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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Madalena Resina
A seriedade do risível: uma análise de crônicas de Luís Fernando Veríssimo
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
São Paulo
2008
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MARIA MADALENA RESINA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Literatura e Crítica
Literária, sob a orientação do Prof. Dr.
Fernando Segolin.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora
___________________________________
___________________________________
___________________________________
Dedico este trabalho a todos aqueles que direta ou indiretamente
contribuíram para a sua realização:
Primeiramente a meu pai, Antônio, pelo exemplo de sabedoria e
determinação, e a minha e, Djanira, pelo zelo, carinho e, sobretudo, pela
incansável dedicação. De uma maneira afetuosa, ambos me proporcionaram o
suporte necessário, que tornou esta jornada não menos longa, mas repleta de
incentivo e compreensão. Sem dúvida, são eles referência de amor incondicional e o
meu porto seguro em qualquer circunstância.
A meus professores de Língua Portuguesa do ensino médio e fundamental
(incentivo e “modelos”), e do ensino superior, pela sabedoria e admiração.
Ao Veríssimo, pelo deleite e regozijo que me proporciona, cada vez que leio
os seus textos.
Enfim, dedico esta prazerosa iniciação acadêmica a todos que apreciam o
riso e sabem reconhecer sua relevância para uma existência mais feliz e, sobretudo,
saudável.
AGRADECIMENTOS
Um trabalho nunca é feito por seu criador, pois, para que uma obra seja
concluída, é necessário que muitos se tenham empenhado para torná-la possível.
Por isso, é impossível chegar ao fim sem agradecer imensamente a pessoas
queridas, que contribuíram de forma direta ou indireta para que esse trabalho se
concretizasse.
Agradeço a meu orientador, Prof. Dr. Fernando Segolin pela paciência,
dedicação, profissionalismo e, acima de tudo, por ter permitido e me encorajado a
dar continuidade ao presente trabalho. Sem dúvida, sua orientação serviu não
para este trabalho, mas para a vida toda.
À Prof.ª Dr.ª Lúcia Helena Ferraz Santagostino, por me ter recebido em sua
casa, opinado e ajudado imensamente quando meu trabalho era ainda embrionário,
sendo, então, uma das grandes responsáveis pelo início de tudo; encaminhou-me
para a escolha certa do corpus da pesquisa e, ainda, aceitou o convite para a
qualificação, contribuindo novamente para iluminar o caminho deste estudo.
À Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Junqueira, por também ter aceitado o convite da
qualificação. O meu muito obrigada tanto pelas observações precisas que muito me
ajudaram a guiar este trabalho, quanto pelo apoio no decorrer desta jornada,
sobretudo, quando ainda cursava sua disciplina.
A meu irmão Marcos - pela presença fraterna e colaboradora - que me ajudou
a lidar com as questões burocráticas, exigidas pelo curso.
Aos demais parentes, pelo incentivo e preocupação que sempre
demonstraram.
Aos colegas e amigos professores (ou não), pelos esclarecimentos
extremamente significativos e pertinentes, que muito contribuíram para o meu
crescimento intelectual e pessoal.
À direção, à coordenação e aos funcionários da escola Cônego, pela
compreensão e auxílio diante de algumas ausências necessárias para o
desenvolvimento deste trabalho.
À Secretaria Estadual de Educação, pela criação do Projeto Bolsa Mestrado,
que me ofereceu a oportunidade de aprofundar meus estudos e de passar por
experiências transformadoras, seja na minha vida, seja na prática profissional.
Por fim, agradeço a Pedro Paulo, minha companhia, que me ajudou com suas
palavras de incentivo e tanto me compreendeu nos momentos de desalento.
RESUMO
A dissertação tem por objeto de estudo a manifestação do riso e do risível, em
crônicas de Luís Fernando Veríssimo, sobretudo em Bobos I (1982) e Ri, Gervásio
(1987), que, analisadas à luz da teoria da comicidade e do humor, põem em
evidência a ambivalência e a ambigüidade do riso, principalmente, sua face séria.
Num primeiro momento, são brevemente explanadas as principais características do
gênero cronístico, texto em que se manifesta o humor de Veríssimo, a fim de que se
faça notar uma afinidade entre gênero e objeto de estudo. Numa segunda etapa,
adentrando no universo do risível, apontamos não as diferenças entre o cômico e
o humor, apoiando-nos na obra de Pirandello (1996), mas também as imprecisões
que envolvem o cômico, segundo os apontamentos de Propp (1992) e de outros
teóricos, sendo que a maioria é citada por ele; expusemos alguns dos artifícios da
comicidade utilizados em nosso estudo, que acabam manifestando não um riso
lúdico, mas, sobretudo, um riso reflexivo, próprio do humor. Além disso, fizemos um
panorama da carreira literária de Veríssimo, destacando suas principais obras, sua
escritura e estilo peculiares; analisamos as duas crônicas tomadas como corpus de
pesquisa, aplicando os recursos de linguagem referentes à comicidade e ao humor
e, por fim, procuramos apresentar a ironia o como estratégia e fenômeno de
linguagem, mas, principalmente, como arma poderosa, de que se vale o cronista,
para retratar criticamente situações que põem à luz as angústias, as fraquezas e os
vícios humanos, e suscitar, no leitor, uma análise reflexiva em torno de tais
situações.
Palavras-chave: crônica; Luís Fernando Veríssimo; riso; humor; ironia;
comicidade/seriedade.
ABSTRACT
The present dissertation aimed at studying the laughter manifestation and the
risible in Luís Fernando Veríssimo’s chronicles, especially in Bobos I (1982) and Ri,
Gervásio (1987) which, according to the humor theory, emphasizes both, the
laughter ambivalence and ambiguity, principally its serious perspective. Firstly, it is
briefly explained the main characteristics of the chronicle genre, in which Veríssimo’s
humor it is manifested. The objective is to observe a certain relationship between
genre and the object of study. Secondly, inside the risible context, it is pointed out
not only the differences between the humorous and humor, based on the Pirandello’s
work (1996), but also the imprecisions which involve the humorous, according to
Propp (1992) arguments and other authors, and the most part of them it is mentioned
by him. It is exposed some of the humoristic characteristics used in the present study
manifesting a ludic laughter and, above all, a reflexive laughter, which is proper of
humor. Apart from that, an overview of Veríssimo’s biography was developed,
pointing out his mainly works, his way of writing and peculiar style. The referred
chronicles which composed this research corpus were analyzed employing the
language resources related to the humorous and humor. In order to conclude,
anguish is presented not only as a strategy and a language phenomenon, but mainly
as a powerful tool that the author makes use to critically portray situations which
brings to light the anguish, the weakness and the human addictions, and also to
provoke into the reader’s mind a reflexive analysis on such situation.
Keywords: chronicle, Luís Fernando Veríssimo; laughter; humor; anguish;
humorous/seriousness.
O humor despe as pessoas, tira fora as personas
(máscaras). Mais do que leve, é às vezes incômodo,
pois está sempre nos dizendo que
não somos o que fingimos ou pretendemos ser.
(Flávio M. Costa)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................p.10
CAPÍTULO I
1. Breve incursão no gênero cronístico.........................................................p.17
1.1. Origem e história.......................................................................................p.20
1.2. O percurso da crônica no Brasil..............................................................p.23
CAPÍTULO II
2. Comicidade e seriedade..............................................................................p.28
2.1. Diferenças entre termos: o que é cômico e o que é humor..................p.29
2.2. A opacidade do cômico............................................................................p.38
2.3. Os artifícios da comicidade e da seriedade............................................p.46
CAPÍTULO III
3. No mosaico de Veríssimo...........................................................................p.57
3.1. Os recursos cômicos em Bobos I...........................................................p.70
3.1.1. A figura do bufão como representante da seriedade.........................p.75
3.2. Os recursos cômicos em Ri, Gervásio...................................................p.82
3.3. A força da ironia.......................................................................................p.88
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................p.103
ANEXOS.........................................................................................................p.109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................p.116
19
INTRODUÇÃO
A principal função da comicidade “é manter viva uma idéia de irreverência (...)
de que nada deve ser reverenciado, de que nada é sagrado, tudo pode ser
questionado, criticado, e, sendo criticado, pode ser melhorado”. (VERÍSSIMO apud
WEINHARDT, 1985, p.17).
Essa citação de Veríssimo ratifica a importância do presente estudo sobre a
comicidade, o humor e o riso na crônica de Luís Fernando Veríssimo, fundamentado
em teorias que trazem à luz a ambivalência e a ambigüidade do risível. Objetivamos
focar essas propriedades, que consideramos basilares no riso, posto que este, com
sua dimensão dúplice e híbrida, é capaz de, pelo menos, em certos momentos,
proporcionar alegria e satisfação aos que deles participam, estimulando e
legitimando, por outro lado, a cumplicidade do grupo. Em outros momentos, o riso
busca desafiar o poder, questionar atitudes e valores, revolucionar, transgredir
preceitos, denunciar injustiças, enfim invocar uma profunda reflexão sobre o homem
e seu comportamento, permitindo assim uma visão ampla e crítica do contexto sócio-
cultural em que o cronista e seu leitor estão inseridos.
A crônica contemporânea de Luís Fernando Veríssimo conheceu um número
ínfimo de estudos no âmbito literário. A maior parte dos estudos acerca de sua obra
foi realizada sob enfoque lingüístico, centrando-se, sobretudo, na descrição e
análise de estratégias textuais utilizadas pelo escritor para composição de seus
textos cronísticos.
Roberto Carlos da Silva Borges (2002), por exemplo, em sua dissertação de
mestrado intitulada Língua e estilo: Humor e Ironia nas crônicas de Luís
Fernando Veríssimo, investigou as marcas lingüísticas, gramaticais e semânticas
que compõem o estilo irônico e humorístico de Luís Fernando Veríssimo, em
dezesseis crônicas, divididas em quatro unidades temáticas, apoiando-se,
sobretudo, em teorias da Análise do Discurso.
Sob outra ótica, Denir Camacho Ferreira (2002), em sua dissertação intitulada
A metalinguagem: gramática e conflitos nas crônicas de Luís Fernando
Veríssimo, identifica questões relevantes e/ou polêmicas acerca do digo
lingüístico do português, a partir de crônicas metalingüísticas de Luís Fernando
Veríssimo. A metalinguagem, no caso, é usada como tema, enfocando
20
peculiaridades da língua portuguesa, a partir da crônica de jornal, na tentativa de
evidenciar o papel da recepção na construção dos sentidos do texto. Tecem-se
também considerações sobre as contribuições advindas da linguagem adotada pelo
autor, permitindo maior clareza na relação língua e realidade.
A dissertação de Vera Lúcia Aparecida Rezende (2002), A construção de
estratégias textuais nas crônicas esportivas de Luís Fernando Veríssimo,
busca, por sua vez, explicitar o modo de construção de tais estratégias, definindo
assim o que se pode chamar de seu estilo, com base, sobretudo, na Teoria
Semiolingüística de Umberto Eco (1979). Objetiva-se mostrar assim que as
expectativas de leitura de uma obra estão relacionadas com as imagens que autor e
leitor fazem um do outro, como interlocutores que o nesse processo. Ainda que
tais imagens possam advir tanto de leitores empíricos quanto de leitores-modelos, e
sejam determinantes no processo de significação, o estudo tenta fazer,
fundamentalmente, o levantamento de imagens que caracterizam o leitor-modelo.
Outro estudo, de Liège Maria Trentin, em dissertação intitulada O cômico-
sério e sua significação na crônica de Luís Fernando Veríssimo, o trabalho
cronístico do autor é analisado com base na teoria da carnavalização, de Mikhail
Bakhtin, enveredando, sobretudo, para o estudo das fontes populares, com
implicações que envolvem a literatura, na medida em que tais fontes se apresentam
como espetáculo integrador, de caráter ritual, com diferentes variantes, de acordo
com os povos e as épocas.
A crônica Bobos I, que faz parte de Outras do Analista de Bagé (1982) e Ri,
Gervásio, presente em Sexo na cabeça (1987), que constituem nosso corpus de
pesquisa, foram apenas mencionadas por Andréia Simoni Luiz Antônio (2002), em
sua dissertação de mestrado intitulada Muito riso, muito siso: a construção de
tipos e caricaturas nas personagens de Luis Fernando Veríssimo. No capítulo
em que sintetiza as variações da temática de Veríssimo, ressalta, especificamente
nas crônicas acima citadas, a relação do universo do riso e a versatilidade do autor
com a linguagem provida de humor. Porém, nenhuma crônica, no caso, é
adequadamente analisada do ponto de vista do humor, por não ser esse o objetivo
de sua pesquisa.
Débora Betânia de Santana (2006), autora da dissertação Ironia: o tempero
da crônica, analisou algumas crônicas de Veríssimo sob o ângulo teórico da ironia,
21
com o objetivo principal de comprovar como a ironia se adapta com sucesso e
interage bem com o gênero cronístico.
Tendo em vista um número reduzido de estudos sobre a crônica verissimiana,
nossa pesquisa objetiva contribuir para sua ampliação, coincidindo com a
perspectiva de alguns trabalhos apresentados, mas trilhando caminhos diferentes e
apoiada em textos teóricos também distintos. Outrossim, veremos as crônicas
Bobos I e Ri, Gervásio não só como textos subsidiados por recursos de linguagem,
mas também como textos que questionam o próprio estatuto e a “função” do riso,
buscando desenvolver, desse modo, uma espécie de incursão meta-humorística
pelas crônicas.
Conforme observado, procuraremos expor, em nossa dissertação, as
múltiplas faces do riso nas crônicas humorísticas de Veríssimo, fruto da seleção e da
articulação de alguns instrumentos lingüísticos da comicidade. Isso porque falar em
comicidade implica falar também da construção de discursos destinados a
desestruturar as verdades “absolutas” e reivindicar um lugar no espaço sócio-
cultural. Procuramos revelar e legitimar, sobretudo, o aspecto destronante,
dessacralizador e antiopressor do riso, (características que coincidem com o parecer
de Veríssimo na primeira citação desta introdução) por meio das personagens das
crônicas: um bufão, em Bobos I, e um funcionário de uma claque de humor, em Ri,
Gervásio. O aspecto do riso, ressaltado em nossa pesquisa, é capaz de revelar, a
nosso ver, questões pouco evidentes e importantes, como: questões de ordem
política, de crítica social, de comportamento humano; todas elas implícitas num
discurso aparentemente despretensioso despretensão esta articulada pela ironia e
pelo humor – e revestido de ludicidade.
O humor e a comicidade guardam afinidades semânticas entre si e se
relacionam intimamente com o riso, por isso, tais termos são confundidos e
empregados, quase sempre, sem critérios. Em nosso trabalho, tentamos discorrer
sobre suas acepções correlatas, a fim de elucidar suas principais diferenças e
semelhanças. Sumariamente, podemos dizer que o cômico se refere ao prazer, ao
lúdico e está mais relacionado ao divertimento. o humor deve ser visto como uma
forma de levar o indivíduo a inferir, a comparar, a confrontar e a formular hipóteses,
não se tratando simplesmente do riso pelo riso, mas daquilo que o motivou. Todo
riso, por sua vez, tem como causa a elaboração de um pensamento crítico. ri
quem consegue compreender e analisar uma dada situação e o que ela sugere.
22
Todavia, o riso possibilita também uma espécie de mão dupla entre essas duas
manifestações, ou seja, um riso gratuito pode ocorrer antes do próprio pensamento
crítico, o que se justifica pelo caráter ambíguo e contrastante do risível.
O riso, desse modo, é um tipo de ação humana que, basicamente, diferencia
o homem dos animais. Rir é uma atividade intrínseca à natureza humana e, quase
sempre, manifesta o senso crítico do homem, ao mesmo tempo em que o diverte.
Nossa opção por estudar as diferentes nuanças do riso no discurso cômico
presente na crônica literária se deu pelo fato de haver algumas afinidades entre o
gênero crônica - e o objeto de nosso estudo - o riso. Assim como a comicidade e
todo o universo do risível, a crônica, apesar da aceitação do público-leitor e de sua
grande circulação, ainda não é plena e satisfatoriamente contemplada pela
academia, pois, quando não a ignoram, recusam-se a pesquisar suas
especificidades. Tal consideração se evidencia pela carência de material crítico e
teórico sobre o gênero. Quando encontrado, a maior parte está dispersa em artigos
isolados de revistas ou livros. Igualmente restritivos, muitos cursos de graduação
não reservam um espaço apropriado em seu currículo para o estudo do gênero.
Além disso, a abordagem da crônica, tal como é feita em livros didáticos, se mostra
um tanto simplista, pois não há propriedade e criticidade no lidar com tais textos, fato
que não pode ser atribuído apenas às marcas de simplicidade e descompromisso
que o gênero parece carregar consigo.
O cômico e suas modalidades, por sua vez, também parecem ocupar um
patamar inferior no que diz respeito à eleição de objetos de estudo, pois, apesar da
existência de obras e teóricos conceituados a versar sobre o assunto, observa-se
que ainda são relativamente escassos os trabalhos acadêmicos que têm como
objeto o cômico e diferentes vertentes do riso. Um estudo sobre esse fenômeno
encontra, muitas vezes, certa resistência e, desse modo, a grande maioria dos
estudiosos prefere debruçar-se sobre obras reconhecidas pelo cânone literário e
evitam os textos cronísticos e humorísticos, normalmente tidos como anti-canônicos
e de reduzido valor estético.
O descrédito reservado ao cômico se deve, segundo Baêta Neves (1974), à
ideologia da seriedade, que reduz o riso a um momento de fruição, de
entretenimento, a uma pausa recreativa, cujo efeito se ambiciona seja leve e não
cause maiores conseqüências. Rebaixando o riso, a ideologia da seriedade privilegia
um campo temático nobre, pautado pelo bom-senso, pela regra e pela razão,
23
expressando, ainda, sentimentos e temas considerados “elevados”, a partir de
gêneros que engrandeçam a alma humana, como o lírico, o épico e o dramático.
Desse modo, o cômico e o riso, considerados modalidades menos
importantes e menos eruditas, são negligenciados, pois expressam a ruptura, a
transgressão, a inversão, uma vez que, muitas vezes, lançam mão de um repertório
obsceno, escatológico, agressivo, presente na sátira, na paródia ou no chiste, pela
via da ironia ou da derrisão. Essa postura, que infringe o discurso “sério”, ignora o
cânone e, por isso, se revela como uma nova e ousada maneira de interpretar a
realidade.
Alguns dos textos humorísticos que nos permitem essa leitura da realidade,
por meio do questionamento do próprio estatuto do riso como temática da crônica,
compõem o corpus de nossa pesquisa, e poderiam ser de um autor como Luís
Fernando Veríssimo, que escreve crônica, não porque tenha preferência maior pelo
gênero, mas por sua escritura se dar de forma tão espontânea, que acaba
contemplando em seu texto características próprias da crônica, tal como o humor,
entre outras, por meio dos mais criativos recursos que a língua oferece.
O autor, dotado de argúcia e sensibilidade, observa o mundo e as miudezas
do cotidiano, e transita, por meio de uma linguagem simples e enxuta, pelos mais
inusitados temas, conseguindo, ora ser leve e simplesmente divertido, ora ser
corrosivo e crítico, características estas que acabam contaminando seu discurso.
Sendo assim, Veríssimo, crônica e riso formam a tríade que sustenta e justifica
nosso estudo; primeiro, porque se trata de um conjunto de aspectos pouco
favorecidos no debate acadêmico brasileiro; segundo, porque apresenta pontos
congruentes entre si, como a leveza, a efemeridade, a aparente “despretensão” e a
capacidade de suscitar o questionamento e o pensamento crítico, todos eles
presentes na obra cronística do autor, despertando, deste modo, nosso interesse em
estudá-la de forma criteriosa e crítica, revelando não somente a face jocosa do riso,
mas, sobretudo, a séria.
Com relação à estrutura da dissertação, dividimos o trabalho em três
capítulos. No primeiro, procuraremos fazer um breve panorama teórico-crítico e
histórico sobre a crônica, enfatizando suas características e as marcas que a
definem como gênero literário, mesmo que oriunda da descrição que se fazia das
belas paisagens brasileiras na época do descobrimento, e mais tarde, encontrando-a
ligada ao jornal ou, ainda, consideramos sua suposta falta de identidade, em virtude
24
da incorporação hibridizante de outros gêneros, como o ensaio e o folhetim.
Estudaremos a crônica como um gênero que opera a mistura entre linguagem do
cotidiano e reflexão crítica e poética, mistura que fundamenta sua sobrevivência no
tempo, pois impede que sucumba diante da efemeridade da vida.
No segundo capítulo, vamos nos empenhar, de antemão, em distinguir os
termos “cômico” e “humor”, a fim de explicitar por que se pode dizer que as crônicas
Bobos I e Ri, Gervásio são, ao mesmo tempo, cômicas e humorísticas, pautando-
nos, sobretudo, por teorias que julgamos pertinentes, isto é, principalmente por
aquela presente na obra O Humorismo, de Pirandello (1996).
Em seguida, evidenciamos como é dificultoso definir a especificidade do
cômico, uma vez que, segundo Propp (1992), muitos teóricos se debruçaram sobre
esta questão, sem chegar a nenhuma conclusão que de fato a respondesse, o que
só corrobora o caráter ambivalente, híbrido, movente que marca o universo do
risível.
No terceiro capítulo, tentaremos traçar a trajetória literária de Luís Fernando
Veríssimo e mencionar algumas de suas obras, desde as mais conhecidas até
aquelas que, a nosso pensar, merecem destaque e reconhecimento de todos, o
por estarem imbuídas de um repertório cultural e literário muito rico, mas também
por serem fortemente marcadas por um estilo e linguagem próprios desse autor
singular, o que nos permite uma avaliação e uma melhor apreciação de seus textos.
Ainda no terceiro capítulo, abordaremos a crônica Bobos I, à luz dos recursos
próprios da comicidade e do humor, sobretudo a sátira, e procuraremos nos
centralizar na figura do bufão como articulador do riso e do discurso sério, que o
autor implanta via personagem. A crônica Ri, Gervásio, analisada na seqüência,
focalizará a relação dialógica entre os elementos cômico e trágico presentes no riso,
a partir da situação vivida pela personagem protagonista. Ambas as crônicas
permitem uma análise que envolve a crítica social, a partir, sobretudo, do
comportamento do indivíduo. A análise, no caso, é construída com base no conceito
de ironia, da qual exporemos as principais formas, sobretudo aquelas que se
aplicam aos textos que escolhemos.
Para finalizar, sentimo-nos no dever de contribuir para o reconhecimento que
deve ser dado a essa tríade (crônica - Luís Fernando Veríssimo
comicidade/humor), não pelo público-leitor, que a aprecia, mas principalmente
pelos acadêmicos, que conhecem os critérios de validação de um determinado
25
objeto literário. Investigando e analisando as crônicas Bobos I e Ri, Gervásio,
enveredamos pela teoria do riso e pelas reflexões que o fenômeno suscita. Por seu
caráter ambíguo e multiforme, torna-se difícil delimitar o alcance teórico de certos
termos, o que nos impede de buscar apoio em afirmações categóricas. É válido
dizer, entretanto, que serão apresentadas aqui apenas algumas possibilidades de
análise da trama do risível, com o objetivo de oferecer mais uma contribuição para o
entendimento da produção cronística contemporânea de Veríssimo - autor que tanto
contempla o riso e suas especificidades em articulação com instrumentos cômicos,
como também reconhece a importância dessas instâncias sem nunca perder de
vista, porém, a dimensão efetivamente literária de suas crônicas.
27
CAPÍTULO I
1. Breve incursão no gênero cronístico
Julgamos relevante não nos limitarmos a versar somente acerca do riso;
sobretudo, do riso na crônica, conjugando forma (a estrutura da crônica) e conteúdo
(os elementos que compõem o universo do risível). Para tanto, propomo-nos a
discorrer, primeiramente, acerca de uma breve e nada definitiva conceituação de
gênero, para, em seguida, nos determos no gênero cronístico. E, ao falarmos sobre
ele, não podemos esquecer sua gênese nem seu percurso, visto que é a partir de
suas características que faremos, no momento apropriado, a vinculação com o
elemento cômico, com a perspectiva séria, com os instrumentos para a instauração
de ambos, e com o autor, cujos textos nos dispomos a analisar, não por lançar
mão do gênero em questão, bem como dos elementos correlatos citados.
[...] a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a
dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário
excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e
mostra nele uma grandeza, uma beleza ou singularidade insuspeitadas [...].
Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como
compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa
profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de
repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à
perfeição. (CANDIDO, 1984, p.5).
No excerto acima, fica evidente a afinidade, sobretudo uma grande paixão de
Candido com relação ao gênero cronístico. Ele ressalta que, como “gênero menor”
1
,
é mais acessível aos leitores, tanto no que diz respeito à elaboração da linguagem,
leve e, quase sempre, simples, quanto à temática em si. Seu mérito está em não
assumir um prosito, em não aspirar à eternidade, como acontece com outros
gêneros literários, porque o seu alimento é o mesmo dos fatos e das notícias
cotidianas. É um texto feito para certo tempo, para ser lido rapidamente e, na
maioria das vezes, entreter e suavizar a austeridade do real. Contudo, é desse modo
que humaniza, difunde saberes e aciona, por meio da compatibilização da
1
Candido ironiza ao dizer que a crônica é gênero menor, pois, é desse modo que alguns escritores se
referem ao discorrer sobre o gênero.
28
linguagem cronística e de um narrador, que é o próprio autor
2
, a capacidade de
compreender inúmeras questões que reverberam da sua escritura, tentando
conceder ao gênero um status mais alto em nossa literatura.
No que diz respeito à definição e estruturação de gêneros literários, Warren e
Wellek considera-os como
instituições imperativas que exercem pressão sobre o escritor e são por ele
também pressionadas e modificadas; princípios de ordem e classificação,
segundo os quais a literatura é dividida em tipos literários de organização e
estrutura; artifícios estéticos, à disposição do escritor e inteligíveis ao leitor;
convenções estéticas de que a obra participa, modelando-lhes a forma e o
caráter. (apud KONZEN, 2002, p.22).
Os autores concluem, com isso, que o gênero “deve ser concebido como um
agrupamento de obras literárias, baseado teoricamente tanto sobre a forma exterior
(métrica ou estrutura específica), quanto sobre a forma interna (atitude, tom,
propósito)”. (WARREN; WELLEK apud KONZEN, 2002, p.23). Essa concepção
contrapõe-se à de Benedetto Croce, que via nos gêneros apenas um simples nome.
A partir das considerações de Warren e Wellek, a noção de gênero pode ser
compreendida como um conjunto de símbolos que fornece direções para se chegar
a uma imagem das estruturas narrativas registradas na tradição literária. Este
conjunto procura orientar a leitura das obras literárias, isto é, fornece, tanto aos
autores quanto aos leitores, parâmetros para a compreensão das estruturas
narrativas.
Tais evidências não implicam necessariamente uma função normalizadora ou
padrão, o que impossibilitaria, segundo Afrânio Coutinho,
as relações entre os diversos gêneros, os gêneros mistos, as obras que
incluem os vários gêneros, a flexibilidade das fronteiras dos neros, a sua
transformação e morte, o seu reaparecimento, a adequação melhor de
certos gêneros a épocas estilísticas e às preferências dos autores, a sua
modificação e enriquecimento por certos autores. (1978, p.29).
2
Segundo Jorge de (2005), o narrador da crônica é o próprio autor, visto que “o cronista age de
maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas ficar na superfície de seus próprios
comentários, sem ter sequer preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é,
principalmente, personagem ficcional (como acontece nos contos, novelas e romances). [...] tudo o
que ele diz parece ter acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma
reportagem.” (p.9). Por isso, em nosso trabalho usaremos, muitas vezes, os termos “o autor” ou “o
narrador-cronista” para se referir ao enunciador.
29
Portanto, a aceitação do gênero como dialógico, multiforme e, por isso,
passível de se transformar e de se hibridizar, procura evitar uma concepção
normativa e absolutista, fazendo da noção de gênero apresentada uma aliada das
análises literárias e não um elemento intransponível e imutável que defina
compromissos com relação aos estudos literários. Tal consideração se faz
extremamente pertinente quando falamos da crônica, cujos caminhos percorridos
evidenciam as diferentes nuanças impressas não só em sua estruturação, bem
como na sua escritura.
Em consonância com os autores, o próprio Luís Fernando Veríssimo fala da
hibridização de gêneros na crônica transcrita logo abaixo, em que se estabelece um
diálogo entre os pressupostos teóricos (com o humor que lhe é inerente) e a prática
do fazer cronístico. Fica evidente, especialmente em entrevista à revista Cult (2001),
que o autor adota, preferencialmente, a crônica como seu principal meio de
expressão pelo fato de constarem apenas três romances em sua trajetória como
escritor -, porém também deixa claro que não faz isso intencionalmente. Como
ficcionista e não teórico, contempla a liberdade que o fazer literário oferece, ao
mesmo tempo em que é comum seus textos não se “amoldarem” a um ou outro
gênero estabelecido por regras, limites ou convenções da teoria literária, fazendo
deles bases para a concepção de outros textos.
Isso acontece, evidentemente, com outros autores que têm um modo todo
peculiar de escrever seus textos. O que o autor realça, na crônica a seguir, é a
liberdade do artista na tessitura de sua obra, cuja criatividade não deve ser sufocada
jamais por métodos ou normas que a teoria, de modo geral, contempla:
Crônica e Ovo
A discussão sobre o que é, exatamente, crônica, é quase tão antiga quanto
aquela sobre a genealogia da galinha. Se um texto é crônica, conto ou outra
coisa interessa aos estudiosos da literatura, assim como se o que nasceu
primeiro foi o ovo ou a galinha interessa a zoólogos, geneticistas,
historiadores e (suponho) o galo, mas não deve preocupar nem o produtor
nem o consumidor. Nem a mim nem a você.
Eu me coloco na posição de galinha. Sem piadas, por favor. Duvido que a
galinha tenha uma teoria sobre o ovo, ou, na hora de botá-lo tenha qualquer
tipo de hesitação filosófica. Se tivesse, provavelmente não botaria o ovo. É
da sua natureza botar ovos, ela jamais se pergunta “Meu Deus, o que eu
estou fazendo?” Da mesma forma o escritor diante do papel em branco (ou,
hoje em dia, da tela limpa do computador) não pode ficar se policiando para
“botar” textos que se enquadrem em alguma definição técnica de
“crônica”. O que aparecer é crônica.
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Há alguma diferença entre o cronista e a galinha, além das óbvias (a
galinha é menor e mais nervosa). Por uma questão funcional, o ovo tem
sempre o mesmo formato, coincidentemente oval. O cronista também
precisa respeitar certas convenções e limites, mas eslivre para produzir
seus ovos em qualquer formato. Nesta coleção existem textos que são
contos, outros que são paródias, outros que são puros exercícios de estilo
ou simples anedotas e até alguns que se submetem ao conceito acadêmico
de crônica. Ao contrário da galinha, podemos decidir se o ovo do dia será
listado, fosforescente ou quadrado.
Você, que é consumidor do ovo e do texto, tem que saboreá-lo e decidir
se é bom ou ruim, não se é crônica ou não é. Os textos estão na mesa:
fritos, estrelados, quentes, mexidos... Você só precisa de um bom apetite.
(VERÍSSIMO, O nariz e outras crônicas, 1994, p.3-4).
Portella (1979) comenta sobre os critérios que fazem de uma crônica uma
obra de qualidade e diz que estes se distanciam de uma estrutura “bem-
comportada”, de um padrão de escritura, e acredita no olhar que apreende o mundo
e na sagacidade com que o cronista tece sua narrativa. Desse modo, ele concede
ao cronista a responsabilidade de tornar o gênero “maior” ou “menor”; é ele que faz
do gênero algo que deva ser rejeitado ou enaltecido.
A estrutura da crônica é uma desestrutura: a ambigüidade é a sua lei. A
crônica tanto pode ser um conto, como um poema em prosa, um pequeno
ensaio, com as três coisas simultaneamente. Os gêneros literários não se
excluem: incluem-se. O que interessa é que a crônica, acusada
injustamente como um desdobramento marginal o periférico do fazer
literário, é o próprio fazer literário. E quando o o é, não é por causa dela,
a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia,
que não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se
perde no dia-a-dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros, esses
transcendem e permanecem. (PORTELLA, 1979).
