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Sérgio Roberto Gomide Filho
Morte e escrita em João Cabral de Melo Neto:
uma leitura de A educação pela pedra e A escola das facas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduão em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito
parcial para obtenção do tulo de Mestre em
Literaturas de Língua Portuguesa.
Orientadora: Lélia Parreira Duarte
Belo Horizonte
2009
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1
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Gomide Filho, Sérgio Roberto
M528.Yg Morte e escrita em João Cabral de Melo Neto: uma leitura de A educação pela
pedra e A escola das facas / Sérgio Roberto Gomide Filho. Belo Horizonte, 2009.
125f. : il.
Orientador: Lélia Parreira Duarte
Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.
Bibliografia.
1. Melo Neto, João Cabral de, 1920-1999 Critica e interpretação. 2. Poesia
brasileira. 3. Morte na literatura. I. Duarte, Lélia Parreira. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.
III. Título.
CDU: 869.0(81)-1
Bibliotecária: Rosana Matos da Silva Trivelato CRB 6 - 1889
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Sérgio Roberto Gomide Filho
Morte e escrita em João Cabral de Melo Neto:
uma leitura de A educação pela pedra e A escola das facas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduão em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito
parcial para obtenção do tulo de Mestre em
Literaturas de Língua Portuguesa.
Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques - UFMG
Prof.ª Dr.ª Melânia Silva de Aguiar - PUC Minas
Prof.ª Dr.ª Lélia Parreira Duarte (Orientadora) - PUC Minas
Belo Horizonte, 05 de março de 2009
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas
3
Ao Gabriel, lembrando mineiramente que
“Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.”
Adélia Prado
4
AGRADECIMENTOS
A Prof.ª Lélia, que acompanhou e incentivou este trabalho desde os primeiros passos e
tombos; agradecimento que se estende, com a mesma gratidão, aos participantes do grupo de
pesquisa “De Orfeu e de Perséfone”, ao qual este estudo deve todos os seus frutos.
Aos professores e funcionários do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC
Minas, pelo convívio e pelo aprendizado do que não está nos livros.
Aos professores participantes da banca de avaliação, interlocutores, mais do que
leitores, pela disponibilidade e, desde já, pela contribuição ao aprimoramento deste estudo.
Ao CNPq, pela bolsa de pesquisa que tornou possível a realização deste trabalho.
Ao Amor che move il sole e l’altre stelle”. A Renata, por tudo, minhas palavras de
agradecimento serão sempre poucas. A meus pais, avós, irmãos, pelo que realmente importa
nesta vida. À “família que me dei”, amigos e colegas que fazem parte desta travessia.
A João Cabral, pelo avesso da lição.
5
“... mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”
Machado de Assis
“E a morte não era o que pensávamos.”
Clarice Lispector
6
RESUMO
Esta dissertação propõe uma abordagem do problema da morte na poesia de João Cabral de
Melo Neto, especialmente em A educação pela pedra e A escola das facas, sob uma
perspectiva que busca não obliterar a complexidade com que a questão se apresenta nos
diversos estratos do processo criativo do poeta pernambucano. Parte-se da hipótese de que a
morte, sendo mais do que uma temática recorrente, dissemina-se por toda a obra cabralina, na
reflexão que esta formula em termos de autoria e subjetividade, de representação da realidade
objetiva e de auto-referencialidade, nos diálogos que estabelece com as tradições poéticas da
modernidade e na negatividade que constitui e norteia seus procedimentos discursivos. Em
vista desses desdobramentos, o presente estudo busca demonstrar que o desafio que a morte
lança ao ato da escrita de João Cabral não é somente de ordem semântica ou estética, pois se
trata também de um desafio endereçado ao sujeito — para o qual a morte atualiza um
paradoxo insuperável e ao envolvimento ético e artístico desse sujeito com uma
determinada realidade na qual a morte é anônima e em série.
Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto; Morte; Linguagem; A educação pela pedra; A
escola das facas; Poesia brasileira.
7
ABSTRACT
This dissertation proposes an approach of the problem of death in the poetry of João Cabral de
Melo Neto, specially at the books A educação pela pedra and A escola das facas, under a
perspective that looks for not to obliterate the complexity with which the question shows us
up in the creative process of the poet from Pernambuco. Being more than a recurrent theme,
the death is disseminated by the whole Cabral’s work, in the reflection that this one
formulates in terms of authorship and subjectivity, from the representation of the objective
reality and from auto-referentially, in the dialogs that establishes with the poetics of
modernity and in the negativity that constitutes and orientates his discursive proceedings.
Looking through these unfolding, the present study looks to demonstrate that the challenge
that the death launches to the act of the writing is not only of semantic or aesthetic order,
because it is a challenge addressed to a subject for which the death updates an
insurmountable paradox and to the ethical and artistic involvement of this subject with a
determined reality which the death is anonymous and in series.
Key-words: João Cabral de Melo Neto; Death; Language; A educação pela pedra; A escola
das facas; Brazilian Poetry.
8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO......................................................................................................9
CAPÍTULO 1.............................................................................................................11
1.1 “O salto fora do sono”......................................................................................11
1.2 “A coisa permanente”.......................................................................................14
1.3 Linguagem, literatura, autoria: algumas considerações iniciais..................16
1.4 Perspectivas teórico-metodológicas...............................................................23
CAPÍTULO 2: LIÇÕES DA MORTE .........................................................................30
2.1 Morte e subjetividade........................................................................................30
2.2 Morte e auto-referencialidade ..........................................................................41
2.3 A morte e o “real”..............................................................................................47
CAPÍTULO 3: A EDUCAÇÂO PELO QUE (NÃO) MORRE......................................62
CAPÍTULO 4: A VIDA COMO VERTIGEM, ESCOLA DAS FACAS ........................90
INEVITÁVEL PONTO FINAL..................................................................................119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................121
9
APRESENTAÇÃO
Este estudo investiga o problema da morte no processo criativo de João Cabral,
propondo uma leitura que se desenvolve basicamente em três direções complementares e que
consiste em pensar a morte na poesia cabralina enquanto uma questão que envolve a
subjetividade, a autonomia do poema e sua dependência em relação à realidade sócio-histórica
e cultural que o engendra. Desse modo, trata-se de uma leitura que, para além do plano
temático, procura rastrear o problema da morte nos paradoxos e ambigüidades que se
configuram no ato da escrita, mas sem deixar de lado questões que se situam dentro de um
quadro mais amplo da prática literária
1
.
A dissertação está dividida em quatro capítulos. Nos dois primeiros, encontram-se
suas diretrizes gerais, definidas em permanente interlocução com a fortuna crítica do poeta,
com o intuito de indicar algumas das razões que fazem da morte um importante viés para a
compreensão da obra singular e desafiadora de João Cabral. No Capítulo 1, são apresentadas
algumas particularidades sobre o modo com que a morte incide sobre os mais diversos
estratos da poética cabralina, da problematização da instância autoral à representação da
realidade objetiva, passando pela auto-referencialidade do texto e pelas concepções de
linguagem e literatura mobilizadas pelo poeta pernambucano. Paralelamente, busca-se
articular a reflexão sobre esses desdobramentos ao fato de que, no âmbito das poéticas da
modernidade, o nexo entre morte e escrita aponta para algumas das principais discussões dos
estudos literários desenvolvidos no último século. Visando a adotar um posicionamento
crítico em face dessas discussões que, em geral, põem em xeque os fundamentos da
relação entre a linguagem, o sujeito, e o mundo — a dissertação procura estabelecer e
explicitar a perspectiva teórico-metodológica adotada.
Privilegiando, em particular, a configuração da negatividade no período formativo de
João Cabral, o Capítulo 2 está estruturado em função das três direções básicas em que se
desenvolve o estudo. O problema da morte, dessa forma, é pensado em complementaridade
com as dimensões do sujeito, da auto-referencialidade e da realidade extratextual, sob uma
perspectiva integrada que mantém a proposta do capítulo anterior de fazer com que a análise
1
Desde já, vale destacar que o presente estudo é resultado de uma investigação iniciada há cerca de quatro anos,
como trabalho de iniciação científica, no âmbito do grupo de pesquisa “As máscaras de Perséfone: figurações da
morte nas literaturas portuguesa e brasileira contemporâneas”, coordenado pela Prof.ª Lélia Duarte (PUC
Minas). Por isso, muitas das premissas e indagações aqui contidas coincidem com as diretrizes do grupo de
pesquisa ao qual, desde cedo, este estudo se filia. A começar pela questão que o orienta e que consiste em
avaliar, na dissimulação das máscaras, o papel da morte na criação literária.
10
concentre-se na interpretação dos poemas e, ao mesmo tempo, leve em consideração a vasta e
rica fortuna crítica do poeta, bem como o intenso diálogo que João Cabral estabelece com as
tradições poéticas da modernidade, ao vincular a despersonalização à autonomia do texto, ao
recusar a noção de palavra enquanto aniquilamento do referente e ao postular uma relação
transitiva e isomórfica entre a linguagem poética e a realidade de que parte.
Além disso, no que diz respeito à questão da morte, o capítulo procura seguir duas
pistas fundamentais indicadas no título das obras específicas elencadas para análise: o
aprendizado poético (“educação” / “escola”); e as diversas modulações que os significantes
“pedra” e “faca” assumem na obra de João Cabral.
O Capítulo 3 dedica-se à leitura do papel decisivo que a morte desempenha em A
educação pela pedra. Partindo da análise do documento fac-similar relativo ao metódico
planejamento do livro, busca-se demonstrar, por um lado, de que modo a problematização da
subjetividade atua como uma estratégia comunicativa que viabiliza o funcionamento
autônomo do texto; e, por outro, de que modo essa problematização é recobrada na relação
entre a morte e as categorias de sujeito/tempo/espaço/memória. Em seguida, discute-se o
ponto em que a problemática da morte na obra apresenta-se em toda sua amplitude: o espaço
sertanejo. A partir de então, a leitura concentra-se nos procedimentos que indicam as formas
pelas quais o poeta extrai desse espaço petrificado o modelo de uma poética que se funda em
antagônica correspondência com a finitude.
No Capítulo 4, dedicado à leitura de A escola das facas, o direcionamento da
investigação é mantido, mas reformulado em consonância com a potencial ressignificação à
luz da memória e dos afetos que o livro opera na obra cabralina. Logo de início, é proposto
um exame mais detalhado das imagens da faca, que abrangem figurações pouco exploradas na
poesia de João Cabral, na via oposta da exterioridade impessoal e objetiva reivindicada pela
“poética da pedra”. É em vista dessa orientação interpretativa que a leitura, após algumas
considerações gerais sobre a questão da morte nos diversos planos da memória, volta-se para
os problemas que o tempo, a finitude e a negatividade suscitam no âmbito da memória
autobiográfica.
11
CAPÍTULO 1
1.1 “O salto fora do sono”
Em “Considerações sobre o poeta dormindo”, trabalho apresentado no Congresso de
Poesia do Recife em 1941, um João Cabral ainda jovem, antes mesmo de estrear na literatura,
já relacionava de modo peculiar a morte à atividade poética. Propondo uma série de distinções
e correlações entre o sono, o sonho e a poesia, o autor, antecipando alguns traços marcantes
de suas concepções artísticas, chamava atenção para a vagueza e obscuridade constitutivas do
sono, características que se traduziam na impossibilidade de verbalizá-lo.
Contrariamente ao sonho, ao qual como que assistimos, o sono é uma aventura que
não se conta, que não pode ser documentada. Da qual não se podem trazer, porque
deles não existe uma percepção, esses elementos, essas visões, que são como que a
parte objetiva do sonho [...] O sono é um estado, um poço em que mergulhamos, em
que estamos ausentes. Essa ausência nos emudece (MELO NETO, 1998, p.13).
“Filha da noite”, “irmã do sono”: era como os gregos se referiam à morte
2
. No aspecto
sublinhado por João Cabral, o sono, enquanto experiência, de antemão, marcada pela ausência
das palavras, desde já se aproxima da morte, momento em que as palavras faltam e a
linguagem se torna impotente. No entanto, mesmo pressupondo o emudecimento, argumenta
João Cabral, “o sono predispõe à poesia”, seja pela idéia de abstração e fuga do tempo, seja
“por essa idéia de morte a que o sono se associa para o poeta” (MELO NETO, 1998, p.15). A
conclusão do estudo busca esclarecer essa predisposição: “o sono não inspira uma poesia, no
sentido em que o poeta se sirva dele como uma linguagem ao seu uso [...] Apenas, fecunda-a
com o seu sopro noturno o hálito da própria poesia em todas as épocas” (MELO NETO,
1998, p.13).
No início dos anos 1940, vale dizer, a influência do surrealismo nos meios artísticos de
Recife era generalizada, o que certamente repercutiu sobre a temática do estudo e sobre o
elogio que este promovia do sonho, então equiparado ao próprio poema
3
. Em 1942, quando
2
Cf. SCHNEIDER, 2005, p.32.
3
“O sonho é uma coisa que pode ser evocada, que se evoca. Cuja exploração fazemos através da memória. Um
poema que nos comoverá todas as vezes que sobre nós mesmos exercermos um esforço de reconstituição [...] o
sonho é uma obra cumprida, uma obra em si. Que se assiste. Esta fabulosa experiência pode ser evocada,
narrada. Como a poesia [...]” (MELO NETO, 1998, p.13). A influência surrealista sobre a obra de João Cabral
12
João Cabral publica seu primeiro livro, o sono é alçado ao título da obra (curiosamente, como
adjunto de “pedra”, elemento que viria a indicar, dentre outras particularidades, justo a
resistência aos mananciais do sono). Em Pedra do sono, lado a lado com a sinalizada
tentativa de conduzir à expressão rica o “sopro fecundo” do sono, está a tematização do
fazer poético. E apesar do esboço de uma consciência vigilante, que o fazer poético, desde já,
estabelece e reivindica, o poeta dorme e assim se manifesta: “Os sonhos cobrem-se de pó. /
Um último esforço de concentração / morre no meu peito de homem enforcado” (“Os
manequins”, 1997a, p.4); “sou o vulto longínquo / de um homem dormindo” (“Poema de
desintoxicação”, 1997a, p.6); “Eu me sentia simultaneamente adormecer / e despertar para as
paisagens mais quotidianas”. (“Homem falando no escuro”, 1997a, p.10). Como João Cabral
assinalava no breve estudo de 1941, “a ação do sono sobre o poeta se em outro nível que o
de simples material para o poema” (1998, p.14). E é nesse sentido que, ao comentar essa fase
do “poeta dormindo”, Benedito Nunes (2007, p.25) afirma que “a experiência a que o estado
de sono dá acesso se articula numa semântica do vago”, valorizando “a indeterminação, a
inconsistência e a fluidez das coisas” (NUNES, 2007, p.25).
Anunciada no sono e nele predita, é a morte, afinal, que predispõe à poesia; o
emudecimento, a palavra não-dita, a indizibilidade predispõem à expressão poética, como se
percebe já no poema de abertura:
Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto (“Poema”, 1997a, p.3).
O texto, como diversos outros do livro, fala da impossibilidade de realização do
poema. Nas obras posteriores, como observa João Alexandre Barbosa (1998, p.64), “essa
consciência da impossibilidade de realização [...] vai acoplar-se ao sentido agudo da condição
inevitável do poeta, esmagado sob o peso daquela impossibilidade”. A epígrafe de Pedra do
sono, retirada do poema Salut”, de Stephane Mallarmé solitude, récif, étoilesinaliza
uma filiação artística importante nesse sentido, assumida não apenas por João Cabral, mas por
“grande parte da chamada modernidade da poesia”, como observa J. A. Barbosa, referindo-se
de extensão incontornável, apesar das manifestações do poeta contra os procedimentos estéticos do
movimento esteve, desde o início, em tensão com a “racionalidade” na elaboração do poema e, em 1943,
Antonio Candido (2000) já chamava atenção para esse impasse. Um exemplo disso encontra-se no próprio
estudo de 1941, que apesar da inclinação surrealista, reverencia a lucidez e a sofisticada racionalidade de Paul
Valéry, poeta francês com quem João Cabral dialogaria abertamente em vários momentos de sua obra.
13
à “noção de fracasso, como categoria operacional e tradutora da insidiosa presença da
consciência na realização do poema” (BARBOSA, 1998, p.65).
Em João Cabral, além do predomínio da consciência sobre a composição,
característica que se esboçava desde o primeiro livro, há um procedimento que remete a outro
aspecto importante da poética mallarmeana. Trata-se do afastamento do autor, da supressão
do sujeito, da concepção de escrita como atividade anônima; em outros termos, trata-se
daquilo a que Mallarmé se refere como “desaparecimento elocutório” do poeta
4
, princípio de
larga e profunda influência não apenas sobre a poesia da modernidade, mas também sobre a
crítica literária como ocorre, por exemplo, no caso da famosa tese de Barthes (2004b)
sobre a “morte do autor”
5
. Em João Cabral, esse aspecto, que posteriormente passaria por uma
intensa reformulação crítica, manifesta-se, desde Pedra do sono, nas várias imagens
mobilizadas para compor uma concepção de poesia como anulação, ausência, arrebatamento,
suicídio:
jardins de minha ausência
imensa e vegetal (“Poesia”, 1997a, p.12)
Tu és absolutamente revolucionária e criminosa,
porque sob teu manto
e sob os pássaros de teu chapéu
desconheço a minha rua,
o meu amigo e o meu cavalo de sela (“Dois estudos”, 1997a, p.9)
Eu me anulo me suicido
percorro longas distâncias inalteradas
te evito te executo
a cada momento e em cada esquina (“Poema deserto”, 1997a, p.4)
As vozes líquidas do poema
convidam ao crime
ao revólver. (“O poema e a água”, 1997a, p.17)
Nas obras seguintes, o sono seria progressivamente negado, dando lugar à atuação
cada vez mais rigorosa da lucidez. A luminosidade prevaleceria sobre o obscuro. O fértil
“sopro noturno” ao qual se referia o jovem João Cabral daria lugar à claridade implacável da
luz solar e a própria idéia de fertilidade, recobrada no duelo contra a inspiração e o acaso
4
“Mallarmé fala em ‘desaparecimento elocutório’ do autor, que ele concebe como um trabalhador do
significante, chegando até a denominá-lo ‘o produtor: ele aparecerá [diz Mallarmé] mostrando-se no anonimato e
com o dorso adequado, eu o comparo, a um regente de orquestra...’” (KRISTEVA, 1975, p.252).
5
Essa questão é apontada por Manuel Gusmão que, ao comentar o postulado de Barthes, observa: “trata-se de
destituir o autor dos papéis que lhe foram atribuídos e de pôr no seu lugar a linguagem: a potência ‘que fala’. Tal
figuração ecoa o célebre aforismo de Mallarmé em Crise de vers’: ‘A obra pura implica o desaparecimento
elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras’. O aforismo é entretanto apropriado por Barthes, que o
conjuga com outros ecos. Um deles é o da transcendência da linguagem em relação ao sujeito, da língua que fala
sem sujeito (em Heidegger); o outro é o da ‘morte de Deus’, anunciada em Nietzsche”. (GUSMÃO, 2000).
14
(novamente a presença de Mallarmé), seria submetida à aridez e à esterilidade do deserto. O
“desaparecimento elocutório”, atualizando o desejo de impessoalidade, passaria a ser
considerado sob novos ângulos. Contra a manifestação da subjetividade, a poesia de João
Cabral privilegiaria, de modo cada vez mais intenso, o direcionamento às coisas e à realidade
objetiva. A metapoesia, fornecendo os subsídios necessários para o domínio das estratégias e
dos recursos expressivos de que dispõe o poeta, seria desenvolvida lado a lado com a crítica
histórica e social. Mas a morte e eis a hipótese que perpassa esta dissertação
permaneceria atuante ao longo de todo esse percurso, dissimulada na inorganicidade da pedra,
na violência da faca e nas diversas modulações que assumem esses dois elementos que
retornam de maneira obsessiva na obra cabralina. Incidindo sobre a morfologia, o léxico, a
sintaxe e sobre a carga semântica do poema, a morte parece disseminar-se por toda a criação
poética de João Cabral, no problema que esta formula em termos de autoria e manifestação da
subjetividade, de representação da realidade objetiva e de auto-referencialidade da linguagem,
no diálogo que estabelece com as tradições poéticas da modernidade e na negatividade que
constitui e norteia seus procedimentos discursivos.
1.2 “A coisa permanente”
É sabido que João Cabral tinha uma aversão incomum à morte. Descrevendo uma
visita do poeta pernambucano à Academia Brasileira de Letras no início da década de 1990, o
relato de José Castello (2006) ilustra bem essa relação dramática:
Assim que entra no salão principal do prédio da ABL, no centro do Rio de
Janeiro [...] o poeta defronta-se com o inesperado: reunidas em urna metálica, as
cinzas do escritor Francisco de Assis Barbosa, recém-falecido, magnetizam o
ambiente. Uma missa em sua memória será celebrada pouco depois. A atmosfera é
de luto e de desesperança. A cena atravessa a alma do poeta como um pesadelo. Ele
nem chega a entrar na sala: paralisado na soleira da porta, recua e se refugia no salão
de chá, a essa hora uma paisagem deserta e impessoal. E ele se deixa ficar.
O poeta, que vive a experiência da morte como um estrangulamento em sua
lucidez, precisa de um pouco de ar. O mal-estar permanece e ele não consegue
reagir. [...] O acadêmico Otto Lara Resende o encontra, trêmulo e com a face branca,
debruçado sobre a murada de um dos janelões do salão. [...] Com seu olhar agudo e
sua alma clínica, Otto pode ler no rosto de João Cabral o sentimento de desnorteio e
a asfixia moral detonados pela presença da morte (CASTELLO, 2006, p.12-3).
15
Oscilantes entre o fascínio e o horror, são, no entanto, ambíguas as atitudes do escritor
diante da morte, como sugere, por exemplo, sua manifesta intenção de escrever um livro
somente com epitáfios de amigos
6
. E ao contrário do que possa parecer, o horror à morte não
se contrapunha ao apreço pela vida, como João Cabral buscou sublinhar em várias entrevistas:
[...] nunca tive interesse pela vida. [...] De forma que confesso que tenho pavor da
morte e não tenho gosto pela vida. Que um sujeito muito vital [...] tenha medo da
morte, compreendo. Agora, sou um sujeito cínico, pessimista, negativista, tenho
tudo que faz um suicida, mas não tenho a coragem de me matar. Se eu não tivesse
medo da morte teria me suicidado há muito tempo. [...] Eu perdi a fé, não acredito
em céu nem em purgatório, mas acredito no inferno. [...] Tenho pavor da morte, não
por deixar de viver, mas por não saber o que vou encontrar depois (Entrevista a
Arnaldo Saraiva, JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, n.270, 07/13 set. 1987,
apud ATHAYDE, 1998, p.147-8).
Assinalada no trecho acima, a relação de João Cabral com a religião ia além do
desinteresse e da descrença: era agressiva, impetuosa, análoga à severidade com que o poeta
se manifestava contra a dimensão metafísica na atividade poética. Leia-se “As latrinas do
Colégio Marista do Recife”, poema incluído em Agrestes, no qual o poeta, com sarcasmo,
equipara a castidade da alma com a imundície das latrinas, fazendo com que esta, factual e
concreta, prevaleça sobre aquela, tida como insubsistente e abstrata: “Lavar, na teologia
marista, / é coisa da alma, o corpo é do diabo; / a castidade dispensa a higiene / do corpo, e de
onde ir defecá-lo” (1997b, p.213). Contudo, a rígida e tradicional formação religiosa não
deixaria de acompanhar o poeta; seu declarado ateísmo era carregado de culpa
7
. Com uma
avançada degeneração da retina lhe forçando à introspecção, em seus últimos dias de vida,
João Cabral teria voltado a rezar. Diante da morte, a razão desmoronava. E essas
particularidades da relação do autor com a morte, por certo, refletiam-se em sua atividade
artística, ainda que indiretamente, como atesta o depoimento da também poeta Marly de
Oliveira, com quem João Cabral fora casado durante os treze últimos anos de vida:
[...] tentando despojar a sua poesia, como os seus contemporâneos de outros países,
de qualquer confissão explícita, não se expondo, cautelosamente, a si próprio,
dizendo-se ateu e marxista, na verdade reprimira sempre o problema existencial
vivido no dia-a-dia, o fluir do tempo como realidade, o saber-se um ser-para-a-
morte: tudo isto era fonte de angústia terrível. (OLIVEIRA, 2000, p.34).
6 A declaração é de Lêdo Ivo (2001), que, em entrevista a Geneton Moraes Neto, cita o poema-epitáfio inédito
que João Cabral lhe dedicara: “Aqui repousa / Livre de todas as palavras / Ledo Ivo, poeta, / Na paz
reencontrada / de antes de falar / E em silêncio, o silêncio / de quando as hélices / param no ar”. Disponível em:
http://www.geneton.com.br/archives/000052.html.
7
Ver CASTELLO, 2006, p.127-8.
16
O medo da morte, sugere a colocação acima, teria seus equivalentes na recusa da
subjetividade e na tentativa de despojar o poema de todo resíduo sentimental. O próprio autor
afirmara: “o meu medo da morte [...] está disfarçado em todos os meus livros”
8
. Ao
entrevistar João Cabral em setembro de 1989, Ferreira Gullar fez uma observação quase
psicanalítica nesse sentido: “essa linguagem descarnada, óssea, mineral de tua poesia é de
certo modo uma defesa: você elimina o orgânico, que morre, em busca de algo permanente”.
E interessante ainda é a colocação de João Cabral, endossando e sintetizando o comentário do
poeta maranhense: “A pedra é pra mim a coisa permanente. Uma das obsessões que tenho é
com o fluir do tempo”
9
.
1.3 Linguagem, literatura, autoria: algumas considerações iniciais
Estas breves considerações, em grande parte paratextuais, têm por objetivo delimitar e
esclarecer a perspectiva aqui adotada. De fato, nada mais avesso ao projeto poético de João
Cabral do que uma leitura centrada em caracteres biográficos. E mesmo não seguindo à risca
as posições teóricas do autor, que, em geral, desautorizava os nculos entre a obra e aquele
que a escreve isto é, sem desconsiderar que entre o autor e o texto existam “relações de
implicação”, no sentido proposto por Vítor Aguiar e Silva (1996); ou ainda, relações cuja
pertinência cumpre não desdenhar, como argumenta Helena Buescu (1998, p.25), ao afirmar
que “o texto sabe e mostra que vem de alguém e vai para alguém e que nesse movimento se
jogam relações complexas” (grifos da autora) este estudo, ao abordar o problema da
subjetividade e da autoria, buscará fazê-lo sob uma perspectiva que privilegie não a figura
empírica de João Cabral e, sim, os agenciamentos textuais que governam a tensa e rarefeita
presença do sujeito na obra. Nesse sentido, pode-se dizer com Marta Peixoto (1983, p.13) que
essa “subjetividade evasiva” manifesta nos poemas de João Cabral “interessa não por suas
eventuais conexões com o eu biográfico do autor, mas por seu funcionamento dentro do
sistema de relações que é o poema”.
Isso posto, é possível propor uma síntese da noção de autor com que este estudo busca
operar noção à qual se ligam, em maior ou menor grau, outras categorias importantes
8
Entrevista a Sebastião Uchoa Leite, Luiz Costa Lima e Carlito Carvalhosa. 34 Letras, Rio de Janeiro, n.3, p.39,
mar. 1989.
9
Gullar e João Cabral”. O Globo, Rio de Janeiro, 27 set. 1989, apud CADERNOS DE LITERATURA
BRASILEIRA, 1998, p.128.
17
relacionadas à problemática da morte na poesia de João Cabral, como é o caso das noções de
representação e negatividade (e, num sentido mais amplo, como é o caso das noções de
linguagem e de literatura aqui subjacentes). Inscrito no texto, e, ao mesmo tempo, inserido em
uma prática social e simbólica que o próprio texto atualiza, por suas condições de produção,
circulação e recepção e por seus signos culturalmente partilhados, o autor, aqui, é entendido
como a instância enunciadora, indicada por uma série de procedimentos e estratégias textuais;
mas também como uma entidade histórica e socialmente situada, inserida em um contexto
comunicativo institucionalizado a própria literatura, cujo modo de existir, em última
análise, é inseparável de determinantes sociais, externos à linguagem mas nela recobrados,
que orientam modos de sentir, agir, crer, e avaliar. Entre essas duas determinações, a do texto
e a da sociedade, nada impede o reconhecimento da atuação de um sujeito, com memória e
consciência, o que parece indispensável para perfilar em um poema os elementos que
respondem pela singularidade inventiva de sua construção e, ainda, indispensável para uma
concepção de literatura enquanto atividade potencialmente transformadora, sem que isso
implique sua dependência à intenção do autor, nem sua submissão a um humanismo utilitário,
uma vez que não contradiz necessariamente a autonomia do texto enquanto objeto estético
10
.
Sem se ater a nomenclaturas específicas ou distinções mais rígidas, trata-se de uma
noção de autor (e conseqüentemente de linguagem/literatura) que toma como base a reflexão
que a teoria literária e os estudos do discurso têm buscado promover nos últimos anos, dentre
as quais se destacam os seguintes pontos:
a) A linguagem, pode-se dizer com Edgar Morin (2005, p.37), é a encruzilhada
essencial do biológico, do cultural, do social. A linguagem é uma parte da
totalidade humana, mas a totalidade humana está contida na linguagem”. Não se
restringindo ao código e sendo muito mais do que um “instrumento” de
comunicação, a linguagem funda a realidade humana
11
. Sua atuação é decisiva
10
É o que sugere Antonio Candido, ao dizer que “a função da literatura está ligada à complexidade da sua
natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque
contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos
autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão
do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação
difusa e inconsciente” (CANDIDO, 2004, p.176).
11
Na filosofia, essa concepção pode ser encontrada em Heidegger: “From the moment language happens
authentically as discourse, so gods come to speak and a world appears” (apud HILL, 1997, p.78). No âmbito da
crítica literária, esse pensamento é, por exemplo, retomado abertamente por Blanchot, que no artigo Mallarmé
et l’art Du Romanescrevera: Le langage est ce qui fonde la réalité humaine et l’univers [...] L’erreur est de
croire que le langage soit un instrument dont l’homme dispose pour agir ou pour se manifester dans le monde;”
(apud HILL, 1997, p.77). Na lingüística, uma concepção semelhante desenvolveu-se no rastro da visão não-
18
sobre os modos pelos quais cada indivíduo, no interior de uma determinada
cultura, segmenta e estrutura o real
12
. No entanto, a ênfase nesse aspecto pode
conduzir a uma visão parcial do fenômeno. Como observa Norman Fairclough
(2001), pontuando uma concepção bastante desenvolvida pela Análise do
Discurso, a linguagem, em seu uso efetivo, implica a consideração de práticas
concretas e institucionalizadas, reguladas pelas estruturas sociais. Ela mesma
existe enquanto prática, o que, por sua vez, não a reduz a um mero produto dos
campos de força sociais. Linguagem e sociedade são interdependentes e
constituem-se mutuamente na intersubjetividade. Em Bakhtin (2002, 2003, 2004),
cuja obra serviu de base para boa parte da crítica ao imanentismo lingüístico, esse
argumento já estava presente: a linguagem é por ele entendida como uma atividade
dialógica, socialmente orientada, um campo de forças ideológicas imperiosas; não
signo que não venha marcado pela contradição e pelo confronto de interesses e,
diferentemente do que propunha o modelo de Saussure, o signo, na perspectiva
bakhtiniana, adquire significado no conflito e na materialidade da interação
verbal. Isso, no entanto, não faz da linguagem um simples reflexo das estruturas
sociais e das disputas de poder. “Todos os diversos campos da atividade humana
estão ligados ao uso da linguagem”, afirma Bakhtin (2003, p.261), que, em
Problemas da poética de Dostoiévski, observa também que “as relações
dialógicas são extralingüísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser
separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral
concreto” (BAKHTIN, 2002, p.181).
b) O fato de o conceito de literatura ser, num sentido amplo, extraliterário, corrobora
essa concepção de linguagem. A literatura o pode ser definida de maneira
“objetiva”; não se trata de um conceito imanente ao texto. Um texto é “literário”
quando reconhecido como tal e isso não se deve propriamente ao texto em si, mas
ao valor, culturalmente partilhado, que lhe é atribuído dentro da sociedade. “A
referencialista da linguagem (aliás, de grande influência sobre os estudos literários), iniciada pelo conceito de
signo de Saussure; e é nesse sentido que o lingüista Louis Hjelmslev argumenta que “o desenvolvimento da
linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da
humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é
tudo isso: a própria origem dessas coisas” (HJELMSLEV, 1975, p.2).
12
Um interessante e conhecido exemplo que ilustra essa questão é discutido por Flávio Di Giorgi (1990, p.125-
6), relativamente às cores do arco-íris: em algumas regiões do Japão, grupos que ‘vêem’ quatorze cores. Em
boa parte da cultura ocidental, o arco-íris “tem” sete cores. Os ingleses, em geral, ‘vêem’ seis cores, enquanto
um habitante da Zâmbia ‘vê’ somente duas.
