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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
HOJE É DIA DE MARIA BORRALHEIRA:
Intertextualidades do Roteiro da Microssérie
Televisiva
Myriam Pessoa Nogueira
Belo Horizonte
2009
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Myriam Pessoa Nogueira
HOJE É DIA DE MARIA BORRALHEIRA
Intertextualidades do Roteiro da Microssérie
Televisiva
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como
requisito para obtenção do título de
Mestre em Letras.
Orientador: Márcio de Vasconcellos Serelle
Belo Horizonte
2009
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Myriam Pessoa Nogueira
Hoje é Dia de Maria Borralheira:
Intertextualides do Roteiro da Microssérie Televisiva
Dissertação de mestrado da Faculdade de Letras Departamento de Literaturas de
Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 2009.
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Prof.Dr.Márcio de Vasconcellos Serelle (Orientador) – Letras/Comunicação - PUC
Minas
Profa. Dra. Márcia Marques de Moraes – PUC Minas - Letras
_____________________________________________________________________
Prof.Dr. Delfim Afonso Júnior – UFMG – FAFICH – Comunicação Social
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A meu pai, Professor JoNogueira da Silveira
Reis, meu primeiro Mestre em Literatura.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof.Dr.Márcio de Vasconcellos Serelle, que com tanta paciência e
detalhamento me guiou pelos caminhos da dissertação.
À minha mãe por ter suportado o período de “incubação”.
A Renata Soffredini, que tantos textos de seu pai me enviou, com presteza e paciência
e à SBAT(Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), pelo contato com a filha de Carlos
Alberto Soffredini e por enviar-me uma de suas peças.
À Globo Universidade, por intermediar a entrevista por e-mail com Luís Alberto de
Abreu, e a este por sua boa-vontade. À Divulgação da Rede Globo, que por mais de vinte anos
me ajudou a entrevistar profissionais da área, e a todos os entrevistados de dez anos atrás, por
me concederem gentilmente seus depoimentos, os quais só agora utilizei.
À Pontifícia Universidade Católica e ao Departamento da Pós-Letras, que me deram a
chance de entrar num mestrado, e decidiram me conceder uma bolsa da CAPES para que eu
pudesse me concentrar na realização deste trabalho, e aos professores que me iluminaram o
caminho durante estes dois anos.
A Deus, por ter me dado paz de espírito em meio às tempestades e tempo para realizar
esta dissertação.
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LISTA DE ABREVIATURAS:
Cap. - capítulo
Cia. – Companhia
Color. – colorido
Dir. - direção
Ed. - edição
Gk – greek (grego)
Son. – sonoro
Min. – minutos
P&B – preto-e-branco
LISTA DE SIGLAS:
APCA – Associação Paulista dos Críticos de Artes.
CCBB – Centro Cultural do Banco do Brasil
DVD – Digital Versatile Disk, disco versátil digital.
EAD – Escola de Arte Dramática (da USP, ex-Alfredo Mesquita).
FLIP – Festa Literária de Paraty
INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo
NTSC – National Television System Comittee
SBAT Sociedade Brasileira de Autores Teatrais
SBT – Sistema Brasileiro de Televisão
SNT – Serviço Nacional do Teatro
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES:
FIGURA 1 Capa do livro.............................................................................................15
FIGURA 2 Avó/narradora..........................................................................................29
FIGURA 3 O Mascate.............................................................................................. ..32
FIGURA 4 Colcha de retalhos....................................................................................33
FIGURA 5 Maria lê livro da cabeça de Chico Chicote ..............................................38
FIGURA 6 Chove no sertão.......................................................................................45
FIGURA 7 Asmodeu Gato..........................................................................................48
FIGURA 8 Maria retorna ao lugar onde sepultara o morto.........................................54
FIGURA 9 Maria em “Xô Passarinho”.......................................................................63
FIGURA 10 Maria na estrada.......................................................................................67
FIGURA 11 Partitura “Xô Passarinho”......................................................................68
FIGURA 12 Madrasta e seu primeiro marido..............................................................76
FIGURA 13 Amado preso na gaiola...........................................................................77
FIGURA 14 Maria reflete de volta o feitiço................................................................78
FIGURA 15 Maria volta a um tempo anterior à estória................................................80
FIGURA 16 Emilia e Visconde de Sabugosa..............................................................82
FIGURA 17 Maria piano-baby e Soldado...................................................................83
FIGURA 18 Cavaleiro da Noite...................................................................................85
FIGURA 19 Maria e a Carvoeira..................................................................................87
FIGURA 20 Boneca.....................................................................................................91
FIGURA 21 Os Sete-Peles...........................................................................................94
FIGURA 22 Asmodeu Original....................................................................................95
FIGURA 23 Zé Cangaia e Maria..................................................................................96
FIGURA 24 Contracapa do livro...............................................................................100
FIGURA 25 Maria encontra as “franjas do mar”......................................................103
FIGURA 26 Gráfico da Curva Dramática da Primeira Jornada ................................117
FIGURA 27 Gráfico da Curva Dramática da Segunda Jornada.................................117
FIGURA 28 Dorso do livro.........................................................................................120
8
8
RESUMO
Nesta dissertação estudamos as estratégias intertextuais de construção do roteiro da
microssérie Hoje é Dia de Maria, . e 2ª. temporadas, transposto para livro, de autoria de
Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu. Para isso, identificamos as fontes literárias
que vão de contos populares orais compilados por Sílvio Romero e Câmara Cascudo a
narrativas clássicas, tanto de nossa literatura como da universal analisando sua articulação
na tessitura narrativa do roteiro do programa. Busca-se, assim, uma reflexão sobre o diálogo
entre literatura e televisão, que envolve uma base intertextual oriunda do universo
maravilhoso e mítico. O mosaico da trama desta minissérie tem como referência primordial a
adaptação da obra dramatúrgica de Carlos Alberto Soffredini e de seu modo de composição,
fundado na estilização.
PALAVRAS-CHAVE:
Literatura
Televisão
Minissérie
Adaptação
Intertextualidade
9
9
ABSTRACT
In this dissertation we studied the intertextual strategies of the miniseries Today is The
Day of Maria’s screenplay’s building, for the 1
st
and 2
nd
Journeys, which was translated into a
book by the authors Luiz Fernando Carvalho and Luís Alberto de Abreu. For that, we
identified the literary sources – from oral popular stories compiled by Sílvio Romero and Luís
da Câmara Cascudo to classic narratives, as much from Brazilian literature as from the
universal one analyzing its articulation in the narrative texture of the show’s screenplay. We
search, then, for a reflection on the dialogue among literature and television, which involves
an intertextual basis, originated from the marvelous and the mythical universe. The plot’s
mosaic of this miniseries has as primary reference the adaptation of Carlos Alberto
Soffredini’s dramaturgical work and his way of composing, based upon stylization .
KEYWORDS:
Literature
Television
Miniseries
Adaptation
Intertextuality
10
10
SUMÁRIO:
“NO SOL LEVANTE”(INTRODUÇÃO)..........................................................................12
CAPÍTULO 1 - “NAS TERRAS DO PÔR-DO-SOL”.....................................................16
1.1 - Intertextualidade, Dialogismo e polifonia...................................................................16
1.2 - Paródia, paráfrase e estilização....................................................................................22
1.3 - De como Carlos Alberto Soffredini se tornou o maior estilizador do teatro brasileiro
e como sua obra se tornou objeto de estilização da televisão
brasileira.................................................................................................................................25
CAPÍTULO 2 - “NO PAÍS DO SOL A PINO, EM BUSCA DA SOMBRA”...................34
2.1 – Formas Simples ou Formas Breves............................................................................34
2.2 – Características dos contos tradicionais.....................................................................36
2.2.1 – Oralidade e narrativas épicas....................................................................................36
2.2.2 – Concisão-intensidade-rapidez.....................................................................................40
2.3 – O maravilhoso.............................................................................................................43
2.4 – Características do conto maravilhoso.......................................................................45
2.4.1Repetição....................................................................................................................46
2.4.2 – Moral ingênua e indefinição histórica......................................................................46
2.4.3 – Descontinuidade entre causa e efeito........................................................................48
2.4.4 – Universalidade...........................................................................................................50
2.4.5 – Construção em abismo..............................................................................................50
2.5 – Mito do herói................................................................................................................51
CAPÍTULO 3 - “TERRA DOS SONHOS, ONDE O FIM NUNCA TERMINA”.........55
3.1 – Roteiro, estrutura em movimento..............................................................................55
3.2 - Intertextualidades em Hoje é Dia de Maria..............................................................59
3.2.1 – Contos e cantos populares........................................................................................61
3.2.1.1 – Cinderela em Hoje é dia de Maria.......................................................................62
3.2.1.2 – A Madrasta em Hoje é Dia de Maria...................................................................63
3.2.1.3 – Dona Labismina em Hoje é Dia de Maria
...........................................................65
3.2.1.4 – Outros contos-de-fadas em Hoje é Dia de Maria................................................66
11
11
3.2.1.5 – Villa Lobos e o Cancioneiro Popular...................................................................68
3.2.2 – Literatura Brasileira em Hoje é Dia de Maria.......................................................69
3.2.2.1 – Cassiano Ricardo.................................................................................................70
3.2.2.2 – Mário de Andrade...............................................................................................71
3.2.2.3 – Drummond e Bandeira........................................................................................80
3.2.3.4 - Monteiro Lobato...................................................................................................82
3.2.3 – Literatura Universal em Hoje é Dia de Maria.......................................................84
3.2.3.1 – Lewis Carrol,Cervantes,Swift, Hugo, Silva.......................................................86
3.2.3.2 – Ésquilo/Dickens...................................................................................................87
3.2.3.3 – Shakespeare..........................................................................................................88
3.2.3.4 – Hoffman.................................................................................................................91
3.2.3.5 - O “duplo” em Hoje é Dia de Maria...................................................................92
3.2.3.6 – Brecht....................................................................................................................97
3.2.3.7 – Musicais americanos………………………………………………...................99
“NAS FRANJAS DO MAR”(CONCLUSÃO)................................................................101
REFERÊNCIAS..................................................................................................................104
APÊNDICE A (curva dramática).......................................................................................117
APÊNDICE B (entrevista com Luís Alberto de Abreu)...................................................118
12
12
“NO SOL LEVANTE” – INTRODUÇÃO
e a agulha do real nas mãos da fantasia, fosse bordando
ponto a ponto nosso dia-a-dia”
Gilberto Gil
Esta dissertação é um estudo da intertextualidade na minissérie da Rede Globo Hoje é
Dia de Maria por meio da análise dos diálogos propostos em seu roteiro televisivo publicado
em livro, envolvendo literatura e outras mídias. Não se trata de uma análise do produto
televisivo acabado, com suas leituras semióticas, com citações visuais e sonoras, embora não
seja de todo possível excluir estes signos, uma vez que nós, leitores, trazemos conosco toda
uma gama de informações adquiridas de várias formas e através de várias mídias. Nosso
objeto empírico é o livro publicado pela Editora Globo em 2006, com os dois roteiros das duas
partes da minissérie, exibidas respectivamente em 2005 e 2006. O livro do roteiro de Hoje é
Dia de Maria traz o contato com a narrativa escrita em formato dramatúrgico, apresentando
um texto da literatura contemporânea brasileira carregado de simbolismos, reconstruindo e
revitalizando o manancial das raízes do imaginário popular e seus contos orais maravilhosos.
A análise do roteiro possibilita o rastreamento mais preciso das relações intertextuais,
notadamente as literárias, que podem ter passado despercebidas, mesmo para um espectador
mais cultivado, quando da exibição da minissérie na TV ou, ainda, quando se assiste hoje ao
DVD.
Hoje é Dia de Maria é, para Luiz Fernando Carvalho, uma “tentativa de penetrar na
infância”
1
. Conforme nos conta Renato Cordeiro Gomes, (2006, p.2) “o universo mágico da
minissérie surgiu, em grande parte, dos esboços e textos criados pelo diretor em seus cadernos
de anotações”. Em Hoje é Dia de Maria temos a “legitimidade reforçada pelos intelectuais de
renome” (GOMES, 2006, p.4). Seus autores são: o dramaturgo falecido em 2001, Carlos
Alberto Soffredini
2
, o diretor Luiz Fernando Carvalho
3
e o também dramaturgo Luís
Alberto de Abreu
4
.
1
Entrevista concedida para o making off do DVD de Hoje é Dia de Maria, 3 discos digitais; Rio:Globomarcas,
2006(556 min).
2
Carlos Alberto Soffredini formou-se em Letras pela Faculdade de Filosofia de Santos; em 1967 ganhou o
Prêmio do Serviço Nacional de Teatro, SNT, pelo texto O Caso dessa tal de Mafalda, que deu o que falar, e
acabou como acabou, num dia de carnaval. O subcapítulo 1.3 deste estudo é dedicado a sua obra, e o subtítulo
faz juz ao humor contido no tamanho de seus títulos (de inspiração brechtiana). Escreveu uma novela para o SBT,
Brasileiros e Brasileiras , juntamente com Walter Avancini.
3
Luiz Fernando Carvalho teve sua experiência em minisséries iniciada na década de 80, como parte da equipe
de direção de O Tempo e o Vento e Grande Sertão:Veredas. Dirigiu a minissérie Riacho Doce e depois Os
Maias.Adaptou Ariano Suassuna, desde especiais como A Farsa da Boa Preguiça, Uma Mulher Vestida de Sol,
13
13
Antes desta minissérie, as experiências com o maravilhoso na TV eram praticamente
restritas às novelas escritas ou adaptadas por Dias Gomes, como Saramandaia e Roque
Santeiro – da sua peça O Berço do Herói; às minisséries, com aparições de orixás no
Pelourinho em Tenda dos Milagres e a presença de Vadico em Dona Flor, ambas adaptações
da obra de Jorge Amado, e Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, adaptado do universo
fantástico por Paulo José; aos seriados, nas aventuras do Sítio do Picapau Amarelo e do
Castelo Rá-Tim-Bum; e a alguns “casos especiais”, especialmente os dirigidos por Luiz
Fernando Carvalho. Mas, mesmo em face desses exemplos, é possível afirmar que a
dramaturgia da TV é predominantemente, assim como nossa ficção literária, voltada ao costeio
do real.
O recorte proposto para construção teórica e eixo analítico foi o da intertextualidade. O
roteiro de Hoje é dia de Maria não foi construído a partir de uma adaptação de uma obra
apenas, mas de um processo de reciclagem cultural (KLUCINSKAS; MOSER, 2007), presente
na estilização feita pelos autores da microssérie, adaptando à realidade e à cultura nacionais
elementos da cultura universal, e, ao mesmo tempo, resgatando da oralidade popular outros
elementos, tidos como folclóricos, e consagrando-os num padrão considerado elitista dentro da
TV brasileira, padrão este determinado pelo horário de exibição (22h30), público a que se
destina e profissionais envolvidos. A ironia intertextual (ECO, 2003) – referência a outra obra
proposta ao leitor numa lógica de jogo intertextual está presente nos diálogos e personagens
citados; quanto mais informação tiver o público, mais citações ele poderá ter o prazer de
desfrutar.
Outras possíveis análises deste material pertencem ao terreno da semiótica, ou da
hipertextualidade (no sentido de adaptação), uma vez que também na cenografia, no figurino,
na iluminação, na interpretação dos atores e na direção musical estão presentes elementos que
os profissionais da área chamam de “homenagem” aos grandes mestres da arte. Procuraremos,
no entanto, nos manter no terreno literário, que, por si só, abre diversos caminhos para
investigação, demandando estudos, entre outros, acerca do conto maravilhoso e oral. Assim,
poderemos fazer uma reflexão sobre o diálogo entre literatura e televisão, sobre o fazer
literário e a escrita televisiva.
Esta microssérie – termo usado para designar igualmente
até a microssérie A Pedra do Reino, onde reafirmou sua pesquisa da linguagem épica em fusão com a
dramaturgia lírica.
4
Com quase 30 anos de dedicação ao teatro, Luiz Alberto de Abreu é mais conhecido como o autor premiado de
“Bella Ciao”, mas hoje tem sucessos como “O Livro de ”. Seus textos, como os de Soffredini, abordam a
temática do teatro popular, especialmente a comédia. Escreveu os roteiros dos filmes “Kenoma” e “Os
Narradores de Javé”cujo tema é a narrativa oral popular, ambos de Eliane Caffé. Estreou com Hoje é dia de
Maria na TV.
14
14
minissérie de TV de menos de oito capítulos foi bastante analisada pelos comunicólogos,
quando de sua exibição na TV, em 2005. Aos especialistas da área de Letras, porém, não
concerne pesquisar os efeitos do impacto de um programa televisivo através da análise
imediata, mas o seu efeito a longo prazo, tratando principalmente do interesse despertado no
público em relação à leitura de clássicos da literatura adaptados, ou, como é o nosso presente
caso, o caminho inverso, o da transformação de uma obra televisiva ou cinematográfica em
livro.
Dentre as cenas da microssérie que fazem homenagem à literatura, se destaca a
passagem em que Maria lê o livro de cabeça de Dom Chico Chicote, na intenção de avivar sua
memória. Essa é a grande metáfora da minissérie, podemos dizer até uma das “morais” da
estória – a passagem da literatura oral, representada pela figura da Narradora, à escrita,
simbolizada pela figura de D.Chico e, por sua vez, à televisiva, pela própria condição de
produto audiovisual.
O nosso objetivo principal é, neste trabalho, identificar os contos orais populares, as
lendas, os poemas e demais fontes da literatura brasileira e universal presentes nesta obra, ou
seja, as intertextualidades presentes no livro de Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de
Abreu, e compreender sua utilização na tessitura da obra.
No primeiro capítulo, fizemos uma revisão teórica sobre o tema da intertextualidade,
desde Bahktin e Gerard Genette, passando por Linda Hutcheon e Robert Stam, teóricos que,
transitando entre literatura e formas audiovisuais, apontam importantes questões acerca do
diálogo intermidiático. Ainda na primeira parte, vimos os conceitos de reciclagem cultural
(KLUCINSKAS; MOSER, 2007) e de ironia intertextual (ECO, 2003); na segunda parte do
primeiro capítulo, estudamos a classificação que Affonso Romano de Sant’Anna fez da
paródia, da paráfrase e da estilização, abrindo caminho para o estudo da obra do dramaturgo
paulista Carlos Alberto Soffredini e suas estilizações.
No segundo capítulo, realizamos uma incursão no terreno do maravilhoso, gênero
predominante de Hoje é dia de Maria, estudando suas teorias e conceitos, desde LeGoff a
Todorov, diferenciando-o do fantástico, do realismo maravilhoso estudado por Irlemar
Chiampi e do realismo mágico analisado por Wendy Faris. Entramos nas definições do conto
oral, desde as classificações de Luís da Câmara Cascudo e as categorizações de Vladimir
Propp via Haroldo de Campos, as características das formas simples (JOLLES, 1976), revistas
por Cortázar e Ítalo Calvino, até as modernas teorias das formas breves de Ricardo Piglia e
Jorge Luís Borges. Definimos o conto maravilhoso seguindo a moral ingênua e não-histórica
de André Jolles, procurando entender o que ele denomina de gesto verbal trágico na literatura,
15
15
contrastando-o com o conceito de gesto social trágico do teatro brechtiano. Estudamos o mito
do herói como parte importante da fábula, com Joseph Campbell e Junito Brandão, via Jung, e
Flávio Kothe, que nos guiou no caminho das heroínas modernas e proletárias.
No terceiro capítulo, investigamos o processo de produção do roteiro da série,
desvendando os procedimentos literários, as estratégias narrativas utilizadas pelos autores.
Nosso objetivo, no capítulo três, foi identificar e refletir sobre as intertextualidades, a
articulação entre as obras apropriadas e os diversos sentidos gerados a partir dos diálogos
propostos pela obra. Foi analisada, na minissérie, desde a presença dos contos de Cascudo e
Sílvio Romero, até as canções de Villa Lobos; de Monteiro Lobato a Lewis Carrol, de
Bandeira a Drummond, de Shakespeare a Ésquilo, de Cervantes a Antônio José da Silva, de
Hoffmann a Jonathan Swift, de Cassiano Ricardo a Mário de Andrade, respeitadas as
subdivisões como categorias analíticas estabelecidas neste estudo, entre literatura oral,
literatura brasileira, literatura estrangeira e sicas. O duplo, característica da literatura
fantástica, foi também abordado aqui, que encontrou grande repercussão em um
personagem desta microssérie, o diabo Asmodeu.
Os nomes dos capítulos foram dados seguindo os nomes dos quatro blocos do episódio
original de Soffredini e dos capítulos do roteiro de Abreu e Carvalho, numa busca de fusão
criativa com o objeto. É uma proposta metodológica que fará sentido na medida em que o
conteúdo for desenvolvido dentro de cada subdivisão.
Figura 1-Capa do livro da minissérie por Jackeline
Sales
com os personagens criados por Soffredini para a Primeira Jornada.
16
16
CAPÍTULO 1- “NAS TERRAS DO PÔR-DO-SOL”:
“Com a minissérie ‘Hoje é Dia de Maria’, Luiz Fernando
Carvalho conseguiu levar para a tela uma das coisas mais
imponderáveis da narrativa: o maravilhoso(...)uma espécie de
quarta dimensão, que é onde a obra de arte fala ao inconsciente
de todos.”
Affonso Romano de Sant’Anna
5
1.1 – Intertextualidade, dialogismo e polifonia
Para rastrear as fontes autorais de um roteiro de televisão, meio assumidamente
derivativo, teremos de voltar pelo caminho do cinema, da literatura local, da literatura mundial,
dos séculos, até dos milênios. Dentre as mais bem-sucedidas produções dramatúrgicas tanto da
televisão quanto do cinema estão as adaptações literárias.
“Adaptação” significa, em sentido amplo, o trabalho de adequação de um texto a outro
veículo. A obra de um autor literário, seja um livro, ou todo o conjunto da obra, é
transmutada de suas fontes para outra mídia. Quando falamos, no entanto, como é nosso caso,
de uma colcha de retalhos de várias citações, tão ricas quanto for o universo do leitor, não é
uma única obra que está sendo revisitada, mas várias que, juntas, formam um amálgama ou um
mosaico, para usar imagem mais bela. Mesmo que, como afirma Hutcheon(2006, p.21), “as
adaptações são obviamente multilaminadas para o público diretamente e abertamente
conectadas com outros trabalhos reconhecíveis, e esta conexão é parte de suas identidades
formais
6
” (tradução nossa) o conceito de “adaptação” é ainda insuficiente em face do
compósito de Hoje é Dia de Maria, pois o próprio roteiro, como “hipotexto”, é uma rede
intertextual. Devemos retomar, aqui, então, o termo intertextualidade, como desenvolvido por
Gerard Genette. Segundo Stam (2000, p.65), ele o definiu como “uma efetiva co-presença dos
dois textos” (tradução nossa), usando, ainda, os termos “metatextualidade, que seria a relação
crítica entre um texto e outro”; transtextualidade”, referindo-se “a tudo o que coloca um
texto em relação, seja manifesta ou secreta, com outros textos”; por fim, “hipertextualidade, a
relação entre um texto (hipertexto) e um texto anterior (hipotexto), que ele transforma,
modifica, elabora ou estende.”
7
5
Epígrafe do dvd Hoje é dia de Maria – 3 discos digitais; Globomarcas, 2006 (556min.)
6
No original: “For audiences, such adaptations are obviously multilaminated; they are directly and openly
connected to recognizable other works, and that connection is part of their formal identity…”
7
Effective co-presence of two texts (...)metatextuality, the critical relation between one text and another.
(…)transtextuality, all that which puts one text in relation, whether manifest or secret, with other texts.
17
17
Como assinala Hutcheon (1985, p. 32), “o Palimpsestes de Gérard Genette é um dos
trabalhos mais importantes para o estudo da intertextualidade das relações manifestas ou
secretas entre textos. Ele enfoca a hipertextualidade ou as relações de comentário de um texto
com outro anterior”.
Palimpsesto, do grego pálin (outra vez) psestós (raspado) significa “raspado
novamente
8
”. Algo que se usa como um mata-borrão, repetindo o anterior, mas, na idéia de
Genette, resultante de uma releitura. Ao lado da idéia do palimpsesto, o conceito de dialogismo
intertextual
(...) sugere que todo texto forma uma interseção com superfícies textuais; o
dialogismo complexo e multidimensional, enraizado na vida social e na história,
compreendendo ambos os neros primário (oral) e secundário (gêneros literários)
que engendram a literatura como um fenômeno cultural (STAM, 2000, p.64) (
tradução nossa)
9
Dialógico, do grego dialogikós, relativo a diálogo, implica, pelo menos, uma bi-
vocalidade. Não apenas o autor impondo seu ponto de vista, num monólogo, mas personagens
mostrando seu universo, e o leitor interagindo, como testemunha ou inserindo-se na trama
como confidente; tudo isso pertence ao universo polifônico. (Polifônico, relativo à polifonia, do
grego polyphonía, “variedade de tons”.
10
) A polifonia é um termo que Bahktin tomou
emprestado da música, para nos fazer perceber um universo estético harmonioso. “O autor
literário, como o eu concebido por Bakhtin, não é uma entidade estática, mas, antes, uma
energia disponível, que existe em interação com outros ‘eus’ e personagens.”(STAM, 1992,
p.18). Quando os personagens “falam”, “criam vida”, não permitindo, portanto, que a opinião
do autor se superponha, de modo único, às das personagens.
Em Hoje é Dia de Maria, uma multiplicação das vozes, ora da narradora, ora dos
personagens contando a estória em tempo real, também multiplicando os pontos de vista,
numa polifonia dialógica; as mudanças que se dão no desenrolar da estória, as perspectivas
cruzadas, ora de Asmodeu, ora da narradora/madrinha, dão o tom polifônico do roteiro.
Podemos falar também, e é nosso caso aqui, da conversação entre textos e não apenas
da polifonia interna, entre narrador, personagens e autor. A intertextualidade então inclui esse
(…)hypertextuality, the relation between one text to an anterior text, which the former transforms, modifies,
elaborates and extends.
8
Palimpsest, n. a parchment or the like from which writing has been partially or completely erased to make room
for another text. L. palimpsestus Gk palimpsestos rubbed again. (WEBSTER, p.1397)
9
…suggests that every text forms an intersection of textual surfaces (…)complex and multidimentional dialogism,
rooted in social life and history, comprising both primary (oral) and secondary (literary) genres _ which
engendered literature as a cultural phenomenon.
10
GK.Variety of tones. See Poly-,-phony; WEBSTER, p.1501.
18
18
conceito da polifonia quando o texto torna-se uma orquestração de vários outros textos da
história da literatura e da vida literária do autor.
“A visão carnavalesca do mundo se assenta, para o autor (leia-se Bakhtin), numa
cultura da qual decorrem grandes obras, como as de Cervantes ou o picaresco em geral,” nos
diz Diana Luz Pessoa Barros (FIORIN; BARROS, 2003, p. 7) (grifo nosso). O livro de
Cervantes serve como exemplo do carnavalesco para Bakhtin (1990), de polifonia e
dialogismo. Segundo Hutcheon, da união do romance de cavalaria com um novo interesse
literário pelo realismo cotidiano surgiram Dom Quixote e o romance: “É certo que os
formalistas russos utilizaram textos paródicos como modelos, e Dom Quixote é a obra que
melhor revela, segundo Foucault, a separação entre o epistema moderno e o renascentista:”
(HUTCHEON, 1985, p.12) Erlich, citado por Hutcheon, disse que Dom Quixote era um das
obras preferidas por Sklovski
11
porque a sua forma paródica coincidia com a sua própria teoria
e sobre o papel da paródia no desnudar ou desconstruir aquela” (HUTCHEON, p.14). Para
Hutcheon, o próprio livro de Cervantes é, em si, “uma paródia às convenções do romance
épico e de cavalaria; interatua com a sátira daquele que acha que semelhante heroicização na
literatura é potencialmente transferível para a realidade”. (HUTCHEON, 1985, p.38) Cervantes
está localizado entre o Renascimento e o Barroco, sendo o picaresco seu estilo. Segundo
Campbell, para Ortega y Gasset, em “Meditações sobre o Quixote”, este foi o último herói da
Idade Média: “O herói se lutando contra um mundo duro, que não corresponde às suas
necessidades espirituais.” (CAMPBELL, 1996, p.138). Mas Quixote preservou a aventura para
si mesmo, com sua imaginação poética.
A literatura carnavalesca, descrita por Mikhail Bakhtin (1997), de Luciano a Rabelais,
de Swift a Dostoiévski, é usada extravagantemente, gastando seus recursos além de suas
necessidades referenciais. A mesma história é freqüentemente contada duas vezes, de dois
diferentes mundos, por mais de um narrador, num vertiginoso arranjo de detalhes e versões
conectados, e a mesma imagem é usada várias e várias vezes. Pensemos, como exemplo dessas
reiterações, as duas “jornadas” de Hoje é Dia de Maria. Este modo de escrever é um modo
barroco, de excesso, onde, como diria Lyotard, “a percepção da fantasia apodera-se da
realidade” (LYOTARD apud FARIS, 1997, p.186) (tradução nossa)
12
. Para Bahktin, os
espetáculos cômicos e as festividades carnavalescas construíam um outro mundo, uma vida
fora do socialmente estabelecido.
11
Um dos teóricos russos.
12
The realization of the fantasy to seize reality.
19
19
Outro exemplo de carnavalesco, dentroda cultura brasileira, é Macunaíma, de Mário
de Andrade, “estudado por Suzana Camargo à luz das quatorze particularidades de Bakhtin”.
(STAM, 1992, p.39). Uma delas, que podemos destacar também em Hoje é Dia de Maria, é o
uso abundante de gêneros ‘intercalares’ ou seja, a presença de piadas, canções, provérbios,
cartas, etc. O próprio Mário de Andrade, como nos diz Gomes (2006, p.8), classificou sua obra
como uma rapsódia, isto é,
(...) uma composição formada de diferentes trechos, ou de diversos cantos
tradicionais e mitos do Brasil e da América, como um cantador (versão popular do
rapsodo grego que contava com fragmentos de outros cantos épicos), que se apropria
de material já existente para criar através da nova combinação.
Vemos muito do carnavalesco, que contribui para iluminar a base conceitual sobre a
intertextualidade, na minissérie Hoje é Dia de Maria. A rapsódia de Mário de Andrade serve
como paradigma estrutural, não apenas como intertextualidade para a minissérie que
apresenta uma arquitetura com as estórias que nascem de dentro de outras estórias, com a
presença das canções que Villa-Lobos resgatou da cultura popular, os ditados, os desafios entre
Maria e o Diabo – todos muito caros ao nosso folclorista e grande intelectual paulistano.
Finalmente, tomando Bahktin como princípio, Stam nos revela uma teia de inter-
relações textuais que pode ser mais facilmente percebida na televisão em trabalhos
cuidadosamente produzidos, como acontece num romance de um grande autor ou nas nossas
minisséries de TV. Os estudos de narrativas, como veremos no capítulo dois, demonstram que
o conto oral é a origem de todos os contos, e é considerado primário, primordial por Bahktin e
a escola russa. De acordo com Linda Hutcheon, a teoria de intertextualidade pós-estruturalista
da qual a maior representante é a seguidora de Bahktin, Julia Kristeva, tem sido importante
para criar “desafios a noções pós-românticas dominantes de originalidade, autonomia e de
caráter único. Os textos são considerados mosaicos de citações que são visíveis ou invisíveis,
ouvidas ou silenciosas; eles são sempre já escritos ou lidos.” (HUTCHEON, 2006, p.21)
Para Walty, Paulino e Cury (1995, p. 21-22), Kristeva diz que “todo texto é uma
retomada de outros textos. Tal apropriação pode-se dar desde a vinculação a um gênero, até a
retomada explícita de um determinado texto”. O termo apropriação pode também significar
esse empréstimo de uma fonte anterior, cujo reconhecimento se no balanço
intertextual/irônico.