1.1. Origem e história
Segundo o dicionário etimológico de Antenor Nascentes (1955, p.144), a
palavra crônico é originária do grego chronikós, isto é, relativo ao tempo. Assim,
crônica é uma das palavras que contém tal idéia em seu radical, visto inclusive que a
palavra grega chronos significa “tempo”. Daí a definição encontrada do gênero como
“narração histórica ou registro de fatos comuns, feitos por ordem cronológica” ou
“texto jornalístico redigido de forma livre e pessoal, e que tem como temas, fatos ou
idéias da atualidade, de teor artístico, político, esportivo, etc., ou simplesmente
relativos à vida cotidiana.(HOLANDA, 1986, p.503). A primeira acepção refere-se a
seu sentido primordial, ou seja, o registro do passado e dos fatos na ordem em que
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aconteceram, a segunda, relaciona-se ao sentido mais atual de crônica, em que foca
os eventos do cotidiano. Sua conceituação, no entanto, apesar das mudanças que
sofreu ao longo do tempo, não perdeu vínculos com seu sentido etimológico, que lhe
concedeu forma, visto que ambos são um resgate do tempo.
A matéria da crônica é o fato miúdo do cotidiano - fato esse pontuado pelo
tempo cronológico, que se esvai, que se desgasta , o as ações corriqueiras,
banais, muitas vezes desprezadas pela literatura; daí a importância do cronista, que,
sendo sensível e perspicaz, capta a essência desses fatos que o tempo quer
apagar, buscando registrá-los e livrá-los do esquecimento. Veríssimo insiste em
dizer que brinca com a morte, posto que o autor pensa a crônica como produto
perecível, que é lido e logo esquecido, fazendo crer que a grandeza dela reside na
sua fugacidade. Tal posição de Veríssimo faz com que nos voltemos ao conceito de
crônica segundo a mitologia clássica, cuja exposição alegórica explicita-nos sobre
uma característica conflitante contida no cerne do gênero: a evidente contradição
entre a fugacidade da crônica (presente no mito) e a busca constante do cronista
pela permanência do fato, através do seu texto:
Na mitologia clássica, o deus Cronos, filho de Urano (o Céu) e de Gaia (a
Terra), destronou o pai e casou com a própria irmã Réia, Urano e Gaia,
conhecedores do futuro, predisseram-lhe, então, que ele seria, por sua vez,
destronado por um dos filhos que gerasse. Para evitar a concretização da
profecia, Cronos passou a devorar todos os filhos nascidos de sua união
com Réia. Até que esta, grávida mais uma vez, conseguiu enganar o
marido, dando-lhe a comer uma pedra em vez da criança recém-nascida. E,
assim, a profecia realizou-se: Zeus, o último da prole divina, conseguindo
sobreviver, deu a Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que
havia devorado. E liderou uma guerra contra o pai, que acabou sendo
derrotado por ele e os irmãos.
Cronos é a personificação do tempo. E, de acordo com uma das
abordagens teóricas dos mitos clássicos, sua lenda pode ser lida como uma
alegoria: a de que o tempo, em sua passagem fatal, engole tudo o que é
criado e tudo o que é criatura. (BENDER & LAURITO, 1993, p.10).
Esse contraste entre a condição efêmera do gênero e a busca pela
perenidade por meio da descrição dos fatos, o que a vincula ao espaço
multifacetado da memória, são algumas das peculiaridades que fazem da crônica
um gênero de fronteiras muito tênues, que evidenciam sua ambigüidade, sem deixar
de destacar, porém, sua propensão para a liberdade criativa.
Consideram-se como primeiras crônicas as escrituras medievais que se
limitavam ao registro de uma seqüência de fatos organizados na ordem temporal de
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sua ocorrência original. Num estudo sobre história medieval, Queiróz (1997) destaca
que cronistas como Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, Ruy de Pina, entre
outros, procuravam desenvolver uma escrita que enaltecia a nobreza, sobretudo a
figura do soberano, por meio da descrição de situações e temas relacionados,
principalmente, ao paço real e aos caminhos e descaminhos da expansão
ultramarina de Portugal a partir do século XIV. Esses textos assumiam uma
dimensão pedagógica, visto que as ações e decisões reais se insinuavam como
verdadeiros exemplos a serem seguidos.
Além da crônica medieval, que empresta, sobretudo, o nome ao gênero,
outras modalidades de narrativas européias, ligadas ao surgimento da imprensa
como divulgadora de textos literários, principalmente a partir do século XVIII, foram
extremamente importantes para a constituição da crônica tal como é hoje.
O ensaio inglês e o folhetim francês, por exemplo, eram modalidades
pertencentes ao jornal, e que vieram a influenciar a crônica, sobretudo a brasileira,
considerando-se a possível fusão dessas formas de escritura: primeiro, pelo
tratamento mais informal dos assuntos abordados e pelo desprezo ao rigor
acadêmico, como acontece no ensaio, e, segundo, pela ficcionalização dos temas
descritos nesse gênero, tal como ocorre no folhetim, que, de acordo com Portella
(1998), guarda afinidades com a crônica, uma vez que ambos se destinam ao
consumo imediato.
Ainda de acordo com esse teórico, a crônica se distingue do folhetim por não
possuir qualquer compromisso com a sucessividade ou com o movimento
diacrônico. Sendo assim, o espaço da crônica é heterogêneo e nele convivem
harmoniosamente diversificados gêneros, como o ensaio, o poema em prosa, o
conto, sendo esta fusão que consolida sua identidade.
É a partir dessa heterogeneidade que surgem os vários tipos de crônica, a
saber: crônica poema-em-prosa, apresentando conteúdo lírico e a manifestação
intimista do ser humano, sendo Rubem Braga um dos principais representantes
dessa vertente; crônica-comentário, na qual se enfatizam e apreciam os
acontecimentos, acumulando assuntos diferentes, como faz Machado de Assis em
muitas de suas crônicas; crônica metafísica, que promove reflexões de conteúdo
filosófico, presente, por exemplo, em Balas de Estalo (1985), também de Machado;
crônica narrativa, que tem por eixo uma história ou episódio, tipicamente encontrada
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em Luís Fernando Veríssimo e Fernando Sabino; crônica-informação, que divulga
fatos, tecendo sobre eles comentários ligeiros.
3
Essa conceituação é apenas norteadora para o leitor, visto que a crônica não
apresenta características definitivas e estanques, o que faz com que seus conceitos
sejam pouco precisos.
1.2. O percurso da crônica no Brasil
A certidão de nascimento da crônica no Brasil se inscreve na carta de Pero
Vaz de Caminha ao rei D. Manuel, quando, pela primeira vez, a paisagem brasileira
despertou o entusiasmo de um cronista, oferecendo-lhe material para um texto.
Segundo Jorge de (2005), Caminha “recriou com engenho e arte tudo o que ele
registra no contato direto com os índios e seus costumes, naquele instante de
confronto entre a cultura européia e a cultura primitiva” (p.5), relatando a el-rei,
detalhes da viagem, sendo fiel às circunstâncias, o que acabou estabelecendo o
princípio básico da crônica: registrar o circunstancial.
Deve-se considerar a importância histórica da carta, visto que ela exerceu um
papel fundamental, sobretudo o de inauguração da escrita literária no Brasil. É o
marco de uma busca que começaria na linguagem dos portugueses que aqui
chegaram, até que um natural das terras brasileiras fosse capaz de se inspirar e
pensar a sua realidade pelo ângulo brasileiro, recriando-a por meio de uma
linguagem livre dos padrões lusitanos.
No que diz respeito à escritura do gênero pelos próprios brasileiros, pode-se
dizer, a priori, que a difusão da crônica está intimamente ligada ao desenvolvimento
do jornal a partir da segunda metade do século XIX, quando ocorre a abertura de
espaço para a publicação de textos curtos, como contos traduzidos e o folhetim.
Alguns autores merecem destaque por elevar o status da crônica à arte
literária, fazendo com que alcance uma dimensão poética, tais como: José de
Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, França Júnior, Machado de Assis, Raul
Pompéia, Júlia Lopes de Almeida, João do Rio, Lima Barreto, cada qual com seu
estilo de “cronicar”.
3
KONZEN, Paulo Cezar. Ensaios sobre a arte da palavra. Cascavel: Edunioeste, 2002. Tais
definições são de Afrânio Coutinho, explanadas no livro de Konzen. Elas podem diferir um pouco,
dependendo do autor.
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José de Alencar, por exemplo, destaca-se pelo esforço em mapear os
caracteres que demarcam a nacionalidade, mesmo que com uma perspectiva
romântica e um tom de ingenuidade, devido ao exagero de exaltação da pureza
nacional, retratando a realidade brasileira presente em alguns elementos
considerados mais expressivos no que se refere à verdadeira nacionalidade, como o
índio personificado como herói nacional, e a descrição das relações sociais
originárias da crescente urbanização e da modernização.
Alencar escrevia no tempo em que a crônica ainda era chamada de folhetim,
ou seja, seu espaço era o jornal, mais precisamente o rodapé da primeira página,
cuja peculiaridade era ser muito mais noticiosa do que propriamente literária. Desse
modo, mesmo esforçando-se para conferir a seus textos elementos conexos ao
universo ficcional por meio do recurso à fantasia, à subjetividade, ao devaneio e ao
humor, Alencar não conseguiu inscrever a crônica como gênero literário reconhecido
nos moldes acadêmicos.
Ainda no século XIX, outro mestre do fazer cronístico que merece destaque, é
Machado de Assis. Segundo Faccioli (1982), a crônica machadiana “ultrapassou
amplamente sua característica inicial de simples amenidade, de comentário
descompromissado dos pequenos sucessos do cotidiano”. (p.139). Retomando a
natureza efêmera da crônica, a brevidade com que trabalha, Drummond destaca em
Machado a responsabilidade de perenizar o que escreve, fazendo com que se torne
irrelevante o gênero utilizado, fazendo com que o fato narrado ganhe vida, deixando-
o para a posteridade.
Crônicas escritas mais de cem anos por um cidadão chamado Machado
de Assis estão hoje vivas como naquele tempo. Os acontecimentos
perderam a atualidade, mas a crônica não perdeu, porque ela traduz uma
visão tão sutil, tão maliciosa, tão viva da realidade, que o acontecimento fica
valendo pela interpretação que Machado de Assis deu. (ANDRADE, 1999,
p.13).
Muitos dos caracteres inerentes a suas obras e pertinentes a outros gêneros
também se fazem presentes em suas crônicas; cabe dizer que seu estilo é marcado
pela invocação e provocação do leitor, ativo e participativo em suas obras, e também
pela linguagem em tom de conversa. A esse respeito, Arrigucci Jr. (1987) menciona
que é notável em suas crônicas “a arte da desconversa: refinada, alusiva, muitas
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vezes maldosa e sempre irresistível. Ninguém escapa a tanta movimentação e
humor”. (p.59).
O humor de Machado, que se impõe como um recurso continuamente
invocado na sua crônica e que com seu aguilhão aponta as mazelas da sociedade,
alia-se à ironia, que também se inscreve na crônica de Veríssimo, evidentemente
com outras nuanças. Considerando as disparidades no que concerne aos caminhos
que os autores percorrem, aos aspectos explorados e à época de atuação, tal
analogia se justifica pelo fato de ambos lançarem um olhar diferenciado sobre a
realidade que os circunda e por empenhar-se na tentativa de perpetuar não somente
o fato, mas, sobretudo, a interpretação que é dada ao mesmo, por meio de uma
escritura singular e, acima de tudo, sutil.
Até chegarmos ao contexto atual, em que Veríssimo atua, outros cronistas
conquistaram seu espaço, como é o caso de João do Rio pseudônimo de João
Paulo Alberto Coelho Barreto -, que também desempenhou um papel importante na
estruturação da crônica nos moldes atuais. A partir de seu texto, instaurou-se (ou
recuperou-se) a concepção de “narrador-repórter”, aquele que vai atrás da matéria,
concedendo a seu relato não um toque de ficcionalidade, mas também uma nova
sintaxe, assim como um aspecto mais literário, de modo a reconhecer-se na crônica
uma fusão de reportagem de jornal e conto, isto é, de modo a se reafirmar seu
caráter de gênero híbrido.
Outro momento marcante na história da crônica brasileira, que confirmaria a
revolução da linguagem e a alteração dos temas por ela abordados a partir das
primeiras décadas do século XX, é aquele correspondente ao movimento
modernista. Essa estética, conhecida graças, sobretudo, à Semana de Arte Moderna
de 1922, procurou incorporar à literatura elementos capazes de conceder à
linguagem aspectos coloquiais, a fim de buscar uma escrita mais natural, mais solta,
que, a partir de então, permitiria a expressão do regional e do popular, além de
disseminar os ideais libertários e contestadores inerentes ao movimento. Todas
essas mudanças influenciaram, substancialmente, em alguns traços, a escritura da
crônica: “Voltada para as miudezas do cotidiano, as fraturas expostas da vida social,
a finura dos perfis psicológicos, o quadro de costumes, o ridículo de cada dia e até a
poesia mais alta que ela chega a alcançar”. (ARRIGUCCI JR., 1987, p.59).
Mário de Andrade, considerado um dos cronistas mais significativos do
Modernismo, imprimiu em seus textos os caracteres do próprio movimento, por meio
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da recuperação de seu percurso, da inserção de temas e da linguagem intimamente
ligados às classes populares, permitindo a compreensão e uma releitura da
realidade brasileira dessa época.
Expandindo os horizontes da literatura, tanto no que se refere à temática,
quanto no que respeita aos aspectos formais do texto, a crônica desse momento
contribuiu para a constituição da verdadeira “brasilidade”, por meio da revelação de
elementos poucas vezes registrados pelos escritores, ou seja, o da evidente relação
entre o jornal e a crônica.
Apesar dessa relação, a crônica literária não se adapta, na sua totalidade, ao
discurso jornalístico, pois não é objetiva como esse. A crônica do culo XX,
seguindo a tendência dos autores do século XIX, tende a ser cada vez menos
fugidia, menos fugaz, não é mais um simples registro dos acontecimentos, das
banalidades do cotidiano, porquanto possibilita a inserção do lírico, fazendo não
do poético um aspecto contemplado, mas também do lúdico perspectiva essa que
nos levou a pensar na sua estreita relação com o gênero cronístico e na realização
do presente estudo para, então, conceder uma outra dimensão ao fato narrado e,
assim, conduzir o leitor a uma profunda reflexão sobre a vida, ao mesmo tempo em
que faz do gênero um candidato à permanência.
Autores contemporâneos como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos
Heitor Cony, Luís Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes sendo este o primeiro da
contemporaneidade a se valer do humor irreverente -, entre outros, passam a ser
adeptos do gênero e suas crônicas passam a ser publicadas em livro com maior
regularidade que nas décadas anteriores.
Cabe elucidar que, tanto no século XIX como no século XX principalmente, a
descrição dos fatos estava aquém da intencionalidade da crônica. Da sua escritura,
desde então, emergiam qualidades capazes de invocar questões sérias
destinadas a contribuir para a transmissão do conhecimento. O que mudou, no
entanto, neste panorama, foi, possivelmente, a forma de divulgação das crônicas,
que agora não são mais, apenas, impressas nas folhas do jornal, dividindo o espaço
com suas notícias, e ainda fadadas ao esquecimento, mas, sim, organizadas em
antologias e catalogadas por autor, ou segundo uma unidade temática, contribuindo
para que os leitores se tornem fiéis a seus escritores preferidos.
O fato de as crônicas passarem a ser reunidas em antologias merece
destaque por ser um momento extremamente importante na história do gênero,
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principalmente devido à mudança de atitude do leitor. Este atua, agora, com maior
liberdade sobre o texto, inferindo e extraindo dele novas possibilidades de leitura,
reconhecendo, assim, a riqueza da crônica por meio de uma visão crítica suscitada a
cada nova leitura, possibilitada pelo fato de poder recorrer ao livro quando quiser.
Ademais, vale ressaltar que o novo leitor é oriundo da sociedade atual, cuja
concepção se apóia na praticidade, agilidade, pondo em destaque a idéia de que
tudo dever ser rápido, pois não se tem muito tempo disponível. A crônica ligada à
transitoriedade do jornal – moldou-se a esse novo leitor e a essa nova concepção de
sociedade. Direciona-se, inicialmente, àqueles que usufruem desse veículo de
informação, cuja produção, marcada pela urgência, reflete-se na escritura do
cronista, por meio de uma aparente desestruturação da sintaxe e de uma perceptível
aproximação da língua escrita com a oralidade, fazendo parecer mais uma
“conversa entre dois amigos do que propriamente um texto escrito”. (SÁ, 2005,
p.11).
Enfatizamos, com isso, o dialogismo de base da crônica, que harmoniza o
coloquial e o literário num texto rico, porém leve, que nos permite enveredar nas
suas tramas por meio da espontaneidade e da sensibilidade, que, muitas vezes, lhe
são peculiares, além de fazer uma ponte com o universo do risível, explorando o
humor que emerge dos temas tratados em várias delas.
É válido ressaltar, inclusive, a crônica de inúmeros autores como fonte de
inspiração para outras modalidades artísticas. Tanto as crônicas veiculadas pelo
jornal quanto as reunidas em antologia são base para a produção de programas
televisivos, teatros e filmes. Exemplo disso são as Comédias da vida privada
(1995), de Luís Fernando Veríssimo, que teve seu programa homônimo veiculado
pela rede Globo de televisão, e seu livro As mentiras que os homens contam
(2000), que virou peça de teatro, ficando em cartaz por dois anos, devido ao imenso
sucesso. O mesmo acontece com os filmes inspirados em crônicas, como Bossa
Nova, Copacabana e Pequeno dicionário amoroso.
Vale dizer que todo esse percurso da crônica brasileira se fez necessário,
para que pudéssemos associar a essa miscelânea de gêneros e estilos, a linguagem
de Veríssimo, cuja escritura serviu de inspiração para este nosso estudo. Enfatiza-se
também a recorrente aliança entre crônica e humor que será explorada em nosso
trabalho à luz da teoria do riso, além da elucidação do processo constitutivo da
linguagem cômica.
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CAPÍTULO II
2. Comicidade e seriedade
Quando falamos em comicidade e seriedade, pensamos logo em dois
extremos, pois parecem, de fato, duas vertentes totalmente opostas e incompatíveis.
Entretanto, em nosso estudo, elas adquirem um caráter dialético e interdependente,
haja vista que o riso - “produto” da comicidade - por se tratar de um fenômeno
híbrido, ambivalente, multiforme e, ao mesmo tempo, natural, clama por uma
ampliação de possibilidades de significação, emergindo, daí, uma peculiar sisudez,
ou seja, o caráter rio que ressoa do riso. É desse modo que notamos a afinidade
entre essas vertentes, especialmente nas crônicas de Veríssimo que constituem o
corpus de nossa pesquisa.
Não podemos afirmar que o cômico e o sério sempre coexistam numa mesma
obra, mas podemos mostrar que o riso, provocado pela leitura das crônicas que
iremos analisar, é fruto de uma reflexão que se inscreve na seriedade de seu
discurso humorístico, expressão paradoxal que faz com que o signo ganhe
potencialidade e amplitude de sentidos.
obras, evidentemente, em que essa reflexão parece estar ofuscada ou
oculta, pois se apresentam ao leitor como simples relatos que não almejam tomar
grandes proporções. Nelas, ainda assim, uma elaborada construção da
linguagem com base na seleção de certos instrumentos lingüísticos da comicidade,
os quais exigem o concurso de um leitor competente e audaz para lidar com as
artimanhas do discurso cômico e atribuir sentido ao texto lido.
Para podermos trabalhar com a dicotomia seriedade/comicidade, é
necessário elucidar algumas questões no que se refere à terminologia, isto é, às
diferenças entre o cômico e o humor, além de expor e discutir, brevemente, alguns
conceitos ligados ao riso, enveredando um pouco pela História e pela Filosofia, com
a finalidade de investigar suas diversas nuanças e seu caráter ambivalente.
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2.1. Diferenças entre termos: o que é cômico e o que é humor
Podemos chamar de risível o objeto do riso, em geral, isto é, aquilo de que se
pode rir, seja a brincadeira, a piada, o jogo de palavras, a sátira, etc. Assim, risível,
na maioria dos casos, corresponde ao que também recebe o nome de cômico.
Segundo Verena Alberti (2002), “o riso e o cômico são literalmente indispensáveis
para o conhecimento do mundo e para a apreensão da realidade plena”. (p.12).
No que se refere à comicidade, um dos enfoques obrigatórios deve ser
direcionado ao produto por ela criado, isto é, ao riso. Para tanto, consideramos
necessário elucidar alguns termos pertencentes ao domínio do risível, pois estes,
por serem correlatos, podem gerar incertezas e até mesmo equívocos quando se
trata de um estudo mais aprofundado de tais questões. É o caso do humor e do
cômico, que são vocábulos análogos semanticamente, mas que contêm na sua
formação conceitual algumas características importantes que os diferenciam.
Minois, em sua obra História do riso e do escárnio, datada de 2003, afirma
que:
[...] o humor surge quando o homem se conta de que é estranho perante
si mesmo, ou seja, o humor nasceu com o primeiro homem, o primeiro
animal que se destacou da animalidade, que tomou distância em relação a
si próprio e achou que era derrisório e incompreensível. (p.79).
Desse modo, dissemos que o humor é quase como que um sentido do
homem, tal como o paladar ou o olfato, no entanto, esse sentido requer um olhar
arguto sobre o mundo, e não é instintivo como os outros, fazendo com que se
além e se ultrapasse o senso comum; ao passo que aqueles que são privados desse
sentido, não se o conta de que o mundo, na verdade, é uma representação. O
homem vive no mundo de forma tão pragmática, sobretudo hoje, que é incapaz de
assumir uma distância crítica, de se desprender, de ser livre, de refletir sobre o
mundo e sobre a sua existência. A maioria, ou até mesmo todos, “agarram-se a sua
representação do mundo sem perceber que se trata apenas de uma representação;
desempenham seu papel com tal convicção que não vêem que é um papel”.
(MINOIS, 2003, p.79).
Compreende-se, desse modo, que o humor veio muito antes da palavra, para
se tornar, segundo o teórico, “o mais belo florão do planeta cômico” (MINOIS, 2003,
41
p.303), posto que ele é a essência, a pureza do riso, cujo primeiro esboço de
definição é tecido por Bem Jonson em 1600:
Esse nome pode, por metáfora, aplicar-se
à disposição geral do caráter:
por exemplo, quando uma qualidade particular
se apossa de um homem a tal ponto que força
seus sentimentos, seus espíritos, seus talentos,
seus fluxos misturados a escoar-se todos no mesmo sentido,
então, sim, pode-se dizer que existe um humor. (apud MINOIS, 2003,
p.304).
Isso significa que o humor é uma disposição natural e intrínseca à natureza e
ao espírito humano, a qual intercede como uma força dominadora e fluida sobre o
homem.
O humor, porém, supõe certo comedimento discursivo e não é por acaso que,
de início, tenha-se aclimatado bem na Inglaterra, país em cujo solo os indivíduos
oscilavam entre as privações do puritanismo e a alegria de viver. Situações
contrárias que, muitas vezes, atingiam o contraditório: paradoxalmente, o humor
“seria um otimismo triste ou pessimismo alegre?”. (MINOIS, 2003, p.304).
Entende-se, então, o motivo de Thomas More (apud MINOIS, 2003), envolto
em certa aura melancólica e pessimista, afirmar que o humor “vem da união dos
contrários: um temperamento feliz, consciente da fragilidade da natureza humana”.
(p.304). Para ele o humor acolhe e une, uma vez que a concordância de consciência
entre as pessoas leva à cumplicidade.
A obra shakesperiana se revela um exemplo vivo da presença do humor na
literatura; é ela, inclusive, que oferece dele uma das definições mais precoces: “uma
brincadeira dita com ar triste?” (SHAKESPEARE apud MINOIS, 2003, p.304). Trata-
se de uma premissa incompleta que corrobora uma das marcas do humor: ser
indefinível, ou seja, pode-se praticar ou reconhecer o humor, mas não defini-lo.
Há, como se percebe, uma “contradição” fundamental encontrada na essência
do humor, enfatizada, sobretudo, por Pirandello (1996). Tal contradição advém do
desacordo entre elementos que por si já são opostos, como por exemplo, a
contradição ou a oposição entre o sentimento e o pensamento, entre a realidade e
sua idealização, entre nossos desejos e nossos vícios e, principalmente, a
complexidade decorrente da contradição que se assenhora do pranto e do riso;
ainda, “o ceticismo, com o qual se colore cada observação, cada pintura
42
humorística e, enfim, seu procedimento minuciosamente e também maliciosamente
analítico”. (p.126).
Além dessa contradição presente na essência do humor, não podemos deixar
de enfatizar, ainda, que muitos fatores foram determinantes para o estatuto e para o
status do riso em determinadas épocas. A nosso ver, a religião foi um dos principais:
dosando o riso, a instituição religiosa podia controlar o comportamento social;
normatizando ritos e festas, podia censurá-lo; limitando a liberdade do indivíduo, foi-
lhe ceifando, progressivamente, a alegria de viver. Dessa forma, ainda segundo
More (apud MINOIS, 2003), a principal causa do humor cristão é a degradação
gerada pelo pecado original preceito disseminado pela cultura judaico-cristã que
pode ser fonte de desespero, mas também motivo de riso crítico e libertador, que a
censura religiosa procura calar. O verdadeiro humor necessita de um olhar de
contraste: “é um duplo olhar, sobre os acontecimentos e sobre a vida; um simples
olhar as aparências e produz, de maneira inevitável, tolice ou fanatismo, ou,
mais freqüentemente, os dois ao mesmo tempo”. (MORE apud MINOIS, 2003,
p.305).
É preciso levar em conta, ainda, a etimologia da palavra, que também amplia
as possibilidades de compreensão. Destacamos as várias acepções dadas pelo
dicionário:
[...] etimologicamente ligado ao termo latino humore – possui acepções
dicionarizadas que remetem a diferentes campos de conhecimento: para a
Biologia, humor é qualquer líquido que atue normalmente no corpo,
principalmente dos vertebrados (bílis, sangue, linfa etc.); para a Medicina,
humor é substância mórbida, quida, formada no corpo doente, como, por
exemplo, o pus; em outra acepção, a palavra designa ainda a porção líquida
do globo ocular. Além disso, quando ligado ao riso, o conceito es
geralmente relacionado à disposição de ânimo (bom ou mau humor)
inerente àquelas pessoas que apreciam ou expressam coisas engraçadas.
(MICHAELIS, 1998, p.1117 apud KONZEN, 2002, p.46).
Numa explanação um pouco mais aprofundada, temos ainda:
[...] melancolia de um espírito superior que chega a divertir-se com o que o
entristece, o “tranqüilo, sereno e refletido olhar sobre as coisas”, o “modo de
receber os espetáculos divertidos que parecem em moderação, satisfazer o
senso de ridículo e demandar perdão para o que de pouco delicado em
tal comprazimento. (RICHTER apud PIRANDELLO, 1996, p.125).
43
Seguindo as considerações tecidas a respeito do humor, que enfatizam um
viés contrastante, podemos compreender que se trata de uma disposição de espírito
que nos permite rir de tudo sob uma máscara da seriedade; o humor pode tratar,
jocosamente, de coisas sérias e, seriamente, de coisas engraçadas. O humorista,
desse modo, pode dizer tudo, sem efetivamente tocar o objeto do humor, o que pode
inspirar certa desconfiança por parte do leitor devido à suposta falta de envolvimento
do autor com o objeto. Ademais, por se tratar de uma disposição ou estado de
espírito, e, ainda, por ser imanente ao ser, podemos dizer que é possível fazer uma
leitura humorística de textos ou de situações desprovidas de humor.
Encontramos uma definição de Helen M. Luke (1987) que abarca e sintetiza,
de maneira aclaradora, as considerações feitas até o presente momento sobre o
humor:
A raiz da palavra é o umor latino significando “líquido, fluido”. Humor,
portanto, em todos os níveis é alguma coisa que flui, semelhante à própria
água, e simboliza o movimento de forças inconscientes que gradualmente
se desenvolve em características básicas do ser humano individual, que se
expressam no corpo, nas disposições e reações emocionais, em qualidades
de sentimentos, de mente e de espírito.(p.10).
O que se faz necessário, no entanto, é nos empenharmos na tentativa de
diferenciar o cômico do humor. Pirandello também tece algumas considerações no
que se refere a ambos os termos. Expõe uma observação de Benedetto Croce no
Journal of Comparative Literature (fasc. III, 1903), segundo o qual o humorismo é
o espaço do indefinível, assim como os estados psicológicos. Segundo ele, a
especulação dos filósofos em torno do humor surgiu especialmente quando se
tentou definir, respectivamente, o cômico, o sublime, o trágico, o humorístico e o
gracioso. Ademais, para Croce, tudo se converte em algo extrínseco ao estético,
inclusive o processo para se chegar ao humor.
Pirandello se contrapõe a esse pensamento, ao afirmar que o humor pode ser
indefinível para um filósofo, mas não para um artista, que representa os estados
psicológicos por intermédio de um objeto estético. O autor considera a teoria de
Croce sobre o humor, abstrata e negativa, de impossível aplicação, pois nega sua
própria natureza, uma vez que a reprodução de um estado de espírito deve ser
associada e imbricada à estética:
44
[...] a perfeita reprodução de um estado de espírito, no qual consiste
precisamente a beleza estética, é um fato emocional que pode resultar
somente da soma de algumas representações sentimentais, assim a análise
psicológica de uma obra de poesia é o necessário fundamento de qualquer
avaliação estética. (CESAREO apud PIRANDELLO, 1996, p.128).
Quando Pirandello define a obra de arte como fruto de uma criação do “livre
movimento da vida interior que organiza as idéias e as imagens em uma forma
harmoniosa, na qual todos os elementos se correspondem entre si e à idéia-mãe,
que as coordena” (1996, p.131), está admitindo, no momento da criação da obra, a
existência de um ato reflexivo, cuja atividade implica o acompanhamento de suas
fases, desde sua concepção até sua conclusão. Para o artista, nada disso passa
pela consciência, pois não é ela que impulsiona a criação, mas é o lugar no qual se
mira o pensamento, ou seja, a consciência é o pensamento que se a si mesmo,
assistindo ao que ele faz espontaneamente. No momento da concepção da obra, a
reflexão encontra-se escondida no artista, e assim permanece, fazendo com que,
para ele, isto seja uma forma de sentimento.
Porém, quando falamos de uma obra humorística, isso não se aplica, pois,
nesse caso, a reflexão não se esconde, não permanece invisível, não se impõe
como uma forma de sentimento, mas, sim, o analisa, desligando-se dele. Desse
modo, surge um outro sentimento, que Pirandello chama de sentimento do contrário.
Antes desse sentimento, simplesmente uma percepção do contraste; é a
consciência que sinaliza algo que pode causar um estranhamento em determinada
situação ou diante de um objeto. Quando estamos ainda nesse nível, apenas
uma advertência do contrário; nesse caso, utiliza-se, preferencialmente, o termo
cômico, pois se faz presente um riso genuíno.
O mico, portanto, “é exatamente uma advertência do contrário”
(PIRANDELLO, 1996, p.132). Porém, se a reflexão intervier conscientemente sobre
tal situação ou objeto, e neles adentrar, ocasionando a passagem da advertência do
contrário para o sentimento do contrário, o humor; e é nesse ponto que reside
toda diferença entre o cômico e o humor.
Contrariando a teoria de Pirandello, temos Lipps (apud PIRANDELLO, 1996),
para quem tal sentimento (do contrário) não é aplicável para o cômico nem para o
humor, pois, para ele, inscreve-se outro processo, em que valores éticos se
conjugam ao prazer artístico e estético de uma obra, a fim de colocar em discussão
45
o valor da personalidade humana, falando também de valores e/ou aspectos
positivos do ser humano e de sua negação.
Pirandello se detém no valor estético de uma obra e foge do campo da ética.
Para isso, tem necessidade de saber qual o estado de espírito que a representação
artística pretende despertar. Para ele, esse estado é a perplexidade, diante da qual
o desejo de rir; entretanto, é um riso perturbador, nebuloso, impedido por algo
que emerge da própria representação. A partir disso, compreende-se por que, para
encontrar uma explicação plausível para esse fato, não necessidade de pôr em
discussão o valor ético da personalidade humana.