19
literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável,
distinguida por certas propriedades comuns, não existe”, diz Terry Eagleton (2006,
p.16). De modo semelhante, Antoine Compagnon (2001, p.45) observa que a
definição de literatura implica necessariamente a consideração do “conjunto das
circunstâncias em que os usuários de uma língua aceitam empregar esse termo”.
Dessa forma, “presume-se que sua significação [...] não se reduz ao contexto de
sua enunciação inicial. É uma sociedade que, pelo uso que faz dos textos, decide se
certos textos são literários” (COMPAGNON, 2001, p.45). Mesmo distanciando-se
de uma concepção ontológica do fenômeno literário, essa constatação não significa
que a literatura não possua suas particularidades em relação a outros domínios
discursivos, uma vez que, nela, as condições e motivações que regem o uso da
linguagem são significativamente diversas. De todo modo, sendo o conceito de
literatura historicamente variável, sabe-se que, na modernidade, as relações do
homem com a linguagem passam por intensas mudanças (estas, aliás, intimamente
relacionadas às mudanças de atitudes do homem diante da morte, como será
discutido no capítulo seguinte). Em As palavras e as coisas, referindo-se ao termo
“literatura”, surgido apenas no século XVIII, Michel Foucault (1999, p.415)
afirmava: “a palavra é de recente data, como recente é também em nossa cultura o
isolamento de uma linguagem singular, cuja modalidade própria é ser ‘literária’”.
À parte a noção ontológica de literatura então endossada por Foucault, que adiante
será discutida mais detalhadamente, a afirmação chama atenção para o estatuto
problemático do texto literário na modernidade. Um modo de compreender melhor
esse processo encontra-se na consideração das relações que as sociedades
modernas e industriais estabelecem com a poesia. Não se sabe precisar como e
quando a linguagem surgiu, mas com ela surge também a expressão poética,
presente em todas as épocas e em todos os povos, alçando ao verbo a imagem e o
ritmo, a memória e o afeto. Como assinala Octavio Paz (2005, p.12), é
inconcebível a existência de uma sociedade sem canções, mitos ou outras
expressões poéticas. A poesia ignora o progresso ou a evolução e suas origens e
seu fim se confundem com os da linguagem”. Entretanto, como o próprio ensaísta
mexicano esclarece, “não poesia sem sociedade, mas a maneira de ser social da
poesia é contraditória: afirma e nega simultaneamente a fala, que é palavra social;
[...] Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem [...] Uma poesia sem
20
sociedade seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras” (PAZ,
2005, p.96).
Na modernidade, esse modo de ser social da poesia passa por diversos
questionamentos e reformulações. Como afirma Alfredo Bosi (2000, p.165), a
poesia muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da
sociedade. Daí vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua
da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a palavra-esgar, a
autodesarticulação, o silêncio”. Nesse sentido, a própria auto-referencialidade
literária, utilizada para caracterizar a literatura como linguagem que fala de si
mesma, tem em si um forte componente histórico. Em O grau zero da escrita,
Barthes (2004a) analisa o movimento, iniciado no século XVIII e concretizado por
Mallarmé no século seguinte, pelo qual a literatura se transforma em um ato
intransitivo, em uma espécie de “contracomunicação”. A escrita perde sua
finalidade e se volta para si mesma, instaurando uma realidade formal própria e
autônoma. As conjunturas do capitalismo moderno e o advento burguês incitaram,
alhures, à elaboração de uma escrita amodal, neutra, assujeitada e supra-
ideológica. É o que Barthes chama de “grau zero da escrita”: uma escrita que se
formula inteiramente voltada ao gesto mesmo de escrever; qualquer traço da
realidade se desvanece, “as características sociais da linguagem ficam abolidas”
(BARTHES, 2004a, p.66). No entanto, adiantando aqui parte de uma discussão
que será retomada no decorrer deste estudo, relativamente ao problema da
representação, tal ponto de vista não esclarece como abrir mão da mínima
referencialidade e comunicabilidade, tampouco explica de que modo um texto
pode gerar-se de si mesmo. Como argumenta Octavio Paz (2005), a partir do
momento em que as palavras abandonassem por completo seus significados e suas
referências e passassem a significar somente o puro ato de escrever, a literatura
não mais existiria, pois ela é feita de palavras e “as palavras não são outra coisa
que significados de isto e aquilo, isto é, de objetos relativos e históricos” (PAZ,
2005, p.51). Nesse sentido, diz o autor, em clara referência (e oposição) à
literalidade do empreendimento mallarmeano:
Um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria, literalmente,
indizível. Ao mesmo tempo, um poema que não lutasse contra a natureza das
palavras, obrigando-as a ir mais além de si mesmas e de seus significados relativos,
21
um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível, permaneceria uma simples
manipulação verbal [...] O poema, ser de palavras, vai mais além das palavras e a
história não esgota o sentido do poema; mas o poema não teria sentido e nem
sequer existência sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual
alimenta. (PAZ, 2005, p.51-2).
A concepção de literatura aqui delineada busca considerar esse caráter
problemático e paradoxal do texto literário na modernidade, que faz dele um
espaço de negação dos usos sociais da linguagem, sem que isso implique a
destruição total do sentido e, logo, da comunicabilidade. Dessa maneira, o
denominador comum da prática literária na modernidade, o autocentramento da
linguagem, indica, talvez, menos a renúncia a todos os fatores do mundo
extraliterário do que a busca por novas configurações e novas possibilidades
comunicativas, mobilizada e orientada por uma consciência aguda da linguagem
na qual, pela qual e com a qual o texto realiza seus atos enunciativos.
c) Por fim, a literatura assim concebida está, como foi dito, diretamente
relacionada à concepção de autoria, pois, como afirma Helena Buescu (1998,
p.35), “o autor pode ser relegado para fora do sistema numa perspectiva que
recuse o fundamento comunicacional e funcional do texto literário e o reduza a
uma (sempre precária) ontologia textual”. O autor existe no texto e em função
deste. Suas posições e seus agenciamentos são construídos no ato da escrita. Desse
fato Maurice Blanchot (1997, p.293) extrai uma contradição insuperável: “O
escritor se encontra, se realiza em sua obra; antes de sua obra, não apenas
ignora o que é, mas também não é nada. Ele existe a partir da obra; mas, então,
como pode a obra existir?”, pergunta Blanchot. A resposta, no entanto, busca
manter o paradoxo: a obra existe por sua própria impossibilidade (Blanchot dirá o
mesmo sobre a morte). Da mesma forma, sob tal perspectiva, o autor existiria pelo
mesmo movimento que o faz desaparecer. Pensar o autor como entidade
plenamente identificada à figura empírica do escritor ou como a fonte última dos
sentidos de um texto seria, no mínimo, um ato de negligência teórica. A
impessoalidade, de certo modo, é inerente à escrita. Depois de escrito o texto, sua
existência e circulação, de fato, não dependem mais daquele que escreve.
Potencialmente, a escrita alcança contextos indeterminados no tempo e no espaço.
Barthes (2004b), ao decretar a “morte do autor”, afirmava: “o escriptor moderno
nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser
22
que precedesse ou excedesse a sua escritura; [...] outro tempo não senão o da
enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora(BARTHES, 2004b,
p.61) (grifos do autor). Textos dos quais se desconhece a autoria e o contexto de
origem são exemplos de que a significação não pode ser regulada pela intenção do
autor. “No caso do discurso literário, a dissimetria entre as posições de
enunciação e de recepção desempenha um papel crucial”, afirma Maingueneau
(1996, p.31) (grifos do autor), identificando nessa dissimetria “o correlato da
ambigüidade fundamental da obra literária, que perdura fechando-se sobre si” e,
desse modo, “faz estourar a univocidade da interpretação e multiplica as
possibilidades de conexão entre as unidades do texto” (MAINGUENEAU, 1996,
p.31). No entanto, pensar o autor não implica necessariamente expulsá-lo do texto,
mas aí tentar situá-lo, sem desconsiderar toda a problemática que esse gesto
suscita. Como observa Manuel Gusmão (2000, p.5), “a crítica por Barthes das
representações do Autor como Pai e Proprietário é ainda hoje incontornável.
Entretanto, [...] o acontecimento-lei da ‘morte do autor’ e a conseqüente instituição
do ‘anonimato transcendental’ dissolve sem os resolver demasiados problemas”.
Como argumenta o crítico português, “o autor ausenta-se de facto e essa é uma
das condições para que o texto possa ser lido mas sobra, como rastro e como
resto figurais, de um trabalho, de uma passagem” (GUSMÃO, 2000, p.7). É por
isso que “um poeta fica no poema também pelo modo como dele se ausenta”
(GUSMÃO, 2000, p.8). Trata-se de uma “presença”, isto é, de uma “figuração”
autoral que não elimina a possibilidade de se presumir a intencionalidade de um
texto, construído enquanto projeto de dizer (mesmo quando visando a “dizer
nada”
13
). Como argumenta Compagnon (2001, p.65), “mesmo os partidários da
morte do autor jamais renunciaram a falar, por exemplo, de ironia ou de sátira,
embora essas categorias não tenham sentido senão com referência à intenção de
dizer uma coisa para fazer compreender outra”. E é nesse sentido que a conclusão
do crítico francês chama atenção para o risco de uma posição extrema, ao
argumentar que:
a presunção de intencionalidade permanece no princípio dos estudos literários,
mesmo entre os anti-intencionalistas mais extremados, mas a tese anti-intencional,
mesmo se ela é ilusória, previne legitimamente contra os excessos da
13
“Não processo lingüístico desprovido de significação: o próprio nonsense significa que o poeta não
sentido no seu mundo” (BOSI, 1994, p.482).
23
contextualização histórica e biográfica. [...] Nem as palavras sobre a página nem as
intenções do autor possuem a chave da significação de uma obra e nenhuma
interpretação satisfatória jamais se limitou à procura do sentido de umas ou de
outras. Ainda uma vez, trata-se de sair desta falsa alternativa: o texto ou o autor. Por
conseguinte, nenhum método exclusivo é suficiente. (COMPAGNON, 2001, p.95-6).
1.4 Perspectivas teórico-metodológicas
Ao investigar, portanto, em suas diversas modulações, o problema da morte na escrita
de João Cabral, o estudo aqui proposto busca operar nas interseções de uma dupla
configuração, uma textual, outra pragmática. Com efeito, trata-se menos de uma tentativa de
conciliação teórica do que uma questão colocada a priori pelo próprio corpus de análise. Um
leitor familiarizado com a poesia de João Cabral sabe que nos textos do poeta pernambucano
essas duas dimensões são recíprocas e complementares: o poema aponta para sua própria
construção, mas o faz em reciprocidade e em complementaridade com algum objeto da
realidade concreta e/ou histórico-social. Esse aspecto, a crítica muito tem pontuado: João
Cabral é um poeta que se volta para o “real” e, concomitantemente, para a própria atividade
poética; o real” como leitura que o poema elabora, incorpora e comunica. E em parte, a isso
se deve a importância que o “aprendizado” adquire em sua poesia importância esta que
aqui se pretende explorar, como se percebe pelo título das obras específicas elencadas para
análise: A educação pela pedra; A escola das facas. O aprendizado se enquanto evento
textual, metalingüístico; e também enquanto evento comunicativo; ao longo da obra de João
Cabral são vários os poemas que dão testemunho do grande esforço nesse sentido. Para citar
um exemplo conhecido (os poemas-título das obras analisadas merecerão uma leitura à parte),
veja-se o caso dos versos de abertura das quatro seções do poema “Graciliano Ramos:”,
incluído em Serial:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca: [...]
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre: [...]
Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
24
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas: [...]
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho: [...] (1997a, p.302-3).
A estruturação do poema indica uma progressão sugestiva em termos do que aqui vem
sendo dito. Todos os versos tomam o próprio dizer como objeto, apontando quatro
movimentos pelos quais esse dizer se realiza. Isso pode ser notado nos versos iniciais,
voltados para seus próprios (e escassos) recursos expressivos: a palavra reduzida ao mínimo,
sem resíduos oratórios. Os versos da seção seguinte mostram que o que está em jogo não se
limita a apontar para essa escassez verbal; aqui, um primeiro sinal de transitividade é
explicitado. Esse “algo de que se fala”, contudo, é inseparável do “modo” como se fala,
apresentado na seção anterior. Nesse sentido, a enunciada ancoragem do poema na realidade
hostil do Nordeste incide sobre o discurso poético, fazendo-o recusar a prolixidade, isto é, a
escassez dos recursos expressivos está diretamente relacionada à privação inerente ao
ambiente social e geográfico que o poema tematiza. A terceira seção introduz um elemento
central nessa trama complexa na qual a palavra poética busca estabelecer correspondências
com a realidade inóspita: trata-se de uma categoria de pessoa, “por quem se fala”, categoria
esta, pode-se inferir, impelida à mudez. Sendo válida tal inferência, a incomunicabilidade,
aqui, torna-se uma violência análoga àquela que é exercida pelo meio físico e social. Daí a
agressividade com que, na última seção, o poema configura seu interlocutor. Para
(re)estabelecer o circuito comunicativo, a voz do poeta incorpora e articula uma dupla
violência a da incomunicabilidade e a da condição material inumana. Paradoxalmente (se
se considera a proximidade entre intransitividade e metalinguagem), é para comunicar algo
“exterior” ao poema que a linguagem aqui se volta sobre si mesma. Mas isso, longe de
significar que a linguagem esteja em segundo plano, inteiramente comprometida com a
afirmação engajada ou reduzida à “representação” de seus elementos referenciais, indica que é
na e pela linguagem que o poeta, agenciando uma “voz” literária para falar de seu próprio
processo artístico, realiza aquele que é, talvez, o ato mais importante do poema: a
configuração de um modo de dizer, que se estabelece no diálogo intertextual com a escrita de
Graciliano Ramos. Por trás do direcionamento incisivo de cada enunciado, está essa alteridade
enunciativa, exibindo um aprendizado da linguagem, de modo que, por mais assertivo que
seja o poema, o relacionamento com o real se como busca e encenação. O texto fala de
uma realidade específica, mas o faz por meio de um denso interdiscurso. Se existe, no poema,
25
alguma pista sobre a natureza dessa relação entre a palavra e a realidade exterior, ela indica
que se trata de uma relação pautada pela privação, pela falta falta esta que o poema busca
trazer à expressão e, sob esse ponto de vista, falta esta que o poema busca comunicar.
O exemplo deixa de lado outros aspectos importantes do poema, mas talvez valide a
pertinência de uma perspectiva textual-pragmática, isto é, de uma perspectiva centrada sobre a
cadeia dos significantes, que entenda o texto como um objeto estético, e, portanto,
estruturalmente autônomo, mas levando sempre em consideração o nível mais amplo da
situação enunciativa, que permite o reconhecimento de estratégias e efeitos de sentido
inscritos no próprio texto, porém, indissociáveis dos processos históricos e culturais que o
engendram. Não se trata de uma concepção sociológica da enunciação, mas de uma
concepção que, privilegiando o texto, parte do princípio de que nele uma dimensão
pragmática que lhe é constitutiva.
Tal perspectiva acena ainda com a possibilidade de considerar a atuação de um sujeito,
que se configura na própria escrita e dela é parte integrante. Na poesia de João Cabral, trata-
se, evidentemente, de um ponto problemático. O poeta, com o rigor de um engenheiro, busca
construir o poema como uma máquina autônoma, que funciona por seus próprios
mecanismos, sem vínculo algum com a subjetividade. Antilira, anti-sentimental, antiode,
“contra a poesia dita profunda”: assim João Cabral definia sua escrita poética, uma escrita
racional e objetiva, elaborada com o apuro de um arquiteto, que planeja o poema como um
espaço impessoal, do qual o poeta se retira, como recomendava Mallarmé, para que a
linguagem fale por si, independente de qualquer dimensão subjetiva. Os versos iniciais de
“Psicologia da composição” fornecem uma pista valiosa nesse sentido:
Saio de meu poema
como quem lava as mãos (1997a, p.60).
O que sugere a abertura desse que é um dos textos mais programáticos da poesia
cabralina é que o poema “começa” (literalmente) com o afastamento daquele que escreve. Os
versos finais são igualmente sugestivos:
Onde foi palavra (potros
ou touros contidos) resta
a severa forma do vazio (1997a, p.64).
Há, portanto, uma estreita relação entre a objetividade atingida mediante o intenso
trabalho formal e a supressão das figurações do sujeito, daí a complexidade que o problema
26
reivindica. Mas também uma evidente contradição, se se considera com Edgar Morin
(2005, p.80) que, paradoxalmente, “a objetividade pode vir de um sujeito. Idéia
inacreditável para quem subjetivamente nega toda existência ao sujeito”. De fato, na
modernidade, como observa Stuart Hall (2005, p.46), a noção de sujeito uno e soberano é
estilhaçada: “o ‘sujeito’ do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi
descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do
sujeito pós-moderno”. Com a psicanálise, o sujeito é cindido internamente, submetido a
forças que desconhecem qualquer interdição e que escapam ao domínio da consciência; com o
marxismo, a subjetividade, regida por um conjunto de práticas e crenças ideológicas, passa a
ser entendida como produto de determinantes sociais em face das condições materiais de
existência; com a lingüística de Saussure, o sujeito é deixado de lado juntamente com a parole
e, de todo modo, apresenta-se subjugado ao sistema de uma língua que o precede e o sucederá
(HALL, 2005, p.23-46). Em termos de linguagem, o resultado imediato dessa série de
proposições é que não há como conceber que a pessoa real que escreve possa se representar
de modo pleno naquilo que é dito. A própria idéia de uma “pessoa real” plenamente
identificada a si mesma passa a ser questionada, que a constituição do ego é um processo
incompleto, alimentado por forças inconscientes e repressoras (psicanálise); a sociedade
dispõe de instituições e mecanismos que moldam e condicionam as ações individuais
(marxismo); e a língua é um sistema de regras auto-suficiente, independente do sujeito, pois a
significação não é propriamente uma experiência individual, mas um processo de
diferenciação dos significantes (estruturalismo). Essas importantes contribuições teóricas, no
entanto, ainda assim não impedem a consideração de que a ação de dizer pressupõe e constitui
o sujeito, ao menos esse sujeito que aqui se tem em vista: não o sujeito “transcendental”
absoluto, nem o seu oposto inteiramente assujeitado, nem o “sujeito lingüístico”, reduzido às
marcações pronominais predeterminadas pela ngua, mas esse que agencia e, ao mesmo
tempo, se constitui na enunciação. “A condição da linguagem”, lembra Eni Orlandi (2007,
p.52), “é a incompletude”. Nesse sentido, observa a autora, “nem sujeitos nem sentidos estão
completos, feitos, constituídos definitivamente. Constituem-se e funcionam sob o modo do
entremeio, da relação, da falta, do movimento. Essa incompletude atesta a abertura do
simbólico, pois a falta também é o lugar do possível” (ORLANDI, 2007, p.52).
Parafraseando um trecho de Os três mal-amados, poema em prosa da fase inicial do
poeta, pode-se pensar o sujeito na obra cabralina pelo mesmo e paradoxal movimento de
“construção” e “fuga” de que fala o poema:
27
Nessa folha eu construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me
definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado —
presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga (1997a, p.26).
Na obra de João Cabral, o problema da subjetividade requer, ainda, outra importante
consideração: para o poeta, a presença do sujeito no poema estaria ligada a uma manifestação
particular da poesia, a lírica de enlevo sentimental, expressão do “eu”, voltada para a
manifestação de estados interiores. Visando a construir o poema sem qualquer exposição
nesse sentido o que não deixa de indicar, numa esfera extratextual, o diálogo com as
tradições literárias da modernidade e certa familiaridade com os conceitos psicanalíticos,
sociológicos e lingüísticos acima mencionados — a solução adotada por João Cabral foi
tomar “o partido das coisas” (ou o partido das cabras”
14
), como propunha o poeta francês
Francis Ponge no título de sua célebre obra de poema em prosa, publicada em 1942, Le parti
pris des choses. Mas ao voltar-se com tanto afinco para os objetos, rejeitando qualquer
expressão de si, o poeta acabava por revelar-se ambiguamente, sob “o avesso” de sua
inviabilidade, naquilo que, a princípio, deveria marcar seu afastamento
15
. Isso fica claro no
poema “Dúvidas apócrifas de Mariane Moore”, incluído em Agrestes, no qual João Cabral,
mais uma vez, recorre a “linguagens alheias” para falar de seu próprio fazer poético e, no
caso, para falar de uma particular subjetividade que esse fazer requer e formula:
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?
A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo impura-
mente, a quem dela quer falar?
Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa? (1997b, 245-6)
14
Uma associação nesse sentido é sugerida em “Poema(s) da Cabra”, que dialoga abertamente com “La Chèvre”,
de Ponge, contrapondo a cabra das margens pedregosas do mediterrâneo às cabras do Nordeste.
15
Aproveitando o caso de “Poema(s) da Cabra, pode-se especular que, se, por um lado, o direcionamento à
“coisa”, recomendado por Ponge, postula o afastamento do “eu”, ao menos tal como João Cabral o interpreta,
por outro, a “cabra”, de um modo ou de outro, aponta para o sobrenome do poeta pernambucano.
28
A perspectiva aqui adotada, portanto, considera essa atuação de um sujeito
pressuposto pelo ato de dizer, mas também constituído na materialidade desse ato
buscando integrá-la à reflexão sobre a autoconstrutividade do poema e sobre sua proposta
comunicativa. A partir dessas noções, pode-se, enfim, avaliar a complexidade que o problema
da morte adquire na poesia de João Cabral. Aproximações entre a morte e as figurações do
sujeito perpassam sua obra e são recorrentes nos textos predominantemente voltados para o
próprio fazer poético, bem como naqueles marcados pela crítica social e histórica. O poema
“O exorcismo”, publicado em Crime na Calle Relator, um de seus últimos livros, João
Cabral, relaciona diretamente a morte a essas três dimensões:
Madrid, novecentos e sessenta.
Aconselham-me o Grão-Doutor.
“Sei que escreve: poderei lê-lo?
Senão tudo, o que acha melhor.”
Na outra semana é a resposta
“Por que da morte tanto escreve?
“Nunca da minha, que é pessoal,
mas da morte social, do Nordeste.”
“Certo. Mas além do senhor,
muitos nordestinos escrevem.
Ouvi contar de sua região.
Já li algum livro de Freyre.
Seu escrever da morte é exorcismo,
seu discurso assim me parece:
é o pavor da morte, da sua
que o faz falar da do Nordeste.” (1997b, p.289-90)
Ao falar da morte, o poema o faz pelo viés do impacto psicológico que ela exerce
sobre o sujeito; mas esse viés — de fato, raro na poesia de João Cabral — não é propriamente
confessional, apesar do título sugestivo nesse sentido, pois a morte atua também como o
elemento que orienta o texto para a realidade social do Nordeste. É somente pela abordagem
da própria atividade poética que o (meta)poema indica essa ambigüidade própria da poesia
cabralina, relativamente à recusa da expressão subjetiva em detrimento do direcionamento
exterior do texto. À primeira vista, a narratividade do poema, permeada de elementos
factuais
16
, pode camuflar essa ambigüidade advinda de uma série de dissimulações da morte.
Dissimulada no propósito pragmático-comunicativo (“a morte social do Nordeste”) e na
16
Ao longo dos mais de vinte anos que separam o dito acontecimento da publicação do poema, João Cabral, em
diversas entrevistas, fez referência a esse encontro com López Ibor, “o grande psiquiatra de Madrid”. Uma
descrição mais detalhada encontra-se em MELO NETO, 1989, p.39-40.
29
figuração do sujeito, que se projeta oblíquo, a morte se dissimula, afinal, na própria atividade
artística, para além de uma reiterada temática, como sugere a última estrofe.
Pois que a dimensão do sujeito e a ancoragem no real, fortemente vinculadas à idéia de
morte, se efetivam no movimento do fazer e do dizer artístico. É, sobretudo, o papel da
morte nesse movimento que aqui se pretende investigar. Mas a subjetividade e a orientação
sócio-histórica do discurso, inscritas no dizer poético, são de crucial importância na medida
em que a morte alçada ao texto atualiza a contradição insuperável que representa para a
consciência subjetiva e, ainda, a contradição não menos vigorosa para a consciência cio-
histórica que o sujeito agencia, mobilizando a memória individual e coletiva. A partir de
então, pode-se refletir sobre o desafio que a morte lança à linguagem: trata-se de um desafio
endereçado ao sujeito e ao seu envolvimento ético e artístico com uma determinada realidade
na qual a morte é anônima e em série. A partir de então, o que é mais importante, pode-se
refletir sobre o desafio que a morte lança à arte de João Cabral e ao próprio ato da escrita.
30
CAPÍTULO 2: LIÇÕES DA MORTE
2.1 Morte e subjetividade
O fazer poético se dá como experiência de gênese e morte e esse é seu grande
paradoxo: eis o que sugerem os questionamentos do poeta ante a eclosão do verso sobre o
branco asséptico e mineral da página:
Como o ser vivo
que é um verso,
um organismo
com sangue e sopro,
pode brotar
de germes mortos?
[...]
Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral? (“O poema”, 1997a, p.41)
O texto está incluído em O engenheiro, obra de 1945, na qual se encontram os
primeiros traços de uma “configuração concreto-solar”, na expressão de Luiz Costa Lima
17
(1995, p.209). Começa a ganhar forma a concepção de poesia enquanto construção sólida,
refletida, arquitetada com “coisas claras”, sem mistério, para que o poema, com seu “pulmão
de cimento e vidro”, funcione à maneira de uma “máquina de comover”, como na citação de
Le Corbusier na epígrafe do livro, retomada alusivamente no texto que intitula a obra e nos
demais poemas em que o engenho construtivo prevalece sobre os estados oníricos
18
.
Integrado de modo decisivo a esse projeto poético, o problema da morte na poesia
cabralina vincula-se, desde já, às mesmas operações que articulam, ocultando, as figurações
do “eu” no poema, configurando um pathos negativo da pedra, avesso ao transbordamento.
Essa questão é apontada por Benedito Nunes, em sua leitura do poema acima citado. “As
17
Costa Lima argumenta que, “se O Engenheiro representa uma etapa capital na elaboração poética de Cabral
assim acontece por que nele entram em choque duas configurações poemáticas opostas: uma em que se
fundamentava a feitura da Pedra do Sono [de tipo lunar, noturno] e outra que, embora neste livro de estréia
pressentida, ainda não entrara em pleno funcionamento [de tipo concreto-solar] (LIMA, 1995, p.208).
18
Desse modo, João Cabral se opunha à linguagem refinada e intimista tida como denominador comum dos
poetas da chamada “Geração de 45”, à qual sua obra vincula-se cronologicamente.
31
lembranças e os sentimentos”, observa o crítico, “morrem para renascer na linguagem e
passam à linguagem depois de mortos. É a matéria interior em desagregação que se deposita
na matéria física da folha em branco, na qual o verso irrompe” (NUNES, 2007, p.30).
Na associação entre escrita e mineral, a morte figura como a despersonalização
necessária à “vida” do verso, que, por sua vez, é mineral tanto quanto o carvão de lápis [...]
da emoção extinta” (1997a, p.30), como afirma o poeta em “A lição de poesia”, antecipando
uma das idéias-chave de Psicologia da composição. Benedito Nunes (2007, p.30) fala em
“dupla calcinação: a que começa interiormente para terminar no verso, e a outra, do próprio
verso, que sendo vivo se mineraliza no chão consistente da escrita”. Nessa dualidade, reside
uma contradição própria da relação entre morte e escrita: por sua duração potencialmente
indefinida no tempo e no espaço, a escrita está em clara relação com a finitude humana. O
texto escrito sobrevive ao autor; assim, o ato de escrever seria, em si mesmo, uma espécie de
vitória sobre a morte
19
. Em contrapartida, esse mesmo ato pode ser entendido como aquilo
que, desde já, suprime o sujeito que escreve, em vez de perpetuá-lo — questão esta que, desde
Mallarmé, paira de modo mais intenso sobre a literatura da modernidade.
Na poesia de João Cabral, a pedra atualiza esse impasse pelo qual se realiza, em um
primeiro momento, a passagem da interioridade do sujeito à impessoalidade exterior da
escrita. Do pétreo se extrai o exemplo da objetivação almejada. A “vontade de petrificar”,
desse modo, “valerá como vontade negativa, que medusará a vida interior, paralisando os
sentimentos e a inquietação que deles vem”, observa Benedito Nunes (2007, p.32). É o que
atesta “Pequena ode mineral”, último poema de O engenheiro, no qual o poeta agencia os
paradoxos que se formulam no processo de composição, contrapondo a rigidez mineral à
“desordem da alma” e opondo o que permanece e resiste ao tempo àquilo que, em face do
tempo, é transitório, fluido e, por isso, profundo:
Tua alma escapa
como este corpo
solto no tempo
que nada impede.
Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece
Essa presença
19
Literary representations of death do not necessarily conjure up images of pessimism and defeat.
Traditionally, indeed, it is often the act of writing that is meant to challenge the finality of death. The written text
is meant to outlive the writer”. (GUENTHER, 1996, p.1).
32
que reconheces
não se devora
tudo em que cresce.
Nem mesmo cresce
pois permanece
fora do tempo
que não a mede,
pesado sólido
que ao fluido vence
que sempre ao fundo
das coisas desce (1997a, p.49-50)
Designando o que resulta da e o que resiste à morte, a pedra, aqui, é ainda uma busca,
mas serve de modelo de criação, sustentando a alteridade do texto e permitindo ao poeta
extrair da interioridade silenciada a voz exterior do poema:
Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro.
de pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem (1997a, p.50).
Em Psicologia da composição, obra de 1947 que, além do poema que a intitula, reúne
“Fábula de Anfion” e “Antiode”, João Cabral dá prosseguimento à tarefa empreendida no
livro anterior, buscando agora tornar ainda mais radical a cisão entre a subjetividade e o
processo de criação, cisão esta que passa a fazer parte da fundamentação teórico-racional do
ofício literário. Isso pode ser notado em “Fábula de Anfion”, poema que apresenta a busca
pela esterilidade do canto e o duelo contra o acaso, do qual o personagem mitológico sai
derrotado, renunciando ao instrumento lírico:
Uma flauta: como
dominá-la, cavalo
solto, que é louco?
[...]
A flauta, eu a joguei
aos peixes surdos-
mudos do mar (1997a, p.59)
33
“É então a necessidade expressiva do Eu, co-substancial à poesia lírica, que ele decide
sacrificar com esse gesto”, assinala Benedito Nunes (2007, p.33-4). Trata-se de um sacrifício
que, movido por uma consciência aguda e negativa da linguagem, conduz o poeta ao “silêncio
de pedra” cobiçado em “Pequena ode mineral”, um silêncio construído “mudo cimento”
(1997a, p.55) — silêncio-síntese do ideal poético que então se configura: a “poética do
silêncio” a que se refere Modesto Carone (1979), ressaltando, assim, o paradoxo de uma
poesia no limite do impasse, construída como renúncia e realizada pelo mesmo movimento
que a faz fracassar. Mas “como é possível, do ponto de vista lingüístico”, indaga o crítico,
“que o silêncio possa exercer tal atração sobre um poeta, manipulador de palavras?”
(CARONE, 1979, p.90) (grifo do autor). Nas considerações que se seguem à pergunta,
Carone, por focar-se no silêncio, traz à cena a questão que, em última instância, orienta a
relação entre o sujeito e a morte na obra de João Cabral:
[...] quem neste caso “silencia”, não o faz porque eventualmente não possa emitir
sons inteligíveis, ou transportá-los para as convenções da escrita; quem aqui adere
ao silêncio almeja, especificamente, renunciar à atualização de uma linguagem que
se acha à sua disposição. [...] porque essa atualização ou seja: aquilo que se pode
chamar metaforicamente de parole — rompe o tecido da langue total [...] Seja como
for, na prática ele tem de renunciar, enquanto poeta, a tal plenitude não-nomeável;
pois sua atividade consiste justamente em concretizar a linguagem. Mas é necessário
estabelecer que ele o faz de uma maneira que não coincide que contrasta com
o uso estereotipado das possibilidades “normais” de verbalização da experiência. O
que parece distingui-lo, como usuário acreditado desse bem comum, é a tentativa de
formular, através de artifícios, esse ainda-não-dito que flui no espaço sem fim do
indizível (CARONE, 1979, p.90-1) (grifos do autor).
Diferentemente do que ocorria na fase inicial do poeta, quando, no silêncio,
associavam-se sono e morte, silenciar-se, aqui, é uma ação, “um silêncio artifício” para obter
“o mais duro”, como diria o poeta em “O silêncio de Racine” (1997b, p.84): uma atitude
artística formulada em termos de linguagem. Se na materialidade do texto, essa atitude se
realiza negando o sujeito, apresentando-o sob o signo da morte, da anulação, do
aniquilamento, para que o silêncio objetivado possa ser apre(e)ndido, por outro lado, talvez
seja possível indagar se esse silêncio, longe de selar o fim da subjetividade, não seria aquilo
que, de fato, a constitui. Não será essa a particularidade que, desde O engenheiro, caracteriza
o silêncio na obra de João Cabral?