Outro termo em voga é o de reciclagem cultural. Segundo Walter Moser e Jean
Klucinskas (2007, p.17), a reciclagem, termo que resumiria as transformações hoje presentes na
produção cultural, caracteriza-se por “deslocamentos espaciais e temporais de objetos estético-
20
20
culturais, abarcando um processo que consiste em várias fases de um gesto que comporta ao
mesmo tempo repetição e transformação.”
As bases da teoria da reciclagem estão nos Cultural Studies, que tentam descobrir uma
dinâmica entre a cultura erudita e a popular. Jean Baudrillard (apud KLUCINSKAS; MOSER,
2007, p.29) teria previsto isso em seu livro A ilusão do fim ou a greve dos acontecimentos:
“Parece que estamos destinados à retrospectiva infinita de tudo o que nos precedeu. A arte atual
está a reapropriar-se das obras do passado com a invenção da pós-modernidade e da
reciclagem”. O precursor dessa estética seria o gênero literário de montagem de citações em
francês, centone. Para Moser e Klucinskas (2007, p.20), “é forçoso constatar que a produção
cultural contemporânea está associada a esse gênero de procedimentos” referem-se aqui à
paródia, reescritura, recriação, comparando-as com os remakes, revivals, e até aos plágios e
pastiches – o que, se não é o caso de Hoje é Dia de Maria, caracteriza grande parte da
programação televisiva (vale lembrarmos da frase cunhada por Abelardo Barbosa, o
Chacrinha, “na TV nada se cria, tudo se copia”).
Essa trama entre os textos e entre as linguagens é, então, ao mesmo tempo, como diria
Bassnett, “comunicação intercultural e intratemporal”
13
(BASSNETT apud HUTCHEON,
2006, p.16) ( tradução nossa), entre culturas através do tempo. Daí a famosa noção de diacronia
de Bakhtin, que, segundo Kristeva, tem em vista a escritura como “leitura do corpus literário
anterior, o texto como absorção e réplica a outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p.67) A diacronia
é algo que ultrapassa as barreiras dos séculos e permanece no universo cultural de várias
gerações. É “o gênero como depósito da memória literária”. ( KRISTEVA apud LOPES, 2003,
p.64). Ou, como questiona Linda Hutcheon (1985, p.54), “o diálogo intertextual não é um
diálogo entre o leitor e a sua memória de outros textos, conforme são evocados pelo texto em
questão?” Ela estudou as hipóteses de Roland Barthes, que “define a intertextualidade como
uma modalidade da percepção, um ato de descodificação de textos à luz de outros textos. Para
Barthes, no entanto, o leitor é livre de associar os textos mais ou menos ao acaso, limitado
apenas pela idiossincrasia individual.” (idem, ibidem) Descodificar, aqui, significa determinar
os códigos.
De acordo com Klucinskas e Moser (2007, p.28), Benjamin nos remete à influência da
“concepção do espectador, da recepção de massa e à atitude da recepção” como determinantes
na “maneira pela qual as novas mídias determinam nossa experiência.” E quais seriam as
idiossincrasias do leitor/espectador das minisséries, notadamente as de Luiz Fernando
13
An act of both inter-cultural and inter-temporal communication .
21
21
Carvalho? Com certeza não é um espectador que precise acordar cedo no dia seguinte, ou pelo
menos é alguém que pode gravar o programa para assistir a ele com mais calma depois. É um
público afeito às adaptações literárias; isso, com certeza.
Segundo Eco (2003, p.200), em seu texto Ironia Intertextual e veis de Leitura, “o
leitor moderno que for incapaz de reconhecer a citação intertextual é excluído da compreensão
do texto.” Ele fala de um banquete onde há diferentes salas-de-jantar para diferentes gostos,
onde a literatura erudita pode obter sucesso popular, mas com ressalvas:
A ironia intertextual não convida todos os leitores para um mesmo banquete. Ela os
seleciona, e privilegia os leitores intertextualmente avisados, embora não exclua os
menos avisados. (...) O leitor informado “pega” a referência e saboreia sua ironia
não apenas a piscadela que lhe dirige o autor, mas também os efeitos de
enfraquecimento ou de mutação de significado (quando a citação se insere em um
contexto absolutamente diverso daquele da fonte). (ECO, 2003, p.206)
Por ironia ele entende, de modo geral, não “o contrário do verdadeiro, mas o contrário
daquilo que se presume que o interlocutor acredita ser verdadeiro.”(ECO, 2003, p.217) Para
Eco ( 2003, p.204), “quem entende a alusão estabelece uma relação privilegiada com o texto
(ou com a voz narradora), quem não entende segue adiante da mesma forma”, mas perde a
ironia. Podemos utilizar a análise intertextual que Eco faz do Quixote de Pierre Menard, no
conto de Borges. Ele basicamente diz que, quem nunca ouvira falar de Cervantes, apreciaria
uma história com uma série de aventuras heróico-cômicas cujo sabor sobrevive. Quem, no
entanto, percebesse a remissão constante ao texto cervantino, captaria não apenas as
correspondências, mas também a constante e inevitável ironia. “A ironia intertextual, portanto,
coloca-se como relação de desafio entre o leitor e um texto, que solicita de alguma maneira a
descoberta de seu segredo dialógico”, completa Eco (2003, p.211).
Para Pasolini, a cooperação do leitor é uma exigência; este deve “pensar por imagens,
reconstruindo na sua cabeça o filme que é aludido como obra a fazer (...) na fantasia cooperante
e dotada de simpatia do leitor”. (PASOLINI, 1981, p.157-158) A ironia intertextual é um
seletor de classes. Quando um texto, no entanto, desencadeia a mecânica da ironia intertextual,
não se deve esperar que ele produza apenas o que o autor gostaria de remeter, pois a leitura
depende da “enciclopédia textual do leitor” (ECO, 2003, p.213), o que varia caso a caso. Como
disse Piglia (2006, p.204), a leitura é “a arte de construir uma memória pessoal a partir de
experiências e lembranças alheias”.
Há situações, inclusive, em que o leitor encontra alusões que o próprio autor ignorava, o
que não deixa de ser irônico. É o que acontece, possivelmente, em Hoje é Dia de Maria, onde
se encontram passagens de textos teatrais de Soffredini que, talvez de tão embutidas no
22
22
inconsciente do leitor/espectador Luís Alberto de Abreu, um dos roteiristas da obra, não foram
conscientemente notadas quando da produção do texto, conforme veremos na entrevista com o
adaptador.
Porém, isso levanta um problema: a microssérie deveria obedecer à regra básica da
televisão, que é a inclusão do espectador médio. Nos perguntamos se o texto de Hoje é Dia de
Maria é capaz de transformar mesmo o mais ingênuo telespectador, que começaria a perceber
outros textos que precederam o programa a que ele está assistindo. Quantos destes
telespectadores poderiam captar as estratégias da ironia intertextual? Espectadores/leitores de
idades diferentes, por exemplo, podem assistir a um programa com censura 12 anos, mas a
bagagem cultural remete a antigas gerações. Podemos então dizer que o texto de Hoje é dia de
Maria, pelo feixe rico em referências, privilegia o leitor intertextual ao ingênuo, ao espectador
de TV comum, como acontece, na verdade, em todas as minisséries brasileiras.
1.2 – Paródia, Paráfrase e Estilização:
A TV brasileira tem origens na Atlântida, e esta citava, em suas chanchadas, peças
famosas e filmes de Hollywood através de paródias. “É dentro deste contexto carnavalesco que
a paródia aparece no cinema brasileiro, como crítica de alguns aspectos da sociedade. A
linguagem do carnaval e as inversões aparecem em uma grande maioria das paródias,
notadamente nas chanchadas.”
14
(VIEIRA, 1982, p. 259) (tradução nossa). Para Vieira, era
com um certo complexo de inferioridade que as chanchadas brasileiras faziam uma releitura
dos filmes hollywoodianos; numa declaração de não se ter condições de fazer algo igual no
cinema nacional, ironizava a própria cultura. o é o que acontece na TV brasileira de hoje,
que tem seus programas dentre os melhores do mundo. Esta minissérie, por exemplo, foi
premiada internacionalmente pela sua qualidade
15
, e, como veremos, trata-se de um jogo
paródico, de um jogo de espelhos, como em Alice no País do Espelho.
Segundo Fávero, “num único discurso podem-se encontrar duas orientações
interpretativas, duas vozes. Assim é o discurso parodístico, a estilização” (FÁVERO,2003,
p.53). Paródia vem do grego para- ode literalmente, ao lado da canção. De acordo com o
dicionário de literatura de Brewer, “paródia significa uma ode que perverte o sentido de outra
ode.(...) Shipley registraria que o termo implicava a idéia de uma canção que era cantada ao
14
It is within this Carnavalesque context that parody appears in Brazilian cinema as critical of some aspects of
structured society. The language of carnival and the inversions appear in a great majority of the parodies, and
most notably in the chanchadas.
15
Indicação ao Emmy Awards e Prêmio APCA em 2005, de acordo com o site da minissérie, disponível em
http://hojeediademaria.globo.com/. Acesso em 21de junho de 2008.
23
23
lado de outra, como uma espécie de contracanto”(SANT’ANNA, 1985, p.11-12). Na
contemporaneidade, para Hutcheon, quando falamos de paródia,
(...) não nos referimos apenas a dois textos que se inter-relacionam de certa maneira.
Implicamos também uma intenção de parodiar outra obra, ou conjunto de
convenções, e é tanto um reconhecimento dessa intenção como a capacidade de
encontrar e interpretar o texto de fundo na sua relação com a paródia.
(HUTCHEON,1985, p.34)
Como modalidade intertextual, a paródia tem a força da crítica para Walty, Cury e
Paulino: “É uma forma de apropriação que rompe com o modelo, seja de forma sutil ou
abertamente” (PAULINO;WALTY;CURY,1995, p.36).
Na paródia, as vozes provêm de
mundos diferentes; elas se fazem ouvir numa leitura polifônica, como na noção de bivocalidade
baktiniana:
Marca fundamental da paródia, o caráter polifônico a faz absorver um texto para
depois o repelir, recriando-o num modelo próprio. Ela não se reduz a uma mera
repetição do texto primitivo, mas soa como um eco deformado e as palavras do outro
se revestem de algo novo, tornam-se bivocais. (LAURITI apud FÁVERO,2003,
p.53)
Há, segundo Affonso Romano de Sant´Anna (1985), três tipos de paródia: a verbal, que
seria alteração de palavras; a formal, uma zombaria do estilo; e a temática, uma caricatura do
espírito do autor. Modernamente, para Romano, a paródia é definida como um jogo de
intertextualidades. Sobre os paralelos entre paródia e estilização, Sant´Anna transcreve o
conceito de Bakhtin, que considerava a paródia o ato de empregar a fala de um outro, mas com
uma intenção oposta; pode-se parodiar o estilo de outro num sentido diferente. Mas na
estilização, deve-se seguir o sentido original: “Um autor pode usar o discurso de um outro para
seus fins pelo mesmo caminho que imprime nova orientação e a conserva. Neste caso, esse
discurso deve ser sentido como o de um outro.” (BAKHTIN apud FÁVERO, 2003, p.53). o
conceito de paráfrase para Sant’Anna segue o de tradução ou transcriação (CAMPOS, 2004). A
paráfrase não contradiz o original, antes o cita, cria em cima sem anular o anterior, apenas
altera o necessário para adaptar para determinada situação. Seguindo ainda o raciocínio de
Sant´Anna (1985, p.36), “falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de
paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças.” Para ele, o que o texto parodístico faz é
uma nova e diferente maneira de ler o convencional, é um processo de liberação do discurso,
uma tomada de consciência crítica. “Pode-se dizer que a estilização é o meio, o artifício (=
técnica), a paródia e a paráfrase são o fim, o resultado (= efeito). A paródia deforma, a
paráfrase conforma e a estilização reforma”. (SANT’ANNA, 1985, p 41)
24
24
Para Stam (2000), a fidelidade, em se tratando de linguagens diferentes, ou melhor, de
sistemas semióticos diferenciados, como a TV ou cinema e a literatura, é uma noção
inapropriada. Na adaptação como processo cultural, o tradutor é um criador, e não um
traditore, como diziam os latinos. Segundo Seligman-Silva, “a tradução tece e revela tanto a
literatura como a história, o ‘próprio’ e o ‘outro’, como palimpsesto e
intertextualidade”(SELIGMAN-SILVA, 2005, p.203)
16
. Ele analisa a influência de Bakhtin e
Kristeva em Haroldo de Campos, da literatura como dialogismo, em que este fala de um
“movimento plagiotrópico da literatura”:
A plagiotropia, do latim plágios, de lado, que não é em linha reta, oblíquo,
transversal, se resolve em tradução da tradição. Tem a ver com a idéia de paródia
como ‘canto paralelo’, generalizando-a para designar o movimento não-linear de
transformação dos textos ao longo da história, por derivação nem sempre
imediata.(CAMPOS apud SELIGMAN-SILVA, 2005, p.200)
Seguindo a aproximação de John Dryden, o tradutor assume a liberdade, não apenas
de variar de palavra e sentido, mas até de abandonar ambos quando oportunidade. Não
segue as palavras tão estritamente, senão o sentido”. (DRYDEN apud SANT´ANNA, 1985,
p.18). A tradução, então, é vista como invenção e estilização, podendo “não somente alterar o
jogo da ironia intertextual, mas também enriquecê-lo.” (ECO, 2003, p.216), Segundo
Hutcheon (2006, p.18) a paráfrase ou tradução de um outro texto é uma interpretação particular
da estória, pois,
como observou Wolfgang Iser, logo que nos ocupamos dos efeitos de um texto (os
efeitos do escárnio irônico, avaliador, da reverência, etc.), bem como do seu sentido,
estamos a tratar de uma utilização pragmática de sinais que envolvem sempre alguma
espécie de manipulação, que deve ser obtida uma resposta do recipiente dos sinais.
(HUTCHEON, 1985, p.113)
Também para Linda Hutcheon, numa situação ideal, o leitor/espectador conheceria bem
as obras que serviriam de base ao palimpsesto. Ao ver ou ler, estaria completando o sentido da
paródia:
É esta partilha de códigos ou coincidência de intenção e reconhecimento na paródia,
bem como na ironia, que cria aquilo a que Booth chamou comunidades amigáveis
entre codificadores e decodificadores. (HUTCHEON, 2006,p.112).
Ao leitor caberia o prazer intelectual de completar a sua parte no sentido da obra.
Segundo Hutcheon, isto torna a ironia e a paródia elitistas: “Poderá o produtor da paródia, hoje
em dia, pressupor suficientes conhecimentos culturais por parte da audiência que tornem a
25
25
paródia mais do que um gênero literário atualmente limitado ou mesmo elitista?”
(HUTCHEON, 2006, p. 119).
No caso da audiência televisiva, a minissérie é considerada um produto para um público
mais sofisticado, que fica acordado até tarde, de um vel intelectual elevado, portanto,
virtualmente capaz de compreender as citações que lhe são confrontadas. Quando, em Hoje é
Dia de Maria, aparecem Copélius e a Boneca, por exemplo, mesmo um leitor de Hoffmann
do Homem de Areia poderá identificar a origem destes personagens. Se considerarmos que
poderíamos estar tratando da paródia de uma obra de Monteiro Lobato, este autor não teria
parodiado Lewis Carrol e o próprio Cervantes, que por sua vez também foram parodiadores?
Esse é o encanto da paródia, um exercício intelectual. Não é fácil, é preciso ser muito criativo
para se parodiar, ter uma bagagem cultural vastíssima para parafrasear. Flávio Kothe faz uma
observação interessante sobre a estética da recepção:
A narrativa artística, tendencialmente questionadora dos valores da classe alta e da
estrutura social, acaba sendo consumida entre nós mais pela classe alta.(...)Para ler o
Dom Quixote, são necessárias cerca de duas semanas em tempo integral, que,
somadas ao preço do livro e às dificuldades de acesso à formação acadêmica, tornam
este clássico praticamente inacessível ao operariado. Isto não impede, porém, que
este gaste dezenas de horas por semana à frente da televisão. (KOTHE,1987,p.85).
Como a televisão é o entretenimento mais barato para a classe trabalhadora, Kothe não
acredita que a TV comercial tenha interesse em promover a leitura, temendo concorrência.
Isso é, contudo, o oposto do que dizem os profissionais de TV, que argumentam que as
minisséries literárias, por exemplo, fazem que o telespectador compre os livros nos quais elas
se baseiam, uma vez que são relançados depois nas bancas
17
. Uma microssérie, porém, como
Hoje é Dia de Maria, introduz algo novo a esse público anestesiado pelas novelas e pelos
noticiários de TV. O que seria esse “novo”? Apesar do horário bastante avançado, das dez
horas outras minisséries são exibidas ainda mais tarde, no verão esta minissérie conseguiu
chamar a atenção por seu enfoque considerado diferente: sua proposta não-naturalista e a
relação declarada justamente com a literatura.
1.3 De como Carlos Alberto Soffredini se tornou o maior estilizador do teatro
brasileiro e como sua obra se tornou objeto de estilização televisiva.
17
Entrevista concedida pelo ator Ney Latorraca em 1988 no Rio de Janeiro, para o vídeo Minisséries Brasileiras.
A carreira de Ney começou ao lado de Soffredini, em Santos, e depois, na EAD.
26
26
Carlos Alberto Soffredini , dramaturgo paulista premiado, monta, em 1972, na Escola
de Arte Dramática de São Paulo, uma adaptação da Farsa de Inês Pereira (VICENTE, 1974 ),
intitulada Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube. Este título foi o
mote que o teatrólogo português Gil Vicente teve de seguir para provar ser o autor de seus
textos. Tendo como guia a investigação da estrutura deste texto clássico da língua portuguesa,
Soffredini, em 1977, com o Grupo de Teatro Mambembe, monta a própria Farsa de Inês
Pereira num processo de criação coletiva. Incorporando números de canto e dança inspirados
nas ‘revistas’ teatro de variedades musical carioca do fim do culo XIX e início do século
XX – entrando em cartaz no teatro João Caetano, Rio de Janeiro, em 1978. Soffredini introduz
a própria peça como “comédia quase opereta, cuja história também foi contada pelo mestre
Gil Vicente” (SOFFREDINI, s.d., s.p.). A paródia está em adaptar a peça medieval para o
contexto cultural brasileiro popular, em pensar quem seria essa mocinha fantasiosa (Inês) no
Brasil do século XX. É dividida pelo autor em entrequadros, à moda dos autos vicentinos,
tendo prólogo (abertura) e epílogo (happy end). Poderíamos chamar Mais Quero Asno que me
Carregue que Cavalo que me Derrube de paródia, em termos de intertextualidade bakhtiniana
ou seria mesmo uma paráfrase? Ou estilização, engendrando tanto movimento de repetição
como diferença? O que vemos aqui, de todo modo, é uma transcriação: a transposição de época
e costumes, mas a moral e o humor da estória permanecem. Ele procura a revelação do
universo poético presente em Gil Vicente, fazendo uma ligação entre a herança cultural
portuguesa os imigrantes portugueses no Brasil, em peças como Vacalhau e Binho, por
exemplo e os signos da representação dos intérpretes populares televisivos. Para os textos,
pesquisava o sotaque português utilizando dicionários como o Schifaizfavoire, de Mário Prata
(1996). Outra incursão pelo universo vicentino feita por Soffredini foi o Auto de Natal Caipira,
baseado nos Autos de Natal de Gil Vicente, principalmente no Auto da Sibila Cassandra
(VICENTE,1963).
Até sua morte, em 2001, Soffredini teve como premissa a investigação dos signos e da
estrutura de textos famosos transpostos para o universo popular, como em Vem buscar-me que
ainda sou teu (SOFFREDINI,1979) quando se inspirou na canção de Vicente Celestino,
“Coração Materno” e em peça homônima de Alfredo Viviani. Na dedicatória desta peça, que
começou a escrever em Salvador em 1978, ele diz: “Este trabalho é o resultado de um contato
sincero com o artista ambulante. Fui procurando a essência da linguagem teatral brasileira
(SOFFREDINI, 1979, p.2). Outra peça adaptada é A vida do grande Dom Quixote de La
Mancha e do gordo Sancho Pança, estilização da peça de Antônio José da Silva, o Judeu , Dom
Quixote e Sancho Pança, feita originalmente para marionetes.
27
27
Soffredini, sempre buscando, não a representação realista, mas a pesquisa do universo
poético da cultura popular brasileira, criou sua peça premiada Na Carreira do Divino
(SOFFREDINI, 1987), através de pesquisa de Antonio Candido (1964) e da obra de Amadeu
Amaral (1976) em Os parceiros do Rio Bonito e Dialeto Caipira, respectivamente. A busca da
oralidade dessa peça é explorada na versão para o cinema de Na Carreira... por André Klotzel,
em A Marvada Carne. Ao contrário de Luís Alberto de Abreu, co-autor de Hoje é Dia de
Maria, Soffredini já havia trabalhado para TV, no SBT, com a novela “Brasileiros e
brasileiras”, juntamente com Walter Avancini.
Como estudioso e experimentador, também fez incursões na literatura nacional,
recriando O Guarani de José de Alencar em versos brancos; na literatura estrangeira, com sua
peça O Pássaro do Poente, que tem origem na lenda japonesa A Mulher Grou, transcrita por
Ookawa Essei; e na música popular brasileira, com Trem da Vida, que tem como base
“Encontros e Despedidas”, canção de Milton Nascimento e Fernando Brant
18
. Podemos utilizar
para o trabalho de Soffredini a mesma expressão usada por Marques e Vidal (2005) sobre
Ariano Suassuna: ele promove um diálogo com as mesmas fontes populares aonde bebera. De
acordo com Renata Soffredini (2008), filha do autor, a dramaturgia soffrediana “se configura
nessa relação essencial com uma obra anterior, que ela não esconde, antes revela, e com a qual
dialoga em permanência”
19
Segundo Renata, para Eliane Lisboa, que escreveu uma tese de
doutorado sobre Carlos Alberto Soffredini,
(...) essa pluralidade de vozes da cultura da qual faz parte mostra-se como experiência
de linguagem no seu próprio caráter teatral. Não se trata simplesmente de uma
adaptação, para o teatro, de um texto que originalmente não o era. O trabalho de
Soffredini extrapola este passo simples e vai se constituir num exercício de efetiva
criação dramatúrgica onde uma obra primeira pode funcionar como estopim e também
como elemento aglutinador de outros que serão incorporados a ela em seu processo
criativo. (LISBOA apud SOFFREDINI, 2008)
20
Soffredini escreveu uma peça, A Madrasta (SOFFREDINI, 1995), encenada
postumamente por sua filha no CCBB de São Paulo, que fala de uma relação incestuosa entre
pai e filha, além de inverter os papéis de vilã e mocinha entre a madrasta e a enteada. O pai,
algumas vezes, participava de um jogo juntamente com a filha para desestabilizar a madrasta.
Ou seja, uma livre adaptação dos contos de fadas, neste caso, para adultos. O próprio autor
afirma ter utilizado, “para os contos e formas de narrá-los” (SOFFREDINI,1995), os Contos
18
Informações obtidas na postagem de 4 de dezembro de 2007 no blog do Núcleo Estética de Teatro Popular,
fundado por Soffredini e dirigido por sua filha. Disponível no site http://nucleostep.blogspot.com/2007/12/com-
direo-de-renata-soffredini-minha.html/, acesso em 10/12/08.
19
Disponível no site http://hojeediademaria.globo.com/, acesso em 23/11/08.
20
Citação no texto de Renata Soffredini disponível no site http://hojeediademaria.globo.com/, acesso em
23/11/08.
28
28
Populares do Brasil de Sílvio Romero (1954a). Ele também afirma ter extraído da oralidade
brasileira contos infantis “de cópias xerografadas, sem data e sem editora”(SOFFREDINI,
1995). Ainda, “para os termos e imagens e jeito de falas dos personagens de Maria e do
Capineiro, no início”, ele utilizou Leréias (Histórias Contadas por eles mesmos) de Waldomiro
Silveira.(1975). Criou uma personagem nesta peça, Purnica, baseada na “Moura Torta”, de uma
citação de Cascudo no livro supracitado de Romero (1985, p.64).
a primeira jornada da microssérie Hoje é Dia de Maria foi baseada em um especial
para TV de uma hora e meia, escrito por Soffredini sob encomenda de Luiz Fernando
Carvalho, em 1995. Ele inspirou-se em um conto popular sobre uma “menina que é enterrada
viva” – nome do conto em Cascudo (1946), mas que em Romero (1954a) chama-se “A
Madrasta” –, no conto “Dona Labismina”, sobre incesto, e também na estória de “Maria
Borralheira”. O projeto acabou convertido em uma minissérie de treze capítulos. Quando Luiz
Fernando Carvalho procurou Renata Soffredini, detentora dos direitos autorais de Carlos
Alberto Soffredini, após o falecimento deste, para lhe pedir autorização para transformar esse
especial em uma minissérie, ela indicou-lhe o dramaturgo e diretor teatral paulista Luís
Alberto de Abreu. Familiarizado com o universo soffrediano, e pesquisador do mundo
folclórico e mítico presente nos contos populares compilados por Câmara Cascudo e Sílvio
Romero, ele aceitou prontamente o convite.
Os dois primeiros blocos (partes entre intervalos comerciais) do especial para TV
escritos por Soffredini, “No Sol Levante” e “No País do Sol a Pino” foram totalmente mantidos
e se converteram nos dois primeiros episódios da minissérie. Já os blocos “Nas Terras do Pôr-
do-Sol” e “As Franjas do Mar” sofreram adaptações por Luís Alberto de Abreu e Luiz
Fernando Carvalho para virarem episódios com outros nomes. Na versão de Soffredini, Maria é
sempre criança, e não chega ao mar, continua “andando, andando, andando...”
21
Importante
salientar aqui que os nomes dos episódios no livro não têm sincronia com os capítulos editados
e que foram ao ar, pois houve cortes na edição feitos pelo diretor, e cenas que seriam de um
capítulo, por exemplo, incorporadas a outro, mudadas de lugar, indicando as usuais operações
nesse tipo de adaptação.
No especial escrito por Soffredini, temos a personagem da Nenê, que está numa
roda de crianças, contado a estória de Labismina, e depois a da própria Maria:
NENÊ ...antonce diz-que no lugarzico mermo que a dita madrasta meteu a
povre da menina enterrada na terra...justo por riba nasceu um capinzar...
21
Fala da Narradora inserida durante gravação da Primeira Jornada. DVD 2006.
29
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Essa personagem é retirada na adaptação, mas fica a voz da Narradora (inserida na
gravação durante a Primeira Jornada), que se converte ao final na avó de Maria, símbolo do
inconsciente coletivo:
NARRADORA
(off)
...E diz-que era que nem se fosse um lago de capim verdico que só, alumiando ao sol
como se fosse de vidro...
Figura 2 – A avó/narradora; foto de Renato Rocha Miranda.
Lembramos que, segundo Cascudo, a literatura oral “É uma força obscura e poderosa,
fazendo a transmissão, pela oralidade, de geração a geração. (...)As mulheres são as narradoras
de estórias para os filhos e netos” (CASCUDO, 1978, p.168). Esta narradora conversa, na
minissérie, com o leitor, ou mesmo com outras personagens. Maria não ouve sua voz, apesar de
ela tentar fazer-se ouvir.
Outras diferenças entre a adaptação de Abreu e o original de Soffredini são as seguintes:
1 . Desenvolvimento das frases do Maltrapilho, que não existem no original:
MALTRAPILHO
E ocê tome tento, menina, que esse é um mundo que pra ser feito e, no fundo de
tudo, um defeito é degrau importante na escada do perfeito. Torto, pobre ou malfeito,
todo vivente pode andar reto, porque humano não é ruim nem bom, humano é ser
incompleto. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.57)
2. A ação e o texto dos Retirantes são alterados...
MARIA – Pra donde é que vão?
A MÃE Nossa Senhora do Monte hai de ajudá nói a encontrá esse perarte a toa que
robô a noite...
FILHO MAIOR Daí noi esbordoa tudinho esse mardiçoado e nói dexa ele nem que
fosse um farrapo...e antonce nói pega a noite de vorta.
MARIA E vanceis sabe em que fundo de mato é que ele habita, o dito cujo? (...)
Vancês sabe ao meno quem é que é ele? Que nome leva o tar?...
PAI (afastado) Ara...fisse sussegada que nói acha ele, pode escrevê o que le digo.
Nóis é ainsim: quando nóis se esbarra numas teima, num tem esse que tire nóis de
nosso prepósito. (SOFFREDINI, 1995, p. 31-32)
...para apenas a fala de um personagem:
MARIA
Que é da noite desse mundo?
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30
RETIRANTE
Num sabe que foi roubada?
MARIA
E quem fez um desatino desse, gente?
RETIRANTE
E a gente sabe? Se soubesse, desancava o tal! E você tá indo pra onde?
MARIA
Tô percurando o rumo do mar.
RETIRANTE
Nóis também tava, mas desistimos. Sem noite ninguém consegue cruzar esse sertão.
(ABREU; CARVALHO, 2005, p.70-71)
3. Na minissérie, Maria faz tudo certo na Fazenda, mas larga o príncipe no altar. No
especial, a Mucama não aprova as tarefas que Maria cumpre, e ela então desiste do príncipe
antes do casamento. A fala da Mucama também vira música no roteiro da minissérie. Segue o
trecho do especial:
A MUCAMA se aproxima, vê uma ruguinha no lençol e faz que não com a cabeça e
amassa todo o lençol...(...) Com uma concha, MARIA serve um prato e passa pra
MUCAMA, que experimenta e faz que não com a cabeça e joga fora a comida...(...) A
MUCAMA se aproxima e toma a esponja de MARIA e experimenta a sua maciez
passando-a pela mão. Diz que não com a cabeça e fala muito brava com MARIA. (...)
MUCAMA – A cama é dele. Vancê é pra sirvi. O gozo é dele. Que nem uma moça de
preceito e juízo, vancê num deve de sintí. Aliás, si vancê sintí argum argo, isso q
dizê que vancê num passô na prova da cama.
(...) De repente, MARIA lenvanta-se da cama, apressada, e vai em direção à porta.
MUCAMA – Donde vai?
MARIA Ali. Eu se alembrei de uma coisa munto importatíssima que eu careço de
fazê lá em casa...
4. No especial, a Madrasta e Joaninha querem saber como ela conseguiu o sapatinho, e
ela lhes manda fazer tudo ao contrário do que ela fizera no encontro com o Maltrapilho:
MARIA (...) Daí vancês pega uma manguara, cada quar a sua, e destrambéia esse
dito home de paulada...Mai tome tento: carece de não ninhuma piedade, me
escuitando? Ninhum, ninhumica que seje. E vancês faiz um destrago no home de
munto maió monta que aquele que o dito já tava. (...) (SOFFREDINI, 1995, p.57)
Desta forma, Maria se vinga da Madrasta e de sua filha, como nos contos africanos que
veremos adiante. Já no roteiro da microssérie, ela simplesmente o vestido de noiva para
Joaninha, que voa nele como num balão.