O que importa para Pirandello - e para o nosso trabalho - é verificar realmente
se este sentimento nasce da contradição e provoca uma atividade especial que a
reflexão assume na concepção de tais obras. Por esse viés, conseguimos
compreender algumas das várias características que se podem encontrar na maioria
das obras humorísticas, como a interrupção da espontaneidade na exposição de
idéias e de imagens, que quebra a harmonia e desequilibra o movimento contínuo e
natural de um texto, por meio de decomposições e, por vezes, digressões.
Sobre uma obra de arte, dissemos que a reflexão é quase uma forma de
sentimento. Logo, no que se refere a uma obra humorística, a contigüidade desse
pensamento se inscreve a partir da seguinte metáfora:
[...] a reflexão é como um espelho, mas de água gelada, no qual a chama
do sentimento não apenas se mira, mas mergulha e apaga-se: o frigir da
água é o riso que desperta o humorista; o vapor que dela exala é a fantasia
freqüentemente um pouco fumacenta da obra humorística. (PIRANDELLO,
1996, p.139).
Dito de outro modo, o sentimento que nos envolve, na mesma hora se anula
para que a reflexão tome seu lugar. Nesse momento, se um riso ressoa, é um riso
turbado ou contido, e a fantasia tende a ficar opaca, pois o que importa não é seu
caráter ficcional, mas sim seus efeitos.
Tomando a crônica Bobos I, com o fito de explicitar o conceito de humor e de
cômico, a questão que surge é a seguinte: podemos dizer que a originalidade e/ou a
excentricidade do bufão, configurada na apresentação artística, pode ser
considerada apenas como cômica? Acreditamos que não, visto que essa
excentricidade ultrapassa o cômico e se faz humorística, na medida em que
46
passamos a considerar a figura do bobo como veiculador da lucidez, da verdade
que, ainda assim, suscita risos descomedidos.
Desse modo, mesmo travestido de palhaço, sendo o bobo da corte, ele
articula um discurso sério por meio da exposição da verdade implícita no texto,
mesmo se valendo dos instrumentos da comicidade. Não será essa a disposição de
espírito atribuída ao humor? Falar de coisas sérias, jocosamente? Ir além do senso
comum, observar coisas óbvias e revelar verdades ocultas por intermédio de uma
figura imprudente, alguém alegre, espirituoso e sem relevância social?
[...]
- Majestade continuou Serbo, preparando o seu gran finale, uma balada
safada com cem variações picarescas em torno do bacalhau responda se
puder: qual é o peixe que mais agrada à mulher?
O Rei ficou sério de repente. Chamou a guarda e ordenou:
- Tranquem-no. Ele será decapitado ao amanhecer.
Para o Procurador Real, enquanto o bobo era levado para a masmorra,
estupefato e arrastando seu alaúde, o Rei perguntou:
- Ele sabia que não era para criticar os arqueiros?
- Sabia.
- Pois então. Este reino é liberal. O bobo pode dizer tudo. Mas tem que
respeitar as regras. Decapitem-no. E arranjem outro bobo. (VERÍSSIMO,
1982, p.56).
Pelo excerto supracitado, percebemos que a apresentação cômica toca uma
questão séria, que é a possível traição da rainha com um arqueiro, questão que não
poderia ser ironizada em nenhum de seus gracejos. É, desse modo, que o humor se
inscreve na crônica uma vez que se ri de algo que denigre a imagem do rei e nos
permite uma análise crítica frente à situação narrada.
É importante salientar que, segundo Pirandello, os eventos e sentimentos da
vida humana são um terrenortil para a criação de uma obra humorística; a
melancolia, as vicissitudes, os tristes fatos e as angústias podem determinar a
disposição humorística do espírito, que brota de forma espontânea e que se nutre do
próprio humor escondido nas camadas ocultas desses eventos.
Os conceitos arrolados sobre o humor e o cômico são imprescindíveis para
que se possam constatar, nas crônicas que compõem o corpus do nosso trabalho, a
dialética e a coexistência dessas duas manifestações. Tanto em Bobos I quanto em
Ri, Gervásio, o autor, primeiramente, faz suscitar um riso prazeroso, lúdico, de
satisfação, por meio da instrumentalização dos recursos cômicos; depois, a partir da
47
leitura (feita por um “leitor-modelo”
4
), ocorre um processo no qual a construção de
sentido decorre de uma reflexão sobre a questão focalizada. Existe, desse modo, a
alegria e o prazer no ato da leitura, e depois, a anulação parcial de ambos,
promovida pelo sentimento do contrário.
Em todo esse processo, devemos considerar a existência de uma relação de
causa e conseqüência. Tomo um exemplo de Pirandello para elucidar essa questão:
se vemos uma senhora maquiada de forma exagerada, vestida inadequadamente
para sua idade e ridícula em suas atitudes, temos logo vontade de rir, pois isso é
cômico. Mas, se conhecemos a história dessa senhora e sabemos que ela não sente
prazer algum em agir assim, mas que faz isso simplesmente para garantir para si o
amor de seu companheiro, que é bem mais jovem que ela, a mesma situação
começa a adquirir um caráter mais rio e envereda por um outro caminho, que não
é mais o da comicidade. Emerge daí uma reflexão, e isso poderá causar-nos
piedade, um sentimento de comiseração frente ao problema da senhora. Pode-se
dizer, então, que o cômico vai se transformando em humor na medida em que se
distancia do domínio da comicidade, do riso, da alegria, do prazer gratuito. É comum
ao humor a hibridização e a oscilação entre elementos cômicos e trágicos, ou seja, a
mistura de situações claramente alegres e situações que envolvam tristeza ou
compaixão.
Como ressaltado, a crônica Bobos I narra, basicamente, a seguinte
situação: um bobo da corte, escolhido para entreter o rei e seus convidados, tem
certa liberdade para brincar e satirizar a tudo e a todos. Porém, quando revela sem
querer, em uma de suas brincadeiras, uma verdade que ofende o rei, é punido de
forma drástica e irreversível, sem que lhe seja dada qualquer oportunidade de
defesa. Essa é uma forma de mostrar que, se o riso, a piada, de modo geral,
visassem só ao entretenimento e ao prazer, não causariam tanto receio e não
haveria necessidade de punição.
Podemos também dizer, desse modo, que quando nosso olhar se restringe à
apresentação do bufão, temos o cômico, e quando nos aprofundamos nos efeitos
dela e, nesse caso, o ato intelectivo se faz imprescindível, temos o humor, que aqui
4
O leitor-modelo, segundo Umberto Eco (1994), é aquele que tem competência para estabelecer uma
comunicação com o autor na compreensão do texto, uma vez que se o leitor não for capaz de decifrar
as relações de sentido presentes no texto, a leitura não se concretizará com sucesso. É o que
acontece com o leitor de Veríssimo: se ele não perceber que, por trás da comicidade e da
simplicidade discursiva, a possibilidade de enveredar por caminhos que revelem a face séria do
riso, a leitura perderá seu maior propósito.
48
se vincula diretamente à ironia, recurso impresso nas camadas profundas da
urdidura textual, construída por meio de estratégias da linguagem (explicitadas no
capítulo 3.3), em que se propõe um sentido outro que não o expresso no enunciado,
sem, no entanto, esfacelar a ambigüidade da narrativa, que prevê, além da
presença, a participação efetiva de um interlocutor competente para decodificar o
dito irônico e, então, realizar uma leitura reflexiva em torno do tema abordado na
crônica.
O mesmo ocorre com relação à crônica Ri, Gervásio, em que são narrados,
de forma hiperbólica, os infortúnios da vida de Gervásio, funcionário de uma claque
de humor, que é obrigado a rir, mesmo sem ter nenhum motivo para isso. Essa
crônica revela, de uma forma prática, o que muitos teóricos do riso defendem: a
interdependência e o caráter dialético presentes no cômico e no trágico, que, muitas
vezes passam de um domínio para o outro, de conformidade com a recepção do
público/leitor e do grau de ambigüidade que apresenta, sustentada, também no caso
dessa crônica, pela ironia.
Em Ri, Gervásio conjugam-se, visivelmente, elementos do domínio do risível,
pois se a lermos de modo superficial, não iremos além de considerá-la um simples
texto mico, com relativa relevância; entretanto, se, com um espírito mais analítico
e atento, nos aprofundamos em seu sentido, perceberemos que nela se oculta um
alto grau de verossimilhança com situações confrangedoras da vida humana. A essa
altura, o que nos fizera rir, por ser apenas cômico e engraçado, talvez não elimine
agora o nosso riso, mas fará dele um riso triste, alimentado pela compaixão por
Gervásio: nasce o humor quando, da leitura, surge um sentimento contraditório, isto
é, o sentimento do contrário.
Conforme observado, é notório que entre o humor e a comicidade uma
linha tênue que os separa. Além disso, não há, nem seria coerente haver, uma
rigidez nem barreiras intransponíveis no que se refere à definição dos termos, uma
vez que o riso, fruto de ambos, se constitui num fenômeno ambíguo e multifacetado.
Porém, consideramos importante elucidá-los apenas para que haja propriedade e
fundamentação em nosso estudo.
Levando em conta o fato de que a crônica Bobos I é uma obra humorística
que permite a inserção de uma apresentação cômica para provocar o riso,
concordamos com Verena Alberti (1999) e Paulo César Konzen (2002) quando se
referem à comicidade geralmente como ações, gestos ou expressões corporais,
49
intimamente ligados ao palco, em apresentações engraçadas. O espaço para elas
são as cortes medievais (em que aparece a bufonaria) e certos contextos modernos,
como o teatro, o circo, as ruas dos grandes centros urbanos e, mais recentemente,
alguns programas televisivos.
Contudo, devemos rejeitar a idéia de que a comicidade aparece em certas
manifestações artísticas, pois, assim como esteve presente no cotidiano dos gregos,
por meio de brincadeiras, nas festas, nos banquetes etc., também podemos afirmar
que o cômico e o humor, notadamente, são parte do nosso cotidiano. Prova disso
são as piadas, os gracejos, que põem os integrantes de uma comunidade em
relação e divulgam valores sócio-culturais, contribuindo para a perpetuação da
cultura de um povo. Apesar de percebemos relações entre os vários espaços de
atuação da comicidade, a nossa atenção deve ser focada, evidentemente, nos
recursos utilizados para provocar o riso nas produções literárias.
Na crônica Bobos I, por exemplo, o espaço de atuação da comicidade é uma
corte européia, porém devemos deixar claro o que nos parece óbvio: não é a
situação em si o objeto de nosso estudo, mas, antes, a ação representada pela
escritura de Veríssimo, na qual vale destacar o humor que lhe é peculiar e a
comicidade como meio para se chegar ao riso. São os recursos de linguagem que
se fazem eficazes na construção do discurso humorístico -, portanto, que nos
conduzem a uma possibilidade de análise literária, ao mesmo tempo em que se
entremeiam a tais instrumentos subsídios teóricos, cuja função, nesse estudo, é
promover uma significativa reflexão sobre o riso e o risível.
2.2. A opacidade do cômico
Apesar da tentativa de conceituação do cômico a partir de suas diferenças em
relação ao humor, devemos ressaltar que, por se tratar de fenômenos ambíguos e
dialógicos, fica extremamente dificultoso encontrar sua especificidade, sobretudo a
do cômico.
Fato é que desde a Antiguidade até os dias atuais, o riso, o papel que
desempenha e as manifestações cômicas têm sido abordados por inúmeros
estudiosos, a fim de tentar aclarar certas questões e, desse modo, despertar uma
reflexão mais consistente acerca desse fenômeno.
50
Um dos precursores, no que se refere a esses estudos, vamos encontrar na
Grécia antiga. Trata-se de Aristóteles, filósofo do século IV a.C., responsável por
uma proposta teórica que se refere a um dos aspectos mais evidentes do fenômeno
do riso: “o homem é o único animal que ri [...] nenhum animal ri, exceto o homem”.
(ARISTÓTELES apud MINOIS, 2003, p.72).
Isso significa dizer que somente ao homem é dada a capacidade de rir, sendo
natural a ele, e por isso, seu estudo é tão complexo, imbricando-se nele análises
tangenciais a diversas áreas do conhecimento.
Para entendermos a ameaça que o riso representava, e representa ainda
hoje, cabe destacar que Aristóteles condenou o riso arcaico, explosivo, zombeteiro e
agressivo, presente nos rituais festivos de que participava a sociedade grega da
antiguidade. O riso passou, então, a ser controlado, vigiado, pois era permitido
com parcimônia e em determinadas ocasiões. Para ele, se poderia rir de uma
deformidade física se ela não fosse índice de dor ou doença. Era preciso evitar o
riso grosseiro e triunfante característico de tais festividades.
Porém, o próprio Aristóteles, que tendeu sempre para o recalque do riso,
admitia que a sociedade grega apreciava muito figuras cômicas e engraçadas, como
os palhaços e os bufões, por exemplo, pois, considerados pessoas de espírito,
contagiavam pela alegria, manifesta por meio de pilhérias e gracejos (muito
difundidos na antiguidade), tornando-se, assim, fonte de prazer e fruição.
É notório, desse modo, que o riso é algo vivo e presente no cotidiano das
pessoas, tanto hoje quanto na Grécia antiga. O que muda é o tratamento dado a ele.
A contradição que havia era entre a reflexão teórica e a prática social, uma vez que,
enquanto os filósofos tentavam reprimir o riso, expressando sua profunda aversão a
ele, o homem grego divertia-se, sem se preocupar com teorias e censuras.
No que se refere às teorias sobre a comicidade, Propp (1992) aponta algumas
incoerências. Ele indica a inconsistência de diversas teorias surgidas até então, pois
se apóiam em raciocínios expostos de maneira exageradamente complexa, e são
concebidas sem a menor relação com a realidade, o que as torna incompreensíveis.
O mesmo acontece com os fatos que ilustram os conceitos criados. Segundo o
teórico, a solução para isso seria apoiar-se num “estudo sério e imparcial dos fatos e
não em elucubrações abstratas, por mais interessantes e atraentes que elas venham
a ser enquanto tais”. (p.16).
51
Outra falha freqüente no estudo da comicidade, ainda segundo esse autor, é
o fato de não se submeter velhos conceitos, tidos como verdadeiros e absolutos, a
novas análises, a fim de se constatar se os princípios básicos se mostram ainda
condizentes com a época e com os estudos realizados. Um desses conceitos é o
estudo isolado do cômico, do trágico e do sublime, cujas considerações, obtidas a
partir do antigo estudo sobre o trágico e o sublime, são aplicadas ao cômico de
forma totalmente inversa.
Falar desse conceito implica falar de Aristóteles, pois foi a partir de suas
considerações sobre a tragédia e a comédia, que se estabeleceu a oposição entre o
trágico e o cômico. Para o filósofo, era natural formular conceitos sobre a comédia,
tomando-se a tragédia como seu oposto, uma vez que esta tinha uma relevância
prioritária na consciência e na prática dos antigos gregos. A evidência de tal fato
pode ser encontrada na própria Poética, onde não se encontra uma formulação da
essência da comédia, como acontece em relação à tragédia, pois se admite que se
tenha perdido no segundo livro, que tratava somente da comédia. A essa, Aristóteles
se refere como se tratasse de um gênero menor, uma espécie de contraponto
opositivo e inferior em relação à poesia séria:
[...] A tragédia é “uma imitação de ões sérias, completa em si mesma, de
certa magnitude, numa linguagem embelezada com as várias espécies de
ornamentos artísticos distribuídos pelas várias partes da peça; não
mediante uma narrativa mas sob a forma de ação; e efetuando por meio de
terror e compaixão, a conveniente purgação (katharsis) desses
sentimentos.[...]
[...] Por seu turno, a comédia é “uma imitação de personagens de um tipo
inferior, não propriamente no pleno sentido da palavra mau, visto o cômico
ser apenas uma
mera divisão do feio. Consiste em algum defeito ou
fealdade o dolorosa e não destrutiva. Para nos servirmos dum exemplo
evidente, a máscara cômica é feia e distorcida, mas não implica dor.
(WILLIAM K. WIMSATT e CLEANTH BROOKS, 1980, p. 45-61).
A conseqüência dessa oposição resvalou em alguns problemas, como a
abordagem negativa que muitos autores passaram a adotar em relação à comédia, o
que fez com que esse gênero ocupasse uma posição inferior em relação aos outros.
No Renascimento, por exemplo, os gêneros foram divididos em elevado, médio e
baixo. Modalidades ligadas ao trágico, consideradas elevadas e nobres, eram
valorizadas, enquanto a comédia e as modalidades relacionadas a ela, como a sátira
e a farsa, por serem usadas freqüentemente em representações populares, eram
consideradas inferiores. O mesmo ocorria na estética idealista do romantismo, que
52
naturalmente fundamentava qualquer teoria a partir do sublime e do belo, opondo-
lhe o cômico como algo baixo e contrário ao sublime.
Contudo, Volket (apud PROPP, 1992), um dos representantes da estética
positivista alemã do século XIX, expressa suas inquietações sobre tal oposição tão
difundida e arraigada no pensamento literário durante os séculos anteriores. Para
ele, “o cômico não é absolutamente um elemento oposto ao trágico, embora não
possa ser inserido na mesma série de fenômenos aos quais pertence também o
trágico [...] Se existe algo oposto ao cômico, é o não-cômico, o sério”. (p.18). Isto
significa dizer que o cômico está fora do domínio do trágico.
Assim como Propp, pensamos que essa idéia de Volket, da qual muitos
outros autores também passaram a compartilhar, é a mais correta e profícua, pois o
cômico deve ser estudado por si mesmo, sem depender do confronto opositivo com
relação a nenhuma outra manifestação, como o trágico, por exemplo.
Em que as divertidas e irônicas crônicas de Veríssimo são o oposto do
trágico? Pensamos que nada, elas simplesmente não pertencem ao domínio do
trágico. Observe-se que as crônicas que compõem o corpus de nossa pesquisa, isto
é, Bobos I e Ri, Gervásio, põem em diálogo elementos cômicos a outros que, se
não estivessem contextualizados numa crônica humorística, não seriam risíveis,
adquirindo uma perspectiva séria e possibilitando, desse modo, uma análise mais
crítica e contundente. Isto ocorre mais claramente na crônica Ri, Gervásio: uma
confluência de elementos cômicos com outros que, exagerados comicamente,
evidenciam a tragicidade de uma vida caótica e fatídica, presente no enredo da
crônica. Eis o paradoxo e a ambivalência presentes no cerne do fenômeno risível.
Devemos considerar, no entanto, a contribuição que as reflexões de
Aristóteles trouxeram para o conhecimento da tragédia e da comédia, mesmo
opondo uma à outra, pois é a partir do conceito de catarse que se abriram caminhos
para discutir a relação palco-platéia e/ou texto-leitor.
Para Konzen (2003), em Ensaios sobre a arte da palavra, quando o
receptor da obra se envolve com as personagens a ponto de se identificar com elas,
tem-se uma relação de tipo grave, próprio da tragédia; porém, se o leitor ou
espectador rejeita as ações das personagens, situando-se distante da história
narrada, uma relação de tipo cômico. Em ambas, porém, ocorre uma reação
catártica; na tragédia, a catarse é sustentada pelo temor ou pela piedade do
53
espectador; na comédia ela se apóia no “distanciamento provocado pela
ridicularização e pela conseqüente condenação de determinadas ações”. (p.67).
Quem compartilha desse pensamento é Northrop Frye (1957), para quem “tal
como uma catarse para a piedade e terror na tragédia, também uma catarse
das emoções cômicas correspondentes, que são simpatia e ridículo, na comédia
antiga”. (p.43).
Segundo o entendimento de Furhrmann (apud ALBERTI, 2002) do Tractatus
Coislinianus (texto pós-aristotélico), Aristóteles jamais pensou o prazer e o riso como
efeitos de purificação que a comédia deveria suscitar nos espectadores. Portanto,
para ele não havia catarse na representação cômica. A partir daí, o tema do cômico,
que para Aristóteles não estava ligado à questão das paixões, passou a ser tratado
no contexto da poiésis, ou seja, “da ciência da produção das obras” (p.47), em que
parte da comparação entre a poesia e a crônica. Aqui, crônica refere-se à história,
“coleta exaustiva de dados em sua diversidade”, termos de Dupont-Roc e Lallot.
(apud ALBERTI, 2002, p.78).
Percebe-se, com isso, que mais uma vez Aristóteles (apud ALBERTI, 2002)
se atém a uma visão maniqueísta, pois embasa suas análises em elementos
contrários. Afirma que a poesia é uma modalidade de escrita mais filosófica e
também mais nobre que a crônica, pois o cronista se prende a fatos reais e
prováveis sobre um indivíduo em particular, ao passo que a poesia parte do geral e
se detém no “tipo de coisa que um certo tipo de homem faz ou diz verossimilmente
ou necessariamente”. (p.48).
Além da relação entre poesia e crônica, Aristóteles (apud ALBERTI, 2002)
propõe uma outra: entre poesia e comédia. Para ele, a poesia coincide com a
comédia, visto que os poetas cômicos desenvolvem seu enredo utilizando-se de
fatos verossímeis, e além disso, atribuem às personagens nomes tomados ao
acaso, enquanto, na tragédia, os poetas valem-se de nomes de personagens
conhecidos e reconhecidos. Isso significa que o caráter geral da poesia “é
confirmado pela atribuição de nomes aos personagens cômicos”. (p.48). E apesar da
posição privilegiada da tragédia, “é a comédia, mais do que as outras artes
miméticas, portanto, que comprova o caráter filosófico da poesia”. (p.48).
Recorrendo novamente a Propp, há ainda outra imprecisão nos estudos sobre
a comicidade: trata-se da falta de conceituação sobre sua especificidade, pois os
conceitos que se foram formando não podem ser colocados em prática, visto não
54
responderem a todas, ou, pelo menos, à grande maioria dos questionamentos
suscitados nesse âmbito. Filósofos antigos e modernos debruçaram-se em torno do
cômico, mas, ainda assim, deixaram muitas lacunas em seus estudos.
Aristóteles (apud ALBERTI, 2002), ao definir o cômico como não-trágico, faz
surgir algumas questões: o que se faz risível?, “o que faz rir?” (p.47), perguntas que
não conseguiu responder, pois atribuiu à tragédia os sentimentos que provocam a
catarse, como o terror e a piedade. Como para ele não havia catarse na
representação cômica, fez com que surgisse um outro questionamento: que
comoção, então, suscitaria a comédia? qual seria o fundamento do riso? Ao que
Aristóteles responde: “o cômico é um defeito anódino que não suscita terror nem
piedade”. (p.47).
Para Verena Alberti (2002), essa resposta o resolve o problema, mas o
mantém, pois o filósofo diz que o que nos leva ao riso não é a emoção trágica, além
de, por sua vez, não nos levar ao arrepio e ao choro. Todavia, o que procuramos é
algo que nos aproxime de uma definição e não a negação total.
Percebendo a dificuldade dos autores para chegar à especificidade do
cômico, pressupõe-se que seria da competência dos filósofos modernos estudá-la.
Porém, segundo Propp, isso não ocorre. Schopenhauer, filósofo do século XIX, por
exemplo, afirmava “que o riso surge quando, de repente, descobrimos que os
objetos reais do mundo à nossa volta não correspondem aos conceitos e às
representações que dele fazemos”. (apud PROPP, 1992, p.19). Podemos pensar
que esse conceito nem sempre é pertinente, porquanto pode haver casos em que os
objetos não se refiram ao domínio do cômico. Por isso, para Propp (1992), “em cada
caso isolado é preciso estabelecer a especificidade do cômico, é preciso verificar em
que grau e em que condições um mesmo fenômeno possui, sempre ou não, os
traços da comicidade”. (p.19).
As considerações acerca do cômico, cujas origens estão na base do
pensamento grego aristotélico, conforme citado, expõem a tese de que são
cômicos os defeitos das pessoas. O filósofo caracterizava ainda a comicidade como
“defeito moral ou físico (a deformidade) que, sendo inofensivo e insignificante, se
opõe ao pathos e à violência trágica e, por isso mesmo, não causa terror nem
piedade”. (ARISTÓTELES apud ALBERTI, 2002, p.49). Essa definição constitui uma
das idéias básicas referentes ao cômico e à comédia no livro I da Poética. A nosso
55
ver, trata-se de uma definição inconsistente, uma vez que notamos que nem tudo
que é deformidade inofensiva pode ser cômico e, por isso, causar o riso.
outras falhas, ainda, no que se refere à essência da comicidade. Trata-se
de uma possível contradição entre forma e conteúdo, em que a estética se baseia
para especificar o cômico. Essa idéia, segundo Propp, deve fundamentar-se em
algum dado material e não em comentários ou construções apriorísticas, de modo
que, se tal contradição for mesmo válida, deve-se estabelecer como ela se dá.
Outro problema referente a tais teorias é a suposta existência de dois
aspectos opostos no próprio âmbito da comicidade: a comicidade de ordem inferior e
a comicidade de ordem superior. Essa divisão revela e explicita certa atitude
negativa e até certo desprezo pela comicidade em geral, uma vez que na definição
do cômico figuram quase sempre e, somente, conceitos negativos:
o cômico é algo baixo, insignificante, infinitamente pequeno, material, [...] é
a falta de idéias, é a aparência em sua falta de correspondência, é a
contradição, é o contraste, é o conflito, é a oposição ao sublime, ao elevado,
ao ideal, ao espiritual etc. etc.” (PROPP, 1992, p.20).
Essa atitude depreciativa é percebida com clareza em filósofos idealistas
como Schopenhauer, Hegel e Vischer.
A teoria, propriamente dita, fundamentada nos dois aspectos do cômico,
surge mesmo no século XIX, em que foram apartadas do cômico considerado
vulgar, grosseiro e baixo, as manifestações cômicas que sugeriam o belo e,
pertencentes, portanto, ao domínio da estética. Encontram-se, porém, escassas
definições teóricas acerca daquilo que se costuma chamar de cômico baixo, além
de, quando encontradas, revelarem-se inócuas ou pouco consistentes, pois não se
consegue distinguir claramente conceitos nem elaborar definições; ao invés disso,
o dados exemplos. Prova viva desse fato é a teoria de Kierchmann (apud
PROPP, 1992), que defende a presença de divisões no domínio do cômico e cria a
algumas denominações diferenciadoras: cômico-fino e cômico-grosseiro. As obras
são determinadas pelo grau de insensatez e de absurdo que expressam, ou seja,
quanto mais absurda for determinada situação, mais se aproximam do cômico-
grosseiro.
Pelo fato de não haver definições desse tipo de comicidade, ou seja, do
cômico-grosseiro, Volket (apud PROPP, 1992), relaciona-o a tudo o que está ligado
56
ao corpo humano e às suas necessidades, como a gula, o suor, a defecação, a
bebedeira, a cópula, enfim, tudo o que é natural ao homem. O teórico alemão
relaciona, desse modo, o cômico-grosseiro à literatura popular, visto que tais temas
são os preferidos e os mais abordados pelas camadas populares. Isso não implica
dizer que os grandes autores não se valham de elementos pertencentes a este
domínio da comicidade. Shakespeare (apud PROPP, 1992), por exemplo,
freqüentemente associa a seu humor imagens licenciosas, mesclando alta literatura
com a comicidade denominada “inferior”.
Alguns teóricos relacionam, ainda, o cômico-baixo ou grosseiro a
manifestações como a farsa, as palhaçadas, os espetáculos circenses etc. Mas
desconsiderar o estudo dessas manifestações, ou descartá-las pelo simples fato de
pertencerem, segundo essa teoria, à esfera popular, seria o mesmo que
desconsiderar um repertório cultural muito rico, além de se assumir uma atitude
depreciativa em relação a muitas obras clássicas, visto que muitas delas guardam
afinidades com o cômico-baixo, pois muitos elementos desse domínio são
reatualizados em sua constituição.
Ademais, o que diferencia um domínio do outro, ou seja, o “fino do
“grosseiro”, é o aspecto social. Trata-se do público-alvo de cada um, sendo que o do
cômico-fino compreende pessoas cultas, da aristocracia em geral, e o do cômico-
grosseiro, o povo, a multidão. Segundo Beyer (apud PROPP, 1992), o cômico-baixo
se adapta perfeitamente ao teatro popular, “onde os conceitos de decência, de
decoro e de comportamento civilizado possuem limites mais amplos”. (p.23).
É, sobretudo, pelo fato de se referir ao cômico e às formas populares com
palavras e expressões que, de certa forma, sugerem inferioridade e,
conseqüentemente, descaso, que compreendemos por que figuras populares, como
os bufões, os palhaços, os clowns, os atores de teatro popular, bem como quaisquer
outras fontes ou formas populares de riso ocupam um lugar muito pequeno no
âmbito dos estudos literários e por que, muitas vezes, são alvo de comentários
depreciativos pela crítica. Poucos são os autores que reconhecem essas formas
como o berço onde se formaram as demais manifestações cômicas e que ainda
acreditam na importância de investigar as suas bases. Alguns deles, apontados por
Propp (1992), são Puchkin e Tchernichévski, sendo que este último afirma ser as
farsas e os elementos referentes ao popular encontráveis também em grandes
autores, como Cervantes e Rabelais. Como se sabe, Bakhtin (1987) debruçou-se
57
intensivamente sobre a obra deste último, pelo fato de estar ligado mais profunda e
estreitamente que os outros às fontes populares.
Para Propp, analisar uma obra a partir da teoria dos dois aspectos é tão difícil,
que implica na sua invalidação, visto que a vulgaridade está presente em quase toda
produção literária, inclusive, nas obras clássicas. Além disso, dividir o cômico em
elevado e vulgar ou, ainda, analisar o cômico-baixo fora do domínio da estética é
inviável, uma vez que “qualquer estética que se afaste da vida”, tão freqüentemente
explorada pelas formas populares, “te inevitavelmente caráter abstrato e
inadequado aos fins de um verdadeiro conhecimento”. (1992, p.24). Mesmo porque,
no que se refere ao mico considerado fino, podemos dizer que é impossível ser
espirituoso e fazer gracejos de bom-gosto o tempo todo, sem fazer uso de algum
tipo de obscenidade, gestos grotescos ou palavras de baixo-calão. O riso está
ligado, naturalmente, às excentricidades humanas, e a vida, por si , é fecunda em
fatos e situações cômicas, eliminando, assim, as barreiras que dividem um domínio
do outro, ou seja, o cômico-grosseiro do cômico-fino.
Deve-se, portanto, considerar e, sobretudo, saber reconhecer criteriosamente
o valor artístico e estético de uma obra cômica e os tipos de riso que suscitam, além
da necessidade de pôr em realce sua estreita vinculação com as fontes populares. É
desse pensamento de Propp que compartilhamos.
Ainda, para nós, as figuras populares como os bufões, os palhaços e
quaisquer outras ligadas ao riso, que Veríssimo usa como personagens das crônicas
que analisaremos no próximo capítulo, têm uma significação muito abrangente e
rica, visto que exploram questões centrais para a nossa existência, como as de
ordem religiosa, política, social, psicológica, intimamente ligadas à nossa vida.
Tratadas jocosamente, de forma prazerosa e lúdica, não pesam sobre o leitor, não
se mostram repetitivas e maçantes, e mesmo assim, oferecem múltiplas
possibilidades de leitura, soando como críticas que se descortinam frente aos
nossos olhos.
2.3. Os artifícios da comicidade e da seriedade
Reiterando a vinculação entre os elementos do presente estudo, é válido
enfatizar novamente que a escolha das crônicas se deu pelo fato de contemplarem,
no campo tetico, o próprio riso, objeto de nossa pesquisa. Isso nos permite
58
visualizar uma relação entre a crônica humorística de Veríssimo e a função
metalingüística ou, melhor dizendo, meta-humorística ou meta-cômica, uma vez que
o cronista faz uso da comicidade com o objetivo de provocar uma reflexão sobre o
riso e sua ampla significação no contexto social da atualidade. Pode-se dizer
também que tais crônicas, além de propiciarem uma reflexão sobre o estatuto do
riso, ao mesmo tempo travam um diálogo com alguns pressupostos teóricos e
características pertinentes à esfera da comicidade.
E para provocar o riso é preciso que haja, na tessitura das crônicas, a
articulação de elementos do domínio do risível. Para tanto, a língua dispõe dos mais
variados recursos para a instauração da comicidade.
Na primeira crônica a ser analisada - Bobos I -, a comicidade se constrói com
base na sátira, juntamente com os artifícios necessários para instaurá-la; ela é
concretizada pela personagem do bobo da corte, que ganha voz para apontar os
aspectos negativos individuais e, por extensão, os coletivos, despertando nas
demais personagens o riso de zombaria, o que também nos permite enveredar por
esse tipo de riso.
