujeito, não podendo ser facilmente descartados.
O amor vislumbra o ser do Outro; o ódio, sua destituição, sua sentença de morte, sua
derrisão. Esta citação lacaniana nos permite averiguar porque, afinal, amor e ódio são
parceiros tão inseparáveis: se, deste Outro, do qual o sujeito espera uma resposta, ele só
obtém a parcialidade dos meio-dizeres, isto irá desdobrar-se, reverter-se no mais
profundo ódio, no forte intuito de rebaixar este Outro. Há uma dimensão imaginária no
ódio, uma vez que este rebaixamento é um pólo da mesma estrutura, a outra metade da
mesma moeda, o outro lado desta mesma esfera cortada que induz o sujeito a depositar,
no outro, uma certa fascinação. Assim como o amor, o ódio destina para o sujeito
algumas “vias da realização do ser - não a realização do ser, mas somente suas vias”
(1953/4:316).
Neste contexto, Lacan afirma ainda que, ao contrário do que se pode apreender
em outras épocas, em nossos dias, “os sujeitos não têm de assumir o vivido do ódio, no
que pode ter de mais abrasador. E por quê? Porque já somos muito suficientemente uma
157
civilização do ódio” (1953/4:316). A esse respeito, em Reflexões para os tempos de
guerra e morte (1915), Freud já havia acentuado o caráter atemporalmente bélico do
sujeito. Diante das diferenças entre os indivíduos, conferidas, a princípio, pela
sexualidade, a tendência humana é a mais hostil possível:
“Destarte, caso sejamos julgados por nossos impulsos
inconscientes impregnados de desejo, nós próprios
seremos, como o homem primevo, uma malta de
assassinos. Ainda bem que nem todos esses desejos
possuem a potência que lhes era atribuída nos tempos
primevos; no fogo cruzado dos vitupérios mútuos, a
humanidade de há muito teria peredido, e com ela os
melhores e mais sábios homens, e as mais formosas e
belas mulheres” (1915:336).
Freud sublinha que devemos admitir que qualquer atitude civilizada que
tenhamos para com a morte contraria nossos verdadeiros impulsos, profundamente
hostis. O interdito, determinado ao sujeito, corolário da sua passagem pela castração, é o
elemento fundamental que serve de sustentação para estas afirmações acerca da
contenção do ódio, este, em si mesmo, essencialmente abrasador e nada civilizado.
Todas as possíveis economias que o sujeito possa fazer sobre esta ardente sensação são
conseqüências do recalque, pois o ódio é, precisamente, um fato de estrutura.
Para indicar a proeminência do lugar estrutural da falta, lugar onde uma falha
necessariamente se apresenta desde a origem - lugar castrado, enfim -, no Seminário 17,
Lacan tece a idéia de que a importância daquilo que cerceia o conceito de castração não
se localiza no mito de Édipo propriamente dito, mas no fato de que, para além do mito,
há a estrutura. Em outras palavras, é a estrutura que garante que haja um real em jogo,
para além daquilo que noticiam as histórias articuladas por Freud no complexo de Édipo
ou em Totem e Tabu (1913), que tenderiam a ser imaginarizáveis. Esta premissa
lacaniana representa uma virada, por consumar um passo adiante daquilo que ele
identifica em Freud como sendo o “pai todo-amor” (1969/70:94), pai que outrora
haveria gozado plenamente de todas as mulheres. O que está posto para o sujeito, desde
o princípio, em concatenação ao já interditado “todo-amor”, é o ódio.
Esta contextualização visa indicar que a castração é um fato de estrutura, o que
leva Lacan a demarcar que “as energias que empregamos em sermos todos irmãos
provam bem evidentemente que não o somos (...) Só conheço uma única origem da
fraternidade – é a segregação” (1969/70:107). A segregação constitui-se, portanto, como
158
algo constitutivo. É resultante do ódio articulado no sujeito desde a sua origem, seu
ponto de advento, determinado pelo Outro. Podemos relembrar, embora evitando uma
generalização tosca, que, para a psicanálise, é sempre a negação que precede qualquer
afirmação subseqüente, numa operação lógica. A segregação, portanto, fato estrutural,
está colocada de saída, e não evoca outra coisa senão a consumação da alteridade,
representante da diferença para o sujeito. O ódio vem a ser o representante cabal desta
desunião constitutiva, deste “não”, que propriamente fundamenta o sujeito, e é por isso
que observamos, na cultura, exacerbarem-se os desfiladeiros deste aspecto tão
primitivo.
Esta elaboração lacaniana sobre a segregação vai ao encontro do que Freud
alegara em O mal-estar na cultura (1930), bem como, mais detidamente, em Psicologia
das massas e análise do eu (1920): apesar de todos os esforços da cultura (ou dos
grupos) na direção da união, restam acirradas as manifestações da agressividade
humana. Qualquer tentativa de irmandade, qualquer espírito de identificação (ali
associado à tendência amorosa), nada mais seria do que uma conseqüência da já
abalizada estrutura do sujeito, sua tentativa de inebriar o real que já está ali, por assim
dizer, embrenhado no osso. Ainda com Lacan: “Nenhuma outra fraternidade é
concebível, não tem o menor fundamento, se não é por estarmos isolados juntos,
isolados do resto” (1969/70:107). Eis as funções – ou os desserviços – sociais, que
desempenham o amor e o ódio, no desenrolar de nossa cultura.
Conforme nos indica Bataille, em O Umbigo do sonho, a natureza gregária não
se reserva ao cristianismo, mas sim pode ser encontrada em qualquer parte dos
desfiladeiros de nossa civilização:
“Ela é, dentre as coisas do mundo, a melhor a ser
partilhada. Toda identificação de diversos indivíduos a um
mesmo significante a produz. Os sociólogos chamam a
isso instinto gregário; os moralistas, servidão voluntária; e
os psicanalistas, masoquismo primordial. Aos
psicanalistas repugna este termo, indivíduo, pois que,
justamente, o sujeito é dividido. Por um lado ele busca
realizar seu desejo próprio para preencher sua falta a ser;
por outro lado ele é impelido a se mortificar sob um
significante para não ser excluído do campo dos outros.
Mas ele é, exatamente, um indivíduo, no sentido em que
não pode se desprender da parte, nele, que se quer serva
do significante” (1988:26).
159
O sujeito não pode escapar de sua pulsão de morte, este é o seu destino. O
campo da linguagem não faz senão tornar o sujeito um servo, servo de sua própria
divisão. Examinemos a última lição proferida por Lacan, no Seminário 5. Esta lição
intitula-se “Tu és aquele a quem odeias” (tu es- “tu és”, aqui, encontra-se em homofonia
com tu hais – “tu odeias”). Lacan confere uma especificidade no que tange ao tema do
ódio. Este ódio fraterno, oriundo da posição na qual se encontra, por exemplo, o
neurótico obsessivo, onde o que está em jogo é a dialética de “ter ou não ter” o falo, é
um ódio totalmente distinto do ódio do Ser, inerente à condição estrutural do sujeito.
Este “ter ou não ter” o falo, dinâmica na qual o sujeito mergulha cotidianamente, refere-
se a uma dimensão imaginária, e, portanto, mais rasteira, pois não leva em conta o real
aí concernido, situando-se somente na problemática da inveja do pênis freudiana. A
questão mais profunda - visto que é a questão fundante do sujeito - e também a mais
importante a ser considerada pelo analista é a de “ser ou não ser” o falo (1957/8:504-
521).
Segundo Lacan, conforme já explorado, o ódio é oriundo da relação estrutural do
sujeito com o Outro: o sujeito odeia o Outro por conta da paixão que nutre pelo Ser do
Outro. Ao ser destituído, excluído da possibilidade oferecida pelo Ser, ao sujeito só
resta a tentativa de demolir este Outro. Como resultado disso, temos o ódio, sendo este
ódio distinto daquele da rivalidade, conforme já conjecturado. Poderíamos dizer,
apoiando-nos nos textos freudianos antes descritos, que, ao conferir ao ódio um lugar
preliminar em relação ao amor, bem como ao abordar o ódio como aquilo que caminha
lado a lado com a pulsão de morte, Freud estaria postulando as coisas dessa mesma
forma, qual seja, a de considerar o ódio como sendo este elemento tanto fundante
quanto indissolúvel no escopo das relações entre os homens.
Retomemos o mandamento examinado no tópico anterior, de “amar ao
próximo”, já analisado por Freud em O mal-estar na civilização (1930), e abordado por
Lacan ao final do Seminário 5. Este mandamento, sugere Lacan, deve ser entendido
como partindo do Outro, e enuncia-se como “Tu és aquele que me mata” (tu es celui qui
me tues, efeito homofônico surgido pela repetição circular do enunciado). O
mandamento de “amar ao próximo” revela seu valor apenas neste prolongamento,
apontado por Lacan: amar ao próximo “como tu mesmo tu és (tu es), no nível da fala,
aquele a quem odeias (tu hais) na demanda de morte, porque a desconheces”
(1957/8:521).
160
Ao próximo, ao semelhante, é endereçado um certo jogo mortífero, uma vez que
o sujeito se posiciona de modo a determinar: “ou ele ou eu”. Acaso não estaria presente,
nesta lógica, a perspectiva freudiana sublinhada nos artigos sobre a Psicologia do amor,
na qual, ao sujeito, se coloca este destino verdadeiramente disjunto: ou ama ou goza?
Ambas as referências, a meu ver, apontam para a direção de uma impossibilidade, que
se estende através das relações estabelecidas vida afora pelo sujeito. Ademais, também
remeto a este contexto para lembrar que ali Freud anuncia que é preciso que haja um
terceiro, injuriado, na obtenção do prazer sexual por parte do homem que realiza sua
escolha objetal. Encontramos a presença do ódio, nestas articulações freudianas, de
forma a assegurar a radicalidade de uma segregação inerente à estrutura humana.
Para o neurótico obsessivo, o que está em jogo na perspectiva de sua demanda é
esta agressividade ora exposta, que Lacan chama de “anseio de morte” (1957/8:507).
Esta demanda é uma demanda de morte, na medida em que as primeiras relações do
obsessivo com o Outro foram essencialmente compostas por uma contradição: a de que
a demanda dirigida ao Outro, de quem o sujeito depende inteiramente para viver, tem
em seu horizonte a demanda de morte. Com Lacan:
“A demanda de morte representa, para o sujeito obsessivo,
um impasse do qual resulta aquilo que é impropriamente
chamado de ambivalência, e que mais é um movimento de
oscilação, de balanço, no qual o sujeito é como que
remetido aos dois eixos de um impasse do qual não
consegue sair” (1957/8:508).
Neste esquema, a demanda de morte vem acarretar, no obsessivo, a morte da
demanda – eis exposta a sua paralisação, que se coaduna com o que Freud ponderara a
respeito da impotência psíquica. Esta oscilação (termo mais apropriado do que a
ambivalência) está condenada a se infinitizar, de forma que, tão logo se esboce a
articulação de uma demanda, ela se extinga. A demanda, para todo sujeito, é algo que se
encontra incluso pela própria condição da fala. Dessa maneira, atribuímos ao Outro a
capacidade de nos responder a esta demanda. Todavia, mais do que a “capacidade”, o
Outro é dotado de uma “opacidade” inerente, que se exprime sob a forma de uma não-
resposta. Aquilo que endereçamos ao Outro, quando lhe dirigimos nossas perguntas e
nosso pedido de amor, não recebe a correspondência almejada, mas, sim, esta
opacidade. Nas palavras de Lacan, “A razão de ele nos ser opaco é que há nele alguma
coisa que não conhecemos, e que nos separa de sua resposta à nossa demanda. Isso não
161
é outra coisa senão o que se chama seu desejo” (1957/8:488). O resultado desta
operação, vale a pena repetir, pode deslanchar-se em ódio.
O ódio, estrutural, manifesta-se inevitavelmente no decurso de uma análise.
Neste sentido, tanto o amor quanto o ódio consistem num obstáculo à análise. Obstáculo
a ser considerado e superado. Ambos, amor e ódio, consagram-se na experiência clínica
como formas de resistência e, como tais, podem ser compreendidos tanto como um
entrave ao processo analítico quanto como a mola propriamente operadora da análise –
lugar por onde circula, necessariamente, qualquer alternativa de cura. É preciso que o
sujeito em análise possa se deparar com o fato de que este Outro também é incompleto,
por uma condição universal da humanidade, condição a qual o amor busca escamotear.
Isto posto, os efeitos de uma análise podem ser o de promover ao sujeito a possibilidade
de vir a deparar-se com o fato de que, no final das contas, não há ninguém a odiar.
A agressividade advém desta percepção de que o Outro é falho, não é capaz de
complementar aquilo que se abre para o sujeito como uma hiância. Pois, para além da
palavra do Outro, o que o sujeito encontra é a opacidade, a opacidade de um muro. É
topar com a morte, com a dura e muda presença do muro da morte. Nesse sentido,
Lacan irá ressaltar, no Seminário 20, que aquilo que pode responder pelo gozo do corpo
do Outro é somente o “amuro” (1972/3:13). É algo que, por ser muro, opõe-se ao
espelho, contradizendo a expectativa de harmonia revelada pelo amor, a ilusão de que,
onde um fala, há um outro que entende, apto a lhe responder plenamente, em perfeita
sintonia. Ao revés, o que Lacan faz deflagrar para nós, é essa maciça presença, no
interior de toda expectativa de reciprocidade emanada do amor, do sólido muro da
linguagem: mal-entendido a cada palavra, desencontro a cada gozo, morte a cada
esquina.
Ainda por cima (para que não se fique em cima do muro) deve-se considerar que
não há nada por detrás deste muro, senão a presença consistente da morte, a dureza do
vazio. No entanto, ainda assim, vemos os homens passarem suas vidas inteiras a erguer
certas muralhas, a demarcar suas divisórias, a lutar por seus territórios já perdidos e para
sempre elididos, por fingirem desconhecer que, no final das contas e das guerras, nunca
houve, nem haverá, terra prometida. Ao sujeito não foi prometida terra alguma, a não
ser aquela para onde a pulsão de morte o conduz: a terra-mãe do retorno ao inanimado,
retorno aos plenos e infalíveis braços da morte.
A frase que nomeia o presente Capítulo foi proferida por Carlos Drummond de
Andrade, pouco tempo antes de morrer. Confere a impressão de que ele não
162
desconhecia totalmente esses aspectos que a psicanálise pode, felizmente, levantar sobre
nós. A morte, ao mesmo tempo que carrega nossos amores, é aquilo que já está, numa
operação lógica bem particular, alocada neles desde sempre. Nossas paixões (inclusive
aquelas que movem os homens à guerra) já são defuntos por excelência, uma vez
permeados pela morte. Nossos amores, num certo sentido, já nascem mortos.
Freud, em Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), atesta que
“tolerar a vida continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos”
(1915:339). Ele se reporta a um ditado que diz: “Si vis pacem, para bellum: Se queres
preservar a paz, prepara-te para a guerra”. Este ditado, segundo ele, estaria mais em
concordância com o tempo em que vivemos caso fosse alterado para: “Si vis vitam, para
mortem: Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte” (1915:339). Ao sujeito,
digo que está lançado o seguinte destino, nada pacífico, tal como os outros dois: se
queres debulhar-se no amor, prepara-te para o ódio.
163
Capítulo 5:
ENTRE O HOMEM E UMA MULHER, ESTÁ O REAL
164
5.1- O encontro “amorgoso”:
“O amor jamais foi um sonho.
O amor, eu bem sei, já provei,
e é um veneno medonho.
É por isso que se há de entender
que o amor não é ócio.
E compreender que o amor não é um vício;
O amor é sacrifício, o amor é sacerdócio”.
