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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
A Nação Brasileira em cena
Jussara Bittencourt de Sá
Florianópolis
2005
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
DOUTORADO EM LITERATURA
ORIENTADOR: PROF. DR. JOÃO HERNESTO WEBER
DOUTORANDA: JUSSARA BITTENCOURT DE SÁ
A Nação Brasileira em cena
Texto apresentado à Banca de Defesa do Doutorado em Teoria Literária,
Curso de Pós-Graduação em Literatura da UFSC.
Florianópolis
2005
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3
DEDICATÓRIA
A memória de José Umbelina de Bittencourt e Odílo Soares.
4
AGRADECIMENTOS
A minha família, pelo carinho e compreensão nos momentos tão especiais de minha vida.
Ao
Prof. Dr. João Hernesto Weber, pelo apoio e ensinamentos, fundamentais para a
concretização desta Tese.
A
Elba Ribeiro, Secretária do Curso de Pós-Graduação, por sua amizade, tão importante
nesta minha jornada.
Aos professores,
Cláudia Gomes, Cláudio Damasceno Paz, Helena Tornquist, Maria
Felomena de Souza Espíndola, Ingo Voese, Tânia Ramos
e Wilson Schuelter, pelo
incentivo, essencial nesta trajetória.
5
RESUMO
Esta tese tem como objetivo apresentar uma análise das concepções de nação e de
nacionalidade em peças do teatro brasileiro, circunscritas à segunda metade do século XIX
e à primeira década do século XX. Procura-se, em suma, evidenciar que o teatro cumpriu
papel essencial para a representação/ constituição da Nação, colocando em cena diferentes
concepções sobre a própria nacionalidade, através das falas, ambientações e representações
dos tipos sociais que compunham a sociedade brasileira da época. Em confronto/ diálogo
com a cena brasileira, buscou-se, também, perseguir, nas peças, a representação que se faz
do estrangeiro, seja do estrangeiro que para se desloca a negócios, seja do estrangeiro
que para vem como imigrante. A presença do estrangeiro no teatro brasileiro do século
XIX e início do século XX foi, aliás, um dado essencial no recorte que se fez no
corpus do
teatro brasileiro em estudo: procurou-se a presença do “Outro” para refletir-se sobre a
representação da própria Nação. Tanto que, quando da elaboração da pesquisa
bibliográfica, em cerca de setenta e quatro peças editadas no referido período, utilizou-se
como critério de seleção para a análise das dezoito peças aqui discutidas justamente a
presença de personagens estrangeiras. No teatro, e essa é uma afirmação que destaca a
produção teatral das demais, o estrangeiro é, em suma, e a meu ver, peça fundamental para
a própria demarcação do nacional. A presença de estrangeiros, em confronto, conflito,
negociações com o elemento nacional, este visto em suas diferentes dimensões de classe,
constitui-se, nesse sentido, em chave essencial para a compreensão do imaginário sobre a
nação que se coloca em cena.
Palavras-chave: Nação, nacionalidade, teatro, classe social, personagem brasileira,
personagem estrangeira.
6
ABSTRACT
The objective of this doctoral dissertation is to present an analysis of the conceptions of
nation and nationality in Brazilian theater plays, restrained between the second half of the
XIX century and the first decade of the XX century. In short, evidence is sought to
demonstrate that the theater has fulfilled an essential role in the representation/constitution
of the Nation, placing on the stage different conceptions of the nationality itself, through
the creation of favorable surroundings, speeches, and representations of the social types that
formed the Brazilian society of that time. In the confrontation and dialogue with the
Brazilian scene, the representation of the outsiders, either the foreigners who come on
business, or the ones who come as immigrants were sought to be represented in the plays.
The presence of the foreigner in the Brazilian theater between the XIX century and
beginning of the XX century was, by the way, essential data in the clipping of the Brazilian
theater corpus under study: The presence of the "Other" was sought to reflect the
representation of the Nation itself. When carrying out the bibliographical research, the
presence of foreign characters was taken as the criterion for analysis of eighteen plays out
of about seventy-four published during the mentioned period. The presence of foreigners in
the theater is fundamental for demarcating the national individual and this statement
highlights the playwriting among other productions. The presence of foreigners in
confrontation, conflict, negotiation with the national element taken in its different class
dimensions, is an essential key for the understanding of the imaginary of the nation placed
on the stage.
Keywords: nation, nationality, theater, social class, Brazilian character, foreign character.
7
Todos sabem de que elementos heterogêneos se compõem a população
brasileira, e os riscos iminentes que pressagia essa falta de unidade. Não é
somente a diferença do homem livre para o escravo; são as três raças humanas
que crescem no mesmo solo, simultaneamente e quase sem se confundirem; são
três colunas simbólicas que, ou hão de reunir-se, formando uma pirâmide eterna,
ou tombarão esmagando os operários! Penso eu (e êste pensamento parece-me
digno de ser a divisa de todos aquêles que trabalham no magnífico edifício da
arte nacional), penso eu que o presente deve ser preparador do futuro; e que é
dever de quantos têm poder e inteligência, qualquer que seja a sua vocação e o
seu pôsto, do poeta tanto como do estadista, apagar essas raias odiosas, e
combater os preconceitos iníquos que se opõem à emancipação completa de
todos os indivíduos nascidos nesta nobre terra...Poetas, artistas, cultivadores do
belo, semeadores incógnitos do futuro, não esmoreçamos. Esta época vai rica de
materialismo, de descrença e de ignomínias políticas, mas um dia erguer-se-á o
sudário gelado desta nova Pompéia, e do cadáver subsistirá o crânio, sede da
inteligência!
Paulo Eiró
1 de setembro de 1862
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1.
1.1
1.2
1.3
1.4
1.4.1
1.4.2
1.4.3
1.4.4
1.4.5
1.4.6
1.4.7
1.4.8
O TEATRO NA CENA BRASILEIRA
O teatro brasileiro em formação: do jesuítico à comédia e ao drama
O teatro e a sua relação com a sociedade brasileira do século XIX
A personagem no teatro: um fio para as tramas
Os autores e suas tramas em cena
Martins Pena:
Judas em Sábado de Aleluia (1844), As casadas solteiras
(1845), Os dous ou o inglês maquinista (1845)
José de Alencar:
O demônio familiar (1857)
Joaquim Manoel de Macedo:
Luxo e vaidade (1860), A torre em concurso
(1863),
Amor e pátria (1863)
Paulo Eiró:
Sangue limpo (1863)
Visconde de Taunay:
Amélia Smith (1886)
França Júnior:
Como se fazia um deputado (1863), Ingleses na costa (1864),
O defeito de família (1870), Dois proventos em um saco (1873), O tipo
brasileiro
(1872), Caiu o Ministério! (1882)
Artur Azevedo:
Cocota (1885)
Machado de Assis:
Quase Ministro (1863), Lição de Botânica (1906)
28
29
42
46
51
52
57
60
65
68
70
77
81
2.
2.1
2.1.1
2.1.2
2.1.3
2.2
2.2.1
2.2.2
2.2.3
2.2.4
2.2.5
A NAÇÃO E AS NACIONALIDADES NO TEATRO BRASILEIRO
A nação e os brasileiros: os segmentos sociais
A representação dos escravos
A representação das camadas intermediária
A representação dos senhores no teatro do século XIX: a elite branca
“nacional”
A nação e os estrangeiros
O estatuto ambíguo do português
Estrangeiros dos países imperialistas na cena brasileira
Os estrangeiros em casa
Os estrangeiros e a sua inclusão na nação
Os imigrantes em cena
85
86
87
112
121
143
144
147
158
164
180
9
3.
3.1
3.2
3.3
3.4
3.5
3.6
3.6.1
3.6.2
A NAÇÃO EM CENA
Colocando a questão
Sentimentos díspares na nação recém liberta
A nação e a fratura: a escravidão e o futuro do país
Pobres, livres, nacionais
Outros olhares sobre a nação: o Estado Nacional como o lugar dos interesses
dos grupos dominantes
O estrangeiro e a nação brasileira
O olhar do imperialista
O estrangeiro como imigrante
189
190
196
201
209
212
223
223
228
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA
BLIBLIOGRAFIA TEÓRICA
BIBLIOGRAFIA FICCIONAL
ANEXO
234
248
248
252
254
10
INTRODUÇÃO
A proposta deste estudo é verificar como se constroem as concepções de nação que
adentram a cena do teatro no Brasil no século XIX e inícios de século XX. Para tanto,
analiso as falas das personagens ditas “nacionais”, e também as consideradas
“estrangeiras”, na tentativa de evidenciar como os autores teatrais, através das personagens
colocadas em cena, buscam representar a brasilidade através do mapeamento das diferentes
classes sociais locais em sua interação com diferentes nacionalidades estrangeiras, no
intuito de, seja pelo contraponto, seja pela confluência, construírem um retrato da Nação.
A escolha das peças teatrais, e não de outros discursos sobre a nação, como objeto
de análise decorre do fato de se entender o teatro como um elemento essencial para a
representação da Nação, pela própria importância que o teatro assumia na vida social do II
Império, em termos de sociabilidade, comportamentos, construção/imposição de hábitos e,
no caso, ideologia nacional. Nesse sentido, a análise das peças teatrais impõe-se como
central, com relevância tamanha, senão maior, do que as representações da nação
veiculadas pela prosa, pela poesia, pela iconografia e pela ensaística veiculada,
11
normalmente, em jornais e revistas. O teatro colocava em cena, enfim, e encenava, a
própria nação, através da interação imediata, sem deixar de ser mediada por recursos
cênicos, com o público que se formava e afirmava na segunda metade do século XIX e
inícios do século XX.
Normalmente, os estudos dessa natureza concentram-se na prosa – romance, conto e
crônica e na obra poética de muitos dos autores da época em questão, sem destacar,
devidamente, que eles também escreveram para o teatro. A crítica especializada se
debruçou antes sobre a prosa e a poesia do que sobre as obras com finalidade cênica. Minha
tese vai, nesse sentido, na contramão desse cânone crítico: o palco em que se encenou a
nação foi, também, e com isso não pretendo diminuir outras manifestações artísticas, o
teatro.
