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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
A BANDEIRA E A MÁSCARA:
ESTUDO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE OBJETOS RITUAIS
NAS FOLIAS DE REIS
Daniel Bitter
Rio de Janeiro
2008
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1
A BANDEIRA E A MÁSCARA:
ESTUDO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE OBJETOS RITUAIS
NAS FOLIAS DE REIS
Daniel Bitter
Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Ciências
Humanas (Antropologia Cultural).
Orientador: Prof. Dr. José Reginaldo
Santos Gonçalves.
Rio de Janeiro
2008
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A BANDEIRA E A MÁSCARA:
ESTUDO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE OBJETOS RITUAIS
NAS FOLIAS DE REIS
Daniel Bitter
Orientador: Prof. Dr. José Reginaldo Santos Gonçalves
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
Aprovado por:
Presidente, Prof. Dr. José Reginaldo Santos Gonçalves
Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro
Profa. Dra. Elsje Maria Lagrou
Profa. Dra. Nélia Dias
Profa. Dra. Rosza W. vel Zoladz
Rio de Janeiro
Junho/2008
3
Bitter, Daniel
A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos
rituais nas folias de reis / Daniel Bitter – Rio de Janeiro : UFRJ,
IFCS, 2008.
191f.: il.; 29,7cm
Orientador: José Reginaldo Santos Gonçalves
Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – UFRJ / IFCS /
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2008.
Referências bibliográficas: f. 192-203
1. Objetos. 2. Ritual. 3. Cultura popular. 4. Folia de reis.
I.Gonçalves, José Reginaldo Santos II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia III. Título
4
RESUMO
A BANDEIRA E A MÁSCARA:
ESTUDO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE OBJETOS RITUAIS
NAS FOLIAS DE REIS
Daniel Bitter
Orientador: José Reginaldo Santos Gonçalves
Esta tese aborda o lugar que certos objetos ocupam em sistemas de trocas de
natureza ritual. Adotando os objetos materiais como ponto de vista para observar essas
relações, enfatiza-se o modo como eles estabelecem mediações entre domínios sociais e
cosmológicos diversos, desencadeando transformações sociais e simbólicas. O foco da
descrição e análise é a circulação da bandeira e da máscara no contexto social e ritual
das folias de reis, empreendimento festivo que ocorre em grande parte do território
brasileiro. Trata-se de grupos de cantores e instrumentistas que realizam anualmente
visitas rituais às casas de devotos, distribuindo bênçãos em troca de donativos
destinados à festa dedicada aos Reis Magos. Etnograficamente, a bandeira e a máscara
se insinuam enquanto símbolos dominantes, apresentando-se de forma complementar e
produzindo reflexos no plano das ações sociais e rituais. Procura-se mostrar como esses
objetos, ligados entre si pelas pessoas que coletivamente os manipulam, materializam
vínculos fundamentais, pondo o sistema em movimento e permitindo a emergência de
novas idéias e sentidos. Acompanha-se o deslocamento das folias de reis por contextos
multiculturais, quando os objetos passam, então, a ser vistos a partir de
“enquadramentos” particulares, ganhando novos significados.
Palavras-chave: Objetos, ritual, cultura popular, folia de reis
5
ABSTRACT
THE BANNER AND THE MASK:
A STUDY ON THE CIRCULATION OF RITUAL OBJECTS
IN THE FOLIAS DE REIS
Daniel Bitter
Orientador: José Reginaldo Santos Gonçalves
This thesis approaches the place of certain objects in ritual exchange systems.
Taking these material objects as viewpoint to observe such relations, this work
emphasizes the way they set up mediations among several social and cosmological
domains, causing social and symbolic transformations. The focus of the description and
analysis is the circulation of the banner and the mask in the social and ritual context of
the folias de reis, a festive undertaking that takes place in most part of Brazil. It is
formed by groups of singers and instrumentalists who perform annual visits to the
homes of the devotees, distributing blessings in return for donations for a feast in honor
of the Three Wise Men. Ethnographically speaking, the banner and the mask become
dominant symbols, presented in a complimentary way and reflected in the plan of social
and ritual actions. We try to show how these objects, linked by the people who
manipulate them, materialize fundamental ties, moving the system and allowing the
emergence of new ideas and meanings. We follow the movement of the folias de reis
through multi-cultural contexts, when the objects are then regarded in particular
“frames” and acquire new meanings.
Key-words: Objects, ritual, popular culture, folia de reis.
6
AGRADECIMENTOS
Aos foliões e devotos com quem tive contato ao longo do trabalho,
especialmente aos integrantes da Folia Sagrada Família e moradores da Candelária,
Complexo de Mangueira. Agradeço a todos eles pela atenção, cuidado e generosidade
com que fui tratado.
Ao Prof. Dr. José Reginaldo Gonçalves, pelo interesse no trabalho, pela
confiança e pela brilhante orientação. Agradeço ainda por sua dedicação e seus
ensinamentos.
À Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro e à Profa. Dra. Elsje Maria Lagrou
do PPGSA - IFCS/UFRJ, pelos oportunos comentários feitos ao longo do
desenvolvimento da pesquisa.
À Profa. Dra. Nélia Dias, pelo interesse e pelos estimulantes diálogos que
tivemos em Lisboa durante o estágio de doutorado.
À Profa. Dra. Rosza W. vel Zoladz, pelo estímulo intelectual e pela amizade.
À Profa. Dra. Graça Índias Cordeiro, que na atribuição de coordenadora do
Programa de Doutoramento em Antropologia Urbana do ISCTE, Lisboa, me recebeu de
forma generosa. Agradeço a ela também pela oportunidade de participar dos seminários
internos (PRODAU).
Aos demais professores do PPGSA.
A Claudia e Denise, pela gentileza e dedicação.
À CAPES, pela concessão de bolsa de estágio no exterior.
À Universidade Estácio de Sá, pela concessão de bolsa-auxílio.
Ao Prof. Paulo Raposo, diretor do CEAS (Centro de Estudos de Antropologia
Social - Lisboa), pelos frutíferos diálogos.
Ao Prof. João Vasconcelos, por ter me recebido gentilmente em sua casa em
Lisboa para conversarmos sobre o tema da pesquisa.
A Renata Gonçalves, minha colega de doutorado, pela amizade e parceria.
A Márcia, Jorge, Artur e Carol, pelo apoio e pelos agradáveis momentos
passados em Viseu, Portugal.
Ao meu amigo Edmundo Pereira, pelas excelentes e inesquecíveis sugestões ao
trabalho.
7
Ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, RJ, por me permitir
pesquisar em suas reservas.
A Andréa Falcão e Tatiana Devos, pela amizade, parceria e pelos diálogos em
torno das folias de reis.
A Affonso Furtado, pela parceria e pelas valiosas informações.
A Daniele Ramalho, pela amizade e permissão para reproduzir suas fotografias.
A Maria Mazzillo, pela amizade e pelo auxílio nas gravações de áudio feitas na
Candelária.
A Cenyra Fernandes, pelo incentivo, apoio e também pela revisão de parte do
texto.
A Ana Silvia Gesteira, pela tradução do resumo.
A Roninho, Chiquinho Feijó, Criolo, Duílio Guarini, Delzimar Coutinho, José
Fernandes dos Santos, Helvacy, Eliane, Tata, Zezinho, Antônio Agostinho e família.
Aos amigos que se privaram de minha companhia durante longo período
dedicado a esta tese.
A minha mãe e meus filhos, pelo apoio, incentivo, compreensão e carinho.
A Flávia, minha mulher, pela companhia, auxílio e carinho nesta difícil
travessia.
8
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO - 9
2. ETNOGRAFANDO NO COMPLEXO DE MANGUEIRA - 23
2.1. O Complexo de Mangueira e as ‘folias’ de reis - 23
2.2. Entrando na Candelária - 30
2.3. Vida cotidiana e ritual na Candelária - 32
2.4. A Folia Sagrada Família e seus quadros sociais - 36
2.5. Festejando os Reis e reafirmando laços sociais: um precário equilíbrio - 40
3. FOLIA DE REIS E A CIRCULAÇÃO DA BANDEIRA - 47
3.1. “Os três Reis vêm buscar suas ofertas pro seu dia festejar” - 47
3.1.1. A saída da ‘bandeira’ - 49
3.1.2. A ‘visita’ - 55
3.1.3. A ‘entrega da bandeira’ - 62
3.2. A festa de ‘arremate’ e a redistribuição cerimonial das dádivas - 70
3.2.1. Preparativos - 71
3.2.2. A festa - 77
3.3. ‘Folia de reis’ e seu trânsito em diversos contextos - 87
4. A BANDEIRA E O FUNDAMENTO - 104
4.1. Representando o irrepresentável - 104
4.2. A ‘bandeira’ como mediador cósmico - 110
4.3. Semelhança, descendência e presença - 118
4.4. A ‘materialidade da bandeira’ - 123
4.5. Herança, aquisição e transmissão dos objetos rituais - 137
5. O PALHAÇO E A MÁSCARA: O LUGAR DA AMBIGUIDADE - 145
5.1. Ambigüidade num campo de forças - 145
5.2. A brincadeira do ‘palhaço’ - 158
5.3. O ‘palhaço’, o corpo e a pessoa - 167
5.4. A ‘máscara’ cósmica - 177
5.5. ‘Máscara e bandeira’: um sistema de objetos - 182
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS - 188
7. REFERÊNCIAS - 191
9
8. INTRODUÇÃO
Os objetos materiais integram de modo incontornável toda e qualquer forma de
vida social e cultural. Esta pesquisa aborda o lugar que esses objetos ocupam em
sistemas de trocas de natureza ritual. Adotando os objetos materiais como ponto de vista
para observar o mundo dessas relações, enfatizo o modo como eles estabelecem
mediações entre domínios sociais e cosmológicos diversos, desencadeando
transformações sociais e simbólicas. Trata-se de uma classe particular de artefatos que,
a título de delimitação preliminar, eu chamaria de “objetos rituais” ou “objetos
cerimoniais”, seguindo a terminologia convencional da antropologia social ou cultural.
O foco da descrição e análise será a circulação de alguns desses objetos no
contexto social e ritual das “folias de reis” ou “folias dos santos reis”, empreendimento
festivo que ocorre em grande parte do território brasileiro, no qual homens, mulheres,
crianças, jovens e idosos se envolvem intensamente em amplas teias de reciprocidades
sociais e simbólicas. Esse empreendimento tem lugar em momentos especiais da vida
social, quando os laços de solidariedade social, bem como as relações de natureza
cósmica, se acentuam de modo notável. Em suas intermináveis variantes, as folias
apresentam estruturas semelhantes. Sua base organizacional é formada por um grupo de
pessoas (cantores e instrumentistas) que realizam anualmente visitas rituais às casas de
devotos durante o período de festejos natalinos, geralmente compreendido entre 25 de
dezembro e 6 de janeiro, distribuindo bênçãos em troca de donativos. Ao final deste
ciclo de visitações, os grupos celebram uma grande festa em louvor aos Magos do
Oriente: Melquior, Baltazar e Gaspar. Nesse contexto social e ritual, dois objetos
desempenham um papel crucial: a bandeira dos santos reis e as máscaras dos
“palhaços”, personagens fundamentais nessas festividades.
A bandeira pode ser inicialmente descrita como um suporte sobre o qual são
fixadas imagens de santos católicos e representações pictóricas de narrativas bíblicas.
Pode ser ainda definida, sumariamente, como uma espécie de estandarte que ostenta as
imagens dos santos padroeiros e, ao mesmo tempo, identifica uma associação de
pessoas organizadas em seu entorno. Guardando entre si consideráveis diferenças
formais, as bandeiras aproximam-se de outros objetos que ocupam lugar semelhante em
seus contextos particulares, entre os quais poderia citar: altares móveis, registros,
esculturas de santos, coroas etc., objetos estes que têm ainda em comum o fato de serem
10
transportados espaço-temporalmente por determinadas pessoas. Todos esses objetos,
reservadas suas particularidades, desempenham função central em sistemas rituais,
precisamente por serem tidos como dotados de valores e poderes extraordinários.
A máscara é usada por um personagem das folias, comumente chamado de
palhaço ou bastião. O palhaço é um tipo marcadamente liminar, cômico e ambíguo, e
sua máscara, de aparência grotesca, opera poderosas transformações. No contexto ritual,
a máscara é indissociável de seu proprietário.
Etnograficamente, a bandeira e a máscara se insinuam enquanto símbolos
dominantes e, em grande medida, se apresentam de forma complementar, estendendo-se
ao plano das ações sociais e rituais. Mas, se por um lado esses objetos se opõem numa
relação de polaridade, por outro, eles se aproximam. Enfatizo, desse modo, a
continuidade entre esses dois objetos, suas posições respectivas entre o centro e as
margens desse sistema. Procuro mostrar que esses objetos, ligados entre si pelas pessoas
que coletivamente os manipulam, desencadeiam e materializam vínculos fundamentais
entre essas pessoas e, ao mesmo tempo, entre estas e dimensões da ordem cósmica,
pondo o sistema em movimento e permitindo a emergência de novas idéias e sentidos.
***
As folias de reis foram objeto de estudo por parte de folcloristas, entre os quais,
Amaral (1948), Lima (1972), Carneiro (1974) e Castro & Couto (1977). A preocupação
central desses trabalhos está na descrição formal dos vários elementos que compõem a
folia. A categoria “fato folclórico”, a partir da qual é freqüentemente referenciada,
revela a perspectiva de seus autores, que se esforçam continuamente na busca das
origens dessa prática, apontando, particularmente, para seus antecedentes ibéricos. A
ênfase, portanto, recai na categoria “traços culturais” e em seu processo de difusão.
Numa perspectiva geral, o conjunto desses trabalhos propõe ver estas “manifestações
culturais” como um agregado de formas e traços fortemente associado a contextos
rurais,
1
e quase sempre como reminiscências de um passado remoto. Sem deixar de
reconhecer as importantes informações trazidas por essa literatura, devo salientar que,
em grande medida, elas foram motivadas pela suposição de que estas práticas estariam
sujeitas ao desaparecimento em virtude das transformações das sociedades modernas,
1
Mesmo quando as pesquisas se realizam em contextos urbanos, a abordagem tende a enfatizar a origem
camponesa e os processos de perda decorrentes dos deslocamentos migratórios.
11
configurando-se assim o que já se designou como uma “retórica da perda”
(GONÇALVES, 2003 a)
2
.
Pesquisas de cunho mais analítico surgiram nas últimas décadas, a partir de uma
visão sistêmica de cultura. Entre estas, vale mencionar especialmente o trabalho de
Carlos Brandão (1977, 1981), que contribuiu decisivamente para a percepção da folia de
reis como um “sistema de prestações totais”, com base nas teorizações sobre trocas
desenvolvidas por Marcel Mauss em seu Ensaio sobre a Dádiva (2003). Outro ponto
salientado por Brandão, que considero relevante, é que a folia não é apenas um grupo de
cantores e instrumentistas, mas um sistema que envolve devotos, moradores das casas,
enfim, pessoas com quem se estabelece algum tipo de relação fundamental. Esta
abordagem permite entrever a trama de reciprocidades que perpassa essas relações
sociais. Brandão associa estas redes de troca ao mundo camponês, e mesmo quando as
olha em contextos urbanos, considerando os fluxos migratórios, procura compreendê-las
como uma ressignificação de um modo de vida essencialmente rural. Prevalece, em sua
perspectiva, a idéia de que a folia reconstituída em ambiente urbano já não é a mesma,
sendo ela um sinal da reminiscência de uma sociabilidade estreitamente ligada a formas
de vida camponesas.
Mais recentemente, aparece o trabalho de Patrícia Monte-Mór (1992),
particularmente importante por ter sido desenvolvido no mesmo contexto em que o
presente trabalho apoiou parte de sua base etnográfica: a Candelária, no Complexo de
Mangueira. A dissertação de mestrado da autora é uma referência relevante, não só por
se dar em contexto urbano, mas por apontar para as conexões entre foliões e o poder
público, a Igreja católica, o turismo, bem como seu trânsito por outros contextos de
circulação extralocais. Outro trabalho desenvolvido a partir da mesma localidade, numa
perspectiva interdisciplinar centrada na dramaticidade plástica da folia de reis, é o de
Patrícia Peralta (2000).
Sem a ambição de esgotar toda a produção sobre o assunto, cumpre ainda
acrescentar as cuidadosas pesquisas de Cáscia Frade (1979), Suzel Reily (2002) e dos
meus colegas Wagner Chaves (2003) e Luzimar Pereira (2004). Sou especialmente
devedor a este último trabalho, pela atenção dada pelo autor ao papel da bandeira nos
rituais da folia de reis, percebendo sua centralidade simbólica e sua influência sobre
foliões e devotos. O autor notou que a bandeira realiza mediações em múltiplos planos
2
Para uma abordagem sobre os estudos de folclore no Brasil, ver Vilhena (1997).
12
e domínios, a partir de etnografia que realizou com base em trabalho de campo no sul de
Minas Gerais.
Retomando as discussões centrais que perpassam esses trabalhos, procuro
contribuir de forma original para a abordagem desse tema a partir de alguns
pressupostos envolvendo procedimentos metodológicos e teóricos específicos que passo
a comentar.
Para fins de delimitação, focalizei etnograficamente os usos de bandeiras e
máscaras em festas dedicadas aos Reis Magos no Estado do Rio de Janeiro
3
. Concentrei
a maior parte de minhas observações etnográficas na cidade do Rio de Janeiro, mais
precisamente na localidade da Candelária, uma das sub-regiões do Complexo de
Mangueira, na zona central da cidade. Foi nesta localidade que pude acompanhar parte
das atividades da Folia Sagrada Família, criada por migrantes de Minas Gerais ali
fixados. Acompanhei também as ações do grupo fora da Candelária, quando em visita
às casas de devotos residentes em regiões mais distantes, como o Morro Chapéu
Mangueira, no Leme, ou a Vila Cruzeiro, na Penha. Esses deslocamentos me
forneceram uma idéia mais exata da amplitude das redes de relacionamentos sociais que
se estabelecem entre foliões e devotos. Paralelamente, venho, desde dezembro de 2003,
percorrendo diversas localidades do Estado do Rio de Janeiro, onde se realizam os
chamados Encontros de Folias de Reis, festivais folclóricos que reúnem grande número
destes grupos, assim como representantes do poder público, intelectuais, devotos e
diversificado público. Estendi minhas observações ainda a algumas cidades da Zona da
Mata de Minas Gerais e também à cidade de Muqui, no Espírito Santo.
Com base nestas observações iniciais, gostaria de chamar a atenção para o
contraste e a complementaridade das ações de folias de reis em diversos registros que
podem ser assim provisoriamente resumidos: o registro das reciprocidades locais e o
registro de contextos multiculturais para os quais foliões utilizam as categorias visita e
3
No início do ano de 2007 fui para Portugal, com uma bolsa de estágio de doutorado no exterior
financiada pela CAPES. Durante os 7 meses em que permaneci nesse país, estive ligado ao Programa de
Doutoramento em Antropologia Urbana do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa
(ISCTE), sediado em Lisboa. O trabalho foi orientado pela Profa. Dra. Nélia Dias. Nesse período tive não
apenas a oportunidade de entrar em contato com pesquisadores e seus trabalhos, mas também de fazer
algumas observações de campo. Realizei um levantamento de festas religiosas populares, como também
de museus etnográficos onde poderia encontrar bandeiras ou objetos correlatos. A idéia de procurar tais
objetos em museus nasceu do interesse em observar os processos de reclassificação a partir dos quais os
objetos ganham novos sentidos. Limitado pela escassez de tempo, abandonei a perspectiva de pesquisar
coleções museológicas e concentrei-me nas festas populares nas quais eu poderia observar os usos e a
circulação de imagens de santos. No decorrer deste trabalho faço uso destas observações etnográficas de
modo pontual, quando julguei apropriadas para iluminar certas questões de forma comparativa.
13
apresentação. Observar o trânsito de folias de reis e conseqüentemente das bandeiras e
máscaras por esses registros é também objetivo desta pesquisa e, dentro deste quadro
comparativo, procuro colocar uma lente sobre as motivações e interesses que esses
grupos têm em se inserirem em circuitos de produção e circulação cultural mais amplos.
Focalizo, assim, mais as fronteiras e os processos sociais e políticos implicados nestes
fluxos; enfim, as relações de natureza complexa e as dimensões discursivas e
patrimoniais da cultura envolvidas nesta circulação. Assim procedendo, creio de certo
modo estar redefinindo o próprio objeto de estudo e penso que talvez esta seja uma das
contribuições de meu trabalho. Em outras palavras, não é sobre folias de reis e seus
objetos rigidamente delimitados no tempo e no espaço que trata este estudo, mas sim
sobre seus múltiplos enquadramentos (VALERI : 1994). Por outro lado, é precisamente
a partir da folia de reis e de seus objetos, que se observam os seus vários momentos ou a
mobilidade de seu contexto. Poderia talvez sugerir que o contexto efetivo da folia de
reis é a passagem incessante de um enquadramento a outro, através dos quais as
relações de natureza “vertical” ou “horizontal” tornam-se mais ou menos fortes.
Gostaria também de sugerir que esta pesquisa não é propriamente um estudo
sobre os objetos materiais enquanto entidades isoladas em um universo próprio. Os
objetos são aqui um dos meios através dos quais realizei esta pesquisa, tomando-os
como estratégia metodológica e teórica. Os objetos, assim como sua “materialidade”,
não são neste trabalho tomados como dados, mas como categorias analíticas. Também
não é unicamente da funcionalidade ou da função comunicacional desses objetos que se
trata. Meu intuito é, antes, revelar a armadura classificatória que se esconde por trás da
ostensiva aparência material desses objetos. Procuro acompanhar o movimento que os
fazem circular por essas categorias, assumindo os mais diversos significados e
adquirindo aquilo que Kopytoff (1986) chamou de “biografias culturais”, quando então
podem aparecer, permanecer, sofrer apropriações e expropriações diversas ou mesmo
desaparecer. Aponto, assim, para uma permanente tensão que ronda o lugar dos objetos
na vida social, situados precariamente entre a transitoriedade e a permanência, a
memória e o esquecimento, a vida e a morte. Acompanhar a circulação e o trânsito de
certos objetos através de fronteiras que recortam seus contextos é, de certo modo,
compreender a dinâmica da vida social e cultural, incluindo suas ambigüidades e
paradoxos, conforme aponta Gonçalves (2007a
: 15). Adotando este raciocínio,
podemos assumir que tudo isso se aplica ao empreendimento no qual foliões e devotos
estão imbricados.
14
A perspectiva aqui adotada está, portanto, em partir dos objetos para se chegar às
pessoas e às formas de interação que elas estabelecem entre si e entre elas e suas
divindades. Observo não apenas a circulação dos objetos na vida social, quando podem
se tornar portadores de atributos de seus proprietários, como no caso clássico do Kula
trobriandês (MALINOWSKI, 1976), mas também sua circulação cósmica, a forma que
podem assumir de dons e contra-dons, promessas e sacrifícios.
É também do poder dos objetos, de sua capacidade de desencadear efeitos sobre
as pessoas, enfim, de sua inserção num sistema de ação que se trata aqui. Justifico este
recorte com base na idéia de que o estudo dos objetos foi marginalizado ao longo da
construção do moderno conceito antropológico de cultura, cuja ênfase recai sobre os
sistemas de pensamento e organização social (GONÇALVES, 2007a, 2007b;
LAGROU, 2007). Ao lado disso, os aspectos materiais e imateriais da cultura passaram
a ser, de certo modo, separados conceitualmente, o que tem implicado numerosos
problemas de classificação. Contrariamente a esta perspectiva, procuro evidenciar
etnograficamente como essas dimensões da cultura são largamente imbricadas, e como
os objetos aproximam da experiência sensível, idéias, noções e esferas consideradas
distantes ou inacessíveis. Neste intercâmbio entre “material” e “imaterial”, opera-se
então aquilo que Mikhail Bakhtin (1993) chamou de “rebaixamento”, isto é, a
transferência ao plano da matéria e do corpo de tudo que é elevado, espiritual, ideal e
abstrato, ocorrendo igualmente o inverso quando os objetos ou mesmo os corpos e suas
partes vêm a ser classificados de forma elevada, sublime, espiritual etc.
Devo também acrescentar que esta pesquisa se move sobre a noção de que as
categorias classificatórias guardam certa instabilidade, acenando para as eventuais
incongruências existentes entre as categorias de pensamento e as categorias lingüísticas.
Desse modo, a ambigüidade, a ambivalência, assume neste trabalho um lugar
importante e, assim, devo muito à vertente antropológica desenvolvida especialmente
por Victor Turner, inspirada nas fases liminares dos ritos de passagem propostos por
Arnold Van Gennep. Num sentido abrangente e sumário, eu diria mesmo que a folia de
reis tematiza a própria ambigüidade e, sendo assim, procuro observá-la a partir das
margens, salientando e trazendo à cena as incongruências, os paradoxos, as quebras de
convenções, os símbolos ambivalentes etc. O foco, portanto, está mais nas expectativas
e menos nas certezas que levam foliões a se lançarem neste perigoso empreendimento,
onde estão envolvidos enlaces de caráter obrigatório. Esta perspectiva me leva de volta
às categorias e sua prometida estabilidade, garantia da ordem contra o caos sempre
15
iminente. Este é, verdadeiramente, o tema desta pesquisa que convido o leitor a
acompanhar.
Trabalho de campo e reflexividade
Aproximei-me dos foliões da Candelária em janeiro de 2004, quando conheci o
mestre Élcio, meu principal informante. Pouco tempo depois, fui convidado por ele a
ingressar no grupo, convite ao qual atendi sem hesitar, apoiado por minha bagagem
musical
4
. Assumi a função de instrumentista, introduzindo na orquestra da folia um
instrumento pouco conhecido entre as folias fluminenses, mas muito popular entre folias
de certas regiões mineiras: a rabeca
5
. A curiosidade e o interesse despertados pelo
instrumento, por sua sonoridade, foram meu passaporte para esse mundo. O instrumento
e a música tornaram-se uma moeda corrente importante para negociar trocas entre as
partes, além de um canal de comunicação, uma língua, de certo modo, comum. Através
da música, compartilhei sensibilidades e experiências particulares. Participando
coletivamente da produção da música, passei de observador a participante e, desse
modo, minha imagem foi sendo construída de forma conveniente para meus
interlocutores, que certamente buscaram formas de dar sentido à minha presença ali.
Para o grupo pesquisado, assumi este compromisso não apenas como
observador, mas também como folião e, nesta posição, posso dizer que não tive
qualquer privilégio, igualando-me aos demais em suas obrigações. É preciso, contudo,
distinguir as obrigações que decorrem do compromisso que foliões estabelecem entre si
enquanto grupo, e do compromisso individual que cada um assume com os santos,
muito embora estes pareçam misturados para os nativos. No primeiro caso, o que está
em jogo, sobretudo, são relações horizontais, laços e alianças mais ou menos profundas
que dão sustentação às práticas coletivas. No outro caso, se evidenciam relações
verticais com certas divindades, nas quais a dimensão sacrificial ganha acentuado
relevo. Trata-se efetivamente de um sacrifício oferecido aos santos; em verdade, a
4
Venho tendo contato direto com o campo da música há mais de duas décadas, especialmente como
instrumentista de formação erudita. Nos últimos 10 anos passei a me interessar por formas “tradicionais”
de música e pelos instrumentos artesanais a elas ligadas. Acabei, assim, por me aproximar da rabeca,
instrumento através do qual me introduzi na folia de reis aqui estudada.
5
No Brasil, a rabeca é um instrumento de cordas friccionadas, de fabricação artesanal, semelhante ao
violino e encontrada em numerosas manifestações culturais populares.
16
expressão de uma dívida impagável em relação a graças alcançadas. O fato de um folião
assumir este compromisso, na forma de um contra-dom, como pagamento de uma
promessa, condiciona a maneira como esta experiência o afeta.
Devo acrescentar que os efeitos da experiência participativa sobre o próprio
corpo me pareceram sempre muito intensos, ocasionalmente difíceis de suportar, e
talvez impossíveis de se imaginar. Também para mim, essa experiência não deixou de
ter sua dimensão sacrificial, tendo em vista um retorno pelo esforço empreendido: a
realização de um trabalho de campo produtivo. Para foliões, contudo, talvez estas
sensações sejam sublimadas e os limites do corpo e da mente sejam alargados pelo teor
obrigatório e permanente do compromisso a que se enredam, do temor de não
conseguirem cumpri-lo e da expectativa de receberem em troca bênçãos e graças.
Mestre Élcio, por exemplo, admite que se lançar às jornadas, nome que se dá aos
circuitos de visitação realizados pelas folias, é um empreendimento pesado, mas
costuma afirmar que a supremacia de seu compromisso, de sua obrigação, não o deixa
se cansar, apesar das noites não dormidas, do sobe e desce das íngremes ladeiras da
localidade, das longas distâncias percorridas, do sol inclemente etc. Tenho em mente
que, para foliões, esses sacrifícios se refletem numa escalada em busca de um estado de
“pureza” espiritual, de santidade, quando talvez se esteja mais apto a serem agraciados
com dons divinos, sempre incertos.
Devo ainda sublinhar as dificuldades de se empreender trabalho de campo nas
grandes cidades, tendo em vista a crescente violência que vem se instalando em
decorrência de numerosos fatores. Circular pela Candelária, tornando-me alvo de
observação de homens armados até os dentes, não foi uma experiência agradável, nem
se apresentou isenta de algum risco. Por outro lado, foram as relações que estabeleci na
localidade que possivelmente me garantiram maior segurança, expressa nos cuidados e
preocupações que as pessoas da localidade tiveram comigo. Foram também estas
relações que me fizeram olhar para a Candelária e sua intensa vida social de um modo
diverso do que predomina no senso comum, levando-me mesmo a me sentir, em muitos
momentos, bastante à vontade.
O tempo e a experiência levaram-me também a perceber que as regras não são
sempre tão rigorosas e claras, podendo mostrar-se flexíveis em certas circunstâncias e
dependentes de pontos de vista diversos. Esses aspectos me apontaram também para as
fissuras, tensões e conflitos de toda ordem, largamente presentes nos relacionamentos
entre foliões e devotos.
17
Lançando mão destas observações subjetivas, estou precisamente sinalizando a
ambigüidade inerente à posição (ou às posições) que assumi dentro do grupo e seu
potencial produtivo. Assumir tal lugar levou-me a estabelecer laços, alianças e relações
de uma qualidade particular, e a compartilhar de certa “intimidade cultural”
(HERZFELD, 1997), a partir da qual me vi constrangido pelo contexto circundante.
Esta condição, possivelmente, permitiu-me ter acesso a conhecimentos e novas relações
de sentido, que vão além dos discursos oficiais nativos.
Meu relato sobre a experiência de campo e as relações construídas dentro dele
seria muito parcial se não mencionasse a dimensão sensível, e sobretudo afetiva, que a
atravessou, e isso se relaciona diretamente com a estabilidade do lugar que assumi
dentro do grupo e do contexto relacional construído pelos meus interlocutores. Nesse
sentido, creio que os laços de confiança que estabeleci me autorizam a dizer que fui,
aparentemente e dentro de certos limites, aceito, o que se expressa de forma clara na
expectativa que alguns foliões alimentaram quanto à minha permanência no grupo,
mesmo cientes dos meus objetivos e de sua finitude. Foram esses laços que me
permitiram ter acesso a informações bastante reservadas, algumas das quais são de
relevância para este trabalho. Nesse sentido, também a maneira como produzi as
imagens fotográficas junto aos foliões e devotos pode ser tomada como um indicador da
qualidade das relações acima apontadas. Devo acrescentar que o material fotográfico
por mim produzido, ocupando largo espaço nesta pesquisa na forma de dados
etnográficos, cumpriu papel importante também no interior de minhas relações de troca.
O mesmo se deu também com relação às gravações de áudio e vídeo que
ocasionalmente pude realizar
6
.
Aponto, assim, para o fato de que a própria qualidade dos relacionamentos que
criei em campo e o modo como deixei me afetar pelos acontecimentos, símbolos e
sentimentos refletem o conhecimento elaborado por meio da etnografia (FAVRET-
SAADA: 1990). Em outras palavras, o conhecimento decorre destas relações
concretamente estabelecidas em campo, a partir de determinadas posições assumidas.
A mudança de posição de observador exterior a participante levou-me ainda a
um caminho de muitos aprendizados através de experiência direta. Nesse sentido,
encontro-me em um lugar que me permite relatar os processos de transmissão e
construção de conhecimentos e práticas. O que tenho para dizer a este respeito, muito
6
Na medida do possível, fiz cópias deste material e entreguei ao mestre da Folia Sagrada Família,
fazendo deste gesto uma moeda de troca.
18
modestamente, é que toda transmissão de conhecimentos, ou ainda sua herança, tende a
ser acompanhada de um processo de aquisição, ou seja, estes são reconstruídos e
reinterpretados no tempo presente, de forma ativa.
Não faço este julgamento partindo unicamente de minha experiência, mas
também da observação do que se passou ao meu redor. Assumo ao longo desta pesquisa
a idéia de que os processos de transmissão de conhecimentos, práticas e mesmos dos
objetos materiais envolvem, simultaneamente, herança e aquisição, e,
conseqüentemente, algum processo de “invenção” (HANDLER & LINNEKIN, 1984;
WAGNER, 1981; SAPIR, 1980; GONÇALVES, 2007d). Por trás dessas idéias, reside
uma concepção de cultura na qual ela é vista não apenas como produtora dos
indivíduos, mas também como produto destes mesmos indivíduos. Esta posição, me
parece, tem a vantagem de desessencializar os processos de transmissão de saberes e
práticas - enfim, de “tradições” - e permitir olhá-los como processos simbólicos e
criativos, com limites mais alargados e suscetíveis de serem percebidos a partir de
múltiplos enquadramentos. Assinalo, contudo, que a invenção de novos sentidos parte
sempre de convenções existentes compartilhadas pelos indivíduos e grupos. Adotando
este ponto de vista, creio que meu processo de aprendizado pode testemunhar os
processos inventivos e criativos dos quais venho falando.
Devo ainda relatar que, depois de algum tempo assumindo uma função dentro do
grupo, fui convidado pelo mestre Élcio a ocupar outro lugar. Para isso, tive que não
apenas adquirir novos conhecimentos, mas também habilidades para executar um
instrumento desconhecido para mim: o cavaquinho. Tive alguns encontros particulares
com Élcio, em sua casa, quando ele me ensinou os movimentos básicos relativos à
execução do instrumento, das seqüências harmônicas e rítmicas relativas às toadas da
folia de reis. Foi, afinal, com este instrumento que terminei os últimos dias de trabalho
de campo em 2007.
Ao longo de meu relacionamento com foliões, atuei ocasionalmente também
como mediador entre estes e contextos de produção cultural, agenciando apresentações
em teatros, centros culturais etc. Essas atividades ocuparam também lugar importante
como capital simbólico em minhas trocas recíprocas. Desse modo, transitei
incessantemente entre as condições de observador, produtor cultural, pesquisador e
folião, e creio que esta passagem não tenha sido percebida de forma incongruente por
meus interlocutores, possivelmente acostumados a realizarem, eles próprios, estes
19
deslocamentos
7
. Desse modo, estou convencido de que minha presença na folia e
mesmo meu trabalho de pesquisa foram recebidos com interesse e percebidos como
vantajosos, tendo em vista os canais que eventualmente poderiam se abrir para a
circulação da folia, sua exibição em outros contextos, sua divulgação no meio
acadêmico etc.
***
No capítulo 2, introduzo o leitor no Complexo de Mangueira e em suas formas
de sociabilidade. Ao narrar a história desta localidade, aponto para os aspectos
histórico-sociais que levaram ao aparecimento das chamadas “favelas” no Rio de
Janeiro no início do século XX, discutindo as implicações dos usos desta categoria.
Focalizo a Candelária, cenário de foliões e devotos, enquanto uma sub-região específica
dentro do Complexo, e procuro desnaturalizar a idéia predominante no senso comum de
que esses lugares são homogêneos.
Situo historicamente a constituição das folias de reis desta localidade a partir dos
processos migratórios, quando as práticas rituais assumem grande importância no
fortalecimento dos laços sociais em contextos urbanos. Observo os modos como se
tecem esses laços, que acabam por se refletir nas tramas hierarquizadas, nas quais a
bandeira circula.
Enfatizo a centralidade da “família extensa” a partir da qual se articulam
relações de compadrio e de vizinhança. Apresento alguns dos atores sociais que se
tornarão mais presentes ao longo do texto, dedicando especial atenção ao mestre e sua
trajetória, através da qual se constrói o conhecimento por meio de herança e aquisição.
Observo o papel de certas alianças sociais e o domínio do conhecimento ritual, o qual
foliões denominam de fundamento, na conquista e estabilização de posições
hierarquicamente superiores dentro da estrutura formal da folia.
As descrições etnográficas seguem entrelaçando e diluindo fronteiras entre vida
ritual e vida cotidiana num contexto marcado por profundas tensões, especialmente pela
presença do “tráfico de drogas”. Aponto ainda para as desigualdades sociais tornadas
visíveis neste contexto, e para o modo como a constituição das redes de solidariedade
7
Conforme observei, o mestre da folia lida com códigos rituais, burocráticos, econômicos etc.
20
visa, de certa forma, a superar vicissitudes de toda ordem que atravessam a vida diária
desses grupos sociais.
No capítulo 3, descrevo as atividades totais da Folia de Reis Sagrada Família e
as interações sociais nelas inscritas envolvendo devotos. Acompanho a circulação da
bandeira desde sua retirada do altar, passando por sua entronização no interior das casas
de devotos e seu retorno ao altar, ao fim de um ciclo de jornadas. Descrevo toda a
seqüência de atividades que tem lugar ao longo da visita à casa de um devoto,
envolvendo a chegada, a entrada na casa, a refeição, a brincadeira do palhaço, os
agradecimentos e finalmente a despedida.
Sinalizo o lugar central que a bandeira assume numa série de mediações
operadas ao longo dos rituais de troca. A categoria promessa assume aqui uma
importância vital, apontando para as alianças cósmicas estabelecidas. Completo a
etnografia com uma descrição da festa de arremate, quando as dádivas acumuladas ao
longo das jornadas são distribuídas de forma cerimonial, marcando o fim de um ciclo
de atividades anuais. Enfatizo a fase preparatória da festa, o modo como é socialmente
organizada e produzida, apontando-a como o ápice do sistema de reciprocidades
instituído por foliões e devotos. Revelo ainda que através da festa se desenha todo um
circuito de relações estabelecidas entre diversas folias de reis, por meio de visitas
recíprocas. É quando se evidenciam também os aspectos agonísticos, manifestados,
sobretudo, através de ações “mágico-religiosas”. Termino o capítulo observando o
trânsito de folias de reis por contextos diversos, como festivais folclóricos ou palcos de
teatros, colocando em foco as dimensões patrimoniais da cultura, conforme já
mencionei.
O capítulo 4 é dedicado à bandeira, quando realizo análises mais profundas
sobre seus usos simbólicos e práticos, sempre apoiado em material etnográfico. Procuro
pensar a categoria “representação”, ao buscar compreender como se dá efetivamente a
relação da bandeira com os santos que supostamente representam, de acordo com o
ponto de vista nativo. Tal empreendimento me leva a propor que a bandeira, a exemplo
de outros objetos, celebra uma presença percebida de modo concreto, e que se dá a
partir de um quadro mental específico, assim como de processos convencionais. O
aparato ritual que envolve a bandeira, constituído por palavras, música, gestos etc.,
contribui de forma decisiva para a construção dessa realidade.
Partindo da descrição de casos etnográficos, enfoco a propriedade
hipermediadora da bandeira. Evidencio sua capacidade de mediar domínios sociais e
21
cosmológicos, o que a torna, para devotos e foliões, um locus de poderes
supramundanos. Transitando por domínios e esferas normalmente separados, a bandeira
relaciona vivos e antepassados, homens e deuses, casa e rua, céu e terra, passado e
presente, e assim por diante. A ambivalência da bandeira aparece aqui com toda a sua
força, revelando-se como sendo ao mesmo tempo deste mundo e do além.
Busco correlações entre rito e mito a partir da categoria semelhança, mostrando
que a “mimesis” aqui envolvida implica tanto operações metafóricas quanto
metonímicas, assinalando a continuidade entre esses planos. Desse modo, a bandeira é
pensada como a própria materialização do fundamento, o conhecimento sagrado, mítico,
que dá suporte às ações rituais de foliões, constituindo-se em um ponto de referência
idealmente imutável.
Trato, ainda nesse capítulo, da “materialidade” específica da bandeira, quando
aponto também para seus aspectos formais e para o modo como contribuem para sua
eficácia. Aponto as técnicas corporais (MAUSS, 2003) envolvendo a manipulação da
bandeira por foliões e devotos, e ainda para as formas de transmissão da bandeira ou de
sua destinação.
No capítulo 5, abordo de modo mais frontal o lugar da ambigüidade no contexto
observado, situando-a num campo simbólico e de forças concretas. Para isso, dedico
largo espaço aos aspectos rituais, lúdicos e expressivos que caracterizam o palhaço e
sua brincadeira. Revelo como esta ambigüidade ontológica se traduz numa
vulnerabilidade. O perigo e a incerteza que rondam o palhaço instauram uma série de
regras de evitação contra o contágio de “impurezas”, abrindo espaço ainda para as
rivalidades e as ações agonísticas com base em procedimentos “mágico-religiosos”.
Exploro o mito de origem da folia de reis e aponto para a reversibilidade simbólica do
palhaço, o que o torna um poderoso operador ritual.
Elaboro ainda reflexões sobre a concepção de “pessoa” e sua relação com a de
“corpo”, partindo da experiência profundamente transformadora pela qual passa o
palhaço. Argumento a favor de um self expandido, observando, através da biografia do
palhaço Gigante, como a experiência vivida na folia invade outras dimensões de sua
pessoa, consistindo no seu eixo organizador. Observo, afinal, o que o palhaço faz de seu
corpo e que conhecimentos estão envolvidos.
Para além da universalidade da máscara, ela aqui ganha toda uma especificidade
associada ao palhaço. Enfatizo o modo como ela se torna eficaz produzindo ilusão
visual, um disfarce, operando na esfera das aparências, das convenções.
22
Um exame sobre os modos de se fazer as máscaras e os materiais utilizados
evidenciam seu aspecto transitório e efêmero, em contraste com a forma ritualizada com
que a bandeira é confeccionada ou reformada, sendo esta tendencialmente mais perene.
Aqui aparece de forma mais evidente uma longa cadeia de oposições que coloca em
contraste esses objetos e suas materialidades específicas. Os objetos, assim, parecem se
articular num sistema eficaz, evidenciando o fato de que a experiência das relações entre
foliões e devotos e destes com suas divindades é construída de forma total.
Por fim, gostaria de acrescentar alguns esclarecimentos preliminares. Todas as
fotografias reproduzidas aqui são de minha autoria, com exceção das figuras 2, 15, 33 e
38, que estão acompanhadas de seus créditos. Seguindo uma convenção comumente
assumida na antropologia, substituí os nomes das pessoas aqui envolvidas por
pseudônimos. Convencionei ainda utilizar categorias nativas em itálico e categorias
analíticas entre aspas.
23
2. ETNOGRAFANDO NO COMPLEXO DE MANGUEIRA
2.1 O Complexo de Mangueira e as ‘folias’ de reis
O Complexo de Mangueira é um conjunto de sub-regiões e “comunidades”
8
localizado na zona central da cidade do Rio de Janeiro, pertencendo à VII Região
Administrativa, ocupando cerca de 10km
2
de área. Encontra-se limitado à frente pela
Av. Visconde de Niterói, à esquerda pela Rua Ana Néri, aos fundos pela Rua São Luis
Gonzaga e, finalmente, à direita pela Quinta da Boa Vista. É formado pelas sub-regiões
do Telégrafo, Mangueira, Chalé, Parque da Candelária e ainda por pequenos núcleos
populacionais, como Pindura Saia, Olaria, Santo Antônio, Faria, Buraco Quente, Curva
da Cobra e outros. A denominação Morro de Mangueira acabou por ser adotada
informalmente entre os moradores do Complexo para designar a maior parte destas sub-
regiões. Muitos destes núcleos são bastante independentes, o que explica também a
variedade de denominações encontradas. Seus residentes costumam afirmar as
identidades locais, bem como singularidades e diferenças das áreas a que pertencem. A
população total do Complexo foi recentemente estimada em 19.000 habitantes
9
.
A história das primeiras favelas do Rio de Janeiro está ligada à demolição de
cortiços na área central da cidade, como parte da ampla reforma urbana planejada e
executada por Pereira Passos. Sem alternativas de moradia, parcelas mais
desfavorecidas da sociedade iniciaram o povoamento dos morros da cidade (BRENNA,
1985). No caso de Mangueira, sua ocupação teve início em fins do século XIX, logo
após a morte do proprietário das terras, conhecido como Visconde de Niterói (título de
8
Ao logo deste texto faço uso da categoria “comunidade” para delimitar situacionalmente um grupo de
pessoas entre as quais se encontram foliões e devotos. Contudo, estou ciente da necessária cautela
implicada neste uso, ao perceber esses grupos em sua relativa heterogeneidade e fluidez territorial. Devo
esclarecer que apenas parte dos foliões e devotos que integram os sistemas de reciprocidades das
folias
de reis situadas na Candelária vivem nesta localidade. Considerando os fluxos migratórios e a amplitude
dos relacionamentos que giram em torno dessas
folias de reis em particular, tendo a conceber a idéia de
“comunidade” como uma construção simbólica dependente de sua interpretação contextual (COHEN,
1985). Nesta perspectiva, a noção de “comunidade” deixa de ser um organismo social dado em si mesmo
para se tornar um processo a partir do qual se desenham limites e diferenças de forma negociada e
contestada. Como escrevem Joana Overing e Nigel Rapport, “Hence, communities and their boundaries
exist essencially not as social-structural systems and institutions but as worlds of meaning in the minds of
their members (2000: 62)”
9
Dados fornecidos pelo Pouso Urbanístico Municipal.
24
nobreza de Francisco de Paula Negreiros Saião Lobato), que as teria recebido de D.
Pedro II. Um português chamado Tomás Martins, padrinho do memorável compositor
de samba Carlos Cachaça (Carlos Moreira de Castro), teria construído moradias na
localidade para alugá-las. Desde 1852, quando se inaugurou nas proximidades da
Quinta da Boa Vista o primeiro telégrafo aéreo do Brasil, a elevação vizinha ficou
conhecida como Morro dos Telégrafos. Pouco depois começaram a se instalar no local
fábricas como a de chapéus, que veio a se chamar “Fábrica das Mangueiras,” em alusão
à grande quantidade desta árvore frutífera existente no local à época, para logo depois
vir a se denominar Fábrica de Chapéus Mangueira. O nome foi também adotado pela
Central do Brasil para batizar a estação de trem inaugurada em 1889. A elevação ao
lado da linha férrea também começou a ser chamada de Mangueira, enquanto o antigo
nome de Telégrafos permaneceu para identificar apenas uma parte do morro
10
.
Figura 1. Complexo de Mangueira com suas principais áreas.
Em 1908, a prefeitura empreendeu reformas na Quinta da Boa Vista, demolindo
antigas casas ocupadas pelos militares do 9º Regimento de Cavalaria, que passaram a
morar no morro. Um incêndio ocorrido em 1916 no Morro de Santo Antônio, no centro
10
Os relatos históricos guardam alguma variação. Tomei como base as informações fornecidas por Maria
Julia Goldwasser (1975), bem como dados disponibilizados no site www.mangueira.com.br.
25
da cidade, contribuiu para elevar a população de residentes em Mangueira. O Complexo
ia se formando com o predomínio de populações afrodescendentes, filhos e netos de
escravos que vinham em grande parte do interior do estado ou mesmo de outros estados.
É nesse ambiente que florescem importantes “manifestações culturais”, como o jongo,
as pastorinhas, os blocos, cordões e ranchos carnavalescos, bem como toda uma geração
de compositores de samba (SILVA; CACHAÇA; OLIVEIRA FILHO, 1980). Do
encontro entre Cartola (Angenor de Oliveira), Carlos Cachaça e outros sambistas,
nasceu a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, fundada em 1928,
projetando a Mangueira para muito além dos seus limites
11
(VIANNA, 2004). Em torno
do samba e da Escola carnavalesca se aglutinaram, especialmente a partir dos anos 60,
intelectuais, políticos de esquerda, importantes nomes da música popular brasileira e
personalidades da classe média, em sua grande maioria, da zona sul da cidade.
Nos anos 40, um grande contingente de migrantes de Minas Gerais fixou-se,
especialmente na Candelária, com vistas a compor a força de trabalho das fábricas de
cerâmica instaladas nas proximidades (MONTE-MÓR, 1992). Como nota a autora
(1992: 47), para os migrantes mineiros oriundos de contextos rurais, as fábricas de
cerâmica foram portas de entrada para o mundo operário urbano. Atualmente, é nessa
pequena área do Complexo onde as folias de reis têm suas sedes e onde reside a maior
parte dos integrantes dos núcleos centrais desses grupos. De acordo com o depoimento
de foliões, soube que a maior parte deles trabalhou na Companhia de Cerâmica
Brasileira (CCB), hoje desativada, cujo muro faz limite com a Candelária. É também
nesta área e adjacências que reside a maior parte das famílias visitadas, quando as
jornadas não são realizadas fora do morro.
O nome Candelária se deve à Irmandade da Matriz Nossa Senhora da
Candelária, instalada em terrenos doados pelo Exército nos anos 50 na parte alta do
morro, e a cuja periferia famílias vieram em busca de moradia (BATISTA, 2005). É a
área do Complexo mais próxima à Quinta da Boa Vista, encontrando-se numa parte
relativamente baixa do morro. Foi alvo de intervenções urbanísticas dentro da política
do Favela-Bairro
12
em 1996, mas como nota Batista, apesar da melhoria de infra-
estrutura ocasionada pela intervenção, com a remoção de moradias de locais de risco,
11
Os patrocínios de grandes empresas à Escola e aos projetos sociais iniciados em 1987 também
ajudaram a dar visibilidade à Mangueira, o que acabou por levar o ex-presidente dos EUA, Bill Clinton, a
visitá-la.
12
Programa da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro que tem por objetivo realizar melhorias de infra-
estrutura das favelas, integrando-as à paisagem urbana.
26
alguns anos depois verifica-se que novas casas foram erguidas em áreas que haviam
sido desocupadas e reflorestadas (: 66).
A Candelária abriga hoje 1.040 famílias com 3.296 pessoas. Apenas 7% da
população é oriunda de Minas Gerais, 10% de outros estados, principalmente da Região
Nordeste e o restante é do Rio de Janeiro
13
. Quase a totalidade dos domicílios dispõe de
saneamento básico e adequada distribuição de água e luz. A comunidade tem acesso à
coleta de lixo, centro comunitário, centro cultural, associação de moradores e posto de
saúde. Seu acesso principal a partir da Av. Visconde de Niterói se dá pelo chamado
portão 2 ou pela Rua da Pedreira, esta última, um longo trecho asfaltado. Daí em diante,
as vias vão-se tornando bastante estreitas, permitindo somente a passagem de pedestres
e motocicletas. A grande maioria dos domicílios tem um ou dois pavimentos, sendo
muitas vezes multifamiliares. Com a escassez de recursos, é bastante comum que um
segundo ou terceiro pavimento seja construído tempos mais tarde à edificação do piso
inferior. Muitas vezes, filhos recém-casados passam a morar nesta extensão da casa.
Figura 2. Detalhe da Candelária. Em amarelo, o acesso. Em vermelho, as
intervenções do Favela-bairro. (Google Earth)
13
Censo 2004. Secretaria Municipal de Saúde.
27
Há atualmente na Candelária duas folias de reis, Manjedoura de Mangueira e
Sagrada Família, tendo a primeira sido estudada por Monte-Mór (1992) e Peralta
(2000). No intervalo que separa essas duas dissertações de mestrado do presente estudo,
muitos aspectos relacionados ao contexto e às próprias folias se modificaram. O relato
de informantes e os registros realizados pelos trabalhos apontados levam à constatação
de que a trajetória desses grupos sempre foi muito dinâmica. Se considerarmos estas
práticas como “tradicionais”, devemos levar em conta, como sugerem Handler e
Linnekin (1984), que estas se relacionam com o passado, mas implicam
necessariamente tanto continuidades como descontinuidades.
Não é demais sinalizar que todo relato memorial dos segmentos sociais ligados
às folias de reis é, em realidade, uma reconstrução no presente de idéias e imagens do
passado, em sintonia com o que Halbwachs (1990) chama de “quadros sociais da
memória”. Para o autor, lembrar não é reviver, mas sim reconstruir, através de imagens
e idéias de hoje, a experiência passada. A memória não é um repositório de imagens
estáveis, mas um processo de reconstrução narrativa necessariamente dependente de
certas referências sociais do presente. Desse modo, a vida atual de um sujeito e as
instituições que lhe dão suporte (família, escola, religião etc.) constituem o dispositivo
desencadeador da memória. Sem estes enquadramentos compartilhados socialmente,
não há memória, mas esquecimento.
De acordo com os relatos de informantes, os mineiros que chegaram à
Candelária nos anos 40 faziam parte de uma família extensa originária da fusão de duas
famílias: a dos Elias Gomes e a dos Lousada. Seus membros foram gradualmente
deixando fazendas nas regiões de Muriaé, Leopoldina, Goitacazes, Laranjal e
mediações, onde eram empregados, transferindo-se para a Candelária. Trouxeram
consigo os saberes e a memória dos festejos de reis que viriam reconstruir em contexto
inteiramente novo, dando origem à Folia Manjedoura de Mangueira. Para os foliões de
Mangueira, contudo, a origem desta folia é mesmo mineira e vale ressaltar que, mesmo
em tempos recentes, o trânsito e os vínculos sociais entre os que para a Candelária
vieram e os que permaneceram em Minas ainda é bastante intenso.
Conta-se também que, quando os mineiros chegaram à Candelária, já havia em
outra localidade de Mangueira, chamada Faria, uma folia de reis comandada por
Serafim, um migrante da região norte-fluminense. Os que chegavam de Minas se
incorporavam à folia de Serafim, que veio a se chamar mais tarde de Folia Sagrada
Família. Soube também através de relatos que, ao longo de suas trajetórias, as duas
28
folias se juntaram tornando-se uma, em certos períodos, através de escalonamentos de
foliões
14
. Ao longo do tempo, entretanto, houve várias ocasiões em que seus foliões se
separaram, muitas vezes em decorrência de disputas e conflitos entre mestres e foliões
mais importantes. Como escreve Peralta, referindo-se à Folia Manjedoura, “Em
Mangueira, a figura do mestre-folião está diluída numa confusão de disputas de poder e
notoriedade” (2000: 139).
