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MAGNA DAS GRAÇAS CAMPOS
A LEITURA NUMA PERSPECTIVA CULTURAL:
REPENSANDO O SUJEITO-LEITOR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
Dezembro de 2008
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MAGNA DAS GRAÇAS CAMPOS
A LEITURA NUMA PERSPECTIVA CULTURAL:
REPENSANDO O SUJEITO-LEITOR
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Letras da Universidade Federal de
São João del-Rei, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica
da Cultura
Linha de Pesquisa: Discurso e Representação
Social
Orientador: Profª. Dra. Dylia Lysardo-Dias
PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
Dezembro de 2008
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MAGNA DAS GRAÇAS CAMPOS
A LEITURA NUMA PERSPECTIVA CULTURAL:
REPENSANDO O SUJEITO-LEITOR
Banca Examinadora:
Profª. Drª Dylia Lysardo-Dias - Orientadora
Profª. Drª Maria Zélia Versiani Machado - FAE/UFMG
Profª. Drª Maria Ângela de Araújo Resende – DELAC/ UFSJ
Profª. Drª. Eliana da Conceição Tolentino
Coordenadora do Programa de Mestrado em Letras
São João del-Rei, 11 de fevereiro de 2008
4
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos os que m a
coragem de se “arriscar”, pois a esperança
também é abrigo, e assim percorrem os caminhos
e os descaminhos da vida sem perder a fé em si
mesmos e em Deus.
5
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Dylia, por acreditar nessa
proposta, pelo incentivo e pelo respeito ao meu
tempo, embora longo. Aos demais professores do
Programa de Pós-Graduação, em especial aos
que foram meus professores, pelas várias formas
que existem de se aprender. À Filó, Secretária do
Mestrado em Letras, sempre tão educada e
disposta a ajudar e a dar todo o apoio possível.
Aos amigos que conheci, especialmente durante
o cumprimento dos créditos do mestrado; quantos
desabafos e angústias nós nos confiamos,
quantas risadas gostosas dividimos. Aos alunos
do curso de Letras, pela oportunidade de estagiar
na turma de vocês, durante o cumprimento de
uma exigência da bolsa financeira.
À minha família, pelo que muito me ensinou e
incentivou. Em especial ao meu pai, pelas tantas
histórias contadas nas escadas de uma varanda,
enquanto eu crescia. Hoje também sei contar
histórias, meu pai! À minha mãe, pelas horas de
sono perdidas enquanto eu “trabalhava” para
tecer as minhas histórias de vida e pelos muitos
fios me dado para tecê-las.
Aos demais amigos, porque souberam
compreender minhas ausências. Em especial, ao
Morato, pela “fotoleitura” de um texto possível. Ao
apoio incansável, compreensivo e carinhoso, que
vai muito além das páginas dessa dissertação, da
“minina” Marcela, que tanto me reconforta e
incentiva nessa minha caminhada; obrigada por
dividir comigo, as conquistas e as dificuldades,
não me deixando esquecer jamais das coisas
simples e importantes da vida.
À querida D. Hebe Rôlla, pelo exemplo de mestre,
com quem aprendi que sempre novos
horizontes.
À Fapemig, pela bolsa concedida em boa parte
dessa pesquisa.
À Deus, pela sua concretude em minha vida, por
fazer de todos os meus passos muito especiais.
6
“Todo caminho da gente é resvaloso: mas
também, cair o prejudica demais a gente
levanta, a gente sobe, a gente volta”.
Guimarães Rosa
Maltrapilho
_ Se o sór nasce toda manhã num qué dique
ele traz sempre o mesmo dia! E se ocê vorta
pelos caminhos trilhado ocê vorta diferente. E
nem os caminho num são mais os mesmo.
Arrepare bem. [...]
Rosa
_ Mai, que coisa estúrdia, gente! Isso é coisa sem
tino! Parece que o mundo sartô fora dos eixo! [...]
Dom Chico Chicote
_ O mundo não é o que a gente vê. O mundo é o
que ele esconde”.
Carlos Alberto Soffredini (Hoje é dia de Maria)
7
RESUMO
Este trabalho propõe o estudo da leitura como objeto cultural no qual se
inscrevem aspectos sócio-históricos, o que significa entender a leitura como uma
construção engendrada na/pela sociedade e na/pela historicidade. Tendo como
princípio o fato de a linguagem ser constituída sócio-historicamente e de o sujeito-
leitor ser considerado ativamente na construção/produção de sentidos, buscamos
investigar e refletir a respeito da construção social da subjetividade deste sujeito,
inscrevendo-o no contexto da pós-modernidade. Argumentamos em favor da
relação intercambiante e entrelaçada dessa subjetividade com o contexto
contemporâneo no qual as novas tecnologias de informação e comunicação (TIC)
se avultam. Assim, verificamos, no percurso da historicidade traçada, que a
constituição do sujeito-leitor foi desde sempre um existir em movimento, em meio
às oscilações sócio-históricas. Vimos também a passagem de um sujeito-leitor a
quem não era conferido o direito de interpretar posto que o sentido “verdadeiro”
lhe era estipulado para um sujeito-leitor que se acreditava fonte da
interpretação produzida e na autonomia desta e, deste, para um sujeito-leitor que,
embora, tenha a crença dessa origem e dessa autonomia, não passa do efeito
discursivo dessa ilusão. Entendemos que, na pós-modernidade, a leitura
encontra-se enredada com outros espaços que configuram um novo local para o
texto e novas textualidades, portanto, novos espaços de significação. Tais
espaços, promovidos pelas novas TIC, têm proporcionado uma crescente
multiplicação dos sistemas de significação e de representação o que implica, para
o sujeito-leitor, o aumento de possibilidades de assumir, negar e reivindicar
identidades diferentes a cada circunstância deparada, a cada texto que se lhe
à leitura.
8
ABSTRACT
This work endeavours to study reading as a cultural object into which are
inscribed socio-historical aspects. This means an attempt to understand reading
as a construction put together in/by society and in/by historicity. Based on the fact
that language is social-historically constructed, and that the reader may be
considered as active in the construction/production of sense, we try to reflect on
the social construction and the subjectivity of this individual, inscribing him/her in
the post-modern context. We argue in favour or the interchangeable and
intertwining relation of this subjectivity with the contemporary context in which new
communication and information technologies (CIT) abound. Thus we have
verified, while tracing this historicity, that the constitution of the individual as a
reader has always been in the move according to socio-historical oscillations. We
have also realised the passage of a reader who was not allowed to bring his/her
own interpretation once the “true sense” was already stated into a reader who
came to believe him/herself as the source of the resulting interpretation and in its
autonomy, and later into a reader who, although he/she believes in this source and
this autonomy, comes to nothing but the discursive effect of this illusion. We
understand that, in pos-modern times, reading is intertwined with other spaces
which configure a new locus for the text and new textualities, consequently new
spaces of signification. Such spaces, brought about by the new TICs, (CITs) have
caused a growing multiplication of the representation and signifying systems and
that represents, for the reader, growing possibilities of assuming, denying and
claiming different identities at each circumstance met, at each new text he/she
engages to read.
9
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 11
INTRODUÇÃO 14
CAPÍTULO 1: Uma historicidade do sujeito-leitor 20
1.1 Preâmbulo: a historicidade como construção 20
1.2 Lendo um percurso 21
1.3 Algumas considerações 53
CAPÍTULO 2: A construção social da subjetividade do leitor 59
2.1 O sujeito-leitor responsivo 60
2.2 O sujeito-leitor engajado 66
2.3 O sujeito-leitor como efeito 72
2.4 O sujeito-leitor clivado 78
2.5 Algumas considerações 83
CAPÍTULO 3: Pós-modernidade e sujeito-leitor 88
3.1 O cenário pós-moderno: espaço da ambivalência 88
3.2 As novas TIC mediando a produção de subjetividades 93
3.3 A leitura da textualidade digital: apontamentos sobre o hipertexto
106
3.4 Algumas considerações 127
CONSIDERAÇÕES FINAIS 130
REFERÊNCIAS 139
ANEXO 145
10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI ------------- 100
Figura 2: Mulher que fugiu do marido no Líbano chega à casa da família ------ 112
11
APRESENTAÇÃO
A temática da leitura tem sido algo que me
1
ocupa há alguns anos. Talvez
pelo fato de ser professora e ter tido a oportunidade desafiadora, dentre outros
níveis da educação escolar, de trabalhar na alfabetização e, assim,
participar/presenciar dos/os “primeiros” contatos sistematizados de muitas
crianças e adultos com essa nova possibilidade de se relacionar com o mundo;
talvez pelo simples fato de eu mesma me encantar com as inúmeras
possibilidades que a leitura facultou à minha vida, não somente na relação com o
mundo, mas também na tentativa de compreensão desse relacionamento; ou
talvez pela junção desses dois fatores aliados à percepção de que somos cada
vez mais interpelados, pela sociedade contemporânea, a ler; quem sabe não seja
essa somatória de motivações que tenha me instigado a elegê-la como tema para
pesquisa.
Motivada por alguns questionamentos um tanto diferentes daqueles que
me acompanharam no desenvolvimento da pesquisa atual – já realizei outro
trabalho, à época da minha especialização na área de Língua Portuguesa, no
qual, dentro das delimitações de uma monografia, pude abordar questões
relativas ao ensino-aprendizagem da leitura.
Ao surgir a oportunidade do mestrado, perscrutando em mim, dentre as
temáticas que me interessavam, qual a que me disporia a dedicar nos próximos
dois anos de estudo, não foi difícil me enredar por aquela que já havia me
seduzido antes. Todavia, o foi pela suposta facilidade de conhecer um pouco
do tema que tal escolha foi realizada; foi, exatamente, por conviver com tantas
indagações interiores a respeito do mesmo, que o abracei novamente. Mas agora,
ao contrário da pesquisa anterior, não tencionava circunscrever a leitura à
questão de ensino-aprendizagem, pois o fato de a leitura ser uma manifestação
de linguagem, que apresenta a propriedade de circular entre diversos sistemas
1
Faremos uso da pessoa do singular, no texto de apresentação de nosso trabalho, uma vez
que nos valeremos desse espaço para nos colocar como pesquisadores. No restante da
dissertação, no entanto, usaremos a pessoa do plural, conforme indicação normativa da
instituição.
12
(conceituais), torna-a passível de uma grande diversidade de abordagens. E eu
desejava experimentar outros horizontes, outros olhares ao pesquisá-la.
Assim, filiada a uma linha de pesquisa do Mestrado em Letras que colocava
para dialogar duas áreas importantes como o discurso e a crítica cultural, conheci
novas “paisagens” para a pesquisa que, provavelmente, uma linha um pouco mais
“fechada” não me facultaria, pelo menos em princípio. Dessa forma, ao longo das
disciplinas obrigatórias cursadas, no transcorrer do mestrado, o contato e
conhecimento de novas bibliografias, novos pensamentos teóricos, outros olhares
e releituras sobre temáticas conhecidas confirmando, questionando ou
aproximando certas posturas teóricas proporcionaram-me a (re)composição do
meu objeto de estudo em consonância com essa “paisagem” interdisciplinar
experimentada. E advém daí o interesse em estudar a leitura sob as
possibilidades que uma perspectiva cultural por princípio, interdisciplinar e, em
alguns casos, chegando à transdisciplinaridade
2
poderia abrir-lhe. Optei, assim,
por uma pesquisa de caráter teórico que tomasse a própria leitura, e não apenas
os materiais de leitura, como um objeto cultural. Tal procedimento me levou a
pesquisar e refletir não apenas sobre a leitura, mas também, a repensar o leitor
no âmbito dessa perspectiva cultural assumida.
Todavia, ao mesmo tempo em que uma pesquisa que tem como princípio a
interdisciplinaridade nos faculta novos horizontes, também nos cobra, em muitos
casos, o preço dos deslocamentos constantes, de “bases seguras”
experimentadas outrora para novas bases, agora mais movediças, uma vez que
se recusam a limitar. O desafio de promover diálogos disciplinares e de sistemas
conceituais, zonas de contato e conflito, vislumbrando as complementaridades
possíveis, é uma necessidade na articulação entre cultura e sociedade e, se
nossa proposta de estudo da leitura encaixava-se nessa perspectiva cultural, não
podíamos nos furtar de tentar promovê-lo na busca por respostas que, por sua
vez, parecem estar na origem de novas perguntas. Reconheço que essa
experiência do deslocamento foi uma constante em toda a trajetória da realização
dessa pesquisa, gerando, em algumas ocasiões, certos desconfortos e, em
2
Ou seja, à diluição de fronteiras entre áreas e saberes.
13
outras, contribuindo para aumentar o nível de ansiedade (que é comum na
execução dos trabalhos de pesquisa, de um modo geral) vivida.
Assim, ao mesmo tempo em que o caminho de pesquisa estava sendo
construído, construía-se também a materialidade da leitura como objeto cultural,
bem como a minha leitura reflexiva, como pesquisadora, sobre essa materialidade
e sobre a subjetividade do leitor, que compunham o objetivo maior do estudo aqui
apresentado.
Dessa forma, gostaria que esta pesquisa fosse tomada como uma
possibilidade de compreensão da leitura para além de estratégias e de cnicas
de ensino.
14
INTRODUÇÃO
O conceito de leitura é tão diverso quanto diversas são as áreas que se
propõem a estudá-la. Mas, de maneira geral, podemos entendê-la como atividade
de construção de sentidos, sabendo que, o raro, se acrescenta que ela pode
ser tanto um processo quanto o resultado deste. A leitura, assim genericamente
concebida, pode ser o processo de produção de sentidos e/ou o seu resultado.
A produção do sentido, naturalmente, não é uma problemática que possa se
restringir à investigação ou à reflexão sobre o pólo da recepção, que temos
também o papel do produtor e o do próprio texto. Mas é na leitura que
vislumbramos a melhor compreensão desse fenômeno, principalmente se
considerarmos que ela confere existência ao texto, uma vez que este é visto por
algumas teorias como uma potencialidade, a qual encontra realização durante
a leitura. O autor, nessa perspectiva, poderia ser considerado como o primeiro
leitor de seu próprio texto. Depreende-se, desse modo, que o estudo da leitura
institui dois pólos: o do autor e do leitor, sendo este último uma instância ativa no
processo de produção de sentidos.
A problemática da leitura pressupõe a necessidade de se estudar a instância
do leitor e coloca um direcionamento na reflexão que propomos, a qual parte, não
do produtor do texto, mas de seu receptor. Esse receptor, entretanto, não é uma
categoria qualquer, usada apenas para situar o funcionamento da leitura entre um
produtor e um receptor textual. Ao ler, entendemos que ele não recebe o texto,
mas produz um texto a partir de então. Daí chamarmos esse receptor pela efetiva
denominação de sujeito-leitor. Sujeito porque se trata de um agente dinâmico, que
constrói, rege, nega, desconstrói, outorga ou altera a significação sem ser apenas
modelado por ela. O sujeito-leitor não recolhe os sentidos prontos, mas os
constrói/produz operando a materialidade significante do texto em consonância
com o contexto sócio-histórico de produção da leitura e, assim, trabalha a
linguagem e se constitui nesse processo.
Nota-se, pois, que não estamos tratando de um leitor coletor de sentidos,
mais um objeto que um sujeito da leitura, e nem de um leitor absolutamente livre,
capaz de não construir, mas de refletir sobre as condições em que é realizada
15
sua própria leitura, dada sua capacidade de ser sujeito. Essa relativização não é
automática, mas deriva de reflexões teóricas, em especial daquelas advindas dos
estudos da linguagem e da crítica cultural, segundo as quais o sujeito e, portanto,
o sujeito-leitor, é um ser constituído social e historicamente e que, a seu turno,
também constitui essa sócio-história. A subjetividade do leitor não representa uma
independência do meio social, pelo contrário, é fruto de uma conjuntura sócio-
histórica e cultural.
O sujeito-leitor é, pois, constituído por uma conjuntura sem ser,
necessariamente, determinado por ela, sofrendo, em vez disso, uma espécie de
coerção, a qual pode ser entendida como influência que o contexto opera sobre o
leitor. A partir desse pressuposto, podemos entender que o sujeito-leitor não
reproduz simplesmente as coerções por ele vivenciadas, mas produz sentidos em
um processo de negociação contínua às vezes mais, às vezes menos tensas
com as mesmas.
Por via indireta, podemos dizer que os sentidos são produzidos a partir da
relação que o conjunto de situações e valores cio-historicamente concebidos
opera sobre a materialidade significante do texto. Perspectiva na qual a leitura se
torna um objeto cultural, haja vista que ela ocorre dentro de um contexto no qual
se inscrevem aspectos sociais e históricos. Esses dois fatores importam para
conceber a leitura como um objeto cultural e, assim, trazê-la para o âmbito dos
Estudos Culturais. Sendo assim, podemos entender que a leitura apresenta
valores axiológicos
3
, os quais são condicionados pela cultura, construídos social e
historicamente, e se torna, dessa forma, um objeto cultural, posto que é nascida
de uma demanda e geradora de valores (positivos) inscritos na sociedade.
Uma vez que os Estudos Culturais se interessam pelos diversos modos de
produção de sentido nas ações sociais, e ainda, o circuito da produção, circulação
e consumo dos produtos culturais (Cf. JOHNSON, 2000, p.25), a leitura também
pode ser tomada como um objeto de estudo bastante promissor para essa área.
Em vista desta perspectiva, consideramos cultura como um sistema heterogêneo
3
Quando dizemos que a leitura é algo positivo ou negativo, nesse julgamento não está a leitura
em si (enquanto coisa), mas o seu significado para nós.
16
e conflituoso de processos que permitem a constituição e a transformação
contínua das subjetividades.
A importância de se pensar a leitura como um objeto cultural justifica-se, em
nosso entender, no fato de percebê-la como fruto de demandas histórico-culturais,
às quais estão agregadas a crença no valor social desse objeto
4
. Crença essa
que ocupa lugares tão importantes na sociedade, a ponto de tornar a leitura como
objeto de estudo comum de múltiplas pesquisas, oriundas de várias áreas do
conhecimento.
Nessa perspectiva, a partir da proposição de Amorim (1998), entendemos
como objeto cultural aquele objeto cuja função principal é a de remeter à própria
cultura. E no qual é possível fazer com que se ouçam as vozes que o habitam:
não somente as vozes daqueles que o produziram, mas também as vozes
daqueles que o habitavam e de todos os outros que virão a habitá-lo, enquanto
seus interlocutores, no caso da leitura.
Portanto, ouvir as vozes que habitam o objeto cultural “leitura” é pensarmos
na cultura na qual se constitui a noção de leitura. Constituição que não se
separada dos elementos que a filia a uma historicidade, pois se encontra
vinculada ao seu entorno espacial, temporal e social. Nesse âmbito, partimos do
pressuposto de que aquilo que dizemos da leitura é produto das circunstâncias
nas quais temos sido produzidos como leitores, por isso, o fato de se pensar essa
constituição se apresenta como uma postura reflexiva. Isso nos possibilita atentar
para como essas circunstâncias nos engendram como sujeitos-leitores e, na
mesma medida, como nós sujeitos-leitores engendramos a noção de leitura.
Decorre desse fator o nosso interesse em refletir sobre a caracterização
daquele que é o responsável por colocar em funcionamento qualquer atividade de
leitura: o sujeito-leitor. Assim, buscamos, nessa envergadura, o embasamento
para a compreensão dos movimentos e das transformações que tanto a leitura
quanto o sujeito-leitor vêm passando. Entendemos que tal qual mudam as
circunstâncias ou seja, tal qual mudam as condições de produção da leitura
mudam também os sujeitos-leitores que se movem, em um movimento de
mútuo condicionamento.
4
Essa definição está baseada na concepção de produto cultural proposta por Bourdieu (Cf.
BOURDIEU & CHARTIER, 2001, p. 236-240).
17
Sob essa perspectiva, o recorte do estudo dessa constituição no sujeito-leitor
permite-nos trabalhar com o elemento de diálogo entre leitura, sociedade e,
inevitavelmente, cultura o qual para nós, é, fundamentalmente, esse sujeito.
Contribui, também, para o nosso interesse no estudo dessa manifestação da
subjetividade, qual seja o sujeito-leitor, a consideração realizada por Johnson
(2000) na qual o autor propõe que,
[...] os Estudos Culturais dizem respeito às formas históricas da
consciência ou da subjetividade, ou às formas subjetivas pelas quais
nós vivemos ou, ainda, em uma síntese bastante perigosa, talvez uma
redução, os Estudos Culturais dizem respeito ao lado subjetivo das
relações sociais. (JOHNSON, 2000, p.25)
Tal fato corrobora nossa perspectiva na medida em que o estudo da leitura
por meio da subjetividade que lhe é própria o sujeito-leitor proporciona-nos
atentar para o elemento que permanece constante
5
em todos os espaços e
tempos que pretendemos abordar.
Por isso, temos como objetivo principal focalizar a leitura como um objeto
cultural repensando a constituição do sujeito-leitor numa perspectiva cultural. Para
tanto, pretendemos refletir a respeito do sujeito-leitor dentro de uma historicidade
da leitura, uma vez que intentamos compreender dentro de quais conjunturas
socioculturais e históricas se constitui essa subjetividade. No entanto, temos
ciência de que essa historicidade que traçaremos seuma construção, pautada
em alguns estudos da área, e não uma essência baseada em verdades
transcendentais. Além disso, buscaremos investigar a construção social da
subjetividade do leitor em alguns posicionamentos teóricos sobre a concepção e o
processo de leitura; posicionamentos esses que elegemos em função de tomarem
como princípio o fato de a linguagem ser constituída sócio-historicamente e de o
sujeito-leitor ser considerado ativamente na construção/produção de sentidos. E,
por fim, esperamos situar/inscrever o sujeito-leitor no contexto da pós-
modernidade, na medida em que argumentaremos em favor da relação
intercambiante e entrelaçada dessa subjetividade com o contexto contemporâneo
no qual as novas tecnologia de informação e comunicação se avultam.
5
Constância que não se refere ao fato de ser sempre o mesmo, imutável quanto à sua
configuração, antes, como posição que vem sofrendo alterações ao longo do tempo.
18
Neste sentido, traçaremos no Capítulo 1 uma historicidade para o sujeito-
leitor, e, conseqüentemente, para a leitura a fim de percebermos melhor os
movimentos na configuração desse sujeito, uma vez que nos indagamos a
respeito de quais as circunstâncias em que ele foi engendrado. Partiremos do
princípio que, indiferentemente à concepção de sujeito adotada, o leitor sempre
existiu, e por isso dotaremos a ele o papel de sujeito, mesmo que em algumas
configurações ele tenha sido visto como totalmente submisso ao texto ou ao
autor. Deparamo-nos, neste capítulo, com a questão de como iríamos organizar
essa historicidade a fim de obtermos uma organização textual que nos ajudasse
na argumentação e na exposição das idéias a serem trabalhadas nessa
historicidade. Assim, depois de algumas experimentações, escolhemos seguir
uma organização textual que se valesse de uma cronologia estabelecida como
um recurso para tornar o texto mais fluente. No entanto, não pensamos a história
como sucessão linear de eventos ou julgamos que essa cronologia seja
constitutiva. Antes, por pensarmos que a relação do sujeito com a linguagem
pode se transformar ao longo dos tempos e espaços, percebemos que a história,
então, estaria atrelada a práticas e não puramente ao tempo em si. Resulta daí
que apreender essa historicidade significa pensar essas práticas em sua relação
com a linguagem, em nosso caso, com a leitura.
No capítulo 2, posicionaremos o sujeito-leitor no âmbito de algumas
proposições teóricas a respeito da leitura com vistas a prosseguir na percepção
dessa subjetividade, todavia, agora no âmbito da teoria. Os autores selecionados
para exploração teórica foram escolhidos com base na concepção de linguagem
que permeia os argumentos por eles apresentados qual seja a linguagem
constituída sócio-historicamente e do caráter ativo da construção de sentidos
dotado ao sujeito-leitor. E a ordenação em que aparecem no capítulo se pautou
na publicação (inicial) das obras em que foram “expostas” as idéias que dizem
respeito à leitura, por eles postuladas.
Avançando um pouco mais nosso percurso, no Capítulo 3, intentamos a
inscrição do sujeito-leitor no rol da pós-modernidade, tendo em vista o
entendimento de que as subjetividades se constroem no uso social da linguagem,
em relações historicamente mutáveis. Portanto, conforme a argumentação de que
19
a pós-modernidade é cenário de grandes mudanças das relações sociais, então,
os estudos das subjetividades tornam-se ainda mais importantes nesse contexto.
Entendemos que estudar o sujeito-leitor como uma das manifestações de
subjetividade é uma forma de contribuir para a percepção da mudança dessas
relações. Por ser uma questão ainda pouco explorada, tentamos materializar, em
alguns momentos, nossas proposições e argumentações com um breve diálogo
destas com dois materiais de análise, os quais julgamos pertinentes às questões
enunciadas e que funcionam apenas como estudo exploratório que objetivam por
em prática o poder explicativo das teorizações tecidas nesse capítulo.
Ainda, escolhemos fazer uma unidade chamada de “Algumas
Considerações” ao final de cada um desses três capítulos, não para segmentar ou
restringir nossas considerações aos capítulos tratados, mas para que
pudéssemos, com esse gesto, caminhar no capítulo seguinte munidos de certas
observações já sistematizadas e, com isso, em um movimento de “fechar” e
“abrir” nossas argumentações, conseguíssemos alcançar melhor nossos objetivos
específicos, corroborando juntos para o alcance de nosso objetivo geral.
Completamos nosso estudo com as Considerações Finais, nas quais
apresentamos algumas reflexões atinentes à escolha do caminho teórico utilizado
e, também, reflexões a respeito de como essas escolhas nos possibilitam verificar
os movimentos e as transformações que tanto sujeito-leitor quanto leitura vista
como um objeto cultural – vêm passando.
20
CAPÍTULO 1: UMA HISTORICIDADE DO SUJEITO-LEITOR
1.1 Preâmbulo: a historicidade como construção
Analisar as transformações pelas quais passou o sujeito-leitor ao longo da
história sem encararmos esse empreendimento como a busca por uma essência,
por uma verdade transcendental sobre esse sujeito, leva-nos a assumir uma
postura problematizadora em nosso olhar para o passado. Por esse motivo,
elegemos a historicidade como categoria de análise capaz de nos ajudar a
visualizar a história não como um pano de fundo, um exterior independente, mas
como constitutiva da produção de sentidos na questão da leitura e de seu sujeito.
Entendemos, assim, que trabalhar a historicidade implica observar os processos
de constituição dos sentidos, de suas condições de produção, desconstruir as
ilusões de clareza e de certeza absoluta a respeito da intricada questão da
constituição do sujeito-leitor.
Nesta historicidade, pretendemos compreender como se constituiu o sujeito-
leitor, nosso foco de estudo, dentro de quais conjunturas históricas e
socioculturais ele foi configurado. Usamos, para esse propósito, basicamente, os
estudos realizados por Manguel (1997) e aqueles organizados por Cavallo &
Chartier (1998, vol.1 e 1998, vol.2), acrescidos de contribuições de outros estudos
dos quais nos valeremos para melhor detalhar ou complementar algumas
questões. Antes de prosseguirmos precisamos, porém, justificar porque
colocamos o artigo uma no nome desse capítulo e não o artigo a.
Em primeiro lugar, entendemos que essa historicidade é uma construção
que tem como fundamento alguns estudos a respeito de elementos que envolvem
a história da leitura. Portanto, feita a partir de aspectos estudados por
determinados teóricos. Possivelmente, fossem outros os autores, outros os
elementos estudados por estes e outras as abordagens, essa historicidade
poderia ser também outra e apresentar outras leituras.
Em segundo lugar, pactuamos com Bakhtin (2003) quando este diz que a
cultura de uma época, ainda que distante de nós no tempo, não pode ser fechada
em si mesma, como algo plenamente acabado e pronto. Imensas possibilidades
21
de sentido não foram conscientizadas nem utilizadas ao longo de toda a vida
histórica de uma dada cultura. A própria Antigüidade desconhecia aquela
Antigüidade que hoje conhecemos. (BAKHTIN, 2003, p. 364). Sendo assim,
parece-nos mais acertado o uso do artigo uma em nosso capítulo, pois nos
remete melhor à idéia da historicidade como uma construção de nosso olhar
sobre outros tempos e culturas, e sem desconsiderar o lugar no qual nos
posicionamos no aqui e agora.
Reconhecemos que enveredar pela história da leitura para verificar quem
eram os sujeitos-leitores de outras épocas e as condições em que realizavam
suas leituras, para analisarmos as transformações que sofreram ao longo dos
tempos, espaços e culturas, impõe-nos alguns desafios, uma vez que
dependemos dos levantamentos, organizações e argumentações de estudiosos
de áreas distintas para tecermos as nossas considerações e levantarmos
questões que interessem especialmente à Crítica da Cultura, à qual esse trabalho
está vinculado.
Vejamos a seguir o que têm os estudos realizados pelos teóricos
mencionados, os quais servirão de base para esse capítulo, para nos ajudar a
compreender as configurações dos sujeitos-leitores ao longo da história.
1.2 Lendo um percurso
A leitura, conforme esclarece Paschoal Lima, pode ser considerada um
atributo imprescindível de inserção do indivíduo em um grupo ou em determinado
contexto social (2005a, p.7). Essa inserção pode ser vista como um rito de
passagem que marca a transição do indivíduo, do universo dos não letrados para
o dos letrados. Mais do que isso, marca a passagem ritualizada de um estado de
dependência e de marginalização social em um mundo cada vez mais centrado
na escrita.
Manguel nos um exemplo de como era realizado e celebrado esse ritual
de aprender a ler na Baixa Idade Média e início da Renascença na sociedade
judaica:
Na festa de Shavout, quando Moisés recebia a Torá das mãos de Deus,
o menino a ser iniciado era envolvido num xale de orações e levado por
22
seu pai ao professor. Este sentava o menino no colo e mostrava-lhe um
lousa onde estava escrito o alfabeto hebraico, um trecho das Escrituras
e as palavras “Possa a Torá ser tua ocupação”. O professor lia em voz
alta cada palavra e o menino as repetia. A lousa então era coberta com
mel e a criança a lambia, assimilando assim, corporalmente, as palavras
sagradas. Da mesma forma, versos bíblicos eram escritos em ovos
cozidos descascados e tortas de mel, que a criança comeria depois de
ler os versos em voz alta para o mestre. (MANGUEL, 1997, p.90)
Embora tal exemplo se refira à aprendizagem na sociedade judaica, não
menos ritualizada era a aprendizagem da leitura na sociedade cristã. De acordo
com o autor, nesse mesmo período, competia às amas o papel de iniciar o ensino
de leitura às crianças da aristocracia e da alta burguesia
6
, tendo em vista que às
amas caberia a alimentação das crianças não apenas por meio do leite, mas
também do alimento das letras (Cf. MANGUEL, 1997, p. 90). As crianças
aprendiam a ler soletrando, repetindo as letras apontadas pelas amas em uma
cartilha que, via de regra, apresentavam o abecedário e orações religiosas.
Essa forte associação da leitura à alimentação, diríamos do espírito, está
atrelada ao material dado a ser lido nessa época. Olson afirma que a história da
leitura no Ocidente é em boa parte a história da leitura da Bíblia (1997, p. 162).
Eram as palavras das Escrituras que deveriam ser deglutidas e servir de alimento
para os leitores de então. Assim, vemos nesses ritos de inicialização não apenas
a veneração da palavra escrita e a valorização da leitura, mas o grande poder da
Igreja como fonte legitimadora do ato de ler.
É com relação à questão política que envolve o imbricamento de relações de
poder à leitura que concordamos com Abreu, quando afirma que a leitura não é
prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder (1999, p.15). Dessa
forma, entendemos que a formação de sujeitos-leitores seno emaranhado das
condições sociais e responde às necessidades historicamente construídas.
Assim, percebemos que formar um leitor é formar um leitor de alguma coisa, e,
nesse período específico, um leitor de textos religiosos.
6
Conforme Manguel, no período em questão, aprender a ler e a escrever fora da Igreja era
privilégio exclusivo da aristocracia e, após o século XIII, da alta burguesia. Embora, houvesse
aristocratas e altos burgueses que julgassem ler e escrever tarefas inferiores, apropriadas
somente para clérigos pobres, muitos meninos e meninas dessas classes aprendiam as letras
muito cedo (1997, p.90).
23
Embrenhando-nos na história, encontraremos no mundo grego antigo o
encontro da escrita alfabética com a tradição oral, por volta do século VIII a.C..
Nesse encontro, ao contrário de hoje, o poder encontrava-se na palavra falada e
não na palavra escrita
7
. Nasce daí a grande desconfiança dos gregos com
relação à escrita, tendo em vista sua crença em assegurar a permanência de sua
cultura em suportes como a memória e voz humanas.
Segundo Svenbro, em uma cultura que valoriza a palavra falada, da maneira
como o fizeram os gregos, a escrita interessa na medida em que visa a uma
leitura oralizada (1998, vol.1, p.42). Nessa sociedade, os traços característicos da
leitura referem-se ao caráter instrumental do leitor, tido como aquele que
empresta a voz ao texto, ou ainda, aquele que se submete ao texto para dar-lhe a
voz; ao caráter incompleto da escrita, uma vez que esta visava à produção de
uma voz e não configura um sistema que tentava representá-la; e, por último, ao
caráter de ouvinte dos leitores, pois, se a voz do leitor é um instrumento que
possibilita à escrita se realizar em sua plenitude, seus destinatários não são
leitores no sentido literal do termo.
O sujeito-leitor, nesse caso, subdivide-se em dois: um intérprete, que
empresta a voz ao texto e se submete a ele, que, mantendo um contato efetivo,
servindo como instrumento de mediação do texto com os ouvintes da leitura; e o
ouvinte, que toma conhecimento do texto por meio de um mediador. Svenbro
(1998, vol.1, p.50) observa que, dado o caráter passivo daquele que submetia sua
voz ao texto, essa tarefa era facilmente legada aos escravos por ser considerada
uma atividade de coerção da vontade pelo autor que desejava ser lido. No
7
No “Fedro”, de Platão, em um diálogo de Sócrates com o jovem Fedro, temos exemplo da
desconfiança com relação à palavra escrita. Um dia, contou Sócrates a Fedro, o deus Thot do
Egito, inventor dos dados, do jogo de damas, dos números, da geometria, da astronomia e da
escrita, visitou o rei do Egito e ofereceu-lhe essas invenções para que as passasse ao seu povo.
O rei discutiu os méritos e as vantagens de cada um dos presentes do deus, até que Thot chegou
à arte da escrita: “Eis aqui o ramo do conhecimento que irá melhorar a memória do povo, minha
descoberta proporciona uma receita para a memória e para a sabedoria”. Mas o rei não ficou
impressionado: “Se os homens aprenderem isso, o olvido se implantará em suas almas; eles
deixarão de exercitar a memória, pois confiarão no que está escrito, e chamarão as coisas à
lembrança não de dentro de si mesmo, mas por meio de marcas externas. O que descobristes não
é uma receita para a memória, mas um lembrete. E não é sabedoria verdadeira o que ofereceis a
vossos discípulos, mas apenas sua aparência, pois, ao lhes contar muitas coisas sem lhes ensinar
nada, fareis com que pareçam saber muito, embora, em boa parte, não saibam nada. Um leitor,
Sócrates advertia a Fedro, precisa ser singularmente simplório para acreditar que as palavras
escritas podem fazer mais do que recordar a alguém o que ele já sabe. (MANGUEL, 1997, p.76-7)
24
exemplo de um diálogo de Platão, o Teeteto, Svenbro (1998, vol.1, p.50) localiza
essas relações com a leitura. Segundo o exemplo, é o escravo de Euclides que
lerá o lógos que seu amo escreveu. Terpsião e o próprio Euclides serão os
ouvintes desse lógos lido pelo escravo.
Nessa configuração, aquele que, na leitura, se relaciona materialmente com
o texto é considerado inferior àquele que a ouve. Outra questão que nos chama
atenção é o fato de que os ouvintes não necessariamente precisavam saber ler,
apenas o intérprete, nesse caso, precisaria sabê-lo. No entanto, como esses
ouvintes, de modo geral, eram pessoas abastadas, cremos que delegavam a
tarefa aos escravos por considerarem-na pouco valorizada, e não por não serem
alfabetizados.
Esse modo oralizado de leitura foi dominante na Antigüidade, mas não o
único existente, ao menos no mundo helenístico. A leitura silenciosa também
existiu na Grécia Antiga, no entanto, permaneceu como um fenômeno marginal,
praticado especialmente por profissionais da palavra escrita, mergulhados em
leitura suficientemente para favorecer a interiorização da voz leitora (SVENBRO,
1998, vol.1, p.67). Para o leitor mediano, a maneira usual de ler permaneceu
sendo em voz alta, como se fosse impossível relegar à escrita a função de
produzir som.
Herdeira de práticas de leitura e de obras de autores helenísticos, Roma
experimenta, na transição do regime republicano para o imperial, uma ampliação
do universo de leitores. Segundo Cavallo (1998, vol.1, p.71), antes do culo II a.
C. o uso da cultura escrita limitava-se substancialmente à casta sacerdotal e à
nobreza. Para os romanos de então, a leitura era circunscrita às elites cultas da
época. O autor marca o momento de agonia do antigo regime republicano como a
época de surgimento da leitura de foro doméstico, fato coincidente com o
aparecimento de uma esfera do privado em Roma. Se antes a Academia, o
gymnasium, o lyceum e a palaestra eram os espaços de leitura da elite, agora as
bibliotecas particulares e as residências passam a ser o novo espaço reservado à
tarefa de ler.
O cenário da leitura modifica-se bastante a partir do período imperial, pois a
leitura alcança outros nichos sócio-culturais. No entanto, esse novo cenário
25
favorece críticas advindas da elite representada pelos estudiosos da época, à
diversidade de leitores. Cavallo (1998, vol.1, p.74) cita cero, o qual subdivide a
finalidade da leitura entre voluptas (prazer) e utilitas (utilidade), dizendo que, para
o escritor, a segunda era finalidade do leitor de instrução elevada, enquanto a
primeira era apenas um passatempo da faixa de leitores menos instruída.
A Roma Imperial conheceu uma maior difusão do alfabetismo, fator que
proporcionou aumento do público leitor. Ler e estudar passam a ser um
ornamento das classes tradicionalmente cultas que os novos alfabetizados e os
novos ricos procuram imitar. Esse novo público era formado pela classe média e
média baixa, ora mais ora menos instruída, e constituída por técnicos,
funcionários, militares de bom nível, mercadores, agricultores e artesãos, ricos
emergentes e mulheres de condição abastada.