1
Observei, também, que muitos dos textos produzidos para o teatro não são,
contemporaneamente, de fácil acesso ao público, pois receberam poucas edições. Alguns
sequer foram reeditados, outros tiveram escassas reedições, o que dificulta seu acesso até
mesmo no meio acadêmico. Um exemplo clássico é o do drama
Sangue limpo, de Paulo
Eiró, que teve apenas duas edições, uma em 1863 e outra em 1949.
2
Isso, por si só, já diz do
relativo descaso para com o teatro na composição do cenário nacional, o que reforça, no
contraponto, o meu intento: estudar justamente essas manifestações teatrais, e, como
1
Exemplos de tal observação seriam os textos de Machado de Assis, Joaquim Manoel de Macedo e José de
Alencar. No caso de Machado, o romance e o conto obtiveram uma grande atenção por parte da crítica e
foram amplamente divulgados. Entretanto, segundo Helena Tornquist, são poucos os estudos críticos que,
tendo por objeto a obra de Machado, dedicam atenção aos textos dramáticos, menos ainda à comédia.
TORNQUIST, Helena.
As novidades velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia francesa. São
Leopoldo: UNISINOS, 2002, p. 15.
2
O mesmo ocorre com Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar, cujos romances receberam ampla
divulgação e circulação. Os textos produzidos para o teatro, no entanto, tiveram parcas edições e pouco olhar
da crítica. Para Décio de Almeida Prado, por exemplo, Paulo Eiró é um autor “pouco lembrado” dentre os
12
adendo, no desejo de contribuir para a reavaliação de sua importância, recolocar em
circulação as peças do período, o que se faz aqui pela sua reprodução por meio eletrônico.
Outro dado que foi relevante para eleger as peças teatrais como instrumento para a
análise da nacionalidade que aqui se pretendia construir é o fato de o teatro ser um gênero
para a encenação, para o palco, o que inclui, nos diálogos e nas performances das
personagens, peculiaridades inerentes ao modo de vida e concepções de mundo dos
diversos segmentos sociais que representam a sociedade brasileira da época do Império e
do início da República, muitos deles, inclusive, talvez não apanhados pela prosa e pela
poesia, dentre outros.
Um outro aspecto que também chamou a atenção, depois da leitura de cerca de
setenta e quatro peças teatrais,
3
foi perceber que em várias peças ocorre a presença
dramaturgos brasileiros. PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro: 1570 a 1908. São
Paulo: EDUSP, 2003, p. 68.
3
Lista dos autores e suas respectivas obras, que foram lidas durante a pesquisa:
Martins Pena (1815-1848): O noviço (1844), O Judas em Sábado de Aleluia (1844), O Juiz de Paz da roça
(1845), As casadas solteiras (1845), Os dous ou o inglês maquinista (1845), Quem casa, quer casa (1845).
Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882): O cego (1825), O primo da Califórnia (1855), Luxo e vaidade
(1860), Amor e pátria (1863), A torre em concurso (1863).
Gonçalves Dias (1823-1864): Patkull (1843), Beatriz Cenci (1844-1845), Leonor de Mendonça (1846),
Boabdil (1850).
José de Alencar (1829-1877): O demônio familiar (1857).
Álvares de Azevedo (1831-1852): Macário (1851).
Paulo Eiró (1836-1871): Sangue limpo (1863).
França Júnior (1838-1890): Meia hora de cinismo (1861- Edição 1870), Como se fazia um deputado (1863),
Ingleses na costa (1864), O defeito de família (1870), Amor com amor se paga (1871), Maldita parentela
(1871), O tipo brasileiro (1872), Dois proveitos em um saco (1873), O tipo brasileiro (1872), Entrei para o
Clube Jácome
(1877), Caiu o Ministério! (1882), A lotação dos bondes (1885).
Machado de Assis (1839-1908): Hoje avental, amanhã luva (1859), Desencantos (1861), O caminho da
porta
(1862), O protocolo (1863), Quase Ministro (1863), As forças caudinas (1863-1865), Os deuses de
casaca
(1866), O bote de rapé (1878), Tu só, tu, puro amor (1881), O melhor remédio (1884), Viver! (1884),
Lágrimas de Xerxes (1899-1900), Uma ode de Anacreonte (1901), Antes da missa (1902), Não consultes
médico
(1901), Lição de botânica (1906).
Visconde de Taunay (1843-1889): Amélia Smith (1886).
Castro Alves (1847-1871): Gonzaga ou A revolução de Minas (1876).
Artur Azevedo (1855-1908): Amor por Anexins (1870), Uma véspera de reis (1875), A pele do lobo (1877),
A filha de Maria Angu (1876), A casadinha de fresco (1876), Abel, Helena (1877), O Rio de Janeiro em 1877
(1877), Nova viagem à Lua (1877), A jóia (1879), Os noivos (1880), O Califa na Rua do Sabão (1880), A
Princesa dos Cajueiros
(1880), O Liberato (1881), A porta da botica (1881), Casa de Orates (1882), Um
13
significativa de personagens tidas como estrangeiras atuando na nação. Neste sentido, o
recorte que aqui se intentou tinha em mira justamente este fato: a nação que aqui se
representava encontrava-se em constante diálogo com o “Outro”, tendo-o como
contraponto, instituindo-se diante dele, em confronto com ele, e, também, em interação
com ele.
A partir dessas considerações, propus-me examinar tais personagens “estrangeiras”,
estabelecer suas semelhanças e contrastes com os “brasileiros”, para tentar apreender que
concepções de nação são anunciadas, pelos autores teatrais, no panorama brasileiro do
século XIX e início do século XX. Nessa trama de relacionamentos, onde são retratados
interesses muitas vezes antagônicos entre “brasileiros” e “estrangeiros”, é que se arquiteta a
configuração do que era desejado como “a Nação”.
Considero importante, também, registrar que a demarcação desse período decorre da
observação que, nos registros oficiais da História do Brasil, a Independência, declarada em
1822, é considerada marco do término do período colonial e da institucionalização do
Estado Nacional brasileiro, enquanto a Proclamação da República, em 1889, pode ser
considerada como ponto de inflexão na história nacional, na medida em que plenamente
independente do Império Português, ao se considerar o exílio da família imperial,
pertencente à Casa de Bragança, e a instituição do trabalho formalmente livre, com a
Abolição, que precedeu a própria instituição do regime republicano no País.
João Hernesto Weber afirma “que o ponto nodal da nacionalidade é a criação do
Estado nacional”, pois, ao instituir-se o Estado, legaliza-se a nacionalidade e desvincula-se
roubo no Olímpio (1883), A flor-de-lis (1882), A mascote na roça (1882), O escravocrata (1884), O
mandarim
(1884), Uma noite em claro (1884), Cocota (1885), O carioca (1886), O bilontra (1886), A
donzela Teodora
(1886), A Capital Federal (1897).
14
a identidade do povo da referência de nação a que estava vinculado.
4
Acrescenta-se aqui,
portanto, o outro “ponto nodal” para a constituição da nacionalidade: a abolição do trabalho
escravo e a Proclamação da República. É nesse período, enfim, dilatado no tempo, que a
questão da institucionalização da nação se torna crucial, através de confrontos de interesses
políticos e embates político-ideológicos, sendo, repetindo, o teatro uma arena privilegiada
para a representação desses confrontos e embates, de onde deverá imergir a representação
da própria idéia de nação.
Ao direcionar este estudo para a literatura teatral brasileira, que possui oficialmente
sua história inaugurada com as primeiras manifestações cênicas elaboradas pelos jesuítas,
destaco, ainda, que, a partir do século XIX, com a afirmação gradativa do sentimento de
nacionalidade, o teatro se afirma como forma de representação da identidade brasileira e
estabelece com determinados segmentos sociais uma espécie de diálogo “civilizador”. O
que significa que os escritores da época apresentavam/possuíam, como característica, a
promoção de um ideário do que se desejava fosse o brasileiro, que registrasse e
apresentasse os caminhos para a edificação do perfil do brasileiro. O teatro, dizendo de
outro modo, e no sentido do que Antonio Candido afirma sobre a literatura brasileira em
geral, mostrou-se absolutamente “empenhado”, imaginando os autores, ao colocarem o
Brasil em cena, muitas vezes em confronto com o “Outro”, ou nele se retratando, estarem
contribuindo efetivamente para a construção desse mesmo Brasil.
5
É preciso dizer um
pouco mais desse “Outro” e do recorte que se fez para análise: as peças teatrais, delimitadas
ao referido período, apontam, constantemente, conforme encionado, para um elemento
4
WEBER, João Hernesto. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografia literária
brasileira. Florianópolis: Editora UFSC, 1997, p. 28.
5
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Vol. I (1750-1836). Belo
Horizonte: Itatiaia, 1987, p. 27.
15
para mim, pelo menos, altamente significativo: a presença de personagens que representam
figuras estrangeiras.
A inserção dessas personagens nos enredos possibilita refletir acerca dos motivos
que levaram os autores brasileiros a situá-las em textualidades que se propõem discutir os
impasses e a destinação do projeto de formação e consolidação da identidade nacional
brasileira. Nessa representação do “Outro”, do que não é brasileiro, os autores estariam, a
meu ver, desvelando, de certa maneira, as peculiaridades das representações dos brasileiros,
em diferentes segmentos da sociedade, promovendo, com isso, a afirmação de sua
identidade pela presença do “Outro”, espécie de uma auto-referência especular. Segundo
Mikhail Bakhtin, “nosso próprio pensamento nasce e forma-se em interação e em luta com
o pensamento alheio”.
6
Creio que o pensamento de Ítalo Calvino também contribui para orientar a reflexão
que aqui se propõe. Calvino afirma que “não se pode observar uma onda sem levar em
conta os aspectos complexos que ocorrem para formá-la e aqueles também complexos a
que ensejo”.