Chico Buarque
73
Porque, afinal, o sujeito não faz outra coisa, uma vez imerso no discurso
analítico, a não ser falar de amor? A pergunta se baseia numa afirmação proferida no
Seminário 20, onde Lacan versa sobre o amor e o gozo. Neste contexto, ele já havia
afirmado que o sujeito, quando busca uma análise, se põe a falar de amor. Junto a isso,
havia anunciado, na conferência A terceira (1/11/1974), que há sempre um gozo
inserido na fala: ao falarmos, já estamos gozando. Então, numa análise –
especificamente no discurso que ali se engendra – gozo e amor caminham entrelaçados.
Eis o que denominei de encontro “amorgoso”.
A meu ver, o sujeito fala de amor porque nesta sua fala habita o seu sintoma, aí
mora propriamente a sua dor, e, para introduzir o tema que agora discorro, é porque aí
reside o seu gozo. Amor, gozo, desejo: pode-se notar, no terreno das pulsões, o quão
sutis e ao mesmo tempo tão marcantes - embora sempre muito tramadas - são estas
categorias.
A fim de iniciar essa específica abordagem sobre o gozo, remeto ao texto
freudiano Os arruinados pelo êxito (1916). Inserido numa série de artigos que visam
tratar de Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, este breve e
sinuoso artigo apresenta uma especificidade que merece destaque. Ali, Freud indaga-se
sobre algumas situações clínicas ocasionais nas quais, de modo surpreendente, o
paciente adoece justamente no momento em que “um desejo profundamente enraizado e
de há muito alimentado atinge sua realização” (1916:357). Segundo Freud, o que se
pode notar clinicamente - uma vez que é nítida a estreita relação entre o êxito
conquistado por estas pessoas e o seu adoecimento, seu empobrecimento psíquico - é o
fato de elas não serem capazes de tolerar tamanha felicidade, ora estampada.
Subentende-se, a partir desta referência, que, freudianamente, o encontro com a
73
Buarque, C.:Viver do amor - Opera do malandro, In: Chico Buarque, letra e música (1989:169).
165
realização de desejo, ou o encontro com o objeto da satisfação, se apresentam de forma
a arrasar, combalir e mortificar o sujeito.
Freud se diz atordoado por esta verificação da intolerância da felicidade,
afirmando que deve haver, certamente, uma “ligação causal” – e não casual – entre o
êxito e o fato de estas pessoas adoecerem. Assim, tece uma digressão pela literatura,
reportando-se à figura de Lady Macbeth, para exemplificar este contexto no qual o
sujeito “sucumbe ao êxito”, citando vários exemplos em que alguém, ávido durante um
longo tempo por tornar passível de experimentar algum feito para o qual tanto havia se
esmerado, adoece precisamente no instante em que se vê defrontado com a realização
do mesmo. Nestes casos, afirma ele, “a doença seguiu de perto a realização de um
desejo e pôs termo a toda fruição do mesmo” (1916:358).
Sobre esta relativizada possibilidade de fruição, Freud já havia esboçado
algumas considerações, no primoroso artigo do mesmo ano, Sobre a transitoriedade
(1916), onde confessa ao poeta Rilke (que, numa caminhada em companhia de Freud,
queixara-se da finitude e fugacidade de tudo que a natureza pode oferecer de mais belo)
que o valor daquilo que é belo depende intrinsecamente de sua efemeridade, sua
limitação e escassez, ou seja, depende do fato de que, em algum momento, se termine.
Em suas palavras: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A
limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor desta fruição” (1916:345).
Toda a possibilidade de realização, portanto, traz a marca de uma
transitoriedade, o impacto da finitude. Mas retomemos o contexto em que Freud analisa
os casos em que os sujeitos se deparam, frente a frente, com a fruição de seu desejo
realizado. Estes exemplos surpreendem Freud pelo seu desenrolar dramático, pela
depauperação efetuada pelos sujeitos em suas vidas, mas, sobretudo, pelo fato de serem
contrários a toda conceitualização que Freud, até então, se empenhara em fazer ecoar: o
comum de ser encontrado na experiência clínica, e que consagrava as premissas
freudianas, sempre fora a idéia de que aquilo que induz alguém à doença é a frustração
de um desejo insatisfeito, e não a sua realização. Não foi à toa que ele se pôs atordoado
com tal percepção.
Bem mais tarde, Freud reporta-se novamente a esta idéia, no texto intitulado Um
Distúrbio de memória na Acrópole (1936). Trata-se de uma carta enviada a Romain
Rolland, na qual descreve um episódio vivenciado por ele próprio, denominado como
“estranho”, e que lhe causou enorme interesse: Freud e seu irmão encontravam-se numa
viagem pela costa do Mediterrâneo, planejando ir a Corfu, quando, no caminho, foram
166
interceptados por um amigo que lhes sugeriu que fossem a Atenas. Aceitando a
sugestão, embora incomodado (sem saber bem com o quê), Freud dirige-se a esta
cidade. Ao defrontar-se com a Acrópole, vê-se surpreendido pelo seguinte pensamento:
“Então, tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!”
(1936:295).
A partir da explanação que se segue no texto, há indícios de que o episódio é um
exemplo de estranhamento, Unheimlich, vivenciado por Freud (embora ele não discorra
sobre isto), oriundo, segundo ele, de uma sensação de “too good to be true”,
74
impressão
evocativa da idéia de que a presentificação de um desejo desconhecido pode tornar-se
insuportável. A anunciação de algo outrora desejado (no caso, a verificação da
existência da Acrópole o remete a um desejo infantil, ligado a seu pai – este sempre
desejara conhecê-la, e jamais o fizera), atualiza-se e faz extasiar, frente à magnitude
daquela visão, o sujeito Freud. “Há pessoas que adoecem, ou, até mesmo, ficam
aniquiladas”, diz ele, “porque um desejo seu, excepcionalmente intenso, se realizou”
(1936:297). Trata-se, portanto, de uma situação bastante específica, onde o sujeito
sucumbe ao sinal do real, e que revela o que a estrutura possui de mais paradoxal: é
preciso que aquilo que se deseja não seja totalmente realizado. É necessário que a fenda
aberta pela perda do objeto não seja efetivamente cerzida.
Observemos como esta questão é abordada por Freud, no texto de 1936:
“Pode ser que um sentimento de culpa estivesse vinculado
à satisfação de nós havermos
realizado tanto: havia nessa
conexão algo que desde os primeiros tempos tinha sido
proibido. Era alguma coisa relacionada com as críticas da
criança ao pai. (...) Parece como se a essência do êxito
consistisse em
ter realizado mais do que o pai realizou, e
como se ainda fosse
proibido ultrapassar o pai”(1936:303,
meu grifo).
Quando o sujeito se depara ante o ápice da realização de seu desejo, é o estranho
que se lhe desponta. Idéia que, por motivos evidentes, pode ser também verificada no
artigo freudiano O estranho (1919). Este célebre texto pode ser considerado a avant-
prémière da conceituação da pulsão de morte. Freud, inclusive, ao que indica na Carta a
Ferenczi de 12 de maio de 1919, na ocasião, já havia concluído o rascunho do texto
74
"Bom demais para ser verdade".
167
Além do princípio do prazer (1920), embora este só fosse publicado no ano seguinte.
Em O estranho (1919), ele utiliza o termo “compulsão à repetição”.
Temos, ali, a seguinte conjectura freudiana: aquilo que é vivido pelo sujeito
como estranho, angustiante e horrível, é também o que lhe concerne de mais íntimo. “O
estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há
muito familiar”, assegura Freud (1919:277). Há, neste texto, uma espécie de sinal, de
retorno, ao que ele já havia nomeado no Projeto para uma psicologia científica (1887)
como Das ding, ou “a coisa”: algo que é impossível de ser representado, algo indizível,
que não se sabe como abordar, e que vem à luz para o sujeito - uma vez tendo passado
pelos caminhos do recalque - sob a forma de estranhamento, ou de horror. Além disso, o
Unheimlich se apresenta como o anúncio da defesa narcísica do sujeito, que visaria,
através da fantasia, à duplicação dos seus órgãos sexuais, num movimento de proteção
contra a castração. Trata-se do “duplo”, que, ao apresentar-se, inverte seu aspecto: “após
ter sido uma garantia de imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte”
(1919:292).
Freud, neste artigo, atribui à psicologia infantil o efeito de estranhamento
advindo das diversas ocorrências que analisa, algumas abordadas, repito, como se
tratando de um estranho encontro do sujeito com um desejo realizado. Segundo Freud,
“É possível reconhecer, na mente inconsciente, a
predominância de uma ‘compulsão à repetição’,
procedente dos impulsos pulsionais e provavelmente
inerente à própria natureza das pulsões — uma compulsão
poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de
prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o
seu
caráter demoníaco (...), uma compulsão que é
responsável, também, por uma parte do rumo tomado
pelas análises de pacientes neuróticos. Todas essas
considerações preparam-nos para a descoberta de que o
que quer que nos lembre esta íntima ‘compulsão à
repetição’ é percebido como estranho” (1919:297, meu
grifo).
Então, se tudo aquilo que leva o sujeito a se lembrar de sua própria repetição é
experimentado como Unheimlich, como situar teoricamente esta premissa, no que tange
à temática do gozo? O que a noção de gozo pode trazer, em sua proximidade com a
repetição (para além do prazer), que denuncie, para o sujeito, a presença de algo
168
mortífero, demoníaco? Proponho agora articular estes encontros, descritos por Freud -
onde a realização do desejo se torna tanto factível quanto insuportável para o sujeito -
com o gozo, já que ele opera no sentido de presentificar uma perda, pois contém em seu
espectro algo de inapreensível. O gozo, por assim dizer, “reapresenta” aquilo que não se
“representa”.
Vimos, com Lacan (Seminário 10), que só o amor permite ao gozo condescender
ao desejo. O campo amoroso, equiparado ali ao da angústia, constitui esta passagem
necessária para uma operação que decide que seja colocada em jogo uma perda de gozo,
conferindo lugar ao desejo. Mas é preciso aferir que isto não se dá de uma vez por
todas. Há, por parte da repetição, uma insistência, a teimosia a que me referi no
Capítulo 4. Há sempre algo que resta, sem ser representado. Então, a repetição é
permanentemente reintroduzida, legendando algo que fica, de uma certa forma, à
espreita, mas que retorna: é precisamente isto que vem notificar o sujeito a respeito de
seu gozo.
No Seminário 17, Lacan formula a repetição como sendo o conceito freudiano
que mais se aproxima do gozo. Freud, como vimos, assinala a repetição como aquilo
que está para além do princípio regulador do prazer. O gozo, ressaltado por Lacan, “se
homologa por ter a sanção do traço unário e da repetição – que desde então o institui
como marca” (1969/70:47). De fato, se o gozo é um interdito, ele só pode ser
sancionado a partir de uma repetição, sendo ela que irá designar ao gozo seu verdadeiro
status, sua marca registrada. A repetição, sob a forma do traço unário, vem a ser o
“meio do gozo”. Então, para Lacan, o gozo sexual, articulado na repetição do traço
unário (S
2 após S1)
75
, é sempre a revelação de uma perda de gozo.
Parafraseando Lacan, ainda no Seminário 17: “Há perda de gozo. E é no lugar
desta perda, introduzida pela repetição, que vemos aparecer a função do objeto perdido,
disso que eu chamo a” (1969/70:46). Se a repetição e o gozo indicam a presença do
objeto perdido, aproveito para retomar aquilo que procurei destacar das contribuições
freudianas à Psicologia do amor, para averiguar o seguinte: quando Freud indica que o
sujeito, situado ante a escolha amorosa, depara-se com uma impossibilidade radical (isto
75
Para Freud, a identificação é o laço afetivo mais primitivo com o outro, conforme demonstra no
capítulo 7 de Psicologia das massas...(1923). Freud designa este precoce vínculo afetivo por einzinger
Zug, citando como exemplo a tosse de Dora, imitando seu pai. Lacan retoma este processo para elevar a
noção de traço unário ao estatuto estrutural. O ‘unário’, para Lacan, refere-se menos a uma unificação e
mais a uma função distintiva. Para ele, o traço unário (S
1) está no centro da repetição, e é uma marca a
qual os outros significantes (S
2) irão substituir. A cada volta conferida, demarca-se uma diferença. No
Seminário 9, discorrendo sobre a identificação, Lacan anuncia que o traço unário é o significante não de
uma presença, mas de uma ausência apagada.
169
é, com a falha em se combinar amor e gozo), não seria possível, a partir dos
ensinamentos lacanianos, postular que ambos, amor e gozo, estariam referidos a uma
mesma falta do objeto? Freud, ao afirmar que, com um objeto o sujeito pode gozar, e
com outro pode experimentar o amor, não estaria denunciando justamente que, tanto o
gozo quanto o amor, são responsáveis por reinstalar esta partição no sujeito?
Pois o gozo já se inscreve para o sujeito demarcando-lhe uma falta, deflagrando
algo já perdido, algo que, conforme Lacan irá assegurar no Seminário 20, remete-o a
uma posição de “não querer saber de nada disso” (1972/3:09). Mas eis que, embora não
querendo saber de nada disso, isso, surpreendentemente, se lhe apresenta face a face. É
o que vemos ocorrer nos exemplos freudianos antes narrados, expostos nas vivências de
Unheimlich, nos efeitos devastadores pelos quais transita à deriva o sujeito, ao deparar-
se com seu desejo realizado. Isso se mostra, a cada vez e para cada sujeito, e não o faz
senão na direção de reafirmar, reiterar, justamente o implacável da incompletude,
localizada no interior de sua estrutura. Então, temos, através do gozo, sempre o
flagrante de um aviso fúnebre, determinando o sujeito de modo a convocá-lo a
responder por isso, a ter que se haver com o fato de que, em algum lugar, houve gozo,
afinal.
Assim, torna-se possível concluir que o que está em evidência, nos exemplos
freudianos ora apanhados, é devidamente um encontro do sujeito com o aparecimento
de seu gozo, sendo que, curiosamente, este já se pronuncia com um atraso inerente,
asseverando a existência de uma temporalidade específica: ali, o sujeito gozou, teria
gozado, ou esteve gozando. Se o gozo é sempre a notícia de uma perda de gozo, então o
sujeito - nestes casos onde topa com a realização de seu desejo - estaria cerceado pelo
que há de mais perdido no gozo. Logo, não há como gozar perdidamente...
Desta maneira, sugiro que todo encontro amoroso é, na verdade, um encontro
“amorgoso”, no qual amor e gozo se coadunam de modo a denunciar o que há de
impossível em cada encontro. Mais ainda, e para azar do sujeito, este encontro
“amorgoso” é também um encontro amargoso, pois faz entranhar no sujeito o amargo
sabor do descerramento da angústia. Ao propor que a repetição homologa o gozo, Lacan
reintroduz os preceitos já admitidos no Seminário 11, a respeito desta falha inexorável,
que termina por macular, ratear, rasgar dramaticamente ao meio o sujeito, daí o
surgimento da angústia. Diz ele:
170
“É por isso que pus em relevo, no conceito desconhecido
de repetição, esse recurso que é o do encontro sempre
evitado, da chance falhada. A função do ratear está no
centro da experiência analítica. O encontro é sempre
faltoso – é isto que constitui, do ponto de vista da tiquê, a
inutilidade da repetição, sua ocultação constitutiva”
(1964:123).
Por outro lado (já que estou descrevendo algo que resta dividido, pela metade), é
verdade que, pelo viés do gozo, o sujeito visa completar os desígnios de seu desejo,
procura alternativas inebriantes diante de sua angústia, buscando obliterar esta garganta
sem fundo imposta por suas articulações significantes, fenda que o próprio estatuto da
linguagem obriga, através do irrealizável do desejo, a manter-se sempre aberta.
Portanto, o gozo, por estar inserido nesta dinâmica e por estar articulado desta forma
com o desejo, é sempre o sinal de uma realização que se inscreve de modo insuficiente,
pois o desejo desenrola-se de modo a convocar o sujeito, sempre mais e mais... Sobre
isto, no Seminário 20, Mais, ainda, Lacan é categórico:
“O gozo – gozo do corpo do Outro - resta, ele, uma
questão, porque a resposta que ele pode constituir não é
necessária. Isto vai mesmo mais longe. Não é nem mesmo
uma resposta suficiente, porque o amor demanda o amor.