Também serviram de texto-fonte para o episódio único de Soffredini suas peças O
grande Dom Quixote de La Mancha e o gordo Sancho Pança e Vem buscar-me que ainda sou
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teu. Desta, por exemplo, o diálogo do Canastra e da Mãezinha é aproveitado na fala da Senhora
em Hoje é Dia de Maria, fala depois repetida pela própria Maria:
CANASTRA _ Aquilo é o que tem de ser.
MÃEZINHA _ Eu tenho medo.
CANASTRA _ E o que tem que ser tem muita força.
(SOFFREDINI,1979, p.73).
SENHORA
“E o que há de ser tem muita força!”(ABREU; CARVALHO, 2005,p.153)
MARIA
“O que tem que ser tem muita força!”(ABREU; CARVALHO, 2005, p.175)
Em diversas outras passagens, encontramos, na minissérie, referências ao contexto da
obra de Soffredini: O personagem Pierrôt Azul de Minha Nossa é encontrado num momento de
caracterização de Quirino, em Hoje é dia de Maria. O coração do Pássaro Amado, nas mãos de
Maria, é o mesmo “coração materno” kitsch feito de veludo de Vem Buscar-me Que Ainda Sou
teu
22
. A família circense desta peça está citada nos “Saltimbancos”, escrita por Abreu.
Em Na Carreira do Divino, um personagem mascate turco, como no roteiro de Hoje
é Dia de Maria, (que na produção vira português).Este Mascate/fada madrinha da minissérie,
ouve perguntas de Maria sobre o amor e lhe presenteia com um sapatinho vermelho; a cor
vermelha continua presente, passando do tecido “encarnado” que o Mascate de Na Carreira do
Divino para a personagem Mariquinha, para o sapatinho de “Cinderela’. No especial de
Soffredini, Maria teria um de sapato vermelho, deixado pelo Maltrapilho, mas isso não
ocorre na minissérie. Vemos claramente a auto-intertextualidade que Soffredini faz de seu
próprio texto da peça anterior. Abreu e Carvalho mantiveram a passagem. Comparemos os três
trechos:
CIDADÃO: _ Olha aqui. (Tira um pano vermelho e brilhante)
MARIQUINHA:
_ Nosso Cristo! Lindo cumo os amor!
(SOFFREDINI.Na Carrêra do Divino, 1979, p.54).
MARIA _ O nhor num havera de trazê um vestido lindo como os amor...? E
tomém um sapatinho encarnado. carece de um suzinho. (SOFFREDINI, Hoje é
Dia de Maria, 1995, p.45)
MARIA
“O senhor num havera de trazê um vestido lindo como os amor...E tomém um par
de sapatinho encarnado.” (ABREU; CARVALHO. Hoje é Dia de Maria, 2005,
p.164)
22
E que vai aparecer novamente na obra de Luiz Fernando Carvalho, com co-roteiro de Luís Alberto de Abreu e
direção de arte de Lia Renha, Capitu (Globo, 2008).
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Figura 3 - “Imediatamente, o MASCATE abre um dos seus baús, tira dele um
embrulho, chega-se até MARIA e o entrega a ela.” Foto de Renato Rocha Miranda.
Soffredini foi, portanto, um pesquisador que, sem buscar a representação realista das
formas populares, mas pesquisando a linguagem visual das formas cênicas brasileiras, criou um
método de construção de dramaturgia, unindo os recursos musicais também resgatados do
folclore brasileiro com a oralidade dos contos populares. Ele adaptou clássicos da literatura,
como estratégia intertextual; utilizou a técnica da estilização para chegar à paráfrase; não
utilizou a paródia como negação do texto-fonte, criticando-o, satirizando-o, como os teóricos
russos prenunciavam, mas adaptando-o à nossa realidade, procurando torná-lo acessível ao
público brasileiro, pensando talvez na inclusão social dessa imensa massa de não-leitores.
Para isso, usou e abusou da autoreferenciação. Ou, para usar termo cunhado por
Affonso Romano de Sant’Anna (SANT’ANNA, 1985, p.62), da “autotextualidade como
sinônimo de intertextualidade. É quando o poeta se reescreve. Ele se apropria de si mesmo,
parafrasticamente.” Dias Gomes o fizera, igualmente, trazendo seus textos do rádio e do
teatro para a telenovela. Ariano Suassuna, por exemplo, de acordo com Vidal e Marques (2005,
p.9), tem seu texto “aberto à retomada, como o texto oral. Ele reescreveu Uma mulher vestida
de sol, sua primeira peça, que sofreu nova reescritura quando de sua adaptação para a TV
Globo, em 12/07/1994, dirigida por Luiz Fernando Carvalho.”
O método de Soffredini foi seguido pelos seus co-autores na confecção do roteiro de
Hoje é Dia de Maria, em que se percebe uma continuidade deste universo. Nem mesmo na
Segunda Jornada, a da cidade, quando outros elementos que não pertencem ao mundo rural são
associados, a trama de citações, como paradigma soffrediniano
, permanece. A intertextualidade
como construção consciente é a raiz da microssérie. Muita pesquisa, evidentemente, também
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feita pelas equipes de direção de arte, de fotografia e direção musical criaram o universo de
sonho da minissérie. Ou, parafraseando as palavras da diretora de arte da minissérie, Lia
Renha
23
, o universo da “representação emocional de uma realidade”.
A narrativa de Hoje é Dia de Maria nos parece fresca, infantil, primitiva, e a
linguagem do caipira, escolhida por Soffredini, reforça esse primitivismo. Tende-se, na
estrutura fabular, a uma concentração em locações rurais, como acontece na Primeira Jornada.
Houve um estudo dialetal para a produção do roteiro, revelando a expressão do campesino por
meio de seu universo, seus causos e seu vocabulário específico. Além do citado Lérias,
usado por Carlos Alberto Soffredini em A Madrasta, neste “diálogo com o passado
(MARQUES; VIDAL, 2005, p.6), Luís Alberto de Abreu também admite ter utilizado pesquisa
desenvolvida por Amadeu Amaral e Cornélio Pires, estudiosos paulistas da primeira metade do
século XX, que se debruçaram sobre o universo caipira de São Paulo – os mesmos que
Soffredini usara em Na Carrera do Divino.
FIGURA 4colcha de retalhos
23
Depoimento concedido para o making off do DVD de Hoje é Dia de Maria. 3 discos digitais, Rio:
Globomarcas, 2006 (556 min.).
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CAPÍTULO 2 –
“NO
PAÍS
DO
SOL
A
PINO,
EM
BUSCA
DA
SOMBRA”
“Ao lado da literatura, do pensamento intelectual
letrado, correm as águas paralelas, solitárias e
poderosas da memória e da imaginação popular
.”
Luiz da Câmara Cascudo
2.1 – As formas breves ou simples.
A minissérie de nosso estudo tem, como sabemos, uma base contística, seja na
incorporação de um narrador, seja na trama intertextual de origem também épica.
Sabemos que as formas breves, como Ricardo Piglia e Yves Stalloni (2003, p.127)
costumam chamar às formas simples (JOLLES, 1976), desdobram-se em: conto, novela e
fábula, com certa indefinição dos críticos acerca dos dois primeiros gêneros. Em As formas
simples, André Jolles (1976, p.183) nos diz que “o conto é precisamente a forma que requer um
debate sobre a língua e a poesia, e que propicia, simultaneamente, a conclusão e a introdução
de todas as formas simples.”
Historicamente, as relações entre conto e novela podem ser compreendidas a partir das
estruturas narrativas molduras, que proporcionam uma estrutura ficcional em abismo.
Narrativa curta do século XIV na Europa, o Decameron de Boccacio (1350) é por alguns
considerado uma novela; por outros, exemplo de contos, que cada episódio trata de um
assunto único, com poucos personagens. Na Idade Média existia a tendência de se chamar de
conto todo tipo de narrativa, ou seja: “um relato que se inspira na realidade, mas sofre múltiplas
modificações” que passa a ser aplicado “aos versos, aos ditados e às canções de gesta.”
(STALLONI, 2003, p.118) Por volta do final da Renascença, o conto torna-se narração, relato
de alguma aventura, seja ela vivida, fabulosa, séria ou divertida, relato de fatos, de
acontecimentos imaginários, destinados a distrair. Esta alteração se a partir da publicação
dos contos de Perrault com sua “Cinderela” e outros contos para crianças, de La Fontaine com
suas Fábulas em 1664, de Chaucer e seus Contos de Canterbury em 1700 e da tradução das Mil
e Uma Noites, em 1712. No século XIX, os irmãos Grimm recontavam o que havia sido
contado antes por Perrault, e que, no século XXI, tornamos a contar. Segundo Nádia Battela
Gotlib (2006, p.17), o que caracteriza o conto “é seu movimento enquanto uma narrativa
através dos tempos. O que houve na sua história foi uma mudança de técnica, não uma
mudança de estrutura; o conto permanece, pois, com a mesma estrutura do conto antigo; o que
muda é a sua técnica”.
35
35
Segundo Stalloni (2003) os contos dividem-se em quatro categorias, de acordo com as
tipologias modernas. No conto gaulês, narrativas engraçadas e burlescas são herdadas da
tradição popular, em que se incluem apólogos, contos de animais, histórias obscenas, aventuras
satíricas. Já o conto filosófico é satírico, fabuloso, paródico, dá uma lição filosófica, transgride
e desmistifica a escrita romanesca. Seu apogeu é o século XVIII, com Voltaire. O conto
fantástico é reconhecido pela utilização do medo como impulso essencial da narração. Nele,
vemos a irrupção do sobrenatural num universo realista, a hesitação da personagem e do leitor,
o narrador em exibição, a ruptura cronológica. É descritivo e tem geralmente fim dramático.
Finalmente, o conto maravilhoso (ou conto de fadas), em que o irreal é aceito e toda precisão
realista é eliminada. Há um certo didatismo, a presença de tópicos sobrenaturais, objetos
mágicos, personagens fabulosos e finais felizes. outros gêneros afins, como a fábula
mitológica cujo exemplo primordial é Hesíodo o conto oriental, o conto cristão, o conto
barroco etc. Mas, a despeito dessa classificação, o que essas narrativas têm em comum, na
condição de gênero, é exatamente o que nos diz Stalloni (2003, p.121) quando verifica os
seguintes traços distintivos entre novela e conto: para ele, “todo conto renuncia ao realismo e à
verossimilhança; suas personagens estão no território do simbólico; possuem um fundamento
popular, podendo inspirar-se na tradição oral ou no folclore; costumam ser relatos breves”;
finalmente, possuem um narrador e têm uma intenção moral. Benjamim nos um exemplo
prático para essa moral inerente aos contos orais, que são os provérbios: “ruínas de antigas
narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento”. (BENJAMIN, 1994,
p.221).
Para Haroldo de Campos (1973, p.19-20) os “fenômenos de esquematismo e
recorrência na estrutura dos contos populares têm intrigado e desafiado, através do mundo,
desde muito tempo, os investigadores.” Um dos fenômenos investigados, bastante caro a este
estudo, é a lei da “transferibilidade”, definida por Propp, em que as partes componentes de um
conto podem ser transferidas para outro sem modificação alguma. Bem, sem modificação
alguma, no caso da adaptação literária, não é de todo possível, pois quem conta um conto,
aumenta um ponto. Se considerarmos os elementos proppianos em si, as funções
(personagens), o enredo, o conflito, é verdade, tudo isto pode ser transferido culturalmente e
geograficamente e, podemos dizer, midiaticamente. Mas é do interesse de quem reconta uma
estória estilizá-la e transformá-la para seu público, seja adaptando-a de acordo com a moral
vigente, seja trazendo para uma época atual, seja aglutinando-a com outras estórias, como o
fizeram os autores de Hoje é Dia de Maria e como afirmou, em sua teoria da adaptação,
Linda Hutcheon (2006).
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36
2.2 - Características dos contos tradicionais:
Dentre as características em comum do conto de modo geral, temos, em primeiro lugar,
sua origem épica, baseada na presença de um contador de estórias, um narrador oral; depois as
características de concisão, intensidade e rapidez, indissociáveis do gênero.
Sobre a oralidade, em Hoje é Dia de Maria podemos vislumbrar a participação da
Narradora, mais presente no roteiro da Segunda Jornada, inserida no roteiro da Primeira no
momento da gravação, mas ainda assim fundamental para o espírito contístico desta estória,
além da construção da microssérie a partir de três contos fundamentais, que analisaremos com
mais cuidado no capítulo 3: “Cinderela”, “Maria Borralheira”, “Dona Labismina” e suas
variantes.
Sobre a concisão, intensidade e rapidez, podemos ver que o próprio formato de
microssérie imprime um ritmo intenso e rápido, e a concisão es precisamente no
fortalecimento da estória e das personagens pela fusão de múltiplas fontes intertextuais.
2.2.1 – Oralidade e narrativas épicas:
A tradição oral, terreno da poesia épica, tem natureza diversa da do romance. Segundo
Walter Benjamim (1994, p.201), “o que distingue o romance de todas as outras formas de prosa
contos de fada, lendas e mesmo novelas é que ele nem procede da tradição oral nem a
alimenta.” Os contos diferem-se totalmente do romance, não pelo tamanho, mas por
afirmarem a presença do narrador oral. Segundo Piglia,
Borges considera que o romance não é narrativa, porque é demasiado alheio às formas
orais, perdeu os rastros de um interlocutor presente, a possibilitar o subentendido e a
elipse, e portanto a rapidez e a concisão dos relatos breves e dos contos orais.
(PIGLIA, 2000, p.101)
Para Álvaro Manuel Machado (1989), na base de estudo sobre a chamada literatura
‘popular’, oral e tradicional, ou de cordel, de origem mais ou menos folclórica, surge um
problema que divide a maior parte dos investigadores: trata-se de uma verdadeira criação, quer
seja individual, quer seja coletiva, ou de adaptações populares de uma literatura dita séria? Ou
seja, quem veio primeiro, a narração oral ou os livros de contos europeus e orientais foram
primordiais e suscitaram narrativas que foram passando de povos em povos de forma oral?
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Cascudo nos responde:
A literatura oral é mantida e movimentada pela tradução. (...) Resulta do fundamento
comum das estórias populares, de várias procedências, amalgamadas, fundidas, num
processo inconsciente e poderoso de aculturação; influência de livros e folhas de
literatura popular, com elementos da tradição e o continente da imaginação
individual do autor. (CASCUDO, 1978,p.168).
Para Roman Jakobson, segundo Campos (1973, p.71), existem diferenças estruturais
essenciais entre a literatura e o folclore: “A obra literária existe independentemente do leitor. Já
a obra de folclore é um fato extra-individual, estabelecido independentemente do contador de
estórias.” Ou seja, o livro existe por causa de um autor, quer seja lido ou não. o processo
narrativo oral necessita da aceitação popular para ter continuidade. Para Campos (1973, p.72),
“à multiplicidade de enredos de literatura, comparam os lingüistas o conjunto limitado de
enredos dos contos típicos do folclore(...) as leis do folclore são muito mais rigorosas e
uniformes do que as da criação individual.”
Fragmentos de literatura popular oral são aproveitados por escritores com o objetivo de
uma criação pessoal, como no exemplo dado por Machado (1989) sobre a obra de Ariano
Suassuna:
O conto, a lenda, foram até hoje objeto de estudo de etnólogos e especialistas do
folclore e da literatura dita ‘oral e tradicional’. (...) lugar para que o investigador
literário aprofunde o estudo da passagem à escrita, ao texto (...) transformações e
alterações quer da natureza da narrativa, quer da sua função social e estética.
(MACHADO, 1989, p.143-144)
Assim como Suassuna, os autores da minissérie possuem longa experiência de pesquisa
sobre folclore. Como a estória de Soffredini, Abreu e Carvalho articula-se a partir das
narrativas orais, principalmente de contos orais populares, percebemos, na minissérie, a
presença dos “cinco elementos que entram na constituição da narrativa oral” destacados por
Isenberg, que são “orientação, complicação, avaliação, resolução e moral” (FÁVERO, 2003,
p.55). Na primeira jornada, a que se passa no campo, temos, como episódio de orientação, “No
Sol Levante”, em que é introduzido o motivo que faz Maria sair de casa, seu problema com a
Madrasta. Já a complicação fica por conta dos episódios “No País do Sol a Pino”, “Em Busca
da Sombra” , “Maria Perde a Infância”, até “Os Saltimbancos”; daí passamos à resolução, que
se nos episódios “O Reencontro”, “Neva no Coração” e “Onde o Fim Nunca Termina”. Na
Segunda Jornada, a que se passa na cidade, a estória começa onde termina a Primeira Jornada:
em frente ao mar. No episódio “Terra de Sonhos”, temos temos a orientação; no “A Cidade
Parte I”, “A Cidade Parte II e “A Guerra”, a complicação; em “O Retorno”, a resolução, e
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38
fechamos um círculo, ao voltarmos para o mesmo cenário do primeiro episódio da Primeira
Jornada, tendo assim a avaliação de toda a aventura. A moral, na minissérie, pode ser vista em
dois planos diferentes. No plano psicanalítico, é a de uma menina que tem de domar o seu
inconsciente para se tornar uma mulher independente. O inconsciente é a avó, que já dissemos
ser a Narradora. Também o mar tem a simbologia do inconsciente, daí sua incansável busca
pelas “franjas do mar”. E como veremos mais à frente na parte dedicada ao herói, toda menina
se torna mulher quer queira, quer não.
Já no plano literário, lembramos Haroldo de Campos, (1973, p.274) para quem “a moral
da fábula é contar a fábula”. O que Soffredini, Carvalho e Abreu narraram em Hoje é Dia de
Maria é exatamente essa passagem “da literatura anônima à criação individual” (MACHADO,
1989, p.144). Em uma passagem que retrata a grande metáfora da minissérie, da passagem da
oralidade para a literatura, Maria é a contadora de estórias que saem do livro de cabeça” de
Dom Chico para fazê-lo recuperar a memória:
MARIA fecha o livro de DOM CHICO CHICOTE, ao mesmo tempo que o
ESCRIVÃO e a MADRASTA somem pela estrada.
NARRADORA
Como eu ia dizendo, numa história linhavo um fio de riso, uma renda de amor, um
bordado de drama, um pesponto de dor...
(ABREU; CARVALHO, 2005, p.549)
Figura 5 - Maria lê as estórias na cabeça de D. Chico Chicote. Foto de Renato Rocha Miranda.
Vejam que, no próprio texto, temos o mosaico, “a linha e o linho” com que a escritura
se fará. A narradora tece alinhavando, bordando, pespontando os sentimentos numa estória,
assim como a personagem de Marieta Severo no filme “Pequenas Estórias”, vai fazendo sua
colcha de retalhos. Mas para o diretor Luiz Fernando Carvalho
24
, os autores da minissérie são
24
Entrevista concedida para o site da minissérie Hoje é Dia de Maria, disponível em
<http://hojeediademaria.globo.com>, acesso em 23/11/08.
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como “eternas Penélopes, tecemos e desmanchamos bordados”. Ele diz que isso é necessário
para que as “asas de Ícaro” não enfrentem a “tragédia de Sísifo”. Como monges budistas,
fazem suas mandalas para depois desfazê-las, como no trabalho de cenógrafo: constroem-se
casas para não permanecerem. Segundo Renata Pallotini, (1983, p.63) “toda colcha de retalhos
tem um forro, ao qual os retalhos são costurados”, ou seja, uma unidade de ação em todo
“drama de farrapos” (ROSENFELD apud PALLOTINI, 1983, p.63). A ação principal de Maria
é encontrar as ‘franjas do mar’, na Primeira Jornada, e achar o caminho de volta da cidade pra
casa, na Segunda.
Lévi-Strauss aludia às peças de um mosaico para exprimir o que é próprio da ‘visão
mítica’(CAMPOS,1073, p.85). Mosaico, contudo, pertence à arquitetura oriental, colcha de
fuxico é artesanato popular brasileiro, assim, temos, nessa analogia, a arte de construir estórias
à moda oriental com material da cultura oral nacional. Para Cascudo (1978, p.265), “os contos
são tecidos cujos fios vieram de mil procedências. Cruzam-se, recruzam-se, avivados,
esmaecidos, ressaltados na trama policolor do enredo.”
Para Walter Benjamin, a característica primordial da oralidade é a figura do narrador. E
o primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo
(...) o narrador de contos de fadas. (Ele) nos revela as primeiras medidas tomadas
pela humanidade para libertar-se do pensamento mítico. (Ele) ensinou muitos
séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais
aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância. O
feitiço libertador do conto de fadas não e em cena a natureza como uma entidade
mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado. (BENJAMIN, 1994,
p.215)
O conto é visto como uma “narrativa de reminiscência” (SANTIAGO, 2002, p.49).
Narramos sempre o que foi, pois se estamos contando algo (era uma vez...), já conjugamos o
tempo passado. Assim, nossa pequena Sherazade, Maria, está o tempo todo costurando o fio da
sua vida, e correndo o risco de morrer, como os contadores tribais. A linguagem televisiva
privilegia normalmente o tempo presente. Porém, com a inclusão de uma personagem
narradora, como acontece em Hoje é Dia de Maria, sabemos que se trata de algo que
aconteceu no passado; um distanciamento quase brechtiano
25
entre o espectador e o fato, o
que não deixa de ser uma mudança na linguagem televisiva, tão afeita aos princípios de
identificação do cinema clássico hollywoodiano. Para Benjamin, a reminiscência
(...) funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração a
geração. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em
25
Ver nota no subcapítulo”Brecht”, capítulo 3.
40
40
primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância
todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram
todos os outros narradores. Em cada um deles vive uma Xerazade, que imagina uma
nova história em cada passagem da história que está contando. (BENJAMIN, 1994,
p.211)
Portanto, a narrativa épica está intimamente ligada ao narrador. Segundo Benjamim, a
“experiência que é passada de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.
E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais
contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” (BENJAMIN, 1994, p.198) Esta voz narrativa,
épica, presente em Hoje é Dia de Maria, a voz da narradora-avó, do inconsciente coletivo, que
será também um instrumento dramatúrgico para prender a atenção do espectador embalado no
sono audiovisual, encerrando os episódios com um ‘gancho’ que o ligará aos próximos, como
Xerazade fazia com seu rei-ouvinte.
2.3.2 – Concisão-intensidade-rapidez.
O poder do conto, seja ele oral ou moderno, está na concisão. Edgar Allan Poe falava
de um tempo no qual o homem já era forçado, como hoje, a escolher o condensado em
detrimento do longo. Ele dizia que “todas as excitações intensas são necessariamente
transitórias”, e que, no caso do conto breve, “o autor é capaz de realizar a plenitude de suas
intenções” (POE apud GOTLIB, 2006, p.19-20). Seus seguidores chegaram mesmo a afirmar a
“teoria de um só”, onde haveria uma unidade de tempo, lugar e ação, como na tragédia
aristotélica, e ainda um só personagem.
Segundo Julio Cortázar (2004, p.151) “quando um conto ultrapassa as vinte páginas, na
França, toma o nome de novela”. Para ele, o conto sintetiza um momento, como o da
fotografia. Fazendo um paralelo com o filme de Antonioni, “Blow-Up”, que trata de um
fotógrafo que, ao ampliar seu filme, encontra algo oculto na foto, Cortázar nos diz que o conto
“recorta um fragmento da realidade, fixando-lhe limites, de modo que esse recorte atue como
uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, uma visão dinâmica
que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmera.” (CORTÁZAR, 2004, p.152)
O conto seria uma “vida sintetizada”, uma “síntese viva”, e o mesmo podemos dizer de um
produto dramatúrgico, onde, em poucas horas, tomamos conhecimento da vida de um
personagem.
Para Cortázar, ao contrário do romance, que é mais próximo do cinema, uma
fotografia bem realizada (e também um conto)
41
41
pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a
câmera abrange e pela forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa
limitação; o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma
imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não valham por si
mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma
espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em
direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário. (CORTÁZAR,
2004, p.153)
Cortázar (2004, p.158) compara o conto com um nocaute numa luta de boxe: “um bom
conto é incisivo, mordaz, sem trégua desde as primeiras frases.” Para ele, autores como
Hemingway e Kafka eliminam tudo o que não é essencial e vão, intensamente, nos
aproximando lentamente do drama:
O contista sabe que não pode proceder acumulativamente, não tem o tempo por
aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade. O tempo e o espaço do conto
têm de estar como que condensados, submetidos a uma alta pressão espiritual e
formal. Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa
explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai além da
pequena e às vezes miserável história que conta, propondo-nos uma espécie de
ruptura do cotidiano que vai muito além do argumento. (CORTÁZAR, 2004, p.159)
Este sempre foi o trunfo, por exemplo, de Tchécov, inclusive no drama, o que levou o
maior encenador russo, Constantin Stanislawski, a encenar peças do dramaturgo. Desde essa
época a narrativa do conto já se aliava ao gênero dramático. Tchécov considerava a brevidade a
maior das virtudes: “em contos, é melhor não dizer o suficiente que dizer demais”. (TCHÉCOV
apud GOTLIB, 2006, p.32). Ele dizia que se devia optar sempre pelo mais curto, evitando-se
cair no excesso de detalhes.
Segundo Walter Benjamim, em seu ensaio sobre Vladimir Leskov, ao contrário da
informação, que tem de se explicar, a narrativa não se entrega, não explica nada: “Nada facilita
mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise
psicológica.” (BENJAMIN, 1994, p.204). Citando Paul Valéry, que dizia que “o homem de
hoje não cultiva o que não pode ser abreviado”, Benjamin nos lembra que a narrativa se
emancipou da tradição oral, não permitindo mais “essa lenta superposição de camadas finas e
translúcidas”, representando “as várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas”
(BENJAMIN, 1994, p.206).
A concisão leva à intensidade. A riqueza das formas breves, para Calvino (1994),
estaria na concisão, na intensidade, na constância do trabalho intelectual, na densidade de seu
conteúdo. Para ele, “o conto opera sobre a duração, ele age sobre o passar do tempo,
42
42
contraindo-o ou dilatando-o”. (CALVINO, 1994, p.53) São apresentadas ao leitor idéias
simultâneas. É uma estilística que exige rapidez de adaptação, agilidade de expressão e do
pensamento para capturar a atenção do leitor. “A rapidez de estilo e de pensamento quer dizer,
antes de mais nada, agilidade.”(CALVINO, 1994, p.59).
Na Sicília, os contadores de estórias dizem que ‘o conto não perde tempo’: “A rapidez e
a concisão do estilo agradam porque apresentam à alma uma turba de idéias simultâneas, ou
cuja sucessão é tão rápida que parecem simultâneas.” (CALVINO, 1994, p.55). Ainda segundo
Calvino,
(...) a principal característica do conto popular é a economia de expressão: as
peripécias mais extraordinárias são relatadas levando em conta apenas o essencial; é
sempre uma luta contra o tempo, contra os obstáculos que impedem ou retardam a
realização de um desejo ou a restauração de um bem perdido. (CALVINO, 1994,
p.50)
O segredo estaria, para ele, “na economia da narrativa em que os acontecimentos,
independentemente de sua duração”, se tornam interligados num movimento ininterrupto.
Estaria no ritmo, na “lógica essencial com que tais contos são narrados” (CALVINO, 1994,
p.48-49).
26
A intensidade de uma microssérie pode ser vista em comparação com uma novela, que
expande o tema, deixando a estória em aberto. Uma obra televisiva “fechada” que tem um
tempo para ser executada, exatamente treze capítulos, tem de ser concisa, intensa, e trabalhar
com rapidez. Vários episódios escritos para Hoje é Dia de Maria foram inclusive amalgamados
na montagem e durante a gravação, para dar ritmo ao final da trama, e para destacar os
personagens principais.
Na verdade, o formato televisivo de minisséries seria o mais adequado ao romance, não
ao conto, pois elas acontecem em capítulos, episódios, pode-se vê-la aos poucos, como
fazemos ao ler um livro. Porém, numa microssérie, a obra torna-se mais condensada que numa
série normal. O exemplo de A Pedra do Reino, em que um romance gigantesco foi condensado
em três capítulos, é chamado de erro estrutural de roteiro, quando algo não funciona numa
estrutura tão pequena. Nenhum editor conseguiria consertar o que ficou faltando para fazer
sentido, o erro é do roteirista. Este romance teria sido mais bem aproveitado em uma minissérie
maior, como o foram A Muralha, O Tempo e o Vento, Grande Sertão: Veredas, Tenda dos
Milagres, e tantos outros. Em primeiro lugar, cortou-se demais; em segundo lugar, levou-se em
conta o conhecimento prévio do público de universo muito específico; por fim, a perda da
26
Interessante observar que os contos de Calvino não obedecem a esses preceitos, eles se detêm na
descrição, em longos períodos joyceanos, paragráficos, não telegráficos.
43
43
audiência de um único episódio levou o público a se perder completamente no episódio
seguinte, não havendo, como em Hoje é Dia de Maria, tempo de construir para o telespectador
toda a trama, de familiarizar o público com os personagens e o conflito.
Em Hoje é Dia de Maria, também uma microssérie, a concisão se no fato de que
várias estórias de fadas, vários personagens, estão condensados em uma única estória, não é um
único conto espichado em 556 horas, o que o esvaziaria de sentido. Então os roteiristas tiveram
de buscar na literatura, tanto nacional quanto universal e no folclore, material suficiente para
aglutinar, buscando na pluralidade dos textos concisos a criação de um único texto intenso e
coeso, daí resultando na tensão dramática e força de suas personagens.
2.3 – O maravilhoso e o conto maravilhoso
Segundo Chiampi (1980, p.48), a definição de maravilhoso é “o extraordinário, o
insólito, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano”. O maravilhoso implica a
intervenção de seres sobrenaturais, divinos ou legendários na narrativa.
A irrupção do maravilhoso se dá nos séculos XII a XIII, segundo Le Goff, e sua
estetização entre os séculos XIV e XV. O termo maravilhoso pertence, portanto, ao vocabulário
da Idade Média. Mirabilis, o singular, “é o nosso maravilhoso com suas origens pré-cristãs”
(1983, p.24). Mirabilia era a palavra usada na Idade Média para conceituar objetos
maravilhosos:
No Ocidente Medieval os mirabilia tiveram a tendência para organizar-se numa
espécie de universo virado ao contrário. Os temas principais são a abundância
alimentar, a nudez, a liberdade sexual, o ócio. Assiste-se a uma desumanização do
universo animalista, para um universo de monstros ou de bichos, para um universo
mineralógico, vegetal. (LE GOFF, 1983, p.26-27)
Havia uma necessidade de colocar o mundo às avessas, contra a repressão da Alta Idade
Média. Le Goff (1983) faz um verdadeiro inventário do maravilhoso medieval, classificando
seus elementos. Dentre as terras e lugares maravilhosos, encontram-se a montanha,
especialmente com grutas, os penhascos; as fontes e nascentes; as árvores; as ilhas; castelos e
torres; cidades e túmulos. Dentre os seres, estão os gigantes e anões; as fadas (exceto no
maravilhoso russo); homens e mulheres com particularidades físicas, monstros humanos;
animais como o leão, o cavalo; animais imaginários como o unicórnio, o dragão; seres
antropomórficos, metade homens, metade animais, como as sereias e os lobisomens;
autômatos, seres metade-vivos, metade-objetos. Dentre os objetos, estão os protetores, como os
que tornam as pessoas invisíveis; produtores, como o Graal; fortalecedores, como a espada.