7
Em outras palavras, o autor enfatiza a importância de se procurar
compreender não os elementos formadores, mas também os seus desdobramentos, tendo
em vista as complexidades e peculiaridades inerentes ao processo de criação. Nesse sentido,
busco estabelecer uma analogia entre os aspectos complexos das ondas, referidas por
Calvino, e os da textualidade teatral dos autores das peças em estudo, procurando discernir
o seu
locus, suas personagens e suas falas, que se organizam como paisagem polifônica,
enquanto representação de um momento peculiar da realidade histórico-social e política do
Brasil. O que significa, em última instância, que a construção de uma tradição nacional no
6
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 317.
16
teatro brasileiro não requer uma continuidade retilínea na instituição do imaginário, no
caso, da “nação”. Pelo contrário, é diálogo, é retomada de posições, não necessariamente
coincidentes. É polifonia, enfim.
Quanto a essa tradição teatral, conforme João Roberto Faria, a leitura de peças do
período enfocado leva a observar que a criação de um teatro nacional tinha por objetivos a
conquista do público, o desejo de alcançar um gosto estético compatível com o das
sociedades tidas como modelares, principalmente a francesa, e também sedimentar o valor
dos sentimentos patrióticos.
8
Colocar o brasileiro em cena, diante do “Outro”, poderia
significar, nesse sentido, estabelecer, por aproximações, afastamentos, recortes, um ideal de
brasilidade, no empenho constante pela construção da Pátria. É como afirma Flávio Aguiar,
quando se refere à dramaturgia local: ele comenta que ela foi se consolidando
gradativamente no esforço de criação e de efetivação de um teatro nacional brasileiro. Os
escritores, atores e críticos envolvidos com as artes cênicas, no período em estudo,
empenharam-se num projeto literário que se adequasse à então “novidade romântica” e
também cativasse o público para a causa do teatro nacional.
9
Um outro aspecto relevante para o objetivo deste estudo refere-se à discussão sobre
a própria possibilidade de se produzir uma literatura teatral brasileira. De acordo com
Flávio Aguiar, os escritores no século XIX entendiam que essa arte, para ser concebida
como nacional, deveria estar apoiada em três pilares: autores nacionais, temas considerados
nacionais e companhias de teatro com atores nacionais.
10
Destarte, a Companhia Dramática
7
CALVINO, Ítalo. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 8.
8
FARIA, João Roberto. Idéias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 19.
9
AGUIAR, Flávio. Antologia do teatro brasileiro: O teatro de inspiração romântica. São Paulo: SENAC,
1997, p. 7.
10
Ibid., p. 7-8.
17
de João Caetano, em 1838, que apresentou a tragédia Antônio José ou O poeta e a
inquisição
, de autoria do brasileiro Gonçalves de Magalhães (1811-1882), teria exibido a
primeira tragédia brasileira, com tema nacional e encenada por atores nacionais. No
entanto, Décio de Almeida Prado afirma que foi o drama
Leonor de Mendonça, escrito por
Gonçalves Dias, em 1846, a primeira “obra-prima” do teatro brasileiro, genuinamente
brasileiro.
11
Claro, a discussão sobre a nacionalidade da literatura brasileira, aqui incluído o
teatro, vem de longa data, e não é o caso, aqui, de se rastrear a questão. No que se refere à
“novidade romântica”, referida por Flávio Aguiar, cabe ressaltar que, na literatura, ao longo
do processo de transferência das idéias e ideais românticos da Europa para o Brasil, estes
vão sofrer importantes deslocamentos de caráter estético e, principalmente, ideológico.
Mesmo assim, de acordo com Roberto Schwarz, “caberia ao escritor, em busca de
sintonia, reiterar esse deslocamento em nível formal, sem o que não fica em dia com a
complexidade objetiva de sua matéria por próximo que esteja da lição dos mestres”.
Neste sentido, Schwarz comenta que, ainda que houvesse dependência e buscassem uma
proximidade com os modelos europeus, anunciavam-se “categorias impróprias”, diferença
que aparecia “involuntariamente e indesejadamente, pelas frestas, como defeito”, mesmo
tentando-se contê-las.
12
Na tentativa de uma literatura nacional, “movimentos de uma
reputada chave que não abra nada têm possivelmente grande interesse literário.
E se por um lado, José de Alencar, “fiel à realidade observada (brasileira) e ao bom
modelo do romance (europeu) reedita sem sabê-lo e sem resolvê-lo, uma incongruência
11
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro, op. cit., p. 47.
12
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 36.
18
central em nossa vida pensada”, por outro, afirma Schwarz, “veremos que em Machado a
chave será aberta pela fechadura”. Em outro âmbito, e noutra chave, não seria a presença do
estrangeiro, no caso do teatro, uma maneira, justamente, de tratar dos possíveis
descompassos, encaminhando uma possível solução para a representação da nacionalidade?
Para pensar o contexto de discussão em torno do debate sobre a construção da
identidade nacional brasileira, no período mencionado, observando suas peculiaridades e
complexidades, dentro do recorte proposto, e tendo em mente a possibilidade dessa “outra
chave”, analiso as peças:
O Judas em Sábado de Aleluia (1844), As casadas solteiras
(1845), Os dous ou o inglês maquinista (1845), de Martins Pena; O demônio familiar
(1857), de José de Alencar; Luxo e vaidade (1860), Amor e pátria (1863) e A torre em
concurso
(1863), de Joaquim Manoel de Macedo; Sangue limpo (1863), de Paulo Eiró;
Amélia Smith (1886), do Visconde de Taunay; Como se fazia um deputado (1863), Ingleses
na costa
(1864), O defeito de família (1870), O tipo brasileiro (1872), Dois proventos em
um saco
(1873) e Caiu o Ministério! (1882), de França Júnior; Cocota (1885), de Artur
Azevedo;
Quase Ministro (1863) e Lição de botânica (1906), de Machado de Assis. A
eleição dessas dezoito peças teatrais, enfatizo, deu-se por encontrarem-se, em seus enredos,
personagens estrangeiras, ou alusões a elas, e a ação se desenvolver em cenário brasileiro.
É a presença do estrangeiro (ou alusão a ele) que imprime um elemento essencial para a
demarcação da própria nação, imagina-se.
Observo, também, que, nessa perspectiva, não são inseridas na análise obras de
Gonçalves Dias, de Álvares de Azevedo e Castro Alves por não contemplarem as
especificidades demarcadas para este estudo. E, ainda, que de alguns autores foram
19
selecionadas mais de uma obra, justamente por contemplarem diferentes tipos de
estrangeiros e a discussão sobre a nação brasileira. Assim, a análise dessas obras procura
observar, dentre outros aspectos, através das personagens e das tramas, os modos de se
compreender e até de se nomear, historicamente, as concepções e os processos de
afirmação da nacionalidade e da nação. Nesse sentido, procuro evidenciar que a
personagem estrangeira torna-se elemento fundamental para a análise que se persegue, na
medida em que o local, o nacional, se afirma na presença do “Outro”. Decorre daí, portanto,
dentre as setenta e quatro, a eleição desse conjunto de dezoito peças.
Saliento, também, que, nos enredos das peças, pelas falas e ações das personagens, é
possível identificar diferentes tipos de “brasileiros”, construindo indicativos do lugar social
que ocupam na estrutura da sociedade. Neste sentido, busca-se apreender a representação
que se faz da clivagem social existente entre os diferentes segmentos sociais que
compunham a nação em suas possíveis afirmações/infirmações diante do “Outro”, o
estrangeiro. Essa análise, supõe-se, é de fundamental importância para que se possa, no
decorrer do trabalho, discutir a própria construção da imagem (ou imagens) de nação no
teatro brasileiro do período, ponto crucial de minha tese.
Importa, ainda, destacar que a opção por realizar uma leitura mais aprofundada da
concepção de nação implícita nos textos das peças, bem como das peculiaridades das
personagens que expressam os indicadores dos discursos sobre a formação da identidade
nacional brasileira, leva em conta os aspectos formadores da idéia de nação que se
pretendeu tornar hegemônica no contexto da formação e consolidação do Estado brasileiro.
Qual nação, afinal, o teatro põe em cena?
20
A idéia de nação representada nas falas das personagens das peças estudadas pode
corresponder ao que pensa o autor e representar conteúdo social, que, conforme Bakhtin,
a enunciação é o produto da interação de indivíduos socialmente organizados, pois sua
natureza é social. Nesse caso, interessa pensar também se a criação de diálogos para as
peças teatrais pode ser associada à concepção de Bakhtin, de que a enunciação não existe
fora de um contexto sócio-ideológico,
13
e, por isso, neste caso em particular, pergunta-se se
o autor teatral anunciaria um “horizonte social” bem definido, pensado e dirigido a um
auditório social também definido, de onde, pelo diálogo, se construiria um imaginário de
uma determinada nação.
Conforme Bakhtin, toda enunciação completa é constituída de significação e de
sentido. Esses dois elementos integram-se em um todo e sua compreensão é possível na
interação.
14
Por isso procura-se, neste estudo, observar como os autores brasileiros
engendram os diálogos, se de fato um caráter dialógico nessas encenações, e, a partir
daí, analisar como representam a sociedade através dos textos, pois as falas de um
personagem podem revelar diferentes dimensões do discurso hegemônico.
Neste sentido, cabe destacar o contexto histórico do século XIX, marcado pela
Independência (1822), Abolição da Escravidão (1888) e pela Proclamação da República
(1889). Tais acontecimentos tornam-se emblemáticos para se refletir sobre a enunciação da
nacionalidade que se delineia nas peças teatrais.
Em
Instinto de nacionalidade, Machado de Assis, referindo-se ao teatro brasileiro,
justifica o pouco espaço que ele ocupa em seu texto, pois acredita não haver, naquela
época, teatro brasileiro. Segundo Machado de Assis, quase não se escrevia e/ou
13
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999, p 36.
21
representavam peças brasileiras. Em decorrência, na sua perspectiva, a discussão sobre o
teatro brasileiro poderia “reduzir-se a uma linha de reticências”.