Secchin (1999, p.42) observa precisamente que “não se trata de um silêncio
metafísico, que poderia carrear perquirições sobre a impotência da linguagem; ao contrário,
será a resposta organizada contra o ‘apetite’ da impulsividade, da escrita a qualquer preço e a
34
qualquer verso”. Portanto, como esclarece o crítico, isso equivale a dizer que o silêncio visado
pelo poeta não é aquele a que se poderia chamar de “natural”:
Se o silêncio ‘natural’ fosse o mais produtivo, seu melhor exemplo, no endosso da
poética romântica, seria a morte. Mas João Cabral, negando-se à transcendência, não
estabelece com a morte qualquer dialética superadora da insuficiência do que vive.
Em vez da extinção da vida, busca a suspensão da existência, quando, retirado do
circuito temporal, um olhar mais agudo e distanciado se faz possível (SECCHIN,
1999, p.43) (grifos do autor).
Ao poeta, desse modo, interessa a “voz” do silêncio, “não uma intransitiva mudez do
objeto que é silenciado [...] mas uma vigorosa e ativa afirmação de não-dizer de que o objeto
é modelo, e o poeta, ressonância” (SECCHIN, 1999, p.47). Em outros termos, o não-dizer
assume a configuração de uma subjetividade, se se considera, com J. A. Barbosa (1975, p.51),
que, em João Cabral, “a conquista do silêncio é auto-definidora” e anda lado a lado com a
conquista “do não-fazera que o poeta se lança, munido da impessoalidade silenciosa “do
pensamento da pedra, / sem fuga, evaporação, / febre ou vertigem” (“A Paul Valéry”, 1997a,
p.48). O não-dizer torna-se um modo de dizer.
Quando Anfion se desfaz da flauta, o silêncio se impõe sobre o acaso sem que isso
implique a mudez do personagem
20
. Esse silêncio é o movimento final da fábula. “Fábula”
vem de “falar”. A “fala de Anfion” aparece somente nas últimas duas seções do poema e ela
é, ao mesmo tempo, a consumação e a confissão do seu fracasso. Ela cessa quando o poeta
anuncia sua renúncia à flauta em que sopra o acaso; mas note-se o tempo verbal do último
verso: Anfion fala depois de se desfazer do instrumento. Nesse momento, sua fala se realiza
de fato, enquanto “fala do não”, como na expressão de Secchin (1999, p.58). A etimologia de
“fábula” se funde ao “não” presente no nome (e no gesto) “Anfion”. O silêncio que se segue é
a afirmação de um “não” no momento em que as palavras cessam
21
. A indizibilidade é
conduzida para o interior da linguagem; com isso, abre-se longa distância entre o “não dizer”
e o “dizer nada” a que a experiência da autonomia da linguagem poderia levar o poeta.
20
Como observa Eucanaã Ferraz (2000), uma estreita semelhança entre o gesto de Anfion e a recomendação
arquitetônica de Le Corbusier, segundo a qual ao arquiteto não é dado “o direito de produzir mal por causa de
um mau instrumento; deita-se fora, substitui-se” (CORBUSIER apud FERRAZ, 2000, p.97). A aproximação,
nesse caso, também reforça o caráter de construção da ação negativa do personagem de Cabral.
21
Costa Lima (1995) destaca o papel decisivo e diferenciador da morte no diálogo que o texto de João Cabral
estabelece com o Amphion de Valéry: “O Anfion francês tem sua carreira encantatória completada pela morte,
do mesmo modo que sua lira completa seu canto na fonte em que jaz. Ao Anfion de Cabral nada socorre. Vozes
não são ouvidas. Assim é ele próprio que toma a flauta e a lança, não à fonte que a completaria, mas aos ‘peixes
surdos-mudos do mar’” (LIMA, 1995, p.233).
35
***
Em “Psicologia da composição” essa autonomia da linguagem está no centro do
poema. Ela advém do vazio franqueado com a dissociação entre a experiência vivida e a
feitura do texto:
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.
Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;
como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo (1997a, p.60-1).
Mas, a exemplo do que ocorre com o silêncio, o vazio que se abre com essa
dissociação, dando lugar à palavra poética, mais uma vez, sugere que a “proscrição do
sujeito” implica não o aniquilamento total da subjetividade, mas sua configuração possível. O
próprio título do poema o sugere. São esclarecedoras, nesse sentido, as considerações que
João Cabral tece sobre o processo criativo de Joan Miró. Publicado dois anos após o poema, o
estudo também discute a noção “psicologia da composição” e o que é dito sobre a pintura, em
geral, está relacionado à prática poética cabralina.
O poema, como o quadro, surgirá da luta do poeta/pintor “para limpar seu olho do
visto e sua mão do automático” (MELO NETO, 1998, p.38). Eis a atitude psicológica cara ao
poeta-crítico pernambucano: aquela que postula a dificuldade e o conflito e que se traduz em
uma máxima valorização do fazer. A própria possibilidade do não-fazer, que o poeta elogiava
em “A Paul Valéry”, deve ser conquistada por meio de um ato de construção:
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer (1997a, p.63).
36
“O fazer é sujo”, dirá o poeta mais de trinta anos depois em “Debruçado sobre os
cadernos de Paul Valéry” (1997b, p.251-2). De todo modo, o fazer deve justificar-se por si
mesmo, não como “um meio para realizar a expressão de coisas anteriores e estranhas a esse
mesmo realizar”, mas, pelo contrário, como um trabalho que parte de suas próprias condições,
esvaziando tudo o que o antecede, para que “dessa disponibilidade e vazio inicial”, o artista
possa se entregar ao “exercício de um julgamento minucioso e permanente sobre cada mínimo
resultado a que seu trabalho vai chegando” (MELO NETO, 1998, p.39-40). A idéia desse
exercício constante que evidencia a emergência (negativa) do sujeito — sintetiza a posição
de João Cabral sobre a atuação do intelecto na tarefa artística, no sentido de uma “atitude de
vigilância e lucidez no fazer”, isto é, de resistência pétrea “ao deixar-se fazer e ao saber
fazer(MELO NETO, 1998, p.40) (grifos do autor). Trata-se, certamente, de levar a termo
um novo entendimento do trabalho artístico em face das questões colocadas pelo
“automatismo psíquico” normativo da prática surrealista, que teria anulado o fazer em
detrimento do mero registro de estados psicológicos.
Em sua procura por “uma arte que pudesse atingir, e revelar, um fundo existente no
homem por debaixo da crosta de hábitos sociais adquiridos”, Miró, ao contrário dos
surrealistas, rejeita “a introdução do subjetivo e do psicológico como assunto da pintura de
seu tempo”, e o faz para “levar até o campo mais profundo do psicológico a busca de
renovação formal [...] interrompida nos anos de ascendência dos pintores surrealistas”.
(MELO NETO, 1998, p.40-2). O mesmo poderia ser dito em relação à “atitude psicológica”
visada por João Cabral e daí seu caráter essencialmente negativo, ao qual se liga aquele árduo
esvaziamento que o trabalho artístico impõe: para criar é preciso ir contra a intuição e a
obscuridade que a move, contra o fácil e o impulsivo, com um rigor sempre renovado e cada
vez mais agudo que permitirá ao artista “criar à margem do costume” (MELO NETO, 1998,
p.46).
É nesse sentido que a conclusão do estudo é esclarecedora ao discutir o conceito de
“vivo” na obra do pintor catalão. O adjetivo indica o dinamismo que, a partir do estudo das
superfícies, desfaz o equilíbrio e a harmonia preestabelecidos, rompendo, “no espectador, a
dura crosta de sua sensibilidade acostumada, para atingi-la nessa região onde se refugia o
melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o inédito, o não-apreendido” (MELO NETO,
37
1998, p.47). Mais uma vez, a constatação do crítico de Miró é reveladora da atitude do poeta:
o desafio estético é, ao mesmo tempo, desafio ético
22
.
***
De modo semelhante ao esfacelamento da ilusão de profundidade elogiado em Miró, o
poeta, estética e eticamente, investe “contra a poesia dita profunda”. Em “Antiode”, a
despoetização de uma palavra usualmente poética, “flor”, une, com eficácia, o procedimento
estético, que desnuda e corrói internamente imagens e metáforas, ao procedimento ético, que
desmistifica a própria linguagem e uma certa poesia misteriosa e espiritual, sublime e
transcendente, que teria na palavra “flor” um índice habitual
23
. Em complementaridade com a
rejeição do canto por Anfion e com o esvaziamento da subjetividade de que fala “Psicologia
da composição”, o poeta intensifica a dessacralização da lírica, adotando uma visão visceral
do poema:
Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
[...]
Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações (1997a, p.65).
Os versos finais de “Antiode” traduzem todo o desprezo que o poeta nutre em relação
aos “bons sentimentos” e à suposta “graça espiritual” da poesia pura e elevada:
[...] Te escrevo
22
A colocação de João Cabral parece coincidir com a perspectiva de Giorgio Agamben (2006) em A linguagem
e a morte, estudo no qual o filósofo italiano argumenta que a poesia, mesmo partindo do reconhecimento de que
o indizível e o inapreensível atravessam a linguagem, pode indicar algo que escapa ao negativo (o que não pode
ser dito nem apreendido); algo que estilhaça o hábito, desfaz o ethos habitual, mas que, ao fazê-lo,
paradoxalmente, torna habitável esse ethos estilhaçado, indicando ao homem o estatuto cindido, mas, afinal,
possível, de sua morada na linguagem.
23
Comentando o verso “uma rosa nas trevas”, do soneto sem título de Mallarmé, Hugo Friedrich observa em
nota que “a significação de ‘flor’, como equivalente de palavra poética, remonta a uma expressão da retórica
antiga para uma figura da linguagem artística (flos orationis, p.ex., Cícero, De orat. III, 96)” (FRIEDRICH,
1991, p.107).
38
cuspe, cuspe, na
mais; tão cuspe
como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais (1997a, p.69).
A caridade, “terceira das virtudes teologais”, é “cara” por indicar, etimologicamente,
aquilo a que se atribui o mais alto valor. É esse “alto valor” que o poeta atinge frontalmente
ao reduzi-lo ao “cuspe”, que, para além da secreção, indica desprezo e agressão ao que de
mais baixo. Estendendo à metafísica o mesmo valor depreciativo que o poeta vinha atribuindo
à expressão íntima e à atuação do inconsciente na elaboração do texto, a dessacralização da
lírica chega a um ponto extremo. Nesse processo, pode-se, afinal, perceber com mais clareza
de que modo o problema da morte se apresenta nessa fase da poesia de João Cabral:
Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de
duas pontas, como
uma corda.) Depois
eu descobriria
as duas pontas
da flor; as duas
bocas da imagem
da flor: a boca
que come o defunto
e a boca que orna
o defunto com outro
defunto, com flores,
— cristais de vômito (1997a, p.67).
Conjugando o aprendizado à ação subtrativa, o que o poeta “descobre” tem, pelo
menos, a dupla acepção de “dar a conhecer” e de “despir”. Os versos mostram que a morte
está presente, de modo negativo, no plano temático, no arranjo formal e, ainda, na reflexão
sobre os procedimentos metafóricos utilizados, como argumenta Benedito Nunes (2007, p.41-
2), ao observar que não apenas “a decomposição da flor levou a uma metáfora da
decomposição”, como também “a metáfora de composição [...] coincide com a decomposição
da metáfora”. Dirigindo-se diretamente à poesia, o poeta a associa a um elemento orgânico
que, ao longo do texto, decompõe-se, ambiguamente: desarticulado e desmembrado em
imagens diversas que, por sua vez, indicam deterioração e apodrecimento. Para essa poesia
39
identificada à imagem delicada da flor, o termo comparante mais adequado, segundo o
poema, deveria indicar não algo de positivo, como o perfume ou a beleza “das transparentes
florações, / nascidas do ar, no ar”, mas o extremo oposto, o excremento, “fezes”, seja porque a
poesia assim concebida inverte o processo que culmina na gênese mineral” do verso, uma
vez que nasceria da “morna / espera de que se / apodreça em poema, / prévia exalação / da
alma defunta” (1997a, p.66-68); seja porque, para o poeta, a metáfora mais apropriada para o
ato criativo deveria mesmo indicar dejeção aliás, “fezes” está semântica e graficamente
mais próxima de “fazer”. No rastro do “fazer sujo” reconhecido em Valéry e de outras
aproximações bastante recorrentes entre “escrever” e “defecar”, uma leitura mais debruçada
sobre a ironia cáustica de João Cabral poderia valer-se da aliciante polissemia de “obrar”,
termo que pode ser lido no sentido de construção/realização de algo; como também no sentido
de ação de defecar. Isso ainda não é tudo, tendo-se em conta algumas particularidades
semânticas dessa ação. “Defecar” liga-se etimologicamente à “purificação”. No Dicionário
Houaiss (2002), a primeira acepção da palavra indica justamente “depurar”. Por extensão de
sentido, o verbete registra ainda um regionalismo no mínimo curioso, em se tratando de João
Cabral: “livrar (o caldo da cana) das impurezas que impedem que o açúcar cristalize”
24
.
Talvez, a combinação dessas acepções já esteja presente em “Antiode”, a exemplo de quando,
no poema de encerramento de Museu de tudo, o poeta disser que: “Escrever é estar no
extremo / de si mesmo, e quem está / assim se exercendo nessa / nudez, a mais nua que há, /
tem pudor de que outros vejam / o que deve haver de esgar, / de tiques, de gestos falhos, / de
pouco espetacular / na torta visão de uma alma / no pleno estertor de criar” (“Exceção:
Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar”, 1997b, p.90).
Pode-se, agora, retornar àquela “descoberta” do poeta em “Antiode”, na qual o papel
da morte é significativo. Despindo a poesia-flor e a escrita elevada de seus atributos nobres, o
que o poeta dá a conhecer na “imagem de duas pontas” da flor é uma imagem autofágica, com
duas bocas: uma que enfeita o defunto (do poema), a outra com “fome de morte”, que o
devora. A impureza “fecal” do fazer poético tirou as “pétalas” da expressão emotiva e
interrompeu “a alquimia dos sentimentos, evitando que, depois de putrefatos, se sublimem na
essência da poesia pura, como flor inefável do espírito” (NUNES, 2007, p.40).
Juntamente com a dessacralização da lírica, opera-se uma dessacralização da morte,
que, em última instância, a idéia de morte, especialmente quando poetizada, poderia atualizar
24
defecar: v. (1664 cf. MS
6
) 1 t.d. separar (líquido) das fezes ou de qualquer sedimento; depurar 1.1 t.d. B livrar
(o caldo da cana) das impurezas que impedem que o açúcar cristalize 2 t.d. fig. tornar (algo) mais puro; purificar
[...]
ETIM lat. defaeco,as,āvi,ātum,āre 'clarificar, limpar, purificar', der. de de- + faex,cis 'lodo, lama,
sedimento, fezes'; ver fec-; f.hist. 1664 defecado, sXVII defecar. (HOUAISS, 2002, Dicionário eletrônico).
40
a profundidade subjetiva e/ou metafísica contra a qual o poeta se manifesta. “Com efeito”,
questiona Secchin (1999, p.44), “o que sustenta uma boa parte da tradição lírica, senão um
discurso sobre o que pode morrer? (grifos do autor).
Talvez, seja em vista desse aspecto elegíaco do lirismo que João Cabral recorre à
morte para desguarnecer a “poesia dita profunda”. Já não se trata, aqui, daquele espanto diante
da “perda do eu” que orientava algumas das passagens de Os três mal-amados e de O
engenheiro, mas de um movimento mais complexo, que busca esvaziar, a um tempo, a
subjetividade e a transcendência da morte, para que, dessa forma, possa atingir o cerne da
noção de lirismo. Sob esse ângulo, antiode é, também, anti-nênia, anti-epicédio, anti-elegia. A
inutilidade da metáfora orgânica é a ineficácia da poesia morta. O desfecho do poema mais
uma vez conduz à “fria natureza da palavra escrita”:
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo (1997a, p.68).
Na expressão clássica cunhada por Benedito Nunes para designar o tríptico de
Psicologia da composição “poética negativa” a atuação da morte está subentendida,
uma vez que, em maior ou menor grau, a morte está pressuposta nas noções de “negação” e
“negatividade”
25
. Por conseguinte, o mesmo poderia ser dito em relação à “depuração e o
esvaziamento”, que constituem as “operações básicas da poética negativa” (NUNES, 2007,
p.44), operações que se disseminam por toda a obra de João Cabral e que são amplamente
investigadas e discutidas por Secchin, sob o prisma da “poesia do menos”. A questão que se
coloca, portanto, tem a ver com o modo bastante peculiar pelo qual o poeta incorpora a
negatividade da morte ao seu discurso. Se a morte é sem lirismo e sem profundidade; se
diante dela não lamento ou revelação, obscuridade ou transcendência, tampouco ênfase
sobre a impotência humana perante o destino sentimento romântico por excelência isso
talvez se deva ao fato de que ela não apenas preside à ação de negar, como também, sendo o
25
Não por acaso, a morte, assimilada ao poder de negação da linguagem, encontra-se na base da dialética de
Hegel e, portanto, na base das noções de homem, linguagem e consciência propostas pelo filósofo alemão, como
demonstra Alexandre Kojève (2002, p.504), em sua célebre tese de que “a filosofia dialética ou antropológica de
Hegel é, em última análise, uma filosofia da morte”. Nesse sentido, o hegelianista irá argumentar que, “se o
homem é ação, e se a ação é negatividade aparecendo como morte, o homem é, em sua existência humana ou que
fala, uma morte mais ou menos adiada e consciente de si. Logo explicar o discurso, ou o homem como ser que
fala, é aceitar sem rodeios a morte [...] Ora, é precisamente o que os filósofos anteriores a Hegel deixaram de
fazer. Hegel não acha isso estranho. Pois sabe que a morte ‘é o que exige mais força’. Diz que o entendimento
exige essa aceitação. Porque o entendimento, por seu discurso, revela o real e revela a si mesmo. E, como ele
nasce da finitude, pensando na morte e falando dela é que ele é de fato o que é: discurso consciente de si e de
sua origem” (KOJÈVE, 2002, p.512).
41
que esvazia e subtrai, acaba por ser o que preside à dessubjetivação necessária à
construtividade do texto. Com isso, evita-se o fúnebre e mórbido, sombrio e melancólico,
mas, o que é mais significativo, rejeita-se na morte o que seria a anulação da palavra, para que
nela subsista a possibilidade construtiva de “não dizer”, pela qual se dá a contingência,
sempre negativa, do sujeito
26
. Trata-se, ao que tudo indica, de uma aprendizagem, de um
agenciamento da negatividade da morte, que se volta contra a figuração da subjetividade, para
negá-la, mas também, constituí-la: sendo o próprio entre-lugar da negação, a instância
subjetiva se faz presente na ão de negar, persistindo, portanto, no instante mesmo em que é
negada.
2.2 Morte e auto-referencialidade
Esse aspecto particular da negatividade na poesia de João Cabral está intimamente
associado à questão da auto-referencialidade do poema, tópico em que a problemática da
morte na linguagem e na literatura se torna mais ampla e controversa, pois, além do vínculo
mais imediato com as noções de representação e de significação
27
, o problema se estende,
ainda, às noções de autoria e sujeito, comunicação e intransitividade, e, de certo modo, à
própria noção de modernidade literária
28
.
26
A noção de “contingência” como um operador de subjetivação, proposta por Agamben (2008), pode ser lida
em complementaridade com a “poética do silêncio” de que fala Modesto Carone (1979). “Tal contingência, tal
acontecer da língua em um sujeito, é outra coisa que o seu efetivo proferir ou não proferir um discurso em ato, o
seu falar ou silenciar, o produzir-se ou não produzir-se de um enunciado. No sujeito, ela tem a ver com o seu ter
ou não ter ngua. O sujeito é, pois, a possibilidade de que a língua não exista, não tenha lugar ou melhor, de
que esta só tenha lugar pela sua possibilidade de não existir, da sua contingência” (AGAMBEN, 2008, p.147).
27
No sentido de que a morte constituiria um princípio de representação verbal”: “ao nomearmos algo, criamos
um objeto mental e reconhecemos a sua ausência [...] Um significado inevitável de ‘obra de arte’ é morte, como
ausência absoluta. Este sentido pode ser atribuído a qualquer imagem e, de fato, pode argumentar-se que é a base
do poder de todas as imagens” (WYATT, 2004, p.37).
28
A abordagem integrada dessas noções à luz da problemática da morte na linguagem caracteriza boa parte da
obra de Michel Foucault:
a) Em O nascimento da clínica, estudo que aborda o surgimento da medicina moderna, no início do
século XIX, o pensador francês atribui à anátomo-clínica o primeiro discurso científico sobre o indivíduo,
justamente quando a morte passa a integrar “positivamente” a experiência médica. A finitude deixa de ser
concebida como a “negação do infinito”, assume um estatuto real, concreto, verificável, que funda a
possibilidade de desvelamento da doença. Isso teria repercutido de modo decisivo na constituição das ciências
humanas, na medida em que “o homem ocidental pôde se constituir a seus próprios olhos como objeto de
ciência, se colocou no interior de sua linguagem, e se deu, nela e por ela, uma existência discursiva por
referência à sua própria destruição” (FOUCAULT, 2003, p.227).
b) O movimento pelo qual o homem toma conhecimento de si próprio é, para Foucault, o mesmo que
serve de base para a literatura da modernidade. Em ambos os casos, a finitude se impõe sobre a relação do
42
O estatuto auto-referencial do texto literário põe em questão os fundamentos da
relação entre o sujeito, a linguagem e o mundo. Em um estudo de grande influência, Hugo
Friedrich (1991) apresenta a perda da função representativa e da subjetividade como resultado
de uma reflexão cada vez mais intensa sobre a própria poesia e, portanto, como o ponto para o
qual convergem, desde Baudelaire, as poéticas da modernidade.
A lírica moderna teria se desenvolvido segundo os critérios de uma dissonância e
obscuridade crescentes. Sua incompreensibilidade é intencional, pois, como diz Friedrich
(1991, p.16), “a poesia não quer mais ser medida no que comumente se chama realidade”,
mas, ao contrário, ela “quer ser [...] uma criação auto-suficiente, pluriforme na significação”.
O caráter não-figurativo das artes plásticas é, muitas vezes, convocado como exemplo dessa
auto-suficiência do texto poético. “Na pintura moderna”, afirma o crítico alemão, “a
composição de cores e de formas, tornada autônoma, desloca ou afasta completamente tudo
aquilo que é objetivo, para se realizar a si própria” (FRIEDRICH, 1991, p.18). Em um
movimento análogo, a poesia se autonomiza em relação à referência e passa a privilegiar a
forma, em detrimento do conteúdo; o poema não mais representa algo exterior, ele cria seus
homem com a morte: no caso da medicina, dando origem a “um discurso científico sob uma forma racional”; na
literatura, a partir de Hölderlin, indicando “uma linguagem que se desdobra indefinidamente no vazio deixado
pela ausência dos deuses” (FOUCAULT, 2003, p.229).
c) Como observa Roberto Machado (2005), para Foucault, a obra do poeta alemão constitui um dos
marcos iniciais da modernidade na medida em que aponta para “a dissolução da aliança entre os deuses e os
homens”, selando “o fim do infinito sobre a terra e o início de um mundo colocado sob o signo da finitude,
submetido à lei ou ao reino do limite” (MACHADO, 2005, p.58).
d) Trata-se de uma concepção de modernidade, indissociável de uma concepção de linguagem, que
Foucault desenvolve no rastro da “morte de Deus”, anunciada por Nietzsche. Esse evento, que o pensador
francês situa na transição do século XVIII para o século seguinte, coincide com a “eclosão de um tipo de
linguagem não-dialética ou não fenomenológica, de uma linguagem vazia, não antropocêntrica, que seria
responsável pelo desmoronamento do sujeito”, como afirma Roberto Machado (2005, p.64), sublinhando a
significativa influência da sentença nietzscheana sobre as reflexões de Foucault acerca da autonomia da
linguagem literária. Tendo na poesia de Hölderlin um de seus primeiros testemunhos, a “morte de Deus”, tal
como a concebe Foucault, “significou o desaparecimento de critérios ou princípios universais externos a que a
linguagem deveria se adequar, abrindo a possibilidade de a linguagem se tornar soberana e a exigência de se
falar na direção da ausência ou do vazio que então se instaurou [...]” (MACHADO, 2005, p.68). Desse
desaparecimento de critérios resultaria o movimento, característico da literatura, pelo qual a linguagem se volta
para si mesma: “não podendo mais se fundar na palavra do infinito e repeti-la, a linguagem depende de si
própria, de seu próprio curso, para manter a morte afastada” (MACHADO, 2005, p.69). A “morte de Deus”
torna-se a expressão paradigmática de uma crise da representação e, como observa Roberto Machado, do
impacto dessa morte sobre os saberes da modernidade, Foucault extrai a possibilidade de delimitar uma
“ontologia formal da literatura”.
e) Partindo do pressuposto de que a linguagem só diz eremete a si mesma — a auto-referencialidade
é por ele pensada principalmente em termos de repetição e duplicação Foucault localiza na literatura uma
relação da linguagem com a morte que acusa não apenas a impossibilidade da representação, como também a
impossibilidade de qualquer ligação entre a subjetividade do autor e o texto, e deste com o mundo exterior.
Como é dito em As palavras e as coisas, a literatura, “dobrada sobre o enigma de seu nascimento e inteiramente
referida ao ato puro de escrever”, encerra-se numa intransitividade radical: “rompe com toda definição de
‘gêneros’ como formas ajustadas a uma ordem de representações e torna-se pura e simples manifestação de uma
linguagem que tem por lei afirmar contra todos os outros discursos sua existência abrupta”
(FOUCAULT, 1999, p.415-6).
43
próprios objetos e a todo instante chama atenção não para o que diz, mas para sua própria
construção. Com isso, o leitor é levado a uma experiência perturbadora, pois, “na lírica, a
composição autônoma do movimento lingüístico, a necessidade de curvas de intensidade e de
seqüências sonoras isentas de significado, têm por objetivo não mais permitirem [...]
compreender o poema a partir dos conteúdos de suas afirmações” (FRIEDRICH, 1991, p.18).
Friedrich fala com freqüência das “categorias predominantemente negativas” da rica
moderna. Tais categorias, em última análise, apóiam-se na completa abolição do real e do
sujeito: é a resposta da arte contra uma realidade cada vez mais comercializada e tecnicista,
que reduz a linguagem ao pragmatismo da comunicação. Dessa abolição do mundo e da
subjetividade surge o conceito de “poesia ontológica”, pressentido por Baudelaire e levado às
últimas conseqüências por Mallarmé. Movido pelo impulso de fugir do real, o trabalho
poético, no entanto, faz questão de exibir sua impotência em “crer ou criar uma
transcendência de conteúdo definido, dotada de sentido” (FRIEDRICH, 1991, p.49). Do jogo
autônomo da linguagem, o que fica é a “idealidade vazia” de Baudelaire, que em Mallarmé
corresponde ao “Ser absoluto”, ou seja, ao “Nada”.
Mallarmé teria herdado e aperfeiçoado a noção, introduzida por Baudelaire, de que a
arte não reproduz, e, sim, forma a realidade. Dá-se, assim, a fundamentação ontológica da
obscuridade e do hermetismo do fazer poético, desativando qualquer conteúdo que não seja o
próprio poema. A escrita mallarmeana marca o advento de uma “linguagem essencial”, que
não remete àquele que a elabora, tampouco àquilo de que se fala. É a linguagem que se fala
no vazio. “O número dos temas torna-se cada vez mais reduzido, o mundo dos objetos
concretos, cada vez mais sem peso”, argumenta Friedrich (1991, p.109): “Onde
originariamente os versos contavam, descreviam, sentiam [...] encontram-se agora versos que
dirigem a atenção para si mesmos, para a essência da linguagem”.
O “eu” empírico lugar à impessoalidade. Trilhando “o caminho que conduz do
sujeito poético a uma neutralidade suprapessoal”, Mallarmé radicaliza a manifestação da
poesia “contra a sociedade comercializada e contra a decifração científica do mistério do
universo”; “a poesia deve ser a anormalidade que virou as costas para a sociedade”
(FRIEDRICH, 1991, p.114-5). É nesse sentido que o projeto mallarmeano rejeita a
comunicação e abole o real. “Comunicação pressupõe comunidade com aquele a quem se
comunica. A linguagem de Mallarmé é, porém, só exteriorização de si mesma” (FRIEDRICH,
1991, p.121). Motivado pelo “anseio de fugir da realidade”, o desafio artístico consiste em
“transferir o objeto concreto à ausência”. Essa “desrealização do real”, como diz Friedrich
(1991, p.123), surge “como conseqüência de uma incoerência, entendida ontologicamente,
44
entre realidade e linguagem”. Tal proposição resume a idéia “poesia pura”, fundamentada na
perda do objeto efetivada pela palavra poética:
Mallarmé interpreta poesia como aniquilamento do objeto concreto, completando
este pensamento com o outro de que tal aniquilamento acontece porque o objeto
deve tornar-se na palavra ‘idéia pura’, essência espiritual. Mas esta “idéia” não pode
existir em lugar algum a não ser na palavra poética [...] A poesia torna-se uma ão
que, solitária, irradia seu jogo de sonho e seu som mágico num mundo aniquilado. O
que exprime nas camadas mais profundas de suas significações são figuras abstratas
e tensões de ambigüidade ilimitada (FRIEDRICH, 1991, p.128).
A auto-referencialidade torna-se um dos grandes paradigmas das poéticas da
modernidade, assim como o problema da morte que a ela se associa de modo determinante,
pontuando, alegoricamente, aquilo que Friedrich (1991, p.110) chama de “desumanização da
arte”, que começa pela exclusão da subjetividade de quem escreve e acaba por excluir a
humanidade em geral. Por trás disso está o fato de que, na poesia, a morte deixa de ser uma
temática: torna-se um procedimento inseparavelmente contido na atividade poética. Escrever
é decretar a “morte” do referente e, ao mesmo tempo, a “morte” de quem fala. Na esteira
dessas duas determinações, decreta-se a “morte” da comunicação, do sentido e da própria
literatura. Mallarmé, diz Friedrich (1991, p.119), “impele sua obra até aquele ponto em que
ela se anula a si própria e anuncia o fim da poesia em geral. O singular é que esse processo se
repete várias vezes na poesia do século XX. Deve, portanto, corresponder a uma profunda
tendência do modernismo”.
Se a atitude é moderna, os termos da discussão, no entanto, são antigos. Da conexão
entre linguagem e morte resultam duas das mais remotas (e contraditórias) definições de
homem: “Na tradição ocidental”, observa Agamben (2006, p.10), “o homem figura como o
mortal e, ao mesmo tempo, como o falante. Ele é o animal que possui a ‘faculdade’ da
linguagem e o animal que possui a ‘faculdade’ da morte”. Em uma passagem célebre de “A
essência da linguagem”, Heidegger (2003, p.170-1) afirmava: “Mortais são aqueles que
podem fazer a experiência da morte como morte. O animal não é capaz dessa experiência. O
animal também não sabe falar. A relação essencial entre a morte e a linguagem lampeja, não
obstante ainda de maneira impensada”. Essa noção de homem como “ser finito dotado de
linguagem”, bem como a “impensável” relação entre as duas dimensões que a constituem, é,
segundo Agamben, o que faz com que, desde Aristóteles, “o problema do ser”, inseparável do
problema de sua indicação pela palavra, apresente um caráter fundamentalmente negativo;
negatividade que também atravessa a reflexão teológica, como ocorre, por exemplo, na
tradição hebraica, com o “nome secreto e impronunciável de Deus” (AGAMBEN, 2006,
45
p.48). A contradição estaria no problema insuperável gerado pelo pressuposto de um elo
primordial entre essas duas “faculdades” humanas. Se o poder de nomear e de fazer referência
aos objetos do mundo está intimamente relacionado à consciência da finitude, se esse nexo se
traduz na negação/morte de todo objeto nomeado, a morada mais própria do homem, a
linguagem, é, paradoxalmente, o que, de antemão, lhe suprime a existência.
Blanchot faz dessa questão o ponto de partida para muitas de suas reflexões sobre as
correspondências entre a morte, a negatividade da linguagem e a escrita literária:
A palavra me o que ela significa, mas primeiro o suprime. Para que eu possa
dizer: essa mulher, é preciso que de uma maneira ou de outra eu lhe retire sua
realidade de carne e osso, que a torne ausente e a aniquile. Ela é a ausência desse
ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não
é. Desse ponto de vista, falar é um direito estranho. Hegel [...] num texto anterior a
A fenomenologia, escreveu: “O primeiro ato, com o qual Adão se tornou senhor
dos animais, foi lhes impor um nome, isto é, aniquilá-los na existência (como
existentes).” [...] O sentido da palavra exige, portanto, como preâmbulo a qualquer
palavra, uma espécie de imensa hecatombe, um prévio dilúvio, mergulhando num
mar completo toda a criação. Deus havia criado os seres, mas o homem teve de
aniquilá-los (BLANCHOT, 1997, p.310-1) (grifos do autor).