Na crônica Ri, Gervásio, o autor se vale do exagero cômico instaurado pela
hipérbole, revelando o caráter dialético presente no cômico e no trágico. O tipo de
riso expresso na crônica, por intermédio da personagem protagonista, é o riso
forçado, imposto, realçando, também, alguns aspectos relevantes da sociedade
atual.
para a instauração do humor, a nosso pensar, a principal arma do cronista
é a ironia, visto que ela funciona como um fio que costura a história, com o objetivo
de reiterar a veia cômica e demonstrar a face séria contida no discurso humorístico.
São alguns desses elementos, portanto, que serão sumariamente teorizados
no presente capítulo, e retomados e analisados no próximo.
Principiamos pela zombaria, uma vez que ela é o único aspecto do riso que
está permanentemente ligado à esfera do cômico, isto porque a comicidade
“costuma estar associada ao desnudamento de defeitos, manifestos ou secretos,
daquele ou daquilo que suscita o riso”. (PROPP, 1992, p.171), e está também
diretamente ligada à sátira (sendo “produto” dela), recurso muito utilizado desde a
antigüidade para denunciar os vícios humanos, despir a máscara da hipocrisia e, em
alguns casos, corrigir distorções. Desse modo, estudá-la é importantíssimo para a
59
compreensão de inúmeros textos literários, uma vez que se trata de um dos
aspectos do riso mais presentes na vida e na arte.
É preciso analisar mais precisamente, na medida do possível, o que pode ser
objeto de riso, quais as causas que o suscitam, do que riem as pessoas e o que é
ridículo para elas. Propp afirma que se pode “rir do homem em quase todas as suas
manifestações” (PROPP, 1992, p.29), exceto aquelas que se referem ao sofrimento
humano, aquelas ligadas à dor, como falava Aristóteles. Bergson (2004)
complementa: “não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano”. (p.02).
Isso significa que rimos daquilo ou para aquilo que apresenta expressão humana;
usando também um exemplo seu: não gracejamos de um chapéu ou de uma
paisagem, nem com eles; no máximo, olhamos com extrema admiração para a
forma que lhe deram.
Propp diz também que pode ser motivo de zombaria a forma física de uma
pessoa, compreendendo seu rosto, seu modo de se comportar, seus movimentos,
seu corpo - ou alguma parte dele -, sua vida moral e intelectual, seu modo de
pensar, seus raciocínios - ou a falta deles -, seus desejos, ambições, objetivos e,
ainda, seu caráter, isto é, suas atitudes perante a sociedade, que muitas vezes se
contrapõem ao que realmente se espera dela. Entende-se, desse modo, que “esse
riso nasce do desnudamento repentino de defeitos. Ele é possível como uma
explosão e é de curta duração”. (1992, p.182).
- Posso fazer piada sobre tudo?
- Pode.
- A cara do Rei? O cavalo do Rei?
- Tudo.
- Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro?
- Pode até chamá-lo de animal. O bobo pode dizer tudo para o Rei.
Na cara. (VERÍSSIMO, 1982, p.54)
No excerto acima, retirado da crônica Bobos I, fica evidente que qualquer ser
humano ou qualquer traço ou marca do humano pode despertar no outro o riso de
zombaria. Pode-se dizer que o homem é espelho para o próprio homem. Ele próprio
fornece a matéria para o riso, posto que, como observado, ele é o único animal
que ri, que ri do outro, que ri para o outro e que ri de si mesmo. Desse modo, pelo
excerto supracitado, observa-se que o mico articula-se de diversas maneiras, com
diversos atributos e em diversas situações, criando a necessidade de derrisão,
mesmo que rebaixando o objeto de riso, pois a palavra proferida não é questionada
60
nem levada a sério, uma vez que a comicidade é o meio para se chegar a um outro
aspecto do real que se procura ocultar ou que se desconhece, e que precisa ser
desvelado para que o riso iluminador seja deflagrado.
Percebe-se, com isso, que, nas obras cômicas, o objeto de escárnio é
desvelado, sobretudo naqueles aspectos que são objeto de zombaria também na
vida. É preciso, no entanto, descobrir e realçar o que tal ou tal aspecto tem de
engraçado. Para tanto, são necessários alguns recursos e/ou meios para expor e
ridicularizar certo pormenor. A tira é um deles, posto que se baseia no riso de
zombaria para se instaurar.
A sátira origina-se das saturae, que significam “desafios” mordazes, com
métrica, gênero e formas precisas, que grupos de jovens faziam uns aos outros,
como réplica, em divertimentos pastorais. A satura designava, ainda, a oferenda de
vários frutos a Ceres, a deusa das sementeiras, como prova de gratidão pela
abundância de alimentos.
Pode-se dizer que, apesar de os gregos já terem nas suas composições
elementos do gênero satírico, presentes nas comédias, nos rituais dionisíacos e nas
diatribes (crítica social severa e exaltada, desenvolvida pelos cínicos nas discussões
entre mestres e alunos), é com os latinos que o gênero tomou forma e se fixou. A
sátira, em princípio, se compunha de prosa mesclada à poesia, mas com o tempo
passou a ser expressa somente em versos.
O riso e a sátira são as marcas específicas do riso romano, oriundos do
sarcasmo, da “causticidade camponesa de origem latina, como define Minois
(2003), uma vez que em todas as ocasiões festivas, que aliam o riso ao culto da
fecundidade, dá-se o riso desenfreado, a licenciosidade, a vivacidade agressiva; é o
espírito da devassidão, da obscenidade, que permite ofensas, agressões verbais
das mais impetuosas, “uma orgia de grosserias cômicas à qual alguns conferem
valor encantatório” (p.84). Essas formas rústicas de manifestações dramáticas é
que mais tarde teriam sido transferidas para a comédia latina.
Um dos mais significativos representantes do gênero satírico, primeiramente
na Grécia, foi Luciano de Samósata, nascido aproximadamente no ano 120, numa
região modesta e helenizada da Ásia menor. Pode-se dizer que Luciano deu
continuidade à ironia socrática, uma vez que Sócrates concebeu a “ironia como
sabedoria, como estilo de vida, a ironia que dissipa as miragens, a ironia que nos
torna lúcidos e destrói falsas verdades”. (MINOIS, 2003, p.65). Além disto, sua ironia
61
encerra uma lição: mostra-nos o quanto nos iludimos quando julgamos que sabemos
das coisas, quando, na verdade, não sabemos nada, e ainda permite que os
preconceitos que nos o impostos, as convenções sociais e as crenças infundadas
possam ser alvo de questionamento e, por conseguinte, de descrédito.
Porém, como Luciano era “a besta-fera de todos os dogmáticos, de todos os
possuidores da verdade, religiosos ou humanos” (MINOIS, 2003, p.65), acabou por
levar a limites extremos os preceitos de Sócrates e zombou de tudo e de todos,
sobretudo por meio do seu personagem-filósofo Menipo de Gadara, cuja sabedoria
se exprime pelo riso derrisório.
Por intermédio de um porta-voz, Luciano satirizou o discurso sério, como o da
religião e o da filosofia, sobretudo quando inverteu o método socrático e parodiou o
diálogo platônico, colocando, desse modo, o sério a serviço do cômico. Agindo
assim, desierarquizou posições e abalou construtos e valores “sedimentados”.
Luciano também se voltou contra os cristãos, chamando-os de “crédulos
ingênuos”, que, por sua vez, passaram a vê-lo como uma encarnação do diabo que
ri e zomba de Deus. Sobre isso, Bakhtin, em seu livro clássico sobre Rabelais, não
deixa de revelar, na obra de Luciano, “o vínculo do riso com os infernos e com a
morte, com a liberdade do espírito e da palavra” (apud MINOIS, 2003, p.69), que
para ele é resultado de toda uma corrente do pensamento grego.
Quem introduziu em Roma a agressividade do gênero, tal como era na
Grécia, foi Varrão (116-27 a.C), que a misturou ao gênero local e cultivou as Sátiras
menipéias. Elas geralmente se expressam em prosa e caracterizam-se pela
variedade de temas e pelo interesse na exposição de idéias. Alguns exemplos de
sátira menipéia são O Satíricon, de Petrônio, Gargântua e Pantagruel, de Rabelais
e as Viagens de Gulliver, de Swift.
5
A diferença é que, enquanto as diatribes
praticadas na Grécia se limitavam a uma escola filosófica, a sátira atingiu uma
dimensão muito maior, fazendo com que todos tivessem acesso a ela.
Na Idade Média, a sátira continuou sendo incorporada às festividades e por
isso legitimadas porém controladas - pela esfera dominante. Nelas, a obscenidade
e a depravação subvertiam a ordem social, como ocorria no carnaval, em que as
pessoas pertencentes a classes sociais distintas expressavam-se segundo seus
impulsos, através da liberdade da palavra e da audácia dos gestos. Outro traço
5
Essas informações foram retiradas do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, de Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, 2° Ed., Nova Fronteira , 1986, na parte relativa ao termo sátira.
62
marcante da manifestação carnavalesca é o rebaixamento através de uma
abordagem jocosa dos temas sexuais, escatológicos e da satisfação das
necessidades corporais. Esse rebaixamento, na literatura carnavalesca, visa a
aproximar o que é superior – o céu ou o rosto ao que é inferior – a terra, os órgãos
genitais, o ventre – simbolicamente, para dar lugar a um novo começo.
Essa idéia de comunhão regeneradora entre o que é “baixo” e “alto”
contrapõe-se aos procedimentos da sátira moderna, cujo rebaixamento consiste na
degradação, tratamento pejorativo concedido ao homem, destituindo-o de qualquer
representação de dignidade.
Por esses motivos, a sátira, considerada baixa e vulgar, tornou-se repudiada
e foi sendo desvalorizada pelos representantes dos gêneros literários considerados
“elevados”. Desse modo, o autor da sátira passa a ser visto de forma negativa, pois
é rotulado como alguém subversivo e intransigente, que inverte o discurso sério,
desafia a legitimidade da esfera que detém o poder e revela que pode ser possível
tocar em questões sérias zombando delas.
Quando a sátira se desvirtua em relação aos valores da religião, a Igreja
também começa a ser alvo de derrisão, através da crítica ao comportamento
hipócrita e antitético dos bispos, padres, freis, monges, que o satirista desmascara,
destituindo-os de todo prestígio social. Com isso, podemos entender por que tantas
figuras de significância social nunca concordaram em legitimar o valor da sátira, uma
vez que ela se configura como uma ameaça à estabilidade do convívio social, ao
revelar as angústias interiores, os vícios e os impulsos fisiológicos do homem,
igualando-o a animais e exibindo suas humanas fraquezas. Ainda quando direciona
sua crítica à política, às classes sociais e às instituições que detêm o poder, a sátira
questiona-lhes a hegemonia, denuncia a fragilidade da organização social e os
costumes dos homens.
Percebemos, com tudo isso, que a sátira moderna também explora o poder
da palavra, que denuncia vícios e revela a decadência moral e social dos grupos e
dos indivíduos. Destaque-se também a flexibilidade da sátira e a possibilidade de se
inscrever nos mais variados gêneros, como a narrativa cronística, por exemplo. Essa
capacidade de se flexibilizar está ligada a uma característica enfatizada por Hansen
(1989), que considera a sátira um gênero misto, uma vez que o teórico diz ser
impossível defini-la por meio de formas ou procedimentos inflexíveis. Isso se justifica
63
pelo fato de conter em sua etimologia a idéia de intensidade, mistura, contida no
radical sat, que significa muito, bastante, afora a miscelânea de temas que aborda.
Sobre os elementos constituintes da sátira, Frye (1957) diz que a fantasia
(ficção) deve estar conjugada a uma questão moral, deflagrando com essa
imbricação um caráter de denúncia. A sátira propõe, ainda, uma inversão de
conteúdo ou uma tentativa de mostrar uma idéia contrária àquela que normalmente
se tem do objeto de escárnio, ou seja, daquilo que se pretende atacar ou criticar,
uma vez que é mostrando a dissonância entre real e ideal, e ainda julgando e
zombando é que a sátira se põe a serviço do homem e do seu grupo social,
modificando, corrigindo e resgatando o ideal perdido.
Por isso, podemos dizer que a sátira, motivada pela indignação e pela revolta
(expressas pela exposição do ridículo), tem uma finalidade moral, posto que
intenciona devolver à sociedade os princípios e as regras de boa conduta, por meio
de um riso “corretor” e regenerador.
Para tanto, deve-se considerar importante a participação do leitor no processo
de significação, visto que, se o satirista se compromete com os problemas do
mundo, por meio da observação atenta da realidade e das mazelas sociais, ele
espera que seu leitor faça o mesmo. Faz-se necessário, no entanto, um
conhecimento prévio da temática abordada e dos efeitos do discurso cômico para se
poder reconhecer as alusões satíricas, atualizar a obra a partir da conjunção dos
elementos ficcionais e reais, e então atribuir sentido ao texto.
Por isso, a recepção do leitor é imprescindível para que a sátira cumpra seu
papel de denúncia. Vale ressaltar, no entanto, que, em alguns casos, ela conta com
muito pouco tempo para isso, visto que sua matéria pode ser algo fugaz, comezinho,
como um ato falho do poder, um acontecimento escandaloso, ou costumes
arraigados e valores já consagrados pela sociedade, presentes em algum fato que
cause repercussão. O que importa é destacar, portanto, seu caráter efêmero,
justificado pela transitoriedade e pela capacidade de mudança do objeto da sátira; é
quando ela perde, então, sentido (ou parte dele) ao cumprir seu objetivo.
No entanto, pode acontecer também a reatualização de possíveis elementos
pontuais, como eventos e datas, transferindo-os para o tempo presente e
adequando o motivo da sátira para o quadro social do momento, provando, desta
forma, que a sátira apresenta, outrossim, um caráter universal e atemporal. Nesse
caso, a passagem do tempo não é empecilho ao seu processo de significação. Além
64
disso, podemos dizer que a sátira pode não apontar para elementos mais
genéricos, bem como se restringir a situações particulares e/ou individuais. De
qualquer forma, nos dois casos, a sátira cumpre seu papel ridicularizador,
depreciador e punitivo.
Jolles (1976) considera a tira “uma zombaria dirigida ao objeto que se
repreende ou se reprova e que nos é estranho”. (p.211). Tomamos distância do
objeto que reprovamos e negamos qualquer aspecto comum a ele, colocando-nos
contra ele com veemência.
Na crônica Bobos I, temos a sátira como instrumento de lucidez e de
conscientização, posto que o bobo da corte, representante dos oprimidos, tem
liberdade para satirizar o rei, representante da arbitrariedade, de forma que, com
isso, faz-se uma crítica à tirania, à estupidez, à vilania, enfim, às injustiças cometidas
pelos detentores do poder. Os poderosos, por serem figuras existentes em qualquer
época, sempre serão alvo do gênero satírico, que pode ser visto como atemporal
não apenas por isso, mas também porque o riso que suscita tem sempre o mesmo
objetivo: o de humilhar a pessoa satirizada, e o de recusar-lhe qualquer atributo de
superioridade.
Nem sempre, porém, a sátira está ligada ao mico e provoca o riso.
sabemos que o cômico está ligado ao prazer, à ludicidade, ao passo que a sátira, na
maioria das vezes, maldiz seu objeto, e em virtude de seu caráter corrosivo
promove-lhe a degradação, mesmo que com objetivo de mudança. Nas situações
em que se aponta uma torpeza do ser humano, ou quando são abordados vícios
repugnantes que causam sentimento de horror, a tira não desperta o riso,
contrapondo-se, desse modo, ao cômico. Ademais, pode haver na sátira a
confluência de elementos trágicos, enfatizando-se, com isso, como são imprecisos e
fluidos os atributos que caracterizam o riso humano, sobretudo por meio da sátira,
que pode passar de um domínio ao outro, dependendo da forma como é construída.
Seguindo as considerações de Propp (1992), podemos dizer que ao cômico
são reservados a fraqueza humana, os vícios menores e o ridículo, ao passo que à
sátira é permitido todo e qualquer tipo de referência derrisória, sendo até mesmo a
dor e o sofrimento humanos abordados por ela sem ressalvas nem compaixão. Fato
esse que nos faz revisitar a Poética de Aristóteles, que ele considera a comédia
como “a imitação de homens de qualidade inferior, não em toda espécie de vício,
mas no domínio do ridículo, que é uma parte do feio” (apud Hansen, 1990, p.07), o
65
autor vê como pertencentes ao espaço do cômico os vícios menores. Seguindo essa
delimitação, baseada na gradação do defeito apresentado, vale reiterar que a
fraqueza deflagraria o riso, a força o horror; o ridículo seria o conteúdo apropriado
para o cômico, enquanto o horrível para a sátira.
Propp apresenta uma distinção entre os temas do cômico e da sátira
semelhante às considerações de Hansen (1990), que, como vimos, diz que os
defeitos menores (“inofensivos”) adéquam-se melhor ao domínio do cômico,
enquanto os “extremos” e violentos são apropriados à vertente satírica. De acordo
com Propp, os grandes defeitos assassinatos, crimes, violência, tortura -, também
nunca poderão ser objetos da representação cômica, uma vez que esta aborda
apenas pequenos defeitos inveja, exibicionismo, vaidade etc., caso contrário,
teríamos o repulsivo ao invés do risível, a dor e o sentimento ultrapassando o prazer.
Tanto Propp (1996), como Bergson (2004) e muitos outros teóricos não
divergem no que diz respeito à insensibilidade e à indiferença que acompanha o
riso. Bergson institui a emoção como a maior oponente do risível, que por ser um
fenômeno destinado à inteligência pura, silencia-se diante da sensibilidade, da dor
ou de qualquer outra ressonância afetiva.
É por isso que associamos o cômico à inteligência e o trágico à emoção.
“Para produzir efeito pleno, a comicidade exige, enfim, algo como uma anestesia
momentânea do coração. Ela se dirige à inteligência pura”. (BERGSON, 2004, p.04).
Pode-se excluir desse postulado o riso bom, adjetivado ainda como riso
alegre, pois é caracterizado como aquele que não tem intenção derrisória, de
escárnio, ou desprezo, e por isso não exige o breve amortecimento da emoção,
que “este tipo de riso elimina qualquer emoção negativa e a torna impossível; ele
apaga a cólera e a ira, vence a perturbação e eleva as forças vitais, o desejo de
viver e de tomar parte na vida”. (PROPP, 1992, p.163).
A insensibilidade, usualmente característica do riso, presente em nosso
trabalho, e as distinções entre os temas da sátira e do cômico serão retomadas no
decorrer das análises; entretanto, podemos antecipar que, na crônica Bobos I, a
verve satírica, manipulada pela voz do bobo durante sua apresentação, e o efeito
risível suscitado não se apartam, mas atuam em conjunto, fustigando as
imperfeições humanas e sociais.
O mesmo ocorre em Ri, Gervásio, com a diferença de que não é a sátira e o
cômico que estão conjugados, mas sim o cômico e o trágico, lançando-se mão da
66
hipérbole para conceder o efeito risível, mas contando com a ironia para expor as
cicatrizes humanas mais profundas, inibindo o riso e fazendo-nos experimentar certa
emotividade, o que confirma, aqui, o caráter dialético presente no cômico e no
trágico, a ambivalência e ambigüidade do riso.
Dando continuidade aos apontamentos de Bergson, para apresentar os
artifícios da comicidade e, por conseqüência, do riso, temos de levar em conta a
condição primordial para a sua existência: a oposição estabelecida entre o mecânico
e o vivo. Essa relação nasce do automatismo dos hábitos adquiridos pela sociedade,
que, satisfeita com o percurso da vida, pauta sua conduta segundo uma rigidez
estereotipada e imposta, dando a impressão de um acordo prévio entre os
indivíduos. As atividades diárias, por serem automáticas, sinalizam um
adormecimento, uma acomodação de atitude, de isolamento, que, por isso, começa
a ser suspeita para a própria sociedade. A resposta para essa “suspeita” seria o riso,
que se impõe como uma espécie de gesto social, uma vez que não é coerente nem
oportuno intervir com qualquer repressão, visto que a sociedade não está sendo
afetada diretamente.
Dizemos, então, que tudo o que é mecânico, rígido, contradiz o que é flexível,
móvel, vivo, gerando, desse modo, o riso. Quando manipuladas artisticamente, as
contradições e oposições, entendidas como desvios com relação a determinadas
normas, podem ser instrumentalizadas para a instauração de imagens que
despertem o riso no leitor.
Além de o riso ser uma manifestação humana e, na maioria das vezes,
insensível, ele se efetiva quando a possibilidade de ser ouvido, ou seja, é um
ato dialógico que clama por um ou vários interlocutores (como visto no riso, fruto
da sátira). É necessário um grupo. E é nesse sentido que Bergson (2004) define o
riso como manifestação social. Melhor dizendo, uma manifestação de cumplicidade
social, pois há nela uma segunda intenção de entendimento por parte dos que
compartilham desse riso.
Para compreendermos o riso, é preciso considerá-lo em seu meio natural, no
meio em que é suscitado; é preciso, inclusive, determinar sua função social, sua
significação num determinado contexto.
E quanto a essa função do riso, no contexto das crônicas, dizemos que tanto
em Bobos I, quanto em Ri, Gervásio, uma apresentação artística, em que a
primeira se vale da figura do bufão para entreter um determinado público. Esta
67
platéia é a representação de um segmento social que carrega consigo os valores e
os costumes da época e de determinado lugar. É valido dizer que não há um
sentimento de estranhamento a priori, haja vista que todos coexistem num ambiente,
havendo, por isso, uma cumplicidade tácita entre público e artista. Ressalte-se, no
entanto, a subserviência deste, no sentido de cumprir o que lhe é devido.
Compreende-se, portanto, que, mesmo com uma dose de coerção, o cômico
(representado pelas atitudes do bufão) assume, aqui, um papel social, pois, envolto
em teatralidade, desmascara a realidade, aponta os defeitos alheios e,
conseqüentemente, os da sociedade a que o indivíduo pertence, além de
estabelecer a ordem pela expurgação que só o riso oferece.
Em Ri, Gervásio, o riso é um elemento indispensável para que haja o
programa de humor relatado no enredo. Deste modo, o riso mensura e reitera o grau
de comicidade do programa e o da própria narrativa. Trata-se, portanto, de um riso
coletivizado, não com as nuances do riso coletivo, presente na Idade Média, por
exemplo, mas é um riso de cumplicidade social entre pessoas que compartilham dos
mesmos desejos, dos mesmos receios e das mesmas necessidades (no caso, a
principal necessidade era o dinheiro; por isso trabalhavam numa claque de humor).
69
CAPÍTULO III
3. No mosaico de Veríssimo
Filho do também escritor Érico Veríssimo, Luís Fernando Veríssimo, nascido
em Porto Alegre, principiou seu percurso literário em 1967, no Jornal Zero Hora,
onde desempenhou funções variadas. No entanto, foi como cronista que se firmou
na carreira. A partir de 1973, publicou seus primeiros livros, projetando-se
nacionalmente. Sua produção é vasta e constituída de mais de quarenta obras,
compreendendo romances, contos, piadas, críticas, reflexões e, especialmente,
crônicas. Seu traço fundamental é o humor irreverente, que, como ressaltado, é
conduzido, sobretudo, pelo fio da ironia, a fim de problematizar questões reveladoras
de uma faceta séria.
Veríssimo nutria um grande desejo de ser músico, visto que tocava e ainda
toca saxofone muito bem; entretanto, apesar de tentar outros caminhos no campo
artístico, não conseguiu fugir das palavras. Seu talento inato o convenceu a
mergulhar no mundo da ficção, em que opera com liberdade, criatividade, sutileza e
mestria. Nas palavras de Ana Maria Machado, na introdução ao livro O Santinho
(2001), o cronista que estamos estudando é considerado “um dos mais bem-
sucedidos autores brasileiros contemporâneos, tão amado por seus leitores fiéis,
sempre com alguns livros nas listas dos mais vendidos da semana”. (p.12).
Flávia Fontes (2005), que o apresenta como “estandarte da boa prosa de
jornal”, afirma que “sua percepção sobre a classe média, a política, os
relacionamentos, o futebol, entre tantos outros assuntos, é precisa, sagaz, pois ele
tem perícia em olhar o mundo”. (p.28-33).
Um dos exemplos que ratifica o comentário de Fontes é a coletânea intitulada
Comédias da Vida Privada, que saiu em primeira edição em 1995 e na qual o
autor, através de uma atenta observação dos hábitos da classe média, realiza uma
síntese da vida humana, com todos os seus encontros e desencontros,
coincidências e contradições. Nela, encontramos um flash da vida familiar, as brigas
conjugais, os relacionamentos amorosos, a conversa dos amigos, as convenções da
sociedade, ao mesmo tempo em que, por meio de seus relatos, nos identificamos
com sua postura sobre o cotidiano e rimos de situações inusitadas.
70
Leiamos a crônica abaixo:
A classe média é uma terra estranha.
A Mirtes não se agüentou e contou para Lurdes:
- Viram teu marido entrando num motel.
A Lurdes abriu a boca e arregalou os olhos. Ficou assim, uma estátua do
espanto, durante um minuto e meio. Depois pediu detalhes. Quando?
Onde? Com quem? [...]
Quando o Carlos Alberto chegou em casa, a Lurdes anunciou que iria deixá-
lo. E contou por quê.
- Mas que história é essa, Lurdes? Você sabe quem era a mulher que
estava comigo no motel. Era você.
- Pois é. Maldita hora em que aceitei ir. Discretissimu´s! Toda a cidade ficou
sabendo. Ainda bem que não me identificaram.
- Pois então?
- Pois então que eu tenho que deixar você. Não vê? É o que todas as
minhas amigas esperam que eu faça. Não sou mulher de ser enganada pelo
marido e não reagir.
- Mas você não foi enganada. Quem estava comigo era você!
- Mas elas não sabem disso!
- Eu não acredito, Lurdes. Você vai desmanchar nosso casamento por isso?
Por uma convenção?
- Vou.[...] (VERÍSSIMO, “Convenções”, In: O melhor das comédias da vida
privada, 2004, p.26-27)
A crônica acima retrata uma dessas situações em que se configura o
conservadorismo de uma classe, assentado em hábitos herdados e transferidos pela
tradição. O efeito risível se dá pelos contornos exagerados, levando uma situação ao
seu extremo, em nome de uma imagem puramente convencional e que não pode ser
desfeita.
Em outra coletânea de crônicas chamada Comédias da Vida Pública (1996),
Veríssimo, num tom mais rio e informativo, se vale da História oficial do país para
revisar alguns acontecimentos político-sociais, sobretudo aqueles que vão de 1968
até 1995. Trata-se de uma visão crítica da História, que se faz risível, nesse caso,
pela escolha pertinente de fatos e de personalidades marcantes de uma época.
Dessa mesma vertente, tem-se, ainda, A velhinha de Taubaté (1983),
personagem que, identificada somente pela cidade onde mora, foi muito bem
explorada por Andréia Simoni Luiz Antonio, em sua dissertação de mestrado. Trata-
se de
uma narrativa que invade os limites da História, acrescentando informações,
omitindo dados, esvaziando a seriedade a partir do riso suscitado pela
personagem e pelos comentários irônicos do narrador, que compartilha
conhecimentos com o leitor, alertando-o para a necessidade de uma leitura
atenta do texto que, embora dialogue com a História, é criação, tessitura
irônica, jogo e arte. (2002, p.264).
71
A velhinha, representante do oprimido povo brasileiro, é inserida num
contexto próprio de sua faixa etária, e veste com propriedade a máscara dos
ingênuos, visto que, por vinte e dois anos desde 1983 -, ela é a única a acreditar
nas investidas políticas do governo. Isso fez com que viesse a ser conhecida como o
“último bastião da credulidade”; confrontando, desse modo, a sua imagem com o
retrato que a crônica imprime, ou seja, os acontecimentos catastróficos do período
militar. Sua morte foi declarada oficialmente pelo autor no dia 25 de agosto de 2005,
e a causa foi, naturalmente, “descrédito súbito”, esclarece o autor (apud SANTANA,
2006, p.52).
O riso inscrito na obra se dá por meio da sátira que aqui se encontra
vinculada à caricatura -, ampliando, assim, os defeitos dos representantes do povo.
É, porém, uma sátira com grau derrisório não muito intenso, pois a ironia aparece
diluída no texto, o que faz com que a tira se atenue e garanta a simpatia e a
cumplicidade do leitor frente à posição crítica do autor em relação à bandalheira
nacional. Notam-se, também, artimanhas para tentar criar um universo fictício para a
velhinha: o noticiário da TV dirige-se exclusivamente a ela, insinuando-se assim a
tese irônica de que, se nem a velhinha acreditar no governo, tudo se “desmoronará”
e o caos tomará conta do país.
O trecho abaixo se refere ao dia em que um agente do governo se disfarçou
em divulgadora de produtos de beleza para vender um grampo (termo que no
contexto é usado no duplo sentido) à velhinha, a fim de vigiá-la intensivamente,
controlar e proteger sua saúde:
[...] uma convicção generalizada de que, quando a velhinha se for, tudo
desmoronará. A boa saúde da velhinha interessa tanto ao governo quanto à
oposição responsável. Se ela morrer ou deixar de acreditar -, teremos o
caos, que não convém ao projeto político de nenhum dos lados. Quando o
Tancredo e o Figueiredo se encontrarem e um perguntar como vai a saúde,
não estará se referindo nem ao outro, nem ao Aureliano. Estará falando da
velhinha de Taubaté. Só a velhinha de Taubaté nos separa das trevas.
Por isto, segundo o Correio Braziliense, o SNI decidiu intensificar sua
vigilância sobre a velhinha [...]
- Estamos lançando uma linha de grampos para o cabelo e queremos que a
senhora seja uma das primeiras a experimentar.[...]
A velhinha esusando os grampos o tempo inteiro, menos no banho, e
todas as suas reações estão sendo gravadas e mandadas para Brasília,
para análise. Houve um momento de suspense quando a velhinha, em
conversa com um gato, expressou algumas dúvidas sobre o caso Capemi.
Mas as dúvidas passaram e a velhinha voltou a acreditar na versão oficial.
Sua pulsação é firme. Sua digestão é boa. Fora uma pequena artrite, nada
ameaça sua saúde. Ainda temos algum tempo antes do caos. (VERÍSSIMO,
“O grampo da velhinha”, In: A velhinha de Taubaté, 1983, p.33-35).
72
Para Luís Fernando Veríssimo, a sátira (revestida pela ironia, como acontece
na narrativa acima), representa uma arma de defesa e vingança, pois, ao tornar
objeto de riso as injustiças, a corrupção, a violência, as arbitrariedades do governo
e, principalmente, a opressão, cria a impressão de que as pessoas que assim agem
são dominadas e, por alguns instantes, vencidas. O autor se coloca do lado dos
mais fracos, que chegam a sentir alegria e prazer ao ver o mal rebaixado e punido
através do riso.
Há obras também em que o autor toca o mundo infantil, fazendo da inocência,
da sinceridade e da esperteza pueril seus principais ingredientes. Nesse caso, o
humor é leve, pois não há crítica, mas inversão e quebra de expectativas, inscritas
na figura do adulto que se vê desorientado diante da fala infantil.
O Rodrigo não entendia por que precisava aprender matemática, que a
sua minicalculadora faria todas as contas por ele, pelo resto da vida, e
então a professora resolveu contar uma história. Contou a história do Super
Computador.
Um dia, disse a professora, todos os computadores do mundo serão
unificados num único sistema, e o centro do sistema será em alguma cidade
do Japão. Todas as casas do mundo, todos os lugares do mundo terão
terminais do Super Computador. As pessoas usarão o Super Computador
para [...] tudo.
[...] Tudo que alguém quiser saber sobre qualquer coisa estará na memória
do Super Computador, ao alcance de qualquer um. [...]
Um dia um garoto perguntará ao pai:
- Pai, quanto é dois mais dois?
- Não pergunte a mim – dirá o pai -, pergunte a Ele.
[...] - Como é que sei que a resposta é certa?
- Porque Ele disse que é certa – responderá o pai.
- E se Ele estiver errado?
- Ele nunca erra.
- Mas se estiver?
- Sempre podemos contar nos dedos.
- O quê?
- Contar nos dedos, como faziam os antigos. Levante dois dedos. Agora
mais dois. Viu? Um, dois, três, quatro. O computador está certo.