44
44
Para Calvino (1994, p. 46), nos textos das fábulas maravilhosas, “o objeto mágico é um signo
reconhecível que torna explícita a correlação entre os personagens ou entre os acontecimentos”.
Ainda segundo Le Goff
27
(1983, p.28), o maravilhoso se contrapõe à realidade. O
maravilhoso dentro do cotidiano será redescoberto pelo fantástico romântico ou pelo
surrealismo moderno. Ele perturba o menos possível a rotina, não causa estranheza. É
produzido por seres sobrenaturais que se encaixam perfeitamente nesse novo universo. Para
Julio Casares (apud GOTLIB, 2006, p.8), que relaciona à fábula o conto maravilhoso, este é
“onde as coisas são narradas como deveriam acontecer, da forma que gostaríamos que fossem,
contrariando o real”. André Jolles também estudou as leis de formação do conto maravilhoso:
Sempre que ele é transportado para o universo, este transforma-se de acordo com um
princípio que rege esta forma e é determinado por ela. No conto, que enfrenta
abertamente o universo e o absorve, o universo conserva, apesar dessa
transformação, sua mobilidade, sua generalidade e o que lhe a característica de ser
novo de cada vez – sua pluralidade. (JOLLES, 1976, p. 194-195)
As metamorfoses são comuns a esse tipo de narrativa, como, em Hoje é Dia de Maria,
as que acontecem com o Pássaro que vira Amado, a Cabeça que vira a Madrasta, o Pato que
vira Escrivão, Asmodeu que vira Gato e outros Asmodeus. O fato de a menina ter sido
enterrada viva e depois ressuscitada também pertence ao universo mítico. Exausta, Maria é
constantemente ameaçada, como Xerazade. Ela é a cantadora que desafia o “demo”, é a atriz do
teatro mambembe, é a cantora do cabaré. Maria também representa o vir-a-ser, o ser humano
incompleto, em busca da identidade. Sobre esse aspecto, sabemos com Le Goff (1983, p.23)
que
(...) o maravilhoso está profundamente ligado a esta procura da identidade individual
e coletiva do cavaleiro idealizado. O fato de as provas do cavaleiro passarem por toda
uma série de maravilhas maravilhas que ajudam (como certos objetos mágicos) ou
maravilhas que é preciso combater (como os monstros) – levou Erich Köhler a
escrever que a aventura é ela própria uma maravilha.
Maria atravessa o deserto do sertão do “Sol a Pino”, que nos lembra o sertão dos filmes
do cinema novo, com a luz natural dos trópicos, estourada, que não mascara a realidade. Não é
um sertão geográfico, está mais para um sertão que “está em toda parte”, como escreveu
Guimarães Rosa.
Sobre esse espaço ficcional, Le Goff (1983, p.43), em capítulo intitulado “O deserto-
floresta no ocidente medieval”, descreve como o deserto apresenta-se como “o lugar do
27
Le Goff divide o maravilhoso em: maravilhoso bíblico; maravilhoso antigo, onde entram as personagens
mitológicas; maravilhas barbáricas, como as mitologias germânica e bretã; e maravilhoso oriental. As fontes ou
reservatórios seriam: o material céltico, o folclore, a Índia (horizonte perdido), a Irlanda e a Sicília (imagens do
purgatório). Dentre as técnicas, estão: os sonhos, aparições e visões, as metamorfoses; o maravilhoso mágico.
45
45
maravilhoso por excelência. O deserto oscila entre uma concepção de prova e de libertação.
o deserto-asilo, refúgio dos que para se retiram junto com os animais.” outros tipos de
desertos, como o encontrado no próprio mar, que é o objetivo final de Maria. também, em
Hoje é Dia de Maria, o deserto-floresta, onde os amantes se refugiam, o qual reconhecemos
também nos encontros entre Maria e o Amado. Outro tipo de deserto é o gelado, que veremos
na passagem sobre Shakespeare, e também sobre Brecht, no capítulo 3.
Figura 6 - Chove no sertão dos retirantes. Foto de Renato Rocha Miranda
.
2.4 - As características fundamentais e narrativas do conto maravilhoso
Dentre as características narrativas do conto maravilhoso, enfatizamos aqui a repetição,
a moral ingênua, a atemporalidade histórica, a descontinuidade entre causa e efeito, a
universalidade temática e a construção em abismo. Na tessitura do roteiro de Hoje é Dia de
Maria, podemos perceber, por exemplo, a repetição na própria circularidade da obra, com
retornos ao início, com leitmotivs, com repetição de personagens, ou deveríamos dizer,
multiplicação dos duplos, na própria caminhada de Maria num horizonte infinito. A moral da
personagem ainda é a do maniqueísmo da televisão, a história é visitada em situações sociais
insolvíveis e atemporais (novamente a circularidade, pois são situações sem fim). A
descontinuidade entre causa e efeito é também desassociação entre o real, que pode ser
desnaturalizado, e a fantasia, que pode ser considerada natural, numa fusão de mundos
diversos. A universalidade das estórias de Perrault reproduzidas aqui de forma estilizada e
mesmo parodiada, às vezes, como em “Cinderela”, é mais uma prova da construção em abismo
que evoca narradores orais, passa por vários escritores, até chegar à forma do conto atual.
46
46
2.4.1 - Repetição
A repetição é uma das características do conto oral e assim também do conto
maravilhoso: “Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo.” (BENJAMIN, 1994,
p.205). Segundo Calvino, nos contos populares e nas estórias de fadas,
(...) o prazer infantil de ouvir histórias
28
reside igualmente na espera dessas
repetições: situações, frases, fórmulas. A técnica da narração oral na tradição popular
obedece a critérios de funcionalidade: negligencia os detalhes inúteis, mas insiste nas
repetições, por exemplo, quando a história apresenta uma série de obstáculos a
superar (CALVINO, 1994, p.49).
A repetição tem, portanto, função didática e pode ser associada, como vemos no
exemplo de Hoje é Dia de Maria, à distância percorrida pela heroína, dando a impressão de
“continuidade de marcha, com a repetição, em expressões como ‘andou, andou, andou...’”
(CASCUDO, 1978, p.242):
NARRADORA
(off)
Maria caminhou, caminhou...
29
Tanto o leitmotiv utilizado em toda a minissérie, da música “Constante”, quanto a
quadrinha do “Figuinho da figueira” (Xô, passarinho!), são exemplos de uma repetição que
possui a função teledramatúrgica de redundância. Explicando melhor: para que o espectador se
situe dentro do contexto do episódio atual, ele precisa ter conhecimento de algo do episódio
anterior, mesmo que não o tenha visto, através da repetição, do gancho, ou do narrador. Em
Hoje é Dia de Maria, estilizando a técnica pedagógica da repetição, a narradora nos fornece
uma explicação no início, satisfazendo assim uma exigência da televisão. O telespectador/leitor
quer ouvir novamente o que houve com Maria, com outros personagens conhecidos, para então
aceitar o novo. Os próprios atores foram repetidos na escalação do elenco da Segunda Jornada,
para uma identificação com o mesmo público.
2.4.2 – Moral ingênua e indefinição histórica
28
O tradutor optou em utilizar história ao invés de estória, mas não é nossa preferência, pois aqui não se trata de
histórias reais, nem da História, mas sim de imaginação.
29
DVD Hoje é Dia de Maria, 2006, (556 min.), color., son., 3 discos digitais, Rio:Globomarcas.
47
47
Segundo André Jolles, no maravilhoso, “os gestos verbais do conto estão prenhes de
trágico e de justiça, na acepção da moral ingênua do poder que aniquila a realidade imoral, e
significa sempre o maravilhoso, assim como o tempo, o lugar e as personagens” (JOLLES,
1976, p.204) – que não podem ser históricos, pois “a partir do momento em que o conto assume
os traços da história, perde uma parte da sua força. A localização e data histórica aproximam-se
da realidade imoral e quebram o poder do maravilhoso natural e necessário.” (JOLLES apud
LE GOFF, 1983, p.36) Não existe, para Jolles, a “ética da ação”, mas a “ética do
acontecimento”. O gesto verbal trágico, então, para Jolles, não pode ser o mesmo que o gesto
social de Brecht
30
, pois não admite a história.
Chiampi (1980, p.147) prossegue sobre conclusões similares a que chegou André Jolles
sobre o conto maravilhoso ocidental. Para ela, um exemplo de oposição da “ética do
acontecimento ou moral ingênua absoluta do conto” à imoralidade do universo real, e de
recusa
da realidade, está presente em expressões como “era uma vez”, “em certo reino” que,
juntamente com o maniqueísmo como recusa da ambiguidade, “são instrumentos da distância
pedagógica para julgar simbolicamente a moral comum.” (CHIAMPI, 1980, p.60). A realidade
está presente na forma simbólica, e talvez este seja o ponto de maior convergência entre o
conto de fadas e o realismo mágico (apesar de este ser envolto na história e na realidade social).
Segundo Chiampi (1980, p.147), “o distanciamento sócio-histórico no maravilhoso não quer
dizer que algum setor da realidade não possa comparecer nele de forma simbólica. Trata-se da
simbolização dos conflitos e tensões do inconsciente, num sentido antropológico.” É o que ela
chama de “sobrenaturalização do real”. Para Roman Jakobson, “o conto maravilhoso preenche
o papel de utopia social. É um tipo de compensação onírica. Um sonho sobre a conquista da
natureza.” (JAKOBSON apud CAMPOS, 1973, p.295)
A moral de Maria nos lembra a de Riobaldo (ROSA, 1970), pois, para este, “crime, que
sei, é não cumprir com a palavra”. Quanto à maneira de olhar o universo, eles divergem. Se,
para a pequena Maria, a vida dos jagunços seria uma loucura difícil de se acreditar,
indiscutivelmente para ela o diabo existe, está na rua, em toda parte, o diabo há, e são muitos.
Para Maria, os “Asmodeus” e a Madrasta são maus; os personagens considerados bons são
humilhados por aqueles; personagens que podem ser domesticados com êxito, mas
30
Na concepção brechtiana de gestus, palavra latina, no alemão geste, subentende-se um comportamento social de
uma determinada época. Brecht define: “O Gestus social é relevante para toda a sociedade; deixa inferir
conclusões sobre a situação da sociedade. Um Gestus designa as relações dos homens entre si. Com esta palavra
compreendemos um
complexo de gestos e declarações que se relaciona com um acontecimento humano e à
atitude geral de todos a este acontecimento o qual, vindo de uma única pessoa, desencadeia certos acontecimentos,
como acontece com Hamlet, por exemplo”. (BRECHT apud BORNHEIM, 1992, p. 180)
48
48
permanecem ambíguos, como o Gato/Asmodeu que, “tendo desistido de ser bom, explode”
(VIDAL;MARQUES, 2006, p.11).
Figura 7 – Asmodeu transformado em Gato e Maria. Foto de Renato Rocha Miranda.
Os autores de Hoje é Dia de Maria utilizam o recurso das estruturas narrativas orais e
populares e o maravilhoso para falar de tradições culturais particulares de seu povo quando
falam dos sem-teto, da exploração do trabalho infantil e da prostituição infantil. Porém, para o
diretor Luiz Fernando Carvalho, essa minissérie “é um jogo, não é uma narrativa que se
desloca no tempo histórico, falsa, alienante, mas uma narrativa de trabalho no espaço
misterioso da infância, que existe entre a realidade e a imaginação de todos nós”
31
. (grifo
nosso) No caso do trabalho de Soffredini, Abreu e Carvalho, a realidade brasileira é absorvida
pelo universo maravilhoso da estória. Maria está sempre se revoltando contra as injustiças: abre
mão de ser princesa para ser uma heroína andarilha, junta-se aos saltimbancos etc. Segundo
Vidal e Marques (2006, p.1), uma característica fundamental da personagem é “a perseverança
(a ‘Constança’, da qual ela é sempre lembrada) expressa em seu caráter, de que sua luta não é
em vão”. o drama da menina carvoeira, dos bóias-frias e dos retirantes, e questiona o
porquê de tanto sofrimento. Ela sente este drama na pele, passando pela guerra, pela fome e
pelo trabalho forçado. Aqui podemos perceber como, no roteiro da minissérie, o universo
mágico amalgama-se à realidade de nosso contexto, em perspectiva crítica, mas é uma
realidade que tem atravessado a História do Brasil, sem ser datada, atemporal.
2.4.3 – Descontinuidade entre causa e efeito
31
Depoimento do diretor Luiz Fernando Carvalho para o Making off (40min.)do DVD da minissérie “Hoje é Dia
de Maria”, 3 discos digitais, Rio: Globomarcas , 2006 (566 min.).
49
49
Para Todorov, o gênero maravilhoso relaciona-se ao conto de fadas: “de fato, o conto de
fadas não é senão uma das variedades do maravilhoso. O que distingue o conto de fadas é uma
certa escritura, não o estatuto do sobrenatural” (TODOROV, 1975, p.60), que o relacionaria ao
fantástico. “Para Todorov, o maravilhoso opõe-se ao estranho na medida em que o primeiro
permanece sem explicação e supõe a existência do sobrenatural.”(LEGOFF, 1983, p.31) No
caso do maravilhoso, como diz Todorov,
os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas
personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos
narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses
acontecimentos. (TODOROV, 1975, p.60).
Aqui é o leitor quem decide se devem ser admitidas novas leis da natureza, pelas quais
o fenômeno pode ser explicado. Então, “entramos no gênero do maravilhoso” (TODOROV,
1975, p.48). Na microssérie, a naturalização do maravilhoso está presente o tempo todo,
quando Maria conversa com seus amigos encantados ou com o Diabo. As Jornadas da pequena
Maria ou da Maria-moça seguem as leis que regem o maravilhoso, onde os diabos aparecem e
falam e os bichos são humanos encantados, sem causar espécime aos outros personagens
humanos. Na minissérie, Maria precisa da magia para inventar e “os encantados” convivem
com ela em sua jornada. Como diz Wendy Faris, acerca da naturalização do maravilhoso,
Maravilhas são recontadas sem comentário, de um jeito prosaico, aceito,
presumivelmente, como uma criança as aceitaria, sem questionamento ou reflexão.
Ouvimos descrições de fenômenos experimentados pela primeira vez e participamos
do frescor maravilhado daquela experiência. (FARIS, 1995, p.177) (tradução nossa)
32
Para a pequena Maria, a Boneca que conversa como gente (Emília/Olympia) e o
personagem de Chico Chicote são absolutamente naturais, assim como o Pato e a Cabeça. Não
há, portanto, estranhamento, como acontece no conto fantástico. São casos de ‘naturalização do
irreal’, termo cunhado por Irlemar Chiampi (1980) para descrever o maravilhoso. Maria,
ironicamente, estranha a realidade, não a fantasia:
MARIA
Mas que lugar é esse de agora?
CARVOEIRA
Nesse lugá fica tudo o que a cidade joga fora. Até as pessoa.
32
Wonders are recounted largely without comment, in a matter-of-fact way, accepted – presumably – as a child
would accept them, without questioning or reflection; (...)we hear descriptions of phenomena experienced for the
first time and participate in the fresh wonder of that experience.
50
50
MARIA
Entonces, nóis tamo no meio do pesadelo do Gigante?
CARVOEIRA
Não, Maria, tamo é no meio da realidade do mundo.
(ABREU; CARVALHO, 2005, p. 404)
Engolida pelo Gigante, ela estranha o que vê de dentro de sua barriga: é do lixão que ela
vai imigrar para a cidade grande. Na Primeira Jornada, fatos como o açoite ao cadáver do
devedor, ou o trabalho escravo das crianças, ou a necessidade do retirante de emigrar, são
motivos de questionamento para Maria. Tudo o que encontrará na Segunda Jornada será para
ela totalmente estranho sendo uma criatura vinda do campo incluindo o capitalismo e a
guerra, que ela como uma loucura que não tem explicação. Assim, a realidade circundante
do espectador urbano é que gera estranhamento em face do universo maravilhoso da
personagem.
2.4.4 - Universalidade
Outra característica dos contos maravilhosos é a universalidade. “Tanto mais universal
um conto mais será popular num dado país. O típico será sempre regional. O nacional
evidenciará uma amplidão denunciadora de sua universalidade.”(CASCUDO, 1978, p.179)
Ao
contrário de Dostoievski, que disse: “fale de sua vila e falará ao mundo”, Cascudo aqui
exemplifica sua idéia com a “Gata Borralheira” – um dos textos-fonte mais explícitos da
minissérie, como veremos adiante – cuja origem é impossível rastrear, e cujos elementos
encontram-se em todos os países e regiões mais distantes, em todos os idiomas da Terra, com
inúmeras variações.
A transcriação que acontece nesta minissérie, por exemplo, é o processo de adaptação à
época atual e a todo um país, atingido via satélite pela televisão. Não se está falando de uma
Maria do Sergipe ou de São Paulo, mas de todas as Marias do Brasil, da que vem do sertão para
a cidade grande. E quando entramos no tema da guerra dentro da Segunda Jornada, estamos
falando das meninas das favelas cariocas até às Marias de todo o mundo, que sofrem este
tormento, tornando o programa universal.
2.4.5 – Construção em abismo
51
51
Esta característica do maravilhoso, por sua vez, nos leva à ficcionalização da realidade.
“É um jogo de planos invertidos, que Borges anotou como uma forma de constituir o
maravilhoso, inclusive no Dom Quixote”, diz Chiampi (1980, p.84). De acordo com Wendy
Faris,
(1997, p.176)
a presença de colagem intertextual mágica na qual os personagens de outras estórias
aparecem é relativamente comum, tornando Dom Quixote uma de nossas primeiras
novelas do realismo mágico.
33
(tradução nossa)
Calvino(1994, p.51) nos lembra que “Xerazade conta uma história na qual se conta
uma história na qual se conta uma história, e assim por diante.” Nesse roteiro de minissérie,
todas as referências intertextuais são entrelaçadas na tessitura de uma narrativa em que os
elementos maravilhosos dão o tom ficcional.
2.5 – O mito do herói
Vemos claramente em Macunaíma a alusão ao mito do herói, apesar de estarmos
tratando de um anti-herói, o que em si é uma paródia feita por Mário de Andrade. Para
Campos, (1973, pág. 98)
devemos reconhecer os contos em que a atividade heróica serve aos interesses do pai,
do rei ou da comunidade no seu conjunto em face daqueles outros em que o interesse
é individual, privado. Na primeira categoria, estão contos de caráter heróico ou
mitológico, nos quais o herói tem força e origem maravilhosa; ou em que, no curso
das provas, predomina uma luta heróica contra um adversário mítico.
Também em Hoje é Dia de Maria temos presente o mito do herói, como veremos a
seguir. Para Kothe (1987, p.89) “o estudo do herói é um modo estratégico de se estudar a
dominante das narrativas literárias e não-literárias, artísticas e triviais”. Sobre o herói, sabemos
que ele pode ser interpretado como um “eu” coletivo. Ele sempre retorna à sua tribo, após
façanhas memoráveis. Faz parte de sua “formação iniciática”, como diria Campbell (1996), um
percurso da aventura mitológica sintetizada em “separação-iniciação-retorno”. Separando-se
dos seus, o herói inicia suas aventuras até chegar a uma região onde se defronta com forças
fabulosas e acaba por conseguir um triunfo decisivo. Alguns desses ritos de passagem são o
mergulho ritual no mar, a passagem pela água, além da catábase a descida aos infernos. De
acordo com Junito Brandão (1987, p.51), “o herói é um personagem especial, que sempre deve
estar preparado para a luta, para os sofrimentos, para a solidão e até mesmo para as perigosas
catábases à outra vida.” Ele se notabiliza por formas específicas de criatividade, além de serem
33
...the presence of intertextual bricolage, intertextual magic in which characters from other fictions appear is
relatively common, making Dom Quixote one of our first magical realist novels.
52
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considerados autóctones, do grego autókhthon isto é, “aquele que nasce diretamente da terra e
nela permanece” (BRANDÃO, 1987, p.53, notas). O herói está sempre numa situação limite, e
transgride os limites impostos pela sociedade, insolentemente. Ele é um arquétipo (segundo
Jung, um modelo universal), em luta contra as forças do mal, e seu sacrifício heróico não raras
vezes é a morte. Esse conflito com a sombra é a busca da consciência, pela liberação. Segundo
ainda Junito Brandão (1987, p.70), “A primitiva fraqueza da personagem é compensada com a
ajuda de figuras tutelares ou guardiãs, que o assistem na realização de tarefas que o herói
jamais poderia executar sozinho.”
No caso de Maria, a divindade protetora é Nossa Senhora Aparecida (a mesma do
“Negrinho do Pastoreio”), que é a mãe que lhe falta. Esta lhe diz, ao final da minissérie: “Foi
uma prova, Maria”. (ABREU;CARVALHO;SOFFREDINI, 2005, p.569). E a pequena lhe
responde que está cansada de provas. Para Jung,
Essas figuras divinas são os representantes simbólicos da totalidade da psiqué, a
força de que carece o ego pessoal. A função essencial do mito do herói é desenvolver
a consciência individual, para que ele se conta de sua própria força e fraqueza. A
morte simbólica do herói converte-se na consecução da maturidade.
(JUNG apud
BRANDÃO, 1987, p.70)
O herói é alguém de quem foi tirado algo. Ele parte para uma seqüência de aventuras
que formam um círculo, desde a partida até o retorno. Nos rituais tribais de iniciação da
puberdade, ele morria como criança para tornar-se um adulto. Sai de uma determinada
condição, personalidade e psiquê e volta numa condição mais madura.
Um conto de fadas é o mito para a criança. Eles freqüentemente falam de uma
menininha que não quer crescer e se tornar uma mulher. Muitas das estórias dos
Irmãos Grimm representam a menininha paralisada. Todas aquelas matanças de
dragões e travessias de limiares têm a ver com a ultrapassagem da paralisação. Para a
menina, a ‘passagem’ se dá naturalmente. Ela se torna mulher, quer tenha essa
intenção, quer não tenha. O menino, primeiro, tem de se separar da própria mãe,
encontrar energia em si mesmo, e depois seguir em frente, em busca do pai.
(CAMPBELL, 1996, p.147)
Maria tem um destino de ‘menino’, Édipo-Hamlet-invertido, pois deixa o pai em busca
da mãe. Na sua Primeira Jornada, abandona o ambiente familiar, após descer às trevas. É
enterrada, para depois ressuscitar, numa variante do tema da morte-e-ressurreição. As
revelações de sua jornada são uma série de provações, até que chega a um limiar, às ‘franjas do
mar’. Como disse Campbell, a simbologia da água é “a vida ou energia do inconsciente, que
dominou a personalidade consciente e precisa ser desempossada, superada e controlada.”
53
53
(CAMPBELL, 1996, p.155). A obsessão de Maria com o mar talvez possa ser interpretada
como sendo sua necessidade de vencer seu inconsciente.
Para Kothe (1987, p.88), “o percurso do herói ao longo da literatura ocidental mostra
uma tendência no sentido de inverter a posição clássica antiga de admitir, como heróis
elevados, personagens de extração social alta.” Obviamente, Maria não é uma heroína clássica
à moda da tragédia grega, pois ela é do povo. Ela é uma heroína moderna, e proletária, como as
heroínas brechtianas, como veremos no capítulo 3. Apesar das heroínas femininas da TV
estarem associadas ao melodrama – e há um modelo a ser seguido – Maria foge do estereótipo.
Mesmo assim, a série se enquadra num padrão de contos-de-fadas, no sentido proppiano
(1983). Encontramos, por exemplo, várias funções (tipos de personagens):
Maria é, sem dúvida, uma inocente perseguida, tanto pela Madrasta como pelo Diabo.
É uma virgem sensata, que foge do assédio do Pai e de Quirino, pois se entrega por amor.
Seu Amado é vítima de um encantamento assim como o Príncipe. Possui uma chavinha capaz
de abrir corações, seu talis, dado por sua mãe. Seu inimigo é mágico e poderoso, o próprio
Demo. Seu esposo é mágico, é o Pássaro Incomum, assim como sua madrinha, a própria Nossa
Senhora. Seus auxiliares, como o Mendigo, o Mascate, o Maltrapilho, o Homem-de-olhar-triste
são também mágicos (todos vividos pelo mesmo ator), e alguns amigos são bichos encantados.
Quanto às esferas ou agrupamentos em níveis, temos: na esfera do agressor, o Pai (no
início), a Madrasta e Asmodeu, na do auxiliar temos Dom Chico Chicote e os mágicos citados;
talvez possamos colocar Quirino, o saltimbanco que se apaixona por ela, como falso herói, pois
ele, enciumado, aprisiona o Amado de Maria. Na esfera do pai da princesa temos seu Pai e ela
está na esfera da princesa e ao mesmo tempo do herói, ou heroína.
Dissemos que Maria é uma heroína de uma narrativa trivial, mas o que seria isto? Para
Flávio Kothe (1987, p.92), trivial é “uma narrativa que se caracteriza pela natureza repetitiva e
automatizada do seu enredo, dos seus personagens e dos valores em torno dos quais eles se
movimentam.” Clichês, em nível do enredo, temática e final são característicos da dramaturgia
televisiva, mais especificamente da telenovela, sendo “o happy end “a restauração da situação
anterior à violação inicial da norma”, segundo Kothe (1987, p.72). Nestas estórias uma
heroína virtuosa e um mocinho cheio de qualidades, verdadeiros deuses do olimpo,
predestinados a ficarem juntos; ela é pobre e ele é rico, ou, como está sendo a moda no segundo
milênio, ele é o pobre e ela é a rica, e no final se casam. O velho clichê das comédias
54
54
românticas hollywoodianas: rapaz conhece a moça, rapaz perde a moça e rapaz reconquista a
moça
34
. Esses heróis
aparentemente correm grandes perigos e no último instante salvam a situação e a
si mesmos, um resultado esperado pelo espectador, pois pertence à poética
normativa e ao código do gênero: isto corresponde à situação do próprio receptor.
Apesar dos perigos que corre em seu dia-a-dia para sobreviver, é-lhe assegurado que,
no fim, tudo vai dar certo. Por outro lado, existe implícito um sonho de justiça e de
valorização dos mais fracos, que é transferido para o reino da fantasia. (KOTHE,
1987, p.76)
Segundo Kothe, é possível a produção de uma ‘narrativa trivial de esquerda’, com
personagem principal feminina, como aconteceu na série “Malu Mulher”; para ele, a grande
virada da TV aconteceria quando esta tentasse mostrar “a Branca de Neve dos anões
operários”, que teria “o seu espelho quebrado em estilhaços pelos poderes vigentes”. A
narrativa artística surgiria justamente da possibilidade anunciada nesses estilhaços.’(KOTHE,
1987, p.76). Justamente “Hoje é Dia de Maria” vem a ser a Cinderela sertaneja, dezoito anos
depois deste apontamento.
Como dissemos, a estória que estamos analisando, além de pertencer ao universo do
maravilhoso, tem suas raízes na realidade brasileira. Em sua viagem pelo sobrenatural, Maria
vivencia um Brasil de meninas carvoeiras, de atores circenses, de lavadeiras, ambulantes,
cáftens, polícia política, juízes corruptos. Ela experimenta a sabedoria popular na fé, na cultura
e nos mitos que vivencia por onde passa. É, nesse sentido, um conto de fadas para adultos,
como por exemplo os filmes fantásticos de Tim Burton ou o filme mexicano de realismo
mágico O Labirinto do Fauno, de Guilherme Del Toro, sobre a Guerra Civil Espanhola.
Figura 8 - Maria a árvore que brotou onde ela enterrara o morto. Ao seu lado, o Homem Triste,
personagem mágico. Foto de Renato Rocha Miranda.
34
boy meets girl, boy loses girl, boy finds girl”. (Tradução nossa)
55
55
CAPÍTULO 3: “TERRA DOS SONHOS, ONDE O FIM NUNCA TERMINA”
“... eu mandava, eu mandava ladrilhar com pedrinhas, com
pedrinhas de brilhantes...”
Cancioneiro Popular
3.1 – Roteiro, Estrutura em Movimento:
Para o maior dramaturgo inglês vivo, Tom Stoppard (2008), “um texto de teatro é a
transcrição de um evento antes de ele acontecer.”
35
Portanto, é como um roteiro a ser seguido
para o evento, a peça, que de fato é o que interessa. Para ele, à medida em que flui o
espetáculo, este vai “desmontando” o texto. Quanto ao roteiro de cinema ou TV, chamamos de
literário o roteiro que pode ser lido por qualquer leitor, e de script o roteiro com todas as
anotações técnicas. O texto que estamos analisando aqui, publicado em livro, é o literário, com
divisões em episódios (capítulos) e sem os blocos com intervalos comerciais.
Um roteiro de televisão difere-se por gênero de uma peça de teatro e por sutis
diferenças de um roteiro de cinema. O roteiro para TV não é dividido em atos, como no teatro,
mas em blocos. A televisão, assim como o teatro, tem divisão em cenas, que são unidades
determinadas por espaço e tempo. Já no cinema, a divisão é em seqüências, ou seja, assuntos,
que coincidem com a unidade temporal, mas não com a espacial, visto que o cinema trabalha
com filmagens externas e internas. existem, no roteiro, sutilmente colocadas pelo roteirista,
as informações visuais que o diretor com sua equipe irão transformar em produto final. No
cinema, a divisão em planos (posições de câmera determinadas pelo diretor), a televisão
não se divide em planos, pois há, no mínimo, três câmeras posicionadas captando imagens ao
mesmo tempo, controladas pelo diretor de tv de dentro de uma cabine, através de monitores.
Num roteiro, as posições de câmera não devem estar inseridas sendo isto um trabalho
do diretor nem as seqüências numeradas, trabalho da produção. Ainda dentro da gramática
desse gênero, o roteirista coloca em maiúsculas tudo o que nos deve chamar a atenção dentro
da cena. Cada ação é um novo plano, ou enquadramento de câmera, portanto um novo
parágrafo. Por exemplo, quando lemos:
Todos olham para MARIA e depois para os seus pés, um deles calçado com o outro
do sapato encarnado. O CAPATAZ confere com o pé que tem na mão. (ABREU;
CARVALHO; 2005,p.174)
35
Entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TVE, em Paraty, por ocasião da 6ª. FLIP, julho de 2008.
56
56
Entendemos que temos a câmera em Maria, depois nos seus pés (desce diretamente).
Depois o contra-plano do Capataz, num enquadramento aberto o suficiente para mostrar o
sapato em suas mãos. Caso o roteirista quisesse chamar a atenção para um ou para o sapato,
colocaria-os em maiúsculas como se quisesse dizer “detalhe”. Mesmo no roteiro literário estão
presentes certas questões técnicas, como por exemplo a expressão corte descontínuo
para”...(ABREU; CARVALHO, 2005,p.232) com exceção de movimentação, posição de
câmera e angulação explícitos, pois isso soaria como interferência na área de outros
profissionais.