A linguagem anuncia a finitude daquilo que nomeia. A morte, dessa forma, seria como
que uma condição para que a linguagem exista, no sentido de que a “coisa nomeada”,
separada de sua presença “real”, não depende mais de seu aqui/agora para existir não
depende mais de seu próprio “ser”, dirá Blanchot. A linguagem pressupõe essa supressão,
essa falta: ela está em relação não com as coisas, mas com a ausência delas. “Na palavra,
morre o que dá vida à palavra; a palavra é a vida dessa morte” (BLANCHOT, 1997, p.314). A
recusa em trazer à tona esse desaparecimento seria uma característica da “linguagem comum”.
Na literatura, a questão não só tende a ser explicitada, como ainda se torna mais problemática.
Assim como Friedrich, Blanchot, também à luz da “linguagem essencial” e esvaziada
de Mallarmé, concebe o literário como aniquilamento do mundo e do sujeito, mas o que para
o crítico alemão indica uma atitude histórica, ainda que negativa, para o pensador francês
indicará “a interrupção — ou, para falar hiperbolicamente, ‘o fim da história’” (BLANCHOT,
2001, p.9); indicará, portanto, uma atitude autotélica ainda mais incisiva, uma questão que,
desde o mito fundador da lírica (Orfeu), apresenta-se imanente à origem de canto, isto é, ao
“canto como origem”, pois nada o antecede. Se essa questão é evidenciada pela literatura da
modernidade é porque esta coincidiria com o desmoronamento do logos clássico
29
:
29
Na abertura de A conversa infinita, Blanchot argumenta que a literatura pressupõe “não mais a escrita que
sempre se pôs (por uma necessidade nada evitável) a serviço da palavra ou do pensamento dito idealista, ou seja,
moralizante, mas a escrita que, por sua força própria lentamente liberada (força aleatória de ausência), parece
46
Para Blanchot, a palavra literária, destituindo-se de suas funções referenciais, opera
uma mudança na natureza da linguagem Os sentidos soçobram, a significação torna-se
instável e indeterminada, nenhum elemento pode ser definido de maneira absoluta. Perdendo
seu valor de “sinal” e não remetendo a nenhum referente exterior ao texto, a palavra literária
deixa de lado a ilusão de representar um mundo dado, para instaurar uma realidade verbal
própria. Essa realidade é o que Blanchot chama de “o fora” (dehors), o não-lugar da literatura,
no qual a intimidade do sujeito é substituída pela pura exterioridade de uma linguagem que
torna possível “a existência sem o ser”. Em termos blanchotianos, essa existência equivale à
noção de “morte como impossibilidade de morrer” (1997, p.316).
É pelo viés da “impossibilidade da morte” que Blanchot apresenta uma visão radical
da “despersonalização”, entendida como a passagem da interioridade do “eu” à exterioridade
do “ele” e do “isto” que origem ao “neutro”, a instância textual responsável pela
enunciação do texto literário
30
. A idéia de morte como impossibilidade tem ao menos dois
outros propósitos imediatos, também vinculados à perda da subjetividade: por um lado,
inverter o postulado de Heidegger, segundo o qual a morte seria uma certeza e um ponto
extremo da “possibilidade de ser-aí” (Dasein)
31
; por outro, questionar a dialética de Hegel,
que faz da negatividade da morte a positividade da ação pela qual o homem se constitui
32
.
Como dirá Blanchot (1987, p.101), “a morte nunca está presente” e, portanto, não pode ser
entendida como uma singularidade do sujeito. A morte é “o que nunca me acontece, de sorte
que jamais ‘eu morro’ mas ‘morre-se’, morre-se sempre outro que não eu, ao nível da
neutralidade, da impessoalidade de um Ele eterno” (BLANCHOT, 1987, p.241). Nesse
sentido, a literatura, em sua errância e contestação de todo poder, faz objeção ao próprio
poder negativo da morte e do morrer. Se na negatividade da morte reside a possibilidade da
palavra (e do homem), no caso da literatura, revoga-se o antropológico “direito à morte”, a
consagrar-se apenas a si mesma, permanecendo sem identidade e, pouco a pouco, libera possibilidades
totalmente diferentes [...] um jeito por intermédio do qual tudo é questionado, e, para começar, a idéia de Deus,
do Eu, do Sujeito, depois da Verdade e do Uno, depois a idéia do Livro e da Obra, de maneira que essa escrita
(entendida em seu rigor enigmático), longe de ter por meta o Livro, assinalaria, antes, seu fim: escrita que se
poderia dizer fora do discurso, fora da linguagem” (BLANCHOT, 2001, p.8).
30
Com base nessa noção, Gilles Deleuze, irá argumentar que a experiência literária es na via oposta do
postulado lingüístico de Benveniste, que localiza na relação “eu/tu” a condição da enunciação, ao afirmar que
“escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. [...] As duas primeiras
pessoas do singular não servem de condição à enunciação literária: a literatura começa quando nasce em nós
uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu” (DELEUZE, 1997, p.11-3).
31
Na crítica a Heidegger, Blanchot endossa o pensamento de Emmanuel Lévinas (2003, p.47), para quem a
morte é “abertura para o que não traz qualquer possibilidade de resposta”. “A morte”, dirá o filósofo lituano, “é a
possibilidade da impossibilidade radical de ser-aí” (LÉVINAS, 2003, p.68).
32
“Hegel nos fala da positividade da negação onde o sujeito nega a natureza, assimilando-a e transformando-a e
assim constituindo-se como homem; trata-se de uma ação criadora, que não é negatividade absoluta
(SCHÄFFER, 2002, p.152).
47
partir do momento em que o texto confere vida própria aos objetos que o compõem, abolindo
o mundo e fazendo surgir em seu lugar uma série de objetos ausentes, sem um começo ou fim,
que afirmam o que a linguagem havia negado. No espaço literário, a morte inscrita na negação
da linguagem não se conclui e essa impossibilidade impede a síntese do processo dialético,
convertendo-se em impotência de negar, ou seja, em impotência de agir no mundo
33
.
2.3 A morte e o “real”
A esta altura, talvez seja possível antever o tenso diálogo e, ao mesmo tempo, o
grande intervalo que se projeta entre a obra poética de João Cabral e a auto-referencialidade
concebida em seus fundamentos mais radicais. Para Costa Lima (1995), é na resposta a essa
problemática da lírica moderna que o poeta pernambucano começa por fundar a singularidade
de sua poesia. O percurso de João Cabral, argumenta o crítico, procede do “eixo Baudelaire-
Mallarmé”, mas, de imediato, “desaparecem o esoterismo e a tendência a nadificar o mundo,
retirando da sua ausência a presença mesma do objeto poemático assim reafirmado” (LIMA,
1995, p.213). A diretriz da poesia cabralina será, pelo contrário, a do “concreto-real”. “Ela
parte e volta ao concreto, em cada um destes momentos procurando mais intimamente dele se
acercar, não por um processo de empatia, mas de nomeação” (LIMA, 1995, p.257). É a busca
pelo objeto concreto que coloca em xeque o poder nomeante da palavra, e não o oposto. Disso
decorre como que uma inversão daquilo que Mallarmé (2006, p.66) reivindicava em “A
tumba de Edgar Poe” Donner un sens plus pur aux mots de la tribu”; “por um sentido
mais impuro” (e também mais depurado) será a via escolhida por João Cabral.
Afastando-se da intenção de criar o “poema-em-si”, “Cabral não concede que a poesia
necessite camuflar-se para se não confundir com o mundo ‘impuro’. Ao contrário, é mesmo
por se mostrar em relação com ele, dele derivada embora sem com ele se equiparar, que
deriva sua força possível” (LIMA, 1995, p.254).
Com esse movimento que integra a preocupação com a transitividade do poema ao
questionamento do próprio fazer poético, João Cabral teria realizado uma “traição
conseqüente” das poéticas da modernidade com as quais dialoga abertamente, desde sua
estréia na literatura:
33
Sobre a impossibilidade da morte, o “fora” e o “neutro” em Blanchot, bem como sobre o diálogo do pensador
francês com Lévinas, Heidegger e Hegel, ver o estudo minucioso de Leslie Hill, 1997, p. 114-157.
48
Mantendo a primazia da palavra e da inteligência sobre as emoções e os
sentimentos, Cabral revê, entretanto, o que sua arte tem a ver com a realidade de que
parte [...] Nem para Baudelaire, nem para Mallarmé, nem para Valéry ou Guillén
teria sentido impor-se novos deveres em virtude da comunicação que houvesse de
ser feita [...] E o que o distingue dos poetas estrangeiros que se lhe fizeram mais
próximos não é tanto esta consciência, quanto a solução que visa. João Cabral
compreende que ao poeta contemporâneo, ao lado de uma expressão nova, cabe a
preocupação por um novo tipo de comunicação. Neste ponto não é possível traçar
nenhum paralelo com os poetas citados, porquanto é a própria atitude perante o
mundo que radicalmente se modifica. Enquanto neles a palavra tende a instaurar a
aniquilação do real em que se tivesse baseado, em Cabral o poeta tem uma dupla
responsabilidade, responsabilidade enquanto artista e não meramente ética.
Responsabilidade artesanal, pela qualidade do que escreve, responsabilidade
humana, embora também artesanal, em não fraudar a realidade pelo uso de um
instrumento que, dela não sendo mais que um sinal, pode-se converter em uma peça
contrária aos que nela vivem enganchados, sem outra possibilidade que a do viver pé
no chão. Com esta carga de coordenadas, João Cabral se torna o autor de que, direta
ou indiretamente, partem todos os nossos movimentos poéticos atuais [1966],
preocupados com a qualidade de seu dizer e a comunicação que devem forçar
(LIMA, 1995, p.265-6).
Não se trata de um retorno a noções pré-saussurianas de representação ou de uma
superação evolucionista dos poetas que o antecederam. Acontece que, em João Cabral, o
direcionamento à realidade, por integrar um projeto comunicativo mais amplo, não se curva
docilmente diante de uma visão fantasmática, apocalíptica e, de todo modo, unilateral da
referência
34
.
Além disso, no âmbito do diálogo com as poéticas da modernidade, há um dado
biográfico de significativa relevância, a saber, o ingresso de João Cabral na carreira
diplomática em 1945, o que, dois anos depois, levaria o poeta ao seu primeiro posto
internacional, na Espanha. Somado ao adensamento da preocupação social e comunicativa do
exercício poético assinalado de passagem no “mundo justo que nenhum véu encobre” com
o qual sonhava O engenheiro o fascínio diante da literatura espanhola, de inclinação
34
Em relação ao esquema de Friedrich, Compagnon (1996, 2001) aponta alguns pontos falhos do que chama de
“narrativa ortodoxa da tradição moderna”, baseada na generalização sociológica de que toda história do poema
moderno se resume à fuga diante de uma realidade desagradável. Não obstante, a autonomia da literatura em
relação ao mundo, fundada sobre a noção de que o signo abole o real, teria misturado de forma indistinta e, não
raro, equivocada, o legado de Mallarmé às premissas de algumas das correntes teóricas mais influentes do século
XX, como o formalismo russo, o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Seja questionando a explicação
“histórico-genética” de Friedrich, seja apontando incongruências na tese antimimética de Barthes e Riffaterre
e, aqui, incluem-se diversos aspectos do pensamento de Blanchot Compagnon (1996, p.47) vale-se das
objeções levantadas por Paul de Man para contestar “que o pretenso desaparecimento do objeto seja realizado,
em Mallarmé, em proveito de uma lógica puramente intelectual e alegórica”. Nos textos mais herméticos do
poeta francês, “as palavras, segundo De Man, dependem também ou ainda de níveis de significações que
permanecem representacionais e simbólicos, isto é, dependem de significações prévias. Os poemas de Mallar
querem todos dizer alguma coisa” (COMPAGNON, 1996, p.47). “Se Mallarmé postula um limite não referencial
para a poesia e tende de fato a reduzir o papel da referência em poesia, sua obra não se situa porém nesse limite,
que a tornaria afinal de contas inútil, mas mais ou menos longe da assíntota que a ela conduz” (COMPAGNON,
2001, p.138).
49
realista e ancorada em fontes e formas populares, significou, dentre outras questões, certo
afastamento da literatura francesa, tão presente nas bases do processo formativo de João
Cabral (a carreira diplomática, ao que tudo indica, também contribuiu para o desenvolvimento
da temática nordestina, que aparece em sua obra depois do seu afastamento do país). A
influência francesa, de fato, não é abandonada. Em Baudelaire, Mallarmé e Valéry
encontram-se as matrizes da valorização da construtividade que nortearão todo o percurso
poético cabralino. Mas a experiência espanhola inaugura outros horizontes, a começar pelo
riguroso horizontede Jorge Guillén, não por acaso escolhido como epígrafe de Psicologia
da composição. Esse horizonte severo é também o tema de “Fábula de Rafael Alberti”,
poema dedicado ao poeta espanhol contemporâneo de Guillén e datado do mesmo ano de
Psicologia da composição, mas publicado em livro somente em Museu de tudo, quase trinta
anos depois
35
. O caminho trilhado por Alberti será o percurso realizado pelo poeta
pernambucano: “Fez o caminho inverso: / do vapor à gota de água / (não, da vida ao sono, / ao
sonho, ao santo); / foi da palavra à coisa, / seja dolorosa a coisa, / seja áspera, lenta, difícil, / a
coisa (1997b, p.87).
Na prática, esse caminho inóspito que, partindo da palavra, faz da “coisa” sua “causa”,
consolida-se quando, em 1950, vem a público O cão sem plumas. Para dizer a “coisa”, o
caminho inverso conduz não à “morte do real”, mas à “morte no real”, que a morte não se
difere tanto da vida nas margens do Capibaribe
36
. O poeta da pedra, após o circuito negativo
de Psicologia da composição, retorna ao que “flui”, mas o que flui agora é “como uma
espada de líquido espesso / Como um cão humilde e espesso”. Essa espessura, densa de
miséria (e, portanto, de fome e escassez) é associada à vida e ao “real”:
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio
[...]
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
35
O poema teve duas publicações em periódicos, em 1953, no Brasil, e em 1957, em Portugal (Cf.
CARVALHO, 2006, p.31-2).
36
A vida precária, ou seja, a morte, teria sido uma motivação para o texto. Em entrevista a Secchin, em 1980, o
poeta, referindo-se a O cão sem plumas, afirmara: “Esse livro nasceu do choque emocional que experimentei
diante de uma estatística publicada em O observador econômico e financeiro. Nela, soube que a expectativa de
vida no Recife era de 28 anos, enquanto na Índia era de 29” (In: SECCHIN, 1999, p.329).
50
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas (1997a, p.84-5).
É ainda de uma morte igualmente espessa e real que se fala. O rio é o lugar da perda
do fio de vida que resta aos homens que habitam suas margens. Estes,
Na água do rio
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama (1997a, p.74).
O espaço descrito é da ordem do desfalque, da subtração, da falta do mínimo
necessário ao que vive, e a escrita indica em si mesma esse espaço de corrosão. O cão sem
plumas assim define a expressão que o intitula:
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem). (1997a, p.76-7)
A designação “sem plumas”, pela ênfase na falta, relaciona “rio”, “cão” e “homem”.
Essa falta está na disposição gráfica, sintática e simbólica do poema e é por ela que o discurso
poético, roído e sem ornamentos, faz referência a si: contra a “linguagem emplumada”, “sem
plumas” é a própria escrita cabralina, porque nada é enfeite na paisagem de que se fala. A
pertinência dessa co-designação, por sua vez, sugere que, entre o rio e o fazer poético, existe
uma identificação mútua, ainda que estabelecida pela falta e pela perda. Ocorre que, por meio
51
dessa identificação, a perda e a falta se relativizam. Afinal, contrariando todas as
probabilidades, há algo que resiste na condição de resto: seja a vida nos mangues, seja a
possibilidade da palavra poética. Observada de perto, essa identificação “pelo que resta”
indicará, talvez, o lugar mais próprio do testemunho (espesso/rarefeito lugar do sujeito) na
poesia de João Cabral.
37
O encontro do rio indigente com o mar, na penúltima seção do poema, poderia ser lido
como o enfrentamento entre essa impureza anti-lírica do resto e a poesia que se purifica ao
evitar ou ao aniquilar o real:
Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.
Depois,
o mar invade o rio.
Quer o mar
destruir o rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que resta nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha
uma fruta.
Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos,
onde, fria, a vida ferve.
Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
37
No sentido de que “dar testemunho significa pôr-se na própria língua na posição dos que a perderam, situar-se
em uma língua viva como se fosse morta, ou em uma língua morta como se fosse viva em todo caso, tanto
fora do arquivo, quanto fora do corpus do já-dito. Não causa surpresa que tal gesto testemunhal seja também o
do poeta, do auctor por excelência. A tese de Hölderlin, segundo a qual ‘o que resta, fundam-no os poetas’ não
deve ser compreendida no sentido trivial, de acordo com que a obra dos poetas é algo que perdura e permanece
no tempo. Significa, sim, que a palavra poética é aquela que se situa, de cada vez, na posição de resto, e pode,
dessa maneira, dar testemunho. Os poetas as testemunhas fundam a língua como o que resta, o que
sobrevive em ato à possibilidade ou à impossibilidade de falar” (AGAMBEN, 2008, p.160). Sobre a
questão do resto na poesia de João Cabral, ver também o artigo de Roberto Vecchi (2000, p.187-200).
52
de fruta parada (1997a, p.82).
Nesse confronto, a negativa penúria do rio adquire a mesma orientação positiva do
poema enquanto luta de contenção e construção (a própria ética da pedra). A propósito de
“Antiode”, foi dito que a inutilidade da metáfora orgânica (“flor”) indicava a ineficácia da
poesia morta. Em O cão sem plumas, tal proposição poderia ser invertida: a utilidade da
metáfora orgânica é a eficácia da vida (e da palavra) que resta. No instante em que finda seu
curso e deixa de fluir, o que resta do rio junta-se ao resto de outros rios e resiste à força
destrutiva do mar (resto e resistência compartilham uma mesma origem etimológica). O
mecanismo dessa resistência é a lição poética de sua fábula:
(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:
A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.
Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres.) (1997a, p.82-3).
Aqui, a Fábula do Capibaribe” lembra aquela outra de Rafael Alberti. A opção do
poeta, sua “simpatia calada”, recai não sobre o que foge, mas sobre a coisa que resiste e,
resistindo, revela a força de um engenho e de uma maturação que, em mínimas porções (gota
a gota), é capaz de fazer emergir uma construção onde tudo impele à perda e à desistência;
“tudo o que resta nessa terra / pode crescer e explodir, como uma ilha / uma fruta”. Como o
próprio poema. No texto de abertura de Paisagens com figuras, o poeta retornará a esse
aprendizado:
E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
53
entre cimento e esclerose
com sua marcha quase nula,
e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de apodrecer
vidas inteiras a fio,
podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida
38
(“Pregão turístico do Recife”, 1997a, p.119-20).
Mais uma vez, o que está em questão não é a negatividade em si, mas seu
agenciamento. Foi o que observou Benedito Nunes (2007, p.48): “Todo ser violentado [...] é
um cão sem plumas. Exposto a uma geral corrosão, ele é natureza desfalcada. Sua forma de
existir é não-ser, pois que ele existe como realidade negada em si mesma”. No entanto,
prossegue o crítico, “invadidas pelas águas do mar [...] as do rio se contraem, num
adensamento resistente, que converte a negatividade de sua condição numa força contrária, de
fruta que amadurece ou de luta que começa” (NUNES, 2007, p.49). É nesse sentido que, “pela
sua própria natureza carente [...] a realidade humana, concentrada na imagem do cão sem
plumas, é uma realidade espessa e contundente, cortante e agressiva, capaz de afirmar-se a si
mesma, rejeitando a negação que a reduz ao não-ser” (NUNES, 2007, p.49).
Essa “força contrária” em que se converte a negatividade — “força construtora”, pode-
se supor — ainda assim, é negativa (o próprio adjetivo o sugere: “contrária”). Ela é a
negação-positiva (“capaz de afirmar-se a si mesma”) de uma negação-negativa (“negada em si
mesma”, “que reduz ao não-ser”). Em João Cabral, a positividade da palavra poética, desse
modo, é fundamentalmente negativa, assim como aquela conquista da possibilidade de “não
dizer” que se apresenta como marca de dessubjetivação e de subjetividade em Psicologia da
composição. O sim é contra o sim. Com esse novo direcionamento à realidade objetiva, o que
está em jogo também remete a um processo (negativo) de subjetivação: a possibilidade de
“não-dizer” converte-se em possibilidade de “dizer não”. E de dizer a coisa.
Em uma passagem de “Morte e vida severina”, Severino, no curso de sua retirada,
chega a uma casa em que cantam “incelências” para um defunto, “enquanto um homem, do
lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores”. O trecho é interessante porque a
estrutura do poema é parodística: um auto de natal pernambucano, em que a morte, como
indica o título, precede a vida. Os cantadores recomendam ao finado: quando passares em
38
Os versos finais do poema invertem uma passagem do Eclesiástico (11, 28): “em seu fim é que se conhece o
homem”.
54
Jordão / e os demônios de atalharem / perguntando o que é que levas... / Dize que levas
cera, / capuz e cordão / mais a Virgem da Conceição(1997a, p.152) (grifos do autor). A
paródia do “homem do lado de fora” é, literalmente, um “contra-canto”
39
; nela, a
recomendação não é propriamente para o morto e, talvez, nem mesmo para Severino, mas
para um certo discurso que canta e orna a morte. Ela resume um ideal poético, desmistificador
e negativo, que vai do fato bruto da morte ao humor negro, dizendo “não” ao dizer a “coisa”:
Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação (1997a, p.152).
A própria possibilidade desse humor diante da morte reforça aquela idéia de conversão
da negatividade em “força contrária” de resistência, força, a um só tempo, negativa e positiva,
ética e também poética. Pois que a possibilidade do riso diante da morte é afim à possibilidade
de “dizer não”
40
.
***
A partir desse novo direcionamento à realidade, o humor negro e a ironia marcarão
definitivamente a temática da morte na poesia cabralina, tanto no plano social (cujo melhor
exemplo talvez seja Dois parlamentos), quanto na problemática “existencial” da morte
(“existencial”, mas ainda assim anônima e objetiva, como atestam os poemas da seção “A
indesejável das gentes”, de Agrestes). A densa sobreposição entre esses dois planos é notória
em A educação pela pedra e A escola das facas. A questão, de todo modo, conduz a um
ponto capital da obra do poeta pernambucano: a dimensão comunicativa da atividade
poética
41
.
39
“Paródia: Gr. paroidía, para, oidê, contra-canto, canto paralelo, pelo lat. parodia” (MOISÉS, 2004, p.340).
40
Como observa Lélia Duarte (2006, p.51), o riso está relacionado “com a tragicidade da vida, mas também com
a capacidade de distanciamento: o prazer de pensar, o gosto do engano e a possibilidade de subverter
provisoriamente, através do jogo, a condenação à morte e tudo aquilo que a representa”.
41
Uma vez que a estrutura da ironia é comunicativa: “nada pode ser considerado irônico se não for proposto e
visto como tal; não há ironia sem ironista, e este será alguém que percebe dualidades ou múltiplas possibilidades
de sentido e as explora em enunciados irônicos, cujo propósito somente se completa no efeito correspondente,
isto é, numa recepção que perceba a duplicidade do sentido e a inversão ou a diferença existente entre a
mensagem enviada e a pretendida” (DUARTE, 2006, p.19).
Desde já, é interessante notar que, com sua ironia corrosiva, Cabral se (re)aproxima de Baudelaire justamente no
aspecto negligenciado pela tese da ontologia literária: “Ora, essa ironia, desconhecida pela intriga histórico-
genética, era magistral em Baudelaire, que dela propunha uma definição em Da essência do Riso, como o
resultado [...] de uma ‘dualidade permanente, o poder ser ao mesmo tempo nós mesmos e um outro’. Mas a
55
Em “Poesia e composição”, conferência sobre as diferenças entre a inspiração e o
trabalho artístico, proferida em 1952, João Cabral discute o tema abertamente. Sem o leitor
não haveria literatura. A colocação é óbvia, mas tem desdobramentos que se confundem com
o próprio estatuto do texto literário na modernidade. O artista moderno, em face da exigência
da “arte autêntica”, teria “substituído a preocupação de comunicar pela preocupação de
exprimir-se, anulando, do momento da composição, a contraparte do autor na relação literária,
que é o leitor e sua necessidade” (MELO NETO, 1998, p.53). A autenticidade, no caso,
identifica-se à expressão pessoal, mesmo quando parece evitá-la. A crítica é endereçada não
apenas à herança romântica, à poesia inspirada ou ao automatismo surrealista, mas à própria
concepção de arte como trabalho racional e construtivo, que, levada ao extremo, pode se
tornar narcisista, voltando-se única e exclusivamente sobre si mesma. “É em nome da
expressão pessoal, e para lográ-la, que se valoriza a escrita automática e é ainda em nome da
expressão pessoal que se defende a absoluta primazia do trabalho intelectual na criação,
levado a um ponto tal que o próprio fazer passa a justificar-se por si só, e torna-se mais
importante do que a coisa a fazer” (MELO NETO, 1998. p.56). Aqui, ao discutir a
valorização do fazer, João Cabral retoma e esclarece alguns aspectos de seu estudo sobre
Miró, chamando atenção para questões decorrentes de uma posição radical nesse sentido. O
autor cita o caso de certos poetas “que se dedicaram, com intenções seríssimas, à exploração
de certas qualidades de ressonância, ou mesmo semânticas, de palavras isoladas, isto é, de
palavras que não devem servir, que não devem transmitir idéias”; tais poetas, “metafísicos da
palavra”, dirá João Cabral (1998, p.63-4), “acabaram todos entregues a uma poesia puramente
decorativa. Se se caminha um pouco mais na direção apontada por Mallarmé, encontra-se o
puro jogo de palavras”. Ainda que se trate de um trabalho, e não do resultado de uma
inspiração, esse puro jogo, desconsiderando por completo o leitor, incorreria na “morte da
comunicação, e nela esse tipo de poesia iria se encontrar com a outra incomunicação, a do
balbucio, que, por outros caminhos, estão também buscando os poetas do inefável e da escrita
automática” (MELO NETO, 1998, p.67).
Ao destacar a importância da comunicação, João Cabral não postula a submissão do
texto à transmissão de informações e, sim, uma dificuldade a mais para o trabalho do artista: a
consideração do ato pragmático que se configura co-extensivo ao ato de dizer. De certa forma,
toda sua crítica se concentra sobre o individualismo (diga-se, lírico) “do escritor que se em
narrativa ortodoxa privilegia o lado trágico ou mallarmeano da dobra crítica, em detrimento da ironia e da
melancolia baudelairianas; ela escolhe, em Baudelaire, os traços adequados para fazer dele um ponto de partida;
ela privilegia um certo Baudelaire, em detrimento do outro. A dualidade é, porém, essencial na verdadeira
modernidade baudelairiana” (COMPAGNON, 1996, p.48).
56
espetáculo juntamente com sua obra” (MELO NETO, p.1998, p.60). É, portanto, interessante
observar que para o poeta pernambucano, na comunicabilidade encontram-se as bases teóricas
da despersonalização necessária ao ofício literário. Neste ponto, a posição de João Cabral é
esclarecedora: a dessubjetivação é uma estratégia comunicativa e é assim que o trabalho
artístico deveria tê-la em vista: no sentido de “desligar o poema de seu criador, dando-lhe uma
vida objetiva independente, uma validade que para ser percebida dispensa qualquer referência
posterior à pessoa de seu criador ou às circunstâncias de sua criação” (MELO NETO, 1998,
p.60). Ao retornar a essa questão dois anos mais tarde em “Da função moderna da poesia”,
tese apresentada no Congresso de Poesia de São Paulo, João Cabral adotará uma visão ainda
mais dura e direta sobre o problema:
Escrever deixou de ser para tal poeta [moderno] uma atividade transitiva de dizer
determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever é agora atividade
intransitiva, é para esse poeta, conhecer-se, examinar-se, dar-se em espetáculo; é
dizer uma coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela. O alvo desse
caçador não é o animal que ele passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema
sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça
achar-se na sua trajetória. [...]
No plano dos tipos problemáticos, tudo o que os poetas contemporâneos
obtiveram, foi o chamado “poema” moderno, esse híbrido de monólogo interior e de
discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de
hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou
desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado
indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda
enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma consideração
acerca de sua possível função social de comunicação. O poeta contemporâneo
chegou a ele passivamente, por inércia, simplesmente por não ter cogitado do
assunto. Esse tipo de poema é a própria ausência de construção e organização, é o
simples acúmulo de material poético, rico, é verdade, em seu tratamento do verso,
da imagem e da palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito
(MELO NETO, 1998, p.99-101).
São posições que permaneceriam constantes ao longo da obra de João Cabral, como
sugere a “Nota do autorque abre a coletânea Poesia crítica”, publicada quase trinta anos
mais tarde:
Quanto à idéia de, em poesia, falar de poesia ou de outras formas de criação, crê o
autor que ela parecerá coisa estranha a quem ignora tudo do que escreveu. Quem
teve contacto com pouca parte de sua obra, sabe que ele nunca entendeu a linguagem
poética como uma coisa autônoma, intransitiva, uma fogueira ardendo por si, cujo
interesse estaria no próprio espetáculo de sua combustão [...] (MELO NETO, 1982,
p.v-vi)
A comunicação orienta a estruturação de Duas águas, a célebre coletânea de 1956,
que alimentou especulações em torno de uma espécie de linha divisória na obra cabralina: na
57
“primeira água”, poemas metalingüísticos, na “segunda”, textos de crítica social
42
. Mas como
a crítica do poeta por diversas vezes sublinhou, a busca pela comunicabilidade se
apresentará sempre em estado de tensão. O que ganha destaque no processo inaugurado por O
cão sem plumas e presente ao longo de toda a obra posterior de João Cabral, não é a
“adequação” do poema a um assunto ou mensagem e, sim, uma complexa tentativa de
conexão entre o conteúdo temático e os procedimentos formais mobilizados na construção do
texto. O problema da referência torna-se decisivo. “A poesia de João Cabral”, diz Marta
Peixoto (1983, p.11), “desautomatiza o nexo entre palavra e coisa, ao mesmo tempo que
busca motivar o vínculo arbitrário que liga a palavra ao objeto, estabelecendo entre ambos
uma relação de semelhança”. Sob a denominação de “imitação da forma”, essa motivação é
examinada em detalhes por João Alexandre Barbosa. Trata-se do modo com que a escrita de
João Cabral se aproxima por imitação dos objetos que integram seus quadros referenciais (não
apenas objetos da realidade concreta, mas também linguagens alheias: poetas, escritores,
artistas plásticos, dançarinas, toureiros, arquitetos etc.). Tal “mimese de linguagens” está
diretamente relacionada à preponderância realista e ao problema da comunicação. A
preocupação com a transitividade, explicitada na crítica social e histórica, “não despreza,
antes incorpora de modo bastante agudo, as conquistas de uma experiência com a linguagem
poética levada ao extremo da negatividade e da abstração daí decorrente” (BARBOSA, 2002,
p.297). Isso, segundo o crítico, equivale a dizer que a própria possibilidade de um
direcionamento à realidade sócio-histórica passa a ser dependente de uma crítica constante à
linguagem. A representação do real” parte da indagação acerca da palavra. Nesse sentido, “a
transitividade, que pode enganosamente parecer óbvia, é relativizada pelo que há, como
sempre, de abstrato e, portanto, de intransitivo, no trabalho com a linguagem”
43
(BARBOSA,
2002, p.297).
Essa talvez seja a razão pela qual, “apesar do esforço de transparência comunicativa, a
linguagem cabralina tanto mais encobre quanto menos deseja ocultar. Convocada para
permear invisivelmente o contacto do homem com o real, denuncia-se como máscara ou filtro
mediador” (SECCHIN, 2000, p.106). Como observa Secchin (2000, p.106), “Cabral não
trabalha de maneira ingênua com a certeza de reproduzir uma realidade neutra do isto, da
42
Benedito Nunes (2007, p.50-3) discute alguns equívocos que permeiam essa divisão entre uma poesia
metalingüística e outra participante. Trata-se, na verdade, de “uma distinção na tática de comunicabilidade”,
estabelecida menos no plano temático do que no plano “da dicção”; a expressão “duas águas” corresponde,
portanto, a “dois tipos de dicção que se distinguem em função do destinatário e da modalidade de consumo do
texto”.
43
“Dizendo de outra maneira: o encontro da transitividade possível, e que será o motor principal da continuidade
da poesia de João Cabral, não se fez com o abandono de uma consciência poética agudizada pelos limites da
intransitividade — o legado [...] dramático do tríptico de 1947” (BARBOSA, 2002, p.298).
58
terceira pessoa; interessa-lhe primordialmente explorar tudo o que se deixa entreler no dado
empírico como sistema de linguagem [...](grifos do autor). Isso porque, na poesia cabralina,
aquilo de que se fala (o “real”, a “coisa”, o “concreto”) é engenhosamente construído tanto
quanto o modo que se fala.