15
Entretanto, acredito que
Machado de Assis sinaliza, com essa referência, para a complexidade de interpretações e a
continuidade que pode advir das reticências, tomando-se-as como um elemento passível de
desdobramentos
a posteriori. Em outras palavras, algo que não está acabado, mas em
construção. Embora reconhecendo que o pouco relevo dado por Machado ao teatro em seu
conhecido ensaio crítico possa ter contribuído para a relativa escassez de estudos sobre o
teatro do século XIX na crítica local, foi tentando desvendar essa linha de reticências que
elaborei a leitura das peças teatrais selecionadas.
Partindo dessas considerações, o presente estudo apresenta, no primeiro capítulo,
algumas reflexões sobre o Teatro, mais especificamente o brasileiro, seu contexto a partir
do teatro de Anchieta, chegando à comédia e ao drama do século XIX. Afirma-se que os
tipos teatrais e as personagens que transitam nas obras eleitas para o estudo aparecem com
as peculiaridades da comédia, do drama e da opereta. Procura-se evidenciar o papel do
teatro na sociedade do século XIX, salientando seu lugar na vida social da Corte do Rio de
Janeiro, em um contexto que era concebido como a “Paris dos Trópicos”.
16
Na seqüência,
destaca-se que, nas obras teatrais, as personagens se configuram, através de suas falas e
ações, como elementos importantes para possíveis apreensões do pensar e do agir na
14
Ibid., p 36-37.
15
No entanto, mesmo tendo dado pouco espaço à crítica teatral, Machado exclui desse contexto, dentre
outros, dramas de Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar, e as comédias de Martins
Pena, que ele considerava com “talento sincero e original”. ASSIS, Machado de.
Instinto de nacionalidade e
outros ensaios
. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999, p. 31-32.
16
Sobre a “Paris dos trópicos”, Lilia Moritz Schwarcz coloca que “na verdade, toda a urbanização da cidade
vivia uma verdadeira revolução. O modelo era a Paris burguesa e neoclássica, mas a realidade local oscilava
entre bairros elegantes e as ruas de trabalho escravo. (...) a perfumaria Desmarais, que não permitia o calor
dos trópicos e a falta de banhos gerassem um odor considerado “natural”. SCHWARCZ, Lilia Moritz.
As
barbas do Imperador
: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 106-
107.
22
sociedade brasileira do século XIX e início do século XX. Anunciam-se, ainda, algumas
especificidades sobre os autores e suas obras. Os resumos das peças eleitas para este estudo
recebem aqui destaque, contemplando-se, neles, um breve panorama do enredo, o elenco
das personagens, a sua ambientação e a época da ação.
O segundo capítulo elabora uma análise das personagens brasileiras e estrangeiras,
considerando o lugar que ocupam na hierarquia social. Os brasileiros são analisados no
contexto dos segmentos sociais de que fazem parte, considerando, para tanto, o recorte
histórico-social apontado por Roberto Schwarz
17
e Maria Sylvia de Carvalho Franco.
18
Um
dos aspectos que se enfatiza nessa abordagem é a representação da figura do escravo,
considerando, para tanto, o relevo dado, na época, às discussões sobre a escravidão na
constituição da nacionalidade. Para tanto, neste capítulo, analisam-se as peças
Sangue
limpo
(1863), de Paulo Eiró, O demônio familiar (1857), de José de Alencar, e Os dous ou
o inglês maquinista
(1845), de Martins Pena.
Cabe ressaltar que, nas referidas obras, a discussão sobre a representação do escravo
adquire desdobramentos diferenciados. Enquanto Eiró apresenta as dissonâncias no estatuto
dos brasileiros, cuja liberdade fora recém-proclamada, trazendo à cena os maus tratos com
os negros cativos, em uma espécie de denúncia sobre a institucionalização da diferença
discriminadora como empecilho para a concepção e prática da nacionalidade legal, social e
cultural, Alencar justifica o instituto da escravidão. Conforme Sidney Chalhoub, para
Alencar “a escravidão é a chave de todo um modo de vida, não necessariamente mau”.
19
Martins Pena, por sua vez, além das agressões ao escravo, traz à cena o tráfico negreiro e a
17
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 1997.
18
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1974.
19
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Cia da Letras, 2003, p.196.
23
degradação social do escravo, numa representação da contaminação do tecido social pela
escravidão.
Na seqüência, examinam-se as representações das personagens pertencentes ao
segmento social intermediário, quando entram em cena, nas peças
O Judas em Sábado de
Aleluia
(1844), de Martins Pena, e em Os ingleses na costa (1864), de França Júnior. As
precárias condições sócio-econômicas da camada intermediária emergem destes enredos,
onde cada autor representa as artimanhas utilizadas pelos seus componentes para
manterem-se em equilíbrio frente às dificuldades, atravessando a vida numa espécie de
arame circense ou na popular “corda bamba”. É dado, aqui, destaque à categoria dos
agregados e dos dependentes de favores de parentes. Eles não se configuravam como
proprietários ou tampouco proletários; seu trânsito na vida social acontece por intermédio
do favor. Conforme Roberto Schwarz, “o favor é, portanto, o mecanismo através do qual se
reproduz uma das grandes classes sociais, envolvendo também outra, a dos que têm”.
20
Tal
mecanismo atravessava as profissões, a política, o comércio e a vida urbana.
Ainda no que diz respeito à leitura das representações dos brasileiros, procura-se
fazer uma análise da elite branca da sociedade da Corte e da interiorana. Destaca-se, neste
enfoque, o exame dos brasileiros “nacionalistas” e “estrangeirados”, especialmente nas
peças:
Os dous ou o inglês maquinista (1845), O tipo brasileiro (1872), Amor e Pátria
(1863), A torre em concurso (1863), O defeito de família (1870), Luxo e vaidade (1860), O
demônio familiar
(1857) e Sangue limpo (1860). Analisa-se aí a ascendência e influência de
indivíduos de nações imperialistas sobre personagens brasileiras, pertencentes a segmentos
da classe social dominante. Por outro lado, procura-se examinar o espírito nacionalista de
algumas personagens ante o deslumbramento de outras com o estrangeiro. A composição
24
dos matizes e formas que retratam as personagens brasileiras recebem novas molduras neste
capítulo. Ao se referir à moldura, não se estabelece uma caracterização uníssona do
nacional brasileiro, mas uma caracterização marcada pelas diferenças que se anunciam na
construção dos brasileiros, através de suas falas e imagens que produzem sobre si e o outro,
brasileiro ou estrangeiro.
No âmbito dos estrangeiros, estes são avaliados a partir de sua nacionalidade e do
objetivo de seu deslocamento para o Brasil. Nessa perspectiva, destacam-se o estrangeiro
imperialista, os serviçais “civilizadores” e os trabalhadores imigrantes. As obras de teatro
do século XIX também sinalizam os efeitos da complexidade dos tempos modernos sobre a
organização da vida em sociedade. Os autores apontam, através das personagens que
representam os estrangeiros, seus espaços e suas delimitações, a ultrapassagem de
fronteiras que, na concepção de Jaques Leenhardt,
21
seriam os limites, intervalos, margens,
bordas, apropriações dotadas de todos os valores políticos, simbólicos, religiosos. São as
fronteiras, nesse sentido, bordas dotadas de valores e definidas pelo homem, que
determinarão o aqui e o lá. Pensar sobre essa imagem, contida na presença do estrangeiro
na cena brasileira, possibilita também refletir sobre os diferentes engendramentos que dela
decorrem e para ela convergem.
Desta forma, ainda no segundo capítulo, abre-se espaço para a leitura das
representações dos estrangeiros. Primeiramente, a partir das peças
Sangue Limpo (1863), de
Paulo Eiró, e
Amor e pátria (1863), de Joaquim Manoel de Macedo, ambientadas no
período da Proclamação da Independência, cujos enredos enfatizam o estatuto ambíguo
atribuído ao português colonizador neste processo. Examinam-se, nestes enredos, as
20
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, op. cit., p.16.
21
LEENHARDT, Jaques. A invocação do terceiro espaço. Cult, n. 45. São Paulo: Lemos, 2001, p. 19.
25
diferentes percepções e situações das personagens estrangeiras, especialmente os
portugueses que não aceitam a cidadania brasileira, num confronto entre a emancipação
política do Brasil e os resíduos do domínio de Portugal.
Dando prosseguimento ao exame das personagens estrangeiras, verifica-se também
a presença de personagens de diversas nacionalidades com interesses específicos em
relação ao Brasil e aos brasileiros. Inicialmente, observam-se as concepções e estereótipos
que advêm das representações das personagens brasileiras nas obras
Caiu o
Ministério!
(1882), Quase Ministro (1863), O tipo brasileiro (1872) Os dous ou o inglês
maquinista
(1845). Analisam-se os diferentes tipos que os autores põem em cena, a partir
da idéia de contaminações com outrem. Na seqüência, em especial, aparecem as
personagens estrangeiras e sua influência sobre o brasileiro nas obras:
O defeito de família
(1870), Dois proventos em um saco (1883), e Luxo e vaidade (1860). Atenta-se para a
enunciação de diferentes formas de relação entre brasileiro e estrangeiro e a repercussão no
brasileiro, bem como se observa o caráter das personagens estrangeiras e sua ascendência
sobre as brasileiras.
Na continuidade, examina-se a maneira como os autores de teatro apresentam a
inclusão do estrangeiro na família brasileira. Em decorrência, observa-se uma outra
categoria de estrangeiro: o aproveitador mal intencionado cede lugar ao estrangeiro que, em
algumas peças, pode ser considerado “exemplar”, na medida em que identifica o seu
projeto pessoal com a prosperidade nacional. Esta tentativa de inclusão aparece nas peças
As casadas solteiras (1845), de Martins Pena; Cocota (1885), de Artur Azevedo; Amélia
Smith
(1886), do Visconde de Taunay; e Lição de botânica (1906), de Machado de Assis.
Ainda no segundo capítulo, são consideradas as personagens estrangeiras que aparecem nos
26
enredos de Cocota (1885), de Artur Azevedo, e Como se fazia um deputado (1863), de
França Júnior. Discutem-se, aí, o lugar e o espaço ocupados por essas personagens, em
contraponto com as personagens estrangeiras anteriormente examinadas.