Esse mundo, designado pelos autores da época como vulgus, media
plebs, plebeia manus, o constituía uma coletividade homogênea de
cultura: diversificado, segundo origem social e a educação recebida, era
um público bastante estratificado e por esta razão com escolhas e
interesses diferenciados. (CAVALLO, 1998, vol.1, p.84)
Em conseqüência dessa media plebs, e de novas necessidades de leitura
8
advindas desse novo público, que lia pela voluptas, surge uma literatura de
“grande consumo” ou de entretenimento, não enquadrada nos gêneros
tradicionais. Na época imperial, o mundo greco-romano mesmo com diferenças
entre centro e províncias, entre uma região e outra e, dentro de uma mesma
região, entre cidade e campo, e entre uma cidade e outra torna-se um mundo
de vasta circulação da cultura escrita.
No entanto, não podemos estabelecer separações rígidas entre o que uma
classe ou outra lia, uma vez que um leitor de uma classe mais abastada poderia
se enveredar na leitura dessa literatura dita de grande consumo
9
, bem como um
8
A essa maior demanda de leitura responde, também, o surgimento do códice ou códex
substituindo o rolo nos últimos séculos do império. A forma mais prática prestava-se melhor a uma
manufatura não profissional, a uma distribuição por novos canais, a uma leitura mais livre em seus
movimentos.
9
Seguimos uma nomeação realizada por Cavallo (1998, vol.1, p.86). Tal literatura não se
enquadrava nos gêneros tradicionais e referia-se à: poesia de evasão, paráfrases de obras épicas,
história reduzidas a biografias ou resumos, pequenos tratados de culinária e de esportes, livretos
de jogos e passatempos, obras eróticas, horóscopos, livros de magia ou de interpretação dos
sonhos, mas principalmente de ficção, a literatura panfletária, dentre outros.
26
leitor da media plebs poderia ler um tratado filosófico. Estamos tratando de maior
prevalência e não de classificações estanques.
É preciso mencionar que, em Roma, a leitura em voz alta permanece como a
mais comum. No entanto, havia uma maior valorização da escrita e novos
espaços de leitura com relação ao mundo helenístico. No âmbito da vida privada,
além da prática de leitura individual, íntima, era muito difundida a leitura ancilar
(servil), mediada por um lector (intérprete), escravo ou liberto. A leitura silenciosa,
ainda que mais rara, era praticada com cartas, documentos, mensagens. Parece,
assim, que a leitura, em voz alta ou silenciosa, nessa época, referia-se à escolha,
na qual influíam fatores e condições particulares, como a situação financeira, tipo
de texto e finalidade da leitura.
Dessa forma, percebemos em Roma a modificação dos espaços de leitura, a
valorização do texto escrito e a diversificação do público leitor. Temos uma
variação do sujeito-leitor, que, em alguns casos, ouve a leitura realizada por um
intérprete que se sujeita ao texto, em outros ele mesmo lê, mesmo que em voz
alta. Um sujeito-leitor que se relaciona com a voz daquele que e um que tem
contato direto com o texto.
Podemos ainda mencionar que a figura da mulher leitora surge na época do
imperador Augusto, embora houvesse na era republicana alguns casos
isolados de mulheres cultas. Todavia, não foi pacífica a entrada da mulher no
mundo da leitura, pois, segundo concepções da sociedade romana, partilhada por
alguns autores de então, é melhor que uma mulher o compreenda muito bem o
que lê nos livros, pois nada mais insuportável do que uma mulher instruída.
(CAVALLO, 1998,vol.1, p. 85). A efetivação de um sujeito-leitor feminino, que,
afastado das preocupações da vida pública, dispunha de um espaço privado e
íntimo para realizar sua leitura, que em geral se detinha sobre uma literatura de
evasão
10
.
Com o avanço do Cristianismo pela Europa, novas mudanças operaram
sobre a leitura na Antiguidade Tardia e na Alta Idade Média
11
. No momento em
10
Nomeada assim por Cavallo (1998, vol.1, p.87), essa literatura que atraía a atenção das
mulheres estava repleta de histórias sentimentais ou fantásticas, com personagens femininas,
inseridas na trama exatamente com o objetivo de seduzi-las.
11
Sempre que nos referirmos a Idade Média, estaremos circunscrevendo nosso estudo ao mundo
ocidental e europeu.
27
que o Cristianismo se propõe como revelação escrita da Palavra de Deus,
pretendia, em princípio, dirigir-se a indivíduos alfabetizados de diferentes níveis
sociais e culturais. Tal fato ocorre porque o Cristianismo se confronta com uma
sociedade em que um número maior de indivíduos tinham acesso à cultura
escrita, conforme vimos ao tratar do aumento da demanda de leitura no mundo
greco-romano.
O códice, que substitui o rolo a partir do século II d. C., figura como
instrumento mediador entre os modos de leitura praticados na Antigüidade e na
Idade Média. Este é também o suporte eleito pelo Cristianismo para a difusão de
sua mensagem, por meio das Sagradas Escrituras (Cf. CAVALLO, 1998, vol.1,
p.91). Vários motivos concorrem para essa eleição
12
, no entanto, Cavallo ressalta
o seguinte:
[O Cristianismo pretendia dirigir-se] não apenas ao público tradicional
habituado ao livro-rolo [classes dominantes], mas também a indivíduos
de instrução média ou baixa, os quais, mesmo não desconhecendo os
rolos como suportes de textos mais simples ou de literatura de
entretenimento ou de divulgação, possuíam uma cultura escrita mais
próxima e familiar realizada sob forma de modestas leituras escolares e
de disciplinas técnicas. (CAVALLO, 1998, vol.1, p.92)
Nesse ínterim, o dice parece aproximar-se mais do produto escrito desse
público, mas também o era do ponto de vista econômico, por ser menos caro do
que seu antecessor. Contudo, a troca do rolo pelo códice não altera de imediato
as formas de ler dos fiéis. A leitura podia ser individual ou mediada pela voz do
intérprete nas reuniões comunitárias. E assim, textos cristãos eram difundidos a
um público de leitores, ou ouvintes, da classe média ou baixa. A escrita, por seu
turno, tinha papel crucial na manutenção das tradições ortodoxas da Igreja, na
transmissão do legado cristão e na expansão desses elementos entre as novas
gerações. A palavra escrita passa a ser percebida como o suporte de transmissão
das autoridades do passado, dos conhecimentos veneráveis.
À medida que o códice tomava a forma de livro comum, na mesma época,
entre os culos III e V, grandes transformações se realizavam na sociedade e,
portanto, na cultura. As mudanças que mais interessam diretamente às
12
Todavia, na prática, essa opção era exclusiva apenas para as Sagradas Escrituras, enquanto os
próprios cristãos, autores ou leitores de literatura não somente clássica, profana, patrística,
continuaram, em certos casos, a usar o rolo ainda por algum tempo. (CAVALLO, 1998, vol.1, p.92)
28
discussões sobre leitura são: 1) o número de alfabetizados, cristãos ou pagãos,
capazes de ler sem a mediação do intérprete, diminuía cada vez mais; 2) crescia
o analfabetismo entre as mulheres. Até que, nos séculos V e VI, a leitura encontra
seu reduto entre os dignitários da Igreja.
O códice torna-se pouco a pouco, ao contrário de seus objetivos iniciais, um
livro para minorias. Passa de um instrumento de leitura de muitos textos,
difundido entre um público variado e estratificado, para uma leitura de poucos
textos, sobretudo a blia, e os textos do Direito, lidos, relidos, retomados em
formas de citações, textos decorados e recitados (Cf. CAVALLO, 1998, vol.1). A
leitura torna-se institucionalizada e a Igreja passa a dar a interpretação
“verdadeira” dos textos.
Se no mundo antigo a leitura, pelo menos no ócio literário, era realizada em
jardins e praças, na Alta Idade Média, foi substituída pela prática concentrada no
interior das igrejas, das celas, dos refeitórios, dos claustros, das escolas religiosas
e, em algumas vezes, das cortes.
Observamos, com isso, a substituição de um sujeito-leitor, no que se refere à
leitura ou audição de textos
13
do cristianismo, que tanto poderia ser das classes
média, alta ou baixa, por um outro, atrelado diretamente à vida religiosa. E,
novamente, reencontramos um sujeito-leitor essencialmente masculino, ainda que
existissem leitoras, embora em número bem menor que o de leitores. A
realocação do espaço da leitura para o seio da Igreja e de suas instituições, além
de mudar ou restringir esse espaço, seleciona também o público leitor que
passa a ser o religioso do mesmo modo que seleciona o material de leitura e a
forma de ler. Fato que torna a Igreja uma legitimadora da leitura e das práticas de
leitura na época
Havia como prática comum o primado da meditação como forma de
incorporar o lido ao vivido. Toda leitura, fosse ela de um texto religioso ou não
deveria levar à salvação da alma:
A leitura literária ligada ao lazer que percorria o livro numa ininterrupta
seqüência de colunas, escondidas pelo som da voz leitora, era sucedida
por uma leitura concentrada e atenta, feita em voz cada vez mais baixa,
13
Manguel (1997, p.63-4) conta-nos que até boa parte da Idade Média, os escritores supunham
que seus leitores iriam escutar, em vez de simplesmente ver o texto e que os textos medievais
repetidamente apelavam à audiência para que “prestasse ouvidos” à história.
29
com dispositivos precisos que a tornavam apta à recepção autoritária do
texto. Uma leitura cujo objetivo era condicionar o pensamento à ação.
De uma leitura livre e recreativa passava-se a uma leitura orientada e
normativa; ao “prazer do texto”, substituía-se um trabalho lento de
interpretação e de meditação. (CAVALLO, 1998, vol.1, p.96)
A leitura evoluía em etapas, as quais abarcavam quatro funções dos estudos
gramaticais
14
, herdados em grande maioria da Antigüidade: lectio, emendatio,
enarratio e judicium.
Lectio era o processo pelo qual o leitor tinha que decifrar o texto,
buscando identificar os seus elementos, isto é, letras, sílabas, palavras
e frases, antes de lê-lo em voz alta, respeitando a pontuação exigida
pelo sentido. Emendatio, prática requerida pelas realidades da
transmissão de manuscritos, exigia que o leitor (ou seu professor)
corrigisse o texto contido no seu exemplar, atividade que, por vezes,
trazia a tentação de “melhorá-lo”. Enarratio consistia na tarefa de
reconhecer (ou comentar) as características do vocabulário, as figuras
retóricas e literárias e, sobretudo, de interpretar o conteúdo do texto.
Enfim, o judicium correspondia ao exercício de avaliar as qualidades
estéticas, o valor moral e filosófico do texto. (PARKES, 1998, vol.1,
p.103)
15
Nessa época, a crença de que o homem deveria preocupar-se apenas com a
linguagem da Palavra Divina e com a interpretação das Escrituras Sagradas, que
apresentavam como fim último a salvação da alma, leva à chamada hermenêutica
cristã
16
, a qual era uma forma de produzir interpretações e exegeses
17
dos textos
lidos.
Eram comuns os tratados de hermenêutica que pregavam como os textos
sagrados deveriam ser interpretados, e um dos mais influentes era De Doctrina
Christiana, de Santo Agostinho, cuja circulação aparece a partir do século IX (Cf.
PARKES, 1998, vol.1, p.113). Nessa obra, Santo Agostinho propõe que a alegoria
era um presente do Espírito Santo para estimular a nossa inteligência, e que o
processo de decifrar o significado do texto levava a uma melhor compreensão da
14
O estudo da gramática estava subordinado a ajudar a formular a correta interpretação da
Palavra Divina e servia também para aperfeiçoar o conhecimento da cultura latina. (PARKES,
1998, vol.1, p.104)
15
Pelo menos as duas primeiras etapas possuem fortes ligações com o fato de os textos
apresentarem como língua oficial o latim e de a pontuação e separação das palavras não terem se
firmado, o que ocorrerá, especialmente, com a adoção da leitura silenciosa.
16
A hermenêutica cristã refere-se à exegese bíblica, ao comentário exegético, que explicita o
significado “oculto” do texto bíblico.
17
Comentário que tem por objetivo esclarecer ou interpretar minuciosamente um texto ou uma
palavra, conforme o Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa.
30
verdade, do Logos Divino. A hermenêutica cristã de Santo Agostinho propunha
que:
Em primeiro lugar, qualquer trecho da Bíblia, que o se relacione, de
modo imediato, com as regras da moral com a verdade da fé deve ser
interpretado no sentido figurado. Em seguida, toda a interpretação deve
observar estritamente a regra de que toda exegese tem de seguir a
verdadeira fé. Em suma, toda palavra ou frase contêm algum alimento
para a alma. (PARKES, 1998, vol.1, p.114)
Até o final do século XI, quem quisesse ler ou discutir as Escrituras seguia
com fidelidade os tratados dos padres, que à época eram copiados nos
scriptorium monásticos
18
. No entanto, a tradição alegórica de interpretação não
era restrita aos textos bíblicos e ocorriam, muitas vezes, na interpretação de
textos clássicos, de glosas e de poemas da mesma época.
Vemos, nessas configurações, a grande autoridade atribuída ao texto, o qual
guardava a Palavra de Deus. Mas essa Palavra não estava acessível ao
entendimento de qualquer leitor. Era preciso a intervenção de um leitor
autorizado, capaz de decifrar as alegorias e os enigmas do texto e dar-lhe o
sentido verdadeiro, já que o texto guardava em si a autoridade de vozes passadas
e exercia poder sobre seus leitores. Apenas aqueles autorizados pela Igreja
poderiam dizer sobre as verdades divinas guardadas no texto. Aos demais
leitores cabia o papel de subordinação à leitura, ou da forma de ler daqueles que
ditavam as normas de interpretação válidas para o contexto
19
. A interpretação,
como se depreende, passa a ser interditada.
A leitura fazia parte das atividades espirituais mais nobres a que os monges
eram subordinados (Cf. HAMESSE, 1998, vol.1, p.124). A eles eram destinados
três exercícios
20
que serviam para alimentar sua vida espiritual: a leitura (legere),
a meditação (meditari) e a contemplação (contemplari).
Retiramos de Manguel uma passagem que ilustra como, na Alta Idade
Média, a leitura era percebida como um desses alimentos para a alma. O exemplo
18
Local onde eram realizadas as cópias manuscritas, permitidas, dos textos durante a Alta Idade
Média.
19
Contexto esse que sugeria que Deus nos oferecia o mundo sob dois aspectos, como natureza e
como livro.
20
(Cf. HAMESSE, 1998, vol.1, p.124)
31
refere-se a um decreto do Mosteiro de São Bento postulando que a leitura seria
parte essencial da vida no monastério:
Na hora da refeição dos irmãos, sempre haverá leitura; ninguém deverá
ousar pegar o livro aleatoriamente e começar a ler dali; mas aquele
escolhido para ler durante toda a semana deverá começar seus deveres
no domingo. E, entrando em seu ofício depois da Missa e Comunhão,
deverá pedir a todos que orem por ele, que Deus o afaste do espírito de
exaltação. E este verso deve ser dito no oratório três vezes por todos,
sendo ele o primeiro: “Oh, Senhor, abre meus lábios e que minha boca
manifeste Teu louvor”. E assim, tendo recebido a benção, ele deverá
assumir seus deveres de leitor. E deverá haver o maior silêncio à mesa,
de tal forma que nenhum sussurro ou voz, exceto a do leitor, seja
ouvido. (MANGUEL, 1997, p.137)
Além de ser uma leitura selecionada e proposta pelas autoridades
eclesiásticas, o texto e o ato de ler eram considerados como a Palavra de Deus
Todo-Poderoso. Essa concomitância com a refeição, remete-nos à pressuposição
de que a leitura era considerada como alimento espiritual, e para ambas, leitura e
refeição, era preciso preparar o corpo com orações e comunhão. O silêncio
exigido marcava a impossibilidade dos ouvintes de comentarem o texto, que,
nesse caso, figura como a autoridade maior e o leitor, ou intérprete, como um
meio de fazer falar as Palavras Divinas, demonstrando o seu assujeitamento às
autoridades, tanto a da religião quanto a do texto em si.
Durante muito tempo, na Idade Média, não houve nenhuma instituição
educacional, a não ser as escolas religiosas, mantidas pela Igreja. O propósito da
maioria das escolas era formar monges e clérigos e, desde muito cedo, a criança
era colocada em contato com os textos sagrados. Tome-se como exemplo o fato
de o livro dos Salmos ter servido como cartilha para se ensinar a ler e escrever e
de teste para avaliar o nível de alfabetização (Cf. PARKES, 1998, vol.1, p.104).
Dessa forma, a Igreja adquiriu o controle da educação, tendo o clero como a elite
intelectual e suas escolas como as instituições culturais mais atuantes na
sociedade.
Do final do século XI até o século XIV, período da Baixa Idade Média, tem-se
uma nova era na história da leitura. Estimulada pelas novas carências de uma
sociedade que vivencia o ressurgimento urbano e comercial, surgem escolas
voltadas à formação de pessoas capazes de atuar nessa nova configuração
sócio-cultural e não apenas de religiosos.
32
A partir do século XII, com o modelo escolástico
21
, a Europa Cristã assiste à
tomada de lugar da dimensão espiritual imputada à leitura pela dimensão do
saber, o que torna a leitura mais ligada ao caráter utilitário
22
(Cf. HAMESSE,
1998, vol.1, p.139). A leitura meditativa das Sagradas Escrituras é substituída
pelo exame de outros textos inscritos no programa dos cursos das escolas e das
universidades. é possível perceber a consciência da ambigüidade do termo
latim legere, que podia referir-se ao trabalho daquele que ensina e daquele que
aprende, e à atividade daquele que examina as escrituras. Propõe-se, à época, o
termo praelectio, para designar a relação de troca entre o docente e o discípulo, e
lectio para o exame das escrituras. Entretanto, o termo lectura
23
é uma criação
medieval que data somente da época universitária, inscrevendo-se no quadro do
ensino, para designar um procedimento específico de exposição de texto
(HAMESSE, 1998, vol.1, p.126).
O livro passa, então, a figurar como um objeto de trabalho intelectual, a partir
do qual era possível interpretar textos, formular a lectura. E torna-se, também, a
fonte de saber ou saberes, em vez de depositário de um conhecimento a ser
ruminado infinitamente ou conservado:
À uma leitura total, concentrada, repetitiva de poucos livros, substitui-se
uma leitura de fragmentos de muitos livros, numa época a da
escolástica marcada por uma imensa multiplicação de textos e pela
demanda de saber, mesmo se fragmentário. (CAVALLO & CHARTIER,
1998, vol.1, p.22)
Temos, a partir de então, uma nova mudança do espaço da leitura e o
surgimento do leitor escolarizado, pelo menos daquela leitura que poderíamos
chamar de oficial, que migra da Igreja para as escolas e universidades. Ainda que
a Igreja continuasse direcionando e conduzindo a vida social e religiosa, as
cidades e as universidades passaram a ter importância como centros irradiadores
21
A escolástica mostrou-se, no entendimento de Manguel (1997, p.92), um método útil para
reconciliar os preceitos da religiosa com os argumentos da razão humana, resultando numa
harmonia entre opiniões divergentes, que podia ser usada para aprofundar um ponto do
argumento. No mundo cristão, embora variando consideravelmente de universidade para
universidade, a escolástica seguiu os preceitos de Aristóteles via os primeiros filósofos cristãos.
22
Leitura como recurso a memória ou como recurso à autoridade de autores clássicos ou
religiosos, por exemplo, capaz de ajudar na melhoria da formação moral dos homens.
23
Lectura referia-se ao modo de ler um texto, isto é, de o interpretar (COLLI apud HAMESSE,
1998, vol.1, p.141).
33
dos novos valores culturais. O que torna a leitura um exercício escolar, depois
universitário, regida por leis que lhe são próprias:
Seguindo o método escolástico, ensinavam-se os estudantes a ler por
meio de comentários ortodoxos, que eram o equivalente às nossas
notas de leitura resumidas. Os textos originais fossem os dos Pais da
Igreja ou, em quantidade muito menos, os dos antigos escritores
pagãos o deveriam ser apreendidos diretamente pelo aluno, mas
mediante uma série de passos preordenados. Primeiro vinha a lectio,
uma análise gramatical na qual os elementos sintáticos de cada frase
seriam identificados; isso levaria à littera, ou sentido literal do texto. Por
meio da littera, o aluno adquiria o sensus, o significado do texto
segundo diferentes interpretações estabelecidas. O processo terminava
com uma exegese a sententia -, na qual se discutiam as opiniões de
comentadores aprovados. (MANGUEL, 1997, p.96)
O mérito desse tipo de leitura não estava em descobrir uma significação
pessoal para o texto, e sim em ser capaz de recitar o texto e compará-lo às
interpretações de autoridades reconhecidas. Ao sujeito-leitor aluno era permitida
a comparação e a memorização, mas não a interpretação pessoal dos textos.
A fim de que os intelectuais conseguissem tomar conhecimento do grande
número de obras que a partir do século XII não cessa de crescer são criados
métodos de leitura mais rápidos. Essa necessidade concorre para a suplantação
da leitura visual em lugar da leitura sonora
24
que já vinha sendo lentamente
substituída ao longo dos séculos. Dessa forma, é com a escolástica que a leitura
silenciosa ganha força e passa a ser uma tendência a ser seguida pelos leitores
em geral.
Outra forma de tornar a leitura mais rápida é através de maior organização
dos textos por meio de marcas de parágrafos, índices alfabéticos, criação de
tabelas, atribuição de títulos aos diferentes capítulos. Além da composição de
florilégios ou de coletâneas, que permitem encontrar facilmente passagens de
textos destinados à memorização, de sínteses (sumas) que procuravam
sistematizar a totalidade do saber, de resumos, compêndios e enciclopédias que
tencionavam colocar os intelectuais a par dos conhecimentos veiculados pelas
24
A leitura silenciosa, para Manguel (1997), passa a ser usual a partir do século X, já para Chartier
(1991), essa mudança ocorre, no mundo cristão, entre os escribas monásticos, em meados do
século X; nas universidades, entre os séculos XII e XIII; para os cortesãos e aristocratas laicos, no
século XIV; passa a ser a maneira usual de ler, no século XV, dos leitores familiarizados com a
escrita e de longa data alfabetizados. No entanto, a leitura oralizada permanece até o século XIX
entre os leitores inábeis para os quais o livro continua sendo um objeto incomum.
34
diversas áreas do saber. Como os medievais sempre recorriam às auctoritates
25
em suas composições literárias, os gêneros citados acima tornaram-se essenciais
e constituíram uma documentação pronta para ser utilizada quando se
necessitasse de um grande mero de textos para fundamentar teses ou
argumentos.
Esses instrumentos,
Resumindo doutrinas por vezes difíceis de serem empreendidas [...]
permitiam igualmente uma introdução mais fácil a diferentes obras. Eles
constituíam assim, com freqüência, manuais de introdução ao
pensamento do autor. [...] Todas as vantagens apresentadas por esses
instrumentos de trabalho explicam por que razão a leitura pessoal das
obras tendeu a desaparecer e como ela foi substituída, em casos muito
numerosos, pela consulta exclusiva de extratos. (HAMESSE, 1998,
vol.1, p.131)
Se, inicialmente, a finalidade dessas obras era documentária, posteriormente
essas passam a ser as leituras a que os estudantes tinham acesso, uma vez que
muitos professores as utilizavam como base de seu curso em lugar do texto
“original”. Surge, assim, o sujeito-leitor de trechos, os quais eram selecionados
pelo compilador, ou sujeito-leitor de comentários de obras, sem que o mesmo se
voltasse para a obra inicial a fim de lê-la em sua totalidade. Diferentemente do
leitor religioso que lia os textos a partir dos pontos de vista autorizados pela
Igreja, mas que se deparava com as obras iniciais, estes últimos lêem o que
poderíamos denominar de uma literatura fragmentária.
Não podemos deixar de mencionar que outro fator que proporcionava
sucesso dessa literatura de compilação tem a ver com a mudança caracterizadora
da população universitária após a mortandade ocasionada pela Peste Negra.
Nessa ocasião, a universidade, em lugar de estudantes oriundos das cidades,
passa a receber os de origem rural, que apresentam conhecimentos culturais bem
diferentes daqueles idealizados por essas instituições. Nessas configurações, os
textos compilados são convenientes para introduzir esse novo público em temas
abordados nos cursos e dotá-lo de conhecimentos culturais esperados pelos
docentes. O que traz, por sua vez, o problema inerente ao filtro da seleção
26
: o
25
Autoridades.
26
Papel crucial, no que se refere à seleção das leituras, apresentam as diversas ordens religiosas
que, a fim de evitar discussões heréticas entre os fiéis, estimulavam a composição e a difusão
35
valor dos trechos escolhidos, a qualidade das passagens transmitidas dependem,
inteiramente, do julgamento do compilador. Assim passagens inteiras eram
relegadas ao esquecimento quando não haviam sido julgadas dignas por este.
Como mencionamos no início deste capítulo, por meio da informação que
nos traz Manguel (1997), a respeito do ensino de leitura às crianças, na Baixa
Idade Média aprender a ler e escrever era privilégio de aristocratas e da alta
burguesia. As amas ou as mães, quando sabiam, eram encarregadas de ensinar
as primeiras letras às crianças pertencentes a esses grupos. Após essa etapa,
eram contratados professores particulares para a educação dos meninos e,
posteriormente, estes eram enviados à escola. no caso das meninas, a
educação, em geral, ficava a cargo de suas mães. Não havia, à época, um
consenso
27
sobre os benefícios de ensiná-las a ler. Quando enviadas às escolas,
em geral, apresentava-se como objetivo a preparação de tais meninas para o
convento.
Isso nos permite dizer que os sujeitos-leitores desse período eram,
essencialmente, homens, burgueses, aristocratas ou religiosos, que usualmente
liam em silêncio e privadamente. Suas leituras eram mediadas pela seleção
efetuada pelo compilador, fosse este religioso ou um mestre universitário. Eram
leitores
28
que ouviam, também, as leituras (lecturas) efetuadas por seus
professores
29
, os quais estavam autorizados pela instituição universitária, a
produzir interpretações pessoais das obras, desde que baseadas em autoridades
que validassem seus argumentos. Era um leitor efetivo de comentários, ou seja,
de interpretações dos textos que faziam parte do círculo de leitura
30
da época, a
dessa literatura sobre a qual podiam exercer certo controle por meio da seleção estabelecida.
Consideravam que somente as obras teológicas podiam ser colocadas livremente à disposição
dos leitores.
27
Para maiores informações, vejam-se os exemplos citados por Manguel (1997, p.92) a respeito
de escritos que refletem essa falta de consenso sobre os benefícios da educação, pública ou
privada, para as meninas.
28
Tais leitores acompanhavam as leituras por meio de textos e de livros que dispunham para as
aulas.
29
Não se pode falar de leitura pública no quadro do ensino da Idade Média, como se fazia durante
a Antiguidade, quando um leitor [intérprete] permitia desse modo que um grande público tomasse
conhecimento de uma obra. Nesse período, particularmente, trata-se antes de leitura explicada e
comentada de uma obra que fazia parte integrante dos programas de curso para alunos.
30
Além das Sagradas Escrituras, entre os livros mais estudados estavam textos de Aristóteles, os
comentários de Boécio às obras daquele filósofo, os textos dos Pais da Igreja e de São Tomás de
Aquino.
36
quem o saber utilitário importava mais do que o conhecimento espiritual. Ainda
podemos dizer que esse sujeito submisso à leitura legitimada pela universidade
não interpreta; repete a interpretação que lhe é dada.
Coexistiam, durante toda a Idade Média, outras formas de leitura no mundo
laico, as quais eram, diríamos, não oficiais. A a invenção da imprensa, a
alfabetização era rara, os livros propriedade e privilégio de poucos, conforme
propõe Manguel (1998, p.138). Por esse motivo, as pessoas que queriam
familiarizar-se com determinado livro ou autor tinham amiúde mais chance de
ouvir o texto recitado ou lido em voz alta do que de segurar o precioso volume nas
mãos (MANGUEL, 1998, p.138). Dessa maneira, observamos que a figura do
sujeito-leitor intérprete aqui na acepção de mediador e a do sujeito-leitor
ouvinte, a exemplo do que ocorria na Antigüidade, não desaparecem. Todavia
não são intérpretes que se submetem subservientes ao texto, mas leitores aptos a
ler em voz alta e aumentar o acesso ao conteúdo dos textos àqueles que, por
falta de alfabetização ou de condições econômicas, não o podiam acessar.
Também data do final da Idade dia o aparecimento de narrativas escritas
em língua vernácula (Cf. MANGUEL, 1997; CAVALLO & CHARTIER, 1998, vol.1),
o que configurou uma grande transformação não somente na forma de ler, mas
na relação do sujeito-leitor com o texto. O latim, modelo de língua e de poder (c),
que funcionava como barreira sócio-cultural para muitos leitores, deixa de ser a
língua exclusiva para a publicação escrita. Amplia-se o público de leitores, agora
não apenas restrito ao grupo de instruídos na língua clássica, e populariza-se a
leitura fora das instituições oficiais. Todavia, nesse período, o latim continuava a
dominar a Igreja, a escola e a educação, e somente nos séculos seguintes esse
Império será questionado e derrubado.
No tempo dos humanistas, durante o Renascimento, os livros dos autores
clássicos serão recolocados em circulação e juntamente com a imprensa
31
, que
acaba de ser inventada, ocorrerá uma revalorização do gosto pela leitura. Para
Manguel,
31
A descoberta de Gutenberg modificou as condições de movimento de idéias acelerando a
circulação de textos e reduzindo o custo de cada cópia (MANGUEL, 1997). No entanto, Chartier
esclarece que na realidade, o escrito copiado à mão sobreviveu por muito tempo à invenção de
Gutenberg, até o século XVIII, e mesmo o XIX. Para os textos proibidos, cuja existência devia
permanecer secreta, a cópia manuscrita continuava sendo a regra (1998, p.9).
37
pelo menos na escola humanista, [a leitura] estava gradualmente se
tornando responsabilidade de cada leitor individual. As autoridades
anteriores tradutores, comentaristas, anotadores, glosadores,
catalogadores, antologistas, censores, canonistas haviam
estabelecido hierarquias oficiais e atribuído intenções à diferentes
obras. Agora, os leitores deviam ler por si mesmos e, às vezes,
determinar valor e significado, à luz daquelas autoridades. (MANGUEL,
1997, p.102)
Nesse sentido, concorda Hamesse ao afirmar que os humanistas restauram
todo o prestígio da leitura pessoal. Recomendam o contato direto com os
originais
32
(1998, vol.1, p.138). Entretanto, os comentários, os florilégios ou
coletâneas continuam a existir. No que se refere à diferenciação traçada entre o
uso destes pelos humanistas e pelos escolásticos, depreende-se pelo
posicionamento tanto de Manguel como de Hamesse que as autoridades, na
leitura humanista, e, decorrentemente, os textos eram tratados não como
atemporais e a-históricos. A leitura dos textos antigos visava ao mesmo objetivo:
ação e resultados práticos no presente.
À medida que os livros impressos substituíam os manuscritos, novas
experiências de leitura difundiam-se no conhecimento europeu, experiências que
se referem tanto ao fato de várias cópias de um texto poderem ser utilizadas por
pessoas diferentes em locais e tempos distintos, proporcionando uma maior
circulação do conhecimento, quanto à divulgação dessa nova postura diante do
texto.
O jovem leitor da Europa ocidental, no início do século XIV, o se
aventurava sozinho na leitura de livros dos antigos: um erudito humanista
organizava essa entrada dando-lhe um modelo
33
que poderia imitar, caso viesse a
empreender o mesmo trabalho de processar textos anos mais tarde, ao lê-los por
conta própria. Grafton esclarece-nos como ocorria esse processamento:
Em primeiro lugar, o professor fazia paráfrase, linha por linha, do
documento clássico em questão. Prosa e verso, filosofia e história, tudo
era esmiuçado e reempacotado como narrativa latina seca, mas correta.
Apenas depois desse exercício, o professor retomava os mesmos
trechos, mais vagarosamente, uma segunda vez. Nessa passagem ele
32
O termo original tomado na acepção de menor interferência textual da atividade copiadora.
33
Ler não era uma atividade que cessava ao final da escola, como no caso de Maquiavel, que
subverteu os preceitos dessa moldura humanista. Aprendidas as habilidades técnicas por meio
das escolas, os leitores poderiam usá-las para fins imprevisíveis. Por esse motivo, a leitura, dado
esse caráter subversivo, sempre foi temida pelos regimes, religiosos ou políticos, que tentavam
realizar o controle da mesma.
38
identificava os fatos e os indivíduos históricos, explicava mitos e
doutrinas, além de revelar a lógica dos tropos, utilizando os muitos
problemas que surgiam como pretexto para digressões sobre todos os
temas imagináveis. Desse modo, o estudante aprendia que cada texto
não era apenas uma mera história, mas sim um complexo quebra-
cabeça cuja lógica mais profunda tinha de ser descerrada pelo
professor com seus bolsos cheios de chaves- mestras. (GRAFTON,
1998, vol.2, p.25)
Nessa remontagem do quebra-cabeça textual, o aluno
34
bem educado,
chegaria à interpretação. Essa exegese humanista, na medida em que se
multiplicavam os textos disponíveis e tornava-se mais urgente a questão de como
lê-los, leva ao surgimento de manuais
35
de técnicas e de exercícios de
aprimoramento de leitura. O que mais nos chama a atenção é que o texto parecia
importante não por si mesmo, mas por estar novamente ligado a um sistema de
aprendizado e de interpretação. Ocorre, assim, uma substituição dos comentários
medievais o apreciados pelos humanistas por outros comentários dentro dessa
nova moldura. No entanto, deparamo-nos com um sujeito-leitor que, bem
assessorado, após o aprendizado do método e de posse das próprias chaves-
mestras, poderia exercer a interpretação individual e cujo mérito o era mais a
comparação entre leituras e sim o aprendizado por meio delas.
Uma diferença importante entre os sujeitos-leitores, alunos escolásticos e os
humanistas é que a estes últimos era aconselhado que a leitura fosse feita com a
pena na mão, como no exemplo citado por Grafton, no qual um mestre aconselha
ao aluno que seja o que for que estiver lendo, tenha sempre à mão um caderno
de anotações [...] no qual você possa escrever o que quiser e listar os tópicos que
você juntou (1998, vol.2, p.24); os alunos anteriores deveriam apenas prestar
atenção à leitura realizada por seus mestres. Além da aproximação das atividades
de leitura e de escrita, dissociadas em tempos primórdios, chama-nos a atenção o
fato de que essas anotações podem ser vistas como uma forma de leitura pessoal
e uma modificação quanto ao princípio de que todo texto importante deveria ser
memorizado.
34
O leitor acumulava uma grande quantidade de dados históricos, mitológicos e geográficos à
medida que avança nos textos do currículo, e mais importante, desenvolvia uma atitude e
dominava um conjunto de instrumentos. (GRAFTON, 1998, vol.2)
35
Esses manuais funcionam como uma sala de aula imaginária muito mais ampla do que aquela
que poderia ser constituída por uma turma individual. (GRAFTON, 1998, vol.2, p.27)
39
O desenvolvimento pelo qual passa a Europa após o século XV e que
envolve a reconstituição do continente após as conseqüências da Peste Negra,
imprime o direcionamento da leitura, fosse privada ou pública, para fins concretos
tanto políticos, quanto intelectuais. Tal fato traz características pragmáticas à
leitura e não apenas estéticas, e assim, dota-a de um contorno um pouco mais
social. Novas necessidades de leitura, estimuladas pela expansão das relações
comerciais, surgiam. É o caso, por exemplo, do aumento das correspondências
administrativas. Os negócios blicos ou privados necessitavam cada vez mais
de um número maior de pessoas capazes de ler, e nesse caso, em idioma
vernáculo
36
(Cf. FISCHER, 2006).
Lutero
37
exerceu papel importante para a leitura, no século XVI, ao
questionar a interpretação das Sagradas Escrituras dependente dos dogmas da
Igreja e pressupor que o sentido estava disponível a todos àqueles que
realizassem uma leitura mais profunda do texto (OLSON, 1997, p.169), o que
demonstra uma tentativa de incorporação do contexto à leitura. Ainda, de acordo
com Olson (op.cit.), para Lutero as leituras e interpretações deveriam
fundamentar-se abertamente no texto, o que indica uma mudança de objetivo,
que não era mais a revelação e sim o sentido. A crença luterana de que o texto
poderia falar por si mesmo, sem que fosse necessária a intervenção ou a
interpelação pelos dogmas ou de qualquer autoridade, promove uma inserção do
indivíduo no processo interpretativo dos textos religiosos, talvez sem precedentes
na história.
Com a tradução da Bíblia
38
para a língua vernácula, Lutero promove o
acesso do alfabetizado comum
39
ao texto no qual se fundamentavam as leis
36
A difusão da impressa acontece no momento em que o uso das línguas nacionais está em alta
na maioria das esferas da vida social. Fato que tem a ver diretamente com interesses econômicos
de ampliação do público-leitor (cf. GILMONT, 1998, vol.2, p.48).
37
Martin Lutero, o monge alemão que foi um dos primeiros a contestar fortemente os dogmas da
Igreja Católica.
38
O uso das línguas vernáculas trará à cristandade um benefício “maior do que ilustres e grandes
livros e questões que, nas escolas, são tratadas somente entre os eruditos.” (LUTERO apud
GILMONT, 1998, vol.2, p.52)
39
R. Gawthrop e G. Strauss (apud GILMONT, 1998, vol.2,p.54) deixaram bem estabelecido que
Lutero não se fez o promotor de uma leitura popular da Bíblia. No ardor dos primeiros combates,
ele sem dúvida manifestou desejo de que cada cristão estudasse por si mesmo a escritura e a
pura Palavra de Deus. E no Manifesto pede que as crianças recebam lições cotidianas sobre o
Novo Testamento de maneira a se familiarizarem com o conjunto desses livros desde a idade de 9
ou 10 anos. Mas, após a guerra dos camponeses e sobre o efeito da proliferação de
40
religiosas. Não mais a barreira da língua entre texto e leitor. Conforme Furlan,
Lutero ao traduzir a Bíblia, concedia grande importância ao meio cultural dos
destinatários, por isso traduzia adaptando o texto à mentalidade e ao espírito dos
homens de seu tempo a fim de dar a compreender as realidades históricas,
culturais e sociais (2004, p.2) relatadas na Bíblia e próprias de uma sociedade
distanciada no tempo e no espaço. Portanto, esse humanista privilegiava mais os
aspectos comunicativos a compreensibilidade do texto e o leitor da tradução
do que os aspectos estéticos, salvaguardando sempre a mensagem divina.