Ele não deixa de demandá-lo. Ele o demanda... mais...
ainda. Mais, ainda (encore), é o nome próprio desta falha
de onde, no Outro, parte a demanda do amor”
(1972/3:12).
Sobre o estatuto desta resposta, oferecida pelo gozo, de que além de ser
insuficiente, ela não é necessária (na citação acima, ele se referira à ‘inutilidade’ da
repetição), Lacan já havia formulado, no Seminário 17, que o gozo constitui um
“desperdício” (1969/70:47). No Seminário 20, ele destaca e reafirma o caráter inútil do
gozo: “Um sujeito, como tal, não tem grande coisa a fazer com o gozo. Mas, por outro
lado, seu signo é suscetível de provocar o desejo. Aí está a mola do amor” (1972/3:69).
Com o perdão do chiste, se aí está a mola do amor, está também o que amola no amor.
O amor demanda mais, e mais ainda: amolação infinitizada, já que a resposta do Outro -
falha de onde parte esta demanda - paira sempre irresoluta.
171
Lacan, ainda no Seminário 20, declara também que o gozo é indizível, sendo o
que aparece, conforme já vimos, para marcar a falta ali engendrada. Então, o gozo
introduz a dimensão do Outro, visto que o gozo é algo que ultrapassa o sujeito. Reporto-
me novamente à experiência vivida por Freud diante da Acrópole, remetendo ao que se
pode, agora, chamar de gozo: foi como se ele tivesse ultrapassado o pai... O sujeito não
é agente do seu gozo, mas, ao contrário, o gozo o transpõe, o atravessa, o ultrapassa. A
partir do que Lacan nos convoca a considerar, pode-se formular que o gozo é um
excesso que excede o sujeito.
Uma vez que o sujeito não se reconhece no seu gozo, pois que d-isso ele nada
quer saber, quando o gozo se apresenta, o que se delineia é uma situação na qual o
sujeito - não sem a volúpia do susto, não sem a dosagem da angústia - é chamado a ter
que responder frente a este anúncio atrasado de que ali ele “teria gozado”, ou seja, é
convocado a comparecer enquanto sujeito. Eis a dificuldade da vivência desses
acontecimentos, tão detidamente descritos por Freud, nos quais se opera um encontro
com a repetição, com o que retorna do recalcado de um modo angustiante, abrupto, sem
intermediações, sem licença, sem contornos e à revelia do sujeito.
Aqui, proponho uma assertiva, a princípio óbvia, formulada a partir destas
considerações: Não é fácil realizar um desejo. Não é fácil, tanto no sentido de que o
desejo não se realiza assim tão facilmente, visto que está concernido a um objeto falho
de saída (objeto a), como também no sentido de que não é fácil para o sujeito, sendo
mesmo insuportável, estar diante da realização de um desejo, tal como parece notificar
Freud, a partir dos contumazes exemplos ora retratados. Este segundo aspecto evoca a
idéia de que o desejo se realiza apenas (às penas) e às custas de um alto preço que se
paga: o preço da angústia ali inscrita, assinalando novamente, para o sujeito, o que há de
radicalmente perdido no cerne de sua animação psíquica. A presentificação desta perda,
veiculada pela constatação de que ali o sujeito gozou (ou teria gozado), é propriamente
o que reflete o estatuto inapreensível do gozo, sempre falho, e submetido, mais, ainda, a
novos escapes.
Mas, alto lá! Então, quer dizer que o sujeito não pode gozar o amor? O que resta
ao sujeito, se, exatamente enquanto resto, o seu gozo só pode ser expresso como um
encontro marcado, já atrasado e sempre adiado, inexoravelmente falho? Pois bem, vale
dizer que tudo isto que está sendo demonstrado não extrai do sujeito, em absoluto, a sua
cota de gozo. Ele pode, e até deve (já que o gozo é um imperativo do supereu – Goza!)
gozar. O sujeito pode e deve gozar, e o faz mesmo, a todo custo... De modo que, atentar
172
para este aspecto do gozo, ao mesmo tempo em que ele se apresenta sombreado e
elidido, não lhe demove a sua força, o seu ímpeto, a sua maciça presença,
experimentada sempre como um rompante, um tufão impetuoso, em cada relação de
amor. O sujeito pode e deve gozar o amor, e sabe-se que é precisamente isso que ele faz,
a torto e a direito. Mais do que isso, inclusive: além de gozar
o amor, é preciso, por
vezes, que ele possa gozar
do amor, na medida em que este o relança a posições, de
fato, deveras chistosas, espirituosas... das quais seria interessante que ele pudesse até
retirar algum gracejo. Pois é preciso poder gozar um pouco disso, também.
Conforme fundamentei no Capítulo 3, é necessário ao sujeito criar para si um
desejo insatisfeito. Retomando este postulado lacaniano no contexto que aqui se encerra
- do encontro “amorgoso” -, ratifica-se a idéia do quanto é preciso que o desejo
permaneça irrealizado, ao preço de uma perda de gozo. Caso contrário, será o corolário
da autodestruição, das ruínas propriamente reveladas em Os arruinados pelo êxito
(1916), que o sujeito terá que facear. Posição que lhe incumbe de uma tarefa, portanto,
nada simples.
Neste sentido, o amor está longe de promover ao sujeito uma folga. Há um
trabalho a ser feito, um preço a ser pago, que lhe exige o confronto inevitável com os
horrores de sua verdade pessoal: ali onde ele teria gozado, desponta também que ele terá
que se mover, já que onde há gozo não há mesmo descanso e sossego possíveis... Esta é
a labuta proposta pela psicanálise, em sua incidência iminentemente clínica. O sujeito
pode viver a vida toda se digladiando com isso, mas pode, ao acatar a oferta da análise
(proferida por Freud, de “aceitar este amor como um destino inelutável” - 1915:210),
deixar-se levar pelo que há de implacável no amor: o trabalho que ele prescreve, na
dinâmica do encontro “amorgoso”. Com Lacan, no Seminário 20, “trata-se de distinguir
qual é o ofício do discurso analítico, e de torná-lo, se não oficial, pelo menos oficiante”
(1972/3:40).
Assim, lembrando o compositor Chico Buarque na epígrafe colhida para
inaugurar este capítulo - e ousando complementá-lo -, o amor não é um ócio, mas um
ofício: o amor impõe ao sujeito um trabalho, seu sacrifício... Eu diria que, por refletirem
e repetirem aquilo que há de mais duro e real na experiência do sujeito - por serem
precisamente seu esqueleto - os amores, numa análise, são os “ossos do ofício”.
173
5.2- Da morte que carrega a vida, à morte que a vida carrega:
“O amor é como o que no céu chamamos de via
Láctea: um amontoado brilhante formado por
milhares de estrelinhas, cada uma delas sendo,
muitas vezes, uma nebulosa”.
Stendhal
76
Proponho agora circunscrever - mais, ainda - um significante que já foi
discorrido ao longo desta tese, justamente por se tratar de um elemento tão presente na
abordagem que faço sobre o amor: a morte. Embora o sujeito tenha que conviver
permanentemente em sua vida com a idéia da morte, sendo esta, de fato, aquilo que lhe
assombra, irrompe seu sono e retorna em seus sonhos; e, embora a morte esteja
assinalada em cada perda de objeto que entrecruza os caminhos do sujeito, em cada luto
feito sobre a incompletude vivenciada no plano amoroso, Freud assevera que não existe
a representação da morte, no inconsciente. Apenas a representação da perda. Portanto,
ao abordar o estatuto da perda do objeto no amor, está-se considerando como pano de
fundo a questão da morte. Nas palavras de Freud:
“É verdade que a afirmação ‘Todos os homens são
mortais’ é mostrada nos manuais de lógica como exemplo
de uma proposição geral; mas nenhum ser humano
realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão
pouco uso hoje, como sempre teve, para a idéia da sua
própria mortalidade” (1919:302).
Se, como demonstra Freud, não há representação da morte no inconsciente,
podemos postular que, para o sujeito, restam as infalíveis notícias da perda, advindas do
inefável campo do Outro. A perda do objeto, posta em jogo a cada relação amorosa, é o
mais próximo retrato que o sujeito pode presumir da morte, ela mesma escapulida de
suas representações. Em Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), Freud
atesta: “Em suma: nosso inconsciente é tão inacessível à idéia de nossa própria morte,
tão inclinado ao assassinato em relação a estranhos, tão dividido (isto é, ambivalente)
para com aqueles que amamos, como era o homem primevo” (1915:338). De fato,
reitera Freud, é impossível ao sujeito imaginar a sua própria morte, ele só o faz
enquanto espectador (1915:327). Isto é o mesmo que dizer que ninguém crê em sua
76
Stendhal (pseudônimo de Beyle). Frase retirada do prefácio. In: Do amor (1993: LVI).
174
própria finitude, e que, no inconsciente, cada sujeito está convencido de sua
imortalidade.
Desta forma, o sujeito só acede a um quê de morte pela falta que a representa,
falta instalada nos domínios de sua relação objetal. A cada vez que o objeto lhe carece, é
a morte que se lhe acena. E isto se encena reiteradamente no contexto da análise. Com
Lacan, no Seminário 8:
“Este ser, de quem vocês podem se lembrar de súbito por
um acidente qualquer, cuja morte é realmente o que nos
faz escutar de mais longe a sua ressonância, este ser
verdadeiro, na medida em que o evocam, já se distancia,
já está eternamente perdido. Ora, este ser, ainda assim, é
aquele mesmo a que tentam reunir-se pelos caminhos de
seu desejo. Só que este ser é o de vocês. Como analistas,
bem sabem que de certa forma, por não tê-lo querido, é
que vocês também meio que o perderam. Mas, pelo
menos, aqui vocês estão no nível de sua falta, e seu
fracasso mede isto com exatidão” (1960/1:44).
E o que é que pode visar a verdade desta falta? A angústia, indica Lacan, no
Seminário 10. Conforme já demonstrado, o desejo é aquilo que está ligado a um corte, e
que se coloca, assim, em uma certa relação com a função do resto: há algo que,
precisamente, falta. Sempre falta, salvo nas ocasiões em que o sujeito experimenta o
estranhamento, a despersonalização: então, quando a falta falta ao sujeito, eis o que
promove a sua angústia. Se a falta faltar, é a angústia que se desponta, é o Unheimlich,
concepção que tratei de abordar no item anterior, a propósito do gozo. É preciso que não
falte a falta, para que o sujeito possa fruir daquilo que o seu desejo permite articular.
Aquilo que faz a falta não faltar é o desejo.
Assim, a angústia é o mais próximo sinal da morte a que o sujeito tem notícias,
e, visto que ela não tem objeto que a represente, podemos imaginar porque ela está
sempre tão concernida na dimensão do amor. O objeto a, objeto por excelência da
angústia, irá trazer para o sujeito, no campo de seus investimentos amorosos, repito,
sempre a confirmação de uma parcialidade. São as leis do simbólico que reafirmam este
fato, posto em evidência a cada vez que o sujeito fala, uma vez que entre aqueles que
falam reside um liame, conforme conjectura Lacan, no Seminário 20: liame, ligação,
laço do discurso, mas que, no entanto, é sempre insuficientemente bem sucedido em seu
intuito de conferir significados plausíveis. Freud articulara a morte como o retorno
mais radical que pode haver à inércia, como sendo a tendência da vida a retornar ao
175
inanimado, ao repouso das pedras, ao princípio do nirvana. Ao analisar as circunstâncias
que levaram Freud a escrever O problema econômico do masoquismo (1924), Lacan, no
Seminário 5, evoca o texto freudiano Além do princípio do prazer (1920), ressaltando a
indicação aí contida: se o retorno à natureza inanimada é concebível como o retorno ao
nível mais baixo de tensão (ao repouso, ao nada, à morte, ao ponto zero), nada nos
garante que, na redução da vida ao nada, “também aí, por assim dizer, isto não se
mexa”. Pois existe, para o sujeito, no fundo, uma “dor de ser” (1957/8:255). Esta dor de
ser, segundo Lacan, teria sido revelada por Freud como aquilo que devemos considerar
como “o resíduo último da ligação de Tanatus com Eros”, da pulsão de morte com a
pulsão de vida (1957/8:255).
Resta algo no interior do sujeito, afirma Lacan, sob os moldes desta dor de ser:
“Nada prova que esta dor se detenha nos vivos, segundo tudo o que agora sabemos de
uma natureza que é animada de um outro modo, estagnada, fermentante
, fervilhante ou
mesmo explosiva
, mais ainda do que poderíamos imaginar” (1957/8:255, meu grifo).
Estes termos servem bem ao intuito daquilo que tematizarei no próximo item (sobre o
caráter lancinante, fogoso do amor), e Lacan os utiliza a fim de refletir o que se instala
aí, caso o sujeito consinta em descobrir-se ligado a isto: a dimensão do desejo, tal como
pode advir na situação do masoquismo constitutivo do sujeito. Diz Lacan: “Como
desejo, ele se sente escorado naquilo que como tal o consagra e o valoriza, ao mesmo
tempo em que o profana” (1957/8:255). É a afirmação de um desejo que se articula para
o sujeito não apenas como desejo de reconhecimento, mas como reconhecimento de um
desejo.
“A morte carrega a vida”
77
, no sentido de que a leva embora, muitas vezes sem
aviso prévio, para desespero dos que ficam, bem como no sentido em que ela torna a
vida carregada, confere à vida um peso específico - o peso de se estar vivo é poder
morrer a cada esquina. Assim, há também “a morte que a vida carrega”: a vida carrega
uma morte, ainda que sem representação possível, morte flagrada a cada encontro com a
incompletude, a cada experiência diante da parcialidade do objeto, descerrada pelo
amor. Da morte que carrega a vida à morte que a vida carrega, encontra-se o sujeito,
apenso a este movimento amoroso que tanto o protege, ampara, quanto lhe denuncia e
relança ao estatuto emblemático da morte.
77
Este título é inspirado numa frase proferida por Lacan em Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano, In: Escritos, que ora reproduzo: “Pois não basta decidir por seu efeito: a Morte.
Trata-se ainda de saber qual morte, a que é trazida pela vida ou aquela que a traz” (1960:825).
176
5.3- O amor é fogo!:
“O que acontece quando o martelo bate na rocha?
Saem centelhas.
Então, a centelha é o resultado do golpe
do martelo sobre a rocha.
Mas nenhuma centelha é o único resultado.”
Sabedoria Judaica
78
Ao longo desta tese, “esfumacei-a” diversas vezes com vocábulos relacionados
ao fogo, a fim de salientar o caráter vívido, tão presente na temática do amor. Sendo
assim, e já que Freud nos ensina que, em psicanálise, “onde há fumaça há fogo”, parto,
agora, na direção de discorrer sobre o fogo, elemento, curiosamente, bastante citado nas
obras de Freud e Lacan.
Conforme apontado no Capítulo 1, Freud aludira ao dito atribuído a Hipócrates
para caracterizar a situação transferencial, alegando que as doenças que os remédios não
curam, o ferro cura; as que o ferro não pode curar, o fogo cura; e aquelas que o fogo não
pode curar devem ser consideradas “inteiramente incuráveis” (1915:221). O fogo advém
para Freud, portanto, como o elemento último, mais poderoso. Neste mesmo contexto,
ele também afirmara que o amor é algo que irrompe a cena analítica, tal como se, numa
peça teatral, surgisse o grito de “Fogo!”. Dada a natureza estarrecedora que Freud
atribui a este elemento ao longo de sua obra, proponho realizar um paralelo do fogo com
o amor. Pretendo, com isto, rastrear esse fogo – tarefa um tanto ardorosa.