Atualmente os grupos estão separados, estando a Sagrada Família sob os
cuidados e autoridade de Élcio, tendo-a herdado diretamente de Geraldo Raimundo, um
mineiro fixado na Candelária. Por outro lado, a Manjedoura de Mangueira formou-se a
partir do núcleo de migrantes mineiros, estando desde o início sob a tutela de Teixeira,
seu dono. Esta folia passou às mãos de diversos mestres, como Dila, Benício, Jonas,
Simplício, Élcio, entre outros, mesmo sob o controle de Teixeira, até que uma disputa
de poder entre Élcio e Lauro, filho de Teixeira, levou o primeiro a se distanciar e
reativar sua própria folia, a Sagrada Família, iniciada por Serafim.
Assim Élcio testemunha sobre os conflitos que o levaram a sair da Manjedoura:
“Eu cantei nove anos consecutivos na Folia da Manjedoura da Mangueira. E foi
lá que tive minha formação de mestre tanto na prática quanto na teoria. Aí
depois passou e teve um Encontro quando Seu Teixeira tava enfermo, internado,
e iam fazer uma homenagem a ele e reuniram várias folias na Casa França
Brasil. Veio folia de Itaperuna, de Valença, Duas Barras. Todos os estados que
têm federação, associação, mandou um grupo. Aí a parte mais triste foi quando
teve uma parte que foi anunciada que cada mestre tinha que vir ao palco com
seu alferes, com sua bandeireira. Aí quando chamou a Manjedoura da
Mangueira, o Lauro pulou na minha frente, e ele não tava como mestre. Todo
mundo que tava ali e que me conhecia e também da Federação de Reisado do
Rio de Janeiro [FRERJA], ninguém entendeu nada. Mas ali naquele estágio a
gente já não vinha se entendendo bem. Não sei se era por inveja do pai dele, que
o pai dele desde quando eu passei a cantar, o pai dele me dava carta branca deu
decidir as coisas, de apresentação que eu fechava. Então na verdade eu vejo
dessa forma porque eu tava assumindo um lugar que hierarquicamente tinha
que ser dele, mas ele até então na época não tinha capacidade pra tanto, porque
o legal da folia é passar de pai pra filho, então acho que isso mexeu um pouco e
também pelo fato de eu ser um garoto e tá de frente a tanta responsabilidade”.
A narrativa de Élcio evidencia com muita clareza o lugar do conhecimento ritual
na manutenção do poder e da autoridade do mestre junto aos foliões e devotos, e
também a precariedade em mantê-los. Revela igualmente certas hierarquias na escalada
14
Integrantes de um grupo, eventualmente, eram chamados pelo outro grupo, muitas vezes por razões
práticas (ausência de um tocador de sanfona ou viola, por exemplo). Desse modo, a formação dos grupos
sempre foi muito dinâmica e transitória. Mesmo no curto período em que acompanhei a Folia Sagrada
Família, notei um grande dinamismo na formação do grupo, com a entrada e saída freqüente de foliões.
29
da posse e uso desse poder. Primeiramente, é preciso esclarecer que dono e mestre são
categorias distintas exigindo alguma delimitação, embora freqüentemente ambas as
funções se fundam na mesma pessoa. Dono é a pessoa que origina uma folia de reis ou a
herda de outro dono. Sua autoridade é grande, mas limitada quando ele não detém o
conhecimento ritual necessário para a condução da folia, necessitando assim da
presença de um mestre. Quando uma folia é integrada por um dono e um mestre, estes
papéis são normalmente bem marcados, mas sujeitos a confusões. O dono é responsável
pelas condições materiais da folia: instrumentos musicais, manutenção da sede, fardas,
comida etc. É ele quem toma algumas decisões de ordem mais burocrática, tais como a
definição do roteiro de casas a serem visitadas, a negociação de apresentações, cachês
etc.
O dilema de Lauro está em que não sendo detentor do conhecimento ritual, fica
impossibilitado de assumir a autoridade máxima atribuída ao mestre. No caso de Élcio,
esta autoridade é confirmada pelos privilégios concedidos por Teixeira a ele. Mesmo
sendo filho do dono da folia e supostamente seu “legítimo herdeiro”, o papel de Lauro
na folia parecia nitidamente ambíguo, de acordo com o que conta Élcio
15
. Não sendo
mestre, nem dono, Lauro permaneceu fisicamente sempre próximo de Élcio, mas numa
função indefinida. No fato relatado, diante da possibilidade de se destacar publicamente
e conquistar certo prestígio, Lauro assumiu o papel de mestre, de forma ilegítima.
Élcio expressa a natureza conflituosa de sua relação com Lauro e sua indignação
pela traição de que foi vítima.
Aí a gente tinha a jornada e às vezes a gente entrava em discórdia. Eu pensava
uma coisa, ele pensava outra, e não chegava a um denominador comum. E esse
dia foi a gota d’água porque ele fez isso e puxou o meu tapete perante a todos
que me conheciam como mestre-folião. E eu fiquei muito revoltado, fiquei muito
esquentado, nervoso ...
Com a saída de Élcio da Manjedoura, muitos foliões que o admiravam como
mestre-folião o seguiram, viabilizando a retomada da Folia Sagrada Família, que se
encontrava desativada há muito tempo. Foi no ano de 2001 que Élcio reuniu foliões,
instrumentos e bandeira e pôs a folia em jornada, devendo cumprir sua obrigação em
2008, completando os sete anos que se dizem exigidos
16
.
15
Parece existir uma correlação entre posição espacial, hierarquia e estatuto, que explorarei mais adiante.
16
A maior parte das folias de reis não encerra suas atividades passado este período. Suspeito que, em
verdade, a continuidade desta prática se deva ao fato profundo de que a dívida contraída por foliões, e
especialmente pelo mestre ou dono, com relação a graças alcançadas, é impagável. A perpetuação desta
30
2.2 Entrando na Candelária
Estive pela primeira vez na Candelária, a convite de Élcio, numa noite do dia 19
de janeiro de 2004, véspera do dia de São Sebastião, quando o grupo se preparava para a
última jornada daquele ciclo. Segui pela Rua da Pedreira, por cerca de 800 metros,
dobrei a esquerda e saí numa área mais aberta a que chamam de muro, onde se
localizam as edificações construídas pelo programa Favela-Bairro. Seguindo adiante, fui
abordado por uns jovens que ali se encontravam (certamente notaram que eu não era da
localidade) perguntando a mim se eu procurava por alguém. Respondi-lhes que estava
indo à casa de Élcio, mestre da folia de reis. Em sinal a minha resposta, os rapazes me
indicaram o caminho, através do qual pude observar a estreita entrada da favela por
onde penetraria naquele diverso mundo
17
. Embora eu já tivesse ido a outras favelas em
diferentes ocasiões, aquela era a primeira vez em que me encontrava só. Evidentemente,
certifiquei-me com Élcio de que não haveria qualquer problema em entrar na
comunidade, tendo em vista o controle exercido pelo comando do tráfico na localidade,
especialmente com relação aos de fora.
Percorrendo as vielas do morro, senti um misto de receio, curiosidade e
excitação. Diante de mim, uma agitada Candelária se fazia perceber no incessante vai-e-
vem de toda gente: homens, mulheres e crianças, bem como animais. À medida que me
precipitava em direção ao coração da Candelária, sons das conversas desfiadas nas casas
ou do lado de fora se misturavam à música dos rádios, discos e programas televisivos.
Ao longo do caminho para a casa de Élcio, notei portas e janelas escancaradas, biroscas
alegremente freqüentadas e pessoas bebendo cerveja e assando carne em meio às ruelas
cinzentas e escuras. Uma intensa sociabilidade se desenrolava ali, enquanto sons,
murmúrios, risadas, cheiros e latidos me aguçavam os sentidos. Na medida em que
avançava, na ansiedade de encontrar logo a casa de Élcio, já não conseguia distinguir
com clareza o dentro e o fora, a casa e a rua. Caminhando pelas ruas, sentia estar
prática parece evidenciar o modo como continuamente se renovam promessas e seu pagamento,
comprometendo de modo obrigatório foliões e devotos.
17
A constituição de favelas e seu vertiginoso crescimento nas grandes cidades têm sido foco de estudos,
bem como de acalorados debates veiculados pela imprensa. A imagem construída sobre as favelas e
difundida através dos meios de comunicação de massa, principalmente pela televisão, dentro e fora do
país, é pautada por um discurso fortemente ambíguo. De acordo com Valladares (1999), as idéias que têm
predominado no senso comum com relação às favelas têm contribuindo para a propagação de sua imagem
como lugares diferentes, problemáticos, homogêneos e ainda associados ao banditismo. Não é meu
objetivo aprofundar o conjunto de problemas suscitados por essas idéias, mas não deixa de ser relevante
apontá-las e contrapô-las às representações nativas que se fizerem presentes ao longo das descrições
etnográficas sobre a Candelária.
31
percorrendo o corredor interno de uma casa. Isso porque as pessoas ocupavam as ruas
como se fossem suas casas e suas casas como suas ruas. Algo dessa fronteira
normalmente tão demarcada parecia se diluir diante de meus olhos. Dessa experiência e
das que se seguiram, ao longo do trabalho de campo na localidade, pude confirmar a
suspeita de que os espaços “privados” e “públicos” confundem-se muitas vezes nestas
formas de organização sócio-espaciais
18
.
Cronologicamente, não demorei muito a encontrar a casa de Élcio, mas a
impressão que tive foi a de já ter passado um longo tempo. A porta estava aberta e logo
na entrada encontrei Isabel, esposa de Élcio, a bandeireira do grupo que veio me
recepcionar com muita simpatia
19
, trazendo-me certo reconforto. Já havia alguns foliões
descontraidamente reunidos na parte da casa que vim a perceber como sendo uma área
de serviço
20
. Élcio mantinha ali um pequeno comércio de bebidas e freqüentemente,
nesta parte da casa se reuniam amigos, vizinhos etc., mesmo fora do tempo das
jornadas. Mesas, cadeiras, copos, garrafas, roupas em varais, objetos velhos, gente
chegando e saindo, cheiros, latidos, burburinhos, sons de sanfona, acordes de um
cavaquinho, um velho balcão de bar desenhavam o contorno desta sinestésica paisagem.
A casa, em realidade, pertence aos pais de Élcio e é onde residiam também, até
bem pouco tempo, Isabel e Eloan, seu filho mais novo, do primeiro casamento. Depois
de conversarmos um pouco, Isabel orientou-me a subir umas escadas que dão acesso ao
segundo pavimento da casa, um espaço de aproximadamente 20 metros quadrados,
provisoriamente utilizado como sede da folia. A sala, de onde pode se avistar ao longe o
prédio da UERJ, dá acesso a outros cômodos onde soube morarem parentes de Élcio.
Alguns foliões já haviam chegado e estavam tocando seus instrumentos
descontraidamente sentados em bancos de madeira. Notei que, encostado na parede ao
fundo havia um altar. Tratava-se de uma pequena mesa baixa coberta por uma toalha
branca onde repousavam a bandeira e outros objetos cerimoniais, como velas, incensos,
pratos de porcelana, diversas imagens de santos e copos de água. O altar com a
bandeira estava recoberto por um véu e pequenas lâmpadas natalinas coloridas. Na
18
A rua torna-se, assim, uma extensão da casa e vice-versa, e é predominantemente neste espaço que, em
grande medida, se tecem significativos laços de solidariedade. Estou, portanto, sinalizando a continuidade
entre estas categorias e menos sua oposição rígida.
19
Já havíamos nos conhecido num encontro de folias em Manuel Duarte, alguns dias antes. Foi nesta
ocasião que conheci também Élcio e fui convidado a comparecer à Candelária numa futura saída do
grupo.
20
Espécie de território de mediação entre a rua e a casa. Foi neste lugar onde ouvi muitas histórias sobre
as folias e a gente daquele lugar.
32
parede, muitas imagens de santos emolduradas e fotografias da folia dividiam espaço
com objetos variados, fios elétricos, ferramentas, etc.
Antonio Elias, o sanfoneiro, conhecido como Humberto, migrante das Minas
Gerais tocava um calango
21
. No intervalo consegui conversar com ele, que me contou
alguns detalhes da história da Folia Sagrada Família, de como ela se formou através da
dissidência de alguns integrantes da outra folia, a Manjedoura, por motivos de
desavenças. Humberto é de Laranjal, e sua sanfona de oito baixos foi fabricada por Sô
Tão, velho sanfoneiro de folias da região.
Também já se encontrava devidamente fardado Rodolfo, o contra-mestre, e
Sebastião, um dos cantores, ambos integrantes do núcleo mais permanente do grupo.
Pouco tempo depois chegou Élcio, visivelmente agitado e preocupado com os
preparativos para a derradeira jornada que apenas se iniciava e que terminaria ali
mesmo no dia seguinte, com a entrega da bandeira.
2.4 Vida cotidiana e ritual na Candelária
Estive na Candelária e em suas imediações diversas vezes fora do tempo das
jornadas, e pude observar melhor o cotidiano das pessoas e sua relação com as
atividades da folia de reis. O movimento na Candelária é menor nos dias de semana,
aumentando consideravelmente à noite e nos fins de semana, quando seus residentes
estão na localidade em maior número. As ruas deixam de ser meras vias de acesso e são
ocupadas por gente que se senta nos bancos de cimento construídos para este fim. Os
locais de maior concentração são as biroscas e tendinhas espalhadas por toda a área.
Seus freqüentadores em geral preferem mesmo a rua ao interior destes comércios, que
muitas vezes são também residências familiares. Além das biroscas, encontram-se
bazares, papelarias, pequenos mercados, cabeleireiros, lojas de roupas, etc. Outras
pessoas freqüentam a sede da Assembléia de Deus, a igreja católica ou algum centro
espírita ou de umbanda. Opções de lazer são encontradas na Candelária e em outras
áreas, como o campo de futebol, bailes funk e os ensaios da escola carnavalesca no
Palácio do Samba, situado nas imediações do Buraco Quente, porta de entrada para a
Mangueira propriamente dita.
21
Gênero musical centrado no improviso de versos difundido na Região Sudeste.
33
Subindo o morro, nota-se que quanto mais elevado, maior é a precariedade da
infra-estrutura e das residências, quase todas sem reboco ou pintura. Os integrantes da
folia residentes na Candelária moram na parte baixa e mediana do morro. Nestas áreas a
infra-estrutura, de um modo geral, é melhor. Uma casa característica desta área, como a
residência dos pais de Élcio, pode ser consideravelmente ampla e confortável. Além do
quintal, possui sala, cozinha e dois quartos. Em quase todas as ocasiões em que lá
estive, encontrei as portas do quintal e da casa abertas. A casa é rebocada e pintada, por
dentro e por fora, apresentando revestimentos cerâmicos em várias áreas. No seu
interior, chama a atenção uma televisão de grandes dimensões, item bastante valorizado
entre residentes. Aparelhos de DVD e de som também têm presença marcante. A mesa
coberta com toalha rendada exibe porta-retratos com imagens da família. Na parede
encontram-se diversas imagens de santos. Se a rua é um espaço comum, onde “público”
e “privado” se fundem, a casa reserva-se a parentes e amigos mais próximos.
A partir da casa, considerando-a como eixo central, circunscrevem-se relações
de maior ou menor intimidade. É no interior da casa onde se dão as relações mais
íntimas. Noto que o interior da casa é o lugar da realização de boa parte das ações da
folia, quando em visita. É neste espaço que ocorrem as trocas cerimoniais, a bandeira é
recebida, cantam-se as profecias, fazem-se ofertas, despedidas e agradecimentos. A casa
é também alvo privilegiado dos efeitos rituais da folia e da bandeira, através da qual ela
é, por assim dizer, sacralizada e abençoada.
Os foliões não costumam entrar propriamente na casa, a não ser que estejam
formalmente em jornada. É importante salientar que a entrada da folia dentro de uma
casa é intensamente ritualizada, exigindo um cuidadoso preparo. O tempo que antecede
à saída da folia em jornada, que pode levar de 4 ou 5 horas, é marcado por uma forte
informalidade. O grupo costuma sair em jornada por volta das 23 horas, mas, a partir
das 19 horas, foliões começam a chegar, e muitos deles permanecem no quintal para
tomar uma cerveja e desfiar conversas, aguardando que os demais cheguem. Os ensaios
e a preparação da folia eram, até pouco tempo, realizados no piso superior da casa de
Élcio, como relatei. Os foliões mantinham-se nesta área ou no quintal, no piso inferior,
mas não costumavam entrar na casa propriamente dita.
Conseguir um pequeno terreno numa região do morro para a construção de uma
casa pode se dar com alguma facilidade. Certa vez, acompanhando Élcio numa
negociação com um líder da associação de moradores, através da qual seriam doados
pequenos terrenos, me ofereceram um lote, imaginando-se que eu era da localidade.
34
Estes aspectos apontam para as concepções de propriedade, e para as formas de contrato
articuladas nessas comunidades. Nesses contextos, as relações pessoais e as palavras
substituem os documentos lavrados em cartório. Neles predomina a noção de direito de
uso, mais do que a de propriedade. De maneira geral, os terrenos e casas são
negociados de modo muito informal, sem registros ou escrituras, visto que são
edificadas sem a anuência da Secretaria Municipal de Urbanismo. Grande parte das
residências foi construída através de livre ocupação, inclusive em áreas de risco. O
regime de construção, muitas vezes, é o de mutirão.
A Candelária é tida como um local tranqüilo, mesmo com a ostensiva presença
do “tráfico de drogas”. Passar por agentes fortemente armados é uma rotina no morro e
o que se percebe é que sua influência na vida das pessoas é cada vez maior. Todas as
vezes nas quais tentei abordar o assunto com meus informantes, tive muita dificuldade
em obter resultados. Evitam a todo custo tocar no assunto, possivelmente por receio de
se exporem diante da imposição da “lei do silêncio”. Contudo, sobressai a idéia
generalizada de que vêm ocorrendo muitas mudanças na qualidade da relação com os
traficantes. Para moradores da localidade, o perigo potencial da presença de traficantes
na localidade está em que a violência pode se instaurar a qualquer momento diante de
um conflito entre estes, a polícia e outras facções criminosas.
A influência dessa atividade, de seus efeitos e tensões na vida cotidiana das
pessoas, torna-se evidente quando se sabe de histórias de violência no morro e em suas
imediações. A mãe de Élcio, por exemplo, foi vítima de bala perdida, num confronto
entre a polícia e o tráfico. Em decorrência deste fato, dona Alice teve uma de suas
pernas muito ferida, sob risco de amputação. O acontecimento foi também pretexto para
que Élcio fizesse uma promessa, compromisso este que será narrado mais adiante e que
vem sendo cumprido, já há alguns anos, em agradecimento à obtenção de graças, com a
cura efetiva da enfermidade. Também o filho de Dona Maria, integrante da folia, foi
vítima de uma troca de tiros entre policiais e traficantes, mas não sobreviveu. Numa das
ocasiões em que estive com o mestre Élcio, ele me chamou a atenção apontando-me a
presença de um dono do tráfico (estatuto cada vez mais transitório no mundo do
narcotráfico), mencionando que foi seu colega de escola. Histórias de jovens que se
perderam na vida, como dizem os foliões, são freqüentes, e nelas muitas vezes o
desfecho é trágico. Élcio relatou-me que um conhecido seu foi preso há três anos por ter
sido flagrado num assalto. Cheguei a botar ele na folia, mas não teve jeito. Estas
histórias são comentadas, mas sempre de forma muito tímida, tendo em vista o rigoroso
35
controle imposto através de ações intimidadoras. Todos esses aspectos descritivos vêm
desenhar uma certa Candelária, com suas formas de sociabilidade, tensões,
ambigüidades e conflitos.
Élcio não gosta de andar por outras áreas do Complexo, como o famoso Buraco
Quente, no coração de Mangueira, por exemplo. Diz que lá ele não tem muitos
conhecidos e que numa emergência, com um eventual confronto entre polícia e
traficantes, ficaria desprotegido, sem ter com quem contar e para onde ir. A Candelária,
assim, se distingue de outras áreas do Complexo, não apenas por limites físicos, mas
também sociais. Muitos de seus residentes dizem sentirem-se como pertencendo ao
lugar. Este ponto já havia sido notado por Monte-Mór (op. cit.) quando sugere que os
migrantes mineiros afirmam essas diferenças produzindo seus próprios discursos de
identidade. Contudo, de acordo com dados fornecidos por censos aqui citados, os
mineiros são hoje uma minoria no quadro geral da população. O que se observa é que,
de fato, muitos fatores têm contribuído para que as diversas áreas do Complexo venham
se tornando cada vez mais heterogêneas e independentes.
Nas muitas vezes em que estive na casa dos pais de Élcio, o encontrei com
Rodolfo e Isabel desfiando intermináveis conversas sobre a folia ou sobre o que
denominam de o Reis
22
. Em muitas dessas ocasiões, ouvia-se ou assistia-se alguma
gravação em CD ou DVD da folia, o que gerava vários comentários e comparações.
Folia de reis é assunto para todo momento, invadindo a vida diária dessas pessoas. Fala-
se em melhorar os uniformes, em conseguir uma sede, no comportamento desapropriado
de um folião, recorda-se de velhos foliões já falecidos etc. Os assuntos ligados à folia e
correlativamente ao que chamam de o Reis, se desdobra na esfera cotidiana. Tudo isso
aponta também para um aspecto que não me parece irrelevante, o fato de que para
alguns, o papel de folião, dentre os demais, pode aparecer como o mais importante. No
caso de Élcio essa dimensão surge com alguma nitidez, visto que é como mestre-folião
que ele ganha prestígio e alguma notoriedade. Élcio é, de fato, mais conhecido em sua
“comunidade” como o mestre da folia de reis do que por qualquer outro papel que
desempenhe. Nessa mesma direção, Monte-Mór argumenta a favor deste aspecto ao
narrar que,
22
Expressão que remete aos Reis Magos. Mesmo considerando-se que são três os Reis, foliões com muita
freqüência referem-se a eles no singular. Tenho pensado que, de fato, referem-se não propriamente aos
Magos, mas ao conjunto de saberes e de práticas ligados às festas dedicadas aos Reis, como instrumentos
e modos de tocar, cantos, rituais, profecias etc. O Reis seria todo um universo de conhecimentos no qual
se inclui o chamado fundamento, uma parte sagrada desse conhecimento.
36
quando do falecimento, em 1980, de um importante mestre da Manjedoura de
Mangueira, já em idade avançada, seu corpo, uniformizado, foi envolvido com a
bandeira da Folia e o velório acompanhado por trechos gravados de profecias,
cantadas pela Folia. No conjunto dos diversos papéis sociais, ser “folião”,
aparecia como o mais englobante (1992 : 69).
No caso aqui apresentado, o que parece se revelar também é uma mediação entre
o mundo dos homens e o dos mortos, do além, através da folia, dos seus cantos e,
sobretudo, da bandeira.
2.5 A Folia Sagrada Família e seus quadros sociais
De modo geral, as folias de reis são constituídas por uma média de 15 pessoas,
com muitas variações, muito embora se afirme ser o número de 12 o correto, por
remeter simbolicamente aos apóstolos de Jesus. As dificuldades em manter um
determinado número de foliões em atividade são consideráveis, e esse aspecto aponta
para alguma instabilidade e mesmo precariedade em sua manutenção. Na Candelária,
observei diversas vezes o mestre andar à procura de foliões às vésperas de uma saída.
Tal situação costuma gerar tensões e muitos comentários sobre o descomprometimento
de alguns foliões. Outro aspecto a salientar é o fato de que a constituição do grupo é
extremamente dinâmica, comportando entradas e saídas, mesmo ao longo de um ciclo
anual de jornadas. Desse modo, um folião eventualmente inicia um ciclo de jornadas e
não o conclui, mesmo sob desaprovação dos demais foliões, especialmente do mestre. O
que se considera correto, ou seja, o compromisso a ser cumprido, é um folião iniciar as
jornadas e terminá-las junto aos demais, com a entrega da bandeira, no dia 20 de
janeiro. O descompromisso de alguns foliões, ou seu eventual desregramento durante os
rituais, gera tensões e conflitos às vezes bastante intensos
23
.
Apesar dessa iminente instabilidade, a Folia Sagrada Família mantém um núcleo
mais estável, integrado por um número bem menor de pessoas. É através deste núcleo
que se observa a importância das relações de parentesco, amizade e vizinhança, bem
como das alianças necessárias à condução das atividades rituais de todo o grupo
24
.
23
Ao longo deste trabalho sinalizarei as discrepâncias entre o que é dito e o que é feito no interior da folia
de reis. Posso testemunhar pessoalmente com relação a este aspecto, visto que não consegui cumprir
todas as regras impostas, mesmo ciente delas, por incapacidade ou impossibilidade.
24
As relações de parentesco e de vizinhança são predominantes entre os foliões que fazem parte deste
núcleo central, mas não são os únicos requisitos para se assumir uma posição de relevo no grupo. Ao
37
Fazem parte deste núcleo, Élcio (mestre), Isabel (bandeireira), Rodolfo (contramestre),
Humberto (sanfoneiro) e Sebastião (voz), todos residentes na Candelária. São também
denominados os da frente, por terem suas posições rituais na dianteira, ficando o
restante na retaguarda., portanto, uma coincidência entre posição espacial e
hierarquia dentro da folia, que não deixa de ser relevante
25
. Por outro lado, os papéis
rituais são hierarquizados entre si, mas não de forma absoluta. Considera-se que o papel
de mestre seja o mais elevado, pois é quem detém o conhecimento necessário para
conduzir as ações do grupo e mediar todo tipo de situação. Em decorrência disso, o
mestre possui efetivamente grande poder de decisão. Este poder é também um poder
espiritual embasado no conhecimento ritual, no chamado fundamento. Manifesta-se na
forma de invocações, bênçãos, cantos, fórmulas etc
26
. A categoria aparece de forma
verbalizada quando foliões, por exemplo, dizem que folia de reis não é só a beleza dos
cantos e o brilho dos uniformes. Folia de reis tem muito fundamento.
Categoria nativa central, fundamento diz respeito a um conjunto de práticas e
saberes considerados primordiais, absolutos e oriundos de um espaço-tempo imaginário.
Esse conhecimento vem do princípio do mundo, freqüentemente coincidente com o
tempo do nascimento de Jesus. Designa a razão última da circulação da bandeira, da
festa, das dádivas e até mesmo do palhaço. É através deste conceito, aproximado ao de
sagrado, que se opera o controle de todas as atividades do grupo envolvido,
especialmente na sua dimensão moral. Luzimar Pereira (2004) notou a centralidade
desta categoria entre folias de reis do sul de Minas Gerais. Diz o autor:
“A noção de fundamento abarca, em princípio todo um conjunto de mitos, regras
cerimoniais e exegeses nativas que compõe o substrato religioso da Festa de
Reis. Há fundamento na hora de se realizar uma cantoria, no seu aspecto formal
e de conteúdo. /.../ Fundamento remete a fundação, base sustentação. Mas pode
ser também derivado daquilo que é fundante, fundador, original, primevo”. (:41)
Perguntando a Isabel, a bandeireira, sobre o significado da categoria, depois de
ter afirmado que o palhaço tem muito fundamento, obtive como resposta as seguintes
palavras: não sei explicar, não. Só sei que se aprende de dentro, na convivência. O
longo de minha participação efetiva na folia, mesmo num curto período de tempo, cheguei a estar bem
próximo de ser considerado pertencente a este núcleo, em decorrência do compromisso, da lealdade e da
confiança mútuas.
25
De modo geral, foliões que cantam são considerados mais importantes do que os que apenas tocam
algum instrumento. Minha posição na folia era intermediária, permanecendo geralmente no terceiro lugar
de uma das filas.
26
Sigo a sugestão de Douglas (1976), para quem os poderes espirituais, em certos contextos, são
investidos em certas pessoas e confirmados pelos sistemas sociais, de modo a serem reconhecidos como
sendo controlados e conscientes (: 122).
38
fundamento, desse modo, constitui um princípio sagrado, divino, que não pode sofrer
contestação, tornando-se objeto do consentimento geral. Trata-se, afinal, de uma
categoria de pensamento no sentido forte do termo.
Assim, o fundamento está também intimamente relacionado a estes poderes dos
quais falei. No caso da Sagrada Família, porém, observei que esses poderes são relativos
e dependentes de certas alianças. O mestre pode ser detentor de muitos conhecimentos,
mas depende dos demais foliões e de certos laços estabelecidos. É preciso atentar para a
precariedade com que muitas vezes a autoridade é mantida. Élcio tem hoje 33 anos de
idade, sendo bem mais jovem que a maior parte do núcleo central da folia. Este dado o
coloca na condição de ter de ouvir os mais velhos, suas opiniões, e de ter de fazer
muitas concessões. A confiança e o apoio que Élcio goza hoje, entretanto, foram
duramente conquistados, como relata.
Teve uma festa de arremate do Rui na Vila Valqueire, antigamente era na
Abolição. Aí tinham matado o neto do Simplício [o então mestre da folia] e ele
não tava com cabeça para ir. Aí o pessoal todo reunido pra ir nessa festa, o
Humberto falou: - Não dá pra ir, não tem mestre.
Aí eu falei: - Gente tô aprendendo, mas se quiser fazer um teste pra ir...
Aí foi quando cantei com o Lauro pela primeira vez. A voz combinou direitinho.
Nunca tinha cantado com ele. Aí o Humberto não queria ir. Faço questão de
frisar isso porque pra mim foi uma prova de fogo. O Humberto tava dando pra
trás porque eu era novo e nunca tinha cantado e eu cantei com uma habilidade
muito grande porque ele falou que se eu errasse, ele parava a sanfona. E eu
trilhei o apito e só sei que quando acabei de cantar todo mundo veio me dar
parabéns. Na sede e tal. Aí fomos, e foi a primeira vez que cantei com
responsabilidade.
Lembro que Élcio abandonou o posto de mestre da Manjedoura de Mangueira,
seguido por outros foliões, para inaugurar sua própria jornada. Nesta manobra forjaram-
se algumas alianças, especialmente com Rodolfo e Humberto, foliões bem mais velhos e
experientes, permitindo a estabilidade de sua autoridade. A ruptura provocada pela
dissidência desses foliões confirma esta aliança. Ao longo das observações de campo,
notei, entretanto, diversas vezes Élcio ter de recuar quanto a alguma decisão ou pelo
menos ter de ouvir a opinião dos referidos foliões. Ocasionalmente, as decisões quanto
ao roteiro de casas a visitar, por exemplo, eram negociadas entre as partes, não sem
alguma tensão.
Outro folião que integra o núcleo central do grupo é Humberto, irmão de
Teixeira, também um mineiro de Laranjal. Veio na leva de migrantes para trabalhar na
Companhia de Cerâmica Brasileira e hoje trabalha como segurança na UERJ. Aprendeu
39
a tocar sanfona com um irmão também folião, chamado Silvio, residente na Candelária,
que se diz ter sido grande sanfoneiro. Humberto diz que tocar sanfona é um dom
27
, um
presente recebido dos Magos. Sebastião, primo do Humberto, sai em folia desde que
vivia em Laranjal. Élcio nasceu na Candelária, não tendo relações de parentesco com o
tronco de Minas. Atualmente está desempregado, mas quando o conheci trabalhava
numa tendinha de bebidas, instalada na casa de seus pais, hoje desativada. Sua única
referência familiar com relação às folias é sua bisavó paterna, referida como devota que
recebia todos os anos numerosas folias de reis em sua casa. Como relata,
Minha bisavó era uma pessoa muito devota e se batessem 30 folias na
comunidade, ela recebia as 30 folias. Teve ocasião que saiu uma e tinha outra
esperando na porta pra entrar e ali todo mundo comia, todo mundo bebia,
entendeu como é?
Rodolfo é primo de Élcio e sabe-se que seu tio tinha uma folia de reis. Élcio o
considera seu braço direito, mas a verdade é que dentro da folia seu relacionamento é
extremamente conflituoso. Pedreiro aposentado, vive também de alguns pequenos
serviços. Isabel, a bandeireira, é esposa de Élcio. Não tendo experiência anterior, entrou
para a Sagrada Família há pouco tempo. Desempenha um papel
28
muito importante, não
somente na guarda, manutenção e manipulação da bandeira, como na organização do
grupo e da festa de arremate. Trabalha como empregada doméstica em casa de família
na zona sul da cidade. Estendendo-se para além do núcleo da folia, há ainda Dona
Maria, uma senhora com idade já bastante avançada, mas dotada de grande força,
necessária para acompanhar as árduas jornadas. É extremamente devota e relaciona-se
com a folia através de promessas antigas. Maria desempenha um papel mais periférico
na folia, mas é muito respeitada por sua história e seus vínculos com o tronco de Minas
Gerais. Todo dia 20 de janeiro, a folia canta em sua casa em razão de seu filho ter
falecido naquela data. Integram ainda esporadicamente o grupo: Luan, um rapaz de 15
anos bisneto de Dona Maria; Leandro, filho adotivo de Sebastião; Malaca, neto de
Serafim, fundador da folia; e ainda um menino conhecido na função de palhaço como
Trinca-ferro. Os demais foliões giram em torno do núcleo central. Muitos deles residem
fora da Candelária, como Nelson (caixa), Belford Roxo (tarol), Wendel Guerreio
27
Também Carla Pereira (2005) notou, entre colônias maranhenses fixadas no Rio de Janeiro, que as
caixeiras da Festa do Espírito Santo costumam relacionar sua habilidade de tocar o instrumento ou de
cantar a uma dádiva divina. Ver SANTOS (2005).
28
Na folia Sagrada Família, a bandeireira é a única integrante da que possui vestes diferenciadas das dos
demais, apresentando-se inteiramente na cor branca. Também o mestre, o contramestre e alguns cantores
diferenciam-se dos demais, pelo uso de uma faixa bastante ornamentada cruzando o tronco.
40
(palhaço), Roberto Carlos (voz), entre outros. São foliões que vieram de grupos
desativados, em decorrência do falecimento de seu dono ou mestre, por exemplo.
Ocasionalmente, outros foliões, de São João de Sapucaia - MG, vêm a Candelária passar
uma temporada com seus conterrâneos e saem também na folia.
Como sugeri anteriormente, o grupo e as posições rituais não são absolutamente
fixas, comportando alguma flexibilidade. Esta característica permite que um folião
transite por vários papéis, até chegar a posições mais elevadas. Este aspecto permitiu
integrar-me à folia com a condição de que eu tivesse algum domínio sobre o
instrumento musical que me comprometi a executar. A linguagem da folia de reis é
essencialmente musical. Foi através deste meio expressivo de comunicação que passei
também a interagir com o grupo.
2.6 Festejando os Reis e reafirmando laços sociais: um precário equilíbrio
Sugeri anteriormente que foliões formam apenas uma parte de um amplo sistema
de relações e trocas, complementado por devotos. Não se trata de qualquer devoto, mas
alguém que, de fato, estabelece uma relação de compromisso com a folia e, assim
fazendo, compromete-se com os próprios Magos ou com outros santos, como São
Sebastião, por exemplo. A promessa e o sacrifício assumem, deste modo, lugar central
nessas relações de comprometimento e de trocas. Como sugere Pierre Sanchis (1983 :
86), “todos os gestos pertencentes à categoria promessa são uma forma de responder
pelo dom e graça recebidos, com honra e glória”. Como notou Mauss, estas trocas com
seres superiores são necessariamente assimétricas, no sentido de que não são
equivalentes. No entanto, Pina Cabral, em artigo sobre ex-votos, observa que, por hora,
não importa saber se a contradádiva vale mais ou menos. Como escreve:
“Não é, porém, assim que a relação é concebida. A contradádiva é feita à
imagem da dádiva, ela representa-a; simbolicamente, portanto, a troca é
simétrica, apesar de em termos reais ela não o ser. Assim, um sistema de
reciprocidade assimétrica é apresentado sob o disfarce de um sistema de
reciprocidade simétrica. Simbolicamente, o ser divino e o ser humano estão em
igualdade de participação e beneficiam mutuamente.” (1997: 88).
Como mencionei anteriormente, parte das pessoas embrenhadas nessas alianças
e trocas veio de áreas rurais como migrantes. Nas cidades, onde as relações tendem a ser
mais casuais e transitórias e o status de seus residentes muito incerto, torna-se
41
fundamental a manutenção dos laços de parentesco. Nestes contextos migratórios de
desagregação social, parentes tendem a viver como vizinhos e vice-versa. Na
Candelária, relações de vizinhança são muitas vezes transformadas em relações de
parentesco, produzindo maior proximidade e mesmo maior comprometimento
29
.
Relações de vizinhança expressam muito mais do que uma proximidade espacial,
denotando dimensões morais. Como nota Monte-Mór:
“No caso da região da Candelária (...) encontramos áreas em que irmãos, tios,
sobrinhos, viviam como vizinhos. Notamos que as categorias tios e avós, em
especial, eram muitas vezes estendidas a outras pessoas que não aquelas
unicamente ligadas por laços de parentesco” (1992 : 58).
Essas formas de sociabilidade se caracterizam por uma forte solidariedade e se
intensificam com o comprometimento de homens, mulheres, velhos e crianças, através
das festas de Reis. Desse modo, as jornadas, os deslocamentos, enfim, os circuitos de
visitação, desenham uma extensa rede de reciprocidades, de obrigações mútuas.
Trocam-se serviços religiosos, gentilezas, refeições, dinheiro, bênçãos, sacrifícios,
entretenimentos etc. São, em última instância, trocas totais (MAUSS, 2003)
atravessadas por numerosos aspectos da realidade (econômico, estético, moral, religioso
etc.). Totais também porque são simultaneamente trocas entre os homens e entre estes e
as divindades, envolvendo compromisso, intimidade, e mesmo “honra”
30
.
A Folia Sagrada Família realiza suas jornadas a partir do dia 25 de dezembro até
o dia 20 de janeiro, preferencialmente nos fins de semana. A cada jornada diária chega-
se a visitar cerca de oito a dez casas, o que totaliza, ao final de todo um ciclo de
jornadas aproximadamente 45 casas visitadas, envolvendo diretamente cerca de 150
pessoas. As casas visitadas não se restringem à própria Candelária, estendem-se a outras
localidades, como o Morro da Formiga, Morro Chapéu Mangueira, Vila Cruzeiro
(Complexo do Alemão) e mesmo São João de Sapucaia, em Minas Gerais, ampliando-se
consideravelmente os laços sociais e de solidariedade em torno dos foliões. A maior
parte das visitas, contudo, se realiza na Candelária, especialmente nos dias 25 de
dezembro (Natal), 6 de janeiro (Reis) e 20 de janeiro (São Sebastião). Perguntando a
Élcio sobre os critérios estabelecidos no planejamento do roteiro de visitação, soube que
há numerosos fatores envolvidos. A cada ano os roteiros se modificam, pois do mesmo
modo que numa folia entram e saem foliões, também neste sistema entram e saem
29
A centralidade das relações de vizinhança em contextos migratórios também foi notada por Leal
(1994), em seus estudos em torno das festas do Espírito Santo nos Açores.
30
A categoria foi explorada juntamente com a noção de “graça”, por Pitt-Rivers e Peristiany (1992).
42
devotos. Aliás, o surgimento de um novo folião ou devoto é sempre comemorado como
uma grande conquista que se espera ser perene. Assim, do mesmo modo que numa folia
há um núcleo mais estável, o mesmo pode-se dizer em relação aos devotos participantes
deste sistema de reciprocidades. Como diz Élcio:
A folia quando saí da casa da minha mãe, que hoje é a atual sede da folia, está
mais perto da casa do Moacir. Está na seqüência. Depois do Moacir tem o
Antonio. Até aí permanece uma seqüência. Do Antonio vai pra Zélia, que já fica
lá na entrada. Depois da Zélia vem a Lídia e outras. Tem o Zé Jaime... São os
fixos, já tão sacramentados.
O critério da proximidade parece ser levado em conta, mas não é único nem o
mais importante. De fato, a casa de Moacir dista cerca de 50 metros da sede da folia e
caminhando mais 100 metros chegamos à casa de Antonio. Daí em diante, a caminhada
é bem maior, ao longo das acidentadas, tortuosas e escuras vielas do morro. Curioso é
observar que o intrincado mapa de deslocamentos pelo morro é como que um reflexo
das relações que se formam nessa teia de reciprocidades, nem sempre tão linear
31
. Com
isso, quero dizer que as relações de vizinhança, como apontadas anteriormente, não são
relações de proximidade espacial, mas de proximidade moral. Ao longo do
deslocamento de uma casa a outra, a folia passa por diversas casas e famílias, mas não
se detém em nenhuma delas, deixando-as para trás.
Notei Élcio, fora das jornadas, costurar esse roteiro realizando algumas visitas
prévias aos moradores, negociando a data e o horário da visita. Alguns moradores têm
preferências, privilégios e podem escolher quando desejam ser visitados
32
. Certos
moradores preferem receber a visita no dia 20 de janeiro, pois assim pagam promessa
para São Sebastião. Já outros preferem a visita pelo fim da jornada diária, para que
possam oferecer um farto almoço. Lídia, por exemplo, esposa de Humberto, pediu
emprego para os filhos aos Santos Reis Magos e paga a promessa oferecendo à folia
uma refeição todo ano, pela graça alcançada. Élcio relatou-me também que a sede da
Folia Manjedoura de Mangueira deveria ser obrigatoriamente visitada, pela presença da
bandeira, mas que, em função dos conflitos entre os mestres, isso não tem sido feito
reciprocamente.
31
Fiz algumas tentativas de registrar graficamente esses deslocamentos, sem sucesso, devido à complexa
geografia da localidade. O traçado não-geométrico e não-linear das vias do morro tornou este
empreendimento, de fato, muito difícil. Este aspecto não me parece irrelevante e indica formas de
organização espacial particulares.
32
Ocasionalmente, moradores recebem a visita da folia sem saber ao certo quando ela virá. Atrasos e
imprevistos também ocorrem com freqüência.
43
Assim, evidenciam-se hierarquias entre moradores, o que se torna ainda mais
visível quando se sabe que a folia permanece por mais tempo dentro de certas casas ou
que recebe ofertas maiores para a festa de arremate. Devotos são diferenciados e
hierarquizados, de modo semelhante a que foliões também o são. Assim, o tempo de
relacionamento, o conhecimento, os vínculos afetivos ou de parentesco contribuem para
posicionar o folião e o devoto dentro desse sistema. Ouvi Élcio comentar que quando se
realiza uma visita à casa de um ex-mestre, portanto a alguém que detém profundo
conhecimento, deve-se cantar a profecia completa, demandando tempo adicional. Por
outro lado, há também aqueles que mantêm um vínculo menos compromissado com as
trocas. No depoimento de Élcio, tal aspecto se revela no desconhecimento de alguns
códigos cerimoniais de conduta, o que ocorre, por exemplo, quando um devoto recebe a
bandeira e, ao invés de mantê-la nas mãos enquanto se desenrola a cantoria, a deposita
em qualquer lugar, atitude considerada inapropriada. Como diz Élcio, “você conhece
logo quando um devoto é conhecedor, pelo jeito como pega a bandeira”. O mestre
declara ainda que “alguns devotos são fixos, já tão sacramentados”. Estes são os que
integram o núcleo mais estável e perene desse sistema, sem os quais ele não se
sustentaria.
Portanto, há uma tensão constante na constituição desse sistema que reside no
esforço, nem sempre bem-sucedido, de angariar novos adeptos e de tornar foliões e
devotos mais “periféricos” em membros mais ativos e permanentes. Essa tensão se
evidencia de muitos modos e ocasionalmente de forma bastante intensa, sobretudo
quando se revelam atitudes e comportamentos considerados inapropriados entre os
próprios foliões. Como sugeri, alguns foliões podem ser mais periféricos, com um
comprometimento mais frouxo, mas assim mesmo são considerados necessários e
importantes, desde que cumpram certas regras. Este aspecto aponta também para as
múltiplas motivações que levam foliões e devotos a participarem desse sistema:
prestígio, devoção, entretenimento, muitas vezes conflitantes
33
.
O fato concreto é que, pelo menos no caso do grupo que acompanhei, não se
pode contar unicamente com o núcleo central de foliões e devotos, necessitando-se estar
sempre expandindo seus domínios, abarcando novas relações ou reativando outras
antigas. É dessa maneira que, como observei diversas vezes, um folião que
33
Ouvi Élcio comentar algumas vezes que muitos foliões não saem por devoção, mas por diversão. Tenho
pensado que o mestre faz uso desta idéia como forma retórica para valorizar seus conhecimentos e
habilidades.
44
eventualmente foi expulso do grupo por uma falta considerada grave pode retornar
algum tempo depois. Aponto, assim, para as incongruências entre o que é dito e o que é
feito, e para a flexibilidade das normas e convenções. O que verifico a partir destes
dados é que há certa precariedade nesse sistema: faltam foliões, devotos e seu
comprometimento; sobram tensões, perigos e conflitos. No final, o que está em jogo é
um compromisso infalível e inadiável, vivido de modo extremamente personificado,
especialmente na figura do mestre. Falhar com os Magos é uma falta impensável, e todo
esforço (vivido de forma bastante intensa) está em garantir a coesão do sistema,
evitando seu estilhaçamento. Na ótica de foliões, isso representaria não apenas uma
cisão do compromisso selado com os deuses, mas também com os antepassados.
Através da folia, honra-se a memória, o passado e os saberes fundamentais transmitidos
de geração a geração. Cantar os Reis é também guardar segredos, conhecimentos
“inalienáveis”
34
(WEINER, 1992), para que se possa garantir a integridade do grupo,
seu bem estar e as bênçãos divinas.
Assim, uma permanente instabilidade e mesmo precariedade ameaçam a folia a
se desintegrar e todo esforço direcionado especialmente pelos foliões mais graduados
está em impedir tal fato, o que representaria, de certa forma, retornar ao Caos. A folia,
assim, transita entre a ordem e a desordem, sustentando-se sobre uma delicada estrutura
de forças. Um dos fatores que parece ameaçar esse empreendimento é o consumo
excessivo de bebidas alcoólicas pelos foliões. Esta prática é combatida com extrema
severidade e violência pelo mestre e por outros foliões graduados na Candelária, mas a
prática impõe-se de maneira incontrolável. Em realidade, o que se nota é que alguns
foliões se integram ao início de uma jornada já alcoolizados, beirando uma forma
ritualizada de consumo, como no caso que venho relatar.
Silvio, irmão do atual sanfoneiro da folia, era considerado exímio sanfoneiro,
conhecido também por sua irreverência ao lidar com questões relacionadas à bebida.
Conta-se que Silvio só saía na folia depois de uma boa talagada, como se diz, e parece
ter sido sempre assim até o dia de sua morte, numa derradeira noite de Natal. Talvez por
ser excelente sanfoneiro e por sua posição dentro do grupo familiar, seus hábitos tenham
sido mais tolerados durante o tempo em que tocou na folia, como uma espécie de
34
A categoria dos “bens inalienáveis” é de fundamental importância para se entender o lugar da bandeira
no quadro das reciprocidades desenvolvidas por foliões. A categoria designa todos aqueles bens que não
circulam livremente como mercadorias ou mesmo como dons. Explorarei esta idéia mais adiante.
45
condição para sua função ritual. Seus parentes e amigos contam que, tendo ele
exagerado na dose naquela noite, Silvio passou mal e foi levado ao hospital na véspera
da saída da folia. Os médicos recomendaram que ele ficasse internado, mas Silvio se
negou terminantemente, argumentando que não poderia faltar ao compromisso com a
folia de maneira alguma. Seguiu para casa sob medicação e sob forte recomendação de
que naquela noite ele não poderia mais beber por causa da medicação ministrada.
Conta-se que tendo esquecido a recomendação médica ou mesmo a ignorado, Silvio
bebeu um único copo de cachaça e pouco tempo depois faleceu em plena jornada de
Reis, fardado e portando seu instrumento.
Outros, ao contrário, costumam consumir bebidas ao longo das jornadas, nos
seus intervalos, nas inúmeras biroscas que se encontram pelo caminho, mesmo sob
reprovação do mestre. No início de cada jornada, Élcio costuma dizer algumas palavras
com relação à conduta dos foliões, e um dos aspectos salientados é o de que foliões não
devem beber nada além daquilo que lhes for oferecido nas casas. O não-cumprimento
das condutas estabelecidas coloca em xeque a autoridade do mestre, gerando muitas
vezes uma crise interna, conflitos e tensões extremamente agudas, conforme presenciei.
Observando o relato de foliões e suas histórias familiares sobre o uso de bebidas,
pode-se concluir que ela é tida como um elemento extremamente corrosivo das relações
sociais. Soube que as folias de Mangueira sempre tiveram que lidar com esse delicado
problema. Atualmente, dois foliões do grupo são ex-alcoólatras, integrantes da
Associação Alcoólicos Anônimos e seus relatos são categóricos em afirmar que suas
vidas se dividem entre antes e depois da bebida. Creio, entretanto, que isto não seja
tudo. Tenho pensado que o álcool é um componente simbolicamente poluente, no
sentido em que encontramos em Douglas (1976). Testemunhei Élcio acusar foliões de
estarem com o corpo sujo por causa da bebida, especialmente em contextos de visitação
a centros espíritas. Sua propriedade poluente, contudo, é relativa, visto que é tolerada
quando oferecida pelo dono de uma casa visitada. É, portanto, o contexto relacional que
torna a bebida impura e, para Élcio, o centro espírita é um lugar especialmente propenso
à ação de forças negativas, visto que nele transitam espíritos diversos, benéficos e
também maléficos
35
. Nesses contextos, o problema do excesso de bebida é que, assim
35
Há relatos de que um antigo palhaço chamado Dedé era muito afeito à cachaça. Numa ocasião em que
a folia visitava um centro espírita, Dedé caiu desmaiado na escadaria que leva ao barracão e lá
permaneceu até o encerramento da cantoria, enquanto os demais foliões passavam por cima dele. Em
outra ocasião, o mestre me revelou que foi o pai de santo da casa, conhecido como Caboclo Sete Flechas,
o responsável por aquele ato.
46
como alguns outros aspectos, ele gera vulnerabilidades, colocando, afinal, o precário
equilíbrio da relação entre foliões e devotos sob ameaça.
47
3. FOLIA DE REIS E A CIRCULAÇÃO DA BANDEIRA
3.1 “Os três Reis vêm buscar suas ofertas pro seu dia festejar”
As atividades da folia ao longo do calendário anual incluem ensaios, jornadas no
período natalino e a realização da festa de arremate
36
. Na cidade do Rio de Janeiro,
muitas folias de reis têm o costume de convidar outras folias para participar de sua festa
de arremate. Desse modo, participam também de um extenso circuito de trocas entre
elas próprias, através do qual se estabelecem, sobretudo, relações de amizade entre as
partes. Além disso, algumas folias participam de festivais folclóricos, apresentações,
espetáculos etc. Todas essas atividades comprometem os foliões por quase todo o ano.
Na Candelária, os ensaios são realizados na sede da folia, às vésperas do período
das jornadas. São momentos importantes de interação entre os participantes, marcados
por uma informalidade, em contraste com as atividades da folia durante o período das
jornadas. A música está no centro desses encontros e é pretexto também para que as
pessoas compartilhem um empreendimento comum. Isentos da preocupação de cumprir
a missão imposta pelas jornadas, um fardo que pode ser bastante pesado, foliões
sentem-se mais à vontade nos ensaios. Há espaço para a brincadeira, para o riso
descontraído, bem como para o calango improvisado na sanfona. Esses momentos
servem também para a discussão de problemas, organização do grupo, distribuição de
tarefas, comunicação de informes e outros fins.
Dentre todas as atividades, as jornadas locais ocupam lugar central na rede de
trocas entre foliões e devotos, consistindo também em uma fase preparatória para a
realização da festa de arremate. Como mencionei anteriormente, uma jornada diária
compreende uma série de visitas às casas de devotos que se desenrolam ao longo de
aproximadamente 12 horas contínuas, durante as quais se realizam deslocamentos,
cantorias, bem como apresentações dos palhaços. Ao longo dos três anos de trabalho de
campo, participei de cerca de 70 visitas com a Folia Sagrada Família e observei mais
36
Embora a folia de reis venha ocasionalmente a participar de eventos ao longo de grande parte do
calendário anual, há uma concentração de suas práticas num período específico, quando os laços sociais
se fortalecem acentuadamente. A proximidade, a coesão e as relações de ordem cósmica se intensificam.
Após este período, essas relações retornam ao seu estado normal. É possível aqui aludir a variações nos
modos de organização social, em decorrência dos diversos períodos nos quais o calendário se compõe.
Ver a este respeito “Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós” (MAUSS, 2003).
48
aproximadamente outras 20 em contextos diversos. Um folião veterano pode, ao longo
de sua vida, realizar centenas de visitas a casas de devotos.
Estes impressionantes números evidenciam um aspecto que caracteriza as
atividades da folia: a repetição. De tempos em tempos repetem-se as visitas, os cantos,
os agradecimentos, as festas, de tal modo que o fim de um ciclo de jornadas é apenas o
marco inicial de um novo ciclo que se dará no ano seguinte, e assim por diante. Essas
repetições servem também para marcar o tempo de um modo singular. Não se trata de
um tempo cronológico, irreversível, mas um tempo medido por durações, reversível e
recuperável a cada ano. As repetições visam, assim, a reiterar, reafirmar laços de
solidariedade e de conexão com os Magos
37
. Visam, sobretudo, a confirmar sua
presença periódica entre os homens. Evidentemente, a repetição não implica em que
todas as jornadas e visitas sejam idênticas. Repetir não é fazer igual, é fazer novamente
e sempre de modo diferente. O conjunto de visitas inscritas nas jornadas envolve
situações das mais diversas, circunstância imprevistas, adversidades com as quais
foliões precisam saber lidar.