À medida que mais leitores começaram a ler a Bíblia sem a intervenção do
padre, portanto, sem a mediação que assegurava a significação oficial das
passagens lidas, o sentido pregado pela Igreja passa a confrontar-se com outros.
Além disso, ao serem capazes de ler a Bíblia, esses leitores também passaram a
processar outros textos, não religiosos. E assim, a escrita ganha cada vez mais
território em um mundo em que o essencial das relações era oral. A leitura
ultrapassa os muros das escolas e chega até o sujeito-leitor popular
40
. É bem
verdade que ela existia entre esses sujeitos-leitores, mas agora se tratava da
leitura do livro que significava, à época, o poder da Igreja. A combinação desses
fatores abala fortemente o monopólio da Igreja sobre o ensino e sobre o
pensamento das pessoas.
Com o feito de Lutero, uma nova configuração de sujeito-leitor aparecia na
história: um sujeito-leitor popular, capaz de ler a Bíblia sem a mediação de um
intérprete, desvencilhando-se da autoridade da Igreja. Sujeito-leitor que
encontrava novos e mais numerosos materiais de leitura trazidos pelo advento da
impressão e que graças à forma de ler silenciosamente podia esconder a respeito
do que liam. E assim, lidar com textos que lhe foram proibido em outras
circunstâncias
41
, isso porque a leitura em voz alta e a leitura pública são mais
passíveis de serem vigiadas socialmente. Nesse sentido, surge um sujeito-leitor
cada vez mais responsável por aquilo que lê.
interpretações heterodoxas da escritura, seu discurso evolui. Ele insiste em um controle da Igreja
no acesso à Bíblia.
40
Popular tomado no sentido que compreende os leitores mais humildes quanto às condições
socioeconômicas.
41
Ler sozinho permite igualmente o conhecimento de textos que não seriam lidos publicamente:
obras heréticas, eróticas, etc. (SAENGER, 1998, vol.1)
41
O posicionamento a favor ou contra a leitura individual da Bíblia
42
torna-se
intenso no século XVI, após a tradução vernacular desta realizada por Lutero.
Esse mesmo monge, como mencionado anteriormente, depois da revolta dos
camponeses, torna a pregar o controle da Igreja sobre o acesso à Bíblia. A
grande luta, porém, refere-se ao controle das interpretações do livro sagrado, as
quais eram consideradas perigosas se realizadas por pessoas tidas, tanto por
estudiosos da época quanto por autoridades governantes, como incapazes de
perceber a profundidade dos escritos bíblicos. Suas leituras eram vistas como
profanadoras, heréticas, dissimuladas por serem julgadas como muito superficiais
e incapazes de adentrar o sentido do texto.
É interessante notar que em todo esse dissenso uma preocupação diferente
toma conta do cenário sobre a leitura: o poder do leitor sobressai-se sobre aquilo
que é lido, que é preciso não apenas cercear o acesso ao texto, mas o tipo de
leitura que se faz deste e determinar quem está apto a realizar leituras aceitas
pelos regimes controladores da interpretação. É preciso garantir novamente a
homogeneidade interpretativa em meio à heterodoxia nascente. Esse,
provavelmente, é o item de maior relevo no episódio marcante da tradução de
textos legitimados ao longo da história, permitindo assim o acesso popular aos
mesmos. Todavia, não podemos nos esquecer que a maioria da população, à
época, permanecia analfabeta, embora o número de alfabetizados fosse
crescente na Europa devido à necessidade não apenas estética e religiosa, mas,
também, pragmática de novos leitores.
Em fins do século XVI, a Igreja define a Vulgata Latina como a única versão
autêntica da Bíblia e circunscreve a maneira correta de compreensão dos textos
bíblicos. Dessa forma, fica determinado que
42
Gilmont (1998, vol.2, p.55) conta-nos que Henrique VIII durante muito tempo proibiu qualquer
divulgação da Bíblia em inglês. E quando finalmente cede à pressão externa e autoriza tal
publicação o faz com rígidas restrições: aos nobres e fidalgos, era permitido ler e mandar ler em
voz alta, para eles e para todos os que se abrigam sob seus tetos; às mulheres, artesãos,
aprendizes e ajudantes, pessoas de nível igual ou inferior ao dos pequenos proprietários,
agricultores e trabalhadores braçais, a leitura da blia era expressamente proibida; e por fim, aos
burgueses, assim como as mulheres nobres, podiam ler para si próprios e para mais ninguém,
pois, embora apresentassem competência para não se desencaminhar, não tinham autoridade
para impor-se àqueles que os cercam.
42
nas coisas da e da própria moral, ninguém deve ter o atrevimento,
fiando-se em seu próprio juízo, de dar à Sagrada Escritura um sentido
pessoal, nem de dar-lhe interpretações ou contrárias àquelas que lhe dá
e deu a Santa Madre Igreja, à qual cabe julgar o verdadeiro sentido e a
verdadeira interpretação da Sagrada Escritura, ou opostas ao
sentimento unânime dos padres. (JULIA, 1998, vol.2, p.80)
Novamente nos deparamos com uma imposição do mediador na atividade
interpretativa do texto, e a reafirmação do papel da Igreja como provedora do
sentido legítimo. No entanto, perguntamo-nos sobre que outros livros, além da
Bíblia e dos textos religiosos, eram lidos pelo sujeito-leitor popular na
Renascença
43
e encontramos em Chartier (1998, vol.2) essa indicação. O autor
propõe que esse leitor lia muitos dos livros que circulavam em outros meios
sociais e, muitas vezes, até mesmo eram possuidores de livros que
especificamente não lhe eram destinados como, por exemplo, os romances de
cavalaria, à priori, destinados à nobreza. Dessa maneira, fica evidente que,
embora haja uma indicação sócio-cultural de quem deva ler determinado texto,
não leituras exclusivas de uma classe. O que há, geralmente, são usos e
interpretações dos mesmos textos realizados por sujeitos-leitores diferentes.
A segunda metade do século XVI e o século XVII assistem à imposição de
inúmeros textos pela Igreja. Denominados de leituras oficiais, esses textos
representavam uma contrapartida da Igreja na tentativa de controlar
interpretações quaisquer, da proibição da leitura
44
de determinadas obras. Era
proibida também a leitura livre das Sagradas Escrituras. No que tange a essa
última, o procedimento era permitido às pessoas que tiverem obtido permissão
escrita do bispo ou do inquisidor [...] de qualquer modo, essa permissão será
dada aos homens eruditos e piedosos (JULIA, 1998, vol.2, p.84).
Nesse período de grande perseguição religiosa aos que ousassem a leitura
dos textos proibidos e de tentativa de limitar o seu alcance, pelo menos nas
43
Os leitores “populares” do Renascimento o se defrontam, portanto, com uma “literatura” que
lhes seja específica. Por toda parte, os textos e os livros circulam na totalidade do corpo social e
são compartilhados por leitores cuja condição e cultura variam muito (Cf. CHARTIER, 1998, vol.2,
p.122).
44
Essa proibição deu origem ao INDEX (Índice dos livros proibidos), promulgada pelo papa Pio IV,
em nome da Sagrada Congregação da Inquisição Romana, no século XVI. Tais livros eram
considerados pela Igreja como perigosos para a e a moral dos católicos. Incluía livros
censurados antes da publicação, bem como livros imorais publicados. Quando foi abandonado,
em junho de 1966, continha, entre centenas de obras teológicas, outras tantas obras de autores
seculares, de Voltaire e Diderot a Colette e Graham Greene. (MANGUEL, 1997, p.320)
43
cidades, um vasto público de leitores populares ganhava forma. E graças à leitura
oralizada, que convivia com a leitura silenciosa, tanto os mal alfabetizados como
os analfabetos adquirem familiaridade com as obras e com os gêneros de leitura
tidos como cultos. Leitura esta compartilhada muito além dos meios letrados.
Dada a importância que a voz continuava tendo na transmissão dos
textos, o público da literatura escrita não se limitava a seus “leitores”, no
sentido moderno da palavra, mas estendia-se a um elevado número de
ouvintes. Cada exemplar de um impresso ou manuscrito era virtual foco
de irradiação, do qual podiam emanar incontáveis recepções, seja por
sua leitura oral, seja porque servia de base à memorização ou à
repetição livre. O alto grau de analfabetismo não constituía em princípio
um obstáculo para a existência de um público muito numeroso: bastava
que em uma família ou em uma comunidade houvesse uma pessoa que
soubesse ler para que, virtualmente, qualquer texto chegasse a ser
desfrutado por muitos. (FRENK apud CHARTIER, 1998, vol.2, p.124)
Temos, assim, a proliferação do hábito da escuta da leitura, tal qual existiu
na Roma Imperial e, também, o aviltamento da figura do sujeito-leitor ouvinte, que
não se relacionava materialmente com o texto escrito, mas se tornava
familiarizado com a leitura e a escrita. O sujeito-leitor intérprete, mediador e
propagador dos textos, não era mais um subordinado que se assujeitava à leitura
por ordens de um superior, mas alguém que compartilhava com outros a técnica
que lhe fora propiciada pela alfabetização. Esses leitores (ou ouvintes) se
deparam com uma variedade de textos cuja publicação também lhes era
destinada, o que constitui um grande diferencial na sócio-história da leitura.
A leitura oralizada, especialmente no culo XVII, convive com os
progressos da leitura silenciosa
45
, possivelmente “solitária”, não somente nos
meios letrados, mas entre os mais humildes, é o que nos atesta Chartier (1998,
vol.2). Esse dado nos permite inferir a solidificação da escrita na sociedade
européia a que nos reportamos.
No século XVII, a popularização de novos formatos de textos impressos,
os quais promovem a circulação das obras tradicionais ou novas em todas as
camadas sociais, inclusive entre os leitores (ouvintes) populares. É o caso dos
45
O progresso da leitura silenciosa, todavia, é motivo de temor por parte das autoridades tanto
eclesiásticas quanto religiosas, pois como argumentado anteriormente, nesse capítulo, em tal
modalidade é mais difícil de saber e controlar as interpretações e o material lido.
44
livros da Biblioteca Azul
46
, dos chapbooks
47
e dos pliegos
48
, por exemplo.
Especificamente no caso do pliego, pode ser notada, conforme Chartier (1998,
vol.2), uma sensibilidade para perceber um público dividido, desdobrado entre
vulgo e discreto
49
.
Notamos que, com uma maior popularização da leitura, a classificação dos
sujeitos-leitores aponta para o princípio de distinção dentro do campo letrado,
novamente assegurando a supremacia de certos leitores e de certas formas de ler
sobre as demais. E, no entender de Julia, esse crescimento da leitura na
sociedade tornou, de fato, superadas as tentativas de controle sobre o ato de ler
pela Igreja, a partir do século XVII, especialmente (Cf. 1998, vol.2, p.91).
A leitura individual instaura-se definitivamente, na Europa Ocidental, no
século XVIII, época do Iluminismo. Os iluministas burgueses estavam
convencidos de que o caminho para a emancipação social passava pela leitura.
Por esse motivo, travaram uma grande propaganda em prol de uma leitura útil à
disciplina social e à racionalização dos tempos modernos em seu conjunto, capaz
ainda, de valer como um ato de libertação contra o amordaçamento intelectual
feudalista e como forma de emancipação do discurso doutrinário religioso.
A burguesia, como nova opinião pública não-palaciana, questiona o
monopólio de informação e interpretação das autoridades eclesiásticas e estatais
e desenvolve novas estruturas de circulação e comunicação, a princípio
literariamente, depois politicamente antifeudais. E do questionamento do status de
nascimento, surge a identidade individual. Conforme Wittmann, nenhum outro
meio serviu melhor aos ideais de formação dessa identidade burguesa do que a
palavra impressa (1998, vol.2, p.138). Com isso, o livro e a leitura
50
ganharam um
46
Os livros da Biblioteca Azul francesa ou dos chapbooks ingleses eram textos que haviam sido
publicados de outra forma e por outros, mas ao ganharem novas formas, são colocados ao
alcance econômico e intelectual de novos leitores. Os principais gêneros publicados nesse formato
são os romances de cavalaria, a literatura de malandragem, os manuais de civilidade, as vidas dos
santos, cânticos natalinos, manuais de devoção – estes três últimos de publicação excluída depois
de algum tempo – e os almanaques.
47
Vide nota anterior.
48
Livretos de até oito páginas, de baixo custo, que traziam como publicação desde poesia dos
cancioneiros aos fatos do dia (fait-divers).
49
O vulgo pretende desqualificar os leitores (ou ouvintes) desprovidos de julgamento estético e de
competência literária. (CHARTIER, 1998, vol.2, p.127)
50
A palavra impressa tornou-se pura e simplesmente a representante burguesa de cultura. (Cf.
WITTMANN, 1998, vol.2)
45
novo valor na consciência pública. A leitura, a partir de então, revestida da função
emancipadora, passa a ser encarada como força social produtiva e o leitor visto
como membro útil à sociedade.
O século XVIII marca, ainda, a mudança no cenário da leitura, pois esta se
torna um processo social indiferente, já que pertencer a uma determinada camada
social quase não regulava mais o acesso à leitura. Ocorre um estilhaçamento e
anonimização do público leitor (WITTMANN, 1998, vol.2, p.140), tanto no aspecto
social quanto geográfico. Percebemos que o conceito de leitura como
introspecção, altamente valorizado outrora, é sublimado, e, em seu lugar, cresce
a concepção da leitura como acesso à informação. Informação que passa a ser
valorizada por todas as camadas sociais, que demandam maior acesso a
diferentes materiais de leitura.
Estimulados no século anterior, em boa parte da Europa, comerciantes,
camponeses
51
e mulheres podiam, no culo XVIII, tirar proveito da distribuição
literária, algo que antes era controlado por abastados eruditos e um poderoso
clero. Ocorre, também, o declínio da leitura de textos religiosos, em virtude dos
ideais iluministas propagados pelo continente europeu, o qual incluía a sabedoria
literária, e que propiciavam a substituição de crenças arraigadas em superstições
pelo senso comum.
A leitura que promovia uma moral útil à sociedade e, ao mesmo tempo,
individual, era, tanto para comerciantes como para estudantes, tanto para a
mulher culta como para o funcionário, não uma diversão ociosa, mas um dever
moral. A estratégia teve êxito especialmente entre o público leitor feminino. As
revistas moralizadoras, destinadas a esse público específico, visavam a uma
formação estreitamente limitada ao âmbito dos deveres domésticos (Cf.
WITTMAN, 1998, vol.2). Com semelhante engajamento era praticada a leitura
para a educação da juventude
52
, e a alfabetização atinge os indivíduos de nível
sócio-econômico médio.
O espaço principal da leitura passa a ser efetivamente a esfera doméstica
privada e ler foi, assim, incorporado à vida cotidiana. Mas o modelo de leitura da
51
Os camponeses foram integrados apenas parcialmente ao público leitor, conforme atesta Lyons
(1998, vol.2, p.197)
52
Só então se reconhece a infância como fase da vida expressamente definida.
46
doutrina iluminista, no qual o componente de formação social estava no centro,
modifica-se, passando a conviver com uma forma menos racional e muito mais
emocional de se ler, tida como escapista e narcótica (Cf. FICHTE apud
WITTMANN, 1998, vol.2, p.150), dando origem a uma literatura classificada como
de evasão.
Se durante a Idade Média, a leitura era uma prática lenta, penosa, que
significava retomar sempre os mesmos livros, pouco numerosos além da Bíblia, a
partir da metade do século XVIII, temos uma leitura mais apressada, feita sem
grandes esforços
53
, mas que nem por isso tocava menos o leitor em seu íntimo. A
leitura silenciosa permitiu um relacionamento mais livre e reservado com a escrita,
além de ter criado a possibilidade de ler mais rapidamente e, portanto, de ler mais
e textos mais complexos. Por outro lado, essa nova maneira de ler, tida como
“extensiva”, teria se transformado na mais “intensiva” das modalidades de leitura.
Como atenta Wittmann (1998, vol.2), os romances
54
de Richardson, Rousseau e
Goethe tomavam conta de seus leitores, absorvendo-os em uma leitura capaz de
causar desmaios e até mesmo suicídios
55
.
Além de romances, muito populares entre as mulheres
56
, os jornais também
exercem um forte impulso à popularização da leitura nessa época:
Agora realmente se trata de uma nova moda de leitura [...] que se
difundiu em toda a Europa, [e] atrai todas as camadas e classes da
sociedade e suplanta quase toda a leitura diferente. Trata-se da leitura
de jornais e panfletos políticos. Com certeza é a leitura em voga mais
popular que houve; do governante e dos ministros até o lenhador e o
camponês na taberna da aldeia, da dama em sua toilette até a
cozinheira todos agora lêem jornais. (Journal des Luxus und der
Moden apud WITTMANN, 1998, vol.2, p.156)
53
Pensemos que os leitores não tinham mais que traduzir os textos do latim ou do grego; os textos
eram impressos, portanto não apresentavam a dificuldade de identificação dos caracteres tal qual
ocorria com muitos manuscritos. maior acessibilidade aos textos e, ainda, os leitores podiam
contar com a ajuda da lâmpada, que de acordo com Manguel (1997, p.186) permitia ler a qualquer
hora do dia ou da noite e na comodidade de suas camas, caso quisessem.
54
O romance foi elemento de grande popularidade no século XVIII, na Europa. Mas, em algumas
regiões, a leitura de romances foi considerada pervertida ou uma perda de tempo como algo
insignificante, capaz de desviar a atenção da sociedade dos ideais de emancipação, em voga,
com o Iluminismo.
55
Wittmann (1998, vol.2) diz que esse tipo de leitura, de proporções emocionais tão profunda,
permanece estranha a s, mas que pode ser comparada com o êxtase dos adolescentes em
concertos de pop.
56
De acordo com Lyons (1998, vol.2) e Manguel (1997), durante os séculos XVII e XVIII, a Igreja
Católica teria incentivado as mulheres a ler (sobretudo, os textos religiosos), mas condenava-as a
não escrever, acreditando assim impedi-las de se expressarem livremente.
47
Interessante observarmos que na premissa de que todos liam, importa
perceber que o ingresso de novos atores no mundo letrado tem como correlato o
desejo de operar distinções entre “ignorantes” e “sábios”, entre “boas” e “más”
leituras, maneiras corretas e incorretas de ler. A capacidade e a oportunidade de
ler não poderiam “borrar” as distinções entre pessoas comuns e “pessoas
eruditas”. Essa leitura, capaz de atingir diferentes segmentos da sociedade e feita
sem supervisão, deveria ser distinguida daquela feita por uma pessoa cultivada
57
,
esta última atingida somente quando se é capaz de ler determinados textos e de
determinada maneira. Na mesma linha dessa proposição, Wittmann ressalta que
agora se observa uma grande distância entre a elite e a massa de uma nação
(1998, vol.2, p.150). Todavia, não é mais a Igreja quem está autorizada a dizer
qual é a leitura legitimada e sim a elite intelectual, que nesse caso se referia à
burguesia.
As significativas mudanças sociais que ocorreram no final do século XVIII e
meados do culo XIX foram marcadas, sobretudo, pelas revoluções Social
Francesa e Industrial Inglesa. Com elas, a vida social era cada vez mais
determinada por uma classe média em expansão, formada, fundamentalmente,
pelos habitantes letrados das cidades. Estas recebiam, com maior freqüência que
antes, massas de iletrados que abandonavam suas terras no campo e colocavam
em risco a estabilidade social do espaço urbano.
Havia esperança de se obter melhor integração dessas populações, tidas
como potencialmente perigosas, por meio do ensino público. Por esse motivo, no
século XIX, época da prensa mecânica
58
, que em muito acelera o processo de
reprodução dos materiais de leitura, a alfabetização infiltra-se nos níveis cio-
econômicos mais baixos e com isso a Europa Ocidental atinge a alfabetização em
massa, disseminando os princípios fundamentais da classe governante referentes
à disciplina, ao valor do trabalho e à responsabilidade cívica por meio de valores
cristãos, conforme nos explica Lyons (1998, vol.2).
Essas prerrogativas, necessárias para a consolidação da sociedade
capitalista do culo XIX, fizeram, de acordo com Lyons, da leitura um
57
Pessoa que participa e é formado da/naquela cultura instituída como legítima.
58
Com o advento da imprensa ou prensa mecânica–, o livro começa a figurar como objeto de
produção em massa (Cf. GRAFTON, 1998, vol.2, p.23).
48
instrumento de controle social que visava à formação de “homens melhores”
(1998, vol.2, p.189). O conhecimento é visto como poder, e esse foi um dos
motivos que levou o Estado a tutelar a educação, que antes ficava concedida a
outras entidades, como por exemplo, às ordens religiosas. A tarefa que se coloca
à escola é a de articular o casamento racional entre uma cultura clássica e uma
cultura moderna, essa última constituída de teorias científicas e aplicações
utilitárias. O significado da escola assim está relacionado com o papel de difundir
o conhecimento necessário para o funcionamento de uma sociedade em processo
de industrialização.
A ansiosa busca por conhecimento através dos livros, e conseqüentemente,
da leitura, era vital para a emancipação intelectual sobre a qual estaria
fundamentada a ação política, além de suprir a informação e a disciplina
necessárias para o aperfeiçoamento moral e racional
59
da sociedade. Portanto,
com a Revolução Industrial, a leitura passa a figurar não apenas como
instrumento de formação, mas de controle social.
A leitura no século XIX não é mais vista como um acessório elitista, mas se
consolida como parte integrante da vida diária das pessoas. Transcende a página
impressa da Bíblia, dos manuais, dos romances, das revistas ou dos jornais,
passando a fazer parte de sinais de ruas, letreiros de lojas, rótulos de produtos e
propagandas em cartazes, dessa forma, objetos isolados deixavam de
monopolizar a leitura, ela estava em todos os lugares.
As mulheres, desde o século precedente, configuravam um novo público
leitor, e foram personagens de mais uma mudança:
O século XIX testemunhou o crescimento de uma vigorosa indústria de
revistas para mulheres e o surgimento de um fenômeno relativamente
novo: o de mulher com pretensões literárias. [...] A femme de lettres
(mulher de letras) havia chegado para ficar. (LYONS, 1998, vol.2, p.168)
A mulher como sujeito-leitor
60
ofuscada desde a Roma Imperial foi
durante muito tempo relegada à ouvinte das leituras realizadas por homens ou por
59
Decorre desse anseio a criação de coleções como a Biblioteca do Conhecimento Útil (LYONS,
1998, p.189).
60
A expansão de oportunidades de empregos para as mulheres e a modificação gradual do
horizonte de expectativas femininas foram fatores adicionais no incremento do nível de
alfabetização feminina. O que proporcionou maior inclusão das mulheres dentro do grupo de
letrados. (Cf. LYONS, 1998, vol.2)
49
membros do clero, desperta como leitora propriamente dita, interagindo
diretamente com o texto, no século XVIII, e consolidava sua participação no
mundo letrado, o apenas como “receptora dos textos”, mas também como sua
produtora-escritora, no século XIX.
Melhor instruídas que suas antecessoras, as mulheres deste século XIX
tinham acesso à leitura. Por sua vez, a maior diferença entre a leitura masculina e
a feminina ficava a cargo do conteúdo
61
, pois a elas eram dedicados os
romances, livros de cozinha, revistas; aos homens, as notícias sobre os eventos
públicos, uma leitura que objetivava a informação e o estudo. Decorre desses
fatos o nosso entendimento que ao sujeito-leitor feminino cabia o espaço da
esfera privada, ao sujeito-leitor masculino, o da esfera pública
62
. Mas ambas,
tanto a esfera pública como a privada, eram definidas por um grupo de pessoas
que liam. Todavia, como essas separações não são estanques, supomos que a
mulher pertencente ao privado, à medida que se entregava ao discurso literário,
como é o caso dos romances, também se posicionava, indiretamente, na esfera
pública
63
.
A expansão da educação primária na Europa do culo XIX estimulou a
confirmação das crianças
64
como sujeitos-leitores. Certas formas de literatura
61
Embora as mulheres não fossem as únicas leitoras de romances, elas eram consideradas o
principal alvo da ficção romântica e popular. A feminização do público leitor de romances parecia
confirmar os preconceitos dominantes sobre o papel da mulher e sua inteligência. Romances eram
tidos como adequados para as mulheres por serem elas vistas como criaturas em que prevalecia a
imaginação, com capacidade intelectual limitada, frívolas e emotivas. O romance era a antítese da
literatura prática e instrutiva. Exigia pouco do leitor e sua única razão de ser era divertir pessoas
com tempo sobrando. [...] Os jornais, com reportagens sobre eventos públicos, pertenciam
geralmente ao domínio masculino. Os romances eram parte da esfera privada, à qual eram
relegadas as mulheres do século XIX. (LYONS, 1998, vol.2, p.172)
62
Habermas ressalta que o surgimento da esfera pública burguesa, no final do século XVIII, estava
intimamente ligado à literatura. A ‘cidade’ não é apenas economicamente o centro vital da
sociedade burguesa; [...] ela caracteriza, [...] uma primeira esfera pública literária que encontra as
suas instituições nos coffee-houses, nos salons e nas comunidades de comensais. [...] A
importância dessa esfera pública literária é fundamental, pois são nestes espaços que se
desenvolve a crítica burguesa. A esfera pública política provém da literária; ela intermedia, através
da opinião pública, o Estado e as necessidades da sociedade. São nestes espaços literários que a
imprensa vai ter uma atuação fundamental, que torna o espaço literário um espaço ou esfera
pública de debates que questiona os rumos da sociedade. (HABERMAS, 1984, p.45-46)
63
Tomamos como pressuposto a idéia de que, se o romance apresenta um caráter político, uma
vez que participava da formação de uma identidade feminina, ligada à fragilidade e à emotividade,
é porque é de interesse público manter essas questões em pauta.
64
A emergência de uma florescente indústria de literatura infantil foi parte do processo que Phillipe
Ariès denominou "A invenção da infância" – a definição da infância e da adolescência como
etapas distintas da vida, com problemas e necessidades específicas. Na primeira parte do século
50
infantil começaram a prosperar, estimulando o desejo dos jovens por fantasia e
magia, entre essas formas estavam os crescentemente populares contos de fada
(LYONS, 1998, vol.2, p.181). Além disso, o aprendizado da leitura cada vez mais
ocorria na sala de aula, e não mais em casa.
Os novos leitores do século XIX também incluíam a classe operária. Esses
leitores, aliados às mulheres valiam-se, em geral, das bibliotecas públicas
circulantes para conseguirem acesso aos livros. Eles apresentavam, conforme se
depreende a partir de Lyons (1998), preferência por literatura de diversão,
deixando de lado manuais práticos e obras instrutivas que lhes eram destinados.
E, embora a classe média continuasse a recomendar a leitura dos clássicos para
a classe operária, o leitor popular, no entanto, demonstrava outras vontades de
leitura e se esforçava por formar uma cultura literária própria, livre do controle da
burguesia, do catolicismo ou da burocracia (LYONS, 1998, vol.2, p.187).
Podemos observar que se constitui nos séculos XVIII e XIX um sujeito-leitor
pertencente à classe média que busca na leitura instrumentos para a
emancipação social e intelectual, e tenta, por meio dela, libertar-se dos discursos
doutrinários religiosos e de formas de servidão intelectual sobreviventes do
feudalismo. Um sujeito-leitor que participa da esfera pública por meio da literatura
a qual apresenta, em última instância, fins políticos, e que é considerado útil à
sociedade, capaz de conduzi-la à modernização.
Nas mesmas conjunturas, percebemos um outro sujeito-leitor que adentra o
mundo letrado, antes privilégio do clero e das elites culturais, não apenas via
oralidade, tal como os sujeitos-leitores ouvintes. Sujeitos que apresentam
preferências que iam de encontro aos ideais que lhes eram postulados pela
classe média. Suas formas de leitura, corriqueiramente, não apenas eram
tomadas como inferiores, mas também como inútil aos ideais de uma sociedade
capitalista movida pelo desejo de racionalidade. Esse sujeito-leitor, ao escolher
leituras diferentes daquelas da cultura oficial, não apenas prefere outras, mas
XIX, contudo, as necessidades próprias do leitor infantil eram reconhecidas apenas para o objetivo
de impor um código moral e estritamente convencional. Em conseqüência, grande parte da
literatura infantil no início daquele século era rigorosamente didática (LYONS, 1998, vol.2, p.181).
51
institui novas, e desafia o controle da leitura negando a legitimidade daquelas que
lhe eram endereçadas pelas elites culturais da época
65
.
Notamos a constituição de um sujeito-leitor que, mais do que em qualquer
outra época, relacionava-se diretamente com a escrita e, por isso, se desvencilha
do sujeito-leitor ouvinte, que necessitava da figura do intérprete para efetuar a
mediação entre o texto e o leitor. A alfabetização trouxe aos mais diversos
segmentos sociais a capacitação e a possibilidade do relacionar-se
individualmente com o texto
66
, e, com isso, experienciar novos conhecimentos e
informações, além de novos horizontes trazidos pelo mundo da leitura. Um leitor
que, indiferentemente de ser mulher, criança ou operário, convivia
abundantemente com o que ser lido que, agora, não mais se restringia a objetos
isolados, mas que povoava as cidades e a vida cotidiana. Uma sociedade em que
não saber ler era um demérito considerável e que apontava para o
grafocentrismo que presenciamos atualmente.
No século XX, a leitura torna-se cada vez mais atrelada a uma pedagogia
escolar que a circunscreve, ou pelo menos tenta, no interior de determinado
repertório de textos autoritários, representantes do cânone literário estabelecido
ao longo dos séculos. Entretanto, a sociedade, cada vez mais dependente da
palavra escrita para estabelecer ou mediar todo tipo de relações
67
, demanda uma
leitura muito mais ampla e que interaja com diferentes objetos de leitura, quer seja
literário, informacional, comunicacional, recreativo, instrutivo ou de qualquer outra
natureza e com finalidades as mais diversas. Sociedade esta em que o significado
de utilidade já está plena e estritamente definido em termos de capitalismo.
Para Fischer foram as mudanças implementadas no culo XIX que
delinearam as práticas de leitura do mundo na maior parte do século XX. Mas a
inovação, sobretudo tecnológica, continuava a caminhar a passos rápidos (2006,
p.269). A leitura também acompanha tecnologias até então desconhecidas como,
por exemplo, a incrementação de fotografias às manchetes de jornais, que
65
De acordo com Petrucci, o repertório lido para uma leitura positiva e totalmente útil aos
indivíduos e às comunidades era o que se baseava nos padrões aprovados por gerações de
intelectuais respeitáveis, relacionado com o mais alto sistema de valores (1998, vol.2, p.208).
66
Embora reconheçamos o grande avanço que é alfabetizar um indivíduo, entendemos que o
capacitar para a leitura é muito diferente de torná-lo um leitor efetivo.
67
Difícil seria pensar que tipo de relação não seria mediada pela escrita, no século XX.
52
substituíam minuciosas descrições. Além disso, diferentemente do passado, a
leitura deixa de ser o principal meio de disseminação cultural à disposição do
homem contemporâneo, novos meios surgem e dividem com ela esse papel é o
caso do rádio, da televisão, do computador, dentre os principais.
Em meados do século XIX, na maioria dos países desenvolvidos, e agora
não nos restringimos apenas ao contexto da Europa Ocidental, a capacidade de
ler se havia tornado comum, sendo a sua ausência considerada um demérito.
Por sua vez, no final do século XX, os cidadãos, não apenas das nações
desenvolvidas, sequer conseguiriam realizar as atividades nas respectivas
sociedades sem recorrer à leitura. Poderíamos dizer, assim, que a leitura tornou-
se um elo com a humanidade, pelo menos na sociedade ocidental. Ler passou
gradativamente a ser uma atividade desenvolvida por um sujeito-leitor que
convive em um cenário de novas mídias e que se vale da leitura para se
relacionar com o mundo. Sujeito esse que assiste, cada vez mais, à ciência
firmando-se como o caminho racional para se alcançar a Verdade, e, nesse
âmbito, a voz legitimadora continua ainda presente, todavia, não mais aquela da
Idade Média, mas a da ciência.
Especialmente nessas configurações, no século XX, muito se discutiu,
pesquisou e estudou sobre a leitura. O papel fundamental que esta atividade
ocupa na sociedade contemporânea vem tornando-a, cada vez mais, objeto de
pesquisas em diferentes áreas do conhecimento. Esses estudos se debruçam
sobre usos, práticas, suportes, conceitos, processos, circulação, representações,
valores, ensino-aprendizagem, leitores e tantas outras variantes quanto o objeto
possa comportar.
Leituras e leitores antes marginalizados lutam para serem reconhecidos e,
especialmente no final do século, passam a contestar o cânone instituído como
sendo o legítimo
68
. Clamam para que a leitura seja mais aberta à atualidade e à
68
A primeira contestação do cânone deu-se nos primeiros séculos da nossa era, quando a cultura
cristã se rebelou contra a cultura pae substituiu, por um cânone próprio, o dos autores pagãos
gregos e latinos. Embora saibamos, hoje, da apropriação e releitura de muitos textos pagãos
efetuada pela Igreja Católica. A segunda foi quando os leitores humanistas recusaram o cânone
próprio da cultura universitário-escolástica opondo-lhe um outro repertório de textos clássicos,
sobretudo gregos e latinos. Todavia, no final do século XX, a contestação o é para suprimir um
cânone opondo-lhe um outro, é, antes, para que outros textos e outras leituras sejam
considerados legítimos.
53
contemporaneidade, que as culturas diferentes da tradição ocidental tenham
acesso à legitimação e que possam coadunar com aquela anteriormente imposta
como a oficial. Busca-se o reconhecimento de leituras, antes silenciadas ou
marginalizadas, e conseqüentemente, de seus leitores.
1.3 Algumas considerações
Notadamente, depreendemos neste percurso da historicidade traçada que as
mudanças no contexto sócio-histórico e, portanto, cultural concorreram para
movimentações e transformações na constituição do sujeito-leitor e que este, por
seu turno, ao ser modificado, promove uma reconfiguração da leitura, na medida
em que novas formas de se relacionar com os textos ou de formas antigas
pautadas em novos parâmetros e com os sentidos dos textos concorrem para
uma nova relação do sujeito com a linguagem e, conseqüentemente, com o
mundo. Essa historicidade atravessa a leitura tanto pela ideologia de época
quanto pela história, participando da constituição do sujeito-leitor e, ainda, aponta-
nos o fato de que existir seria sempre existir em movimento, em meio às
oscilações engendradas.
No percurso, encontramos na Grécia um leitor-intérprete, que se relacionava
materialmente com o texto em relação de subserviência a este, por isso
considerado em posição inferior àquele que figurava como ouvinte-leitor do texto.
Relação que se perpetua em certa medida na Roma Imperial, no entanto, convive
com outras formas de leitura, como a individual, por exemplo. Além disso, em
Roma, a leitura conhece uma maior valorização e difusão do que no mundo
helenístico, saindo do universo da casta sacerdotal e da nobreza, alcançando,
também, a classe média.
Todavia, o movimento de expansão vivido pela leitura e o aumento no
número de pessoas capazes de ler experienciado no mundo greco-romano
diminui gradualmente com o avanço do Cristianismo pela Europa. Inicialmente,
essa doutrina se vale dos leitores ou dos ouvintes de diferentes níveis sócio-
culturais para divulgar suas idéias e seus dogmas, sendo o maior deles o de
obediência absoluta à Lei Divina; mas com o passar do tempo decresce o número
54
de alfabetizados e a leitura migra para as instalações religiosas e encontra seu
reduto entre os dignitários da Igreja. Nesse ínterim a escrita não figura mais como
função de apoio à memória, como ocorria, em geral, na Grécia e passa a ser
percebida como o suporte de transmissão das autoridades passadas e dos
conhecimentos válidos.
Na Idade Média, a leitura passa a ser institucionalizada e a Igreja firma-se
como a instância ideológica provedora e reguladora do sentido, da interpretação
correta dos textos, uma vez que a Palavra de Deus não estava acessível a
qualquer um e era preciso a intervenção de um leitor autorizado, capaz de decifrar
suas alegorias e enigmas. Nessa configuração encontramos um sujeito-leitor
pelo menos no que tange à leitura tida como oficial representada, essencialmente,
pela Bíblia e pelos textos religiosos subordinado à interpretação autorizada, ou
seja, o sujeito-leitor religioso não interpretava, repetia a interpretação que lhe era
imposta. Esse leitor lia para a salvação da alma e praticava a leitura como uma
forma de exercício espiritual, de alimentação da alma. Qualquer interpretação que
fugisse à interpretação oficial era tomada não como outra interpretação, mas
como heresia, profanação.
Todavia, durante o tempo da Escolástica, a leitura conhece um novo
objetivo que não é apenas o de formar religiosos, mas pessoas capazes de atuar
numa sociedade que se urbanizava; dessa forma, em lugar da dimensão
espiritual, a leitura encontra também a dimensão do saber, este devendo ser cada
vez mais utilitário. O objetivo do saber desses sujeitos-leitores não era o homem,
nem o mundo, mas o que está escrito em certas obras que tratam do homem e do
mundo. Por isso, o grande mérito da leitura escolástica não estava em compor
uma significação “pessoal” para o texto, e sim em ser capaz de citar as
auctoritates.
Uma nova instituição passa a ser a reguladora da interpretação: a
universidade, e, assim, a leitura passa a ser um exercício escolar. No entanto, a
sociedade ainda se encontra muito subserviente à Igreja e, por isso, essa
interpretação ainda está envolta nos dogmas religiosos, mesmo porque muitos
mestres das escolas e universidades eram religiosos. O sujeito-leitor, seguidor de
uma exegese determinada, ainda não interpreta, repete e compara as
55
interpretações de seus mestres, estes últimos autorizados a fazerem suas
lecturas dos textos, desde que usassem das auctoritates para validarem seus
argumentos. Leitor este cada vez mais adaptado a ler uma literatura de
compilação que tinha por objetivo os colocar a par dos conhecimentos veiculados
pelas diversas áreas do saber. Mas tal literatura apresentava o problema do filtro
da seleção. Durante a Idade dia
69
, Alta e Baixa, de forma geral, ler era
privilégio de religiosos, aristocratas, alta burguesia e, em sua grande maioria, de
um sujeito-leitor masculino.