É Lacan que oferece a mais fecunda alusão ao que se pode depreender de
incendiário nas elaborações freudianas, ao analisar o sonho “pai, não vês que estou
queimando?”, descrito por Freud no sétimo capítulo da Interpretação dos sonhos
(1900). Examinando o conceito de repetição, Lacan anuncia que todo sonho é um
encontro marcado com um real que escapole. O pai, que deixara o filho morto sendo
velado no quarto ao lado para ir descansar, sonha que o filho lhe interroga: “pai, não vês
que estou queimando?”, e, de fato, é subitamente despertado pela realidade queimante
da vela tombada, que faz a cama e o braço do filho incendiarem-se. O sonho deste pai,
diz Lacan, é exemplar daquilo que o texto de Freud sustenta de nodal: o encontro
sempre faltoso. O sonho homenageia esta realidade faltosa, realidade que só pode se dar
repetindo-se, infinitamente, sem jamais atingir o despertar.
78
Sabedoria judaica: TB Sanhedrin 34a; cf. TB Shabbath 88b.
177
A frase promulgada pelo filho, prossegue Lacan, “ela própria é uma tocha – ela
sozinha põe fogo onde cai – e não vemos o que queima, pois a chama nos cega sobre o
fato de que o fogo pega no real” (1964:61). O real é aquilo que está para além do sonho,
que o reveste, envelopa, camufla. Diz Lacan: “Esta dimensão deve ser evocada num
registro que não é nem do irreal, nem do desreal: trata-se do não-realizado. Não é jamais
sem perigo que se remexe algo nesta zona de larvas”. Este registro do não-realizado
parece referir-se a algo que não pode ser definitivamente decantado pelo simbólico, algo
que resta sem representação. Quanto à zona de larvas, é precisamente o terreno que me
interessa destacar.
Garnot realiza importantes considerações sobre este sonho. Perspectivando o
“limbo” (aquilo que está entre a vida e a morte, na borda do inferno), ao qual Lacan se
refere para localizar o terreno que o sonho descortina, a autora passeia pela poesia
contida nas articulações lacanianas, extraídas do Seminário 11
79
. Sua abordagem prima
por revelar, também, o aspecto flamejante da transferência, tramando-a na análise que
Lacan realiza sobre o estatuto do inconsciente.
Visto que o fogo é o elemento que traz a mais estreita relação com o real – como
vimos, Lacan, diz que “o fogo pega no real” -, mergulho novamente no texto freudiano,
embora, é claro, sem que este aguaceiro implique no apagar do fogo. No artigo A
aquisição e o controle do fogo (1932), Freud correlaciona o fogo com a excitação
sexual masculina, assim como a água com a micção, ao servir-se de uma interpretação
sobre o mito de Prometeu. Esta correlação acerca da estreita associação, fisiológica e
psíquica, entre as duas possíveis funções do pênis (a micção e a ejaculação), já havia
representado a chave para a análise do primeiro sonho de Dora, exposta na descrição de
seu caso clínico (1901), e reaparece, novamente, na narrativa do caso do Homem dos
lobos (1918). Este artigo visa, ainda, ampliar uma nota de rodapé indicada em O mal-
estar na civilização (1930), onde Freud mencionara, superficialmente, suas formulações
a respeito da aquisição humana do controle sobre o fogo.
Freud assevera a hipótese de que, com a finalidade de adquirir controle sobre o
fogo, os homens tiveram de renunciar ao desejo de apagá-lo com um jato de urina. A
maneira pela qual Prometeu transportou o fogo, tendo roubado dos deuses, escondido no
interior de um “pau oco” e trazido aos homens, instigam Freud a afirmar que, por outro
lado, o que os homens contêm no seu tubo-pênis não é o fogo, mas aquilo que serve
79
Garnot, Denise Sainte Fare: Reflexões a partir do sonho: “Pai, não vês..?”, In: Tempo Freudiano – O
Seminário de Lacan:Travessia, No 1.
178
para apagá-lo: a água, a urina. Para Freud, o fogo é análogo à paixão do amor, é um
símbolo da libido, devido ao calor que irradia e também às suas chamas, que se
assemelham ao falo em estado de atividade: “Quando falamos do ‘fogo devorador’ do
amor ou das chamas que ‘lambem’ - comparando assim o fogo a uma língua - não nos
distanciamos do modo de pensar de nossos ancestrais primitivos” (1932:230). Uma das
suposições freudianas para o mito da aquisição do fogo é a de que o homem primitivo
teria tentado, durante muito tempo, apagar o fogo com sua própria urina, este ato
significando uma luta prazerosa com um outro falo. De fato, é ao registro fálico que ele
parece se referir, ao utilizar o significante “controle”.
Um passo adiante leva Freud a relembrar fênix, a ave que, “tão logo é
consumida pelo fogo, surge rejuvenescida mais uma vez, e que, de preferência e antes
de ser uma alusão ao sol que se põe no crepúsculo vespertino, a fim de novamente
erguer-se, é, muito provavelmente, uma alusão ao pênis que surge revivescido, depois
de haver relaxado” (1932:231). Freud reconhece em ambos os mitos o mesmo conteúdo:
o renascimento dos desejos, após estes terem sido “extintos pela saciedade”. Remonta,
nada mais nada menos, do que à indestrutibilidade desses desejos.
O curioso é que Freud demarca, a propósito do que estou sublinhando, uma
partição essencial, representada propriamente pelo órgão sexual masculino, que possui
duas funções (duplicidade experimentada pelo homem com desagrado): ele serve para o
esvaziamento da bexiga, bem como realiza o ato de amor que satisfaz o desejo da libido
genital. Todavia, Freud destaca o fato de que, na realidade, esses dois atos são
mutuamente inconciliáveis, tal como são incompatíveis o fogo e a água! Quando o pênis
se encontra em estado de excitação (Freud o compara a um pássaro), e, portanto,
enquanto experimenta sensações que sugerem o calor do fogo, a micção é impossível.
Por sua vez, quando o órgão está servindo para eliminar urina (a água do corpo), todas
as suas conexões com a função genital parecem ter-se extinguido.
Esta análise freudiana evoca algumas considerações. Encontra-se aí estampado
novamente o elemento da disparidade, já abordado no Capítulo 3, agora inserido no
contexto fálico da sexualidade, e tão presente ao longo das elaborações freudianas: ao
sujeito desejante, ou isto ou aquilo. Há uma incompatibilidade no terreno do amor, tal
como são incompatíveis o fogo e a água: onde um pode brotar, o outro já se demoveu. A
fim de realizar um paralelo entre o fogo e o amor, deve-se conservar a idéia de que, para
além das escolhas amorosas (que implicam em que o sujeito perca necessariamente
algo), a incompatibilidade é inerente ao próprio estatuto fálico, aqui representado pelo
179
pênis/fênix do sujeito. Pênis versátil, mas incompleto, fênix que renasce das cinzas a
cada vez, anunciando que qualquer volúpia decorrente do desejo só pode se fazer valer
por estar marcada pela morte, pelo incêndio que propriamente a constitui.
É ao aspecto fálico que Freud se refere, quando se reporta à luta pela aquisição
do fogo, na antigüidade. Apagar o fogo é um ato remetido ao caráter fálico presente
ancestralmente no sujeito. Todavia, há o real, responsável por reacender as chamas
deste fogo, sempre novamente... Há um real que clama pelo sujeito: é chama e o chama.
Tal como a fênix. Poder-se-ia postular que o sujeito, necessariamente, sempre renasce
das próprias cinzas, uma vez que advém deste lugar mortificado, deste ambiente larval
que o estatuto do simbólico vem sacramentar.
Freud estampa esta cisão, esta partitura, este rompimento, tão particulares ao
campo do amor: se o homem utiliza o pênis como água, para dominar o fogo, não pode
ter prazer sexual, e vice-versa. A impossibilidade de fazer coadunar a dimensão fálica
com a realização sexual, aqui designa, novamente, a incompatibilidade atávica do
campo dos investimentos pulsionais. Trata-se da incompletude fundamental do sujeito,
do encontro com o que não se realiza de forma inteira. Se não há como conciliar as duas
utilidades atribuídas ao pênis, isto conduz Freud a denominar, singularmente: “A
antítese entre as duas funções poderia levar-nos a dizer que o homem apaga o seu
próprio fogo com sua própria água” (1932:233).
Dinâmica curiosa, senão perspicaz, na qual se insere o sujeito no campo das
articulações amorosas. Se for verdade que o amor é fogo, conforme venho sugerindo no
desenrolar desta tese, é fundamentalmente no sentido de que há um real em jogo, nas
entrelinhas das relações promovidas pelo amor. Algo não se apaga, algo insiste, seja por
não encontrar conciliação possível no Outro, seja por asseverar que, no cerne da
estruturação do sujeito, há um antagonismo inerente, que revela, vez por outra, seu
caráter chamuscante e ardoroso. Há algo, portanto, que, estruturalmente, teima e
queima, estando para além do falo e das suas possíveis representações.
Este é o verdadeiro inferno, próprio do sujeito: seu essencial ardil, que
intermedeia a relação do homem com uma mulher, trevas as quais Freud tratou de
escancarar nos exemplos mencionados em O estranho (1919), e ao designar, através
deles, o caráter “demoníaco” da presentificação da pulsão de morte. Trata-se do inferno
de onde emergem, para o sujeito, as labaredas do real. Ao localizar na representação
fálica este estatuto demoníaco, Freud levanta o véu que a fantasia do sujeito esforça-se
por tentar encobrir, tornando exposto o que há de mais candente no universo dos
180
investimentos amorosos: o desatino de sua incompletude, descortinado na fogueira do
amor.
Analiso por mais um instante o caráter fálico, presente nesta articulação
freudiana, agora auxiliada pelos ensinamentos lacanianos. O falo fora determinado por
Lacan, no Seminário 5, como sendo um objeto privilegiado, dada a sua condição de
significante. Ele ocupa um lugar específico no que se produz no significante no além do
desejo, ou seja, em todo o campo que se situa para além da demanda. O falo, afirma
Lacan, em geral, é o significante do significado. A questão do significante do desejo
coloca-se, pois, neste contexto. O que irá exprimir este significante do desejo não é um
significante comum, mas, na verdade, algo que se deve a uma “forma prevalente do
impulso, do fluxo vital, mas que nem por isso deixa de estar preso na dialética a título
de significante”, com o que a própria passagem para o registro do significante “sempre
comporta de mortificado
para tudo que ingressa na dimensão do significante”
(1957/8:396, meu grifo).
Há uma mortificação interposta, portanto, na dimensão fálica – é o que se pode
entrever, a partir dos postulados lacanianos, no cerne desta coletânea de artigos
freudianos. Mais ainda: a mortificação é o que se pode depurar da experiência analítica.
Isto ao que o sujeito se vê defrontado, esta mortificação, não é senão a feminilidade –
algo que tomo emprestado, a fim de nomear por “obscuro objeto do desejo” -,
determinando para o sujeito que, no escopo no desejo, há a presença de uma ausência.
Veremos no próximo item como isso se articula de forma a consumar aquilo que Lacan
nomeou como a inexistência da relação sexual. Persigo, entretanto, alguns elementos da
temática da feminilidade que ainda nos trazem para perto deste fogo, ora aceso.
À posição da mulher na histeria, Lacan atribui como destino o movimento de
fazer-se máscara. Ela faz-se máscara para, por detrás desta máscara, ser o falo. Todo o
comportamento da histérica pode ser iluminado pelo gesto que ela faz, de levar a mão
ao botão do seu corpete. Não se trata de olhar o que está por trás do botão, adverte
Lacan, visto que, lá por detrás, onde está o falo, este não será encontrado. A histérica,
em sua provocação, faz indicar o lugar – para além da máscara – de algo que é apenas
apresentado ao desejo, já que, a este, não é oferecido acesso, pois que constitui algo, por
um lado, marcado e apresentado por detrás de um véu, mas que, por outro, não pode ser
achado ali. Anuncia Lacan, sobre a fala da histérica: “Não vale a pena você abrir meu
corpete, porque não encontrará o falo, mas, se levo minha mão ao corpete, é para que
você aponte, por trás deste corpete, o falo, isto é, o significante do desejo” (1957/8:393).
181
Então, o corpete da histérica visa marcar uma falta, representando, para o sujeito,
a presença de uma ausência: a presença do vazio, da morte. A histérica está em posição
de atestar aquilo que, para além dela, não se pode mesmo encontrar, nem ali nem
alhures, visto que não está em lugar algum. Neste sentido, lembremos que a histeria é
uma estrutura de base; ela exemplifica a manobra neurótica por excelência, que assevera
o que há de radicalmente perdido no terreno do amor. Cada relação amorosa, na
verdade, determina, através de uma positivação, a existência de algo que não pode ser
positivado, algo que mesmo a esfera do amor, por mais arredondada que seja, não
possui recursos para fazer completar. Parafraseando Lacan:
“Aqui, a mortificação ambígua apresenta-se sob a forma
do véu, aquele que vemos reproduzir-se todos os dias sob
a forma do corpete da histérica. Essa é a posição
fundamental da mulher em relação ao homem no que
concerne ao desejo, ou seja, que lá, atrás da combinação,
sobretudo não vá procurar ver, porque, é claro, não há
nada ali, nada a não ser o significante. Mas trata-se de
nada além, justamente, do significante do desejo”
(1957/8:396).
Elucidados pela manobra histérica, podemos admitir, com Lacan, que o amor,
bem como a fantasia, primam por velar o nada. A fantasia (este véu), promove que ali
onde não há nada, haja o falo. Por detrás deste véu, desdobra Lacan, há – bem como não
há – algo que não convém ser mostrado, algo sobre o qual se requer um certo pudor, ao
preço de que se evidencie, para situar nos termos caros dos quais me valho, o
demoníaco, o infernal. O véu que encobre o falo no homem é o mesmo que encobre o
significante do falo da mulher. Diz ele: “O desvelamento que só mostra nada, isto é, a
ausência do que é desvelado, é precisamente aquilo a que se liga ao que Freud chamou,
a propósito do sexo feminino, o Abscheu, o horror que corresponde à ausência como tal,
a cabeça da medusa” (1957/8:396).
No artigo A cabeça da medusa (1940), Freud correlacionara o terror da visão da
medusa ao horror da castração, da decapitação. Esta simbologia freudiana já fora
examinada, a propósito da personagem Judite, no Capítulo 3. O confronto com a cabeça
da medusa (uma analogia ao órgão sexual feminino) torna o seu espectador,
literalmente, petrificado. Para além das considerações já pronunciadas a este respeito,
então ligadas à impotência psíquica (que paralisa tanto o pênis quanto o sujeito), no
presente contexto vale salientar que esta metáfora toma o lugar de uma representação
182
dos órgãos genitais femininos. Segundo Freud, a metáfora “isola seus efeitos
horripilantes dos dispensadores de prazer” (1940:330). Ora, novamente temos aí
indícios do quão cindida, repartida, cortada ao meio é a vivência, para o sujeito, do
campo das pulsões, visto que não há como isolar coisa alguma nesta vida sem que se
perca de um lado e de outro. Mais que isso: não há como isolar o que já é, por si
mesmo, oculto e tenebroso, isto é, a feminilidade propriamente dita. Sobre este aspecto,
acena Lacan, no Seminário 10:
“É enquanto que ela quer meu gozo, isto é, gozar de mim
– não pode haver outro sentido – que a mulher suscita a
minha angústia, e isto por uma razão simples, inscrita há
muito tempo em nossa teoria: é que não há desejo
realizável sobre a via na qual o situamos senão
implicando a castração. É na medida em que se trata do
gozo, isto é, que é a meu ser que ela quer mal, que a
mulher só pode alcançá-lo, castrando-me” (1962/3, Lição
XIV:10).
Uma mulher revela para o homem o seu quinhão a ser perdido; ela sinaliza,
potencializa, a presença da morte no interior de seu desejo, representada pela castração.
O véu que a encobre, trabalho ofertado de bom grado pelo amor, é, assim, também a
revelação de uma angústia. Tal como faz a histérica na dinâmica do corpete, o véu
promovido pelo amor é também o véu que vela o falo.