Uma pista nesse sentido encontra-se em um texto publicado na própria coletânea de
1956: trata-se de “Uma faca lâmina”, poema-chave da configuração do pathos na
linguagem de João Cabral
44
. Os elementos “bala”, “relógio” e “faca”, aproximados entre si
por uma rede de suposições e equivalências assimilativas (“bala que possuísse / um coração
ativo / igual ao de um relógio [...] relógio que tivesse / o gume de uma faca”), atuam como
comparantes de um termo da comparação que permanecerá oculto ao longo de todo o poema.
Encobertos pela estrutura corpórea em que habitam a bala enterrada, o relógio submerso e
a faca de uso interno, “habitando num corpo como o próprio esqueleto” os símiles são
definidos pela ausência. Mas essa indefinição é o que motiva e orienta a gestação das imagens
do texto
45
.
O poema, como indica seu subtítulo (“serventia das idéias fixas”), fala de uma
obsessão, afinal, convertida em instrumento de trabalho. A dedicatória a Vinicius de Moraes é
sugestiva. Vinicius, poeta boêmio e emotivo, com sua obra atravessada pela música e pelo
sentimento, distancia-se muito da concepção assumida por João Cabral em relação à atividade
artística, atividade esta que, para o anti-melódico e anti-sentimental poeta pernambucano,
como se sabe, deve ser exercida com o máximo de rigor e seriedade. Isso, no entanto, não
impediu que João Cabral nutrisse por Vinicius grande simpatia e admiração. A dedicatória é
sugestiva porque “Uma faca só lâmina” apregoa e tenta exibir o domínio dos meios de
expressão sobre aquilo que, a princípio, pertence ao plano da interioridade: a “idéia fixa”, de
fundo irracional e compulsivo, mas da qual é possível extrair, por meio de uma série de
negações e metáforas, a serventia construtiva (pode-se, aliás, especular se esse controle sobre
a emoção não é o que viabiliza a introdução da temática erótica na obra seguinte, Quaderna).
44
A questão do pathos da pedra e da faca será retomada nos capítulos seguintes. Uma tentativa de exame mais
detalhado dessa questão em “Uma faca lâmina” encontra-se no artigo “Imagens ocultas sob imagens
concretas” (inédito), apresentado como trabalho final do curso “Literatura Brasileira Poesia e pintura:
interfaces”, ministrado pelas professoras
Melânia Silva de Aguiar e Suely Maria de Paula e Silva Lobo, no
Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas, no 1º semestre de 2007.
45
Referindo-se a “Uma faca mina”, Benedito Nunes (2007, p.131) observa que “os termos comparantes
desempenham [...] uma ação catalisadora na gestação das imagens; os símiles respectivos funcionam à maneira
de esquemas da imaginação material, reguladores das analogias e diferenças das séries metafóricas cumulativas
geradas para descrever o que não é nem faca nem bala nem relógio, mas sentimento de aguda e insaciável
inquietação (o comparado oculto desses comparantes) por eles individualizado e que qualquer desses objetos
heterogêneos representa”.
59
A “idéia fixa” gira em torno de uma “ausência sôfrega”. “Bala”, “relógio” e “faca” são
elementos que garantem referência objetiva ao que, por definição, não está presente. São
signos de exatidão e agressividade: conferem à ausência, antes vaga e imprecisa, espessura,
movimento, concretude; tornam-na suscetível ao olhar. Dentre os três elementos, o poeta
elege como símbolo mais adequado da ausência a “faca lâmina”, objeto que incorpora
aquela qualidade de “coisa de não” parodiada em “Morte e vida Severina”: “fome, sede,
privação” são seus atributos. A faca não apenas atua como metáfora metalingüística
indicadora dessa agressividade, mas também como metáfora da cisão que se busca escavar
entre o sujeito e a realização objetiva do poema. Mas nessa cisão, uma dimensão subjetiva se
insinua a todo instante. Trata-se de uma ambigüidade própria da poesia cabralina que, aqui, é
colocada em evidência, como já ocorrera em “Pequena ode mineral”: a obsessiva busca pela
referência concreta alude, em sua complexidade, à domesticação da interioridade, tida como
angustiante e perturbadora. Desse processo parece resultar o alto grau de abstração das
imagens concretas do poema: a busca pela materialidade visível e pela claridade das
superfícies se como fuga da imaterialidade vaga e nebulosa, associada à obscuridade dos
sentimentos. A abstração é “imitativa”, pois, o poeta feições concretas (em cores fortes) a
algo que deseja manter oculto: “a brasa que [o] habita” (p.189), “a ferida que guard[a]”
(p.190). A força da idéia fixa está em sua dissimulação rigorosa e sem indulgência: “sua carne
selvagem quer câmaras severas” (1997a, p.189). Revelá-la seria confessar-se. Toda sua
serventia, todo seu potencial imagético está condicionado ao exercício da impessoalidade
almejada. Impessoalidade ímpar e metonímica: não advém propriamente de um sujeito
ausente, mas da ausência que habita o sujeito.
Na última seção do poema, o poeta, recorrendo pela primeira vez à primeira pessoa,
realiza o percurso inverso da introdução, até chegar ao “real”:
De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;
de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;
da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;
60
pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,
e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada
e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,
e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,
por fim à realidade,
prima, e tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta (1997a, p.194-5).
Da faca se “sobe” à imagem do relógio e, desta, à primeira imagem do poema, a da
bala “enterrada no corpo”. A sexta estrofe identifica os símiles a uma lembrança, um evento
ante o qual a linguagem revela-se insuficiente. Mas o evento, no caso, realiza-se somente
enquanto linguagem, daí o contraste revelador entre os tempos verbais do trecho em questão
(vestiu/é/pôde): a insuficiência da linguagem coincide com a presentificação da lembrança. O
“fracasso” do poema é, ao mesmo tempo, sua experiência bem-sucedida. O último plano a que
o poeta sobe é o da realidade “que gerou a lembrança / e ainda a gera, ainda”; realidade
“violenta”, como a faca. A ancoragem no real, se, por um lado, coincide com o esfacelamento
da imagem, por outro, aponta para a gestação do processo imagético e é isso que sugere o
último verso do poema, que pode ser lido de, no mínimo, duas maneiras. Sendo ambígua, a
forma verbal “rebentar” indica tanto a destruição e a perda da imagem, quanto sua eclosão no
hiato entre a palavra e a realidade inapreensível. Indica tanto morte, quanto vida.
Retorna-se, assim, ao ponto de partida deste capítulo. Mas o sinuoso percurso que
separa os dois textos sugere que o problema da morte, seja no âmbito do sujeito, da linguagem
ou do real, não se circunscreve ao hamletiano dilema de “ser ou não-ser”. Antes: é na
impossibilidade de dissociação entre esses dois pontos extremos que o problema se formula;
quando já não se pode distingui-los, o problema ganha forma; na dualidade menos dicotômica
do que irônica, pois ambígua e negativa, mesmo em sua positividade. Como foi visto no
decorrer deste capítulo, “ser não-sendo” caracteriza o sujeito; “não-ser sendo”, a própria
61
poesia cabralina, fundada sobre a negação do canto lírico e da linguagem dita poética; “ser o
não” é um atributo do “real” e da coisa nomeada.
Em todos esses movimentos encontram-se figurações da pedra e da faca. Investigá-las,
com base nas discussões feitas até então, é a tarefa a que se lançam os capítulos seguintes,
começando por aquele que João Cabral considerava seu trabalho mais metodicamente
elaborado, o conjunto mais representativo de suas concepções artísticas, obra que, a despeito
da dualidade, chegou a ter o título provisório de “O duplo ou a metade”, não fosse a decisão
do poeta de que melhor a representaria o título de A educação pela pedra.
62
CAPÍTULO 3: A EDUCAÇÂO PELO QUE (NÃO) MORRE
Mesmo para um leitor familiarizado com o cerebralismo de João Cabral, o rigor
aplicado à elaboração de A educação pela pedra poderá causar espanto. Em entrevista de
1966, ano em que a obra foi publicada, o poeta afirmava:
Quis construir todo o livro estruturado num dualismo. Aliás, ele esteve por se
chamar O duplo ou a metade. Assim, a obra compõe-se de 48 poemas: metade deles
são sobre Pernambuco, a outra metade não; metade dos poemas m 24 versos, a
outra metade 16; metade dos poemas são simétricos, os outros são assimétricos;
metade dos poemas associam-se, aglutinam-se, outra metade repelem-se; e por
afora... (apud ATHAYDE, 1998, p.114).
O documento fac-similar do planejamento do livro
46
mostra que a declaração do poeta
ainda diz pouco sobre a composição metódica da obra. Atestando a rígida ordenação a que
João Cabral submete seu processo criativo, as anotações abrangem aspectos que vão da
micro-sintaxe dos textos à macro-estrutura do livro, segundo critérios engenhosamente
estipulados. Eis um breve esquema da obra, a partir do documento:
O livro está distribuído em quatro seções, cada uma com 12 poemas; as duas primeiras
seções (que, no documento, à maneira do que ocorre na primeira edição da obra, são
designadas pelas letras minúsculas “a” e “b”) compõem-se de poemas de 16 versos,
num total de 384 versos; as outras duas seções, iniciadas com maiúsculas (“A” e “B”),
compõem-se de poemas de 24 versos, num total de 576 versos (do que se infere: João
Cabral planejou um livro com 960 versos). Nas seções “a” e “A”, os poemas são sobre
Pernambuco; em “b” e “B”, sobre temas diversos
47
. Na edição original do livro, como
mostra o sumário, cada poema ocupava duas páginas e todos eram iniciados em
páginas pares.
Os textos foram classificados em função do arranjo estrófico; todos os poemas têm
duas estrofes que podem ser simétricas, com 8 ou 12 versos cada o caso de 24
poemas no total); assimétricas, com 10 versos na primeira estrofe e 6 na segunda (seis
poemas); ou, inversamente, 6 versos na primeira e 10 na segunda (seis poemas); e, nos
46
Disponibilizado e apresentado por Secchin na edição em homenagem a João Cabral da Colóquio Letras, n.
157/158, jul.-dez. 2000.
47
Na edição de 1997 da Nova Fronteira, utilizada nesta dissertação, a estruturação em função da temática
nordestina fica ainda mais clara: deixando de lado a distinção entre letras minúsculas e maiúsculas, as seções são
intituladas “Nordeste (A)” e “Não Nordeste (B)”.
63
poemas longos, assimétricas com 16 versos na primeira estrofe e 8 na segunda (seis
poemas); e com 8 e 16 versos, respectivamente (seis poemas).
No documento, o poeta classifica os poemas em “unidades” e “metades”. A
classificação indica uma espécie de orientação de leitura a partir da relação entre as
estrofes: constituem “unidades” poemas com estrofes “independentes”, separadas por
um mbolo gráfico (24 poemas); constituem metades” os textos em que clara
relação de continuidade entre as estrofes que, no caso, são separadas pelo número “2”
(outros 24 poemas do livro). As “unidadespodem ser sem ligação (12 poemas) ou
justapostas: por repetição de versos (seis poemas) ou por repetição de estrutura (seis
poemas). Entre as “metades”, o encadeamento se por repetição de versos (seis
poemas), repetição de palavras (seis poemas) ou por conjunções (causais, concessivas,
copulativas, temporais, adversativas e ilativas) (12 poemas).
O planejamento do livro conta ainda com a classificação das “relações entre as semi-
partes de cada parte” do poema: por “conjunção”, “justaposição absoluta”,
“justaposição com repetição de elementos das duas linhas anteriores” ou
“encadeamento com elementos mais distantes do que duas linhas”.
Por fim, o documento destaca os oito pares de poemas emparelhados, nos quais
permutação total ou parcial de versos e de estrutura experiência composicional
nova, mas que remonta a processos formais presentes nas obras anteriores, como a
relação dinâmica entre os versos (Dois parlamentos) e a composição em série
(Serial).
Tais aspectos podem ser notados nas ilustrações a seguir:
64
Figura 1: Página do documento fac-similar com a descrição estrutural dos 24 poemas de 16 versos das seções “a” e “b”.
Fonte: Colóquio Letras, n. 157/158, jul.-dez. 2000.
Detalhe do esquema das
“formas de justaposição
dos poemas em
unidades”.
Detalhe
da classificação das “relações entre as semi-partes de cada parte” do poema,
especificadas na primeira coluna.
Esquema da
distribuição
dos versos nos
poemas
assimétricos
Classificação dos “tipos de associação
entre as semi-partes de cada parte”, de
acordo com o esquema na margem
inferior da página.
Classificação dos “tipos de
justaposição das Unidades
e de associação das
Metades”, conforme o
esquema da Figura 2.
65
Figura 2: Descrição estrutural dos poemas de 24 versos.
Detalhe do esquema das “formas de ligação
dos poemas em metades”
A letra “P” designa os
poemas sobre Pernambuco
Classificação dos poemas em
“Unidades” e “Metades”
66
Uma análise exaustiva de cada poema à luz dos fatores elencados pelo autor exigiria
um estudo à parte, mas dada a pertinência do documento para a compreensão de algumas
particularidades do processo criativo de João Cabral, veja-se uma resumida aplicação do
esquema à leitura de “O mar e o canavial”, poema de abertura de A educação pela pedra:
O que o mar sim aprende do canavial:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
O que o mar não aprende do canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.
*
O que o canavial sim aprende do mar:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama (1997b, p.3).
Na obra cabralina, como se sabe, “mar” e “canavial” são presenças constantes e, não
raro, complementares, especialmente nos poemas de temática pernambucana (veja-se, por
exemplo, “Paisagens com cupim”, em Quaderna). Quanto à formalização, particularmente
enfatizada pelo documento fac-similar, o poema é um modelo eficaz da geometria cabralina: 2
(estrofes simétricas) - 4 (cada estrofe é composta por duas quadras) - 8 (versos por estrofe) -
16 (versos no total). E outros aspectos do poema poderiam ser submetidos à mesma
progressão. O encadeamento se por repetição de estrutura sintática. A estruturação da
primeira quadra se repete nas demais: a partir do verso inicial, como complemento das ações
de “aprender” e “não aprender”, em cada quadra são enumerados dois aspectos, duas
particularidades, duas leituras, ora do “mar”, ora do “canavial”. Cada bloco apresenta uma
dimensão positiva, outra negativa, daí a classificação das estrofes em “unidades” parcialmente
independentes
48
, relacionadas entre si por uma repetição estrutural meticulosa a ponto de
regular o gênero dos substantivos topicalizados nos dois versos que se seguem ao verso inicial
de cada quadra (substantivos femininos, na primeira estrofe; masculinos, na segunda). E, de
48
Na permutação de “O canavial e o mar”, a distribuição dos versos em função da dualidade negativo/positivo é
diferente, ao que se deve a classificação do poema em “metades”: na primeira estrofe são elencados os aspectos
positivos, na segunda, os aspectos negativos das duas paisagens.
67
fato, ainda mais meticulosa parece ser a operação que vincula os aspectos formais aos
conteúdos semânticos do poema.
O aprendizado em questão remete ao próprio fazer poético. O que mar e canavial
aprendem é aquilo que o poeta, dissimulado na impessoalidade da expressão, busca aplicar à
composição do texto: “a elocução horizontal”, “o avançar em linha rasteira”, “voz e silêncio
paralelos”, “espraiar-se minucioso”. Lições de ritmo, direcionamento, dicção e contenção, por
meio das quais o poema exibe os princípios que o norteiam. Já aquilo que mar e canavial “não
aprendem” é o que o poeta rejeita (ou se esforça por rejeitar) em sua poética: “a veemência
passional” e a força destrutiva, no caso do mar; o “desmedido do derramar-se”, a progressão
sem cálculo e direção com que o latifúndio da cana se alastra. De todo modo, o aprendizado
poético permanece negativo: o emprego do “sim” é regido pelo uso sintático do “não” e,
como se percebe no fac-símile, a negatividade chegou a estar prevista no título do poema e de
sua versão permutacional: “Sem falar no verde” (“O mar e o canavial”); “Não falando no
verde” (“O canavial e o mar”). Não por acaso, o texto encontra-se na abertura do livro: a
pedagogia negativa e negadora, presente no título da obra e em grande número dos textos que
a compõem, acaba por configurar a positividade da aprendizagem: o próprio poema.
***
Feitas essas considerações iniciais e tendo em vista a discussão proposta nos capítulos
anteriores, é lícito supor que todo esse esforço metódico na elaboração e ordenação da obra
tenha um primeiro propósito evidente: conceder o máximo de autonomia ao poema. É nesse
sentido, que se pode dizer que, com A educação pela pedra, a poesia cabralina atinge o
ponto extremo da impessoalidade (e, portanto, do antilirismo). Isso se deve não propriamente
ao fato de não haver no livro verbos conjugados na primeira pessoa, mas, sim, ao fato de que
a problematização da subjetividade é inerente aos mecanismos da criação poética que
viabilizam o funcionamento autônomo do texto. Lado a lado com a autonomia do poema está,
portanto, uma questão colocada pelo problema da subjetividade. Nesse ponto, são elucidativos
os versos do último poema da obra, pela reflexão empreendida em torno do objeto “livro”:
Silencioso: quer fechado ou aberto,
inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
68
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem:
e jamais exala: fechado, mesmo aberto (“Para a feira do livro”, 1997b, p.40).
O poema apresenta o silêncio como condição inalienável do texto escrito. O grito”
mencionado no segundo verso não se lhe opõe. Como João Cabral por diversas vezes sublinha
ao longo de sua obra, inclusive em “O mar e o canavial”, grito (voz) e silêncio são paralelos,
desenvolvem-se na mesma direção. Esse paradoxo, aliás, é um importante componente da
reflexão sobre o “canto” empreendida em A educação pela pedra e está diretamente
relacionado ao anonimato do que “grita dentro” (note-se: no poema, a ação de gritar dispensa
a categoria de pessoa). A noção de anonimato é retomada nos versos seguintes: o livro se
expõe no que lhe apaga, deixa a descoberto o lado oposto que lhe abre, o lombo na estante
“que apaga em pardo todos os lombos”. Daí sua modéstia: “só se abre se alguém o abre”,
donde a peculiaridade de vida e morte do texto escrito, em oposição ao quadro “aberto a vida
toda” e à música “viva apenas enquanto voam suas redes”. Contrapondo-se à modesta
acessibilidade do objeto livro, os quatro versos finais têm por núcleo a severidade,
evidenciando o vínculo indissociável entre a interpretação que o poeta faz do objeto e sua
própria concepção de escrita, ou mais especificamente, sua concepção de leitor, também
vinculada à idéia de esforço e trabalho. O texto escrito nada exala ou transparece: “fechado,
mesmo aberto”, expressão que sintetiza sua sóbria autonomia e remete não mais ao livro-
objeto, mas a tudo o que nele se diz; remete já não mais a um “quem diz”, mas a um modo de
dizer, sugerindo que só assim, sob essa forma modal, algo como “quem diz” pode ser
pensado. A abertura se dá pelo fechamento.
Como foi visto, para João Cabral, a autonomização do poema é uma estratégia
comunicativa. Nessa disposição para a transitividade, de fato, reside todo o fundamento ético
de sua atividade literária, situado não somente no plano temático, mas, sobretudo, na
explicitação do modo pelo qual o texto se constrói. Se em todos os poemas da obra esse
fundamento pode ser rastreado, casos em que lhe é dado lugar de destaque, como ocorre
em “Tecendo a manhã”:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
69
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão (1997b. p.15).
Tecer a manhã equivale a tecer a trama verbal com o canto que é grito estridente, grito
de despertar, intervalo e comunicação
49
. Na primeira estrofe, especialmente do terceiro ao
oitavo verso, a comunicabilidade é indicada por uma mimetização formal. Como
freqüentemente ocorre, o poema “faz o que fala”. A incompletude das estruturas sintáticas,
como o grito de galo que se completa apenas na soma de outros gritos, ganha sentido quando
se tem em vista o conjunto dos versos e aquilo que estes buscam comunicar: a composição da
manhã (e do poema) sob o ângulo da integração. Mais uma vez, a atenção recai sobre o
trabalho do leitor, ao que se soma o fato de o texto, em contraste com o rejeitado culto do eu
lírico, enfatizar certa idéia de coletividade e solidariedade. Relacionada a tal idéia, está a
tentativa de construção de uma poesia solar, implicitamente oposta ao obscuro fluxo de
experiências interiores, que, segundo o poeta, conduziria fatalmente o texto à intransitividade.
Na associação entre as duas “metades” do poema, como se pode perceber nas anotações do
fac-símile, destaca-se a conjunção copulativa, o que parece reforçar a noção de integração. Na
segunda parte, o fundamento ético torna-se patente: ao poeta interessa fazer com que o
poema, como a manhã, constitua um todo/toldo que plana “livre de armação”, o que significa:
sustentado em si mesmo e, ao mesmo tempo, sem fraude, sem mistificações.
O mesmo fundamento parece orientar a argumentação de “Fábula de um arquiteto”:
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos.
49
Quanto à associação entre o galo e a atividade poética, vale lembrar a conhecida declaração de João Cabral,
em entrevista de 1966: “o Pégaso, o cavalo que voa, é o símbolo da poesia. Nós deveríamos botar antes, como
símbolo da poesia, a galinha ou o peru que não voam. Ora, para o poeta, o difícil é não voar, e o esforço que
ele deve fazer é esse. O poeta é como um pássaro que tem de andar um quilômetro pelo chão” (apud
ATHAYDE, 1998, p.72).
70
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
portas por onde, livres: ar luz razão certa (1997, p.15).
O poema delimita claramente sua proximidade com os princípios da arquitetura
moderna: em ambos os casos, o que está, ou deveria estar em causa é a construção e
organização do espaço para abrir caminhos; espaço de trânsito e acesso, como que numa
inversão complementar do que é dito em “Para a feira do livro”: espaço aberto, mesmo
fechado. Na fábula, contudo, o fechamento é ludibrioso. João Cabral certa vez declarou ter
endereçado o poema a Le Corbusier, criticando a adesão do arquiteto suíço à construção
religiosa
50
. Sequer seria necessário mencionar tal declaração para perceber que a segunda
parte do poema tem em mira determinado cunho eclesiástico:
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto (1997b, p.15-6).
Unindo o campo semântico religioso ao campo do feminino-maternal, a idéia de
encarceramento desvia-se de todos os postulados da seção anterior e lembra não a “máquina”
de habitar e comover, mas o esquife. A matriz, seja ela imagem eclesiástica ou uterina,
indica não um lugar onde algo se cria, mas justo o contrário, o espaço escuro e amurado,
fechado ao homem e onde este se “refecha”. Ainda que não explicitamente, em última análise,
o que une a crítica da religião à recusa da interioridade é a morte, tão evitada. Pois que, para o
poeta, ao menos aqui, o que é contrário à abertura e exteriorização é a favor da morte e,
talvez, a isso se deva o aspecto pejorativo que reveste signos usualmente indicadores de vida
(não nascida): útero, matriz, feto.
Inversamente, o poeta pode também falar da vida sob o signo da morte, como ocorre
em “Ilustração para a ‘Carta aos puros’ de Vinícius de Moraes”:
A uma se diz cal viva: a uma, morta;
uma, de ação até o ponto de ativista,
50
“A idéia desse poema me veio ao visitar, na França, a capela de Ronchamp, por ele construída. Essa capela me
provocou uma tal irritação, que me senti obrigado a escrever esse poema, cuja segunda parte é uma descrição da
antiarquitetura. Pelo menos em relação ao que o próprio Le Corbusier tinha me ensinado a considerar arquitetura
e a partir do que escrevi minha poesia” (apud ATHAYDE, 1998, p.133).
71
passa de pura a purista e daí passa
a depurar (destruindo o que purifica).
E uma, nada purista e só construtora,
trabalha apagadamente e sem cronista:
mais modesta que servente de pedreiro
aquém de salário mínimo, de nortista (1997b, p.34).
Etimologicamente, “cal liga-se à “pedra” e, de modo mais nítido, à palavra
“cálculo”
51
. No poema, essas duas associações são exploradas com base nos efeitos de sentido
das locuções “cal viva” e “cal morta”. A primeira designa um elemento cáustico que depura
“destruindo o que purifica”. A segunda baseia-se na expressão “cal extinta/apagada”, que
designa a cal depois de tratada, utilizada na construção civil. No texto de Vinícius de Moraes,
o “puro” aplica-se à hipocrisia daqueles que se dizem castos e perfeitos, mas que não fazem
senão mortificar a vida e seus prazeres; os versos alexandrinos e a interlocução na segunda
pessoa do plural imprimem ao poema um tom ironicamente solene
52
. No texto cabralino, o
“puro” é retomado pela “cal viva”, que “passa de pura a purista”. Ademais, é como se o poeta
pernambucano “ilustrasse” o raciocínio de Vinícius em termos de prática literária, agregando
ao purismo religioso e moral a crítica ao purismo poético, como se pode notar na passagem da
estrofe seguinte em que à “cal pura” são atribuídos “o purismo e a intolerância inquisidora, /
de beata e gramatical, somente punitiva” (1997b, p.35). Desse modo, na esteira da
depreciação da “poesia pura”, pode-se ler tanto uma crítica à poesia moralizante, “de ação até
o ponto de ativista”, quanto uma crítica à intransitividade do poema que só faz falar de si:
“Uma cal não sai: se referve em caeiras” (1997b, p.35). Já na imagem da “cal morta”, João
Cabral condensa seu projeto de poesia, daí a associação com a pedra e o cálculo:
Uma cal sai por aí tudo, vestindo tudo
com o algodãozinho alvo de sua camisa,
de uma camisa que, ao vestir de fresco,
veste de claro e de novo, e reperfila;
e nas vezes de vestir parede de adobe,
ou de taipa, de terra crua ou de argila.
essa cal lhe constrói um perfil afiado,
uma quina pura, quase de pedra cantaria (1997b, p.34-5).
Da “cal morta” o poeta extrai a geometria da construção impessoal. Outro exemplo
interessante de lição de positividade poética a partir do que, a princípio, integra o campo de
51
“ETIM lat. calcŭlus,i 'pedrinha, bolinha de votar (branca ou vermelha), pedra de bexiga; peão'; como era com
pedrinhas que as crianças aprendiam a contar, o voc. tomou o sentido de ‘conta, cálculo’” (HOUAISS, 2002).
52
Veja-se a primeira das 12 estrofes do poema:
Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros / E em cujos
olhos queima um lento fogo frio / Vós de nervos de nylon e de músculos duros / Capazes de não rir durante anos
a fio” (MORAES, 1991, p.59).
72
significação da morte encontra-se em “De Bernarda a Fernanda de Utrera”, poema dedicado
às irmãs andaluzas, cantoras de flamenco. Diferentemente de Bernarda, que canta “em brasa
viva”,
Fernanda de Utrera arranca-se o cante
quando a brasa extenuada já definha;
quando a brasa resfriada já se recobre
com o cobertor ou as plumas da cinza.
Ela usa a brasa íntima no quando longo
em que rola calor abaixo até a pedra;
no da brasa em pedra, no da brasa do frio:
para daí reacendê-la, e contra a queda (1997b, p.11).
Aqui, mais uma vez, o que se apresenta sob o signo da morte é a “brasa íntima”,
enfraquecida, quase extinta, da qual o canto-grito extrai toda sua força e autonomia (a inusual
reflexividade/transitividade que o pronome “se” confere ao verbo arrancar” pontua as duas
características: força e separação em relação a quem canta). Trata-se de uma síntese da
ambigüidade morte/vida que marca a subjetividade na poesia cabralina, em face da autonomia
do poema: o canto “arranca-se” quando a “brasa íntima” se converte na “brasa em pedra” que
a reacende (e, aqui, “acender” pode ser lido como “incendiar” ou como “produzir”).
Algo semelhante ocorre em “Retrato de escritor”. Se, por um lado, aquele que escreve
é insolúvel na água, no álcool e no pranto, por outro é
Solúvel: em toda tinta de escrever,
o mais simples de seus dissolventes;
primeiramente, na da caneta-tinteiro
com que ele se escreve dele, sempre
(manuscrito, até em carta se abranda,
em pedra-sabão, seu diamante primo);
solúvel, mais: na da fita da máquina
onde mais tarde ele se passa a limpo
o que ele se escreveu da dor indonésia
lida no Rio, num telegrama do Egito
(dactiloscrito, já se acaramela muito
seu diamante em pessoa, pré-escrito).
Solúvel, todo: na tinta, embora sólida,
da rotativa, manando seu auto-escrito
(impresso, e tanto em livro-cisterna
ou jornal-rio, seu diamante é líquido) (1997b, p.34).
O escritor se dissolve em um único líquido: a tinta de escrever. Nas três ocorrências da
palavra “solúvel”, o texto apresenta três níveis distintos de solubilidade, que variam de acordo
com o grau de envolvimento entre o texto escrito e aquele que escreve (ou, sob outro ponto de
vista não excludente, variam de acordo com o grau de elaboração e autonomização do que se
73
escreve). Na tinta de caneta do texto manuscrito, o escritor se dissolve menos do que na tinta
de máquina do texto “dactiloscrito”; na tinta (sólida) da prensa rotativa, a solubilidade é total
(nos quatro últimos versos já não se sabe se o verbo “manar” e o prefixo “auto” apontam para
o escritor, para o texto escrito ou para a máquina impressora). O que se dissolve contrapõe-se
à rigidez da pedra-diamante que “se abranda” no primeiro caso, “se acaramela muito” no
segundo e se liquefaz por completo no terceiro. Disso decorre a possibilidade de, no mínimo,
duas leituras: o “retrato do escritor” ou postula um inesperado “nexo biográfico”
53
, ou alude,
pelo contrário, a uma progressiva dissipação daquele que escreve, uma vez que não há
acepção de “dissolver” que não contenha traços semânticos de desagregação. A dissolução do
escritor, portanto, seria a contraparte do endurecimento do texto escrito. A escrita, como a
pedra, é sólida e permanente. O escritor não.
***
Esta é a conhecida e reiterada argumentação de João Cabral: a impessoalidade é
alcançada com o mesmo esforço que concede autonomia e concretude ao poema. Entretanto,
esse próprio argumento não deixa de acusar um dos modos com que o poeta constrói
determinadas imagens de si. Imagens intra e extratextuais. Quanto a estas últimas, sabe-se que
as posições teóricas do autor exerceram e ainda exercem grande influência sobre a leitura de
sua obra, particularmente no que se refere à necessidade de objetivação, apuro formal e
racionalidade na elaboração do texto. Assim, é curioso notar que a mesma postura que
preconiza o afastamento autoral contribui alhures para a composição de um “retrato de
escritor”, retrato cubista, desconstruído, talvez; mas ainda assim “retrato”, duro, seco,
encefálico. Por conta disso, hoje, por exemplo, parece difícil não identificar em um poema
como “Num monumento à aspirina” certo viés biográfico, o que, aliás, parece potencializar a
ironia do louvor que se faz ao analgésico. Talvez, a própria expressão “extratextual” não
seja muito adequada, posto que, de uma forma ou de outra, esse “retrato” baseia-se no texto
que João Cabral produziu sobre si, no seu modo de escrever e em suas entrevistas e
declarações, bem como no texto que seus leitores e, de modo mais amplo, a sociedade e a
53
Ver Secchin, 1999, p.245.
74
história produzem dele
54
. Mas, como foi dito, a esta dissertação interessa sondar, dentre
outros pontos, não “o homem que se oculta” por trás da expressão (aproveitando a colocação
de Michel Leiris
55
), mas, sim, a subjetividade que se configura na escrita, em face das
questões de “expressão” e “criação” colocadas pela problemática da morte.
Tais questões apresentam-se de modo mais intenso nas obras posteriores,
particularmente em A escola das facas, como se verá mais adiante. Por ora, cumpre destacar
alguns aspectos que perpassam a temática da memória e do tempo em A educação pela
pedra, atentando para a maneira com que a subjetividade é situada. Veja-se, desde já, o caso
de “Coisas de cabeceira, Recife”:
Diversas coisas se alinham na memória
numa prateleira com o rótulo: Recife.
Coisas como de cabeceira da memória,
a um tempo coisas e no próprio índice;
e pois que em índice: densas, recortadas,
bem legíveis, em suas formas simples (1997b, p.5-6).
A memória é apresentada sem nenhuma referência à perda ou à “desordem da alma”. É
o advento da pedra, o encontro com sua ordem. No lugar da lembrança e do que esta possui de
vago e incompleto, coisas “bem legíveis”, compactas e perfiladas, rotuladas e alinhadas,
localizáveis não no tempo, mas no espaço, dispostas “em índice” na cabeça/cabeceira do
poeta. Os índices, pois, são também semióticos
56
:
o combogó, cristal do número quatro;
os paralelepípedos de algumas ruas,
de linhas elegantes, mas grão áspero;
a empena dos telhados, quinas agudas
como se também para cortar, telhados;
os sobrados, paginados em romancero,
várias colunas por fólio, imprensados.
(Coisas de cabeceira, firmando módulos:
assim, o do vulto esguio dos sobrados) (grifo do autor) (1997b, p.6).