Durante o Renascimento, com o humanismo, constitui-se um sujeito-leitor
voltado não apenas para a leitura de compilações e os comentários dos textos,
mas que tende a acrescentar opiniões e críticas aos textos. A leitura dos textos
clássicos deveria servir a propósitos práticos e para a ação na realidade presente
e assim fundamentar o valor do homem em sua dimensão existencial e não
apenas religiosa e teológica.
Nesse âmbito, o sujeito-leitor, assessorado por um erudito, aprendia ao
longo da vida escolar um modelo de processamento textual, baseado na exegese
humanista, e acumulava um repertório de “chaves” que após serem dominadas,
serviam-lhe como instrumento para a interpretação individual. Todavia, com o
domínio de tal técnica buscava-se “extrair” o sentido do texto. No entanto, uma
vez que a interpretação individual lhe fora permitida, os rumos das leituras e o
emprego delas tornam-se imprevisíveis. Soma-se a isso a maior disponibilidade e
circulação de livros trazida pela invenção da prensa manual.
Além dos escolares, no século XVI, configura-se um sujeito-leitor não restrito
à elite cultural e econômica da época, que por meio do feito luterano de tradução
vernacular da Bíblia – o livro que simbolizava o poder da Igreja e da proposição
de uma interpretação livre dos dogmas da fé, torna-se capaz de lê-la sem a
mediação de uma autoridade religiosa imediata, tendo em vista o rompimento da
barreira sócio-cultural imposta pela língua do texto, em geral, o latim. Esse sujeito,
ainda que tenha sido cerceado pelos decretos, proibições e punições, da leitura
da Bíblia e de interpretá-la – cerceamento operado pela Contra Reforma que tenta
69
Coexistiam às formas oficiais de leitura e às leituras oficiais, as leituras do mundo laico e fora
muro da Igreja e das escolas, no entanto, como a alfabetização era rara, a figura do leitor-
intérprete e do ouvinte-leitor não desaparece na sociedade.
56
novamente controlar não apenas o acesso ao texto, mas também as
interpretações, na tentativa de retornar a preponderância da homogeneidade
interpretativa de outrora vive no culo XVII uma maior familiaridade com as
obras cultas, divulgadas sob uma roupagem que chega aos menos abastados
economicamente, e o acesso a outros materiais de leitura que o tinham como
público leitor quer seja como leitor propriamente dito ou como ouvinte da leitura. E
graças a esse fato, ocorre a ampliação da atividade de leitura na sociedade, fato
que corrobora para tornarem superadas as tentativas de controle, pelo menos
direto, pela Igreja sobre o ato de ler. Avulta-se, também, a distinção dentro do
campo letrado, como tentativa de novamente assegurar a supremacia de certos
leitores e de certas formas de ler sobre as demais. Esses acontecimentos nos
possibilitam pensar que, no que diz respeito à interpretação, possivelmente, a
língua dos textos – agora vernacular tenha se colocado entre o lugar da
Verdade, Deus, e o homem, pois, parece não ser mais a revelação que
determina o sentido e sim a língua.
A partir do Iluminismo, a leitura individual se consolida, e esta é reconhecida
como instrumento de libertação do ideário intelectual servil feudalista e como
forma de alcançar a autonomia social. O saber é visto, então, como sendo de
responsabilidade do indivíduo e de suas escolhas. Por isso, a leitura é vista como
força social produtiva, capaz de gerar cidadãos de direitos e deveres, e o sujeito-
leitor passa a ser considerado, essencialmente, como membro útil à sociedade.
Ler é então considerado forma de acesso à informação e um bem desejável à
ampla diversidade da população, ainda que o acesso à leitura o atingisse a
todos. Talvez, possamos considerar que foram nessas conjunturas que a leitura
surge como objeto cultural propriamente dito, tendo em vista a relação entre a
demanda por ela e seu valor aceito pela grande maioria das pessoas, qual seja de
instrumento capaz de conduzir à modernização da sociedade. Além disso,
podemos mencionar o fato de a palavra impressa figurar como representante
burguesa de cultura; sendo assim, a leitura ocupa, também, um lugar cultural de
destaque na sociedade em questão. Notamos que, sobretudo, a partir dos séculos
XVII e XVIII, ocorre uma maior articulação da leitura com a distribuição dos
lugares do saber e do poder legítimos na sociedade. Mas foi no século XIX,
57
ambiente de significativas mudanças sociais – marcado pela necessidade de
alfabetização em massa, como forma de integração social que o conhecimento
é visto como poder e a leitura vista como instrumento de controle social e como
forma de poder disciplinador, que visava à formação de “homens melhores” de
acordo com ideais capitalistas burgueses e não mais religiosos.
A leitura então se consolida como parte integrante do cotidiano das pessoas,
transcende a página impressa e habita o mundo. Cada vez mais seu aprendizado
ocorria nas escolas, agora tutelada pelo Estado, e, nessas configurações, não
saber ler passa a ser um demérito considerável. As mulheres, crianças e
operários passam a participar oficialmente do universo de sujeitos-leitores, os
quais nem sempre aceitavam passivamente os textos que lhe eram destinados à
leitura, desafiando mais uma vez na história o controle da leitura exercido pelas
elites culturais da época. A interpretação caminha oscilante entre a maior
liberdade e, conseqüentemente, o desejo de autonomia luta pela emancipação
social – e a subordinação mais “velada” ao Estado, que joga na relação do
sujeito-leitor com a linguagem. No entanto, esse sujeito-leitor se acredita a fonte
da interpretação produzida, do sentido, haja vista a crença nessa autonomia e em
sua vontade.
No século XX, ocorre ainda mais a ampliação da relação do sujeito com a
leitura, tendo em vista que a sociedade moderna depende da palavra escrita para
estabelecer e mediar quase todo tipo de relações e, a leitura figura, certamente
mais do que em qualquer outra época, como um meio de o sujeito conseguir se
ligar a esse mundo. Todavia, a leitura deixa de ser o principal meio de
disseminação cultural à disposição do homem e tem esse papel dividido com
outros meios advindos das conquistas tecnológicas. Meios com os quais não
somente divide tal papel, mas que também a influencia e nos quais ela também
influencia. Nesse cenário, e em um ambiente em que o saber científico ganha
notoriedade, a leitura e o leitor são instâncias sobre as quais muito se discutiu e
estudou seguindo as mais diferentes perspectivas. Discussões e estudos,
especialmente, aqueles advindos das Ciências da Linguagem, os quais tentaram
responder “o que a leitura (ou ler) significa”, deram respostas a muitas questões,
mas lançaram germens de muitas outras. Além disso, os sujeitos e os sentidos
58
estão em constante movimento e nessa movimentação, muitas outras situações
são acopladas à leitura, novas indagações surgem, novas respostas precisam ser
buscadas e antigas retrabalhadas ou relativizadas.
Nessa historicidade notamos que ao mesmo tempo em que leitura e o
sujeito-leitor foram se constituindo, foi-se constituindo um conhecimento sobre
eles e se instituíam práticas, valores culturais para ambos.
Por esse motivo é que no capítulo seguinte buscaremos em quatro teóricos,
ainda que falem da leitura de lugares sociais distintos, argumentos que nos
permitam compreender melhor esse intercâmbio estabelecido entre o sujeito-leitor
no mundo e o mundo no sujeito-leitor e, assim, avançarmos um pouco mais na
observação do sujeito-leitor em meio aos movimentos que vêm passando. O que
une esses autores, em nosso entendimento, é o alinhamento quanto à visão da
linguagem como sócio-historicamente construída, e por posicionarem essa
subjetividade ativamente no âmbito do discurso e da prática social
70
de
construção de sentidos.
70
Prática social porque o sujeito-leitor no momento da leitura aciona, ainda que
inconscientemente, a sócio-história, permeada ideologicamente, que o constitui.
59
CAPÍTULO 2: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SUBJETIVIDADE DO LEITOR
Neste capítulo, procuraremos demonstrar a importância do aspecto social na
constituição do sujeito-leitor. Essa reflexão deriva do fato de que a produção de
sentidos, operada na/pela leitura, depende da ação de um sujeito, não enquanto
um ser individualizado, fechado em si mesmo, mas enquanto ser constituído pelo
tecido social.
O contexto social é importante na ação da leitura não por determinar, mas
por influenciar o que poderíamos entender como uma co-produção de sentidos
operada na relação entre o sujeito-leitor e o sujeito-autor mediada pelo texto.
Entendemos que esse contexto não se presta somente a ser pano de fundo para
o sentido, mas participa de sua constituição, historicizando-o, situando-o. E, no
mesmo alinhamento, entendemos que o sujeito-leitor é aquele que produz sua
leitura a partir de sua inscrição nessa dinâmica, como sujeito social.
Essa postura leva-nos a considerar, além da dinâmica social que joga na
constituição da linguagem e, conseqüentemente, do sujeito , os
atravessamentos do social pela ideologia e pela historicidade e a impossibilidade
de se compreender a linguagem autonomamente, pautando-se na crença de
significados anteriores ao discurso (texto) e à história. Na tentativa de pensarmos
essas questões que envolvem a leitura e, portanto, o sujeito-leitor, acolhemos as
reflexões de Mikhail Bakhtin, Paulo Freire, Eni Orlandi e Maria José Coracini, por
estes autores apresentarem visões segundo as quais o sentido na linguagem é
produzido sócio-historicamente, e é socialmente instanciado; e ainda, por
postularem que o sujeito participa ativamente na construção/produção dos
sentidos. Dessa forma, o sujeito-leitor em sua relação com a linguagem e,
portanto, com a leitura, não mais é tomado somente pelo conjunto de habilidades
individuais, mas antes como um sujeito que produz sua leitura a partir de sua
inscrição na esfera social, como um sujeito social.
É nessa medida que podemos falar em uma postura crítica diante da
questão da leitura, uma vez que a incorporação do universo social, cultural e
histórico dos sujeitos (leitor e autor) envolvidos na atividade passa a ser
considerada como condição de produção e contexto no quais os textos são
produzidos, e a partir dos quais os textos são lidos.
60
Passemos então ao desdobramento das reflexões dos autores mencionados.
2.1 O sujeito-leitor responsivo: a perspectiva de Mikhail Bakhtin
Mikhail Bakhtin legou um trabalho paradigmático com suas acepções sobre a
dialogia da linguagem. Parte dessas considerações ressoa nas postulações dos
autores que utilizaremos na continuidade de nossa abordagem neste capítulo. O
autor postula que a palavra, se isolada do contexto no qual foi enunciada, não
passaria de um sinal, o qual apresentaria um sentido único e fixo. No entanto,
essa postura redutora não é a assumida pelo autor, que concebe a língua como
viva e dinâmica e tem na palavra o território comum entre locutor e interlocutor
(BAKHTIN, 2004, p.113) e que seus sentidos seriam determinados pelo contexto
enunciativo em que ocorrem.
A concepção bakhtiniana de enunciado como unidade da comunicação
verbal
71
, ligado ao uso efetivo da língua e responsável pelo instanciamento dos
sujeitos e do contexto sócio-histórico, favorece ao exame da enunciação
72
como
lugar privilegiado em sua obra. Segundo o autor,
a enunciação, compreendida como uma réplica do diálogo social, é a
unidade de base da língua, trate-se de discurso interior (diálogo consigo
mesmo) ou exterior. Ela é de natureza social, portanto ideológica. Ela
não existe fora de um contexto social, já que cada locutor tem um
"horizonte social". sempre um interlocutor, ao menos potencial.
(BAKHTIN, 2004, p.16)
A natureza social da enunciação e a pressuposição do outro figuram como
características importantes nas reflexões de Bakhtin, na medida em que, para ele,
a visão de linguagem deve ter como base de sua doutrina a enunciação, ou seja,
a linguagem em uso em uma dada situação. A leitura, como uma das facetas da
linguagem, portanto, não deixa de corresponder a esse postulado, embora
reconheçamos que o autor não faça uma explícita relação ao processo de leitura.
A pressuposição do outro leva-nos, ainda, ao reconhecimento daquilo que
Bakhtin toma por verdadeira substância da língua: a interação, realizada através
71
A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação, implica conflitos,
relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da
língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc. (BAKHTIN, 2004, p.14)
72
Enunciação é um ato de pôr em funcionamento a língua, produzindo um enunciado (unidade ou
forma de discurso), conforme Bakhtin (2004).
61
da enunciação ou das enunciações. É o próprio autor quem chama atenção para
o fato de que:
Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma
importância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas
faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém,
como pelo fato de que se dirige para alguém. (BAKHTIN, 2004, p.113)
grifos do autor.
E é nesse âmbito da interação que o autor insere o ato de compreender,
pois, segundo ele, a compreensão é uma forma de diálogo (BAKHTIN, 2004,
p.132), portanto, seria dessa idéia de diálogo instituído entre interlocutores que
residiria a característica de atividade
73
que tem a compreensão. Pois,
compreender seria opor à palavra do locutor uma contrapalavra, é orientar-se em
relação a uma enunciação, fazendo corresponder, a cada palavra da enunciação
que estamos em processo de compreender, [...] uma rie de palavras nossas,
formando uma réplica (BAKHTIN, 2004, p.132).
Nesta perspectiva, os sentidos dos signos dependeriam das relações entre
sujeitos e seriam construídos na compreensão/interpretação dos enunciados,
tendo-se por base a enunciação. Por isso, o centro da interlocução, e, por
conseguinte, da compreensão, não estaria polarizado num eu ou num tu, como
ato solitário, mas sim inserida num movimento dialógico em torno do sentido,
numa dinâmica relacional. Assim, a leitura se caracterizaria como uma atividade
de interação que pressupõe um diálogo
74
vivo entre os interlocutores sócio-
historicamente situados, fato que instauraria um espaço recursivo no qual autor e
leitor passariam a fazer parte de um processo de relações interligadas por fios
dialógicos.
Decorre dessas considerações que o sujeito-leitor seria aquele que
responderia ativamente ao outro presente na enunciação, no discurso. A
pressuposição da atitude responsiva já está inserida na própria criação do(s)
enunciado(s), uma vez que o sujeito, quando diz algo, sempre diz de uma dada
73
De acordo com Bakhtin, qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo deve conter o
germe de uma resposta (2004, p.131).
74
Diálogo que, na proposta de Bakhtin, deve ser tomado no sentido mais amplo do termo, isto é,
não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda
comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (2004, p.123).
62
maneira dirigindo-se a alguém, e o ser desse alguém interfere na maneira de
dizer. Podemos acrescentar então, tal qual afirmado por Bakhtin, que
Desde o início [...] o enunciado se constrói levando em conta as atitudes
responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado. O papel dos
outros, para quem se constrói o enunciado, é excepcionalmente grande,
como sabemos. dissemos que esses outros, para os quais o meu
pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste
modo também para mim), não são ouvintes passivos, mas participantes
ativos da comunicação discursiva. Desde o início o falante aguarda a
resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva. É como se
todo o enunciado se construísse ao encontro da resposta. (BAKHTIN,
2003, p.301)
Essa atitude responsiva é interpretada por Sobral (2005, p.20), que destaca
o caráter de “responsibilidade” e de “participatividade” do agente que une
responsabilidade o responder pelos próprios atos a responsividade, o
responder a alguém ou a alguma coisa. Sendo assim, a linguagem estaria sempre
em movimento, sempre se fazendo, na medida em que estaria suscetível e
dependente à/da atualização responsiva que acontece no diálogo entre
interlocutores.
A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter relacional de sua
construção como sujeito – caráter fundado na tríade eu-para-mim, eu-para-o-outro
e o outro-para-mim –, bem como na construção negociada do sentido, leva
Bakhtin a recusar tanto um sujeito infenso à sua inserção social, posto acima do
social, totalmente determinado pelo ambiente sócio-histórico, quanto um sujeito
fonte do sentido (Cf. SOBRAL, 2005, p.22).
Ainda, podemos entender, na perspectiva de Bakhtin, que o texto não se
encerra em si mesmo, mas dialoga com outros textos e leitores. Por isso não tem
sentido dizer que a significação pertence a uma palavra [ou texto] enquanto tal
(BAKHTIN, 2004, p.132). Em face da atitude responsiva ativa do outro perante o
enunciador, o enunciado pressupõe sempre, conforme Bakhtin, uma apreciação
valorativa. Dessa forma, compreender um texto é adotar uma postura ativa e
responsiva em relação a ele, e assim, assumir posições de concordância ou
discordância, adesão ou objeção, como postulado a seguir:
O próprio falante [autor] está determinado precisamente a essa
compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão
passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz
alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma
objeção, uma execução, etc. (BAKHTIN, 2003, p.272)
63
A própria definição da palavra resposta, frente aos enunciados que a
antecedem, conforme formulada pelo autor, pressupõe esse posicionamento,
pois, resposta, no sentido amplo, refere-se a rejeitar, confirmar, completar,
basear-se neles, subentendê-los. No entanto:
É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras
posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes
responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação
discursiva. (BAKHTIN, 2003, p.297)
Essas variadas atitudes responsivas são caracterizadas pelo diálogo do
discurso (enunciado) com outros discursos (enunciados). O enunciado, dessa
forma, não é único e monológico, pois só existe na cadeia da comunicação
discursiva
75
, como mencionado, sendo delimitado e constituído por outros
enunciados. Todo enunciado tem um começo e um fim, mas ele nunca está
isolado da cadeia discursiva que compõe a interação verbal. Conforme Bakhtin
(2003), cada enunciado não está ligado apenas aos enunciados que o precedem,
mas também aos subseqüentes da comunicação discursiva. Dessa forma,
constitui-se, assim, na esfera do já-dito ao mesmo tempo em que orienta para o
ainda não-dito do discurso resposta.
Na leitura de um enunciado, o sujeito-leitor sente o final daquele, como se o
autor [locutor] tivesse dito tudo o que queria num momento e em condições
determinadas. Tal acabamento, ou conclusibilidade
76
, é preciso a fim de que seja
possível uma reação ao enunciado, para que o outro [neste caso o leitor] possa
adotar efetivamente uma atitude responsiva. Mas não se pode esquecer o seu
entrelaçamento na cadeia da comunicação discursiva, na interdiscursividade.
Assim, os sentidos podem ser construídos e atualizados se em contato
com outros sentidos, já que ocorrem na interação. A compreensão, portanto,
apenas se revela na multiplicidade dos sentidos. Por ser fundado no dialogismo, o
75
A expressão comunicação discursiva é usada em Bakhtin (2003) em lugar de comunicação
verbal, Bakhtin (2004).
76
A conclusibilidade é uma peculiaridade do enunciado: pode ocorrer precisamente porque o
falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condições. [...]
o primeiro e mais importante critério da conclusibilidade do enunciado é a possibilidade de
responder a ele, em termos mais precisos e amplos, de ocupar em relação a ele uma posição
responsiva. (BAKHTIN, 2003, p.280) grifos do autor
64
sentido caminha sempre no caminho da multiplicidade, da diversidade, conforme
expõe o autor:
O sentido é potencialmente infinito, mas pode atualizar-se somente em
contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta
do discurso interior do sujeito da compreensão. [...] Não pode haver um
sentido único (um). Por isso não pode haver o primeiro nem o último
sentido, ele essempre situado entre os sentidos, é um elo na cadeia
dos sentidos, a única que pode existir realmente em sua totalidade.
(BAKHTIN, 2003, p.382)
Além da multiplicidade de sentidos, outra questão da qual a leitura não
pode prescindir. Trata-se de se considerar as condições de produção e o caráter
sócio-histórico da linguagem, o qual remete ao ideológico. De acordo com Bakhtin
(2004), todo signo é ideológico e, por esse motivo, está indissoluvelmente ligado à
situação social. Os sistemas semióticos, verbais ou não-verbais, servem para
exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela:
A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores
variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os
sistemas ideológicos constituídos, que a "ideologia do cotidiano", que
se exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam
as ideologias constituídas. Se a língua é determinada pela ideologia, a
consciência, portanto o pensamento, a "atividade mental", que são
condicionados pela linguagem, são modelados pela ideologia.
(BAKHTIN, 2004, p.16) aspas do original
A palavra como signo ideológico e social – reflete e refrata uma realidade – e
é tida como central para a constituição do homem, por ser ela o material
privilegiado da comunicação e o material semiótico da vida interior, da
consciência. A palavra penetra em toda e qualquer relação estabelecida entre
indivíduos; é a trama que tece as relações sociais: cada signo ideológico é não
apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento
material dessa realidade (BAKHTIN, 2004, p.33). Dessa forma, mesmo a
atividade mental é construída no processo da interação verbal e, portanto, não
deve ser considerada fora do contexto social no qual o indivíduo está inserido,
que todo pensamento é engendrado por signos ideológicos.
Sendo assim, quando se observa o texto do ponto de vista do diálogo
interativo entre interlocutores, é possível analisar, para além do signo, a cultura e
os valores ideológicos que se encontram camuflados ou não no discurso dos
sujeitos da enunciação. É neste sentido que Bakhtin afirma que os sistemas
65
semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela.
Pois tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de
si (reflete e refrata a realidade).
Decorre dessa consideração, o alargamento da noção do que seja
compreender. Compreender, nesse caso, além de não ser um ato solitário do
sujeito-leitor, mas um efeito da interação verbal e uma forma de construir
sentidos, é também, um modo de relacionar o signo, interior e exterior
subjetividade e objetividade –, com a situação em que ele se forma. Tal situação
se apresenta como a totalidade dos fatos que constituem a experiência exterior e,
concomitantemente, acompanha e esclarece o signo interior.
O sujeito, ao se apropriar da linguagem, pondo-a em funcionamento, sofre
as coerções da situação social de produção, do contexto e da própria língua.
Portanto, não cabe nesta visão, o papel do autor como aquele que domina a
linguagem e os sentidos do texto, pois, uma vez que ao selecionar as palavras
para sua produção, ao serem enunciadas, tais palavras carregam-se de sentidos
saturados por valores sócio-ideológicos.
E uma vez que é preciso considerar, na produção do sentido, os outros
participantes da enunciação, quais sejam: o falante (autor), o interlocutor (leitor) e
o conteúdo (tema), nessas configurações, é de fundamental importância
considerar-se o endereçamento do enunciado, pois está inserido no
funcionamento da linguagem, o outro a quem o enunciado é orientado o
interlocutor que é levado em conta pelo autor no momento da produção do texto.
Já que,
A quem se destina o enunciado, como o falante (ou o que escreve)
percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a
influência deles no enunciado disso dependem tanto a composição
quanto, particularmente, o estilo do enunciado. (BAKHTIN, 2003, p.301)
Em virtude desse postulado, o sujeito-leitor, ao assumir uma atitude
responsiva diante do texto, encontra um outro instaurado a quem o texto é
orientado. Por considerar o outro como fundamento da concepção de linguagem,
Bakhtin menciona que um sentido é capaz de revelar sua profundidade
encontrando-se e contactando com outro, com o sentido do outro. E no diálogo
firmado entre eles, a cultura assume importância vital e a compreensão ativa e
66
responsiva não renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo, no espaço, à sua
cultura (Cf. BAKHTIN, 2003).
Portanto, o sujeito-leitor, em Bakhtin, é um sujeito social, que ao ler entra em
diálogo com suas palavras internas e com as palavras do(s) outro(s) a
exterioridade – construídas em uma condição sócio-histórica específica. Esse
sujeito constrói sentidos a partir de um processo responsivo ativo, numa relação
dialógica, materializada na linguagem, fortemente marcada por seu caráter
ideológico, e tal relação se por meio da interação verbal. No entanto, não se
pode desprezar o encontro com outra(s) cultura(s), constituindo e constitutivo da
língua.
2.2 O sujeito-leitor engajado: o que diz Paulo Freire
Paulo Freire é um autor mais conhecido por sua obra sobre pedagogia
crítica, mas é também considerado como o primeiro autor, no Brasil, a teorizar a
questão da leitura com vistas a uma dimensão cultural. Sua visão de leitura,
ancorada numa premissa que poderíamos denominar de sócio-política, visa à
interpretação crítica e leva à consideração do contexto sócio-cultural em sua
dimensão histórica –, no qual se dá a leitura e no qual está inserido o sujeito-leitor
como participante da leitura produzida.
Para Freire (1989) o leitor está imerso numa realidade em que não se pode
separar tão claramente o que é mundo, o que é sujeito e o que é palavra. A leitura
do mundo, para ele, precede a leitura da palavra, a qual se dilui com a história do
sujeito. Essa leitura (entendimento) de mundo proporcionaria compreender os
componentes de uma sociedade, sua cultura e suas linguagens. Dessa forma, é o
entendimento do mundo que daria sentido à palavra escrita (o que a palavra foi
capaz de dizer sobre o mundo), pois o mundo está antes (se antecipa) e depois
(se alonga) do texto escrito: sua leitura é a condição para o texto e é também a
finalidade do texto. Deste modo, Freire argumenta que a leitura
não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem
escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A
leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura
desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.
Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do
67
texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das
relações entre o texto e o contexto.
77
(FREIRE, 1989, p.9)
Evidencia-se, nessa proposição, a tentativa de Freire de ir além do contexto
imediato do sujeito-leitor e de inseri-lo naquele a partir do qual os textos são
produzidos e lidos. Ocorre também a atribuição de um papel ativo ao leitor, que
não apenas recebe as informações, ou as palavras do texto, reconhecendo-lhe,
simplesmente, o sentido. Conforme propõe o autor, é preciso perceber a relação
entre o texto e o contexto a fim de que a compreensão crítica ocorra, o que deixa
entrever a imputação de um sujeito participante na produção de sentido e não
apenas receptáculo deste.
O sujeito-leitor não somente participaria da produção do sentido do texto,
mas também atuaria como seu co-responsável no momento da leitura, uma vez
que o sujeito-leitor crítico seria aquele capaz de relacionar ativamente texto e
contexto social e, juntamente com o autor, no momento da leitura, construiria o
entendimento do texto e, através do texto, o entendimento do mundo. Ou seja, a
palavra, o mundo e o entendimento de quem escreve e de quem operam o
texto, que se vai organizar para dar conta desse diálogo mundo, palavra, sujeito:
A leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim
se dá e a que me dou e de cuja dimensão fundamental me vou tornando
também sujeito. Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do
texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua
autora. (FREIRE, 1996, p.14)
Decorre dessa afirmação o entendimento de que existiria uma leitura que
não seria a verdadeira, talvez meramente decifrativa e que poderíamos designar,
a partir de Freire (1996, p.46), de mais ingênua, a qual é preciso superar
78
. A
leitura capaz de favorecer à própria constituição do sujeito e ao entendimento do
mundo consistiria em uma negociação entre leitor e autor, entre leitor e texto,
entre texto e contexto, entre palavra e mundo. Dessa negociação decorreria a
77
Todos os livros de Paulo Freire utilizados por nós constituem versões digitalizadas, em formato
PDF, disponibilizadas na internet, através da Biblioteca Digital Paulo Freire e pertencentes ao
acervo da Biblioteca Central da UFPB. A numeração das páginas segue a correspondência do
texto em PDF, uma vez que, na digitalização, a numeração original (do texto impresso) foi
suprimida.
78
Freire resguarda à educação o papel de formar os leitores críticos. Segundo ele, a educação
pode seguir duas práticas: a “bancária”, que levaria o leitor à repetição daquilo que ouve ou lê,
sem questionamento algum, e a transformadora” que possibilitaria o surgimento do leitor crítico,
capaz de problematizar e transformar a realidade.
68
leitura crítica
79
que, para Freire, é aquela que sabe situar num contexto o que está
sendo lido.
Importante observar que contexto, na proposta freireana, não se refere
apenas a materialidade lingüística do texto, mas ao contexto maior, uma vez que
a leitura de mundo precederia a leitura da palavra. Nas palavras de Freire, a
leitura de mundo revela a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente
se constituindo, respeitando, ainda, seu caráter histórico (1996, p.46). Assim, a
leitura de mundo passa a ser concebida como um convite para se compreender
os componentes de uma sociedade a sua cultura, representada através dos
construtos culturais, valores, crenças e modos de comunicação de uma
determinada sociedade, suas linguagens. No entanto, não se pode esquecer que
a leitura da palavra, conforme propõe o autor, é precedida (se antecipa) e
continuada (se alonga) da/na leitura de mundo.
É da relação/diálogo crítica(o) entre mundo e palavra, palavra e mundo,
mediada/o pelo sujeito, que residiria a capacidade do sujeito-leitor de
problematização da realidade (sua denúncia) e de transformação da mesma.
Pois,
de alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura
da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma
certa forma de “escrevê-lo” ou de reescrevê-lo”, quer dizer, de
transformá-lo através de nossa prática consciente. (FREIRE, 1989,
p.13)
Se ler criticamente implica a reescritura do mundo e sua transformação, a
leitura apresenta um caráter sócio-político importante, pois, como o sujeito-leitor,
deve agir criticamente diante do texto, essa postura estaria relacionada com a
forma de o sujeito se situar no mundo. Mas reescrever o mundo é uma
possibilidade atribuída apenas aos leitores críticos, haja vista que, para Freire,
haveria um outro tipo de leitor, não-crítico, que seria apenas um repetidor daquilo
que e passível de ser manipulado pelo autor, e decorrentemente, reprodutor
das condições sócio-históricas e não seu transformador:
o leitor crítico é aquele que até certo pontoreescreve” o que lê, "recria”
o assunto da leitura em função dos seus próprios critérios. o leitor
79
Usaremos e manteremos a expressão “leitura crítica”, quando tratarmos das postulações de
Freire, como forma de evidenciar a separação entre as duas atitudes diante de leitura, ingênua ou
verdadeira, efetuada por ele. O uso da expressão indifere de concordarmos ou não com tal
classificação.
69
não-crítico funciona como uma espécie de instrumento do autor, um
repetidor paciente e dócil do que lê. Não há nesse caso uma real
apreensão do significado do texto mas uma espécie de justaposição, de
colagem, de aderência. (FREIRE, 1995, p.86)
Decorre desse diálogo crítico a percepção freireana do ato de ler como um
ato político que se constrói dentro da experiência existencial do indivíduo como
sujeito histórico-social, criado e criador da cultura. Nesse sentido, considera-se a
inserção desse sujeito na esfera social, histórica e, conseqüentemente,
ideológica. O autor defende, sobretudo, a competência do leitor, enquanto um
sujeito das relações sociais que permeiam o seu meio, e não apenas em termos
de conteúdos referenciais. Esse meio não agiria como determinante do sujeito,
mas o condicionaria, e portanto, condicionaria sua relação com a linguagem. De
acordo com Freire,
Como um ser da práxis, o homem, ao responder aos desafios que
partem do mundo, cria seu mundo: o mundo histórico-cultural. O mundo
de acontecimentos, de valores, de idéias, de instituições. Mundo da
linguagem, dos sinais, dos significados, dos símbolos. [...] Todo este
mundo histórico-cultural, produto da práxis humana, se volta sobre o
homem, condicionando-o. Criado por ele, o homem não pode, sem
dúvida, fugir dele. Não pode fugir do condicionamento de sua própria
produção. (FREIRE, 1979, p.46-47)
Freire enfatiza que a leitura crítica favorece à tomada de consciência pelo
indivíduo, fato que o levaria ao desvelamento das contradições do sistema
capitalista, permitindo uma visão mais clara das relações de dominação e de
poder aí presentes. Portanto, a leitura crítica se configuraria como uma forma de
ação contra-hegemônica
80
uma vez que possibilitaria ao sujeito-leitor, tal qual
expusemos, tornar-se consciente de sua realidade e assim tentar transformá-la:
Esta "leitura” mais crítica da "leitura” anterior menos crítica do mundo
possibilitava aos grupos populares, às vezes em posição fatalista em
face das injustiças, uma compreensão diferente de sua indigência. É
neste sentido que a leitura critica da realidade, dando-se num processo
de alfabetização ou o e associada sobretudo a certas práticas
claramente políticas de mobilização e de organização, pode constituir-
80
A hegemonia é constituída por um bloco de alianças que representa uma base de
consentimento para a ordem social definida. O bloco histórico que rege uma hegemonia identifica
os problemas de uma sociedade e responde, de acordo com seus interesses, à gama dos conflitos
do conjunto social. Entretanto, quando os setores da sociedade não se identificam com os
apontamentos da hegemonia estabelecida, eles manifestam sua contrariedade e reivindicam
novas atitudes e posicionamentos tanto do poder público, quanto da sociedade civil, instaurando
assim, a contra-hegemonia. Tal conceito é baseado nas proposições de Gramsci. ( SOUZA, 2005,
p.1)
70
se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contra-
hegemônica. (FREIRE, 1989, p.14)
E ainda, essa conscientização a respeito do funcionamento do sistema onde
se está inserido, adviria do engajamento e conscientização do sujeito-leitor com
vistas à sua emancipação social. É o que o autor enfatiza quando diz que a
conscientização o é propriamente o ponto de partida do engajamento. A
conscientização é mais um produto do engajamento. Eu não me conscientizo para
lutar. Lutando, me conscientizo (FREIRE, 1995, p.87). Por isso a alfabetização
formal ou informal é muito importante em sua concepção, pois favoreceria o
acesso ao conhecimento e, assim, possibilitaria ao sujeito aprender a ler o mundo
com menos ingenuidade, e assim ler os outros textos, também, mais criticamente
ou porque aprendendo a ler os outros textos mais criticamente pudesse ler o
mundo com menos ingenuidade. assim seria possível escrever ou reescrever
o mundo, a fim de transformá-lo.
Tal leitura crítica seria o que facultaria ao sujeito o desvelamento dos
problemas, fatos e razões de ser do mundo e das relações sociais. Nesse sentido,
ela seria também o ato de conhecer não o texto que se lê, mas também de
conhecer através do texto (FREIRE, 1995, p.87). A leitura, dessa forma,
proporcionaria ao sujeito-leitor produzir conhecimento a partir de suas
experiências no mundo do qual faz parte e vive, relacionando-as à palavra lida.
Essa produção do conhecimento se vincula a um posicionamento político
marcado e definido pela ideologia. Tal conhecimento caracteriza-se
principalmente pela profundidade das interpretações, pela atribuição de um
caráter dinâmico para a realidade e pela apropriação da realidade como sendo
historicamente situada, portanto, passível de ser revisto e refeito, tal qual a
própria realidade capaz de ser transformada. Assim, conforme o autor, a leitura
não se encerra no sujeito, e sim, torna-o engajado – um atuante político no mundo
–, em especial, no contexto mais próximo de si, sem esquecer que ele nunca atua
de maneira neutra, desinteressada, sem nenhum vínculo minimamente ideológico
(Cf. FREIRE, 1989).
A questão da subjetividade e a percepção desta pelo homem, na proposta de
Freire, não ocorrem fora do espaço sócio-histórico e cultural que envolve o
sujeito, pois este não seria um mero objeto em um espaço construído à sua
71
revelia. Ao sujeito é resguardado um papel de co-responsável, assim, pelas
condições do mundo em que vive. De acordo com Calado, a concepção freireana
de sujeito é a de um ser que está em constante formação ou transformação
graças à sua relação com outros sujeitos e com o mundo, como propõe em:
[...] entendido como um ser que se faz , em suas relações no mundo,
com o mundo e com os outros, [...] graças ao exercício de sua
condição de ser curioso/crítico/criativo. Faz parte da condição de quem
existe, tornar-se continuamente para ser mais, afinal de contas, afirma
Freire, “Não nasci... Vim me tornando”. (CALLADO, 2001, p. 20) grifos
do autor.
Nessa perspectiva, o sujeito é um ser situado sócio-historicamente,
formando-se continuamente pela sua relação dialógica, como proposto acima,
com o outro e com o mundo, pois ninguém nasce feito: é experimentando-nos no
mundo que nós nos fazemos. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social
de que tornamos parte (FREIRE, 2001, p.40). E se a leitura, seja ela do mundo ou
da palavra, é uma prática social que faz parte das experiências do sujeito em
contínua formação, então a leitura também participaria da constituição deste
sujeito. Assim, a leitura está relacionada a engajar o sujeito, a armar o olhar, em
uma atividade crítica ou problematizadora que se concretiza através da linguagem
como prática social, na qual o sujeito-leitor atua como intervencionista da
realidade, não sendo possível se desvencilhar daquilo que Freire (1989) nomeou
de “palavramundo”, ou seja, o sujeito está imerso na linguagem como expressão
que a todo momento é interpretada, é lida por ele.
O entendimento da questão do ser é de fundamental importância em suas
considerações em torno da leitura, uma vez que o ser não prescinde do outro,
mas precisa dele para a possibilidade da própria existência em um mundo
originalmente estabelecido pela tensão do contato entre alteridades. Essa tensão,
por sua vez, jamais se move ou o se deve mover na ambição da
homogeneidade. O reconhecimento da alteridade, ou seja, de outras vozes, as
quais devem ser questionadas pelo sujeito-leitor crítico, em prol de o
desvelamento ideológico das mesmas, promoveria a emancipação do sujeito e o
oportunizaria ser livre. Conforme Callado,
ser livre, em Freire, é conquistar e exercitar a faculdade de dizer a sua
palavra, de pronunciar o mundo; é a condição do ser humano de
responder com solicitude à sua vocação de protagonista de seu destino.
72
Instiga-o a posicionar-se diante de sua ontológica vocação de ser
sujeito. (CALLADO, 2001, p.22) grifo do autor.
Instaura-se dessa forma a interação dialética do homem com o mundo e, em
decorrência, do sujeito com a linguagem, pois uma vez que este sujeito é
condicionado pelo mundo, tal qual proposto por Freire (1979), e na medida em
que seu pronunciar o mundo o faz livre, então se estabelece uma relação
dialética entre condicionamentos e liberdade.
Resta lembrar que, conforme a visão freiriana, dizer sua palavra a do
sujeito é uma atividade situada sócio-histórica, cultural, e conseqüentemente,
ideológica. E como é a palavra, na relação dialógica com a alteridade, que
também permite a formação do sujeito, essa palavra figura como processo e
produto da subjetividade humana. Fato que atrela o sujeito à dinâmica social e,
tendo em vista que, em Freire, a noção de leitura e o entendimento de seu
processo são baseados nessas considerações, entendemos que, da mesma
forma, o sujeito-leitor, nessa perspectiva, também é visto como sujeito constituído
socialmente.