Sobre isso, sugiro um novo remetimento à “vela” que incendeia o quarto do
filho, no sonho “pai não vês...”: como vimos, ali, o filho está sendo “velado”. Prova de
que o que há para além da realidade faltosa prima por esconder-se, ocultar-se. No
entanto, isso não descansa, e é por isso que o pai acorda em desespero: pois ele desejara,
por instantes, repousar. Pode-se considerar que esta cena também denuncia a inerência
de uma partição, uma vez que o pai, assim como todo sujeito, na verdade, sonha para
continuar dormindo. Perspectivando esta cisão, conclui-se que não há mesmo, para o
sujeito em pleno exercício pulsional, muito descanso possível.
Sobre esta partição, apontada por Freud na metáfora da cabeça da medusa,
aproveito para aludir novamente ao título desta tese. Se o amor é como uma esfera
(síntese, como vimos, proferida por Lacan no Seminário 8), poder-se-ia imaginar que,
ao dividi-la ao meio, ter-se-ia duas metades. Simples, assim? Certamente, não. De fato,
são duas as metades do amor; no entanto, a cada uma dessas metades o que vem a faltar
não é a outra metade, o pedaço distinto que lhe fora outrora amputado, como se este
183
ainda pudesse servir, encaixar, adequar-se. O que divide ao meio esta esfera – isto é,
este sujeito – não é senão um pedaço perdido que sequer fez parte dela. Muito embora a
tenha feito em partes.
Esta esfera, que serve ao sujeito para oferecer-lhe a ilusão de uma completude,
relaciono-a com aquilo que Lacan irá chamar, no Seminário 20, de tendência a se fazer
Um, o Um da unidade, da fusão, da totalidade. Com Lacan:
Nós dois somos um só. Todo mundo sabe, com certeza,
que jamais aconteceu, entre dois, que eles sejam só um,
mas, enfim, nós dois somos um só. É daí que parte a idéia
do amor. (...) O amor, se é verdade que ele tem relação
com o Um, não faz ninguém sair de si mesmo. (...) Esse
Um de que todo mundo tem a boca cheia é, primeiro, da
natureza dessa miragem do Um que a gente acredita ser.
O que não é dizer que o horizonte seja só este. Há tantos
Uns quanto se queira – que se caracterizam, cada um
deles, por não se parecerem em nada” (1972/3:65).
Estou tratando de cernir a presença de uma ausência na estrutura desta esfera, a
notícia de que o objeto (a), por não ter feito parte dela, não será, justamente por isso,
capaz de tornar a encaixá-la. Estou buscando figurar a precisão de uma articulação
subjetiva expressa nos movimentos do sujeito, que reafirma a irredutibilidade de uma
falta. Ao delegar ao Outro a incumbência de vir a aplacar a angústia, decorrente deste
ardente corte inaugural, e ao conferir-lhe o lugar desta metade perdida a ser recuperada,
o sujeito só faz debruçar-se mais ainda sobre a angústia, daí a natureza desatinada,
candente e pungente de todo amor. É neste sentido que ressalto que o amor é fogo.
O amor é fogo! ‘É fogo’, tal como popularmente bradamos, quando aludimos a
algo que nos incomoda bastante. O amor é fogo exatamente pelo fato de que, ao aceder
ao lugar desejante, o sujeito torna-se apto a perceber que o Outro de maneira alguma
constitui um objeto total (capaz de devolver a esta esfera seu estatuto de inteireza). Ao
contrário, o sujeito repara – daí seu ardor – que é por este movimento que o Outro se
torna, ele mesmo, totalmente objetalizado, devido a ser agora o instrumento do desejo
do sujeito. Para haver acesso ao Outro como objeto de desejo, é preciso que o Outro se
faça totalmente objeto.
A esta perspectiva, Lacan confere, no Seminário 20, a fórmula S (A), a fim de
agregar a verdadeira dimensão ao Outro, “mostrando que, como lugar, ele não se
agüenta, que ali há uma falha, um furo, uma perda. O objeto a vem funcionar em
184
relação a esta perda” (1972/3:41). Lacan ressalta que esta fórmula determina algo de
completamente essencial à função da linguagem. Mais adiante, ainda no Seminário 20,
ele interroga: “O que há com este Outro? O que há com sua posição em vista deste
retorno pelo qual se realiza a relação sexual, isto é, um gozo, que o discurso analítico
decantou como função do falo, cujo enigma resta inteiro, pois ela só se articula por fatos
de ausência?” (1972/3:54).
São esses fatos de ausência que deflagram a imprecisão do encontro amoroso. É
daí que se descortina para o sujeito uma sensação extremamente “vertiginosa e
nauseante”, o “fenômeno labiríntico”, ao qual Lacan alude no Seminário 5
(1957/8:397). Proponho correlacionar esta experiência da iminência de uma queda com
o que fora abordado ao longo deste Capítulo, sob o nome de visão do horror, presença
do demoníaco, a fim de balizar aquilo que, com Lacan, nos faz chegar à seguinte
fórmula: “Não existe nenhum suporte
do amor, já que, como eu lhes disse, dar amor é
não dar nada que se tenha” (1957/8:397, meu grifo). Eis a faceta, por assim dizer,
insuportável do amor. É o seu calvário, seu labirinto incendiário, sua queda vertiginosa.
É isso que abrasa, verdadeiramente, o sujeito. Resta saber o que é que ele poderá fazer
com este insuportável, a fim de suportá-lo – já que é preciso suportá-lo.
Suportá-lo sim, visto que, de fato, o que quer que ele possa fazer, ele o faz
amando. Amando, torna mais suportável aquilo que, paradoxalmente, o próprio amor o
conduz a ratificar. Eis as voltas, estas sim sempre esféricas, concernentes ao amor. Se o
caminho do desejo é o que marca esta operação, Lacan ressalta, no entanto, o caráter
ilusório do desejo, bem como a certeza ligada à angústia, no Seminário 10:
“O desejo é ilusório. Por que? Porque se dirige sempre
para outro lugar, para um resto, constituído pela relação
do sujeito ao Outro que vem se substituir aí. Mas isso
deixa em aberto o lugar onde pode ser encontrado o que
designamos com o nome de certeza. Nenhum falo em
definitivo, nenhum falo onipotente é de natureza a fechar
a dialética da relação do sujeito ao Outro e ao real, pelo
que quer que seja de uma ordem apaziguadora” (1962/3,
Lição XVIII:09).
Tecendo uma costura entre estas considerações colhidas nos Seminários 5 e 10,
seja o que for que procure velar, o amor, analogicamente representado pelo corpete da
histérica, promoverá necessariamente aquilo que o falo assinala de mais incompleto.
Seja o que for que o recurso ilusório do amor - utilizado pelo sujeito do alto de sua face
185
onipotente - procure esconder, esta tentativa, em geral, vem fracassar. Pois há sempre o
real, nada apaziguador, inconcluso e indeterminado por excelência.
Para complementar esta abordagem sobre o fogo, realizo, ainda, uma pequena
imersão na seara dos exemplos clínicos freudianos, trazendo à tona um fragmento
minucioso, descrito por Freud em Sobre os mecanismos psíquicos dos fenômenos
histéricos (1893). Lucy, 30 anos, sofria de um mal curioso: perdera todo o sentido do
olfato e era perseguida por sensações olfativas subjetivas, que lhes eram muito aflitivas.
Sua percepção do nariz como órgão dos sentidos estava ausente. Quando Freud lhe
indaga qual era o odor subjetivo pelo qual era mais constantemente perturbada, ela
responde: “Um cheiro de pudim queimado.” Freud, então, presume, a princípio, que um
cheiro de pudim queimado teria de fato ocorrido na sua experiência, atuando-lhe como
trauma. Diz ele: “Resolvi, então, fazer do cheiro de pudim queimado o ponto de partida
da análise” (1893:128).
Primeiramente, devo anunciar que foi tomando em mãos esta proposição
freudiana que me decidi a “perseguir esta fumaça”, tão concernente ao estatuto
pulsional do sujeito, para descrever, nestas linhas, o campo do amor. Fui seguindo, por
assim dizer, os seus rastros de fogo.
A narrativa que se segue a esta afirmação dá conta de elucidar os inúmeros
percalços e tropeços de Freud em seu percurso interpretativo, desembocando no
seguinte desfecho: Lucy, que tomava conta de duas crianças órfãs de mãe, estava, na
verdade, perdidamente apaixonada pelo seu patrão, e o cheiro de queimado ocorrera no
momento em que ela recebera uma carta que a lançara na perspectiva de ter de
abandonar a família para a qual trabalhava.
À medida que ele localizava as origens do cheiro de pudim queimado, o sintoma
de sua paciente se dissipava, até a sua alta da análise. Mas Freud volta a intrigar-se, pois
ela padece novamente e é obrigada a retornar ao seu consultório algum tempo depois,
acometida pela mesma moléstia, expressando-lhe que vinha sendo agora importunada
por um outro cheiro, desta vez... o da fumaça de um charuto! Este charuto, conforme as
interpretações de Freud permitem deslindar, vem significar, uma vez mais, a ocorrência
de seu amor desenganado.
Pois então, não é que o amor insiste? Este cheiro de queimado, advindo de
qualquer objeto que seja, qualquer objeto que ali desempenhe o papel de figuração (no
caso, curiosamente sempre associado à fumaça), não teima em designar senão a
presença da encarnação de um amor fracassado. Amor este, por um lado, acentuado e
186
abalizado pelo sintoma, mas, por outro, camuflado, escondido, apenas insinuado. Tal
como o corpete da histérica.
Pode-se supor, assim, que o cheiro de queimado é sempre uma conseqüência,
vivaz, que declara e ressalta aquilo que, na verdade, não está propriamente ali. Está
oculto, uma vez restringido pela barra do recalque (para evocar os preceitos freudianos).
Ao mesmo tempo, a fumaça é um sinal que avisa e sustenta que haja algo ali. E o que é
que está ali? Para surpresa geral, ou nem tanto assim, o que está ali é precisamente o
amor, ilustrado com enorme propriedade, neste caso. Lá está o amor, e ele
indubitavelmente pega fogo! Embora às vezes não se comporte tão escondido, exilado e
acobertado assim. Utilizando-me deste exemplo como metáfora, a fumaça assinala
enfaticamente a presença do amor, e faz alertar ao sujeito que há, ali, na finalidade
mesma do sintoma, um chamuscante desejo insatisfeito. Numa análise, o analista não
deve senão perseguir este cheiro de queimado. Ele constitui o ponto de partida, tal como
as indicações de Freud permitem concluir.
O sujeito é sempre o ponto de partida do discurso analítico (esse ponto de
partida esfumaçado o qual destaca Freud). Com Lacan, aprendemos que o sujeito não é
outra coisa senão aquilo que desliza numa cadeia de significantes. A fim de demonstrar
que o signo se diferencia do significante, ele afirma, no Seminário 20:
“Desde sempre, a teoria cósmica do conhecimento, a
concepção do mundo vem brandir o exemplo famoso da
fumaça, que não há sem fogo. E porque não colocaria eu
aquilo que me parece? A fumaça bem pode ser também o
signo do fumante. E mesmo ela o é, sempre, por essência.
Não há fumaça senão como signo do fumante. Todos sabem
que, se vocês vêem uma fumaça no momento em que
abordam uma ilha deserta, vocês dizem logo para si
mesmos que há todas as chances de que lá haja alguém que
sabe fazer fogo. Até nova ordem, será um homem”
(1972/3:68).
Desta maneira, podemos aferir que o signo não é signo de alguma coisa, mas sim
aquilo que significa que haja ali um significante – um homem, uma mulher, qualquer
coisa – que advenha como efeito do funcionamento do significante. A fumaça não é
signo de algo para alguém, mas sim, signo do fumante. O signo, no amor, é sempre
signo de um sujeito que ama – um homem, mesmo que do sexo feminino.
Em Análise terminável e interminável (1937), Freud confere uma direção precisa
para a análise. Questionando o american way of live, que visa apressar o decorrer das
187
interpretações do inconsciente, tece uma ácida crítica à ótica de Rank, que presumia
que, se o paciente fosse capaz de lidar com o trauma do nascimento através de uma
análise, estaria para sempre livre de toda a neurose. Freud realiza, então, a seguinte
consideração, muito própria daquilo que procurei descrever neste item, principalmente
por valer-se de termos tão afins ao fogaréu ora destacado:
“Não ouvimos muito sobre o que a colocação em prática
do plano de Rank fez pelos casos de doença.
Provavelmente, não fez mais do que faria o Corpo de
Bombeiros se, chamado para socorrer a uma casa que se
incendiara por causa de uma lâmpada a óleo emborcada,
se contentasse em retirar a lâmpada do quarto em que o
fogo começara. É fora de dúvida que, por esse meio, seria
conseguida uma considerável diminuição das atividades
dos bombeiros” (1937:01)
.
Ao analista cabe poder lidar com este implacável fogo. Não o fará, no entanto,
sem emprestar a isto uma boa dose de sua angústia. Quanto ao sujeito, todas estas
considerações levam a concluir que este é mesmo como “cinza”: preto e branco são
duas metades que não o confortam, embora ele faça delas o seu leme. Por vezes, ele
entrega-se ao fogo - seus amores - para depois ser recolhido pó, aqui e ali, entre uma
análise e outra. Aí, então, junta de um só tempo seus restinhos, e segue rumo à nova
morte, seu negrume. Corre o risco de um dia ficar largado, feito guimba. Mas segue em
frente, feito cinza, aceso e esfumaçado.
Para finalizar estas considerações acerca do fogo e seguir ao tópico que se segue,
retomo a ilustração do corpete da histérica – aquilo que sustenta que não haja nada ali –
para realizar uma última deferência. Não posso deixar de mencionar que esta alusão
lacaniana decreta algo acentuadamente engendrado na estética feminina, e na cotidiana
preocupação com a beleza, tão própria das mulheres. Assim, torno ao núcleo do que
Lacan postulara no Seminário 10, ainda sobre o Unheimlich: o belo é o último recurso
do sujeito antes da angústia. O que se encontra por trás da mulher, mesmo a mais
encantadora delas, é a presença do nada, conforme já anunciado no final do Capítulo 3.
É a tentativa de consumar a presença do nada – presença cujo sinal é a fumaça – que me
conduz, agora, ao próximo item.
188
5.4- Esse obscuro objeto do desejo:
80
“Se as penas com que Amor tão mal me trata
quiser que tanto tempo viva delas,
que visse escuro o lume das estrelas
em cuja vista o meu se encende e mata”
Luís de Camões
81
Tendo em vista que a mulher fora o que ‘restou’ para Freud, e posto que ele
admite, ao final de sua obra, que as articulações teóricas sobre a mulher esbarraram em
certos limites, assentaram-se em algumas impossibilidades e não foram discorridas à
altura, Freud, todavia, em Análise terminável e interminável (1937), mostra-se tão
implacável quanto consolado a respeito da questão da feminilidade:
“O repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um
fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo. Seria
difícil dizer se e quando conseguimos êxito em dominar
esse fator num tratamento analítico. Só podemos
consolar-nos com a certeza de que demos à pessoa
analisada todo incentivo possível para reexaminar e
alterar sua atitude para com ele” (1937:287).
É surpreendente que Freud tenha podido - neste texto, que é considerado uma
espécie de desabafo, um certo reconhecimento de seu próprio desamparo frente aos
impasses teóricos e clínicos que lhe concerniam - apesar disso, indicar uma direção tão
verdadeiramente viável para a psicanálise. Pois não é pouco o que ele convoca - ao
analista e ao sujeito - a promover através da análise. Ao encerrar o presente artigo com
esta observação, Freud destina à análise uma via privilegiada, onde o sujeito possa dar-
se a colher efeitos daquilo que ele propriamente não pode dizer, dado que resta, no final
das contas, sempre algo por dizer.