A unidade mínima de uma jornada, portanto, é a visita a uma casa,
compreendendo uma seqüência básica de ações, tais como chegada, entrada na casa,
distribuição de bênçãos, refeição, apresentação dos palhaços, ofertas, agradecimentos e
despedida. Tendo participado exaustivamente destas atividades, devo de início notar
que, embora muitos aspectos do ritual se repitam, na prática nunca são exatamente
iguais. Numerosos fatores influem para que cada visita se configure como um evento
particular. Nesse sentido, se por um lado, cantar versos é uma fórmula obrigatoriamente
repetida em várias casas, por outro, o repertório desses versos se mostra extremamente
vasto e variado, usado de acordo com certas circunstâncias. O ponto a salientar é que a
repetição, em seus aspectos simbólicos e formais, é expressão de uma estrutura ritual
“circular”. A circularidade, por sua vez, decorre de uma concepção de mundo, na qual
as benesses ofertadas pela Natureza e pelo Cosmos devem ser renovadas a cada ano, em
determinados momentos, através dos ritos, promessas e sacrifícios. Devo observar que o
rito realiza a mediação entre o tempo linear (da vida diária, cotidiana) e o tempo circular
(o tempo em que foliões intensificam seus laços com divindades e antepassados). A
37
Mircea Eliade percebeu a recorrência da sucessão de repetições no comportamento religioso em
diversos contextos e sugere que está ligada a uma reiteração do ato primordial da transformação do Caos
em Cosmos pelo ato divino da Criação. (1999: 34). No presente contexto, essa repetição visa a reiterar e
reatualizar o mito de origem da folia de reis, no qual os Magos visitam o menino Jesus e a partir do qual
se instaura um modelo de conduta moral: a reciprocidade.
49
repetição e, mais ainda, a redundância, constituem também instrumentos rituais de forte
apelo mnemônico. O ritual mostra-se, assim, um notável sistema de memória, ganhando
um valor de concepção de mundo (YATES, 1974). É através da repetição dos cantos,
dos gestos, enfim, da estrutura ritual que se memoriza e, de certo modo, se realiza a
mediação com os planos cosmológicos. Não se trata aqui de uma memória subjetiva,
individualizada e autonomizada na sua concepção moderna. Co-memorar não é
simplesmente lembrar, mas recuar, de certo modo, ao ponto original de fundação da
ordem humana, ao plano oculto e invisível do universo. A memória, assim, permite
acessar dimensões invisíveis de modo a remeter à forma com que os antigos poetas e
aedos da Grécia arcaica, verdadeiros videntes possuídos pelas Musas, ascendiam a
outros níveis cósmicos. Desse modo, a memória permite uma transmutação da
experiência espaço-temporal, o que implica necessariamente um esquecimento
momentâneo do presente (VERNANT, 1990).
3.1.1 A saída da ‘bandeira’
Candelária, 24 de dezembro de 2005. Algumas horas antes da saída do grupo,
por volta das 19 horas, foliões começaram a chegar de todas as partes, reunindo-se na
parte superior da casa dos pais de Élcio, onde ficava a sede provisória da folia. Isabel e
Élcio assumem papel muito ativo nestes momentos. Cada folião deve se fardar
38
– calça
e sapato brancos, camisa colorida, faixa e chapéu – e cuidar do seu instrumento, se for o
caso. As camisas e os chapéus ficam sob os cuidados de Isabel, que auxilia os foliões a
completarem sua vestimenta, vestindo-os com uma faixa de cetim cruzando o tronco. É
ela quem as lava, passa e guarda, com o auxílio de familiares, para fornecer aos foliões.
Os instrumentos, violão, viola e cavaquinho, precisam ser afinados tendo por referência
a sanfona, cuja afinação é fixa
39
. Instrumentos de percussão, como bumbo, caixa e tarol
também são afinados apertando-se o couro, para torná-lo mais tenso. Os palhaços
devem cuidar da sua própria farda, incluindo a máscara, trazendo-a consigo.
38
A Folia detém três fardas de cores diferentes usadas de forma escalonada.
39
A tarefa da afinação é restrita a muito poucos foliões, cabendo geralmente ao mestre realizá-la. O
conhecimento implicado nesta tarefa é extremamente exclusivo. Por diversas vezes fui convidado a
participar desta atividade.
50
Alguns foliões e palhaços, já fardados, desceram e permaneceram no bar
instalado no quintal para tomar uma cerveja e desfiar descontraídas conversas. Ao fundo
ouviam-se sons diversos que se misturavam: televisão, crianças, música, cachorro etc. A
porta da casa mantinha-se aberta e uma intensa agitação predominava nos momentos
que antecediam a saída da folia. Nas inúmeras vezes em que participei deste evento,
notei o mestre Élcio sempre muito tenso e mesmo profundamente transformado. As
preocupações são inúmeras, especialmente com relação à expectativa da chegada de
todos os foliões, expectativa esta ocasionalmente frustrada.
Figura 3. Bandeira no interior do altar.
Faltando poucos minutos para a meia-noite, encontrava-me fardado e assim, ao
sinal do apito
40
do mestre, juntei-me aos demais foliões e subimos todos para a parte
superior da casa onde se encontrava o altar com a bandeira. Neste momento alguns
foliões cuidavam dos últimos preparativos, enquanto outros ensaiavam alguns toques
nos seus instrumentos. Ao sinal do mestre, assumimos nossas posições ao longo de duas
40
O apito é um objeto distintivo do mestre, sinal de autoridade. Somente ele pode usá-lo. Atento para a
importância do código sonoro no ritual, em contraste com outros códigos sensíveis. O som do apito tem
um considerável alcance espacial, o que o torna eficaz na função de reunir foliões dispersos. É também
utilizado para assinalar a terminação de uma seqüência de cantos.
51
filas paralelas, obedecendo à seqüência dos papéis rituais conhecidos por todos. À
frente, entre as filas e próximo ao altar, permanecia Isabel, a bandeireira, seguida do
mestre e do contramestre, encabeçando as duas filas. Na seqüência vinham os cantores,
tocadores de instrumentos de corda, sanfoneiro e os percussionistas. Por fim, os
palhaços, Pimentinha e Ventania, tomaram posição na retaguarda, mas desconectados
das filas. Pouco a pouco, os ruídos do ambiente cediam lugar ao silêncio, quando todos
concentravam sua atenção para os procedimentos de saída. Élcio, diante dos foliões,
abriu o ciclo de jornadas chamando os palhaços para se dirigirem ao altar, de joelhos e
sem as máscaras. Na frente do altar, no chão, havia um copo de água, dois copos vazios
e dois pratos
41
. Élcio ofereceu uma vela para cada palhaço, orientando-os a acendê-las e
posicioná-las nos copos
42
. Feito isto, os palhaços retornaram para os seus lugares ainda
de joelhos e puseram novamente suas máscaras. Em seguida, o mestre pediu que todos
tivessem pensamento positivo e iniciou uma prece com um Pai-Nosso e uma Ave-
Maria, ajudado pelos demais foliões. Logo após, o mestre iniciou outra prece lendo um
texto impresso, aqui reproduzido, pedindo para que todos repetissem cada frase
anunciada.
“Na porta da sala Jesus em pé. Na porta da cozinha Jesus ajoelhado. Nos
quatro cantos da casa Jesus crucificado. Senhor, meu inimigo já vem. E dele eu
não posso fugir. Sangue de Cristo é o leite da Virgem Maria. Eu e minha casa
seremos guardados. Contra a maldade dos meus inimigos. Seja ela carnal ou
espiritual. Seja inveja, intriga, olho grande e bruxaria. Sendo assim estaremos
libertos das maldades, das pragas, e das doenças que contaminam o corpo e o
espírito. Seremos igualmente protegidos e guardados, assim como Cristo foi
guardado no ventre da sagrada Virgem Maria por nove meses. Amém. Oh, meu
Jesus verdadeiro, filho da Virgem Maria. Me guarde esta noite e amanhã por
todo dia. Meu corpo não será preso. A minha alma não será perdida. Nem o
sangue derramado pela mão do inimigo. Me vi com três escravos abraçando
uma cruz. Para que eu sempre me lembre. Do santo nome de Jesus. Jesus anda
comigo. Comigo Jesus está. Eu tenho Jesus comigo e contra mim ninguém
será”
43
.
41
Provisoriamente construído, o altar se eleva acerca de um metro do chão, sustentado por uma mesa.
Desse modo, a bandeira permanece sempre num plano superior, em contraste com os palhaços,
simbolicamente associados ao plano inferior do chão.
42
Segundo me esclareceu Élcio, numa outra ocasião: O palhaço carrega muita negatividade com ele. Por
isso deve acender velas pro anjo da guarda.
43
As palavras grifadas no texto da prece anunciam, inequivocamente, certas categorias recorrentes que
nos acompanharão ao longo deste trabalho. Algumas delas como casa, corpo, espírito, doença, bruxaria,
contaminação assumem valor cosmológico.
52
Élcio terminou a prece acrescentando ainda as seguintes palavras: ofereço estas
preces pela nossa união para que tudo saia bem tanto na ida quanto na volta. Em nome
do pai do filho e do espírito santo. Amém
44
.
Figura 4. Disposição de foliões e palhaços na sede da folia diante do altar.
Empunhando sua viola de 10 cordas, Élcio prosseguiu com o toque dos acordes
iniciais, acompanhado da viola do contramestre, que sempre introduz a cantoria. Em
seguida ouviu-se a sanfona tocar o estribilho, variação instrumental usada para iniciar e
terminar uma seqüência de versos, seguido dos demais instrumentos. Enquanto isso, os
palhaços agitavam-se e ocasionalmente vociferavam algumas expressões características
como: Êta ferramenta, olha só, Riba moçada... O contraste entre a postura dos palhaços
e dos foliões é sempre muito marcante.
Figura 5. Mestre ao lado da bandeireira, lendo a prece.
44
Noto que todos estes procedimentos rituais são de fundamental importância, pois têm como objetivos
realizar a “passagem” (VAN GENNEP, 1978) do tempo-espaço cotidiano para o tempo-espaço especial,
mito-mágico e sagrado dos Reis Magos, por um lado, e conferir proteção espiritual aos componentes do
grupo, por outro.
53
Figura 6. Palhaço e sua máscara.
Neste momento, Isabel retirou cuidadosamente a bandeira do altar e a manteve
nas mãos em posição elevada e com a face voltada para os foliões. Élcio anunciou os
primeiros versos
45
a serem repetidos pelo coro de vozes na forma de cantos
46
. Sua
execução é realizada sob regras, devendo os foliões se manterem de pé. Os versos se
encadeiam numa longa seqüência poético-musical
47
com duração aproximada de 15
minutos, sendo que a parte exclusivamente instrumental, que entremeia os cantos, ocupa
45
O repertório de versos, baseados na escritura bíblica e recriados no imaginário popular é, de acordo
com Élcio, bastante extenso. O conteúdo dos versos deve acompanhar as jornadas em seus deslocamentos
no tempo e no espaço. Assim, na noite de Natal, costuma-se cantar versos sobre o nascimento de Jesus.
No dia 6 de janeiro canta-se a visita dos Magos do Oriente. Depois desta data narram-se o batismo,
chegada a Jerusalém, Santa Ceia, Paixão e outros episódios. A categoria “imaginário” foi discutida em
Zoladz (2005).
46
Élcio revelou-me que conhece um repertório variado de toadas (melodias) e que procura explorá-lo ao
longo das jornadas para que não caiam em esquecimento. A música neste momento é a linguagem de
interação dominante. Algumas características merecem ser observadas. Trata-se de uma música que
apresenta ritmo quaternário, relativamente lenta, cadenciada e fortemente marcada pela pulsação
característica das bandas militares. O bumbo marca o tempo forte de cada compasso. Chamo a atenção
para o fato de que a música é um lugar onde se evidenciam habilidades e inventividades. É possível
perceber que a estrutura musical composta pelas melodias das toadas e suas correspondentes progressões
harmônicas permite algumas variações criadas individualmente. O espaço para a liberdade, contudo, é
reduzido. A obediência à estrutura formal é mais valorizada do que a improvisação, a inovação. A
entonação é critério de extrema importância na construção dessa ambiência musical. A ressonância entre
as partes dada pelo sincronismo e pela afinação dos instrumentos e dos cantos contribui para o seu efeito
sensível.
47
A característica formal mais evidente desta linguagem verbal é a rima entre as sílabas finais. Noto a
importância de se atentar para a dimensão criativa e inventiva desta prática, muitas vezes envolvendo
técnicas de memorização e improviso.
54
boa parcela deste tempo. Naquela noite, logo após a meia-noite, os primeiros versos
cantados pelo grupo foram os seguintes:
Pai, filho e espírito santo,
Nesta hora de alegria, ai meu Deus
Reunimos foliões
Pra jornada da folia
O momento é chegado, ai meu Deus
De vir ao mundo o menino
Meia noite o galo canta, ai meu Deus
Anuncia o rei divino
Em Belém, todos acordados
Vendo um clarão de luz
Os profetas anunciavam
Que era nascido Jesus
Então os pastores reuniram
Para ver o que aconteceu
Partiram para Belém
Que o filho de Deus nasceu
Assim foram procurar
Por uma estrela guiados
Até chegar no lugar
Que José foi encontrado
Peço a proteção de Deus
Porque ele é o nosso pai
Os três Reis do Oriente
É quem leva é quem traz
O ramo está terminado
Ta cumprida a obrigação
Cada um por sua vez
Arrecua folião
A bandeira sai na frente
Pra cumprir sua missão.
Ao sinal do mestre dado pelos versos finais “o ramo está terminado...”, foliões,
cientes do código, iniciaram um recuo para a retirada da folia e da bandeira. Este
55
movimento é feito lentamente, de modo que os foliões não devem virar-se de costas
para a bandeira, a última a sair da casa
48
. Enquanto os foliões saíam da casa ainda
executando seus instrumentos, algumas pessoas da residência e vizinhos mais próximos
observavam com interesse e expectativa. O silvo do apito do mestre é sinal de que a
seqüência instrumental deve ser terminada obedecendo-se a sua lógica melódica, de tal
forma que todos terminem precisamente ao mesmo tempo
49
.
Uma forte agitação tomou conta da casa e de sua gente na inauguração de mais
um ciclo de jornadas. Élcio despediu-se dos familiares e o grupo em formação, seguiu
seu caminho.
Figura 7. Foliões em jornada pelas ruas da Candelária.
3.1.2 A ‘visita’
Foliões caminharam silenciosamente noite adentro pelas ruas do morro, guiados
pela bandeira. Ao chegarem diante da porta da casa de um devoto, o grupo preparou-se
para iniciar a cantoria. Neste momento a concentração é maior e o silêncio, uma
condição fundamental. Mestre e contramestre ressoaram os primeiros acordes nas
48
A bandeira é sempre a primeira a entrar e a última a sair de uma casa. Desse modo é ela que realiza a
passagem do espaço “profano” para o espaço “sagrado” e vice-versa.
49
Os aspectos formais da música e sua adequada execução são alvo de grande atenção. Cuida-se da
afinação, do ritmo, do andamento, do sincronismo etc., conforme apontei anteriormente.
56
violas, seguidos da sanfona e finalmente dos demais instrumentos. A porta da casa de
Antonio se encontrava aberta, fato este confirmado nos versos ditos pelo mestre.
Antonio veio receber a folia, louvando e beijando a bandeira. Em seguida, Isabel a
transferiu às suas mãos, de modo que permanecesse com a face frontal voltada para os
foliões. Antonio levou a bandeira para o interior da casa, seguido dos foliões. O espaço
usado para receber a folia é invariavelmente a sala, sendo que os foliões normalmente
não têm permissão para entrar nos quartos e outros cômodos mais íntimos da casa,
privilégio restrito à bandeira
50
. Familiares e amigos dos residentes permaneciam juntos
da bandeira, enquanto parte dos foliões se acomodava no reduzido espaço da sala. Os
demais foliões, especialmente os percussionistas, permaneceram do lado de fora por
falta de espaço, assim como os palhaços - estes últimos, por obrigação ritual. A
seqüência de versos cantados desde a chegada foi a seguinte:
Encontrei a porta aberta.
É sinal de alegria
Já pegou nossa bandeira.
Recebeu nossa folia.
Bendito louvado seja.
Nesta hora de alegria.
Eu peço licença a Deus.
Pra rezar a profecia.
Um raio brilhou no Oriente.
Surgiu a estrela guia.
Anunciando à humanidade.
Que o menino Deus nascia.
Nasceu num berço de pobre.
Numa grande estrebaria.
Numa pobre manjedoura.
Aonde o gado dormia.
Os pastores quando souberam.
Partiram para Belém.
A procura de um menino.
Que nasceu pro nosso bem.
50
É bastante freqüente que a bandeira seja entronizada nos cômodos da casa, normalmente conduzida por
um familiar.
57
Os três Reis do Oriente.
Hoje vêm lhe visitar.
Vêm buscar suas ofertas.
Pro seu dia festejar.
Durante cerca de 15 minutos, foliões e devotos permaneceram como que
envoltos numa esfera de sacralidade
51
. A música, por sua propriedade sensível e
emotiva, desempenha função central na criação desta ambiência e em produzir certas
respostas perceptivas. O lugar dos “sentimentos” e das emoções é, portanto, o de
predispor foliões e devotos a perceberem as representações simbólicas como dotadas de
uma força de ação por si mesmas
52
.
O mestre sinalizou mais uma vez o fim da cantoria com um longo silvo de apito,
quando então foliões e residentes se cumprimentaram alegremente. Antonio posicionou
a bandeira numa mesa e a apoiou na parede, de modo a permanecer firme. Residentes
nesta hora beijaram as fitas da bandeira, realizando com uma das mãos o sinal da cruz e
fizeram preces. A bandeira é, de fato, alvo de numerosos contatos corporais por parte
dos residentes, esperando-se com isso receber bênçãos e proteção espiritual. Conforme
notei algumas vezes, devotos costumam também esfregar as fitas coloridas da bandeira
em seu corpo, especialmente no rosto ou no pescoço. Outros conversam longamente
com a bandeira como se estivessem, de fato, diante dos santos. Ocasionalmente o
mestre retira fitas da bandeira e as oferece aos donos da casa. Da mesma forma, os
devotos costumam também oferecer fitas à bandeira, como forma de agradecimento
pelas graças alcançadas.
Após a cantoria, dá-se um intervalo para descanso dos foliões. Neste momento
os donos da casa costumam retribuir a visita com oferta de comida e bebida,
previamente preparada para a ocasião. Naquela noite foram oferecidos vinho, cerveja,
refrigerante e salgados variados
53
. A descontração predomina nesse momento, em
contraste com a formalidade dos cantos e toques da folia. Foliões se espalham pela casa
51
Os versos assumem uma forma sensível particular, produzindo efeitos não apenas através dos seus
aspectos comunicativos. Esta eficácia decorre também dos níveis não-discursivos (musicais,
dramatúrgicos, retóricos etc.) da “performance” ritual e da forma como produzem sentimentos nos
próprios foliões e na audiência (SCHIEFFELIN, 1985).
52
Tenho em mente aqui também pensar esta categoria à luz de sua obrigatoriedade convencional.
(MAUSS, 2003).
53
O consumo de bebida alcoólica é considerado aceitável quando oferecido pelos donos da casa, sendo
violentamente reprimido quando feito em qualquer outra circunstância. Tenho pensado que o álcool está
intimamente relacionado com idéias de contaminação do corpo, mas seu uso generalizado revela
acentuada ambigüidade.
58
ou pela rua, embrenhando-se em longas conversas. Seu Antonio tocou acordeão e
tornou-se o centro das atenções, executando calangos que aprendera em Minas Gerais.
Alguns foliões se animaram e ensaiaram alguns passos de dança ao som da música.
Figura 8. Cantoria no interior de uma casa. Foliões cantam em louvor às imagens a sua frente.
A brincadeira do palhaço também se realiza neste momento, podendo se dar em
algum espaço fora da casa ou mesmo no seu interior, a critério dos residentes. Os
palhaços permanecem do lado de fora assustando as crianças e passantes na rua com
suas máscaras grotescas, aguardando o momento de sua exibição lúdica. Sua entrada na
casa é feita gradualmente, como um “rito de passagem” (VAN GENNEP, 1978) e
requer insistentes pedidos de licença ao devoto que recebe a folia. Naquela noite, o
palhaço Pimentinha introduziu a seguinte seqüência de versos:
Êta ferramenta! Êta ferramenta!
... dou 10, dou 20, dou 30, de 40 gastei 80.
Ô patrão dá licença pra chegada do Pimenta?...
Eu comprei uma casa
Lá do lado do sertão
Bebo sangue do caboclo
Arranco fora o coração
Patrão, me dê licença
Pra passar no seu portão?
59
Muitas vezes a bandeira é retirada do espaço onde o palhaço irá realizar sua
apresentação. Em outras ocasiões, ela é apenas coberta com um pano, indicando que a
visibilidade deste objeto é uma via privilegiada para a manifestação de seus poderes.
Ainda assim, a presença da bandeira e sua proximidade são aspectos que garantem sua
eficácia, visto que os palhaços não devem se aproximar demasiadamente desta, a não
ser que estejam sem as suas máscaras, como também não devem afastar-se demais, pois
dizem necessitar de sua proteção
54
. A razão desse perigo potencial e desses interditos
pode ser encontrada em exegeses mitológicas a partir das quais o palhaço é percebido
como uma representação negativa, como o Diabo, o Cão, Herodes, o rei da Judéia, ou
seus soldados que teriam perseguido o menino Jesus para matá-lo.
O palhaço declama versos de memória ou de improviso, de acordo com as
circunstâncias do momento, denominados chulas. Seu caráter é fortemente cômico,
tendo muitas vezes o público e mesmo o próprio dono da casa como alvo de suas
brincadeiras. Seu jogo está em divertir os espectadores e conseguir tirar proveito do
dinheiro ofertado pelos presentes, que é jogado no chão para ser apanhado e guardado
numa sacola que carregam para este fim
55
. Os ganhos, assim, dependem de uma
negociação permanente entre palhaço e público, na qual se trocam versos ou bailados
por dinheiro. Tocadores de instrumentos de percussão, juntamente com o sanfoneiro,
formam uma orquestra para acompanhar a “performance” do palhaço, entremeando
suas falas. Ao seu redor forma-se um grande círculo de pessoas, vizinhos, gente da casa
etc.
Após algum tempo e terminada a apresentação dos palhaços, o mestre voltou a
reunir os foliões com seu apito no interior da casa. Foliões pegaram seus instrumentos,
conferiram a afinação e tomaram posição, aguardando o sinal do mestre. Antonio e sua
família também assumiram o seu lugar no ritual. É neste momento que se costuma fazer
ofertas em dinheiro à bandeira. A quantia varia em torno de 10 a 50 reais. Isabel é a
responsável por receber o dinheiro e colocá-lo na bandeira. As notas são fixadas no véu
ou nas fitas com o auxílio de alfinetes. Aqui a bandeira realiza uma de suas muitas
54
A bandeira, assim, demarca um campo de forças em torno de si, estabelecendo uma ordem hierárquica
e mesmo proxêmica (HALL, 1981). Noto ainda que ao longo dos deslocamentos nenhum folião deve
ultrapassá-la.
55
A relação dinheiro-palhaço refere-se ainda a mitos narrados sobre a traição de Judas a Jesus por 30
moedas de ouro. Esta narrativa é significativa, pois evidencia a forma com que palhaços lidam com o
dinheiro. Segundo me relatou Élcio, não é regra que os palhaços ofereçam o dinheiro arrecadado à
bandeira, mas a maioria assim o faz.
60
mediações – neste caso, operando uma espécie de purificação do dinheiro recebido
56
.
Parece também importante para os devotos que o dinheiro seja posto em contato direto
com a bandeira, e o mesmo pude notar entre os devotos em festas de Santos em
Portugal, com relação às imagens que saem em procissões. Agindo desse modo, os
ofertantes dizem sentirem que estão em contato íntimo com os santos.
A esta altura, os donos da casa tomaram a bandeira nas mãos e o mestre
anunciou versos de agradecimento e de despedida como os que se seguem:
Senhores donos da casa
Nós já vamos agradecer
Quem lhes paga é os três Reis
Que eles têm maior poder
Agradeço o seu manjar
Que matou a nossa fome
Lá no céu vós é de chamar
O manjar que os anjos comem
Agradeço a bela oferta
Que vos deu a nossa bandeira
Deus lhe dê muita saúde
Pra sua família inteira
A bandeira vai embora
Procurar outra morada
Procurar outro devoto
Que respeite a lei sagrada
A bandeira vai embora
Procurar outro terreiro
Ao anunciar que “a bandeira vai embora”, os foliões iniciaram o recuo para fora
da casa. Enquanto a folia recuava de costas para a saída, o dono da casa segurou a
bandeira com a face voltada para os foliões. Este seguiu acompanhando o recuo dos
foliões, de modo a permanecer sempre face a face com a bandeireira. A bandeira,
assim, realiza a mediação entre a casa e a rua. Já na porta da casa, exatamente na
56
É interessante notar que o dinheiro utilizado aqui parece ter um significado particular, distinguindo-se
da forma com que opera na esfera do mercado. Aqui ele se confunde com seus proprietários, tem um
valor subjetivo. Além disso, a doação de certa quantia à bandeira é a exata expressão de um sacrifício
pessoal, e é também uma das partes de um contrato selado com alguma divindade de quem se esperam
retribuições muito superiores.
61
posição da soleira
57
, a bandeira foi entregue à bandeireira, que a fez girar em seu eixo
vertical, de modo a mantê-la, agora, com a face voltada para o dono da casa. Em
seguida, sem sair do lugar a bandeireira elevou suavemente a bandeira até manter seus
braços esticados e logo em seguida retornou a posição anterior, voltando a repetir o
movimento cadencialmente por algum tempo
58
. Bandeireira e dono da casa
mantiveram-se a uma distância de cerca de um metro, ainda por alguns momentos,
enquanto se desenrolavam os cantos e toques instrumentais. O som do apito, então,
sinalizou o término da visita, e assim o mestre e a bandeireira cumprimentaram os
donos da casa e seguiram caminho, rumo a outra casa.
A Folia Sagrada Família atravessou toda a madrugada e a manhã do dia 25 de
dezembro realizando visitas às casas de devotos. Foram 10 casas visitadas, sendo que
duas delas permaneceram fechadas, pois seus donos não se encontravam na residência
59
.
A missão estava cumprida e a folia agora vinha em marcha ao som de sua bateria
alardeando sua presença
60
. O destino agora é a sede da folia, de onde partiram e para
onde devem retornar com a bandeira.
Subindo as escadas que levam ao piso superior da casa do mestre, ainda ao som
da marcha, foliões tomaram suas habituais posições. Isabel manteve a bandeira em suas
mãos enquanto a folia iniciou a última seqüência de versos para dar por encerrada a
jornada daquele dia. Finalmente a bandeira foi posicionada no interior do altar do qual
só será retirada alguns dias depois, na próxima jornada. O mestre, neste momento,
costuma fazer agradecimentos aos foliões nesta hora e convidá-los a beber algum
refresco em confraternização. Foliões se desfardaram e guardaram seus instrumentos
indo embora, em seguida, para descansar da exaustiva jornada.
57
As observações de Van Gennep (1978) sobre ritos de passagem parecem relevantes para a análise
destas situações. De fato, a soleira, enquanto espaço liminar, marco simbólico de separação, realiza a
passagem entre o mundo doméstico, espaço “sagrado”, por excelência, e tudo que lhe é exterior.
58
Todos os gestos e movimentos corporais envolvendo a manipulação da bandeira são extremamente
comedidos, em contraste, por exemplo, com os gestos bem mais nervosos dos palhaços.
59
A folia aproximou-se da porta fechada das casas e mesmo com todas as luzes apagadas, o mestre
autorizou que se cantasse. Uma vez que se tenha iniciado a cantoria, ela não deve ser interrompida mesmo
que a porta não se abra. Sendo assim, a folia cantou todo um trecho de profecia e seguiu em direção a
outra casa.
60
Durante a madrugada a folia caminha em silêncio, mas de dia, a partir das 6 horas, costuma tocar um
ritmo de marcha, audível a centenas de metros de distância.
62
3.1.3 A ‘entrega da bandeira’
Ao fim de todo um ciclo de jornadas, a bandeira passa por um ritual
particularmente importante. A entrega da bandeira, como se denomina, é realizada no
dia 20 de janeiro, data dedicada a São Sebastião. Este ritual tem lugar na sede da folia,
quando foliões se despedem da bandeira para que seja posicionada em seu altar e
somente volte a circular no ano seguinte
61
.
Antes, porém, de descrever este ritual, gostaria de tecer alguns comentários
sobre a especificidade da jornada que se realiza todo dia 20. São Sebastião é padroeiro
da cidade do Rio de Janeiro e tudo indica que as folias de reis passaram a dedicar um
dia de jornada a este santo por influência das chamadas charolas de São Sebastião. As
charolas são, assim como as folias, grupos de cantores que realizam peditórios às casas
de devotos para a realização de uma festa dedicada a São Sebastião, comum em várias
regiões do Brasil, como também em Portugal (OLIVEIRA, 1992). Trazem consigo uma
bandeira, estandarte ou pequeno altar com a estampa deste santo. No dia 20 de janeiro,
portanto, o mestre Élcio, auxiliado por Isabel, a bandeireira, adiciona uma imagem de
São Sebastião à bandeira, bem como diversas fitas vermelhas, cor associada ao santo.
Neste dia os foliões costumam se fardar com um uniforme específico, todo na cor
branca. Usam também uma faixa vermelha, cruzando o tronco na diagonal desde o
ombro até a cintura. Os versos cantados nas casas contam episódios da vida do Santo.
Na madrugada do dia 20 de janeiro de 2006, foliões encontravam-se reunidos na
casa de Élcio para darem início à última jornada daquele ano. Depois de rezarem o Pai
Nosso e a Ave Maria, o mestre disse as seguintes palavras:
Assim rezamos este pai-nosso em oferecimento à nossa jornada para que tudo
corra bem, para que não venha a acontecer tudo o que vem acontecendo e que
as forças negativas, cada vez mais, saiam, de um por um
62
. Assim ofereço
também ao glorioso mártir São Sebastião ao qual dedicamos esta jornada de
hoje. Assim peço em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.
61
As jornadas correspondem a um período em que a bandeira ganha temporariamente uma dimensão
pública, quando é exibida aos olhos dos passantes e quando pode ser tocada por devotos. Neste espaço-
tempo especial, a bandeira demarca hierarquias. Nem todos podem ter o privilégio de seu contato, nem
todos são, por assim dizer, visitados pelos Reis Magos. A bandeira pode também eventualmente sair do
altar e estar presente em outros contextos, como festas de arremate, festivais, encontros, exposições etc.
62
Suas palavras referem-se aos freqüentes desentendimentos que surgiram entre os foliões durante as
jornadas.
63
Em seguida, Élcio anunciou a saída de dois foliões: Rodolfo
63
(contramestre) e
Leandro (tocador de triângulo). Pediu ainda aos presentes que tomassem água benta do
garrafão vindo de uma igreja, com o propósito de purificar o corpo e o espírito. Cada
um, por sua vez, tomou um gole da água e finalmente puderam dar início à jornada.
Descrevo em seguida a seqüência de versos cantados numa das casas visitadas
durante aquela jornada. A casa de Cremilda, tia de Élcio, localiza-se em área mais alta
do morro. Os versos foram tirados por Alan, um jovem folião, porém experiente, que
vinha de outra folia a convite de Élcio para dividir responsabilidades rituais com ele
64
.
Na sala da casa havia uma pequena mesa encostada na parede, sob a qual Cremilda
colocou um prato com um copo d´água e uma vela acesa, além de imagens de São
Sebastião. Depois da cantoria de chegada, a bandeira foi posicionada também sobre a
mesa junto dos demais objetos: um copo de água, uma vela acesa e várias imagens.
Os versos ditos por Alan e repetidos pelos demais foliões foram os seguintes:
Pai, filho e espírito santo
Nesta hora consagrada
Na frente da sua porta
Tem uma bandeira parada
É o mártir São Sebastião
Fazendo sua jornada
Hoje é 20 de janeiro
Dia de São Sebastião
Ele lutou pra defender
A santa religião
É um santo guerreiro
Mas teve um martírio horroroso
Guerreou com o imperador
Com todo o seu regimento
São Sebastião saiu rolando
No meio da ribanceira
63
Estranhei muito a saída de Rodolfo em plena jornada, visto que tal atitude é vista como uma falta ritual
grave. Não estive presente à jornada que antecedeu a esta, mas soube que, na ocasião, houve uma
discussão violenta entre o mestre e o contramestre, acabando por levar o segundo a se afastar. Este fato,
acrescido de outros, me fez perceber certas incongruências entre coisas que se dizem e coisas que se
fazem. As regras, os códigos de conduta e os interditos podem ser rígidos quando enunciados, mas, em
certas circunstâncias, adquirem considerável flexibilidade.
64
Élcio relatou-me que se sente muito sobrecarregado nas funções e que, como o contramestre não
desejava aprender as profecias para substituí-lo, foi levado a convidar um folião de fora que detém esta
competência.
64
Ele foi preso e amarrado
No tronco da laranjeira
Ele levou três flechadas
O seu corpo foi cravado
A primeira foi no peito
A segunda no coração
A terceira no joelho
A quarta caiu no chão
Vou louvar a vela acesa
E o São Sebastião
Os três Reis e São Sebastião
Hoje vem lhe visitar.
Vêm buscar suas ofertas
Pro seu dia festejar
A visita à casa de Cremilda transcorreu sem maiores surpresas, assim como as
demais visitas que se seguiram, com exceção da visita ao Centro Espírita Dona
Cananina, localizado nas proximidades da Rua Hadock Lobo, no bairro da Tijuca. Tal
episódio merece alguma consideração, por evidenciar aspecto importante nas práticas da
folia: seu trânsito por contextos de religiões mediúnicas. Não há um consenso entre
foliões sobre a adequação da freqüência das folias em centros espíritas ou de umbanda.
Figura 9. Bandeira junto dos demais objetos. Dona da casa em contato com a bandeira.
65
Entre os foliões da Candelária há divergências quanto a esta prática, como se verifica
nas palavras de Alan: “folia de reis é folia de reis. Espiritismo é diferente. Não estou
condenando, só que eu penso desta maneira. Se tiver que cantar na macumba, eu vou
cantar, mas vou cantar do jeito que eu fui ensinado”. A decisão de aceitar um convite
para visitar o Centro, neste caso, parece resultar da autoridade do mestre. Para Élcio este
trânsito parece bastante natural, visto que há algum tempo vem freqüentando um centro
de umbanda nas proximidades de sua casa, sob influência de Isabel, veterana da casa.
Ambos fazem parte de um centro onde dizem servirem de cavalo, ou seja, receberem
espíritos. Estive neste centro a convite de Élcio e Isabel sob as palavras de que eu iria
conhecer o outro lado da moeda. Isabel diz receber uma entidade muito conhecida entre
religiões de possessão em terreiros como pomba-gira
65
, prestando serviços como
conselheira para a população local. Acompanhei todo o ritual que supostamente leva
seus iniciados a entrarem em “transe”, recebi passes e finalmente observei o movimento
das pessoas aguardando o momento de sua consulta, entre as quais se encontrava um
folião.
Naquela madrugada do dia 20 de janeiro, cantar num centro, como costumam se
referir os foliões, era assunto bem conhecido para o mestre, a bandeireira e mesmo para
outros foliões. Uma Kombi saiu da Candelária em direção ao Centro. Lá chegando,
observei ainda no quintal da casa, numa varanda gradeada, algumas imagens da
Umbanda, como caboclos e pretos-velhos, bem como santos católicos, além de velas
acesas. A bandeira foi recebida por Sônia, que encaminhou a folia por um longo
corredor até o fundo da casa onde se localizava o espaço de culto. Em seu interior
encontrava-se uma senhora muito idosa, beirando os cem anos de idade, conhecida
como Vovó Caninana. No espaço de cerca de 20 metros quadrados havia um enorme
altar com numerosas imagens, santos católicos e orixás cobertos com fitas coloridas
dividindo espaço com copos de água e numerosas velas acesas. Entre os versos cantados
pela folia, muitos se referiam diretamente às imagens, como os improvisados por Élcio:
... Oh Deus salve todas as imagens
Que eu vejo na minha frente
Oh Deus salve Oxalá
Todos os orixás presentes...
65
Yvonne M. A. Velho a define como a mulher de Exu. “A Pomba-gira representa uma mulher de vida
fácil, ´mulher de setes maridos´, que faz o bem e o mal, diz palavrões e faz gestos obscenos” (1977: 166).
66
No intervalo, após os cumprimentos, deu-se uma troca de dádivas entre o mestre
e os donos da casa. O mestre perguntou a Sônia qual era a cor de Oxóssi, orixá
freqüentemente relacionado a São Sebastião, cuja cor no contexto do “catolicismo
popular” é o vermelho. Tendo como resposta o verde, Helvacy ofertou uma fita de seda
nesta cor para ela, retirando-a da bandeira. A fita foi recebida com muita gratidão e
Sônia, por sua vez, ofereceu um donativo na forma de dinheiro, prendendo as notas na
bandeira, terminando por beijá-la
66
. Em seguida Helvalcy retirou outra fita, desta vez na
cor branca, e a ofertou à Dona Caninana, dizendo o seguinte: “Essa, a senhora sabe de
cor e salteado”, referindo-se implicitamente a Oxalá
67
.
Ao fim da brincadeira dos palhaços e da cantoria de agradecimentos, os foliões
retornaram para a Candelária para dar continuidade às visitas. Ainda havia, no
concorrido roteiro, muitas casas a cantar, inclusive a de uma devota chamada Celica,
que havia feito promessa para os Santos Reis de receber a bandeira de joelhos por sete
anos, por graças alcançadas. Amanhecia na Candelária e a folia retornou à casa dos pais
de Élcio, sede do grupo, para receber a visita de outra folia de fora da Mangueira. A
folia comandada pelo mestre Guedes vinha especialmente para este compromisso selado
anteriormente. Élcio e Guedes mantêm relações amistosas há muitos anos. Guedes fez
uma saudação ao mestre Élcio, à sua bandeira e aos seus foliões através de versos
cantados e este recebeu em retribuição, uma refeição como parte de pagamento de uma
promessa feita por Élcio. Como mencionei anteriormente, Élcio fez pedidos aos Magos
para que curassem a perna acidentada de sua mãe e em troca ele se comprometeu a
receber todos os anos dez folias em sua casa, no dia 20 de janeiro. Sua promessa não
tem sido cumprida como gostaria, unicamente pela escassez de grupos que tenham
condições de aceitar o convite feito por Élcio.
Por fim, a última casa visitada naquele mesmo dia 20 foi a própria casa dos pais
de Élcio, sempre escolhida para acolher a folia no final de sua jornada. De lá os foliões
subiram as escadas que dão acesso à sala onde se encontra o altar, para realizarem a
entrega da bandeira.
Élcio e Isabel iniciaram os preparativos com muito cuidado, tarefa que tomou
um tempo considerável. A bandeira foi colocada no altar, e suas coloridas luzes
66
Ao longo de uma jornada diária, os donativos em dinheiro são ostentados publicamente na bandeira.
Somente quando retorna ao seu altar, o dinheiro é retirado e guardado.
67
A bandeira aparece neste contexto como um foco de interações, através da qual circulam dons. Por ela
transitam bençãos, fitas, dinheiro etc. Explorarei este aspecto mais adiante no capítulo 4.
67
natalinas acesas conferiam-lhe uma dignidade ainda mais notável. Élcio providenciou
uma mesa e a colocou ao lado do altar. Em seguida um tapete foi posto à frente do altar.
Isabel cuidava dos objetos do altar, posicionando os copos, velas, pratos e rendas. Enfim
o ritual se iniciava com o acendimento das velas vermelhas sob o altar, posicionado à
frente da bandeira. Os foliões assumiram suas posições formando duas filas como de
costume. Élcio tomou a palavra, dirigindo-se a todos e dizendo que, apesar das
desavenças ocorridas ao longo das jornadas, estava satisfeito com o cumprimento da
missão.
Foliões iniciaram o toque do estribilho que sempre antecede os cantos e, na
seqüência, foram cantados os seguintes versos
68
:
Aquela santa bandeira,
Que nos dá nossa jornada
Agora descansa em paz
Regressar a sua morada
Os três Reis já se despedem
Desses caminhos sagrados
Não voltaram a Herodes
Seguiram por outro caminho
A intenção do Rei Herodes
Era matar o menino
Depois de muitos dias
Os três Reis se encontraram
Reuniram seu reinado
E a vitória festejaram
Depois de tanto festejo
Os três Reis se separaram
Nós já vamos se despedir
Do mártir São Sebastião
Eu vou chamar de um a um
Pra cumprir sua missão
Agora eu vou chamar
O meu mestre da folia
68
Cada linha de verso vinha seguida do seguinte refrão: ajoelha-te, ajoelha-te.
68
Neste momento, Élcio tirou o seu chapéu, pousando-o sobre a mesa ao lado do
altar. Ajoelhando-se sobre o tapete de frente para Isabel, pediu a ela que o benzesse com
a bandeira. Isabel pegou a bandeira e passou-a horizontalmente sobre a cabeça de
Élcio, enquanto a música e o coro continuavam a ser entoados. Antes de se levantar, o
mestre beijou a imagem e as fitas da bandeira que pendiam sobre sua face. Na
seqüência dos versos, os demais foliões foram sendo chamados através dos cantos numa
ordem hierárquica e todos os gestos rituais realizados pelo mestre em seu benzimento
foram repetidos pelos demais, inclusive por mim
69
.
Figura 10. Benzimento de um folião.
...Agora eu vou chamar
O contramestre
Agora eu vou chamar
O violão...
A seqüência segue com cavaquinho, sanfona, chocalho, tarol, pandeiro, gongo e
os mascarados. A benção dos palhaços assume aspectos muito particulares. Neste
momento, os palhaços se encontravam no ponto mais afastado em relação à bandeira,
no fundo da sala, mais próximos à saída. O mestre os chamou através dos versos:
Vou chamar os mascarados
Pra cumprir sua missão.
69
Poucos momentos me fizeram sentir tão densamente mergulhado naquele contexto. Quando convidado
a me ajoelhar diante da bandeira, um turbilhão de emoções tomou conta de mim, de modo a não
conseguir mais distinguir entre a emoção subjetiva produzida por uma certa communitas (TURNER,
2005) e a emoção convencionalizada dos gestos rituais.
69
Figura 11. Palhaço caminha de joelhos Figura 12. Emoção na despedida.
para despedir-se da bandeira.
Figura 13. Seqüência de movimentos da bandeira no benzimento de um palhaço.
Cada um, por sua vez, caminhou lentamente de joelhos, sem as máscaras,
através do corredor formado pelas duas filas de foliões para se aproximarem do altar
70
.
Acenderam velas e as colocaram em pratos sobre o altar, deitaram-se de bruços e então
a bandeireira pousou a bandeira sobre suas costas, girando-a para direita e depois para
esquerda, formando o desenho de uma cruz nas costas de cada palhaço. Na seqüência de
gestos, cada palhaço ajoelhou-se novamente, beijou demoradamente a bandeira que se
mantinha na vertical e se afastou lentamente, de joelhos e de costas, de modo a manter-
70
Como nota Van Gennep (1978), os rituais de mudança de status são freqüentemente acompanhados de
deslocamentos espaciais paralelos, tratando-se aqui de uma espécie de rito de passagem com suas fases
distintas: separação, transição e agregação.
70
se sempre de frente para a bandeira. Os palhaços agora estão liberados da função, visto
que passaram por um batismo ritual e não mais devem colocar as máscaras. Todas as
outras pessoas que não integram a folia e que estavam presentes foram também
convidadas a se despedir da bandeira.
Vou chamar os assistentes
Pra beijar nossa bandeira
A bandeireira foi a última a ser chamada. É ela quem encerra o ritual de entrega
da bandeira. Nas duas ocasiões em que fiz parte desse ritual, Isabel chorou
copiosamente neste momento de intensa emoção
71
. O mestre retirou seu chapéu e a
benzeu com a bandeira. Os últimos versos entoados convocavam todos a se abraçar em
confraternização.
Eu quero agradecer a Deus
Porque correu tudo bem
Jesus lá no céu Louvado seja
Nos ajude ...
Nesta hora abençoada
cumprimento os folião.
3.2 A festa de ‘arremate’ e a redistribuição cerimonial das dádivas
A festa de arremate é, por si só, um evento de dimensões e complexidade
consideráveis, mobilizando grande número de pessoas numa extensa rede de
solidariedade. Constitui o ápice do sistema de reciprocidades que venho gradualmente
desenhando. Através dela, foliões e devotos realizam plenamente sua obrigação para
com os Santos Magos do Oriente, oferecendo a sua contraparte num contrato que, em
realidade, é permanente. Foliões encontram justificativa mítica para a festa, ao narrar
que os Magos a realizaram ao fim de sua árdua peregrinação ao encontro do menino
Deus para comemorar o sucesso do empreendimento.
71
Foliões, de modo geral, expressam estados emotivos exaltados neste momento. A expressão, por vezes
obrigatória, de certos sentimentos, é parte dos códigos de condutas rituais (MAUSS, 1999). A entrega é
um ritual de exaltação, bastante dramático, no qual se encena a despedida em relação à jornada, à
bandeira e aos foliões. Semelhante gesto observei entre devotos na festa de Nossa Senhora do Almortão,
invocação Mariana de Idanha-a-nova, na Beira Baixa, em Portugal. Ao final da procissão, uma multidão
de pessoas se despede da imagem, acenando com lenços em meio a lágrimas nos olhos.
71
A festa torna visível, constitui materialmente e intensifica os laços de
comprometimento recíprocos entre foliões e devotos e entre estes e suas divindades.
Trata-se efetivamente de uma ostentosa cerimônia marcada por ações religiosas,
estímulos sensoriais de todo tipo, intensa comensalidade com fartura de comida e
bebida, atravessada ainda por numerosos aspectos da realidade. Dimensões econômicas,
estéticas, morais, religiosas, materiais, “espirituais”, visíveis, invisíveis, mundanas,
extramundanas, se entrelaçam para configurar a festa como um “fato social total”
(MAUSS, 2003). Devo ainda acrescentar que a festa deve ser percebida em sua
“totalidade”, no sentido em que permite o trânsito entre as diversas esferas
cosmológicas.
A festa, bem como o circuito de visitações, instaura um tempo especial, o tempo
dos Reis Magos, em contraposição ao tempo cotidiano. Trata-se de um tempo
reversível, recuperável e, de certo modo, deslocado da vida diária, impondo-se de forma
estrutural, produzindo efeitos sobre a organização social. É um tempo em que os
homens se sentem mais próximos de suas divindades e mais distantes das vicissitudes
mundanas. Nele mergulhados, foliões e devotos possivelmente sentem-se mais
protegidos das incertezas, tensões sociais e carências da vida diária.
As folias de reis realizam sua festa de arremate em qualquer data do calendário
anual, excetuando-se o período de resguardo da Quaresma. A Folia Sagrada Família
costuma realizar sua festa no último sábado do mês de maio, mas os preparativos são
iniciados algumas semanas antes. Como enfatizei anteriormente, o circuito de visitação
realizado pela folia é uma longa fase preparatória para esse momento, pois é através
destes circuitos de visitação que a folia acumula uma parte dos recursos necessários
para sua celebração.
3.2.1 Preparativos
Divisão social do trabalho
A movimentação em torno da festa se inicia algumas semanas antes de sua
celebração, aumentando gradualmente com o passar do tempo. Neste período são
providenciados os ingredientes culinários e os objetos necessários ao seu preparo e
consumo. Na festa realizada em 2006, foram comprados 136 kg de frango, 50 kg de
72
arroz e feijão, 30kg de macarrão, 30 kg de carne de porco e torresmos. Seu preparo
consumiu ainda 10 Kg de cebola e 10 latas de óleo. Além disso, foram comprados
copos, pratos e talheres descartáveis, refrigerantes e vinho de garrafão. Os recursos
utilizados para a aquisição destes produtos vêm, em parte, do dinheiro arrecadado
durante o circuito de visitação, aproximadamente R$1.400,00, quantia esta considerada
insuficiente pelos organizadores. O restante dos recursos veio de doações diversas,
geralmente na forma de gêneros alimentícios, feitos por comerciantes locais. Alguns
foliões costumam também fazer contribuições pessoais da mesma natureza. Naquele
ano, fui convidado a fazer alguma contribuição e sob sugestão do mestre Élcio,
comprometi-me a custear um bujão de gás. Entreguei os R$35,00 referentes ao custo do
bujão a Élcio, recebendo em troca as seguintes palavras, que os Reis Magos lhe
devolvam em dobro. Desse modo, doações na forma de gêneros alimentícios, dinheiro
ou mesmo trabalho se inserem obrigatoriamente num sistema de trocas de dons que se
dá simultaneamente entre os homens e entre estes e suas divindades
72
.
A festa foi realizada na Escola Estadual Ernesto Faria, localizada na Av.
Visconde de Niterói, nas imediações da Candelária, ampliando bastante a presença de
público visitante, em função da facilidade de acesso a pessoas de fora da localidade.
Utilizaram-se, sobretudo, as áreas externas da escola, como o pátio, bem como uma
sala, onde se reuniram os foliões para sua concentração. Na noite anterior à festa, alguns
membros da folia começaram a transportar para a escola, em carrinhos de
supermercado, coisas variadas como: bujões de gás, fios elétricos, ferramentas, material
de limpeza, instrumentos musicais, aparelho de som, panelas, talheres, louças,
ornamentos natalinos etc. Parte da comida foi preparada, ou ao menos temperada, na
casa de alguns membros da “comunidade” na véspera e transportada posteriormente
para o local da festividade. O restante do trabalho relacionado ao preparo culinário foi
feito na própria escola. Para isso, foi necessário montar uma cozinha improvisada no
local, tarefa destinada aos homens, que também cuidaram da limpeza e das instalações
elétricas e hidráulicas.
72
Certa vez, no início do trabalho de pesquisa, ofereci algum dinheiro à bandeireira em retribuição ao
convite que me foi feito para participar de uma confraternização feita entre os foliões em seu último dia
de jornada. Disse a ela que gostaria de contribuir para os gastos da comida e bebida. Diante do meu
gesto, Isabel imediatamente comentou, num gesto confirmativo, se eu estaria doando o dinheiro à
bandeira. Compreendi com suas palavras que minha oferta estaria sendo inserida no sistema de trocas da
qual fazem parte foliões e devotos. O dinheiro foi fixado na bandeira, sob meu consentimento, não mais
em sua natureza estritamente econômica, monetária, mas transformado em dom.
73
No dia seguinte pela manhã se encontravam na Escola Humberto, Rodolfo,
Élcio, Sebastião e algumas mulheres da localidade. O mestre teceu comentários sobre a
ausência dos demais foliões e sobre seu descomprometimento com a preparação da
festa. Quando cheguei ao local, uma longa mesa com cerca de dez metros já havia sido
montada no pátio da escola, juntando-se diversas carteiras de estudantes. Em uma das
extremidades da mesa, localizava-se uma coluna de concreto na qual foi posto um
pequeno quadro da Santa Ceia. Abaixo da imagem, sobre a mesa, foi colocado um prato
contendo um peixe frito, um pão e ao seu lado um copo de vinho
73
.
Ao longo do dia, muitas tarefas têm de ser realizadas e são divididas entre
homens e mulheres. Aos homens cabe transportar todas as coisas necessárias. É sua
tarefa também cuidar do espaço físico da festa, o que envolve limpeza, checagem de
instalações elétricas e hidráulicas, instalação da cozinha, arrumação das mesas e
cadeiras etc. Muitas tarefas são coletivas, mas nem sempre se dão de forma
harmoniosa
74
. Às mulheres cabe coordenar os trabalhos da cozinha, como lavar, cortar e
preparar os alimentos, como também servir os pratos de comida e lavar a louça, trabalho
intenso e levado a cabo por cinco pessoas. São elas também que cuidam das fardas dos
foliões, chapéus, toalhas e outros apetrechos.
Aos homens compete ainda a tarefa de montar o altar, espaço onde são
depositadas as bandeiras das folias visitantes. É costume entre algumas folias do Rio de
Janeiro convidarem outras folias para participarem de sua festa de arremate. Esta
prática amplia consideravelmente a rede de relações entre foliões, na qual estão
envolvidas trocas de um tipo particular, como abordarei mais adiante.
A montagem do altar se iniciou com a disposição de algumas carteiras de
estudantes lado a lado, de maneira a formar uma mesa retangular com aproximadamente
quatro metros de comprimento, encostada numa parede. Em seguida foram fixados dois
73
Os elementos acima assinalados ajudam a demarcar a sacralidade do espaço e sua centralidade e têm
seus significados muito marcados no cristianismo. O pão e o peixe referem-se ao “milagre da
multiplicação”, enquanto que o vinho representa o “sangue de Cristo”. Devo ainda chamar a atenção para
o fato de que a mesa, espaço das refeições, destina-se unicamente aos foliões, sejam da casa ou de fora, e
pessoas de importância. Os outros convidados podem comer em qualquer espaço. Percebe-se que a mesa
está no centro de um espaço simbolicamente “separado” (sagrado / sacer) do restante, do mesmo modo
que o altar é um espaço separado unicamente para as bandeiras.
74
Na ocasião, Humberto e Rodolfo tiveram uma violenta discussão, na qual disputaram conhecimento e
autoridade. O conflito foi iniciado por Rodolfo, que acusou Humberto de realizar certas tarefas de forma
incorreta. Humberto não aceitou a provocação, argumentando que tem mais tempo de folião, e retribuiu
com a acusação de que Rodolfo não sabia ouvir a opinião dos outros. A troca de acusações seguiu em
ritmo intenso e, por fim, Rodolfo, bastante exaltado, declarou que aquela seria sua última participação na
folia. Diante do conflito, Élcio pareceu não se abalar demasiadamente e disse, de forma controlada, “no
final tudo dá certo”.
74
tubos de PVC, formando dois arcos paralelos, nas extremidades da mesa, de maneira a
se obter uma meia-lua sobre a mesa. Ao longo da arcada são amarrados pequenos
sarrafos de madeira, para aumentar sua resistência estrutural. Em seguida foram fixadas
as imagens emolduradas dos santos na parede que serve de fundo para o altar. O
trabalho foi realizado por Humberto, Venceslau e Sebastião, e na ocasião houve longa
discussão sobre como deveriam ser dispostas as imagens. O resultado final, muito
curiosamente, é um compósito cuja estrutura visual é rigorosamente orientada pela
simetria, como se vê pela figura
75
. Na seqüência, o arco foi então forrado com um tecido
e revestido com um véu. A mesa que serve de suporte para as bandeiras também foi
coberta com panos e rendas.
Seguiu-se a tarefa de ornamentação do altar com a fixação de flores e pequenas
lâmpadas de Natal. O altar é, de fato, um foco de extrema centralidade no espaço da
festa. Sua proeminente visualidade, dada pela construção simétrica, pelo longo e suave
arco, pelas cores e pela luminescência oferece aos olhos uma visão de grande
intensidade. Para foliões e devotos, o altar com suas imagens e bandeiras é não apenas
um espetáculo visual, mas uma janela para o mundo das coisas irrepresentáveis que
ganham, durante a festa, presença transitória.