54
Na tangência entre as esferas intra e extratextuais, as imagens de si que João Cabral constrói são, dentre muitas
outras, aquelas que permitem ao leitor inferir que os seguintes versos de Adélia Prado (1988, p.15) fazem
referência ao poeta pernambucano: “O poeta cerebral tomou café sem açúcar / e foi pro gabinete concentrar-se. /
Seu lápis é um bisturi / que ele afia na pedra, / na pedra calcinada das palavras, / imagem que elegeu porque ama
a dificuldade, / o efeito respeitoso que produz / seu trato com o dicionário” (“Formalística”).
55
“[...] como se, da obra literária, fosse negligenciado o que é criação para considerá-la tão-somente do ângulo
da expressão, observando-se, em vez do objeto fabricado, o homem que se oculta ou se mostra por trás.
(grifos do autor) (LEIRIS, 2003, p.16).
56
Como esclarece Jakobson (2001, p.101), ao comentar a Semiótica de Peirce, “o índice opera, antes de tudo,
pela contigüidade de fato, vivida, entre seu significante e seu significado; por exemplo, a fumaça é índice de
fogo”. Para Peirce, “sem recorrer a índices, é impossível designar aquilo de que se fala” (apud JAKOBSON,
2001, p.103).
75
Os objetos listados são arquiteturais e denotam construtividade, do que se infere não
ser fortuita a posição da palavra “coisas” no lugar da palavra “livro” na expressão “coisas de
cabeceira”. Os módulos firmados por tais objetos indicam modelos e unidades de medida
57
;
indicam, afinal, padrões que constroem e regulam, com figurações da pedra e da faca, os
objetos da memória. O mesmo ocorre quando o “rótulo” é Sevilha, como mostra o poema
emparelhado:
Algumas delas, e fora as já contadas:
não esparramarse, fazer na dose certa;
por derecho, fazer qualquer quefazer,
e o do ser, com a incorrupção da reta;
con nervio, dar a tensão ao que se faz
da corda de arco e a retensão da seta;
pies claros, qualidade de quem dança,
se bem pontuada a linguagem da perna
(Coisas de cabeceira somam: exponerse,
fazer no extremo, onde o risco começa.) (1997b, p.14) (grifos do autor).
O poema acrescenta alguns dados importantes, especialmente em relação ao calculado
equilíbrio pressuposto na objetivação da memória de Recife. Mantém-se o ideal da pedra
(“não esparramarse, fazer na dose certa”), mas, em relação ao poema anterior, o campo de
significação da faca é significativamente ampliado, lançando luzes sobre a contraparte do
equilíbrio e do cálculo que o fazer poético demanda. O poema, nesse sentido, tem algo de
existencial, no rastro do que se disse, no capítulo anterior, a propósito de “Uma faca só
lâmina”. Fala-se “do ser, com a incorrupção da reta” e do fazer con nervio”, dando “tensão
ao que se faz”. O alcance de tais atributos é generalizado (“qualquer quefazer”); contudo, nos
versos finais pode-se perceber toda a seriedade do que está em jogo nessa “dança”. O “fazer
no extremo, onde o risco começa”, na poesia cabralina, é um importante viés de associação
entre o fazer poético e as touradas espanholas
58
. Note-se, ainda, a ambigüidade do “risco”,
que pode indicar a “probabilidade de perigo” ou o “traçado sobre a página”, sendo ambas as
acepções possíveis se se tem em vista o “risco de se expor” no ato da escrita, que em A
educação pela pedra é submetido a uma regulação radical.
57
Em sua leitura do poema, Marta Peixoto (1983, p.181) observa: “Estas coisas construtoras ou construídas
transformam-se em módulos palavra que significa medida reguladora de uma obra arquitetônica, e unidade
planejada segundo determinadas proporções para que possa formar com outras análogas um todo passível de
várias combinações sugerindo a função tanto de padrão regulador como de parte constituinte que as
referências a coisas visuais, sólidas e nítidas desempenham na poesia de João Cabral”.
58
Pelo problema de morte/vida que atualiza, essa questão será retomada no capítulo seguinte, que se propõe a
uma análise mais detalhada das figurações da faca, já que estas, na obra cabralina, abrangem as imagens relativas
ao “chifre do touro”.
76
Como ocorre com a memória, a temática do tempo que a ela se vincula também se
desenvolve com mais intensidade nas obras seguintes, mas nem por isso sua presença é menos
decisiva. A exemplo do que ocorria nos livros anteriores, em A educação pela pedra, a
tematização do tempo, confundindo-se com o problema da morte, aponta para a constante
tensão entre a consciência do vazio e a vontade de concreção, entre o fluir e a contenção, a
fugacidade e a permanência. Para falar daquilo que por natureza escapa e não se pode deter, o
poeta não prescinde da matéria. O tempo, nesse sentido, pode materializar-se em um chiclets:
Quem subiu, no novelo do chiclets,
ao fim do fio ou do desgastamento,
sem poder não sacudir fora, antes,
a borracha infensa e imune ao tempo;
imune ao tempo ou o tempo em coisa,
em pessoa, encarnado nessa borracha,
de tal maneira, e conforme ao tempo,
o chiclets ora se contrai ora se dilata,
e consubstante ao tempo, se rompe,
interrompe, embora logo se reemende,
e fique a romper-se, a reemendar-se,
sem usura nem fim, do fio de sempre.
No entanto quem, e saberente que ele
não encarna o tempo em sua borracha,
quem já ficou num primeiro chiclets
sem reincidir nessa coisa (ou nada).
2
Quem pôde não reincidir no chiclets,
e saberente que não encarna o tempo:
ele faz sentir o tempo e faz o homem
sentir que ele homem o está fazendo.
Faz o homem, sentindo o tempo dentro,
sentir dentro do tempo, em tempo-firme
e com que, mascando o tempo chiclets,
imagine-o bem dominado, e o exorcize (“Para mascar com chiclets”, 1997b, p.36).
Os versos da segunda seção sugerem que, encarnado no objeto, “o tempo em coisa”
pode, afinal, ser exorcizado (o que seria sugestivo, uma vez que isso, de fato, acontece na
poesia cabralina). Mas em sua totalidade, o poema exprime repulsa ao chiclets, justamente
pela consubstanciação entre a borracha e o tempo. Nessa repulsa, uma pista da instância
subjetiva, projetando-se de relance, na indefinição do pronome, na indeterminação da
categoria de pessoa e na incompletude das estruturações sintáticas. “Quem pôde não reincidir
no chiclets”, o fez por ser, no fundo, incapaz de dominar e exorcizar o tempo. Trata-se de um
poema sobre o “não poder” diante do tempo e, portanto, da morte; inclusive, é possível supor
que essa impotência seja estrategicamente encoberta pela posição sintática do “não” em
relação ao verbo “poder”, como ocorre por duas vezes no poema.
77
Outro importante recurso empregado na abordagem do tempo consiste na utilização de
coordenadas espaciais que permitam estabilizá-lo, conferindo alguma consistência à sua
imaterialidade e enfraquecendo o ímpeto de seu fluxo inestancável. É o caso de “Uma mulher
e o Beberibe”:
Ela se imove com o andamento da água
(indecisa entre ser tempo ou espaço)
daqueles rios do litoral do Nordeste
que os geógrafos chamam “rios fracos”.
Lânguidos; que se deixam pelo mangue
a um banco de areia do mar de chegada;
vegetais; de água espaço e sem tempo
(sem o cabo por que o tempo a arrasta) (1997b, p.10).
É como se a estagnação do rio e da mulher fosse capaz de deter o andamento do
tempo. Somando-se às imagens trabalhadas em O cão sem plumas, relativamente à vida que
resta e resiste, a presença do elemento feminino, aqui, é bastante sugestiva e será retomada no
capítulo seguinte. Mas atente-se, doravante, para as correspondências miméticas entre o
espaço do mangue e o espaço da mulher. O rio,
Adulto no mangue, imita o imovimento
que há pouco imitara dele uma mulher:
indolente, de água espaço e sem tempo
(fora o do cio e da prenhez da maré) (1997b, p.10).
Se, ao longo do poema, o mangue e a mulher têm em comum a falta de força e a
imobilidade, e se essa languidez plástica é o que modela a impressão que ambos
proporcionam, de que o tempo pode ser contido e suspenso, o último verso introduz uma nova
correspondência que, mesmo entre parênteses, excetuada (“fora...”) e elíptica, acaba por
desestabilizar o “imovimento”, indicando excitação e fecundidade: o tempo “do cio e da
prenhez da maré”. É a “veemência passional da preamar”, negada, mas ainda assim presente.
Em “Habitar o tempo”, dá-se algo semelhante:
Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível:
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dela;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
78
tudo o que habitar cede ao habitante (1997b, p.37-8).
Logo de início, o texto marca o espaço imaginativo de um sujeito indeterminado que,
jogando com os sentidos “literais” e figurados de uma expressão corriqueira (“matar o
tempo”), busca invertê-la, propondo-se a viver o tempo “ao vivo”, “no instante finíssimo em
que ocorre”. Nos versos seguintes, o poeta parece dialogar com a própria obra. O tempo, o
deserto e o alpendre haviam sido correlacionados, por exemplo, em “O alpendre no canavial”,
poema de encerramento do livro que antecede A educação pela pedra. A remissão não é
fortuita. No poema de 1961, o alpendre, rodeado pelo deserto do canavial, conferia espessura
ao vazio do tempo; o tempo era convertido em “coisa capaz de linguagem”, coisa que se
abandonava lenta, como as águas do mangue. O alpendre, por isso, transformava-se em
“laboratório: onde se aprende / a aprender as coisas por dentro”
59
(1997a, p.321-5). Na
segunda seção de “Habitar o tempo”, é como se alguns termos desse aprendizado fossem
revistos:
E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.
Portanto: para não matá-lo, matá-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto (1997b, p.38).
Aqui, seja no alpendre ou no deserto, o “tempo ao vivo” “passa invisível” e corre
“vazio, transparente”. O raciocínio que se segue faz com que a expressão “matar o tempo”
volte-se contra si mesma: “para não matá-lo, matá-lo”. No lugar do vazio, a coisa; no lugar do
deserto, as ruas. Certo, mas, levando-se em consideração o que as expectativas do título do
poema e dos versos de abertura, o poeta fracassa. Na dualidade entre a permanência (o que
não passou...) e a transitoriedade (... do que lhe passou), esta parece prevalecer sobre aquela,
como sugere a constatação final (o adjetivo “morto”, aliás, pode referir-se ao tempo e/ou ao
habitante).
59
Em A educação pela pedra, tempo, deserto, e alpendre também são retomados conjuntamente em “Mesma
mineira em Brasília”: “Aqui, as horizontais descampinadas / farão o que os alpendres remansos, / alargando
espaçoso o tempo do homem / de tempo atravancado e sem quandos” (1997b, p.18).
79
A isso se acrescente a seguinte passagem do poema permutativo “Bifurcados de
‘Habitar o tempo’”, pois a bifurcação, no caso, é bastante reveladora:
Exceção aos desertos: o da Caatinga,
que não libera o homem, como outros,
para que ele imagine ouvir-se mundos
ouvindo-se a máquina bicho do corpo;
para que, só e entre coisas de vazio,
de vidro igual ao do que não existe,
o homem como lhe sucede num deserto,
imagine sentir outras coisas ao sentir-se;
embora um deserto, a Caatinga atrai,
ata a imaginação; não a deixa livre,
para deixar-se, ser; a Caatinga fere
e a idéia-fixa: com seu vazio em riste (1997b, p.25).
O poema mostra o quão decisiva é a presença do Nordeste na relação
sujeito/morte/escrita; a Caatinga não apenas relativiza o espaço imaginativo de “Habitar o
tempo”, como também identifica neste espaço a presença solitária de um “eu” que (se)
imagina “ouvindo-se a máquina bicho do corpo” e sentindo “coisas ao sentir-se”. Como é dito
na estrofe seguinte:
habitar o invisível dá em habitar-se:
a ermida corpo, no deserto ou alpendre.
Desertos onde ir viver para habitar-se,
mas que logo surgem como viciosamente
a quem foi ir ao da Caatinga nordestina:
que não se quer deserto, reage a dentes (1997b, p.25-6).
Entre o recusado deserto de si e o deserto sertanejo, um único, mas multifacetado,
ponto em comum: a morte. Do tempo inabitável, passa-se ao inabitável Sertão; porém, neste
último caso, no espaço contrário à vida, quem (ou o que) viva mesmo assim; e é
precisamente aqui o ponto em que a problemática da morte na obra revela toda a sua
amplitude. Entre o inóspito e o hospedado, o hospital:
O poema trata a Caatinga de hospital
pela ponta oposta do símile ambíguo;
por não deserta e sim, superpovoada;
por se ligar a um hospital, mas nisso.
Na verdade, superpovoa esse hospital
para bicho, planta e tudo que subviva,
a melhor mostra de estilos de aleijão
que a vida para sobreviver se cria,
assim como dos outros estilos que ela
a vida, vivida em condições de pouco,
monta, se não cria: com o esquelético
e o atrofiado, com o informe e o torto;
80
estilos de que a catingueira dá o estilo
com seu aleijão poliforme, imaginoso;
tantos estilos, que se toma o hospital
por uma clínica ortopédica, ele todo (“O hospital da Caatinga, 1997b, p.24).
***
Em poucas linhas, Secchin (1999, p.300) define as dimensões do problema da morte (e
vida) no sertão cabralino: “Em Cabral, o sertão nasce para anunciar a morte: sertão,
serThânatos. Natureza desfalcada, palco de atores bichos, homens, rios, em perpétua
retirada, ele também não deixa de ser, por contraste, o emulador de uma afirmação vital: viver
nele, apesar dele”. As considerações que se seguem vão ao encontro dos paradoxos levantados
ao longo desta dissertação: é no “jogo entre devastação e resistência que a poesia de morte e
de vida cabralina vai tentar traduzir o sertão. Traduzi-lo num viés etimológico: atravessá-lo,
levá-lo além, de um ponto a outro: do verso do poeta ao reverso do deserto (ou desertão) onde
a vida severina pede passagem” (SECCHIN, 1999, p.300).
Ainda que aplicáveis a toda a temática sertaneja de João Cabral, tais questões são
particularmente notórias em A educação pela pedra:
Desde que no Alto Sertão um rio seca,
a vegetação em volta, embora de unhas
embora sabres, intratável e agressiva,
faz alto à beira daquele leito tumba.
Faz alto à agressão nata: jamais ocupa
o rio de ossos areia, de areia múmia.
2
Desde que no Alto Sertão um rio seca,
o homem ocupa logo a múmia esgotada:
com bocas de homem, para beber as poças
que o rio esquece, e até a mínima água;
com bocas de cacimba, para fazer subir
o que dorme em lençóis, em fundas salas;
e com bocas de bicho, para mais rendimento
de seu fossar econômico, de bicho lógico.
Verme de rio, ao roer essa areia múmia,
o homem adianta os próprios, póstumos (“Na morte dos rios”, 1997b, p.5).
O homem às margens do rio seco faz o que a vegetação mais hostil e agressiva não é
capaz de fazer: ocupa o “leito tumba” do rio mumificado. Subverte-se a oposição entre morte
e vida: o rio está morto e o homem é o verme que devora seu cadáver. Ironia cruel,
81
metalinguagem; o homem com boca de bicho que fala (pouco), valendo-se disso para beber o
pouco de água que resta no rio morto. A última palavra do poema resume essa morte aquém
do instante derradeiro. O verme de rio aquém do verme de homem.
Outras imagens de “morte dos rios” são freqüentes na obra, algumas abertamente
relacionadas ao fluxo da vida e do tempo que o rio, personificado, exprime na “língua da
água”:
Os rios, de tudo o que existe vivo,
vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
O rio corre; e assim viver para o rio
vale não só ser corrido pelo tempo;
o rio o corre; e pois que com sua água,
viver vale suicidar-se, todo o tempo (“Os rios de um dia”, 1997b, p.22).
O rio define, isto é, conceitua e marca o fim da vida e do tempo; ele “aceita e professa,
friamente”, o escoamento do tempo de vida que lhe resta. Note-se que, na primeira parte do
poema, o que morre e o que permanece não se separam: “viver vale suicidar-se, todo o
tempo”. O mesmo ocorre nos rios sertanejos, porém, nestes, a oposição entre a permanência
da morte e a transitoriedade da vida são rearticuladas e intensificadas: interrompe-se o fluxo
do rio que passa continuamente, como o tempo, pois o rio está, literalmente, de passagem. O
que permanece é a seca; deitadas sobre “leitos de hotel”, as águas são efêmeras:
O que um rio do Sertão, rio interino,
prova com sua água, curta nas medidas:
ao se correr torrencial de uma vez,
sobre leitos de hotel, de um só dia;
ao se correr torrencial, de uma vez,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alongá-lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros;
esses rios do Sertão falam tão claro
que induz ao suicídio a pressa deles:
para fugir na morte da vida em poças
que pega quem devagar por tanta sede (1997b, p.23).
Se “os rios duradouros”, percorrendo o tempo, prolongam a morte de cada instante,
nos rios interinos do Sertão, é a vida que se escoa rápida, tão rápida que o suicídio (não do rio,
mas do homem) se afigura como um meio de fazer com que na morte” seja possível fugir
“da vida em poças”. No verso final, pode-se vislumbrar toda a perícia do poeta. O adjetivo
(“devagar”) no lugar do verbo põe em circulação uma série de significações trabalhadas ao
longo do texto: divagação, vagueza, lentidão, vazio.
82
As relações de reciprocidade entre o rio morto e o discurso poético encontram-se
condensadas em um dos textos mais representativos de A educação pela pedra, o sempre
citado “Rios sem discurso”:
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria
*
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então, frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate (1997b, p, 21).
O texto, dos mais conhecidos de João Cabral, recebeu da crítica análises minuciosas,
livremente retomadas na breve leitura que se segue
60
. Na expressão “sem discurso” estão
reunidas as linhas mestras do poema: ausência de voz, de oratória e de água (de vida);
ausência de curso: dis-curso, com o prefixo indicando “separação”, “corte”, noções que, a
propósito, coincidem com aquilo que é dito nos quatro primeiros versos do poema e, ainda,
coincidem com a forma com que se diz como sugere, por exemplo, a cisão ríspida do
primeiro verso em “corta-se de vez”. Apesar do enjambement, a pausa o se atenua, sendo,
pelo contrário, reforçada. Corta-se o verso.
Anunciadas desde o título do poema, as analogias entre o rio e o discurso poético são
intensificadas ao decorrer do texto por processos de “migração de signos” de um campo
60
Ver, em especial, BARBOSA, 1975, p.215-8; CARONE, 1979, p.23-39; SECCHIN, 1999, p.236-8.
83
lexical a outro, com conseqüente “disseminação de sentidos”
61
, recurso, aliás, amplamente
empregado pelo poeta. Assim, a partir do quinto verso da primeira seção, a rede de
equivalências começa a ser explicitamente entrelaçada: “Em situação de poço, a água equivale
/ a uma palavra em situação dicionária”. As demais equivalências decorrem dessa associação
entre o “curso de água que cessa” e a “palavra inarticulada”, indicando, progressivamente,
“mudez”, “falta de comunicação” e “corte da sintaxe”, de modo que, com a noção de “corte”,
os dois últimos versos da primeira estrofe retomam e ressignificam os versos de abertura.
Opondo-se à primeira parte do poema, a segunda estrofe se desenvolve em torno do
verbo “reatar”, adotando, nesse sentido, procedimentos igualmente semânticos e formais. No
lugar da cisão, o trabalho de (re)construção. Excluindo-se “a grandiloqüência de uma cheia”
afetação expressiva rejeitada pelo poeta a restituição do discurso-rio passa a depender
do esforço coletivo entre todos os poços, lembrando de perto a estruturação de “Tecendo a
manhã”. Partindo da palavra estanque e da sintaxe cindida, o poema chega à “frase”, à
“sentença-rio”, ao “discurso único” e, por fim, à “voz”. O trabalho das águas segue os
mesmos princípios do trabalho poético: a comunicação, mais do que a mensagem em si, é
uma forma de combate.
Que mesmo depois de reatado, o discurso não possa fluir com facilidade, eis uma
característica de “Rios sem discurso” que, como se vê, estende-se a todos os poemas de A
educação pela pedra. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, essa constante
obstrução da leitura não se opõe a algumas importantes particularidades formais do livro, que
apresenta, em relação às obras anteriores, versos mais extensos, inclinados à prosa, com
grande valorização da sintaxe lógico-discursiva (NUNES, 2007, p.95-100). Antes, tais
particularidades são colocadas a serviço da obstrução anti-melódica; são estratégias
coordenadas pelo “pensamento de pedra”. Isso fica claro em “Catar feijão”:
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
61
“Migração de signos” e “disseminação de sentidos” são processos lexicais discutidos por Hugo Mari (2008). A
migração indica “a possibilidade de transposição de signos de um campo lexical para outro(s), podendo resultar
em novas condições de significação e de referência [...] É ela que flexibiliza o processo de seleção lexical na
construção de significados não-naturais, ao transpor para um campo lexical componentes até então inusitados”.
Disso resulta a “disseminação de sentido, ou seja, o sentido de um determinado campo espalha-se por signos que
nele são inseridos”. O fenômeno, portanto, se refere ao fato de o signo transposto para um novo campo lexical
sofrer um ajuste na sua significação que é determinada, localmente, pelo sentido dominante naquele campo que
abrigou o signo” (MARI, 2008, p.110-4). É oportuno sublinhar ainda que, para o autor, trata-se de processos que
demarcam “um território de emergência do sujeito”, uma vez que a tensão gerada no código pelas novas
significações que surgem em relação aos significados previstos na dimensão do sistema é, necessariamente,
orientada para a obtenção de determinados efeitos de sentido. (MARI, 2008, p.107-8).
84
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco (1997b, p.16-7).
A aproximação é insólita, mas, de imediato, a circunscrição da atividade de escrever à
de catar feijão faz com que esta retire daquela o que possa haver de sublime e extraordinário.
A semelhança (anti-lírica) se concentra no trabalho de seleção e, em parte, naquilo que cada
atividade visa selecionar: o grão (ou palavra) que não seja “leve e oco, palha e eco”. À parte
isso, o que não convém à atividade de catar feijão, vem a ser o que convém à escrita:
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco (1997b, p.16-7).
O poema não se esquiva de aliterações no mínimo incomuns na linguagem “dita
poética”. Pela obstinação com que João Cabral se volta contra a musicalidade do verso e por
sua minúcia formal, de arquiteto artesão, é possível até mesmo supor que exista uma
motivação nas duas homofonias do poema (ou cacofonias, segundo padrões clássicos). A
suposição é reforçada se se leva em consideração a proximidade semântica entre os signos
envolvidos. No terceiro verso da primeira estrofe, na elipse de “água” pode-se ler “nada”; no
segundo verso da estrofe seguinte, na elipse de “risco” lê-se “o dique”. Ainda no segundo
verso, atente-se para as duas recorrências do termo “entre”, respectivamente, como preposição
e como verbo flexionado.
Ademais, o risco evitado ao se catar o feijão, é justamente o que, em termos
drummondianos, orienta a “procura da poesia” empreendida por João Cabral; a palavra que
“não se dissipa” no “rio difícil” do poema; a pedra propositadamente colocada no caminho da
leitura “fluviante, flutual”
62
.
Este talvez seja o último avatar de um pathos da pedra, seu definitivo advento ao
modo de ser da poesia cabralina. O poema-título ajuda a esclarecer a questão:
Uma educação pela pedra: por lições;
62
Tais neologismos são exemplos de motivação do signo, o mesmo sendo válido em relação ao verbo “iscar”, no
último verso do poema, que pode ser lido no sentido de pesca” “o que se captura no rio” ou no sentido
mesmo de “açular” — “estímulo, incitação ao ataque”.
85
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral; sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la
*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma (1997b, p.7).
O texto convida a uma brevíssima recapitulação, lembrando que as distinções a seguir
são de caráter expositivo, pois um único poema pode conglomerá-las (como é o caso do
poema acima). A pedra surge na poesia de João Cabral como elemento de contenção e
permanência, em oposição ao que foge e ao que morre (a pedra se opõe à perda); ela atua,
portanto, como uma instância de negação do sujeito, uma espécie de musa ao avesso:
Medusa
63
. Paradigma da concretude, em oposição à interioridade, a pedra logo se associa à
construtividade do poema, como elemento presente na estrutura e edificação do texto e,
conseqüentemente, presidindo a autonomia deste em relação àquele que escreve. De matéria
poética a material de construção. No rastro da desaparição do sujeito que tal construção
postula, a pedra, em sua inorganicidade, marca a mineralização de tudo o que vive e, ao
mesmo tempo, a condição de vida de tudo o que se escreve. A positividade de seus atributos
negativos, arduamente conquistada, faz com que ela se associe não apenas à hostilidade do
Nordeste, como também à capacidade de resistência do nordestino. Mediante processos
miméticos, a pedra articula os quadros referenciais eletivos do poeta ao modo de ser do
poema. Dessa maneira, sua transposição da paisagem nordestina para as propriedades
fonéticas, morfológicas, sintáticas e semânticas do texto acaba por incidir sobre a leitura.
Tendo na pedra o modelo do que é dito e dela extraindo um modo de dizer, a comunicação
que o poeta busca estabelecer com o leitor é, portanto, dura, seca, agressiva e, mais do que
desconfortável, é dolorosa.
63
A colocação busca aproveitar a expressão de Benedito Nunes (2007), relativamente ao “medusamento
interior”, associando-a ao pensamento de Agamben (2006, p.107), que resgata na imagem da musa um antigo
ideal de impessoalidade: “Musa é o nome que os Gregos davam a esta experiência da inapreensibilidade do lugar
originário da palavra poética. Platão, no Íon, apresenta como caráter essencial da palavra poética o de ser [...]
uma ‘invenção das Musas’, e de escapar, portanto, necessariamente, àquele que a profere”.
86
O poema que intitula a obra apresenta “duas educações” pela pedra. Na primeira
estrofe, são quatro as lições, “de fora para dentro”, para quem “freqüenta” a pedra como uma
escola. Lições de dicção (a “voz inenfática, impessoal”); de moral (a “resistência fria ao que
flui e a fluir, a ser maleada”); de poética (a carnadura concreta”); e de economia (“seu
adensar-se compacta”). Todas as lições são de “poética”, apesar da diferenciação. As três
últimas têm em comum a noção de solidez e densidade. Já a primeira lição é retomada ao final
da estrofe por significantes que, além da “dicção”, indicam também a “aprendizagem da
leitura” pela pedra: “cartilha muda” “para quem soletrá-la”.
A segunda estrofe é de tal modo sucinta que chega a ser enigmática. Essa “outra
educação” não ensina coisa alguma; ao contrário do que ocorre na estrofe anterior, o que
prevalece é o não-saber. Paradoxalmente, essa é a lição: “No Sertão a pedra não sabe lecionar,
/ e se lecionasse, não ensinaria nada; / não se aprende a pedra: lá a pedra, / uma pedra de
nascença, entranha a alma”. É curioso o fato de um poema que concentra todas as
coordenadas da petrificação poética da escrita cabralina terminar com a palavra “alma”. O
poeta concretiza o que de mais imaterial, o que, por definição, não pertence à natureza da
matéria. De antemão, esse empedramento do e no “princípio da vida” remete à desumanização
do sertanejo (nesse sentido, a formulação de uma crítica histórica e social pode, para além da
alusão à ignorância e ao analfabetismo, ser atribuída à operação de tornar real o que não se
pode ver). Mas a petrificação da alma (ou interiorização da pedra) remete também ao estatuto
antagônico do sujeito que se constitui no fazer poético: dizer que “uma pedra de nascença
entranha a alma”, equivale, por um lado, a dizer que a vida, de algum modo, nasce morta;
por outro, equivale também a dizer que, na vida, entranha-se algo que resiste à morte.
Educação pela pedra, nesse sentido, é também educação pelo que (não) morre.
Os versos de “O sertanejo falando” estabelecem um nítido diálogo com o poema-
título:
A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavra confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra (1997b, p.4).
87
de início, o poema se vale de uma locução comum no espanhol, mas condenada na
língua portuguesa: “a vel de”
64
. A fala do sertanejo engana por parecer doce e enfeitada,
encobrindo a “pedra de nascença” que a sustenta:
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força (1997b, p.4).
Sob a “entonação lisa”, o “idioma pedra” fere; nele, o que parece enfeite é violência. É
o tom dessa agressividade e não o de uma complacência piedosa que prevalece na
crítica ferina de “The Country of the Houyhnhnms”, poema que (re)alegoriza a sátira de
Swift. O sertanejo, comparado aos desprezíveis Yahoos da narrativa de Gulliver, passa a ser
aquilo “de que se fala”:
Para falar dos Yahoos, se necessita
que as palavras funcionem de pedra:
se pronunciadas, que se pronunciem
com a boca para pronunciar pedras;
se escritas, que se escrevam em duro
na página dura de um muro de pedra;
e mais que pronunciadas ou escritas,
que se atirem, como se atiram pedras (1997b, p.26).
Logo se vê a distância que separa a poesia cabralina de uma arte moralizante e
apologética, pois, como foi dito e o poema em questão mais do que evidencia para
João Cabral, não há positividade que não seja dependente de uma lógica negativa:
Ou para quando falarem dos Yahoos:
não querer ouvir falar, pelo menos;
ou ouvir, mas engatilhando o sorriso,
para dispará-lo, a qualquer momento.
Aviar e ativar, debaixo do silêncio,
o cacto que dorme em qualquer não;
avivar no silêncio os cem espinhos
com que pode despertar o cacto não (grifos do autor ) (1997b, p.26).
Quando a negação se desloca da ação de falar para a de ouvir, o sorriso é convertido
em arma; o silêncio, em atitude de ataque. Voltada contra a morte que conceitualmente a
constitui, essa mesma negatividade indicadora de outras tantas marcas do sujeito ao longo
64
Pode-se aplicar a tal ocorrência uma colocação adaptada de Deleuze e Guattari (1997, p.47): um desvio dessa
natureza é “um marcador de poder antes de ser um marcador sintático”.
88
da obra cabralina está presente em dois dos poemas mais mordazes de A educação pela
pedra: “O urubu mobilizado” e “Duas das festas da morte”.
No primeiro caso, a ironia tem por alvo o momento extremo da morte. O adjetivo no
título do poema destaca, desde já, a importância cívica (e política) do urubu durante a seca:
Durante as secas do Sertão, o urubu,
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto
ele, que no civil quer o morto claro (1997b, p.8).
Mais irônico do que o vocabulário burocrático, talvez seja o zelo do urubu em “não
retirar” para não ter sua técnica imitada pelos retirantes. E ainda mais irônica é sua abdicação
por uma vida melhor, sacrificando-se, caridoso e voluntário, para socorrer os “empreiteiros da
seca”, “aviando com eutanásia o morto incerto”, ele que, oficialmente, se alimenta com o
que já morreu. Na estrofe seguinte, essa mórbida caridade se confunde satiricamente com a de
um clérigo:
Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal (1997b, p.8).
Em “Duas das festas da morte”, a ironia não é menos incisiva. Na primeira estrofe, o
poema tematiza a morte “com muita pompa, protocolo, e ainda mais cenografia”, como é dito
na conversa entre os dois coveiros de “Morte e vida severina”:
Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua
ora seu próprio vivo, em dia de posse (1997b, p.4).
89
A essa oratória cerimoniosa da morte, que consagra solene e ironicamente o cadáver,
opõe-se de maneira drástica a “festa” tematizada na segunda estrofe:
Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e aliás, com uma boneca de verdade (1997b, p.5).
Irônica é a relação de causa e efeito (não necessariamente nessa ordem) entre os dois
primeiros versos. Do mesmo modo, irônico é o fato de o leitor não poder decidir se o enterro
de uma criança é motivo de festa pela vida que se abrevia ou se pelo “dia sem classe”, de
“excursão” e “piquenique ao ar livre”, em que as crianças que seguem o enterro podem,
afinal, brincar “com uma boneca de verdade”. E não menos irônica é a oposição propriamente
dita em relação à oratória da estrofe anterior: etimologicamente, “infância” significa
“incapacidade de falar”.
De todas as qualidades da pedra, o humor que João Cabral associa à idéia de morte
elege a pedrada.
***
Autonomia do poema e de seus processos referenciais, subjetividade, crítica sócio-
histórica, negatividade (da palavra poética, do sujeito, da comunicação, do silêncio, do
aprendizado, da finitude, do “real” e da memória): as direções em que a problemática da
morte se desenvolve em A educação pela pedra são mantidas na obra posterior do poeta. A
grande diferença talvez esteja nas possibilidades de leitura que se abrem a partir da
ressignificação dos termos envolvidos na discussão. É o que se busca demonstrar nas páginas
seguintes, dedicadas à interpretação de A escola das facas.
90
CAPÍTULO 4: A VIDA COMO VERTIGEM, ESCOLA DAS FACAS
Em entrevista de 1980, ano de publicação de A escola das facas, João Cabral
comentava da seguinte maneira as razões que o levaram a se decidir pelo título da obra:
O título original era Poemas pernambucanos. Depois o José Olympio achou-o pouco
comercial [...] Eu então mudei para A escola das facas, título de um dos poemas.