De fato, a clínica permite avaliar as voltas que o sujeito se presta a dar, no
intuito de tentar discorrer sobre os desígnios os quais ele não pode, por uma questão de
estrutura, aplacar com o seu dizer. A morte, como já demonstrado, é um deles, e a
feminilidade é outro. Com Freud e Lacan, a teoria psicanalítica institui a feminilidade
como a representação cabal desta impossibilidade inerente ao dizer, em outras palavras,
deste não-todo - que, na abordagem aqui privilegiada, incide suas manifestações no
80
Este título foi inspirado em um filme de Luis Buñuel, mestre do surrealismo, que carrega o mesmo
nome.
81
Camões, L.: Melhores poemas (1984:40).
189
campo do amor. O sexo feminino encarna esta incompletude decantada por este “não
poder se dizer tudo”, tão bem expresso, paradoxalmente, na experiência de uma análise.
Nas palavras de Serge André, em O que quer uma mulher?, “a psicanálise não permite
saber tudo, pois o inconsciente não diz tudo (...) A psicanálise permite saber o “não-
todo”, porque o inconsciente diz “não-todo” (1987:10).
Aqui, faço um adendo. Para cernir a questão da feminilidade no que tange ao
tema do amor, é preciso dizer que, certamente, Freud não se reportou à diferença
anatômica entre os sexos com a finalidade de afirmar que a materialidade carnal e
biológica dos órgãos sexuais, por si mesmos, bastariam para determinar o que é
apreendido pelo sujeito em termos de uma diferença. O que está em jogo, na visada
lógica destas premissas freudianas, é algo que, a partir de Lacan, nos foi permitido
descortinar: o estatuto do significante, que relega a este órgão material um
aprisionamento à dialética do desejo - este sim, osso duro de roer, visto que se localiza
“uterinamente” nas intempéries estampadas da vida cotidiana do sujeito. Não é,
toscamente, o anatômico da diferença que espanta o menininho, diante da confrontação
com o outro sexo. Mas sim o advento da confirmação de que há o sexual - o que implica
em que, diante da constatação de tal disparidade, o menino seja jorrado, lançado, à sua
radical incompletude.
Esta ressalva cabe para justificar a lógica que aqui busquei empreender, ao
referendar o exame de alguns textos freudianos que apresentam concretas analogias aos
órgãos sexuais, propriamente ditos. Procurei abarcá-los como metáforas daquilo que,
nesta ceifa, concerne à sexualidade, ou, para precisar melhor, à incompletude contida na
sexualidade. Para além do real dos órgãos, minuciosamente expressos nestes textos
freudianos, tratei de averiguar a lógica subjetiva ali contida, para referendar a idéia de
que aquilo que se busca no amor retorna do real, ou seja, não há objeto que possa vir a
aplacar a falta estrutural do sujeito, e isso pelo fato de que a especificidade do amor é
ser um corolário daquilo que o sujeito não possui: o outro sexo. Pois, justamente por
não tê-lo, é que o sujeito irá buscá-lo. Trago à baila mais uma referência a este respeito,
onde Freud novamente situa anatomicamente a questão que está em jogo:
“Acontece com freqüência que os neuróticos do sexo
masculino declaram que sentem haver algo estranho no
órgão genital feminino. Esse lugar Unheimlich, no entanto,
é a entrada para o antigo Heim (lar) de todos os seres
humanos, para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez,
190
no princípio. Há um gracejo que diz que ‘O amor é a
saudade de casa” (1919:305).
Esta saudade de casa, esta nostalgia, reafirma a seguinte idéia: aquilo que pode
retornar para o sujeito, no amor, é o real. Remeto (aproveitando a presente articulação
freudiana de uma ‘volta ao lar’, ao Heim), ao que já fora demarcado no Capítulo 4,
quando Freud elucida, em O mal estar na civilização (1930), que a pulsão de morte é
assim como um “inquilino permanente”. Afirmar que ela se estabelece tal como um
hóspede vitalício não é senão admitir a presença - para acentuar a dicotomia contida
nesta estampa freudiana - da morte que há na vida. Trata-se, curiosamente, de uma
morte vitalícia (salvando a contradição dos termos), alocada sem pedir licença nas
entranhas da subjetividade do sujeito. Assim, ao buscar o seu Heim, o seu lar perdido, o
seu endereço assertivo, enfim, a sua fixa “residência”, o que o sujeito encontra, contudo,
é o que ali “reside de resíduo”.
Mas há esta saudade da outra metade, nos adverte Freud. E há,
impreterivelmente, o que dela resulta: o amor pela tal metade perdida. No entanto, eis
que este amor resta sempre, também, pela metade. Então, o sujeito irá se confrontar com
o seu nada - com aquilo que a mulher tão bem representa, na partilha sexual. O útero, a
vagina, seu órgãos corporais, enfim, são também fiéis representantes deste seu
subterfúgio de vislumbrar o retorno ao lar (lembremos que Lacan denominou a libido
como um órgão), muito embora o que o sujeito irá encontrar defronte ao outro sexo, o
que ele irá depreender como estando alocado no corpo da mulher, será o vazio.
Ao dirigir-se a uma mulher, o homem se vê obrigado a facear aquilo que toda
relação de amor traz, propriamente falando, em seu ventre: o buraco da vida e da morte.
Novamente aludo às palavras de Chico Buarque, cujo eco tem o dom de reverberar na
ausência da sonoridade que implanta, remetendo à canção onde ele declara a ‘mortalha
do amor’, esta ‘metade arrancada’, esta saudade de casa, tão próprias do sujeito: “leva o
vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho
que já morreu”.
82
Nas entrelinhas de toda relação de amor, e, portanto, nas próprias
entranhas da vida psíquica do sujeito, aloja-se a morte. A morte pode até ser o revés da
vida, mas, certamente, não é o revés do amor.
Do ponto de onde Freud deixou os seus fundamentos acerca da sexualidade,
pode-se, resumidamente, descrever o seguinte: só há um sexo (o falo), embora este se
82
Buarque, C.: Pedaço de mim, In: Letra e música (1989:166).
191
conforme em dois modos de manifestação - a presença e a ausência. Com Lacan, a
castração consolida-se por ser uma operação que destina ao sexo feminino o estatuto da
foraclusão.
83
Para referendar esta lógica presente nas articulações sobre a feminilidade,
estando esta localizada para além do campo do orgânico, Lacan insiste no cuidado a ser
tomado na descrição freudiana dos estágios da sexualidade, estágios formadores da
libido, para que não se recaia na concepção de uma “pseudo-maturação”. Estes estágios
se organizam, isto sim, indica Lacan no Seminário 11, em torno da angústia de
castração: “O fato copulatório da introdução da sexualidade é traumatizante – aí está um
fisgamento de um vulto” (1964:65).
Foi o que procurei desenvolver, na lógica assinalada entre os artigos da
Psicologia do amor e O tema dos três escrínios (1913) ao destacar que, como
conseqüência do susto promovido pelo primeiro ato sexual, frente ao vulto ali
deflagrado, o homem se viu obrigado a instituir um tabu. O que não resolveu, de
maneira nenhuma, o seu problema.
Perseguindo esta contextualização acerca do traumático da sexualidade, aludo ao
que, ainda no Seminário 11, Lacan sugere: a angústia de castração é aquilo que orienta
inclusive as relações objetais que são anteriores à sua própria aparição (o desmame, a
analidade, etc), de forma a “cristalizar cada um destes momentos numa dialética que
tem por centro um mau-encontro” (1964:65). O mau encontro central, profere Lacan,
está no nível do sexual. Mau encontro que eu arrisco chamar, para além de central, de
uterino, dado que carrega em suas vísceras a vida e a morte.
Não há encontro, no amor. Embora haja a felicidade episódica com a qual se
lambuza o sujeito, quando a agarra. O que há no amor é a perspectiva, a ilusão, a visada
imaginária do encontro. A cada vez que o homem se dirige a uma mulher, no máximo, o
que ele irá encontrar é uma brecha, uma fissura. De forma que tudo o que ele será capaz
de apalpar, nesta experiência, é uma cavidade. Isto lança uma nova aparência para
aquelas curiosas idiossincrasias das quais tanto se queixam os pacientes neuróticos.
Pode-se imaginar agora porque é tão difícil a relação entre o sujeito e seu objeto,
fundamentalmente se relevarmos o fato de que, por sob as suas astúcias, o que está em
jogo no amor, para o sujeito, é o objeto a: objeto que o deixa a desejar, objeto a-desejar.
83
Em alemão, Verwerfung. Termo que designa uma exclusão, que Lacan localiza na teoria das psicoses,
como foraclusão do Nome-do-pai (este, correlato da castração), para designar uma falta que confere à
psicose a sua condição essencial, distinta da neurose: o significante rejeitado do simbólico reaparece no
real, sob a forma, por exemplo, de alucinação.
192
Não é por nada que ele se vê tão atrapalhado em torno dos detalhes mais comezinhos do
seu cotidiano, senão porque, a cada vez que se relança ao objeto, dali ele extrai a sua
azia, o seu fel.
No Seminário 20, Lacan apresenta os mais importantes postulados que
referendam a idéia de que há, no amor, um fosso escavado nos domínios da
subjetividade humana. Sobressalta a idéia de que, no coração da relação entre o homem
e uma mulher, o que se pode entrever é um vazio, representado de modo pungente pelo
amor. O amor, neste Seminário 20, é tomado “mais, ainda” pelo seu viés radical, qual
seja, o de ancorar-se na ausência da relação sexual. Lacan sublinha uma ausência
inexorável, presente na relação entre o homem e uma mulher – uma vez que cada um
destes nada mais é do que um significante -, afirmando que a relação sexual é “a única
parte do real que não pode vir a se formar em ser” (1972/3:66). Daí extrai-se sua
inexistência.
Isso se dá pelo fato de que ela é uma relação tomada pela linguagem. Ao abordar
a dinâmica discursiva na qual se insere o sujeito, constituída por um ‘liame’, um laço
entre os sujeitos que falam, Lacan anuncia um importante paradigma para a questão da
sexualidade humana, bem como das pulsões:
“Aqueles que falam, certamente, não são não importa
quem, são seres que estamos habituados a qualificar de
vivos e, talvez, é muito difícil excluir, daqueles que falam,
a dimensão da vida. Mas logo percebemos que essa
dimensão faz entrar ao mesmo tempo a da morte, e que
daí resulta uma radical ambigüidade significante. A única
função pela qual a vida pode definir-se, isto é, a
reprodução de um corpo, não pode ela própria intitular-se
nem como vida nem como morte, pois, como tal, ela
comporta as duas, vida e morte” (1972/3:43).
Mais adiante, na lição intitulada O amor e o significante, Lacan cita, conforme já
aludi no Capítulo 1 (mas agora trago seu complemento): “o amor visa o ser, isto é,
aquilo que, na linguagem, mais escapa – o ser que, por um pouco mais, ia ser, ou, o ser
que, justamente por ser, fez surpresa” (1972/3:55). A partir dos textos freudianos
evocados nesta tese, entrevê-se o quanto cada relação humana comporta um susto, uma
surpresa, que se desvela no momento do encontro com o outro sexo. Pois neste
momento se desenha o verdadeiro desencontro, e é nisto que o sujeito é capturado, e
também impulsionado, sempre mais uma vez, a ter de se desdobrar.
193
Quando referencio este encontro faltoso (mau encontro) como determinado na
relação do homem a uma mulher, estou me referindo ao movimento de um sujeito ao
objeto. Pode ser o amor de uma pessoa do sexo feminino por outra do sexo masculino,
ou até mesmo a relação que se desenrola (ou enrola) entre duas pessoas do mesmo sexo.
Melhor dito, é a relação de um sujeito ao Outro, que cabe averiguar. Pois, de um sujeito
ao Outro, só há caminho através de um nebuloso circuito, desprovido de garantias, daí o
susto, a surpresa. Parafraseando Lacan, ainda no Seminário 20: “Dito de outro modo, o
de que se trata é de o amor ser impossível, e a relação sexual se abismar no não-senso, o
que não diminui em nada o interesse que devemos ter pelo Outro” (1972/3:117).
O sujeito se surpreende, se abisma, pelo não-senso que a relação sexual carrega.
Mas o sujeito também se abisma nela, uma vez depositando-lhe seus mais fortes
impulsos, numa espécie de mergulho de si mesmo. O amor marca sempre um abismo.
Mas, conforme avisa Lacan, o amor é impossível, todavia nada diminui o necessário
empenho que o sujeito nutre pelo Outro.
O sujeito empenha-se em pedir ao Outro sempre um pouco mais de amor. É a
condição da demanda, conforme busquei explicitar. No entanto, no que ele esbarra,
senão com o desejo do Outro, em sua aparição vertiginosa de queda, em sua dimensão
furada, cindida? Desta forma, o que retorna para o sujeito é seu desejo insatisfeito,
diante do qual uma análise poderá operar - não na direção de prescrever que o sujeito o
supere, ou que o domine, mas antes no sentido de que, uma vez instalado nele, possa se
exercer como sujeito. É importante frisar isto: não se trata, na tessitura da passagem da
demanda ao desejo, de uma superação, dado que esta dinâmica se determina em termos
de uma dialética, e, também, pelo fato de que ela se promove a cada vez. Sobretudo, não
se pode mesmo contar com uma superação, com um “para além”, devido ao fato
estrutural de que o desejo é sempre desejo do Outro - de um Outro em franca queda, em
prosaico declínio.
Melman (2004) exacerba o inexorável da estrutura do sujeito, ao anunciar, a
respeito da sinuosa relação do homem com uma mulher, que “não adianta eles estarem
sempre se acusando um ao outro, pois é entre
um homem e uma mulher que algo não
funciona”.
84
Algo não funciona, não vai mesmo lá muito bem, tal como denunciara
Lacan no Seminário 20. A primeira formulação que se pode arriscar oferecer a esta
citação de Melman é a ponderação de que a tão popular expressão “relação entre
84
Melman, C.: Esta citação, não publicada, faz parte do anúncio de uma jornada que será proferida pelo
psicanalista em agosto de 2004, no Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro.
194
homens e mulheres”, da qual se ocupam as revistas femininas, os livros de auto-ajuda e
o linguajar corriqueiro, é, em si mesma, bastante suspeita. É uma expressão que,
conforme a psicanálise nos faz enxergar, já não se sustenta enquanto tal, no campo dos
humanos: se entre um homem e uma mulher algo não vai bem, é precisamente porque,
conforme adverte Lacan, não há sequer relação! O que está ali, entre o homem e uma
mulher, é um corte irremediável na esfera, uma cisão abrupta, daquelas que, tal como
anuncia Freud, nem mesmo o fogo é capaz de abrandar. É por isso que, entre eles, a
coisa flameja.
Pois todo amor é um amor pela metade. E entre
uma metade e outra desta esfera,
está o real. O real, tal como procurei classificá-lo, no decorrer desta tese, pode ser
notificado na experiência do sujeito como desencontro, encontro sempre faltoso, perda,
hiância, incompletude, insatisfação, angústia, estranhamento, morte, sangue, vazio,
ocultamento, descerramento, feminilidade... Como se pode deduzir, são muitas as coisas
que o homem pode encontrar numa mulher! Por que será que ele continua a reclamar?
Em segundo lugar, ainda sobre esta citação de Melman, é claro que as coisas não
podem ir lá muito bem no campo do amor, visto que “ela”, a mulher, irá
incessantemente buscar nele aquilo que “ele”, homem, irá compulsivamente privar-se a
lhe dar. Enquanto “ela” quer amar ardorosamente, “ele” lhe nega, terminantemente, este
amor. Enquanto “ela”, provocadora, quer ofertar ao homem a goela sempre aberta e
insaciável de seu desejo, “ele”, ressabiado, buscará dirigir-se urgentemente para outra
direção. Assim, se confrontam, esbarram, tropeçam, se condenam: o amor é sempre
notícia da perda de amor.
A respeito disso, Melman (2004) destaca:
“Talvez seja mesmo necessário que as coisas não
funcionem bem demais, para que a tensão e a decepção
acumuladas provoquem o desejo; um instante apaziguado
até a vez seguinte. Mas quem é então que reside aí nesse
‘entre’, nesse ‘antro’? Deus, o diabo, nada? Qualquer que
seja a resposta, o resultado é o mesmo, não há relação
sexual”.