No terceiro capítulo, reflete-se sobre a questão da nacionalidade na literatura, tendo
como pano de fundo o
Instinto de nacionalidade, de Machado de Assis. Elabora-se, então, a
leitura que pretende entender a configuração de nação, enquanto comunidade imaginada, e
a conexão de indivíduos e suas diferenças, que nas peças teatrais se faz por meio de suas
falas e ações, ou seja, por diferentes personagens que anunciam diferentes
modus vivendi e
culturas. Procura-se, aí, apreender os diferentes olhares que são expressos pelas
personagens brasileiras e estrangeiras.
Inicialmente, as reflexões quanto à nação e à nacionalidade são desenvolvidas a
partir das considerações de Benedict Anderson
22
e Eric Hobsbawm.
23
Enfatiza-se a
confluência de interesses como fator agregador na formação de uma nação, que é
imaginada, limitada e soberana, conforme Anderson. Salienta-se, também, que, de acordo
com Hobsbawm, a construção histórica de um imaginário que dê significado à nação
constitui um processo discursivo imbricado, que objetiva o estabelecimento do sentimento
de identidade nacional. Nesse sentido, a leitura das peças tem como objetivo observar como
acontece o trânsito das reflexões sobre nação em cenários que expõem diferenças culturais.
Na trilha da idéia de nação, analisam-se como as obras colocam em evidência o olhar do
brasileiro sobre a nação. Na seqüência, procura-se apreender como aparece projetado, nos
enredos das peças teatrais, o olhar do estrangeiro sobre a nação brasileira. Destaca-se que o
22
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
23
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. Maria Célia Paoli e Anna Maria Quirino (Trad.).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
27
Estado Nacional brasileiro, legalmente instituído, aparece nas peças como pano de fundo
para negociações e troca de favores. Indivíduos da nação brasileira fazem deste
locus um
silo de interesses pessoais e lucro, onde manipuladores e manipulados vão delineando, de
maneira peculiar, as representações de segmentos da política nacional no final do século
XIX. Este capítulo traz à cena as fraturas das visões de nação que advêm da interação e do
confronto das personagens brasileiras e estrangeiras nas tramas arquitetadas pelos autores
nacionais.
Nesta tese, é importante ressaltar que as análises dos textos teatrais promovem um
entrelaçamento entre si, de maneira que estes não são trazidos como indiferentes uns aos
outros, precisamente pela dimensão dialógica que lhes é inerente. Para tanto, a urdidura do
terceiro capítulo possui suas linhas e tramas já anunciadas nas análises dos capítulos
anteriores.
Dadas essas observações, saliento que a análise aqui empreendida busca evidenciar
a importância do teatro, tendo como recorte as representações do brasileiro e do “Outro”,
como tentativa de compreensão desse tempo de construção da nação, partindo do
pressuposto de que as palavras, e por conseqüência os textos, são tecidos com fios
ideológicos que servem de trama para as relações sociais em sua complexidade.
28
1. O TEATRO NA CENA BRASILEIRA
E assim, sempre assim; a palavra escrita impressa,
a palavra falada na tribuna, ou a palavra dramatizada no teatro,
produziu sempre uma transformação. É o grande fiat de todos os tempos.
Machado de Assis
(O espelho, 2/10/1859)
29
1.1 O teatro brasileiro em formação: do jesuítico à comédia e ao drama
Após a conquista do país pelos portugueses, o teatro brasileiro tem seus primeiros
registros a partir do século XVI, com a vinda dos padres da Companhia de Jesus para o
Brasil. Conforme Décio de Almeida Prado, “O teatro brasileiro nasceu à sombra da religião
católica”.
24
Padre José de Anchieta produziu autos com fundo religioso, moral e didático,
povoados de personagens alegóricas, com finalidade catequética e pedagógica.
25
Conforme
afirma Joel Pontes, Anchieta entendia o teatro como “ação encantatória e didática ao
mesmo tempo, efetivada sobre um público novo, desconhecido pelos dramaturgos de então,
e daí ter merecido um tratamento que pode surpreender ao gosto moderno.”
26
Mesmo sendo o Padre Manoel da Nóbrega (1517-1570) o autor do primeiro
provençal
27
do Brasil, A conversão do gentio (1549), a obra do Padre José de Anchieta
(1534 –1597) é considerada o marco inicial do teatro no Brasil. Anchieta foi responsável
24
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro: 1570 a 1908, op. cit., p.19.
25
Na peça Oré Rausubá Jepe (Pitangì), intercalando canto e dança de doze meninos, Anchieta procura,
através da ternura que permeia os versos, comover os adultos nas festas de Natal, inserindo freqüentemente o
diminutivo, a que o “índio, muito amigo dos filhos pequenos, era muito sensível.” Veja alguns versos desta
peça: “Ore rausubá jepé” (“De nós compadecedor”)
Pitangì , pai Jesú! És tu, neném, bom Jesus!
Toroikó pabengatú Vivamos todos na Luz
Nde rekó katú pupé! De teu bondoso teor!
ANCHIETA, Josefh.
Lírica portuguesa e tupi. São Paulo: Edições Loyola, 1984, p. 158.
26
PONTES, Joel. Teatro de Anchieta. MEC- Serviço Nacional de Teatro: Rio de Janeiro, 1978, p. 40.
27
O provençal, poesia lírica palaciana oriunda de Provença, região da França, influenciou o trovadorismo
português. MOISÉS, Massaud.
A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1984, p. 23.
30
pela autoria das primeiras peças
28
teatrais que, até 1584, eram escritas em Tupi, Português
ou Espanhol, quando então passaram a ser escritas em Latim.
29
Todavia, o declínio do
teatro de catequese dos Jesuítas viria a acontecer no século XVII. Nessa época, o teatro
espanhol obteve repercussão na cena brasileira. Os textos escritos em espanhol do poeta
brasileiro Manuel Botelho de Oliveira
30
(1636–1711) foram os primeiros a serem
publicados.
No século XVIII, as peças teatrais escritas em português receberam grande
influência estrangeira, principalmente do teatro francês e italiano. Desta influência destaca-
se a de Molière (1622-1673), Voltaire (1694-1778), Goldoni (1707-1793) e Metastásio
(1698-1782).
31
Apesar dessa influência, alguns nomes nacionais se sobressaíram, dentre
eles Luís Alves Pinto, que escreveu a comédia em versos
Amor Mal Correspondido (1780),
Alexandre de Gusmão (1685-1753), que traduziu a comédia francesa
O Marido Confundido
(1784), Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), que escreveu O Parnaso Obsequioso
28
Em 1564, os jesuítas da Companhia de Jesus vieram para a colônia catequizar os índios, trazendo consigo
suas influências culturais como a literatura e o teatro, que se tornariam instrumentos de
civilização. Anchieta
produziu os autos
Na festa de São Lourenço, composto em 1.493 versos, Na vila Vitória, composto em 1.674
versos e o
Auto da Pregação Universal. Escritos aproximadamente entre 1567 e 1570, foram representados
em várias regiões do Brasil, por vários anos. Os autos sacramentais, com fundo religioso, moral e didático,
eram repletos de personagens alegóricos. PRADO, Décio de Almeida.
Teatro de Anchieta a Alencar. São
Paulo: Perspectiva, 1993, p. 22.
29
Enquanto que no Brasil aconteciam as primeiras manifestações teatrais, na Europa, nessa época, mais
precisamente na Itália, surgem as primeiras experiências teatrais em língua nacional. As primeiras comédias
de Ariosto,
La Cassaria e I Suppositi, marcam o nascimento do teatro erudito. Maquiavel, com a
Mandrágora; Aretino, com A Cortesã; e Ruzzante, com La Moscheta, são ácidos comentaristas de seu tempo.
Nasce a
Commedia dell’Arte. Os atores apresentam-se improvisando roteiros preestabelecidos (canevas) ao
ar livre ou nas Cortes. Já na Inglaterra, nesse período tem início o chamado teatro elisabetano inglês durante o
reinado de Elisabeth I. Surgem novas formas dramatúrgicas e cênicas. Os autores mais notáveis são
Christopher Marlowe, Ben Jonson e William Shakespeare, considerado o maior poeta dramático de todos os
tempos. Suas peças fazem não a crônica de seu país como também descrevem com rara compreensão da
condição humana as relações entre indivíduos e estes com a sociedade. BERTHOLD, Margot.
História
mundial do teatro
. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 276-338.
30
A obra A música do parnaso reuniu além da produção poética as peças “Hay amigo para amigo e amor” e
“Enganos y Celos” –duas comédias publicadas em espanhol. PRADO, Décio de Almeida.
Teatro de Anchieta
a Alencar
, op. cit. p. 192.
31
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro, op. cit., p. 24.
31
(1768), e Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744-1792), autor do drama Enéias no Lácio
(1775).
Sublinha-se que um fato significativo para a promoção do teatro brasileiro foi a
vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, em 1808. D. João VI (1767-1826), no
decreto de 28 de maio de 1810, reconheceu a necessidade da construção de um “teatro
decente”.
32
A criação de espaços “decentes”, conforme Décio de Almeida Prado, atribuía
uma maior legitimidade a essa arte.
33
A dramaturgia ainda estava sendo edificada quando, em 1833, três jovens
acadêmicos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Francisco Bernardino
Ribeiro, Justiniano José da Rocha e Antonio Augusto de Queiroga publicaram um longo
texto na
Revista da Sociedade Filomática (1833), intitulado Ensaios sobre a Tragédia
(1833).
34
Este texto deflagrou no Brasil o primeiro debate literário e teatral entre os
defensores do classicismo e os adeptos do movimento romântico.
Conforme João Roberto de Farias, nas considerações dos três jovens ficava clara a
preferência pelos princípios do classicismo. A tragédia era eleita como forma dramática
mais perfeita, e estudada em suas origens e desenvolvimento desde a Grécia e Roma
antigas até os séculos XVII e XVIII. Portanto, ao defenderem a tragédia, esses autores
preterem as idéias românticas em voga na Europa.