2.3 O sujeito-leitor como efeito: a visão de Eni Orlandi
Eni Orlandi trabalha a questão da leitura no âmbito da Análise do Discurso
de Linha Francesa e tem em Pêcheux e Foucault importantes referenciais
teóricos. Segundo a autora, a Análise do Discurso apresenta como recorte básico
o tratamento dos processos constituintes do fenômeno lingüístico e não
meramente seu produto (ORLANDI, 1988, p.17). Por esse motivo, o ponto de
partida dessa abordagem é a definição de que a linguagem é transformadora,
como ação sobre a natureza e ação concertada sobre o homem. Nessa esfera,
Orlandi (1988) considera a linguagem como trabalho e produção, e o modo de
produção da linguagem como parte da produção social em geral.
Pensar a linguagem como trabalho, ainda que simbólico, implica tomá-la não
apenas em sua função referencial, como instrumento de comunicação ou suporte
ao pensamento, mas como interação, na qual jogam as implicações psíquicas,
sociais e ideológicas de seu uso. Além disso, tomar a palavra como um ato social
73
tendo em vista que o sujeito, ao se apropriar da linguagem, encontra uma
forma instituída socialmente para essa apropriação requer que se considerem
todas as implicações envoltas nessa questão: conflitos, reconhecimentos,
relações de poder, constituição de identidades etc.
Ainda, de acordo com a autora, para assumir a perspectiva da Análise do
Discurso é necessário firmar um compromisso que
coloque a capacidade de linguagem na constituição da própria condição
da espécie, já que o homem não é isolável nem de seus produtos
(cultura), nem da natureza. Daí considerar a linguagem como interação,
vista esta na perspectiva em que se define a relação necessária entre
homem e a realidade natural e social. (ORLANDI, 1988, p.17)
Linguagem e sociedade se constituem mutuamente, uma vez que nem a
linguagem é um dado e nem a sociedade é um produto, por isso, Orlandi (1988)
entende que o estudo da linguagem não pode estar separado da sociedade que a
produz, tampouco pode ser desconsiderado o caráter sócio-histórico dos
processos que constituem esta linguagem.
Portanto, sendo a leitura uma manifestação de linguagem, tais pressupostos
também a constituiriam. Dessa forma, no processo de compreensão dos sentidos
se tornaria de fundamental importância, observar não somente os interlocutores
envolvidos, mas também o lugar ocupado por estes
81
, a situação, o contexto
sócio-histórico e ideológico, as condições de produção que constituem o sentido –
as quais permitem conceber o funcionamento
82
, e não a função, do discurso.
Nesse âmbito, Orlandi concebe a leitura como um processo discursivo e busca,
nessa questão, apreender e entender como se o funcionamento discursivo da
compreensão, com vistas a entender a constituição dos processos de significação
(ORLANDI, 1988, p.101).
Nesse processo discursivo, atuariam dois sujeitos, autor e leitor, inseridos
cada um deles em um momento sócio-histórico determinado, e, por isso,
constituídos ideologicamente. Conforme Orlandi, a leitura seria um processo de
produção:
81
Para Orlandi, todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade, e isso faz parte da
significação. [...]. O lugar assim compreendido, enquanto espaço de representações sociais, é
constitutivo das significações (1998, p.18).
82
A noção de funcionamento é básica para se entender a possibilidade de sistematização dos
elementos constitutivos da significação de um discurso. (ORLANDI, 1983, p.181) E é essa noção
que remete o discurso à sua exterioridade.
74
Não é quem escreve que significa; quem lê também produz sentidos.
E o faz, não como algo que se abstratamente, mas em condições
determinadas, cuja especificidade está em serem sócio-históricas.
(ORLANDI, 1988, p.101)
Para a constituição de um texto, o autor, inserido em uma formação
discursiva
83
e em uma formação ideológica, imagina um leitor e escreve para esse
leitor imaginário. Decorre desse princípio que a relação que se dá, no momento
em que a leitura é realizada, é uma relação entre o leitor virtual (já inscrito no
texto no momento da concepção) e o leitor real, estabelecendo, assim, uma
relação de confronto entre esses dois leitores: o virtual e o real. Isso possibilita a
autora criticar posturas teóricas que entendem que exista, no processo de leitura,
uma relação sujeito/objeto e sublinha a relação entre sujeitos autor, leitor real,
leitor virtual. Por isso, ao ler o sujeito não interagiria com o texto, porque nesse
caso se estaria assumindo o sentido único para ele, mas sim tal jogo interacional
se daria entre sujeitos, como afirmado em:
Se se deseja falar de processo de interação da leitura, eis um
primeiro fundamento para o jogo interacional: a relação básica que
instaura o processo de leitura é o jogo entre o leitor virtual e o leitor real.
É uma relação de confronto. [...] O leitor não interage com o texto
(relação sujeito/objeto), mas com outros sujeitos (leitor virtual, autor,
etc). [...] a relação [...] sempre se entre homens, são relações
sociais, acrescentaria, históricas ainda que (ou porque) mediadas por
objetos (como o texto). Ficar na “objetalidade” do texto, no entanto, é
fixar-se na mediação, absolutizando-a, perdendo a historicidade dele,
logo, sua significância. (ORLANDI, 1988, p.9)
A instauração do autor e do leitor em sua relação como sujeitos é a base
para a contextualização da leitura, pois sujeitos e sentidos são elementos do
processo de significação. O sujeito-leitor, nessa configuração, produziria sentidos
de acordo com as condições de produção na qual o seu encontro com o texto se
dá, e, também, com os outros sujeitos nele configurados. É importante observar
que, na leitura, esse sujeito é o outro da produção do texto da escrita –, ou
83
A formação discursiva representa o conjunto do que pode e deve ser dito a partir de uma
posição em uma conjuntura dada. (ORLANDI, 1988, p.18). E se define pela sua relação com a
formação ideológica, que por sua vez, representa o conjunto de atitudes e representações que não
são nem individuais nem universais, mas se reportam mais ou menos diretamente às posições de
classe em conflito umas com as outras. (HAROCHE, 1975 apud ORLANDI, 1988, p.18). Daí temos
que: as palavras mudam de sentido ao passarem de uma formação discursiva para outras, que
muda sua relação com a formação ideológica.
75
ainda, podemos entender que o outro na leitura é aquele que produziu o texto.
Sendo assim, poderíamos caracterizar a própria leitura como um discurso.
Tomar a leitura na perspectiva da Análise do Discurso, conforme explica
Orlandi (1988), implica encarar o texto não apenas como produto, mas observar o
processo em que ele é produzido, e daí, o de sua significação. Dessa forma, a
leitura é o momento crítico da constituição do texto, da sua realidade significante.
Momento em que os interlocutores se identificam como interlocutores e ao fazê-lo,
desencadeiam o processo de significação do texto:
A leitura é o momento crítico da constituição do texto, o momento
privilegiado do processo de interação verbal, uma vez que é nele que se
desencadeia o processo de significação. No momento em que se realiza
o processo da leitura, se configura o espaço da discursividade em que
se instaura um modo de significação específico. (ORLANDI, 1988, p.38)
Portanto, leitura e sentido, ou melhor, sujeitos e sentidos se constituiriam
num mesmo processo, pois o sujeito ao significar se significa. Desse modo é que
podemos dizer que o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo
(ORLANDI apud SCHERER, 2003, p.78).
Mas considerar as condições de produção da leitura seria reconhecer,
fundamentalmente, nos textos, a sua incompletude; característica esta que
atingiria todos os discursos portanto, também, o texto e se referiria ao fato da
multiplicidade de sentidos possíveis a serem construídos durante a produção da
leitura (Cf. ORLANDI, 1983, p.181). Embora em sua apresentação empírica o
texto mostre-se com um objeto com começo, meio e fim, como discurso, sua
incompletude se reinstala. O texto não seria, pois, um objeto fechado em si
mesmo e auto-suficiente, mas sim, uma forma de articulação da linguagem; como
tal, não pode mais ser tomado como unidade de sentidos pré-existentes, pois o
sentido não está inscrito no texto, tampouco, o sentido do texto não se aloja em
cada um dos interlocutores separadamente, mas está no espaço discursivo criado
pelos (nos) dois interlocutores (ORLANDI, 1988, p.22).
A relação do sujeito-leitor com o universo simbólico, nessa proposta, o
ocorreria apenas por uma via a verbal –, ele operaria com todas as linguagens
que constituem o universo simbólico ao se relacionar com o mundo. E a autora
ainda considera que o texto, como exemplar de discurso, é multidimensional,
enquanto espaço simbólico (ORLANDI, 1996, p.14). Por isso, pensando na
76
materialidade textual, a autora afirma que o texto não é uma superfície plana, nem
tampouco uma chapa linear (ORLANDI, 1996, p.14); antes, figuraria como um
bólido de sentidos que o faz partir em inúmeras direções, em ltiplos planos
significantes.
No entanto, não se pode perder de vista que
Os sentidos não nascem ab nihilo. São criados. São construídos em
confrontos de relações que são sócio-historicamente fundadas e
permeadas pelas relações de poder com seus jogos imaginários. Tudo
isso tendo como pano de fundo e ponto de chegada, quase que
inevitavelmente, as instituições. Os sentidos, em suma, são produzidos.
(ORLANDI, 1988, p.103)
Dessa maneira, os sentidos não pertenceriam ao sujeito-autor ou ao sujeito-
leitor, muito menos derivariam de sua intenção e consciência, são
decorrentes/efeitos da troca de linguagem entre eles, seriam partes de um
processo, realizando-se num contexto, mas não se limitando a ele. Haja vista que
têm historicidade: têm um passado podem se sedimentar no interior das
formações discursivas, assim leituras “previstas” e se projetam num futuro.
Assim, a relação de interlocutores na construção/produção de sentidos é
pressuposta na noção de efeito, na medida em que os efeitos de sentido seriam
produto do processo de significação entre eles – os interlocutores.
É, ainda, a partir da noção de incompletude que a autora esclarece que os
sentidos são construídos pelas relações que o texto estabelece com outros
textos
84
existentes, possíveis ou imaginários –, sendo esse mais um dos
motivos pelos quais o sentido lido não se encontraria, obrigatoriamente, no texto
lido. Além disso, na leitura jogariam não apenas o que está dito, mas também
aquilo que não está dito e que também está significando (Cf. ORLANDI, 1988,
p.11).
Orlandi propõe também que, uma vez que o contexto seria constitutivo do
sentido, não haveria um centro e suas margens. margens. Dessa forma,
todos os sentidos são de direito sentidos possíveis e, em certas condições de
produção, de fato dominância de um sentido sem por isso se perder a relação
com os outros possíveis (ORLANDI, 1988, p.20). Nessa produção de sentidos, a
autora propõe duas possibilidades: a paráfrase e a polissemia. A primeira
84
A essa relação, Orlandi (1996) denomina de intertextualidade.
77
caracterizaria a leitura parafrástica, que se manifesta pela reprodução, ou melhor,
pela produção do mesmo sentido sob várias de suas formas; a segunda apontaria
para a leitura polissêmica, que se define pela possibilidade de múltiplos sentidos
serem produzidos (Cf. ORLANDI, 1988, p.12).
No que tange à acepção de sujeito, Orlandi (1988) explicita que é próprio da
Análise do Discurso conceber o sujeito como social, constituído pelo discurso e
interpelado pela ideologia. Decorreria dessa condição do sujeito a sua ilusão de
autonomia, ou seja, o próprio sujeito não percebe o seu assujeitamento
ideológico. Nesse sentido, o sujeito-leitor, ao praticar a leitura, se identificaria com
o sujeito histórico, interpelado ideologicamente, e conseqüentemente, inscrito em
uma formação discursiva determinada, instituindo-se como efeito-leitor a
posição da qual o leitor está lendo, afetada pelo interdiscurso e pela formação
discursiva. Dessa forma, na produção da leitura, o leitor entraria com as
condições que o caracterizam sócio-historicamente, e é daí que terá sua
identidade de leitura configurada pelo seu lugar social e é em relação a esse
lugar que se define sua leitura. O efeito-leitor é, pois, relativo à posição do sujeito.
(ORLANDI, 1988, p.104)
Tal processo de inscrição levaria à falsa impressão de que ele (o sujeito-
leitor) é a fonte de seu discurso e de que os sentidos são transparentes. O sujeito-
leitor, assim, é constituído por dois efeitos: efeito discursivo de sua identificação,
isto é, de sua subjetividade – o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz – e
por aquilo que Orlandi chama de afetação pela ideologia, com sua ilusão de
autonomia. Ainda podemos relacionar essa ilusão, que o sujeito tem de ser a
fonte do que diz, ao interdiscurso, ou memória discursiva, que é o conjunto de
dizeres ditos e esquecidos que determinam o que dizemos, sustentando a
possibilidade mesma do dizer (ORLANDI, 2001, p.59)
85
.
No âmbito desses efeitos, a autora propõe que:
O sujeito-leitor, constituído por esses efeitos, representa a conjunção de
duas historicidades: a historicidade de suas (do leitor) leituras e a
história de leituras do texto [...] que atuam dinamicamente na
constituição de uma “sua” leitura específica, em um momento dado.
(ORLANDI, 1988, p.112)
85
Tal noção, a de interdiscurso, traz para a reflexão sobre o sujeito-leitor a consideração do
inconsciente.
78
Falar dessas historicidades leva a reconhecer o fato de que o mesmo sujeito-
leitor não leria o mesmo texto da mesma maneira e em condições distintas de
produção da leitura, e ainda, que o mesmo texto seria lido de maneiras diferentes
em diferentes épocas, por diferentes leitores. Esses dois tipos de historicidade, a
do leitor e a do texto, entrecruzam-se de várias maneiras no processo de leitura.
Com isso, Orlandi caracteriza o sujeito-leitor crítico como aquele capaz de saber
que o sentido poderia ser outro (ORLANDI, 1988, p.116).
Nessa perspectiva, o texto teria vários pontos de entrada e vários pontos de
fuga. Os pontos de entrada diriam respeito a múltiplas posições do sujeito
relacionados com o efeito-leitor – e os pontos de fuga seriam as diferentes
perspectivas de produção de sentidos. Decorreria da possibilidade de múltiplas
leituras, e também, a possibilidade de múltiplas posições do sujeito-leitor.
Acrescente-se a isso que os pontos de entrada são efeitos da relação do sujeito-
leitor com a historicidade do texto. Os pontos de fuga são o percurso da
historicidade do leitor, em relação ao texto (ORLANDI, 1988, p.113).
Portanto, o sujeito-leitor, em sua relação com o sócio-histórico, produziria
sentidos ligados à historicidade, numa relação de confronto com a(s) imagem(ns)
de leitor(es) inscrita(s) no ato da formulação do texto. Tais sentidos estariam
filiados a certas formações discursivas, das quais resultariam o lugar de onde
esse sujeito realiza “sua” leitura, que, por sua vez, remeteriam à ilusão desse
sujeito-leitor ser a fonte do sentido produzido e de esse sentido ser transparente.
Assim concebido, o sujeito-leitor seria efeito e não origem, por isso não teria
controle sobre os sentidos produzidos.
2.4 O sujeito-leitor clivado: a abordagem de Maria José Coracini
Maria José Coracini situa sua proposta teórica de estudo da leitura na
interface da Análise do Discurso, de linha francesa, com a teoria da
Desconstrução, proposta por Jacques Derrida. A autora apresenta ainda forte
influência da Psicanálise, principalmente, das teorias lacanianas. Nesse sentido,
ela segue conceitos como discurso, ideologia, formação discursiva, interação,
imaginário e desconstrução como pressupostos para seu estudo sobre leitura.
79
Sua postura a leva a apresentar como meta a desestruturação das verdades
teleológicas, dentro das quais se inserem a leitura e o sujeito-leitor, numa
perspectiva chamada de discursivo-desconstrutivista, que se na convergência
do lingüístico com o social.
A autora considera, assim como Orlandi, o ato de ler como um processo
discursivo determinado sócio-historicamente e marcado pela ideologia, em
contraposição ao conceito de leitura como um processo cognitivo ou mecânico,
independentemente do sujeito e da situação de enunciação:
Há uma outra concepção de leitura que se encontra na interface entre a
análise do discurso e a desconstrução que considera o ato de ler como
um processo discursivo no qual se inserem os sujeitos produtores de
sentido o autor e o leitor –, ambos sócio-historicamente determinados
e ideologicamente
86
constituídos. É o momento histórico-social que
determina o comportamento, as atitudes, a linguagem de um e de outro
e a própria configuração do sentido. (CORACINI, 2002, p.15)
Configuração do sentido essa que seria fortemente constituída pelo
imaginário discursivo o interdiscurso que habita o sujeito sócio-
ideologicamente constituído e que determina o seu dizer. O conjunto formado pelo
interdiscurso e pelas condições de produção remeteriam à pluralidade de sentidos
e a diferentes leituras que não se referem apenas à diferentes leituras realizadas
por sujeitos distintos, mas também a diferentes leituras realizadas por um
“mesmo” sujeito sempre “outro”, como afirmado em:
Quando falamos de diferentes leituras, referimo-nos não apenas à
leitura realizada por cada indivíduo em particular, mas aos diferentes
momentos de sua vida: na verdade, o sentido de um texto, por ser
produzido por um sujeito em constante mutação, não pode jamais ser o
mesmo; aliás, como bem coloca Foucault (1971), tudo é comentário: o
dizer é inevitavelmente habitado pelo já-dito e se abre sempre para uma
pluralidade de sentidos, que, por não se produzirem jamais nas mesmas
circunstâncias, o, ao mesmo tempo, sempre e inevitavelmente novos.
(CORACINI, 2002, p. 16)
Pluralidade de sentidos vista por Coracini (2002) como disseminação e não
como polissemia. Polissemia essa que é rejeitada uma vez que esta se construiria
em oposição à monossemia textual, de um sentido-verdade retornável em um
dado momento. Antes, a disseminação seria capaz de fazer explodir o horizonte
semântico e, dessa forma, não anularia o processo produtivo da cadeia de
86
Por ideologia, Coracini (2002, p.75) compreende o conjunto de idéias que permeiam o olhar que
lançamos ao mundo em que vivemos, enquanto membros de determinadas formações discursivas,
determinando as formas de comportamento e de uso da linguagem.
80
sentidos. Pois assim o sentido seria um em meio aos outros sentidos possíveis.
Nesse âmbito, Coracini cita Derrida (1972) para esclarecer melhor a perspectiva
de disseminação do sentido. Vejamos:
A atenção dada à polissemia [...] constitui, possivelmente, um progresso
relativamente à linearidade de uma escrita ou de uma leitura
monossêmica, ansiosa por se amarrar ao sentido tutor, ao significado
principal do texto [...]. Entretanto, a polissemia enquanto tal organiza-se
no horizonte implícito de uma retomada unitária do sentido [...] de uma
dialética teleológica e totalizante que deve permitir a um momento dado,
por mais distanciado que ele seja, de voltar a reunir a totalidade de um
texto na verdade de seu sentido, constituindo o texto em expressão, em
ilustração, e anulando o deslocamento aberto e produtivo da cadeia
textual. A disseminação, ao contrário, por produzir um número não-finito
de efeitos semânticos, não se deixa reconduzir a um presente de
origem simples [...] nem a uma presença escatológica. Ela marca uma
multiplicidade irredutível e geradora. (DERRIDA 1972, apud CORACINI,
2002, p.16)
A partir desses pressupostos, Coracini, com base nas idéias de Wittgenstein
(1969) e de Urban (s.d.), define os textos não como receptáculos de sentidos,
mas como conjuntos amorfos de sinais gráficos, incapazes de reter sentido fora
do jogo lingüístico [...], fora do universo de discurso [...] (2002, p.17). E, uma vez
que as condições de sua produção se acham perdidas, apenas uma nova
situação de enunciação a leitura seria capaz de conferir sentidos a esses
sinais gráficos transformando-os, novamente, em sinais lingüístico-textuais.
No entanto, assumir a visão discursiva, propõe Coracini (2002), é reconhecer
não apenas o texto verbal como texto, mas também a pintura, a música, a
fotografia e outras possibilidades do universo simbólico, que em seu
entendimento, a leitura é, em primeira e última instância, interpretar. (CORACINI,
2005, p.25).
O sujeito, na acepção da autora, seria constituído heterogeneamente, via
imaginário, atravessado pelo outro (por outros discursos que constituem o
interdiscurso
87
). Seria esse imaginário o responsável pela ilusão de unidade, de
homogeneidade e de completude do sujeito. Por isso, não seria possível se falar
de autonomia e de consciência do sujeito, que este se apresenta como
superfície homogênea, camuflando a heterogeneidade que o constitui. Essa
87
Interdiscurso entendido como o lugar do pré-construído, lugar das múltiplas vozes que
constituem a memória discursiva fundante da subjetividade.
81
noção de sujeito, defendida por Coracini (2000), permite vislumbrar a relação de
afetação entre as perspectivas psicanalítica e discursiva. Pois, para a autora,
O sujeito se apresenta esfacelado, cindido, clivado, superfície
homogênea e una que camufla a heterogeneidade que o constitui,
heterogeneidade essa que determina os conflitos e as contradições que
emergem, vez por outra, do inconsciente, através do simbólico a cujo
nível pertence a linguagem. E esse sujeito, inserido em sua
historicidade e por ela constituído, habitado, portanto, pelo Outro, está
fadado a tudo interpretar, a tudo significar. (CORACINI, 2000, p.180)
Por sermos sujeitos de linguagem, inseridos na ordem simbólica, seríamos
fadados à interpretação e, conseqüentemente, à alteridade. Assim sendo, o
controle dos sentidos é ilusório, pois como sujeitos interpretantes somos
constituídos em um contexto histórico-social amplo. E ainda, se poderia falar
de sujeito quando ele é discursivamente constituído (CORACINI, 2003a, p.54), ou
seja, quando ocorre a sujeição à linguagem, ao dizer do outro, ao olhar do outro.
Postular essa alteridade significa considerar o esfacelamento do sujeito e a
polifonia de vozes na voz, aparentemente única, de qualquer indivíduo ou de
qualquer texto. E é esse sujeito, assujeitado à linguagem, perpassado pelo
inconsciente e participante de uma formação discursiva
88
, quem determina a
leitura e não o texto:
Não é o texto que determina as leituras [...], mas o sujeito, não na
acepção idealista de indivíduo, uno, coerente, porque dotado de razão
[...] graças à qual lhe é possível controlar conscientemente a linguagem
e o sentido, mas enquanto participante de uma determinada formação
discursiva, sujeito clivado, heterogêneo, perpassado pelo inconsciente,
no qual se inscreve o discurso. (CORACINI, 2002, p.18)
Tal heterogeneidade aponta para a presença do outro no dizer daquele que
aparenta um, presença que não se refere somente ao interlocutor com quem se
dialoga, ainda que virtualmente, e é marcada pela ideologia:
Falar do outro significa postular sua presença-ausência na constituição
de todo e qualquer discurso e, conseqüentemente, [...] a presença da
ideologia que o constitui, porque constitutiva de todas as relações
sociais. (CORACINI, 2005, p.32)
88
Na acepção da autora, a formação discursiva refere-se ao conjunto de regras anônimas (que se
manifestam como regularidades responsáveis pela “ordem do discurso”), que determinam para um
dado grupo social, num dado momento e num determinado espaço, os comportamentos, as
atitudes e o próprio dizer. (CORACINI, 2005, p.27) Todavia, esse espaço de regularidades não se
configura como fechado e imóvel no tempo, mas como instável.
82
Para Coracini, a leitura, vista como interpretação, não trataria mais, tal como
queriam alguns teóricos que menosprezam o caráter cio-histórico do texto e
dos sentidos, de perseguir sua unidade ilusória, e sim de, amarrotá-lo, recortá-lo,
pulverizá-lo, distribui-lo segundo critérios que escapam ao nosso consciente,
critérios construídos por nossa subjetividade, que produz incessantemente a si
mesma (CORACINI, 2005, p.250).
O sujeito-leitor, atravessado pelo inconsciente, produtor de sentidos e,
portanto, de novos textos que resultariam do trabalho de olhar, de escuta, de
leitura da memória discursiva que o constitui, enfim, que remete ao mundo de
significações que esse sujeito representa –, não tem mais controle da origem de
seu dizer, nem controle dos efeitos de sentido que sua leitura, seu dizer, é capaz
de produzir. Dessa forma, o dizer não poderia ser transparente àquele que diz
(enunciador), ao qual ele escapa, irrepresentável, em sua dupla determinação
pelo inconsciente e pelo interdiscurso.
É somente nessa visão de sujeito, constituído por essas ilusões, que, para
Coracini (2002), se pode falar do sujeito-leitor como ponto de partida da produção
de sentido, ou seja, por meio do efeito discursivo de seu apagamento. Pois, sendo
a linguagem assumida como opacidade e o sujeito-leitor atravessado pelo
inconsciente, seria impossível o controle dos sentidos por ele produzidos.
Portanto, ler, compreender, interpretar ou produzir sentido é uma questão de
ângulo, de percepção, ou de posição enunciativa
89
(CORACINI, 2005, p. 25).
Posição essa que remeteria às possibilidades de interpretação de dada formação
discursiva, pois:
Não lemos o que queremos (de forma independente) a qualquer
momento e em qualquer lugar, assim como não podemos dizer ou fazer
o que quisermos em qualquer lugar e a qualquer momento: regras,
leis do momento que autorizam a produção de certos sentidos e não de
outros. (CORACINI, 2005, p. 27)
A partir dessa proposição, a autora entende que é o momento sócio-histórico
que apontaria para as leituras possíveis e não do texto. Além da relação com o
89
Todo discurso traz em si a definição mais, ou menos, precisa de lugares ou de posições
subjetivas a serem ocupados por este ou aquele indivíduo, segundo as relações políticas e sociais
e, portanto, ideológicas admitidas e construídas num dado momento histórico-social, num dado
discurso sempre em formação –, determinantes da(s) verdade(s) a ser(em) assumidas.
(CORACINI, 2005, p.30)
83
social, propõe, ainda, que o sujeito-leitor, ao ler um texto, interage com outros
sujeitos enquanto imagem (CORACINI, 2002, p.17). Imagem essa que diz
respeito não apenas a um leitor (enunciatário, virtual) concebido no momento da
escrita, mas também à imagem do autor, que no texto existe nessa
configuração. Portanto, não apenas um leitor virtual, também um autor, que
poderíamos chamar de virtual, inscritos no texto. Pois o leitor produz não apenas
sentidos, mas também imagens que balizam a leitura efetuada.
Nessa proposta, o sujeito-leitor apresenta-se como clivado, perpassado tanto
pelo inconsciente quanto pelo interdiscurso, mas ainda assim, um sujeito efeito,
tal qual propõe a análise do discurso. Todavia, o fator que mais proporciona esse
efeito, na concepção de Coracini, é o inconsciente habitado pelo outro, formado
pela heterogeneidade de vozes. No entanto, como essa clivagem refere-se à
memória discursiva do sujeito, ou seja, ao interdiscurso, nela – a presença-
ausência de outras vozes, que constitui o sujeito , deixa entrever a ideologia, a
qual é constitutiva de toda relação social. Portanto, não se pode menosprezar o
papel que a ideologia apresenta nas considerações propostas por Coracini.
Esse sujeito-leitor clivado, marcado pelas condições de produção de sua
leitura, cio-histórica, e conseqüentemente, ideológica, por isso, se configuraria
como sujeito social, interagiria com outros sujeitos presentes no texto, na forma
de imagens, quer seja do leitor inscrito no momento da formulação do texto, quer
seja do autor, inscrito no momento da leitura. Seria a partir desse quadro e
inscrito em uma formação discursiva que o sujeito-leitor interpretaria e significaria,
enfim, que produziria sentidos em meio a outros; sentidos disseminados.
2.5 Algumas considerações
O sujeito-leitor, visto como um ser constituído e, ao mesmo tempo,
constituindo nas/as relações sociais, não pode ser considerado fora de uma
historicidade que o engendra e lhe permite ser-se sujeito, e sujeito social. Nesses
termos, as reflexões dos autores abordados – Bakhtin, Freire, Orlandi e Coracini –
possibilita-nos o diálogo com as questões que envolvem o caráter social da
relação entre sujeito-leitor e leitura, vistos como pertencentes ao tecido social, e
84
por isso envoltos em questões que ultrapassam habilidades individuais ou
mecânicas relacionadas à produção/construção dos sentidos.
O redimensionamento das noções de sujeito-leitor, de leitura e de sentido
nos estudos apresentados, indica-nos que a constituição dessas noções não está
dissociada de suas relações sócio-históricas, marcadas por seu caráter
ideológico. Depreendemos dos posicionamentos em questão que tanto sujeitos
quanto sentidos estão em constante formação e transformação, dado o contato
com a alteridade (o outro que me constitui, a presença-ausência do outro no eu) e
com a historicidade representante do interdiscurso, conforme apontam Bakhtin,
Orlandi e Coracini, ou com a “inteligência do mundo”, conforme aponta Freire.
Posicionamentos que entendemos não serem formulações “individuais” e
originais, como se fossem de um Adão bíblico, para usarmos uma expressão de
Bakhtin, mas discursos que entendemos ser povoado por outras vozes. No
entanto, não visualizamos o embate teórico entre eles, antes sim, uma
possibilidade de diálogo no âmbito da linguagem como historicamente
constituída e socialmente instanciada, do discurso, da prática social e de
complementaridade que os alinham numa postura crítica diante do tema leitura.
Com suas perscrutações, esses quatro autores propiciaram-nos pensar
como se configura a questão do mundo no sujeito-leitor. Assim, no esforço de
compreendermos a constituição do sujeito-leitor como sujeito social, trouxemos à
baila outros conceitos que julgamos serem necessários, a fim de que pudéssemos
entender melhor, não a constituição, mas também o movimento pelo qual essa
noção, a de sujeito-leitor, passou. Nesse ínterim, acabamos por tratar do que os
autores compreendem como texto, ideologia, sujeito, compreensão, enunciação,
enunciado, formação discursiva, formação ideológica, interação, efeito,
engajamento, diálogo, interdiscurso, e tantas outras noções quanto nos
pareceram necessárias para dimensionarmos a formatação
90
do sujeito-leitor e,
conseqüentemente, de leitura em suas propostas.
O contexto mais amplo em que se insere o sujeito-leitor e a leitura é
considerado fundamental para as posturas delineadas, ainda que essa noção de
contexto sofra variações e ampliações, e passe a ser denominado como em
90
Formatação entendida não como fôrma, mas como configuração.
85
Orlandi e Coracini como condições de produção da leitura. Ainda, notamos uma
afinidade, mesmo que com as devidas ressalvas, no que tange a consideração da
linguagem, e, portanto, a leitura em sua relação não com o presente e o
passado, mas também com o futuro. Pois é a partir daí que Bakhtin pode falar da
responsividade como um processo de construção de algo que opera com o já-dito
para alcançar o a se dizer; que Freire pode apontar a crítica como tarefa
permanente de transformação; que Orlandi pode falar de efeito como o
reconhecimento, entre outras coisas, de que os sentidos têm um passado e
projetam um futuro; e que Coracini propõe a clivagem sem abdicar da noção de
efeito, tal qual apontada por Orlandi.
Mas, percebemos, quando se trata do importante papel da linguagem na
constituição do sujeito, uma grande diferença quanto à abordagem da ideologia
atrelada a essa linguagem no que se refere a Bakhtin e a Freire relativamente a
Orlandi e a Coracini. Provavelmente, tal diferença diga a respeito do
posicionamento encampado pelos dois autores que assumem a ideologia na
perspectiva marxista
91
, promovendo, no entanto, a ampliação desse conceito.
Em Bakhtin e, mais claramente, em Freire o princípio da interação entre os
sujeitos seria o fundador tanto da linguagem como da consciência, assim, à leitura
crítica levaria à prática consciente e possibilitaria uma tomada de posição em prol
da transformação da realidade objetiva. Ou seja, do confronto da própria realidade
entre sujeito e mundo, é que haveria o questionamento da ideologia dominante e
o desvelamento da realidade; o que daria origem à autonomia do sujeito e,
conseqüentemente, do sujeito-leitor.
Assim, partem do entendimento da ideologia como falsa consciência tomada,
como esfumaçamento da realidade verdadeira, como escurecimento e não-
percepção da existência das contradições e da existência de classes sociais
promovida pelas forças dominantes – e, desconstroem e reconstroem parte dessa
definição, realocando-a no âmbito da dialética instaurada entre a realidade
objetiva e a consciência, expressada como uma tomada de posição determinada,
91
A partir de certa leitura marxista, a consciência crítica vista como] uma forma de engajamento
político. Estar preparado para desconfiar da manipulação ideológica que se instaura, ora mais, ora
menos, por detrás da materialidade lingüística (Coracini, 2003b, p.276). Postura que podemos
depreender em Freire.
86
desnaturalizando, dessa forma, algumas questões sociais tomadas como
naturais. Nessa perspectiva, assumem o sujeito como condicionado pela
realidade sócio-histórica, e, por extensão, o condicionamento da relação do
sujeito-leitor com os sentidos, numa relação dialética entre determinismo
objetivista e o subjetivismo. A neutralidade dos textos (discursos) inexiste a partir
dessa perspectiva.
na abordagem de leitura efetuada por Orlandi e por Coracini, por partirem
da conceituação de ideologia (ligada a uma FD) como a responsável pela
interpelação do indivíduo em sujeito, juntamente com papel do interdiscurso
92
e
do inconsciente
93
na constituição do sujeito, observamos que existe uma espécie
de determinação sócio-histórica, quando se trata do papel do sujeito-leitor na
produção de sentidos. Para as autoras a ideologia não seria um “conteúdo” e sim
uma prática, é um funcionamento discursivo. O sujeito não atravessa a linguagem
para encontrar a ideologia, na linguagem a ideologia é. E ainda, de acordo com tal
posicionamento, o inconsciente está perpassado pela ideologia de forma que
essa se realiza através dos sujeitos. Logo, o sujeito não domina o seu próprio
dizer, ele torna-se um ser assujeitado. Assujeitamento que não tem a ver com a
pressuposição da passividade do sujeito-leitor, antes diz respeito ao fato da
interpretação ser orientada.
Sendo os sentidos produzidos pelo sujeito e este, por sua vez, perpassado
pela ideologia, ou pelo inconsciente, como propõe Orlandi e Coracini, e
produzindo sentidos determinados por uma situação discursiva, a leitura
entendendo-se, a produção de sentidos não poderia ser tomada como uma
relação consciente, que dessa forma leva conscientemente à crítica. A crítica,
especialmente, na visão de Freire, não resulta da compreensão teórica da
determinação do sujeito, mas do confronto da própria realidade entre sujeito e
mundo, fato que levaria esse sujeito ao questionamento da ideologia dominante,
ao desvelamento da realidade; mas desvelá-la, contudo, é apenas um passo para
transformá-la, pois é necessário o engajamento na luta política.
Na abordagem discursiva, representada aqui pelas duas autoras, a crítica
parece emergir do fato de trazer à tona a constatação de que os sentidos
92
Também referido por Bakhtin.
93
Mais trabalhado por Coracini, em suas reflexões sobre leitura, que por Orlandi.
87
produzidos pelo sujeito são sempre ilusões de domínio destes sobre aqueles, são
sempre efeitos de sentidos, sendo o próprio sujeito um efeito discursivo desses
atravessamentos. Tal fato aponta-nos um importante movimento do sujeito-leitor:
de tornar-se autônomo para aquele que têm a ilusão de sua autonomia. Assim
como o sujeito-leitor não é a origem dos sentidos por ele produzidos, não tem o
domínio e consciência de como os sentidos se formam nele, de como ele
experimenta os sentidos.
Chamamos a atenção também para a movimentação no sentido do jogo
entre imagens instituídas na produção dos textos e que orientam a leitura. Jogo
que se refere a relações intersubjetivas, mediadas pelo texto, e não mais entre
sujeito-leitor/texto, ou sujeito/objeto.
Sendo a linguagem em sua condição sócio-histórica o que possibilita a
constituição do sujeito e, na mesma medida, esse sujeito constituído favorece o
engendramento dessa linguagem, perspectiva que assumimos neste trabalho,
então acreditamos que nos será de grande valia adentrarmos as discussões
sobre a pós-modernidade, no intuito de tentarmos inscrever/inserir o sujeito-leitor
e a leitura nesse âmbito, tendo em vista que se acredita que a pós-modernidade
tem proporcionado muitas mudanças nas relações sociais, entre elas na noção de
subjetividade, de tempo e de espaço. Então, podemos encontrar nessa questão
um “território fértil” para avançarmos na análise dos movimentos pelos quais
nosso objeto de estudo vem passando.
88
CAPÍTULO 3: A PÓS-MODERNIDADE E O SUJEITO-LEITOR
3.1 O cenário pós-moderno: espaço da ambivalência
Muito se tem discutido nos últimos tempos sobre a superação da
modernidade por uma fase conseguinte nomeada ora de pós-modernidade
94
, ora
de modernidade tardia
95
, modernidade líquida
96
, modernidade reflexiva
97
ou de
hipermodernidade
98
e, provavelmente, de outros termos que aqui nos escapam.
Encontramos, em nossas pesquisas, algumas definições de pós-modernidade,
que ora a opõem à modernidade, ora a vêem como uma continuação da
modernidade, ora como uma perspectiva que tudo critica e nada põe no lugar. No
esforço de defini-la, as discussões, geralmente, giram em torno das transições
paradigmáticas
99
que vêm ocorrendo desde o final do século XX e,
especialmente, nesse início de século XXI, o que nos levaria ao questionamento e
à reescrita dos ideais da modernidade, tais como: a racionalidade a-histórica, as
verdades transcendentais
100
, a homogeneidade do sujeito social, a autonomia,
dentre outros.
Cumpre aqui discutirmos alguns traços distintivos da pós-modernidade em
relação à modernidade, como forma de situarmos o sujeito-leitor dentro deste
cenário, uma vez que concebemos a s-modernidade como uma forma de
interrogar a modernidade e de problematizar certas questões por ela trazidas.
94
LYOTARD (1998), JAMESON (1997), HALL (2004) e CANCLINI (2008).
95
HALL (2004).
96
BAUMAN (2001).
97
GIDDENS (2002).
98
LIPOVETSKY (2004).
99
Paradigma, de acordo com Kuhn (1975, p.221-222), é algo compartilhado pelos membros de
uma comunidade, ou seja, é o consenso de uma comunidade científica em relação a alguns
conceitos que vão definir o que é válido para a comunidade.
100
Na visão de Jameson (1997), uma importante característica da pós-modernidade é a
fragmentação. Para ele, a era pós-moderna não pressupõe a universalidade dos discursos
característica da era moderna. Ao contrário, o parece haver, na pós-modernidade, o
pressuposto da existência de uma verdade absoluta, mas, sim o pressuposto de que existem
verdades relativas. Assim sendo, na medida em que se pressupõe que não uma verdade que
justifique a universalização dos discursos, o que resta são discursos fragmentados e heterogêneos
coexistindo em uma mesma época.
