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nossa humanidade comum, e como eram ridículas as nossas diferenças?
Jogaríamos nosso dinheiro fora, pensando na remota possibilidade de
comprar um lugar no último foguete americano a deixar a Terra antes do
impacto? Perderíamos todos os interesses nos prazeres da carne e
trataríamos de salvar a nossa alma ou, pelo contrário, nos entregaríamos
à lascívia, ao deboche e à gula, ultrapassando, às gargalhadas, todos os
nossos limites orçamentários? [...]. (VERÍSSIMO, O melhor das
comédias da vida privada, 2004, p.265).
Em muitas de suas crônicas, Veríssimo narra metalinguisticamente, pois toma
a palavra em vários momentos como alicerce de seu texto, a fim de que o leitor
lance um olhar diferenciado para sua linguagem e atente para o palavreado não
usual e para alguns termos insólitos da nossa língua, os quais, muitas vezes,
passam despercebidos. Inclusive, intitula de De olho na linguagem uma subdivisão
contida em uma de suas coletâneas mais lidas, Comédias para se ler na escola:
A americana estava há pouco tempo no Brasil. Queria aprender o português
depressa, por isto prestava muita atenção em tudo que os outros diziam. [...]
Achava curioso, por exemplo, o “pois é”. Volta e meia, quando falava com
brasileiros, ouvia o “pois é”. Era uma maneira tipicamente brasileira de não
ficar quieta e ao mesmo tempo não dizer nada. Quando não sabia o que
dizer, ou sabia, mas tinha preguiça, o brasileiro dizia “pois é”. Ela não
agüentava mais o “pois é”.
[...] Mas o que ela não entendia mesmo era o “pá, pá, pá”.
- Qual o significado exato de “pá, pá, pá”.
- Como é?
[..] - Funciona como reticências – sugeri eu. – Significa, na verdade, três
pontinhos. “Ponto, ponto, ponto”.
- Mas por que “pá” e não “pó”? Ou “pi” ou “pu”? Ou “etcétera”?
[...] - É uma expressão utilitária – intervim. – Substitui várias palavras [...] por
apenas três. É um símbolo de garrulice vazia, que não merece ser
reproduzida. São palavras que...
- Mas não são palavras. Só barulhos. “Pá, pá, pá”.
- Pois é – disse eu.
Ela foi embora, com a cabeça alta. Obviamente desistira dos brasileiros. Eu
fui para o outro lado. [...]. (VERÍSSIMO, “Pá, pá, pá”, In: Comédias para se
ler na escola, 2001, p.55-58)
Com esse lastro, o autor, por meio de Exercícios de Estilo, outra subdivisão
dessa mesma coletânea, olha profundamente para a linguagem e provoca o riso,
fazendo, desta vez, uso de recursos como a rima, o jogo de palavras, a inversão
sintática, as figuras de linguagem, os trocadilhos, o chiste etc.
Logo, por meio de novas acepções que confere às palavras, dos contrastes
que utiliza, dos desvios lingüísticos que cria a partir das ousadias de sua escritura,
Veríssimo aposta numa linguagem renovada, recriada e cativante que contempla a
liberdade.