Um bom exemplo disso, é que em cada diálogo subentende-se que o personagem que
está falando está sendo mostrado, com exceção dos diálogos em off, que significam que alguém
está fora de enquadramento. No caso de Hoje é Dia de Maria, às vezes aparece no livro a
palavra off embaixo do nome do personagem, mas, no vídeo, este personagem aparece on nesse
mesmo diálogo, demonstrando que nem sempre a opção do roteirista será a do diretor. Na cena
34 do 1º. episódio, por exemplo, a personagem de Fernanda Montenegro, a Madrasta, e o Pai,
vivido por Osmar Prado, não apareceriam em cena. O diretor, porém, optou por usar a imagem
da atriz e do ator e não apenas a dublagem de suas vozes, tirando mais proveito dos atores de
que dispunha. Tendo a televisão, como disseram Marques e Vidal (2005, p.8), “em seu
fundamento o discurso oral e a palavra como matéria-prima, (...) o que é dito e o que é
mostrado tem efeitos evidentes sobre a linguagem.”
todas as falas da Narradora, abrindo ou encerrando os episódios, deveriam aparecer
com a rubrica (off). Sua figura aparece na primeira cena do episódio “Terra dos Sonhos”, o
primeiro da Segunda Jornada, ou, se preferirmos, do 9º. Capítulo. A opção da inclusão da
personagem narradora fora da trama, onisciente, gera um distanciamento brechtiano
36
,
inserindo o trabalho na dramaturgia épica, contrária a um tipo de televisão que geralmente
adota a identificação do público com o personagem. Isso é uma constante no trabalho do diretor
Luiz Fernando Carvalho, que sempre usa elementos de teatro épico: personagens “clowns”,
musicais, cenário não-realista, fugindo mesmo do sub-naturalismo da linguagem televisiva,
começando por Hoje é Dia de Maria, depois com a Pedra do Reino e Capitu. O mesmo
podemos dizer do trabalho do dramaturgo, roteirista e diretor Luís Alberto de Abreu.
Como afirmou Pasolini (1981, p.153), o roteiro, na sua função mediadora, é o
“elemento concreto da relação existente entre o cinema [visto, na perspectiva do autor, de
forma ampla, como audiovisual em geral] e a literatura”. Para Pasolini, o roteiro-literário
36
Mais uma vez, vamos nos reportar ao subcapítulo “Brecht”, notas, capítulo 3.
57
57
expressa uma vontade de ser de outra forma, ou seja, colhe a forma em movimento” e
expressa uma
(...) estrutura em movimento, ou seja: é uma estrutura dotada da vontade de se
tornar outra estrutura; a sua característica “dinâmica”, parece-me, é um exemplo
clamoroso de “estrutura diacrônica”; a estrutura (do roteiro) consiste exatamente
nesta “passagem do estado literário para o estágio cinematográfico”.
37
(PASOLINI,
1981, p.158) (grifo nosso)
A televisão é um veículo que se renova muito lentamente. A forma de uma minissérie,
por exemplo, varia de acordo com seu roteirista. Para o roteirista Walter George Durst
38
, cada
episódio deveria ser uma estória completa, que vai aumentando a escaleta central. A escaleta é
uma espécie de espinha dorsal, ou, para falarmos em termos arquitetônicos uma das maiores
comparações que se faz a um roteiro é com uma planta-baixa ela é a estrutura de concreto,
mas uma estrutura em que as peças podem se movimentar com uma facilidade digital, não
sólida como a de um prédio. A estrutura de uma microssérie como em Hoje é Dia de Maria,
por exemplo, é concisa como a dos contos, acontecendo uma aventura diferente em cada
capítulo, e difere do seriado porque converge para um final. O espectador tem de sentir
prazer e compreender aquele episódio que está vendo, como se fosse um caso especial, para
não se correr o risco de fazer algo tedioso ou incompreensível, como aconteceu na hermética A
Pedra do Reino. Há, porém, os profissionais que encaram a minissérie como uma mininovela,
cujos capítulos terminam com um gancho para o próximo, e tramas paralelas que vão
convergindo para a escaleta, como uma árvore com seus galhos, sendo essa estrutura mais
próxima da de um romance, que é lido aos poucos. O que as duas estruturas têm em comum é o
fato de tratar-se de uma obra fechada, onde não a intervenção da audiência, e geralmente
adaptada de romances ou do teatro. Para o diretor e produtor de TV Paulo Affonso Grisolli
39
,
“oito episódios é uma boa dimensão para assegurar uma persistência da platéia em relação a
uma minissérie e para desenvolver um tema sem extenuar o espectador”. Já para Doc
Comparato
40
, roteirista, “qualquer tipo de estrutura funciona, pois não há a consolidação de
uma forma como numa novela, com seus cleos dramáticos, pois a minissérie é uma obra
fechada”. Cada uma tem sua estrutura, que pode ser de quatro em quatro episódios encerrados,
ou de estórias que se armam de três em três capítulos em dramaturgia fechada. Ele nos lembra
37
O tradutor português traduz sceneggiatura-scritura como argumento-texto ao invés de roteiro literário, sendo
esta segunda expressão preferida no Brasil, visto que a primeira denota outra fase da escritura cinematográfica
entre nós, a do texto não-decupado com finalidades mercantis, de registro e aprovação para leis de incentivo.
38
Entrevista concedida em São Paulo em 1988, vídeo Minisséries Brasileiras, VHS,NTSC, 3:30, color.,son..
39
Entrevista concedida no Rio em 1988, para o vídeo Minisséries Brasileiras, VHS, NTSC, 3:30, color., son.
40
Entrevista concedida no Rio em 1988, para o vídeo Minisséries Brasileiras, VHS, NTSC, 3:30, color.,son.
58
58
que a minissérie não é um seriado, nem uma mininovela, nem um filme. É um “produto
cultural híbrido”, como dizem as pesquisadoras Marques e Vidal (2005).
Segundo Dias Gomes, a tendência era que as minisséries ficassem menores. Porém,
quanto menores, menos rentáveis seriam. Elas foram feitas inicialmente com trinta episódios e
depois foram diminuídas para quatro episódios. “No caso de O Pagador de Promessas, por
exemplo, foram produzidos doze capítulos, mas a censura interna da TV Globo cortou quatro e
foram exibidos apenas oito”
41
. sua minissérie em parceria com Ferreira Gullar, Noivas de
Copacabana, teve dezesseis episódios em quatro blocos, sendo que ele escreveu um dos blocos
e o final da narrativa. Sobre Dias Gomes, vale lembrar o que dissemos sobre auto-
referenciação: ele sempre reaproveitava, reciclava mesmo tudo o que escrevia para o teatro e
para o rádio para usar na televisão
42
.
Hoje é Dia de Maria começou com oito capítulos, oriundos de um especial, e depois
teve a segunda fase de mais cinco capítulos, totalizando treze. De acordo com o roteirista, Luís
Alberto de Abreu, que havia escrito roteiros de cinema premiados por dez anos antes de sua
primeira experiência na TV, os episódios deveriam ter cerca de meia hora cada. Como foi dito
anteriormente, o roteiro de Soffredini, de sessenta minutos, escrito juntamente com Luiz
Fernando Carvalho, serviu de base para a minissérie, sendo todo reformulado, ampliado,
inclusive com a criação de outros personagens e situações. O diretor alterava cenas,
encaminhadas pela internet pelo roteirista, e depois faziam reuniões para “acertar o tom” dos
personagens e o encaminhamento da estória. Falavam-se por telefone, e, ao final, trabalharam
por uma semana juntos no Rio de Janeiro, para o acerto dos oito capítulos da Primeira Jornada.
As narrações no começo e no fim dos capítulos desta jornada foram desenvolvidas já durante as
gravações. Por exemplo, a transformação da menina Maria em adulta foi desenvolvida pelos
dois, enquanto que o demônio Asmodeu e os saltimbancos foram sugestões de Abreu. na
Segunda Jornada, os personagens de Chico Chicote, da Boneca e Dr. Copélius foram sugestões
de Carvalho, enquanto que todos os personagens da Primeira Jornada como Maria, Pai,
41
Entrevista concedida em 1988 para o vídeo Minisséries Brasileiras, NTSC, VHS, color, son., 3:30.
42
Jorge Furtado, roteirista e diretor de minisséries, nos diz quanto ao tamanho das minisséries que talvez se faça
mais microsséries de quatro, mas a Muralha é uma mininovela. Sobre esta minissérie,nos falou a diretora Denise
Sarraceni: A Muralha foi encomendada para quarenta capítulos, depois quarenta e quatro, quarenta e nove e
finalmente cinquenta e um. Então é um formato ainda em discussão. Nós conseguimos fazer A Muralha no preço.
Foi uma equação encontrada para se viabilizar, agora, podemos fazer outra com quarenta, mas eu acho que
prejudica a minissérie,o ideal seriam trinta. Senão vai se aproximando do formato da novela, a não ser que você
encontre uma obra que renda quarenta ou cinqüenta capítulos, mas é difícil.” Sobre a minissérie escrita por seu
colega Jorge Furtado, adaptada da obra de Raquel de Queiroz, ela disse: “o fato de se ter alongado Maria Moura
eu tenho a impressão de que foi mais uma exigência comercial. Então o que está se tentando até hoje é encontrar
um formato ideal para a gente ter mais minisséries. Daniel Filho(2001) considera que o tamanho ideal “é de no
máximo doze capítulos, pois as minisséries estrangeiras são todas pequenas” (Todos esses depoimentos foram
colhidos no Rio pela autora, entre 1999 e 2000).
59
59
Madrasta, Joaninha, Príncipe sem Rosto, Pássaro, foram criados por Soffredini e Luiz
Fernando. Os dois trabalharam, portanto, num processo de “interferência criativa”, e foram
expandindo esse universo, seguindo uma estrutura de mitos e arquétipos.
3.2 – Intertextualidades em Hoje é Dia de Maria:
O roteiro da minissérie Hoje é Dia de Maria é uma trama tecida principalmente com
lendas recolhidas por folcloristas brasileiros e narrativas da literatura universal. Nas duas
jornadas da minissérie de TV, as fontes de textos citados variam desde romances, contos, peças
de teatro, músicas, sendo estes estrangeiros e brasileiros. Esses textos são recontados pelos três
autores, sendo alterados, transmutados, transformados para se adequarem à narrativa
televisiva. Hoje é Dia de Maria é um verdadeiro mosaico de citações, uma colcha de
retalhos”, para usar uma linguagem mais popular e próxima das fontes do roteiro/livro. Seu
argumento – um especial para TV – foi construído com base em uma estilização de contos orais
populares. Há, de fato, uma rede de textos que se articulam em tons diversos, desde a paráfrase
até paródias, alusões a obras famosas.
Segundo Renato Cordeiro Gomes, em Hoje é Dia de Maria um “cruzamento entre
televisão e outros campos culturais como a literatura, as artes plásticas, o cinema, o teatro, o
circo, as festas populares, a música em seus múltiplos gêneros.” (GOMES, 2006, p.5) A
minissérie é um marco na teledramaturgia brasileira, sucesso de crítica, pois recebeu elogios de
especialistas, sendo uma narrativa incomum na televisão no horário nobre, cheia também de
referêcias cinematográficas e teatrais. A leitura dessa obra de dramaturgia é um exercício
intelectual e de imaginação que ao longo da história criou personagens inesquecíveis,
referenciais no arcabouço de significados de muitas culturas. Também para Cordeiro,
A intrincada trama das duas temporadas se apropria, metaboliza e rearticula um sem-
número de narrativas e referências culturais, num processo intertextual que reativa
matrizes culturais brasileiras, somadas a nexos internacionais. Hoje é Dia de Maria
enfatiza, sobretudo na primeira temporada, uma tradição popular brasileira, o
universo folclórico e mítico dos contos populares, lendas indígenas, provérbios e
ditos populares, festas (como a Folia de Reis e Festa de São José), adivinhas e
alusões a contos de fada como ‘Cinderela’, ‘Pele de Asno’, ‘Pé de Zimbro’.
(GOMES, 2006, p.4-5)
Não creio se tratar de simples “alusão” aos contos de fada, pois eles foram mesmo
narrativas fundadoras da minissérie. Estamos falando aqui de reciclagem cultural, pois, ainda
segundo Renato Cordeiro Gomes (2006, p.5) “a minissérie de 2005 escancara a problemática
60
60
da hibridação e da reelaboração, que coloca em cheque o mito da pureza cultural”. Como
assinalaram Marques e Vidal (2005, p.10),
Quando Carvalho ‘adapta’ para a televisão, ele está recriando, reescrevendo,
tomando emprestado, apropriando-se de um modo de criação e fazendo um outro que
é o seu e para televisão. E mais, outra linguagem daí nascerá, e essa outra linguagem
sofre a inserção de outras próprias do veículo eletrônico e do formato que é a micro
ou minissérie, ela também dotada de linguagem diferenciada e peculiar.
Nesta análise que se segue, dividimos as intertextualidades identificadas em três blocos
seguindo as suas origens e gêneros. O primeiro grande bloco estuda os três contos orais
populares, as versões brasileiras, via Sílvio Romero e Luís da Câmara Cascudo embora suas
origens remontem à Idade Média que deram origem a Hoje é Dia de Maria. Também do
cancioneiro popular resgatado por Sílvio Romero vamos encontrar muitas cantigas, aliadas à
pesquisa folclórica e à obra de Villa Lobos, compositor muito presente na minissérie.
O segundo bloco aborda a literatura brasileira que influenciou direta ou indiretamente a
minissérie. Os autores da minissérie declaram uma influência de Mário de Andrade, como
podemos ver na entrevista que nos foi concedida via internet por Luís Alberto de Abreu
43
.
Segundo Renato Cordeiro Gomes, Hoje é dia de Maria retoma e recicla, em outro contexto e
em outra época, certas propostas modernistas como a de Mário de Andrade em relação à
cultura popular e à Antropofagia oswaldiana.” (GOMES, 2006, p.7). O que conseguimos
apurar é uma presença paradigmática de Macunaíma e com ele nos aprofundamos no mito do
herói. Temos também a presença de poemas ou de temas desenvolvidos por poetas brasileiros
modernistas, como Drummond, Bandeira e Cassiano Ricardo. Neste último, em Martim
Cererê, encontramos, assim como em Macunaíma, a pesquisa com lendas indígenas. O
universo do autor teatral paulista Carlos Alberto Soffredini perpassa por todo o tempo o mundo
maravilhoso de Maria. A temática infantil, da boneca que fala, da menina e suas aventuras, está
em Monteiro Lobato, que, por sua vez, importou personagens da literatura mundial. De acordo
com Luiz Fernando Carvalho, numa minissérie, a brasilidade se funde e, ao mesmo tempo, é
fruto do embate com elementos provenientes de todo o planeta, num enorme movimento
antropofágico.”
44
.
Lobato é a nossa ligação com o terceiro bloco, que fala das influências e da presença da
literatura mundial, desde Lewis Carrol até Cervantes, de Shakespeare a Ésquilo, e do fantástico
43
Apêndice 2. Entrevista por e-mail com a intermediação da Globo Universidade. Não foi feita diretamente com
o autor, não houve oportunidade de feed-back.
44
Entrevista concedida para o site da minissérie, disponível em <http://hojeediademaria.globo.com/ >, acesso em
23/11/08.
61
61
presente na minissérie por intermédio de Hoffman e da figura do “duplo”; investigamos a
presença de musicais de Brecht e terminamos com musicais americanos citados textualmente,
como O mágico de Oz, uma vez que esta minissérie é um musical o que a aproxima mais
ainda da rapsódia andradiana.
Concluindo, as influências e referências são predominantemente do universo do
maravilhoso, inserindo o roteiro na categoria das obras desse gênero.
3.2.1 – Contos e cantos populares
A base intertextual da minissérie é constituída de três contos: “A Madrasta”, “Maria
Borralheira” e “Dona Labismina”, cujas citações vamos analisar a seguir. Também podem ter
entrado no caldeirão de poções maravilhosas deste roteiro alguns contos africanos e lendas
indígenas, embora a matriz dos três contos principais seja européia. O especial de TV feito por
Soffredini, sob encomenda de Carvalho, foi inspirado em Sílvio Romero, em suas compilações
do folclore de Sergipe e na pesquisa de Cascudo no Rio Grande do Norte. A coerência entre os
autores e as canções que o próprio Sílvio Romero (1954a) cita é óbvia: os autores da minissérie
estilizaram os contos, mesclando-os de forma tal que se torna quase impossível dizer aonde
começa um e termina o outro. As canções populares, em sua maioria cantigas-de-roda, foram
usadas sem alteração. Elas nos lembram uma época lírica da música popular brasileira, da
modinha ao estilo de Villa Lobos até os cantadores populares, marca do sertão.
3.2.1.1 – ‘Cinderela’ em Hoje é Dia de Maria:
Segundo Luís da Câmara Cascudo, um dos autores que serviram de inspiração para a
minissérie, “o conhecidíssimo ‘Maria Borralheira’ ou ‘Gata Borralheira’ é um dos tipos
universais de conto popular. Não é possível contar-lhe as variantes nem indicar origens. Está
em todos os países e regiões.” (1978, p.179) Para Cascudo, a “Cinderela” está presente em
todos os idiomas dos mais distantes países.
45
O conto “Maria Borralheira” é uma das muitas
variantes do mito da “Gata Borralheira”, como podemos concluir a partir dessa sinopse de
Romero (1954b, p.115):
45
“O casamento de Maria Borralheira é verificado pelo calçamento de um chapim. Elemento simbólico,
ocorrente no velho direito germânico. No Livro de Ruth, na Bíblia, reaparece a confirmação contratual pelo
descalçamento do sapato e sua entrega. Veio essa fórmula de doação ou promessa de obediência total até o século
XVII.” (CASCUDO, 1978, p.245)
62
62
Havia um homem viúvo que tinha uma filha chamada Maria; a menina, quando ia
para a escola, passava por casa de uma viúva, que tinha duas filhas. A viúva
costumava sempre chamar a pequena e agradá-la muito. A menina pegou e falou ao
pai para casar com a viúva. O pai respondeu: ‘Minha filha, ela hoje te papinhas de
mel; amanhã te dará de fel.’ Mas o pai contratou o casamento com a viúva. Tudo o
que havia de mais aborrecido e trabalhoso no trato da casa, era a órfã que fazia.
Assim como a estória de Cinderela, Maria Borralheira tem uma fada madrinha (no caso,
uma vaquinha), que lhe dá uma varinha de condão e com ela consegue um belo vestido e vai ao
baile do rei, conquistando o príncipe, experimentando o sapatinho e se casando com ele. Na
minissérie, Maria (já adulta), se recusa a se casar com o príncipe, numa variante parodística e
feminista. O conto “Maria Borralheira” é parodiado, mais especificamente, no episódio “Maria
Perde a Infância”.
3.2.1.2 – ‘A Madrasta’ em Hoje é Dia de Maria
o conto “A Madrasta”, conta a estória de um homem viúvo que tinha duas filhas
pequenas, e casou-se pela segunda vez:
A mulher era muito para as meninas, mandava-as como escravas fazer todo o
serviço. Perto da casa havia uma figueira e a madrasta mandava as enteadas botar
sentido aos figos por causa dos passarinhos. As crianças passavam ali dias inteiros,
espantando-os e cantando: “Xô,xô, passarinho, aí não toques o biquinho, vai-te
embora pro teu ninho.” Quando foi uma vez, o pai das meninas fez uma viagem e a
mulher mandou-as enterrar vivas. Quando o homem chegou, a mulher lhe disse que
as suas filhas tinham caído doentes e tinham morrido. O pai ficou muito desgostoso.
Aconteceu que nas covas das duas meninas e dos cabelos delas nasceu um capinzal
muito verde e bonito, e quando dava vento, o capinzal cantava: Capineiro de meu
pai, não me cortes os cabelos; minha mãe me penteava, minha madrasta me enterrou
pelo figo da figueira que o passarinho picou.” Então o pai mandou cavar naquele
lugar e encontrou as duas filhas vivas ainda por milagre de Nossa Senhora, que era
madrinha delas. (ROMERO, 1965b, p.124-126) ( grifo nosso)
De acordo com Luís da Câmara Cascudo (1978, p.257) “não há boa madrasta. O
segundo casamento raramente é feliz” em contos de fadas. Esta estória, segundo ele, “é o
exemplo típico da natureza denunciante”. Ele compilou uma versão do Rio Grande do Norte,
“A menina enterrada viva”, e, no seu livro Contos Populares do Brasil, consta a partitura da
música cantada pela menina. Esta versão foi adotada pela minissérie, com a diferença de que
neste conto apenas uma menina, a qual é morta pela madrasta, mas que ao fim consegue
ressuscitar.
63
63
Figura 9– Maria espanta os passarinhos da figueira. Foto de Renato Rocha Miranda.
Essas versões nordestinas tiveram origem portuguesa; dentre elas, Adolfo Coelho
registrou a versão de Coimbra, ‘A Menina e o Figo’, e Teófilo Braga traz a versão do Algarve,
‘O Figuinho da Figueira’, com o estribilho:
Não me arranquem os meus cabelos,
Que minha mãe os criou,
Minha madrasta m´os enterrou
Pelo figo da figueira
Que o milhano levou.
(CASCUDO, 1978, p.336)
46
Segundo Proença (1969) e Campos (1973), em Macunaíma, Mário de Andrade usou, no
capítulo “Pacueira de Oibê”, os mesmos versos que foram compilados por Silvio Romero, em
sua versão erótica:
Tinha um de carambola e Macunaíma principiou arrancando ramos de
caramboleiro pra se amoitar por debaixo. Os ramos cortados agarraram pingando
água de lágrima e se escutou o lamento do caramboleiro: Jardineiro de meu pai,
não me cortes meus cabelos, que o malvado me enterrou pelo figo da figueira que
passarinho comeu. – Chó, chó, passarinho!” Todos os passarinhos choraram de pena
gemida nos ninhos e o herói gelou de susto. Agarrou no patuá que trazia entre os
berloques do pescoço e traçou uma mandinga. O caramboleiro virou uma princesa
muito chique. O herói teve um desejo danado de brincar com a
princesa...(ANDRADE, 1969, p.198) ( grifo nosso)
No livro Hoje é Dia de Maria, todo o episódio 1 “No Sol Levante” é baseado na
estória da “Madrasta”, e as personagens voltam a aparecer em todos os oito primeiros capítulos.
Mais especificamente nas páginas 38 e 44, Maria canta a música “Xô Passarinho”; contudo,
não há o personagem do capineiro. Vejamos um trecho:
CENA 26
CASA DO SÍTIO/QUARTO DE MARIA/INTERIOR/MANHÃZINHA
46
“Corresponde ao Los Niños Sin Mamá’ do Cuentos Viejos, Maria de Nogueira, San José de Costa Rica, 1938,
onde a menina é sepultada viva e uma bela mata nasce de seus cabelos. Ela não ressuscita. O prof. Aurélio M.
Espinosa recolheu em Torrijo de Canadá, Aragão, uma variante, em Cuentos Populares Españoles, 1929,
Stanford University,‘Las três bolitas de oro, onde a órfã tem a cabeleira misturada com o trigo. Querendo-o
cortar, os segadores a ouvem. A madrasta é queimada viva.”(CASCUDO, 1978, p. 336)
64
64
Ainda arfante, a MADRASTA entra furiosa e a velinha tremulando aos pés da
gravura.
MADRASTA
Aalminha dela, tá certo?
Vai decidida até à vela e, com um sopro forte, a apaga...
CENA 27
CAPINZAL/DESCAMPADO/EXTERIOR/MANHÃZINHA
...Ao mesmo tempo em que MARIA exala seu último suspiro. E ao mesmo tempo,
ainda, em que a BORBOLETA AMARELA ganha vida e sai revoluteando pelo ar,
ao mesmo tempo em que as primeiras ramas envolvem seu corpo de boneca.
O que atrai o pai ao túmulo da filha é uma borboletinha amarela, atraída pela rosa
encarnada que Maria havia plantado ali perto. O pai ouve a canção vinda do chão e desenterra a
filha, que está viva.
3.2.1.3 – Dona Labismina em Hoje é Dia de Maria
Em Sílvio Romero encontramos também o conto “Dona Labismina”, (ROMERO,
1954b, p.74) em que o rei tem uma filha Maria; a rainha, ao morrer, diz que ele deve se casar
novamente com a mulher em cujo dedo o anel que ela usava servir; evidentemente que ele
servirá em sua filha. Muito desgostosa e chorando, Maria entra num navio e segue viagem para
não se casar com o próprio pai; vai ser criadora de galinhas num castelo onde um príncipe
que, é claro, se apaixona pela jovem de belos vestidos cor-do-mar, cor-do-céu etc. Estes ela
conseguira através da sua irmã gêmea, Labismina, uma cobrinha que nascera enrolada no
pescoço de Maria e que mora num lago. Essa estória é uma variante do famoso conto-de-fadas
“Pele-de-Asno”:
‘Pele de Asno’ é um dos três tipos em que Miss Cox divide as 345 variantes de
‘Cinderela’ (...) o motivo central será o desejo sexual paterno, repelido da filha, no
horror ao incesto. A filha foge, disfaçada numa boneca. Trabalha num palácio. Casa-
se com o príncipe. A filha que não queria se casar com o pai está no brasileiro
‘Dona Labismina’, de Silvio Romero(CASCUDO, 1978, p.223) (grifo nosso)
A citação a este conto que ficou na minissérie acontece quando o Pai, bêbado, tenta
agarrar Maria e esta foge: “E assim, lutando, o PAI derruba MARIA entre os pés de milho. A
menina chora desesperadamente...”(ABREU; CARVALHO, 2005, p.18)
Outras citações existem no especial de uma hora de Soffredini. Uma delas é que a
serpente sempre aparece aos pés de Nossa Senhora, no riacho:
65
65
MARIA ouve um tempo o canto do ribeirão. Depois percebe uma serpente que sai de
baixo dos pés da SENHORA e mergulha no rio. Então MARIA olha espantada pra
SENHORA, que lhe sorri. Fusão com a imagem da Imaculada Conceição pisando a
serpente, pendurada no quarto de MARIA(SOFFREDINI, 1995, p.14)
no episódio do defunto insepulto, Maria joga uma corda que se transforma numa
jibóia colorida para assustar os executivos, como acontecera com a vara de Moisés no Êxodo.
Os vestidos de Maria ao longo desse roteiro original mudam como os vestidos que a
Maria do conto ganha de Dona Labismina ou que a Maria Borralheira ganha da vaquinha. Ou
têm todas as flores do campo: “Entre as crianças, Maria, vestida da cor do campo com todas as
suas Flores” (SOFFREDINI, 1995, p.1); ou todos os peixes do mar (Maria deixa o antigo e vai
embora vestida com este), ou todas as estrelas do céu (que Maria adulta ganha do mascate para
ir ao baile). Essas sugestões não foram seguidas no roteiro da microssérie, mas aparecem em
outro livro da literatura brasileira, como veremos adiante.
3.2.1.4 – Outros contos-de-fadas em Hoje é Dia de Maria
Em Hoje é Dia de Maria também estão presentes outros contos-de-fadas, como “A
Formiguinha e a Neve”, mais especificamente no episódio “Neva no Coração”, e o “Gato de
Botas”, na personagem de Asmodeu-Gato.
Ainda Câmara Cascudo, no capítulo sobre Nina Rodrigues em sua antologia, narra um
conto popular africano (nagô), cujo tema é a menina modesta, afetiva, que, maltratada pela
madrasta, em benefício da própria filha, mal-educada, invejosa, dura de coração, recebe das
fadas uma recompensa por sua persistência:
O Iwin
47
partiu e a menina o acompanhou. “Vai-te embora, volta para casa, porque
não podes entrar no país em que eu moro”, disse o Iwin. “Não, eu irei onde tu fores
até que me pagues”, disse a menina. A menina seguiu e caminhou um caminho muito
longo, até chegar à terra dos mortos. Então o Iwin deu à menina alguns cocos.
(RODRIGUES apud CASCUDO, 1971, p.399) ( grifo nosso)
A menina consegue grande riqueza. A madrasta manda a filha seguir os passos de
Maria e, ambas, mãe e filha, recebem castigos. Há uma variante na Bahia da caiton ou
comboça ou enteada, que é salva pela Mãe-D´água:
Era um dia uma menina que a madrasta maltratava muito, obrigava a trabalhos muito
pesados, ao passo que a sua filha não fazia nada. Um dia a menina resolveu ir por aí a
47
Fada ou espírito
66
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fora a buscar a terra das fadas. Começou a seguir um caminho muito longo.
(CASCUDO, 1971, p. 403-404) (grifo nosso)
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A menina, no conto baiano, vai encontrando e ajudando pelo caminho seres fantásticos
como o Acarajé, as Pedras Grandes, o Adjinacu, a Onça, Iemanjá e um menino. Ao final, é
recompensada, e a filha da madrasta invejosa é castigada, como também acontece em Hoje é
Dia de Maria. No roteiro original de Soffredini, Maria se vinga da Madrasta e da filha desta,
utilizando os mesmos subterfúgios deste conto africano. Ela resolve mandá-las fazer tudo ao
contrário, de forma que se dêem mal. Essa versão maliciosa de Maria não ficou no roteiro da
microssérie. Essa revolta de Maria é justificada por Cascudo desde a época da escravatura:
“nos negros, a revolta do sentimento de justiça contra castigos não merecidos ou contra a
recompensa imerecida da conduta teve também o seu eco na repulsa e condenação da
opinião pública e deu origem a essas versões.” (CASCUDO, 1971, p.400) É essa versão mulata
que chega até nós, embora muitas vezes os contos populares tenham sido politicamente
incorretos com a imagem do negro, como na personagem, por exemplo, da “Moura Torta”, que
nesta estória é feita pela Madrasta branca, ao espetar sua filha com um alfinete.
dissemos em capítulo anterior que Maria rompe com a tradição das Cinderelas
quando ela se recusa a casar-se com o Príncipe. A mulher que rompe com o noivo antes do
casamento rompe também com um padrão que pertence a outra época e outra cultura. Maria
também não é uma heroína tradicional, ela está mais próxima das “personagens-títulos” de
filmes contemporâneos como “Deu a louca em Chapeuzinho” ou “Deu a louca na Cinderela”,
desenhos animados em longa-metragem, pois é uma menina corajosa e, mulher, foge do
estereótipo das princesas encantadas, uma vez que não sobe ao patamar da classe alta, como no
desfecho recorrente nas telenovelas brasileiras.
A importância do longo caminho também faz parte de uma das características do conto
maravilhoso, a repetição, tratada no capítulo anterior. É, segundo Marques e Vidal (2005,
p.14), “um caminhar que é ao mesmo tempo circular, como se Maria, caminhando sempre,
encontrando-se com outras personagens, não saísse do espaço-tempo”. O próprio diretor Luiz
Fernando Carvalho, em entrevista oficial no site de Hoje é Dia de Maria, declarou que, nas
andanças de Maria, ela “encontra e reencontra arquétipos que retornam à ancestralidade que
permite a imaginação”
49
.
49
Entrevista divulgada em <HTTP://hojeediademaria.globo.com/>. Acesso em 18 maio 2008.
67
67
Figura 10 Maria seguindo seu longo caminho e carregando sua cabaça, purunga ou
poronga, um cantil encontrado na natureza e transformado pelas mãos do homem
para suas andanças (VIDAL; MARQUES, 2005, p.4) Foto de Renato Rocha Miranda
3.2.1.5 – Villa-Lobos e o cancioneiro popular:
Muitas das canções que aparecem no texto foram sugeridas no roteiro de Soffredini.
Grande parte delas foram cirandas resgatadas por Villa Lobos do domínio público, outras
compostas por ele após sua pesquisa folclórica Brasil a fora, numa criação antropofágica, e
Soffredini(1995) apenas cita como fonte Villa-Lobos das Crianças (grifo nosso). São elas:
“Que lindos Olhos”, “Vida Formosa”, “Machadinha”(não utilizada),“Melodia Sentimental
Floresta Amazônica” “Carneirinho, carneirão”, “Sapo Jururu” (ou cururu), “Senhora Viúva”,
“O Limão” (não usada na minissérie), “O Anel”, “Na Corda da Viola”, “Beija Fulô”, “Meu
Benzinho”, “Rosa Amarela”, “Alecrim”, Candeeiro”, “Coco”, “Desafio da Paca”,
“Fandango”, “Formiguinhas”, “Meu querido São José”, “O Castelo”, “Se essa rua fosse minha”
e várias outras (ABREU;CARVALHO, 2005).