89
Nesse ínterim, encontramos em Canclini (2008) uma perspectiva na qual
embasamos o nosso olhar sobre esse cenário:
Concebemos a pós-modernidade não como uma etapa ou tendência
que substitui o mundo moderno, mas como uma maneira de
problematizar os vínculos equívocos que ele amarrou com as tradições
que quis excluir ou superar para constituir-se. (CANCLINI, 2008, p.28)
Entendemos também, juntamente com Bauman (1999b), que a s-
modernidade não está em oposição à modernidade, mas em ambivalência com
ela, criando assim, uma zona fronteiriça entre as duas. Dessa forma, o sujeito-
leitor situado nesse entremeio, no espaço da ambivalência, entre a modernidade
e a pós-modernidade, produz suas leituras e sentidos a cada momento diferentes,
mergulhado nos fios do interdiscurso e na pluralidade de vozes
101
; diante de
antigos ou de novos textos e de novos meios para a textualidade.
Importa-nos, no que tange à pós-modernidade, mais detidamente, as
questões que abarcam a temática da tecnologia
102
a fim de efetivarmos um
esforço de compreensão das subjetividades em jogo com relação ao tema da
leitura e da leitura das textualidades relacionadas a essa tecnologia.
Consideramos que o grande desenvolvimento tecnológico, especificamente
aquele ligado às novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), que
vivenciamos nos últimos tempos, bem como a compressão tempo/espaço trazida
pelo advento da informatização, mediam mudanças relacionadas à vida sócio-
cultural, política, histórica e, dessa forma, afetam os sujeitos inseridos nesse
contexto e as atividades desempenhadas por estes, como é o caso da leitura.
Vimos, nos capítulos anteriores, os atravessamentos das questões sociais
na atividade de leitura e na constituição do sujeito-leitor. Por esse motivo, ao
inserirmos o sujeito-leitor no contexto da pós-modernidade não o podemos
enxergar como imune a todo esse processo de mudança, imune à sócio-história e
às práticas discursivas
103
em que atua e que o constituem. Uma vez proposto
101
Questões discutidas no capítulo anterior.
102
Vimos no capítulo I, como algumas tecnologias mudaram a história da humanidade e,
conseqüentemente, da leitura, como é o caso da escrita, da imprensa, o conjunto de tecnologias
eletroeletrônicas como o rádio, televisão, computador hoje todas elas integradas ao computador,
por meio da internet.
103
Práticas discursivas tomada no sentido foucaultiano, como sistemas que instauram o enunciado
como acontecimento.
90
como um sujeito social, precisamos enxergá-lo, como bem o propõe Coracini
104
,
em sua heterogeneidade, fragmentação, e, para usarmos um termo muito caro à
pós-modernidade, em sua fluidez.
Bauman (2001) esclarecendo-nos melhor sobre essa fluidez, defende a tese
de que a modernidade
105
é um longo processo de “liquefação da solidez
característica dos tempos pré-modernos. O que a modernidade se propõe é
substituir os “sólidos” tradicionais por novos “sólidos”, mais confiáveis, previsíveis
e administráveis segundo critérios racionais. O que de fato ocorreu, no entender
de Bauman, foi que, ao longo dos tempos modernos, os sólidos se derreteram, ou
seja, aqueles conceitos centrais, como por exemplo, emancipação,
individualidade, tempo/espaço, os quais deveriam constituir o chão firme dos
novos tempos, perderam sua rigidez.
Dentre os tantos sólidos que a modernidade se encarregou de desfazer se
encontram as categorias de tempo e de espaço, que a nós interessa bastante,
tendo em vista que essa mudança ou liquefação das relações entre essas duas
categorias – a qual ocasiona a compressão entre elas – foi ocasionada, em
grande parte, pelo desenvolvimento e utilização das novas TIC, como é o caso da
internet
106
e das comunicações eletrônicas.
Bauman (2001) afirma que a modernidade
começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e
entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e
mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de
ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos aspectos
entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida, e presos
numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca.
Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua
‘capacidade de carga’, perpetuamente em expansão o alongamento
dos trechos do espaço que unidades de tempo permite ‘passar’,
‘atravessar’, ‘cobrir’ ou conquistar. O tempo adquire história uma vez
que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do
espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não
encolhe) se torna uma questão de engenho, da imaginação e da
capacidade humanas. (BAUMAN, 2001, p.15-16) grifos do autor.
104
Conforme exposto no capítulo anterior.
105
Para Bauman haveria duas espécies de modernidades: a lida (pesada) referente ao que
usualmente é chamado de modernidade, propriamente dita e a líquida (leve) referente ao que
chamamos aqui de pós-modernidade. O termo “modernidade líquida” é cunhado por Bauman no
livro que tem por título exatamente essa nomeação, publicado no Brasil em 2001.
106
A qual, segundo Lévy (1996), possibilitou a configuração de um novo espaço: o ciberespaço.
91
No período moderno tal separação teve como resultado o predomínio do
tempo sobre o espaço, pois a modernidade (pesada) é, talvez, mais que qualquer
outra coisa, a história do tempo. Decorre dessa dissolução entre tempo e espaço
a metáfora do líquido usada por Bauman para definir a atual fase da modernidade
em que nos encontramos, pois, segundo o autor, para os fluidos o que conta é o
tempo, e não o espaço, que preenchem apenas momentaneamente (BAUMAN,
2001, p.8). Por terem uma extraordinária mobilidade e inconstância, associam-se
os fluidos à idéia de “leveza” ou “ausência de peso”.
Decorre dessas razões o fato de, conforme Bauman (2001), considerar-se
fluidez ou liquidez como metáforas adequadas à natureza da fase em que
vivemos, nova na história da modernidade. Enquanto a modernidade sólida
colocava a duração eterna como principal motivo e princípio da ação, na
modernidade líquida a duração eterna não tem função. O curto prazo substituiu o
longo prazo, e fez da instantaneidade o ideal último. Se antes os indivíduos
contabilizavam seu tempo e seu espaço a partir do que seu corpo podia fazer; e
depois passaram a lidar com o tempo e o espaço que os automóveis produziam
estar a dez minutos de alguém/algum lugar não significa o mesmo para alguém a
e para alguém motorizado –; agora o espaço dissolve-se, uma vez que por
meio de um sinal eletrônico, uma mensagem pode atravessar o mundo em
segundos ou frações de segundos
107
.
Por esse motivo, Bauman (2001) argumenta na direção de visões fluidas e
heterogêneas e muito mais dinâmicas da sociedade contemporânea, construída
“no aqui e no agora”. Essas tecidas sob uma trama movente
108
, ao contrário de
visões duradouras e unificadoras da tradição moderna, baseadas nas verdades
universais e na racionalidade, que, supostamente, levariam ao progresso e ao
desenvolvimento, amparadas no ideal do Estado-nação.
Uma nova ordem mundial ou de um novo capitalismo, chamada por Bauman
(1999b) de nova (des)ordem mundial, que atravessa o mundo, em todas as
esferas, por meio da globalização
109
, ameaça e enfraquece a fórmula do Estado-
107
Com isso enveredamos de vez na era do “tempo real”, do “on-line”.
108
A idéia do movimento é muito recorrente em Bauman, assim como em muitos outros autores
que tratam da questão da pós-modernidade.
109
Ver: BAUMAN (1999; 2001); GIDDENS (1991); HALL (2004).
92
nação, por meio dos muitos processos de integração e interpenetração
econômica, cultural, tecnológica e ideológica entre os países, ocasionando uma
crescente interpenetração de bens físicos e simbólicos entre os territórios e um
aumento exponencial dos fluxos globais de pessoas.
Segundo Hall (2004), baseado em Giddens (1990),
a globalização implica um movimento de distanciamento da idéia
sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e
sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como
a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço. (HALL,
2004, p.67) grifos do autor
Isso nos permite pensar que a globalização, com suas configurações em que
o tempo é um instante e o espaço é um quase nada, alcança a todos nós,
indiferentemente de estarmos mais ou menos engajados no universo global
110
.
Tal fato nos leva à conclusão de que o espaço e o tempo são produtos das
relações sociais, culturais, adicionadas às políticas e econômicas.
Completa a perspectiva da qual procuraremos falar sobre o sujeito-leitor na
pós-modernidade nesse cenário tecnológico, marcadamente globalizado e
globalizante –, uma visão das novas TIC também como algo essencialmente
heterogêneo e em constante transformação. Podemos considerar as tecnologias
como heterogêneas no sentido de que nascem em contextos heterogêneos, e,
especialmente no caso das TIC, no sentido de que misturam ou fazem convergir
outras tecnologias, surgidas em outros contextos sócio-históricos.
Por isso, consideramos que uma abordagem da relação sociedade-
tecnologia-cultura mais adequada à problemática da leitura deve tomar como
pressuposto que a tecnologia, a exemplo da linguagem, tanto influencia os
contextos nos quais surge (ou é introduzida), como tem seu sentido, sua forma e
sua função transformados no tempo e no espaço pela maneira como é praticada
em contextos heterogêneos.
110
Mesmo que o global tenha dado maior visibilidade também ao local, entendemos juntamente
com Hall que esse ‘localismo’ não é um mero resíduo do passado. É algo novo a sombra que
acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo panorâmico da globalização, mas
retorna para perturbar e transtornar seus estabelecimentos culturais. É o exterior constitutivo da
globalização (2003, p. 61). Com base nessa afirmativa que pensamos que todos estamos envoltos
pelo advento da globalização, indiferentemente dessa contextualização ser global ou local. E é
nesse sentido, que o local e o global andam juntos, sendo hoje, um existência do outro.
93
3.2 As novas TIC mediando a produção de subjetividades
As novas TIC configuram um novo cenário digital que envolve a sociedade
pós-moderna, pelo menos nas cidades maiores, tornando os moradores em
“incluídos digitais”. Destes, alguns possuem computadores ou celulares com
acesso à internet, e, em muitos casos, até mais de um objeto de cada, capazes
de conectá-los ao mundo vencendo distâncias desafiadoras e numa rapidez
impressionante. Muitos outros não possuem computador ou assinatura de
internet, por exemplo, mas podem usá-los através das escolas, universidades,
bibliotecas, casa de amigos, de forma gratuita, ou por meio do acesso pago, como
é o caso do que ocorre nas lan-houses. Para esses, a inclusão custa mais caro,
pois por não poderem pagar pelo objeto computador conectado à rede mundial
(ou para usá-lo), pagam mais (em dinheiro ou em liberdade/autonomia de uso)
para viver no "mundo digital", para financiar a manutenção e ampliação desse
mundo. Finalmente, os que não têm computadores, não o usam, não têm
acesso a eles nem pago nem gratuito, ou sequer gostam de computadores. São
aqueles que decidiram, por escolha, ou foram forçados a isso, por alguma
circunstância física, cultural ou socioeconômica, a resistir ao mundo digital.
Mesmo esses estão incluídos: foram sugados pelo "sistema digitalizado" – tal qual
as famílias que ganharam cartões magnéticos do governo, como os da bolsa
família ou os de aposentadoria para comprarem material escolar ou produtos
para suas subsistência, as quais foram, em tese, incorporadas à “economia
digital”. Há ainda, como exemplo, aqueles que, mesmo sem acesso usual a meios
digitais, precisam votar em urnas eletrônicas e participar da democracia “digital”.
Essas considerações nos fazem pensar que na sociedade contemporânea,
somos de alguma forma incluídos
111
nesse mundo digital, ainda que essa inclusão
seja o próprio paradoxo da exclusão, como tentamos demonstrar, sumariamente,
acima. Dessa forma, seria possível fazer referência a alguém como "excluído"
supondo-se que viva num mundo à parte, que não tenha uma identidade cultural,
que não tenha qualquer laço, seja qual for, com outros membros de um grupo
social qualquer.
111
Melo Lisboa comenta que ninguém se encontra totalmente excluído (...) o que existe são
processos precários de inclusão (apud PASCHOAL LIMA, 2005b, p.159).
94
No entender de Lemos (2003), esse mundo digitalizado constitui a
cibercultura, que podemos entender como a forma sociocultural que emerge da
relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base
micro-eletrônica que surgiram com a convergência das telecomunicações com a
informática, que aqui chamamos de novas TIC.
Para o autor,
A cibercultura é a cultura contemporânea marcada pelas tecnologias
digitais. Vivemos a cibercultura. Ela não é o futuro que vai chegar
mas o nosso presente (home banking, cartões inteligentes, celulares,
palms, pages, voto eletrônico, imposto de renda via rede, entre outros).
Trata-se assim de escapar, seja de um determinismo técnico, seja de
um determinismo social. A cibercultura representa a cultura
contemporâneas sendo conseqüência direta da evolução da cultura
técnica moderna. (LEMOS, 2003, p. 11-12)
Nesse cenário, marcado pelas novas TIC, seria imprudente negar, ou
mesmo subestimar, a profunda mudança que o advento da “modernidade fluida”
produziu na condição humana, conforme destaca Bauman (2001, p. 15).
Diante dessa contextualização, que envolve o estar em maior ou em menor
grau de engajamento no mundo digital, indagamo-nos sobre o sujeito-leitor e suas
relações com o atual panorama tecnológico. Como fica a questão de sua
subjetividade na relação: leitura e novas TIC? Para tentarmos responder a essa
questão nos valeremos dos argumentos de autores que discutem a subjetividade
nas sociedades pós-modernas, bem como a relação sujeito e novas tecnologias e
tentaremos dialogar com um material de análise no qual nos apoiaremos a fim de
materializar e complementar nossas discussões no que tange a convergência da
tecnologia-leitura-subjetividade, nos contextos atuais.
Nesse ínterim, encontramos em Woodward uma definição importante a
respeito da relação da linguagem e da cultura na constituição das subjetividades:
vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a
linguagem e a cultura o significado à experiência que temos de nós
mesmos e no qual adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os
conjuntos de significados construídos pelos discursos, eles podem
ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos são, assim,
sujeitados ao discurso e devem, eles próprios, assumi-lo como
indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios. As posições
que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas
identidades. (WOODWARD, 2000, p.55)
95
A subjetividade, portanto, é construída e significada pela interpelação
112
dos
atos de criação lingüística
113
, e estes, por sua vez, encontram-se, no que se
refere à contemporaneidade, atrelados às novas TIC, as quais se expandem com
muita agilidade e penetram todo o tecido social, possibilitando o chamado cenário
digital. Decorre d uma importância significativa do papel da tecnologia na
constituição dessa subjetividade e nos processos identitários desse sujeito, haja
vista que ela pode atuar como mediadora dessa constituição e desses processos,
na medida em que figura como um importante meio para o conteúdo simbólico,
especialmente em tal cenário.
Para apoiarmos nosso pressuposto da tecnologia favorecendo o
engendramento das subjetividades e, conseqüentemente, das identidades,
buscamos em Nicolaci-da-Costa (2002, 2005) o argumento de que mudanças no
contexto em que vivemos geram transformações de ordem subjetiva. Não haveria,
assim, como o sujeito sair intocado pelas grandes modificações – relativas à
penetração das TIC no tecido social que o mundo vem sofrendo e a Internet
114
poderia ser considerada o símbolo e, de certo modo, o motor dessas
modificações. Além disso, Nicolaci-da-Costa adverte que se acreditarmos que o
sujeito não está sendo tocado por essas transformações radicais que o mundo
vem sofrendo, corremos o risco de perder nossa capacidade de estudá-lo,
descrevê-lo, interpretá-lo e compreendê-lo (2002, p.199).
No entanto, a autora concorda que há certa dificuldade na tentativa de
estudo dessa subjetividade tocada pela tecnologia atual, tendo em vista que esse
112
Interpelação é o termo utilizado por Althusser (1971) para explicar a forma pela qual os sujeitos
– ao se reconhecerem como tais: “sim, esse sou eu” – são recrutados para ocupar certas
posições-de-sujeito. (WOODWARD, 2000, p.59)
113
Expressão utilizada por Tomaz Tadeu da Silva, no livro, Identidade e diferença: a perspectiva
dos Estudos Culturais, de 2000.
114
Uma década atrás, Fredric Jameson escreveu um clássico artigo sobre o significado do pós-
modernismo. Em sua caracterização do pós-modernismo ele incluiu a prevalência da superfície
sobre o profundo, da simulação sobre o real, do jogo sobre a seriedade, muitas das mesmas
qualidades que caracterizam a nova estética do computador. Naquele tempo, Jameson notou que
o pós-modernismo era carente de objetos que pudessem representá-lo. A turbina, a chaminé, os
canos e a esteira de rolagem do final do século XIX e início do XX foram poderosos objetos para
pensar a natureza da modernidade industrial [...] Uma década depois de Jameson ter escrito esse
ensaio, o pós-modernismo encontrou seus objetos básicos [...] os objetos do pós-modernismo
agora existem fora da ficção científica. Eles existem nas informações e conexões da Internet, no
World Wide Web [www] e nas janelas, ícones e camadas do computador pessoal [...] Tudo isso é
vida na tela. Com esses objetos, as idéias abstratas nos escritos de Jameson sobre o pós-
modernismo tornaram-se recentemente acessíveis, até mesmo, consumíveis. (TURKLE, 1997
apud ROMÃO-DIAS, p.24, 2007)
96
processo está sendo vivido (nos é contemporâneo), e no qual o velho e o novo se
coabitam e tornam tudo muito fluído. Isso nos remete ao que chamamos,
baseados em Bauman (1999b), de espaço da ambivalência.
Acrescentamos, porém, que, em nosso entendimento, essa tecnologia terá
seu sentido, sua forma e sua função transformados no tempo e no espaço por
essas subjetividades, não tendo, portanto, um direcionamento unilateral. Além
disso, consideramos os meios e tome-se a exemplo as novas TIC não como
fontes de inovações em si, mas como mediações entre novas práticas de
comunicação acrescentamos, de informação e transformações sociais (Cf.
MARTÍN-BARBERO, 2001). Esse conceito de mediação
115
nos ajuda a pensar
que tecnologia e cultura não estão postas como instâncias isoladas e estáticas
que se refletem, mas como dinâmicas que se influenciam mutuamente. E ainda,
pressupõe a cultura como algo que se transforma constantemente nos e através
dos meios.
Nesse espaço da ambivalência, a identidade é um construto, simbólico e
social, fabricada pela marcação da diferença, que ocorre tanto por meio de
sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão
social (Cf. WOODWARD, 2000, p.39). Nesses processos de fabricação de novas
identidades, contudo, nas-modernidade, não se encontram mais o sujeito
como ser fixo, coerente e estável, aquele sujeito unificado e centrado que
estabilizava o mundo social, antes, temos aí o sujeito fragmentado, marcado
pelas incertezas. Esse deslocamento produz novas formas de posicionamento
116
e provoca mudanças nos conceitos de sujeito e de identidade.
Segundo Hall, a identidade permanece sempre incompleta, está sempre “em
processo”, sempre “sendo formada”, através de processos inconscientes. Por
isso, em lugar de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar
de identificação, e vê-la como um processo em andamento (HALL, 2004, p.38).
115
Conforme Santaella, embora sejam responsáveis pelo crescimento e multiplicação dos códigos
e linguagens, meios continuam sendo meios. Deixar de ver isso e, ainda por cima, considerar que
as mediações sociais das mídias em si [estendemos também para as novas TIC] é incorrer em
uma ingenuidade e equívoco epistemológicos básicos, pois a mediação primeira não vem das
mídias, mas dos signos, linguagem e pensamento, que elas veiculam. (SANTAELLA, [1992] 2000,
apud SANTAELLA, 2003, p.116-117)
116
Hall argumenta que o sujeito fala sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica.
(Cf. Woodward, 2000, p.27)
97
Identificar-se, como podemos deduzir, é identificar-se com a falta do outro e,
portanto, dividir-se. A identidade não surge da plenitude interior do indivíduo, mas
da falta a ser preenchida pelo nosso exterior um exterior atravessado pela
novas TIC.
Para dar conta do sentido sempre inacabado da identidade, alguns teóricos
recorrem ao conceito de différance elaborado por Derrida, pois para este autor, na
leitura de Woodward, o significado é sempre diferido ou adiado; ele não é
completamente fixo ou completo, de forma que sempre existe algum deslizamento
(2000, p.28). Assim, a identidade é um tornar-se e aqueles que a reivindicam não
se limitam a ser posicionados por ela: eles seriam capazes de posicionar a si
próprios e de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um
suposto passado comum. (WOODWARD, 2000, p.28)
Todavia, no que se refere à leitura, se tomarmos como pressuposto que
todos os sujeitos-leitores lêem da mesma maneira e não considerarmos a
heterogeneidade desses sujeitos, bem como dos textos lidos e dos sentidos
produzidos, estamos ao mesmo tempo desconsiderando os processos identitários
nos quais esses sujeitos se constituem. Pois, esses processos são construídos ao
longo da vida do sujeito-leitor e são marcados pela diferença, conforme propõe
Woodward, ao postular que a identidade não é o oposto da diferença: a
identidade depende da diferença (2000, p.40). Sendo a diferença condição básica
para a construção da identidade na própria configuração do sujeito, seja ele leitor
ou não, o outro já o constitui.
Portanto, as identidades são multiplamente construídas ao longo dos
discursos, das práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas.
Nesse sentido, pensando na leitura como uma prática social
117
de significação,
embrenhada nas redes discursivas, podemos entender, juntamente com Coracini,
que,
ler pressuponha um sujeito que produz sentido, envolvendo-se,
dizendo-se, significando-se, identificando-se, abrindo espaço para a
subjetividade e para a heterogeneidade que vez por outra rompe a
117
Para Woodward (2000, p.33) toda prática social é simbolicamente marcada. Entendemos a
leitura como prática social, uma vez que a linguagem o é. Sendo assim, como dissemos outrora,
estudando a linguagem (e, portanto, a leitura) estamos estudando a sociedade e a cultura das
quais ela é parte constitutiva e constituinte.
98
barreira porosa e opacificante das palavras e se deixa representar, de
modo imprevisível, pela linguagem
118
. (CORACINI, apud GALLI, p.6)
A leitura, assim, torna-se uma forma de identificação e de construir
identidades que deixa entrever o sujeito por meio da linguagem, permeado que é
pela alteridade e pela fragmentação, não nos esquecendo que esse sujeito é
sempre historicamente situado. E a partir do momento em que a valorização
da alteridade e da idéia de construção provisória da identidade por meio da
linguagem, e nesse caso, a leitura está subtendida, não se pode negar a relação
intercambiante entre sujeito-linguagem (pois ao se dizer o sujeito se diz), sujeito-
mundo (ao representar ele se representa) e sujeito-sentido (ao significar ele se
significa), envoltos e movimentando-se no limite da ambivalência, não nos
esquecendo que essas relações de linguagem.
Ler não pressupõe simplesmente um conhecimento consciente do uso da
linguagem; antes, constitui momentos importantes de produção de sentidos que
ocorrem como conseqüência de uma série de identificações que pressupõem
um investimento do sujeito na linguagem.
No entanto, a leitura, contemporaneamente, encontra-se enredada com
outros espaços que configuram um novo local para o texto e novas textualidades,
possibilitados pelas novas TIC. Esses novos espaços, promovidos pelas novas
TIC, têm proporcionado uma crescente multiplicação dos sistemas de significação
e de representação, o que implica, para o sujeito-leitor, o aumento de
possibilidades de assumir, negar e reivindicar identidades diferentes a cada
circunstância deparada, a cada texto que se lhe à leitura. Em nosso
entendimento, o espaço em que a textualidade ( digital) aparece tem significação ,
tem materialidade e não é indiferente em seus distintos modos de significar.
Chamamos a atenção, em nosso trabalho, para um lugar em especial: a tela
do computador. Esse novo espaço é definido, por Castells (2000, apud
NICOLACI-DA-COSTA, 2002, p.196) como um espaço de fluxos, ou seja, como a
organização material das práticas sociais de tempo compartilhado, que funcionam
118
Conforme Coracini (2003a, p.113), se esse sujeito é internamente múltiplo, heterogêneo,
clivado, não nos é possível falar de identidade como algo acabado, estável e fixo. Por isso, a
identidade é ilusória e existe como construção imaginária. Nós somente podemos captá-la por
irrupções esporádicas no fio do discurso, quando o sujeito deixa, de forma inconsciente, resvalar a
sua heterogeneidade.
99
por meio de fluxos. Os suportes materiais desse espaço de fluxos são, segundo
Castells, constituídos por circuitos de impulsos eletrônicos, por seus nós e centros
de comunicação. Tal espaço recebe outras nomeações por parte de outros
estudiosos, como é o caso de Lévy (1996), que o chama de ciberespaço e o
define como a essência da cibercultura.
A nós, qualquer uma dessas nomeações é válida desde que não se perca de
vista que esse espaço é sempre suporte de ações humanas, uma vez que a
tecnologia é produto de uma sociedade em determinado momento histórico e
social. Portanto, se ela a tecnologia é condicionante dessa sociedade, é
também condicionada por ela. Ainda, concordamos com Bauman (2000, apud
VILLAÇA, 2002, p.19) quando diz que as mediações tecnológicas podem ser
levadas em conta na articulação com outros fatores da organização e interação
social.
Não podemos, também, perder de vista que as novas TIC são uma forma de
reelaboração do caráter simbólico da vida social, uma reorganização dos meios
pelos quais a informação, a comunicação e o conteúdo simbólico são produzidos
e intercambiados no mundo social, e uma reestruturação dos meios pelos quais
os indivíduos se relacionam entre si. Portanto, elas mediam a reconfiguração do
processo de significação das formas simbólicas contemporâneas.
Devemos atentar, conforme propõe Santaella (2003), para a relação da
cultura contemporânea, mediada pelas novas TIC, com a linguagem e, portanto,
com a leitura, na constituição de novas posições para o sujeito, isto é, novos
lugares na rede da comunicação, e acrescentamos, da interação social. Pois
essas formas de subjetivação na era digital reclamam por novos olhares.
Pensemos, então, nessa relação tecnologia-leitura-subjetividade com o
auxílio de um material que conseguimos por meio de uma busca efetuada na
internet, em junho de 2008, no banco de imagens do Google, no qual digitamos a
expressão “sujeito-leitor+tecnologia”, no sistema de busca do site. Chamamos a
atenção para o fato de que esse é apenas um estudo exploratório, no sentido de
que não pretendemos obter, a partir dele, generalizações ou formulações que
possam ser estendidas indiscriminadamente a outros casos. Antes, trata-se de
100
uma tentativa de por em prática o poder explicativo das teorizações que tecemos
nesta unidade e assim problematizar algumas questões.
Gostaríamos, ainda, de relatar que inicialmente colhemos somente a imagem
a qual, dentre inúmeras outras, chamou-nos mais a atenção sem qualquer
referência ao local onde ela foi publicada originalmente. algum tempo depois,
quando decidimos empregá-la neste trabalho, ao procurarmos maiores
informações a respeito do contexto em que ela foi veiculada, é que descobrimos
que ela foi utilizada por Nunes (2005) em um artigo sobre inclusão digital. Em um
primeiro momento, pensamos em descartá-la e buscarmos outro exemplo,
todavia, tal imagem nos suscitou tamanha inquietação que a decidimos manter
aqui, mesmo porque as nossas considerações a respeito da imagem tomam uma
configuração um tanto diferente daquela realizada por Nunes, haja vista nossos
objetivos serem um tanto diferentes daqueles da autora. Ressaltamos ainda que,
em alguns momentos, faremos referência ao artigo da própria Nunes como forma
de construção da nossa perspectiva, e, também, adotaremos o termo “sujeito-
leitor-tecnológico” proposto por ela, por percebê-lo útil e adequado à nossa
discussão também.
Feito essa ressalva, passemos ao material:
Figura 1: Folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI (Comitê para Democratização
da Informática)
119
do Paraná. Fonte: www.insite.pro.br/Folder_Maira.JPG
119
Organização não-governamental que faz parte de uma rede presente em dezenove estados
brasileiros e em oito países.
101
A peça publicitária acima chamou-nos a atenção não pela configuração
do que ela diz, como também e, principalmente, pela forma como diz. Em formato
retangular, traz em um segundo plano, a imagem de um rosto sem qualquer
designação de gênero, podendo ser de um jovem ou de uma jovem, o qual fita
diretamente o interlocutor. À sua frente, em primeiro plano, ocultando e ocupando
o lugar de sua boca, uma janela de navegação na internet
120
com suas
ferramentas de navegação: voltar, avançar, atualizar, início, preencher, imprimir e
correio, janela essa que funciona como uma tarja preta, tendo em vista que essa
janela, além das ferramentas citadas, tem seu corpo – onde geralmente aparecem
os textos digitais
121
preenchido pela cor escura, sem imagem ou palavra
alguma. Abaixo e fora dessa janela de navegação, há, em tom imperativo, os
seguintes dizeres: “Quem não conhece informática, não tem vez. Nem voz”.
Notamos de início a interdição da fala daquele/a que aparece na imagem,
o/a qual tem em seu rosto, a substituição da boca por um mecanismo eletrônico
a janela de navegação. Todavia, esse mecanismo apresenta as ferramentas para
seu funcionamento, mas falta-lhe quem as coloque em movimento e
funcionamento: o sujeito que saiba operá-las. Interdição porque, numa sociedade
permeada, ou diríamos atravessada, pelas novas TIC, não saber operá-las, a
julgar pela peça, é não ter acesso às formas de informação e nem às formas de
sociabilidade possibilitadas por ela. Enfim, é não ingressar no processo
constitutivo de sentido possibilitado por esse meio, é não ser seu sujeito.
Diferentemente da fala, que no indivíduo é um mecanismo físico, o direito à
fala é estabelecido em relação à posição ocupada pelo sujeito no discurso, e tem
a ver com as relações de poder estabelecidas em uma cultura. E, no caso da
peça, tem direito à fala “apenas os que conhecem informática”, ou seja, os que se
tornam leitores
122
de sua textualidade digital. Tendo em vista que as relações de
poder são muito importantes na construção de subjetividades, e decorrentemente,
120
É possível saber que se trata de uma janela de navegação não apenas pelo formato
característico, mas pelo endereço eletrônico que apresenta na parte superior do browser:
www.cdipr.org.br .
121
Geralmente designados de hipertextos, no entanto, entendemos que nem todos os textos
digitais são hipertextos. Exploraremos essa questão no tópico seguinte desta dissertação.
122
Muitos podem não escrever, isto é, tornarem-se autores, nos espaços de fluxos, ou ambientes
virtuais, mas fatalmente, tornar-se-ão leitores da textualidade disposta, uma vez que tal
imperativo funciona como porta de acesso a esse espaço, mesmo que essa leitura seja apenas
“intuitiva”.
102
de identidades, Woodward nos alerta que todas as práticas de significação que
produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir
quem é incluído e quem é excluído (2000, p.18-19). E, assim, essas relações de
poder, em nosso exemplo, ajudam a definir uma subjetividade adequada à
textualidade digital, que chamaremos aqui de sujeito-leitor-tecnológico,
aproveitando a nomeação empregada por Nunes (2005).
Mas partindo do pressuposto de que a linguagem e, como manifestação
desta, a leitura, significa e, por isso, nos significa, não podemos nos esquecer,
que falar ou ler é estar no sentido com as palavras – ditas, não ditas ou a se dizer
–, pois elas significam e nos relacionam com o mundo, com as coisas, com as
pessoas, e com nós mesmos. Constituem nossa subjetividade, produzindo
sentidos. E dar sentido é considerar o lugar da história e da sociedade. É,
também, aceitar que se está sempre no jogo da produção, na relação entre as
diferenças e as relações de poder que entram na constituição do sujeito. Portanto,
o apetrecho técnico que funciona como uma tarja preta à frente da boca do/a
jovem interdita não suas palavras, mas sua relação plural com os sentidos e
com o mundo, interdita o acesso à leitura, por falta de domínio das ferramentas
que possibilitam acessar os textos digitais.
A produção da subjetividade que aqui nos interessa, qual seja a do sujeito-
leitor-tecnológico, na peça, não tem outra saída: ou aprende a dispor do recurso
técnico, que possibilita o acesso à textualidade em questão, ou estará condenada
a “não ter voz nem vez” e, assim, à nulidade. Não opção. E isso é válido para
qualquer pessoa, haja vista a indefinição do pronome “quem” utilizado no
enunciado.
A autora Woodward nos lembra que,
os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a
partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais
podem falar. (WOODWARD, 2000, p.17)
E ainda, que
podemos compreender os significados envolvidos nesses sistemas
[de representação] se tivermos alguma idéia sobre quais posições-de-
sujeito eles produzem e como nós, como sujeitos, podemos ser
posicionados em seu interior. (WOODWARD, 2000, p.17)
103
Nesse caso, as posições-de-sujeito produzidas são: a do incluído – em
nossa perspectiva, o sujeito-leitor-tecnológico criando para isso uma identidade,
a do/a jovem esperto/a que não “fica de fora do barco tecnológico e se torna seu
navegante”, e, inevitavelmente, a do excluído digital, aquele que não está apto a
“embarcar nesse navio”. O incluído, ou seja, aquele que “conhece informática” e é
capaz de ler sua textualidade, tem acesso ao dizer e por isso pode se dizer. Em
contrapartida, aquele que não a conhece, é interditado, barrado, e, por isso
silenciado
123
. No entanto, não podemos nos esquecer que toda subjetividade é
construída sempre em relação ao outro, pois o outro é constitutivo do eu. Decorre
daí que podemos, então, concluir que o excluído, o não-sujeito-leitor-tecnológico,
é o exterior constitutivo do incluído, é o seu outro. E ambos convivem juntos no
mesmo mundo que agrega e segrega pessoas por meio das novas TIC e por meio
de seus discursos.
Nesse sentido, ao mesmo tempo que a peça, como forma de representação,
define, com seu discurso, que tipo de sujeito devemos ser e como devemos
ocupar essa posição-de-sujeito em nossa cultura atravessada pelas novas TIC,
não podemos ignorar o papel ativo da instância de recepção, a qual não absorve
simplesmente os sentidos que lhe são criados e essas posições. O sujeito da
instância da recepção está constantemente estabelecendo negociações de
sentido em seu contexto de mediações simbólicas. E, por esse motivo, uma vez
que tomamos o pressuposto da heterogeneidade como constitutiva não da
linguagem
124
, mas também, da tecnologia e da subjetividade, não nos é possível
entender a inclusão ou a exclusão como um estar dentro ou um estar fora de um
sistema ou do que se prega desse sistema, conforme propõe a campanha. Por
meio da heterogeneidade é possível visualizar que somos inevitavelmente, de
alguma forma, incluídos e excluídos ao mesmo tempo. Além disso, a inclusão
123
Lembrando que Orlandi (1992) chama a atenção para o fato de que o silêncio também produz
sentido, também é significativo no dizer.
124
Authier-Revuz, no livro, Palavras Incertas: as não-coincidências do dizer, explora com
propriedade a constituição heterogênea da linguagem, todavia, no que tange ao universo da
linguagem digital, tão fortemente atrelada à questão das novas TIC, deparamo-nos com mais uma
forma de heterogeneidade: aquela que diz respeito à tradução dos dados (sejam eles letras,
números, som, imagem, vídeo, etc.) inseridos no computador, para uma mesma linguagem, a
codificação digital em bits, que é a linguagem processada pelo computador. E que,
transcodificada, é devolvida a nós na sua forma original, o som como som, a imagem como
imagem, a escrita como escrita, por exemplo.
104
pode abrir a possibilidade de subverter as relações de poder que tentam
homogeneizar todos os incluídos como tendo vez e voz , bem como
homogeneizar todos os excluídos destituídos de vez e voz –, impondo-lhes,
assim, as necessidades do outro qual seja, a interpelação social ao consumo,
simbólico ou material, das novas TIC. Interpelação esta que, muitas vezes,
apagam as diferenças em uma tentativa de ação homogeneizadora da sociedade.
Em outras palavras, incluir-se envolveria, ao mesmo tempo, ter contato com a
demanda do outro, e, a partir de então, negociar, estabelecer-se e transformar-se,
elaborar as suas próprias demandas e não simplesmente as aceitar
passivamente.
Tomamos emprestado de Canclini (2005) uma afirmação feita por ele relativa
à globalização, e a transpusemos para o contexto de nossa análise por julgarmos
que em certa medida ela nos serve bem. O autor, ao afirmar que, nos dias de
hoje, as diferenças e as desigualdades deixam de ser fraturas a superar, diz que
esses termos foram substituídos por dois outros: inclusão e exclusão. Nas
palavras de Canclini o predomínio deste vocabulário significa que:
A sociedade, antes concebida em termos de estratos e níveis, ou
distinguindo-se segundo identidades étnicas ou nacionais, agora é
pensada com a metáfora da rede. Os incluídos são os que estão
conectados; os outros são os excluídos, os que vêem rompidos seus
vínculos ao ficar sem trabalho, sem casa, sem conexão. (CANCLINI,
2005, p.17)
Em nosso caso, os excluídos e, por isso, “desconectados”
125
da rede perdem
até mesmo seu direito de dizer e assim “não terão vez” na sociedade ou será
porque não têm vez, não poderão dizer e dizer-se tem seu espaço de fala
invadido pela tonalidade escura da janela de navegação numa possível alusão à
sua desconectividade. Não ler o digital é estar desconectado do mundo. Ou [o
sujeito] se adéqua às tecnologias de comunicação [e de informação], ou está fora
da possibilidade de pluralizar sentidos e percepções (NUNES, 2005, [s.p]), na
pós-modernidade. Parece que poderíamos, até mesmo, empregar aqui a
proposição parodística formulada por Kenneth Gergen da qual nos
125
Usamos a expressão de Canclini, todavia, com certa ressalva, tendo em vista que nos
posicionamos desde a abertura desta unidade a favor da não existência da possibilidade de
exclusão total.
105
dispensaremos de comentá-la em que o autor propõe: Estou conectado, logo
existo. (apud SANTAELLA, 2007, p.231)
Mas, se adaptar-se ao digital é inserir-se, organizar-se numa rede de
informações e de sociabilidade, como dissemos anteriormente, podemos pensar
mais uma vez nas teorizações de Bauman (1999a) no que diz respeito a
inovações tecnológicas contemporâneas. O autor as relaciona à expansão
capitalista e à categoria de consumo. Esta última é por ele considerada como
fator de referência e de organização da sociedade s-moderna. Em sua
perspectiva, todas as sociedades sempre consumiram, mas aquilo que
caracteriza a sociedade contemporânea como sociedade de consumo é a ênfase
dada a esse consumo. Os membros da sociedade moderna definiam suas redes
de sociabilidade em torno da capacidade de produção. na pós-modernidade, a
organização social se mais pela capacidade e pelo desejo de consumir do que
pelo que cada um de seus membros produz.