Imitei Molière, que tem A escola de mulheres, como o imitaram também Gide e
Cocteau. Mas meu livro não tem nada a ver com o de Molière nem com os dos
outros (....) Tem um tema. É um livro dedicado a Pernambuco (apud ATHAYDE,
1998, p.117).
A denegação do poeta torna a confessa imitação de Moliére ainda mais sugestiva. A
aproximação entre a faca e a mulher não é nova nem acidental na poesia cabralina e são várias
as pistas nesse sentido pistas muitas vezes encobertas, que uma das peculiaridades da
faca é justamente sua não-evidência: “Forçoso é conservar / a faca bem oculta / pois na
umidade pouco / seu relâmpago dura”, dizia o poeta em “Uma faca só lâmina”. A presença de
Pernambuco no “título original” e nos temas do livro é mais um componente dessa associação
possível: “Pernambuco, tão masculino, / que agrediu tudo, de menino, / é capaz das frutas
mais fêmeas / e da femeeza mais sedenta” (1997b, p.112) eis os versos iniciais de “As
frutas de Pernambuco”, poema que figura entre os mais eróticos de A escola das facas. A
faca é fálica — anagramaticamente, inclusive. Daí, de imediato, a interessante associação com
Pernambuco, masculino e agressivo
65
. Mas para que esse elo, desde logo, não pareça
simplista, vale sublinhar que, assim como é fálica e viril, a faca pode ser “castradora”. Seu
principal atributo, aliás, é o poder de corte e subtração, força negativa que o poeta com tanto
estro aplica à sua escrita.
É nessa acepção subtrativa que a faca surge na obra de João Cabral, aparando o lápis e
o livro do poeta no poema “A mesa”, de O engenheiro (1997a, p.38-9). A partir de então, sua
presença na poesia cabralina passa a ser cada vez mais decisiva (e literalmente). Antes de seu
advento em “Uma faca só lâmina”, já se pode encontrá-la na “Fábula de Anfion”, no “silêncio
desperto e ativo como uma lâmina” que antecede o encontro crucial do personagem com o
acaso (1997a, p.56). Flácida e desvigorada, mas ainda assim capaz de cindir, fazendo da lama
sua lâmina, a faca se associa à imagem do Capibaribe na abertura de “O o sem plumas”, o
65
Em Paisagens com figurasse encontrava uma caracterização parecida: “Em termos de uma mulher / não se
conta é Pernambuco: / é um estado masculino / e de ossos à mostra, duro, / de todos, o mais distinto / de mulher
ou prostituto, / mesmo de mulher virago / (como a Castilla de Burgos)” (“Duas paisagens”, 1997a, p.141).
91
rio mendigo, “espada de líquido espesso”, que corta a cidade como se corta, com a espada,
uma fruta (1997a, p.73-6). A partir de “Uma faca só lâmina”, a faca se torna uma “idéia fixa”
do poeta expressão que, coincidentemente ou não, também aparece pela primeira vez em
um poema de O engenheiro, ligada ao ato da escrita e em equivalência sintático-semântica
com a “emoção extinta”: “Carvão de lápis, carvão / da idéia fixa, carvão / da emoção extinta,
carvão, / consumido nos sonhos” (“A lição de poesia”, 1997, p.43-4).
Com a “idéia fixa”, a emotividade e a obsessão tornam-se noções constitutivas da faca.
Esta, contudo, predominará sempre sobre a interioridade daquelas, pois a faca concretiza a
abstração das emoções, fazendo com que a inquietação subjetiva se converta em um
instrumento de lucidez e vivacidade. Em João Cabral, essa conversão recebe desde logo uma
serventia: da faca vem o corte entre a emoção do sujeito e a expressão poética o que, no
entanto, não resulta em uma expressão desprovida de emotividade (tampouco subjetividade).
Muito pelo contrário: apesar de suas declarações contraditórias a respeito do lugar de emoção
na atividade literária, João Cabral, sabendo que a poesia é linguagem afetiva, acredita que a
tensão emocional deva incidir não sobre os sentimentos do eu” e, sim, sobre a atividade de
leitura, a partir de um trabalho racional que mobiliza procedimentos e estratégias de diversas
ordens para fazer com que o poema, como já foi dito, funcione à maneira de uma “máquina de
comover”
66
. Por outro lado, como se tem enfatizado nos capítulos anteriores, esse esforço
racional não deixa de ser uma forma de subjetividade e, nele, a instância subjetiva acaba por
ser indicada, ainda que por subtração (e por subtrair-se), como ocorre com a faca. E, aqui, o
que se aplica ao sujeito aplica-se também ao problema do feminino na poesia de João Cabral
e, por desdobramento, ao problema do amor e do erotismo. Utilizando um termo da epígrafe
de A escola das facas, pode-se dizer que tais problemas encontram-se profundamente
enraizados na poética cabralina, e, por isso mesmo, dissimulados, mesmo quando abordados
do modo mais direto e claro.
Atente-se para um dos traços fundamentais da faca desenvolvidos em “Uma faca
lâmina”: a “fome pelas coisas / que nas facas se sente”, noção reforçada em diversos poemas
subseqüentes e retomada sob novos ângulos em A escola das facas. Reduzida à lâmina, a faca
traduz em si a “ausência ávida” que simboliza. Sua fome insaciável torna a escassez autônoma
66
A despeito das declarações contraditórias de João Cabral e da importância da emoção no ato da escrita e no ato
da leitura, as duas citações a seguir, quando comparadas, falam por si. Em entrevista de 1986: “Eu não creio que
alguém escreva com emoção. Com emoção um sujeito comete um crime, pratica atos irracionais. E escrever é
um ato racional. Mas você pode escrever friamente uma coisa que contenha emoção para o leitor. Com emoção
não se escreve uma obra de arte” (apud ATHAYDE, 1998, p.28). Em entrevista de 1976: “Escrever sem que o
pulso se acelere, sem rasgar, sem riscar, não entendo. Se a coisa é levada com tranqüilidade, obtém-se um
refresco de laranja, e quase sem laranja. É necessária uma tensão interior” (apud ATHAYDE, 1998, p.30).
92
e ativa: “Podes abandoná-la, / essa faca intestina: / jamais a encontrarás / com a boca vazia”
(1997a, p.185). Mas trata-se de uma agentividade particular: a faca pode atuar como agente de
uma ação, mas enquanto instrumento, não dispensa de todo o sujeito que a opera (ou, dizendo
de outra forma, o sujeito que, com ela, opera a linguagem).
Se se recua para a fase inicial do poeta, é possível encontrar, desde “Os três mal-
amados”, indícios de uma conexão entre a fome, o feminino e a despersonalização da escrita:
“O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de
idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e
comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome” (1997a, p.21). Configurados de maneira
muito mais rígida e alegórica, indícios semelhantes podem ser encontrados em “Uma faca
lâmina”
67
, alguns assinalados de passagem no segundo capítulo deste trabalho, como, por
exemplo, a própria dedicatória a Vinicius de Moraes. Como se realizasse uma “educação pela
mina”, João Cabral exercita o controle sobre a instância subjetiva, de modo a aprender com a
faca a eliminar do poema todos os vestígios sentimentais. Diante disso, a suposão de uma
tetica feminino-amorosa se fortalece e a dedicatória a Vinicius de Moraes recupera sua
importância. Que outro tema poderia ser mais propício para o aprendizado de um poeta que
buscou construir sua obra como um artefato autônomo, racional, desvinculado da individualidade
do autor, em clara oposão a toda uma tradição ptica que ao amor irrealivel endereçou versos
inspirados sobre a vida íntima e sentimental?
Há, no poema, um trecho instigante nesse sentido, em que a origem da auncia é
relacionada a uma ação de outrem. Nada pode contra a faca: nem a ciência, nem a polícia, nem
o tempo: “E nem a mão de quem / sem o saber plantou / bala, relógio ou faca, / imagens de
furor” (1997a, p.191). Igualmente instigantes são os versos seguintes:
O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando
67
“É um poema de amor”: a declaração é do próprio João Cabral a propósito de “Uma faca sómina” e merece
ser registrada, ainda que com bastante reserva, pois a não revelação do comparado oculto é constitutiva do
poema, assim como as lacunas do enunciado e a incerteza de suas significações. A declaração foi feita em
entrevista a Arnaldo Jabor, de setembro de 1991. Na ocasião, os comentários do autor a respeito do poema são
de tal modo confessionais que assumem um tom irônico. Referindo-se às duas últimas estrofes do poema, João
Cabral afirma: “‘Prima’ ali não é a primeva, ou ‘originária’, não... É minha prima mesmo [...] Ela é a razão do
poema”. (apud ATHAYDE, 1998, p.112). No contexto do estudo aqui desenvolvido, a observação não deixa de
ser relevante. “Prima” seria um substantivo e não um modificador de “realidade”, e, além disso, funcionaria
como vocativo, explicitando o interlocutor da última seção do poema a única seção em que o poeta se
manifesta na primeira pessoa. Corrobora essa leitura o fato de a palavra “prima”, em suas duas ocorrências, ter
sido grafada entre vírgulas. Todavia, outras tantas possibilidades de leitura perseveram. De todo modo, a
“realidade prima”, inacessível à palavra poética, será o fracasso e, ao mesmo tempo, a força-motriz do poema.
93
[...]
Como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa
que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada (1997a, p.191-2).
Não se encontram no poema esclarecimentos sobre a “referida história”. Mas nas
poucas palavras que a mencionam, é possível inferir uma relação de contigüidade entre mão e
faca. E manejada sem cabo, a faca reverte sobre a mão a expressão de sua ferida. Sendo válida
a conotação feminina/amorosa da ausência, é possível pensar que o poema, anti-órfico,
destitui não apenas a faca, mas o próprio pathos poético de suas “serventias” usuais. Este é
útil não enquanto tema a ser desenvolvido na superfície do texto, mas enquanto força que se
dissimula para transformar a obscuridade em nitidez, o sono em vigília, o torpor em lucidez, a
ternura e a docilidade em mordaz aspereza. Sendo válida tal conotação, o poeta aqui
prosseguimento à sua “Antiode”, investindo “contra a poesia dita profunda”: despoetiza o
sentimento afetivo/passional e a ele não endereça versos de lamentação ou de devoção.
Transforma-o em arma, em instrumento, em mecanismo que, destituído de lirismo, resume o
funcionamento de sua poética: “a agudeza feroz”, “a violência limpa”, “o estilo das facas”.
Sobre “Uma faca só lâmina”, Haroldo de Campos (1970, p.73), em uma célebre
colocação, diz que “a psicologia” de João Cabral “vira fenomenologia da composição”.
Portanto, nos procedimentos imagéticos do poema, encontra-se uma maneira de compreender
melhor algumas das particularidades da faca elencadas até aqui. A atuação dessa “faca
íntima” sobre o panorama referencial do poeta é conhecida, “toda frouxa matéria, / para quem
sofre a faca / ganha nervos, arestas”:
Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera
despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.
Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
94
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,
sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios (1997a, p.194).
Em termos de imagem, a passagem da tormenta subjetiva à exterioridade lancinante
assume um aspecto pictórico. De imediato, o trecho remete à técnica cubista, estimada por
João Cabral desde sua estréia na literatura: desautomatização do olhar e exibição da face de
poliedro dos objetos. Mas há, ainda, outra possível referência artística, no caso, ao
neoplasticismo de Piet Mondrian, que, dentre outras características, conjugava abstração e
equilíbrio, rigor construtivo e impessoalidade, força e contenção qualidades ainda mais
caras ao poeta pernambucano. São estreitas, por exemplo, as relações entre “Uma faca
lâmina” e o poema “No centenário de Mondrian”, incluído em Museu de tudo. Dialogando
com a obra do pintor holandês, o poema também fala da “alma” centrada em uma “idéia fixa”:
lutar contra o inerte e ser ferida nessa luta, enfraquecer-se sob a luz implacável da consciência
para chegar à coisa que, por fim, revela-se impossível: “só essa pintura / de que foste capaz /
apaga as equimoses / que a carne da alma traz / e apaga na alma a luz, / ácida, do sol de
dentro, ao mostrar-lhe o impossível / que é atingir teu extremo” (1997b, p.51). Ao reverenciar
os cortes precisos da obra de Mondrian, o poeta parafraseia o próprio desafio de “Uma faca só
lâmina”: atingir, por meio “de clara construção, / desse construir claro / feito a partir do não”,
o ponto em que a alma se dispersa e a inquietação, antes subjetiva, numa “explosão fria”,
transfere-se para a “coisa em si”.
Que nessa inquietação formula-se o problema do feminino, sugere-o indiretamente
“Escritos com o corpo”, poema erótico de Serial, que compara uma mulher aos quadros de
Mondrian
68
. Indo-se um pouco mais longe nessa geometrização dos afetos, seria possível até
mesmo deduzir a presença dos “perfis quadradosdo pintor holandês no título e no esquema
da obra em que João Cabral inaugura (ao menos de modo explícito) a temática erótico-
feminina em sua poesia: Quaderna.
Cumpre destacar ainda um outro importante aspecto dessa temática, igualmente
relacionado às figurações da faca e, de certa forma, relacionado à leitura mondrianesca de
João Cabral (no sentido de “lançar ao fazer / a alma de mãos caídas, / e ao fazer-se, fazendo /
68
“De longe como Mondrians / em reproduções de revista / ela só mostra a indiferente / perfeição da geometria. /
Porém de perto, o original / do que era antes correção fria, / sem que a câmara da distância / e suas lentes
interfiram [...] se descobre que existe nela / certa insuspeitada energia / que aparece nos Mondrians / se vistos em
pintura viva” (1997a, p.284).
95
coisas que a desafiam”, 1997b, p.52): trata-se da relação Pernambuco/Andaluzia, ou mais
especificamente, Sertão/Sevilha. Presente na poesia cabralina desde Paisagem com figuras,
tal relação é condensada em “Autocrítica”, poema de encerramento de A escola das facas:
Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha (1997b, p.140).
A posição do poema no livro é estratégica, pois pontua a presença de Sevilha na obra
— presença não de todo evidenciada, já que o livro dedica-se integralmente à temática
pernambucana. Note-se, contudo, que é da experiência andaluza, “fêmea e viva”, que parte o
desafio de “dar a ver” o Sertão (masculino e sub-vivo, hostil e sobrevivente). “Ferir” e
“desferir” são ações recíprocas, mas que podem variar significativamente de acordo com essa
diferença entre os dois lugares-coisas de que partem e aos quais retornam sob a forma de
imagens. Por outro lado, os dois espaços podem caber em um único verso, como ocorre no
poema. Tomando-se o conjunto da obra, esse dado é sugestivo, pois, em A escola das facas, é
como se o poeta relesse a experiência sertaneja com olhos de andaluz. A observação, de certa
maneira, aponta para a questão colocada no início deste capítulo.
Em sua complexidade, a aproximação entre faca e mulher tem múltiplos e esquivos
desdobramentos, não sendo, portanto, casual, sobretudo no contexto de um livro que introduz
de modo tão decisivo a subjetividade dos afetos e da memória na poesia cabralina. Nessa
própria abertura a dimensões até então evitadas pelo poeta, é possível identificar mais um
traço marcante da presença andaluza, assinalado de passagem no capítulo anterior: exponerse.
Não será esse o “desafio demente” da escrita poética?
Eis um dos pontos em que a relação entre morte, vida e escrita apresenta-se com mais
intensidade na obra de João Cabral: “fazer no extremo, onde o risco começa”, como dizia o
poeta em “Coisas de cabeceira: Sevilha”. A esse fazer, poder-se-ia acrescentar: no extremo
do ser” (e, talvez, não mais de si). Esse risco parece ter sido assumido plenamente em A
escola das facas
69
, daí mais uma particularidade do título da obra: a faca, na poesia cabralina,
associa-se ao desafio de sondar os limites da escrita e de se expor (por esquiva) no que se
69
A considerar o poema de abertura de Museu de tudo, nesse “risco” reside uma das duas grandes diferenças
entre o livro de 1974 e A escola das facas. A outra diferença em relação ao livro de 1980 estaria na estruturação
“vertebrada” que o poeta diz faltar a Museu de tudo.
96
escreve, como na atividade de um toureiro que, com o mínimo de movimento, busca conter a
força indomável do touro.
O fascínio que as touradas exerceram em João Cabral, desde sua primeira estadia na
Espanha, disseminou-se ao longo de toda sua obra. Para o poeta pernambucano, as touradas
continham um modelo de poética. Em carta a Manuel Bandeira, em setembro de 1947, João
Cabral, iniciando-se nas artes tipográficas, relatava seu projeto, nunca concluído, de organizar
uma antologia com poemas sobre as “corridas de touros”. Alguns trechos da carta são
esclarecedores: “Faz hoje uma semana que um [touro] miúra matou Manolete, considerado o
melhor toureiro que aparecera até hoje. Seja dito de passagem que era um camarada
fabuloso: vi-o algumas vezes aqui em Barcelona e imaginei que era Paul Valéry toureando”
(MELO NETO, 2001, p.34). Nesse mesmo ano, a imagem do “touro contido” aparece nos
versos finais de “Psicologia da composição”. Menos de dez anos depois, a lembrança de
Manolete seria transformada em lição de poesia:
Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto
[...]
o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida
sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
Como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar sem poema (“Alguns toureiros”, 1997a, p.132).
97
Lições semelhantes podem ser encontradas em poemas de Agrestes (“Lembrando
Manolete”) e de Andando Sevilha, o último livro publicado pelo poeta (“Manolo González”
e “Miguel Baez, ‘Litri’”). São lições constitutivas do fazer literário cabralino e, nelas, pode-se
perceber mais claramente a relação entre o chifre do touro e a faca: ambos são forças
indomáveis com as quais o poeta/toureiro deve lidar no instante extremo da criação, sem
floreios, sem lirismo, contando apenas com a primazia da técnica sobre a força bruta
70
. A
sagacidade técnica e a indomabilidade, portanto, estão em mútua correspondência. Veja-se, no
poema acima, o lado oposto do cálculo, da precisão, do número, da geometria... O lado do
touro, fluido aço da vida: tragédia, vertigem, emoção, susto, morte.
A aproximação entre a criação literária e o duelo contra o touro marca a célebre
proposição de Michel Leiris (2003) em “Da literatura como tauromaquia”, texto de abertura
de seu livro de memórias. Independente do fato de João Cabral conhecê-la ou não, a questão
colocada logo de início pelo escritor francês poderia ter sido conceitualmente formulada pelo
poeta pernambucano:
será que o que se passa no domínio da escrita não é desprovido de valor se
permanecer ‘estético’, anódino, privado de sanção, se nada houver, no fato de
escrever uma obra, que seja equivalente [...] daquilo que é para o torero o chifre
acerado do touro, capaz de conferir em razão da ameaça material que contém
uma realidade humana à sua arte, de impedir que ela seja apenas encantos fúteis de
bailarina? (LEIRIS, 2003, p.16).
Não menos sugestiva é a proximidade entre o “chifre do touro”, tal como Leiris o
concebe, e a faca de João Cabral: em ambos os casos, o que está em jogo é uma obsessão e a
necessidade de olhá-la de frente, aceitando o risco de exposição que ela representa para o ato
da palavra
71
. De certo modo, esse é o risco assumido em A escola das facas, com a grande
70
O poema “Diálogo”, incluído em Paisagens com figuras, talvez seja o exemplo mais esclarecedor da relação
entre a tauromaquia, a faca e o cante andaluz: “o timbre desse canto / que acende na própria alma / o cantor da
Andaluzia / procura-o no puro nada, / como à procura do nada / é a luta também vazia / entre o toureiro e o
touro, / vazia, embora precisa, / em que se busca afiar / em terrível parceria / no fio agudo de facas / o fio frágil
da vida” (1997a, p.137). Outros exemplos igualmente esclarecedores poderiam ser elencados. Para sublinhar a
questão erótica que sobre tal relação se insinua, basta lembrar “a figura desafiante” da mulher em “Estudos para
uma bailadora andaluza”: nela também se adivinha: / mesmo gosto dos extremos, / de natureza faminta [...] Ela
tem em sua dança / toda a energia retesa / e todo o nervo de quando / algum cavalo se encrespa” (1997b, p.199-
206). Por fim, cumpre destacar a colocação do próprio autor, em entrevista de 1989: “Todo baile andaluz, toda
corrida de touros, são do acervo da morte” (MELO NETO, 1989, p.30).
71
A leitura que Blanchot faz do prefácio de Leiris merece ser destacada por seus pontos de tangência com o
projeto cabralino: “Escrever não é nada, se escrever não transporta o escritor num movimento cheio de riscos
que o transformará de uma maneira ou de outra. Escrever é apenas um jogo sem valor, se esse jogo não se tornar
uma experiência aventureira em que aquele que a faz, engajando-se num caminho cujo fim ignora, pode aprender
o que não sabe e perder o que o impede de saber. E, depois, escrever, sim, mas se escrever tornar sempre mais
difícil o ato de escrever, tende a lhe retirar as facilidades que as palavras sempre recebem das mãos mais hábeis
(BLANCHOT, 1997, p.236).
98
diferença de que, no livro de Cabral, diferentemente do que ocorre em A idade viril, de
Leiris, a natureza erótico-passional das obsessões permanece, muitas vezes, velada sob o
rígido controle formal da expressão empedernida. Velada, mas não menos atuante.
Outra pista nesse sentido é dada pela epígrafe de A escola das facas, que cita um
verso de Yeats: “rooted in one dear, perpetual place”. Publicado em 1921, o poema do qual a
citação foi retirada tem o instigante título de A prayer for my daughter”, poema familiar
(diga-se, patriarcal) e autobiográfico, marcadamente atravessado por uma inquietação
feminino-amorosa. No co-texto do verso citado, o poeta em prece, especulando sobre o futuro
da filha, enuncia seu desejo: O may she live like some green laurel / Rooted in one dear
perpetual place (YEATS, 2000, p.160). João Cabral suprime o termo comparado (como
fizera em “Uma faca lâmina”) e introduz uma vírgula entre deare perpetual”. Com
isso, não apenas substantiviza o adjetivo: substantiviza um sentimento.
***
Do mesmo modo com que o capítulo anterior enfatizava, logo de início, a
formalização rigorosa de A educação pela pedra, a explanação inicial deste capítulo teve por
objetivo destacar a potencial ressignificação que A escola das facas opera na poesia de João
Cabral. Cumpre agora explorar, nos poemas do livro, os meandros de tal ressignificação,
buscando avaliar em que medida a problemática da morte atua nesse processo.
Apesar de relativizados, em comparação com o rigor ímpar de A educação pela
pedra, os princípios básicos da composição cabralina são mantidos em A escola das facas
uma primeira e significativa diferença talvez esteja na explicitação daquilo que o
planejamento fora do comum do livro de 1966 buscava estabilizar: “um poema é o que de
mais instável”, como é dito já no texto de abertura de A escola das facas, misto de carta e
prefácio, intitulado “O que se diz ao editor a propósito de poemas”. Nele, encontram-se
algumas importantes diretrizes da obra:
Eis mais um livro (fio que o último)
de um incurável pernambucano;
se programam ainda publicá-lo,
digam-me, que com pouco o embalsamo.
E preciso logo embalsamá-lo:
99
enquanto ele me conviva, vivo,
está sujeito a cortes, enxertos:
terminará amputado do fígado.
terminará ganhando outro pâncreas;
e se o pulmão não pode outro estilo
(esta dicção de tosse e gagueira),
me esgota, vivo em mim, livro-umbigo.
Poema nenhum se autonomiza
no primeiro ditar-se, esboçado,
nem no construí-lo, nem no passar-se
a limpo do dactilografá-lo.
Um poema é o que há de mais instável:
ele se multiplica e divide,
se pratica as quatro operações
enquanto em nós e de nós existe.
Um poema é sempre, como um câncer:
que química, cobalto, indivíduo
parou os pés desse potro solto?
Só o mumificá-lo, pô-lo em livro (1997b, p.94-5).
A tematização do processo criativo é feita sob o ângulo da doença, do sofrimento e da
morte. O poeta sofre de um mal “incurável”: a poesia. A “anatomia” do livro é comparada à
anatomia humana. A relação entre o poeta e o livro inacabado é a de um cirurgião que cria
amputando (de si) a criação. Embalsamado, o cadáver do livro já não se decompõe. A
anatomia converte-se em autonomia e o texto sugere que é nessa transição que se situa a
“doença” literária. Um poema “se multiplica e divide”, “como um câncer”: torna-se mais forte
do que o criador quando ambos convivem. No verso “enquanto em nós e de nós existe” é
possível ler tanto um plural majestático quanto um entrelaçamento entre o autor e a obra.
no verso seguinte, o verbo “ser” absolutiza “poema”. A última estrofe lembra o desafio
tauromáquico: a força de alastramento do poema é incontrolável; o “potro solto” retoma as
imagens de indomabilidade da flauta anfiônica e da palavra esvaziada de “Psicologia da
composição”. O fechamento do texto, mais uma vez, traz à cena o paradoxo de morte e vida
do qual resulta a autonomia poética: para viver em si e por si, o poema necessita morrer em
quem o escreve. Aqui, contudo, pode-se ir um pouco além: a vida extra e intratextual do
poeta, ambiguamente, também depende dessa cisão. Extratextual: mais uma vez, João Cabral
anunciava o fim de sua carreira literária, devido ao esgotamento proporcionado pela escrita.
Intratextual: o poeta voltaria a escrever e a anunciar outras vezes seu desejo de abandonar a
literatura. Se isso ocorre, talvez seja porque, apesar do esgotamento e da anulação
pressupostos pela escrita, o sujeito que escreve se constitui nesse mesmo ato que o exaure e
100
suprime: “Sem escrever eu não existo”
72
, disse numa ocasião o autor; “escrever é sempre
estrear-se”, argumentaria ele no último poema de Agrestes, exemplificando o argumento com
uma pergunta desconcertante a seu modo: “Quem pode usar da experiência / numa recaída de
tifo?” (“O postigo”, 1997b, p.276).
A expressão “livro-umbigo”, ao final da terceira estrofe, merece ser destacada. Se, por
um lado, é possível lê-la como indicadora de mais um laço a ser cindido entre autor e livro,
por outro, pode-se lê-la também no sentido inverso, como uma indicação das inclinações
autobiográficas e memorialísticas da obra. Dando prosseguimento a um projeto esboçado em
Museu de tudo, os demais 44 poemas do livro têm por denominador comum a memória. A
vertente autobiográfica, apesar de decisiva, apresenta-se intercalada a outras vertentes de uma
memória que é pessoal, coletiva, histórica, cultural, artística e poética, sobretudo.
Em “Uma faca lâmina”, a faca, designando uma ausência, ligava-se à
memória/lembrança. Portanto, sua ocorrência no título de uma obra memorialística não deixa
de atualizar essa associação. Em “Menino de engenho”, primeiro poema do livro, uma
lembrança da infância é o ponto de partida para novas possibilidades de leitura dos
procedimentos composicionais que a faca instaura na poética cabralina:
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.
Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.
A cicatriz não tenho mais;
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina (1997b, p.96).
O poema, no primeiro verso, aproxima cana e faca. À semelhança do que ocorre em
A educação pela pedra, entre a pedra e o sertanejo, trata-se de uma aproximação
fundamental no conjunto de A escola das facas, com a qual o poeta sublinha a
interdependência de dois dos elementos mais amplamente trabalhados no livro (e em sua
poesia, de modo geral). Em “Menino de engenho”, a aproximação é reveladora. A cana
incorpora o poder de corte da foice que a corta. Apesar da agressividade ou talvez por
conta dela — a incorporação é como que erótica: “um dar-se mútuo”. Por sua vez, infere-se, o
72
Em entrevista para o Diário de Pernambuco, em maio de 1969 (apud ATHAYDE, 1998, p.29).
101
menino incorpora o gume afiado da cana que lhe ferira o olho (e, por conseguinte, o poder de
corte da foice que agrediu a cana). Assim sendo, a cadeia da agressividade não se completa na
ferida ocular do “engenheiro menino”: transfere-se para o modo de captação do real.
Comentando o poema, João Alexandre Barbosa (1998, p.92) destaca “a mestria do poeta na
utilização do termo dominante na última estrofe inoculado em que se recupera ação e
local na própria formação do vocábulo: in + oculado, a cicatriz no olho(grifos do autor).
Desse modo, o poema ata as duas pontas do livro: por trás do desejo de “dar a ver” os objetos,
está a cicatriz oculta de uma faca entranhada na alma.
Veja-se como essa interiorização é trabalhada no poema que intitula o livro:
O alísio ao chegar ao Nordeste
baixa em coqueirais, canaviais;
cursando as folhas laminadas,
se afia em peixeiras, punhais.
Por isso, sobrevoada a Mata,
suas mãos, antes fêmeas, redondas,
ganham a fome e o dente da faca
com que sobrevoa outras zonas.
O coqueiro e a cana lhe ensinam,
sem pedra-mó, mas faca a faca,
como voar o Agreste e o Sertão:
mão cortante e desembainhada (1997b, p.109).
O texto é uma espécie de continuação de “Agulhas”, poema incluído em A educação
pela pedra. A escola, no caso, é o litoral nordestino, primeiro, com seus coqueiros, de voz
úmida, “côncava, curva, abaulada” (Cf. “A voz do coqueiral”, p.108); depois, com a voz seca
de seus canaviais, que o vento folheia, como a um livro que o ferisse (Cf. “A voz do
canavial”, p.98). Coqueiros e canaviais fazem com o alísio o que o gume da cana fizera com o
menino de engenho: emprestam-lhe o poder de corte. À maneira do que se propunha no
poema-título do livro de 1966, o poema chama atenção para as reciprocidades entre o discurso
poético e a hostilidade da paisagem sertaneja. Mas, aqui, dispensa-se a pedra de amolar da
lição; e nas imagens do aprendizado que se realiza, pode-se, assim, recuperar aquela
declaração apresentada no início deste capítulo, relativamente à “imitação de Molière”. O
poeta, aludindo, talvez, ao próprio percurso formativo através do vento que migra do litoral
para o Sertão, compõe uma imagem fálica da faca e, com isso, uma imagem da virilidade de
sua poética. O sujeito do poema, o vento alísio, de feminino e afável, adquire dente e fome,
tornando-se masculino, agressivo e insaciável. O termo “desembainhada” reforça essa noção:
102
“bainha”, o estojo que protege a lâmina, é palavra (e imagem) da qual deriva o termo
“vagina”.
Retomada em “As facas pernambucanas”, essa oposição entre masculino/feminino
apresenta novos desdobramentos:
O Brasil, qualquer Brasil,
quando fala do Nordeste,
fala da peixeira, chave
de sua sede e de sua febre.
Mas não só praia é o Nordeste
ou o Litoral da peixeira:
também é o Sertão, o Agreste
sem rios, sem peixes, pesca.
No Agreste, e Sertão, a faca
não é a peixeira: lá,
se ignora até a carne peixe,
doce e sensual de cortar.
Não dá peixes que a peixeira,
docemente corte em postas:
cavalas, perna-de-moça,
carapebas, serras, ciobas.
Lá no Agreste e no Sertão
é outra a faca que se usa:
é menos que de cortar,
é uma faca que perfura.
O couro, a carne-de-sol,
não falam língua de cais:
de cegar qualquer peixeira
a sola em couro é capaz.
Esse punhal do Pajeú,
faca-de-ponta só ponta,
nada possui da peixeira:
ela é esguia e lacônica.
Se a peixeira corta e conta,
o punhal do Pajeú, reto,
quase mais bala que faca,
fala em objeto direto (1997b, p.117-8)
.
Mantendo o movimento de interiorização do texto anterior, do litoral para o Sertão, o
poema agora relativiza o poder de corte da faca para prismatizá-la em seu potencial de
perfuração. A oposição entre o litoral feminino e o Sertão masculino é acentuada
proporcionalmente à agressividade do meio geográfico e social. Desse modo, as diferenças
entre a peixeira litorânea e o punhal sertanejo são estabelecidas pela destituição: o Agreste é
“sem rios, sem peixes, pesca”; “lá se ignora até a carne de peixe”; a faca “nada possui da
103
peixeira”, “é menos que de cortar”, “faca-de-ponta ponta”. Contradizendo (ou
complementando) o que é dito em “A escola das facas”, aqui, o Sertão “duro e seco” é imune
à lâmina cortante da peixeira, “doce e sensual”, “esguia e lacônica”. A privação sertaneja, por
sua vez, torna-se capacidade de contra-resistência: “de cegar qualquer peixeira / a sola em
couro é capaz”. Em sua progressão anafórica, o poema não deixa de evidenciar uma lição
poética: no Brasil, aquilo que se “fala” do Nordeste desconhece o que “não fala língua de
cais”; note-se que, na última estrofe, o poeta explora não apenas a sonoridade do verbo
“contar”, mas também sua polissemia, estabelecendo um jogo semântico no qual a “peixeira
que corta” se associa àquilo que indiretamente se conta do Nordeste, ao contrário do punhal
que fala “em objeto direto” — e diretamente ao objeto, sem cortes ou pré-posições.
