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O estatuto auto-referencial do texto literário põe em questão os fundamentos da
relação entre o sujeito, a linguagem e o mundo. Em um estudo de grande influência, Hugo
Friedrich (1991) apresenta a perda da função representativa e da subjetividade como resultado
de uma reflexão cada vez mais intensa sobre a própria poesia e, portanto, como o ponto para o
qual convergem, desde Baudelaire, as poéticas da modernidade.
A lírica moderna teria se desenvolvido segundo os critérios de uma dissonância e
obscuridade crescentes. Sua incompreensibilidade é intencional, pois, como diz Friedrich
(1991, p.16), “a poesia não quer mais ser medida no que comumente se chama realidade”,
mas, ao contrário, ela “quer ser [...] uma criação auto-suficiente, pluriforme na significação”.
O caráter não-figurativo das artes plásticas é, muitas vezes, convocado como exemplo dessa
auto-suficiência do texto poético. “Na pintura moderna”, afirma o crítico alemão, “a
composição de cores e de formas, tornada autônoma, desloca ou afasta completamente tudo
aquilo que é objetivo, para só se realizar a si própria” (FRIEDRICH, 1991, p.18). Em um
movimento análogo, a poesia se autonomiza em relação à referência e passa a privilegiar a
forma, em detrimento do conteúdo; o poema não mais representa algo exterior, ele cria seus
homem com a morte: no caso da medicina, dando origem a “um discurso científico sob uma forma racional”; na
literatura, a partir de Hölderlin, indicando “uma linguagem que se desdobra indefinidamente no vazio deixado
pela ausência dos deuses” (FOUCAULT, 2003, p.229).
c) Como observa Roberto Machado (2005), para Foucault, a obra do poeta alemão constitui um dos
marcos iniciais da modernidade na medida em que aponta para “a dissolução da aliança entre os deuses e os
homens”, selando “o fim do infinito sobre a terra e o início de um mundo colocado sob o signo da finitude,
submetido à lei ou ao reino do limite” (MACHADO, 2005, p.58).
d) Trata-se de uma concepção de modernidade, indissociável de uma concepção de linguagem, que
Foucault desenvolve no rastro da “morte de Deus”, anunciada por Nietzsche. Esse evento, que o pensador
francês situa na transição do século XVIII para o século seguinte, coincide com a “eclosão de um tipo de
linguagem não-dialética ou não fenomenológica, de uma linguagem vazia, não antropocêntrica, que seria
responsável pelo desmoronamento do sujeito”, como afirma Roberto Machado (2005, p.64), sublinhando a
significativa influência da sentença nietzscheana sobre as reflexões de Foucault acerca da autonomia da
linguagem literária. Tendo na poesia de Hölderlin um de seus primeiros testemunhos, a “morte de Deus”, tal
como a concebe Foucault, “significou o desaparecimento de critérios ou princípios universais externos a que a
linguagem deveria se adequar, abrindo a possibilidade de a linguagem se tornar soberana e a exigência de se
falar na direção da ausência ou do vazio que então se instaurou [...]” (MACHADO, 2005, p.68). Desse
desaparecimento de critérios resultaria o movimento, característico da literatura, pelo qual a linguagem se volta
para si mesma: “não podendo mais se fundar na palavra do infinito e repeti-la, a linguagem só depende de si
própria, de seu próprio curso, para manter a morte afastada” (MACHADO, 2005, p.69). A “morte de Deus”
torna-se a expressão paradigmática de uma crise da representação e, como observa Roberto Machado, do
impacto dessa morte sobre os saberes da modernidade, Foucault extrai a possibilidade de delimitar uma
“ontologia formal da literatura”.
e) Partindo do pressuposto de que a linguagem só diz e só remete a si mesma — a auto-referencialidade
é por ele pensada principalmente em termos de repetição e duplicação — Foucault localiza na literatura uma
relação da linguagem com a morte que acusa não apenas a impossibilidade da representação, como também a
impossibilidade de qualquer ligação entre a subjetividade do autor e o texto, e deste com o mundo exterior.
Como é dito em As palavras e as coisas, a literatura, “dobrada sobre o enigma de seu nascimento e inteiramente
referida ao ato puro de escrever”, encerra-se numa intransitividade radical: “rompe com toda definição de
‘gêneros’ como formas ajustadas a uma ordem de representações e torna-se pura e simples manifestação de uma
linguagem que só tem por lei afirmar — contra todos os outros discursos — sua existência abrupta”
(FOUCAULT, 1999, p.415-6).