Figura 14. Montagem do altar. Chamo a atenção para a simetria, conforme assinalei anteriormente.
75
De acordo com a teoria da Gestalt, a simetria é a ordem visual percebida como a mais simples e
equilibrada (ARNHEIM, 1986). Os aspectos formais parecem enfatizar o simbolismo das imagens dos
santos, associando-o à sensação psicológica de harmonia, estabilidade e equilíbrio. Um altar instável,
desequilibrado e desordenado seria incompatível com seu conteúdo simbólico. Noto ainda que o altar em
sua totalidade é simetricamente construído, assim como a bandeira, ambos assumindo lugar central na
mediação com a esfera supramundana.
75
O circuito de visitações entre as folias.
O relacionamento entre foliões em torno das festas evidencia um código por eles
compartilhado, através do qual a visita de uma folia a uma festa deve ser, segundo a
expressão nativa, paga na mesma moeda, ou seja, com uma visita recíproca na ocasião
de sua festa. Um convite a uma folia é sinal de que se deseja trocar com ela. Trocam-se
mutuamente visitas, bem como gentilezas, expressões de respeito, saudações, honrarias,
serviços religiosos, e mesmo bens materiais. Seu aceite gera um comprometimento para
a folia que convida, pois como nota Mauss (2003: 237), “a dádiva implica
necessariamente a noção de crédito”. Sua recusa pode ser interpretada de forma
negativa, especialmente quando a folia que convida já realizou, alguma vez, visita à
folia convidada. O esquecimento do convite para uma festa pode ser igualmente funesto,
como também sinaliza Mauss (2003). Ouvi o mestre Élcio mencionar algumas vezes
que não visitaria determinada folia por ela não ter comparecido a sua festa diante de
vários convites. Uma das desculpas mais comuns usadas por mestres, e que de modo
geral é legitimamente aceita, é a dificuldade em conseguir meio de transporte para
deslocamento até o local da festa
76
. Sua reincidência, entretanto, pode efetivamente
levar um mestre a não mais convidar aquela folia. Evidentemente nem todos os convites
são atendidos devido a diversos fatores e não necessariamente se rompem
definitivamente os laços.
Para a festa de arremate da Folia Sagrada Família foram convidadas nove folias,
tendo comparecido apenas quatro. A visita de uma folia é tida como sendo de grande
importância. Sua presença numa festa vem abrilhantá-la e seu sucesso é também medido
pela quantidade de folias que a ela comparecem
77
. Com a sua presença, a festa passa a
ter sua dimensão pública muito visível e intensificada. Neste circuito de visitas mútuas,
certas folias detêm privilégios quando classificadas como as de casa, revelando um
relacionamento mais antigo e mais próximo.
76
De fato, ocasionalmente, folias precisam se deslocar por grandes distâncias para participar de festas,
exigindo recursos para a contratação de transporte privado. Mestre Élcio teve de usar deste artifício
algumas vezes para justificar seu não-comparecimento a uma festa.
77
Semelhante situação se verifica nas festas do Divino Espírito Santo entre imigrantes açorianos no Rio
de Janeiro. Um dos critérios utilizados para se medir a qualidade da festa está na visita das irmandades
(CONTINS; GONÇALVES, no prelo).
76
Figura 15. O altar pronto e iluminado para a festa. Foto de Pedro Lyra e Tatiana Devos Gentile.
Da escassez à fartura
As enormes panelas de alumínio estão cheias de comida, seu aroma invade o
espaço e uma agitação começa a tomar conta da localidade. Por volta das 19h começam
a chegar pessoas da comunidade ao local da festa. Mulheres, homens, jovens e velhos
ocuparam o pátio da escola. Misturando-se a toda gente da localidade chegam também,
de fora, estudantes universitários, pesquisadores, fotógrafos amadores e profissionais,
membros de comissões municipais, estaduais e federais de folclore, produtores
culturais, representantes políticos, configurando uma extensa rede de atores sociais que
evidencia “interesses” e motivações diversos em torno do evento
78
.
A tensão entre os foliões mais graduados neste momento é muito visível.
Preocupam-se, sobretudo, com a fartura da comida. É preciso fazer com que a comida
sobre, pois o excedente é também um dos aspectos através do qual se mede o sucesso de
uma festa. A escassez é uma realidade inteiramente inaceitável e todo o trabalho
78
Tendo em vista estes aspectos, considero que classificar a festa como meramente local ou da
“comunidade”, não parece satisfatório, pois deixa de lado muitas outras dimensões e relações que se
formam em seu entorno. Chamo a atenção particularmente para os aspectos “patrimoniais” que a festa
pode vir a assumir. Explorarei estes aspectos mais adiante.
77
dispensado se dirige a garantir esse excedente. A festa pode assim ser vista como um
grande “rito de passagem” (VAN GENNEP, 1978), onde se celebra o trânsito entre a
escassez e a fartura. Preocupam-se não somente com a quantidade, mas também com a
qualidade da comida, o que envolve cuidados nos processos de aquisição e preparo dos
alimentos, e enfim, com o próprio “paladar”
79
.
Como bem notaram Contins e Gonçalves (no prelo) com relação às festas do
Divino Espírito Santo entre imigrantes açorianos no Rio de Janeiro, essas celebrações
são fortemente marcadas pela “fartura” e pela comensalidade, em oposição à
escassez”, entendidas enquanto categorias nativas cosmológicas. Como sugerem os
autores, “A fartura, no que se refere a comidas e bebidas, assinala simbolicamente esse
tempo renovado, esse tempo de generosidade em que o cosmos e a natureza oferecem
seus frutos” (:21). Os autores notam ainda que os alimentos, transformados em comida
dotada de paladar singular, exerce papel mediador na relação entre “os integrantes da
comunidade de devotos, entre a comunidade e o seu exterior, entre o espírito santo e os
seres humanos, entre ricos e pobres, entre açorianos e não açorianos etc (: 24).” De
modo similar, embora menos marcada, nas festas de arremate a comida exerce este
papel mediador, tornando-se por isso importante foco de atenção. A abundância de
alimentos vem simbolizar correlativamente a fartura em múltiplos planos, como o da
saúde, da prosperidade e de outros domínios da vida social.
3.2.2 A festa
Os foliões isolaram-se numa sala da escola para se fardarem, afinarem
instrumentos e cuidarem de outros preparativos, o que consumiu cerca de duas horas.
Os palhaços se vestiram, colocaram suas máscaras e fizeram preparações rituais.
Testemunhei o palhaço Guerreiro passar sua farda ainda dobrada entre suas pernas
diversas vezes, num movimento cadenciado, antes de se vestir. Tal procedimento me foi
explicado como sendo gestos de proteção contra ações malfazejas que dizem ser
79
Seguindo a sugestão de Gonçalves (2002), procuro pensar a comida da festa sob a ótica de um “sistema
culinário”, segundo a expressão de Mahias (1991), com seus princípios e regras. Trata-se de um sistema
estruturado constituído de elementos interdependentes envolvendo seleção e aquisição dos alimentos, seu
preparo, formas de consumo, distribuição, destinação dos restos etc. Nesta perspectiva, a alimentação não
visa apenas a suprir necessidades básicas, vindo a assumir significados simbólicos fundamentais.
78
comuns em festas, quando palhaços de outras folias também se apresentam e ocorrem
conflitos, ameaças e rivalidades potenciais
80
.
O mestre deu algumas orientações gerais e finalmente iniciou a marcha do grupo
para fora da sala quando um grande número de pessoas já se encontrava à espera da
abertura da festa. O público aguardava no pátio da escola, ansioso pela apresentação do
grupo. Ao som da bateria, o grupo de foliões marchou em direção à saída da escola,
realizando uma evolução coreográfica de grande efeito visual ao longo do corredor de
entrada. Em seguida, o grupo retornou ao interior da escola em direção ao altar sob a
orientação do mestre. À frente do altar iluminado com pequenas lâmpadas coloridas, o
grupo iniciou sua cantoria de chegada sob a atenção do público. A bandeireira
permaneceu à frente do grupo com a bandeira nas mãos, como de costume, com a face
voltada para o altar e suas imagens. Ao final da cantoria, a bandeira foi depositada no
centro do altar, aumentando ainda mais o efeito visual de simetria do conjunto. Ao sinal
do mestre, os foliões marcharam em retorno à sala de onde haviam saído para
depositarem os instrumentos musicais. Em seguida, todos se dirigiram à mesa para
realizar sua refeição coletiva diante dos olhos dos presentes. As mulheres da cozinha
vinham servir fartos pratos de comida, acompanhados de refrigerantes e vinho. Os
foliões retiraram seus chapéus e somente quando se estabeleceu total silêncio entre
estes, ao sinal do mestre puderam comer
81
. Os palhaços permaneceram num local
separado dos foliões
82
. Ao longo da refeição, ouviu-se a notícia de que uma folia
convidada havia chegado e, em concordância com os códigos compartilhados, esta folia
permaneceu do lado de fora da escola, aguardando a recepção.
Não há hora marcada para a chegada de folias convidadas. Observando diversas
festas de arremate, notei que os grupos vão chegando no período compreendido entre
21h e 4h, apresentando-se em ordem de chegada. Numa grande festa costuma-se formar
uma extensa fila de grupos ao longo da rua, numa espera que pode durar algumas horas.
A presença de numerosos foliões na localidade chama a atenção da vizinhança,
80
Guerreiro relatou-me que no dia anterior havia ido a uma igreja para realizar preces e acendido velas
para o seu anjo da guarda em sua casa.
81
A refeição é feita de modo bastante solene e formal. Testemunhei o mestre numa festa de arremate,
quando os foliões se encontravam reunidos à mesa, chamar a atenção dos foliões mais jovens declarando
não permitir brincadeiras naquele momento, pois considerava a refeição a hora mais sagrada. Conforme
assinalei anteriormente, o espaço da refeição tem valor especial, o que se evidencia na presença de
elementos simbólicos. Trata-se de um espaço de grande centralidade, um foco de sacralidade e
“hierofania”, para usar a expressão de Eliade (1999).
82
Somente neste momento os palhaços devem se afastar dos demais foliões, o que evidencia a
centralidade da refeição cerimonial e sua significação num campo simbólico e de ações sociais
(TURNER, 2005).
79
oferecendo aos transeuntes um espetáculo de cores, brilhos e sons. Os palhaços com
suas máscaras e fardas de diferentes feitios e seus gestos irreverentes acentuam este
poder atrativo. A festa, assim, estende sua presença para além dos limites do espaço a
ela destinado.
A topagem das bandeiras
Para entrar no espaço propriamente da festa, uma folia convidada precisa ser
recebida cerimonialmente pela folia anfitriã. Esta recepção é feita através de um ritual
denominado topagem das bandeiras, que consiste no encontro e saudação das
bandeiras, e se dá como descrevo a seguir.
A Folia Estrela do Oriente aguardava a folia anfitriã vir recebê-la do lado de
fora. Mestre Élcio dirigiu-se com os demais foliões em marcha para fora da escola, em
direção à folia convidada. A cerca de dois metros de distância do outro grupo, parou à
sua frente e, assim, as folias permaneceram separadas pelas bandeiras, enquanto
executavam suas respectivas marchas rítmicas. Ao sinal do apito do mestre Élcio, as
folias interromperam o toque instrumental, permanecendo em silêncio, e então os
mestres se cumprimentaram e trocaram algumas palavras amistosas
83
. Em seguida os
grupos retomaram a marcha e, enquanto soavam os instrumentos, Élcio agachou-se e
tirou o chapéu, permanecendo assim por algum tempo, em sinal de reverência. Os
gestos foram repetidos pelos demais foliões que compõem a frente da folia e em seguida
também pela outra folia. Depois de se levantarem, as duas folias iniciaram uma lenta
aproximação até que as bandeiras se tocaram frontalmente. Mantendo esta posição, os
bandeireiros giraram, sincronicamente, sua bandeira para a direita num ângulo
aproximado de 45 graus, retornando em seguida à posição vertical e voltando a girá-la
mais uma vez no mesmo ângulo, desta vez para a esquerda. Procedendo desta forma, as
bandeiras formam entre si um sinal da cruz.
83
É costume também a queima de fogos de artifício nesse momento.
80
Figura 16. Formação da cruz durante a topagem das bandeiras.
Na seqüência do longo cerimonial, as bandeiras foram trocadas de mãos entre os
bandeireiros, de modo que estes as carregaram consigo e as conduziram entre os
membros de seu próprio grupo para que cada folião a saudasse, beijando suas fitas
coloridas. Cada bandeireiro percorreu, desse modo, o corredor formado pelas filas de
foliões para que eles pudessem saudá-las. Ao fim deste procedimento, os bandeireiros
retomaram suas posições na dianteira de seus respectivos grupos e as bandeiras foram
trocadas novamente de mãos, para que finalmente pudessem entrar no espaço da festa.
Mestre Élcio seguiu na frente em marcha na direção do altar e Isabel depositou a
bandeira em seu interior, quando então os foliões se dispersaram. Na seqüência, a folia
convidada aproximou-se do altar e à sua frente iniciou sua cantoria, à qual se juntaram
outros foliões e devotos. Noto que neste caso, a bandeira da folia convidada se manteve
nas mãos da bandeireira enquanto decorria a cantoria. Mestre Élcio permaneceu
próximo ao mestre Guedes, engajando-se na cantoria. Foliões de diversas folias que se
encontravam a paisana também se aproximaram e se engajaram nas cantorias. Cantar as
chamadas profecias é, de fato, uma oportunidade singular de interação interpessoal, na
qual se compartilham códigos e linguagens específicas. Ao fim da cantoria, sob
aplausos do público, a bandeira pode ser colocada dentro do altar ao lado da outra
bandeira e, assim, o mestre Guedes conduziu seus foliões para a mesa, onde puderam
comer.
81
Figura 17. Folia convidada realizando gestos de saudação à folia anfitriã..
Figura 18. Topagem das bandeiras.
Figura 19. Folião saudando uma bandeira.
82
Brincadeira e rivalidade: os aspectos agonísticos
Após a apresentação de todas as folias convidadas, costuma-se oferecer um baile
para todos os presentes. Foliões e público costumam engajar-se animadamente nestes
bailes com música reproduzida a partir de discos. É neste momento que se verifica os
efeitos do consumo excessivo de bebidas alcoólicas por foliões e convidados. Um
caráter predominantemente despojado, informal, toma conta da festa, quando os
próprios foliões se dão conta de que estão também num espaço de divertimento
84
. A
satisfação pelo sucesso da festa começa a se fazer perceber nos rostos dos foliões e do
público.
Ao longo de uma noite de festa, muitas folias podem comparecer prolongando
suas cantorias até o amanhecer, quando geralmente tem lugar a apresentação dos
palhaços. Os mestres das folias estabelecem consensualmente um tempo limite para que
cada palhaço se apresente, o que nem sempre é obedecido, gerando muitas vezes
numerosos conflitos. Os palhaços têm em torno de 10 a 15 minutos e sua apresentação
obedece à ordem de chegada das folias. Consiste basicamente na declamação de versos
de memória ou de improviso e bailados acompanhados da música da sanfona e dos
instrumentos de percussão.
Os palhaços são particularmente atraentes por sua aparência grotesca, seus
gestos irreverentes, assim como pelo caráter cômico, sarcástico, com que declamam
seus versos, a que chamam de chulas. Os aspectos criativos se acentuam bastante,
especialmente durante as festas nas quais a dimensão exibicionista também ganha
acentuada preeminência. Entre os motivos que levam uma pessoa a se tornar um
palhaço, parece estar a oportunidade de realizar práticas que o distinguem claramente
dos demais foliões, conferindo-lhe certo prestígio. Estas práticas, freqüentemente
classificadas como artísticas do ponto de vista nativo, envolvem o adestramento da
memória, o domínio da rima e do improviso, dos gestos e do corpo, em busca de certo
virtuosismo, estimulada pela possibilidade de exibi-las e pela competição frente a outros
palhaços.
84
Aliás, compartimentalizar a festa ou seus momentos como exclusivamente “profanos” e “sagrados”,
formais e informais não parece neste contexto muito adequado. A idéia de que a festa e seus diversos
momentos percorrem um contínuo entre estes extremos, adquirindo certas nuanças e gradações, parece
mais rentável.
83
É durante a brincadeira dos palhaços que os aspectos agonísticos da festa se
tornam mais evidentes. Rivalidades aparecem em diversas situações envolvendo
mestres, palhaços e demais foliões de diferentes grupos, mas nem sempre são tão
visíveis. Disputam-se regalias, preferências, tempo de apresentação etc. Pode-se
surpreender ao se ouvir um mestre tecer observações sobre uma festa alheia, com o
intuito de depreciá-la. Diz-se que a comida não é tão boa ou que falta organização,
procurando-se enfatizar seus próprios méritos. Mestre Élcio relatou-me que um outro
mestre, certa vez, tocou-lhe no ombro pedindo-lhe que encerrasse a cantoria de sua folia
para que ele pudesse realizar sua apresentação, o que o teria deixado enfurecido.
Contou-me ainda que quando aquela folia compareceu a sua festa, ele devolveu o
mesmo gesto. Entre os palhaços a competição é ainda mais intensa, e já soube de casos
que chegaram ao confronto físico. Normalmente, porém, as investidas se dão por
intermédio da palavra, sob o rigor das métricas e rimas próprias dos versos de improviso
que criam. Essas rivalidades são ainda temperadas por ações “mágico-religiosas” de
todo tipo, como se evidencia, por exemplo, no caso que passo a descrever.
A Folia Sagrada Família saiu de Mangueira em direção a Vilar dos Teles,
subúrbio do Rio de Janeiro, para participar de uma festa de arremate como convidada.
Entre seus foliões encontrava-se o palhaço Trovoada, um dos mais antigos ainda em
atividade no Rio de Janeiro. Durante sua apresentação na festa, Trovoada mostrou-se
visivelmente desarticulado e confuso, para a perplexidade de todos que bem conhecem
sua habilidade verbal. Gaguejando muito e dando mostras de ter sido traído pela
memória, Trovoada continuou sua apresentação mesmo sob dificuldades, até que o
mestre de uma das folias presentes sugeriu que ele estivesse cansado e que deveria
interrompê-la. Mestre Élcio, que se mantinha atento ao que estava acontecendo,
sussurrou no ouvido de Trovoada que alguém teria rezado pelas suas costas,
prejudicando-o propositadamente, conforme me relatou posteriormente. Nas suas
palavras, o acontecimento foi fruto da “negatividade do ambiente”. Enquanto Trovoada
insistia nas suas tentativas de versar, Élcio pegou uma vela, fez o sinal da cruz e a
acendeu, segurando-a na própria mão enquanto realizava preces e pedidos direcionados
aos Magos. Na seqüência dos acontecimentos, Trovoada foi aos poucos recobrando sua
memória e melhorando sensivelmente sua apresentação. Em outra ocasião, Trovoada
contou-me que nunca havia passado por aquela difícil situação, mas que presenciou
cenas semelhantes envolvendo outros palhaços. Relatou-me também que certa vez,
84
numa festa, uma pessoa à paisana ameaçou-lhe cortar a voz e a de outro palhaço
chamado Rogerinho e que, de fato, este palhaço passou mal, indo parar no hospital.
Esse episódio evidencia alguns aspectos que merecem ser comentados. Trovoada
é um palhaço prestigiado, respeitado e admirado por grande número de foliões e
palhaços
85
. Por isso mesmo, sua posição, como a de outros palhaços, em semelhante
situação, pode ser invejada e cobiçada por uma parcela não menos expressiva de
pessoas que o conhecem direta ou indiretamente. Em razão de sua “vulnerabilidade”
86
,
Trovoada, bem como outros palhaços, realiza inúmeras precauções rituais
87
. Conforme
me relatou, acende velas, faz preces e tem um cuidado muito especial com sua farda e
demais pertences antes de sair numa folia. Trovoada faz uso de amuletos diversos na
forma de cordões, fitas, santinhos e anéis que mantém em contato com o corpo
88
. Em
conversa com Élcio, soube ainda que entre as folias há muitas formas usuais de
bruxaria direcionadas a prejudicar o outro: vela acesa de cabeça para baixo, reza pelas
costas, ou ainda fitas cortadas de uma máscara de um palhaço, são algumas destas
formas.
No retorno da festa, já na Candelária, Élcio comentou o episódio orientando seus
foliões e palhaços a tomarem cuidado e não se afastarem de seus instrumentos e
especialmente de suas máscaras. Na ótica do mestre, estes objetos - extensões de seus
usuários -, são uma espécie de mediador “mágico-religioso” de propriedades
89
. Seu
85
Entre as características que um palhaço apresenta que parecem ser valorizados entre os foliões estão:
habilidade verbal, extensão do repertório, capacidade de improviso, caráter debochado, conhecimento que
detém sobre profecias e também sua postura moral. Para alcançar reconhecimento e prestígio junto aos
foliões, um palhaço necessita não só ter certo domínio técnico, mas também apresentar alguma
excepcionalidade.
86
Discutirei as razões desta vulnerabilidade simbólica associada aos palhaços no capítulo 5.
87
Com relação aos atos de magia e contramagia presentes nestes contextos, tenho em mente algumas
idéias postas por Tambiah. O autor entende que magia não vem ocupar o espaço de ausência de algum
conhecimento empírico ou ainda desempenhar a função de aliviar ansiedades frente às dificuldades postas
pelo mundo. Trata-se mais de um sistema altamente estruturado voltado para dar sentido ao conjunto das
atividades sociais inserido em uma cosmologia particular. Como propõe, ao analisar procedimentos
mágicos entre sociedades trobriandesas, “as with all classic type of witchcraft, the Trobriand system
deals with misfortune ‘ex post’, not in terms of ‘laws of nature’ but in terms of deviation from an ideal
order of social relation”. (1985 : 51). Como sugere ainda, “trobriand magic is a testimony to the
creativity of thought, that its logic is an antecipatory effect” (: 51).
88
Seu mais notável amuleto é um medalhão de metal cunhado com o emblema de Salomão que pende de
seu pescoço em grossas correntes, somente visível quando se encontra sem a farda.
89
Tambiah acrescenta que nos rituais de transferência mágica, através de objetos ou substâncias
mediadoras (objetos-símbolos), verificam-se os princípios de imitação e contágio expressos por Frazer,
mas não de modo exclusivo. O autor assinala que uma análise mais profunda de rituais revela que eles
“exploram ativamente as propriedades da linguagem, as qualidades sensoriais dos objetos e as
propriedades instrumentais da ação, simultaneamente e de diversos modos” (1985: 37).
85
receio está em que sejam manipulados magicamente por pessoas estranhas, ou mesmo
conhecidas, para produzirem efeitos negativos.
O que o conjunto destas crenças e práticas parece indicar é o fato de que a festa é
pensada como uma totalidade, como uma arena onde se evidenciam, não apenas forças
supramundanas manifestadas diretamente através de divindades e espíritos, benéficos ou
maléficos, mas também forças internas investidas nos próprios homens. No primeiro
caso, se não se detém o controle sobre as vontades destas potências; por outro, espera-se
que atendam a certos desejos e pedidos mundanos, sejam através de preces, oferendas,
festas etc. Se, por um lado, lida-se com forças superiores, incontroláveis e externas, por
outro, opera-se num sistema de ação, de agências, onde certas forças são manipuladas
de forma mais controlada, consciente.
Nesse sentido, a noção de bruxaria é parte de uma visão de mundo que relaciona
diretamente as pessoas, suas posições e suas condutas morais dentro da sociedade e do
Cosmos. A noção de bruxaria vem, desse modo, ocupar lugar semelhante, ao que
ocupa, entre os Azande, ao explicar a natureza dos infortúnios, relacionando uma causa
moral a um determinado evento. A noção vem produzir equilíbrio e operar um controle
nas condutas dos indivíduos no seio das relações sociais, de acordo com as análises de
Evans-Pritchard (1978). Pode-se dizer ainda que esses fenômenos encontram sua
causalidade nas próprias tensões e disputas existentes na rede de relações locais
(TURNER, 1957). O que se evidencia aqui, não é uma “mentalidade primitiva” em
contraposição a um pensamento racional, como queria Lévy-Bruhl, mas um modo de
conceber o mundo no qual as relações pessoa a pessoa assumem lugar central. Desse
modo, as forças impessoais que agem sobre o Cosmos são pensadas como reações
diretamente ligadas às ações humanas (DOUGLAS, 1976).
A festa como um potlatch
Como se percebe, as festas de arremate comportam antagonismos de todo tipo, o
que as aproxima dos chamados potlatch, como aparecem, por exemplo, em algumas
sociedades do noroeste americano, descritos por Boas (1911) e analisados por Mauss
(2003). Para esse autor, o potlatch é uma instituição que se caracteriza por trocas,
prestações de toda ordem, doações aparentemente gratuitas, cujo destinatário será
obrigado a retribuir pelo menos o equivalente. Sua marca distintiva, entretanto, é a
86
dimensão agonística da oposição entre grupos. Essa dimensão não é, evidentemente, tão
marcada nas festas de arremate das folias de reis quanto no caso do potlatch norte-
americano, no qual os chefes dos clãs, verdadeiras “pessoas morais”, se enfrentam
permanentemente, e às vezes até à morte para estabelecer hierarquias.
Se, por um lado, a festa é o momento em que as dádivas ofertadas por devotos
passam de sua acumulação a sua redistribuição, por outro, opera-se simultaneamente
uma espécie de destruição ostentatória destas “riquezas”, através de seu consumo. Os
bens, dispendiosamente distribuídos, são imediatamente consumíveis. São, por assim
dizer, “sacrificados” para deleite e glória das divindades, incitando-as a serem generosas
para com os homens
90
. É agradando-as que se pode esperar uma retribuição muito
superior. Como sugere Mauss, “A destruição sacrificial tem por objetivo ser,
precisamente, uma doação a ser necessariamente retribuída (2003: 206)”. Aliás,
curiosamente, o autor indica que entre os prováveis significados da palavra potlatch
estão o de “nutrir” e “consumir”, observando que essas noções não são necessariamente
excludentes
91
. Há, portanto, uma grande ambivalência em todo este sistema, cujo ápice
é a festa, permitindo gradações e mediações entre noções opostas: morte e vida,
escassez e fartura, alto e baixo etc.
Como nota Godelier, o dom não é apenas uma maneira de se partilhar o que se
tem, mas também uma maneira de combater com o que se tem (2001: 15). O ponto a
ressaltar é que esta destruição ritual, este suntuoso sacrifício assume, por outro lado,
dimensão altamente positiva, regeneradora. Trata-se de uma espécie de grande morte,
pensada não como um evento definitivo, mas como uma suprema iniciação, um novo
nascimento. É através do seu intermédio que se combate a escassez, sempre temerária e,
enfim, se convertem as incertezas em certezas, ainda que temporariamente.
Desse modo, a comida e a bebida são a forma mais visível desses bens,
destinados não apenas a foliões, mas à significativa parcela do público que comparece à
festa. Ali comem, fundamentalmente, amigos, pessoas consideradas importantes e
pessoas mais carentes da localidade, especialmente crianças. Ao fim da festa, a sobra de
90
O tema da destruição-sacrifício parece estar presente de modo semelhante em diversos contextos. Na
Festa de São Pedro em Montijo, Portugal, onde estive, realiza-se um ritual denominado cama de batel.
Trata-se da destruição de um barco de pesca, previamente enfeitado com flores e bandeiras, que é
queimado no fim da festa. Informantes me relataram que atualmente se escolhe uma embarcação mais
velha, já bastante degrada e praticamente inutilizada para este fim.
91
Esta imagem se aproxima notavelmente da noção de “baixo material e corporal” associado à cultura
popular, simbolizado pelas partes inferiores do corpo, como o ventre, por exemplo, que devora e ao
mesmo tempo procria (BAKHTIN, 1993).
87
comida foi grande, o que se reverteu, durante boa parte do dia, em pratos para
numerosas pessoas.
O sol já dava sinais de sua imponente presença e mais um dia quente de verão
era esperado. Os palhaços terminavam suas apresentações e boa parte do público já
havia ido embora. Permaneceram, porém, os mais próximos e os que haviam se
comprometido a trabalhar para a festa. Cada folia visitante pôs-se a realizar sua cantoria
de agradecimento e despedida à frente do altar, na ordem seqüencial em que chegaram.
Cada qual, por sua vez, vinha retirar a bandeira do altar onde permaneceu por toda a
noite, saindo de costas em direção ao portão da escola, de modo a manterem a bandeira
de frente para os demais foliões e o restante do público que ainda se encontravam no
interior da escola
92
. A última folia vinha deixando o espaço da festa e já na saída o
mestre Élcio pediu para que cada folião de seu grupo se despedisse da bandeira, a
última a sair, o que foi feito beijando-se suas fitas. Agora já se misturando ao
movimento dos carros e dos passantes, aos sons da rua, a folia sumia no horizonte da
cidade.
3.3 ‘Folias’ de reis e seu trânsito em diversos contextos
No Brasil, a intensa migração de populações rurais para as grandes cidades, nas
últimas décadas, tem contribuído para ampliar a já existente “cultura popular” urbana.
Em contextos cosmopolitas, suas práticas culturais se tornam importante instrumento de
afirmação dos laços sociais e da identidade cultural de numerosos grupos sociais. Nas
cidades, com freqüência cada vez maior, essas manifestações extrapolam limites locais
e passam a trafegar por outros contextos de maior visibilidade e publicidade, como é o
caso dos festivais folclóricos, por exemplo
93
. Nestes cenários de interesses e pontos de
vista entrecruzados, convergem freqüentemente políticas de cultura e práticas de
“patrimonialização”, através dos quais se operam processos de “tradução cultural” e
mudança de status destas manifestações (GONÇALVES, 2003a, 2003b, 2007c, 2007d;
92
Observo aqui a oposição sempre relativa entre frente e costas, correlata à direita e esquerda, alto e
baixo, que percorre as ações rituais.
93
É verdade também que manifestações oriundas de áreas rurais têm, de modo crescente, se inserido
nesses circuitos, rompendo barreiras e distâncias regionais, nacionais e mesmo transnacionais.
88
MYERS, 1991, 1994; CLIFFORD, 1997; KIRSHENBLATT-GIMBLETT, 1991;
PRICE, 2000). Desse modo, festas, rituais, músicas e danças têm-se multiplicado na
forma de espetáculos artísticos, exibidos em teatros, palcos ou praças, pressupondo um
diversificado público. Essas manifestações também têm-se desdobrado na forma de
produtos diversos como CDs, livros, DVDs, etc., o que pressupõe o envolvimento de
atividades produtivas e mesmo de uma indústria cultural, assim como de um mercado
consumidor em franca expansão. Muito tem-se falado acerca dos “interesses” dos
diversos agentes, espaços e instituições, nos processos de “objetificação cultural”, mas
pouco sobre os interesses dos próprios grupos sociais em se inserirem nesses novos
cenários de expressão, produção, representação e circulação cultural. Neste horizonte,
procuro pensar as possíveis ressonâncias de “interesses” entre, de um lado, artistas
populares, grupos e seus saberes, festas, ritos, e de outro, agentes, espaços e instituições
culturais diversas que transitam entre o estado e o mercado.
Os encontros de folias de reis
Além de realizar suas ações rituais em âmbito local, organicamente dentro de
suas redes de sociabilidade, folias de reis transitam em outros contextos de natureza
variada. Desse modo, suas ações extrapolam o calendário propriamente festivo e fazem
com que muitas vezes folias estejam em atividade ao longo de quase todo o ano. Este é
o caso quando uma folia é convidada a comparecer a uma festa de arremate de outra
folia, esperando-se que isso contribua para o sucesso da festa, conforme relatei
anteriormente. No Estado do Rio de Janeiro, essa forma de relacionamento entre grupos
de foliões é bastante freqüente, dinamizando intensamente o universo de relações sociais
e de trocas pessoais em torno das festas de reis.
Uma outra forma comum de participação e interação desses grupos diz respeito a
encontros folclóricos, também muito recorrentes no Estado do Rio de Janeiro.
Normalmente organizados por instâncias de poder público, como Prefeituras ou
Secretarias municipais de Cultura ou mesmo por associações de folias de reis, esses
eventos públicos de caráter “oficial” visam reunir folias de reis das proximidades com o
intuito de criar uma grande exibição abrilhantada pelas cores e sons dos diferentes
89
grupos (KIRSHENBLATT-GIMBLETT, 1991). Esses eventos se dão, portanto, na
forma de “transações interculturais” (MYERS, 1994), através das quais se revelam
diversos interesses e múltiplas construções da identidade nativa (SANTOS, 2005).
Alguns desses encontros já se realizam há muitas décadas, como o de Muqui, no
Espírito Santo, ou o de Duas Barras e Valença, no Rio de Janeiro, reunindo numerosos
grupos de foliões e público. Entre esses eventos, o de Muqui
94
é considerado o mais
antigo do Brasil, completando, em 2008, 58 anos de existência. O Encontro Nacional de
Folias de reis de Muqui já chegou a reunir uma cifra superior a 100 folias de reis num
único evento. Conforme observei, o evento se diferencia dos demais por ser organizado
a partir de uma estrutura particular. As folias chegam à cidade, de variadas localidades,
por volta de 11h e dirigem-se a uma quadra esportiva, onde é realizada a abertura do
Encontro, com a presença de personalidades públicas. Depois dos discursos, os foliões
recebem marmitas de comida para fazerem a sua refeição e em seguida forma-se um
gigantesco cortejo pela avenida principal da cidade, no qual os grupos seguem um após
o outro, como num grandioso desfile. O cortejo segue para a Matriz de São João Batista,
onde os grupos são recebidos pelo pároco local, no seu interior. Finalmente as folias
deixam a igreja e cada qual é encaminhada, por membros da comissão organizadora,
para cantar no interior da casa de uma família local. O final do evento se dá com a
concentração dos grupos num largo central diante de um palanque, já à noite, quando
são proferidos discursos e são distribuídos troféus de participação aos mestres. Ao lado
dessas atividades, encontram-se espalhados pelas cidades artesãos vendendo uma
variedade de miniaturas de folias de reis (souvenir).
94
Devo acrescentar que a cidade de Muqui tem sido alvo de processos de tombamento como sítio
histórico pelo IPHAN, fato que vem sendo claramente explorado na transformação do local em destino
turístico. Estes aspectos são também importantes para se compreender o cenário a partir do qual se
desenham tais eventos folclóricos.
90
Figura 20. Cortejo de foliões em direção à Matriz de São João Batista. Muqui – ES.
Figura 21. Foliões no interior da igreja.
91
Figura 22. Cantoria no interior de uma casa.
Figura 23. Encerramento do evento com uma exibição coletiva das bandeiras.
92
Figura 24. Coleção de troféus de um mestre de folia de reis acumulados ao longo de muitas décadas de
participação em encontros folclóricos.
A abertura deste tipo de evento é invariavelmente iniciada por discursos oficiais
proferidos por representantes do poder público, atravessados por idéias de representação
identitárias. No 56º Encontro de Muqui, estiveram presentes o prefeito da cidade, um
representante do Ministério da Cultura, um representante do IPHAN, o presidente da
comissão estadual de folclore espiritosantense, o presidente da comissão municipal de
folclore, cargo ocupado por um mestre de folia de reis, patrocinadores e a secretária
municipal de Cultura de Muqui. Como mencionei, em grande medida a idéia de
identidade assume lugar central nesses discursos e é recorrentemente relacionada à
diversidade das manifestações populares brasileiras. Este aspecto se evidencia no trecho
de discurso proferido na ocasião pelo presidente da comissão estadual de folclore.
Venho trazer a mensagem da comissão nacional e estadual de folclore e a
mensagem vocês já sabem. A mensagem é que vocês são as pessoas mais
importantes aqui hoje. Vocês são os responsáveis pela identidade brasileira.
Vocês são a cara do Brasil. É que a coisa esta invertida. Vocês é que deviam
estar aqui em cima no palanque e nós as autoridades aí em baixo. Tá na nossa
folia de reis, no caxambu, no terreiro de umbanda, no ticumbi, no jongo essa
identidade. É aí que mora a tradição e a identidade do povo brasileiro.
Ou, como sugere a representante do IPHAN, “O que estou vendo aqui é o corpo
e alma do Brasil”. O representante do Ministério, por sua vez, traz em seu discurso
preocupações com relação à necessidade de se constituir formas organizadas de
representação dos interesses dos setores populares junto ao Ministério, bem como do
desenvolvimento de políticas públicas para esses setores. Também chamou-me a
93
atenção o fato de alguns discursos se apropriarem de termos e expressões que seriam
supostamente atribuídos aos setores populares presentes ao evento. Frases como “Viva
os Santos Reis” eram pronunciadas, provocando respostas vibrantes dos foliões e do
público, com aplausos, toque de apitos, pandeiros etc.
Os encontros de folias de Duas Barras, assim como muitos outros, seguem um
modelo diferente, como passo a descrever. Realizam-se geralmente em praças centrais
de pequenas cidades interioranas, onde há um palanque ou coreto contendo um
presépio, cercado por cordas para isolar o público. Como se pode imaginar, a vida da
cidade é inteiramente alterada diante da intensa movimentação que se instala na
localidade. As folias chegam ao local e recebem uma senha para entrar numa ordem de
apresentação. A maior parte dos grupos vem das redondezas, mas em alguns casos
grupos podem percorrer centenas de quilômetros de distância para poder participar do
encontro.
Chegado o momento da apresentação, cada grupo se organiza formalmente e
marcha ao som de seus instrumentos de percussão em direção ao palco ou coreto. A
folia deve cantar alguma profecia por um período de tempo estabelecido previamente
pela comissão organizadora do evento, usualmente em torno de 20 a 30 minutos. O
sucesso do evento depende em grande medida da habilidade do locutor, pois, como num
grande espetáculo de auditório, espera-se que ele faça comentários sobre as folias, sua
história ou estilo, enaltecendo suas qualidades, comparando-as etc. Ocasionalmente há
um jurado responsável por avaliar a “performance” dos grupos e por conferir prêmios
aos escolhidos como melhores
95
.
Após a exibição dos cantares, os palhaços passam a se apresentar também dentro
de certo limite de tempo. É nesse momento que se evidencia mais claramente o aspecto
da rivalidade, quando ocasionalmente um palhaço profere versos especialmente
dirigidos a denegrir a imagem de outro palhaço, num tom de disputa. Ao final da
apresentação, o grupo se dirige a um local reservado para participar de uma refeição
coletiva, parte importante e muito valorizada do evento, do ponto de vista dos foliões.
Os grupos costumam também receber, mas não obrigatoriamente, um modesto cachê, o
que constitui, às vezes, o principal incentivo para sua participação.
95
Há numerosos critérios envolvidos nesta avaliação, como afinação, indumentária, improviso dos
palhaços, regras espaciais etc. Não aprofundei este aspecto, mas creio que um estudo sobre esses critérios
poderia revelar uma série de categorias a partir das quais o evento é compreendido ou enquadrado.
94
Colocando em contraste esta modalidade de atuação das folias de reis em relação
ao seu contexto local, observo que neste último caso as folias realizam peditórios entre
as casas da vizinhança motivadas por uma lógica de reciprocidades, em que o tempo
tende a ser circular, reversível, como apontei anteriormente. Por outro lado, ao transitar
em festivais folclóricos, este tempo e este espaço são, muitas vezes, arbitrariamente
reduzidos a uma determinada fração. Trata-se de um tempo marcado no relógio,
objetificado, com limites muito bem assinalados. O público e os foliões mantêm-se
separados, sublinhando-se a diferença entre o palco e a platéia. O que está em foco
nesse contexto é, sobretudo, a dimensão espetacular e de entretenimento onde, também,
as rivalidades se acentuam. Entre uma e outra modalidade, certas características se
mantêm comuns; outras, entretanto, se diferenciam, implicando sempre uma espécie de
tradução.
Inclino-me, contudo, a pensar estas oposições de forma relativa, visto que uma
série de mediações se realizam entre seus pólos. No caso do Encontro de Muqui, por
exemplo, as folias realizam um desfile através do qual se exibem para numeroso
público, realizando, contudo, visitas às casas da cidade. Em razão disso, o público
precisa se dividir e escolher a folia que deseja apreciar. Quando a visita se dá em
lugares públicos, como escolas, o público é autorizado a entrar, caso contrário limita-se
a acompanhar a folia durante a cantoria de chegada, permanecendo do lado de fora,
enquanto a família é visitada. No interior da casa, as ações da folia e dos familiares se
dão de modo muito semelhante como se desenvolvem em contextos de reciprocidade
locais. Ao fim da cantoria de chegada, os residentes oferecem comes e bebes e em
retribuição a folia volta a cantar os agradecimentos e as despedidas. Observo que neste
caso, em particular, há uma mediação entre a esfera pública e privada, rua e casa,
exibição e contenção, informalidade e formalidade etc
96
.
Com base nestas descrições, sugiro que, na perspectiva de foliões e devotos, tais
eventos não se reduzem a espetáculos no sentido moderno e autonomizado da palavra.
Isso se verifica nas preparações rituais que foliões realizam de proteção contra ações
“mágico-religiosas” que dizem serem potencialmente perigosas em ambientes onde se
96
A história deste encontro revela um aspecto de interesse analítico. Soube que a comissão organizadora
do evento adotou esse modelo após perceber a inviabilidade de colocar mais de 70 folias de reis numa fila
de apresentações sucessivas que implicava duplamente um encolhimento do tempo de cantoria de cada
grupo e uma dilatação do tempo total do evento, deixando todos insatisfeitos. Suspeito que estas
adaptações sejam resultado da interação entre foliões e comissão organizadora. Com isso, sinalizo as
mediações entre esses agentes sociais, relativizando a arbitrariedade do evento.
95
presenciem diferentes grupos, bem como nos gestos denunciadores de parte do público.
No encontro de folias de Valença – RJ, em 2004, onde se reuniu um público de cerca de
4.000 pessoas, notei que as bandeiras das folias eram intensamente tocadas e beijadas
pelo público, reafirmando assim sua sacralidade e eficácia. Algumas pessoas pagavam
promessas fixando fitas na bandeira. Observo ainda que mesmo a lógica da
reciprocidade não está ausente nesse contexto, visto que foliões de diferentes grupos
aproveitam a oportunidade para reafirmar laços de companheirismo ou de amizade,
trocando gestos de gentileza ou mesmo presentes
97
.
Há ainda nesses eventos espaço para as competições e rivalidades, como já
mencionei, o que também se verifica em contextos localizados. Foliões se mantêm
atentos à apresentação de outras folias, aguardando a oportunidade de fazer suas críticas
e comentários. Palhaços podem invocar abertamente entre si uma disputa vocal e, não
raramente, foliões são acusados de praticar bruxaria quando a apresentação de um
grupo ou de um palhaço não vai bem. Penso que nesse contexto tais rivalidades
refletem um esforço em se ganhar prestígio e reconhecimento.
A bandeira, assim, circula por diversos contextos, sujeitando-se às mais variadas
apropriações, traduções e atribuições de sentido. Transitando por esferas públicas e
privadas, ela suscita admiração, comoção, devoção, encantamento, evidenciando um
entrecruzar de pontos de vista a partir dos quais ela é permanentemente ressignificada,
reenquadrada e inventada (WAGNER, 1981). O que está em foco aqui, portanto, são
múltiplos “enquadramentos” a partir dos quais as folias de reis podem ser vistas. Nessa
direção, as palavras de Valeri parecem ressonantes,
“Com efeito, o que faz passar uma ação da esfera do rito à da arte ou do jogo, e
vice-versa, não são tanto as suas propriedades intrínsecas como os efeitos
variáveis que elas possuem em contextos diversos e sobre espectadores
diversos” (1994 : 356).
Meu intento, portanto, é observar e compreender o ponto de vista nativo e, se
como sugeri anteriormente, as categorias classificatórias guardam certa ambigüidade, a
bandeira e a folia ganham sempre novos sentidos que as enriquecem. O que estou
tentando dizer é que ao transitar nesses eventos a folia não se limita aos aspectos de
entretenimento, visibilidade e espetacularização, no sentido de uma representação
cultural ou de uma “exibição etnográfica”, como alega Kirshenblatt-Gimblett (1991),
97
Observei o mestre da Folia Sagrada Família oferecer uma imagem emoldurada dos Reis Magos a um
palhaço numa festa de arremate em Friburgo – RJ.
96
não se resumindo, tampouco, aos caracteres que a definem nos contextos de
reciprocidade local. Se assim for, a folia e a bandeira são, de fato, também vistas na sua
dimensão exibicionista e espetacular, dimensões estas que passam inclusive a ser
valorizadas na perspectiva nativa.
Folias de reis transitam, desse modo, entre as condições de festas locais a
grandes eventos; de rituais precatórios a desfiles espetaculares e competitivos,
colocando em xeque a categoria “autenticidade”, tão presente em certas modalidades de
classificação cultural e em discursos sobre patrimônio e identidade. (GONÇALVES,
2007c). Tenho pensado que folias de reis e outras manifestações circulam nesses
contextos, sem que isso se torne problemático, em termos de sua legitimidade ou de sua
negação. O problema da “autenticidade” decorre de uma perspectiva, através da qual a
cultura é vista como organicamente ligada ao passado, a um lugar ou a formas culturais
supostamente “tradicionais”, originais. A categoria “autenticidade” reflete, na verdade,
uma concepção ideológica, a partir da qual eventos e objetos são classificados e
enquadrados como sendo dotados de certas qualidades essenciais, imanentes, únicas e
singulares
98
.
Para Benjamin (1985), a obra de arte “autêntica” é um original diante das cópias,
tornadas possíveis através da “reprodutibilidade técnica”. O paradoxo está em que a
modernidade que criou a oposição entre autêntico e não-autêntico, de certo modo
também a destrói, visto que, como o próprio Benjamin notou, a “aura” da obra de arte
tende a desaparecer em função da difusão das artes reproduzíveis: a fotografia e o
cinema em especial. O que é interessante observar, neste caso, é que a fotografia e o
cinema são artes não apenas reproduzíveis, mas fundamentadas mesmo na possibilidade
de reprodução. Elas só existem e só têm sentido num contexto de “reprodutibilidade
técnica”.
Aproximando estas reflexões do plano das folias de reis, gostaria de sugerir que,
de fato, nada pode classificar as práticas de foliões como sendo mais ou menos
legítimas, a não ser que se adote uma visão essencialista e objetificada. O problema da
diferença entre o original e a cópia só existe quando esse original é essencializado e de
certo modo, sacralizado. Classificar as práticas locais de foliões como originais e todas
98
Ver, a este respeito, Santos (2005). A autora investiga a dinâmica das classificações e reclassificações
sobre gêneros musicais conhecidos como música caipira e música sertaneja e o debate discursivo sobre o
que chama de “a ´autenticidade´ na e da música” (: 10), colocando em foco certas categorias, como
modernização, raízes e dom que o atravessam.
97
as outras deslocadas deste contexto como cópias, reproduções, leva inevitavelmente a
uma distinção qualitativa, sujeita à atribuição de “autenticidade”. Utilizando a fotografia
como metáfora, diria que, ao transitar por diversos contextos, a folia inaugura sempre
novos originais abertos a novas apropriações inventivas e não cópias, reproduções
inautênticas. Afinal, como sugerem Richard Handler e Jocelin Linnekin (1984),
“autenticidade” é sempre definida no presente em função de interpretações que se fazem
em torno do que se concebe como “tradição”. A categoria “tradição”, por seu turno, é
uma designação simbólica arbitrária; um significado atribuído, ao invés de uma
propriedade objetiva de alguma manifestação.
O crescente trânsito de folias de reis e outras manifestações da chamada cultura
popular por contextos de maior visibilidade, onde estão envolvidos o turismo, a
indústria cultural e políticas de cultura, tem colocado em foco sua dimensão
patrimonial. Penso que tais eventos, extralocais, que eventualmente circulam por
contextos transnacionais, podem ser vistos como resultado de processos de
“patrimonialização”, envolvendo uma extensa rede de agentes sociais. Por
patrimonialização entendo os processos e práticas simbólicas a partir dos quais objetos,
saberes, ritos e assim por diante, são apropriados ou expropriados e elevados a uma
outra condição, transformando-se em foco de reivindicações identitárias, políticas ou
culturais (GONÇALVES, 2007a, 2007b).
A perspectiva que procuro ao menos apontar aqui para futuros desenvolvimentos
é a de que, entre estes agentes e seus interesses, encontram-se igualmente os próprios
sujeitos considerados os proprietários originais destes saberes e práticas que se tornam o
alvo da chancela dos discursos patrimoniais. Deste modo, desloco o olhar sobre os
interesses do estado, mercado, produtores culturais, museus, entre outros, e o dirijo mais
aos interesses dos próprios sujeitos da chamada cultura popular em se inserir nesses
circuitos. A pergunta que me parece central no ceio destes problemas seria então a
seguinte: como foliões dão sentido a este trânsito em contextos multiculturais?
Meu esforço está em pensar os processos de patrimonialização como vias de
mão dupla e não apenas como vetores que agem externamente sobre o seu alvo. Tenho
em vista aqui uma concepção de cultura na qual ela não se impõe estranhamente e de
fora sobre os indivíduos, pois estes se sentem como fazendo parte dela, à medida
mesmo que a produz (SAPIR, 1985). Para esse autor, a cultura então é indissociável dos
indivíduos que a criam e estes são, ao mesmo tempo, seu efeito.
98
Portanto, o que parece conduzir estas ações sociais individuais e coletivas são
interesses e sua negociação numa arena de disputas. Tenho como horizonte conceitual a
noção de que os interesses são definidos no âmbito das próprias ações sociais.
Refletindo sobre os processos envolvidos na constituição de museus etnográficos na
história recente de Portugal e sua relação com processos identitários, Nélia Dias (2001:
169-170) observa que os interesses podem ser compartilhados e constituem uma base
para a ação coletiva. A autora aponta, contudo, para a natureza multifacetada e
complexa dos interesses que emergem numa arena constituída por indivíduos, grupos e
instituições, entendidos como agentes sociais. Por outro lado, os interesses não são
unicamente econômicos ou determinados por uma posição econômica, podendo assumir
aspectos simbólicos ou culturais. Apoiada nas idéias de Bourdieu (1990) sobre a noção
de interesses, Dias sinaliza sua natureza arbitrária e seu condicionamento histórico e
social particular. Como escreve:
“The acknowledge that interests do not exist outside the way they are formulated
by the social agents implies that interests are socially and culturally elaborated.
But it would be misleading to view action as the deliberate pursuit of conscious
intention since the actor is himself or herself socially conditioned” (: 165).
Com preocupações semelhantes, Fred Myers (1994) observa os interesses que
levam aborígenes australianos a uma galeria de arte em Nova Iorque para exibir o que
chamam de “sandpaintings”, pinturas que se baseiam em imagens relacionadas a
cosmologias nativas, realizadas ritualmente em suas sociedades. Myers relata que dois
aborígenes originários de Papunya realizaram uma “performance” na Galeria da
Sociedade Asiática durante uma exposição de arte aborígena australiana
99
, na qual
construíram as referidas pinturas diante da audiência. O autor assinala a natureza
eminentemente ambígua, problemática, arbitrária e artificial contida nessa forma de
tradução cultural, de representação do “outro”, mas enfatiza a necessidade de vê-la
como uma ação social, comportando visões de mundo e interesses diversos. Myers
dirige-se contra parte das análises sobre “performances” culturais, em especial à
tendência pós-moderna, que se limitaria em grande medida a apontar os aspectos
irônicos e as desigualdades, como reflexo da ação de ideologias dominantes e
etnocêntricas próprias ao Ocidente. O autor, assim, propõe que os discursos sobre
identidade aborígena são um produto intercultural (: 680), apontando para a relevância
de se levar mais em conta a agência nativa. Como escreve:
99
A exposição foi realizada em 1988 e chamava-se “Dreamings: The Art of Aboriginal Australia”.
99
“Aboriginal people do indeed produce their identities partly in relation to
discourses emanating from the West, but these discourses are not monolithic,
not invariant and the social contexts in which practices of representation
operate have varying effects and significance” (: 692).
Myers, contudo, aponta para trabalhos recentes que sinalizam a intercessão de
interesses envolvidos na produção destes eventos (: 681). Entre as motivações que
levariam aborígenes à Nova Iorque para “representar” a cultura de seu país ou de sua
sociedade, estão as sugeridas em suas palavras, “The explicit purpose of their coming
and their construction of the sandpainting was to show Aboriginal culture to people of
the world, so people would understand and respect their culture” (: 685). O autor
sugere que esse reconhecimento está diretamente ligado a um sentimento de aumento do
poder cultural indígena, produzindo reflexos no mercado de arte, estabelecendo, assim,
o valor das pinturas acrílicas aborígenes nele comercializadas. Myers observa ainda que
os aborígenes em questão negociaram e estabeleceram condições para apresentar uma
versão da prática ritual indígena durante o referido evento, exigindo, por exemplo, que
não se falasse durante a “performance”, para não influir em sua concentração durante o
trabalho.
As contribuições de Myers parecem relevantes para a presente discussão,
guardando as diferenças entre os contextos. O debate acaba por apontar para a
complexidade da celebração de tais eventos e para a necessidade de considerar-se não
somente os interesses e discursos das diversas instâncias de poder e decisão política
envolvidas em sua promoção, mas também os interesses e visões de mundo desses
grupos de foliões. Assim, motivados pelo dinheiro, pela diversão, pelo prestígio, pelo
reconhecimento por setores mais amplos, pela troca ou pela perspectiva de se
apresentarem ao público, foliões continuam, de forma cada vez mais freqüente, a fazer
parte desses eventos. De acordo com os diálogos que tive em campo, percebo
claramente que foliões eventualmente têm ambições que, numa perspectiva
“romântica”, não seriam admissíveis. Desejam, por exemplo, exibir suas práticas em
teatros e grandes centros culturais; ser objeto de reportagens e produções televisivas; ter
seus CDs e DVDs gravados em estúdios e assim por diante. Estes anseios expressam,
afinal, expectativas de que suas práticas sejam reconhecidas em âmbito mais amplo,
inclusive na sua dimensão espetacular que, penso eu, nunca deixou de lhes ser inerente,
mas que tende a se acentuar nestes novos cenários.