Nesse âmbito, a tecnologia digital pode ser entendida, em Bauman (1999a),
como mais uma fonte de consumo. A conexão de computadores através da
Internet intensificou a possibilidade de consumir e deslocou sua ênfase dos bens
materiais para o consumo de informação. Grande quantidade de informação é
consumida
126
instantaneamente e a custos baixos, independentemente do local
onde é gerada ou recebida. Então, podemos depreender a partir dessa
consideração que adentrar o universo da informática ou digital, é consumir além
de bens materiais representados pelos artefatos técnicos, como por exemplo,
dispositivos digitais e meios de conexão à rede de internet; também os bens
simbólicos representados por bibliotecas digitais, ebooks, softwares, websites,
bancos de dados, enciclopédias on-line, jornais on-line, serviços de compras, e
muitos outros, e tudo isso enredados no formato de informação. Fato que
contribui para que alguns estudiosos designem nossa sociedade contemporânea
como sociedade de informação ou informacional, como é o caso de Castells, no
livro Sociedade em Rede .
Parece-nos assim que, se tomarmos a tecnologia no sentido de mediadora,
podemos chegar a noção de que o consumo das novas TIC seja ele em forma
126
O que Santaella (2003, p.73) irá chamar de economia global informacional, designada por ela
como a mais recente expressão da mobilização capitalista da sociedade.
106
material ou simbólica – ou de seu discurso, é uma espécie de produção da
inclusão digital, e, por conseguinte, de produção do sujeito-leitor-tecnológico. Pois
essas novas tecnologias parecem prometer um processo de transformação de um
modo de ser, num outro, visto que as informações estariam ao alcance de
qualquer um, bastando apenas ser um incluído digital, isto é, um leitor da
textualidade digital.
No entanto, não podemos enxergar o consumo de informação como uma
atividade pacífica e passiva por parte do sujeito – higienizado de todo seu entorno
sócio-histórico e cultural entorno este que é constituído pela mediação das
novas TIC. Pois, entendemos que esse sujeito estano/em constante fluxo de
informação, não apenas a recebendo, mas produzindo-a singularmente, em uma
negociação constante de sentidos os quais, por sua vez, são circunscritos pela
exterioridade, pelo outro. E é nesse jogo, muitas vezes tenso, que as
subjetividades, bem como as identidades, podem ser constituídas e estabelecem-
se.
3.3 A leitura da textualidade digital: apontamentos sobre o hipertexto
As novas TIC ajudam a configurar também um novo ambiente no qual os
sujeitos-leitores encontram os textos em circulação, bem como novas formatos
textuais e que, por seu turno, podem serem acessados de maneiras diferenciadas
das anteriores
127
. No entanto, talvez pela incipiência dessas novas configurações,
que figuram nas condições de produção da leitura, muitas questões têm sido
levantadas como sendo novidades exclusivas da textualidade digital, pregando,
muitas vezes, a ruptura entre o digital e o impresso, e, incorrendo, até mesmo em
alguns casos, em uma certa confusão conceitual quando nomeiam toda essa
textualidade como hipertexto. Ainda, talvez tão perigoso quanto essa confusão,
em nosso entendimento, seja a tendência de alguns estudos em isolar tal
textualidade das demais e de seu entorno sócio-histórico e cultural,
descontextualizando-a ou descontextualizando o leitor que se ocupa dessa
manifestação de linguagem, mediada pelas novas TIC.
127
Diferentes dos textos em circulação no papel, por exemplo.
107
Antes de prosseguirmos, no entanto, gostaríamos de delimitar o escopo em
que trataremos a textualidade digital neste trabalho: além de ser aquela presente
na tela do computador, dedicaremos nossa atenção especificamente ao hipertexto
na internet, tendo em vista a sua maior inserção na vida das pessoas na
atualidade e por figurar como uma importante materialidade significante trazida
pelo ambiente on-line, a partir do qual poderemos pensar a circulação dos
sentidos na pós-modernidade e as prováveis conseqüências sobre a leitura e,
conseqüentemente, sobre o sujeito-leitor. Vemos, ainda, no hipertexto e suas
peculiaridades uma nova possibilidade de pensar a relação autor-leitor-texto.
Quando falamos em textualidade digital é comum a associação com o termo
hipertexto, todavia, alertamos que nem todo texto presente em ambiente
eletrônico é um hipertexto. Um documento escrito no word, por exemplo, sem a
adição de qualquer hiperlink
128
que o vincule a uma rede conectiva com outros
textos, mesmo que figure na World Wide Web (www ou web), não configuraria
um hipertexto. Tal texto não ofereceria percursos “previstos” de leitura, sinalizada
pela adição de hiperlinks, e, uma vez que fosse aberto na tela do computador, a
única maneira de retornar a um caminho na web seria através da seta de retorno.
Decorre daí que os hiperlinks, que são elementos que ajudam a caracterizar os
hipertextos, precisam apresentar uma função textual e não apenas de navegação
para dessa forma caracterizar o hipertexto digital. Sendo assim, podemos
depreender que nem todo texto digital é um hipertexto.
No que se refere à questão da ruptura entre impresso e digital, não negamos
que as diferenças existam, ou mesmo sugerimos que todos os estudos centrados
na explicitação dessas diferenças sejam desprovidos de valor. Antes, cremos que
é normalmente pela via do contraste que se pode melhor perceber onde estão as
convergências e as divergências de um determinado objeto. Afinal, é pela
diferença que se pode conhecer e estabelecer um significado. Contudo, cremos
que o estudo do digital pode ir mais além e não deve se centrar naquilo que o
aproxima ou o afasta do impresso, mas nas maneiras como faz serem integradas
ou agenciadas mutuamente as modalidades oral e escrita, visual e verbal e etc.
–, as tecnologias e os usos da linguagem.
128
Tomamos como sinônimos os termos link e hiperlink.
108
Estendemos à essa questão o argumento usado por Santaella, quando
comenta a respeito do pensamento de Kerckhove (1997), referindo-se à ruptura
da era impressa com a digital:
[Que embora o autor(a)] tenha razão quando afirma que, quando uma
nova tecnologia de comunicação é introduzida, lança uma guerra não
declarada à cultura existente, pelo menos até agora, nenhuma era
cultural
129
desapareceu com o surgimento de outra. (SANTAELLA,
2003, p.78)
Mas Santaella acrescenta que a era cultural anterior,
sofre reajustamentos no papel social que desempenha, mas continua
presente. Não se trata, portanto, da passagem de um estado de coisas
a outro, mas muito mais de complexificação, do imbricamento de uma
cultura na outra, uma “multiplexidade”, para usarmos a expressão de
Poster (1995: 21), de diferentes princípios em um mesmo espaço social.
(SANTAELLA, 2003, p.78)
Tendo por base o estudo que realizamos sobre a historicidade da leitura, no
capítulo inicial, pudemos verificar que a escrita não fez sucumbir a oralidade nos
processos informativos e comunicativos, mas tornou essas relações mais
complexas, possibilitando, por meio da escrita, um maior distanciamento espaço-
temporal entre indivíduos e os fatos. E depois, que a impressa não fez
desaparecer o escrito à mão, mas possibilitou maior disseminação da escrita na
sociedade e com ela a divulgação mais rápida de muitos textos e,
conseqüentemente, da leitura. Assim, também, pensamos que o hipertexto não
promove uma ruptura do impresso com o digital, uma vez que enxergamos esse
relacionamento em termos de complexificação, tal qual postula Santaella. No
entanto, concordamos que o hipertexto, assim como os textos “tradicionais”, está
sujeito às limitações e possibilidades inerentes ao meio no qual são configurados.
Sem perder de vista, contudo, que o espaço (ciberespaço) significa, tem
materialidade e não é indiferente em seus distintos modos de significar.
De acordo com Braga (2005), tomando como orientação os estudos
realizados por Burbules e Callister (2000), o hipertexto é uma continuidade do
texto impresso,
uma vez que recupera e expande formas de relações inter e intra-
textuais já explorada nos textos impressos. As expansões ou os links de
um hipertexto lembram, de certo modo, as notas que os autores incluem
129
Santaella (2003, p.77) cita seis eras culturais: oral, escrita, impressa, de massa, das mídias e
digital.
109
nos textos, ou as referências explicitamente feitas a outros estudos.
(BRAGA, 2005, p.759)
Todavia, segundo a autora, uma diferença fundamental: na tela, essas
ligações vão além de expansões e passam a ser centrais na estruturação do texto
(Cf. BRAGA, 2004, p.146).
Nesse ínterim, elegemos a consideração de Xavier a respeito do que ele
toma como hipertexto, no âmbito do trabalho de pesquisa realizado por ele, como
aquela com a qual trabalharemos. Xavier denomina hipertextos,
os dispositivos “textuais” digitais multimodais e semiolingüísticos
(dotados de elementos verbais, imagéticos e sonoros) que estejam on-
line, isto é, os que estejam indexados à internet, reticuladamente
interligados entre si. (XAVIER, 2002, p.26) aspas e parênteses do autor
Portanto é nessa perspectiva de hipertexto, no qual convergem em sua
superfície várias manifestações semióticas e indexado à internet, que
abordaremos o termo nesse trabalho. E, ainda que alguns estudiosos apresentem
a distinção entre hipertexto e hipermídia
130
, como por exemplo Santaella (2003), o
primeiro sendo fundamentalmente composto por segmentos verbais e o segundo
referindo-se a textos hipermodais
131
, em nossos apontamentos optamos por uma
definição mais geral, como a de Xavier, entendendo ser teoricamente difícil
estabelecer um limite conceitual entre os dois termos.
De acordo com Xavier, é no hipertexto, vinculado à internet, que a tecnologia
de informação se materializa digitalmente: é ele que aglutina os dados compostos
em formato de textos, imagens e sons produzidos pelos cidadãos pós-modernos
em um mesmo espaço de leitura e interpretação, a tela do computador (2002,
p.36). Para o pesquisador o funcionamento do hipertexto materializou a agenda
da pós-modernidade. Tal consideração é feita por Xavier em concordância com o
pensamento dos teóricos do hipertexto citados por ele Landow (1992), Bolter
(1991), Tuman (1992) e outros a despeito de haver uma conexão entre
hipertexto e a crítica pós-moderna. Segundo esses autores, conforme propõe
Xavier, é necessário abandonar o sistema conceitual baseado nas idéias de
130
Santaella (2003, p.94) com base em Piscitelli (2002) conceitua hipermídia como:
conglomerados de informação multimídia [ou seja, mistura de áudio, de vídeo, de dados] de
acesso não seqüencial, navegáveis através de palavras-chave semi-aleatórias.
131
Diz-se do texto que relaciona dentro de sua
estrutura hipertextual unidades de informação de
natureza diversa (texto verbal, som, imagem, vídeo, animações).
110
centro, margem, linearidade, para dar lugar a multilinearidade, aos nós, às
ligações e às redes ( 2002, p.36), condições e possibilidades apresentadas pela
pós-modernidade. E nesse âmbito, o hipertexto seria a materialização dessa
reinvidicação.
Encontramos em alguns trabalhos sobre o hipertexto certas afirmativas a
respeito do que configura a leitura do hipertexto, tomada como muito diferenciada
da leitura de textos “tradicionais”. Interrogamo-nos, a partir de então: até que
ponto a leitura do hipertexto é diferente da leitura do texto convencional?
Motivados por essa indagação, resolvemos explorar algumas características
atribuídas ao hipertexto, que envolvem as questões de sua leitura e de seu leitor,
a fim de tecer nossos apontamentos relacionados a possíveis argumentos ou
contra-argumentos, tendo por base as teorizações sobre a leitura e o sujeito-leitor
exploradas no capítulo anterior, as quais apresentam em comum o fato de
considerarem a constituição desse sujeito no âmbito da dinâmica social. No intuito
de tornar mais visual alguns de nossos apontamentos, tomamos um exemplo de
hipertexto, retirado da internet, no site da Globo.com
132
, no portal de notícias on-
line chamado G1, e o trabalhamos em um programa de editoração de imagem, no
qual excluímos a parte referente ao browser do navegador, deixando apenas os
hiperlinks da página escolhida. Tal procedimento foi realizado com a finalidade de
facilitar a identificação dos elementos que serão explorados. Além disso, todas as
porções da página foram reagrupadas a fim de figurarem, aproximadamente, ao
disposto no site tendo em vista a impossibilidade de apresentar o site
propriamente dito no formato impresso deste trabalho. E, no que diz respeito à
escolha desse material, pautamo-nos na observação de um exemplar que
apresentasse os elementos básicos à composição de um hipertexto.
Os números, em caixas amarelas, referem-se a alguns dos elementos mais
comuns na composição de um hipertexto, tomando por referência as
classificações apresentadas por Komesu (2005):
1: Navegação principal ou navegação global: barra que reúne os links
considerados diretamente relacionados ao conteúdo que o site propõe expor;
132
Pertencente às Organizações Globo, da qual faz parte também a Rede Globo de Televisão, a
Rádio Globo e o Jornal O Globo.
111
2 e 5: Subnavegação ou navegação local: barra que reúne os links
considerados pelo autor como interessantes ao leitor. No caso, são manchetes de
notícias postadas anteriormente no site, no caso de 2 ou manchetes de notícias
relacionadas ao conteúdo, como em 5;
3: Conteúdo: assim chamado por se tratar do texto mais importante da
página em acesso. Que, no exemplo, trata-se do texto intitulado: “Mulher que
fugiu do marido no Líbano chega à casa da família”;
4: Título da página: que nesse caso é apenas G1.
112
Figura 2: Mulher que fugiu do marido no Líbano chega à casa da família. (as caixas em cor
amarela fomos nós quem inserimos). Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL756339-
5598,00.html.
1
4
3
2
5
113
Antes de prosseguirmos, porém, cumpre aqui mencionarmos algumas
questões que dizem respeito ao portal de notícias G1, local de onde retiramos o
hipertexto de nosso exemplo, e ao gênero jornal on-line
133
, no qual se enquadra
tal exemplificação. Essa menção apresenta por objetivo acolhermos
considerações que possam corroborar com nosso intento nessa unidade, que é o
de tecer algumas reflexões acerca de proposições teóricas envolvidas na leitura
do hipertexto. Ressaltamos, no entanto, que o temos por objetivo analisá-lo,
haja vista que nosso interesse é utilizá-lo para materializar e ilustrar algumas
dessas proposições e para auxiliar a problematizar outras.
De acordo com Mielniczuk (2001), a história do jornalismo na internet pode
ser dividida em três gerações. Numa primeira geração, chamada de transpositiva,
os produtos oferecidos, em sua maioria, eram reproduções de partes dos
grandes jornais impressos, que passavam a ocupar um espaço na Internet. Esse
material era atualizado a cada 24 horas, de acordo com o fechamento das
edições do impresso. Na segunda geração, a da metáfora, mesmo atrelado ao
modelo do jornal impresso, os produtos começam a apresentar experiências na
tentativa de explorar as características oferecidas pela rede. Nesta fase, mesmo
ainda sendo meras cópias do impresso para a web, começam a surgir links com
chamadas para notícias de fatos que acontecem no período entre as edições, as
chamadas “últimas notícias”. Na terceira geração, a atual, o cenário começa a
modificar-se com o surgimento de iniciativas tanto empresariais quanto editoriais
destinadas exclusivamente para a Internet. São sites jornalísticos que extrapolam
a idéia de uma versão para a web de um jornal impresso existente, nos quais
as possibilidades do hipertexto são muito mais exploradas e há atualização
contínua das notícias e não apenas na seção “últimas notícias”.
Nessa terceira fase, graças à codificação digital que permite que qualquer
tipo de dado em qualquer formato seja traduzido para uma mesma linguagem
(SANTAELLA, 2003, p.147) digital convertida em bits –, o jornal pode reunir
texto escrito e falado, sons, música, vídeo, animação, fotografia, imagens e
gráficos, para compor as páginas hipertextuais e, assim, apresentar as notícias. A
133
Não na literatura específica, conforme Mielniczuk (2001), um consenso a respeito dessa
nomeação. Alguns dos outros nomes utilizados: jornalismo eletrônico, jornalismo digital,
ciberjornalismo e webjornalismo.
114
seu turno, o leitor pode navegar pelo hipertexto do jornal encontrando diferentes
opções para tal navegação. O portal de notícias G1, da Globo.com, lançado no
final de 2006, pertence a essa terceira geração e apresenta forma e conteúdo
voltados exclusivamente para a Internet. No portal as informações são divulgadas
24 horas por dia. No G1, podem ser encontradas notícias do Brasil e do Mundo
referentes a diversas temáticas, o portal reúne, ainda, diversos tipos de canais
como os de serviços, plantões, publicidade externa como as do HSBC e do
Icarros, presentes na página do hipertexto que escolhemos.
No que tange às atualizações das matérias, Mielniczuk (2001) aponta-nos
um dado interessante que se refere ao intervalo de tempo com que as notícias
são atualizadas no jornalismo de terceira geração. Segundo a autora, as
atualizações são feitas em um tempo médio de quatro minutos. No caso do G1,
notamos que esse intervalo parece ser ainda menor, a julgar pelos 60 minutos
que tomamos como referência para observar as atualizações nesse portal.
Contabilizamos no dia 06 de novembro de 2008, no intervalo entre as 12 e 13h,
apenas no box denominado Plantão, a entrada de 77 notícias de temáticas
diversas, o que nos uma média de 1,3 notícias por minuto, ou 1 nova notícia a
cada 46 segundos, aproximadamente. Entendemos que essa velocidade reporta à
idéia de conexão em tempo real, ou seja, o fluxo de informação contínuo e quase
instantâneo, no qual o tempo que importa é o agora, ou melhor, fragmentos de
agora que transitam no ciberespaço, independente do local em que o fato
noticiado ocorre, já que a internet traz a possibilidade da informação viajar através
do mundo em frações de segundo. Assim, encontramos nesse fato um exemplo
da liquefação das relações entre tempo e espaço, proporcionada pelas novas TIC,
de que nos fala Bauman (2001). Essa liquidez apresenta como essência o
movimento, contínuo e incessante. O movimento perpétuo, a liquidez fugidia que
não se permite fixar, pausar. Se liquidez é porque movimento, de todos os
tipos, pois, como afirma o próprio Bauman, o lugar, na modernidade líquida,
perdeu sua fixidez de antes, buscando rochas, as âncoras encontram areias
movediças (2001, p.70).
Além disso, podemos supor que o G1, como uma versão pós-moderna da
mídia, marcado por essa renovação incessante de informações, num fluxo
115
contínuo no qual não basta colocar a data da notícia, é preciso colocar a hora e
minuto em que ela entrou no portal e, também, a de sua atualização, tal qual
ocorre no exemplo utilizado funcionaria como uma forma de interpelação social
ao consumo de informações que, de acordo com Bauman (1999a), caracteriza a
nossa versão do consumo na sociedade contemporânea. Consumo que se daria,
prioritariamente, via leitura das notícias e dos anúncios do portal.
Feitas essas breves considerações, passemos então à discussão das
características do hipertexto. Para tanto, usaremos as características do
hipertexto digital que tratam direta ou indiretamente da leitura ou do leitor,
elencadas por Marcuschi (1999) e por Kock (2007)
134
, e em cada uma traçaremos
nossas considerações. Quando possível, usaremos o exemplo de hipertexto
selecionado para pautar nossa argumentação. Passemos, então, às
características:
a) Não-linearidade: tida como a característica central do hipertexto. O
hipertexto estrutura-se reticuladamente, não pressupondo uma
leitura seqüenciada, com começo e fim previamente definidos. Isso
faz dele um texto elástico, que se estende reticularmente conforme
as escolhas feitas pelo leitor, possibilitando-lhe escolher a seqüência
do material a ser lido. É ele quem determina os caminhos para a
construção de um sentido (Cf. KOCK, 2007). Com o hipertexto,
muda a noção de autor e de leitor, dando a impressão de uma
autoria coletiva ou de uma espécie de co-autoria. A leitura se torna
simultaneamente uma escritura, que o autor não controla mais o
fluxo da informação (Cf. MARCUSCHI, 1999).
Essa característica atribuída à leitura do hipertexto parece referir-se mais ao
percurso de leitura realizado pelo leitor que à leitura propriamente dita. Sendo
assim, tomando por base o nosso exemplo, um leitor chamado, no ciberespaço,
de usuário que acessasse a página do G1, da Globo.com, e se deparasse com
o texto que trata da chegada ao Brasil de uma brasileira e de seu filho que
134
Inicialmente pensamos em usar apenas Koch (2007) por ser um texto mais recente, mas dada
a “pouca clareza” de algumas definições, preferimos então acrescentar Marcuschi (1999) o qual
segue uma linha de trabalho com a questão do hipertexto que se aproxima a da autora –, a fim de
fornecer-nos maior detalhamento das características propostas.
116
fugiram do marido, no Líbano, poderia, hipoteticamente, iniciar sua leitura da
matéria pelo título. Depois clicar em um dos vídeos que fazem parte do hipertexto
em questão, depois prosseguir à leitura do texto verbal até uma certa parte, então
clicar em um dos termos ou links disponíveis no corpo do texto, em marcação
vermelha, e assim ser reenviado a um outro texto com o qual o conteúdo
estabelece uma relação hipertextual disponível em outra janela e com
informações referentes ao item selecionado, podendo de retornar ao texto de
onde derivou. E talvez, de volta à pagina inicial assistir ao outro deo da matéria
e assim prosseguir sua navegação ao seu contento, ou simplesmente, clicar
em algum link da navegação principal ou da subnavegação, que o encaminhe a
um assunto bem diverso daquele de que trata a matéria em questão.
Mas, em tal percurso de leitura, esse leitor se diferenciaria tanto do leitor
que, de posse de um jornal impresso, procede ao seguinte percurso: varre a
primeira página para ter idéia do que acontece no mundo, percorre algumas
imagens e manchetes, folheia o jornal e vai lendo aquilo que lhe chama a
atenção, inicia a leitura de algum texto, salta para o parágrafo de conclusão, mas
não o texto todo. Em outros, lê, avança no texto e retorna ao seu início para
verificar alguma informação que não tenha ficado muito clara. Depois muda de
caderno, acha alguma notícia que lhe interessa, vasculha o jornal na busca de
outras que a complementem, talvez adiante ou para trás no jornal, sem início ou
fim fixos de leitura.
Em ambos, os percursos de leitura não foram seguidos conforme uma
linearidade, indiferente do meio ser digital ou impresso. Então, qual seria a
diferença da leitura do hipertexto, no que concerne à questão da não-linearidade?
A entender pela argumentação de Santaella (2003), no hipertexto essa
característica é levada ao extremo e apresenta a possibilidade de ligação com
qualquer ponto do ciberespaço, não ficando restrita ao endereço/site em que essa
textualidade se encontra. E ainda, Xavier (2002) nos esclarece que a não-
linearidade, no hipertexto, é uma regra constitutiva de sua produção, um princípio
básico de sua construção.
No entanto, a função do sujeito-leitor como aquele que produz/constrói
sentidos não é alterada no hipertexto. E neste âmbito, no da produção de
117
sentidos, nenhuma leitura seria igual a outra, tomando por base que cada leitor
apresenta uma conjunção de historicidades a de suas leituras e a de leituras do
texto tal qual propõe Orlandi (1988), ou como acrescenta Coracini (2002) ao
dizer que, devido ao interdiscurso e às condições de produção, os sentidos são
sempre remetidos à pluralidade. Pluralidade essa que não se refere apenas a
diferentes leituras realizadas por sujeitos distintos, mas também a diferentes
leituras realizadas por um “mesmo” sujeito sempre “outro”. Ainda, podemos
entender juntamente com Orlandi (1996), que o texto como exemplar de discurso,
é multidimensional, passível de múltiplas interpretações. É pensando na
materialidade textual que a autora afirma que o texto não é uma superfície linear,
mas figura como um “bólido” de sentidos que o faz partir em inúmeras direções,
em múltiplos planos significantes.
E, nesse viés, não cabe, tal qual se depreende de Bakhtin (2004), o papel do
autor como aquele que domina a linguagem e os sentidos do texto, visto que, ao
selecionar as palavras para sua produção, ao serem enunciadas, tais palavras
carregam-se de sentidos saturados por valores ideológicos construídos em uma
condição cio-histórica específica. Também, conforme nos aponta Orlandi
(2001), o sujeito, quer seja o leitor ou o autor, apresenta a ilusão de ser a origem
de seu dizer, quando, em verdade, os sentidos de um texto emergem do
relacionamento destes sujeitos – e de todas suas condições – com a “unidade” de
significação o texto. Partindo do pressuposto de que os sentidos podem ser
conformados no texto pelo autor, desconsideram-se as relações culturais, sociais,
históricas e ideológicas que envolvem a temática da significação, as quais
configuram as condições de produção dos sentidos e, portanto, da leitura. Assim
o sentido é visto como proposto pelo autor e não em vistas de se construir na
relação de troca entre os sujeitos, texto e condições de produção, envoltos na
questão da leitura.
Por considerar a leitura como uma produção ativa de sentidos e, ancorando-
nos naquilo sobre o que concordam as autoras Orlandi (1988) e Coracini (2002)
ao proporem que não é quem escreve que significa, quem também produz
sentidos, ou como podemos depreender a partir de Bakhtin (2003) que o sujeito-
leitor é aquele que responde ativamente ao outro presente na enunciação e essa
118
atitude responsiva estaria pressuposta na formulação do enunciado, ou ainda,
pensando no caráter de co-responsabilidade do sujeito-leitor na interpretação do
texto, depreendido das postulações de Freire (1996); assim, nesses contornos, a
co-autoria textual figura no entendimento do sujeito-leitor, portanto, não é
apenas a organização do percurso de leitura diferenciado que tornaria o leitor um
co-autor do texto, mas essa função está subentendida na própria produção dos
sentidos.
b) intertextualidade: o hipertexto é um “texto múltiplo”, que funde e
sobrepõe inúmeros textos que se tornam simultaneamente
acessíveis a um toque do mouse (cf. Kock, 2007).
Notadamente, o hipertexto traz em sua superfície os hiperlinks que o ligam
em cadeia intertextual a outros textos, como é o caso dos enunciados da grade de
subnavegação 5 ou dos hiperlinks dispostos ao longo do próprio hipertexto. Da
mesma forma, os vídeos dispostos na matéria também estabelecem uma relação
intertextual com o texto verbal ou seria o verbal que estaria em relação
intertextual com esses vídeos? e essa interligação faz parte de sua
materialidade textual e significante. Esses hiperlinks, no caso do nosso exemplo,
no entanto, remetem o texto para ligações dentro do mesmo site, por isso
constituem sua intratextualidade. Para que o leitor consiga uma maior
intertextualidade, mais detalhes do caso que não apenas os elencados na
matéria, por exemplo, precisa usar o mecanismo de busca na web, pois
dificilmente conseguiria que uma das conexões, presentes no texto considerado,
remetesse-o em ligação hipertextual a outro site de informações concorrente da
Globo.com. O que nos leva a pensar que, possivelmente, embora a idéia de que o
hipertexto, por meio dos hiperlinks, possibilite a conexão com quaisquer outros
textos do ciberespaço, empiricamente, essa intertextualidade segue as diretrizes
de interesses manifestadas no “veículo” que o agencia, como tentativa de controle
da navegação a ser efetuada pelo sujeito-leitor.
Todavia, essa é apenas uma forma de intertextualidade, que chamaremos
aqui de “mostrada”. Com base nas considerações realizadas em torno das obras
de Bakhtin (2003 e 2004), efetuadas no capítulo precedente, a respeito de como o
sujeito-leitor pode ser posicionado dentro da relação dialógica constitutiva da
119
linguagem, segundo a qual todo enunciado faz parte da cadeia da comunicação
discursiva, podemos, então, depreender que a intertextualidade é uma
característica constitutiva de todo e qualquer enunciado. Assim, não podemos nos
esquecer que nenhum texto (enunciado) se esgota em si mesmo, ele está
orientado em relação a um já-dito e a um ainda a se dizer, fato que o interliga a
outros enunciados e, portanto, a outros textos. Assim, na leitura do hipertexto, o
sujeito-leitor se depara com um enunciado pertencente a uma cadeia discursiva,
originalmente intertextual, no qual o outro está instaurado e para o qual o
discurso não apenas se dirige, mas torna-o também parte constituinte do
discurso, com quem o sujeito-leitor terá que se relacionar na constituição dos
sentidos. Essa cadeia discursiva nos remete à idéia de interdiscursividade,
pressuposta por Bakhtin (2003), reapropriada por Coracini (2002) e por Orlandi
(1988), que mencionamos no capítulo anterior.
No entanto, é interessante notar que o hipertexto acentua a função da
intertextualidade por meio dos hiperlinks, na medida em que faz um maior uso
explícito da remissão dos significantes a outros significantes, os quais podem, em
tese, ampliar o cotexto
135
do texto. Assim podem atuar na produção de sentidos
durante a leitura. E também por meio da convergência de mídias acarretando,
dessa maneira, novas possibilidades para essa intertextualidade.
c) volatilidade: o hipertexto não tem estabilidade e todas as escolhas
são tão passageiras quanto as conexões estabelecidas por seus
leitores; esta característica sugere ser o hipertexto um fenômeno
essencialmente virtual, decorrendo daí boa parte de suas demais
propriedades (Cf. MARCUSCHI, 1999).
Essa característica do hipertexto estabelece o sujeito-leitor indiretamente
como o responsável pela virtualização dessa textualidade que são as ligações,
em tempo real, estabelecidas por este, que tornam o texto cada vez um e cada
vez diferente, e, portanto, instável. No entanto, Coracini define textos como
conjuntos amorfos de sinais gráficos, incapazes de reter sentido fora do jogo
lingüístico, fora do universo de discurso (2002, p.17). E acrescenta que, uma vez
que as condições de sua produção se acham perdidas, apenas uma nova
135
Entendido, no âmbito do hipertexto on-line, como as seqüências significantes encontradas
antes ou depois da unidade a interpretar.
120
situação de enunciação a leitura é capaz de conferir sentidos a esses sinais
gráficos transformando-os, novamente, em sinais lingüístico-textuais. Assim, os
textos existiriam em potencial. Expandida tal consideração para uma noção de
texto que englobe outros mecanismos além do lingüístico, é possível pensar que
a virtualidade é constitutiva de todos os tipos de textos, pois é somente numa
nova enunciação que é possível atualizar os significantes os quais não estão
presos a realidades estanques, higienizadas de suas condições de produção.
Além disso, o texto, e também o hipertexto, é palco de outras formas de
virtualizações como é o caso das imagens de interlocutores que são
projetadas, tais quais a do leitor virtual, proposta por Orlandi (1988) acrescida da
imagem do autor, conforme indica Coracini (2002), ou a idéia de endereçamento,
proposta por Bakhtin (2003), segundo a qual, no funcionamento da linguagem, o
outro a quem o enunciado é orientado é levado em conta pelo autor no momento
da produção do texto. Talvez, por esses motivos, seja mais prudente falar em
desmaterialização do texto digital, conforme pode ser depreendido a partir de
Xavier (2002, p.30), do que em virtualização.
d) fragmentaridade: consiste na constante ligação de porções em
geral breves com sempre possíveis retornos ou fugas; trata-se de
uma característica bastante central para a noção de hipertexto que
carece de um centro regulador imanente, que o autor não tem
mais controle do tópico e do leitor (Cf. MARCUSCHI, 1999).
E,
e) descentração: a descentração estaria ligada à não-linearidade, à
possibilidade de um deslocamento indefinido de tópicos (Cf. KOCK,
2007).
A ausência do centro regulador imanente, no hipertexto, deve-se, a entender
por Marcuschi (1999), à incapacidade do autor de controlar o texto e a leitura
deste. No exemplo usado, a fragmentação se daria pela possibilidade do leitor ler
qualquer trecho do hipertexto da notícia sem precisar ler o texto por inteiro, ou
pela possibilidade de “organizar” os fragmentos textuais a que tem acesso,
conforme os objetivos e interesses de sua leitura, podendo este ir e vir no texto
sem que seja ao autor possível controlar a atividade de leitura do leitor.
121
Entretanto, discorremos a respeito da função-autor quando discutimos a
respeito da não-linearidade pressuposta na leitura dessa textualidade. Na ocasião
mencionamos que os sentidos são produzidos na confluência das condições de
produção com a situação de interação entre os sujeitos envoltos na produção de
sentidos e o texto (enunciado), portanto, sentidos não são controlados pelo autor,
tão pouco controlados pelo leitor ou contidos em um texto. Decorre dessa
prerrogativa que, se os sentidos são relacionais, a idéia de unidade de sentido de
um texto pode ser questionada haja vista que os sentidos não estão no texto. O
texto figuraria apenas como aparência imaginária desta suposta unidade.
Ainda, podemos considerar que o plano em que o autor se baseou para
conferir unidade a seu texto é desarticulado pelo fato de que ler é uma prática
social, envolta numa rede interdiscursiva, conforme propõe Orlandi (1988) e
reafirma Coracini (2002), marcada pela heterogeneidade. Nesse sentido, o texto
figura como uma heterogeneidade, provisoriamente estruturada, que existem
múltiplas possibilidades de constituição de sentidos e de entradas no texto pelos
sujeitos-leitores, sempre o “mesmo” e sempre “outro”. Na perspectiva do texto
interligado à noção do interdiscurso, o texto apresenta vários pontos de entrada e
vários pontos de fuga, tal qual depreendemos a partir de Orlandi (1988 e 2001).
Os pontos de entrada diriam respeito a múltiplas posições do sujeito e os pontos
de fuga seriam as diferentes perspectivas de produção de sentidos. Por isso, os
textos em geral são marcados pela fragmentariedade.
Resolvemos colocar juntas as duas características tendo em vista que a
descentração nos parece intimamente associada à proposta de fragmentaridade
do hipertexto, mencionada no item anterior. Por isso, apenas acrescentaremos o
que propõe Orlandi quando diz que uma vez que o contexto é constitutivo do
sentido, não um centro e suas margens, margens (1988, p.20), por isso
a descentração é inerente ao texto e à leitura.
f) acessibilidade ilimitada: o hipertexto acessa todo tipo de fonte,
sejam elas dicionários, enciclopédias, museus, obras científicas,
literárias, arquitetônicas etc. e, em princípio, não experimenta limites
quanto às ligações que permite estabelecer (Cf. MARCUSCHI,
1999).
122
Tal qual proposto, uma vez que o hipertexto nos permite acessar qualquer
tipo de fonte, ele nos dá, enquanto leitores, uma grande liberdade em escolher o
que desejamos ler. Todavia, Marcuschi (1999), na proposta acima, modaliza essa
afirmativa colocando que, “em princípio”, não haveria limites quanto a esse
acesso. Partimos da idéia de que o sujeito-leitor sofre inúmeras coerções em seu
processo de construção de sentidos, portanto, em sua leitura, o que retira dele
essa propagada autonomia em suas escolhas. Considerando que o leitor
constituindo um sujeito social, como pode ser entendido com base em Freire
(1995), não ocorre fora do espaço sócio-histórico e cultural que o envolve, pois
este não é um mero objeto em um espaço construído à sua revelia. Entendemos,
com base nas proposições de Orlandi (1996) que um sujeito engendrado nesse
espaço também, a seu turno, participa do engendramento de tal espaço; é
possível entrever que esse sujeito está orientado a certos limites que lhe são
impostos pelas condições circunstanciais nas quais seu encontro com o texto se
dá. Por sua vez, Coracini (2005) também fala da coerção do leitor e aponta que a
leitura ou a produção de sentido é uma questão de ângulo ou de posição
enunciativa. Posição essa que remete às possibilidades de interpretação de dada
formação discursiva, pois não lemos o que queremos (de forma independente) a
qualquer momento e em qualquer lugar, assim como não podemos dizer ou fazer
o que quisermos em qualquer lugar e qualquer momento: regras, leis do
momento que autorizam a produção de certos sentidos e não de outros.
Baseados nessas considerações e estendendo essa questão para as
escolhas dos hiperlinks acessados, acreditamos que, diante do hipertexto, o
sujeito-leitor não se conta de que seus movimentos nessa textualidade sejam
efeitos de sua inscrição numa determinada rede de significações que lhe
possibilita alguns caminhos e interdita outros e com a qual ele se relaciona e
trabalha a linguagem e, portanto, os sentidos. Além disso, os lugares sociais que
esses sujeitos ocupam em determinadas formações discursivas, filiadas à certas
formações ideológicas, irão determinar as posições enunciativas que assumem
quando acessam alguns hiperlinks e ignora outros, pois é em relação a seu lugar
social que se define a sua leitura.
123
Acrescentamos a esse argumento a existência de limitações inerentes ao
próprio mecanismo enquanto dispositivo tecnológico. Na notícia que usamos para
ilustrar certas considerações é possível perceber, conforme já expusemos, que os
hiperlinks presentes no hipertexto remetem o leitor para o interior do próprio site,
em um processo crescente de recursividade. Essa recorrência, de acordo com
Dalmonte mantém
o leitor navegando pelo próprio endereço, o que gera page views
136
,
bem como possibilita contabilizar o tempo de permanência e o número
de cliques de cada usuário no Website. Esses números, aferidos por
instituições como o IVC, Instituto Verificador de Circulação [...] mostram
a audiência dos produtos, o que será vendido aos anunciantes.
(DALMONTE, 2005, p.15)
Anunciantes representados em nosso exemplo pelo HSBC e pelo Icarros.
Entretanto, ainda que o sujeito-leitor use um sistema de busca na web, como é o
caso do popular Google, devemos considerar que esses sistemas costumam
estabelecer uma hierarquia, um ranking, dos links apresentados, como no
exemplo do Google que se vale do mecanismo de páginas mais visitadas para o
estabelecimento desse ranking, funcionando também como um mecanismo de
coerção do sujeito-leitor e da leitura.
Todavia, cremos que o hipertexto permite ao sujeito-leitor a ampliação do
acesso a muito mais informação do que outros formatos, tendo em vista que
vários outros textos estão disponíveis no mesmo ambiente on-line. Como,
ilustrativamente, um sujeito-leitor não contente com as informações sobre o caso
da “Mulher que fugiu do marido no Líbano” presentes no site de notícias da
Globo.com, o G1, poderia, após uma rápida pesquisa na web, acessar outros
sites de notícias on-line e tentar ampliar seu rol de informações sobre o caso. E,
somam-se à questão do maior contingente de informação disponível em uma
mesmo ambiente para acesso, as novas formas desse acesso, como por
exemplo, consulta a vários jornais eletrônicos dependendo do interesse, o leitor
poderia consultar jornais o do Brasil
137
assim como arquivos desses jornais
136
Refere-se à visualização efetiva da página de determinado site, significa página vista, nome
utilizado para determinar qual o número de visualizações que determinada página possui em certo
período (Cf. DALMONTE, 2005, p.15).