- Mas, pai, e 362 vezes 17? Não dá pra contar nos dedos. A não ser
reunindo muita gente e usando os dedos das mãos e dos pés. Como saber
se a resposta d’Ele está certa?
Aí o pai suspirou e disse:
- Jamais saberemos...
O Rodrigo gostou da história, mas disse que, quando ninguém mais
soubesse matemática e o pudesse pôr o Computador à prova, então o
faria diferença se o Computador estava certo ou não, que a sua resposta
seria a única disponível e, portanto, a certa, mesmo que estivesse errada,
e...
foi a vez de a professora suspirar. (VERÍSSIMO, “Dois mais dois”, In: O
Santinho, 2001, p.25-27).
73
Não podemos deixar de citar uma das personagens de Veríssimo que
alcançou grande repercussão e admiração popular: o analista de Bagé, protagonista
da obra homônima (editada pela primeira vez em 1981), e também
pormenorizadamente analisada por Andréia Simoni Luiz Antônio (2002) em sua
dissertação de mestrado. Segundo os próprios editores, a obra foi o maior sucesso
dos últimos tempos, visto que nunca um livro de ficção vendeu tanto em tão pouco
tempo: alcançou 80 edições em menos de dois anos. Outras do Analista de Bagé
(1982) atingiu cerca de 40 edições em um ano. É uma obra consagrada pela crítica
e pelo público.
Essas obras de Veríssimo são abrangentes e exploram as mais variadas
vertentes que marcam seu estilo. Fazendo uma incursão no universo gaúcho,
através da construção de uma personagem caricaturesca (pela ampliação risível de
traços comportamentais) e tipo (pela generalidade de sua profissão psicanalista e
dos referidos traços), o cronista revela as peculiaridades que fazem desse universo
sulino um espaço pitoresco, por meio do retrato dos costumes, dos objetos utilizados
no cotidiano do povo gaúcho, das vestimentas, das expressões regionalistas e dos
valores aí arraigados.
Ao explorar comicamente as características e as novas tendências da
modernidade, fazendo uso, por exemplo, da psicanálise no caso, a psicanálise
freudiana ortodoxa , o cronista exagera nos traços dessa doutrina, tornando-os
visíveis e, sobretudo, risíveis para o leitor. Devemos perceber que o analista
bageense, além de ser um personagem que lança mão da sátira, também se revela
um personagem de contrastes, visto que o riso deflagrado nasce sempre de uma
situação opositiva, como bem coloca Andréia (2002), em seu estudo sobre a
personagem. Isso acontece por meio de uma retomada hiperbólica de aspectos que
caracterizam o mundo gaúcho: o machismo, a virilidade, a rusticidade, o telurismo,
que se fazem destoantes da sutileza, da polidez e, sobretudo, da seriedade e rigor
científico do discurso pertencente à psicanálise. Desse modo, a performance do
analista, junção de rudeza e impaciência, fala-nos de perto da realidade do homem
sulino, - contrapondo-se, completamente ao universo da psicanálise:
[...] Contou que estava tratando de um complexo de Édipo “mais entravado
que carteira em bolso de sovina”. Ou como disse, “the wallet in the pocket of
the hard Bread”. O índio gostava da mãe uma barbaridade. O analista de
Bagé sabe que durante uma sessão de análise deve falar o menos possível
74
mas não se conteve nas bombachas. Tentou convencer o cliente a
abandonar aquela sua obsessão. Era um amor sem futuro.
- Pra começar, ela já é casada e tem um filho da tua idade.[...]
Com o tempo, e ouvindo argumentos como estes, o cliente foi deixando de
falar da mãe. Até que ficou uma sessão inteira sem tocar uma vez no nome
dela. Foi
quando o analista de Bagé, lhe passando a cuia de chimarrão,
anunciou:
- Pos acho que te curei, tchê.
- Sim, mãe – disse o cliente.
- Que disse?
- Eu disse “sim, mãe”.
Era a transferência. O analista de Bagé ainda tentou lhe chamar à razão:
- Tê fresqueia!
Mas não adiantou. Por mais que o analista insistisse que não era sua mãe,
que mãe não usava costeleta e bigode, o cliente não se convencia.
Continuava tentando sentar no seu colo.
E sempre que chegava no consultório dava dois beijos no analista. Mas um
dia chegou e foi recebido com um cascudo na cabeça.[...]
Levou outro cascudo pra aprender a não responder. Daí em diante, recebia
cascudo por qualquer coisinha.[...]
O homem finalmente desistiu. Ficou curado também da transferência. Hoje
odeia a mãe e leva uma vida normal. Para os psicanalistas reunidos no
congresso, o analista anunciou que filho se tratava a croque. E diante da
platéia boquiaberta, mostrou o instrumento terapêutico, o punho cerrado
com um dos dedos mais saliente do que os outros:
- Look: the crock. (VERÍSSIMO, “Outra do analista de Bagé”, In: Outras do
Analista de Bagé, 1982, p.32-33).
Algumas crônicas pertencentes à coletânea O Analista de Bagé dialogam
com a História do Brasil, na medida em que fazem algumas referências satíricas à
censura, aos atentados à bomba e, principalmente, ao desejo megalomaníaco dos
políticos pelo poder (governo Figueiredo 1979 a 1985), que a maioria deles se
preocupava em satisfazer suas próprias aspirações, pouco se importando com o
destino e os problemas do país.
Essa obra de Veríssimo serve ainda para desmistificar alguns conceitos e
idéias sedimentadas pela tradição regionalista sulina, a que o autor imprime
vitalidade e um novo valor, sempre de forma lúdica, com humor e ironia. A figura
tradicional do gcho, tal como a conhecemos, constituída por clichês, como a
masculinidade exacerbada, a valentia, a honra, é revista e invertida por Veríssimo,
evidenciando o desajuste do tipo convencional com a nova realidade do povo rio-
grandense-do-sul. A política autoritária do Estado também é revisitada por meio da
ridicularização das figuras políticas que, sustentadas pelo tom crítico que permeia
toda a narrativa, fazem com que os donos do poder passem a ser desacreditados e
destituídos de confiabilidade.
É válido enfatizar que, o por meio das personagens do analista, bem
como da velhinha, assim como de várias outras, que Veríssimo invade a História e
75
infringe-lhe seu discurso, concedendo-lhe uma nova aparência, a partir de uma aura
cômica, em que são acrescentadas informações. Por vezes, suprime, ao invés de
acrescentar informações, dados e características das personagens, dramatizando
comicamente os fatos e rebaixando satiricamente as personalidades políticas, a fim
de que nós, leitores, as conheçamos em sua verdadeira realidade.
Manuel da Costa Pinto (2001), em matéria feita para a Revista Cult, afirma
que Veríssimo é um mestre na arte de iludir seus leitores, porque quer nos fazer
acreditar que seus textos o apenas exercícios de humor e estilo, que podem ser
lidos sem compromisso algum e logo esquecidos. Ao contrário, para o mesmo
crítico, algo extremamente sério e reflexivo que emerge de suas obras, embora
Veríssimo sempre declare para a imprensa que suas crônicas são puro
entretenimento.
Prova da presença desse caráter reflexivo em suas obras é o fato de o autor
transitar pelos mais variados temas e incursionar por espaços insólitos, em que
aborda o místico, o mítico, o universo filosófico ou metafísico, o psicológico,
explorando, desse modo, a alma humana e investigando suas inquietações.
Algumas obras mais recentes do autor, reunidas em volumes temáticos editadas
pela editora Objetiva, comprovam essa estratégia, como é o caso, dentre outras, de:
Histórias brasileiras de Verão (1999); Aquele dia estranho que nunca chega
(1999); A eterna privação do zagueiro absoluto (1999); As mentiras que os
homens contam (2000); Comédias para se ler na escola (2001).
A crônica E se um asteróide... (VERÍSSIMO, 2004) exemplifica essa vertente
reflexiva de Veríssimo, porque, além de questionar a nossa existência fugaz aqui na
Terra, faz uma abordagem antropológica, na medida em que incita o homem a
pensar acerca de seus instintos e de seu status de “ser civilizado”. A crítica feita por
Veríssimo se constrói em torno das possíveis respostas a suas perguntas, que, por
meio de um acordo tácito, levam o leitor a concordar com sua posição, ou seja, com
o fato de que a humanidade pouco progrediu em relação ao seu estado primitivo,
visto que o homem sempre foi, e sempre será, movido por seus interesses.
E se um asteróide fosse se chocar com a Terra, e não houvesse nada a
fazer para evitar o nosso fim? Como nos comportaríamos?
Nos convenceríamos, finalmente, de que somos uma única espécie frágil
num planeta precário e viveríamos nossos últimos anos em fraternidade e
paz, ou reverteríamos ao nosso cerne básico e calhorda, agora sem
qualquer disfarce? Nos tribalizaríamos ainda mais ou descobriríamos
76
nossa humanidade comum, e como eram ridículas as nossas diferenças?
Jogaríamos nosso dinheiro fora, pensando na remota possibilidade de
comprar um lugar no último foguete americano a deixar a Terra antes do
impacto? Perderíamos todos os interesses nos prazeres da carne e
trataríamos de salvar a nossa alma ou, pelo contrário, nos entregaríamos
à lascívia, ao deboche e à gula, ultrapassando, às gargalhadas, todos os
nossos limites orçamentários? [...]. (VERÍSSIMO, O melhor das
comédias da vida privada, 2004, p.265).
Em muitas de suas crônicas, Veríssimo narra metalinguisticamente, pois toma
a palavra em vários momentos como alicerce de seu texto, a fim de que o leitor
lance um olhar diferenciado para sua linguagem e atente para o palavreado não
usual e para alguns termos insólitos da nossa língua, os quais, muitas vezes,
passam despercebidos. Inclusive, intitula de De olho na linguagem uma subdivisão
contida em uma de suas coletâneas mais lidas, Comédias para se ler na escola:
A americana estava pouco tempo no Brasil. Queria aprender o português
depressa, por isto prestava muita atenção em tudo que os outros diziam. [...]
Achava curioso, por exemplo, o “pois é”. Volta e meia, quando falava com
brasileiros, ouvia o “pois é”. Era uma maneira tipicamente brasileira de o
ficar quieta e ao mesmo tempo não dizer nada. Quando o sabia o que
dizer, ou sabia, mas tinha preguiça, o brasileiro dizia “pois é”. Ela não
agüentava mais o “pois é”.
[...] Mas o que ela não entendia mesmo era o “pá, pá, pá”.
- Qual o significado exato de “pá, pá, pá”.
- Como é?
[..] - Funciona como reticências sugeri eu. Significa, na verdade, três
pontinhos. “Ponto, ponto, ponto”.
- Mas por que “pá” e não “pó”? Ou “pi” ou “pu”? Ou “etcétera”?
[...] - É uma expressão utilitária – intervim. – Substitui várias palavras [...] por
apenas três. É um símbolo de garrulice vazia, que não merece ser
reproduzida. São palavras que...
- Mas não são palavras. Só barulhos. “Pá, pá, pá”.
- Pois é – disse eu.
Ela foi embora, com a cabeça alta. Obviamente desistira dos brasileiros. Eu
fui para o outro lado. [...]. (VERÍSSIMO, Pá, pá, pá”, In: Comédias para se
ler na escola, 2001, p.55-58)
Com esse lastro, o autor, por meio de Exercícios de Estilo, outra subdivisão
dessa mesma coletânea, olha profundamente para a linguagem e provoca o riso,
fazendo, desta vez, uso de recursos como a rima, o jogo de palavras, a inversão
sintática, as figuras de linguagem, os trocadilhos, o chiste etc.
Logo, por meio de novas acepções que confere às palavras, dos contrastes
que utiliza, dos desvios lingüísticos que cria a partir das ousadias de sua escritura,
Veríssimo aposta numa linguagem renovada, recriada e cativante que contempla a
liberdade.
77
Não é por acaso que Martha Batalha (2001) diz que ele é “hoje nosso melhor
cronista”, pois se trata de “uma das inteligências mais agudas da literatura brasileira
contemporânea”. (p.4-7). Como dissemos, Veríssimo, de fato, consegue explorar
os múltiplos ângulos da existência humana a fim de compor suas narrativas. Para
tanto, constrói, laboriosamente, uma linguagem “seca”, econômica, objetiva, que
elimina os excessos, extraindo a grandeza e a potência da palavra com uma
aparente simplicidade. O fato de se valer, em muitos de seus textos, de uma
linguagem coloquial e simples, facilita a leitura e, principalmente, o exercício
humorístico, além de adequar, com perfeição, o conteúdo à forma de narrar a
história, tocando-nos de maneira imediata e sedutora.
Um exemplo disso é seu “mini-conto” intitulado Preguiçosos (VERÍSSIMO,
2001), em que sintetiza a preguiça, sem descrevê-la nem teorizá-la, mas retratando-
a no próprio ato da leitura; começamos a ler o conto e, em menos de um minuto,
concluímos, o que torna a leitura prazerosa, fácil e fluente, até para quem tem
preguiça de ler. A economia nas palavras, o essencial e, somente, o indispensável,
inscrevem e concretizam a idéia de preguiça.
Dois preguiçosos estão sentados, cada um na sua cadeira de balanço, sem
vontade nem de balançar. Um deles diz:
- Será que está chovendo?
O outro:
- Acho que está.
- Será?
- Não sei.
- Vai lá fora ver.
- Eu não. Vai você.
- Eu não.
- Chama o cachorro.
- Chama você.
- Tupi!
O cachorro entra da rua e senta entre os dois preguiçosos.
- E então?
- O cachorro tá seco... (VERÍSSIMO, In: O Santinho, 2001, p.31)
Outro recurso do autor é jogar com as palavras, explorar sua dubiedade,
valer-se da concisão, da originalidade e da inversão da lógica. Veríssimo, assim,
desperta no leitor um impulso prazeroso, gerado no próprio instante da leitura,
proporcionando a eclosão de um riso espontâneo e imediato. Vale lembrar que esse
impulso é algo que não conseguimos reprimir. Esse mesmo riso, seguido ou não da
reflexão, dependendo do texto, também pode ser considerado uma válvula de
escape para as nossas tensões diárias.
78
Tom Badilho e seus Caribe Serenaders são os empregados mais antigos da
ilha. Tocam no mesmo navio o Brasil Metafórico desde os tempos em
que ele, em vez de cruzeiros, fazia mil-réis.
- Sou tão antigo que o meu summer virou winter brinca o velho Tom,
dedilhando as teclas do piano, amarelecidas como a sua peruca.
Realmente, seu paletó parece o “antes” num comercial de detergente. O
muito antes.
[...] Sal Moura, o contrabaixista, intervém:
- Eu sou tão antigo que não dou mais acorde, só dou “durma”...
[...] - O Brasil não é mais o mesmo...
[...] - Acho que o Brasil nunca foi o mesmo.
- Como assim? – quer saber Benê (Mil dedos) Plácito, o Filósofo do
Acordeom.
- A gente fala de bons tempos, mas era tudo mentira. Eram bons aqui nos
decks de cima. No Salão Tropical. No Netuno´s Bar. No Golden Room.
Fazíamos nossos shows para uma platéia seleta e a nave singrava, qual
cisne branco em noite de lua, mares sempre azuis. Não atravessávamos o
Equador, era o Equador que nos atravessava, nem os lustres tremiam. E
em todas essas, nos nossos porões infectos, tinha gente sendo atirada nas
caldeiras para tocar o barco. [...] (VERÍSSIMO, E la nave va”, In: O marido
do doutor Pompeu, 1987, p.22).
Na crônica acima, observamos que os jogos de palavras têm a função de
engajá-la no período da ditadura militar e revelam, por isso, uma certa seriedade. As
nostálgicas personagens revivem na lembrança os bons tempos em que tocavam a
bordo de um luxuoso navio. Esse navio, porém, escondia no seu subterrâneo as
mazelas do período, fazendo com que aqueles que viviam em seu convés, se
esquecessem da existência de uma face obscura da realidade brasileira, e criassem
a ilusão de que o luxo, a beleza e a felicidade eram predominantes naquele
ambiente, pondo em evidência, assim, a alienação das personagens.
Comprova-se, portanto, que o autor, ao trabalhar o lúdico, nos faz rir, sendo
este riso resultado do impulso prazeroso, que, por sua vez, funciona como um
dispositivo imediato de extravasamento e desafogo. O autor, contudo, não deixa de
reiterar o valor estético de sua obra, fazendo com que se consuma também uma
leitura crítica e reflexiva, que, na verdade, é muito mais do que se espera de uma
obra cômica.
Outra nuance da obra verissimiana toca diretamente o leitor. Em certos
momentos da narrativa, o autor provoca e instiga seus receptores, propondo-lhes
questões e anulando a possibilidade de uma leitura passiva e descomprometida; ao
contrário, faz com que o leitor se sinta capaz de decifrar os enigmas presentes em
seus textos e de perceber as ambigüidades de sua linguagem. É o que ocorre, por
exemplo, em algumas narrativas em que a voz do cronista convoca a participação
do leitor, como se quisesse conferir sua presença, sua participação efetiva no
79
processo de construção do texto; é como se o autor quisesse mostrar que, sem a
participação decisiva do leitor, suas tramas e armadilhas textuais não fariam sentido:
[...] A mesa está ficando animada, isso é o que importa. São cinco amigos.
Eu disse que eram cinco à mesa? Pois eram cinco à mesa. [...].
(VERÍSSIMO, Dezesseis chopes”, In: O melhor das comédias da vida
privada, 2004, p.237).
De fato, esse é um recurso outrora utilizado por autores como Machado de
Assis, por exemplo, que provocou acaloradas discussões crítico-teóricas acerca da
ocorrência ou não de uma possível voz autoral inscrita no texto. Não é nosso intuito
tratar dessa questão. O que vale destacar aqui é que, apesar de Veríssimo e
Machado estarem separados por décadas, cada qual marcado por estímulos de seu
respectivo meio social e de sua época, ambos empregam recursos análogos na
constituição da escritura, comprovando, dessa forma, a versatilidade e a
atemporalidade de certas estratégias lingüísticas, que se revelam como fonte
inesgotável de possibilidades de articulação da palavra. Machado, inovador em seu
tempo, previa o leitor como elemento integrante da obra. Veríssimo, inovador na
atualidade, reatualiza o mecanismo, também investindo na figura do leitor, entre
outros elementos, para conferir irreverência, vivacidade e dinamismo a suas obras.
Em relação à produção mais atual de Veríssimo - além das reedições -
Manuel da Costa Pinto (2001), na mesma revista Cult citada, afirma que o autor
parece ter chegado a um pleno domínio da escrita, manifesta por meio de sua
linguagem que transcende o factual, comprovada, sobretudo, no seu último romance
intitulado Borges e os orangotangos eternos (2001), para a série “Literatura ou
morte”, cuja trama se vale da ficção policial. Nele, o autor projeta os processos
criativos de Jorge Luís Borges, apropriando-se de seus recursos ficcionais e
parodiando os contos de mistério de Edgar Allan Poe.
O enredo policial tem seu início num momento de tensão gerado por um
assassinato ocorrido em Buenos Aires, num encontro de especialistas na obra de
Poe. Uma das personagens, um professor de literatura de Porto Alegre, judeu
alemão, cuja mãe morreu num campo de concentração nazista, tenta, juntamente
com Jorge Luís Borges, que também estava no encontro, desvendar esse mistério.
Veríssimo conjuga, nesta obra, erudição e estilo aliados ao prazer de uma
leitura fácil e fluente, num gênero difundido e atraente para as massas populares. A
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narrativa estimula uma postura dedutiva e inferencial, com o objetivo de captar
sentidos e significações.
Sobre essa obra de Veríssimo, Manuel da Costa Pinto, afirma que
seu jogo especular de citações e recriações, suas apropriações de
narrativas alheias e a identidade cambiante de suas personagens que
mimetizam a identidade instável de um mundo borgeanamente permeado
por narrativas incompatíveis, porém possíveis são dignas da melhor
literatura daquilo que, reverencialmente, chamamos de pós-modernidade.
(2001, p.5).
O crítico também fala da capacidade de Veríssimo em conferir magnitude a
fatos e/ou eventos corriqueiros e simples que, relacionados à temática popular,
ganham contornos dramáticos ou épicos devido à sua verve cômica. Isso acontece
quando aborda o tema futebol, por exemplo, uma vez que, sendo torcedor fanático
do Internacional, sente-se à vontade em transitar por esse universo intensamente
simbólico em seus rituais que mobilizam multidões, mesmo porque os estádios
tornam-se espaços de extravasamento e de manifestação dos instintos, dos sentidos
e do imaginário das pessoas. As obras que abordam essa temática são: América
(1994), sobre a vitória brasileira na Copa do Mundo de 94; A eterna privação do
zagueiro absoluto (1999), cujo contexto é a Copa do Mundo de 98, e o recente
Internacional: Autobiografia de uma paixão (2004), em que o autor rememora a
infância e a primeira adolescência, a partir de relatos dos acontecimentos
insubstituíveis e fundadores da sua própria vida.
Não obstante, Veríssimo não é só história; ele também dá vazão ao poético e,
em 2002, publica seu primeiro livro de poesias intitulado Poesia numa hora
dessas?!, em que reúne algumas preciosidades guardadas havia mais de vinte
anos. Na obra, o autor não abandona nem nega a sua essência, evidente no
sarcasmo e na ironia presentes também em alguns de seus poemas. Predomina,
porém, o lirismo, com que traduz o cotidiano e as experiências do ser humano.
Além do lirismo, Veríssimo se mostra um autor estreitamente relacionado com
a arte e a cultura eruditas, uma vez que recorre, freqüentemente, a ambas para
compor suas obras. Prova disso é sua coletânea de crônicas chamada Banquete
com os deuses (2002), em que o autor oferece ao leitor uma mescla do que de
melhor no cinema, na música, nas artes visuais e na literatura. Ficam evidentes o
deslumbramento do autor com a grande tela, seu rigor crítico e um gosto apurado na
81
escolha de autores e de obras mais apreciadas ao longo de suas aventuras no
campo artístico. No rol dos grandes nomes citados estão Truffaut, Fellini, Chaplin,
Flaubert, Marquês de Sade, Miles Davis, Cartola, Chico Buarque, Chet Baker e
Salvador Dali.
Tendo em vista os aspectos observados, podemos dizer também que a obra
de Veríssimo trabalha com uma inversão, processo que consiste na desconstrução
de paradigmas para a construção e ampliação de múltiplos sentidos. Sob uma
fachada de descompromisso e total simplicidade, Veríssimo revela propriedade no
que fala, propiciando, inevitavelmente, uma reflexão acerca dos temas abordados,
mesmo em meio à efemeridade - aspecto inerente à crônica - e ao humor - aspecto
presente especialmente em sua crônica.
Apesar de termos comprovado que a singularidade de Veríssimo está nas
doses equilibradas e harmônicas de sarcasmo e ironia, na incomum economia da
frase, na percepção atenta do cotidiano, entre outros aspectos, podemos acrescer
que seus textos, considerados apenas exercícios de escrita, fazem um movimento
inverso, visto que retornam a um estado primitivo - de simplicidade -, que impede o
autor de sentir-se acima do leitor, destituindo as imponências por meio desse olhar
compreensivo que tem sobre o mundo.
É, pois, graças a suas personagens caricaturescas, à incursão que faz na
História, no cotidiano, no âmago do ser humano e, ainda, à mescla de gêneros, à
linguagem concisa e laboriosa, à releitura paródica de várias obras, que Veríssimo
envereda nas tramas da literatura e nos leva junto com ele, povoando nosso
imaginário e proporcionando um riso prazeroso, contestador e, sobretudo, reflexivo.
Arrolada aqui grande parte do campo temático e estilístico de Veríssimo, a fim
de corroborar a excelência do autor, cabe perguntar: por que, apesar disso e da
grande vendagem de suas obras, seu trabalho ainda é pouco prestigiado no âmbito
acadêmico? O fato se evidencia pela “modesta” fortuna crítica encontrada acerca do
autor, se comparada a de tantos outros autores da nossa literatura do mesmo
período.
Buscando respostas para essa questão, nos deparamos com os motivos
elencados por Luiz Carlos Santos Simon (1998). Para o ensaísta, talvez isso se
deva ao fato de a pós-modernidade, esfera de ação de Luís Fernando Veríssimo, se
encontrar cercada de estigmas - principalmente no Brasil: de um lado, por ter sido
criada em terra estrangeira, o que, para alguns, inviabilizaria uma apropriação para
82
discutir nossas produções culturais, ou representaria uma importação equivocada; e
de outro pelo estigma que carrega da vulgarização: o termo pós-modernidade
aparece na mídia com freqüência e sem critérios, despontando, muitas vezes, em
meio a comentários irônicos e depreciativos. Outro fator que dificulta uma
aproximação analítica, ainda pela visão de Simon, é o espaço de atuação do autor:
“as gargalhadas que ele nos proporciona em seus artigos de jornais e revistas e em
suas adaptações para televisão, parecem vulgarizá-lo, colocando-o à margem do
circuito acadêmico”. (apud KONZEN, 2002, p.12). E é por esses motivos que nos
dedicamos a estudar suas crônicas no presente trabalho, visando resgatá-lo, pelo
menos em parte, dessa espécie de mal entendido que envolve sua obra.
3.1. Os recursos cômicos em Bobos I
Após termos exposto, mesmo que sumariamente, os caminhos e as principais
nuanças da sátira e da zombaria (como “produto” da sátira), no capítulo anterior,
retomamos agora o corpus de nossa pesquisa para analisar como ela se aplica e se
constrói na crônica Bobos I.
Se for possível mensurar a sátira, dizemos que ela “parece” se apresentar,
nessa crônica, com certa leveza, uma vez que temos a impressão de que não estão
expostos plenamente seus graus de derrisão mais altos e intensos, como aqueles
praticados por Luciano, na Grécia antiga, por exemplo. Primeiro, por ela ter sido
arquitetada num gênero como a crônica, que carrega estigmas como a concisão e a
superficialidade, e que, por isso, parece ser narrada sem muito envolvimento e
densidade (devido também a extensão do texto cronístico), pois, segundo Sá (2005),
“o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas
ficar na superfície de seus próprios comentários” (p.9) ou relatos; segundo, pela
leveza e “aparente” despretensão da apresentação cômica, que ainda assim, estava
sob vigilância. Assim, o bobo faz uso da sátira única e exclusivamente para fazer rir
seu público, sem dar-se conta, no entanto, de que é um importante veículo de
denúncia:
Nunca o rei foi tão insultado.
O bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um
[...]. (VERÍSSIMO, 1982, p.55).
83
No decorrer da construção cronística, observamos que a sátira vai se
manifestando de variadas formas, para tanto, o autor dispõe de uma série de
recursos e estratégias oferecidas pela língua. A redução é a técnica basilar da sátira,
e compreende a comparação, a paródia, o desmascaramento, a mímica, o chiste, a
repetição etc.; no campo estilístico, esses recursos se apóiam nas figuras de
linguagem, no trocadilho, no jogo de palavras, nas polissemias etc., todos eles
estruturados e entrelaçados pela ironia, que terá um subitem dedicado a ela, por seu
poder verbal e argumentativo. Deter-nos-emos, nesse momento, em alguns dos
recursos utilizados pelo autor.
A redução visa a desvalorizar a pessoa satirizada. No caso, o rei, sendo alvo
de ridicularização, é despojado de todos os traços que simbolizam riqueza e
distinção social por meio de pilhérias proferidas pelo bobo, que, no texto, adquirem
contornos irônicos, rebaixando, dessa forma, a dignidade do soberano, sem se fazer
perceber. A crônica nos leva a crer que é irônico o fato de serem reveladas, em tom
de brincadeira, verdades que sempre se encontram camufladas e/ou cingidas.
No exemplo abaixo, o narrador-cronista explicita a intenção da personagem,
uma vez que, por meio de sua onisciência expressa no discurso indireto, nos permite
visualizar o momento em que o rei é destituído de toda a sua vaidade e é rebaixado:
Nunca o rei fora tão insultado. [...]
O bobo chamou o rei de tudo [...]. (VERÍSSIMO, 1982, p.55).
Tomamos a idéia desse excerto para dizer que não existe hierarquia quando
se trabalha com a comicidade, pois se trata de um “mundo às avessas”, conceito de
Mikhail Bakhtin (1987), que se refere à idéia de inversão social e subversão
simbólica do poder estabelecido. Assim, como forma de redução, usa-se a
comparação, retirando-se do satirizado atributos que o identificam como humano,
colocando-o, desse modo, em um nível inferior, sendo o mundo animalesco, muitas
vezes, o escolhido para satirizar sua condição de animal racional, de ser pensante e,
por isso, em posição privilegiada em relação aos demais seres.
A denúncia satírica das carências e defeitos humanos serve para destituir o
homem de sua racionalidade e de sua pretensa superioridade, o que justifica a
freqüente comparação do homem com animais, como burros, porcos, cavalos,
cachorros, asnos etc. Enfim, apresenta o homem como um ser boçal, primitivo:
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- Posso fazer piada sobre tudo? [...]
- Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro? (VERÍSSIMO, 1982, p.54).
A mímica, ou imitação, é outra técnica satírica de redução, pois questiona a
idéia de que todo homem é um ser único e inimitável. Segundo Andréia (2002), de
modo geral, a imitação consiste em fazer lembrar as características da pessoa
imitada para que o espectador a reconheça. Para que se consuma a sátira, é preciso
suscitar uma distorção ridícula, desvelando gestos inconscientes de forma
exagerada. Os pormenores, que se destacam, o extremamente fecundos para o
cômico e, por conseguinte, para provocar o riso.
Na crônica Bobos I, o bufão, para agradar ao rei, faz imitações das mais
variadas, por isso, no excerto abaixo, não uma sátira direta ao soberano, pois a
mímica serve para representar o rebaixamento do bobo, ressaltando a subserviência
deste para com alguém que se coloca como superior e, desse modo, a situação
adquire contornos insólitos e inversivos:
- O que é que você faz ? – perguntou o Procurador Real.
- Tudo. Só não engulo espada.
- Imitações?
- Faço uma galinha imitando um homem.
- Isso é diferente...
- Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede [...].
(VERÍSSIMO, 1982, p.54).
O bufão, ao relatar sua representação inusitada - “faço uma galinha imitando
um homem-, imagina-se inovador, porém nada de novo na imitação, uma vez
que representar uma galinha imitando um homem é mostrar o próprio homem em
seu estado natural.
Esse excerto é extremamente irônico, pois se trata de uma
crítica bem-humorada à sociedade, que sempre vê necessidade de inovação, e
nessa busca incessante, nada faz de novo, só repete e/ou inverte velhos conceitos e
idéias.
O chiste é outra técnica que se identifica com a tira e com elementos do
universo do riso em geral (ironia, paródia, caricatura), pois se refere à exposição
daquilo que repreende ou reprova e, ainda, como fonte de relaxamento das tensões
internas do ser humano. Como um instrumento do discurso satírico, o chiste põe em
evidência as fraquezas e defeitos do ser humano, para convertê-los, mediante uma
ação moralizadora, em valores positivos. Parte do jogo lingüístico, do “desvio do
85
pensamento normal” (aproximação entre elementos aparentemente dissociados)
para colocar em foco regras, costumes e conivências sociais.
Na crônica, o chiste associa-se ao recurso formal do trocadilho, que, por sinal,
é muito usado pelo bufão. Sobre esse recurso, Propp (1992) afirma ser um dos
principais elementos da comicidade e da zombaria. Na teoria alemã, esse recurso é
chamado de Witz, podendo ser compreendido como “argúcia em geral”, (p.120),
enquanto que, na teoria russa, aparece como Kalambur, proveniente do francês
calembour, entendido como “um caso particular de argúcia”. (p.120).
Segundo Boriév (apud PROPP, 1992), o trocadilho é caracterizado como “um
jogo de palavras. O calembur é um dos tipos de argúcia. É uma argúcia que nasce
do emprego de instrumentos propriamente lingüísticos”. (p.129). Mesmo que não
especifique quais são esses instrumentos, podemos concordar com tal
consideração, uma vez que o trocadilho nasce a partir de uma construção lingüística
trocada, que, como no exemplo abaixo, relaciona elementos do mesmo campo
semântico:
- O povo quer ver sua caveira, majestade.
- O quê?
- Para terem certeza de que os ossos são fortes e vossa majestade viverá
muito. (VERÍSSIMO, 1982, p.55).