100
Um exemplo de que os aspectos patrimoniais e rituais podem coexistir num
mesmo evento pode ser verificado no caso que passo a relatar. Foi numa apresentação
em um teatro lotado do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, que
testemunhei um palhaço recusar-se a retirar sua máscara, mesmo diante dos insistentes
pedidos do público que o aplaudia de pé, depois de uma brilhante exibição. A
explicação dada mais tarde nos camarins baseou-se nos mitos e nas convenções a partir
das quais ele ficava inteiramente impossibilitado de atender ao pedido do público. O que
importa saber, independentemente da exegese mitológica particular aqui envolvida, é
que parte das regras e convenções, bem como sua transgressão, são reiteradas neste
contexto. O fato de se apresentar num teatro não rompe seus elos com os compromissos
de ordem ritual, social e cósmica que caracterizam esta prática em seu contexto local.
Parte dos símbolos convencionais articulados nessas práticas não são suscetíveis de
serem negociados; uma outra parte, contudo, tem seus significados expandidos, num
permanente processo criativo. Não há, portanto, um corte tão abrupto na passagem de
uma modalidade “local” para a “extra local” e, desse modo, o palhaço não retirou a
máscara diante do público, mesmo considerando o prestígio pessoal que esta ação lhe
poderia conferir.
O que este e outros exemplos evidenciam é que a categoria “patrimônio” tende a
assumir diversos contornos. Diversos estudos, porém, têm enfatizado formas e discursos
de patrimonialização que assumem uma natureza arbitrária, ideológica, fortemente
ligada à noção de identidade, como no exemplo que apresento a seguir.
Em Portugal, antropólogos têm se dedicado a estudar um fenômeno que chamam
de “folclorização da cultura”. De acordo com certos autores, tal fenômeno consiste em
processos de construção e de institucionalização de práticas performativas, tidas por
tradicionais, em regra rurais (CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:1). Os chamados
ranchos folclóricos, agremiações de músicos e dançarinos, em voga pelo menos desde
os anos 1930, seriam o alvo predileto destas políticas culturais fortemente associadas ao
governo do estadista Antonio Salazar. Na ótica dos autores, os ranchos são
representações culturais de um passado remoto e a via expressiva privilegiada é a
indumentária. Como sugerem os autores citados,
“De um modo geral parecem ser os grupos dominantes na sociedade que, de
início, selecionaram e submeteram manifestações da cultura popular a processos
de folclorização, entenda-se, a sua domesticação segundo as normas aceites
pelos grupos dominantes na sociedade. Estes consistem em submeter essas
práticas (cantos, jogos, danças) a uma metamorfose. Resultam expressões
101
culturais transformadas, cuja apropriação se faz num quadro social diferente do
de origem” ( : 21).
Kirshenblatt-Gimblett (1991) também aborda os festivais folclóricos sob uma
perspectiva semelhante, situando-os num contexto de colaboração entre a indústria do
turismo e a indústria cultural. Ao observar “performances folclóricas”, assim como
coleções museológicas, como exibições etnográficas, a autora salienta o modo como
estes são representados ao mediarem a relação do público com lugares e sociedades
distantes. Para ela, essas exibições tendem, através de intrincados processos ilusórios, a
encurtar a distância entre o visitante e a realidade que representam, constituindo
experiências “reais”, concretas, não-mediadas. Para a autora, patrimônio está
intimamente relacionado com exibição, definindo-se como uma forma de produção
cultural que engendra algo novo com recorrência ao passado (1995).
Todos esses estudos, de fundamental importância, lembram de perto a noção de
“invenção da tradição” no sentido em que aparecem para Hobsbawm e Ranger (1985),
em sua natureza eminentemente ideológica. Para os autores, tradições são inventadas
com o propósito de constituírem nações dotadas de identidade.
Meu propósito aqui, contudo, é notar as expectativas que levam foliões de reis a
se inserir nestes contextos de visibilidade e “representação cultural”. Neste sentido,
parece-me essencial perceber que nem sempre os processos de patrimonialização de
práticas culturais ditas “tradicionais” são resultado da ação exclusiva de indivíduos e
organismos da sociedade que não pertencem ao grupo social detentor desses saberes e
práticas. Em muitos casos esses processos parecem resultar de uma interação
envolvendo os próprios grupos e seus interesses através de negociações e transações.
Nesta perspectiva, mesmo as políticas patrimoniais de natureza estatal, eventualmente
voltadas para uma ostensiva preservação dessas práticas, motivadas por uma falsa noção
de que estão em vias de desaparecimento, pressupõem algum tipo de “ressonância”
(GONÇALVES, 2007d) junto aos grupos envolvidos
100
.
No Brasil contemporâneo, têm sido crescentes os casos de coletividades que
buscam constituir seus centros ou arquivos de memória, festivais e outras formas de
representação, como CDs, livros, catálogos, exposições, filmes, tomando-os como
100
Como sugerem Handler e Linnekin, em realidade, as tentativas de preservação cultural
inevitavelmente alteram, reconstroem ou inventam as tradições que se quer fixar, e este é um dos maiores
paradoxos da “ideologia da tradição” (1984 : 288).
102
instrumento de afirmação de identidades. Essas ações e produtos têm ocupado lugar
importante como mediadores entre os vários setores da sociedade ou como mecanismos
de resistência cultural e étnica. Mais que isso, esses processos e discursos sobre
patrimônio e identidade têm sido apropriados por grupos e indivíduos, de modo a
constituir uma espécie de moeda corrente através da qual busca-se uma forma
alternativa de inclusão social e de se exercer a própria cidadania. Na maior parte dos
casos são produtores culturais, pesquisadores ou ONGs que intercedem como
mediadores, mas há casos também de grupos sociais que têm-se organizado na forma de
associações sem fins lucrativos.
Nesse sentido, é também oportuno explorar minha própria experiência como
mediador entre a folia de reis e a esfera da produção cultural e mesmo da acadêmica.
Devo acrescentar que foi, sem nenhuma dúvida, minha capacidade de transitar por essas
esferas que constituiu o capital simbólico necessário para negociar minhas relações no
interior da folia. Através desta moeda, estabeleci trocas recíprocas, prestando certos
serviços e recebendo em troca conhecimentos, explicações, privilégios etc. Entre esses
serviços posso citar: gravação de áudio, produção de fotografia, formatação de projetos
para editais públicos, produção de eventos etc. Desse modo, se como apontei, a folia de
reis pode ser vista a partir de múltiplos enquadramentos, o mesmo se dá com minha
própria pessoa, ao transitar entre as condições de pesquisador, folião, professor,
produtor cultural etc. Isso diz respeito às maneiras como foliões construíram minha
imagem, o que aponta para um interessante exercício de reflexividade colocando minha
relação com o grupo social estudado no centro da construção do conhecimento
antropológico.
Algumas idéias de Roy Wagner (1981) acerca desta reflexividade e da idéia de
“invenção cultural” são bastante inspiradoras para pensar a fluidez destas relações. Na
perspectiva do autor, o foco está na possibilidade de se pensar uma equivalência entre
observador e observado e uma possível reversibilidade destas posições. Tenho em
mente essas idéias quando penso nas ocasiões nas quais mestre Élcio inquiriu-me sobre
os objetivos de minha pesquisa, meus interesses, e sobre o campo da antropologia
101
.
Nesses diálogos, Élcio freqüentemente revelava seu interesse no trabalho de pesquisa
101
Estes diálogos não se fizeram sem alguma tensão, visto que, ocasionalmente, Élcio procurou conduzi-
los de forma a obter, de minha parte, informações sobre a natureza do compromisso que havia
estabelecido com a folia. Por interesse pessoal, ele desejava saber se meu compromisso terminaria
efetivamente com o trabalho. Em outras palavras, Élcio desejava saber se eu compartilhava suas crenças e
se assim, meu compromisso era de um devoto e não apenas de um pesquisador.
103
realizado por mim e por outros pesquisadores, alimentado pela expectativa da
divulgação das práticas da folia de reis em contextos e quadros sociais diversos.
O que parece notável na circulação destas “performances” em contextos
multiculturais é que, em numerosos casos, essas práticas e seu processo de
patrimonialização têm sido objeto de maior visibilidade e de uma possível inserção
social de indivíduos e grupos
102
. Este quadro tem levado a sociedade a discutir a
constituição de políticas públicas para o fomento das culturas populares, calcadas na
categoria do “patrimônio imaterial” e de sua salvaguarda.
Portanto, o que parece evidente em relação a eventos desta natureza, como os
festivais folclóricos aqui sumariamente descritos, é que neles convivem visões
relativamente diversas sobre concepções acerca do que seja “tradição” e “patrimônio”.
Por um lado, a noção de “patrimônio” tende a ser vista de forma individualizada e
autonomizada e, ao mesmo tempo, ligada a coisas separadas do corpo, como objetos
organicamente ancorados num passado histórico a ser preservado, classificado e
exibido. No âmbito da cultura popular, a noção de “patrimônio”, ao contrário, não se
desvincula de todo da materialidade, da experiência concreta do presente e do corpo
(GONÇALVES, 2003b). Como sublinha o autor, o que parece caracterizar esta
categoria é justamente sua ambigüidade.
Essas concepções estão em permanente tensão, mas é preciso também considerar
que as culturas populares têm, de modo crescente, incorporado parcialmente os
discursos e concepções patrimoniais oficiais, assumindo suas práticas como “patrimônio
cultural”, “patrimônio imaterial” etc. Devo acrescentar que coletividades urbanas
periféricas situadas entre as camadas mais desfavorecidas da sociedade têm percebido
que a mudança de status pelas quais suas práticas culturais passam, através de processos
de patrimonialização, constitui um importante instrumento para a construção de
subjetividades, bem como de discursos sobre sua identidade com vistas a uma inserção
social efetiva. Conforme assinalei também, não apenas essas razões em seu sentido
social mais imediato movem foliões a se envolverem nestas práticas, mas razões de
natureza mágico-religiosa, cosmológica, moral etc., quando a noção de patrimônio
parece se aproximar do conceito maussiano de “fato social total”, conforme aponta
Gonçalves (2003b).
102
O caso de indivíduos que têm seu trabalho classificado como arte popular e que acabam por se inserir
num circuito de produção, exibição, comercialização etc, parece bastante exemplar. Ver, a este respeito,
Santos, (2005).
104
4. BANDEIRA E O “FUNDAMENTO”
4.1 Representando o irrepresentável
Como se verifica através das descrições etnográficas apresentadas no capítulo
anterior, a bandeira é um objeto de grande valor simbólico e ritual para foliões e
devotos. Constitui um ponto focal, um “símbolo dominante” (TURNER, 2005),
estabelecendo hierarquias e um campo de interações em torno de si. Bandeiras, ao lado
de coroas, altares móveis, registros, esculturas, relíquias e outros objetos, ocupam lugar
central em diversas manifestações religiosas, constituindo meios privilegiados para a
intermediação com a ordem supramundana. Em muitos contextos, a importância desses
artefatos para a vida social pode ser resumida na crença de que sejam capazes de
fornecer bênçãos, graças e outras dádivas, como curar enfermos, cessar calamidades
naturais ou propiciar ganhos materiais. O ponto a ressaltar é que, de modo geral,
devotos esperam que todos esses benefícios venham diretamente do objeto material,
através de sua presença, proximidade, visibilidade e contato. Simultaneamente objetivos
e subjetivos, materiais e imateriais, esses objetos se caracterizam, afinal, por serem
profundamente ambivalentes e polissêmicos, realizando mediações nos domínios social
e cósmico. Confundindo-se com as próprias divindades que “representam”, esses
objetos são suportes ou extensões de deuses e espíritos, tornando-se um meio através do
qual eles se manifestam, se aproximam dos homens, para interagir e trocar com eles
(MAUSS, 2003).
O costume de se usar bandeiras ou estandartes em cortejos e procissões rituais
no Brasil é uma herança portuguesa das corporações de ofícios medievais, irmandades
religiosas e companhias militares. De modo geral, as irmandades religiosas e os santos
padroeiros têm suas bandeiras representativas (CASCUDO, 1999). O autor nota que a
palavra bandeira vem de “bando, bandaria, grupo sob o mesmo símbolo(: 133)
103
.
Como sugere Brito (1995), a bandeira processional de Nossa Senhora da
Misericórdia teve, por muito tempo, papel importante na vida religiosa portuguesa. De
acordo com a autora, a bandeira, chamada também de “pendão”, tinha entre seus
compromissos o de acompanhar pessoas condenadas à morte “desde a Igreja da
103
Firth observa que bandeiras estão presentes em muitas culturas, como entre os Tikopia do Pacífico,
desempenhando funções rituais e de sinalização (1999).
105
Misericórdia, passando pela saída da cadeia até a forca” (88). Semelhante função
cumpriam pequenas imagens pintadas (tavolleta) na Itália, nos séculos XIV e XV,
usadas como consolos para pessoas condenadas à morte, como relata Freedberg (1989:
5). As imagens eram oferecidas ao condenado na noite anterior a sua execução.
Membros de fraternidades levavam a imagem da Paixão de Cristo à frente do
condenado durante todo o percurso, até sua execução
104
.
No Brasil, como também em Portugal, bandeiras dos santos podem ser
encontradas em diversos contextos, transitando tanto na esfera doméstica quanto na
pública. Conforme observei na Festa de São Pedro, em Montijo, Portugal, por exemplo,
as cerca de 80 bandeiras dedicadas a vários santos pertencentes à cooperativa local de
pescadores saem na procissão pela cidade no dia 29 de junho e no dia seguinte são
leiloadas num evento que chamam de arrematação das bandeiras, mesmo sob
discordância da igreja local. Aquele que oferece a maior quantia tem o direito de
permanecer com a bandeira em sua casa durante todo o ano, obrigando-se a devolvê-la
após este período, para que ela possa ser novamente leiloada. O dinheiro arrecadado,
somando uma quantia considerável, destina-se a custear a festa.
A intensa profusão de imagens, esculturas, bandeiras, altares, relicários, coroas e
registros no mundo católico e no domínio das manifestações religiosas populares leva à
constatação de que o lugar destes objetos na vida de numerosas sociedades não é um
fato trivial. Uma extensa literatura histórica, folclórica e etnográfica tem sinalizado o
modo particular como as chamadas “culturas populares” lidam com esses objetos. Tais
objetos que, freqüentemente assumem forma figurativa, recebem cuidados especiais, são
bentas, consagradas, recebem nomes, apelidos, véus, títulos, vestes suntuosas, jóias e
mesmo quantias incalculáveis de dinheiro. Algumas delas são postas em magníficos e
monumentais andores, carregados por dezenas de homens e exibidas publicamente em
certos períodos do ano. Milhares de pessoas, todos os anos, vão ao seu encontro, seja de
modo individualizado, no interior de uma igreja, ou de modo coletivo, durante uma
procissão, fazer pedidos ou ofertar algo em agradecimento por graças alcançadas.
Oferecem, sobretudo, ex-votos, preces, bens materiais, certos trabalhos ou mesmo o
próprio corpo
105
, ofertas estas que são, na verdade, gestos e expressões de sacrifícios
104
O autor revela ainda que quando ocasionalmente a corda se rompia em decorrência de seu mal estado
de conservação, salvando da morte o condenado, logo a tavolleta lhe tocava o corpo em sinal de
misericórdia.
105
Submete-se o corpo a todo tipo de provação. Caminha-se de joelhos, esfolando-os, às vezes até sangrá-
los. Freqüentemente estas atitudes são publicamente dramatizadas. Como propõe Raposo em seus estudos
106
pessoais. Por outro lado, ao interagirem com estas imagens, as pessoas muitas vezes se
transformam, psicologicamente e mesmo fisiologicamente. Este contato envolve
agências mútuas, produção de emoções, curas etc. Diria que o efeito que estes objetos
exercem na vida das pessoas se dá também na formação de autoconsciências individuais
e coletivas (GONÇALVES, 2007a).
Minha intenção em trazer todos esses exemplos está em evidenciar um modo
particular de se perceber esses objetos e uma concepção sobre a idéia de
“representação” que, em certos contextos, se faz presente. Relativizando os significados
que tais objetos podem adquirir para os diversos segmentos das sociedades,
compreende-se que são os processos de atribuição de sentido que estabelecem seu lugar,
valor e importância num sistema de idéias e de relações sociais. Desse modo, todos
esses objetos, guardadas suas particularidades, só ganham sentido dentro destes sistemas
de significados e códigos compartilhados. Mas isso não é tudo. Se, por um lado, os
objetos ganham existência significativa a partir de um conjunto de categorias e idéias e
de sistemas classificatórios, enfim em seus contextos culturais, sociais e cosmológicos,
por outro, estes constituem as pessoas que se encontram em seu entorno, agindo e
produzindo efeitos sobre elas.
Retornando, portanto, aos contextos nos quais esses objetos não assumem uma
função propriamente utilitária, eu perguntaria: qual é o seu lugar, afinal? Interessado em
investigar o poder das imagens, Freedberg (1989) nota que muitas culturas
compartilham a crença de que quanto mais espiritualmente desenvolvida a religião,
menor a necessidade de objetos materiais para servir de canal de comunicação com a
divindade, e que as pessoas são, assim, capazes de construir uma relação adequada com
os deuses sem a mediação de um objeto (: 63). No entanto, este é o problema, pois, de
fato, um grande número de pessoas não pode ascender ao plano das divindades sem a
mediação de certos objetos, mesmo apologistas cristãos, como comprovam as pinturas
sobreviventes em catacumbas
106
. O autor sugere ainda que apesar de todas as
sobre as romarias portuguesas em contextos rurais, “A dramaturgia e a teatralização daquelas relações
[com o sagrado] é, aliás, uma das características fundamentais e quase sempre indispensáveis no quadro
de cumprimento de promessas. A relação muito estreita entre gravidade do infortúnio, excepcionalidade
da graça e dolorosidade do pagamento, assenta mais uma vez, não apenas na apetência de espetáculo de
uma multidão ávidas de emoções catárticas, mas também na necessidade de se sublinhar publicamente,
aos olhos dos seus parceiros sociais, o rigor da palavra, a determinação da combatividade e, obviamente,
a exorcização do mal” (1991: 83-84).
106
Em certos contextos, esta mediação não é realizada por um objeto, mas pela própria pessoa. Esse é o
caso, por exemplo, das religiões mediúnicas nas quais se supõe que as divindades se manifestam através
dos indivíduos, de seus corpos.
107
condenações apregoadas no Velho Testamento quanto à idolatria de imagens, culturas
judaicas apresentam alguma tendência para o iconismo, o que pode ser constatado nas
imagens presentes em inúmeras sinagogas antigas espalhadas pela Europa
107
.
Tal crença, que Freedberg prefere chamar de “mito do anaconismo”, tem suas
raízes na história da valorização do intelecto sobre os sentidos, alcançando seu apogeu
no neo-platonismo. Como sugere o autor, “Adoradores, em conseqüência, veneram o
objeto e o que o confunde com aquilo que representa. O resultado é uma condensação
do divino no objeto material – tudo o que se deseja evitar” (: 65)
108
. Daí decorrem
provavelmente os intermináveis conflitos entre a igreja e a comunidade de devotos.
Seguindo a sugestão de Gonçalves (2003b), estas diferenças de ponto de vista
residem muitas vezes no modo como se representa a oposição entre as categorias
“matéria” e “espírito”. Partindo de suas pesquisas sobre as Festas do Divino Espírito
Santo entre imigrantes açorianos celebradas dentro e fora do Brasil, o autor ressalta que
as categorias citadas são diversamente concebidas pelos intelectuais e lideranças
açorianas, pelos padres da Igreja Católica e pelos devotos. Em suas palavras:
“Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas, os objetos
(todo este conjunto de bens materiais que integram a festa são propriedade da
irmandade) são, de certo modo, manifestação do próprio Espírito Santo. Do
ponto de vista dos padres, são apenas ‘símbolos’ (no sentido de que são matéria
e não se confundem com espírito). Na visão dos intelectuais, são apenas
representações materiais de uma ‘identidade’ e de uma ‘memória’ étnicas”(: 26).
Mais adiante o autor assinala, citando Mauss, que a concepção de uma matéria
depurada de qualquer espírito e vice-versa é, na verdade, uma construção moderna
(: 26). Ao mencionar os objetos preciosos que circulam entre os Kwakiutl, Mauss
escreve:
“O conjunto dessas coisas constitui o legado mágico; este é geralmente idêntico
tanto ao doador quanto ao recipiendário, e também ao espírito que dotou o clã
desses talismãs, ou ao herói fundador do clã a quem o espírito os deu. Em todo
caso, o conjunto dessas coisas, é sempre em todas as tribos, de origem espiritual
e de natureza espiritual” (2003: 255).
O que se esconde, portanto, nas entrelinhas deste debate são noções diversas da
categoria “representação”. Desse modo, dizer que uma bandeira de reis é uma
representação dos Magos do Oriente é verdadeiro, mas tal afirmativa exige colocar-se
107
Conforme mostrou Gershom Scholem, um dos maiores exegetas da Cabala, mesmo o judaísmo não
consegue escapar da discussão da “forma mística da divindade” (SCHOLEM, 1991).
108
Tradução de minha autoria.
108
sob crítica a própria categoria “representação”. Afinal, que tipo de representação está
envolvida quando um devoto beija a bandeira, faz preces à sua frente, passa suas fitas
em partes de seu corpo ou ainda quando o palhaço sofre interdições em relação a ela?
Certamente um tipo de concepção bem próxima a que leva devotos em romarias
portuguesas, conforme testemunhei, a lidarem com imagens de santos. Como descreve
Pierre Sanchis (1983), “a atitude para com as estátuas é, evidentemente, a que se teria
para com uma pessoa viva: fala-se-lhes, toca-se-lhes, fixam-se com uma insistência de
quem espera resposta, levam-se junto dela objetos familiares ou crianças” (: 42).
Ao abordar os problemas suscitados pela categoria “representação”, Aumont
(1995) nota que “De fato, a noção de ´representação´ e a própria palavra estão
carregadas de tantos estratos de significação acumulados pela história, que é difícil
atribuir-lhes um único sentido, universal e eterno” (: 103). Um bom ponto de partida
talvez sejam as reflexões postas por Costa Lima (1981) em torno de uma crítica à noção
tradicional de “representação” e sua ligação à mimesis. O autor procura desnaturalizar a
noção corrente de que o produto mimético é uma ilustração ou uma figuração do mundo
exterior ideal e anterior que pretende revelar a "verdade", como herança de uma
concepção metafísica do mundo. O esforço de Costa Lima está em recuperar a potência
da noção de “representação”, e uma das vias pela qual procura realizá-la é através da
idéia de que se trata de um produto de classificações. O autor argumenta que, no sentido
em que encontramos em Durkheim e Mauss (1999), os termos se invertem, ou seja, não
há um real anterior ao ato de representar. “As representações são, por conseguinte, os
meios pelos quais alocamos significados ao mundo das coisas e dos seres. Por ela, o
mundo se faz significativo” (1981: 219). Costa Lima vai além, apontando para o fato de
que a função classificatória e o modo como se atualiza são determinados pelas
interações humanas, sobretudo no nível comunicacional. Desse modo, as classificações
e seu precipitado, as “representações”, nascem da necessidade de tomar inteligível e
visível as partes de uma interlocução. Para além do compartilhamento do código
lingüístico, um diálogo prescinde de certo "cerimonial social" (1981: 220), um
enquadramento convencional, não verbal, que garanta que o que é enunciado seja
compreendido de acordo com sua intenção. Está implícita aí a noção de “frame” como
moldura determinadora da situação decodificante da palavra, (BATESON, 1972;
GOFFMAN, 1986), operando-se uma representação da representação.
Numa outra direção, Gombrich (1986) se utiliza de um objeto cotidiano, um
mero cavalinho de pau, para suas reflexões sobre a categoria “representação”. O autor
109
argumenta que um cavalinho de pau não é uma imagem no sentido tradicional da
palavra, ou seja, a imitação da forma exterior de um objeto. Essa é também a concepção
tradicional de representação, presa a uma realidade imaginária ou real. Mas “para além
daquilo que o olho vê”, diz o autor, um cavalo de pau pode ser tomado como uma
representação no sentido de um substituto para um cavalo real. Substituto eficiente que
atende a necessidades biológicas ou psicológicas através de processos de simbolização.
Tais representações, enquanto substitutos, não guardam necessariamente alguma relação
formal com seu referente. De modo revelador, Ginzburg também salienta o papel que
estatuetas funerárias desempenharam enquanto substitutos desde os kolossos gregos até
as efígies de cera dos soberanos franceses e ingleses (2001: 92). Notadamente, é
Vernant quem introduz a categoria psicológica do “duplo”, exemplificado através do
mesmo kolossos. Como afirma o autor, “o kolossos não é uma imagem: é um duplo,
como o próprio morto é um duplo do vivo” (1988: 265). E como sugere ainda:
“o duplo é uma realidade exterior pelo seu caráter insólito aos objetos familiares,
ao cenário comum da vida. Move-se em dois planos ao mesmo tempo
contrastados: no momento em que se mostra presente, revela-se como não
pertencendo a este mundo, mas a um mundo inacessível” (1988: 268).
Gombrich procura, assim, desnaturalizar a idéia de que a confecção de um
objeto implica forma de comunicação ou figuração do real, argumentando que o criador
do cavalo poderia não desejar mostrá-lo a ninguém. Como bem sugere, “a substituição
pode preceder o retrato; e a criação, a comunicação” (1986: 5). O autor finalmente
exemplifica suas idéias afirmando que um “ídolo toma o lugar do Deus. É totalmente
irrelevante a questão de saber se ele representa a ´forma exterior´ da divindade
particular ou, no caso, de uma classe de demônios” (: 3). Com proposição semelhante,
Alfred Gell (1998) sugere que um ídolo não é uma figuração da divindade, mas o seu
corpo na forma artefatual
109
. Diz o autor que “The idol are worshipped because it is
neither a person, nor a miraculous machine, but a god” (: 125).
As reflexões postas por esses autores, aqui sumarizadas, parecem oportunas para
pensar o lugar das bandeiras de Reis em seus contextos sociais, colocando em foco os
109
Penso que os objetos investidos do poder de realizar mediações cosmológicas tendem, ao menos nos
contextos do “catolicismo popular”, a assumir uma forma humanizada. Isso se dá porque, desse modo,
aproximam os deuses dos homens. Sabe-se, porém, que em outros contextos rituais, objetos como pedras
meteóricas não-icônicas (baitulia) eram objetos de devoção na Grécia Antiga. Tenho aqui em mente
como colocaram alguns autores que o limite entre icônico e não-icônico, figurativo e não-figurativo, é
muito difuso e dependente das interpretações. Ver, a este respeito, Gombrich (1986), Gell (1998) e
Freedberg (1988).
110
processos perceptivos a partir dos quais são investidas de poderes não atribuíveis a sua
mera materialidade. Creio, desse modo, que a bandeira, assim como outros objetos que
assumem características similares, tende a ser percebida como sendo capaz de mediar,
de forma orgânica, o plano dos homens no tempo presente com o plano supramundano
num tempo-espaço de outra qualidade. Nesta perspectiva a bandeira vem representar o
irrepresentável, tornar conhecido o desconhecido, acessível o inacessível ou ainda tornar
“visível” o “invisível” (POMIAN, 1997). Como escreve David Freedberg, ainda a este
respeito:
“Even if we say that it is only because the intensity of our hope, desire, fear, and
gratitude forces us to believe in ultimate efficacy, that they will ultimately work,
we still seem to need representation to emphasize, supplement or condense every
such projection. (…) It is from representation that all the objects we have been
dealing with gain their full illocutionary force, and come to occupy so profound
a place in the systems of intentionality without which all communication and
much emotion would fail” (1989: 134).
4.2 A ‘bandeira’ como mediador cósmico
Janeiro de 2005, a Folia Sagrada Família, sob o comando do mestre Élcio,
passou a madrugada na Candelária percorrendo casas de devotos. Pela manhã, seguiu
para o Morro Chapéu Mangueira, localizado no Leme, zona sul da cidade, para cumprir
visitas agendadas. Élcio me revelou que recentemente havia tido um conflito armado no
morro e que, por este motivo, tiveram que esperar a situação acalmar para poderem
fazer a visita que agora realizavam. Contou-me também que as relações com moradores
do morro são antigas e recíprocas.
Quando chegamos a certa altura da ladeira que leva ao morro, uma conhecida de
Élcio já nos esperava para nos conduzir às casas a serem visitadas. Entre elas estava a
de Seu Orlando, um senhor que se encontrava enfermo sobre a cama. Seus familiares
pediram que os foliões entrassem e fizessem uma cantoria dedicada a ele. Mestre Élcio
comandou uma marcha até a porta da casa, como de costume, conduzindo, em seguida,
um grupo seleto de foliões, entre os quais eu me encontrava, ao interior da casa. Pediu
ainda para que os outros permanecessem do lado de fora em silêncio, situação que eu
nunca havia presenciado. Já no quarto de Orlando, Élcio cumprimentou-o e ofereceu-lhe
uma fita azul da bandeira. Ele, por sua vez, a segurou firmemente por todo o tempo do
ritual. Em seguida, o mestre deu o sinal para o início da cantoria e, ao seu término,
111
pediu que os foliões se ajoelhassem para rezarem um Pai-Nosso. Na seqüência das
ações, Élcio proferiu algumas palavras aos Magos, pedindo-lhes auxílio para a cura de
Seu Orlando, expressando finalmente o desejo de revê-lo no ano seguinte, mais bem
disposto, na esperança de que pudesse retribuir com outra fita, colocando-a na bandeira.
No ano seguinte, a Folia retornou ao Morro Chapéu Mangueira, como de costume, mas
não realizou visita à casa de Orlando, que havia falecido, para tristeza de todos.
O caso de Seu Orlando coloca em evidência a forma como a folia de reis
estabelece a comunicação com o plano supramundano, para que se possa solicitar a
intervenção divina, com a possibilidade de concessão de graças. Orlando e os foliões
sabem que esta é apenas uma possibilidade, não-garantida em princípio, dependendo
dos próprios desejos dos santos. Permanece, contudo, uma crença de fundo, na qual os
benefícios sempre chegam ao lugar e à pessoa no tempo certo. Devo ainda acrescentar
que a morte de Orlando não é simplesmente seu fim, mas a passagem de seu espírito ao
lado “invisível” do mundo, no qual permanecerá, de certo modo, em contato com o lado
visível.
Na casa de Orlando, naquele dia, o canal de comunicação entre ele e o plano
supramundano foi aberto através de preces, orações, silêncio, velas acesas e música.
Neste ritual, a bandeira ocupa lugar central, especialmente no momento em que o
mestre oferece a fita a Orlando. A proximidade e o toque estreitam o contato, a
comunicação entre os planos cosmológicos mencionados. A oferta da fita e de todo o
serviço religioso que o acompanha gera uma dupla expectativa em termos de respostas:
dos santos e de Orlando. Na percepção de devotos, a fita doada é tida como dotada de
certos poderes da bandeira e, portanto, do além. Trata-se de uma extensão da bandeira
capaz de mediar a relação entre Orlando e as divindades.
Por fim, as expectativas não foram, em princípio, atendidas, o que não invalida o
sistema de idéias que embasa essas práticas, visto que as evidências de sua eficácia são,
para foliões e devotos, muito mais numerosas do que o contrário. Compreende-se que os
pedidos podem ou não ser atendidos e que, freqüentemente, os resultados podem chegar
ao suplicante depois de um longo tempo de espera. Possivelmente, seus filhos e parentes
mais próximos é que serão beneficiados, mesmo já não os esperando. Por outro lado,
espera-se que a alma do defunto permaneça em paz, porque se assim for, também a
tranqüilidade estará garantida para os vivos. Verifica-se que a mesma lógica se opera
quando se quer evitar os efeitos negativos da manifestação das divindades, sob a forma
de vinganças ou punições. Noto que todo o esforço do mestre e dos foliões mais
112
graduados direcionados a manter uma ordem interna do grupo de foliões se dá através
do controle das condutas morais, tendo em vista um sistema de punições de natureza
superior, externa. Como diz Élcio, os Magos têm o poder de curar, como também de
derrubar.
Considerando-se que do ponto de vista nativo a bandeira pode ser vista como
sendo simultaneamente material e imaterial, pertencente tanto ao plano mundano quanto
ao supramundano, assim como o são os kolossos gregos, por exemplo, é que decorre seu
poder de mediação. Parece ser exatamente sua forte ambivalência que o torna capaz de
realizar esta ponte. De fato, o que parece caracterizar a bandeira, entre outros aspectos,
é esta capacidade hipermediadora. Como observou Luzimar Pereira (2004), a bandeira
não somente realiza a mediação entre os diversos domínios do mundo social, como
também entre os homens e os deuses e antepassados. Como sugere o autor, “a bandeira
aproxima esferas antes consideradas separadas ou distantes, articulando domínios do
céu e da terra, do passado e do presente, do presente e do futuro, etc.” (: 56).
O mesmo tipo de mediação é revelado por Carla Pereira (2005) com relação ao
mastro que traz a bandeira
110
, erguido por ocasião das festas do Divino Espírito Santo.
A autora relata que o mastro, um longo tronco de árvore ornamentado com folhas,
alimentos e bebidas, atravessa um extenso processo ritual, passando por seu abate,
batismo, levantamento e derrubamento. Durante este período, a relação dos devotos
com sua divindade se intensifica. Nele, relações sociais horizontais são tornadas
verticais, até o derrubamento do mastro, quando se retorna ao cotidiano, resultando no
afrouxamento dessas relações.
Poderia sugerir que a bandeira é correlata ao mastro, visto que ela contém uma
haste central que percorre todo o seu suporte. A haste vertical serve de apoio para a
bandeira e vem simbolizar e efetuar esta comunicação entre o alto e o baixo,
instaurando relações verticais.
Essa capacidade hipermediadora é possível pela natureza profundamente
ambivalente que apresentam estes objetos. Nesse sentido, sigo a sugestão de Gonçalves
(2007d), que, ao refletir sobre a categoria “patrimônio”, sinaliza que certos objetos,
sobretudo os que se encontram inseridos em totalidades cósmicas,
“podem ser percebidos simultaneamente em sua universalidade e em sua
especificidade; reconhecidos ao mesmo tempo como necessários e contingentes;
adquiridos (ou construídas e reproduzidas no tempo presente) e ao mesmo tempo
110
Pequena bandeira com uma pomba branca chamada de mastaréu.
113
herdados (recebidos dos antepassados, de divindades, etc.); simultaneamente
materiais e imateriais; objetivos e subjetivos; reunindo corpo e alma; ligados ao
passado, ao presente e ao futuro; próximos, ao mesmo tempo em que
distantes...” (: 227).
Além de mediar a relação entre homens e santos, a bandeira também realiza a
mediação entre vivos e mortos. Ao longo do trabalho de campo, observei que a folia de
reis e a bandeira estiveram presentes em inúmeras situações envolvendo o falecimento
de parentes ou amigos ligados ao círculo social de foliões. É bem entendido que a
morte, como bem mostrou Hertz (1990), para numerosas culturas, não é um evento
instantâneo e sem conseqüências diretas para os vivos. Os vínculos entre vivos e mortos
permanecem durante certo período, a que comumente se denomina de “luto”, no qual
certos ritos devem ser cumpridos para garantir a passagem da alma do defunto para o
além, protegendo os vivos de novos infortúnios.
A função mediadora da bandeira entre vivos e mortos aparece com alguma
evidência no caso que passo a relatar. A folia cumpria sua missão, visitando devotos e
trazendo-lhes bênçãos, quando um folião chamado Ailton solicitou ao mestre que a
bandeira fosse entronizada em sua casa. Justificou seu pedido pelo fato de sua mãe ter
falecido há poucas semanas. Apenas Ailton, Élcio e Isabel entraram na casa que estava
vazia, permanecendo os demais foliões do lado de fora. Como de costume, a bandeira
entrou na frente. Em completo silêncio, Isabel iniciou o benzimento da casa, realizando
um movimento de aproximação da bandeira aos cantos do cômodo, desenhando linhas
diagonais invisíveis formando um sinal da cruz
111
.
Figura 25. Diagrama de um cômodo da casa e dos movimentos realizados
pela bandeireira com a bandeira.
111
Vemos aqui a manifestação ritualizada das palavras do mestre ditas na saída da folia, como descrevi no
capítulo 3. Dizia ele em sua prece: Na porta da sala Jesus em pé. Na porta da cozinha Jesus ajoelhado.
Nos quatro cantos da casa Jesus crucificado. Senhor, meu inimigo já vem. E dele eu não posso fugir.
Sangue de Cristo é o leite da virgem Maria. Eu e minha casa seremos guardados. Contra a maldade dos
meus inimigos...
114
Esse procedimento foi repetido para cada cômodo da casa. Na passagem entre os
cômodos, Isabel caminhava de costas, de modo que a bandeira fosse a última a sair.
Embora a casa não fosse tão grande, o ritual demandou algum tempo e, o que é mais
notável, quase em total silêncio, só interrompido por breves comentários
112
. Ao fim da
seção de benzimentos, Ailton ajoelhou-se diante da bandeira, beijou as fitas e as passou
demoradamente sobre sua cabeça, realizando o sinal da cruz com a mão direita. Em
seguida ofereceu como presente uma imagem emoldurada de Nossa Senhora, como um
gesto de gratidão pelo ritual de benção.
Um dos aspectos que merece atenção no caso relatado é o fato de a casa, o
espaço, tornar-se alvo central de ações rituais. Lembro que ao ser entronizada numa
casa, a bandeira tem o poder de transformá-la, sacralizando-a. Cada casa visitada
transforma-se, para foliões e devotos, no centro do mundo, no espaço imaginário dos
Magos. O que parece evidenciar-se é que há uma conexão direta entre o espaço, o
ambiente e o espírito do morto. Como sugeri anteriormente, através das idéias de Hertz,
os espíritos não se descolam do mundo dos vivos com tanta facilidade. De certo modo,
a casa também realiza esta mediação. Evidentemente, quando falo de casa não estou me
referindo à morada em sua função meramente utilitária. Como bem mostrou DaMatta, a
casa é um lugar moral. Como escreve:
“a idéia de residência é um fato social totalizante, conforme diria Marcel Mauss.
Ou seja: quando falamos da ´casa´, não estamos nos referindo simplesmente a
um local onde dormimos, comemos ou que usamos para estar abrigados do
vento, do frio ou da chuva. Mas – isto sim – estamos nos referindo a um espaço
profundamente totalizado numa forte moral. Uma dimensão da vida social
permeada de valores e realidades múltiplas. Coisas que vêm do passado e
objetos que estão no presente, pessoas que estão saindo deste mundo e pesssoas
que a ele estão chegando, gente que está relacionada ao lar desde muito tempo e
gente que se conhece de agora” (1994: 25).
A casa, portanto, é o alvo do ritual e, por extensão, o espírito do morto. Neste
ritual, a bandeira foi utilizada com pelo menos dois propósitos: purificar o ambiente e
ajudar a conduzir o espírito do morto para o seu destino: o além, o “invisível”. Devo
assinalar que, neste sistema de idéias, as coisas são tidas como contagiosas e, nesta
perspectiva, tanto os resquícios mortais poluem quanto a bandeira purifica ou
neutraliza, de certo modo, as impurezas (DOUGLAS, 1976).
112
Os estudos antropológicos sobre rituais e sua eficácia têm enfatizado a preeminência das palavras e de
sua força ilocucionária (AUSTIN, 1962) em detrimento do próprio silêncio e de outros códigos sensíveis.
É também notável que diante da ausência de palavras, fórmulas ou encantamentos, a bandeira e o
movimento a ela associado assumam função predominante no ritual.
115
Creio também ser possível verificar o uso da bandeira e sua relação com os
antepassados de um outro modo. A bandeira não apenas separa vivos e mortos, ela
também os aproxima. Suzel Reily (2002), em sua tese sobre folias de reis, relata que
observou uma folia cantar para a alma de um morto, a pedido dos parentes, e que a
bandeira foi posicionada numa cadeira vazia, cadeira esta que era ocupada pela pessoa
quando viva. Assim o fazendo, a bandeira materializa o espírito do antepassado,
trazendo-o momentaneamente de volta à presença de seus familiares.
Um outro exemplo, desta vez envolvendo um palhaço, talvez seja conveniente
para evidenciar a mediação que a bandeira realiza entre vivos e antepassados. Beija-flor
era considerado um dos maiores palhaços do Estado do Rio de Janeiro pela habilidade
que tinha de improvisar versos, atestada por numeroso público. Sua presença em
encontros folclóricos e festas de arremate realizadas no estado era obrigatória. Como
menciona o palhaço Gigante a respeito de seu amigo: Era um palhaço considerado. Os
que não temiam, respeitavam. Quando chegava a folia do homem, tinha uns que iam
colocando o rabo entre as pernas, pegando seus palhacinhos, indo embora pra não ver
eles massacrados.
O palhaço Beija-flor pôs fim a sua vida em janeiro de 2006, em pleno período
das jornadas dos reis, causando a todos que o conheceram uma grande perplexidade.
Diz-se que cerca de seis meses antes deste episódio, Beija-flor começou a dizer uma
seqüência de versos abordando o tema da morte. Hoje, seus amigos relatam que seus
versos traziam uma mensagem que não foi decifrada à época, onde se anunciava um
impasse existencial e seu destino próximo.
O sepultamento de Beija-flor, realizado em sua cidade natal, foi um evento de
grande expressão, reunindo numerosas pessoas. De acordo com um informante, Foi um
sepultamento que comoveu a cidade toda e foi um sepultamento que há muito tempo
não reunia tanta gente de fora. O que veio de amigo dele de fora foi uma coisa assim...
porque era um cara popular.
Cheguei ao cemitério cerca de quatro horas após o sepultamento, pois o enterro
foi antecipado sem que eu pudesse ser informado. Já não havia ninguém, mas, assim
mesmo, procurei conhecidos de Beija-flor que moram na cidade para saber maiores
detalhes do episódio e soube que sua folia de reis esteve presente com sua bandeira e
que cantou durante todo o cerimonial. Como me relatou Gigante posteriormente, Beija-
flor foi sepultado com as honrarias da folia. Sobre sua sepultura encontrei coroas de
116
flores, sendo que uma delas foi oferecida pela Câmara de Vereadores, da qual Beija-flor
fez parte por longos anos.
O caso de Beija-flor não é o único no qual se registrou a presença de uma folia
de reis em um funeral. Não há unanimidade quanto à legitimidade deste procedimento.
Élcio, por exemplo, diz que a folia não deve comparecer nestes locais, mas sua opinião,
em verdade, expressa restrições a que é submetido, em função de comprometimentos
pessoais com religiões mediúnicas, particularmente com o Espiritismo e a Umbanda.
Élcio relatou-me que seu Orixá, Xangô, não tem compatibilidade com este tipo de
ambiente e que, quando precisa ir a um enterro, necessita realizar preparações rituais,
em razão da negatividade do lugar. Creio que as palavras de Élcio evidenciem o fato de
que ele vê a morte na perspectiva de seu “perigo” potencial. De um modo ou de outro, a
participação da folia e da bandeira nos rituais funerários, ou sua recusa, aponta com
alguma clareza para uma concepção de mundo na qual os domínios dos vivos e dos
mortos são, em grande medida, co-extensivos.
O que o episódio de Beija-flor parece revelar é a centralidade do nexo entre
vivos e mortos na vida social. Devo acrescentar que Beija-flor deixou filhos, iniciados
por ele na prática do versejar, incluindo um menino de apenas sete anos que costumava
se exibir ao seu lado. A morte de Beija-flor, sua passagem para o lado “invisível” do
mundo, rompe duplamente os laços de pai e de mestre para os filhos.
Outro aspecto que se revela no caso de Beija-flor é o modo como sua vinculação
com a folia de reis, através de seu papel de palhaço, ganha acentuado relevo durante seu
sepultamento. Isso aponta inequivocamente para a importância atribuída à folia e à
bandeira na consecução dos ritos funerários. Mas isso não é tudo; devemos lembrar que
nesta concepção cosmológica, o mundo dos vivos e dos mortos estabelece
continuidades. Se assim for, aquele que passa para o além, para o lado “invisível” do
mundo, passa enquanto pessoa, nas suas atribuições particulares. Talvez por isso seja
costume tão antigo entre numerosas culturas enterrar os mortos juntamente com seus
pertences. Não é de admirar que muitos relatos confirmem que foliões costumam ser
enterrados com suas fardas.
Como mencionei anteriormente, o papel de folião, assim como o de palhaço,
parece englobar os demais papéis vividos pelos sujeitos. Constituem-se como que eixos
em torno dos quais se organizam as vidas e se constroem concepções de self. Na hora da
morte isso se torna muito visível com a presença da folia de reis. Não são apenas os
companheiros de folia que estão ali enquanto pessoas que estabeleceram relações
117
significativas com Beija-flor, mas os foliões em suas funções rituais. Encontram-se ali
também por obrigação cerimonial, para conduzir de forma apropriada a passagem do
espírito do morto para o além. Conforme apontei anteriormente, esta natureza
obrigatória dos ritos funerários surge também como resposta ao temor das
conseqüências de eventuais faltas rituais para com o defunto. Tal obrigatoriedade é
notada por Hertz, quando escreve:
“No se trata, pues, simplesmente de la expresión espontánea de un sentimiento
individual, sino de la participación forzosa de ciertos sobrevivientes en la
condición del muerto. Comunicando de alguna manera con el muerto, los
sobrevivientes se inmunizan y evitan que la sociedad se vea afectada por nuevos
males (...) Pero sea por deber o por interés, esas gentes viven en un contacto
íntimo y continuado con la muerte, por lo que la comunidad de los vivos los
arrojará fuera de si” (1990 : 50).
Desse modo, os últimos ritos dedicados ao morto realizam plenamente sua
passagem para o além, estabilizando e harmonizando a relação entre os vivos e os
espíritos dos mortos. Como escreve Hertz, neste tempo, “se produce uma solidaridad
estrecha y obligatoria entre el que ya no existe y algunos sobrevivientes” (: 49).
A importância e obrigatoriedade desses ritos, bem como a idéia de que há uma
correlação direta entre vivos e mortos, aparece com evidência quando Humberto,
sanfoneiro da Folia Sagrada Família, declara que a Folia Manjedoura de Mangueira, se
desmantelou porque Lauro (mestre) não levou a bandeira à sepultura do pai (Teixeira).
Na percepção de Humberto, a Folia Manjedoura, da qual fez parte por longos anos,
antes de deixá-la para ingressar na folia comandada por Élcio, se encontra em estado de
acentuada degradação e isso se deve, entre outros motivos, à falta ritual de seu atual
mestre para com seu próprio pai e dono da folia.
O interessante a observar aqui é que a folia de reis e, especialmente, a bandeira
assumem lugar central nestes ritos. Não cheguei a presenciar um rito funerário, mas
soube de diversos casos em que a bandeira entra em contato com o corpo do defunto. A
bandeira assim realiza a mediação entre vivos e mortos, garantindo uma adequada
passagem dos espíritos para o lado “invisível”, sem o risco de que esses espíritos
permaneçam perigosamente ligados aos vivos. Entende-se que nesta perspectiva não
somente os deuses, mas também os espíritos dos mortos agem sobre o mundo dos vivos.
118
4.3 Semelhança, descendência e presença
Como apontei anteriormente, foliões e devotos agem de acordo com regras,
normas, convenções e fórmulas em parte dados por um modelo imaginário. Seu marco
fundador é a aliança estabelecida entre antepassados e suas divindades, os verdadeiros
proprietários de tudo o que existe (MAUSS, 2003). Contudo, tenho apontado, ao longo
deste trabalho, exatamente para incongruências existentes entre regras e convenções
herdadas, adquiridas, reconstruídas e reinventadas, e para os modos como são postas em
prática. Etnograficamente, a categoria nativa semelhança vem realizar a mediação entre
uma realidade mítica, imaginária, “invisível” (pertencente ao tempo-espaço dos Magos
do Oriente) e a realidade ritual dos foliões e da bandeira no tempo-espaço presente.
Lembro que as folias são constituídas com a missão de realizar uma viagem, à imagem e
semelhança, da que teria sido feita pelos Magos para adorar e presentear o menino
Jesus. O ritual, assim, parece instituir uma comunicação entre esses planos,
estabelecendo certas correlações e continuidades entre as narrativas míticas e o mundo
“real”, concreto dos homens. Qual é a natureza dessa relação? Ora, ela já foi indicada
anteriormente quando me inclinei a colocar a categoria “representação” sob crítica.
Desse modo, a relação entre os planos do mito e do rito, mediada pela categoria
semelhança, não se dá de forma unicamente metafórica, mas também metonímica,
conforme tentei mostrar. A idéia de semelhança que remete à mimesis tem um sentido
diverso daquele que aparece nas concepções tradicionais sobre a categoria
“representação”. Há mesmo, na concepção do que seja semelhança, uma diluição da
oposição entre metáfora e metonímia, enquanto modos de significação. Este debate é
antigo e remonta pelo menos a Platão, para quem a distância entre o mundo das idéias e
o mundo da matéria ou das imagens é intransponível. Tenho pensado, contudo, que no
quadro mental a partir do qual foliões e devotos dos Reis Magos se pensam e pensam o
mundo, as correlações entre “real” e imaginário não são contraditórias, encontrando
muitos pontos de contato. A própria bandeira, como apontei, realiza tal mediação e sua
ambivalência permite que ela seja ao mesmo tempo pertencente a este mundo e ao
mundo mítico ao qual se referem foliões e devotos, ainda que ela seja um artefato
produzido pelos homens.
Nesta hipótese, quando a folia entra numa casa com sua bandeira, ela não está
“representando” ou “dramatizando” acontecimentos imaginários distantes no espaço e
no tempo; ela está celebrando e consagrando sua presença entre os homens. Ao analisar
119
um conjunto de narrativas de origem das “brincadeiras do boi”, folguedo popular no
qual aparece um boi-artefato que baila, morre e ressuscita, Cavalcanti (2006) observa
que há correlações de uma natureza muito particular entre o rito e o mito, mediadas
simbolicamente pelo próprio boi. A autora nota que é exatamente um momento
específico da narrativa, a “morte do boi”, que propicia a conexão mental para o
momento ritual da encenação festiva, quando o boi-artefato precisa desaparecer de cena
e seu “miolo” humano ser esvaziado. Escreve a autora que,
“em especial, o momento narrativo final da ressurreição do boi corresponde a
transposição plena da temporalidade da ‘origem’ para o ‘aqui e agora’ de uma
situação festiva. (...) A morte e a ressurreição do boi correspondem à própria
abertura da narrativa para outro nível de realidade, novo tempo e novo espaço” (:
88-89).
Creio que, na articulação entre mito e rito particular, como aparece no caso
apontado por Cavalcanti, se revelem tanto operações metafóricas quanto metonímicas. É
assim que durante os rituais da folia de reis, a bandeira, os instrumentos, os saberes, o
espaço e o tempo fundem-se, de certo modo, com seu protótipo, encarnando-o. Sinais da
percepção viva dessa presença aparecem, por exemplo, quando os foliões anunciam a
chegada dos Magos: hoje os três Reis vêm lhe visitar. Vêm pegar suas ofertas pro seu
dia festejar. Ou quando se dizem: os Magos estão na sua presença, trazendo bênçãos...
Esta presença é tornada concreta através do enquadramento ritual que lhe dá suporte,
inclusive em seus aspectos performativos, no sentido mesmo de completar, realizar
totalmente, como aparece na palavra francesa parfournir. Isso se dá através da música,
dos gestos, dos objetos, das palavras, das emoções, expectativas, tensões e convenções.
Quando, por exemplo, encontram-se numa casa um presépio ou imagens de santos, estes
parecem intensificar a eficácia ritual, agindo por reforço. Opera-se aqui também um
aspecto ritual já notado por Tambiah (1985): a redundância, a repetição. O presépio e as
imagens têm um valor simbólico e ritual equivalente à bandeira e a importância destes
objetos está exatamente em sublinhar os canais de comunicação entre os diversos planos
cosmológicos.
Poderia talvez dizer que, para além da mera relação representacional que a
bandeira (e também a própria folia) mantém com uma realidade externa imaginária, no
contexto de celebração ritual, a bandeira é percebida não propriamente como uma
imagem, uma cópia de uma bandeira supostamente original e mítica, mas como sendo a
120
própria
113
. De acordo com o que se narra, Maria teria produzido uma bandeira e
ofertado aos Reis Magos para que seguissem viagem sob proteção divina e estes, por
sua vez, a teriam ofertado aos homens. Desse modo, a bandeira e a folia são entendidos
como dons divinos dos Magos do Oriente, intermediários entre Deus e os homens. Eis o
mito de origem da bandeira e da folia de reis. A bandeira, assim, é vista como sendo de
origem “sobrenatural”. Ao mesmo tempo, ela é feita pelos homens, reproduzida no
tempo presente, através de conhecimentos e, sobretudo, do fundamento. Envolve
simultaneamente herança e aquisição, conforme apontei anteriormente
114
. Neste sistema
de idéias, a bandeira é também percebida como uma herança transmitida por
antepassados, os primeiros homens que a receberam das mãos dos Magos (GODELIER,
2001).
Devo esclarecer que cada folia tem sua própria bandeira e como há várias folias,
há igualmente numerosas bandeiras. Ocasionalmente, uma folia detém mais de uma
bandeira, revezando-as em suas jornadas. As bandeiras são singulares, no sentido em
que não se confundem entre si jamais e, mesmo sendo várias, coexistem sob a idéia de
que a bandeira de Reis é única. Entretanto, a bandeira e a folia únicas, em sua origem
mítica, se multiplicam em uma diversidade de formas.
Pierre Sanchis aponta para situação semelhante envolvendo imagens de santos,
quando observa a multiplicidade de imagens do mesmo santo em festas religiosas
populares em Portugal. Sugere o autor:
“Num mesmo santuário onde várias estátuas do mesmo santo podem ser
expostas, cada uma será animada de vida própria, vida de homem de carne e
osso, mas conotadas pelas características materiais do objeto: Este São Bento é
velho; já não anda. (São Bento de Cossourado – Paredes de Coura)” (1983: 42).
O problema da coexistência de várias bandeiras e da idéia de que seu modelo é
único já havia sido notado por Luzimar Pereira (2004), quando observaou que a
113
De acordo com Taussig (1991), a faculdade mimética pertence à "natureza", que tem a capacidade de
criar uma "segunda natureza". Esta faculdade, no entanto, não se dá meramente pela cópia do original. Ao
contrário, Taussig aponta para as ressignificações que cada cultura consegue do original, influenciando
esse original. O autor escreve ainda que o que torna a mimesis fascinante é o fato de a cópia se alimentar
do caráter e do poder do original a ponto de a representação poder mesmo assumir esse caráter e esse
poder."