85
85
Melman, C.: Esta citação também faz parte do anúncio da jornada que será proferida pelo psicanalista
em agosto de 2004, no Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro..
195
Portanto, qualquer que seja a posição diante do sexo (ou, qualquer que seja a
posição sexual), o resultado, para o sujeito, será o mesmo: não há
relação sexual. Mais
que isso, trata-se de que o resultado da operação do amor seja sempre o seguinte: ali,
“não há”. Melhor dizendo: entre o homem e uma mulher há o “não há”, posto que “há o
a”, objeto essencial, estruturante, desde sempre caçado e para sempre cassado. Não há o
que possamos encontrar no Outro, senão o vazio cabal, ensangüentado, ausência fiel em
seus retornos, todavia sempre sem contornos. O que o sujeito encontra quando busca o
objeto é a revelação de que, afinal de contas, ali, “não há”.
O que se passa, então, conhecemos bem: é um Deus nos acuda. Ainda sobre este
entre
, apontado por Melman - este espaço que pode ser Deus e o diabo, lugar que
sempre resta na confrontação do sujeito com o irrepresentável – relembro que é mesmo
o limbo que se consagra neste ambiente, relançando o sujeito a seu destino asseverado,
que é de estar pairando entre a vida e a morte.
O sujeito irá sempre buscar a sua amada esfera, onde quer que ele a suponha,
onde quer que ele deposite as suas tão falsas quanto verdadeiras ilusões de completude.
Irá catar seu balãozinho, ainda que este teime em voar alheio aos dissabores da ventania.
O sujeito irá buscar, onde quer que seja, a sua pelota, fingindo não dar bola para aquilo
que, logo à frente, espreita e adverte acerca do inefável. O sujeito irá sempre recomeçar
a amar, ainda que intuindo a morte - com sorte, por vezes esmorecida. Ele irá recomeçar
a amar assim mesmo, renascido de suas cinzas, dotado de seus restos, pois que isto, no
fundo, aguaceiro nenhum é capaz de abrandar.
Encerro estas observações com uma citação de Lacan, no Seminário 11: “Onde
está o fundo? Será a ausência? Não. A ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir a
ausência – como o grito não se perfila sobre fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz
surgir como silêncio” (1964:31). Este grito, Freud patenteou-o para nós, e o que ele
profere resume-se em uma só palavra: “Fogo”!!!
O sujeito brada ‘Fogo!’; ainda que ninguém possa ouvi-lo, ainda que ninguém
seja capaz de acudi-lo, ainda que nada esteja apto a contê-lo ou complementá-lo, e ainda
que a própria fumaça daí desgarrada o asfixie quase até a morte. Digo ‘quase’ a morte,
pois ninguém sabe o que é a morte, bem como não sabe o que é o amor.
Todavia, quem sabe o analista, caso consinta em escutar esse silêncio
ensurdecedor, possa fazer valer o percurso por onde passa toda esta ardorosa e
implacável efervescência. E é aí onde tudo recomeça, para nós...
196
CONCLUSÃO:
DO RESTO DO AMOR...
“Eu te desejo não parar tão cedo,
pois toda idade tem prazer e medo.
Que você descubra que rir é bom,
mas que rir de tudo é desespero.
Desejo que você tenha a quem amar,
e quando estiver bem cansado,
ainda exista amor pra recomeçar”.
Frejat
86
Como concluir sobre o amor, terreno inconcluso por excelência? Como cernir
suficientemente o tema do amor, posto que ele está sempre aí, pronto pra recomeçar?
Enquanto realizava este trabalho, pude deparar-me com o aspecto fugidio do amor,
aspecto arisco, marginal e tangente do amor: quanto mais me aproximava do assunto,
mais me afastava dele; quanto mais acreditava estar circunscrevendo o tema do amor,
mais ele se desencantava em minhas mãos.
Assim, o que se pode concluir sobre o amor é que ele realmente resta,
inconcluso. A presença do amor, efetivamente, denuncia seu impávido lugar de resto.
De um real, como resto. Tentar abranger este tema traz, portanto, para quem neste
terreno se lança, a comprovação de seu próprio estatuto: de estar concernido por um
resto.
Fato consumado a cada vez que um paciente adentra o consultório de seu
analista, a fim de falar sobre seus infortúnios no campo amoroso. Isto, dado pela própria
condição de seu discurso, ancorado na linguagem, tal como Lacan a designou para nós,
desde os primórdios de seu ensino: “toda palavra formulada como tal introduz no
mundo o novo da emergência do sentido. Não é que ela se afirme como verdade, mas
antes que introduz no real a dimensão da verdade. (...) Porque, por ser enganadora, a
palavra se afirma como verdadeira” (1953/4:299).
Assim detenho-me, por instantes, na questão da veracidade do amor, a fim de
salientar o que o campo amoroso, aqui retratado, perspectiva de mais real para o sujeito.
Afinal, é preciso conferir a esta tese um pouco mais de otimismo... Trata-se, então, de
caracterizar aquilo que a experiência do amor é capaz de promover de plausível para o
86
Frejat, Maurício Barros e Mauro Sta.Cecília: Amor pra recomeçar (2001).
197
sujeito, aquilo que pode ser uma via operadora de alguma mudança, levando-se em
conta a presença de uma alteridade.
Inicio estas considerações – sobre as otimistas possibilidades sugeridas pelo
amor – indagando: poderíamos concluir que o amor de transferência é mera repetição?
Ou ele evocaria, em seu cerne, no centro mesmo de sua tórrida experiência, algo de
inaugural, novo, criativo? Façamos um pequeno passeio teórico, a fim de evocar
possíveis caminhos para esta questão - que, adianto, inclinam-se na direção de afirmar
uma alternativa de criação, conferida pelo amor.
No Seminário 1, Lacan ocupa-se em demonstrar quais seriam as características
próprias do campo da transferência. Ele destaca, assim, o aspecto da reconstrução: mais
do que restituir uma integralidade do sujeito, mais do que realizar uma restauração do
passado, o trabalho analítico, propiciado pela transferência, irá revelar-se como
trazendo, de essencial, a presença de uma reconstrução.
Freud, por sua vez, em Construções em análise, texto de 1937, escrito no final
de sua vida, atribui suma importância a este tema, concluindo que o aspecto da
reconstrução operante na cena analítica vem a ser, em si mesmo, mais importante do
que qualquer outro, a citar a rememoração ou a repetição. Também na exposição dos
casos clínicos do Homem dos ratos (1909) e do Homem dos lobos (1918), Freud já
havia esbarrado nesta questão de saber qual a função daquilo que é reconstruído desde o
passado do sujeito. Os relatos desses casos giram em torno de uma construção, embora
Freud tenha se debatido entre esta descoberta - de que existe a presença daquilo que é
construído pelo sujeito, no momento mesmo em que uma análise decorre -, e a
necessidade de conferir uma autenticidade, uma veracidade ao relato de seus pacientes.
Esta questão importa ser esmiuçada, uma vez que pretendo afirmar,
fundamentando-me nos textos que versam sobre este impasse, que o amor de
transferência é aquilo que, na experiência, traz a revelação de uma novidade, sempre por
vir. Por tocar no cerne do real, por estar engendrado por este registro, bem como por
não se estancar numa representação que dê conta de amordaçar o discurso proferido
pelo sujeito em análise, o amor de transferência é a operação que lhe permite deparar
com uma novidade sempre incessante, e sempre ligada à sua verdade pessoal. O que aí
se encontram imiscuídas são, precisamente, as propriedades do amor, este amor como
estando entrecortado pelo real, e como sendo aquilo que, por estar ancorado no
simbólico, nunca se obtura definitivamente.
198
Freud realiza, em Construções em análise (1937), uma comparação entre o
trabalho analítico e a escavação arqueológica. No entanto, ele as difere: “A construção,
porém, não é um trabalho preliminar no sentido de que a totalidade dela deve ser
completada antes que o trabalho seguinte possa começar” (1937:294). Não há uma
seqüência cronológica que dê conta de garantir o que a análise - fundamentada numa
experiência de amor, e que, segundo Freud, traz a marca dos protótipos das primeiras
relações objetais - possa ajudar o sujeito a construir. Ademais, estas construções
advindas da análise soam a Freud como sendo infalivelmente parciais, de forma que não
se totalizam, não se fecham, não podem ser determinadas por um viés único e
definitivo.
Lacan, no Seminário 1, atesta o valor destas construções em análise. O que será
revivido, bem como aquilo que fora vivido como tendo sido verdadeiro, segundo Lacan,
importa menos do que a reconstrução - este sim, um aspecto essencial. Pronuncia
Lacan: “Direi - afinal de contas, o de que se trata é menos lembrar do que reescrever a
história” (1953/4:23). Reescrever, para ele, possui o sentido de reconstruí-la.
Breves trechos deste artigo freudiano oferecem alguns indícios para que se ateste
a força imputada por Freud ao conceito de transferência, e ao que ela comporta de vivaz
e lancinante, isto é, a sua experiência. Por exemplo, ao discutir o modo como uma
conjectura, uma hipótese de interpretação, enfim, uma construção, pode ser assimilada
pelo sujeito, Freud destaca o fato de que, submetido à transferência, o paciente
normalmente transforma esta conjetura em pura convicção.
Sobre esta perspectiva das construções, via necessária para que o analítico se dê,
Freud dirige-se aos analistas de forma categórica: nossa tarefa é a de trazer à tona para o
paciente aquilo que foi esquecido a partir dos “traços que ele deixou atrás de si”
(1937:293), ou, mais precisamente, trata-se de construí-lo. No entanto, apesar de ter dito
que esta experiência se coaduna com o esquecimento, Freud, mais adiante, articula:
“Nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida”
(1937:303).
Vejo aí exposto um ponto de impasse, e talvez também um ponto de chegada
para Freud, lugar desde onde ele não pode avançar. Pois, afirmar que as construções em
análise devem sua existência a um passado esquecido em decorrência do recalque,
parece bem distinto do que afirmar que as construções são o resultado de uma tentativa
de recuperação de uma experiência já perdida para o sujeito. Então, se fora com este
199
ponto que Freud se debatera ao longo de toda a sua obra, também fora este ponto que
ele deixou, como incumbência, aos analistas.
Lacan avançou sobre este aspecto ao afirmar, no Seminário 1: “O centro de
gravidade do sujeito é essa síntese presente do passado a que chamamos história”
(1953/4:48). Esta frase traz a articulação de uma lógica temporal muito própria da
psicanálise, marca registrada das formulações lacanianas, e re-situa a questão que havia
sido encarada por Freud como um enigma. No entanto, o que estou pretendendo
sublinhar é que este ponto controverso, na obra de Freud, deu margem a que se pudesse
considerar a transferência, na teoria freudiana, como sendo estritamente uma repetição.
Que ela não teria trazido, no escopo de sua fundamentação conceitual, elementos
suficientes para ser articulada como algo mais do que uma repetição do passado. Neste
caso, estaria o caráter de novidade totalmente elidido de seu campo? Creio que se pode
levantar uma perspectiva distinta, uma vez que procurei demonstrar as características do
que seria o fio da meada, desde os ensinamentos freudianos, que nos conduz à idéia de
que o amor está, desde sempre, articulado com uma impossibilidade. Ainda que, ao
fazê-lo, não pudesse deixar de inserir neste exame as controvérsias nas quais Freud se
viu emaranhado.
Em Lógicas de la vida amorosa, Miller argumenta que o amor, para Lacan,
estando em uma posição de originalidade em relação ao amor concebido por Freud,
seria uma invenção (1991:17). Em Freud, segundo ele, toda a teoria do amor, uma vez
baseada no complexo de Édipo, se dedicaria a conceber o amor como uma repetição.
Ele se refere inclusive aos textos das Contribuições à psicologia do amor (1910-18),
alegando que ali, também, o amor se apresentaria desta forma: quando amamos, não
fazemos mais do que repetir o reencontro com o objeto fundamental, objeto anterior à
barreira incesto, ora substituído por outro. Afirma Miller: “Tudo isto está feito para
demonstrar o amor como repetição” (1991:17). O amor lacaniano, por outro lado, Miller
o atesta como sendo o amor da invenção, na medida em que ele é uma elaboração de
saber, e na medida em que o amor é “um modo de dirigir-se ao a, a partir do Outro do
significante” (1991:17).
Safouan, por sua vez, em A transferência e o desejo do analista, indica que, pelo
fato de Freud não possuir ao seu alcance outros recursos além dos históricos, a fim de
teorizar sobre uma anterioridade lógica; e, portanto, por não encontrar elementos que
dessem conta do objeto primeiro como sendo o fantasma do sujeito (objeto a, como dirá
Lacan), Freud “só pode relacionar a transferência com a repetição de uma experiência,
200
seja a do indivíduo ou da espécie, o que produz um impasse no que concerne ao fim de
suas análises” (1991:26). Por outro lado, o autor também enfatiza que Freud aponta, ao
longo de toda a sua obra, para o estatuto do objeto do fantasma, como sendo umx
enigmático”. Este enigma, diz o autor, faz com que a repetição seja sempre um fracasso
repetido.
Silvestre também tece algumas considerações acerca da íntima relação entre a
transferência e a repetição. Em Amanhã,a psicanálise, afirma que “a transferência é
primeiro transferência de significantes, de ‘representação’. Mas, como o inconsciente
insiste em ser escutado, repete e se repete” (1991:49). No entanto, o autor toma em
mãos, como eixo central do desenvolvimento que realiza, a distinção, introduzida por
Lacan no Seminário 11, através da qual se pode afirmar que a transferência não é
somente a repetição, preceito que está longe de ser facilmente admitido, segundo ele, já
que a “confusão entre os dois conceitos é ainda maciça nos trabalhos mais recentes”
(1991:50).
Eis o que gostaria de ressaltar, após este breve comentário sobre estes autores
citados: a meu ver, o amor fora elaborado como uma “criação criativa”, tanto por Freud
quanto por Lacan. Explico: o amor é uma criação, na medida em que se encontra
lançado à situação analítica sob moldes inteiramente artificiais. Constitui uma mentira,
conforme afirmara Lacan, ou uma ficção, falsidade. Mas o amor é também uma criação,
no sentido de que comporta a novidade que permitirá ao sujeito um novo olhar sobre
suas questões centrais, uma nova tomada de posição diante de seus desígnios subjetivos.
A partir do fato de ser uma repetição de “clichês estereotípicos” já trazidos na bagagem
do sujeito, e pelo fato de fazer reacender o desencontro essencial ali guardado,
certamente o amor admite promover, em sua incidência analítica, alguma alteridade.
Lembremos que Lacan anuncia, no Seminário 1, que a transferência participa,
“no fundo, da ilusão” (1953/4:134). Mas ele designa que é preciso não confundir, em
Freud, a função do imaginário com a função do irreal. Isto situa as coisas, como vimos,
desde o ponto de vista da não-realização. Evocando estes termos, não me restam
dúvidas de que a transferência deve ser considerada como o que há de mais real numa
análise. Ela é, através do amor, aquilo que permite operar o real, precisamente por este
fato: este amor, tal como todos – e até mais do que os outros – não se realiza.
Conforme anunciara Freud, do interior de seus paradoxos, por um lado, a análise
não cria este amor, encontra-o pronto: há uma pré-condição para enamorar-se, que é
própria da neurose, e reimpressa na situação analítica. Assim, o amor é uma repetição.
201
Por outro lado, há sempre uma cota de insatisfação da libido, responsável por promover
este novo investimento, o que nos ofereceria a idéia de que o amor, articulado que está
com a pulsão de morte, é sempre uma novidade. Eis sua face mais real. E eis, também, o
legado freudiano no qual estamos referidos: ter postulado o amor como posicionado, ele
sim, a serviço de algo - a serviço do trabalho analítico, foi o que Freud pôde fazer de
central, e que nos convoca, há mais de um século, a trabalhar.