Assim, a presença dos vocábulos caveira e ossos, que se relacionam
semanticamente, reforçam a idéia de força, princípio basilar para a longevidade do
rei. Esse processo acontece a partir da quebra de expectativa provocada pela
organização semântica, edificando-se, desse modo, a comicidade.
Schérbina (apud PROPP, 1992) vê como características amplas do trocadilho:
a naturalidade, a transparência na intenção e a franqueza nos pensamentos que se
deseja propagar. Essa definição nos faz compreender que o trocadilho, ou o
calembur, não é algo nebuloso, não compete a ele ocultar significados, nem
necessita de uma agudeza de sentidos, ou de alguma capacidade superior para ser
decifrado. Nele se inscreve primordialmente a simplicidade. Não é como a ironia,
que prevê uma leitura essencialmente dialógica e mais complexa.
Podemos considerar, com isso, que Veríssimo mascara seu discurso sério
com artifícios e artífices (o bobo), que operam com (aparente) espontaneidade,
comprovada pelo uso de recursos elementares, como o trocadilho, fazendo-nos
86
acreditar, desse modo, que se trata de uma fala irrelevante, sem intenção, ou até
mesmo simplista, pelo fato de seu discurso ser construído com alicerce cômico, de
fácil compreensão.
O calembur desperta o riso “quando em nossa consciência o significado mais
geral da palavra passa a ser substituído pelo significado exterior, ‘literal’ ”. (PROPP,
1992, p.121). A definição de Propp se adapta perfeitamente ao excerto supracitado,
pois parte-se do sentido geral ou, nesse caso, do sentido figurado, que a palavra
caveira enseja, para um sentido literal, que deveria ser levado em consideração
naquele determinado momento. O rei, a priori, pensou na caveira com significação
pejorativa, expressão que a entender que os outros desejam vê-lo pelas costas,
ou vê-lo morto, mas a palavra se volta para seu sentido primário, o sentido literal,
isto é, seus próprios ossos, sendo explorada, desse modo, a polissemia das
palavras.
Vimos também que o trocadilho pode ser um simples jogo de palavras,
ressaltando, dessa forma, a simplicidade, que contesta a tese bastante comum de
que a linguagem literária tende a ser refinada e até hermética.
O jogo trocadilhesco presente na crônica está expresso também neste
excerto:
Foi uma charada em forma de verso que o bobo propôs: Se o erro de um
bobo é bobeada, o erro de um Papa é..” [...] “...impossível”. (VERÍSSIMO,
1982, p.55).
Na sua apresentação ao rei, o bobo foi advertido a não mencionar três
assuntos que soariam como uma ofensa ao soberano: arqueiros, insinuações e a
papada da rainha. Sendo assim, ao criar um jogo de palavras, provoca um momento
de grande tensão, que logo se resolve. A charada não foi completada como se
esperava, ou seja, não se falou em “papada” e, por isso, a comicidade se pela
quebra de expectativa e pela inversão da lógica, recursos freqüentemente usados na
construção do discurso cômico.
O desmascaramento (também presente na ironia, no diálogo paródico, na
mímica e, sobretudo, na comparação degradante) é uma forma de redução que
rebaixa aquele que se coloca como distinto, suprimindo do universo do satirizado
todos os símbolos que representem ostentação, riqueza ou honra. Devido a essa
característica do desmascaramento, que põe à mostra o mundo baixo e corrompido,
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outrora oculto nas distinções pessoais e de classe, algumas das sátiras mais antigas
eram denominadas “anatomias”. Operavam como uma espécie de dissecação da
“vítima”, esmiuçando os seus defeitos por meio de palavras ofensivas.
O discurso satírico não degrada o sublime ou que é sério e grave, mas, ao
compor um universo, muitas vezes caracterizado pela inversão, também engrandece
o vulgar. Subvertendo as regras, a sátira demonstra que não é obediente a qualquer
hierarquia ou autoridade, rebaixando os poderosos pela presença da obscenidade,
do escatológico etc., elementos esses que nos igualam e, por conseguinte,
promovem a desierarquização.
Portanto, ao xingar, imitar, apontar as torpezas e zombar desmedidamente,
em alguns momentos ou, ainda, ao ser sutil e espirituoso em outros, o bufão, põe
em evidência o óbvio: o fato de que qualquer pessoa, seja ela integrante da corte ou
não, deve ser vista na sua essência e ser tratada como outra qualquer, uma vez que
todos são passíveis de erros e sujeitos a situações desmoralizantes, assim como o
rei.
3.1.1. A figura do bufão como representante da seriedade
No exemplo que tomamos, isto é, a crônica Bobos I, o riso se impõe como
elemento configurador da realidade por intermédio do bufão, figura emblemática que
“deve sua existência à necessidade de evocar alguma coisa que precisa ser
recalcada”. (MINOIS, 2003, p.563). Em nosso estudo, essa personagem exerce um
papel fundamental, pois se trata de uma figura que representa a dialética do riso,
que transgride a barreira cômica e mostra suas múltiplas performances, sobretudo
sua faceta séria.
Ao fazer um panorama histórico e analítico do riso, da cultura e da sociedade
no medievo, José Rivair Macedo (2000) evidencia a imagem do bufão como
significativa no processo de construção da identidade cultural dessa época.
Destacando o bobo como um dos articuladores do riso, o autor mostra que ele tem
um papel muito mais importante do que apenas aquele referente ao entretenimento,
pois revela o riso em sua face grave.
A Idade Média, além de realçar esse caráter ambivalente do riso, também é o
período que melhor explica a origem e as peculiaridades da figura do bufão, pois é
nessa época que
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o riso coletivo desempenha papel conservador e regulador. Por meio da
paródia e da zombaria agressiva, ele reforça a ordem estabelecida
representando seu oposto grotesco; exclui o estranho, o estrangeiro, o
anormal e o nefasto, escarnecendo do bode expiatório e humilhando o
desencaminhado. O riso é, nessa época, uma arma opressiva a serviço do
grupo, uma arma de autodisciplina. (MINOIS, 2003, p.174).
Para justificar o comportamento do bufão nas cortes, devemos ter
conhecimento do comportamento de alguns representantes do clero, que, ao
contrário do que se imagina, não se comportavam grave e seriamente; havia uma
aura cômica, criativa e, até mesmo, indecente pairando sobre o meio eclesiástico:
Litanias, hinos, preces, ofícios canônicos, desviados de seu sentido
sagrado, são uma mina de pilhérias aberta à verve de brincalhões [...],
esses clérigos-estudantes vagabundos, de má reputação [...] Os ofícios
religiosos [...] são verdadeiras barafundas onde se conversa, brinca-se,
discutem-se negócios, cortejam-se as mulheres.[...] Nem mesmo a
decoração dos livros litúrgicos é sempre séria: nas margens dos breviários
aparecem personagens grotescos, diabretes galhofeiros, cabeças de bobos
com seus chapéus com guizos. (MINOIS, 2003, p.174-175).
Relaciona-se, desse modo, o comportamento indecente e libertário do bobo
ao comportamento clerical, mostrando a influência que este exerce sobre aquele e,
ainda, que o riso profano e o sagrado confluem para um único riso. Fica evidente
que, nessa época, a tolerância e, até mesmo, as bênçãos das mais altas
autoridades religiosas vêm para confirmar as dissonâncias presentes no riso do
medievo.
Os excessos cometidos nas festas cabiam ao riso, mas devemos atentar
para as demonstrações de protesto social por meio da subversão da hierarquia e da
troca das posições sociais, o que envolve as manifestações da figura bufonesca,
atestando a força da cultura medieval, sem ameaça, porém, à ordem coletiva:
A festa dos bobos demonstrou que uma cultura podia, periodicamente,
zombar de suas práticas religiosas e reais as mais sagradas, imaginar, ao
menos, de vez em quando, uma espécie de mundo inteiramente diferente,
em que o último seria o primeiro, os valores aceitos seriam invertidos, os
bobos se tornariam reis, em que as crianças do coro fossem os prelados.
(MINOIS, 2003, p.179).
Desse modo, a personagem da crônica de Veríssimo é figura central da nossa
análise, pois ele é o elemento que representa a dicotomia entre o riso direto,
expresso nas suas performances, e a função que acaba desempenhando. Por meio
da violação das regras de conduta e do bom senso, e da transgressão do discurso
89
sério, o bobo se torna porta-voz de pessoas de destaque social, visto que estas não
podiam nem deviam se pronunciar, para continuar preservando uma imagem
sensata (séria) perante a sociedade. Assim, para regular o comportamento social,
restabelecer a ordem e a disciplina, o bufão tomava a palavra, que podia ser
proferida por ele no lugar de tais pessoas, fazendo, deste modo, com que elas
rissem e se regozijassem por alguns momentos, sem maior responsabilidade ou
comprometimento.
Na visão de Macedo (2000), o papel do louco, do ridículo, era muito bem
representado pelo bobo, figura simbólica, repleta de misticismo e sabedoria, que
assim mantinha viva a crença de que personagens como ele “eram capazes de
revelar as verdades ocultas e mistérios escondidos sob a aparência do óbvio”.
(p.135).
Ainda, segundo esse teórico, o bobo era capaz de enxergar o que os outros
não conseguiam e, além disso, sabia verbalizar o futuro e conhecia
antecipadamente o destino dos homens. Como uma espécie de “profeta às
avessas, o bobo e suas atitudes revelam um comportamento antitético, porém a ele
tudo era permitido e incentivado. Se algum dos atingidos por suas piadas e
acusações reagisse “a sério”, estaria denunciando-se.
No caso, o bobo de Veríssimo não via o que os outros podiam ver, mas, sem
a intenção, revela uma verdade oculta e expõe o rei ao ridículo, fazendo com que
este reaja “a rio”, denunciando e punindo o bobo com a morte, numa tentativa de
reprimir a verdade.
Essa passagem da crônica leva-nos a uma discussão sobre a validade do
comentário de Baêta Neves (1974) sobre a neutralidade do bobo nas cortes. O
teórico compara a figura do bufão ao coringa das cartas de baralho, uma vez que
este pode ocupar todas as posições e entrar em quase todos os jogos, sem destruir
a hierarquia nem contestá-la. Isso quer dizer que
o riso suscitado pelo bobo, por mais agressivo que pudesse parecer,
acabava sendo gratuito e inofensivo, pois tinha a sua origem em alguém
ridículo: o signo da loucura neutraliza o potencial subversivo da palavra
permitida”. (MACEDO, 2000, p.136).
Veríssimo, porém, anula essa condição neutra do bobo, que, mesmo sendo o
louco da corte, o ridículo por excelência, teve sua palavra vetada e punida, pois, no
90
caso, ousou pôr a nu índices da verdade, exibindo distorções sociais que não
deviam ser reveladas. Sua voz, castigada pela atribuição de um sentido inesperado
e proibido, mostrou-nos a importância e a seriedade da revelação feita em forma de
piada. Voz, aliás, universal, visto que, embora cingida pelo tempo-espaço da
crônica, disse (e mais diria) verdades que superam tais circunstâncias, porque
reatualizáveis.
É evidente que, na maioria dos casos, quando os defeitos são desnudados
pelo bobo, não com que se preocupar, pois sua imagem não é temida, e a ele
cabe o descrédito. Sua função é entreter, seu meio é a comicidade, que não é nem
pode ser levada a sério.
Este descrédito reservado ao mico é fruto de uma ideologia da seriedade,
que diz que a comicidade e/ou o humor deve provocar apenas um riso leve, não
estimulador de qualquer tipo de questionamento.
Limitando o riso a um momento inconseqüente e menor, a uma situação
engraçada que, logo após seu efeito, é esquecida, a ideologia do sério nega o ato de
pensar. Assim, considera o universo do riso (chiste, caricatura, sátira, paródia)
irrelevante, uma distração apenas, uma pausa recreativa momentânea e lúdica,
nunca pertinente à idade adulta, caracterizada pela sisudez e maturidade. Isso se
deve ao caráter subversivo do riso que, por isso, representa constante ameaça; não
legitimá-lo, portanto, seria mais prudente. A narrativa de Veríssimo reconhece o
poder do riso, e prova até o que parece irrelevante, expõe simulacros da verdade,
isso porque a seriedade, manifesta pelo pensamento crítico, jamais deve ser
apartada do riso, mesmo porque para apreciar uma situação risível, se exige uma
operação mental, motivada, nesse caso, pelo humor.
A história do riso passou por inúmeros estágios e por muitas adversidades.
Houve épocas em que ele foi recalcado, controlado, em outras se ouviu um riso
ensurdecedor, derrisório, como na Renascença e, mesmo na Idade Média; apesar
das alternâncias, uma coisa era certa: segundo Minois (2003), “o riso é aliado do rei
[...] não importa de que tipo: um riso policiado, submisso, disciplinado, ou um riso
cortesão, que adula os gostos e as vontades do Soberano”. (p.406).
Mesmo aliado do rei, o bufão, como dito anteriormente, era livre não
para satirizá-lo, bem como a todos os presentes. Valendo-se da sátira, ele
verbalizava sua percepção diante do ridículo. A corte real qualificava o bobo como o
mais ridículo de todos, porém ele subvertia esta crença e provocava uma inversão,
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visto que era ele quem apontava os defeitos alheios e os satirizava por meio de
trocadilhos e piadas, proporcionando a zombaria e a derrisão generalizada.
Retomando o enredo da crônica, constatamos, logo na primeira frase, o poder
real, que reverbera autoritarismo e opressão. O soberano ordenara a execução do
bufão anterior ao novo candidato, simplesmente porque fora incapaz de fazê-lo rir:
“O bobo daquela corte tivera um acidente de trabalho o rei não entendera uma
piada e mandara executá-lo e o posto estava vago” (VERÍSSIMO, 1982, p.53). É
visível a ínfima inteligência do rei, e o preço por ter sido desafiado intelectualmente
perante a corte custou a vida do bufão. Inscreve-se, já nesse excerto, a ironia
extrema, marca do fazer humorístico do autor, pois a vida e a morte são
banalizadas, ou seja, coisas sérias e importantes são tratadas como insignificantes
por um rei cego pelo poder.
A monarquia, sistema de governo mencionado no texto, define a marca
temporal da narrativa, posto que o fato de haver um rei na história, juntamente com
outros elementos do mesmo universo temático, nos leva a crer que as cenas se
passam na Idade Média. Porém, o que mais importa em nossa análise o é o
tempo real, cronológico, mas o tempo a que alude, isto é, a atualidade.
As marcas do presente são inscritas no texto por meio do uso da terminologia
referente ao capitalismo: “mercado de bobos”, “acidente de trabalho”, “estágio”
(VERÍSSIMO, 1982, p.53), que são cômicas devido à dissonância entre o tempo
relatado e o tempo aludido. A crítica dirige-se, então, sutilmente, à sociedade
capitalista, que, na sua essência, guarda afinidades com o sistema monárquico,
autoritário e opressor por excelência, cujo poder continua sendo abusivo, mesmo
não estando mais concentrado nas mãos de um déspota, mas, sim, nas de quem
possui muito dinheiro.
Na seqüência, quando é relatado que um monarca de outro reino queria
piadas novas sobre chulé e flatulência, nota-se a ocorrência de temas que se
relacionam à vida material e corporal do homem, ambos relacionados com o mau
cheiro produzido, respectivamente, pelo suor abafado e pela presença da comida e
bebida em abundância - muito comum nessas festas. Tais temas são contíguos a
outros, como imagens licenciosas do corpo, necessidades escatológicas, vida
sexual, além das palavras grosseiras e xingamentos freqüentemente pronunciados
em bufonarias; o pronome indefinido “tudo”, repetido várias vezes no texto, permite-
nos deduzir que todas essas manifestações foram suscitadas na referida festa bufa.
92
Essas imagens remetem à teoria da carnavalização de Bakhtin (1987), que
põe em realce, como uma das características do mundo carnavalesco, a valorização
do obsceno, do vulgar, do non-sense, como expressão da capacidade criadora do
povo. Além disso, põe em evidência sua força vital, geradora de um tipo especial de
riso festivo e, sobretudo, coletivo. Quando focaliza a vida corpórea, que compreende
a cópula, o nascimento, a defecação etc., o carnaval oferece uma interrupção
provisória da proibição de toda e qualquer norma, “transferindo tudo o que é
espiritual, ideal e abstrato para o nível material, para a esfera da terra e do corpo”.
(STAM, 1992, p.43).
Tais imagens, que surgem no final da Idade Média e que atravessam toda a
Renascença, fazem com que o carnaval desempenhe
um papel simbólico fundamental na vida das pessoas, pois durante a festa
as pessoas penetravam brevemente na esfera da liberdade utópica. O
carnaval representava muito mais, naquela época, do que a mera cessação
do trabalho produtivo; representava uma cosmovisão alternativa
caracterizada pelo questionamento lúdico de todas as normas. O princípio
carnavalesco abole as hierarquias, nivela as classes sociais e cria outra
vida, livre das regras e restrições convencionais. Durante o carnaval, tudo o
que é marginalizado e excluído, o insano, o escandaloso, o aleatório se
apropria do centro, numa explosão libertadora. O princípio corpóreo material
fome, sede, defecação, copulação torna-se uma força positivamente
corrosiva, e o riso festivo celebra uma vitória simbólica sobre a morte, sobre
tudo o que é considerado sagrado, sobre tudo aquilo que oprime e restringe.
(STAM, 1992, p.43).
O bufão de Veríssimo, desse modo, cumpre a função de universalizar o
caráter carnavalesco da festa. Segundo Laura Makarius, este é o papel dos
palhaços rituais: “satisfazer as necessidades e os desejos da coletividade, violando
os tabus e os interditos pelo riso, pela brincadeira e pela farsa”. (apud Minois, 2003,
p.563). (Lembrando sempre que as pessoas tinham seus desejos reprimidos e, por
intermédio das brincadeiras do bufão, podiam fazer ecoar um riso desenfreado,
descomedido, que zombasse de tudo e todos, sem sentimento de culpa).
Esse tipo de riso revela um rei dono de uma postura frívola, vazia e
excêntrica, uma vez que, ao valorizar as vulgaridades e se preocupar demais com
pormenores irrelevantes, não exercia o poder com sabedoria e justiça em benefício
do povo. Trata-se de uma crítica impiedosa à alienação da sociedade capitalista,
provocada pela ausência de reflexão, sobretudo dos governantes, tal como acontece
atualmente.
93
Retomando a linearidade do enredo, na seqüência, depois de os criados do
rei muito pensarem sobre algum substituto, um foi, enfim, localizado e trazido para o
teste. Em menos de dois meses, se apresentava para o procurador real. O bobo
poderia fazer tudo para alegrar o rei, porém com algumas ressalvas: foi advertido de
que não deveria falar da papada da rainha nem falar mal de arqueiros, tampouco ser
sutil. Percebe-se que a apresentação cômica estava sob vigilância, dando a falsa
idéia de que seu papel era o de promover um clima de entretenimento leve, em que
vícios ou defeitos seriam ironizados, sem qualquer propósito (mas o que ocorre é
exatamente o contrário). Limitar a liberdade do bobo equivale a ceifar a liberdade do
indivíduo, por meio do controle do riso e da inibição da verdade que ele deflagraria.
Se o bobo agradasse ao rei, seria incorporado à corte, ganharia comida,
bebida e um canto seu no canil. Assim, valendo-se do humor, Veríssimo faz uma
crítica incisiva à sociedade, à degradação do ser, visto que o bufão é zoomorfizado
e/ou nivelado a alguém desprovido de sentimento e racionalidade. Reiterando esse
tratamento desprezível dado ao bobo, Minois (2003) ressalta que o bufão, muitas
vezes, era convidado para as festas apenas em troca de comida. Outrora, eram
louvados por seu talento para a sátira e a mímica. Mais tarde, passaram a ser
tratados como pobres loucos, sobretudo no final da Idade Média.
Na crônica que estamos estudando, no final do espetáculo, ao tentar concluir
uma adivinhação, o bobo, mal interpretado pelo rei, foi mandado para a masmorra,
onde deveria passar a noite até ser decapitado ao amanhecer. A ironia,
instrumentalizada sem intencionalidade pelo bobo, era algo que aquela sociedade,
pautada na aparência, simplesmente não suportava. Deste modo, a única maneira
de eliminar qualquer manifestação irônica, que pudesse representar ameaça,
implicava a eliminação do bobo. Isso acontecia porque sua figura cômica tinha um
grande poder de desmascaramento, uma vez que trazia à luz uma verdade
inconveniente. Se a comicidade, cujo fruto é um riso aberto, contagiante, era
permitida e incentivada, ao contrário, o riso, “produto” da ironia, insinuante e
ambígua, representava perigo.
Podemos entender a atitude do monarca como uma metáfora da própria
comicidade e do comportamento dos teóricos que evitam estudá-la; por meio da
morte do bufão, o rei recalca o humor, inibindo seu poder de denúncia e
conscientização.
94
É a partir desse desfecho que devemos reconhecer a reflexão do autor sobre
o poder revelador do riso e o senso crítico veiculado pelo discurso humorístico. Nada
melhor para comprovar o empenho da sociedade em controlar o riso do que a figura
do bobo da corte. Assim, verdades que não podiam ser desveladas, apareciam nas
palavras e nas graças do bufão, que representava o papel do louco, do ridículo, do
não-sério. No entanto, mesmo não agindo com prudência, suas insinuações jocosas,
controladas pelo poder real, acabaram atingindo o rei, que entendeu como
reveladora da verdade uma afirmação apenas engraçada e despretensiosa,
possivelmente por haver alguma relação entre algum arqueiro e a rainha. Dessa
forma, o rei puniu o bufão, matando-o, e evitou que a verdade, que se queria
esconder, viesse à tona e se espalhasse por todo o reino.
Ainda, com seu “bobo mal interpretado”, Veríssimo demonstra que, se não
fosse séria e sensata a piada e também o riso por ela provocado, os bobos, de
modo geral, não suscitariam tanto receio e rejeição. Com uma aparência de
irrelevância e fantasia, sua crônica exibe uma leitura desmascaradora da vida.
3.2. Os recursos cômicos em Ri, Gervásio
Na crônica Ri, Gervásio, o principal recurso para se instaurar a comicidade é
o exagero cômico. E, para ser cômico, o exagero necessita revelar um defeito (ou,
no caso da crônica, vários), de tal maneira que, “se este não existe, não se
enquadra no domínio da comicidade. É possível demonstrá-lo através do exame de
três formas fundamentais do exagero: a caricatura, a hipérbole e o grotesco”.
(PROPP, 1992, p.88).
Na crônica, a comicidade ocorre por meio da sucessão de infortúnios na vida
da personagem protagonista, os quais, ampliados, contrastam com o real,
destacando-se e, assim, tornando-se cômicos. A situação que chamamos de
incongruente está no fato de a personagem rir (pois seu trabalho a obriga), quando,
na verdade, não tem nenhum motivo para isso.
Predominantemente, a figura de linguagem que exerce a função de exagerar
é a hipérbole, que consiste em dar ênfase a um fato ou objeto, atribuindo a ele maior
expressividade e significância.
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Propp considera a hipérbole como uma variedade da caricatura, pois
enquanto esta exagera um pormenor, aquela amplia o todo, como ocorre com a
personagem da crônica:
Gervásio não estava com problemas em casa porque o tinha mais casa.
Fora destruída num incêndio, junto com todos os seus bens, inclusive a mãe
de 80 anos [...]. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).
Um dos consensos entre os teóricos do riso se refere à potencialidade cômica
da hipérbole. O exercício de aumentar extraordinariamente as dimensões dos
elementos ou das situações (no caso da crônica), impressionando o espectador pela
estranheza, constitui um dos procedimentos mais tradicionais da comédia ou de
qualquer obra que se vale da comicidade.
O engrandecimento de proporções, característica da hipérbole, pode ser
transposto: à sátira visando à degradação; à paródia, tornando perceptível a
diferença em relação ao “modelo”; à ironia, que a utiliza, freqüentemente, como um
processo de caracterização moral de personagens, ou mesmo, com um propósito
exclusivamente cômico, gerando o riso pelo contraste entre a dimensão normal do
objeto ou da situação, (como é o caso da crônica), e a sua ampliação hiperbólica.
Assim, mesmo restrita ao cômico, a hipérbole intensifica e apresenta todo o vigor e
expressividade que a palavra busca comportar.
O enredo inicia-se quando o produtor da claque de humor, a que Gervásio
pertencia, nota que havia algo diferente nas risadas, pois elas não eram mais
contagiantes como as de outrora. O assistente vai verificar se o quadro de
funcionários era o mesmo e, num primeiro momento, nota que eram os mesmos de
sempre: “Gente aposentada atrás de um dinheiro extra”. (VERÍSSIMO, 1987, p.51).
Pode-se reconhecer nessa frase uma idéia camuflada: o desprezo que envolve a
atividade do humorista, uma vez que se trata de um emprego informal, sem
importância, de irrelevante significação social, uma atividade extra, para quem
precisa de dinheiro e que a exerce simplesmente por falta de opção. Nota-se o
contraste entre a vida difícil dessas personagens e o riso (forçado), pois, apesar de
não terem motivos para regozijar-se, eram obrigadas a rir, reiterando, desse modo, a
ambivalência do riso, através de sua imposição a pessoas que não tinham nenhuma
razão para rir.
96
Na seqüência, é constatada a falta de Gervásio, um velho funcionário que,
segundo Amelita, tinha uma excelente risada. Amelita era a funcionária mais antiga
da claque e demonstrava conhecimento de causa: “Tinha uma grande risada [...]
Uma das melhores que ouvi”. (VERÍSSIMO, 1987, p.52). Ela acreditava tanto no
riso aberto e contagiante de Gervásio que sente prazer em detalhar (teorizar) seu
riso:
- Ele ria por baixo explicou - Uma boa claque ri em três níveis. O baixo, o
médio e o alto. O riso baixo é o mais importante. É o que sustenta os outros
dois. Sem um bom baixo a claque perde consistência. Perde ritmo.
(VERÍSSIMO, 1987, p.52).
Desse modo, todos se convencem da importância de Gervásio e mandam
chamá-lo a qualquer custo; pois precisavam dele para dar consistência à claque de
humor, que era ele que proporcionava a harmonia ao grupo (com seu riso baixo)
e, assim, garantia o sucesso da “instituição do riso”.
No entanto, a vida pessoal de Gervásio se encontrava repleta de problemas,
o que o tinha levado a perder o ânimo e o entusiasmo:
Gervásio não estava com problemas em casa porque o tinha mais casa.
Fora destruída em um incêndio, junto com todos os seus bens, inclusive a
mãe de 80 anos. A mulher de Gervásio fugira do incêndio para a casa do
vizinho, pelo qual desenvolveu uma paixão súbita e ardente que nem os
bombeiros – mesmo que tivessem chegado a tempo – conseguiriam apagar.
A filha mais velha de Gervásio casara com um estivador inativo que, para
não perder a forma, jogava a filha mais velha de Gervásio como um fardo
para cima do telhado e a pegava na volta, às vezes. O filho de Gervásio se
envolvera com traficantes de tóxico e estava jurado de morte por três
delegacias. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).
A sucessão de acontecimentos trágicos na vida da personagem torna-se
risível pela arte do exagero, expresso comicamente pela hipérbole. Há, no entanto, a
inserção de elementos trágicos, que não anulam os contornos cômicos e
hiperbólicos, visto que realçam somente os aspectos mais negativos da vida da
personagem, compondo um retrato de vida inverossímil, se considerarmos o
encadeamento e a simultaneidade de “desgraças” que atingem a personagem.
Não se pode negar, com isso, uma dialética entre o trágico e o cômico, uma
vez que constatamos ser possível rir daquilo que é trágico. Essa dialética é
responsável pela origem do gênero tragicômico, modalidade em que se misturam
97
elementos trágicos e cômicos, e que, originalmente, significava a mistura do real
com o imaginário.
Por conta da dimensão trágica, a consciência e a emotividade, que fazem o
elo com a pungente realidade da personagem, ficam amortecidas por algum tempo,
o que acentua a tragicidade do excerto:
- Ânimo, rapaz. O teu valor foi reconhecido. A produção quer você de volta
no programa de qualquer jeito.
Gervásio estava com o olhar parado. Não dizia nada.
- A claque decaiu muito sem você. Você precisa voltar, Gervásio.
Gervásio parecia não estar ouvindo. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).
Há, porém, a retomada de consciência quando percebe a dimensão da
gravidade dos fatos:
- Você precisa voltar a rir, Gervásio.
Gervásio começou a chorar. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).
Rir e chorar são ações que revelam a ambivalência do riso e o caráter
antitético de que se vale o cronista para desvelar as duas faces de uma mesma
realidade. Gervásio precisava voltar a rir em virtude do trabalho, de uma
necessidade, como algo imposto, quando sua única vontade na vida - era chorar.
A postura da personagem (rir e chorar) mostra a sua consciência dos fatos, mas
revela, principalmente sua impotência diante da sucessão de eventos trágicos que a
atingem.
É válido - porém difícil visualizarmos como se essa conjunção do mico
e do trágico e, sobretudo, o ponto em que se encontra um domínio e outro, para que
se perceba como são tênues seus limites. Para Propp (1996) e Bergson (2004), o
riso é manifestação da inteligência, uma vez que quando se expressa emoção, se
anula o riso. Quando, então, numa primeira leitura, um riso lúdico e prazeroso é
suscitado, a inteligência é acionada, sem, portanto, manter qualquer vínculo
sensitivo ou afetivo com o objeto do riso (aqui, a vida de Gervásio), que é preciso
tão somente realizar uma operação mental, a fim de decodificar o discurso cômico.
Mas, justamente quando o leitor se conta da problemática vivida pela
personagem, é que começa a ser ativado e trabalhado nele a reflexão, e então,
desconstrói-se aquela primeira imagem, o riso se vai inibindo, e o que antes era
uma advertência do contrário (cômico), passa a se manifestar como sentimento do
98
contrário. E porque a crônica contrasta comicidade com elementos que enveredam
para o trágico, sente-se compaixão da personagem (sentimento esse que sustenta a
catarse), e, por isso, deixamos de manifestar um riso alegre, lembrando a tese de
Propp e Bergson, isto é: quando a emoção é suscitada, o riso se anula, ou ao
menos, nesse caso, se turba.
Tal consideração, desse modo, confirma nossas impressões: o cômico não se
opõe ao trágico, mas ambos caminham lado a lado, tanto que a hibridização dos
elementos dos dois gêneros resulta em outro, a tragicomédia - modalidade essa
citada mais acima. É importante retomá-la para destacar a confluência das
características da comédia e da tragédia, tal como acontece na crônica que estamos
analisando, pois nela tanto a representação de fatos trágicos que inspiram
piedade, quanto a representação de fatos inspirados na vida e no sentimento
comum, de riso fácil, que critica os costumes e o comportamento humanos.
No caso, a crônica de Veríssimo alude a uma tragicomédia contemporânea,
que, nela, há o registro de situações (trágicas e cômicas) mais relacionadas à
realidade diária de todos s: a morte da mãe, o casamento mal-sucedido da filha, a
profissão do genro, o envolvimento do filho com drogas, a fuga da esposa; tudo
hiperbolicamente expresso com comicidade contrastante, tendo como mola
propulsora a claque do riso e a ausência de Gervásio.
Há, na seqüência do enredo, uma tentativa frustrada de substituir Gervásio, o
que revela a importância de seu riso e, principalmente, uma situação incongruente,
pois o riso de que necessitam vem justamente de alguém que não tem nenhum
motivo para isso. Mas o assistente, movido pela necessidade do riso profissional
(riso falso e imposto), insiste para que ele volte:
Desta vez, foi o assistente em pessoa. Encontrou Gervásio no enterro do
genro. A filha mais velha de Gervásio caíra fora do telhado na cabeça do
marido, quebrando o seu pescoço. Fora um acidente, mas a família do
marido prometera vingança. Queria uma indenização. Gervásio não tinha
dinheiro. O que escapara do incêndio a mulher levara. E ainda por cima o
filho foragido de Gervásio aparecera no enterro, arriscando-se a ser baleado
de três lados. O assistente teve dificuldade em prender a atenção de
Gervásio, que olhava nervosamente para todos os lados.
- Você tem que voltar, Gervásio.
Surgiu uma briga [...]
- Você é indispensável, Gervásio[...]. (VERÍSSIMO, 1987, p.53).
No excerto acima, o efeito risível se pelo encadeamento de cenas trágicas
apresentadas ao leitor em flashes de imagens, ora focando o assistente, que pede
99
para Gervásio voltar, ora os acontecimentos trágicos que ocorrem simultaneamente
à oferta de trabalho.