35
32
O ciclo das casas de ópera, conforme comenta Décio de Almeida Prado, teria seu ocaso em 1813, quando
foi edificado o primeiro teatro de grandes dimensões no Brasil. D. João não somente incentivou a construção
do teatro no Rio de Janeiro, como também trouxe companhias dramáticas de Portugal, com artistas
renomados. Portugal foi fundamental para a estruturação do teatro brasileiro. Ibid., p. 31.
33
Ibid., p. 31
34
FARIA, João Roberto, op. cit. p.21.
35
Em Ensaios sobre a Tragédia (1833), à excelência das tragédias de Corneille (1606-1684), Racine (1639-
1699) e Voltaire (1694-1778), contrapõem-se as obras de escritores como Lope de Vega (1562-1635),
Calderón de la Barca (1600-1681), Shakespeare (1564-1616), Lessing (1729-1781) e Schiller (1759-1805),
32
Desde a Independência, em 1822, um exacerbado sentimento nacionalista havia
tomado conta das nossas manifestações culturais. Esse espírito nacionalista também atingiu
o teatro. Ainda em 1833, estreava em Niterói, no Rio de Janeiro, a peça escrita em
português, de autoria desconhecida,
O príncipe amante da liberdade ou A independência da
Escócia
(1833), levada ao palco pela companhia de João Caetano
36
(1808-1863), estrelada
por atores nacionais. Em 1838 iniciou-se a transição para um teatro nacional, alavancada
pelo sucesso político da Independência (1822) e da abdicação D. Pedro I (1798-1834), em
abril de 1831.
Durante o século XIX, os gêneros teatrais se diversificaram e os processos cênicos
se renovaram, sendo, aos poucos, nacionalizados. Fixaram-se, também, diretrizes de
representação, sobretudo por empenho do ator João Caetano.
Ainda por volta de 1838, o teatro nacional passou a ser impulsionado por alguns
escritores como Martins Pena (1815-1848), com suas comédias de costumes. Nesse mesmo
ano, a tragédia
Antônio José ou O poeta e a inquisição (1838) escrita por Gonçalves de
Magalhães (1811-1822), foi levada à cena por João Caetano, no teatro Constitucional
consideradas “defeituosas”, por não serem escritas nos moldes das regras clássicas. Dentre os jovens
intelectuais, Justiniano José da Rocha (1812-1863) mostrou-se o mais interessado em teatro. Nos anos
seguintes, em 1836, estabelecido no Rio de Janeiro, no jornal
O Cronista, defende a idéia de que “os
espetáculos teatrais deveriam ser comentados nos jornais”. Justiniano, mais tarde, vai aceitar as formas do
drama, exigindo, porém, cuidados com a verossimilhança. Suas observações são pertinentes para a época, mas
se aplicam principalmente aos melodramas. Sua crítica teatral torna-se um importante documento para a
compreensão do teatro brasileiro no Romantismo, na medida em que revela as obras dos dramaturgos do
mesmo período, que tinham três caminhos a seguir: o da tragédia neoclássica, o do melodrama ou o do drama
romântico. Ibid., p. 20-30.
36
Segundo Décio de Almeida Prado, provavelmente João Caetano foi um dos maiores atores do Brasil.
Todavia, o autor ainda afirma que, “quanto aos autores brasileiros, o único feito de João Caetano talvez um
lance de sorte foi ter levado ao palco no mesmo ano, 1838, as duas peças que têm sido consideradas a
primeira tragédia e a primeira comédia nacional:
Antônio José ou o Poeta e a Inquisição, de Domingos José
Gonçalves de Magalhães (1811-1882), e o
Juiz de Paz na Roça (1845), de Luís Martins Pena (1815-1848)”.
Décio de Almeida Prado afirma que como promotor dos textos brasileiros, João Caetano, ao encenar essas
peças, contribuiu ainda mais para a promoção dos autores nacionais. PRADO, Décio de Almeida.
História
concisa do teatro brasileiro
, op. cit., p. 40.
33
Fluminense. Nesse mesmo ano, foi representado, pela primeira vez, o texto O juiz de paz da
roça
(1845), de Martins Pena, também no teatro Constitucional Fluminense, pela mesma
companhia de João Caetano. Durante os espetáculos, que duravam aproximadamente duas
horas, foi introduzido o
entremez,
37
pequena peça que não durava mais que meia hora.
38
Assim, a comédia em ato único era intercalada nos espaços entre as apresentações dos
dramas.
A comédia brasileira, influenciada pela comédia grega, nos moldes da Comédia
Nova
39
, aparece com o lançamento da peça O juiz de paz na roça (1845), obra de Martins
Pena, e tem o ano de 1838
40
como uma data importante para o teatro brasileiro. Outras
peças de Martins Pena foram:
As casadas solteiras (1845), Os dous ou o inglês maquinista
(1845), e O Judas em Sábado de Aleluia (1844). Tal sua O juiz de paz na roça (1845), essas
comédias possuíam sua especificidade temática na focalização dos costumes da época.
37
O entremez, termo espanhol que significa intermédio. Eram as peças curtas apresentadas, durante as festas,
entre as tragédias ou comédias, onde se “representavam as personagens do povo: Lope de Rueda, Cervantes e
Calderón foram mestres do gênero. PAVIS, Patrice.
Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999,
p.129.
38
No Brasil, conforme afirma Décio de Almeida Prado, “A prática do entremez, como complemento de
espetáculo, chegara, ao Rio de Janeiro, trazida pelos portugueses que aportaram em 1829”. PRADO, Décio de
Almeida.
História concisa do teatro brasileiro, op. cit., p. 56.
39
Margot Berthold destaca que a comédia ocidental está dividida em três fases: a Comédia Antiga, a Comédia
Média e a Comédia Nova. A textualidade da comédia antiga, também denominada de Comédia Ática,
apresenta situações que confere a ela o título de precursora, segundo Bertold, “daquilo que viria a ser, muitos
anos depois, caricatura política,
charivari e cabaré”. Nas situações representadas nos textos, eram satirizados
os deuses, os políticos, os filósofos, os generais. Eram notáveis, ainda, os temas fantásticos e a caracterização
extravagante do coro. Na Comédia Média, demarcado seu início a partir da morte de Aristófanes, as
textualidades registravam não mais sátiras aos deuses ou generais, mas a cidadãos comuns, pequenos
funcionários, peixeiros, cortesãs famosas e alcoviteiros. A Comédia Nova, conforme evidenciado neste
estudo, possui seu início com Menandro, no final do século IV a. C. Tais textos registram, de acordo com
Berthold, que “a força reside na caracterização, na motivação das mudanças internas, na avaliação cuidadosa
do bem e do mal, do certo e do errado”. As personagens são cuidadosamente construídas. O coro, colocado
de lado na Comédia Média, desaparece nas comédias de Menandro. A política é discutida com menor
intensidade. As sátiras são mais amenas, localizadas em pessoas do cotidiano. As sátiras violentas são
excluídas. BERTOLD, Margot., op. cit, p. 121-129. As citações são das páginas 121 e 129, respectivamente.
40
É importante destacar ainda que nesse mesmo ano aconteceu a estréia de Antônio José ou o Poeta e a
Inquisição
, de Gonçalves de Magalhães, que chamava a atenção para o tema da nacionalidade.
34
Sábato Magaldi afirma que para Martins Pena nem o drama, nem a tragédia se
ajustariam ao universo que propunha retratar,41 pois privilegiou o riso para registrar a sua
época em peças que apresentam grande vivacidade nas situações e no registro dos
costumes, além da espontaneidade nos diálogos.
Na linha da comédia de costumes traçada por Martins Pena, um outro nome merece
destaque: França Júnior (1838-1890). Embora prefira, em sua escrita, o anedótico, suas
peças demonstram certo domínio de carpintaria teatral e alguma graça nos diálogos,
conforme podemos constatar das leituras de Como se fazia um deputado (1863), O tipo
brasileiro (1872), Dois proveitos em um saco (1873); O defeito de família (1877), e Caiu o
Ministério! (1882).
França Júnior faz da mediocridade e do oportunismo o eixo principal na exposição
das relações interpessoais na sociedade fluminense de sua época, utilizando nas tramas a
promoção de recursos cênicos que induzem ao riso, à zombaria.
Sábato Magaldi comenta que como painel crítico do Rio de Janeiro no fim do século
XIX, a obra de França Júnior reforça a tradição cômica do teatro brasileiro e se caracteriza
pela agilidade das falas curtas, das peças em um ato, com linguagem coloquial, jogo cênico
rápido, ambigüidades e grande noção de ritmo teatral.42
Conforme Décio de Almeida Prado, os temas das comédias brasileiras giravam em
torno das fragilidades humanas, como, por exemplo, as intrigas amorosas, ambientadas
principalmente na Corte, no Rio de Janeiro.43 Os textos procuram representar a sociedade
41
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1977, p. 44-
58.
42
Ibid., p.130-140.
43
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro, op. cit, p. 57-59.
35
de época com enfoques realistas, satirizando o ridículo da condição humana. São dotados
de agudo senso de carpintaria, de tipificação e de uma linguagem realmente popular.
Neste sentido, esse tipo de comédia, de acordo com Vladimir Propp, enfatiza um
dos tipos mais comuns de riso, uma característica própria e singular do ser humano –,
44
‘riso de zombaria’. Segundo Propp:
Entre todos os possíveis aspectos do riso nós escolheremos apenas um,
para começar. E este será o riso de zombaria. Justamente este e,
conforme foi visto, apenas este aspecto do riso está permanentemente
ligado à esfera do cômico. Basta notar, por exemplo, que todo o vasto
campo da sátira baseia-se no riso de zombaria. E é exatamente este tipo
de riso o que mais se encontra na vida.
45
Ao trazer à cena performances que promovem tal esfera da comicidade, as comédias
brasileiras, construídas nos moldes da comédia nova, destacam com sátira situações e
acontecimentos que exacerbam o ridículo e rizível da condição humana..