“A Velha a Fiar”, anônima, é uma citação visual/homenagem ao curta-metragem
homônimo de Humberto Mauro – um verdadeiro jogo de palavra-puxa-palavra:
PARCA 1
(cantando)
Estava a vida em seu lugar,
Veio a morte lhe faze mal.
A vida na morte, a morte no homem,
O homem no pau, o pau no cachorro,
O cachorro em criança, a criança na velha
E a velha a fiar!
(ABREU, CARVALHO, 2005, p.399)
68
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O roteiro de Hoje é Dia de Maria utiliza músicas populares compiladas por Silvio
Romero, como “Meu Cravo Meu Diamante” (ROMERO, 1954a, p.396), que, porém, não é
utilizada na edição final; e ainda “Chuá, Chuá”, de Pedro de Pereira e Ari Pavão;
“Amargura”, de Eduardo Souto. ainda outras cantigas populares no livro, não-identificadas,
a maioria desafios.
Algumas músicas, como “Dão-da-la-lão”, tiveram apenas a melodia usada pelo diretor
musical com outra letra. Outras músicas foram acrescentadas quando da sonorização da
minissérie ou trocadas na produção, como “Cai, cai, balão”.
O leitmotiv, a música “Constante”, de domínio público, é outro elemento que, pelo seu
caráter de repetição, remete a uma característica do conto oral maravilhoso, e marca uma
característica da personalidade de Maria, como assinalaram Vidal e Marques (2006):
MARIA
Constança, meu bem, Constança
Constante sempre serei
Constante até a morte
Constante eu morrerei.
(ABREU; CARVALHO, 2005, p.55)
Como exemplo também de repetição, característica dos contos infantis, a quadrinha
“Xô Passarinho” retorna no final da Segunda Jornada. A canção da menina enterrada viva
deveria ser cantada pela Contadora de estória, no caso a Narradora, de acordo com Cascudo,
mas, na minissérie, foi cantada pela própria atriz mirim que interpretou Maria, como
determinado no roteiro.
Figura 11 - Partitura de Xô, Passarinho no livro de Cascudo.
69
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Outra citação musical está na personagem do Gato-Asmodeu, que nos lembra o musical
infantil de Chico Buarque, “Os Saltimbancos”(1977), que, por acaso, é o nome de um dos
episódios da Primeira Jornada da microssérie.
3.2.3 – Literatura Brasileira em Hoje é Dia de Maria
A coerência entre os autores nacionais estilizados por Hoje é Dia de Maria está no
fato de, em sua maioria, terem pertencido ou sido contemporâneos do modernismo; vários
foram adeptos da antropofagia como um processo de diálogo com outras culturas, e, ao mesmo
tempo, cultores de uma valorização dos mitos populares brasileiros de forma carnavalesca. A
adaptação acontece de forma predominantemente parafrástica, havendo citações diretas como a
do poema “O Lutador”, de Drummond, entremeado de um estribilho novo. No caso de
Monteiro Lobato, como veremos, o mesmo universo e a mesma paródia de personagens
literários, como Dom Quixote, de Cervantes, presente nas narrativas de Soffredini. Na parte
sobre Macunaíma cuja intertextualidade é mais estrutural, com exceção do uso da quadrinha
popular “Xô Passarinho”, como vimos anteriormente – veremos também as características
proppianas adotadas por Haroldo de Campos em sua análise da rapsódia e que servem à nossa
série. No caso de Bandeira, é utilizado apenas o tema dos “Meninos Carvoeiros”, numa
pincelada de realismo crítico social. Vejamos agora as mais importantes citações intertextuais
brasileiras.
3.2.3.1. – Cassiano Ricardo.
Na microssérie, Maria, sabendo que a noite fora roubada no “País do Sol a Pino”,
pergunta a um índio:
MARIA
Nhor Índio, pode me dize quede a noite?
Depois de olhar MARIA, o ÍNDIO mostra-lhe o coco:
ÍNDIO
(em tupi-guarani) A noite está aqui, moça, presa dentro deste coco.(...)
Estupefata, MARIA ouve, vindo de dentro do coco, os barulhos da noite: aves, sapos
e grilos. O ÍNDIO põe o coco na mão de MARIA e sai correndo. (ABREU;
CARVALHO, 2005, p.77-78)
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70
Essa passagem é inspirada na menina que ganha o coco do Iwin num dos contos
africanos supracitados, e na lenda “Como a noite apareceu”, narrada em O Selvagem, por
Couto de Magalhães:
No princípio, não havia distinção entre animais, o homem e as plantas: tudo falava.
Também não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não quis
coabitar com o seu marido enquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim como
havia no fundo das águas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi remetida
encerrada dentro de um caroço de tucumã, bem fechado, com proibição expressa aos
condutores de o abrirem, penas de perderem a si e a seus descendentes e a todas as
coisas. A princípio, resistem à tentação; mas depois a curiosidade de saber o que
havia dentro da fruta os fez violar a proibição, e assim se perderam. (MAGALHÃES,
1975, p.113-114)
No texto da minissérie, Maria atira o coco contra a terra e a noite chega. De acordo com
Marques e Vidal (2005, p.13), “o coco, a palmeira, são objetos da realidade, cujo valor é
múltiplo e tem a ver com a sobrevivência dos mais necessitados”. Mais à frente, quando Maria
se encontra novamente com os retirantes, eles lhe devolvem o coco que os índios novamente
acharam. Mas, ao contrário da lenda, onde o índio que abrira o coco, contrariando a ordem da
Iara, perde-se na escuridão da floresta, entre seus bichos, na minissérie a noite é uma bênção,
fresquinha, todos podem dormir e continuar em paz seu caminho no dia seguinte. Isso
acontece porque, antes de Maria, um poeta já resolvera o problema do caos contido na noite, do
fruto-proibido: considera-se que Cassiano Ricardo descobriu o tom profético dessa lenda, em
relação à vinda dos africanos, quando escreveu Martim Cererê(1983), como podemos ver a
seguir:
Aimberê vai ao Carão: “Onde está a Noite? Eu quero a Noite”. _ Pituna mora no
oco do pau, na barriga do coco”. (...) Até que ao fim da estrada no sítio acaba-mundo
por onde conduzira as tribos da manhã, o Rei do Mato encontra a Cobra Grande que,
olhos de safira, se disse sua irmã. Então a Cobra Grande lhe fala: “Eu tenho a Noite.”
E dá-lhe um espinhento fruto de tucumã. “Vá por este caminho mas não abra o
segredo antes da hora marcada”. (...) E encontrou o Pererê: Seu idiota, não percebe
que a Cobra Grande te deu um oco, dentro do coco?Até que, no seu caminho, onde
parou, assuntando, pra descansar um bocado, mordido pela formiga verde da
curiosidade, levou o fruto ao ouvido pra ouvir o canto da Noite. (...)já sem inocência,
abre o fruto proibido (...) salta de dentro a Onça Preta! Cadê o Sol? A onça Preta
comeu. (RICARDO, 1983, p.17-22)
Na estória de Cassiano, chega o homem branco, marinheiro, e a Uiara (a filha da Cobra
Grande) lhe pede a Noite. Ele traz a Noite africana no navio negreiro e a Uiara se casa com ele.
Dessa união nascem os Bandeirantes. O poema épico de Cassiano Ricardo é, ao mesmo tempo,
como disse Mário da Silva Brito, (1986, p.38), “ligado à terra e à grande cidade”. Para ele,
Macunaíma e Martim Cererê são obras que se opõem; nesta, se canta uma raça que se
originou da contribuição de vários sangues e se admite unificada no tipo brasileiro”, enquanto
71
71
em Macunaíma o caos cultural e psicológico de um povo. Isso nos o gancho para o
próximo subcapítulo dessas intertextualidades modernistas em Hoje é Dia de Maria.
3.2.3.2 – Mário de Andrade: carnavalização e estrutura
Campos (1973, p.85) vai utilizar a expressão “conto-mosaico” para caracterizar
Macunaíma (ANDRADE, 1969), também utilizada por Propp, quando se refere à definição de
composição do conto maravilhoso como um “trabalho em mosaico”. Cavalcanti Proença
(PROENÇA apud BRITO, 1986, p.38) diz que Macunaíma é um livro onde tudo é
“entretecido, feito um quadro de triângulos coloridos, em que os pedaços, aparentemente
juntados ao acaso, delineiam em conjunto a paisagem do Brasil e do brasileiro comum.” Essa
estrutura de cultura popular em retalhos é, como identificamos, a mesma de Hoje é Dia de
Maria. Para Renato Cordeiro Gomes, a associação de Hoje é Dia de Maria
(...) a Mário de Andrade (citado dos documentos e anotações de Luiz Fernando
Carvalho) e seu Macunaíma (1928) e a Joaquim Pedro de Andrade e sua versão
cinematográfica (1969) para a rapsódia marioandradiana, não seria de todo arbitrária.
(GOMES, 2006, p.3)
Ou seja, o crítico faz uma associação entre a minissérie, através da citação intertextual
de Mário de Andrade assumida, como dissemos antes, pelos autores, com o fime Macunaíma
do cineasta cinema-novista. Para Gomes, elementos presentes no filme estariam presentes
também na minissérie, mas ele se limita a fazer esta alusão, sem entrar em detalhes
intersemióticos.
Cavalcanti Proença também nos diz, sobre Macunaíma, que “cada capítulo é um conto
de convergência, conforme o processo popular de juntar numa única narrativa os motivos de
vários contos, desde que exista entre eles uma analogia” (PROENÇA apud CAMPOS, 1973,
p.69). Haroldo de Campos (1973) dividiu os capítulos de Macunaíma de acordo usando as
categorias proppianas, de maneira explicitada pelo próprio Vladimir Propp: “dão-se
assimilações entre gêneros inteiros, formam-se aglomerados nos quais as partes constitutivas de
nosso esquema entram como episódios. Esta mesma estrutura aparece em vários romances de
cavalaria” (PROPP apud CAMPOS, 1973, p.124), como acontece, podemos dizer, em Dom
Quixote. Affonso Ávila observara, de acordo com Campos, o paralelismo entre o método de
decompor fábulas do folclorista eslavo, criado em 1928, e o processo de compor uma
superfábula, adotado por Mário de Andrade em Macunaíma, no mesmo ano: “Mário percebeu
o que havia de invariante na estrutura da fábula para poder jogar criativamente com os
72
72
elementos”(CAMPOS, 1973, p.24). Mário se baseou em um corpus o lendário autóctone de
Koch-Grünberg – para compor sua rapsódia, que tem muitos pontos de afinidade com o
“processo estruturalista de que lançou mão Propp para construir seu conto popular”- diria Laís
Correa de Araújo, em nota de tradução a um artigo de Roland Barthes (ARAÚJO apud
CAMPOS, 1973, p.23). “A coerência do Macunaíma trata-se da lógica do pensamento
fabular”, diz Campos. Ele prossegue:
No núcleo da rapsódia se põe a perda (venda/roubo) do muiraquitã de Macunaíma e o
seu resgate pelo herói (no caso também vítima da perda) através de uma competição
com um antagonista (o gigante). Este modo estrutural coincide com a ação
propriamente dita do conto de magia, que se abre com um dano (exórdio, ou nó) e
atinge o seu ponto culminante com a remoção do mal feito ou da falta. (...) ainda
uma (...) função de retorno, a repetição do dano inicial, quando Macunaíma perde
outra vez a muiraquitã por artes de um novo antagonista, num processo de
degradação que leva ao epílogo. (CAMPOS, 1973, p.32).
Em Hoje é Dia de Maria podemos reconhecer essas categorias agrupadas em
episódios. Segundo Haroldo de Campos, “a fábula usualmente parte de uma situação inicial, na
qual se enumeram os membros da família ou se introduz o herói mediante a indicação de seu
nome e condição.” Neste momento, ficamos cientes da composição da família da protagonista e
ficamos conhecendo o bem-estar prévio ao exórdio (ao nó, à complicação da estória); ficamos
também sabendo quem é nosso futuro herói, sua ligação com o lar, suas qualidades espirituais e
outras qualidades (CAMPOS, 1973, p.103). Em Hoje é Dia de Maria, isto se no capítulo ou
episódio “No Sol Levante”. O nome do capítulo nos lembra o oriente, Xerazade e suas estórias,
mas também lembra o Oceano Atlântico, a costa leste brasileira, sonho de Maria. A sinopse da
estória descrevemos a seguir.
A antagonista é a Madrasta, que proíbe Maria de descansar e a manda observar os
passarinhos que comem os figos. Maria adormece e é castigada, sendo enterrada viva. A ação
reparadora se dá quando o pai, ouvindo a canção, a desenterra. Maria possui uma chavinha que
lhe foi dada por sua mãe e que será objeto de desejo da Madrasta mais à frente. A partida de
Maria se quando ela ouve o Pai discutir com sua nova esposa. O casamento desta com o Pai
foi uma solução encontrada por Maria para fazer com que o assédio incestuoso que estava
sofrendo tivesse fim. A Madrasta, que então lhe oferece mel, ou seja, lhe dá apoio num
momento difícil, se mostra dissimulada e só se revela quando já está casada novamente.
Portanto Pai e Madrasta são em dados momentos causadores do dano e reparadores, por assim
dizer, da ação contra Maria. Ela encontra sua madrinha, Nossa Senhora, que lhe força e
coragem para seguir viagem. Encontra o Maltrapilho, o trata, e este a ajuda também, pois seu
73
73
sangue vira uma corda. Esta vai ajudá-la quando Maria resolve tomar para si a causa do homem
morto, que ela enterra e cuja dívida paga. Nossa Senhora vai lhe aparecer com o rosto de sua
mãe e novamente como a Lavadeira. Maria vai encontrar outros ajudantes pelo caminho, dentre
eles o Mascate, que vai lhe arranjar o “sapatinho encarnado” e o vestido “da cor do mar”(no
especial) para que ela vá ao baile do Príncipe. Antes que isso ocorra, ela reencontra a Madrasta
que estava à sua procura, seguida de sua gorda fiha Joaninha. Elas também vão ao baile, assim
como na estória de “Cinderela”. Tudo acontece como na estória, Maria é reconhecida pelo
sapatinho e é escolhida para se casar com o Príncipe. Quando ela desiste do casamento, repassa
o vestido de noiva para Joaninha, que sai voando feito um balão, quando a Madrasta (mistura
de Rainha de “Bela Adormecida” e “Moura Torta”,como dissemos antes) lhe espeta o alfinete.
Vemos claramente uma curva dramática ascendente, começando com um problema e
tendo o clímax na remoção do conflito. Faz-se necessário, então, um segundo movimento.
Termina uma curva dramática e nova curva se inicia do ponto em que a outra termina.
50
Segundo Campos, (1973,p.227)
Bremond assinala que a conclusão da narrativa realiza um estado de equilíbrio, sendo
necessário, para que esta possa ter uma ulterior continuidade, que se criem novas
tensões, com o desenvolvimento de germes de oposição deixados em suspenso ou a
introdução de novas oposições.
Quando um antagonista cumpre sua função, a necessidade de aparecer outro. Assim
é no conto como na vida, um desafio lugar a outro. Quando Maria deixa a Madrasta, acaba
criando inimizade com o próprio Demo, ou mais precisamente com o demônio Asmodeu. Ou
melhor, com os Asmodeus intervenções dispersas de antagonistas vários pois o antagonista
muda de aspecto.
Outra característica presente tanto em Macunaíma quanto em Hoje é Dia de Maria é a
utilização de elementos digressivos acessórios metalinguagens e elementos lírico-
humorísticos típicos do gênero épico. Segundo Haroldo de Campos, Propp, referindo-se aos
obstáculos impostos ao herói sob a forma de tarefas, escreve: “Do ponto de vista da narração
enquanto tal, estes nada mais são do que um dos métodos de retardamento épico: ao herói é
imposto um obstáculo, superado o qual ele obtém um meio para atingir os próprios
fins.”(1973,p.82) A narrativa de acervo épico faculta o recortar e a amplitude de sentidos. “O
tempo pode até parar, como no castelo da Bela Adormecida”, nos diz Calvino. A “dilatação do
tempo pela proliferação de uma história em outra” é uma característica da novelística oriental.
(CALVINO, 1994, p.50-51)Xerazade precisa protelar o fim de sua estória para ganhar mais
50
Ver apêndice 1.
74
74
tempo de vida. Para Calvino, a “divagação ou digressão é uma estratégia para protelar a
conclusão, uma multiplicação do tempo no interior da obra, uma fuga permanente.”
(CALVINO, 1994, p.59). É o que vemos tanto em Macunaíma, quanto em Hoje é Dia de
Maria, cheios de recursos como provérbios, adivinhas, desafios, para protelar o desenrolar da
estória. Tratando-se de uma série, cujos episódios foram acrescentados, vemos nossa pequena
heroína o tempo todo em fuga, e em todo episódio um gancho para o próximo
acontecimento, mostrando uma busca incansável, “onde o fim nunca termina”.
Tudo isso é muito barroco e carnavalesco. Como exemplo, os trocadilhos, presentes nas
perguntas de Asmodeu a Maria: “Cada casa tem quatro cantos, cada canto tem um gato, cada
gato vê três gatos.Quantos gatos tem na casa?” _ onde a pergunta é feita com rapidez. Esses
mesmos elementos estão presentes no “Desafio da Paca”: “Quem a paca cara compra, cara a
paca pagará”; (CARVALHO;ABREU, 2005, p.118) ou no desafio feito a Quirino, onde a rima
é o que mais importa:
Ôcê é cabra sem jeito
Um cinturão sem fivela
Uma casa sem ter gente
Uma porta sem tramela
Um sapato sem ter dono
Um anzol sem ter barbela
(ABREU; CARVALHO, 2005, p.199)
Os saltimbancos de Hoje é Dia de Maria são uma metalinguagem, teatro dentro da
representação dramática, o que fez com que a linguagem da minissérie fosse considerada muito
teatral, não-característica de um programa de TV. “Os saltimbancos aos quais Maria se junta
armam um palco cuja boca de cena tem uma moldura que remete aos antigos palcos da
Commedia dell’arte”, nos dizem Marques e Vidal (2005, p.6), e acrescentaríamos também
uma influência de um filme que marcou a geração dos anos 90, “A Viagem do Capitão
Tornado”, sobre os atores ambulantes no século XVI
51
. De acordo com Remo Cesarini (2006,
p.75),
No terreno do mágico
uma tendência a se utilizar, no âmbito narrativo,
procedimentos sugeridos pela técnica e pela prática teatral. Isso ocorre por um gosto
pelo espetáculo e por uma necessidade de criar no leitor um efeito de ilusão, que
também é de um tipo cênico.
Isso nos leva a pensar, como assinalou Linda Hutcheon, no que acaba acontecendo
quando uma performance teatralizada é adaptada para a
TV ou o cinema: “o artifício pode ser reconhecido e o realismo cinematográfico sacrificado
51
Ettore Scola, 1990, color., son., França/Itália.
75
75
para uma auto-reflexividade, ou o mesmo artifício pode ser naturalizado”(BRADY apud
HUTCHEON, 2006, p.46). No caso em análise, certamente a veia modernista do diretor
acabou optando por assumir o não-naturalismo, como o fez Joaquim Pedro de Andrade em sua
versão fílmica de Macunaíma. Ora, em Hoje é Dia de Maria, como assinalam Marques e Vidal
(2005, p.6), o domo
52
é “‘o grande palco’ que não esconde, ao contrário, exibe, mostra a sua
ficcionalidade”. Isto também, uma característica dos cinemas-novos de todo o mundo
53
.
Como disse o grande dramaturgo Tom Stoppard, “teatro trabalha com metáforas”
54
, e
são as metáforas de Hoje é Dia de Maria que tentaremos decifrar, num processo de
desnaturalização do realismo-naturalista tão caro à televisão. Há, por exemplo, numa cena do
episódio “A Guerra”, um coro de “soldados da limpeza” e um corifeu, característicos da
tragédia grega, e isto tudo, dentro do musical. As metáforas tornadas realidade, a “mágica
verbal”, tem um bom exemplo no episódio no qual Maria encontra uma das Parcas que quer lhe
cortar o fio da vida:
PARCA 2
Sua vida está por um fio.
Como num passe de mágica, a PARCA 2 faz aparecer o fio da vida de MARIA, ao
mesmo tempo que, com a outra mão, vai abrindo a tesoura cruel. MARIA percebe a
tempo, arregala os olhos em espanto e logo reage com força, puxando seu fio de
volta.
MARIA
Mai num há de corta! (ABREU, CARVALHO, 2005, p.510)
Outra característica que está por trás desse tipo de narrativa carnavalesca, como
Macunaíma ou Hoje é Dia de Maria, são os antigos sistemas de crenças e folclore popular.
Como já foi dito, um bom exemplo disso são os ditados populares:
PATO
E criança que se atreve, mete nariz onde não deve! Pedaço num é teco e pato não é
marreco! Sou um pato!
MARIA espanta-se.
MARIA
Tá loco, Chico! Desculpa!
PATO
“Desculpa” falô o mosquito que trombô com a aranha! E despois que apareceu
“desculpa” ninguém mais apanha!
(...)MARIA não contém o riso. O PATO volta-se, bravo.
52
Palco do Rock in Rio, de forma redonda, que foi utilizado como estúdio para os cenários da microssérie.
53
Nos anos 60/70, a Nouvelle Vague Francesa encabeça um movimento que se repetirá em vários países, no caso
do Brasil, com o cinema novo, de quebra do padrão hollywoodiano de fazer cinema, revelando os dispositivos do
fazer cinematográfico ao espectador, quebrando assim a ‘quarta parede’, como Brecht o fizera com Aristóteles.
54
Entrevista concedida ao programa Roda Viva da TVE na 6ª. Flip, julho de 2008, Paraty.
76
76
PATO
Tão rindo de quê? Tão rindo de quê? !! Muito riso, pouco siso, na porta do paraíso.
Quem riu pro Pai Eterno nem chegô, já foi pro Inferno!
(ABREU; CARVALHO, 2005, p.392-393)
Voltemos à sinopse da estória. Maria foge de casa, em direção às “franjas do mar”: na
geografia de Hoje é Dia de Maria, do sertão ela segue para o agreste, mas depois neva, e
estamos numa paisagem da Serra Gaúcha. Quando ela atinge o mar, está próxima de casa, no
sertão nordestino, mas seu sotaque é do interior de São Paulo. Não gica no espaço, assim
como no tempo, pois este é relativo, hoje e ontem se misturam. Quando Maria volta para casa,
a estória retorna, não ao começo, mas antes ainda, por erro de Asmodeu, quando sua mãe era
viva e seus irmãos não haviam ‘se perdido no mundo’. O Ciganinho é o Amado ainda criança,
antes do encantamento e o marido da Madrasta ainda não tinha morrido.
Figura 12 - A Madrasta e seu primeiro marido. Foto de
Renato Rocha Miranda.
Linda Hutcheon (2006) considera que as estórias, recontadas de formas diferentes em
ambientes novos, são como genes adaptáveis através de mutações em seus descendentes. O
que ela está chamando de “ambientes novos” são outras mídias, mas podemos parafraseá-la e
colocar esta frase no sentido em que Cascudo (1978) a diria, ou seja, em novas geografias e
noutra era. Como exemplo, “os índios com seus rituais, os cangaceiros que sobrevivem no
sertão”, são personagens populares que são “transportados de um tempo e espaço outros que se
fazem atuais.” (MARQUES; VIDAL, 2005, p.12) Verificamos mais uma interrelação entre
Macunaíma e a microssérie: assim como a perseverante heroína Maria, o herói sem nenhum
caráter “transcende o espaço e o tempo” (RIEDEL,1986, p.292).
77
77
Ainda na sinopse, Quirino se torna um falso-herói quando, por ciúme, resolve acabar
com o encanto do Pássaro Amado e o prende numa gaiola, impedindo-o de voar e fugir do sol.
Figura 13- Desenho de Negreiros para o livro – Amado/Pássaro Incomum preso
Maria adulta, tendo perdido seu amor, reencontra seu pai. O pai morre e mais uma vez
ela reencontra o Pássaro Incomum, agora congelado. A chavinha que desde menina guardara,
que fora disputada com Asmodeu e com a Madrasta, finalmente encontra sua finalidade e abre
o coração do Amado. Asmodeu, furioso com mais uma vitória da heroína, a faz voltar a ser
criança. Sob feitiço de Asmodeu, ela perdera sua meninice, transformando-se em mulher muito
rapidamente. No capítulo “Neva no Coração” ele desfaz o que acontece no episódio “Maria
perde a infância”. Asmodeu ainda tenta mandar um feitiço para Ciganinho, mas Maria, através
de seu espelhinho, como Oxum na lenda afro-brasileira, manda de volta o reflexo e o feitiço
vira contra o feiticeiro, e Asmodeu vira Zé do Riachim.
78
78
Figura 14 - Maria/Oxum com seu espelhinho reflete de volta o feitiço. Foto de Renato Rocha Miranda.
Vamos considerar a Primeira Jornada da minissérie como sendo o primeiro
movimento proppiano e a Segunda Jornada como o segundo movimento. Como dissemos
anteriormente, em dramaturgia, o conflito é peça fundamental. Se ele se resolve, outro conflito
tem de despontar. Maria adulta volta à infância, no fim da Primeira Jornada, e a Segunda se
inicia com Maria em frente ao mar, exatamente onde terminara a primeira. Ela encontra os
encantados Pato e Cabeça, que vão lhe encaminhar até o Gigante. Escalando-o, ela cai em suas
entranhas e dentro encontra sua ajudante Carvoeira. Maria entra na cidade, e conhece seu
grande amigo Dom Chico. Terá outros amigos, como Copélius e a Boneca, mas logo cai nas
garras de Asmodeu Cartola, agora transformado em dono de cabaré. Ela novamente se torna
artista por acaso outro marginal da sociedade mas foge de seu trabalho escravo. A guerra
intervém e muda o curso de todos os personagens. Maria é perseguida por vários Asmodeus,
inclusive o gato-demônio-arrependido, Asmodeu Piteira enfeitiçado, e por um Asmodeu
Marinheiro gringo. Maria seu amigo ser condenado por Asmodeu-juiz e Asmodeu-Rábula e
subjugado pela Asmodéia. Maria mais uma vez perde quem ama para a morte, que a desafia na
figura da Senhora do Limiar. Porém, consegue achar o caminho de casa, com a Senhora de
Dois Mundos, sua madrinha – aqui a fusão de dois mundos, o da realidade e da poesia,
característica do realismo mágico. Ao final, vemos que se trata de um sonho de uma menininha
delirante de febre, que ouve estórias de sua avó.
Seguindo a lógica de Benjamim (1994), no mito três identidades: a do personagem
do irmão caçula, que nos mostra como são ilimitadas as possibilidades do ser humano quando
ele se afasta da pré-história mítica; é o que acontece com Maria, a caçula da família, e assim
com Macunaíma; o personagem do herói que saiu de casa para aprender a não ter medo
79
79
mostra que as coisas que tememos podem ser devassadas; temos, igualmente, os dois
personagens supracitados nesta situação, o anti-herói andradiano e a heroína proletária. Por
fim, há o personagem do animal que socorre uma criança mostra que a natureza prefere
associar-se ao homem que ao mito: o Pássaro Amado está sempre ajudando Maria em seu
caminho.
Segundo Campos, (1973, p.274) é a “narratividade como fato textual o verdadeiro e
extremo protagonista” de Macunaíma. Por extensão, podemos dizer o mesmo de Hoje é Dia de
Maria. Assim como, de acordo com Haroldo de Campos (1973, p.271), “o mundo do herói
andradiano parece existir para terminar num livro”, também Hoje é Dia de Maria é uma estória
para ser lida, não apenas para ser apreciada enquanto programa de TV. Para Campos, (1973,
p.274) “Mário de Andrade, o narrador, assumindo a instância do discurso” – o que para
Chiampi (1980) é um recurso do maravilhoso “recolhe esse tale of the tribe, pega na violinha
e canta na fala impura as frases e os casos do herói de nossa gente”. Em Hoje é Dia de Maria,
Soffredini, Carvalho e Abreu também terminam “o conto num canto”. Ou como nos disse
Campos, citado por Dirce Cortes Riedel, sobre Macunaíma:
O livro apresenta, como as rapsódias musicais, uma variedade de motivos populares.
O processo musical da construção, como no do estribilho “Pouca saúde e muita
saúva os males do Brasil são” tem o primitivismo do estilo poético das velhas
narrativas heróicas. Sendo o livro obra de um único autor, poderia ser obra coletiva,
pois que a técnica de sua construção é a usada pelo povo. (RIEDEL, 1986, p.293)
Também na minissérie, temos um paralelo com o final da rapsódia de Mário, onde
temos “o contador de histórias da tradição oral, que conta não na fala pura da tribo, mas na fala
impura do homem que vem de uma cultura híbrida, urbana, livresca, a que salva do
esquecimento.” (GOMES, 2006, p.8) O roteiro da minissérie usa como palimpsesto de toda sua
estrutura a obra máxima de Mário de Andrade, e, assim como o final da rapsódia de
Macunaíma são, como disse Campos (1973, p.274), “rasuras de um palimpsesto”, lembrando
Mallarmé, “em Macunaíma, em Grande Sertão: Veredas, em Finnegans Wake, em Mallarmé”,
a estrutura de um livro circular, onde o fim nunca termina. Também em Hoje é Dia de
Maria isto acontece, e entra em choque com a posição proppiana de que um conto campesino
tem uma estrutura linear. Neste caso, entramos nas construções em perspectiva dos contos
orientais das Mil e Uma Noites...
Ao final do filme oriental dirigido por um monge budista, A Copa, um garotinho
pergunta a um monge: “Você não vai me contar o final da estória do coelhinho?” E o monge
lhe responde: “Que mania que vocês têm de final!"
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Figura 15 - Maria retorna a um tempo anterior ao início da estória. Foto de Renato Rocha Miranda.
3.2.2.3 – Bandeira e Drummond.
Da poesia, temos o poema “Meninos Carvoeiros”, de Manuel Bandeira, representado
na personagem supracitada da Menina Carvoeira e seus companheiros na minissérie, onde
apenas o tema de Bandeira é usado, não há apropriação de seus versos. No programa editado
(não está no roteiro), logo antes de Maria conhecer os carvoeiros, ela canta “Cai, cai, balão”,
que nos remete a outro poema de Bandeira: “Na Rua do Sabão”.