É interessante destacar ainda que os acontecimentos trágicos se
desenvolvem numa espécie de efeito dominó, numa reação em cadeia de novos
eventos desastrosos ao longo da narrativa, mostrando vários momentos tensivos da
história. No entanto, são todos esses eventos que fazem a personagem voltar para a
claque, mas exigindo um salário maior, visto que necessitava dele para que a
situação de sua família não se agravasse ainda mais:
Combinaram que, por um aumento de salário, Gervásio voltaria para a
claque. Precisava de dinheiro para sustentar a filha viúva, subornar os
policiais que caçavam o seu filho e pagar o enterro do genro. Mas a mulher
o esperava na saída do estúdio e levava todo o dinheiro. Gervásio pedia
mais dinheiro. A verba para a claque era limitada, mas o Gervásio valia tudo
que pedisse. (VERÍSSIMO, 1987, p.54).
Ao final, quando Gervásio volta a trabalhar na claque, solta um riso
desenfreado e, mormente, desesperado, o riso imposto, evidente, sobretudo, no
título da crônica Ri, Gervásio, em que o imperativo do verbo rir destaca a ação
como obrigação e não como prazer. O riso, no caso, pode ser considerado ainda
uma “válvula de escape”, uma fuga do real, um momento de breve alienação, uma
vez que enfrentar a situação real seria demasiadamente doloroso, desesperador. Tal
possibilidade de análise nos permite tomar, da tradição antiga, uma premissa
presente na consideração feita pelo filósofo Demócrito a Hipócrates, segundo a qual
o riso era o melhor antídoto contra a melancolia, ou na frase de Rabelais, inscrita no
prólogo de seu livro Gargantua, que diz que não como o riso para espantar o
luto: “Vendo o luto que vos mina e consome/É melhor de risos que de lágrimas
escrever/Pois rir é próprio do homem”. (apud ROUANET, 2007). O último riso de
Gervásio funciona, aqui, como uma reação a toda tristeza, ou até mesmo à sua
própria loucura, frente aos infortúnios de uma vida sem sorte.
Ainda, é necessário que se atente para a indiferença dos funcionários da
claque, que tinham como único interesse os efeitos do riso contagiante, que
Gervásio era capaz de manifestar, e que garantiam o sucesso da claque:
Segundo a Amelita, estava rindo como nunca na sua carreira. Um riso,
aberto, contagiante. O produtor estava satisfeito. - Isso é que é risada! E o
Gervásio ria, ria de bater o pé. Um profissional, murmurava a Amelita. Um
verdadeiro profissional. (VERÍSSIMO, 1987, p.54).
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Todo o processo destinado a despertar a emotividade do leitor, que tem a
vida dramática de Gervásio como motivação, enseja uma análise crítica sobre a
nossa própria vida, e especialmente, sobre o significado da existência humana a
ponto de suscitar questionamentos filosóficos em torno do pragmatismo, que
congela as relações humanas, mecaniza e estanca a sensibilidade do homem.
Enfim, a crônica lembra-nos que a alegria e a tristeza são faces complementares do
mesmo rosto; mantendo-se, desse modo, uma relação dialética.
3.3. A força da ironia
Se estamos certos de que “não neutralidade nem mesmo no uso mais
aparentemente cotidiano dos signos” (ORLANDI, 2000, p.9), muito menos poderá
haver em textos, como o do nosso corpus, que têm a ironia e o humor como marcas
profundas. Tais instrumentos, articulados pela linguagem de modo a suscitar o riso,
constituem um enunciado que possibilita também uma análise sob uma perspectiva
séria, resultando numa interpretação que consideramos fulcral em nosso estudo,
uma vez que confirma o caráter ambíguo desse fenômeno.
Reconhecemos, então, que a ironia pode ser um recurso válido para a
instauração da comicidade. Porém, nas crônicas selecionadas, ela é antes um
elemento deflagrador da faceta séria presente no humor, do que um recurso
destinado a provocar o riso, isso porque a ironia não é necessariamente cômica.
Na obra de Antonio Martins (1988), intitulada Arthur Azevedo: A palavra e o
riso, estão elencados os vários tipos de ironia propostos por Muecke (1995),
agrupados de acordo com as afinidades existentes entre elas. A ironia cômica é
agrupada ao lado da trágica, da dramática e da sofocleana; ao lado da ironia verbal,
a situacional e a dramática; ao lado da ironia prática, a verbal e a dialética; e ainda,
a ironia de modo, a de personagem e a de auto-exposição inconsciente. O autor
caracteriza também vários tipos de ironia, como a impessoal, a de automenosprezo,
a ingênua, a de autotraição, a de simples incongruência, a filosófica, a de
acontecimento e a geral.
Concordamos com o autor acima citado, quando declara que todas essas
classificações e subclassificações têm por meta enfatizar a singularidade da ironia
entre as demais categorias estéticas capazes de provocar o riso, e, a nosso pensar,
101
possibilitar interpretações que enfatizam, sobretudo, a seriedade contida na
essência do risível.
Beth Brait (1996), em sua obra Ironia em perspectiva polifônica, reconhece
a ironia como estratégia e fenômeno de linguagem, dimensionando-a no nível do
discurso. Porém, também discorre sobre as duas grandes concepções que põem em
campos opostos a ironia como atitude e a ironia como procedimento verbal.
Também chamada de referencial, de mundo, não-verbal e situacional, a ironia
como atitude se estrutura sob uma perspectiva filosófica diante do objeto e, por isso,
é constituída a partir de uma situação ou traço de caráter ou de personalidade que
caracterizam certos indivíduos, e o a partir da construção de linguagem. Mas,
mesmo parecendo independentes, esses dois tipos de ironia se vinculam e mantêm
relação, uma vez que a contradição, o contraste que se instaura na ironia como
atitude, ou referencial, também se encontra no cerne da ironia verbal, isto é, no
plano da linguagem:
Ironia referencial = contradição entre dois fatos contíguos;
Ironia verbal = contradição entre dois níveis semânticos ligados a uma mesma
seqüência significante”. (KERBRAT-ORECCHIONI apud BRAIT, 1996, p.61).
Tanto na crônica Bobos I quanto em Ri, Gervásio, o autor apresenta dois
níveis semânticos: o discurso (explícito), isto é, o primeiro nível, e a mensagem
subentendida, segundo nível, que o autor pretende que seja entendida de forma
mais abrangente, ampla e, portanto, completa.
É valido enfatizar não como se concretiza o processo de estruturação da
ironia, bem como o modo como se relacionam seus componentes, para
entendermos por que a ironia verbal é, no mínimo, mais completa, que reitera e
subsidia a dialogicidade do processo comunicacional. Na ironia referencial,
articulam-se dois elementos apenas, sendo o primeiro a base da ironia, isto é, uma
situação ou uma atitude, e o segundo, o observador que percebe essa atitude como
irônica, no caso, o observador ideal. na ironia verbal são três os elementos
componentes em seu processo de construção: o primeiro é o locutor, que direciona
um discurso irônico a um receptor - sendo este o segundo elemento -, a fim de troçar
de um terceiro - que constitui o terceiro elemento, isto é, o alvo da ironia.
Analisamos, no capítulo 3.1, a crônica Bobos I, com base na articulação do
trio de elementos que constrói a ironia verbal, isto é: o primeiro elemento é o
narrador-cronista, que dirige um enunciado irônico ao leitor da crônica, segundo
elemento, com quem espera estabelecer uma relação de cumplicidade; o terceiro
102
elemento é o alvo, ou seja, a sociedade, de modo geral, e, sobretudo, a
contemporânea, ainda opressora, mesquinha, arbitrária e frívola. Eis um quadro
comparativo a partir da descrição de uma sociedade monárquica, segundo o qual
tais características são marcas do ser humano, independentemente da organização
social em que o indivíduo está inserido, uma vez que ambas as sociedades são
pautadas na individualidade e apontam para um homem primordialmente
egocêntrico.
Em Ri, Gervásio, os três elementos coincidem com os que encontramos na
crônica Bobos I, sendo o alvo igualmente a sociedade, porém, por meio do
destaque dado à indiferença e à insensibilidade do ser humano frente aos problemas
do outro, decorrentes também da postura individualista que caracteriza as
organizações sociais da atualidade.
É desse modo que, por meio da ironia como forma indireta de argumentação,
se promove uma reflexão sobre um episódio aparentemente banal, sem importância:
o enunciador do texto, que no caso da crônica é o narrador-cronista, estabelece uma
relação conivente com o destinatário, também no sentido de ambigüizar o texto e
abrir possibilidades, ainda que jocosamente colocadas, para várias leituras em torno
do mesmo fato.
O riso está presente em ambas as crônicas: na primeira, ele se mostra como
um elemento deflagrador, e na segunda, se mostra como um elemento hibridizado,
evidenciando que pode haver no cômico traços trágicos, e que o riso, sustentado
pela ironia, exerce a função de máscara, transmitindo a idéia de que nem sempre
onde está o riso, há, de fato, o sentimento de alegria.
Segundo Brait,
a ironia pode ser enfrentada como um discurso que através de mecanismos
dialógicos oferece-se basicamente como argumentação indireta e
indiretamente estruturada, como paradoxo argumentativo, como
afrontamento de idéias e de normas institucionais, como instauração da
polêmica ou mesmo como estratégia defensiva. É possível, assim,
abandonar a série caracterizada como sendo a das figuras de linguagem,
da frase de efeito que compõem um texto, e mesmo da comicidade,
delineando-se o horizonte de uma outra perspectiva. Esta, concebendo a
ironia como uma forma de discurso, pode compreender o humor, a paródia,
a intertextualidade, a interdiscursividade [...] como mecanismos que
participam, ao mesmo tempo ou não, da estruturação de um discurso
irônico, ou que se oferecem como efeito de sentido provocado pela ironia.
(1996, p.58).
103
Nas crônicas de Veríssimo, a ironia, como uma argumentação indiretamente
estruturada, é articulada de modo tão sutil (porque essa é a propriedade basilar da
ironia) e com tal fluidez, que quase nem se percebe o poder de seu aguilhão, pois
essa argumentação, subentendida no texto, que se instaura graças à integração dos
elementos envolvidos no processo irônico, acaba dominada pela comicidade e pelo
riso fácil.
Com isso, o autor nos mostra que um assunto sério pode ser tratado
jocosamente, de forma a reproduzir um universo o mais próximo possível do
verossímil, por meio de personagens revestidos de certa ingenuidade, o que os
torna cômicos e, sobretudo, mais próximos de nós, leitores.
Outro motivo para que a ironia se encontre diluída no tecido narrativo e faça
com que o texto seja também cômico é o fato de estar edificada num gênero como a
crônica, que tem como marca a brevidade e certa “despretensão”, uma vez que sua
matéria é o fato pequeno, cotidiano, abordado de forma leve, narrado com
simplicidade e informalidade, para um leitor que procura a crônica, sobretudo como
um espaço de repouso das tensões diárias.
Segundo Maingueneau,
a ironia configura-se como uma voz que expressa um ponto de vista
insustentável. É uma voz diferente da do locutor, é a subversão entre o que
é assumido e o que não é assumido por este. Ele assume as palavras, mas
não o ponto de vista que elas representam. (1977, p.77).
No caso das crônicas que constituem nosso corpus, observamos um ponto de
vista na fala do narrador-cronista: uma sutil inclinação em divergir da posição e/ou
do caráter das personagens, confirmando, ainda, umas das formas da ironia, que
consiste em dizer “em tom de brincadeira algo que se pensa a sério”.
(KIERKEGAARD, 1991, p.216). Assim, a ironia é que implanta o tom de seriedade
nas crônicas Bobos I e Ri, Gervásio, em cujos textos ela não exerce só uma função
lúdica, mas, fundamentalmente, elucidativa, desmascaradora da vida.
Ao mesmo tempo em que o cronista nos diverte com seu discurso cômico, ele
nos leva a uma reflexão sobre o próprio fenômeno do risível, ao que ousamos
chamar, em nosso trabalho, de meta-humor. Então, quase que simultaneamente ao
riso, cujo momento é de fruição, reconhecemos a ironia e somos (ou deveríamos
ser) capazes de identificar não a seriedade que envolve esse fenômeno, mas
104
também seu poder de lucidez, assim como a possibilidade de reconhecer situações
pouco comuns e/ou absurdas, portanto, cômicas.
Pode-se ainda identificar, no interlocutor, uma inclinação melancólica gerada
por uma leitura atenta (e não ingênua) das crônicas, sobretudo, em Ri, Gervásio.
Tal melancolia é promovida pela especial atividade de reflexão presente no
sentimento do contrário (apontado por Pirandello e mencionado em nosso
trabalho), levando o leitor a uma análise mais profunda sobre o texto, do qual
reverberam alguns questionamentos (já mencionados no capítulo anterior). É válido
ressaltar que, na crônica citada, o riso aflora em muitos momentos do texto, porém o
conjunto aponta também para a tragicidade instaurada a partir de um confronto entre
a vida ideal e a vida real, fatídica, caótica, vivida pela personagem Gervásio. Desse
modo, a dimensão da ironia, no caso desta crônica, que reforça o vínculo com a
seriedade, envereda por dois caminhos que se entrecruzam: o cômico e o trágico,
conforme já observado.
Esse sentimento de comiseração, que pode acometer o leitor numa leitura
em que se substitui a ingenuidade pelo senso crítico, se aprofunda por meio de
pistas deixadas pelo narrador-cronista ao relatar os fatos conturbados da vida da
personagem, percebidas, sobretudo, pela entonação da voz enunciadora na
descrição minuciosa (e emotiva) da reação da personagem, conseguindo nos tocar e
invocar o sentimento contraditório:
Gervásio estava com o olhar parado. o dizia nada [...] Gervásio comou
a chorar. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).
Também se observa a indignação do enunciador diante da descrição em que
enfatiza as desgraças na vida da personagem, o que também admite uma
interpretação cômica, confirmando a ambigüidade do texto:
Gervásio não estava com problemas em casa porque o tinha mais casa.
Fora destruída num incêndio. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).
Em Bobos I, fica evidente a arbitrariedade do rei em relação ao riso (manda
seu súdito decapitar o bobo por causa de uma piada que o ofende), atitude que o
locutor desaprova ou, ao menos, lamenta:
105
Condenado por um erro de interpretação. [...] Mas era tarde. A porta se
fechou. (VERÍSSIMO, 1982, p.56).
O que fica claro, tanto em uma crônica quanto em outra, é que o ponto de
vista do narrador-cronista exige muito da percepção do leitor, autônomo,
imprescindível e decisivo para a construção de sentido do enunciado irônico. Essa
tomada de posição do narrador é, de certa forma, implícita, mas não deve, de
maneira alguma, passar despercebida; isso confirma, então, as características da
ironia, ou seja, o fato de se tratar de uma voz que revela um ponto de vista por meio
de um locutor, que, muitas vezes, assume as palavras, porque narra uma dada
situação, mas não concorda com ela.
Ainda, segundo lia Parreira Duarte (1994), o autor da ironia espera apoio
de seus interlocutores, pois, se ele critica, ataca, nega ou defende valores e
comportamentos, é porque sabe que alguém o perceberá e não apoiaa infração
cometida por alguém. Comprovamos, com isso, que a ironia é um fenômeno muito
sutil e produto laborioso da inteligência, uma vez que pressupõe a existência de um
destinatário hábil para desvendá-la e de um locutor que se permite fugir às normas
de coerência impostas pela argumentação.
Caso o receptor da mensagem irônica não seja capaz de decodificá-la como
tal, a mesma perde o sentido, como Brait mencionou, utilizando Freud:
A ironia só pode ser empregada quando a outra pessoa es preparada
para escutar o oposto, de modo que não pode deixar de sentir uma
inclinação a contradizer. Em conseqüência dessa condição a ironia se
expõe facilmente ao risco de ser mal-entendida. (1996, p.44).
Brait (1996) ainda cita Assoun, ratificando o que dissemos: “O percurso em
direção à verdade é feito pela contramão, mas que o locutor conta com a sintonia do
seu interlocutor”. (p.165).
Veríssimo espera essa sintonia e habilidade do leitor para desvendar a
mensagem implícita e, assim, atribuir um significado ao texto. Assim como todo
ironista, vai em busca da verdade, porém subvertendo a forma de expressá-la, visto
que profere o contrário ou o diferente do que, de fato, intenciona dizer.
Porque aquilo que repetiremos é básico para a análise das crônicas de
Veríssimo, reiteramos que a capacidade de recepção, mais do que em textos
predominantemente literais, deve ser considerada a chave para a compreensão das
106
relações de sentido e para a efetivação da leitura, visto que, se o leitor não for capaz
de compreender as significações articuladas pela ironia, a leitura não se concretizará
com sucesso. Isto é, se o interlocutor de Veríssimo não perceber que, por trás da
comicidade e da aparente despretensão do discurso (simples), possibilidade de
enveredar por caminhos, cuja significação se faz mais elucidativa e profunda,
revelando, assim, a faceta ria do humor e do riso, a leitura de tais textos perderá,
a nosso ver, seu real propósito.
E a valorização do leitor tem sua história. Ela é conseqüência de uma postura
preconizada pelo Romantismo, cujos valores elegiam o indivíduo como ponto de
referência, em torno do qual as relações sociais deveriam girar: momento em que se
manifestou a rebeldia do subjetivo contra o objetivo. Essa postura acarretou a
autonomia do autor diante de seu texto, passando a ser representado por meio de
um narrador nele implicado. A presença de um “eu” enunciador acabou por
conclamar a presença de um receptor que se constituiu como um complemento na
estrutura comunicativa.
Desde então, o receptor, ou interlocutor, é reconhecido e previsto no plano
“macrotextual”, ou seja, no texto como um todo, fazendo com que o autor não seja
mais figura una no processo de construção textual. Deste modo:
O autor literário parece abdicar, assim, de sua posição de autoridade que
sabe e pode ensinar, e equilibra o seu (não) saber com a capacidade de
percepção do leitor, esse outro considerado então peça fundamental na
comunicação e que deve, portanto ser conquistado, seduzido, convencido,
objetivos para os quais se presta à maravilha a arte de persuasão em que
constitui a ironia, no seu aspecto retórico. (DUARTE, 1994, p.9).
Ainda segundo Duarte (1994), a ironia é definida, tradicionalmente, como
figura de retórica em que se diz o contrário do que se quer dizer, tendo que se
reconhecer a mentira, ou fingimento, como atitudes potenciais no processo de
instauração da ironia. Basicamente, tal processo consiste em falar por antífrases,
tendo que se ampliar o “conceito de “contrário” para “diferente”, e se considerar que
a ironia “expressa” muito mais do que diz”. (p.9).
Na sua constituição verbal, Maria Helena Paiva (1961) acrescenta que a
ironia retórica corresponde ao “nível microcósmico” de interpretação, restrito à
análise de frases isoladas, isso porque é sustentada por uma função semântica,
sinalizada por Freud (1996).
107
Por sua vez, Linda Hutcheon (1981) constata que mais que uma antífrase,
responsável pelo contraste semântico entre o que é afirmado e o que é sugerido, a
ironia também possui uma função pragmática, encarregada de sinalizar uma
avaliação. Essa avaliação sim é que estabelece contraste de sentidos, julga,
questiona e, muitas vezes, revela a atitude do enunciador perante o texto,
conclamando a participação do enunciatário na interpretação e na avaliação do que
leu.
Lélia compartilha desse conceito e acrescenta que a ironia se apresenta como
uma estrutura comunicativa consumada pela consciência de que nada pode ser
considerado irônico se não for proposto e visto como tal, função esta que tem o
ironista como articulador da linguagem e das idéias subsidiadas pelo propósito
irônico, que só se completa numa recepção capaz de captar a duplicidade de
sentido e a inversão ou, somente, o contraste existente entre a mensagem enviada e
a, de fato, pretendida; assim se constitui a função pragmática, pertencente ao
domínio “macrocósmico” (textual), conforme mencionado mais acima.
Notamos desse modo, o cruzamento de informações advindo de vários
autores, que vão delineando a ironia, ora com o acréscimo de novas observações,
ora com a divergência de um ponto de vista ou outro. Isso, porque a ironia é um
fenômeno que permite várias organizações conceituais.
Na crônica Bobos I, ao ser narrada a curta trajetória de um bobo na corte,
cujo rei tem como marca a arbitrariedade, pretende-se mostrar que, apesar de a
crônica se referir à Idade Média ou a qualquer época que tenha como forma de
governo a soberania, o que evidencia a concentração de poder, a situação é
arquetípica e facilmente identificável em qualquer época, confirmando a
atemporalidade e a universalidade desse tipo de comportamento humano, isto é, o
fato de que qualquer pessoa detentora do poder, quando se com total autonomia,
acaba fazendo uso abusivo dela, sobretudo ao se ver ridicularizada, como acontece
com o rei da crônica. Com isso, percebemos que a ironia, aqui, não consiste em
mostrar o contrário do que traduz o enunciado, mas, simplesmente, o sentido na sua
complexidade, na sua profundidade, tomando uma proporção maior no texto, que
permite identificar a seriedade do dito quando se ultrapassa o sentido puramente
cômico.
Reconhece-se, assim, o humor e a ironia como reveladores de verdades
normalmente censuráveis, mas ao mesmo tempo bastante presentes na vida
108
humana. É a partir do reconhecimento da ambivalência do riso que observamos seu
papel destronante, uma vez que tem a capacidade de rebaixar qualquer um,
independentemente da posição que ocupa.
Na crônica Ri, Gervásio, também se deve ir além do expresso no enunciado,
não focando somente o antagonismo da mensagem que se faz explícita, mas é
necessário perceber sua amplitude de significações, suas ramificações de sentido
presentes na dicotomia alegria/tristeza e riso/choro, pois são essas as emoções que
são suscitadas na história, sobretudo quando se parte da tragicidade da vida da
personagem, relatada de forma cômica. A narração, desse modo, possibilita análises
advindas de várias perspectivas, e cada uma delas vem acompanhada de uma
reação diferente: na perspectiva do leitor, que faz uma leitura superficial, a reação é
basicamente um riso prazeroso, de regozijo; na perspectiva do leitor-modelo, que
percebe as estratégias traçadas pela ironia, sendo capaz de atribuir valor ao texto, a
reação, num primeiro momento, é rir também, mas logo após (ou juntamente com) o
riso, manifesta-se o sentimento do contrário, ou seja, a melancolia acompanhada de
reflexão, que faz com que sobrevenha a esse leitor-modelo a alteridade, isto é, o ato
de se ver através do olhar do outro, ou por meio de uma situação vivida pelo outro,
no caso, no lugar da personagem dramatizada comicamente, que, por sua vez, sob
sua perspectiva, reage com o choro e com o riso (forçado).
Conforme se pode notar, é sensato afirmar que mais de um tipo de ironia
pode ser aplicado às crônicas que constituem nosso corpus. Desse modo, após
termos tomado, brevemente, os conceitos da ironia verbal e um pouco dos conceitos
de outros teóricos, a fim de elucidar como se constitui o discurso até o presente
momento, vamos agora, basicamente, nos guiar pela visão de Lélia Parreira Duarte
(1996), com o objetivo de discorrer sobre os conceitos acerca da ironia romântica,
chamada assim porque ganhou foros de cidadania no final do século XVIII.
Concordamos com o ponto de vista da estudiosa, que de forma bem didática
e aclaradora, elucida tais conceitos, propondo a ironia como um dos artifícios
utilizados para consolidar o caráter fictício ou, como ela melhor coloca, o fingimento
na literatura, como forma de conquistar e prender o leitor.
Esse fingimento pode manifestar-se de várias maneiras, e uma delas é pelo
uso da ironia retórica, citada anteriormente. É uma ironia de fingida inclinação
monológica, pois, “colocada a serviço das ideologias, finge ignorar o aspecto
filosófico da linguagem, a sua constituição fluida e o deslizamento de sentido
109
resultante da impossibilidade de fixar significantes a significados”. (DUARTE, 1994,
p.9). Além disso, objetiva salientar “verdades” e criticar irregularidades de normas
sociais ou estéticas, segundo a visão dessa autora.
A ironia romântica, por sua vez, “coloca em crise a literatura como
representação e/ou crítica da realidade, como busca de resposta a questões e como
tentativa de atingir o absoluto”. (DUARTE, 1994, p.10). Ela amplia e aprofunda o
fingimento existente na ironia retórica, uma vez que é acrescentada a auto-ironia, ou
seja, a plena consciência do autor em assumir o seu texto como produto de
construção lingüística e ficcional, e não mais como mero objeto mimético. Com a
ironia romântica, o discurso se expõe como construção laboriosa da linguagem,
mostrando os recursos dos quais se vale para a sua plena efetivação. Ainda, o
reconhecimento do eu e da opinião individual implica a valorização do outro e,
sobretudo, a busca do dialogismo, base da ironia, que se manifesta no texto a partir
de contradições e/ou contrapontos e distanciamento. Porém, não se trata apenas de
expressões incompatíveis entre si pelo uso de antífrases, por exemplo, mas,
principalmente, de uma atitude crítica que permeia todo o texto, concedendo uma
nuança especial a ele.
Através da ironia, o Romantismo deixa de ver a obra como imitação, para
vê-la como invenção da realidade: o eu se apresenta dramatizado e
dividido, manifestando-se através de um redimensionamento do tempo, da
consciência da representação, da duplicidade e/ou da ambigüidade entre
afirmação e negação. (DUARTE, 1994, p.11).
A ironia romântica usa também o humor, chamado ainda de ironia
humoresque ou de segundo grau, cuja intenção é sustentar o caráter ambíguo do
discurso, a fim de confirmar a impossibilidade de estabelecer um sentido claro,
definitivo e único ao texto. A ironia romântica fundamenta-se ainda, certamente, na
socrática, que usa o método maiêutico para induzir o interlocutor ao pensamento e à
aquisição do conhecimento, por meio de um artifício que destrói qualquer opinião
isolada, por colocá-la em contato com um contexto mais amplo ou estranho e por
apresentar sucessivas indagações que não encontram respostas, mas sim, vazios.
Ao negar as plenitudes e as verdades consideradas “absolutas”, esse tipo de ato
irônico possibilita a existência de lacunas conceituais impossíveis de preencher,
criando espaço para outro sujeito, isto é, para o interlocutor.
110
Desse modo, o interlocutor de Veríssimo deve realizar uma leitura que vai
sendo decodificada, em cujo término ele poderá ficar sem reação ou por não captar
e não alcançar, de imediato, um sentido pleno e amplo, que exige contextualização,
ou por considerar o texto simples e breve demais para conter nele algo relevante do
ponto de vista analítico. Vê-se, desse modo, que as lacunas, podem ser
preenchidas por meio de um olhar inferencial e arguto sobre o enunciado irônico, a
fim de que a mensagem implícita seja efetivamente reconhecida e validada em seus
múltiplos sentidos, desde que autorizados pelos indícios da linguagem.
O cômico, o riso e o humor, ainda segundo Duarte (1994), são modalidades
que reagem como respostas a um mundo fragmentado, inacabado, caótico, do qual
o homem toma consciência, e, no caso do autor, faz com que o leitor reflita sobre
sua escritura, através da destruição de uma espontaneidade ilusória sobre o ato da
criação, com o objetivo de revelar o trabalho e o empenho do criador frente ao seu
texto, a partir de uma voz enunciadora autônoma e consciente. É em meio a esse
processo que o autor se encontra entre duas posições, uma cética e outra
entusiasmada, o que impede o leitor de tomar aquilo que lhe é apresentado como
verdade, mas, que é relativo e inacabado, dependente de um receptor para ganhar
vida. Entendemos, desse modo, que a ironia romântica expõe “o caráter de
representação do texto: uma representação cuja produção fica evidente diante do
leitor ou do expectador”. (p.12).
Reconstitui-se, com isso, o conceito de inspiração, a qual não é mais pensada
como divina, oriunda de um plano transcendental, mas, sim, como engenho e arte,
em que artifício, trama e construção são os princípios básicos do processo que, de
fato, materializa uma obra artística.
Em relação à auto-ironia, pode-se dizer que ela é sinônima de humor, que,
para alguns autores, “o humor consiste exatamente numa ironia em que o objeto é o
próprio eu que enuncia, ou a ele se refere”. (DUARTE, 1994, p.12). Além disto, o
humor se preocupa mais com o discurso, com o significado, com a enunciação,
enquanto a ironia explora mais o enunciado, a diegese, além de ter sempre um
objetivo a alcançar.
O que também diferencia a ironia do humor é a perspectiva de que cada um
desses comportamentos assume, com respeito às relações de poder existentes na
enunciação e no enunciado, em uma determinada obra.
111
Na ironia, o poder ou o desejo de poder está no fato de o ironista se valorizar,
demonstrando uma suposta superioridade e se colocando como figura central do
discurso. Isso acontece ao depreciar ou mesmo elogiar exageradamente o alvo de
sua ironia. Valorizando o autor, a ironia reconhece a autoridade deste, por estar
supostamente comprometido com a verdade, que serve para a confirmação e o
estabelecimento dos valores e, conseqüentemente, das ideologias.
O humor busca questionar e subverter essa pretensa superioridade e
autoridade. Ao invés de depreciar ou elogiar e fazer rir do outro, o homem, por meio
do humor, se mostra capaz de rir de si mesmo, valendo-se dos mesmos recursos
que a ironia emprega, como a antífrase, o oxímoro, a inversão da lógica. Porém, o
humor vai mais além, pois “desamarra as referências ao rir também delas”.
(DUARTE, 1994, p.13).
Além de o humor assumir-se como representação, ou seja, como fingimento,
também exibe os elementos que emprega em sua edificação, revelando os artifícios
da construção textual e buscando com isso uma demonstração não de
superioridade, de dominação, nem de ludíbrio do leitor, mas o estabelecimento de
relações comunicativas entre seres humanos que têm os mesmos problemas
existenciais, os mesmos desejos e os mesmos medos.
Veríssimo faz humor no sentido de expor seu processo de construção textual
de forma prosaica, sobretudo em Bobos I, na qual exibe os recursos utilizados para
instaurar a comicidade e suscitar o riso no leitor, recursos que são, igualmente, os
meios pelos quais o bufão se vale para fazer rir o rei e sua corte. Desdobra-se,
desse modo, a nosso pensar, a figura do narrador-cronista, que aqui pode estar
camuflado como personagem, porque assim como o bufão, também tem o propósito
de fazer rir, gerando a ambigüidade. Talvez seja esta, de fato, a intenção de
Veríssimo, isto é, a de se colocar como um bufão, um articulador do riso, que, por
meio do discurso cômico, quer, na verdade, deixar pistas que possibilitem ao seu
interlocutor o desvelamento da seriedade implícita em sua escritura:
- O que é que você faz? – perguntou o Procurador Real.
- Tudo. Só não engulo espada.
- Imitações?
- Faço uma galinha imitando um homem.[...]
- Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede. [...]
Foi uma charada em forma de verso que o bobo propôs: “Se o erro de um
bobo é bobeada, o erro de um papa é..” A Rainha ficou tesa no trono e o
Rei quase levantou. Mas o bobo completou: “...Impossível”. Todos
112
respiraram aliviados. O resto da apresentação foi um sucesso. Nunca o rei
foi tão insultado.
O bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um.
Criticou as orelhas de um, o bigode de outro, a barriga de um terceiro. O Rei
dava gargalhadas. Todos davam gargalhadas. (VERÍSSIMO, 1982, p.54-
55).
Há, no humor, conforme observado, uma separação de vozes que se no
plano da linguagem, visto que o eu é transferido do mundo concreto, empírico, para
um mundo organizado na e pela linguagem, cujo poder está em diferenciar ou
modificar o homem do contexto de que faz parte. Isto porque a linguagem divide o
homem em um “empírico self” (DUARTE, 1994, p.14), influenciado por uma cultura e
nela inserido, e um “self” (p.14) que consegue perceber essa influência e finge tomar
distância desse mundo que o individualiza, numa tentativa de distinção e auto-
definição.
Enquanto “self” inserido no mundo, o sujeito também está submetido à
tradição e à cultura de seu meio, passando a ser simplesmente representante e
expressão dessa cultura; “ao tomar consciência dessa sujeição, ele pode,
entretanto, fingir que tem autonomia e assim fazer um exercício de liberdade,
através do humor”. (DUARTE, 1994, p.14). Assim procedem os humoristas (ou
cronistas que se valem do humor) como Veríssimo, pois este se liberta das
mordaças impostas pelas normas por meio do texto literário, em que faz críticas ao
individuo e à sociedade, sem ser acusado ou punido por isso, sentindo-se sujeito
plenamente livre pelo exercício da linguagem, sobretudo pelo uso das artimanhas
que o discurso cômico e humorístico oferecem.