O riso é uma forma de profanarem-se as verdades fechadas, pondo-se em crise o
poder instituído e com isso possibilita a liberdade. A comédia, através do riso, coloca em
evidência também a estrutura historicamente marcada pela divisão de classes. Afinal, todo
e qualquer texto é produto de seu tempo, de seu contexto.
sobre o drama, é importante observar que os registros históricos remontam, no
Ocidente, à tragédia grega, cujo termo “drama” deriva do grego. Este termo era utilizado
para denominar ação/aquilo que se faz a partir de acontecimentos tirados de lendas
heróicas. Drama aparecera no canto dos poetas épicos por vários séculos, antes mesmo
do seu advento.
44
PROPP, Vladimir. Comicidade e Riso. (Trad.) Aurora F. Bernardini e Homero F. de Andrade. São Paulo:
Ática, 1992, p. 40.
45
Ibid., p. 28.
36
O drama, com o passar dos tempos, torna-se o termo utilizado por várias línguas
européias para designar obra teatral ou dramática. Segundo Pavis, em francês este termo é
usado para qualificar um “gênero em particular: o drama burguês (do século XVIII) e,
posteriormente, o drama romântico e o drama lírico do século XIX”.
46
O drama burguês, conforme Pavis, se caracteriza por ser um “gênero sério;
intermediário entre a comédia e a tragédia”. O drama romântico em prosa tem como
referência os textos de Shakespeare. As peças dramáticas dessa categoria, no século XIX,
procuravam libertar-se das regras e das unidades, multiplicavam as ações, misturavam os
gêneros, visando a uma síntese entre os extremos e as épocas. O drama lírico, por sua vez,
proveniente da ópera, possui uma ação limitada em extensão, na qual a intriga não tem
outra função a não ser a de possibilitar “momentos de êxtases líricas. As falas musicadas e
os poemas introduzidos no corpus do texto consagram a música como um elemento
importante no enredo”.
47
No século XIX os textos dramáticos brasileiros desenvolviam enredos que giravam
em torno de crimes, nos quais se evidenciam diferenças e semelhanças com as referências
européias. O drama romântico se instituía privilegiando a liberdade de criação e a emoção.
As obras valorizam o individualismo, o sofrimento amoroso, a religiosidade, a natureza, os
temas nacionais, as questões político-sociais e o passado.
Muitos dramas, também classificados como melodramas, possuem, no
encerramento, sempre um previsível
happy end. Mesmo com sua constituição sinuosa,
repleta de reviravoltas e povoada por revelações surpreendentes, que colocavam o público
e/ou leitor em estado de ansiedade constante, no desfecho, o vilão, isto é, o antagonista é
46
PAVIS, Patrice, op. cit., p. 109.
37
punido e, em contrapartida, o herói, personagem virtuoso, recebe as glórias. Um aspecto
desse tipo de drama seriam as lições morais que emergem de um enredo maniqueísta. Nos
enredos, as personagens são boas ou são más, agindo sempre de acordo com seu caráter
naturalmente determinado e/ou herdado. No Brasil, neste período, registram-se os
escritores: Luís Antônio Burgain (1812-1877) e Martins Pena.
Luís Antônio Burgain, nascido na França, mas radicado no Brasil, produziu em
português mais de uma dezena de peças que aqui foram encenadas. Este dramaturgo
considerava o Brasil como sua segunda pátria. Dentre suas peças,
A última Assembléia dos
Condes Livres
e Glória ou Infortúnio ou A morte de Camões foram apresentadas pela
companhia de João Caetano. Suas peças receberam elogios do Conservatório Dramático do
Rio de Janeiro e do Conservatório Dramático de Lisboa.
48
Martins Pena, por sua vez, mais conhecido como comediógrafo, não obteve o
mesmo êxito neste gênero, escrevendo cinco dramas, sendo que somente um foi
representado, sem maior repercussão. Os textos desses dramas apresentam enredos
emaranhados, contendo surpresas e coincidências extraordinárias, além de algumas
inverossimilhanças e reviravoltas.
49
Vale anunciar que, no presente estudo, não foram
selecionados os dramas ou melodramas de Burgain e de Martins Pena para as análises em
virtude da ausência dos elementos demarcados para a eleição das peças: a discussão sobre a
nação e a presença de personagens estrangeiras nos enredos.
47
Pavis comenta que no Brasil, de maneira geral, “o público não-especializado” utiliza o drama como gênero
oposto à comédia. Ibid., p. 109.
48
As peças foram representadas em 30 de maio e 9 de agosto (respectivamente), em 1837, no Teatro São
Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro. HESSEL, Lothar; RAEDERS, Georges.
O teatro no Brasil: sob Dom
Pedro II. Porto Alegre: URGS/IEL, 1979, p. 46.
49
FARIA, João Roberto, op. cit., p. 38.
38
Salienta-se que, se alguns dramas possuíam enredos maniqueístas, outros dramas
contemplavam também, em seu
corpus, personagens dicotômicas, que traziam dentro de si,
simultaneamente, o bem e o mal, o anjo e o demônio, através da linguagem poética da
época. O final dos enredos decorre do desenrolar das ações.
Nesta segunda linha de dramas, merecem destaque, dentre outros, como
dramaturgos Gonçalves Dias (1823-1864)
50
, Paulo Eiró (1836-1871), Castro Alves (1847-
1871)
51
, e Visconde de Taunay (1843-1889).
Em sua produção lírica, Paulo Eiró se revela um seguidor da segunda geração
romântica, na medida em que se pode rastrear em sua obra a influência de Álvares de
Azevedo (1831-1852)
52
no tom de desalento e pessimismo de numerosos poemas.
Entretanto, isso não ocorre nos versos de inspiração religiosa, ou nos de temática histórica e
política, cuja eloqüência cantante, de raiz hugoana,
53
antecipa o Condoreirismo. Precursor
50
Gonçalves Dias (1823-1864) escreveu para o teatro quatro peças e traduziu A noiva de Messina do
dramaturgo alemão J. Schiller. Nas peças escritas pelo autor brasileiro percebemos que há um recuo no tempo
e um afastamento do território brasileiro.
Patkull (1843) é ambientada no ano de 1707 nas localidades de
Meclenbur, Dresde e Casemir;
Beatriz Cenci (1845) desenvolve seu enredo na Itália no ano de 1598; Leonor
de Mendonça
(1846) passa sua história no ano de 1512 em Portugal; Boabdil (1850) tem seu enredo
localizado no fim do domínio Mouro em Granada. Cabe aqui destacar que mesmo sendo lidas no decorrer da
pesquisa, optou-se por não aproveitá-las nas análises, justamente por promoverem esse afastamento temporal
e espacial, na medida em que um dos pressupostos básicos para a eleição das peças é justamente a
ambientação no Brasil e os séculos XIX e início do XX. DIAS, CAFEZEIRO, Eduardo (Org.)
Gonçalves
Dias
: teatro completo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979.
51
A peça Gonzaga ou A Revolução de Minas (1875-1876) traz à cena grandes personagens da Inconfidência
Mineira protagonizando o enredo dividido em quatro atos e ambientado em Minas e no Rio de Janeiro.
Mesmo lida durante a pesquisa bibliográfica, esta peça não contempla os objetivos propostos para este estudo,
pelo deslocamento temporal do enredo. GOMES, Eugênio (org).
Castro Alves: obra completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2004, p 580-661.
52
Álvares de Azevedo (1831-1852) em sua peça Macário (1851) (ou fragmento de peça) que deixou entre os
inéditos antes de morrer, afirma que “Esse drama é apenas uma inspiração confusa rápida que realizei à
pressa como pintor febril e trêmulo”. Não era intenção deste autor escrevê-la para o palco. PRADO, Décio de
Almeida.
História concisa do teatro brasileiro: 1570 a 1908, op. cit. p. 50-51. Salienta-se que o enredo desta
peça está muito próximo do que Todorov considerou literatura fantástica. E mesmo que parte do enredo seja
ambientado no Brasil, em São Paulo, (outra na Itália), a história, povoada por uma atmosfera onírica, fica um
tanto distanciada da proposta de leitura para este estudo.
53
Um dos grandes expoentes literatura francesa do século XIX, Vitor Hugo (1801-1885), considerava o
drama histórico romântico um
miroir de concentration, espelho de concentração, “a ópera o envolveu na
39
da pregação abolicionista de Castro Alves,
54
no drama Sangue Limpo (1863), em três atos e
um prólogo, Paulo Eiró se mostra contrário à escravidão no Brasil.
Um outro dramaturgo que também merece destaque é Visconde de Taunay. Entre
outros, escreveu
A retirada de Laguna (1871), relato escrito em francês, Cenas e Tipos
(1878), Estudos Críticos (1881-83), Céus e Terras do Brasil (1882), Fantasias (1882), e,
especificamente, no que interessa para este estudo, a peça
Amélia Smith (1886).
Em
Amélia Smith, percebem-se muitos traços que o aproximam dos dramas de sua
época, tal como em Paulo Eiró. Restrito a locais fechados, ficam demarcados os extremos:
a conversa/o silêncio; o movimento/o estático; a tentativa de decifração/o enigma; os
outros/a solitária e a suposição/a verdade.
As leituras, neste estudo, voltam-se também para a análise de aspectos que os
configuram como dramas, tanto no texto
Sangue limpo (1863), de Paulo Eiró, como em
Amélia Smith (1886) do Visconde de Taunay.
Além desses, verifica-se também um tipo de drama no qual a utilização de recursos
burlescos pode assemelhá-lo à comédia. Traz-se, então, à discussão as obras
Amor e pátria
(1859), Luxo e vaidade (1860) e A torre em concurso (1863), todas de Joaquim Manoel de
Macedo (1820-1882). Joaquim Manoel de Macedo descreveu com minúcias e sutilezas a
vida familiar e os usos e costumes da sociedade carioca de seu tempo. Em sua produção
teatral destacam-se as cenas corriqueiras das ruas, as festas, os saraus familiares, os
ebriedade sonora das grandes orquestras, e o realismo transformou o palco no cenário da arqueologia ou no
salão elegante.” BERTOLD, Margot, op. cit., p, 382.