114
Por trás desta idéia se encontra uma concepção particular de cultura na qual se levam em consideração
tanto os aspectos inconscientes quanto os conscientes em sua relação com os indivíduos. Gonçalves
(2007e) realiza interessante reflexão sobre os significados que as concepções de cultura assumiram
historicamente. Na concepção clássica, ela é pensada como forma de auto-aperfeiçoamento humano e,
portanto, associado ao trabalho, esforço consciente. Na concepção moderna e vigente, ela é expressão de
identidades da “alma coletiva”, mais associada à idéia de herança. Com base nesta reflexão, tenho
pensado que, no contexto aqui apresentado, muitas evidências apontam para o fato de que a herança
implica, em certa medida, alguma forma de aquisição.
121
bandeira é uma e várias ao mesmo tempo. Vê-se como, a partir deste problema, pode-se
originar um princípio de rivalidade que move a relação entre as diversas folias de reis.
Como apontei anteriormente, folias de reis, de fato, podem competir entre si, pela
legitimidade de sua prática, por certo prestígio etc. Esta dimensão agonística aparece, de
forma velada, nas festas de arremate e de modo mais visível, em contextos de festivais
folclóricos como assinalei. Conforme o relato de foliões, em tempos remotos, folias
rivalizavam-se seriamente quando se encontravam no caminho
115
em plena jornada.
Segundo informantes, a disputa se dava na base do conhecimento de profecias, na forma
de versos, tal qual um desafio. Como me relatou Élcio, “o mestre lança uma profecia e
vai até um certo ponto e a outra folia retoma a profecia, onde parou...” O perdedor deve
entregar seus instrumentos e bandeira ao mestre opositor. Foliões são também
unânimes em afirmar que essas disputas já não se realizam mais e que hoje a
cordialidade é o código dominante de conduta das folias quando se encontram numa
jornada ou numa festa.
É possível aqui pensar sobre a possibilidade de uma domesticação dessa
rivalidade correlata à aceitação da coexistência das diversas bandeiras. Como sugere
Porto, “o encontro das folias é explicado como a rememoração do encontro dos Reis
que, oriundos de países diferentes, tiveram a mesma idéia de vir visitar o Rei dos
Judeus” (1982 : 32). Estas rivalidades, assim, nasceriam da disputa pela legitimidade do
conhecimento ritual que o mestre, sobretudo, detém. É suposto, contudo, que estes
saberes, o conhecimento sagrado que rege as práticas de foliões e devotos, enfim, o
fundamento é também um dom divino. Desse modo, é interessante observar que mesmo
as contradições que se constatam no plano do rito com a multiplicidade de bandeiras
encontram sua justificativa no próprio fundamento que lhe serve de base, como se
verifica na explicação dada para o encontro amistoso entre folias.
Foliões reconhecem que inúmeros aspectos diferenciam uma folia da outra,
embora certo número de elementos permaneça invariável. Estas diferenças formais
(maneira de cantar, fardas, instrumentos utilizados, presença ou não de mulheres) são
explicadas através da categoria sistema. Como sugere o contramestre Rodolfo, as folias
de Laranjal cantam diferente. Lá é outro sistema. Eles cantam frente e resposta. Aqui
não. Todos cantam juntos. O mestre Élcio usa a categoria sistema para dar conta da
115
Curioso é que todos os relatos que ouvi falam de um passado do qual os informantes não participaram,
não conheceram, mas ouviram falar através de histórias contadas pelos mais antigos.
122
diversidade formal e também para legitimar suas práticas. Foi desse jeito que aprendi.
Assim me ensinaram Jonas e Simplício, meus mestres.
O que verifiquei conversando com mestres de várias folias é que todos eles
admitem que há variadas formas de se cantar os Reis, mas todos pensam que a sua
maneira (a forma como aprenderam) é a mais legítima. Há, portanto, uma tensão dada
pela idéia de que o fundamento é um ponto fixo de referência e a existência no plano do
rito de suas formas variadas de expressão. Evidentemente, os mestres das folias
assumem que os outros mestres detêm igualmente o fundamento, que se expressa com
algumas diferenças. Creio que essas diferenças sejam também reflexo do fato de que há
uma variabilidade no domínio que se detém sobre o fundamento. Isso diz respeito ao
processo de transmissão e aquisição desses conhecimentos. Se, como sugeri
anteriormente, a bandeira é ao mesmo tempo herdada e adquirida, o mesmo vale para o
fundamento. Desse modo, a legitimidade sobre o domínio do fundamento resulta
também em certo esforço consciente de aquisição. Creio que este aspecto é importante
para se entender o contexto onde se desenham hierarquias e rivalidades.
As bandeiras, por sua vez, também diferem umas das outras em seus aspectos
formais. Além disso, são perecíveis e de tempos em tempos precisam ser restauradas ou
mesmo substituídas, ficando sua “permanência”, sua integridade e sua continuidade no
tempo e no espaço, supostamente sempre ameaçada. Em verdade, suponho que sua
permanência seja dependente da transmissão e continuidade do próprio fundamento. O
foco na idéia de “permanência” e continuidade parece não repousar tanto nas coisas
materiais, como de modo geral somos induzidos a ver
116
. O fundamento, por sua vez,
constitui uma base permanente e imutável, permitindo que seja materializado de
diversas maneiras, em diversos tempos e espaços. Sua difusão e transmissão entre os
homens se dá através das palavras, dos gestos, dos cantos, da música etc., e não apenas
por meio dos objetos materiais. O ponto a ressaltar é que o fundamento necessita sempre
de uma mediação sensível que seja capaz de atestar sua presença entre os homens.
Dentro desse sistema de idéias, as coisas, situações e pessoas ganham certo estatuto e
certos poderes que, afinal, é o que os tornam capazes de mediar a relação dos homens
com o além. Num certo sentido, as coisas fabricadas pelos homens, que mantêm
116
Apenas a título de comparação, gostaria de sugerir que os objetos em contextos museológicos tendem
a ter sua materialidade privilegiada como um locus de permanência. Decorre desta crença um esforço
obsessivo de preservá-los a todo custo.
123
vínculos divinos, tendem a ter sua humanidade apagada, esquecida
117
. De qualquer
modo, o passado imaginário das origens é sempre presentificado através dessas formas
materiais que se ligam ao fundamento. Como finalmente sugere Godelier, e nos faz
recordar, os objetos sagrados,
“podem se apresentar como fabricados diretamente pelos deuses e pelos
espíritos, ou pelos homens sob indicação dos deuses ou dos espíritos, mas em
qualquer caso os poderes neles presentes não foram fabricados pelos homens.
São dons dos deuses ou dos ancestrais, dons de poderes presentes doravante no
objeto” (2001 : 206).
4.4 A ‘materialidade’ da bandeira
Materialmente, as bandeiras constituem-se de suportes destinados a ostentar
imagens relacionadas aos Reis Magos, à Sagrada Família, a São Sebastião e a outros
Santos. As imagens das bandeiras (representações impressas de pinturas religiosas ou
tecidos pintados artesanalmente) são cobertas com numerosas fitas coloridas e um véu
protetor, o que vem acentuar sua aura de “mistério”. São intensamente ornamentadas
com flores, pequenos espelhos, rendas, enfeites natalinos e lâmpadas coloridas, que de
modo geral as tornam muito atraentes
118
. Possuem uma haste central fixada na parte de
trás para que sejam empunhadas ou apoiadas de forma que somente a haste toque o
chão.
Em Laranjal - MG e proximidades, ao invés da bandeira, utiliza-se o registro,
caixa de madeira onde se encontram as imagens. O registro mantém-se fechado quando
fora do período ritual. É aberto por intermédio de dobradiças, revelando o conteúdo de
seu interior à semelhança de um relicário. Os registros costumam ser dotados de alças,
de modo a serem sustentados pelos ombros de quem o transporta e manipula durante os
rituais
119
.
117
Ver, a este respeito, também o ensaio de Bruno Latour, “Reflexão sobre o culto moderno dos deuses
fe(i)tiches” (2002).
118
Há notícias de que, entre folias de reis de certas áreas rurais do Estado de Minas Gerais, a ênfase
formal não recai sobre a bandeira, deslocando-se pra a música (CHAVES, 2003). No Estado do Rio de
Janeiro, entre as inúmeras folias com as quais tive contato, as bandeiras são, de fato, um foco de
visualidade muito evidente, assim como o são as máscaras dos palhaços.
119
Também em Portugal denominam-se registos as imagens de santos enclausuradas em molduras ou
caixas ricamente ornamentadas. Entretanto, estes objetos, ao contrário das bandeiras ou dos registros de
folias de reis aqui referidos, não costumam circular publicamente. Os registos pertencem mais ao
domínio doméstico, figurando em certos espaços reservados da casa, revelando uma relação íntima do
devoto com seu santo de preferência.
124
Figura 27. Registro da Folia de São João de Sapucaia – MG.
Figura 26. Bandeira da Folia Irmandade de São Roque. Friburgo-RJ
e bandeira da Folia Estrela do Oriente. Cantagalo-RJ.
125
Figura 28. Registro da Folia dos Carneiros. Laranjal – MG.
Observo a notável semelhança que estes objetos têm com pinturas religiosas medievais,
apresentando-se muitas vezes na forma de trípticos.
Figura 29. Diversas bandeiras registradas no Estado do Rio de Janeiro.
As bandeiras diferem umas das outras na sua forma, já que não seguem um
padrão único, mas guardam características muito similares. A diversidade de aspectos
que as bandeiras assumem se deve também à maneira de compô-las, às técnicas e aos
materiais disponíveis para sua confecção. Com freqüência as bandeiras apresentam
126
curiosamente o formato de fachadas de igrejas, templos ou altares. Em que medida estes
aspectos podem contribuir para o conhecimento sobre a bandeira, seus sentidos e sua
eficácia? Champeaux e Sterckx (1984) nos convidam a olhar para o templo, na “tradição
judaico-cristã”, como representação sagrada do Cosmos, tenda cósmica da abóbada
celeste, símbolo, por excelência, da morada onde Deus habita e espera ser adorado (:
139). O templo, assim, conteria toda a Natureza, meio pelo qual Deus se revelou
inicialmente aos homens (: 140). De fato, ao se analisar os aspectos visuais de
bandeiras, além destes revelarem a forma de pequenas igrejas, apresentam também
referências à Natureza, como flores, céu, estrelas, bem como representações de animais
e pessoas. Observo que templos, altares, retábulos e outros são ainda freqüentemente
dotados de formas arquitetônicas nas quais predominam arcadas e ogivas
120
. O arco dos
templos, de acordo com os autores citados, refere-se simbolicamente à abóbada celeste.
Em alguns casos, bandeiras podem ainda conter presépios tridimensionais onde figuram
a manjedoura com o menino Jesus, Maria, José, os Magos, os pastores e alguns animais,
formando compósitos com estrutura narrativa.
Alfred Gell, por sua vez, observa que ídolos, mesmo quando muito realistas, são
invariavelmente apresentados dentro de arcas, templos, igrejas, ou de algum outro tipo
de espaço sacralizado que tem o efeito de acentuar sua interioridade, seu fechamento em
si mesmo, sua relativa inacessibilidade, assim como sua majestade (1998 : 136). O autor
sugere que estas qualidades formais podem acentuar o contraste entre mente/corpo,
dentro/fora, entendendo que a mente, o espírito, a alma é interna, confinada em alguma
coisa, em um corpo (: 132). Dessa forma, para Gell, esses objetos têm sua
espiritualidade acentuada quando confinados dentro de caixas ou arcas, como no caso
de um relicário ou de um oratório
121
.
Estas idéias, em parte convergentes com as de Freedberg (1989), apontam para
um aspecto que me parece muito importante e já assinalado anteriormente: a tendência à
antropomorfização das coisas, mesmo que elas não sejam realistas, miméticas. Como
ainda sugere Gell, cultuar uma imagem é um ato visual. A contemplação mútua entre
ídolo e devoto, o ver e ser visto, cria uma esfera de união, reciprocidade e
120
O mesmo se verifica em relação ao altar das bandeiras que descrevi anteriormente.
121
Mauss nota semelhante aspecto ao observar que os bens preciosos que circulam entre os Haïda
costumam ser guardados numa caixa, ou melhor, numa grande arca brasonada. Escreve: “A caixa
milagrosa é sempre misteriosa, e guardada nos arcanos da casa. Pode haver caixas dentro de caixas,
embutidas em grande número umas dentro das outras” (2003: 255).
127
intersubjetividade entre índice
122
e pessoa. Nesse sentido, observa que a relação
ídolo/devoto é comparável à relação pessoa/pessoa. Um ídolo é uma "pessoa", não
necessariamente por se assemelhar a um ser humano ou por ter atributos humanos, mas
por ter uma “psicologia intencional” a ele atribuída, uma alma, um espírito, não
importando se se trata de um objeto biologicamente vivo (: 129). A proposição de tratar
certos objetos como pessoas, embora não seja inteiramente nova, oferece bom
rendimento analítico
123
. Gell finalmente propõe que,
“social agency is not defined in terms of basic biological attributes (such as
inanimate thing vs. incarnate person) but is relational – it is not matter, in
ascribing social agent status, what a thing (or a person) is in itself; what matter
is where it stands in a network of social relations (…) if idols are not what they
pretend to be, or are pretended to be, it is not because they are things. Human
beings also are things” (1998: 123-125).
Perguntando a um mestre sobre o que uma bandeira deve conter, ele me
convidou a verificar a presença da representação celeste com suas estrelas, assim como
as imagens dos santos. À medida que me pus a afastar as fitas da bandeira com as mãos,
o mestre dizia seus nomes: Reis Magos, Sagrada Família, José, Maria, o menino Jesus,
São Sebastião, Santa Luzia. Dizia ele ainda, Santa Luzia, você sabe, é para proteger
nossos olhos. E não pode faltar a estrela que representa o anjo Gabriel. Assim, o
mundo representado na bandeira, não é apenas o dos homens e da Natureza, mas,
sobretudo, dos seres não-humanos, do panteão das divindades que compõem o Cosmos.
As bandeiras costumam também apresentar faixas com a identificação do nome
de batismo da folia a que pertence. Nesse sentido elas se assemelham a emblemas,
insígnias, funcionando também como identificadores. É, portanto, função dos foliões
defender sua bandeira na forma de associações altamente organizadas
124
. Lembro que
os objetos blasonados tiveram, em vários contextos culturais, a atribuição de serem
propriedades particulares, de clãs, famílias ou grupos (MAUSS, 2003). Assim, as
bandeiras guardam marcas distintivas dos grupos aos quais pertencem, testemunhando
ainda a história dos antepassados que as utilizaram.
122
Partindo das teorias semióticas de Peirce (1977), Gell se utiliza do termo índice como um tipo
especial de signo que permite a abdução da agência. É a parte visível do objeto (1998: 27).
123
Esta sugestão pode ser encontrada em Manuel d´Ethnographie (MAUSS, 1967).
124
Enseigne que le seigneur de fief avait droit de porter à la guerre et sous laquelle se rangeaient les
vassaux qu’il y conduisait.
128
Figura 30. Bandeira e detalhe do presépio.
Encontro de
folias de reis. Friburgo, janeiro de 2005.
Concepções estéticas também estão presentes na elaboração das bandeiras, por
vezes alimentadas por um princípio de rivalidade. Seu Antonio Agostinho, dono da folia
Estrela Belém do Norte de São Fidélis, por exemplo, diz que a bandeira, assim como a
farda dos foliões, deve ter aparência. Na ocasião em que me disse isto, durante um
encontro de folias de reis, ele justificava as grandes proporções de sua bandeira, com
cerca de um metro e meio de altura, ao mesmo tempo em que enaltecia outras
qualidades de sua folia.
Noto que, de modo geral, as folias despendem considerável tempo nos cuidados
com as bandeiras, limpando-as, enfeitando-as para torná-las mais atraentes. O fato de
tais objetos serem considerados, por si só, milagrosos, não dispensa estes cuidados, que
podem até mesmo alcançar extremos como no caso de imagens suntuosamente
ornamentadas para figurarem em grandes procissões, círios e romarias. O suporte visual
e por vezes dramático, como no caso de andores gigantescos, é necessário dentro deste
contexto. Todos estes procedimentos, creio eu, conferem eficácia a estas imagens,
funcionando como uma forma de sublinhar sua excepcionalidade. Suponho igualmente
que, quanto mais evidentes são os poderes emanados de imagens e de objetos
“sagrados” e sua influência sobre as pessoas, maior é a necessidade de ostentar tais
atributos. É afinal esta presença, por assim dizer exagerada, que confirma seus poderes.
129
Muitos mestres gostam também de inovar, e esta é exatamente a expressão que
usam para se referir às modificações que realizam na bandeira. Um dos artifícios
atualmente mais procurados no comércio, para este fim, são as lâmpadas coloridas tipo
pisca-pisca de fabricação chinesa ou coreana.
Devo ainda acrescentar que a bandeira e sua “materialidade” só ganham seu
sentido pleno quando percebidas nos usos corporais que delas se fazem. Lembro que
durante toda a circulação da bandeira esta é manipulada pela bandeireira, e quando não
está sob seus cuidados torna-se alvo de freqüentes contatos corporais. A bandeira é
transferida das mãos da bandeireira às mãos do devoto, na porta de sua casa, quando
então é entronizada. Para um devoto, estar próximo da bandeira é um privilégio
supremo. O modo de manipular a bandeira também é feito na base de códigos
compartilhados. Mestre Élcio diz que conhece quando um devoto é, de fato, conhecedor
dos reis pela maneira como lida com a bandeira. O bandeireiro, por sua vez, detém
conhecimentos específicos para conduzir a bandeira e todos os rituais no qual ela
assume lugar central. Sua importância pode também ser atestada quando foliões
declaram que somente o bandeireiro sabe conduzir a bandeira. Seu Agostinho, dono da
Folia Estrela Belém do Norte relatou-me, certa vez, que seu bandeireiro anunciou sua
saída da folia deixando-o sem solução, visto que, em sua ótica, nenhum folião detinha o
conhecimento necessário para assumir a função.
A bandeira define-se na medida em que se mantém ligada a uma pessoa com
função claramente marcada. Freqüentemente, as pessoas que assumem esta função se
vestem inteiramente na cor branca, distinguindo-se dos demais foliões. Bandeira e
bandeireiro formam um compósito, uma unidade harmoniosa, e percebe-se isso também
através dos movimentos que realizam conjuntamente. Devo acrescentar que o mestre
também mantém laços estreitos com a bandeira, especialmente na condução de certos
ritos. Bandeira, bandeireiro e mestre relacionam-se com muita proximidade.
Não é surpreendente que dentre as regras para o manuseio da bandeira se
estabeleça que ela deva ser segurada com a mão direita, sendo o uso da esquerda apenas
complementar. A preeminência da mão direita sobre a esquerda é tema de um ensaio
clássico de Hertz (1990), na qual ele observa que a oposição assimétrica
direito/esquerdo não se encontra na Natureza. O autor nota a recorrência desta
polaridade em sociedades “primitivas” e argumenta, com uma base claramente
durkheimiana, que a oposição entre “sagrado” e “profano”, correlata à oposição entre
“puro” e “impuro”, ordena o mundo religioso dessas sociedades, e ao mesmo tempo
130
serve de modelo para as hierarquias sociais. Hertz sugere, assim, que nestas sociedades
o uso da mão esquerda é intensamente inibido, sendo alvo de verdadeira “mutilação
simbólica”. Estas oposições implicam uma série de proibições visando a impedir a
aproximação destes opostos. Mas como propõe Marc Augé (1994), a antítese entre estas
noções,
“é percebida de maneira diferente segundo o ponto de vista segundo o qual é
observada. Certamente do ponto de vista do profano, o sagrado é indivisível e
uniformemente proibido. O puro e o impuro combinam-se nele. As forças
sobrenaturais que agem ‘em harmonia com a natureza das coisas’ e as que
‘violam e perturbam a ordem universal’ são igualmente perigosas” (: 58).
Nesse sentido, um recuo até As formas primitivas da vida religiosa (2001)
permite entrever algo dessa relatividade na oposição sagrado/profano. Diz Durkheim:
“O puro e o impuro não são, portanto, dois gêneros separados, mas duas
variedades de um mesmo gênero que compreende todas as coisas sagradas. Há
duas espécies de sagrado, um fasto e outro nefasto, e não somente entre as duas
formas opostas não existe solução de continuidade, mas ainda, um mesmo objeto
pode passar de uma à outra sem mudar de natureza. Com o puro, faz-se o
impuro, e vice-versa. É na possibilidade dessas transmutações que consiste a
ambigüidade do sagrado” (: 488).
O modelo de Hertz pode se estender a outras sociedades que não as primitivas,
mas exige, em todo caso, relativizar etnograficamente a oposição, questionando-se,
como sugere Augé, se os termos que a constituem são definíveis em si, e se a antítese se
pode esgotar em si mesma (id.). Se, por um lado, evidencia-se a preeminência da mão
direita quando é usada para empunhar a haste central da bandeira, por outro, não se
exclui a mão esquerda desta operação, embora se mantenha entre elas alguma
hierarquia. Estou, portanto, enfatizando não tanto a oposição entre os termos, mas a
qualidade de sua relação, sua continuidade.
Retornando aos aspectos materiais da bandeira, devo esclarecer que ao longo do
trabalho de campo não tive efetivamente a oportunidade de acompanhar a feitura de
uma bandeira, e até mesmo obter informações a este respeito não foi fácil. A maior
parte dos mestres com quem tive contato herdou suas bandeiras de antepassados e
muitos não souberam me dizer quem as construiu
125
. De qualquer modo, este aspecto
parece sintomático, evidenciando claramente que as bandeiras são feitas para perdurar,
pelo menos enquanto estiverem inseridas no sistema vivo de trocas e mediações ao qual
125
É interessante observar que a linhagem hereditária da bandeira é predominantemente masculina. A
função do bandeireiro, contudo, freqüentemente é assumida por mulheres.
131
se destinam. Muitas bandeiras chegam a ser centenárias, se estendendo por várias
gerações, enraizando-se no tempo. Bandeiras são herdadas de tal modo que sua autoria
e trajetória biográfica muitas vezes não são plenamente conhecidas devido ao longo e
precário percurso entre a memória e o esquecimento. Tudo isso torna difusa a origem, o
momento fundador da bandeira, o que tende a fazer com que ela seja percebida em seus
“aspectos sobrenaturais”.
Se, por um lado, a bandeira está associada a uma certa “permanência”, por
outro, a máscara do palhaço caracteriza-se por ser “efêmera”. Este é um dos aspectos
que polarizam simbolicamente esses objetos, pensando-os de forma esquemática. Desse
modo, no caso da bandeira, o que se quer preservar não é exatamente a coisa material
em si, mas seus poderes investidos que assumem determinada forma material. Existe
evidentemente uma preocupação de foliões e devotos em garantir a continuidade e
integridade da bandeira, e especialmente do fundamento que a atravessa, e isso se
traduz em uma série de cuidados materiais. Toda intervenção feita na bandeira se dá de
modo ritualizado. O mestre Élcio me revelou que a cada ano faz uma espécie de reforma
na bandeira, na qual ela é desmontada e são feitas trocas de certas partes como fitas,
véu etc. A estampa pintada em tecido
126
é cuidadosamente lavada e, antes de ser
posicionada novamente no seu lugar, é levada a um padre para ser benzida
127
. O
material utilizado na reconstrução da bandeira deve ser novo. As fitas são compradas
em embalagens rigorosamente invioladas. A explicação para este cuidado me foi dada
com as seguintes palavras: eu gosto de usar material virgem porque se foi usado, trás o
suor da pessoa, e as fitas têm que estar fechadas sem o risco de alguém ter tocado ou
usado. Por outro lado, materiais variados podem ser utilizados livremente na
indumentária de foliões e de palhaços, bem como nas coroas dos chapéus e máscaras.
Como se vê, introduz-se aqui o tema da “impureza” e dos seus malefícios
contagiosos (DOUGLAS, 1976). Aspectos relativos à contaminação aparecem também
de forma clara nas descrições que Malinowski faz com relação aos procedimentos
126
Segundo o mestre, a estampa foi doada a ele por Elisa, cunhada de Humberto e uma fervorosa devota,
para que ele um dia pudesse ter sua própria bandeira e conduzir um grupo de foliões. Élcio a considera
madrinha da bandeira. Vê-se mais uma vez como se dão atitudes de “personificação” em relação à
bandeira, no fato de que esta tem uma madrinha.
127
De modo geral, as folias de reis realizam suas atividades de forma autônoma em relação à Igreja
católica, mas podem manter algum tipo de vínculo complementar com esta. Apesar deste relativo
distanciamento, as folias costumam afirmar serem pertencentes ao catolicismo. Por outro lado, ouvi
diversos foliões relatarem que freqüentemente a Igreja não reconhece a legitimidade de suas práticas.
132
rituais envolvidos na construção de canoas trobriandesas, e mesmo a tabus referentes a
canoas já construídas. Escreve o autor:
“qualquer tipo de profanação decorrente do contato de alguma substância impura
com o tronco escavado da canoa pode fazer com que ela se torne vagarosa e
inadequada; se alguém caminhar por cima do tronco de uma canoa, ou nele ficar
de pé, o resultado será igualmente desastroso” (1976: 118).
Como já notei, o que parece se evidenciar, neste exemplo, entre inúmeros outros
apresentados ao longo deste trabalho, é uma concepção de mundo na qual as “leis da
natureza” são, até certo ponto, dependentes da esfera moral, da ordem humana. Nesta
cosmologia, os limites entre natureza, cultura e sociedade podem, ocasionalmente,
tornar-se nebulosos. Desse modo, as categorias classificatórias não são tão estáveis,
estando em permanente processo de transformação. A este propósito Valeri (1994)
propõe que
“podemos afirmar que onde quer que exista religião existe pelo menos uma área
onde vigora uma certa indistinção entre natureza e sociedade. Com efeito, o
elemento comum a todas as religiões é a idéia de que os processos naturais
dependem, em certa medida da ordem moral” (: 352).
É neste quadro mental e convencional que os procedimentos “mágico-religiosos”
são tidos como dotados de eficácia. É também dentro deste mesmo sistema de idéias
que tais procedimentos encontram justificativa para as ocasiões em que não funcionam,
quando se diz, então, que os procedimentos rituais não foram realizados
adequadamente.
A bandeira, assim como a canoa trobriandesa, constitui-se em algo mais que um
objeto, em sua materialidade imediatamente apreensível. Seu sentido pleno só se
alcança quando compreendido dentro de um sistema de significados, onde assume
determinadas posição e qualidades. Se há algo que distingue a bandeira dos outros
objetos cotidianos, está exatamente no fato de operar como mediador em múltiplos
planos. Sua força e eficácia decorrem precisamente de seu dualismo fundante, que pode
ser representado esquematicamente através de uma série de oposições sempre relativas:
alto/baixo, matéria/espírito, corpo/alma etc. Os objetos ganham sentido, não exatamente
devido a sua função prática, mas por uma série de fatores inter-relacionados, como:
modos de fabricação, materiais utilizados no fabrico, formas de aquisição e transmissão,
ritos de consagração, relatos mitológicos etc. A bandeira, assim, se distingue por
condensar e dar visibilidade ao fundamento, ou seja, por ser capaz de mediar, transmitir,
ainda que de modo transitório, valores, saberes e conhecimentos perenes de vital
133
importância para certos grupos. A bandeira é, em última instância, o fundamento na
forma “visível” e tangível.
Outro aspecto que merece atenção em relação à bandeira é que ela não é dotada
de uma forma permanente, ou seja, sua forma é processual, pois se modifica ao longo do
tempo
128
. Evidentemente, isso se deve também ao fato trivial de ser perecível e
necessitar ser reformada periodicamente; mas isso não é tudo. Além disso, ao longo das
jornadas suas fitas coloridas de seda são retiradas e recolocadas continuamente.
Observei a bandeira da Folia Flor do Oriente, comandada por mestre Tião de Vila
Rosário - RJ, iniciar as jornadas com as fitas na cor predominantemente azul e terminar,
no dia 20 de janeiro, com fitas na cor vermelha. Estas cores assumem evidentemente
valor simbólico. Foliões relatam que as cores das fitas se relacionam com determinados
santos católicos ou divindades iorubas. Desse modo, a circulação de fitas pela bandeira
se dá através do critério cromático, na forma de um sistema classificatório
129
. Neste
sistema de cores, a fita de cor preta, por exemplo, só é anexada à bandeira em uma
situação específica para sinalizar a morte de um parente próximo. As fitas retiradas da
bandeira são consideradas detentoras de poderes por estarem em contato com ela. As
que são oferecidas à bandeira, por sua vez, são expressões de pedidos ou pagamento de
promessas.
Além das fitas, eventualmente outros objetos são depositados na bandeira por
devotos, tais como cordões, santinhos, crucifixos etc. Todas estas coisas são certificados
da presença divina na vida diária das pessoas, na medida em que são oferecidas em
pagamento de promessas. Estão ali para serem exibidas publicamente, reiterando e
validando a influência dos santos sobre o mundo. Entrevistando um membro da
comissão espiritosantense de folclore, por sua proximidade com o universo das folias de
reis da região, obtive o seguinte depoimento em relação à bandeira de um mestre-
folião.
“Seu Augusto tinha uma bandeira onde havia um crucifixo há mais de 50 anos.
Então, um dia, ele a retirou e me deu. E quando eles chegam numa casa [a folia],
os devotos colocam coisas na bandeira. Um crucifixo, um santo. Então a
bandeira vai se reciclando. E ele sempre muda a gravura principal. Às vezes de
Jesus no sepulcro ou com a família no presépio”.
128
A este propósito Weiner observa que, “Although the passage of time may encrust an object with patina
or contributes for its fraying, these alterations heighten rather than diminish the object´s value.” (1992 :
39)
129
Sobre o uso de cores como sistema classificatório, ver Turner (2005).
134
De acordo com o depoimento, a bandeira parece também mediar a circulação de
uma série de objetos. Não se trata de quaisquer objetos, mas certamente de objetos de
uma intimidade particular. Todas estas coisas estão ligadas aos seus proprietários. Um
determinado crucifixo ostentado na bandeira foi dado por alguém em determinadas
circunstâncias. Doam-se coisas à bandeira, aí permanecendo por algum tempo, para
serem eventualmente transferidas a outro que não o doador
130
. O que talvez seja
possível perceber nesta circulação é que os objetos nela envolvidos são dotados de valor
especial, ou adquirem este valor quando em contato com a bandeira. De acordo com
meu entrevistado, o crucifixo é referido como uma relíquia, não apenas por ter estado
em contato com a bandeira, mas possivelmente por lhe ter sido doado pelas mãos do
mestre. Como ele sugere, Seu Augusto, com seus 80 anos, é um personagem. Tudo que
ele toca é sacralizado. Certamente refere-se à autoridade do mestre, dada por sua idade
avançada, experiência e sabedoria, o que acaba por aproximá-lo da própria noção de
“sagrado”.
Há ainda casos mais raros em que devotos oferecem fotografias, roupas e mesmo
partes do corpo (exúvias), como cabelos. Todos estes objetos materiais realizam a
mediação do devoto com os santos e, no plano das relações sociais, recolocam os
objetos e os seres humanos, de certo modo, numa mesma condição, a de “coisas”. Tudo
isso aponta para uma concepção de mundo em que os objetos são dotados de certos
atributos humanos, especialmente dos seus usuários e proprietários. Nesse sentido, os
objetos colocados na bandeira ou no altar de uma santa são vistos por devotos como
estando em conexão direta com as pessoas que as deram. No caso em que partes do
corpo, como cabelos, ex-votos, etc. são oferecidos, estes constituem expressões de
sacrifícios corporais. Os demais objetos também se enquadram na idéia de sacrifício,
visto que são dotados de algum valor especial para o proprietário que os doa. Num caso
ou noutro, todas estas coisas são, em realidade, uma parte delas próprias que é oferecida
em sacrifício. Isso se dá porque, como procurei indicar, não apenas a parte vale pelo
todo, mas igualmente a “imagem” vale pelo todo
131
.
130
Não tenho conhecimento sobre a extensão desta circulação e assimo posso avançar nesta análise, o
que indico para desenvolvimentos futuros.
131
Um exemplo que parece ilustrativo diz respeito a uma mão de cera oferecida por um devoto, como ex-
voto, a Nossa Senhora do Almortão, invocação Mariana de Idanha-a-nova, Beira Baixa, Portugal.
Encontrei este objeto de promessa junto a outros no altar da Senhora, no interior da ermida dedicada à
Santa, no dia de sua gloriosa festa onde se reuniram cerca de dez mil pessoas. Junto da mão de cera havia
um bilhete onde se lia: Virgem do Almurtão Mãe Santa, venho-te agradecer de todo o meu coração do
milagre que me fizeste. Já te ofereci a minha mão direita, agora venho oferecer a minha mão esquerda...
135
Doam-se e recebem-se coisas através da bandeira e o que se verifica é que há
um verdadeiro intercâmbio entre o mundo “visível” e o “invisível”. Há um fluxo
permanente de objetos entre estes planos e, como bem sinaliza Pomian, os objetos,
“oferecidos em sacrifício, vão do primeiro destes mundos para o segundo. Os outros
seguem o percurso inverso, quer directamente, quer introduzindo em imagens pintadas
ou esculpidas elementos do mundo ‘invisível’” (1997 : 66). O autor acrescenta que o
que torna esses objetos distantes do circuito das atividades econômicas é a função de
garantir a comunicação entre estes dois mundos que compõem o universo. Pomian
esclarece que a oposição entre “visível” e “invisível” pode manifestar-se de variados
modos.
“O invisível é o que está muito longe no espaço: além do horizonte, mas também
muito alto ou muito baixo. E é aquilo que está muito longe no tempo: no
passado, no futuro. Além disso, é o que está para lá de qualquer espaço físico, de
qualquer extensão, ou num espaço dotado de uma estrutura de fato particular. É
ainda o que está situado num tempo sui generis ou fora de qualquer fluxo
temporal: na eternidade. É por vezes uma corporeidade ou uma materialidade
distinta daquela dos elementos do mundo visível, por vezes uma espécie de anti-
materialidade pura” (: 66).
Enfim, como propõe o autor, esta oposição fornece quadros vazios, os quais
deverão ser preenchidos pelas entidades diversas de acordo com os contextos. Sua
ênfase então está na variabilidade de significados destas categorias e na universalidade
desta oposição
132
.
Se, então, como propõe Pomian, há coisas que seguem do “invisível” para o
“visível” e outras que fazem o percurso inverso, seria possível que as primeiras
retornassem ao seu ponto de partida? Ou ainda, em outras palavras, seria aceitável que
os dons dos deuses e dos antepassados pudessem retornar ao seu doador, visto que os
deuses nunca deixam de ser efetivamente os proprietários? Afinal, não parece ser isto
que ocorre em certos casos, quando estão envolvidos atos de destruição ritual de objetos
preciosos? Vejamos isto no relato que venho apresentar.
Para o devoto, o objeto de cera funciona efetivamente tal qual uma parte corporal concreta. É de uma
parte do corpo que o devoto fala e não de um pedaço de cera. Simbolicamente, a mão de cera substitui a
mão verdadeira, através de um processo de atribuição de sentido, no qual se articulam idéias de
“semelhança” e “presença”.
132
Como bem observou criticamente Gonçalves (1999), em sua reflexão sobre a oposição entre o
“visível” e o “invisível” posta por Pomian, este autor deixa de lado, em grande medida, as contingências
históricas, econômicas e políticas que permitem a emergência desta oposição em seus contextos
particulares (: 24).
136
Mestre Teodoro, da Penha, veio de Muriaé para o Rio de Janeiro, onde criou em
1955 sua folia de reis, a Estrela Dalva do Oriente, através dos ensinamentos que lhe
foram dados por seu mestre, ainda em Minas Gerais. Teodoro era extremamente
rigoroso e dedicado, a ponto de ter reservado um livro especialmente para lavrar a
fundação do grupo e estabelecer seus estatutos. Em 1996, quando completava 70 anos
de idade, Teodoro realizou em sua casa a festa de arremate, e na ocasião ele havia
decidido transferir seu posto a um possível herdeiro. Como relata Affonso Furtado,
membro da comissão fluminense de folclore: “Seria, por assim dizer, sua festa de
despedida, após quarenta e um anos ininterruptos de ‘obrigação’ à frente da Estrela
Dalva” (SILVA, 1998 : 6). Ao final da ceia na qual participavam todos os foliões,
Teodoro levantou-se à cabeceira da longa mesa, pôs sua coroa de mestre e anunciou aos
presentes sua pretensão de passar a bandeira. Furtado relata, conforme testemunhou,
“Tomando o Livro da Folia com veemência, pediu silêncio e passou a expor as
condições que deveriam ser atendidas, fazendo leitura e comentário dos itens do
Estatuto. O conhecimento aprofundado das profecias (...) era questão fechada.
Encerrado o ato, fez-se um prolongado silêncio, com visível clima de
expectativa. (...) Não obstante, ninguém se apresentou.
Foi então que, sob forte emoção, tomou o apito e deu partida à segunda parte da
cantoria. Enquanto entoava os cânticos (...), com uma tesoura ia, pouco a pouco,
desprendendo da Bandeira uma flor, uma fita, um outro enfeite qualquer,
repartindo-os, primeiramente com seus foliões, e a seguir com todos os
presentes. Fez assim de sua Bandeira uma oferenda de carinho e gratidão.
Acercava-se o final da toada. Olhos em lágrimas, voz balbuciante: seu estado
d´alma contagiou o ambiente, por completo. Aparentemente combalido, reuniu
energias e ‘puxou’ o último verso, ...ela (a Bandeira) vai lá pra Belém, ai ai.”
As palavras de Teodoro são claras. Na falta de herdeiros a quem possa transferir
a bandeira, a função de mestre e, enfim, os próprios fundamentos da folia de reis, ele as
reconduz simbolicamente para o seu espaço-tempo original, para Belém. Pois foi lá e
naquele tempo distante que tudo começou: o princípio da folia de reis e do mundo
133
.
Teodoro faleceu cerca de um ano após ter realizado este inusitado gesto que ainda hoje
repercute com alguma intensidade nos círculos formados por foliões. A Folia Estrela
Dalva do Oriente se extinguiu e alguns de seus foliões vieram para a Mangueira, entre
os quais, o palhaço Gigante.
Creio que este episódio seja bastante revelador do verdadeiro lugar que certos
objetos ocupam na vida social. Talvez não seja inteiramente legítimo afirmar que tal
133
Curiosamente, a filha de Teodoro doou postumamente, a pedido do pai, uma outra bandeira também de
sua propriedade, ao Museu do Folclore Edson Carneiro, CNFCP - RJ. Juntamente com ela, outros
artefatos da folia, tais como instrumentos, fardas e máscaras, destinaram-se a esta instituição.
137
gesto se resume a um ato propriamente de destruição, pura e simplesmente. Não se trata
aqui, evidentemente, de uma destruição profanadora, precisamente porque é realizada
em um determinado contexto por alguém que tem autoridade de sobra
134
. Pelo contrário,
talvez este gesto expresse a excepcionalidade suprema do objeto e especialmente de seu
fundamento. Este, por sua vez, é que parece infenso a qualquer destruição. Liquidar seu
suporte material é, talvez, apenas uma maneira de sublinhar sua superioridade. Nesse
sentido, esta destruição se aproxima da idéia de sacrifício.
4.5 Herança, aquisição e transmissão dos objetos rituais
Bandeiras são adquiridas ou construídas, mas podem ser também herdadas de
gerações passadas ou mesmo das próprias divindades. No processo de continuidade das
festas, os foliões herdam não apenas os saberes rituais, os cantos e os toques envolvidos
em sua celebração, mas também os objetos materiais a eles relacionados, especialmente
a bandeira e os instrumentos musicais. Herda-se, sobretudo, o compromisso firmado
por antepassados com seus santos, de cumprirem certas obrigações. É assim que, por
exemplo, a bandeira é transferida pelas mãos de um velho mestre em vias de encerrar
suas atividades devido à idade avançada. De acordo com o relato do mestre Élcio, da
Folia Sagrada Família, o grupo foi iniciado por um homem chamado Serafim,
provavelmente nos anos 1940. Após seu falecimento, a folia passou para seu filho e
depois, sucessivamente, a outros tantos donos e mestres. Os instrumentos e a bandeira
chegaram às mãos de Geraldo Amaral, que por sua vez, os encaminhou à Divisão de
Folclore do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), sediado no Rio de
Janeiro, para guarda temporária. Como diz Élcio,
Eu herdei do Geraldo Amaral. Ele era o mestre, era o dono. Então quando ele
viu que eu tava emotivo pra botar uma folia na rua, ele me levou lá no INEPAC
e resgatou a bandeira, os instrumentos. Tudo no meu nome.
Não se trata, portanto, da aquisição de uma bandeira qualquer, mas sim, de uma
bandeira dotada de história e possivelmente de uma história gloriosa. Seu valor está
também no fato de ter sido manipulada por antepassados familiares e até mesmo
legendários. Este aspecto é especialmente importante para um mestre, para quem ser
134
Penso que o gesto de mestre Teodoro possa ser também pensado como um sinal de seu próprio poder.
138
responsável pela folia, pela guarda e circulação de uma bandeira certamente confere
grande prestígio. Nos depoimentos de foliões, freqüentemente os antepassados e seus
feitos memoráveis são lembrados e mencionados como um valor positivo. Há casos em
que mestres se vangloriam por deter uma bandeira centenária. Mesmo quando um
mestre, eventualmente, adquire uma bandeira construindo-a, a conexão desta com o
passado se dá através do conhecimento necessário para sua fabricação. A bandeira pode
não estar, em princípio, conectada com o passado, mas o conhecimento, o fundamento
está necessariamente e, assim, é ele que estabelece a ponte entre o objeto e o passado,
não tanto o seu próprio passado histórico, mas o passado do princípio do cosmos.
Assim, a bandeira pode ser vista também como portadora de memória de fatos
passados, ligando-os diretamente ao presente dos homens que agora a manipulam. Essa
dimensão do valor histórico dos objetos aparece nos mais diversos contextos e, de modo
particular, no Kula, sistema de circulação e troca dos chamados vaygu´a, - colares e
braceletes - entre trobriandeses descrito por Malinowski. De acordo com o autor,
“Tanto os objetos tradicionais quanto as relíquias históricas dos europeus quanto
os vaygu´a são apreciados pelo valor histórico que encerram. Podem ser feios,
inúteis e, segundo os padrões correntes, possuir muito pouco valor intrínseco;
porém só pelo fato de terem figurado em acontecimentos históricos e passado
pelas mãos de personagens antigos constituem um veículo infalível de
associação sentimental e passam a ser considerados grandes preciosidades”.
(1976: 80)
Outro exemplo pode também evidenciar algo desse valor atribuído ao tempo de
existência da bandeira. Encontrávamo-nos em Laranjal, eu, Élcio, Humberto e Rodolfo,
na casa de Zé Carneiro, ex-integrante de uma antiga folia da região, a Folia dos
Carneiros. Fomos visitá-lo e aproveitei a ocasião para tentar extrair alguns dados
etnográficos. Em meio à conversa falamos sobre o registro da folia. Seu Zé, já um
senhor de idade, revelou-nos que antigamente a folia saía com uma bandeira e que o
uso do registro foi posterior. Pedi-lhe que nos mostrasse sua antiga bandeira e, quando
sua filha a trouxe, percebi que sua aparência denunciava os efeitos da pátina do tempo.
A conversa girou em torno da bandeira e um momento em particular do diálogo, que
aqui reproduzo, interessou-me.
Filha de Zé: - Sabe que eu tive uma idéia. Vou mandar restaurar esta bandeira
e fazer um quadro pra pendurar na parede. Não tinha pensado nisso.
Élcio: - Isso, isso, legal. Vai ficar bonito.
Alguns instantes depois voltamos a falar no assunto.
139
Élcio: - Olha, e vou falar mais. Se eu fosse a senhora botava ela assim mesmo
porque aí é que tá a característica de respeito dela, da idade, sabia? Era só
emoldurar. Isso é a história viva. Não precisa nem mexer.
Humberto: - Isso tem um valor danado.
Figura 31. Rodolfo, Humberto, Zé Carneiro e sua filha exibindo a antiga bandeira da folia.
Estou sinalizando a importância que a trajetória histórica de um objeto pode
eventualmente assumir, mas creio que este não seja um critério fundamental para que
esse objeto seja dotado de certos poderes. Tenho aqui em mente algumas reflexões
postas por Gonçalves (2007c) em torno da categoria “autenticidade” e de como ela
aparece em discursos sobre “patrimônio cultural”. O autor propõe que certos “bens
culturais” que compõem o “patrimônio” de um grupo ou de uma nação podem ser
representados tanto em sua autenticidade “aurática” quanto no que chama de
autenticidade “não-aurática”. Quando o bem é visto pela ótica de uma “autenticidade
não-aurática”, ele não precisa se conectar organicamente com o passado. Neste caso,
seu aspecto de recriação e sua “transitoriedade” são mais evidentes do que sua herança e
“permanência”. O autor sugere ainda que ambos os aspectos estão presentes em bens de
natureza patrimonial e que, de um modo ou de outro, apontam para o fato de serem
todos “construções culturais”. O conjunto dessas reflexões parece adequado para se
pensar a relação da bandeira com o passado e, assim, a própria legitimidade do lugar
140
que ocupa num sistema ritual. Em verdade, creio que a bandeira não precise
necessariamente estar vinculada organicamente com o passado, bastando que se conecte
a ele através do fundamento. Nesse sentido, tenho em vista que o valor histórico
atribuído às bandeiras em seu contexto nativo não assume necessariamente o mesmo
sentido quando este valor é afirmado como pretexto para eleger certos objetos como
representantes de grupos sociais na forma de “patrimônios”, sejam eles nacionais,
regionais ou étnicos. Creio igualmente que este valor histórico não tem aqui valor
absoluto, como o que se dá em certos contextos apontados por Weiner:
“In societes with complex politics hierarchies, precious possessions such as gold
crowns, jewerly, feathered cloaks and fine skills, may accumulate historical
significance, that make their economic and aesthetic values absolute and
trancendente above all similar things” (1992: 37).
Baseando-me nessas reflexões, acredito que a bandeira não é alvo de uma
“autenticidade aurática” e é isso que permite que ela seja substituída, causando espanto
a quem se encontre “enfeitiçado” pela idéia de que seus atributos intrínsecos são o que
os tornam preciosos e eficazes. Um exemplo aqui pode ser elucidativo. Seu Antonio
Agostinho, dono da Folia Estrela Belém do Norte de São Fidélis - RJ, contou-me que
sua nova bandeira foi fabricada há alguns anos. Embora ela seja maior que a anterior, é
mais leve e duradoura, por ter estrutura de alumínio. Pedi a ele que me mostrasse a
antiga bandeira, feita de madeira, e verifiquei que havia sido depositada sem qualquer
cuidado, em meio a outros objetos velhos, sujos e empoeirados no fundo de uma
garagem. Não há dúvida de que se trata apenas de uma reminiscência de bandeira,
apenas uma carcaça, sem a sua “alma”, inteiramente desvinculada do sistema vivo de
trocas e mediações ao qual normalmente está atrelada. Neste caso, a bandeira foi
deliberadamente descartada e algumas de suas partes foram aproveitadas na confecção
da nova bandeira, por sua vez investida dos poderes que eram próprios à outra.
O que este caso nos revela é que, em verdade, o que se torna “inalienável” não
são propriamente os objetos, mas o sistema de idéias, que está na base dos processos de
atribuição de sentido
135
. Em outras palavras, os objetos são sempre transitórios, assim
como as pessoas. O que permanecem são as idéias, as visões de mundo, enquanto elas
135
Uma lógica semelhante parece estar presente entre devotos nas festas dedicadas a São Gonçalo do
Amarante, em Portugal. Observei, no interior do Convento dedicado a este popular santo, cinco imagens,
sendo que a mais antiga, uma escultura em madeira policromada do século XVI, havia sido retirada das
procissões. Depois de circular em procissões por um longo período de tempo, permanece agora na
sacristia, posta num pedestal etiquetado, exposta ao público visitante. Cada uma das imagens, inclusive o
túmulo antropomórfico do santo contendo suas relíquias, é venerada de modo muito particular.
141
se sujeitarem a ser transmitidas. Nesse sentido, os objetos cumprem duplamente a
função de mediar esta transmissão e materializá-la.
Ao longo da trajetória de uma folia de reis, várias gerações podem se suceder
sob a mesma bandeira que, evidentemente, sofre mudanças ao longo desse tempo.
Como afirma Weiner, “Because inalienable possessions succeed their owners through
time, transferability is essencial to their preservation.” (1992: 37). Contudo, uma
bandeira, bem como a função de mestre, não é herdada passivamente, estando
necessariamente condicionada a um árduo processo de aquisição de conhecimentos. Um
folião normalmente alcança a posição de mestre depois de longo tempo de aprendizado,
recebendo ensinamentos de outro mestre. Assim, um mestre precisa demonstrar ter
conhecimentos para ser considerado apto a herdar uma folia e seus objetos. É preciso
também que sua imagem seja construída e suportada pelos demais integrantes do grupo.
Além disso, a transferência da bandeira de um dono ou mestre a outro pode envolver
certos procedimentos rituais
136
. O ponto a ressaltar é que nem sempre a herança da
bandeira e da própria folia se dá pela via hereditária. O caso do mestre Élcio parece
exemplar, pois a herança não se concretizou por laços de parentesco, como se daria
naturalmente
137
mas sim através de uma conquista, na qual evidentemente estão
envolvidos outros laços sociais
138
. De fato, considerando a trajetória de muitas folias de
reis, esta transmissão parece se dar predominantemente pela via hereditária, para que
esses objetos preciosos se mantenham no seio da família. Entretanto, se considerarmos
que a idéia de família pode assumir nesses contextos um sentido muito mais amplo,
incluindo relações de amizade e vizinhança, compreende-se também que o fundamental
é que esses bens sejam adequadamente salvaguardados e que se mantenham próximos,
nos limites de determinado grupo social.
A propriedade de uma bandeira é, portanto, transitória, podendo estar associada
a uma pessoa, ou mesmo a um grupo. Uma bandeira pode ser de propriedade de um
mestre ou de um dono de uma folia até que este resolva não mais realizar jornadas.
Neste caso a bandeira pode ser transferida a outro responsável ou mestre-folião para
136
Um informante relatou-me que, certa vez, um componente de outra folia tomou a bandeira e os
instrumentos de um grupo desativado sem autorização e sem passar pelos procedimentos rituais exigidos.
Em sua primeira visita à casa de um devoto, ele teria ficado mudo e caído no chão. Na ótica do
informante, estas circunstâncias evidenciam um tipo de punição exercida pelos Magos diante da falta
ritual.
137
Nos relatos de Élcio, fica claro que a herança familiar da folia é um fato valorizado e também
diretamente relacionado a hierarquias e privilégios.
138
Como se revela através da trajetória de Élcio, esta conquista pode envolver algum conflito ou disputa
de poder.
142
que se possa dar continuidade às jornadas de Reis. Contudo, juntamente com a
bandeira herda-se o quadro mental a partir do qual o artefato é produzido e, ao mesmo
tempo, investido de certos sentidos e poderes. Este aspecto é fundamental, pois permite
deslocar o foco do objeto, da coisa e de sua materialidade substancial em si mesmas,
para o sistema de idéias que o subjaz. Em outras palavras, herda-se o conhecimento, o
fundamento sagrado para a construção, reprodução, salvaguarda e uso da bandeira.
Construídas ou herdadas, bandeiras podem passar por rmituais de consagração,
serem benzidas, receber nomes, cuidados especiais, véus, flores e é também esse
conjunto de ações que as tornam eficazes entre os homens comuns
139
. Todos esses
gestos visam igualmente a singularizar esta categoria de objetos de modo a mantê-los
afastados do domínio das trocas mercantis
140
(KOPYTOFF, 1986). Evidentemente, a
condição de inalienabilidade do objeto pode não ser permanente nem se estender a todos
os casos, pois é sempre dependente de sua posição dentro de um nexo de relações e usos
simbólicos
141
. De acordo com Gonçalves:
“os objetos materiais estão submetidos a um processo permanente de circulação
e reclassificação, podendo ser deslocados da condição de mercadorias para a
condição de presentes; ou da condição de presentes para a condição de
mercadorias; e alguns desses objetos podem ser elevados à condição de ‘bens
inalienáveis’...” (2007a: 27)
Como afirma Marcel Mauss, em seu Ensaio sobre a Dádiva (2003 [1950]), em
verdade há duas classes de coisas que transitam pelas sociedades: as mercadorias ou
presentes e os bens preciosos. Ao contrário dos primeiros, os bens preciosos circulam
muito restritamente, ou mesmo nunca o fazem, tornando-se então “inalienáveis”. Estes
últimos formam verdadeiras “coleções” dos mais variados objetos, talismãs, pratos,
139
Mauss (2003) constata a este propósito que os vaygu’a trobriandeses, como os cobres das sociedades
da costa noroeste americana, têm um nome, uma personalidade e mesmo uma história.
140
Pomian aponta para um paradoxo que envolve os objetos colecionados: de que, ao serem isolados das
trocas mercantis, enquanto bens preciosos, estes passam a acumular um valor monetário. O paradoxo
estaria, enfim, no fato de terem um valor de troca sem terem um valor de uso (1997: 53-54). Para o autor,
não há propriamente uma oposição absoluta entre coleções e mercado. Também relevante para esta
discussão é o artigo intitulado Os limites do patrimônio (GONÇALVES, 2007) no qual o autor trata sobre
as intrincadas e ambíguas relações entre patrimônio e mercado.
141
Sabe-se que objetos sagrados como imagens de santos católicos, coroas, relíquias etc, são muitas vezes
cobiçados, vendidos, trocados e mesmo roubados. Contudo, estas atividades existem em função da
própria inalienabilidade destes objetos (POMIAN, id.: 66). Isto aponta precisamente para as
ambigüidades dos objetos e para os múltiplos enquadramentos a partir dos quais são classificados e
reclassificados. Ver a este respeito o artigo, Sacred commodities: The circulation of medieval relics
(GEARY, 1986: 169-194).
143
colares, mantos, arcas etc., compartilhando entre si, em muitos casos, certos
significados mágico-religiosos para quem os detêm
142
.
Contudo, muitas sociedades colecionam determinados objetos, não com o
propósito deliberado de acumulá-los mas para redistribuí-los ou mesmo para destruí-los.
Em casos mais específicos, estes “patrimônios”, afinal, são constituídos de modo a
garantir a continuidade de um conjunto de bens preciosos no tempo e, assim, permitir o
acesso permanente aos seus poderes divinos.