137
Fato que demandaria, talvez, o conhecimento de outras línguas, ou o uso de ferramentas de
tradução disponibilizadas no próprio ambiente digital, resguardadas as limitações dessas
ferramentas, é claro.
124
a partir de um único meio a internet. Também, soma-se o fato da maior
velocidade com que essas informações podem ser mobilizadas, proporcionando
assim a sensação de instantaneidade do ambiente da web. Mas cremos que,
ainda assim, as considerações realizadas a despeito da suposta acessibilidade
ilimitada sejam válidas e aplicáveis ao âmbito dessa nossa ilustração, pois
poderíamos escolher, mas essas escolhas não seriam livres, seriam controladas.
E assim nos encontraríamos, possivelmente, na ambivalência dessas escolhas.
g) multissemiose: por viabilizar a absorção de diferentes aportes
sígnicos e sensoriais (palavras, ícones, efeitos sonoros, diagramas,
tabelas tridimensionais, etc.) numa mesma superfície de leitura (Cf.
KOCH, 2007). Este traço caracteriza-se pela possibilidade de
interconectar simultaneamente a linguagem verbal com a não-verbal
(musical, cinematográfica, visual e gestual) de forma integrativa,
impossível no caso do livro impresso (Cf. MARCUSCHI, 1999).
Esse agenciamento de sistemas semióticos diferentes como o visual, o
verbal, o sonoro e etc., amalgamados em uma mesma textualidade ou cadeia de
textos, amplia as possibilidades de composição do hipertexto e de sua
significação em relação ao texto e aponta para a necessidade de se vislumbrar
novas relações do sujeito-leitor com esse formato textual e novos olhares sobre
essa leitura e esse sujeito. Por esse motivo, reverbera aqui o posicionamento dos
teóricos explorados no capítulo anterior Bakhtin, Freire, Orlandi, Coracini de
aventar o estudo do texto, e conseqüentemente, de sua leitura, no seu contexto
espaço-temporal e cultural, no qual as questões sócio-históricas devem ser
consideradas. É nesse sentido que as novas TIC, como mediadoras de formas
simbólicas, como é o caso do hipertexto, deixam “falar” uma cultura em constante
transformação no/através dos meios, e que, a seu turno, influencia essa
tecnologia. E essa mediação tecnológica permite certos usos, integrações,
agenciamentos e convivência entre linguagens que tendem à complexificação das
relações entre culturas digital e impressa, e por extensão, hipertexto e texto, de
que nos fala Santaella (2003), citada anteriormente.
No caso dessa simbiose simbólica possibilitada pela tecnologia do
hipertexto, devemos nos lembrar que tanto o som, a imagem, a escrita, quanto as
125
outras materialidades significantes são praticados, ou seja, o trabalhados por
sujeitos, sócio-histórico e ideologicamente situados, de modo a criar efeitos de
sentido específicos em determinadas situações. Mas eles também são
retrabalhados no momento da leitura e produzem sentidos que podem coincidir ou
não com os efeitos de sentido previstos. O importante é perceber essas
materialidades significantes como aptas a serem interpretadas, a produzirem
sentidos e se contextualizando mutuamente, influenciando nossas interpretações
de cada uma e de ambas quando combinadas. Os dois vídeos que fazem parte
do hipertexto
138
, utilizado para exemplificar nossos apontamentos, são
refuncionalizados quando interconectados ao texto verbal, assim como o verbal é
refuncionalizado pela interligação com esses vídeos. Esses dois sistemas,
quando justapostos num mesmo enunciado, podem se complementar, se ilustrar
ou se criticar mutuamente, o que possivelmente nos demanda, como leitores, uma
análise mais atenta do que se interpretássemos cada um deles separadamente.
Essa combinação de diferentes semióticas constitutiva da textualidade digital
nos leva a pensar no modo como tais elementos são usados para constituírem
sentidos e para constituírem essa textualidade no ambiente on-line,
especialmente na textualidade do hipertexto que é objeto de nossas reflexões
nesta unidade. A maior possibilidade de interligação no hipertexto entre essas
semióticas, propiciada pelas novas TIC, mediam uma reconfiguração
139
da
linguagem no sentido que instauram novas associações entre escrita, som,
imagem, movimento e etc. em uma mesma superfície textual. Entendemos, ainda,
que esses diferentes modos semióticos, ou seja, essas diferentes materialidades
significantes que participam de tal configuração textual são constituídos pelos
diversos contextos sócio-culturais e históricos em que se inserem e, portanto,
voltamos à premissa de que esses elementos de linguagem são praticados.
Os autores trabalhados no capítulo anterior propunham uma ampliação da
noção de texto, uma vez que consideravam outros sistemas semióticos, que iam
138
Ormundo (2007) diz que outros recursos semióticos, além da escrita, no caso da informação
jornalística, visam a torná-la mais próxima do real, e que, quanto maior os elementos semióticos
utilizados no texto, mais próxima essa informação estará da realidade, e logo atingirá um alto grau
de modalidade, atingindo, assim, o efeito da persuasão.
139
Cremos que esses elementos semióticos não estão apenas coexistindo em uma mesma
superfície textual, antes, como dissemos, acreditamos que sua presença pressupõe formas de
interconexão e interação entre esses elementos.
126
além da escrita, na constituição dos sentidos. É o que pode ser percebido em
Freire (1989), quando propõe a leitura do texto-mundo e mundo-texto; em Bakhtin
(2003), do qual podemos depreender que o texto pode ser constituído tanto pelo
verbal quanto pelo não-verbal; em Orlandi (1998), que propõe a relação do
sujeito-leitor com o universo simbólico, a qual não ocorre apenas pela via verbal,
mas opera com todas as linguagens que constituem o universo simbólico ao se
relacionar com o mundo e poder se voltar ao mundo e produzir sentidos possíveis
para ele; e em Coracini (2002), que reconhece não apenas o texto verbal como
texto, mas também a pintura, a música, a fotografia e outras possibilidades do
universo simbólico. Todavia, tais reflexões foram efetuadas levando-se em
consideração outras textualidades que não a do hipertexto digital, mas que
apontavam para a diversidade semiótica que constitue os textos. No entanto, as
novas TIC trazem para o hipertexto a possibilidade de coadunar diferentes
sistemas semióticos à escrita, como imagem em movimento e som, por exemplo,
de maneira simultânea, numa convergência impensável na textualidade impressa
dadas as limitações do papel.
Este fato, de alguma forma, poderia problematizar a questão do
grafocentrismo de nossa sociedade contemporânea ocidental, baseada na
palavra escrita, na medida em que amplia o universo semiótico da materialidade
significante da textualidade digital e traz para os (hiper)textos outras
interconexões de linguagens. Outras materialidades que jogam na construção dos
sentidos, a exemplo da inserção/incorporação de imagens, especialmente da
fotografia, na textualidade dos jornais e dos textos (impressos) em geral, ocorrera
outrora. Essa conjunção de materialidades significantes, na textualidade digital,
forma o que Santaella (2007) chama de sintaxe híbrida ou mestiça. Segundo a
autora os sons, palavras e imagens que, antes, podiam coexistir passam a se
co-engendrar em estruturas fluidas, cartografias líquidas (SANTAELLA, 2007,
p.294).
127
3.4 Algumas considerações
Se, como depreendemos a partir das propostas de Coracini (2002 e 2005),
ler é saber que o sentido é em meio a outros, precisamos considerar que, na pós-
modernidade, os caminhos para esses outros também circulam em outras
conjunturas da significação, na textualidade digital. Além disso, o sujeito-leitor, ao
ler, produz sentidos possíveis para uma textualidade, seja ela impressa ou digital,
sendo orientado pelos processos não sócio-históricos e ideológicos, mas
também pelos processos identitários. Esse sujeito-leitor é posicionado pelas
injunções discursivas que o envolvem e o inscrevem historicamente na
digitalidade crescente contemporânea. Assim, para adentrarmos nesse universo
dos outros sentidos, nos modos de sua circulação na atualidade, é preciso que
assumamos a posição, conforme proposto na peça publicitária sobre a qual
realizamos um estudo exploratório, de sujeitos-leitores-tecnológicos. Pois
consideramos que mais do que novas TIC, essas tecnologias são novas
tecnologias de linguagem, as quais se constituem e ajudam a constituir no/o
espaço, marcado pela mobilidade e pela desmaterialização, para inúmeras formas
simbólicas que se dispõem à significação. E assim, esse sujeito-leitor, a partir da
leitura dessas formas (materialidades) simbólicas pode significar, pela mediação
das novas TIC, não as textualidades aí presentes, mas também o espaço de
linguagem que elas configuram. E, por essa linguagem mediada, significar a si
mesmos através de processos de identificações que, como vimos com Woodward
(2004), são pautados na linguagem e na cultura. Cultura essa marcada pela
fluidez, pela instabilidade e pela ambivalência. Nesse espaço fluido, de
convergência de múltiplas materialidades significantes e de intensa mobilidade de
informações, a identidade não se desenvolve apenas no lugar, na pausa, mas
também no movimento.
No estudo dessa textualidade, que chamamos de digital, as considerações
realizadas sobre as características do hipertexto e de sua leitura apontadas tanto
por Koch (2007) quanto por Marcuschi (1999) e discutidas em relação às
propostas sobre a leitura (que elencamos no capítulo anterior), não querem dizer
que não existam diferenças entre a leitura do texto e do hipertexto considerado
128
aqui no âmbito da internet. Antes servem para nos convidar a repensar a
oposição realizada em termos de binarismo – impresso versus digital, texto versus
hipertexto. E, também, para nos convidar a estudar a complexificação dessas
relações em termos de usos, de tecnologias, de integrações e agenciamentos das
modalidades. Agenciamentos e integrações que dizem respeito a como o
hipertexto arregimenta sentidos a partir da “convivência” dessas diferentes
materialidades significantes. Estudos nos quais os elementos acima figurem como
importantes parâmetros de pesquisa, acrescidos de outros que nos escapam no
momento, mas que possam nos possibilitar a compreensão e a contextualização
do hipertexto, enquanto manifestação da linguagem, e de seu sujeito-leitor no
âmbito de uma cultura na qual o velho e o novo se coabitam, dialogam e se
complementam constantemente, promovendo, dessa forma, o espaço fronteiriço
da ambivalência. Um espaço em que sujeito e sentidos se constituem
atravessados pela heterogeneidade. Tudo isso, sem nos esquecer, é claro, na
instantaneidade com que se podem acessar essas materialidades e correlacioná-
las a outras dispostas no mesmo ambiente, num fluxo informacional incessante,
que nos remetem à fragmentação do agora. Sendo assim, queremos acreditar
que a leitura, na pós-modernidade, passa a investir-se de uma nova carga
significativa: a navegação.
E, embora concordemos com uma caracterização que pode ser depreendida,
a partir das considerações efetuadas por Orlandi e por Coracini, no capítulo
anterior, na qual o texto seria uma unidade (aparente) de significação em relação
à situação, não podemos desconsiderar, no que se refere ao hipertexto, que
provavelmente a textualidade, marcada pela convergência semiótica; sua forma
material (que no ciberespaço, é marcada pela desmaterialização, a qual, por sua
vez, nos remete à idéia de liquidez, proposta por Bauman); sua relação com o
interdiscurso (embora o interdiscurso se refira ao lugar das múltiplas vozes que
constituem a memória discursiva, precisamos pensar aí, também, a questão da
intertextualidade. E, assim, pensar sobre a questão de a internet acentuar a
função da intertextualidade
140
por meio dos hiperlinks, na medida em que o
hipertexto faz um maior uso explícito da remissão dos significantes a outros
140
Embora em alguns sites, como é o caso do exemplo que utilizamos, essa intertextualidade seja
transformada em intratextualidade.
129
significantes, o que levaria a uma ampliação do cotexto o que, por sua vez,
possivelmente, interferiria na produção de sentidos na leitura) e as condições de
produção diferem quando difere sua materialidade significante. Ou seja, um vídeo
pode ser considerado um texto, mas uma vez que ocorra com sua materialidade
diferente, tal como ocorre na notícia jornalística que usamos como exemplo, na
qual o vídeo aparece juntamente com outras textualidades formando um
hipertexto on-line, esse mesmo deo constitui um objeto simbólico diferente e
que produz efeitos de sentidos “específicos” relativos à sua forma e a sua
materialidade.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No desenvolvimento dessa dissertação, buscamos apreender a leitura como
objeto cultural no qual se inscrevem aspectos sócio-históricos. O que significa
que, para nós, a leitura é uma construção engendrada na/pela sociedade e
na/pela historicidade assim como as diversas culturas e os demais objetos
culturais também o são. E, uma vez que consideramos cultura como um sistema
heterogêneo e conflituoso de processos que permitem a constituição e a
transformação contínua das subjetividades, nesse âmbito, o intento de uma
abordagem da leitura como objeto cultural nos levou ao estudo da constituição e
transformação daquela subjetividade que é responsável por colocar em
funcionamento a leitura: o sujeito-leitor. Nesse sentido, o estudo da leitura como
objeto cultural nos levou ao estudo do sujeito-leitor e das transformações e
movimentos que tanto um como outro vêm passando na sociedade.
Mas essa perspectiva nos impôs a necessidade de buscar em diferentes
áreas do conhecimento e sistemas conceituais, dentro das Ciências da
Linguagem e dos Estudos Culturais, os elementos que nos possibilitassem tal
estudo. Todavia, essa interdisciplinaridade configura uma pressuposição
característica dos Estudos Culturais, vertente na qual se alinha a nossa
perspectiva, tendo em vista o que propõe Johnson quando formula que os
Estudos Culturais devem ser interdisciplinares
141
(e algumas vezes
antidisciplinares) em sua tendência (2000, p.22) e, especificamente no que tange
ao estudo dos objetos culturais, uma disciplina ou problemática única não pode
apreender os objetos culturais como um todo (JOHNSON, 2000, p.19). Embora
reconheçamos que mesmo construindo argumentos que apresentem como base
essa interdisciplinaridade, não nos seria possível estudar o objeto cultural leitura
como um todo, devido à diversidade e complexidade de enfoques que tal estudo
pode apresentar. Assim, estamos cientes de que, ao elegermos alguns aspectos
para nossa abordagem, necessariamente silenciamos outros. E também de que
certas noções, como é o caso da leitura como uma manifestação de linguagem
141
E em alguns casos chegando à transdisciplinaridade, ou seja, à diluição de fronteiras entre
áreas e saberes.
131
que é – têm a propriedade de circular entre diversos sistemas (conceituais),
constituindo-se, portanto, em si mesmas como interdisciplinares.
Consideramos que o olhar teórico aqui construído e experimentado,
pressupondo essa interdisciplinaridade, embora muitas vezes tenha gerado certos
desconfortos, que conectar disciplinas, construir diálogos, complementaridades
entre pesquisadores oriundos de diferentes áreas mas que, no entanto, ligam-
se, de diferentes maneiras, à questão da leitura, ou ainda, a partir de suas
proposições, tentar estendê-las ao estudo da leitura, complementando-o não é
um trabalho muito tranqüilo; todavia, consideramos que esse olhar nos permitiu
uma leitura da leitura como objeto cultural numa interface em que a própria
fronteira entre as áreas passou a figurar como o território em que trabalhávamos.
Buscamos, no estudo da historicidade da leitura, responder questões não
apenas sobre o que era ler, ou o que era lido, mas também, quem lia, para que
lia, onde lia, e em alguns casos, como lia. Assim, percebemos, no percurso da
historicidade traçada, que a constituição do sujeito-leitor foi desde sempre um
existir em movimento, em meio às oscilações sócio-históricas e, portanto,
culturais, engendradas numa determinada sociedade e nas quais se inscrevem as
práticas de leitura que em nossa delimitação corresponde, em grande parte, à
sociedade européia ocidental.
Notamos que, se inicialmente, na Grécia Antiga, aquele que tinha o contato
direto com o texto dado à leitura era considerado em situação de “valor” inferior
àquele que lhe ouvia a leitura; tal valoração sofreu transformações e movimentos
ao longo dos tempos e espaços de forma que, no século XIX, aquele que não
soubesse ler por conta própria sofria um grande demérito social. E desde então,
saber ler tornou-se cada vez mais uma exigência social sobre o indivíduo, a fim
de que possa inserir-se, relacionar-se e transitar na vida em sociedade, em um
mundo cada vez mais mediado pela escrita.
Outra grande transformação pode ser verificada no que se refere à
interpretação. Pois, se hoje a interpretação se abre à multiplicidade, se o sentido
é sempre um em meio a outros tantos possíveis, e essa multiplicidade é
reconhecida e aceita em relação à leitura (pelo menos, em tese); na Idade Média,
porém, qualquer interpretação que fugisse àquela estabelecida pela instância
132
legitimadora à época, ou seja, pela Igreja, era tomada como heresia e não como
outra interpretação. Pois não se admitia essa possibilidade de discrepância do
sentido dogmático propagado pela Igreja, o qual deveria reger sujeitos-leitores e
leitura.
Vimos também a passagem de um sujeito-leitor a quem não era conferido o
direito de interpretar posto que o sentido “verdadeiro” lhe era estipulado
para um sujeito-leitor que se acreditava fonte da interpretação produzida e na
autonomia desta e, deste, para um sujeito-leitor que, embora, tenha a crença
dessa origem e dessa autonomia, não passa do efeito discursivo dessa ilusão.
Nesse ínterim, a produção do sentido também se move de um patamar acima do
sujeito, a algo que está no/com o sujeito e, finalmente, a algo que o atravessa e é
atravessado por ele ao mesmo tempo. Também, as funções da leitura
transformaram-se bastante ao longo dos tempos e espaços das relações sociais
estudados. Podemos elencar algumas que observamos em nossa pesquisa, como
por exemplo, as funções de: apoio à memória, exercício espiritual, recurso de
transmissão das autoridades passadas, acesso ao saber, acesso à informação,
instrumento de emancipação social, de controle social, de afirmação social ou de
luta social, fonte de conhecimento, fonte de identificação, dentre outras.
Acreditamos ser possível conjecturar que tenha sido em meio ao século XVIII
quando a leitura é reconhecida como instrumento de emancipação do ideário
intelectual servil feudalista e como força para o alcance da autonomia social,
época em que o indivíduo moderno se firma como tal que a leitura surge como
objeto cultural, propriamente dito, tendo em vista que, a partir de então, ganha
ares de um “bem” desejável por grande parte da sociedade e passa a ser
propagada como indispensável à modernização social. Além disso, com a
crescente urbanização, o aumento da população alfabetizada e o fortalecimento
da classe burguesa, a partir do século XVIII, a leitura passa a ser vista como um
modo de afirmação de classe instruída, a qual necessitava ler ainda mais. De fato,
tanto a modernidade como a pós-modernidade, ainda que com ressalvas em
algumas circunstâncias, fizeram e fazem aumentar a demanda pela leitura e
ampliar os valores sociais a ela atribuídos.
133
As abordagens que tratam da leitura e do sujeito-leitor, retirando-os das
perspectivas teóricas que os consideram apenas no âmbito das habilidades
individuais e do conhecimento do uso lingüístico e os inscrevem em relação ao
contexto social e histórico, indicam-nos um redimensionamento de ambos, uma
vez que promovem a inscrição de novas problemáticas como, por exemplo, a
questão da ideologia, da alteridade, do interdiscurso, das posições discursivas
ocupadas pelo sujeito-leitor, das condições de produção da leitura e tantas outras
que jogam na produção dos sentidos. E não menos importante é o
redimensionamento da noção de texto operado em meio a essas abordagens.
Conceito este que se movimenta da materialidade lingüística para a materialidade
significante de uma forma geral; do texto figurando como “depósito” de sentidos
anteriores à leitura para aquele que tem sentidos construídos a partir da situação
da leitura, na qual atuam as relações que participam da produção de sentidos
sentidos que, por seu turno, estão sempre se movimentando, assim como o
sujeito-leitor que os produz –; da noção de texto enquanto produto acabado para
a de texto como intertexto, um elo na cadeia discursiva. E, ainda, a transformação
da singularidade do sentido, único, a ser “resgatado” na leitura, para a pluralidade
de sentidos possíveis em dada situação e construído durante a leitura, no trabalho
operado pelo sujeito pela/na linguagem.
Ao inscrever o sujeito-leitor e, conseqüentemente, a leitura, no âmbito das
problematizações da pós-modernidade, tivemos como propósito a crença de que
sujeito-leitor, nesse contexto, não está imune aos processos de mudança
operados, imune a sócio-história e as práticas discursivas em que atua e que o
constituem. Assim, entendemos que pensar a leitura na pós-modernidade
significa inscrevê-la na cultura contemporânea. Cultura que é marcada, dentre
outras coisas, pela cibercultura, pelo consumo de informações, pela
fragmentação, pela liquidez moderna, e pelo espaço fronteiriço da ambivalência,
todos relacionados em maior ou em menor grau com as novas TIC. Acreditamos
que essas tecnologias transformam contextos, heterogêneos, ao mesmo tempo
em que são transformadas por eles. Além disso, contemplando a linguagem como
constitutiva dos sujeitos, não como separar linguagem e cultura, pois a cultura
é experienciada simbolicamente pela linguagem.
134
Consideramos que as novas TIC são, em verdade, novas tecnologias de
linguagem que medeiam a reconfiguração do processo de significação das formas
simbólicas contemporâneas, na medida em que reorganizam os meios pelos
quais a informação, a comunicação e o conteúdo simbólico são produzidos e
intercambiados no mundo social. Além de reestruturar os meios pelos quais os
indivíduos se relacionam entre si. Dessa forma, como mediadoras de linguagem,
que fazem falar a cultura e que se transforma constantemente nos e através dos
meios, atuam por meio de seu consumo material ou simbólico ou ainda do
discurso que as envolvem –, na produção de subjetividades e na construção de
novas posições de sujeito, como é o caso, por exemplo, daquele nomeado aqui
de sujeito-leitor-tecnológico.
Na pós-modernidade, a leitura encontra-se enredada com outros espaços
que configuram um novo local para a circulação do texto e de novas
textualidades, portanto, novos espaços de significação. Tais espaços, promovidos
pelas novas TIC, têm proporcionado uma crescente multiplicação dos sistemas de
significação e de representação o que implica, para o sujeito-leitor, o aumento de
possibilidades de assumir, negar e reivindicar identidades diferentes a cada
circunstância deparada, a cada texto que se lhe à leitura. Pois, existe [na pós-
modernidade] uma diversidade de posições que nos estão disponíveis posições
que podemos ocupar ou não. [...] E parece difícil separar algumas dessas
identidades e estabelecer fronteiras entre elas (WOODWARD, 2000, p.31).
No entanto, o espaço, constituído por meio dessas novas TIC, não está livre
das coerções que regem os demais âmbitos sociais de significação e, assim, o
sujeito inscrito faz “suas” escolhas relativamente ao lugar social por ele
ocupado. Certamente o hipertexto, no âmbito da internet, faculta novas formas de
acesso à textualidade e, conseqüentemente, à leitura. Argumentamos, no entanto,
que em lugar da liberdade de escolha e de acesso largamente propagadas,
existem limitações e coerções de, pelo menos, duas ordens com as quais o
sujeito-leitor se relaciona dialeticamente: as que são inerentes ao próprio
mecanismo enquanto dispositivo tecnológico; e as que têm a ver com a inscrição
do sujeito-leitor numa determinada rede de significações que lhe possibilita alguns
caminhos e interdita outros. Seria uma relação dialética, em nossa perspectiva,
135
porque não cremos em um sujeito totalmente assujeitado, mas em um sujeito-
leitor que trabalha a linguagem e se constitui nesse processo, negociando
sentidos atravessados pela interdiscursividade.
E se, com base na leitura de Hall (2004) e de Woodward (2004), podemos
concluir que as identidades são posições que o sujeito assume, ainda que sejam
representações construídas na/pela falta e a partir do lugar do outro, então, elas
situam o sujeito no mundo e nas relações sociais. Essas identidades, ou
identificações, não existem em si mesmas, são constantemente reconstruídas por
meio da diferença, da relação com a alteridade. Tal contato com o outro pode se
dar de muitas formas, dentre elas figura a leitura. Tendo em vista essa
consideração, recuperamos, neste ponto, um postulado de Hall que relacionamos
à inscrição do sujeito-leitor e da leitura na conjuntura da pós-modernidade,
atravessada pelas novas TIC que, por sua vez, configuram um novo cenário o
digital –, marcado pela fluidez constante. O autor argumenta que
À medida em que os sistemas de significação e representação cultural
se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma
das quais poderíamos nos identificar ao menos temporariamente.
(HALL, 2004, p.13)
Essa afirmação nos leva a crer que, através da mediação das novas
tecnologias, multiplicam-se as possibilidades de identificações e de construção
de identidades. E portanto, as identidades são multiplamente construídas ao
longo dos discursos, das práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicas. Assim, propusemos que o sujeito-leitor, ao ler, produz sentidos
possíveis sendo orientado tanto por processos sócio-históricos quanto identitários,
haja vista que a leitura se torna, com base nessa proposição, uma forma de
identificação e de construir identidades, pois tanto sentido quanto identidade não
existem a priori, mas são construídos discursivamente pela/na linguagem, e, por
extensão, pela/na leitura.
As pessoas assumem identidades diferentes em diferentes momentos,
configurando o que Hall chama de celebração móvel, formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (2004, p.13). Essas
identidades, portanto, não são definidas biologicamente, mas historicamente. E se
136
a cultura pós-moderna é marcada pela fragmentação da identidade, o que
favoreceria à existência de uma crise identitária crise esta que diz respeito ao
questionamento das estruturas tradicionais de pertencimentos do sujeito, que
davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social podemos
inferir, também, que a crescente multiplicação, proporcionada pela ação
mediadora das novas TIC, dos sistemas de significação e de representação
dados à leitura favorecem ainda mais a essa fragmentação. Afinal, ao ler, o
sujeito significa e se significa, imerso em representações e significações cada vez
mais fluidas, movediças, marcadas pelo ser e o não ser e não mais pelo ser ou
não ser. Um significado de si, portanto, cada vez mais marcado pela pluralidade e
pela fragmentação.
O grande fluxo de informações mediado pelas novas TIC, instanciadas em
inúmeros fragmentos de agora – que liquefazem as relações entre espaço e
tempo bem como a facilidade de acessá-las, disponibilizam diversas formas de
ver e de viver a experiência humana, e de ser sujeito, ao mesmo tempo que
contribuem para propiciar leituras de mundo mais ampliadas. Todavia,
reconhecemos que outras tecnologias e técnicas também contribuíram para
ampliações de leituras de mundo ao longo dos tempos como por exemplo, a
escrita, a prensa, o rádio, a televisão – como expusemos no capítulo inicial dessa
pesquisa.
Em lugar da oposição em termos de binarismos entre a leitura de textos e de
hipertextos, propusemos que essa relação seja pensada na qualidade de
complexificação das relações entre culturas digital e impressa em termos de usos,
de tecnologias, de integrações e agenciamentos das modalidades.
Agenciamentos e integrações que dizem respeito a como o hipertexto arregimenta
sentidos a partir da convergência e interações das diferentes materialidades
significantes. Materialidades essas que, em nosso entendimento, são sempre
praticadas e não apenas coexistem em uma mesma superfície textual, mas que
se interconectam e se refuncionalizam. E, provavelmente, no caso do hipertexto,
a textualidade (marcada pela multiplicidade de interações semióticas), sua forma
material (construída sobre desmaterialização própria da digitalidade) sua relação
com o interdiscurso (em que a intertextualidade se insinua muito mais
137
explicitamente) e as condições de produção diferem quando difere sua
materialidade significante. Nesse sentido, a leitura do (hiper)texto requer uma
nova relação do sujeito-leitor com essa textualidade, na medida em que as novas
materialidades significantes, nesse novo espaço de significação em que ocorrem,
também jogam/participam na/da construção de sentidos.
Nesse âmbito, percebemos uma movimentação interessante na relação
leitura-tecnologia-subjetividade, no contexto da pós-modernidade, que é aquela
que diz respeito ao movimento da questão de “como o sujeito-leitor significa ao
ler”, para “como o sujeito-leitor significa ao ler no ciberespaço” e, assim, pode se
significar, construindo identidades em meio à pluralidade e à fragmentação, no
espaço fronteiriço da ambivalência. Afinal, o olhar da modernidade líquida é
ambivalente e se contrapõe à idéia de uma cultura da certeza e da
homogeneidade.
O estudo da leitura no hipertexto digital requer também novos olhares, pois
se faz necessário considerar novas relações entre as materialidades significantes
que o constituem. Por isso, cremos que as fundamentações teóricas fornecidas
pelas vertentes que tomam por base a multissemiótica, como é caso dos estudos
da multimodalidade, têm muito a contribuir nesse aspecto, pois nos fornecem
categorias analíticas para a interpretação de outros sistemas semióticos na
constituição dos sentidos que vão além da escrita. Além destes, os elementos
fornecidos pelos estudos referentes à relação entre linguagem e globalização
uma vez que vinculam a linguagem aos jogos de interesse econômico, político e
cultural que figuram nesse contexto globalizado e globalizante e que participam
dos processos discursivos na pós-modernidade, também podem contribuir para o
estudo da leitura da textualidade digital. Pois, nos espaços de fluxos em que
ocorrem, a linguagem ao mesmo tempo em que globaliza, não está inerte à
influência da globalização. E, embora não tenhamos empregado esses estudos
em nosso trabalho, em virtude das delimitações de nossos objetivos,
reconhecemos-lhes suas possíveis contribuições para o campo de pesquisas da
leitura.
Sendo assim, por relacionar presente, passado e futuro, a noção de leitura
como objeto cultural implica a idéia constante de movimento e não de um produto
138
fixo, pois, incorpora o passado e o futuro no processo de negociação do presente.
Então, podemos retomar a proposição introdutória de que um objeto cultural é
aquele objeto cuja função principal é a de remeter à própria cultura, na qual é
possível fazer com que se ouçam as vozes que o habitam não somente as
vozes daqueles que o produziram, mas também as vozes daqueles que o
habitavam e de todos os outros que virão a habitá-lo enquanto seus
interlocutores, como no caso da leitura. E, no estudo da subjetividade que
permeia esse objeto cultural, o sujeito-leitor, percebemos que ela tem história e
como tudo que é histórico sofre transformações constantes. Longe de fixa em
algum passado essencializado, está sujeita ao contínuo jogo da história e da
cultura e, conseqüentemente, de todas as questões envolvidas. Por isso, cada
leitura da leitura como objeto cultural torna-se um campo de possíveis trajetórias,
de passados re-significados e possíveis futuros em que os sujeitos-leitores podem
se engendrar e, na mesma medida, participar do engendramento desse objeto,
em sua relação com os aspectos sócio-históricos que os envolvem e os
constituem.
139
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Universidade Estadual de Campinas, 2002.
145
ANEXO:
12h00 | economia e negócios
Meirelles: BC já injetou US$ 14 bi para prover liquidez
12h00 | economia e negócios
Países desenvolvidos devem 'encolher' 0,3% em 2009, prevê FMI
12h00 | economia e negócios
Redução do número semanal de seguro-desemprego nos EUA
12h00 | mundo
Hungria criará fundo de 2,294 bilhões de euros para estabilizar bancos
12h00 | mundo
Cotações do Banco Central Europeu (BCE)
12h01 | economia e negócios
BC oferta dólares no mercado à vista
12h01 | carros
Verve conceito traz o futuro dos carros compactos da Ford
12h03 | mundo
FMI reduz até 2,2% sua previsão de crescimento mundial para 2009
12h03 | mundo
Análise: Americanos apostam no inexperiente Obama
12h04 | mundo
FMI reduz até 2,2% sua previsão de crescimento mundial para 2009
12h05 | concursos e emprego
340 vagas na PRF: resultado final da redação sai nesta sexta
12h06 | economia e negócios
Governo é solução para a crise, e PAC é 'passaporte para o futuro', diz
Dilma
12h06 | economia e negócios
Negociação para reajuste do preço do minério deve demorar, crê Agnelli
12h11 | economia e negócios
BC vende dólares a R$ 2,146
Matérias com entrada entre 12 e 13h, no box plantão, em
06/11/08, do
portal de notícias G1, da Globo. com. Fonte
:
http://g1.globo.com/Noticias/0,,GVP0-5597-5597,00.html
146
12h11 | mundo
Estilo de Michelle Obama causa polêmica e gera comentários contraditórios
12h12 | economia e negócios
Pela 1ª vez em seis meses, saques superam depósitos na poupança
12h12 | economia e negócios
Dilma: PAC é diferencial do Brasil para enfrentar crise
12h14 | mundo
IBGE prevê queda da safra em 2009 após produção recorde este ano
12h15 | economia e negócios
BCE reduz taxa de juros em meio ponto (3,25%)
12h15 | vestibular e educação
UFABC divulga classificados para a 2ª fase do vestibular
12h15 | são paulo
Homem é preso com cerca de 190 kg de maconha em Barretos
12h15 | concursos e emprego
Nube seleciona candidatos para 1.571 vagas de estágio
12h17 | pop & arte
ESTRÉIA-Em "Quantum of Solace", 007 quer vingança
12h17 | pop & arte
Novo disco de Bruce Springsteen será lançado em janeiro
12h18 | mundo
Procuradoria diz que explosão na Ossétia do Norte foi ataque terrorista
12h18 | política
Ministros do STF analisam decisão de Mendes sobre liberdade a Dantas
12h21 | mundo
Procuradoria diz que explosão na Ossétia do Norte foi ataque terrorista
12h21 | mundo
Trichet observa alívio das pressões inflacionárias na zona do euro
12h22 | mundo
Rice admite que um acordo israelense-palestino é impossível em 2008
12h22 | economia e negócios
FMI prevê recessão nos países industrializados em 2009
12h23 | pop & arte
147
ESTRÉIA-Em "Quantum of Solace", 007 quer vingança
12h23 | pop & arte
ESTRÉIA-"Orquestra dos Meninos" conta história de músico Vieira
12h23 | são paulo
Adolescente que recebeu rim de Eloá tem alta de hospital
12h24 | mundo
Trichet observa alívio das pressões inflacionárias na zona do euro
12h26 | economia e negócios
Governo revê projeção de expansão do PIB para 4% em 2009, diz Fazenda
12h26 | rio de janeiro
Colisão entre cinco veículos complica trânsito no Centro
12h26 | carros
Honda divulga os preços do New Fit, a partir de R$ 52,3 mil
12h27 | economia e negócios
Califórnia adota um projeto de trem de alta velocidade
12h27 | economia e negócios
FMI reduz projeção para PIB do Brasil para 3% em 2009
12h28 | mundo
Soneca de juiz leva à anulação de julgamento na Austrália
12h30 | concursos e emprego
Empresa de marketing cenográfico recruta profissionais
12h31 | economia e negócios
Mercados: Apesar de discurso duro do BC, juros futuros caem na BM & F
12h33 | mundo
Tempestade "Paloma" ameaça se transformar em furacão amanhã e atingir
Cuba
12h33 | economia e negócios
BNDES: saída da crise global será difícil e lenta
12h35 | economia e negócios
Wall Street abre em baixa: Dow Jones -0,55%, Nasdaq -1,15%
12h36 | pop & arte
ESTRÉIA-"Meu Nome é Dindi" revisita passado do cinema nacional
12h39 | economia e negócios
Setor privado já comprou R$ 6 bi em carteira de bancos, diz Febraban
148
12h39 | mundo
Papa busca apoio de mulçumanos para defender valores morais
12h41 | mundo
Eleição de Obama é a vitória dos escravos sobre os brancos, diz Kadhafi
12h42 | brasil
Vai a 24 total de presos em ação no Detran do Ceará
12h42 | ciência e saúde
Teste de drogas para obesidade é cortado por dificuldade com autoridades
12h43 | rio de janeiro
Tráfego é liberado na Rio-Santos após acidente
12h44 | rio de janeiro
Operação contra fraude previdenciária prende 7 pessoas
12h45 | mundo
Medvedev e Berlusconi falam sobre crise financeira antes da cúpula do G20
12h45 | economia e negócios
Meirelles: BC já liberou R$ 47 bi para sistema bancário
12h45 | brasil
Bombeiros capturam jacaré em SC
12h45 | mundo
Procuradoria diz que explosão na Ossétia do Norte foi ataque terrorista
12h46 | são paulo
Adolescentes estão desaparecidas há uma semana na Grande SP
12h46 | economia e negócios
Bolsas de Londres e Paris perdem mais de 3% durante o pregão
12h47 | política
FMI reduz previsão de crescimento do Brasil em 2009 para 3%
12h47 | amazônia
Moradores da floresta de Jamanxim querem acordo para permanecer no
local
12h47 | mundo
FMI reduz previsão de crescimento do Brasil em 2009 para 3%
149
12h48 | economia e negócios
FMI reduz previsão de crescimento do Brasil em 2009 para 3%
12h48 | política
FMI reduz previsão de crescimento do Brasil em 2009 para 3%
12h48 | mundo
FMI reduz previsão de crescimento do Brasil em 2009 para 3%
12h48 | mundo
Produção recorde de cereais não deve criar falsa idéia de segurança, diz
FAO
12h48 | mundo
Reino Unido aprova nova Constituição para as Ilhas Malvinas
12h49 | ciência e saúde
Cientistas decodificam pela 1ª vez genoma de paciente com câncer
12h49 | mundo
Filho de Bin Laden recorre da decisão sobre asilo na Espanha
12h50 | mundo
Reino Unido aprova nova Constituição para as Ilhas Malvinas
12h51 | economia e negócios
Bolsas dos EUA operam em baixa
12h54 | economia e negócios
CNI pede mais prazo para pagamento de PIS/Cofins
12h55 | são paulo
Moradores de rua queimam colchões embaixo de passarela no Centro de SP
12h55 | mundo
Principais notícias AFP
12h55 | mundo
Ataque suicida deixa pelo menos 11 mortos e 40 feridos no Paquistão
12h56 | economia e negócios
Zimbábue lança nota de 1 milhão de dólares
12h58 | tecnologia
Irã investirá US$ 2,5 bilhões em programa de pesquisa com células-tronco
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