Há um quê de desigualdade, um tanto de equiparação forçosamente fracassada,
pertinentes ao amor, que possibilitam ao sujeito o confronto com a sua dose de
diferença. Desta maneira, o amor de transferência, resultante de uma repetição, tece, a
cada vez, uma nova malha, que prima por não ser igual a nenhuma outra que a tenha
antecedido. Assim, sugiro que o amor de transferência seja tomado como algo original,
em três diferentes direções: a transferência é original, pois nenhum outro amor se
compara a ela, é original porque, inevitavelmente, se remete às origens de cada sujeito,
bem como é original visto que possibilita ao sujeito uma vivência que promove o
inédito, o novo, a alteridade.
Escolhi, durante a feitura da presente tese, acentuar esta alteridade, bem como a
disparidade, contidas na própria idéia de substituição - esta, muito presente nas
elaborações freudianas. A substituição é um sinal teórico de peso que confere lugar ao
criativo, ao diferente do encontro amoroso. Logo, a transferência só pode configurar-se,
sempre e a cada sessão, como fonte de ineditismos para o sujeito. A substituição, que
deve seu estatuto à noção de que as pulsões não são passíveis de satisfação completa –
fato que a parcialidade dos objetos subseqüentes só vem confirmar – é um legado
teórico freudiano de importância ímpar para aqueles que lidam com a clínica
psicanalítica. Ímpar naquilo que, justamente, não pode mesmo fazer par.
O amor, em sua dimensão de labareda, é algo a que o sujeito está fatalmente
submetido, na medida em que ele deve a sua existência ao Outro. E estar subsumido ao
Outro implica, como vimos, numa perda de gozo. Conforme anuncia Lacan no
Seminário 20, o nosso corpo é uma parte do Outro, da qual nós temos apenas o usufruto.
De fato, o sujeito é aquele que, essencialmente, deve algo ao Outro. Deve-lhe sua
existência subjetiva, deve-lhe sua vida orgânica, e, portanto, como efeito disso, passa a
dever-lhe todo o seu amor. Sim, pois o amor advém desta dívida simbólica que o sujeito
possui com este Outro que o constituiu. O que pode se tornar, por vezes, um recurso na
direção de apagar esta dívida a pagar; mas também o amor é esta entrega ao Outro,
202
numa experiência que, conforme demonstrado, somente faz reiterar a dívida impagável,
ali presente.
Disto resulta que a experiência amorosa não designa propriamente um repouso.
Muito ao contrário, é um convite ao que reside de mais inquieto no terreno das pulsões,
uma vez que Eros, tal como fora conjeturado por Freud em O mal-estar...(1930),
implica mesmo um desassossego, um desamparo, um mal-estar. A cisão, imperiosa,
constitutiva do sujeito, se ocupa em asseverar que tal movimentação seja permanente.
O que não significa dizer que o amor e a sexualidade não possam coabitar o
mesmo espaço psíquico para o sujeito, ou que sua parcial realização não possa
coadunar-se num único objeto; mas que se trata, isto sim, do aviso de uma perda
irrecuperável, com a qual o sujeito terá de conviver do princípio ao fim dos seus dias. A
partir dos ensinamentos de Freud, não podemos concluir apenas que ‘ou o sujeito ama
ou ele se relaciona sexualmente com o objeto’, mas sim que, conforme a experiência
comprova reiteradamente, o sujeito ama precisamente alocado nesta divisão e marcado
por esta falta.
Antes de concluir, faço ainda um pequeno comentário. Este percurso, deve-se
bem imaginar, não se deu sem sustos. Um deles, revelo agora: surpreendi-me com a
quantidade colossal de vezes que se pode encontrar o significante “falta”, no interior da
obra de Lacan. Se há um significante que não falta, na transmissão do ensino lacaniano,
é precisamente este mesmo: a falta. Se, como vimos, quando a falta falta, o que emerge
propriamente é a angústia, por outro lado não foi sem angústia que pude perceber a
presença tão constante deste termo. Pois bem: a falta está incansavelmente exposta nas
articulações lacanianas que percorrem a grande parte de seus Seminários. Disto, pude
deduzir que é mesmo a falta que o psicanalista deve permitir entoar em sua escuta, ao
tentar marcar o seu lugar na transmissão deste particular ensino.
A falta é o motor, assim como é a causa, de tudo aquilo que se articula no
terreno do amor. Certa vez, participando de um colóquio, escutei Marcel Czermack
relatar o seguinte episódio, vivido por ele próprio: um belo dia ele se aproximara de
Lacan, e por força de certas contingências, viu-se pronto a lhe exclamar: “Dr. Lacan, o
amor é bastante aterrorizante!” Eis que Lacan voltou-se para Czermack, para lhe dizer:
“Claro! Claro! Mas você não poderia falar de outra coisa?”.
87
Ao escutar esta narrativa,
87
Este relato fora proferido por Czermack, por ocasião do Colóquio do Tempo freudiano – Associação
psicanalítica, sobre o tema “Os herdeiros da ciência: a clínica psicanalítica e as novas formas de gozo”.
Hotel Marina, Rio de Janeiro, em 12/04/03.
203
tão próxima de tudo que tentei abordar aqui, pude concluir que o amor, tal como
escapulido da boca de Lacan, efetivamente alude a esta dimensão tão mortífera, nada
apaziguadora, experimentada como uma ausência, mas imensamente presente na vida de
todo e qualquer sujeito.
Vimos que, entretanto, é com horror que se vivencia a alternativa que se coloca a
cada vez que um sujeito busca aquilo que ele crê poder encontrar, na hiância alocada
entre ele e o Outro. Tratei de situar esta questão, a meu ver universal, sob a égide do
investimento que parte de todo homem em direção a uma mulher, embora deva
confessar que resta, sobre isso, uma questão: haveria alguma diferença entre a busca que
parte do homem em direção a uma mulher, e o investimento consolidado na busca da
mulher pelo homem? Mantenhamos a perspectiva do suspense, o teor inacabado deste
tema, e, para situar mais uma vez, o resto concernente a qualquer conclusão derradeira
sobre o amor.
Inspiro-me, para dizer que devemos manter o teor inacabado deste tema, no que
atesta Lacan, no Seminário 20, sobre o caráter interminável de todo saber. O próprio
título deste Seminário o consagra: Mais, ainda é o nome de uma falha... O saber, que
coabita o sujeito falante, afirma ele, possui a mais estreita relação com o amor: “todo
amor se baseia numa certa relação entre dois saberes inconscientes” (1972/3:197). É o
sujeito suposto saber que motiva a transferência, terreno irresoluto por natureza,
conferindo-lhe um caráter infindável. Da mesma forma, são infinitas as possibilidades
desta entrega feita pelo sujeito ao Outro, são perenes as tentativas de busca revitalizadas
através do amor - ainda que, entre o homem e uma mulher (entre o sujeito e o Outro),
haja um muro, isto é, aquilo que Lacan designou por “amuro”.
Mas é claro que sempre haverá os mais inconformados, que, após tudo isso
posto, podem ainda vir a se perguntar: “mas como, afinal, não existe relação sexual, se
notoriamente observamos a humanidade tecer seus enlaces justamente em volta disso,
desse entorno que prioriza a sexualidade, principalmente em nossos dias?” Ora, a meu
ver é precisamente por isso que o mundo gira, e não pára de girar (mais, ainda), em
torno da sexualidade: pelo fato de que aí reside, definitivamente, aquilo que “não há”. E,
se não há, há que se buscá-lo nalgum lugar – é devido a esta insistência do sujeito que o
mundo roda. Mas o fato é que não há, e nem pode haver, ainda que nos embasbaquemos
a cada vez que, imaginariamente, inebriamos os nossos sentidos de modo a crer que
teríamos encontrado a metade perdida de nossa cindida esfera.
204
Enuncia Lacan: “Não há relação sexual porque o gozo do Outro, tomado como
corpo, é sempre inadequado – perverso de um lado, no que o Outro se reduz ao objeto a,
e do outro, eu direi louco, enigmático. Não é do defrontamento com este impasse, com
essa impossibilidade de onde se define um real, que é posto à prova o amor?”
(1972/3:197). O amor é posto à prova pelos seus desígnios misteriosos, pelo fato de que
aí habitam as saliências do real, e pela evidência de que, a qualquer um dos lados dessa
esfera cortada que o sujeito decida enfocar, o que ele vê, lhe enforca. Tal como nos
permite entrever a analogia feita na Introdução, sobre o vazio da cartola, no espetáculo
da mágica humana. São os enigmas do amor, ou seja, a sua insalubridade, sua
insensatez, sua insanidade, sua “insandescência” (para além de sua incandescência, ou
de sua indecência), que trazem as notícias da impossibilidade que ali se aloja,
sorrateiramente. Assim sugere a música popular, evocando que, para além do limite do
que o amor permite revelar ao sujeito, “não existe amor, apenas provas de amor”.
88
Mas, acatar o preceito de que “não há relação sexual” não significa dizer que não
haja, sem dúvida, uma aproximação possível entre o sujeito e o Outro. Mas sim admitir
o real desígnio desta proximidade, ou seja, de que isso não chega nunca a encostar, dado
que a metade, o meio, o miolo mesmo do sujeito confere a esta fusão algo de
definitivamente impossível. Pois é verdade que, entre eles, lá pelas suas bandas e seus
meados, as coisas não caminham muito bem, todavia, é também verdade que elas
caminham assim mesmo...
Se, do amor, se pudesse extrair o Um
89
da fusão, se não estivéssemos tratando do
terreno pulsional, o qual não presume uma fusão, mas algo absolutamente disjunto, uma
verdadeira ruptura, talvez o gozo do corpo do Outro pudesse vir a bastar. Neste caso,
também, não estaríamos aqui para contar esta história, e o mundo não seria como ele se
apresenta para nós. Talvez não fosse, sequer, redondo. Mas, do interior deste mundo
esférico (mais para chato, inclusive, embora nada enfadonho), o que temos mesmo que
facear é esta dimensão nada arredondada das relações humanas. Temos que viver com
isto, e, sobretudo, é por isso que vivemos. É por isso que o mundo gira, dá suas tantas
voltas.
O mundo é arredondado, embora ele comporte alguns muros. Assim como o
amor é infinito, mas há, em seu interior, a presença do “amuro”. Apesar de sua intenção
88
Paulo Miklos (Titãs): Provas de amor, In: Como estão vocês? (2003), gravadora BMG.
89
Vale dizer que Lacan, no Seminário 20, também confere a esse “Um” o estatuto de ser partitivo, e não
apenas o Um da fusão. Neste sentido, ele acentua, na última lição desse Seminário, que “Há Um”, isto é,
“Um-entre-outros, encarnado na alíngua, que resta indeciso” (1972/3:196).
205
francamente narcísica, o amor revela inexoravelmente estes cortes; e é no campo do
amor, ali, olhando para o seu próprio umbigo no espelho, que o sujeito pode verificar as
suas tão particulares quanto universais cicatrizes. O sujeito não ama somente porque
pode, neste movimento, fazer o Um, costurar seus retalhos; mas, ao contrário, ele ama
por seus talhos: de certa forma, o sujeito ama porque já não pode fazer Um, porque já
nasce desta cisão impeditiva à unidade. O amor vem após esta fenda, é deste corte que
parte o pedido de amor. Então, o amor, esfaqueado por natureza, constitui um campo
laminado (e por isso, também minado), onde não há relação sexual que possa dar conta
de coser.
Ao dirigir-se a uma mulher, ensina Lacan, o homem não deseja a sua
subjetividade, a sua alma, a sua vida, mas sim o seu corpo. Ele supõe que poderá gozar
do corpo do Outro. Mas o que ele encontra é a opacidade, o vazio, pois “o corpo do
Outro não é o signo do amor” (1972/3:12). De forma que o homem não chega nunca a
gozar de uma mulher. A distância entre o sujeito e o objeto é infinita; melhor dizendo,
entre o sujeito e o objeto, há um nada, infinito. Tal como no paradoxo de Aquiles e a
tartaruga, examinado por Lacan no Seminário 20 (1972/3:16), o sujeito deseja “chegar
lá”, mas acaba por não sair do lugar. A fim de relembrar o que fora examinado no
Capítulo 3, este é um percurso que pode levar o homem à impotência, caso ele venha,
antecipando as coisas, a transformar esta impossibilidade de se “chegar lá” em algo tão
insuportável que o faça paralisar de uma vez por todas. Aquiles e a tartaruga são uma
perfeita ilustração do porquê a relação sexual está fadada a um infinitizado fracasso.
Mas, cuidado: é preciso que não se caia na impotência. Não é porque o malogro se
repete indefinidamente que o sujeito deva refestelar-se na paralisia. O nada não é algo
que conduz à impotência, mas ao impossível - eis evidenciada toda a diferença para a
clínica.
A relação sexual, definida por Lacan como aquilo que “não pára de não se
escrever” (1972/3:198), vem denotar, de modo irreversível, o impossível ali
engendrado. Ela marca o encontro do sujeito com o seu árido desígnio de ser sempre só,
ainda que ele entregue e derrame à sorte desta expectativa de encontro o seu sintoma, os
seus defeitos, o seu martírio, os seus afetos, enfim, tudo aquilo que confere ao sujeito a
ilusão de que a relação sexual poderia cristalizar-se em completude, congelar-se em
esfera plena, ou, como enuncia Lacan, “parar de não se escrever”. Lacan resume este
estancamento como “o exílio” do sujeito (1972/3:198): “Todo amor, por só subsistir
pelo ‘pára de não se escrever’, tende a fazer passar a negação ao ‘não pára de se
206
escrever’, não pára, não parará” (1972/3:199). Mais, ainda, não parará, não parará, não
parará - tal como, sonoramente, aludimos a algo que gira feito um disco recorrente,
rodando infinitamente a mesma música. Notemos o quão rítmicas são estas premissas
lacanianas, acerca do amor.
Mas é chegado o momento de parar com o ‘parará-parará-tibum’ (com o perdão
do tom jocoso, mas é que isto implica numa queda), do qual me servi a fim de fazer
reverberar o barulho dessa estrondosa música – por vezes melodiosa, por vezes
desconcertada, tão compassadamente disrítmica – que é o amor.
Sim, é chegada a hora de “parar de escrever” sobre aquilo que “não pára de não
se escrever”, revelado pelo amor. Neste percurso, procurei sublinhar alguns aspectos
deste tema tão ensurdecedor quanto entoado do amor. Assim, implicada que estive
nisso, devo confessar que, inevitavelmente, eu o amei por alguns instantes. Enquanto
sujeito, admito que caí fascinada pelo tema do amor. Embora, a bem da verdade - visto
o que está posto pela estrutura - eu também o tenha odiado, por alguns momentos. Com
isto quero dizer que, por amá-lo e odiá-lo, abstive-me de dizer um punhado de coisas
que supus dizer, que deveria ter dito, que desejei dizer, e que ainda direi, a respeito do
amor.
Que assim seja. Pois é deste lugar, espaço que se permite deixar o amor como
resto, e concernida pelos restos mortais deste inaudito e sonoro amor, que encerro esta
tese.
207
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___. Comunicação Preliminar (de Breuer e Freud, 1893)
___. Sobre os mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos (1893)
___. Carta a Fliess de número 69 (1892-1899)
___. Estudos sobre a histeria (1895)
___. A Interpretação dos Sonhos (1900)
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___. Sessão de quarta feira (30 de janeiro de 1907)
___. O poeta e a fantasia (1907)
___. O tema dos três escrínios (1908)
___. Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908)
___. Cinco lições de Psicanálise (1909)
208
___. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911)
___. Recordar, repetir e elaborar (1912)
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___. Totem e Tabu (1913)
___. Contribuições à psicologia do amor (1910-1918): Um tipo especial de escolha de
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___. Além do princípio de prazer (1920)
___. Psicologia das massas e análise do eu (1920)
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___. O mal estar na civilização (1930)
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___. Sexualidade feminina (1931)
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___. Um Distúrbio de memória na Acrópole (1936)
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215
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