Coube a Annete Weiner (1992) perceber que muitos desses objetos, como
também ritos e saberes, precisam, paradoxalmente, ser guardados para poderem ser
dados. Nessa perspectiva, os bens sagrados, sobretudo os que se crêem terem sido
fornecidos por divindades aos homens, devem ser salvaguardados para que se possa
usufruir os efeitos benéficos de seus poderes. Assim, creio que se dê com a bandeira,
cuja propriedade é sempre transitória e cujos efeitos de seus poderes são
permanentemente distribuídos como dons. Lembro que a bandeira tem sempre o mesmo
destino a ser cumprido: circular pelas casas de devotos e finalmente retornar para o seu
altar. Durante sua circulação, a bandeira é exibida publicamente, quando pode ser
inclusive tocada por algumas pessoas, que assim o fazendo entram em contato com a
esfera supramundana. Desse modo, a bandeira estabelece hierarquias, pois nem todos
têm o privilégio de estar próximos dela, de receber a visita da bandeira, dos Magos do
Oriente, por assim dizer. Nesse sentido, guardar é também uma forma de estabelecer
diferenças e hierarquias. Dar e guardar são ações distintas, mas complementares. Como
escreve Pomian, “Por outras palavras, é a hierarquia social que conduz necessariamente
ao aparecimento das coleções, conjuntos de objetos mantidos fora do circuito das
atividades econômicas, submetidos a uma proteção especial (...) e expostos ao olhar”
(1997 : 74)
Ao longo desta exposição, salientei o lugar do quadro mental, do sistema de
idéias, enfim, das categorias classificatórias a partir das quais os objetos são
construídos, colecionados, salvaguardados, transmitidos, e circulam de forma restrita.
Concentrei esforços na tentativa de evidenciar o papel mediador que certos objetos
desempenham na vida social em contextos particularmente marcados por trocas entre os
homens e suas divindades. Mesmo considerando que é um conjunto de idéias, ou seja, o
142
O próprio Mauss indica através de farta bibliografia a presença dessa categoria de objetos em diversas
sociedades, como entre os Haïda e Kwaktiul da costa noroeste americana, populações melanésias e
polinésias, Maoris da Nova Zelândia etc. (id.).
144
fundamento, que em última instância torna eficaz a interação entre as partes num
sistema de intencionalidades complexas, há, nesses contextos, a necessidade primordial
da presença de coisas que sejam capazes de condensar tal projeção. Dito de outro modo,
alguns objetos de fato existem tão somente para mediar relações de dádiva e
contradádiva entre as esferas supramundana e intramundana.
145
5. O PALHAÇO E A MÁSCARA: O LUGAR DA AMBIGÜIDADE
5.1 Ambigüidade num campo de forças
Complexo de Mangueira, janeiro de 2004. A Folia de Reis Sagrada Família
havia passado a madrugada visitando casas de devotos, cantando profecias,
apresentando as brincadeiras dos palhaços e distribuindo bênçãos em troca de donativos
ofertados pelas famílias locais. Eram cerca de 6 horas da manhã e a Candelária se
encontrava inundada por uma luz violeta característica no início do amanhecer. Havia
pouca gente nas ruas, moradores acostumados a acordar cedo e os que chegavam, aos
poucos, da noitada passada na quadra da Escola Carnavalesca Estação Primeira de
Mangueira. Em meio a este cenário, os foliões vinham alardeando sua presença pelas
estreitas e silenciosas vielas da localidade, sob o potente som de sua bateria percussiva,
em direção à casa de algum devoto.
Foliões devidamente fardados com seus coloridos e brilhantes uniformes,
hierarquicamente organizados em filas, irrompiam os vazios caminhos daquele
alvorecer para dar continuidade à sua longa jornada. À frente do grupo vinha a
bandeira na sua sublime e radiante imponência, cuidadosamente empunhada pela
bandeireira. Logo atrás vinham mestre, contramestre, cantores, instrumentistas e
também os palhaços, com seus característicos gritos e intensos movimentos corporais
em contraste com o comedimento da marcha, quase militar, do grupo de foliões.
Após percorrer uma longa curva na parte baixa do morro, a folia entrou numa
rua mais larga e iluminada e notou-se a presença de agentes do “tráfico de drogas” à
espreita. Inesperadamente, suas armas foram apontadas na direção do grupo, tendo
como alvo, em particular, os dois palhaços que nos acompanhavam. Mesmo sob a mira
dos rapazes, a folia seguiu seu rumo, quando então se ouviu o pipocar de uma saraivada
de tiros disparados para o alto.
O episódio acima narrado traz uma série de elementos significativos que
merecem alguma atenção. Sua dramaticidade coloca em evidência a tensão permanente
vivida por moradores mangueirenses em relação à presença ostensiva da atividade do
narcotráfico na localidade há décadas. Esta presença não é apenas visível, mas
nitidamente influente na vida cotidiana dessas pessoas, como já assinalei.
146
Entrar no Complexo de Mangueira, como em muitas favelas cariocas, implica
freqüentemente transitar por lugares artificialmente delimitados, controlados por
“comandos” e seus homens, geralmente bastante jovens, fortemente armados. Esses
territórios, desenhados por regras e códigos, constituem a complexa geografia de uma
atividade que envolve diversos setores da sociedade, atravessando fronteiras
transnacionais (ZALUAR, 2007). Trata-se de cenários de violentas disputas, onde as
armas de fogo assumem papel central na resolução de conflitos e na manutenção de
domínios de comércio de drogas, em especial a cocaína, que se associa a outras
atividades ilegais.
O acontecimento em que foliões se defrontam com “traficantes” sinaliza relações
complexas e tensas vividas na localidade. No período em que circulei pela Candelária,
em nenhuma ocasião fui importunado por esses jovens. Evidentemente, jamais consegui
manter-me indiferente ou sentir-me confortável na presença de “soldados” tão
fortemente armados, e arriscaria dizer que o mesmo se dá com muitos que vivem no
local, já por muito tempo. Soube também que as folias de Mangueira nunca antes
haviam sido importunadas ou impedidas de realizar suas práticas. Sendo, assim, o que
os teria levado a dirigir tal gesto em direção à folia de reis?
A atitude pode ser interpretada por vários ângulos e, assim, poderia afirmar que
se trata de um gesto irônico, zombeteiro, de saudação ou ainda ligado à necessidade de
afirmação de uma auto-imagem
143
. A questão que se coloca então é: a partir de que
enquadramento a atitude deve ser vista e que implicações ela gera? No caso
apresentado, a atitude dos traficantes deve ser vista através de uma lente que permita
focar melhor as verdadeiras intenções guardadas nos seus gestos aparentemente
inusitados.
Provavelmente, a presença dos palhaços contribui para fazer com que a folia
seja percebida, aos olhos dos que estão de fora, em seus aspectos mais “profanos”.
Conforme já mencionei, os palhaços contrastam acentuadamente com os foliões, estes,
por sua vez, tidos como portadores da ordem e da formalidade. Acentuando, portanto, a
dimensão lúdica, criativa e transgressora da folia, os palhaços parecem ter incitado os
143
Ao estudar o envolvimento de jovens do sexo masculino em casos de homicídio no contexto do
narcotráfico, Alba Zaluar sugere que “É necessário compreender as formações subjetivas sobre o valor e
o respeito de um homem, isto é, a concepção de masculinidade em suas relações com a exibição de força
e a posse de armas de fogo” (2007: 32).
147
jovens “soldados do tráfico” a agirem daquele modo, fazendo-os ingressar no “jogo”, na
“brincadeira”, coroando-o com uma salva de tiros (fogos)
144
.
Na ótica dos foliões, contudo, o gesto não foi interpretado como uma brincadeira
sem maiores propósitos, mas como uma atitude profundamente ofensiva e desrespeitosa,
conforme se comentou posteriormente. Foliões freqüentemente reiteram que, apesar da
presença dos palhaços e de suas brincadeiras na folia, trata-se de coisa séria, baseada
em fundamentos, pois estabelece vínculos religiosos e morais.
O que chama a atenção no episódio acima narrado é o fato de as armas serem
apontadas para um alvo em particular: os palhaços. Seria plausível, dentro deste
episódio, que as armas fossem apontadas para a bandeira, ou para os demais foliões?
Creio que não. Portanto, o ponto que mais interessa aqui é o fato de que os palhaços são
o alvo da mira das armas e penso que isso se dê, precisamente, porque se traduzem em
um lugar de vulnerabilidade, perigo e incerteza. O palhaço pode ser definido como um
ser liminar, transicional, marginal, vivendo de sua própria indefinição. Como propõe
Turner, na sua definição do liminar, “Não estamos diante de contradições estruturais
quando discutimos a liminaridade, mas diante do que é essencialmente não-estruturado
(do que está ao mesmo tempo, desestruturado e pré-estruturado)” (2005: 142). As
personas liminares” são dotadas de uma invisibilidade estrutural e, no caso dos
palhaços, ela é, de certo modo, também física, dada pelo uso da máscara. Esta
vulnerabilidade não é apenas expressão de um simbolismo convencional, mas decorre
da percepção da aparência ilusória do palhaço, provocada sobretudo pela máscara.
É curioso notar, por outro lado, que algo de vulnerável, ambíguo e marginal
parece também caracterizar o comportamento e a posição social destes jovens
embrenhados nas veredas subterrâneas e liminares da ilegalidade. Seduzidos por
promessas de riqueza, proteção, poder e prestígio, estes jovens seguem tortuosos
caminhos em busca de modos alternativos de existência social. A experiência tem,
contudo, revelado que estas expectativas só se realizam efetivamente para poucos. Neste
mundo liminar, as relações de parentesco, sejam de consangüinidade ou de compadrio,
não necessariamente exercem papel importante no fortalecimento das relações de
confiança, sempre precárias. (ZALUAR; ALVITO, 1998).
144
Evidencia-se aqui o caráter hierarquizado da atividade do narcotráfico. Dentro deste sistema, os
rapazes ocupam um dos estratos mais baixos numa extensa cadeia de agentes. Este aspecto certamente
permitiu que o mestre, com alguma autoridade e com muita cautela, recorresse ao dono do tráfico, através
de mediadores, para expor a situação. Noto que o mestre sentiu-se na obrigação de declarar para os
foliões o que havia feito, como forma de mostrar sua autoridade.
148
De acordo com Élcio, as folias de reis da Candelária nunca foram impedidas de
circular no local e nas imediações, o que torna ainda mais estranha a atitude dos
“traficantes”. O mestre contou-me que certa vez foi impedido de entrar com a Folia no
Morro dos Macacos, recebendo ordem explícita do chefe do comando da localidade
para se retirar. A explicação dada por Élcio foi a de que se tratava, no caso, de uma
disputa entre diferentes facções.
Na Candelária, traficantes não impedem a circulação das folias e, mais que isso,
podem eventualmente recebê-la em sua própria casa. Perguntando a Élcio se a bandeira
recebe dinheiro do tráfico ou de traficantes, ele respondeu-me que não e que preferia
manter-se afastado desse domínio, sugerindo que se tratava de dinheiro sujo. Em outra
ocasião, contudo, Élcio revelou-me já ter cantado na casa de um integrante do tráfico,
sem explicitar muitos detalhes. Não tenho dados suficientes para desenvolver este tema,
mas estou aqui chamando a atenção para as conexões existentes entre esses domínios
sociais
145
. Meu interesse aqui está em procurar entender como o contexto microssocial
do tráfico é percebido por foliões e devotos e como produz efeitos sobre eles.
Vê-se como a experiência da liminaridade é diversa e multicontextual,
permitindo colocar uma lente sobre as obscuridades da vida social. A ambigüidade que
lhe é própria convida a um diálogo entre categorias fundamentais, como
indivíduo/sociedade, ordem/desordem, caos/cosmos etc. Permite ainda uma reflexão
sobre tudo o que não se ajusta às classificações correntes. Dito isso, talvez devêssemos
nos perguntar se, afinal, a liminaridade é uma exceção ou uma regra, e assim, considerar
que ela não é tão transitória.
A ambigüidade, em certos contextos, é interpretada como uma fonte constante
de perigos, ameaçando a “ordem” e sua estabilidade. Regras de “poluição”, por
exemplo, estão fortemente associadas a coisas e situações ambíguas, de acordo com
Douglas (1976). Como escreve a autora, “A reflexão sobre a sujeira envolve reflexão
sobre a relação entre a ordem e a desordem, ser e não ser, forma e não forma, vida e
morte” (: 17) Como mostrou a autora, as preocupações com as impurezas ligam-se
diretamente com questões relacionadas ao ordenamento do mundo.
145
Se, como apontei anteriormente, as redes de comércio ilegais não são fundamentalmente caracterizadas
por relações de parentesco, solidariedade etc., isso não deve ser assumido ao pé da letra. Como bem
mostraram DaMatta (id.) e Zaluar (id.), esses domínios podem ser fortemente embasados em formas de
autoridade e prestígio decorrentes de relações de parentesco, amizades e compadrio, incluindo relações
cósmicas com santos ou relações com a Igreja Católica, como é o caso das Máfias nos EUA e na Itália.
149
Testemunhei o mestre Élcio utilizar a categoria sujeira diversas vezes, como
uma forma de estabelecer controle sobre as condutas morais de foliões. Para ele, um
folião com o corpo sujo pode ser punido por potências superiores. Na sua ótica, um
folião, ou seu corpo, pode vir a se tornar sujo, através de consumo excessivo de álcool
ou mesmo por seus pensamentos negativos.
No contexto microscópico da folia de reis, creio que esta ordem é, por assim
dizer, vista através das relações morais entre as pessoas e entre estas e as diversas
potências supramundanas. É somente garantindo esta boa ordem que se podem obter
bênçãos, assegurando a fonte de todas as coisas boas e evitando os infortúnios. A
preocupação com uma certa ordem se evidencia quando os foliões mais graduados
sugerem, ocasionalmente, que isto aqui está uma bagunça. Folia é coisa séria! Essas
expressões têm lugar diante da avaliação negativa das condutas internas e de suas
transgressões. O que se observa, contudo, é que a estabilidade desta ordem é bastante
precária e continuamente ameaçada. Também para foliões e suas famílias, suas relações
se evidenciam como sendo, de certo modo, precárias, precisando ser revigoradas,
reafirmadas periodicamente diante das contradições da vida social, da ausência de
respostas em relação às carências cotidianas e da impossibilidade de se exercer a
cidadania. Muitos fatores parecem ameaçar estes núcleos de solidariedade marcados por
relações essenciais e de substância, e na Candelária isso fica evidente, já que os jovens
que estão no “tráfico” não são estranhos que vieram de fora, mas ao contrário, são, em
sua maioria, oriundos das famílias locais. Observa-se aqui, portanto, um paradoxo
quando estes mesmos fatores que ameaçam a solidariedade social são também parte de
sua fonte. Há aqui talvez algo a se dizer sobre a própria ambigüidade da desordem, na
medida em que ela simboliza tanto o perigo quanto o poder. Como nota Douglas (1976),
a desordem estraga o padrão mas, ao mesmo tempo, fornece materiais para esse mesmo
padrão, para a ordem. Como escreve a autora,
“Mas nem sempre é tarefa desagradável confrontar a ambigüidade. Obviamente
é mais tolerável em algumas áreas de que em outras. Há todo um contínuo no
qual o riso, repulsa e choque pertencem a pontos e intensidades diferentes. A
experiência pode ser estimulante. A riqueza da poesia depende do uso da
ambigüidade... O prazer estético provém da percepção de formas inarticuladas”
(id. : 52).
O que o episódio relatado sobre o encontro entre foliões e traficantes parece
revelar, entre outras coisas, é o lugar da incerteza, da liminaridade – enfim, da
ambigüidade nos sistemas culturais. Esta ambigüidade não é apenas uma fonte de
150
perigos e contágios, mas também uma fonte de poder e de criatividade. Como sinaliza
Turner, as situações liminares são particularmente propícias à emergência de novos
padrões, modelos, símbolos e paradigmas, que, por sua vez, são como que entronizados
no “centro” da arena de domínios econômicos e políticos, fornecendo aspirações,
incentivos, modelos estruturais etc. (1982: 28). Esta criatividade se expressa também em
formas lúdicas, no “jogo”, na dissolução da oposição entre trabalho e lazer, entre outras
oposições. Como escreve o autor, “In liminality people ‘play’ with the elements of the
familiar and defamiliarize them” (: 27) e ainda, “Liminality is both more creative and
more destructive than the structural norm” (: 47). Nesta perspectiva, Valeri (1994)
propõe que a categoria “rito” se confunde, assim, com “jogo” e “arte”, nas quais
também se introduzem comportamentos lúdicos e estéticos similares. Escreve: “o que é
especificamente ritual, ou pelo menos é um dos seus aspectos fundamentais, não passa
de uma variante particular numa família de fenômenos em que cabem também o jogo e
a arte” (: 354). Acrescentaria ainda que esses fenômenos se diferenciariam pelo
enquadramento psicológico, por sinais metacomunicativos, evidenciados por gestos,
cores, cantos, silêncio, marcha, uniformes etc. (BATESON, 1972).
No contexto da folias de reis, penso ainda que a liminaridade associada ao
palhaço parece se aproximar da noção de “sagrado”, remetendo ao caráter ambíguo
desta categoria e à própria noção de sagrado impuro mencionada por Durkheim (2001).
Como diz o autor: “essa ambigüidade, aliás, não é exclusiva da noção do sagrado, algo
desse mesmo caráter é encontrado em todos os ritos...” (2001: 490).
Penso, assim, que essa ambigüidade possa ser tomada como uma dimensão
fundante do sistema ritual que venho descrevendo, o que pode ser constatado de forma
talvez mais visível na presença dos palhaços. Seu contraste com os demais aspectos da
folia, bem como sua sujeição a processos de mudança de status, dada por sua
ambivalência, fazem deles importantes operadores rituais. Através dos palhaços,
amplificam-se as cisões, rupturas, contradições e tudo aquilo que escapa às
classificações, transitando nas margens. Como escreve ainda Valeri:
“Uma vez que estimula as tendências projetivas, joga com as expectativas, os
paradoxos e os pontos obscuros da experiência, o rito tende a pôr em evidência
tanto o que é contraditório ou sem um sentido claro na experiência externa (da
sociedade e da natureza) como o que é problemático e obscuro na experiência
interna dos sujeitos.” (1994: 346).
Por intermédio das experiências de liminaridade, “abrem-se fendas no real
revelando o seu inacabamento” (DAWSEY, 2005: 24). Como propõe o autor, sob
151
inspiração da “antropologia da performance” de Victor Turner, “Para captar a
intensidade da vida social é preciso compreendê-la a partir de suas margens” (: 23).
Como se expressa, afinal, esta liminaridade dos palhaços? A existência do
palhaço, também chamado de mascarado ou bastião, não é um fato universal em folias
de reis e sabe-se mesmo que em algumas regiões brasileiras ele é desconhecido. No
Estado do Rio de Janeiro, sua presença é obrigatória e esperada com grande expectativa
pelos donos das casas e pelo público em geral. Os palhaços vêm ladeando o cortejo de
foliões, de forma mais livre, e permanecem do lado de fora da casa visitada enquanto se
desenrola a cantoria. Apresentam-se invariavelmente com máscaras de aparência
grotesca e farda colorida, de tecido, chitão ou farrapos, assumindo movimentos e gestos
mais livres e irreverentes se comparados aos foliões.
A brincadeira do palhaço é, de certa forma, o lugar potencial da subversão, da
desordem (ou de uma outra ordem), da criatividade, em contraste com a formalidade e a
solenidade do canto, da música, das palavras e dos gestos dos foliões. Nesse sentido, os
palhaços podem ser vistos também como portadores de idéias não-oficiais que apontam
para uma ordem diferenciada do mundo. Nesta visão cosmológica, predominam a
heterogeneidade, a aproximação de esferas e dimensões díspares e normalmente
separadas e o rompimento de certas convenções (BAKHTIN, 1993 : 30).
Há portanto, nas folias, uma oposição entre palhaços e foliões, como também
entre máscara e bandeira, reforçada por outras oposições correlatas, como a existente
entre rua e casa, sério e cômico, alto e baixo, corpo e alma etc. De fato, a atitude dos
palhaços é, em muitos aspectos, oposta a dos foliões, como já havia sido notado por
Brandão (1977) e por Frade (1997). Estes contrastes acabam por produzir um equilíbrio
entre os elementos lúdicos, criadores, com os elementos mais rígidos, formais. Tais
oposições, no entanto, são totalmente relativas, e, mais que isso, são complementares,
constituindo partes de um todo.
Os palhaços são tipos sempre cercados de obrigações, regras e restrições, bem
como de prescrições. Quando mascarados, eles costumam ser impedidos de entrar em
igrejas ou em outros lugares considerados “sagrados”, ou de se aproximarem
demasiadamente da bandeira ou de imagens de santos. Eles também não devem fazer as
refeições junto dos foliões. Considera-se, por vezes, perigoso tocar em suas vestes ou
máscaras, e o motivo de tanto cuidado e de certo rigor das regras de “poluição” se deve
aos múltiplos significados a eles atribuídos. Algumas interpretações relacionam o
palhaço com o Diabo e com outras imagens negativas. Podem ainda estar relacionados a
152
Exu
146
e, desse modo, evidencia-se também alguma associação com o mundo dos
espíritos. Trata-se, afinal, de um pólo simbólico, “multivocal”, para usar a expressão de
Turner (1962). Como propõe o autor, os seres ambíguos são indefinidos e posicionados
além da estrutura social. Isso os torna desobrigados a cumprir certas normas sociais, o
que os coloca em estreita relação com os poderes não-sociais ou associais da vida e da
morte. Como escreve, “They are dead to the social world, but alive to the asocial
world” (1982: 27).
A ambigüidade do palhaço ocupa ainda lugar de destaque em exegeses
mitológicas. Conta-se que os Magos
147
vieram do Oriente em direção a Jerusalém, à
procura do Deus-menino, cujo nascimento havia sido profetizado
148
. Os Magos
indagaram sobre o menino que nasceu anunciado por sua estrela, causando grande
inquietação em Herodes. O conflito inicia-se com a chegada dos Reis Magos e, antes
que estes partam em direção a Belém, Herodes pede-lhes que, ao retornarem, lhe
informem sobre a localização do menino para também ir adorá-lo. Os reis encontram o
menino, adoram-no e fazem-lhe oferendas de mirra, incenso e ouro. José encontrava-se,
na ocasião, em Belém para alistar-se em conformidade com o decreto de César Augusto,
quando Maria deu à luz o menino. Assim que os Reis se retiraram, José foi advertido em
sonhos por um anjo que lhe disse que a vida do menino corria perigo, pois Herodes o
procurava para matá-lo. A saída encontrada foi a fuga para o Egito. Advertidos por uma
revelação divina na forma de sonho, os Magos resolvem não retornar ao encontro de
Herodes, voltando para seus países por outro caminho. Herodes, ao perceber que foi
enganado, instruiu seus soldados a matar todos os nascidos em Belém, mas, com a fuga,
Jesus escapou da morte
149
.
Os relatos de informantes acrescentam ainda que os palhaços são representações
dos soldados de Herodes, que teriam se arrependido de participar da perseguição ao
perceberem que Jesus era o messias prometido. Como relata um mestre-folião de
Valença, interior do Estado:
“Mas Deus fez com que três soldados chegassem mais perto do menino Jesus,
numa ponte que saia de Jerusalém para o Egito. E fez com que o mesmo anjo
146
Yvonne M. A. Velho descreve o Exu como “Entidade que representa o bem e o mal. Algumas vezes é
identificado com o Diabo. (...) Sua figura é ambígua, pois, podendo fazer o bem e o mal, tornam-se
perigosos e poderosos” (1977 : 161).
147
Os Magos são referidos tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento. Aparecem em
Salmos 72:10-11. 10 “Os reis de Társia e das Ilhas trarão presentes; os reis de Sabá e de Seba oferecerão
dons”. 11. “E todos os reis se prostrarão perante ele, todas as nações o seguirão”.
148
Trata-se da profecia de Balaam, também referida no Antigo Testamento.
149
Compilação de relatos orais. A versão bíblica se encontra no Evangelho de Mateus 2:1-12.
153
que anunciou a Maria, que foi o anjo Gabriel, fizesse os três soldados
entenderem que Jesus vinha salvar e não vinha prejudicar o reino de Herodes.
Então naquele lugar já havia três soldados com a espada suja de sangue, a
virgem Maria e São José, ela montada numa jumentinha, ele puxando ela e o
menino Jesus num cesto. Todos achavam que aquela simples mulher também ia
perder seu filho, mas por ordem do Espírito Santo, aquele anjo falou ao coração
de José e ele disse para ela: - Mulher fale a verdade. Então quando o soldado
de Herodes perguntou a ela: - O que você leva ai? Ela respondeu: - Eu levo o
Jesus Cristo vivo, filho prometido de Deus maior. Ele então respondeu: - Você
não tá levando o menino não, porque você sabe que nós estamos procurando ele
pra matar. Se fosse ele, você não passaria por aqui. Deixou ela ir: -Vai mulher,
a criança é sua. (...) Os soldados (...) se arrependeram porque sabiam que
jamais uma criança passaria por ali sem que fosse morta. E por obra do
Espírito Santo eles foram acompanhados durante sete anos. Chegaram até os
três Reis, cumpriram sete anos que é a missão dos palhaços.”
150
Os relatos trazem elementos para a melhor compreensão sobre as representações
do palhaço e seus múltiplos sentidos. A primeira idéia significativa é a forte presença da
intervenção divina, milagrosa, manifestada nas formas de sonhos, aparição de anjos e
estrelas, na solução dos conflitos, bem ao gosto das narrativas medievais cristãs. Nos
relatos, os Magos simbolizam igualmente a presença divina, como mediadores entre
Deus e os homens, instaurando um modelo de conduta e ordem moral com a oferta de
dons ao menino.
O palhaço, em princípio associado ao Mal representando os soldados de
Herodes, está sujeito a uma inversão, tornando-se piedoso e passando também a adorar
o menino Jesus. Como notei anteriormente, o ritual de entrega da bandeira é também o
momento em que os palhaços pedem perdão, ajoelhando-se sem as máscaras diante da
bandeira. Trata-se, afinal, de um ritual de conversão religiosa, um batismo simbólico,
com efeitos morais. Aí reside precisamente sua ambivalência simbólica. Nota-se que o
comportamento do palhaço pode apresentar-se de forma acentuadamente contrastada,
sendo que a presença ou a ausência da máscara determina, em grande medida, seu
caráter, seu simbolismo, bem como seu status. Como bem sugere Turner (2005: 61):
“os símbolos rituais são a um só e mesmo tempo símbolos referenciais e de
condensação, ainda que cada símbolo seja mais multirreferencial do que
unirreferencial. Sua qualidade essencial consiste na justaposição do
grosseiramente físico com o estruturalmente normativo; do orgânico com o
social. Tais símbolos são coincidências de qualidades opostas, uniões de ‘alto’ e
‘baixo’”.
150
Este relato foi pronunciado publicamente durante um encontro folclórico de folias de reis em
Cordeiro - RJ, 2006.
154
Figura 32. Palhaço se despedindo da bandeira e pedindo perdão.
Noto o sinal da cruz em suas costas. Mesmo aqui uma hierarquia se evidencia.
Figura 33. Palhaço Gigante no ritual de benzimento.
Foto de Pedro Lyra e Tatiana Devos Gentile.
Deve-se atentar para o fato de que o ritual descrito no capítulo 3 não apenas
opera uma transmutação simbólica, mas transforma sobretudo o sujeito que se prostra
diante da bandeira num gesto de suprema submissão. A qualidade “sagrada” do palhaço
se altera ritualmente quando entra em comunhão com a bandeira, partilhando, de certo
155
modo, sua substância, pois como se sabe, seus poderes são tidos como altamente
contagiosos. Como propõe Turner (2005):
“No contexto da ação ritual, com sua excitação social e estímulos diretamente
fisiológicos, tais como a música, o canto, a dança, o álcool, o incenso e modos
bizarros de trajar-se, o símbolo ritual, poderíamos talvez dizer, efetua um
intercâmbio de qualidades entre os seus pólos de significação” (: 61).
O conjunto de ações rituais produz mudanças simbólicas com reflexos na
experiência concreta. Essas ações incluem retirar a máscara, ajoelhar-se, realizar um
determinado deslocamento espacial, prostrar-se diante da bandeira, beijá-la, Acrescento
que todos esses gestos estão inseridos num contexto ritual mais amplo, envolvendo
muitos outros elementos como música, palavras, sentimentos obrigatórios, presença da
audiência etc.
Nesse sentido, tenho também em mente, a sugestão de Schieffelin (1985):
“rituals gain their effectiveness by being performed. It is through participation
in ritual singing and dancing, or through viewing dramatic presentations of
sacra, emblems and masks, or through being subjected to painful ordeals that
participants come to see symbolic representations as having a force of their
own” (: 272).
Os palhaços são tipos totalizantes e tendem a uma reversibilidade simbólica.
Noto ainda que na narrativa apresentada anteriormente, os soldados realizam uma
mediação entre Herodes e Jesus. Neste contínuo, os soldados assumem caráter
ambivalente e, mais do que isso, apresentam-se de forma profundamente confundida
com os Magos. Sinais desta contaminação aparecem em diversos momentos quando,
por exemplo, se diz que três soldados encontraram José, Maria e o menino Jesus,
coincidindo com o número de Magos. A narrativa sugere também um encontro entre os
soldados e os Magos.
Diversos relatos e trabalhos de pesquisa contribuem para desenhar o palhaço
como figura ambivalente e reversível. Reily (2002: 74), por exemplo, sugere que entre
as folias de reis de São Bernardo - SP, os palhaços são vistos como os próprios Magos
disfarçados com máscaras e dotados de habilidades lúdicas para distrair a atenção dos
soldados. A autora menciona que em determinados momentos rituais os palhaços
assumem papel ativo, manipulando a bandeira para benzer foliões e devotos. De acordo
com Porto (1982), os palhaços da região sul-mineira são, por vezes, confundidos com
os Magos, sobretudo quando, em determinados momentos rituais, levantam a parte
frontal da máscara, transformando-a em uma verdadeira coroa. Neste contexto
156
etnográfico, os palhaços vêm à frente, ladeando a bandeira, a anunciá-la aos donos das
casas. Diz o autor que as máscaras são feitas de pano grosso ou de tela de arame bem
fino e são pintadas em cores que dão a tonalidade da pele humana. Essas máscaras são
levantadas quando se aproximam de uma imagem de Jesus. “Quando isso acontece, eles
parecem estar coroados e, por isso, são então, símbolos dos Reis Magos diante do
presépio” (: 20-21).
Também contribui para caracterizar esta ambivalência a noção de que o palhaço,
mais do que qualquer outro, necessita da proteção da bandeira, de seus poderes divinos.
Se, por um lado, está impedido de aproximar-se demasiadamente da bandeira, por
outro, não pode distanciar-se demais dela. Segundo o palhaço Gigante, essa distância
não deve ultrapassar 50 metros, sob o risco de se perder a proteção da bandeira. No
relato de Élcio e de muitos foliões, palhaços desaparecem quando se afastam da
bandeira e do grupo. Estes relatos apontam para uma concepção de pessoa na qual ela
não está inteiramente descolada das coisas e do meio ambiente. Pessoas e coisas estão,
desse modo, inextrincavelmente relacionadas no espaço circundante.
Como se vê, a ambivalência do palhaço torna inadequada sua classificação em
termos de uma simples oposição entre “sagrado” e “profano”. Mestre Élcio diz que um
bom palhaço deve ter conhecimento sobre as profecias, mais do que qualquer outro
folião, podendo até substituir o mestre numa eventualidade. Diz que o palhaço tem
autoridade até mesmo para afastar o mestre, em casos extremos. É ainda tido como
guardião da folia e da bandeira, em alguns casos. Nas suas palavras, o palhaço é um
soldado, um sentinela a serviço da proteção da folia e da bandeira. A mesma idéia se
expressa no estatuto do “Grupo Folclórico Folia de Reis Estrela D´Alva do Oriente da
Penha”, onde se encontra registrado o seguinte: “Um bom Palhaço é um futuro Mestre.
Um bom Palhaço ajuda o Mestre. Um ajuda o outro no enredo da Profecia, nos pontos
de marração
151
da Bandeira ou do próprio Palhaço.”
Estas narrativas colocam em foco um aspecto que me parece importante, a
particularidade das posições e da autoridade do mestre e do palhaço. De certo modo
eles são comparáveis, equivalentes. Mestre e palhaço ocupam posições extremas no
sistema. A este respeito, Augé escreve: “Muitos observadores notaram o curioso
parentesco que parece unir os símbolos da autoridade e os da desordem, o rei e o
feiticeiro” (1994: 69).
151
Amarração. Refere-se a uma das modalidades agonísticas praticadas entre as diversas folias rivais.
157
Este simbolismo do poder ganha alguma evidência quando se sabe que alguns
palhaços ganham o título de mestre-palhaço. Isto se deve ao fato de que o número de
palhaços numa folia pode chegar a ser expressivo e, neste caso, um deles assume a
função. Trata-se, geralmente, da pessoa mais velha e mais experiente. Detém
responsabilidades maiores que os demais e, ocasionalmente, realiza a mediação entre a
folia e o dono da casa, perguntando se deseja receber a bandeira. O título de mestre para
um palhaço evidencia a um só tempo uma categoria que se distingue claramente dos
foliões e uma hierarquia interna, uma autoridade. Um mestre-palhaço pode substituir
um mestre-folião, mas a recíproca não é uma regra.
Talvez por isso o mestre e o palhaço apareçam como alvos privilegiados da ação
de bruxaria, muitas vezes ocasionada por disputas e rivalidades, onde pode estar em
jogo a manutenção de certo prestígio pessoal. Palhaços ficam mudos ou desmaiam e
atribuem o fato, com freqüência, a ações malfazejas realizadas por grupos de foliões e
palhaços rivais. Por esta razão, muitos são os preparativos que um palhaço deve realizar
antes de se fardar e sair numa folia, como mencionado anteriormente. No dia 6 (dia de
Reis), Élcio costuma realizar um ritual especialmente dedicado aos palhaços para dar
início à jornada. Conforme testemunhei, nesse ritual os palhaços devem aproximar-se
da bandeira, de joelhos e sem as máscaras. À sua frente os palhaços acendem velas e as
colocam dentro de copos localizados no chão. As velas permanecem junto de copos
d’água, próximos ao altar, até o retorno dos palhaços ao fim da jornada, quando estes
devem novamente se aproximar da bandeira e retirar os restos de cera contidos nos
copos. Preces e leituras são também realizadas ao longo desse ritual.
Figura 34. Palhaço Guerreiro acendendo velas diante do altar em preparação ritual. Contrariamente às
velas acesas para a bandeira, estas se localizam no plano inferior do chão.
158
Percebe-se por que razão os palhaços foram o alvo da mira das armas como no
caso relatado. Há também na figura do palhaço não só algo de profundamente
ameaçador da ordem, mas uma fonte de possibilidades criativas, de poder, e é isso que
parece torná-lo tão desconcertante. A máscara, os gestos e o riso denunciam esta
natureza e apontam para seu caráter criativo. Como propõe Turner (2005), a
liminaridade nega todas as asserções estruturais positivas, sendo, de certo modo, sua
fonte. Constitui-se assim, como um “reino da pura possibilidade do qual novas
configurações de idéias e relações podem surgir” (: 141). Aqui aparece com clareza o
lugar essencial desta criatividade nos rituais. Como aponta Valeri (1994):
“sem querer negar a existência de aspectos comunicativos no ritual e o fato de
que reflete crenças, o rito não aparece principalmente como um código para
transmitir mensagens preexistentes, mas como um mecanismo que permite obter
informação nova. Trata-se em suma, de um agregado potencialmente criador de
conhecimento” (: 345).
Esta dimensão criativa e experiencial diz respeito diretamente aos aspectos
lúdicos e interativos que aparecem no ritual, contribuindo para a construção da
realidade. Estou me referindo ao que foliões e devotos denominam como a brincadeira
do palhaço, um momento particularmente importante desse sistema.
5.2 A brincadeira do ‘palhaço’
A brincadeira do palhaço é um momento bem marcado em relação às demais
ações rituais da folia de reis, sendo detentora de certa autonomia. Não é obrigatória,
podendo mesmo não se realizar. Ao dono da casa visitada é atribuída total autoridade
para decidir quanto à realização e duração da brincadeira. Inversamente, ela nunca se
realiza sem que a folia tenha primeiro cantado. O palhaço encontra-se submetido à
autoridade do dono da casa, e isso é demonstrado inclusive no tratamento dispensado a
este, que é chamado respeitosamente de patrão. Daí em diante, o mestre da folia não
comanda os acontecimentos que se desenrolam na interação entre palhaço, dono da casa
e público. Todos os pedidos de licença do palhaço para a entrada na casa ou em outro
espaço reservado à brincadeira são dirigidos ao dono da casa (patrão ou patroa).
O palhaço se exibe como se estivesse numa arena, de modo que certos aspectos
da apresentação também a aproximam de uma cena teatral, onde a dimensão da
159
expressão e do entretenimento aparece com grande destaque
152
. Esta dimensão não é
exclusiva deste momento ritual, já que está também presente em outros domínios,
especialmente na elaboração musical, que, como apontei anteriormente, assume um
lugar central nos rituais aqui apresentados. Mas este aspecto da exibição se revela com
clareza na relação entre o palhaço e público. Trata-se de uma relação performativa, uma
relação complementar e interativa. Não há apresentação sem público e este muitas vezes
assume papel ativo nela, expressando emoções, dialogando com o palhaço, tecendo
comentários e avaliações etc.
O palhaço declama versos de memória ou de improviso, de acordo com as
circunstâncias do momento, denominados chulas. Seu caráter é fortemente cômico,
sarcástico, tendo muitas vezes o público
153
, e mesmo o próprio dono da casa, como alvo
de suas ironias. Ocasionalmente, os versos podem ser proferidos de modo mais sério,
apresentando conteúdo moral, exigindo às vezes que se retire a máscara ao se tratarem
de temas religiosos, o que evidencia mais uma vez sua ambivalência. O palhaço, sem a
sua máscara, pode ocasionalmente declamar versos diante da bandeira, como se
estivesse diante de um presépio. Na maior parte dos casos, contudo, o palhaço se
apresenta mascarado, exigindo certos cuidados para evitar demasiada proximidade com
a bandeira.
Sua apresentação se desenrola em intensa interação com o público e com os
familiares da casa. Seu jogo está em divertir os espectadores e conseguir tirar proveito
do dinheiro ofertado pelos presentes, que é jogado no chão para ser apanhado e
colocado no embornal
154
, sacola de pano que carregam para este fim. Os ganhos, assim,
dependem de uma negociação permanente entre palhaço e público, na qual se trocam
versos ou bailados por dinheiro. São quase obrigatórios versos envolvendo o tema do
dinheiro, como os que se seguem:
152
Diversos autores tentaram uma aproximação entre teatro e antropologia, propondo teorias sobre ritual.
Entre eles deve-se citar Turner (1962, 1974), Taussig (1991), Schechner (1985, 1988), Dawsey (2005)
entre outros. Nestas discussões se articulam conceitos como os de “drama social” e “performance”,
mostrando-se eventualmente úteis para a análise da brincadeiras dos palhaços.
153
Observo que o público normalmente formado através de redes de vizinhança e parentesco pode vir a se
ampliar significativamente quando a apresentação se em contextos extralocais, como no caso dos
festivais folclóricos. De qualquer modo, a distinção entre “públicos integrais” e “públicos acidentais”
proposta por Schechner (1985) mostra-se aqui relevante. Para ele, os “integrais” seriam aqueles que
mantêm alguma afinidade com o performer ou aqueles que pertencem à mesma rede de relacionamentos
sociais. O que importa aqui é que o público mais freqüentemente familiarizado com este tipo de
performance compartilha códigos e é capaz de interagir de modo mais envolvente com o evento.
154
O embornal do palhaço Gigante traz um emblema de Salomão. Gigante não soube explicar por que
este emblema, mas sugeriu que seria para purificar o dinheiro recebido ao longo das apresentações.
160
O moço tá me chamando
pra me dar é dois real
dinheiro na sua mão
eu creio que não é legal
vai ficar mais bem guardado
quando eu botar no embornal
(Palhaço Criolo, Bom Jesus – MG, 2004)
Como mencionei anteriormente, o palhaço anuncia sua chegada, pedindo licença
ao dono da casa para entrar no recinto. Ao seu redor forma-se um grande círculo de
espectadores atentos. O clima é de descontração, em contraste com o ambiente criado
em torno dos rituais da folia no interior das casas, mais sério e solene. A performance
evolui criando um envolvimento entre os participantes e influenciando o
comportamento e as ações de ambos: palhaço, dono da casa e público.
Figura 35. Palhaço Guerreiro recolhendo moedas durante sua apresentação.
Os versos são ditos de forma particularmente expressiva comportando variações
nas articulações vocais, entonações, intensidade, tempo e timbre, acompanhados de
gestos
155
. É possível reconhecer o palhaço pela maneira de dizer os versos, por seu
“estilo”, independentemente até de seu conteúdo semântico. Há no palhaço toda uma
155
Chamo aqui a atenção para os modos como se utilizam as linguagens verbal e corporal (FINNEGAN,
1992).
161
caracterização que não se limita à farda e à máscara. O conjunto de elementos cria
efetivamente um “outro”, um “duplo”, através de processos conscientes. A
performance, assim, permite um intercâmbio entre personalidades. Também o público
participando e compartilhando um conjunto de convenções, de certa forma experimenta
papéis não-usuais, tornando-se também liminar (SILVA, 2005).
O palhaço segue sua brincadeira controlando a orquestra de instrumentos de
percussão e sanfona, interrompendo-a com exclamações verbais e solicitando que
reinicie o toque, com a expressão: “vai, sanfoneiro!”. Durante o tempo de execução
instrumental, o palhaço elabora mentalmente os versos e suas rimas fonéticas. Através
dos versos, revela-se outra dimensão de grande importância para alguns palhaços: sua
autoria. Muitos palhaços vêem-se como “poetas”, autores de versos originais que
passam a incorporar ao seu repertório. Assim, os palhaços vão construindo um caminho
de reconhecimento e autoridade no que fazem.
Nem sempre os versos são improvisados, e mesmo um bom improvisador nunca
conta unicamente com esta difícil forma de versar, mesclando trechos memorizados de
variada procedência. Os temas das chulas são muito variados: crônicas políticas, fatos
cotidianos ou extraordinários, biografias, consumo de bebida, futebol, sedução de
mulheres, louvação de santos, morte, vida extraterrena, etc. A literatura de cordel
costuma ser uma fonte muito utilizada, já que se apresenta na forma de versos rimados.
No Rio de Janeiro, os palhaços são influenciados pelo calango
156
, outra forma peculiar
de se versar. Em alguns casos mais raros, os palhaços podem criar seus versos de forma
dialogada, numa assumida disputa, à semelhança dos cantadores de repente. Esta
modalidade é mais comum quando se apresentam em festivais folclóricos. Nesta forma
de improviso os concorrentes rivalizam-se, procurando ganhar a preferência do público
e às vezes de um júri, com vistas a conquistar certo prestígio e mesmo um prêmio.
Freqüentemente, espectadores, foliões e palhaços consomem bebidas alcoólicas,
apesar da imposição de limites que é feita pelo mestre ou por outros foliões. A bebida é
mais tolerada durante a apresentação do palhaço ou quando é oferecida no interior de
uma das casas visitadas. Tenho observado que o álcool é potencialmente poluidor,
dependendo dos usos que se fazem dele, bem como de sua relação com o contexto.
Desejada por uns, rejeitada e controlada por outros, a cachaça muitas vezes é motivo de
forte conflito e também é tema sempre presente nas chulas.
156
Forma poético-musical de improviso difundida pelo interior do Estado do Rio de Janeiro.
162
Me dá as prata tudo, dona
Pra nós ficar contente
Mas eu vou te dá um conselho
Sendo você inteligente
Toma juízo, minha senhora
Pára de beber aguardente
Isso tudo é brincadeira, dona
Nós não vamos ficar sem graça
Que eu sô filho do Fumacinha
E sou neto do Fumaça
Você me dá o dinheiro
Eu não vou fazer pirraça
Quando o dia amanhecer
Nós bebe tudo de cachaça
(Palhaço Criolo. Bom Jesus - MG, janeiro de 2004)
Nos exemplos até aqui apresentados, vê-se que os versos não seguem regras
rigorosas quanto ao número de pés e sílabas, sendo a quadra e a sextilha (modalidade
também muito utilizada no repente) as formas mais utilizadas. A análise de um conjunto
significativo de versos de diferentes palhaços e seus depoimentos não permite
estabelecer parâmetros precisos quanto aos modelos poéticos. O que se verifica como
uma constante é que, ao longo da brincadeira de um palhaço, as rimas vão mudando ao
sabor da vontade de quem as cria.
Quem é bom já nasce feito,
Eu tento fazer o que pode
Me dá licença meu povo
Que eu tô dentro do pagode
Você vai me dar os dois real
Eu posso falar do seu bigode?
Eu gostei do seu bigode, meu filho
Porque ele é uma coisa correta
Tem duas curvas no meio
Tem outra curva na reta
Você parece que engoliu
Três guidões de bicicleta
(Palhaço Criolo, Bom Jesus-MG, 2004)
Verifica-se também, com certa freqüência, o uso de expressões grosseiras e
palavras injuriosas que caracterizam a linguagem familiar da praça pública de que fala
Bahktin (1993). Como sugere o autor, “A linguagem familiar converteu-se, de certa
forma, em um reservatório onde se acumularam as expressões verbais proibidas e
eliminadas da comunicação oficial” (: 15). Também caracterizam, em larga medida,
163
muitos dos versos declamados pelos palhaços, referências ao que Bahktin chamou de
“princípio da vida material e corporal”, entendido como uma das dimensões expressivas
da comicidade popular da Idade Média. Nele estão incluídas “imagens do corpo, da
bebida, da comida, da satisfação de necessidades naturais e da vida sexual. São imagens
exageradas e hipertrofiadas” (: 16). Ao lado desse sistema de imagens, o riso é também
um veículo expressivo dominante, que por muito tempo foi condenado e associado ao
pecado, tornando-se tema de acalorados debates teológicos, especialmente no período
medieval
157
. Como nota Bakhtin (1993), desde tempos remotos do cristianismo, Deus
foi caracterizado como aquele que não ri, em oposição ao seu inimigo que ri. Importante
salientar que este riso popular se distingue do riso moderno, puramente satírico,
negativo, degenerador, como também sugere o autor. O cômico popular, por sua vez, é
regenerador, ambivalente, vindo expressar uma concepção de mundo em permanente
renovação (: 11).
A comicidade, aliás, não é exclusiva do palhaço de folia de reis, e está presente
em numerosos folguedos populares e em narrativas orais e escritas nos mais diversos
tempos e lugares. Vamos encontrá-la com uma força particularmente expressiva na
cultura popular da Idade Média e do Renascimento europeus, entre bufões, mascarados
e bobos, bem como na literatura de François Rabelais, Lope de Vega, Miguel de
Cervantes e outros. A cultura cômica daquele período, que caracteriza uma face da
cultura popular em contraste com a seriedade da cultura oficial, como bem revisada por
Bakhtin (1993), parece ter se multiplicado numa diversidade ilimitada de formas, que
revelam nos tempos de hoje notável vitalidade. Percebem-se traços desta comicidade no
palhaço de folias de reis, no cazumba do bumba-meu-boi maranhense, no Clóvis do
carnaval carioca, no Mateus do cavalo marinho, como também em alguns personagens
do fabulário universal como Malasartes, ou ainda em seus variantes: Pedro Quengo e
João Grilo, do romanceiro popular brasileiro. A lista poderia ainda se estender, mas o
fundamental é notar que tais tipos parecem compartilhar uma natureza comum,
mantendo entre si relações de parentesco pelo caráter cômico, burlesco, astuto, marginal
e por vezes briguento de seus personagens. Como nota DaMatta:
“se aceitamos o fato de que as sociedades são diferentes porque em cada
formação social um certo número de dramas é levado regularmente a efeito,
podemos argumentar que, se temos dramatizações regulares, também deveremos
ter personagens recorrentes. ” (1997: 251-252).
157
Este debate aparece de forma exemplar no romance “O Nome da Rosa” (ECO, 1986).
164
A brincadeira avança noite adentro, já que uma folia pode ter vários palhaços e
todos desejam se apresentar. Muitos destes são jovens e até mesmo crianças, mas
raramente mulheres
158
. No município de Valença e imediações da região do Médio
Paraíba, as folias costumam ter grande número de palhaços, algumas vezes
ultrapassando a marca dos 30, embora nem todos versem. Em outras regiões, porém, o
mais comum é uma folia apresentar dois ou três palhaços.
Depois de longo tempo de declamação dos versos, cada palhaço costuma
realizar, como se diz, a parte feita no pé. Durante esta prática, arrasta-se no chão, dança
de cócoras, realiza saltos, cambalhotas, piruetas etc.
159
. Já cansado, visto que esses
movimentos demandam grande esforço físico, o palhaço então pergunta ao dono da
casa se está satisfeito, e a resposta esperada é sempre negativa, com a expressão, “mais
um gole”. A pergunta se repete várias vezes, entremeada por versos ou dança, até que
finalmente o dono da casa se diz satisfeito e concorda em encerrar a apresentação.
Eu vou dar minha despedida
Como deu o urubu
Eu comi a carne toda
E deixei o osso pra tu
(Palhaço Guerreiro. Parque Candelária, Mangueira – RJ. Dezembro, 2004).
Depois dos versos de despedida, o conjunto instrumental costuma executar um
ritmo valsado e lento denominado de mazurca, a pedido do dono da casa.
Ocasionalmente o palhaço convida uma espectadora para a dança, o que também é
motivo de risos.
Como já mencionei anteriormente, as rivalidades agonísticas fazem parte destes
rituais. Palhaços podem ainda ter seu conhecimento testado pelo público e o mesmo se
aplica aos mestres, e isso coloca em evidência o fato de ambos se singularizarem em
função de sua autoridade, como sinalizei. Testemunhei, certa vez, um espectador cruzar
duas notas de dinheiro e colocá-las no espaço reservado à brincadeira do palhaço
Criolo, no chão do quintal da casa de um devoto em Laranjal, MG. Ao sinal deste gesto,
o palhaço retirou sua máscara, ajoelhou-se diante das notas de dinheiro e iniciou uma
longa série de versos com passagens bíblicas remetendo ao episódio em que Judas teria
traído Jesus por 30 moedas de ouro. Os versos foram ditos com extrema seriedade e
158
A justificativa para a ausência de mulheres em folias de reis baseia-se no fato de que os Magos eram
homens. Mesmo em folias onde a presença de mulheres é maior, elas não assumem a função de palhaços,
com raríssimas exceções.
159
Para uma descrição detalhada, ver Bernardes, (2004).
165
certa eloqüência e somente ao final, o dinheiro pode ser descruzado e retido pelo
palhaço. Os últimos versos ditos naquela madrugada, seguidos de uma salva de palmas
foram os seguintes:
Oh meu pai todo poderoso
Que este servo seja perdoado
Que um homem em consciência
Não põe o dinheiro cruzado.
Lembras que a cruz
É um símbolo abençoado
Lembras que o dinheiro
Foi o fruto do pecado
Que o Pai lhe perdoe
Lá do seu trono de luz.
Salve meus irmãos
Não ponha o dinheiro em cruz
Lembras que foi por dinheiro
Que Judas traiu Jesus
Já saldei sua cruz
Ouça lá meus companheiros
Onde foi crucifixado
O bom Jesus verdadeiro
Foi numa cruz de carvalho
E não numa cruz de dinheiro
Foliões denominam estes gestos de amarrar o dinheiro, ou seja, prendê-lo até
que sejam ditos os versos adequados. Aqui evidencia-se mais uma vez a dimensão
agonística que atravessa o ritual, especialmente nos momentos de interação com o
público. Também a bandeira pode ser apropriada para este tipo de manipulação, quando
se deseja que uma folia permaneça por mais tempo dentro de uma casa, conforme me
relataram informantes. Neste caso, o alvo é a autoridade do mestre, incitado a revelar
domínio sobre o conhecimento ritual, sob o risco de ser desmoralizado.
Em alguns casos, estas rivalidades podem assumir formas extremamente
dramáticas, envolvendo sentimentos de orgulho. Élcio conta que havia dois palhaços
em Mangueira, Altevero e Deca, e que o primeiro era considerado unanimemente como
melhor em suas apresentações, revelando excelente domínio da palavra. Sua
166
superioridade se evidenciava ainda mais quando ambos se apresentavam no mesmo
contexto. Numa dessas ocasiões, Altevero teria dirigido publicamente versos
depreciativos direcionados a Deca, atingindo sua imagem e auto-estima. Tal fato levaria
Deca a rogar uma praga contra seu adversário, num gesto vingativo. De acordo com o
relato, Altevero teve um derrame cerebral pouco tempo depois, ficando gradualmente
mudo e sem movimentos. Ainda assim, ele teria tido tempo de revidar o gesto contra
seu agressor. Enquanto Altevero definhava pouco a pouco, Deca entregou-se à bebida e
abandonou a função de palhaço, morrendo poucos dias depois de Altevero.
O episódio narrado deve ser compreendido à luz de uma concepção de mundo
que relaciona diretamente coisas, pessoas, lugares e eventos, conforme já assinalei em
outros momentos em que analisei casos semelhantes. Devo mais uma vez enfatizar que,
nesta percepção do cosmos, uma dimensão “invisível” é largamente co-extensiva às
outras dimensões visíveis e tangíveis. Desse modo, rogar uma praga, como dizem, é
um gesto que, inserido em determinado contexto, produz efeitos. A rivalidade, a disputa
por reconhecimento, autoridade e prestígio, dentro e fora da folia, o surgimento e
intensificação de certos sentimentos e emoções subjetivas, bem como as atitudes morais
constituem este pano de fundo para a manipulação consciente de forças,
convencionalmente reconhecidas como eficazes. Os destinos desses palhaços são,
assim, entendidos pelas pessoas que os rodeiam como um testemunho do poder de
manipulação destas forças ou do resultado da ação de forças supramundanas que
acabam por engendrar um sistema de controle e coerção social. Em se tratando de
palhaços, com toda a ambigüidade manifestada nas representações que lhes são
atribuídas, compreende-se como estes fatos ganham uma realidade concreta dentro deste
sistema de idéias.