***
Como se pode perceber nos poemas até então trabalhados, o que as figurações da faca
têm de metapoético, erótico e autobiográfico, não se separa do espaço social e histórico de
que partem e em nome dos quais (ou contra os quais) se manifestam. A melhor representação
desse amálgama da memória talvez esteja nas imagens da cana. Se o espaço de que se fala é o
do senhorio, a cana traz em seu bojo a herança precária dos latifúndios e da mão-de-obra
escravizada, como em “Fotografia de engenho Timbó”:
Casas-grandes quase senzalas,
como a desse Engenho Timbó
que tenho na minha parede
(casa onde nasceu uma avó).
O tudo em volta é sempre a cana,
que sufoca tudo, como a asma
e só se abre em poucos terreiros,
guardados a ponta de faca (1997b, p.102).
A decadência do engenho é reforçada pela inversão irônica de suas grandezas. Maior
de que a Casa-grande é a opressão da aristocracia canavieira; e maior do que sua ruína é a
fragilidade daquilo que sustenta sua nobreza:
A Casa-grande é menos grande
do que a estrebaria e a senzala,
do que a moita morta do engenho,
104
de que só resta a ruína rasa.
O que de Casa-grande havia
nesse Timbó de um Souza-Leão?
Entre urinóis, escarradeiras,
um murcho, imperial, brasão (1998b, p.102).
Em “A cana e o século dezoito”, a situação é diversa. A cana, antropomorfizada,
torna-se enciclopédia de sobriedade poética:
A cana-de-açúcar, tão mais velha,
que o século dezoito, é o que o expressa.
A cana é pura enciclopedista,
no geométrico, no ser-de-dia,
na incapacidade de dar sombras,
mal assombrados, coisas medonhas,
no gosto das várzeas ventiladas,
das cabeleiras bem penteadas,
de certa esbelteza linear,
porte incapaz de se desleixar,
e que vivendo em mares, anônima,
nunca se entremela como as ondas:
mas guardam a elegância pessoal,
postura e compostura formal,
muito embora exposta à devassada
luz sem pudor, sem muros, de várzea (1997b, p.127).
O século XVIII marca o advento do Iluminismo, cujos preceitos anti-obscuros a cana
resume e elogiosamente expressa. Mas nos versos finais, ante as “luzes” que devassam, a cana
preserva suas virtudes. Em “O fogo no canavial”, tais virtudes contrastam com os “vícios” do
incêndio. Em complementaridade com o texto anterior, o contraste agora, além de biográfico,
é irônico. Biográfico, pois o inferno alude ao declarado medo da morte de João Cabral; e
irônico justamente por isso, pois a virtude da cana contrasta, afinal, com a efemeridade de
uma visão religiosa:
A imagem mais viva do inferno.
Eis o fogo em todos seus vícios:
eis a ópera, o ódio, o energúmeno,
a voz rouca de fera em cio.
E contagiosos, como outrora
foi, e hoje não é mais, o inferno:
ele se catapulta, exporta,
105
em brulotes de curso aéreo,
em petardos que se disparam
sem pontaria, intransitivos;
mas que queimada a palha dormem,
bêbados, curtindo seu litro.
(O inferno foi fogo de vista,
ou de palha, queimou as saias:
deixou nua a perna da cana,
despiu-a, mas sem deflorá-la.) (1997b, p.107-8).
Em outro poema, dedicado aos vinte anos da morte de Carlos Pena Filho, esse pudor
(de flor) da cana é cromaticamente retomado. O verde da cana quando nasce é um verde
lavado, de alface, / e faz-se ácido, adolescente, / que envelhece amarelamente, / no amarelo
que murcha em palha / e onde, ainda núbil, se amortalha: / com medo que a dispam, se enluta
/ (mas a foice logo a desnuda)” (1997b, p.120). Imagens muito semelhantes podem ser
encontradas em “A cana-de-açúcar menina”, poema em que o referido pudor exibe mais
nitidamente sua contraparte erótica:
A cana-de-açúcar, tão pura,
se recusa, viva, a estar nua:
desde cedo, saias folhudas
milvestem-lhe a perna andaluza.
É tão andaluza em si mesma
que cresce promíscua e honesta;
cresce em noviça, sem carinhos,
sem flores, cantos, passarinhos (1997b, p.114-5).
A designação sexuada, presente no título, é enfatizada pela comparação com a
mulher andaluza. Em um poema tão conciso, encontram-se as coordenadas básicas do
erotismo cabralino: com sua feminilidade dura, geométrica e desprovida de lirismo, a cana é
sensualmente feminina, mas sem o feminino.
Por fim, todas as imagens da cana trabalhadas no livro são postas em circulação em
“Moenda de usina”, conferindo dramaticidade às cenas de “morte” que o poema descreve:
Clássica, a cana se renega
ante a moenda (morte) da usina:
nela, antes esbelta, linear,
chega despenteada e sem rima.
(Jogada às moendas dos bangüês
onde em feixes de estrofes ia,
não protestava contra a morte
nem contra o que a morte seria) (1997b, p.128).
106
Contrapondo o moderno ao antigo, o texto é uma espécie de anti-Tecendo a manhã”;
o evento descrito vincula-se negativamente ao fazer poético, enquanto força desumana e
destrutiva:
Na usina, ela cai de guindastes,
anárquica, sem simetria:
e até que as navalhas da moenda
quebrando-a, afinal, a paginam,
a cana é trovoada, troveja
perde a elegância, a antiga linha,
estronda com o sotaque gago
de metralhadora, desvaria (1997b, p.128).
Nos versos finais, as referências bélicas se acentuam:
Nas moendas derradeiras tomba
já mutilada, em ordem unida:
não é mais a cana multidão
que ao tombar é povo e não fila;
ao matadouro final chega
em pelotão que se fuzila (1997b, p.128).
Assim, pode-se inferir que a “memória histórica” não se restringe a eventos situados
em um passado mais ou menos longínquo. Ademais, não cena enunciativa que não seja
historicamente situada. O livro foi escrito entre 1975 e 1980, durante a ditadura militar
brasileira. João Cabral ocupava o posto de embaixador no Senegal. Cauteloso, desde a década
de 1950, quando foi acusado de subversão pelo governo de Getúlio Vargas, o poeta, que se
declarava comunista, por certo evitava novas retaliações políticas em razão de sua arte, ainda
que o teor subversivo, não necessariamente engajado numa determinada causa partidária, faça
parte daquele “risco” tauromáquico que João Cabral, como artesão da palavra, nunca deixou
de assumir
73
. De todo modo, nos versos finais do poema acima, qualquer semelhança entre os
73
Vale destacar que, desde sua primeira estadia na Espanha, no final dos anos 1940, João Cabral alertava os
jovens artistas catalães da Dau al Set, reprimidos pelo franquismo, sobre o inevitável empobrecimento de uma
arte panfletária (Ver o depoimento de Antoni Tàpies e de Joan Brossa In: CADERNOS, 1998, p.15-7). Quanto
ao processo administrativo aberto pela acusação de comunista, um dado curioso, senão irônico, envolvendo o
poeta e o primeiro presidente do regime militar. O ano é de 1966, data de publicação de A educação pela pedra
e da célebre encenação de “Morte e vida severina”, peça que marcaria a definitiva popularização de João Cabral
nos meios culturais brasileiros. “Entre os espectadores, um pelo menos ficou mais impressionado que todos: foi
o marechal Castelo Branco, então presidente da República, que afinal promoveu [o poeta], oferecendo-lhe o
posto de cônsul-geral do Brasil em Barcelona” (CAMPEDELLI; ABDALA JR., 1982, p.5).
107
métodos da usina e o cenário sócio-político brasileiro talvez não seja mera coincidência. O
último verso faz da morte da cana uma execução — em nome do progresso
74
.
***
Uma vez pontuada essa multiplicidade de direções possíveis da memória, parte-se,
agora, para uma análise mais detalhada das questões que a problemática da morte suscita na
obra, o que ocorre, sobretudo, no âmbito da memória autobiográfica. De imediato, dois
poemas requerem uma atenção especial nesse sentido. O primeiro deles é “Autobiografia de
um só dia”.
No Engenho do Poço não nasci:
minha mãe, na véspera de mim,
veio de lá a Jaqueira,
que era onde, queiram ou não queiram,
os netos tinham de nascer,
no quarto-avós, frente à maré.
Ou porque chegássemos tarde
(não porque quisesse apressar-me,
e se soubesse o que teria
de tédio à frente, abortaria)
ou porque o doutor deu-me quandos,
minha mãe no quarto-dos-santos,
misto de santuário e capela,
lá dormiria, até que para ela,
fizessem cedo no outro dia
o quarto onde os netos nasciam.
Porém em pleno Céu de gesso,
naquela madrugada mesmo,
nascemos eu e minha morte,
contra o ritual daquela Corte,
74
Nesse sentido, para citar apenas um exemplo das relações entre a modernização (tecnológica) das usinas de
cana-de-açúcar e o dito “progresso brasileiro”, veja-se o caso do polêmico Proálcool, programa que a partir da
segunda metade da década de 1970, com a crise internacional do petróleo, encabeçou um projeto em escala
nunca vista: preço remunerador, investimento subsidiado e garantia de mercado para a construção de destilarias
com capacidade de 60 a 480 mil litros-dia”. Obviamente, “multiplicam-se os canaviais e os bóias-frias”.
(ATLAS HISTÓRICO, 2000, p.211).
108
que nada de um homem sabia:
que ao nascer esperneia, grita.
Parido no quarto-dos-santos,
sem querer, nasci blasfemando,
pois são blasfêmias sangue e grito
em meio à freirice de lírios,
mesmo se explodem (gritos, sangue),
de chácara entre marés, mangues (1997b, p.120-1).
A autobiografia não se efetua sem contradições. A começar pelo título do poema: a
escrita da vida (bio-grafia) restringe-se a um único dia. O papel da memória é ironicamente
relativizado, pois o dia em questão, a princípio, não é acessível à lembrança: o poeta relata o
próprio nascimento (ou a própria morte, irmã gêmea). Daí a ironia autobiográfica, confirmada
ao longo do texto: nada de acontecimentos marcantes que mereçam ser registrados; apenas o
tedioso desprezo pela própria vida.
Isso não conduz o texto à lamúria, tampouco faz dele um mero registro fantasioso. O
relato em primeira pessoa é, em grande parte, factual, baseado em eventos biográficos
bastante conhecidos. Os versos de abertura fazem referência ao Engenho do Poço do Aleixo,
em São Lourenço da Mata, onde João Cabral passou a infância, mas onde não nasceu. Em
nome da tradição familiar, o nascimento se dera na propriedade dos avós maternos, na rua da
Jaqueira, em Recife, onde hoje existe um viaduto
75
. Note-se a piscadela que o poeta por duas
vezes dirige ao leitor, reforçando a idéia de tradição familiar e apontando para o próprio
sobrenome: “onde [...] os netos tinham de nascer” / “onde os netos nasciam” (grifos nossos).
Do quarto dístico em diante, configura-se o que se poderia chamar de ironia do destino”,
acontecimento que o poeta, habilmente, antes mesmo de apresentá-lo, evita atribuir ao acaso:
o parto num “misto de santuário e capela”, cenário que se torna, então, o palco de uma luta
dramática do humano contra o sagrado. Petrificado, o “Céu” é “de gesso”, mas preserva sua
simbologia, menos divina do que solene (“ritual” / “Corte” / “freirice”), ante a qual o
nascimento, pelo que tem de “sangue e grito”, torna-se um insulto.
A memória pessoal, relativizada pela impossibilidade de atingir o acontecimento
narrado, converte-se em memória poética. O relato do parto remete a, pelo menos, duas
passagens bem conhecidas da obra de João Cabral. A primeira delas, a que se junta, mais do
que a indiferença, todo o desprezo que o poeta dedica à metafísica, é “a capela útero / com
75
Em outro poema do livro, “Ao novo Recife”, há uma provável referência à demolição da casa da Jaqueira para
a construção do viaduto. Com desilusão em tom de esperança, diz o poeta: “conto com que todo esse progresso /
que derruba o onde fui (e ainda levo) / faça mais fácil o o-a-mão / de mão a mão distribuir o pão, / e que tua
gente volte ao ‘bom dia’ / de quando lá toda se sabia” (1997b, p.132).
109
confortos de matriz, outra vez feto”, depreciada na “Fábula de um arquiteto”. A segunda, mais
evidente, remete aos versos de encerramento de “Morte e vida severina”: “mesmo quando é
assim pequena / a explosão, como a ocorrida; / mesmo quando é uma explosão / como a de
pouco, franzina; / mesmo quando é a explosão / de uma vida severina” (1997a, p.180). Ao
final da saga de Severino, o nascimento da criança também se de frente para o mangue,
mas em um mocambo. O último dístico da autobiografia do poeta, pode, nesse sentido, ser
interpretado como uma intertextualidade temática e estrutural com a peça: em contraste com o
sagrado num caso, pela paródia da narrativa cristã, na predestinação à miséria da criança
que acaba de nascer; noutro, pela blasfêmia do grito contra a predestinação religiosa imposta
pela família — o espaço geográfico do nascimento é o mesmo; o que muda, e muito, é o lugar
social, a “chácara”. A isso se acrescentem outras duas particularidades do texto: o paradoxo
de gênese e morte é retomado por meio da referência pessoal, o mesmo ocorrendo com a idéia
de “cisão”, pressuposta no parto.
Estreitamente relacionado a Autobiografia de um dia”, o outro poema em que o
autobiográfico liga-se de modo determinante à problemática da morte é “Prosas da maré na
Jaqueira”. O poeta, que em 1953 havia dado voz ao Capibaribe, toma no sentido literal a
epígrafe de O rio
76
e compõe com a maré uma reveladora prosa:
I.
Maré do Capibaribe
em frente de quem nasci,
a cem metros do combate
da foz do Parnamirim.
Na história, lia de um rio
onde muito em Pernambuco,
sem saber que o rio em frente
era o próprio-quase-tudo.
Como o mar chega à Jaqueira,
e chega mais longe, até,
no dialeto da família
te chamava de “a maré”.
2.
Maré do Capibaribe,
já tens de maré o estilo;
já não saltas, cabra agreste,
andas plano e comedido.
Não mais o fiapo de rio
76
A epígrafe é do poeta fundador da poesia espanhola, Gonzalo de Berceo: Quiero que compongamos io e
una prosa” (1997a, p.87).
110
que a seca corta e evapora:
na Jaqueira és já maré,
cadeiruda e a qualquer hora.
Teu rio, quase barbante,
a areia não o bebe mais:
é a maré que o bebe agora
(não é muito o que lhe dás) (1997b, p.123-4).
A seção inicial indica a contigüidade do poema com o texto anterior e, mais do que
isso, traz à cena, sob a perspectiva do sujeito, uma das imagens mais recorrentes da poesia
cabralina: o encontro (que é combate e contenção) do rio com o mar. É justamente nessa
perspectiva que reside a possibilidade de um novo olhar sobre a própria obra poética. Rio e
mar são reunidos no vocativo que introduz todas as seções do poema. A “maré do Capibaribe”
é o mangue, cuja cinética estagnada transforma-se em cinema, imagens-coisas “de nada ou
pobreza”:
3.
Maré do Capibaribe,
minha leitura e cinema:
não fica vazio muito
teu filme, sem nada, apenas.
Muita coisa discorria(s),
coisas de nada ou pobreza,
pelo celulóide opaco
que em sessão contínua levas.
Mais que a dos filmes de então,
carrego tuas imagens:
mais que as nos rios, depois,
mais que todas as viagens (1997b, p.124-5).
As duas seções seguintes explicitam o aprendizado em (dis)curso, ambiguamente
indeciso entre o sim e o não. O poeta da pedra rejeita a métrica larga e a dicção lisa, mas
aprende, na cartilha muda da lama, a lição de anti-poesia, impureza e destituição:
4.
Maré do Capibaribe,
afinal o que ensinaste
ao aluno em cujo bolso
tu pesas como uma chave?
Não sei se foi para sim
ou para não teu colégio:
o discurso de tua água
sem estrelas, rio cego,
111
de tua água sem azuis,
água de lama e indigente,
o pisar de elefantíase
que ao vir ao Recife aprendes.
5.
Maré do Capibaribe,
mestre monótono e mudo,
que ensinaste ao antipoeta
(além de à música ser surdo?).
Nada de métrica larga,
gilbertiana, de seu ritmo;
nem lhe ensinaste a dicção
do verso Cardozo e liso,
as teias de Carlos Pena,
o viés de Matheos de Lima.
(Para poeta do Recife
achaste faltar-lhe a língua) (1997b, p.125).
Nas três seções restantes, o aprendizado é outro, “de fora para dentro”, poder-se-ia
dizer. O curso do rio funde-se ao curso do tempo e, lentamente, o observador torna-se a coisa
observada.
6.
Maré do Capibaribe
entre a Jaqueira e Santana:
do cais, como tempo e espaço
vão de um a outro, se apanha.
O tempo se vai freando
(lago que a brisa arrepie)
o rolo de água maciça
que enche e esvazia o Recife,
até frear, todo espaço
(lago sem brisa no rosto),
frear de todo, água morta,
paralítica, de poço.
7.
Maré de Capibaribe,
estaria a lição nisso:
em se mostrar como em circo
nos quandos em equilíbrio?
Em se mostrar como espaço
ou mostrar que o espaço tem
o tempo dentro de si,
que eles são dois e ninguém?
112
Ou com tua aula de física
querias mostrar que o tempo
não é um fio inteiriço
mas se desfia em fragmento?
8.
Maré de Capibaribe
na Jaqueira, onde menino,
cresci vendo-te arrastar
o passo doente e bovino.
Rio com quem convivi
sem saber que tal convívio,
quase uma droga, me dava
o mais ambíguo dos vícios:
dos quandos no cais em ruína
seguia teu passar denso,
veio-me o vício de ouvir
e sentir passar-me o tempo (1997b, p.126-7).
Sendo tempo e espaço categorias interdependentes, a retenção deste, em tese, deveria
incidir sobre o fluxo ininterrupto daquele. Se, do cais, o fluir maciço da lama imobiliza o
espaço, por que o tempo não se detém? Essa questão está implícita nas três indagações do
poeta e define outras três possíveis lições do Capibaribe: sua encenação de equilíbrio entre
tempo e espaço; a incorporação do tempo no espaço estagnado, o que culminaria em uma
anulação recíproca; ou a fragmentação irrecuperável do tempo, a exemplo do que ocorre com
o curso desfalcado do Capibaribe, que se desfia da nascente até o mar.
Na última seção, o poeta atribui à convivência com o rio “o mais ambíguo dos vícios”:
ouvir e sentir em si o tempo que passa, ultrapassa e trespassa. A paisagem do nascimento é a
mesma que conduz à consciência da morte; o mangue induz o poeta ao cio de saber-se vivo
no instante exato em que morre e morto no instante em que vive (como nos versos de “Habitar
o tempo”). Nesse espaço cindido entre vida e morte, situa-se o sujeito.
Pode-se, aqui, parafrasear a pergunta que o poeta formulara em “Antiode”: “Como não
invocar o vício da poesia?no caso, o vício de uma poesia que se funda no anseio de
concreção da imaterialidade do tempo e, portanto, de uma poesia que faz da fuga da morte sua
força-motriz.
***
113
“Manejar a morbidez é perigoso porque termina sendo criado um gosto por ela”. A
frase é de João Cabral pré-engenheiro, em carta a Drummond, de 1944, na qual expressa o seu
ensejo por uma poesia solar, argumentando que a literatura deveria “ser um veículo de alegria,
saúde, não morbidez”. A “função mais importante da literatura”, conclui, “não é refletir a
miséria que a gente está vendo e sim dar coragem a esses que se está vendo na miséria”
(MELO NETO, 2001, p.206). Quase quarenta anos mais tarde, o autor, em entrevista a
Secchin, declararia: “A partir de O engenheiro, optei pela luz em detrimento da treva e da
morbidez”. No livro de estréia, essa predisposição à vitalidade já estaria atuante: “há um texto
que diz: ‘onde o mistério maior / da luz do sol da saúde?É uma confissão de enjôo frente ao
mórbido” (MELO NETO, 1999, p.326). Esse texto, intitulado “Poesia”, é o mesmo em que o
poeta faz referência à sua “ausência imensa e vegetal” (1997a, p.12).
O “enjôo” ao mórbido não evitou que o exercício poético fosse visto como “um
câncer”, a exemplo do que é dito no poema-prefácio de A escola das facas, retomando uma
metáfora utilizada em Museu de tudo, que identifica “na criação as leis do câncer”, e,
neste, o “signo da vida, / que multiplica e é destrutiva” (“O espelho partido”, 1997b, p.78). A
poesia solar, com a qual o poeta quis “dar a ver” Sertão e Sevilha, converteu-se em “tiro de
inimigo”, pedra de fogo, impondo filtros ao “real”; converteu-se em faca que agride, reduz e
disseca — imagens de A educação pela pedra (“Agulhas” e “O sol em Pernambuco”)
igualmente retomadas em A escola das facas (“Vicente Yañez Pinzón” e “De volta ao cabo
de Santo Agostinho”).
E o mais curioso é que, ao fugir da morte, João Cabral teve a mesma sina de Severino:
a morte encontrou “quem pensava encontrar vida, / e o pouco que não foi morte / foi de
vida severina / (aquela vida que é menos / vivida que defendida, / e é ainda mais severina /
para o homem que retira)” (1997a, p.153). Fugindo da morte, o poeta retira às avessas e faz o
percurso inverso do rio que a anuncia. Mas chega ao Sertão, cemitério a céu aberto. Pode-se,
então, mencionar novamente o diagnóstico irônico que o Grão-doutor faz da obra do poeta, no
poema “O exorcismo”, citado no primeiro capítulo desta dissertação: “é o pavor da morte, da
sua, / que o faz falar da do Nordeste” (1997b, p.290).
Se tal “pavor” liga-se à consciência do tempo e da memória, esta consciência, quando
ressignificada, acaba por ressignificar também o espaço nordestino em que o medo da morte
se dissimula (como o sujeito). De certa forma, é isso o que ocorre em A escola das facas. Em
“Tio e sobrinho”, por exemplo, o poeta “reconta” o Sertão da infância, descoberto nos
“causos” que o tio cearense trouxe consigo para Recife:
114
O sobrinho ouvia-o atento,
e um tanto perguntadeiro,
do Sertão que havia atrás
da Mata doce, e que cedo,
foi o mito, o misterioso,
do recifense de engenho,
mal-herdado de algum longe
parentesco caatingueiro.
Certo, a lixa de Sertão
do que faz, em pedra e seco,
muito apreendeu desse tio
do Ceará mais sertanejo (1997b, p.116).
O sertão surge mítico. Antes de ser “o real”, foi o espaço mágico que o filho de senhor
de engenho transgredindo as fronteiras que separam a Casa-grande dos “cassacos”
descobre juntamente com a literatura, nos mirabolantes e clandestinos romances de cordel:
No dia-a-dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante,
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho, perante
115
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de corumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes.) (“Descoberta da literatura”, 1998b, p.129-30)
O poema é um jogo de “voz e silêncio paralelos”
77
. Sob tensão de códigos
discordantes, a descoberta se em ao menos dois níveis: o do menino-leitor-poeta, que
descobre a literatura no cordel, desde então, transgredindo o interdito; e o vel da Casa-
grande, que descobre o desplante. De todo modo, o texto marca a dimensão afetiva da
descoberta literária (e “libertária”): durante a leitura para os trabalhadores, algo a mais
acontecia. Em meio às relações de poder que demarcam e sustentam os lugares sociais
preestabelecidos do “senhor” e dos “escravos”, a imaginação destes últimos, recriando o
mítico e fantástico, não deixa de indicar uma capacidade de resistência à opressão, rejeitada
estética mas não eticamente pelo poeta. Isso fica claro em A pedra do reino”, poema
dedicado à epopéia armorial de Ariano Suassuna:
Foi bem saber-se que o Sertão
não só fala a língua do não.
Para o Brasil, ele é o Nordeste
que quando cada seca desce,
que quando não chove em seu reino
segue o que algum remoto texto:
descer para a beira do mar
(que não se bebe e pouco dá).
2.
Os escritores que do Brejo,
ou que da Mata, têm o sestro
de só dar a vê-lo no pouco,
no quando em que o vê, sertão-osso.
Para o litoral, o esqueleto
é o ser, o estilo sertanejo,
que pode dar uma estrutura
ao discurso que se discursa (1997b, p.98-99).
77
Uma leitura minuciosa do texto encontra-se em SECCHIN, 1999, p.319-22.
116
Em sua revisão da negatividade sertaneja, João Cabral põe em xeque o próprio ponto
de vista: o Sertão não é apenas fome, sede e retirada
78
. O poeta da pedra é também o “escritor
do Brejo” que busca na dureza do Sertão a estrutura óssea de seu discurso. O percurso de
Suassuna é geograficamente inverso: parte do alto sertão paraibano, passa pelos Cariris
Velhos da Paraíba do Norte, até chegar ao litoral pernambucano. E igualmente inversa é a sua
visão do sertanejo, afeita ao enigmático e assombroso, ao cômico e cósmico, ao heróico e
profético. É essa positividade da fabulação que João Cabral reconhece e elogia no escritor
paraibano:
3.
Tu que conviveste o Sertão
quando no sim esquece o não,
e sabes seu viver ambíguo,
vestido de sola e de mitos,
a quem só o vê retirante,
vazio do que nele é cante,
nos deste a ver que nele o homem
não é só capaz de sede e fome.
4.
Sertanejo, nos explicaste
como gente à beira do quase,
que habita caatingas sem mel
cria os romances de cordel:
o espaço mágico e feérico,
sem o imediato e o famélico,
fantástico espaço suassuna
que ensina que o deserto funda (1997b, p.99-100).
Adepto da poesia desmistificadora, João Cabral subtraiu do Sertão o espaço do sonho
e da fantasia. Ao reverenciar o “espaço suassuna”, o poeta opera uma nova desmistificação:
não elogia a ilusão em si, mas sua potencial conversão em força contrária à sujeição em que
se encontra o homem sertanejo. Nem tudo é fome e privação. A positividade do aprendizado
permanece negativa: a capacidade para o mágico e o fabuloso é uma forma de negação ao que
78
Essa relativização do “não” é uma das razões que levam Silviano Santiago (1982) a argumentar que, com A
escola das facas, a obra cabralina abre-se à “incerteza do sim”, desdogmatizando-se. Desse modo, argumenta o
crítico, a “incerteza no trato com a realidade começa a habitar o campo semântico do poema, exprimindo-se em
palavras e construções onde ficam pouco nítidas as diferenças” (SANTIAGO, 1982, p.43).
117
oprime. Mas a reformulação da negatividade parece inevitável. Por um caminho tão diverso,
Suassuna fizera o que o poeta tanto almejava: não refletiu a miséria do que viu; encorajou
os que vivem nela.
Não por acaso essa reformulação da negatividade coincide com a mudança de
perspectiva diante da morte. Em A escola das facas, a negatividade é reformulada dentro da
própria obra e, num poema como Barra do Sirinhaém”, pode-se perceber o vínculo estreito
entre o negativo e a morte. O texto constitui o elo entre o poema que intitula o livro e a
questão da morte trabalhada em “Autobiografia de um só dia” e “Prosas da maré na Jaqueira”:
Se alguém se deixa, se deita,
numa praia do Nordeste,
ao sempre vento de leste,
mais que se deixa, se deita,
se se entrega inteiro no mar,
se fecha o corpo, se isola
dentro da própria gaiola
e menos que existe, está;
se além disso a brisa alísia
que o mar sopra (ou sopra o mar)
faça com que o coqueiral
entoe sua única sílaba:
esse alguém pode que ouvisse,
assim cortado, e vazio,
no seu só estar-se, o assovio
do tempo a fluir, seu fluir-se.
2.
Se alguém se deixa, se deita,
numa praia do Nordeste
ao sempre vento de leste;
mais que se deita, se deixa,
sente com o corpo que a terra
roda redonda em seu eixo,
pois que pode sentir mesmo
que as suas pernas se elevam,
que há um subir do horizonte,
que mais alto que a cabeça
seu corpo também se eleva,
vem sobre ele o mar mais longe.
Essas praias permitem
que o corpo sinta seu tempo,
o espaço no rodar lento,
sua vida como vertigem (1997b, p.113-4).
118
A cena é erótica: deitar-se na praia, entregar-se ao mar, ouvindo a brisa que sopra nos
coqueirais. A segunda seção descreve uma cena de amor entre o homem e a terra “redonda em
seu eixo”, cujas “pernas se elevam”, “um subir do horizonte”...
O diálogo com “A escola das facas” é claro: o vento alísio, antes de ser a “mão
cortante e desembainhada” que agride o Sertão, é brisa feminina que envolve e entorpece.
Mas, aqui, cai a máscara da impessoalidade: o corte aprendido na dicção das folhas laminadas
é eroticamente infligido a alguém, que, então, “cortado, e vazio”, ouve “o assovio do tempo a
fluir, seu fluir-se”: eis a escola das facas. O vento que chega agressivo ao Sertão é o sopro
(alma e palavra) do tempo que anuncia a morte; e também é Eros, erotismo, gênese, criação.
A “vida como vertigem”, afinal, é a morte (in)vertida, vertere, verso, reverso, Sertão.
119
INEVITÁVEL PONTO FINAL
João Cabral, certa vez, declarou que era “preciso ler o seu discurso invisível”
79
, o que
é curioso, em se tratando de um poeta tão obcecado pela materialidade da palavra concreta e
solar. A declaração, contudo, sintetiza em pouquíssimas palavras o percurso trilhado até aqui,
não propriamente pelo que ela recomenda, mas por sua contradição: na poesia de João Cabral,
o esforço de exteriorização e concretude (que tudo petrifica) está diretamente relacionado com
a falta, a ausência, ou, segundo o próprio autor, com a invisibilidade (atributos da faca). A
exterioridade da pedra é interiorizada e entranha-se na alma. A interioridade da faca
exterioriza-se no fazer(-se) tenso e inquieto, com os nervos, sob um fio. Esta dissertação
buscou situar o problema da morte no intervalo entre o “dar a ver” e esse “discurso invisível”,
entendido não como uma rede de enigmas a serem decifrados e explicados à luz de um
sentido secreto, obscuramente estipulado pelo autor; mas, pelo contrário, como a indicação de
que a linguagem poética é escorregadia e contraditória, por mais objetiva que se queira. A
própria expressão “dar a ver”, empregada à revelia pelo poeta, comporta a ação de ocultar
80
.
A leitura aqui proposta procurou mover-se nesse hiato em que a morte e a negatividade se
confundem com a dimensão fugidia do sujeito, na contraparte da expressão objetiva, do
cerebralismo impessoal e da ânsia de concreção.
A educação pela pedra e A escola das facas são obras que representam dois
momentos extremos nesse sentido, especialmente quando tomadas no conjunto da produção
de João Cabral, como este estudo buscou fazer, sempre que possível. É certo que o recorte
proposto deixa de lado outros livros em que a questão da morte é igualmente fundamental:
Morte e vida severina, Dois parlamentos, Museu de tudo e Agrestes, por exemplo,
mereceram citações esporádicas e leituras superficiais. O recorte, no entanto, apesar de
transgredido em alguns pontos, pareceu indispensável à execução em tempo hábil da tarefa a
ser empreendida: pensar a morte não apenas como um tema recorrente, mas, sim, enquanto
um problema indissociável da esfera do sujeito, este concebido enquanto entre-lugar da
negação. Dessa forma, se a autonomia do poema postula a despersonalização, o faz por
movimentos muito semelhantes aos que levam o texto a estabelecer, pelo prisma da escassez,
79
Depoimento a Edla Van Steen, em 1980, ano de publicação de A escola das facas; apud CADERNOS, (1998,
p.128).
80
Na medida em que tal expressão “pressupõe um ponto de visibilidade ideal e a necessidade de remoção dos
obstáculos que estejam toldando essa idealidade. O problema se instala no fato de que o instrumento apto a
clarificar a percepção é o mesmo que serve para encobri-la: a palavra” (SECCHIN, 1999, p.311).
120
relações de reciprocidade com seus quadros referenciais. A subtração da subjetividade (morte)
apresenta-se como marca de subjetivação (escrita). Nas duas obras analisadas, esse processo
pode ser percebido em toda a sua complexidade, uma vez que, nelas, a dimensão do sujeito
exibe seus vínculos ambíguos e paradoxais com a auto-referencialidade do texto, que constitui
a subjetividade buscando suprimi-la; e com a temática social, indicadora de supressão,
hostilidade e esvaziamento da vida que, no entanto, resiste, positiva em sua negatividade, tal
como o poema.
O “dizer contra” torna-se contradição. É com essa “lição poética” que este estudo
finaliza suas considerações, acenando com a possibilidade de uma ampliação no futuro. João
Cabral, que associou a vida ao enfrasamento difícil e meticuloso dos rios e gritos do discurso,
afirma, em um poema anedótico de Agrestes, que a morte é uma “questão de pontuação”,
“inevitável ponto final”. Com base na mesma anedota, pode-se, afinal, contrariar o que diz o
poeta. Na tríade sujeito-metalinguagem-realidade, a morte não é ponto final, mas
reticências...
121
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