Marcus Mazzari (2008) faz uma análise desses poemas, ambos presentes no livro O
ritmo dissoluto, escrito quando Bandeira, marcado pela pobreza, muda-se para a rua do
Curvelo, na década de vinte, onde, em palavras do próprio Bandeira, pelo “fundo da casa”
podia observar “a pobreza mais dura e mais valente”, pois “foi na rua do Curvelo que reaprendi
os caminhos da infância” (BANDEIRA apud MAZZARI, 2008). Para Mazzari (2008, p.2), são
ambos “poemas que se assentam na observação do mundo da infância, em que Bandeira
compartilha liricamente dos acontecimentos tematizados.” Também aponta que não sabemos se
a observação de Bandeira foi imaginária ou real, mas seus versos acompanham o ritmo dos
meninos, em sua “marcha mais composta de ida, mais dissoluta na volta. As ‘crianças
raquíticas’ parecem integradas na ‘madrugada ingênua’ e fundidas com os ‘burrinhos
descadeirados’ que vão tocando” (Mazzari, 2008, p.4). Ao contrário de Soffredini, que usa na
minissérie a linguagem do caipira,
A linguagem do poema, porém, não é de forma alguma a linguagem destas crianças,
Bandeira aqui dispensa um tratamento simbólico, e os verdadeiros questionamentos
que “Meninos Carvoeiros” possa suscitar terão encontrado resolução na dimensão
81
81
estética em que se inscreve enquanto poema.Seria lícito contemplá-lo a partir da
própria realidade tematizada e liricamente transfigurada. (MAZZARI, 2008, p.10)
Ainda que seja a indignação social a dar origem ao poema, Bandeira dispensa um
tratamento simbólico ao tema, segundo Mazzari (2008, p.5): uma “profunda empatia do
poeta com os meninos carvoeiros, que refulgem na esvoaçante imagem dos espantalhos
desamparados” (grifo nosso), expressão que dá o título ao artigo de Mazzari. Apesar de chamar
a atenção para o trabalho infantil, o poema “meninos carvoeiros” mostra um poeta que se
surpreende ao flagrar as crianças em sua capacidade de tirar um prazer lúdico do pesado fardo.
Ainda segundo Mazzari,
Esse poema não questiona e nem sequer roça a questão social de que consegue
extrair lirismo tão pungente. O poeta que se voltou às crianças excluídas e exploradas
não acusa nem denuncia, tampouco poder-se-á vislumbrar a “emoção social”. Não se
pode, porém, exigir do poema considerado, mais do que o gesto amorosamente
solidário que Bandeira estende aos carvoeirinhos que, com sua ética ingênua, sua
pequena humanidade sofrida, anima esses poemas (o qual) suscita nos leitores o
sentimento expresso por rio de Andrade (em cartas a Bandeira), a aspiração por
um estado social mais justo e solidário (MAZZARI, 2008, p.11).
Da mesma forma, como vimos na fala do diretor Luiz Fernando Carvalho no
subcapítulo sobre a moral ingênua e tempo não-histórico, podemos dizer que a minissérie não
faz uma inserção política e histórica, apenas tem uma empatia lírica para com estas crianças,
suscitando, no espectador, o despertar para uma triste e crônica realidade social brasileira.
o poema “O Lutador”, de Carlos Drummond de Andrade (1969, p.67), tem duas
estrofes adaptadas numa canção. Os versos que não estão em itálico foram compostos pelos
autores da microssérie e nos remetem também ao poema “Sonho de um Sonho”, do mesmo
autor:
DOM CHICO CHICOTE
“Lutar com palavras
É a luta mais vã.”
MARIA E CORO
É pelos sonhos que vamos.
É pelos sonhos que vamos.
DOM CHICO CHICOTE
“No entanto lutamos
Mal rompe a manhã”.
(ABREU;CARVALHO,2005, p.473) (grifo nosso)
Como nos lembra Antônio Houaiss (1969), a metalinguagem é uma constante na obra
de Drummond, que está sempre “à procura da poesia”. Na minissérie trata-se da luta pela
palavra, não da luta com a palavra. Em sua introdução ao livro Reunião (DRUMMOND,
1969), Houaiss situa o universo drummondiano
82
82
(...) num mundo próximo ou tão torpemente mecanizado, automatizado, automatado,
matematicamente previsível, tanto que a poesia nele não de ter um lugar possível;
ou tão embrutecido, oprimido, que não haverá lugar para o poeta esse grande
heterodoxo. (HOUAISS, 1969, p.xxix)
A profissão do poeta está em jogo em Hoje é Dia de Maria, Segunda Jornada, e quem
a representa é D.Chico Chicote. Como morador de rua e sonhador, este personagem inspirado
no Cavaleiro da Triste Figura enfrenta, junto com Maria, um mundo mecanizado cheio de
bonecos, de guerra e de autoritarismo. É essa qualidade de Drummond, lembrando Chaplin em
“Tempos Modernos”, que os autores da minissérie resgatam, inserindo seu poema neste
momento da trama.
3.2.2.4 – Monteiro Lobato.
Temos aqui mais um caso de mise-en-abîme, pois Lobato trabalhou o tempo todo com
intertextualidades e também ele “enquadrava os temas universais na realidade nacional,
caipira.” (ALMEIDA, 1986, p.213, v.6). O universo de Maria se parece com o universo de
Narizinho e de Emília. O Picapau Amarelo traz os personagens principais de Dom Quixote; em
Hoje é Dia de Maria, Quixote é D.Chico Chicote, e algumas vezes a própria Maria se identifica
com o fidalgo de Cervantes, assim como acontece com Emília. Não podemos deixar de
assinalar aqui a influência que com certeza sofreu o diretor e sua equipe da série brasileira “O
Sítio do Picapau Amarelo”, da Rede Globo
55
.
Figura 16 - Emília e Visconde como D.Quixote e Sancho
Pança. Ilustração de Manoel Victor Filho para o livro D.Quixote das Crianças de Monteiro Lobato.
55
Série produzida pela TVE/MEC/ TV Globo de 1977 a 1986. 2ª. Versão de 2001 em diante. Versão original: TV
Tupi, de 52 a 62. TV Cultura: 1964. TV Bandeirantes: 1967.
83
83
Lembra-nos Marina de Andrada Procópio de Carvalho (1972), em seu prefácio sobre
Monteiro Lobato, que em Reinações de Narizinho (LOBATO, 1986) a menina do nariz
arrebitado ganha um vestido feito pela costureira das fadas. Vejamos sua descrição:
Era enfeitado com peixinhos do mar não de alguns peixinhos só, mas de todos os
peixinhos (...) e esses peixinhos-jóias não estavam pregados no tecido. Estavam
vivinhos, nadando na cor-do-mar. De modo que o vestido variava sempre. (...) Não
parava um instante de faiscar e brilhar, e piscar e furtar-cor, porque os peixinhos
não paravam de nadar nele. (...) E quando perguntaram a D.Aranha costureira como
ela cortara aquele tecido tão lindo, ela respondeu: “Com a tesoura da Imaginação”.
“E com que agulha cose?”“Com a agulha da Fantasia.” “E com que linha?” “Com
a linha do Sonho.”( CARVALHO, 1972, s/n) (grifo nosso)
Este modelo vem a ser igual a um dos vestidos que a princesa ganha da vaquinha em
Maria Borralheira e de Dona Labismina no conto homônimo. Teria Lobato se inspirado neste
conto popular, assim como Soffredini? Como dissemos, Maria, quando sai de casa, está
vestida assim também, no texto de Soffredini, mas de forma simples, sem o brilho e as jóias.
Monteiro Lobato trouxe para o Brasil clássicos, sendo adaptador, como em Dom
Quixote das Crianças, ou tradutor, como em Alice no País do Espelho, de Lewis Carrol, que,
por sua vez, também era, como poeta, parodiador, segundo Eduard Guiliano
56
(1982, p.xv).
Lobato inspirou-se em Alice no País das Maravilhas – presente na minissérie nas flores
gigantes do cenário, citação talvez ao filme de Disney para escrever Emília no País da
Gramática e Aritmética da Emília; e também o parodiou na Chave do Tamanho e em
Reinações de Narizinho. Isso nos dá o gancho para as intertextualidades da literatura mundial.
Figura 17 Maria, vestida de piano-baby, finge ser boneca para fugir da guerra. Um paralelo com
Emília, com Pele-de-Asno, e, como veremos adiante, com Copélia. Foto de Renato Rocha Miranda.
56
Remembered as a nonsense poet (…) he did not write nonsense literature but rather parodies and absurd poems
and stories. (Tradução nossa: “lembrado como um poeta do nonsense, ele não escreveu literatura nonsense, mas
paródias e estórias e poemas absurdos ”.
84
84
3.2.3 – Literatura universal e musicais em Hoje é Dia de Maria
O roteiro de Abreu e Carvalho traz também intertextualidades extraliterárias que
penetraram o inconsciente coletivo brasileiro, como o título do livro de não-ficção Tudo o que é
sólido desmancha no ar, de Marshall Berman (1987), que marcou a geração dos anos 80,
presente em fala de Dom Chico Chicote (ABREU;CARVALHO, 2005, p. 454). Porém, no
terreno da literatura mundial, Hoje é Dia de Maria tem a retórica barroquista quando utiliza
citações desde Jonathan Swift a Antônio José da Silva, o Judeu. Se uma coerência entre
estes autores, podemos dizer que é o maravilhoso. Também alguns deles, como Silva e Carrol,
trabalharam para crianças. A estilização que a minissérie faz é em alguns casos apenas
temática, como em Lewis Carrol e Swift, em outros casos, formal, como acontece com os
personagens de “Homem de Areia” de Hoffman e com Dom Quixote. Quanto às músicas, às
vezes é apenas usada uma melodia conhecida, ou seja, é feita uma paródia verbal, mas em
outras até a letra se parece, sendo uma paráfrase. O que elas têm em comum é o fato de serem
canções de musicais. Vejamos as principais citações literárias e musicais:
3.2.3.1 – Carrol, Cervantes, Hugo, Silva, Swift.
As influências artísticas que coexistem na minissérie não têm nada de realistas. Para
citar um caso de hipertextualidade pictórica, Renato Cordeiro diz, inspirado no caderno de
desenhos de Luiz Fernando Carvalho
57
com os personagens da Segunda Jornada, que
(...) as referências para a criação de Dom Chico Chicote remontam a influências que
vão do Bispo do Rosário aos livros da tela “O Bibliotecário”, do italiano Giuseppe
Arcimboldo. A bravura e o espírito guerreiro são inspirados em Joana D’Arc, Dom
Quixote e outros heróis medievais. O personagem Asmodeu Piteira, o oponente de
Maria, que desde a primeira temporada representa o demônio, o Mal em seus
aspectos polimórficos, é, no mundo urbano, mistura de mestre de cerimônias,
ilusionista, clown, figura inspirada nas obras de Toulouse-Lautrec. (GOMES, 2006,
p.4)
Em Hoje é Dia de Maria, o personagem Dom Chico Chicote é uma citação desse
grande personagem de uma obra que, em si, é um caso de intertextualidade, como apontou
Hutcheon em capítulo anterior. A origem deste personagem (Chico Chicote) vem,
possivelmente, da peça de Soffredini O Grande Dom Quixote de La Mancha e o Gordo
Sancho Pança (s.d.)que, por sua vez, foi inspirada na peça para marionetes Dom Quixote e
57
Disponível no site http://hojeediademaria.globo.com ; acesso em 25/11/08.
85
85
Sancho Pança, de Antônio José da Silva,(1985) o Judeu, inspirado por sua vez em Dom
Quixote, de Cervantes (1983), que, por sua vez, é uma paródia do Amadis de Gaula,(1942)
famosa novela de cavalaria, inclusive transformada em teatro por Gil Vicente (1963). Ou seja,
temos novamente um fluxo intertextual narrativo, que coloca em cadeia referências, culturas
e tempos diversos.
Dentre outros personagens inspirados em Dom Quixote, temos a cigana
Alonsa/Rosicler, que é personagem correspondente a Aldonça/Dulcinéia del Toboso e tem um
pouco da cigana Esmeralda do Corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo, conhecida das
crianças pelo desenho da Disney, e que aparece defendendo D.Chico como Esmeralda defende
Quasímodo. “A Cabeça encantada”, um dos episódios do livro II de Cervantes, pode ter sido a
inspiração para a Cabeça falante com cara de boneco de titereiro em Hoje é Dia de Maria. Vale
lembrar que o titereiro espresente em Dom Quixote, também. no especial de Soffredini a
Caveira-de-mamão, que é a cabeça da madrasta perseguindo Maria.
Vejamos outras citações que encontramos no roteiro: assim como em Alice no País do
Espelho temos o Cavalo Branco e o Cavalo Negro do xadrez, também em Hoje é Dia de
Maria um Cavaleiro Branco e um Cavaleiro da Noite. Em Alice, quem conduz a personagem-
título ao seu reino é o Branco, mas quem leva Maria para casa é o Cavaleiro da Noite. Em Dom
Quixote, temos este personagem no Cavaleiro do Bosque/dos Espelhos/da Branca Lua, que são
o mesmo personagem travestido em outros.
Figura 18 - Cavaleiro da Noite leva Maria para o limiar. Foto de Renato Rocha Miranda.
O Gigante, presente em Hoje é Dia de Maria, é Pietro Pietra em Mário de Andrade; são
os bandeirantes em Cassiano Ricardo; em Dom Quixote, são os moinhos de vento e as ovelhas.
É também uma referência intertextual a Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift(1970) e à
86
86
Emília pequenina de A Chave do Tamanho em relação ao Visconde de Sabugosa. Maria
liliputiana é o profeta Jonas, na barriga do Gigante/baleia
58
, que é a entrada para a cidade.
Renato Cordeiro Gomes (2006, p.9) vê uma fragilidade
(...) na menina que é devorada pela cidade, pelo Gigante, associado à idéia de uma
sociedade estagnada, dominadora, opressora, onde se encontram várias formas de
Asmodeus (o Mal). A corrupção dos poderosos, a exploração de menores, a
desigualdade social, o consumismo, a miséria e a guerra são temas que se articulam
na trama para atualizar matrizes culturais dadas pelos contos da cultura popular.
O Gigante na minissérie é a guerra, e podemos trazer esta referência para a realidade
brasileira da guerra do tráfico, entre as gangues, com as milícias e com a polícia. Foi a maneira
que os autores encontraram para falar do sacrifício dos inocentes nas grandes cidades, cujos
algozes não encontram punição.
3.2.3.2 – Ésquilo/Dickens.
De acordo com o roteirista/dramaturgo Luis Alberto de Abreu
59
, também foi utilizada
referência a Ésquilo em Prometeu Acorrentado, a cena de Io e Prometeu no encontro de
Maria com a Menina Carvoeira, sendo Maria análoga a Io e Prometeu sendo a Carvoeira. Io é
a vítima dos deuses, assim como Prometeu, e é arrastada de um país a outro por Hera, a esposa
de Zeus. Segue a transcrição do livro, apenas as partes que remetem à tragédia grega:
CENA 14 A
AGRESTE/FORNALHAS/EXTERIOR/NOITE
MENINA CARVOEIRA
Quem é ocê, menina, que caminha quando todo o povo dorme?
MARIA
Sou Maria e cumpro sina de viajá em direção do mar. Mai o cansaço é tanto que
tenho inté inveja de ocês, aquietados no seu canto.
MENINA CARVOEIRA
Menina, tome tento, que inveja nóis tem é de ocê que caminha solta como o vento.
MARIA
E quem prende ocês?
MENINA CARVOEIRA
O trabaio. Sina nossa é labuta de fazê carvão. O pão nosso mais o feijão a gente tira é
dessa luta. (...)
MARIA
58
Segundo nota da profa.Márcia de Morais, o Gigante é também Gargântua, de Rabelais.
59
Entrevista concedida via e-mail através da Globo Universidade, em agosto de 2008.
87
87
Entonce, penso que não vale a pena conhecê um mundo por essa forma. Penso inté se
vale a pena cumpri minha jornada. (...)
MENINA CARVOEIRA
Desejo meu é o mundo e os livre pra percorrer essas distância. Mai, se odiz
que num vale a pena, o que é que eu desejá? (...) Bora caminha, menina, pra
de a gente invejá seu passo ligeiro. Pra de a gente sabê que arguém busca outro
rumo, outra vida nas franjas do mar! ´Bora caminhá, menina, pra gente desejá um
dia tomem podê caminhá.
MARIA se põe de pé e, animada pela MENINA CARVOEIRA, começa a se
distanciar.
MENINA CARVOEIRA
Inté mais vê, menina! Boa viagem! Vai na frente, ensinando o caminho pra quem
não pode partir. (...) Oi, mais uma coisa, menina. Leva nossa história pras franja
do mar! Pede ao povo de que não esqueça da gente. (...) Inté mais ver! (ABREU;
CARVALHO, 2005, p. 80-84)
Vemos aí o paralelismo entre Maria e Io: ambas caminham fugindo de uma perseguição
e têm de ir até o mar. A Menina Carvoeira é Prometeu, presa pelos grilhões do trabalho por
Asmodeu/Vulcano, o deus do fogo; ela aconselha a Maria, que, por um momento, quer desistir
da vida que a espera, a prosseguir em sua sina.
Prometeu foi o criador do homem, lhe deu o sopro da vida e foi para o homem que ele
roubou o fogo da inteligência do carro de Apolo. Prometeu é também o doador da “Memória, a
mãe de todas as artes, com a qual os homens conquistaram suas mentes” (GASSNER, 1974,
p.38). Maria não vai se esquecer do que viu, e se reencontrará mais tarde com a Carvoeira, na
Segunda Jornada, que volta a lhe mostrar a realidade.
Figura 19 - Maria e a Carvoeira no deserto do Sol a Pino. Foto de Renato Rocha Miranda.
88
88
É, portanto, significativo que este mito tenha sido lembrado exatamente no trabalho das
minas de carvão. De acordo com observação de Marques e Vidal (2005, p.12), as minas de
carvão não existem no Brasil, aqui apenas a queima do carvão vegetal, que analisamos no
poema de Manuel Bandeira; mas elas apontam que minas são exploradas no trabalho de
Charles Dickens em Hard Times, assim como a infância pobre em Oliver Twist, outras
possíveis citações intertextuais.
3.2.3.3 – Shakespeare.
Mais próxima da paráfrase é a cena do encontro do Pai com Maria no espetáculo dos
saltimbancos, que remete ao encontro do Rei Lear com Cordélia, na tragédia homônima de
Shakespeare, citação também indicada por Luís Alberto de Abreu
60
. Cascudo (1978, p.223) nos
relata que, numa das versões de Cinderela, a menina é uma figura de Cordélia:
Em ‘Valor do
Sal’, a princesa diz amar seu pai como ama o sal, variante clássica e popular do Rei Lear.”
Reproduzimos aqui apenas as partes em comum da minissérie com a tragédia shakespeareana:
Lentamente, aquela figura alquebrada de cabelos brancos vai se aproximando (...). O
PAI (...) força a vista, mas parece não reconhecer ninguém. Sente os olhos se
encherem de lágrimas.
PAI
Num reconheço, mai a voz... depois de tanto ano parece dela. Num me engane,
coração! Num farseia com esse veio... (...)
MARIA
...e meu pai hei de encontra. (...)
PAI
É ela! Tenho tanta certeza como tenho medo de ela não me perdoá.(...) Meu zóio
quaje cego pelo sol...(...) Qué poisá nos seus óio, Maria...(...) Um úrtimo e doce
oiá...(...)
MARIA aquele homem velho e alquebrado que sobe ao palco. Por um momento,
tem um estremecimento e ralenta a declamação. (...) O PAI se aproxima, ganhando o
centro do palco. (...) O PAI está tomado pelas lágrimas e pela emoção. Balbucia.
PAI
Maria...minha fia!
MARIA, parada, desata num choro mudo ao reconhecer o PAI, que no centro do
palco também chora. (...) Afinal, o PAI cai de joelhos.
PAI
Se inda tenho o seu amor, óia essa sincera dor e o remorso de seu pai. Na vida de
tanto tropeço, perdoa, fia, aquele que cai e que busca recomeço.
60
Ver apêndice 2, entrevista com Luís Alberto de Abreu na íntegra.
89
89
MARIA
Levanta, pai!
PAI
Sua mágoa tem razão, motivo de réiva ocê tem de sobra. Sei que mereço caminhá no
desterro...
MARIA se aproxima do PAI, emocionada, em lágrimas.
MARIA
Razão num tenho, motivo argum. Amor meu, pai, é empenho de apagá erro, dissorvê
mágoa. Amor é água pura que lava.
MARIA ampara o PAI.
MARIA
Levanta, pai! Me dê sua véia mão pra eu beijá!
MARIA beija as mãos do PAI.
PAI
Oh, Deus! Agora já pode me levá !
Abraçam-se. (...)
PAI
Num liga pro que eu falo não, fia! Cabeça minha já ficando sem rumo certo. E
tristeza já foi muita em sua vida. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.256-261)
Marques e Vidal (2005, p.5) apontam o estudo de Leyla Perrone-Moisés em que “Os
mitos nacionais e populares como matéria-prima a ser recriada”, foram muito usados por
Shakespeare. Nós, antropofagicamente, incorporamos o bardo na nossa cultura,
canibais/Calibans que somos, estilizando-o e ao mesmo tempo homenageando-o com uma
paráfrase de suas peças, como aliás o fizera antes Akira Kurosawa (1985) no filme “Ran”,
baseado no Rei Lear. Godard, em sua livre adaptação cinematográfica, já utiliza uma Cordélia
adolescente, na verdade, como disse Thais Nogueira Diniz (1998), dividida entre duas atrizes.
Porém, é no filme “Rei Lear” de Peter Brook que vamos encontrar alguma semelhança com a
cena da minissérie, presente no cenário. No capítulo “Neva no Coração”, Maria atravessa um
deserto coberto de neve à procura do Pai, e depois do Amado. No filme de Brook, segundo
Reddington (1973, p.370),
depois do banimento de Cordélia nós mudamos para externas crepusculares de
inverno, com frios cortantes, sem árvores. A leve queda de neve que branqueia a
cabeça de Kent toca a amarga volta para casa de Lear. Isto é seguido por uma
tempestade magnífica e, à medida que a loucura de Lear alcança sua rara
iluminação, o sol brilha e sopra uma brisa. Finalmente, a mesma praia é alterada para
a entrada final de Lear carregando o corpo de Cordélia. (tradução nossa)
61
61
After the banishing of Cordelia we remove to winter twilight outdoors, sharpening cold (and) no tree. The light
fall of snow which whitens Kent´s head and touches the bitter homecoming of Lear(…) This is followed by a
90
90
No roteiro de Hoje é Dia de Maria, o personagem do Pai, próximo da morte, é atraído
pela imagem de sua esposa morta. Em sua senilidade, tem momentos de lucidez e de
desorientação, como Lear. É transformado em palhaço na representação dos saltimbancos,
pouco antes de seu fim. Outra questão interessante é que, segundo Lisa Jardine (1996, p.115-
116), a palavra amor, no contexto shakespeareano, está em transição
(...
)
de uma
formalmente reconhecida designação de dever e afeição em direção à
figura de autoridade que governa a vida de alguém para uma direção de emoção
livremente desejada e mais auto-centrada, gerada por um vínculo de obrigação não-
oficial e sem débito. Uma vez que a obediência é esperada por parte da mulher,
independente de ser dirigida em relação ao pai, irmão ou tio (na ausência do pai), ou
marido, um momento de crise surge no momento de transferência.
(
Tradução
nossa)
62
Nossa Maria, nos capítulos que se seguem entre o reencontro com o Pai e a perda do
Amado, divide seu amor entre os dois. Seu amor filial é condescendente, como o de Cordélia;
ela perdoa o pai e o ama, mas é um amor que vem do dever e da obediência que aprendera
quando menina.
3.2.3.4 – Hoffmann.
Na Segunda Jornada, vemos o personagem Dr.Copélius, o dono da loja de conserto de
bonecas que também lembra Gepetto, o “pai” de Pinóquio e a Boneca. Estes personagens
são uma referência direta aos personagens Doutor Coppelius e Olímpia do conto fantástico “O
Homem de Areia, de Hoffman (CALVINO, 2004). A diferença é que o pai de Olímpia, a
boneca do conto, chama-se Spalanzzani, e Coppélius é o advogado amigo do pai de Natanael, o
protagonista da estória.
CENA 21
LOJA DO DR. COPÉLIUS/ (PAISAGEM 1)
O DR. COPÉLIUS trabalha em uma bancada e, num esmeril, usina a parte metálica
de um braço da BONECA. Verifica com cuidado o resultado do trabalho e vai a uma
mesa onde está sentada a BONECA, inanimada, de olhos fechados. COPÉLIUS
prende nela o braço e depois dá-lhe corda com uma chavinha presa às costas. A
terrific thunderstorm and, as Lear´s madness achieves its rare clarity, by bright sunlight, (it) breezes. Finally the
same beach alters for the final entrance of Lear bearing Cordelia´s body.
62
…from a formally acknowledged designation of duty and affection towards the authority figure who governs
one’s life to a more self-centred, freely willed directing of emotion generated by a bond of unofficial obligation
and indebtedness. Since the obedience is expected from the female, regardless of whether it is directed towards
father, brother or uncle (in the absence of father), or husband, a moment of representational crisis arises at the
point of transfer.
91
91
BONECA abre os olhos e começa a cantar. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.422-
423)
Figura 20 - Boneca, personagem extraída de Hoffman.Foto de Renato Rocha Miranda.
Também em Hoffmann, em “As aventuras da noite de São Silvestre”, filmada pelo
cinema expressionista alemão, vamos encontrar a estória (dentre outras) de um homem que
teria vendido a sombra ao diabo, com o mesmo personagem da novela de Adalbert Von
Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlemihl (CESARINI, 2006, p.29), e cujo tema é
tão caro aos alemães, desde Göethe com seu O Fausto (1994). A venda da sombra é um dos
temas que vamos analisar nesse subcapítulo especial sobre o duplo em Hoje é Dia de Maria.
3.2.3.5 – O “duplo” em Hoje é Dia de Maria:
De acordo com Luís Alberto de Abreu
63
, Hoje é Dia de Maria trabalhou com o universo
dos contos fantásticos. Muito presente na minissérie é o tema do duplo, recorrente na literatura
universal fantástica. Para Eco (2003, p.212), “a presença do sósia é quase obrigatória em um
romance barroco”, e, no caso do maravilhoso e do fantástico, mais ainda. No cinema e na
televisão, mesmo quando não havia a possibilidade dos efeitos especiais digitais, a adaptação
de textos fantásticos, por exemplo, instigava os cineastas no século XIX, como George
Mélies (1902) em sua Viagem à Lua, e continuou sendo um processo recorrente para o cinema
surrealista e expressionista alemão e hoje para os filmes de terror ou de cineastas cult. Assim
também a literatura vem trabalhando o fantástico através da história até a contemporaneidade,
63
Entrevista concedida ao site da minissérie, disponível em <http://www.hojeediademaria.globo.com/>, acesso
em 23/11/08.
92
92
como vemos desde Edgar Alan Poe, Hoffmann, Gaultier e Mérimée a Isabel Allende, Julio
Cortázar, Jorge Luís Borges, Rubem Fonseca, Lígia Fagundes Teles e Murilo Rubião, para
citarmos alguns brasileiros. Bakhtin (1997, p. 28-29) revela o fenômeno habitual das
personagens duplas em Dostoiévski, como sendo uma sua particularidade, pois escrevia
“obrigando as personagens a dialogarem com seus duplos, com o diabo, com seu alter-ego e
com sua caricatura”.
Segundo Le Goff(1983, p.20), há “uma relação entre o espelho, símbolo da duplicidade,
e o maravilhoso” no título do livro de Pierre Mabille sobre o maravilhoso, Le Miroir du
Merveilleux. Segundo Cesarini (2006, p.83),
o desdobramento, meos e sósias, a duplicidade de cada personalidade, tudo isso é
tema já muito desenvolvido no teatro, seja no trágico ou no cômico, mas também nas
narrativas de todos os tempos. Entretanto, no fantástico o tema enriquece por meio
dos motivos do retrato, do espelho, das muitas refrações da imagem humana, da
duplicação obscura que cada indivíduo joga para trás de si, na sua sombra.
Para os românticos alemães, como Hoffmann, reflexos de espelho e sombras se
confundem. De acordo com Junito Brandão (1987), a sombra tem função ambivalente, que
possui qualidades comuns à luz e às trevas, assim aflorando o problema do bem e do mal. A
força da fertilidade da sombra é associada à luz geradora da vida. “Possui instintos normais e
impulsos criadores”(BRANDÃO, 1987, V.II, p.187). Sua força curativa é exaltada em muitas
culturas, nas quais ela se acha imbuída de mistério e sobrenaturalidade. Para os latinos, a
sombra, umbra, tem seu lado negativo: são os “aspectos ocultos, reprimidos, desfavoráveis da
personalidade.” estamos no terreno da magia, do espiritual, característica apontada como
sendo do maravilhoso. Entre os mitos gregos é que surgiram primeiramente estas tendências
fantasmagóricas e demoníacas: “os mortos perdem a sombra, ou, por outra, transformam-se
eles próprios em sombras, imago, umbra, eídolon e podem assustar os vivos: são as
assombrações.” (BRANDÃO, 1987, V.II, p.188) Sendo uma parte inconsciente da
personalidade ou mesmo uma parcela do inconsciente coletivo, no dizer de Jung, a imagem
perdida de Narciso continua viva entre nós.
De acordo com nosso folclorista Câmara Cascudo (BRANDÃO, 1987, V.II, p.189), os
perigos da sombra permanecem ainda vivos no espírito popular do Brasil: “a sombra do corpo é
parte integrante do mesmo e suscetível de todas as suas virtudes, poderes e perigos. Quem
brinca com sombra, assombra-se. Pisar na sombra de alguém é uma agressão séria: é apossar-se
da pessoa.”
93
93
Para Luiz Fernando Carvalho
64
, “como em todo conto-de-fadas, o mundo das sombras é
um personagem importante.”. Há, na minissérie, uma passagem em que Maria e Cangaia
entram num castelo de espelhos:
CANGAIA arma um soco e a imagem do espelho se faz de assustada e depois ri,
gozando de ZÉ CANGAIA!
MARIA
Faz isso não, Zé! A gente num deve de quebrá o que guarda nossa image. Dá sete ano
de azar! Dá a mão, vamo sair daqui.
CANGAIA E MARIA tentam se encontrar, mas, multiplicados em milhares de
imagens, se perdem um do outro cada vez mais.
(ABREU; CARVALHO, 2005, p.347)
Vemos também que o Príncipe com quem Maria se recusa a casar rompendo, como
dissemos, em tom parodístico, uma tradição dos contos de fada não tem rosto, quando tira a
máscara do baile em frente ao espelho.
A venda da alma (sombra), presente em rias narrativas e mitologias universais, como
vimos em Hoffmann, está também no roteiro. Um exemplo é quando os meninos carvoeiros
explicam que tiveram de vender sua sombra porque “só o trabalho não dava pra sustentar tanta
boca’, e outro é quando o diabo quer comprar a sombra de Zé Cangaia:
ASMODEU 1
Isso é uma porquera de uma sombra mirradinha! Num vale nem metade do que quero
pagá!
ZÉ CANGAIA
Vale mais do que o dobro do que tô lê vendeno!
ASMODEU 1
Num vô discuti mais! Levo pelo preço que disse!
ASMODEU 1 se abaixa para pegar a sombra. CANGAIA se move e afasta a
sombra das garras de ASMODEU 1.
ZÉ CANGAIA
Tira a mão da mercadoria! Num aparpa o material! Por esse preço minha sombra não
sai de junto de mim!
MARIA fica estupefata ao entender o que estão negociando. Fala mais para si
mesma.
MARIA
Esse é aquele que comprou a sombra dos menino! É o demo! Só pode ser!
(ABREU; CARVALHO, 2005, p.97-98)
64
Entrevista concedida ao site da minissérie, disponível em <http://www.hojeediademaria.globo.com/>, acesso
em 23/11/08.