Enquanto inserido no contexto social, o autor literário geralmente se vale da
ironia e com ela faz sátira, isto é, critica qualquer desvio em relação às normas de
organização social. Na crônica Bobos I, essa atitude é concretizada na voz do
bufão, que ridiculariza o rei e seus convidados, a fim de provocar o riso. Desse
modo, os amigos do rei, representantes do poder, são satirizados por seu
comportamento banal, frívolo e vazio, e por algum outro pormenor que atraia a
atenção.
Compreende-se, assim, que, tanto a ironia quanto o humor, constroem-se em
meio às normas culturais e sociais, e são influenciados por elas; porém, “enquanto o
humor simula ignorá-las ou afrontá-las, a ironia acata-as e as observa”. (DUARTE,
1994, p.14). O humor exibe sua intenção de causar contradições, fingindo ser capaz
113
de se opor às normas interiorizadas pelo sujeito que as produz, e que se sabe
amordaçado e conduzido pela linguagem.
Veríssimo é, desse modo, ironista e humorista, pois, ao mesmo tempo em
que critica desvios das normas sociais interiorizadas pela sátira, também revela uma
postura de oposição e subversão em relação a tais normas, destacando as
incoerências e as injustiças provindas de sistemas sociais impostos, presentes nas
regras que os representantes desses sistemas geram e no comportamento que
assumem. Em Bobos I, o bufão, figura emblemática explorada pelo cronista, ganha
voz para tecer uma crítica a toda e qualquer arbitrariedade e autoritarismo presentes
nos grupos sociais. É, portanto, por meio de uma crítica sustentada pelo cômico que
são afrontados os preceitos e valores da tradição, da cultura vigente e até da própria
linguagem. O fingimento, próprio da ficção, sustentado pelo cômico, deixa o tom da
crônica menos grave; ao contrário, torna-a mais leve e fácil de digerir.
Em relação a Ri, Gervásio, a crítica está na incongruência a partir da
dicotomia trágico/cômico, a qual ganha relevo pelo uso do humor imbricado e
sustentado pela ironia, que permite um diagnóstico do modo como a sociedade
induz e modela seus indivíduos e suas ações. Trata-se de uma sociedade que,
segundo a crônica, leva as pessoas a fazer coisas que não querem e, desse modo,
muitas vezes se vêem desarticuladas e deslocadas de seus grupos, sobretudo
porque não mais expressam a satisfação, o regozijo, a alegria de viver, e/ou as
habilidades e reações que delas se esperam. Reações que não devem comprometer
a estrutura social, cujas ações devem ser pautadas no bom-senso, na sensatez, no
respeito e no cumprimento dos preceitos hierárquicos.
Na crônica, a claque de humor, como acontece em grande parte dos
programas cômicos, tem o intuito de tornar o mundo uma grande festa, anulando a
lucidez crítica, oriunda da auto-consciência e da plena consciência dos problemas
que afligem as pessoas, e também a profundidade psicológica que as envolve. A
impressão que se tem é de que tudo deve ser feito para mostrar o lado festivo e
alegre da vida, a fim de tornar os indivíduos, pelo menos, aparentemente mais
satisfeitos e felizes. Essa garantia, porém, de satisfação coletiva implica a
indiferença em relação ao drama vivido pela personagem que melhor ri e que mais
faz rir, como acontece com a personagem Gervásio.
Compreendemos, ainda, que o humor envolve uma espécie de jogo lúdico,
uma armadilha textual, que incidirá sobre o receptor, mas que exige dele capacidade
114
para percebê-la e decodificá-la. Portanto, trata-se de um jogo consciente de auto-
esquecimento ou fingimento, realizado, sobretudo, no campo da metalinguagem. O
leitor, iludido com a idéia de ingenuidade do autor, sente-se superior, mostrando que
também no humor uma relação de poder. Assim, o leitor enreda-se na armadilha
textual criada por seu próprio sentimento (fingido) de superioridade.
No entanto, a voz que se faz ouvir, de início, não é a de alguém consciente da
armadilha e do jogo textual de que participa, mas a voz da linguagem consciente de
si mesma. Deste modo, a voz consciente da ironia tradicional é superada pela voz
do texto auto-consciente, revelador dos elementos constitutivos da estrutura do
discurso, da organização da linguagem que se volta para si mesma, fazendo alusões
e confessando fazê-las, ou seja, “identificando para o receptor interessado os
códigos utilizados na sua construção”. (DUARTE, 1994, p.15).
A voz enunciadora, que vez ou outra se desdobra sob várias perspectivas,
reconhece e admite uma sujeição às normas culturais e sociais, fingindo ser superior
a elas e assumindo, assim, o exercício da linguagem. Dessa forma, o enunciador
anula certezas, faz do discurso uma expressão livre, transgressora e subversiva,
pois, ao instrumentalizar recursos de inversão jocosa, de ruptura, de
descontinuidade, permite o inesperado e a ausência, valorizando a ambigüidade na
comunicação. Tais recursos imprimem não um novo olhar à realidade, bem como
um questionamento crítico frente a conceitos e figuras normativas e preservadoras
da linguagem.
Tudo isso nos leva a pensar que o jogo literário afasta-se de e hostiliza a
objetividade, impondo sua fisionomia ficcional e, sobretudo, artística que, rompendo
com qualquer pragmatismo e livrando-se (ou fingindo livrar-se), na medida do
possível, das mordaças da língua, tenta, ludicamente, libertar o homem da opressão
inerente à condição humana.
115
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A existência de vários tipos de riso, como o desbragado, o corrosivo, o
contido e reflexivo, o lúdico etc., corroboram a complexidade que marca tal
fenômeno. Foi, no entanto, exatamente essa complexidade que nos estimulou a
realizar o presente estudo, no qual que se destacar o desejo de compreender um
pouco mais sobre as questões relativas ao riso e ao risível, mesmo que por
caminhos incertos ou tortuosos, uma vez que a teoria nem sempre consegue definir,
conceituar ou responder aos problemas que circundam esse objeto, como se tentou
demonstrar nesta dissertação. Procuramos, então, apresentar o riso de forma a
ressaltar sua dialogicidade e suas múltiplas formas, performances e faces,
sobretudo nas duas crônicas de Luís Fernando Veríssimo selecionadas para compor
o corpus desta pesquisa.
Qualquer riso é fruto de situações risíveis. Tais situações compreendem
gestos, fatos, formas, falas etc.; desse modo, pode-se concluir que qualquer ser
humano e/ou vivo pode servir de objeto do riso. Em nosso trabalho, estudamos o
risível na arquitetura do texto cronístico, ou seja, construído na e pela linguagem, o
que dependeu da análise de diversos recursos destinados a tecer o discurso cômico
e humorístico, para só então, concedermos maior abrangência ao riso, no que
concerne a sua significação nos vários contextos suscitados pelas crônicas.
Esse discurso cômico e humorístico, por sua vez, se manifestou, em nosso
trabalho, não por meio da sátira, articulada pela voz do bufão, na crônica Bobos
I, mas também por meio da confluência de diferentes elementos, como o cômico e o
trágico, na crônica Ri, Gervásio. Todos eles sustentados e interligados pelo fio
condutor da ironia, que permitiu a vinculação da comicidade com a perspectiva séria,
ressonante de um certo tipo de riso, isto é, aquele suscitado pelo humor reflexivo de
Luís Fernando Veríssimo.
Optamos, intencionalmente, por abordar o riso no gênero cronístico, porque
observamos e defendemos uma recorrente aliança entre a crônica e o universo do
risível, sobretudo, o humor, justificada pelo fato de o cronista recorrer com
freqüência a ele, a fim de captar as minudências do cotidiano e tecer seus
comentários subjetivos sobre as mesmas, consciente de que esse humor revela a
grandeza do fato pequeno - retratado principalmente na crônica - por meio da
116
exploração da potencialidade criativa das palavras, ao mesmo tempo em que se
ajusta à leveza do texto cronístico. Ainda, o tom humorístico da crônica leva o leitor
a recuperar seu senso crítico enquanto se diverte; daí a abordagem da seriedade do
riso, enfoque do presente trabalho. A aproximação torna-se, ainda, interessante, em
virtude das características salientes da crônica, que a narrativa curta, a inclinação
para a brevidade e o hibridismo são também traços típicos do humor e do riso.
O surgimento da imprensa, que fez do jornal o primeiro veículo da crônica,
estreitou a relação desta com as características do jornal, reiterando, desse modo, o
hibridismo presente no gênero, pois transita entre a referencialidade e o comentário
subjetivo, estando, quase sempre, no limite do real e do imaginário, entre a literatura
e o factual, hibridização essa que é o resultado da transformação de um fato real
numa verdade inventada, ou então, de um discurso de invenção em realidade.
Isso não significa que a crônica possa ser entendida como gênero menor.
Tentou-se ressaltar, ao contrário, que, apesar dessa relação com o jornal (que tende
a anular um compromisso maior com o futuro), da aparente despretensão, do
laconismo, de uma intencional desestruturação da sintaxe e da freqüente
abordagem de temas pouco relevantes do ponto de vista crítico, apontados no
decorrer do nosso trabalho, a crônica literária - depois de uma primeira leitura, em
que deixamos de ser leitores ingênuos - é arte e manha, e o responsável por
eternizá-la ou fadá-la ao esquecimento é o cronista, que revisita e percorre os
meandros da existência humana com o que tem de mais subjetivo, isto é, sua
vivência, resgatada, sobretudo, por meio da escritura e estilo próprios.
Com seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante
brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou
devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos,
transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das
nossas dores e alegrias. (SÁ, 2005, p.11).
Talvez seja por essa condição simples assumida pela crônica, que os textos
desse gênero ficam mais perto de nós, leitores, como postula Antonio Candido, no
primeiro capítulo desta dissertação. Veríssimo, que também assume – ou finge
assumir - uma postura descomprometida diante de seu texto, confere à crônica um
valor literário que exige certa habilidade do leitor, uma vez que o meio para fazer da
vida um retrato, seja ele verossímil ou insólito, é o humor, que sustentado sobretudo
pela ironia, necessita de argúcia para que a mensagem seja decodificada.
117
Como visto, nosso trabalho tentou evidenciar não um aspecto unificador
(pois o riso e a crônica se mostram zonas de tensão, que carregam como marcas a
hibridização, o dialogismo, a ambivalência e a ambigüidade), mas também
tangencial em relação a outras áreas do conhecimento, isso porque procuramos
investigar as principais características do riso não pelo viés literário, mas também
por um prisma histórico e filosófico, devido a sua complexidade, o que exigiu uma
distância crítica e um olhar de contraste; olhar este que nos impeliu a fazer distinção,
embora sucinta, entre o cômico e o humor, fundamentada sobretudo na obra O
humorismo de Pirandello (1996). Mesmo assim, observou-se, principalmente a
partir da leitura da obra A comicidade e o riso de Propp (2002), o quanto é
dificultosa a conceituação do cômico no âmbito da literatura, pois, mesmo
enveredando por diversos campos de estudo, torna-se difícil demarcar, definir,
conceituar ou mesmo explicar a exata dimensão da comicidade, cuja complexidade,
parece-nos evidente, sobretudo, no capítulo 2.2, A opacidade do cômico, em que
fica salientado seu caráter de terreno movediço, portanto, passível de hibridização e
sujeito à ambigüidade.
No capítulo 2.3, apresentamos alguns dos artifícios utilizados para suscitar o
riso, não em nós, leitores da crônica humorística, mas também nas próprias
personagens da narrativa, que vivenciam situações habitualmente risíveis, isto é,
uma claque de humor em Ri, Gervásio e uma bufonaria em Bobos I. Por esse
motivo, observamos e ressaltamos, em nosso estudo, uma função meta-cômica e
meta-humorística.
Além disso, essa abordagem do riso no próprio enredo da narrativa nos
permitiu refletir sobre uma condição conflitante e paradoxal sobre ele, que se
encontra em toda trama textual, e que se confirma, em nosso trabalho, sobretudo no
capítulo de análise (capítulo 3), isto é: a evidente seriedade que abarca o fenômeno
do risível. Diante disto, surgiu a seguinte questão: como o cômico, ou aquilo de que
se pode rir, é capaz de enveredar para a circunspecção? Nossa análise tentou
respondê-la, na medida do possível, clareando os caminhos que indicam como isso
pode acontecer.
Um dos recursos explanados, que tem caráter derrisório, mas também
apresenta uma face grave, é a sátira, que, na crônica Bobos I, encontra-se
estreitamente vinculada à ironia e ao humor, ambos impressos de forma indelével,
118
na escritura de Veríssimo, de modo a consolidar uma das marcas principais de seu
fazer cronístico.
É válido reiterar que a sátira, no geral, implica distanciamento crítico,
julgamentos de valor, e ainda tem, como estratégia retórica, a ironia. O prazer
irônico provém da cumplicidade com o leitor, que, participando de um jogo
intertextual, pode interpretar e avaliar conjuntamente com o produtor do texto.
Notamos que o riso desdenhoso ou irônico, próprio da sátira, humilha as suas
vítimas, hostilizando qualquer atributo de superioridade, tal como acontece com o rei
em Bobos I. Destacamos, neste caso, Frye (1973), que conceitua a sátira como
“ironia militante”, cuja repreensão abrupta, censura direta aos defeitos ou, uso de
uma tendência irônica mais maliciosa, sempre manifestam uma atitude moralizante:
“rir para corrigir”, lembrando o preceito latino do “ridendo castigat mores”.
Desse modo, camuflado de entretenimento gratuito, o ataque satírico
influencia a conduta humana, almejando a correção das anomalias, injustiças,
desatinos e contradições da sociedade.
[...] como a peste e como a fome, a sátira é guerra caritativa: fere para curar
[...] age como castigo que, desvelando e amplificando o mal, impõe a
penitência. (HANSEN, 2004, p.48-49).
O alcance crítico e demonstrativo da sátira (acompanhado pelo esgar irônico
do riso) conquista a simpatia do leitor, que sente prazer em visualizar pessoas sendo
alvo de diatribes de toda ordem, vícios sendo extintos, instituições sendo demolidas,
abrindo um sorriso de acolhida à liberdade do satirista, ou manifestando um riso
debochado de cumplicidade, tal como acontece na relação público/bufão.
Portanto, deformando e rebaixando por meio de seus vários recursos, a
sátira, como demonstração que amplifica os vícios, corrige (ou ao menos intenciona
corrigir) os males e revela as carências, exibe a desproporção, para que o leitor
compare o que com o que sabe, manifestada no ensinamento, no prazer e na
surpresa, que suscitam a reflexão.
Corrobora-se a ambigüidade e a ambivalência do riso, também e, sobretudo,
na crônica Ri, Gervásio, em que se a confluência do elemento trágico e do
cômico. Mesmo revestida de comicidade, a crônica envereda por um caminho que
nos induz à essência contrastante do humor, isto é, certa melancolia gerada pelo
sentimento do contrário. Com isso, Veríssimo nos mostra que não se pode colocar a
119
alegria e tristeza em campos antagônicos, mas promover uma interação pacífica
entre ambos.
No capítulo 3.3, o último da dissertação, dedicado à ironia, tentou-se
sistematizar esse poderoso recurso argumentativo, estilístico e também ideológico,
primeiro como procedimento verbal, apontado por Beth Brait (1996), depois por meio
de uma vertente, explicitada por Lélia Parreira Duarte (1994), que nomeia a ironia de
romântica, cuja característica mais marcante está em se reconhecer como
construção de linguagem. A ressonância de diversas vozes na crônica é prova de
que a ironia é um processo discursivo que, cujo aspecto crítico, seja ele de cunho
social ou existencial/filosófico, conta com a cumplicidade de um leitor ideal, que, ao
decodificar o dito irônico, por meio da percepção do caráter subversivo presente no
cerne da ironia e de pistas deixadas pelo autor, garante o sucesso da intenção
irônica.
Percebe-se com tudo isso, que o riso, seja irônico, sarcástico ou lúdico, não
conhece terrenos proibidos, pois aborda, sob enfoque dessacralizador, diversas
áreas do conhecimento; brinca com o poder de Deus e dos homens; invade a
privacidade humana; ridiculariza os detentores do poder; vira o mundo “ao avesso”;
enfim, faz uma leitura crítica e lúdica - da realidade, não podendo, assim, apartá-lo
do pensamento nem daquilo que se considera sério.
Por isso, em muitos períodos da história, o riso foi condenado à marginalidade
e/ou considerado como um elemento negativo: os pensadores da antiguidade
clássica, como Platão e Sócrates, por exemplo, entendiam o efeito risível como uma
espécie de prazer falso, o momento do irrelevante, experimentado por homens
medíocres, privados da razão. Foi também (e principalmente) a partir dos preceitos
de Aristóteles que a comédia e, conseqüentemente, o riso adquiriram aspectos
negativos, em falas como: a comédia “quer representar os homens inferiores”, a
tragédia “quer representá-los superiores aos homens da realidade”; “Aquele que
realmente agrada é o que o se permite tudo[...]”. (MINOIS, 2003, p.73). Note-se
que Aristóteles valoriza a atitude daqueles que, em suas brincadeiras, permanecem
pessoas alegres, que se revelam capazes de provocar um riso contido, mostrando-
se indivíduos de espírito refinado. Essa marca de bom gosto e equilíbrio é o
resultado da domesticação do riso, necessária para a harmonia e equilíbrio sociais.
Necessidade esta que pairava também sobre a Idade Média, uma vez que os
rituais coletivizados, em que gracejo e seriedade se conjugavam, numa sucessão de
120
lamentos, lágrimas e riso, sem qualquer repúdio ou interpretação contraditória,
simbolizavam a ocasião própria para a expurgação e o extravasamento, a fim de
garantir a ordem nos demais momentos da vida social. A natureza ambígua do riso
era manifestada, portanto, em certas festividades, em que o riso coletivo não
impunha uma separação rígida entre sisudez e hilaridade.
Tal confluência entre los opostos é explicada como decorrência do
pensamento do período, fundamentado em um riso mais coletivo, ritualizado,
sedimentador de identidades sócio-culturais.
Oposta a estas nuanças carnavalescas, centradas em ideais coletivos, anti-
aristocráticos e revigorantes, a modernidade seria a responsável pela existência de
critérios de separação entre o risível e a seriedade. Apoiados na razão e em
princípios morais perpassados pelo individualismo, os aspectos do mundo moderno,
segundo Macedo (2000), seriam os elementos motivadores do descrédito ou do
pouco mérito reservado ao riso:
[...] O riso medieval é coletivo, ritualizado, dando conta de realidades sociais
e culturais orientadas por condutas próprias e específicas. O riso moderno,
codificado e expurgado de suas conotações grosseiras e obscenas, valoriza
atitudes individuais e fustiga comportamentos não condizentes com a lógica
e o bom senso. (MACEDO, 2000, p.254).
De qualquer maneira, seja o desprestígio atribuído ao cômico uma
conseqüência da visão de mundo de pensadores da antiguidade ou da racionalidade
e lógica do período moderno, procuramos enfatizar, ao longo desta dissertação,
como explicita o próprio título do trabalho A seriedade do risível -, que, sendo
como é uma forma de conscientização -, o riso não pode ser considerado como
irrelevante, pois se associa ao pensamento lúcido e crítico, revelando as
incoerências das organizações sociais, contestando e abalando preceitos
sedimentados, o que resulta na desconstrução de paradigmas e até na correção das
falhas humanas, na tentativa de ajudar a todos a apreender o mundo de um ponto
de vista risível e epifânico. Portanto, o riso é fonte de relaxamento, de prazer, mas
também de captação e aquisição de saberes com sabor.
121
ANEXOS
BOBOS I
O bobo daquela corte tivera um acidente de trabalho o Rei não entendera
uma piada e mandara executá-lo e o posto estava vago. O Procurador Real foi
encarregado de procurar um novo bobo. Reuniu-se com seus assessores para fazer
um levantamento do mercado de bobos.
- Quem é que está disponível?
- Bem... Tem o Gros.
- Ele não estava com o rei da Saxônia?
- Foi despedido. O rei queria piadas novas sobre chulé e flatulência e ele
estava se repetindo.
- Hmmm. Decadente. Não se consegue o Gubio?
- Acho difícil. Está fazendo grande sucesso na Lombardia. É o reino mais
divertido da Europa, atualmente. Eles não o largam.
- E o velho Pim?
- Muito trocadilho, imitação de galinha... Ninguém mais agüenta.
- Tem um cara novo... – interveio um dos assessores.
- Quem?
- Serbo, o Croata.
- Onde é que ele já trabalhou?
- Fez um teste na corte da Bulgária. Bom material. Fino. Inteligente. Não
aprovou porque o rei dormiu.
- Não sei...
- Quem sabe a gente conversa com ele? Sem compromisso.
- Mandem buscá-lo.
Serbo, o Croata, foi localizado numa caravana de saltimbancos na Bavária.
Foi chamado com urgência e em menos de dois meses apresentava-se ao
Procurador Real, com seu alaúde e seu baú de truques. Era moço e entusiasmado.
- O que é que você faz? – perguntou o Procurador Real.
- Tudo. Só não engulo espada.
- Imitações?
122
- Faço uma galinha imitando um homem.
- Isso é diferente...
- Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede. Com
bom gosto, é claro.
Ficou combinado que Serbo ficaria em experiência durante um mês. Se
agradasse ao Rei, seria incorporado à Corte. Ganharia comida, bebida e um canto
só seu no canil. Antes de começar, quis saber:
- Há algum assunto proibido?
- Nenhum. Fora a papada da Rainha, nenhum.
- Posso fazer piada sobre tudo?
- Pode.
- A cara do Rei? O cavalo do Rei?
- Tudo.
- Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro?
- Pode até chamá-lo de animal. O bobo pode dizer tudo para o Rei. Na cara.
O Rei só não gosta de sutileza.
- Como, sutileza?
- Sugestão. Insinuação. Aí ele manda cortar a sua cabeça.
- Serbo, o Croata, engoliu em seco. Apalpou a cabeça e comentou:
- Seria uma pena. Somos muito ligados...
- Outra coisa – disse o Procurador Real.
- O quê?
- Não fale mal de arqueiros.
- Arqueiros?
- O Rei pertence à Excelsia Irmandade dos Arqueiros Reais. Não admite
piada sobre arqueiros. Tudo menos arqueiros. Agora se preparar para a sua
primeira apresentação.
O bobo saiu enumerado nos dedos, para não esquecer, as três coisas
proibidas. Papada, sutileza, arqueiros. Papada, sutileza, arqueiros...
No começo da apresentação de estréia de Serbo, o Croata, houve um
momento difícil. Foi uma charada em forma de piada que o bobo propôs: “Se o erro
de um bobo é bobeada, o erro de um Papa é..” A Rainha ficou tesa no trono e o Rei
quase levantou. Mas o bobo completou: “...impossível”. Todos respiraram aliviados.
O resto da apresentação foi um sucesso. Nunca o rei foi tão insultado.
123
O bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um.
Criticou as orelhas de um, o bigode de outro, a barriga de um terceiro. O Rei dava
gargalhadas. Todos davam gargalhadas.
- O que é que o povo diz às minhas costas, bobo? – perguntou o Rei.
- Não querem ser injustos, majestade. Querem vê-lo pelas costas antes de
dizerem qualquer coisa.
Mais risadas.
- O povo quer ver a sua caveira, majestade.
- O quê?
- Para terem certeza de que os ossos são fortes e vossa majestade viverá
muito.
- Ah...
- Majestade continuou Serbo, preparando o seu gran finale, uma balada
safada com cem variações picarescas em torno do bacalhau responda se puder:
qual é o peixe que mais agrada à mulher?
O Rei ficou sério de repente. Chamou a guarda e ordenou:
- Tranquem-no. Ele será decapitado ao amanhecer.
Para o Procurador Real, enquanto o bobo era levado para a masmorra,
estupefato e arrastando seu alaúde, o Rei perguntou:
- Ele sabia que não era para criticar os arqueiros?
- Sabia.
- Pois então. Este reino é liberal. O bobo pode dizer tudo. Mas tem que
respeitar as regras. Decapitem-no. E arranjem outro bobo.
O Procurador Real foi procurar o bobo na masmorra. Falou:
- Eu disse que não era para ser sutil...
- Mas o que foi que eu fiz?
- Criticou os arqueiros.
- Como? Eu ia falar em bacalhau!
- Bacalhau? O Rei pensou que fosse namorado.
O bobo sacudiu a cabeça. Condenado por um erro de interpretação. Só
quando o Procurador Real estava saindo pela porta da masmorra é que ele se
lembrou de perguntar;
- E namorado, o que é que tem que ver com arqueiro?
124
Mas era tarde. A porta se fechou.
125
RI, GERVÁSIO
O produtor sacudiu a cabeça.
- Não estou gostando das risadas...
- As risadas?
O assistente esperava tudo menos aquilo. Esperava que o produtor criticasse
os quadros do show, o texto, as interpretações, a qualidade da gravação mas as
risadas?
- É. As risadas. Não sei. Estão diferentes.
- Mas é a mesma claque de sempre.
- Tem certeza de que não mudou ninguém?
O assistente foi se informar com o encarregado da claque. Era a mesma de
sempre. Gente aposentada atrás de um dinheiro extra.
Alguns eram veteranos de rádio. Outros tinham começado com a televisão.
Ganhavam pouco mas se divertiam.
- Só quem saiu foi o Gervásio.
- E o Gervásio fazia alguma diferença?
- Bem. Tinha uma risada boa...
- Tinha uma grande risada opinou Amelita, a mais antiga da claque. Uma
das melhores que já ouvi.
Amelita, segundo a lenda, nascera na fileira de trás de um auditório de rádio.
nascera aplaudindo. Era a alma da claque. E agora estava dizendo que Gervásio
era dos grandes.
- Ele ria por baixo explicou. Uma boa claque ri em três níveis. O baixo, o
médio e o alto. O riso baixo é o mais importante. É o que sustenta os outros dois.
Sem um bom baixo a claque perde consistência. Perde ritmo.
- Por que foi que o Gervásio saiu? – quis saber o assistente.
- Acho que estava com problemas em casa.
- Traga ele de volta – ordenou o assistente ao encarregado da claque.
Gervásio não estava com problemas em casa porque não tinha mais casa.
Fora destruída num incêndio, junto com todos os seus bens, inclusive a mãe de 80
anos. A mulher de Gervásio fugira do incêndio para a casa do vizinho, pelo qual
desenvolvera uma paixão súbita e ardente que nem os bombeiros mesmo que
126
tivessem chegado a tempo conseguiriam apagar. A filha mais velha de Gervásio
casara com um estivador inativo que, para não perder a forma, jogava a filha mais
velha de Gervásio como um fardo para cima do telhado e a pegava na volta, às
vezes. O filho de Gervásio se envolvera com traficantes de tóxico e estava jurado de
morte por três delegacias. O encarregado da claque comentou que o Gervásio
parecia triste.
- Ânimo, rapaz. O teu valor foi reconhecido. A produção quer você de volta no
programa de qualquer jeito.
Gervásio estava com o olhar parado. Não dizia nada.
- A claque decaiu muito sem você. Não precisa voltar, Gervásio.
Gervásio parecia não estar ouvindo.
- Você precisa voltar a rir, Gervásio.
Gervásio começou a chorar.
- Ninguém é indispensável sentenciou o assistente. E mandou contratarem
um substituto para o Gervásio. Alguém da claque recomendou um parente.
- Garantido? – perguntou o assistente.
- Garantido. Ri à toa.
O novo contratado foi um fracasso, no entanto. Ria na hora errada. Dava
gargalhadas quando era hora de risinho. Risinho quando era hora de silêncio. E não
era baixo. Amelita, a alma da claque, resmungou que como o Gervásio não
encontrariam ninguém. Gervásio era um profissional. Sem ele a claque não era a
mesma. As risadas não soavam sinceras. Não havia mais espontaneidade. Uma
tristeza.
Desta vez, foi o assistente em pessoa. Encontrou Gervásio no enterro do
genro. A filha mais velha de Gervásio caíra do telhado na cabeça do marido,
quebrando o seu pescoço. Fora um acidente, mas a família do marido prometera
vingança. Queria uma indenização. Gervásio não tinha dinheiro. O que escapara do
incêndio a mulher levara. E ainda por cima o filho foragido de Gervásio aparecera no
enterro, arriscando-se a ser baleado de três lados. O assistente teve dificuldade em
prender a atenção de Gervásio, que olhava nervosamente para todos os lados.
- Você tem que voltar, Gervásio.
Surgiu uma briga. Quem pagaria o enterro? A família do morto insistia que a
responsabilidade era do Gervásio.
- Você é indispensável, Gervásio – insistiu o assistente.
127
Vieram avisar que a polícia estava chegando para prender o filho de
Gervásio.
- Sem a sua risada, a claque não é mais a mesma. Volta, Gervásio. O filho de
Gervásio tentou desalojar o corpo do cunhado para poder se esconder da polícia
dentro do caixão, o que só aumenta a revolta.
- O que você sabe fazer é rir, Gervásio. Volta.
Foram todos parar na delegacia. Sentado num banco, Gervásio escondia o
rosto com as mãos. Ao seu lado, o assistente insistia.
- Volta, Gervásio. Aquilo lá, sem você, é uma tristeza!
Combinaram que, por um aumento de salário, Gervásio voltaria para a claque.
Precisava de dinheiro para sustentar a filha viúva, subornar os policiais que caçavam
o seu filho e pagar o enterro do genro. Mas a mulher o esperava na saída do estúdio
e levava todo o dinheiro. Gervásio pedia mais dinheiro. A verba para a claque era
limitada, mas o Gervásio valia tudo que pedisse. Segundo a Amelita, estava rindo
como nunca na sua carreira. Um riso aberto, contagiante. O produtor estava
satisfeito.
- Isso é que é risada!
E o Gervásio ria, ria de bater o pé. Um profissional, murmurava a Amelita. Um
verdadeiro profissional.
129
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______. Comédias da vida privada. Porto Alegre: L&PM, 1995.
______. Comédias da vida pública. Porto Alegre: L&PM, 1996.
______. A eterna privação do zagueiro absoluto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
______. Aquele dia estranho que nunca chega. Rio de Janeiro: Objetiva: 1999.
______. Histórias brasileiras de verão. Rio de Janeiro: Objetiva: 1999.
______. As mentiras que os homens contam. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
______. Borges e os orangotangos eternos. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
______. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
______. O Santinho. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
______. Banquete com os deuses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
______. Poesia numa hora dessas?!. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002
______.Internacional: Autobiografia de uma paixão. Rio de Janeiro: Ediouro,
2004.
______. O melhor das comédias da vida privada. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
135
Teses e dissertações
ANTONIO, Andréia Simoni Luiz. Muito riso, muito siso: a construção de tipos e
caricaturas em personagens de Luís Fernando Veríssimo. 298 p. Dissertação
(Mestrado em Estudos Literários) – Unesp, Araraquara, 2002.
BORGES, Roberto Carlos da Silva. Língua e estilo: Humor e Ironia nas crônicas
de Luís Fernando Veríssimo. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa)
UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
FERREIRA, Denir Camacho. A metalinguagem: gramática e conflitos nas
crônicas de Luís Fernando Veríssimo. Dissertação (Mestrado em Língua
Portuguesa) – UFRJ, Rio do Janeiro, 2002.
QUEIRÓZ, Silvio Galvão de. “Pera espelho de todol los vivos”: a imagem do
infante D. Henrique na Crônica da Tomada de Ceuta. Dissertação (Mestrado em
História Medieval) – UFF – Niterói, 1997.
REZENDE, Vera Lúcia Aparecida. A construção de estratégias textuais nas
crônicas esportivas de Luís Fernando Veríssimo. Dissertação (Mestrado em
Estudos Lingüísticos) – UFMG, Belo Horizonte, 2002.
SANTANA, Débora Betânia de. Ironia: o tempero da crônica (estudo de textos
cronísticos de Luís Fernando Veríssimo). Dissertação (Mestrado em Literatura e
Crítica Literária) – PUC/SP, São Paulo, 2006.
TRENTIN, Liege Maria. O cômico-sério e sua significação na crônica de Luís
Fernando Veríssimo. 158 p. Dissertação (Mestrado em Literatura) PUC/RS, Porto
Alegre, 1990.
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