Por fim, todas essas características contribuem para desenhar o palhaço como
uma personalidade extremamente complexa. Constitui-se aqui uma concepção
expansiva de self e de corpo
160
. Se o palhaço é, por um lado, uma espécie de
“personagem” simbólico representado através de certos caracteres psicológicos, formais
e dramáticos; por outro, extrapola suas fronteiras, evidenciando muitas outras
dimensões de sua “pessoa”. Em outras palavras, o palhaço é muito mais que um
“personagem”, deixando entrever um self expandido.
160
Noção de considerável importância nas discussões antropológicas, assumindo diversas nuanças.
Alguns autores que abordam a categoria merecem ser citados: Mauss (2003), Turner (2005), Douglas
(1976) e Csordas (1990), entre outros.
167
5.3 O ‘palhaço’, o corpo e a pessoa
Três palhaços encontravam-se em Mangueira a desfiar conversas no intervalo
entre as visitas. Gigante, Ailton e Feijão com 68, 35 e 8 anos, respectivamente, cada
qual representando sua geração. Estavam fardados, mas sem as máscaras, descansando
à sombra do telhado de uma casa. Gigante dominou a conversa assumindo naturalmente
o papel de conselheiro, especialmente para Feijão, um aprendiz de palhaço. Parte da
conversa se deu como aqui reproduzo.
“E então, como é você se sente nesta arte? Tá gostando? – Tô. Então, te
aconselho a continuar assim, sempre aprendendo alguma coisa. (...) Não é por
qualquer coisa que você vai querer abandonar isso. Só se for por um caso muito
grave. Mesmo assim não te aconselho. Já que você vestiu a farda, já brincou,
então você tem que completar seus 7 anos... Aí, depois se você não quiser
mesmo, aí sim... Mas completa os 7 anos porque tá dentro do esquema. Porque
muitos que param... Mesmo que não aconteça com ele, vai acontecer com um
familiar dele. Ele vai sofrer também. Acontece com um irmão seu, um pai seu...
Você vai sentir. Às vezes você não sabe porque aquilo tá acontecendo. Foi algo
que você deixou de fazer antes. Ou algo que você não completou. Porque a
gente tem isso como uma missão”.
As palavras de Gigante deixam entrever a natureza obrigatória do exercício da
função do palhaço. Esta vinculação do palhaço ao universo folião se dá através do
fundamento. Uma pessoa torna-se um palhaço muitas vezes em decorrência do
pagamento de uma promessa feita aos Magos e, uma vez tendo se iniciado nesta prática,
deverá assim permanecer por pelo menos sete anos, sob o risco de ser severamente
castigado por seres imaginários, espíritos e divindades, de acordo com o sistema de
crenças. Conforme me relatou o mestre Élcio, palhaços podem ser chicoteados por seres
invisíveis ou mesmo desaparecer misteriosamente, e a explicação para este fato é
sempre atribuída a comportamentos inapropriados, como o consumo excessivo de
bebidas alcoólicas na hora errada, o não-cumprimento de certas regras, o abandono da
função de forma negligente, o descuido com a máscara e outros pertences etc. Por outro
lado, seguir à risca os preceitos ensinados pelos mais velhos é a garantia de proteção e
bênçãos dadas pelos Magos, santos e espíritos dos antepassados.
Estes aspectos aparecem nas palavras de Gigante acima reproduzidas. Surge aí
também a noção de missão, que poderia se traduzir na idéia de obrigação ou ainda de
algo assumido de modo prioritário e de forma inegociável. Não se discute uma
obrigação, apenas cumpre-se-a ou não. Essa obrigação se liga à idéia de que o destino
dos palhaços, sua sina, lhes é reservado por certas divindades. Vejo semelhante situação
168
quando Humberto diz que tocar sanfona foi um presente dos Magos e que, em
retribuição, sente-se obrigado a tocar o instrumento, se possível, pelo resto de sua vida.
Trata-se de um dom dos santos, cujo recipiendário será obrigado a aceitar e retribuir de
forma determinada. Para Humberto, assim como para o palhaço que aceita o dom, este é
um marco fundador da reciprocidade com os santos.
Tanto o palhaço quanto o folião se inserem num contexto social e cosmológico
de reciprocidades morais. Pensar o lugar do palhaço na folia através da dicotomia
sagrado/profano parece inadequado, visto que ambas as dimensões estão largamente
imbricadas na experiência concreta do palhaço, e muitas vezes de modo difuso. Como
tenho sugerido ao longo do texto, a experiência do “sagrado” precisa ser mediada e isso
é feito de variados modos, inclusive através das formas convencionalmente classificadas
exteriormente como “profanas”, como, por exemplo, a festa, a música, a comida, a
bebida etc. Devemos considerar os diversos pontos de vista a partir dos quais estas
noções são delimitadas. Creio mesmo que a própria noção de fundamento, que está em
estreito contato com o “sagrado”, atravesse o palhaço tanto quanto a bandeira.
Assumir a função de palhaço é, nesse sentido, comprometer-se a cumprir regras,
preceitos e normas. Foliões também encaram sua função como uma obrigação, mas no
caso do palhaço esta dimensão ganha tom bem mais dramático. Creio que isso se dê
porque os palhaços lidam com forças perigosas. Assim, estas obrigações assumem uma
dimensão existencial, permeando em grande medida a totalidade dos papéis sociais
através dos quais se desenha determinada concepção de pessoa. É possível que o
exercício da função de palhaço, com todos os seus comprometimentos, venha mesmo
influir de forma predominante na constituição de seu self, de sua maneira de ser e de se
perceber no mundo.
Luciana Gonçalves de Carvalho (2005) percebeu entre brincantes cômicos do
bumba-meu-boi maranhense, através de suas narrativas orais, o modo como a identidade do
personagem Pai Francisco se expande para
outras dimensões sociais da pessoa. A autora
sugere que a própria narração autobiográfica desses brincantes, assumida como um
projeto de individuação, é uma estratégia importante de delineação deste self e de sua
inserção no universo multifacetado do bumba-meu-boi e mesmo na sociedade mais
ampla.
Creio que a categoria missão parece apontar para os aspectos apontados. Desse
modo, entre os vários papéis sociais exercidos pela pessoa, o de palhaço é talvez o que
melhor lhe permite perceber a necessidade de se conectar com a sociedade através de
169
laços morais de reciprocidade, laços totais, no sentido maussiano da palavra. Através
desses laços, o palhaço liga-se, compromete-se, não somente com os homens, mas
também com as divindades, com os espíritos dos antepassados. Em outras palavras, o
palhaço se encontra mergulhado em uma teia de relações cosmológicas, e seu self deve
igualmente ser compreendido à luz deste ponto de vista. A noção de pessoa que se
esboça aqui encontra-se, assim, necessariamente conectada à totalidade social
(DaMATTA, 1997). Como escreve Douglas, ao refletir sobre a concepção de “eu” em
certas sociedades, com base em diversas etnografias realizadas em “sociedades
tradicionais”:
“Podemos agora ver que o eu não está claramente separado como um agente. A
extensão e limites de sua autonomia não estão definidos. Logo o universo faz
parte do eu num sentido complementar, visto do ângulo da idéia do indivíduo,
desta vez não da natureza, mas dele mesmo” (1976: 104-105).
Nesta perspectiva, não apenas a pessoa se confunde com o grupo, no sentido em
que tem seus limites difusos, como também seu próprio corpo, em certa medida, se
estende a outros domínios. O que se desenha aqui é possivelmente uma noção extensiva,
complementar de pessoa e de corpo. Trata-se de um corpo inserido no mundo, em
contato íntimo com este. O corpo aqui, além de ser parte de uma totalidade, é também
um canal mediador entre o self e o mundo, entre homens, espíritos e divindades – enfim,
entre o “baixo” e o “alto”. Opera-se através deste corpo cósmico e universal aquilo que
Bakhtin chamou de rebaixamento, isto é, “a transferência ao plano material e corporal, o
da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e
abstrato” (1993: 18). A terra e o corpo, nesta perspectiva, são vistos como princípios de
absorção (morte) e ao mesmo tempo de nascimento (vida). Rebaixar, então, significa
aproximar do chão e das partes inferiores do corpo – ventre, genitais – concebidos como
potencialmente regeneradores.
O corpo também aproxima o “sagrado” do “profano”, ou melhor dizendo, rompe
suas barreiras. Nesta perspectiva, o fundamento, embora se origine de um plano
intangível, abstrato ou “invisível”, tende a se materializar nas mais variadas formas, não
apenas na festa, na comida, na bandeira, mas também no corpo. Aliás, o rito tem, entre
outras, a função de propiciar as condições materiais e sensíveis para a manifestação do
“sagrado”. Para manter contato com este domínio é necessário aproximá-lo da terra, dos
homens, do seu mundo mais prosaico e material. Este mundo é o mundo dos
sentimentos, das emoções, do riso, do prazer, da festa, enfim, dos fatos básicos da
170
existência. Nesta visão de mundo, as categorias “sagrado” e “profano” assumem sua
ambivalência potencial, enquanto noções superpostas, que ao invés de se oporem, se
confrontam permanentemente.
O corpo assume lugar de destaque nas brincadeiras do palhaço. Em suas
acrobacias, piruetas e cambalhotas, transforma-se numa linguagem expressiva.
Elaborando movimentos virtuosísticos, o palhaço leva seu corpo aos limites das
possibilidades físicas, tornando-o objeto de exibição. Produz-se aqui uma espécie de
objetificação do corpo. Diante dessas idéias, é interessante observar etnograficamente o
que os palhaços tendem a fazer com seus corpos. Eles, quando não estão em
apresentação, sentam-se, deitam-se ou espalham-se freqüentemente no chão, nas ruas,
atitude não permitida aos demais foliões. Em suas brincadeiras, arrastam-se ou rolam na
terra, misturando-se a ela. Durante os rituais, os palhaços caminham de joelhos e,
deitados com o ventre colado ao chão, são benzidos. É também no chão que se dá, na
maior parte dos casos, o acendimento de velas para os anjos da guarda dos palhaços.
Tudo isso ganha significação particular quando se observam, sob contraste, os
usos do corpo associados à bandeira. De início noto que a bandeira jamais toca o chão
e os movimentos realizados pela bandeireira são de uma leveza tão sublime que dão a
ilusão de que a bandeira é dotada do poder de levitação. Os movimentos são suaves e
tendem a ser ascendentes. O corpo é rigorosamente adestrado para tal função, exigindo
aprendizado, treinamento e, sobretudo domínio do fundamento que atravessa esta
prática. O corpo aqui aparece como instrumento, tal como sugerido por Mauss na forma
de “técnicas corporais” (2003), sublinhando sua natureza social e coletiva. O que esse
contraste vem assinalar não é tanto uma oposição sagrado/profano, mas uma oposição
entre “alto” e “baixo”, enquanto categoriais “totais” que se estendem ao cosmos. Alto e
baixo são dotados de valor “topográfico”. Como escreve Bakhtin, “O ‘alto’ é o céu, o
‘baixo’ é a terra; a terra é o princípio de absorção (o túmulo, o ventre) e ao mesmo
tempo, de nascimento e ressurreição (o seio materno)” (1993: 18).
Como assinalei anteriormente, o corpo também desempenha a função de
mediador, alinhando-se a todas as coisas que compartilham esta capacidade. Histórias
de palhaços que entram em “transe” durante os rituais são numerosas. Nesta condição
os palhaços se tornam, de certo modo, “coisas” através das quais os espíritos se
manifestam e se tornam visíveis. Na perspectiva nativa, estas potências supramundanas
podem se manifestar tanto em objetos como em pessoas e, sendo assim, coisas e pessoas
compartilham algo de comum: são todas, em última instância, capazes de mediar a
171
relação entre domínios cosmológicos. Assim, não importa tanto se aquilo que vai
mediar esta relação fundamental seja uma coisa, um objeto, um corpo ou uma pessoa.
Em verdade, todas elas se tornam, de certo modo, pessoas. Não estou aqui reafirmando
uma mentalidade pré-racional incapaz de distinguir claramente entre coisas, pessoas e
outras categorias fundamentais. Como propõe Godelier a este respeito:
“Afinal, nesse mundo não existem mais ´coisas´, não há senão pessoas que
podem revestir a aparência ora de seres humanos, ora de coisas. (...) A natureza,
o universo inteiro não é mais composto senão de pessoas (humanas e não
humanas) e de relações entre pessoas. O cosmos torna-se o prolongamento
antropomórfico dos homens e de suas sociedades” (2001: 160).
O ponto aqui é perceber a dimensão complementar da relação entre pessoas e
coisas e entres estes e as forças impessoais que agem sobre o mundo. O foco está,
portanto, na mudança, no incessante intercâmbio de status entre coisas e pessoas. Nessa
direção, Douglas propõe:
“Por mais impessoalmente que as forças cósmicas possam ser definidas, se elas
respondem a um estilo de tratamento pessoa a pessoa, a sua qualidade de coisa
não está plenamente diferenciada de suas personalidades. Elas podem não ser
pessoas, mas não são, tampouco, inteiramente coisas” (1976: 107).
É o que se verifica também com os significados da máscara e da farda dos
palhaços, seres liminares e ambíguos, como já foi adequadamente assinalado. Estes
objetos são cercados de regras, prescrições. São objetos de evitação, pois causam
contágios e poluições a quem deliberadamente os toca. A farda e a máscara são, por
outro lado, indissociáveis de seus proprietários, meios eficazes para a realização de
procedimentos “mágico-religiosos”, e por esta razão devem ser cuidadosamente
resguardados. São objetos “impuros”, visto que são como que “margens corporais”,
sujeitos a produzir contaminação desencadeada pelas ações humanas. Nesta perspectiva,
todos estes objetos fortemente ligados à experiência e ao corpo tendem a ser vistos
como extensões morais e sociais de seus usuários, de modo semelhante como o são os
braceletes e colares, no caso clássico do Kula (MALINOWSKI, 1976). Nesse sentido,
vale ainda acrescentar que quando um palhaço morre, freqüentemente, sua farda e
máscara são considerados despojos, que precisam ser eliminados adequadamente. Isso é
feito pela família, que costuma mergulhá-los num rio para que a água os leve, sem
deixar nenhum rastro de sua presença.
Existe, evidentemente, uma distinção na maneira como o sujeito se percebe
quando fardado e mascarado no contexto da folia de reis, e em todos os outros contextos
172
em que se encontre sem a farda e a máscara. Fardar-se e assumir o papel de palhaço é
um ato realizado de forma ritualizada e, portanto, de modo bem marcado, como um
“rito de passagem”. Estas fronteiras formais, contudo, não contrariam a idéia de que
viver o papel de palhaço não se esgota ou não se limita à sua concretização ritual, como
apontei anteriormente. O que parece se evidenciar é que esta prática se articula aos
demais papéis assumidos pelo sujeito nos mais diversos contextos. Fardar-se como
palhaço é um ato que produz reflexos na vida diária do sujeito que se lança a esta
prática. É preciso também enfatizar que o exercício da função de palhaço se estende a
um conjunto de práticas, tais como criar e escrever versos e confeccionar máscaras.
Todas estas práticas se ligam diretamente às ações rituais do palhaço de modo
extensivo. É neste espaço também que se desenvolve a idéia de autoria. Palhaços
distinguem com certa clareza aqueles que criam seus versos daqueles que apenas os
memorizam, e este aspecto parece também influir no prestígio que alguns conseguem
alcançar. Tornar-se palhaço não implica apenas comprometer-se com as obrigações,
mas também aprender um corpo de conhecimentos.
Ao lado da autoria, outro aspecto se destaca na personificação do palhaço: este é
o único integrante da folia de reis que recebe um nome pelo qual se identifica, como
Ventania, Corisco, Trinca-ferro e outros. Como bem notou Mauss (2003), tanto a
máscara como o nome são elementos usados para a personificação em numerosas
culturas. Em alguns contextos, como entre os Kwakiutl, um mesmo indivíduo recebe
diversos nomes ao longo da vida, que acompanham as mudanças sociais, de status ou de
posição. O autor revela também que a máscara, entendida como imagem superposta,
está de fato na origem da noção de “pessoa”. A categoria “pessoa” vem, muito
provavelmente, de persona, que significa máscara que dá voz ao ator. Historicamente, a
origem da palavra se encontra na Roma antiga, onde as máscaras eram utilizadas nos
rituais fúnebres e nos enterros, sinalizando a importância do morto.
Todo esse conjunto de características contribui para a personalização do
palhaço. Creio também que o modo como os palhaços narram sua própria trajetória,
organizando sua experiência, leva à formação de uma identidade fortemente vinculada
ao próprio exercício da função do palhaço. Constitui-se, assim, um self, que em grande
medida tem na função de palhaço, seu eixo organizador, a partir do qual se percebe e se
experimenta subjetivamente uma identidade.
Gigante, assim relata seu início na função de palhaço:
173
“Havia uma folia aqui na Rua Aimoré, quando vim morar. Tinha uns mineiros
por ali. Sempre ouvia eles baterem caixa. Uns dois anos depois, comecei a subir
pra lá e ia atrás, escondido dos meus pais. No dia seguinte chegava em casa,
levava um pau. Mas no ano seguinte lá estava eu de novo. No Natal, eu deixava
tudo pra trás, comida, rabanada, e ia pra lá. Mas sempre a parte maternal é
mais caridosa. Dizia minha mãe: – Não faz isso com ele não, meu velho. Deixa
o menino. Aí quando chegava a época de Reis, eu pegava uns moleques aí,
arrumava umas latas, ia na obra pegar papel de cimento, fazia tambor... E
arrumava uma folia de criança. E eu sempre queria ser palhaço. No outro ano a
gente botava a folia na rua, pedia o dinheiro, depois fazia a nossa festa,
comprava doce. Aí um moço viu a gente, ficou interessado e começou a tocar
viola com a gente. Porque nós só cantávamos um verso, não sabíamos mais. De
tardinha saíamos e 22h já voltávamos pra casa. Uma vez, na outra folia, um
palhaço faltou. Aí entrei no lugar. Então o mestre foi bater na porta da minha
casa. Eu fui junto, tava com máscara. Aí meu pai – Ué, minha véia, esse é o
nosso menino que tá aí? Aí não teve jeito. Eles foram vendo que eu gostava
mesmo. Tiveram que apoiar”.
Gigante permaneceu seis anos sem brincar, até que, certo dia, foi atraído pelo
som familiar de uma folia, relativamente próximo de sua casa. Tratava-se da Folia
Estrela D’alva do Oriente, até então desconhecida para ele. Narrou para mim os versos
que contam a história de como, nesse momento conheceu mestre Teodoro e reiniciou
suas atividades como palhaço.
Portão estava fechado
Do lado de fora fiquei
- E mesmo sem farda, pedi licença e fui entrando e falando.
Tocaram a chula do palhaço
De lá de fora gritei
Pedindo para penetrar
Dada a licença entrei
Da porta avistei Teodoro
Com seu apito na mão
O círculo estava formado
Dentro daquele salão
Do apito ele fez
Um enredo
161
no chão
Aí eu contei-lhe uma história
Da bíblia sagrada
161
Trata-se de uma prova de fogo, à semelhança daquela que envolveu o palhaço Criolo diante do
dinheiro cruzado, em episódio anteriormente narrado.
174
Desmanchando aquele enredo
Diante da rapaziada
Ao terminar fui convidado
A participar da jornada.
Sábado e domingo
O ensaio é constante
Os componentes reunidos
Minha presença é marcante
E por causa dos meus pulos
Deram-me o nome de Gigante
O relato de Gigante revela uma identificação imediata com a folia e,
particularmente, com o personagem, quando diz: sempre queria ser palhaço. Mesmo
diante da resistência dos pais
162
, insistiu teimosamente em seguir seu caminho, até
mostrar que se tratava, de fato, de um compromisso vital para ele. Foliões relatam com
freqüência que, quando crianças, fizeram parte de folias mirins, imitando os mais
velhos
163
. A imitação é, pois, importante instrumento de aprendizado, de inserção no
grupo e está diretamente ligada à transmissibilidade dos conhecimentos envolvidos nas
práticas das folias de reis. É imitando que se aprende
164
. Como propõe Mauss (2003),
“A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados por
pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela” (: 405). Gigante tem
consciência de que é referência para muitos jovens que se iniciam nessa prática e que
procuram imitá-lo. Sua autoridade decorre de certo prestígio, pois como sugere Mauss:
“É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado,
provado em relação ao indivíduo imitador que se verifica todo o elemento social” (:
405).
Gigante diz ter começado a compor versos na forma de samba ou calango: Tinha
um grupo de carnaval aqui, o Unidos do Buraco. Verso pra folia foi pra mais tarde.
Tem uma maneira muito particular de criar versos, na qual se vale de múltiplas
162
Gigante declarou que seus pais tinham receio que ele se envolvesse com o personagem em razão das
histórias dramáticas que se ouviam.
163
Mestre Élcio também guarda memórias de quando participava de folias mirins. Estas memórias o
levaram a empreender uma oficina preparatória de foliões dirigida às crianças das comunidades
mangueirenses, com o apoio de uma ONG. O resultado do trabalho foi a constituição de uma folia mirim.
Como Élcio relata, a oficina compreendia atividades variadas, tais como apreciação de discos e filmes
sobre folia, aulas de música e de instrumentos musicais, movimentos corporais etc.
164
De acordo com minha experiência, posso testemunhar a este respeito, acrescentando que a imitação foi
fundamental para o meu aprendizado dentro da folia, no que tange à música, aos gestos e às regras.
175
referências, orais e escritas. Gigante dispõe de uma pequena biblioteca composta por
dicionários, livros de conhecimentos gerais e coletâneas de cordéis. Coleciona
fotografias e recortes de jornal referentes ao universo do palhaço e da folia de reis. Não
se considera tanto um improvisador e seu estilo é mais intelectualizado, lançando mão
de vocabulário mais sofisticado
165
. Seus versos são escritos e depois decorados para
serem ditos nas apresentações. Compõe seus versos à maneira de um bricoleur (LÉVI-
STRAUSS, 1976), colecionando restos, miudezas, fragmentos, completando-os e
recombinando-os numa nova composição. Assim opera também quando faz suas
máscaras. Como escreve o autor:
“a poesia do bricolage lhe advém, também e sobretudo, do fato de que não se
limita a cumprir ou executar, ele não ´fala´ apenas com as coisas (...), mas
também através das coisas: narrando através das escolhas que faz entre possíveis
limitados, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o
bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si” (: 37).
Figura 36. Palhaço Gigante. Teve seu trabalho registrado na coleção Documentos
sonoros do folclore brasileiro, nº 4, RJ. FUNARTE, 1977.
165
Peralta (2000) nota que, embora Gigante seja muito respeitado, pode não agradar muito determinado
público que espera palhaços mais acrobáticos e debochados.
176
Gigante está com 68 anos de idade. Trabalhou durante muitos anos como
pedreiro, mas é a sina de palhaço que o tornou conhecido, conferindo-lhe certo status.
É no papel de palhaço, portanto, que Gigante se integra ao grupo de foliões e ao mesmo
tempo se diferencia. É também na função de palhaço que ele aparece como um notável
“narrador” de histórias, no sentido que lhe dá Benjamin (1985), ou seja, de modo
profundamente colado à experiência.
166
Alguns versos de Gigante abordam com freqüência o tema da morte, da vida
após a morte, bem como da reencarnação, como notei entre versos de outros palhaços.
Nestes versos evidencia-se forte preocupação com a perenidade do trabalho criador para
além da vida terrena. Gigante costuma andar com um gravador de som portátil
registrando fatos, versos de palhaços ou mesmo suas próprias criações. Por intermédio
desses registros e de sua difusão, Gigante pensa perpetuar, de certo modo, sua vida e sua
“obra”.
Aconteceu com ele
Acontecerá a mim
E acontecerá a você
Quando a morte chegar
Não vou me esconder
Sorrindo apresento-me
Estou aqui sem temer
Digo adeus e vou embora
Pra outro lugar conhecer
Deixo algumas obras
Para o mundo inteiro ver
Vídeo tape, fita cassete
Pra quem quiser aprender
Arquivos nos jornais
Pros que gostam de ler
E nos livros escolares
Pra ninguém esquecer
Esta é a segunda vez
Que na Terra venho viver
166
Para esse autor, a narrativa é uma forma de comunicação artesanal. Nesse ensaio, Benjamin sinaliza as
condições histórico-sociais que teriam implicado o declínio da narrativa nos tempos modernos.
177
Ah, quem me dera
Se a terceira pudesse me acontecer.
Como se revela aqui, seus versos são uma extensão de sua pessoa e de sua vida,
um testemunho de sua passagem pelo mundo. É como autor, como palhaço, que
Gigante deseja permanecer e ser lembrado, pois é a prática que o distingue dos outros,
que o individualiza. Talvez Gigante esteja realmente ciente daquilo que Benjamin soube
muito bem expressar: “Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do
homem e, sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as
histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível” (1985: 207). O autor
supõe, assim, que um homem, na hora de sua morte, é senhor de uma autoridade
inquestionável, e assimna origem da narrativa estaria essa autoridade. Escreve ainda: “A
idéia de eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica” (1985: 207).
5.4 A ‘máscara’ cósmica
A produção e uso de máscaras faz parte da história cultural humana. Elas são
encontradas nas mais antigas civilizações: gregas, egípcias, asiáticas, pré-colombianas,
entre outras tantas. Estiveram fortemente ligadas ao teatro renascentista da Commedia
dell´ Arte, com seus personagens característicos, como o Arlequim, Briguela,
Colombina e outros, alguns dos quais popularizados no carnaval europeu.
Em Portugal e Espanha, as máscaras são os elementos centrais em um conjunto
de manifestações conhecidas por mascaradas (BAROJA, 2003). Particularmente em
Trás-os-montes, no nordeste de Portugal, aparecem personagens mascarados
denominados caretos, durante o ciclo ritual de inverno, do Natal ao Carnaval
(PEREIRA, 2001). A presença de máscaras é também notavelmente visível em diversas
regiões africanas e aponta para o intenso fluxo de objetos que rumaram deste continente
para os museus europeus, reclassificados como arte, no início do século XX
(CLIFFORD, 1998). Peter Junge, curador da exposição Arte da África (CCBB, Rio de
Janeiro / Brasília / São Paulo, 2004), observa que o uso de máscaras nas sociedades
rurais e reinos africanos pode estar associado a diferentes esferas da vida cotidiana.
Nesses contextos, desfiles e encenações de máscaras manifestam sistemas distintos de
educação, ensino, entretenimento, integração social, cultural e econômica, como
178
também de controle social, com suas funções judicial, punitiva e de regulação do poder
político.
A literatura etnográfica está ainda repleta de exemplos nos quais o uso de
máscaras é associado a ritos de passagem ou a ritos dedicados aos mortos e aos deuses,
como os celebrados entre as sociedades da costa noroeste da América do Norte e em
algumas sociedades indígenas brasileiras. O uso ritual revela sua vocação mediadora,
fazendo comunicar domínios antes considerados separados, como vivos e mortos,
homens e divindades, céu e terra, visível e “invisível”, natureza e cultura e assim por
diante. Merecem destaque alguns autores, como Boas (1911), Griaule (1938), Levi-
Strauss (1981) e Napier (1986), entre outros.
Em Via das máscaras (1981), Levi-Strauss empreende uma análise estrutural das
máscaras salish e kwakiutl, e o faz com base nos mitos que lhe dão origem. O autor
analisa os grupos de transformação dos mitos e põe em evidência certos aspectos
invariantes das máscaras de um determinado tipo, encaradas no aspecto plástico ou nos
mitos originários. Surgem, assim, invariâncias de cor, forma e nos elementos discretos
do objeto. Lévi-Strauss busca afinidades quanto aos usos, transmissibilidade e
significados semânticos, observando que as máscaras são a versão plástica dos mitos. A
conclusão, após longa análise das funções das máscaras nos grupos, é a de que, quando
“de um grupo para outro a forma plástica se conserva, a função semântica inverte-se.
Pelo contrário, quando se mantém a função semântica, é a forma plástica que se inverte”
(: 79). É preciso enfatizar, contudo, que Levi-Strauss não propõe uma teoria das
máscaras, implicando que outros objetos rituais relacionados aos mitos possam servir
de canais de análise.
O caráter profundamente ambíguo das máscaras é o que as torna fascinantes e,
de certo modo, poderosas. Esta ambigüidade é provocada pelo paradoxo contido na
idéia de que uma coisa ao mesmo tempo, é e não é. Isso se dá precisamente porque a
máscara produz uma ilusão, um disfarce, operando na esfera das aparências, das
convenções e no modo como são interpretadas. A percepção do paradoxo está, de certo
modo, relacionada com a aceitação de que coisas devem parecer o que não são. Como
sugere Napier:
“Our ability to accept this ambiguity is also fundamental to our recognition and
signification of change. (...) Our awarness of change is, thus, essencial for
resolving the ambiguity that is basic to paradox” (1986: 1).
179
Turner propõe, em suas observações sobre ritos de passagem entre os Ndembu,
que a máscara transforma o estado de seu usuário em algo próximo à personae liminar
(2005: 142). O autor observa que os neófitos freqüentemente usam máscaras e roupas
grotescas. Isso os ajuda a se tornarem marginais na fase liminar dos ritos. No caso dos
palhaços, ocorre que estas qualidades transitórias são assumidas como permanentes.
Em todos esses casos, o que parece caracterizar mais singularmente as máscaras
é seu poder transformador. Seu sentido pleno só pode ser alcançado quando vestido e
posto em movimento por uma pessoa, um brincante. Aliás, é preciso acrescentar que
quase sempre as máscaras estão associadas a uma indumentária que geralmente cobre
inteiramente o corpo. Tudo isso indica ser a máscara e a indumentária uma extensão do
corpo ou mesmo um "segundo corpo", um “duplo” da pessoa.
A máscara, portanto, em associação a outros elementos, é responsável por
produzir uma transformação radical da pessoa. Permite, como propõe Needhan (1986),
uma personificação seletiva operando com certos paradoxos reconhecidos. Esta
mudança é claramente perceptível e lida diretamente com a dimensão da aparência e da
ilusão, como disse anteriormente. A caracterização formal abre caminho para a
construção de um personagem, no sentido teatral da palavra. A primeira forma de
conhecimento do personagem é através de sua aparência. Esta mudança visual é
acompanhada de alterações no timbre e na entonação da voz, nos gestos e no andar. A
idéia de personagem “performático” aparece de forma viva para os palhaços quando
eles se percebem diferentes ao estarem fardados e mascarados. Ocultos pela máscara,
sentem-se mais à vontade para declamar versos debochados sem que sejam
reconhecidos. Trata-se, a meu ver, de uma construção consciente, criativa e bastante
personificada, mas é preciso enfatizar que seus sentidos não se esgotam na idéia de um
personagem teatral pura e simplesmente.
As máscaras usadas por palhaços de folias de reis apresentam-se com inúmeras
variantes. Utilizam materiais de origem animal, como couro de diversos tipos
(especialmente de capivara), crinas e presas, assim como materiais industriais, espuma,
espelhos, EVA etc
167
. Esses materiais são combinados entre si e são adquiridos no
comércio. Não detectei qualquer interdição ou prescrição de rituais com relação ao uso
167
Os materiais de origem animal têm sido rapidamente substituídos pelos industriais em função das leis
de proteção. Os dados etnográficos não me permitiram extrair conclusões sobre a significação desses
materiais. Em diversas ocasiões obtive informações de que a escolha e o emprego destes materiais se dava
pelo critério da disponibilidade.
180
desses materiais em entrevistas com informantes. Ressalto, porém, que, ao contrário da
bandeira, as máscaras e as fardas dos palhaços são freqüentemente confeccionadas
com materiais reaproveitados. Este aspecto aponta para outra característica da
“materialidade” da máscara que se contrasta acentuadamente em relação à bandeira. A
máscara tende a ser efêmera, enquanto a bandeira é alvo de certos cuidados que a
tornam, muitas vezes, objeto de longa duração. Esquematicamente a máscara é
sincrônica, enquanto que a bandeira é diacrônica. Uma vive do seu momento
instantâneo, a outra de sua continuidade. Não há, portanto, uma preocupação tão
acentuada com a perenidade das máscaras e com sua transmissão. Ao contrário, em
geral é indesejável que uma máscara seja utilizada por vários palhaços.
Nem todos os palhaços confeccionam suas máscaras, precisando, muitas vezes,
adquiri-las das mãos de artesãos. Gigante, por exemplo, confecciona suas próprias
máscaras e eventualmente as produz para venda. Em sua casa, guarda uma coleção de
máscaras e fardas, e costuma fazer uso de todas elas, de forma escalonada. Além dos
materiais citados anteriormente, Gigante faz uso de moedas, parafusos, objetos de PVC,
tecidos sintéticos etc.
Figura 37. Diferentes estilos de máscaras. À esquerda uma máscara feita por Gigante e à direita uma
máscara confeccionada por Batista de Miracema, interior do estado.
181
Figura 38. Gigante confeccionando uma máscara durante
oficina realizada no SESC-Barra Mansa, 2006.
Fotos de Daniele Ramalho
As máscaras, em sua diversidade de formas, materiais e estilos têm em comum a
aparência grotesca, disforme e monstruosa. São simultaneamente assustadoras e
cômicas. Estas características se evidenciam no exagero formal de certas partes como
boca, dentes, nariz, olhos e orelhas. Há uma ênfase caricata nestas partes, nos seus
orifícios, os sinais visíveis da mediação do corpo com o mundo, ou do corpo individual
com o corpo coletivo (DOUGLAS, 1976). Para a autora, os orifícios simbolizam os
pontos de maior vulnerabilidade, por onde são expulsas as matérias marginais, assim
como o são também as exúvias que se separam do corpo (unhas, cabelo etc.). Como
notei anteriormente, a máscara e a farda do palhaço são consideradas margens
corporais por estarem em contato direto com o corpo, com sua personalidade, e são
tidas, portanto, como fonte de poluição e de magia.
Há outro aspecto que torna a máscara a expressão literal da ambigüidade do
palhaço. Sua própria aparência, grotesca e monstruosa, refere-se simbolicamente a seres
maléficos, mas funciona, ao mesmo tempo, como uma espécie de antídoto para
combater potências negativas. Há uma correlação ambivalente entre a expressão de
medo que a máscara induz e a expressão oposta de agressão (NAPIER, 1986). A
máscara, assim, funciona tal qual um talismã, um amuleto, ou ainda como as carrancas
monstruosas de embarcações, objetos que visam a afastar maus espíritos. Isso se dá
182
através de uma espécie de jogo mimético, no qual mais uma vez a aparência e a
interpretação do mundo visível estão em questão.
Por fim, certos objetos cumprem a função primordial de mediadores capazes de
dar visibilidade a dimensões invisíveis da realidade. Por outro lado, em alguns contextos
os objetos se relacionam entre si, desenhando oposições ou semelhanças, constituindo,
assim, sistemas eficazes. Ao mesmo tempo em que esses objetos são ordenados segundo
certas categorias classificatórias, eles também impõem, de forma mais ou menos
autônoma, certas regras, induzindo comportamentos de aproximação ou repulsão,
agindo diretamente sobre os homens.
5.5 ‘Máscara e bandeira’: um sistema de objetos
O leitor que tenha chegado até este ponto já terá percebido ao longo do texto que
certas correlações, contrastes e semelhanças se articulam entre os símbolos rituais que
compõem o sistema da folia de reis. Pensando estas correlações através dos objetos,
pode-se notar que a bandeira e a máscara bem as resumem na forma de categorias
materializadas. Gostaria, desse modo, de colocar em evidência tais correlações,
iluminando, através de seu contraste, seus sentidos conotativos mais profundos.
Esclareço que, se por um lado, me proponho deliberadamente a relacionar esses
elementos de forma esquemática, por outro, inclino-me a sugerir que etnograficamente
estas relações são dadas de modo bastante auto-evidente. Ao longo do texto apresentei
casos nos quais se evidenciavam regras, proibições, bem como eventuais transgressões.
Todos esses mecanismos de demarcação de limites, sempre precários, estão diretamente
ligados a uma moralidade das ações. A necessidade de agrupar e separar adequadamente
as coisas parece refletir também uma percepção do cosmos na qual tanto as forças
benéficas quanto as maléficas lhe são igualmente inerentes e perigosas. Neste mundo
totalizado, cabem tanto as bênçãos como sua ausência, e para foliões e devotos todo
esforço é direcionado para afastar a ameaça iminente de forças negativas.
Há, portanto, uma relação muito particular entre bandeira e máscara, assentada
numa série de contrastes e semelhanças, o que me leva a considerar a idéia de um
“sistema de objetos”. Não me refiro ao sistema de que fala Baudrillard (1989), visto que
ele trata mais de objetos de uso cotidiano. Aqui, ao contrário, os objetos distinguem-se
principalmente pela capacidade de realizar mediações sociais e cósmicas.
183
Quando penso neste sistema, tenho em mente não apenas a dimensão
convencional dos símbolos, mas também as não convencionais. Estou, portanto, mais
uma vez chamando a atenção para os aspectos inventivos envolvidos na manipulação de
símbolos, tal qual proposto por Roy Wagner (1981). Como aponta o autor, a
simbolização é um processo inventivo contínuo. Na sua forma convencionalizada, os
símbolos são compartilhados, permitindo sua comunicação. Estas convenções são,
então, a base para a invenção de novos símbolos e relações, quando se opera uma
extensão dos significados. Os símbolos, assim, constituem uma ilusão necessária, uma
ficção conveniente, para a construção de realidades.
Com base nas descrições etnográficas aqui apresentadas, devo observar que a
bandeira e a máscara estão fortemente associadas a pessoas cujos papéis rituais são bem
delimitados e individualizados: palhaço, bandeireiro e mestre, nos quais a autoridade
ganha um relevo particular. Bandeira e máscara se encontram estreitamente ligados ao
corpo e às suas técnicas (MAUSS, 2003). Seu sentido pleno só se alcança quando
percebido a partir das pessoas que os manipulam. Isso é particularmente verdadeiro no
caso da máscara, que precisa ser vestida para operar sua ação transformadora.
Bandeira e máscara guardam certa ambigüidade e ambivalência e estão envoltas
numa aura de mistério, acentuada pelo jogo da visibilidade e da invisibilidade. Ambas
participam do “sagrado” de forma qualitativamente diversa. Há nestes objetos algo que
se mantém oculto. Nunca se revelam por inteiro. Assemelham-se ainda por ostentarem
proeminente visualidade, marcadamente contrastada. Suas oposições formam uma longa
e complementar cadeia de pares: alto/baixo, formal/informal, invulnerável/vulnerável,
sublime/grotesco, puro/impuro, contido/expansivo, estável/instável, ordem/desordem e
assim por diante.
Explorando esses contrastes, sugiro inicialmente que a bandeira, o bandeireiro e
o mestre estão ligados ao “alto”, enquanto a máscara e o palhaço ao “baixo”. Como
mostrei anteriormente, a bandeira é manipulada e guardada de modo a se manter
espacialmente em posição superior. A verticalidade de sua forma e o predomínio da cor
branca também a apontam para o alto. Esta relação com o alto não se limita à dimensão
espacial e formal. A bandeira remete ao além, ao invisível e, de certo modo, é de lá que
provém. Sua presença inspira os sentimentos e pensamentos mais elevados. A máscara
e a farda, por sua vez, freqüentemente são largadas no chão. Mesmo o palhaço liga-se
ao chão, deitando e rolando nele durante as apresentações rituais. Suas brincadeiras
estão intensamente relacionadas ao “baixo”, incluindo seus movimentos, assim como
184
seu vocabulário. Nos ritos preparatórios que observei, palhaços passam a farda entre as
pernas num movimento cadenciado, antes de se vestir. Este movimento é realizado de
tal modo que a farda é arrastada no plano do solo. É também na terra que ele pega o
dinheiro oferecido pelo dono da casa, enquanto o dinheiro destinado à bandeira não
pode tocar o chão, sob o risco de tornar-se impuro. Como notei anteriormente, há uma
diferença de significados dos usos do dinheiro que é determinada por sua destinação e
pelos procedimentos rituais envolvidos. No caso do bandeireiro, é a bandeira quem
realiza a mediação do dinheiro oferecido pelo devoto. No outro caso, o dinheiro é
mediado pelo solo.
A bandeira impõe certa formalidade e retidão, exigindo de foliões e devotos
gestos e palavras comedidas. A seriedade e a contenção dominam a ambiência
convencionalmente criada em seu entorno. A música que acompanha os ritos
relacionados à bandeira tem este caráter solene. A máscara, ao contrário, é uma via
para a informalidade e licenciosidade. A informalidade associada à comicidade é a
marca da brincadeira, do jogo em que está inscrito o palhaço. Seus gestos e palavras são
expansivos, exagerados, abundantes. Também a música que o acompanha se apresenta
de forma acelerada, bastante percussiva e mesmo ruidosa. O riso é a linguagem
manifesta em todas as atitudes do palhaço, excetuando-se quando ele se encontra sem a
máscara. O uso da máscara torna-o vulnerável e, assim, se constitui em alvo freqüente
de ameaças, ataques, bruxaria e feitiçaria de toda ordem, ainda que se encontre sob
proteção da bandeira. Esta, por sua vez, é dotada de uma proteção divina, o que a torna
infensa às vicissitudes do mundo, às forças negativas controladas conscientemente pelos
homens. De certo modo, ela é exterior ao mundo, inscrevendo-se num espaço-tempo
reservado, reversível e sempre renovável. Por esta razão, ela não se degrada com o
tempo e nem mesmo morre, ainda que sua matéria se inscreva na causalidade comum do
mundo natural. A máscara e o palhaço, ao contrário, estão condenados à
irreversibilidade do tempo e do espaço mundanos. A máscara e o palhaço estão sujeitos
a mudanças internas, ao envelhecimento, à morte e a se tornarem, no final, despojos
altamente contaminadores.
Como mostrei, a máscara é “grotesca”, o que se evidencia através de certos
caracteres formais que lhes são próprios como: exagero, excesso, hiperbolismo e
profusão (BAKHTIN, 1993). Esses traços se ligam ao “princípio material e corporal” de
que fala o autor. A bandeira, entretanto, é sublime, muito embora se constitua também
num pólo de intensa visualidade. Sua forma é rigorosamente ordenada e a simetria é a
185
estrutura formal predominante. Este aspecto a torna também notavelmente estável em
todos os planos.
Acrescentaria ainda o fato de que, se por um lado a bandeira é alvo de contatos
altamente ritualizados, a máscara e o palhaço são evitados. Tocar na bandeira é um
gesto desejável e, de certo modo, restrito a determinadas pessoas. É interessante
observar, por outro lado, que tanto a bandeira quanto a máscara são cercadas de
proibições e regras, e que ambas são contagiosas.
Outro aspecto que caracteriza a bandeira é sua espacialidade concêntrica. As
imagens encontram-se no interior da bandeira e esta, por sua vez, mantém-se localizada
no interior de um altar. De acordo com Gell (1998), esta relação formal visa a acentuar a
espiritualidade dos objetos, sua “alma”. Desse modo, a bandeira institui um centro, a
partir do qual se desenvolvem anéis de ação. Lembro que na formação da folia de reis,
os atores sociais que desempenham funções mais elevadas mantêm-se mais próximos da
bandeira (ver fig. 4, p. 52). Neste esquema espacial os palhaços são periféricos, mas
não deixam de estar incluídos no espaço sacralizado criado pela presença da bandeira.
Sinalizo que a relação máscara/bandeira é uma relação central que, contudo,
não subtrai a posição hierarquicamente superior da bandeira. O palhaço, assim, será
sempre dela dependente e de tudo que a ela está ligado. Esta dimensão ganha alguma
visibilidade quando se observa que o palhaço, paradoxalmente, é repelido e atraído pela
bandeira. O palhaço, quando mascarado, não pode se aproximar nem se afastar
demasiadamente da bandeira. Isso revela que esse objeto tem um raio espacial de ação,
cuja agência é proporcional à distância. Fora desta circunferência demarcada pela
bandeira, o palhaço se torna mais vulnerável, perdendo seu vínculo e sua necessária
proteção. No plano do mito, temos que os soldados de Herodes são iludidos de modo a
não se aproximarem do menino Jesus, mas, por outro lado, são os Magos que realizam a
mediação necessária para que aqueles sejam convertidos religiosamente.
Estes aspectos apontam para uma característica formal da bandeira que merece
também alguma atenção. Observo que em numerosos casos as imagens que a bandeira
ostenta encontram-se escondidas, invisibilizadas pela densa cortina de fitas coloridas à
sua frente. Sobre este aspecto, um palhaço da região de Valença (RJ) me informou, com
base em exegeses mitológicas, que isso ocorre para dificultar a aproximação dos
palhaços. Creio que há aqui uma conexão importante entre presença e visibilidade, o
que se torna ainda mais claro quando se observa que a bandeira pode, ocasionalmente,
ser coberta com um pano, invisibilizando-a, de modo a neutralizar o efeito de
186
proximidade do palhaço e de sua máscara. O mesmo se dá em contextos nos quais se
encontrem imagens de santos, bíblias, presépios etc.
A análise desses contrastes, portanto, parece indicar um sistema de objetos
rituais que se articula a partir de uma polarização central. Este suposto sistema gira em
torno da relação dada pela bandeira e pela máscara e se estende ao plano das ações
rituais ou, mais precisamente, dos atores sociais enquanto agentes. O sistema, contudo,
não se revela inteiramente estável. Isto porque, como notei em diversos momentos, os
símbolos são ambivalentes e estão sujeitos a novas associações. Os objetos materiais,
especificamente, parecem constituir fontes inesgotáveis de sentidos. Assim, este sistema
é dinâmico, comportando alguma flexibilidade. Como procurei mostrar, não se trata de
objetos puros e isolados que integram este sistema, tal como se fossem fonemas e
palavras articuladas numa linguagem. Mesmo nesse caso, talvez devêssemos duvidar da
estabilidade da própria linguagem, considerando as infinitas variantes da fala, como
sugere Edward Sapir (1980, 1994), com sua clara ênfase nos aspectos formais e sua
preocupação em entender como os indivíduos, a partir das convenções, as alteram.
Inspirado nas idéias desse autor, eu poderia sugerir que a vida social pode ser muito
mais instável do que aparenta e que a realidade é muito mais complexa do que a teia
terminológica é capaz de descrever.
Creio, portanto, que tornar saliente este sistema permite entrever modos de
perceber e organizar o mundo em categorias que se mostram muitas vezes precárias e
provisórias. Através dele, uma idéia de ordem é formulada e posta em prática por meio
de operações de separação, agrupamento, diferenciação e transformação. Desse modo, o
ritual formula a experiência, permitindo a emergência de certos conhecimentos que fora
dele não seriam percebidos. Através dos ritos e de sua sistemática articulam-se formas
de autoconhecimento em que se inscrevem dimensões objetivas e subjetivas da cultura.
Como escreve finalmente Valeri:
“Esta sutil dialética entre liberdade e regra, entre individualidade e forma
coletiva, torna-se então um poderoso esquema imaginário para a experiência da
relação entre a realidade e o desejo, entre o social e o individual. A vitória do
indivíduo sobre a norma na vitória da norma sobre o indivíduo é uma
experiência agradável, de natureza essencialmente estética” (1994: 347).
187
Figura 39. Mesa sobre qual se dispõe um presépio, imagens, bíblia etc.
Figura 40. O palhaço é autorizado a entrar na casa.
188
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento desta pesquisa é um testemunho do percurso ao longo do
qual meu olhar sobre o objeto de estudo se alterou gradualmente, a partir da própria
experiência etnográfica e do suporte teórico da antropologia. Quando realizei os
primeiros esboços desta pesquisa, já era clara para mim a idéia de me ocupar dos
objetos, particularmente da bandeira, mas a abordagem adotada de início mostrou-se
excessivamente formalista. Partindo dessa ótica, enfatizei, sobretudo, sua forma
material, seduzido por sua aparência estética de intenso efeito. O trabalho de campo e o
contato com a literatura referente à área da antropologia dos objetos abriram uma nova
perspectiva, na qual o aspecto formal passou a ser visto como uma entre muitas
dimensões que este objeto encerra. Com isso, chego à proposição de que os aspectos
estéticos são importantes para sublinhar sua excepcionalidade, e podem também
emergir de disputas e rivalidades.
Foi também esta mudança de perspectiva que me levou a perceber o modo como
os objetos se relacionam sistemicamente, o que tornou a máscara um foco de atenção
para este trabalho. As evidências etnográficas me levaram, assim, a concluir que a
classe de objetos dos quais esta tese trata guarda uma profunda ambigüidade, e que seus
sentidos são dependentes de seus contextos ou de seus múltiplos enquadramentos. Tanto
a bandeira quanto a máscara estão suscetíveis de apropriações, expropriações e
reapropriações contínuas, situando-se precariamente, e mesmo paradoxalmente, entre
sua transitoriedade e sua permanência. Isso se dá porque os objetos não são coisas
dadas, mas, ao contrário, são constituídas a partir dos sentidos que lhes são
continuamente investidos. Os significados dos objetos não se esgotam em sua aparência
ou presença material, como estes nos fazem muitas vezes crer. Isso é tão verdadeiro
para a bandeira quanto para a máscara, objetos que, por um lado se assemelham, no
sentido em que estabelecem ligações profundas com seus usuários e conexões cósmicas,
e por outro, se diferenciam nos modos como são classificados.
Procurei mostrar que a bandeira realiza mediações fundamentais, aproximando
esferas e domínios normalmente distantes, assim como é também considerada detentora
de poderes supramundanos, quando ela é investida dessas forças. Isso se dá através de
processos complexos que envolvem convenções, aspectos formais, perceptivos,
psicológicos e cognitivos. Revelo também sua tendência à “inalienabilidade”,
189
relativizando-a contextualmente. Nesse sentido, a bandeira aparece como algo que, em
princípio, deve ser guardado e mantido afastado, sobretudo de trocas econômicas. Por
outro lado, o fato de a bandeira se constituir em foco de proteção e guarda por certos
grupos parece indicar hierarquias e privilégios.
Desloco, assim, o olhar sobre supostas propriedades intrínsecas da bandeira e
focalizo o sistema de idéias nativas, a partir do qual ela é vista como portadora de
poderes, de conhecimentos - enfim, do próprio fundamento da folia de reis. Sua
continuidade e transmissão no tempo, contudo, não parecem depender necessariamente
da integridade de seu suporte material, pois sua perenidade é limitada inclusive por
razões naturais. O que se deseja preservar não é exatamente o objeto em sua mera
materialidade, mas o que está por trás desta aparência: seus significados profundos.
Aponto também para o modo como a bandeira e a máscara exercem efeitos
sobre as pessoas que as rodeiam. Desse modo, os objetos aparecem como mediadores
no processo de transmissão de idéias, visões de mundo e conhecimentos, materializando
categorias classificatórias e de pensamento. Em outras palavras, os objetos dão
visibilidade ao modo como essas pessoas ordenam o mundo. Revelo também que, uma
vez que a bandeira, por uma ou outra razão, se encontre desvinculada desse sistema de
idéias, ela se liberta, de certo modo, para seguir seu destino. Mostrei, através de casos
etnográficos, que a bandeira pode ser dispensada, ou mesmo destruída, ou então ser
destinada a uma coleção museológica, mas o aspecto a salientar é que, em qualquer
ponto de sua “biografia cultural”, ela está sempre suscetível de ser percebida em sua
ambigüidade fundante.
A análise dos usos da máscara pelo palhaço revelou o modo como esta opera
transformações, abrindo um canal essencial para a criatividade, a inventividade, enfim,
para a emergência de novos sentidos e associações. O palhaço, por sua ambivalência e
reversibilidade simbólica, põe em movimento o sistema ritual da folia de reis. O
contraste entre bandeira e máscara, e correlativamente entre tudo a que a eles se ligam,
fornece um modelo exemplar para a reflexão sobre a relação, sempre precária, entre
“ordem” e “desordem”. A análise dessas oposições me leva a sugerir que a experiência
das relações sociais e cósmicas é construída de forma total, e que a ordem não é
simplesmente um corpo de convenções passivamente herdado, ao contrário, ela precisa
ser contínua e arduamente estabelecida.
Os objetos, por fim, ganham toda uma dimensão significativa através de sua
intrincada relação com as pessoas que os manipulam diretamente. O que se evidencia
190
nesta relação não são apenas os conhecimentos e as “técnicas corporais” envolvidas,
mas também os modos como esses objetos agem sobre seus usuários, impondo uma
forma determinada de uso e, de certo modo, constituindo suas subjetividades.
Outra questão que merece comentários conclusivos é entender quais motivações,
afinal, levam devotos e principalmente foliões a se lançarem neste empreendimento. De
um lado, creio que as razões se apóiem numa lógica na qual as trocas entre foliões e
devotos com suas divindades se constituem de forma obrigatória e, de certo modo,
perpétua, quando bençãos e graças são intercambiadas por meio de “sacrifícios” de toda
ordem. A categoria promessa assume, assim, lugar central e papel estruturador neste
sistema. Mas isso não é tudo, pois mostrei que nestas práticas também podem estar
envolvidas outras dimensões, como a conquista de prestígio, rivalidades agonísticas,
afirmação de autoridade e honra, aspectos lúdicos, artísticos e expressivos. Enfim,
chamo atenção para os “interesses” que, em larga medida, extrapolam o universo das
trocas recíprocas e cosmológicas. Diria, por fim, que entre estes motivos está também,
simplesmente, o desejo de compartilhar habilidades, momentos de entretenimento,
assim como um profundo sentimento de pertencimento.
Aponto também para as “dimensões patrimoniais da cultura”, revelando que as
práticas de foliões, os conhecimentos e os objetos constituem-se em verdadeiros
“patrimônios” do ponto de vista nativo, assumindo importância vital na continuidade e
destino desses grupos. Por outro lado, este mesmo conjunto de coisas e saberes pode
assumir uma outra dimensão patrimonial, objetificada no nível dos discursos e políticas
de “patrimônio”. Isso se evidencia na circulação das folias de reis em contextos e
enquadramentos marcados pela exibição pública. O material etnográfico me leva, assim,
a apontar os processos de patrimonialização enquanto vias de mão dupla, e as
numerosas mediações existentes entre estas diversas concepções de patrimônio.
Ao fim desta longa jornada, devo dizer que todo o esforço empreendido trouxe
resultados, levando-me ao caminho inequívoco dos objetos às pessoas. Neste percurso,
os objetos se mostraram como produto da criação humana, cujos significados dependem
do modo como são situados numa teia de categorias classificatórias, mas ao mesmo
tempo, revelam-se com todo o seu poder transgressor de agir sobre seus criadores e seu
mundo.
191
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