.
94
94
É próprio do demônio se multiplicar, e Maria se encontra com sete Asmodeus em cada
jornada. Marques e Vidal (2006, p.13) nos lembram da “simbologia do número sete: sete...
Figura 21 -“Ele se metamorfoseia em sete peles” (MARQUES;VIDAL, 2006, p.12). Foto de Renato
Rocha Miranda, primeira jornada.
...pecados capitais, sete demônios”, e, como vimos, sete anos de azar.
São eles: o original, que vigia os meninos carvoeiros; o moço bonito, que seduz a
Madrasta e tenta comprar a alma de Cangaia; e os que aparecem para o Pai, na Primeira
Jornada. Na Segunda Jornada, temos o Cartola, que transforma o Asmodeu Piteira em gato.
Temos ainda o Marinheiro gringo, o Juiz, o Rábula e Asmodéia.
O nome do personagem tem vários significados e foi tirado da demonologia judaica.
Vem do latim: asmodaeus, e significa o príncipe dos demônios, o demônio da impudicícia, da
luxúria, da lascívia,
65
o pior dos demônios, anjo destruidor, “aquele que faz perecer”
66
.
(VIDAL; MARQUES, 2006.) Ainda segundo Vidal e Marques (2006, p.4), “o nome Asmodeu
seria mesmo derivado do persa Aeshma-Daeva, um dos sete espíritos maus, divindade da
tempestade”. Elas fazem, ainda, uma leitura social do demônio. Ele representaria
as mazelas do país e do mundo, expondo importantes aspectos, como corrupção,
exploração do trabalho infantil, desigualdade social, miséria, subjugação da condição
feminina, opressão imposta pelo consumo, descarte do ser humano, ausência de
sonhos, etc. (VIDAL;MARQUES, 2006, p.1)
Ao mesmo tempo, o demônio também aparece como “grotesco, risível, picaresco e
burlesco.” Sua primeira aparição no teatro se deu em 1707, quando Alain-René Lesage exibiu
65
Houaiss.
66
Livro de Tobias 3:8-17, II Samuel 24:16, Sabedoria 18:25, Apocalypse 9:11 apud VIDAL E MARQUES.
95
95
um espetáculo de rua intitulado O diabo coxo, no qual ele é liberto de uma garrafa, como um
gênio, por um estudante espanhol:
Em troca, mostra ao rapaz todas as tragicomédias, manipuladas por Satã, que se
desenrolam na cidade: “Fui eu quem introduziu no mundo o deboche, os jogos de
azar. Sou o inventor da dança, da música, da comédia e de todas as novas modas da
França. Resumindo, eu me chamo Asmodeu ou o diabo coxo. (MINOIS apud
VIDAL;
MARQUES, 2006, p.2)
Houve também uma publicação de Luiz Vélez Guevara, El Diablo Cojuelo, que chegou
ao Brasil no século XIX. Segundo Vidal (2006, p.2), “Da Europa migrou para o Novo Mundo.
Luiz Gama dele se encantou e na tacanha São Paulo de 1864/65 fez circular um semanário, O
Diabo Coxo.” Isto, porque, segundo Vidal e Marques (2006, p.3), “ao despencar do céu ele
teria sido atingido pelos seus companheiros que lhe caíram por cima e o aleijaram”.
Da mitologia grega vem a forma do demônio sincretizada com o deus Pã e os sátiros, e
no Brasil podemos dizer que também um sincretismo com o Curupira, pois “Asmodeu seria
um demônio terrestre que, vivendo nos bosques e florestas, pregam peças nos caçadores, fazem
perderem-se os viajantes”. (VIDAL; MARQUES, 2006, p.12)
Figura 22 – Asmodeu original, que ao fim se tornará Zé-do-Riachim. Foto de Renato Rocha Miranda.
Segundo Cascudo, “aceitando desafio, topando aposta ou firmando contrato, o Diabo é
um logrado inevitável, enganado pelas crianças e mulheres”. (CASCUDO, 1978, p.329). No
episódio da luta entre Maria com Asmodeu pela alma de Cangaia, o Diabo lhe faz três
perguntas, que Maria responde corretamente. Não satisfeito, Asmodeu passa ao desafio de
cantadores, e, mais uma vez, perde para ela. Maria, tendo combinado com Cangaia de
tampar as fezes que este fizera na encruzilhada com um chapéu para que Asmodeu não veja,
96
96
engana o diabo dizendo que se tratava de um passarinho, e o deixa sozinho para descobrir o
logro.
Figura 23 - Em Hoje é Dia de Maria o homem simplório é Zé Cangaia.
Foto de Renato Rocha Miranda.
Walter Benjamim explica (1994, p.215) que o personagem do ‘tolo’ nos mostra como a
humanidade se fez de ‘tola’ para proteger-se do mito. O personagem “inteligente” mostra que
as perguntas feitas pelo mito são tão simples quanto as feitas pela esfinge; neste caso, Maria
responde às adivinhas do diabo com segurança e simplicidade, “decifrando-o” como a uma
esfinge e não se deixando “devorar”, como por um lobo. Depois de tanto sol, a pequena está
“em busca da sombra” da noite. Talvez seja, nesse aspecto, isso que nossa minissérie tenha a
acrescentar, pois, apesar de ainda trabalhar o maniqueísmo, nos mostra o lado sombrio de
personagens boas, como o Pai, que acaba se arrependendo de suas atitudes erradas. Maria,
nossa “Chapeuzinho Vermelho”, está sempre às voltas com Asmodeu/Lobo Mau em suas
múltiplas formas, sempre o vencendo, como o Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque, que
vence o medo do Lobo Bobo.
3.2.3.6 – Brecht
O julgamento de Joana D’Arc, supracitada, nos foi narrado, dramaturgicamente, por
Bertold Brecht(1992) em O processo de Joana D’ Arc em Rouen. Em Hoje é Dia de Maria, o
personagem de Chico Chicote enfrenta um julgamento tão arbitrário quanto a santa católica
descrito da página 483 a 492. Comparemos alguns trechos das duas peças:
CENA 13
PRAÇA
DO
JULGAMENTO/DIA/(PAISAGEM
1)
97
97
O julgamento tem andamento em praça pública, onde, numa plataforma elevada, está
o JUIZ, que é ASMODEU CARTOLA disfarçado. Numa plataforma menos elevada
estão ASMODEU RÁBULA, que é o promotor da acusação, e os defensores de
CHICO CHICOTE, que são os dois EXECUTIVOS que mais atrapalham que ajudam.
Em semicírculo, aglomera-se o povo, em meio ao qual estão MARIA E ALONSA.
Como uma marionete, CHICO CHICOTE está sendo içado por uma espécie de
guindaste de madeira e lata, lembrando ora uma crucificação, ora um enforcamento,
ou até mesmo uma catapulta arma de guerra medieval. Ali fica, pendurado pelos
fios, no centro do círculo. ASMODEU RÁBULA dirige a acusação. (ABREU;
CARVALHO, 2005, p.483)
E agora a peça de Brecht, que é toda dedicada ao julgamento de Joana D’Arc:
2 NA ABERTURA DO GRANDE PROCESSO RELIGIOSO NA CAPELA
DO CASTELO REAL, JEANNE ESCAPA HABILMENTE DAS PERGUNTAS
CAPCIOSAS DOS CLÉRIGOS, QUE PRETENDEM TACHÁ-LA DE HEREGE, E
LEMBRA-LHES COM OUSADIA DA MISÉRIA DA FRANÇA.
Na capela do castelo real. Os padres BEAUPÈRE, CHATION, LA FONTAINE,
D’ESTIVET, MACHON, MIDI, LEFÉVRE, MASSIEU, IRMÃO RAOUL E O
ESCRIVÃO. Entram o OBSERVADOR INGLÊS com o seu AJUDANTE-DE-ORDENS
e o BISPO DE BEAUVAIS. Os padres se ajoelham. (...)O BISPO consulta os seus
JUÍZES-ADJUNTOS. (...)JOANA é trazida por dois SOLDADOS INGLESES.
(BRECHT, Bertold. 1992,p.158, v.11)
Percebemos, na divisão dos capítulos de Hoje é Dia de Maria, uma característica do
teatro épico
67
. Pode-se dizer, por exemplo, que a cantiga das águas no início de “Terra dos
Sonhos” é um prólogo; que a narradora ao final de “O Retorno” é o epílogo e as várias canções
funcionam como entreatos; a narradora e o breve resumo no início de cada cena de Brecht
também são paralelos. A carroça dos saltimbancos nos lembra a carroça de Mãe Coragem de
cidade em cidade.
Na Segunda Jornada, que o autor Luís Alberto de Abreu
68
considera, ao mesmo
tempo “uma ruptura e um aprofundamento da linguagem” da Primeira Jornada, o estilo de
musicais de Bertold Brecht foi utilizado. “Escrevemos grande parte dos diálogos como sendo
letras de canções, mas a estrutura não é a de opereta”, disse Luiz Fernando Carvalho em
entrevista para o site da minissérie
69
. No mesmo site, em entrevista concedida por Luís Alberto
de Abreu, ficamos sabendo que “a pesquisa para a Segunda Jornada de Hoje é Dia de Maria
partiu do musical brechtiano. É um épico urbano, com ritmo mais vertiginoso e intenso.”
67
Vale aqui esclarecer, em linhas gerais, que o que se chama de teatro brechtiano ou épico está em oposição ao
teatro aristotélico, das três unidades de ação, tempo e lugar, mas, ao contrário, inclui prólogo, epílogo, narrador, ao
invés de ação direta, e uma interferência da música, que ajuda o ator a apresentar seu personagem para o público,
quebrando assim a chamada quarta parede’ ilusionista, visando criar no espectador uma necessidade de agir, ao
invés da catarse e da identificação esperada pelo teatro clássico grego. De acordo com Renata Pallotini (1983,
p.69), as cenas são independentes, acontecem em curvas, em saltos, não é uma narrativa linear, e trabalha-se a
montagem, como no cinema (e TV);
68
Entrevista disponível no site http://hojeediademaria.globo.com.br ; acesso em 25/11/08.
69
Entrevista disponível em <http://hojeediademaria.globo.com/l>, acesso em 23/11/08.
98
98
Alabama Song”, composição original de Bertold Brecht e Kurt Weill
70
para a ópera
“Ascensão e Queda da Cidade de Mahagony”, é interpretada pela atriz que faz Asmodéia, que
surge do mar para “devorar” Chico Chicote. Na peça a canção está em inglês, sob o seguinte
subtítulo e direções de cena: “EM POUCAS SEMANAS SURGE UMA CIDADE.
APARECEM OS PRIMEIROS TUBARÕES. Entram Jenny e seis garotas trazendo grandes
malas. Elas se sentam em cima das malas e cantam o ‘Alabama Song’.”(BRECHT, 1992,
p.114).
Maria se assemelha a Chen-Te
71
e a Grucha, ambas heróinas brechtianas, bondosas,
proletárias, protegidas dos deuses e enfrentando dificuldades com o seu duplo (Chui-Ta)
72
,
fugindo da morte (Grucha) ou lutando por justiça, como a heroína da “Estória de Qiu Ju”, do
filme de Zhang Yimou
73
. Na versão portuguesa do Círculo de Giz Caucasiano, vemos Grucha
fugindo com o bebê que adotara pelo desfiladeiro de Tau, um deserto gelado:
NAS MONTANHAS DO NORTE
(...)Continua a caminhar. A ponte fica para trás. Vento.
GRUCHA (virando-se pra Miguel): Não tenhas medo do vento, Miguel, também não
passa dum pobre diabo. tem de empurrar as nuvens e é ele que sofre mais com o
frio.
Começa a nevar.
GRUCHA: E a neve, Miguel, não é o pior. tem de cobrir os pinheirinhos para que
não morram no Inverno. (Canta...)
O CANTOR: Sete dias caminhou a irpelo glaciar, percorrendo as encostas (...)
Estava doente de tanto caminhar.
(BRECHT, Bertold, [19-], p.70-71
E se assemelha a Maria que procura pelo pássaro congelado nos campos de neve:
A LUA COMEÇA A NASCER/EXTERIOR/TARDEZINHA
Maria caminha pela estrada. Pára, cansadíssima, junto a uma árvore seca. (Canta...)
Ela pára de cantar e senta-se na estrada: parece ter chegado ao limite de suas forças.
(...)CLAREIRA NO BOSQUE/EXTERIOR/NOITE
70
A referência é da banda The Doors, que fez uma releitura da canção para rock psicodélico em 1966/67 (Whisky
Bar); a cantora original é Lotta Lenya.
71
Respectivamente, de “A Alma Boa de Setsuan” e “O Círculo de Giz Causasiano”(BRECHT, 1986). A primeira
é uma ex-prostituta que se torna dona de uma loja e depois de uma tabacaria e por fim uma fábrica por ajuda dos
deuses, dividida entre a bondade e o mundo dos negócios. A segunda é uma campesina que adota o filho de uma
mulher rica que o abandonara, e que depois reaparece querendo-o de volta, sendo o processo julgado por um juiz
muito semelhante ao do “Juiz da Beira” de Gil Vicente, uma possível intertextualidade.
72
Duplo de Chen-Te, sua versão masculina e mesquinha, em A Alma Boa de Setsuan”, que lembra as heroínas
das comédias shakespeareanas, que têm de se travestir.
73
O filme conta a estória de uma moça que vai até o Tribunal Superior para pedir reparação contra uma
humilhação sofrida por seu marido pelo prefeito de sua cidadezinha.
99
99
MARIA chega à clareira e vê o AMADO, na forma do PÁSSARO INCOMUM, preso
dentro de um bloco de gelo. MARIA se abraça ao bloco de gelo.
MARIA
Oh, amado
Toma-me e aquece-te.
É tua a minha noite mais delicada
Toma-me! E vive, vive uma vez mais!!!
(ABREU;CARVALHO, 2005,p.327-328)
Eis a cena em que Chen-Te, em A Alma Boa de Setsuan, recebe a velha e a hospeda
com sua família:
VELHA Ah, minha boa Chen Te: soubemos que você está bem, agora. Passou a ser
uma mulher de negócios! Veja bem: s estamos sem onde cair mortos! E então nos
perguntamos se não podíamos passar aqui ao menos uma noite. Conhece meu
sobrinho? Veio também.
CHEN TE –Quando eu cheguei, da roça para a cidade, foram os meus primeiros
senhorios. Ao blico Quando acabou o pouco dinheiro que eu tinha, puseram-me
na rua. Talvez agora estejam receando que eu diga não. Ficaram pobres. Estão sem
amigo, estão sem lugar, precisam de alguém, quem pode negar?
(BRECHT, 1992, p.70-71, v.7)
Que lembra quando a Madrasta e Joaninha reaparecem na vida de Maria, quando esta
trabalha com os bóias-frias:
CENA 24
VILINHA/CASEBRE/INTERIOR/PÔR-DO-SOL
MARIA entra no seu casebre e uma desordem total. A MADRASTA está deitada
numa rede, abanando-se.A um canto, JOANINHA, que está uma moça crescida e
enorme de gorda, come.
MADRASTA
Nosso Cristo! Vancê nunca que chegava! Qui tempo que tamo torando estrada na sua
procura...Vim aqui pra mó de cuidá de ocê! Ocê fugiu de casa, mai num le guardo
mágoa. Sabia que mais ano, menos ano, eu le achava.(...)
MARIA suspira e se senta, triste. JOANINHA choraminga.
MADRASTA
Se aquiete, bem, que a Maria chegô e já vai fazê os de cumê...(para MARIA)Tá
certo? (ABREU; CARVALHO, 2005, p.157-158)
Além da paráfrase dos musicais brechtianos, Hoje é Dia de Maria parodia os musicais
de Hollywood, como veremos a seguir.
3.2.3.7 – Musicais norte-americanos
Por se tratar de um musical, também foram utilizadas certas melodias de canções
americanas pelo autor da trilha sonora, com letras em português. paráfrases de musicais
americanos, quando, por exemplo, o marinheiro americano (Asmodeu disfarçado) canta “Cheek
100
100
to cheekde Irvin Berlin
74
para Maria, no cais da cidade, ou quando a Menina Carvoeira cita
uma passagem de “Somewhere Over the Rainbow”, de Harold Arlen
75
:
CARVOEIRA
(canta)
Além do arco-íris, um lugar, que eu sei e acreditei, que eu irei morar...
(ABREU, CARVALHO E SOFFREDINI, 2005, p.405)
O texto adquire tendências críticas, como no coro de executivos da Segunda Jornada,
embalado pela melodia de “Money, money” de Cabaret a citação não esno roteiro, é algo
acrescentado pelo diretor musical Tim Rescala. claramente uma crítica ao poder norte-
americano, ao poder do dinheiro, à sedução exercida pelo estrangeiro, pelo país maravilhoso
que está além do horizonte, pelo sonho americano.
Porém, é aqui, nas terras do pôr-do-sol, ou seja, nos trópicos do ocidente, em solo
tupiniquim, que vamos colher a matéria de que será feito nosso sonho, no caso nossa estória;
mas essa estória é contada de forma circular, como no oriente, no sol levante, onde o fim nunca
termina.
Figura 24– Contracapa do livro, por Jackeline Sales, com os personagens da Segunda Jornada.
74
Do musical “Picolino”, ou “Top Hat”, com Fred Astaire e Ginger Rogers, (1935), son., P&B, usada novamente
pelo diretor musical Tim Rescala em “Capitu”(2008, TV Globo, direção Luiz Fernando Carvalho, com Maria
Fernanda Cândido, Eliane Giardini).
75
Do musical “O mágico de Oz”, com Judy Garland, direção Victor Fleming, Metro Goldwin-Meyer,1939, P&B,
son., (112 min.)
101
101
“NAS FRANJAS DO MAR” – CONCLUSÃO
“Comece do início, e, quando chegar ao final, pare!”
Rei de Copas – Alice no País das Maravilhas –
Lewis Carrol.
Chegamos ao nosso destino final, ou, como Maria gosta de dizer, às “franjas do mar”.
A partir dos conceitos de reciclagem cultural e de ironia intertextual, estudados nessa
dissertação, concluímos, pela análise do roteiro, que Hoje é Dia de Maria se constituiu a partir
de um conjunto de obras literárias e de todo um universo oral, em que o movimento de
estilização tão caro ao dramaturgo Carlos Alberto Soffredini, autor do especial que deu
origem à minissérie realizou a tessitura entre os textos. O próprio acervo épico em que se
baseou a microssérie contos orais, canções folclóricas etc., encerra em si este
movimento de repetição com alteração, característico da própria propagação da narratividade,
como assinala Linda Hutcheon (2006); assim como é repetição a presença da voz do narrador,
que costura os episódios e aponta para a presença do interlocutor, que ouve a história,
utilizando aí um instrumento ao mesmo tempo épico e didático numa contação de estórias para
adultos. O outro modo como se deu a estilização foi através da adaptação dos textos clássicos
da literatura mundial, isto é, eles foram deslocados de seus contextos de origem e
amalgamados ao ambiente e ao nosso meio cultural. Essa tessitura refere-se, também, ao
próprio universo de Soffredini, aproveitado pelos outros autores, Luís Alberto de Abreu e Luiz
Fernando Carvalho. Soffredini trabalhou num processo de autotextualidade ou
autoreferenciação, utilizando frases e personagens de suas próprias peças, trabalhando com a
linguagem circense, aliada ao universo folclórico, ao musical, ao sotaque do interior de São
Paulo, aos números de “revista” quando Maria vira cantora de cabaré ao humor, aos
trocadilhos e desafios. Toda a pesquisa folclórica feita por Luiz Fernando Carvalho e sua
equipe são um reflexo da obra do mestre; sem dúvida, uma peculiaridade também do trabalho
do diretor, por isso mesmo um bom casamento de idéias e ideais.
Há, certamente, em Hoje é Dia de Maria, uma demanda por um público
leitor/telespectador com referências mais eruditas, que pode ser avaliada pela quantidade de
diálogo intertextual presente no roteiro. Quanto maior o universo literário do
leitor/telespectador, mais citações são encontradas, inclusive musicais e cinematográficas.
Dentro do universo televisivo, a minissérie destina-se a um público mais restrito, que, apesar
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de não ser infantil, busca preservar “esse lugar onde é permitido sonhar, chamado infância”,
como disse Luiz Fernando Carvalho
76
. Um público que deve ainda reconhecer, para o efeito da
ironia intertextual, as cantigas de roda resgatadas por Villa-Lobos, as lendas indígenas e
africanas, o universo de Monteiro Lobato, as estórias de contos-de-fadas trazidas de Portugal
com base em Cinderela e Pele-de-Asno que no Brasil ganham uma roupagem nordestina e
um sotaque paulista na versão soffrediana. O deslocamento de um continente a outro destas
estórias milenares emprestam à personagem uma universalidade e um significado arquetípicos.
Sua localização geográfica não importa, pois na linguagem do sonho, do sertão vamos pro mar
e o mar vira sertão, e ele está dentro de nós, que, como o gigante, engolimos
antropofagicamente as pequenas carvoeiras, os retirantes, os bóias-frias, as Marias-meninas
que enrolam os diabos na rua, no meio dos desafios e redemoinhos. É justamente esse
“acento” sertanejo dado à Maria, na Nova Idade Média do século XXI, que nos leva ao
modernismo presente na minissérie.
Essa presença não é dos escritores modernistas citados, como Bandeira,
Drummond, Mário de Andrade e Cassiano Ricardo, mas do abrasileiramento das referências
estrangeiras. Antropofagicamente e parodisticamente, adotou-se Olympia como a Boneca;
D.Quixote como Chicote; Alice/Gulliver como Maria; Cigana Esmeralda/Dulcinéia como
Rosicler; os musicais hollywoodianos foram carnavalizados, ou mesmo epicamente
convertidos em peças brechtianas, num estilo de fazer televisivo que foge totalmente do
realismo naturalista, aproxima-se escancaradamente do teatro e adota as práticas
cinematográficas da Nouvelle Vague, mostrando o aparato cênico. Ainda um toque modernista
entra na circularidade que, como nos lembrou muito bem Haroldo de Campos (1973), está
presente na obra dos maiores escritores do mundo.
Não se trata de um caso especificamente de realismo mágico, ou de real maravilhoso
latino-americano, visto não se reportar a nenhum fato histórico, mas sem dúvida insere-se no
gênero do conto maravilhoso, tendo como palimpsesto estrutural a rapsódia derio de
Andrade, que se baseou no lendário indígena de Koch-Grünberg. Assim como Macunaíma,
Maria nos apresenta a cultura popular brasileira numa fábula para adultos. Assim como cada
capítulo de Macunaíma encerra um conto, assim também em Hoje é Dia de Maria cada
episódio apresenta uma nova aventura. Maria é a heroína junguiana, em busca do “eu”, em
confronto com uma realidade que lhe causa estranhamento, como acontece com o poeta Dom
Chico, mas muito à vontade com os mitos, como o anti-herói andradiano.
76
Testemunho do diretor no making off do DVD Hoje é Dia de Maria, Rio:Globomarcas, 2006 (556 min.).
103
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O mise-en-abîme’ é resgatado dos contos orientais, atualizado e perfeitamente
adequado à linguagem dos episódios televisivos, que geram novos episódios, à moda de
Xerazade. Esta microssérie articula-se como um conjunto predominantemente de narrativas
breves, onde mantém-se a concisão própria de um conto dentro de cada episódio, onde a
heroína enfrenta novas aventuras, convergindo para um final; a intensidade, outra
característica contística, está presente na aglutinação de personagens: Maria é Maria
Borralheira, é a Maria de Dona Labismina e é a Maria da Madrasta. O ritmo intenso da
microssérie também alia-se à rapidez do conto.
Os livros consagrados que foram estilizados pertencem a autores que, por sua vez,
parafrasearam outros: paráfrase do especial de Soffredini, que por sua vez estiliza os contos de
Grimm, que se inspiraram em Perrault. Paráfrase de Cervantes, que parodiou os romances de
cavalaria, também estilizados por Gil Vicente e Antônio José da Silva. Paráfrase de Monteiro
Lobato, que estilizou Lewis Carrol, por sua vez também parodiador. Assim, a homenagem à
literatura está presente, desde a estrutura de contação de estórias, da Primeira Jornada, até o
personagem do poeta desmemoriado na Segunda Jornada ilustrando a passagem do oral ao
literário e sua busca pela memória e nas intertextualidades que revelam o universo cultural
desta equipe, liderada por esse arquiteto/bacharel em Letras, que é o diretor da microssérie.
Homenagem esta que vai culminar, na obra de Luiz Fernando Carvalho, em Capitu. Mas essa
já é outra estória...
Figura 25 - Maria chega ás ‘franjas do mar’. Foto de Renato Rocha Miranda.
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em 1º. De fevereiro de 2008. Peça.
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[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <
myriampessoa@yahoo.com
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fevereiro de 2008.
SOFFREDINI, Carlos Alberto. Mais quero asno que me carregue que cavalo que me
derrube. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por: <
myriampessoa@yahoo.com
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De fevereiro de 2008. Peça teatral.
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Mensagem recebida por <
myriampessoa@yahoo.com>
em 1º. De fevereiro de 2008. Peça de
teatro.
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myriampessoa@yahoo.com>
em 1º. De fevereiro de 2008. Peça de
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117
117
APÊNDICE A – Curvas Dramáticas de Hoje é Dia de Maria
A curva dramática do Primeiro Movimento corresponde, em Hoje é Dia de Maria, à
Primeira Jornada. A linha vertical é a tensão dramática e a horizontal o decorrer da trama.
Figura 26
Linha 1
Linha 2
A situação começa com um nó, chega a um clímax, depois tem uma solução e novo
antagonista é colocado em cena. A linha 1 corresponde ao primeiro antagonista, a Madrasta; a
linha 2 corresponde ao segundo antagonista, Asmodeu.
Figura 27
- O Segundo Movimento corresponde à
Segunda Jornada. Todos os episódios e todas as cenas também obedecem a esse gráfico.
118
118
APÊNDICE B – Entrevista com Luís Alberto de Abreu, dramaturgo e roteirista da
minissérie da TV Globo Hoje é Dia de Maria. (Entrevista concedida através de e-mail por
intermédio da Globo Universidade).
1)Você considera o roteiro como pertencente ao universo do realismo mágico ou do
real maravilhoso? Não sei exatamente a quê você se refere quando pergunta sobre realismo
mágico. Se for o que se convencionou chamar sobre os elementos de criação de escritores sul-
americanos como Manuel Scorza ou Gabriel García Márquez, informo que em momento
nenhum do processo discutimos ou tivemos como referência elementos presentes nas obras
desses autores. Nos fixamos muito mais nas lendas folclóricas e nos debruçamos sobre
estrutura de mitos e arquétipos. É claro que muito do que se convencionou chamar de
“realismo mágico” se fundamenta em imagens presentes na mitologia.
2) Além do especial “A Madrasta”, você e o Luiz Fernando utilizaram alguma outra
peça do Soffredini para escreverem os episódios? Não. Como afirmei, utilizamos apenas o
especial “A Madrasta” como ponto de partida.
3) Gostaria que você me falasse do processo a quatro mãos de roteirizar Hoje é Dia
de Maria. Entendo que você escreveu em forma dramatúrgica e que o diretor deu um
formato televisivo. Estou certa, ou enganada? Se você se refere a uma forma mais teatral,
não foi isso o que aconteceu. Minha formação se deu no teatro e grande parte de minha
carreira foi dedicada a essa linguagem e, embora Hoje é Dia de Maria marque a minha estréia
como roteirista de TV, eu havia trabalhado por mais de dez anos como roteirista de cinema
e por isso conhecia a linguagem audiovisual o suficiente para escrever diretamente para a TV.
O trabalho de Hoje é Dia de Maria foi, de fato, escrito a seis mãos. Quando o Luiz Fernando
me convidou para escrever a microssérie (que deveria ter oito episódios de aproximadamente
trinta minutos) já havia um roteiro anterior para um único episódio de sessenta minutos escrito
pelo Luiz Fernando e pelo Carlos Alberto Soffredini. Esse roteiro serviu como base.
Reformulamos, ampliamos a estória, criamos inúmeros outros personagens para acertar o tom
dos personagens e o encaminhamento da estória e o roteiro final foi construído diretamente
para a TV com a coordenação do Luiz Fernando que muitas vezes alterava cenas, propunha
encaminhamentos. Eu que moro em São Paulo enviava o texto para o Luiz Fernando por e-
mail, que lia e me dava retorno por telefone. Ao final, trabalhamos por uma semana juntos, no
119
119
Rio de Janeiro, para o acerto final nos oito capítulos da Primeira Jornada de Hoje é Dia de
Maria.
4)Houve algum episódio escrito originalmente que foi depois cortado antes ou depois
da gravação? Por quê? Não que eu me lembre. Como disse, o texto foi feito por mim e pelo
Luiz Fernando diretamente para a TV. Existem sempre modificações na passagem do processo
do roteiro para gravação e edição, mas foram muito pequenas e o Luiz seguiu fielmente o que
tínhamos elaborado.
5) Houve alguma seqüência primeiramente desenhada em storyboard que originou
um texto? Não. Houve o contrário. Todas as narrações no começo e no fim dos capítulos
foram desenvolvidas já durante as gravações.
6)Quais os personagens que foram sugestão de um ou de outro autor? Os
personagens Maria, Pai, Madrasta e Joaninha, Príncipe sem Rosto, ssaro, estavam
presentes na primeira versão do Soffredini e do Luiz Fernando e foram ampliados na Primeira
e na Segunda Jornadas. A transformação da menina Maria em adulta foi desenvolvida por
mim e pelo Luiz Fernando. O demônio Asmodeu, os saltimbancos, foram sugestões minhas.
Na Segunda Jornada, o personagem Chico Chicote foi sugestão do Luiz Fernando, bem como
a Boneca e Dr.Copélius. Os outros foram criados por mim ou em conjunto. Mas nenhuma
criação é totalmente definida quanto à autoria. Em nosso processo de trabalho uma
interferência criativa extremamente rica em toda a criação do roteiro.
7)Vocês ficaram imersos no universo soffrediano ou ele apenas serviu de inspiração
para a pesquisa folclórica e de literatura brasileira/mundial? O universo do Soffredini foi
base para nossa criação. A partir daquele roteiro inicial muito foi criado e expandido.
8)Descobri as seguintes citações literárias no texto, e, se tiver mais alguma, favor
acrescentar para mim: D.Quixote, Hoffman (Homem de Areia), Macunaíma, Martim
Cererê, obra de Monteiro Lobato para crianças, Alice no País das Maravilhas, Maria
Borralheira, D.Labismina e A Madrasta, compiladas por Sílvio Romero e também por
Cascudo, músicas compiladas por Villa Lobos, etc. Você está correta em todas essas citações.
A obra de Sílvio Romero, Mário de Andrade e Câmara Cascudo é objeto de minha pesquisa
sobre a cultura popular brasileira. também outras referências, que é próprio da cultura
120
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popular a apropriação das formas eruditas. O encontro do Pai com Maria no espetáculo dos
saltimbancos foi inspirado no encontro de Lear com Cordélia, de Shakespeare. O encontro de
Maria com a Menina Carvoeira tem referências no encontro de Io e Prometeu, do Prometeu
Acorrentado, de Ésquilo. O linguajar foi fundamentado em pesquisa desenvolvida por
Amadeu Amaral e Cornélio Pires, estudiosos paulistas da primeira metade do século XX, que
se debruçaram sobre o universo caipira de São Paulo.
Figura 28 - Dorso do livro
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