54
Destaca-se que Castro Alves (1847-1871) em sua produção teatral optou pelo deslocamento temporal,
privilegiando em seu drama o olhar para a questão da Inconfidência, distanciando-se um pouco das temáticas
deflagradas em
Os escravos e A Cachoeira de Paulo Afonso.
40
preconceitos da sociedade, as intrigas, os ciúmes, os namoros que sempre acabam em
casamento feliz.
Outro tipo de drama caracteriza-se pela influência dos escritores franceses do século
XIX.
55
Décio de Almeida Prado observa que:
Será assim em nome de um certo realismo, ou pelo menos, na relação
direta entre o poeta e a realidade, sem a interferência nefasta da estética
clássica, que Vitor Hugo atacará as unidades de tempo e espaço,
demonstrando que a verossimilhança as destrói, em vez de fundamentá-
las. Reduzir arbitrariamente o tempo e o espaço, impor aos
acontecimentos um ritmo que não é deles, fechar as personagens numa
ante-sala ou peristilo neutro, acessível a todos, amigos ou inimigos, é cair
na abstração, voltando as costas à realidade.
56
Dentro da linha dramática, um autor que se destaca é José de Alencar (1829-1877).
Para Décio de Almeida Prado, José de Alencar foi um dos escritores que expressou o
realismo teatral no Brasil. Seu teatro se encaminhava para peças de tese, não se limitando a
apenas retratar a realidade cotidiana, mas julgá-la.
57
As peças de Alencar procuravam,
conforme Décio de Almeida Prado, “aprovar ou desaprovar o que estaria acontecendo na
camada culta e consciente da sociedade”.
58
Em O demônio familiar (1857), Mãe (1860), O
crédito
(1860), O que é o casamento (1860), Alencar esboça a tentativa de alcançar o meio
termo entre o drama e a comédia.
55
Importado da França e influenciado pela estética de Vitor Hugo (1801-1885), o Realismo introduziu a
temática social. As questões sociais mais relevantes do momento eram discutidas nos dramas de casaca. Nessa
época, a tese social e da análise psicológica apareciam nos textos teatrais. PRADO, Décio de Almeida.
Teatro
de Anchieta a Alencar
, op. cit., p. 218.
56
Ibid., p. 218.
57
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro, op. cit., p.80.
58
Ibid., p. 80.
41
Neste estudo, traz-se à discussão O demônio familiar (1857) e procura-se observar,
além de outros aspectos, como transita no texto a idéia e a prática da escravidão, e também
como são apresentados os brasileiros contaminados pela cultura estrangeira.
Na perspectiva do realismo, Machado de Assis (1839-1908) é também um expoente
do teatro brasileiro colocado em cena. A textualidade teatral machadiana optou por
apresentar enredos verossímeis, com personagens tiradas da vida diária e episódios
fortemente encadeados.
Dentre suas obras, recebem destaque neste estudo as peças Quase Ministro (1863) e
Lição de botânica (1906). Seus enredos anunciam-se não como peças de tipo realista,
mas também como dramas de costume, realçando tanto os movimentos cômicos como a
leitura da psicologia humana, aproximando-se das comédias realista.
Ainda dentro da proposta realista, Artur Azevedo (1855-1908) consolida o gênero
revista e os dramas de casaca, com O mandarim (1884). De 1884 até os primeiros anos do
século XX, a opereta e a revista, como no caso da peça Cocota (1885), que é analisada
neste estudo, vão se consagrar como os gêneros da teatrografia brasileira preferidos pelo
público.
Artur Azevedo aparece como um escritor que produziu uma obra repleta de
revelações curiosas à exegese do teatro brasileiro. Constitui, assim, uma personalidade que
deixa como legado quase duas centenas de peças que se configuram como instrumentos
preciosos para a análise de nossa cultura dramática.
As revistas de Artur Azevedo e seus colaboradores eram feitas com uma certa
preocupação com a arte. Nos seus diálogos, percebe-se a espiritualidade, bons trocadilhos e
rimas, posto que o autor era um poeta espontâneo e cômico mordaz, e, em todas suas
42
revistas, havia o tênue fio do enredo de comédia. A graça espontânea da veia humorística
de Artur Azevedo reserva sempre lugar para um sorriso em quem lê seus textos.
Nesse contexto, o teatro foi um dos elementos principais da vida cultural da
sociedade brasileira do século XIX. A cena teatral refletia a cena da vida social.
No século XIX, instituído na vida social, o teatro foi promotor dos debates culturais.
Ir ao teatro era fazia parte do cotidiano. Neste estudo, em especial, é destacada sua
influência na elite da Corte.
59
Segundo Lilia Schwarcz:
Num país escravocrata fortemente hierarquizado, as festas dos “brancos”
ocorriam em sua maioria no interior de palácios e teatro, cenários
para bailes e saraus, ao passo que as festas dos “negros” se realizavam
nas ruas das cidades e nas senzalas das fazendas.
60
Jeffrey Needell comenta que a imprensa da época evidenciava a “importância
cultural das reformas; não consideravam o afrancesamento do Rio apenas como um
conjunto saudável e eficiente de novas vias, mas também como símbolo e instrumento de
reabilitação do país e de um futuro ‘civilizado’ (isto é europeu)”.
61
O teatro funcionava
59
Como também é analisada a peça Sangue limpo, de Paulo Eiró, que foi apresentada pela primeira vez em
São Paulo, cabe aqui colocar que o contexto teatral paulista, no século XIX, estava diretamente associado ao
contexto acadêmico. Em São Paulo, merecem destaque a Casa de Ópera, que foi utilizada por um determinado
período pelo Teatro Acadêmico; o Teatro Harmonia Paulistana, que utilizou a sala de espetáculos do Palácio
do Governo, onde foi apresentada a peça de Eiró. E, também, o Teatro São José, que substituiu a Casa de
Ópera. LOTHAR, Hessel; Raeders, op. cit., p. 189-194.
60
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador, op. cit., p. 258.
61
NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do
século. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 68.
43
como um dos elementos sintonizadores com a cultura européia. O teatro
62
funcionava como
instrumento que promovia parte da visão de mundo e da dominação social da elite.
O primeiro teatro a ser inaugurado na Corte foi o Real Teatro de São João,
reinaugurado em 1826, com o nome de Teatro São Pedro de Alcântara, em função de um
incêndio em 1824. Em 1832, o Teatro São Francisco de Paula é inaugurado, passando, em
1855, a ser denominado de Ginásio Dramático por João Caetano, que, em 1833, ergue o
Teatro São Pedro. O Teatro Ginásio Dramático foi palco de grandes comédias e dramas
realistas. Também o Alcazar Lyrique é em 1859 consolidado como um novo
estabelecimento que se caracterizaria pelas apresentações das operetas e outras peças no
moldes do teatro alegre parisiense.
63
Em 1863 era edificado o Teatro Eldorado que trouxe à
cena grandes peças teatrais. Mais tarde esta casa de espetáculos passaria pelos nomes de
Recreio do Comércio, Jardim de Flora, Fênix Dramática, Variedades Dramáticas, e em
1906, seria denominado de Teatro Fênix.
O teatro teve importância social ainda maior no Segundo Reinado e na República
Velha. Conforme Jeffrey D. Needell, a influência européia acontecia tanto nas construções,
como no caso também do Teatro Municipal,
64
quanto nos costumes. Daí a relevância do
teatro na vida social da Corte.
Um outro teatro que merece também ser destacado é o Teatro Lírico, que substituiu
em 1875 o Teatro Provisório, no Campo de Santana, edificado em 1852. Needell afirma
que este “não deve sua projeção ao luxo de suas instalações nem à excelência de seu projeto
62
Ibid., p 74.
63
LOTHAR, Hessel; RAEDERS, Georges, op. cit., p. 278-280.
64
Jeffrey Needelll comenta que o Teatro Municipal, projeto de autoria de Francisco de Oliveira Passos, foi
inspirado na Ópera de Garnier. “O que não é de admirar: a equipe de arquitetos e auxiliares encarregados na
construção e da ornamentação era formada, praticamente sem exceções, por franceses e brasileiros
francófilos”. NEEDELL, Jeffrey D., op. cit., p. 65.
44
artístico. Ele era o teatro porque ali se apresentavam as óperas, e a ópera fundamental
para a alta sociedade européia também crucial para a elite carioca”.
65
A importância do
teatro, em especial o Lírico, para a sociedade da Corte não estaria no fato de colocar em
cena “as fantasias da elite”, mas também de mostrar nos camarotes “a própria realidade
dela”.
66
A sociedade assistia às peças que representavam a si própria. Assistia à
representação de textos sobre sociedades modelares, principalmente a francesa, como nas
peças de José de Alencar caracterizadas pela influência do realismo teatral francês.
Nos teatros, se por um lado as peças românticas se afastavam da realidade, por outro
lado constatava-se que o realismo teatral apresentava enredos com alcance moralizador,
enredos voltados para a reprodução da vida social na cena.
Tal panorama fez Machado de Assis afirmar que:
O teatro é para o povo o que o Coro era para o antigo teatro grego: uma
iniciativa de moral e civilização. Ora, não se pode moralizar fatos de pura
abstração em proveito das sociedades; a arte não deve desvairar-se no
doido infinito das concepções ideais, mas identificar-se com o fundo das
massas; copiar, acompanhar o povo em seus diversos movimentos, nos
vários modos da sua atividade. Copiar a civilização existente e adicionar-
lhe uma partícula, é uma das forças mais produtivas com que conta a
sociedade em sua marcha de progresso ascendente. Assim os desvios de
uma sociedade de transição lá vão passando e à arte moderna toca
corrigi-la de todo.
67
Como espectadora, a sociedade entrava em cena e era reproduzida no espelho
fotográfico da forma dramática. Concomitantemente o teatro também era um elemento
sintonizador com as sociedades modelares. Sobre este aspecto, Machado acreditava que
65
Ibid., p. 101.
66
Ibid., p. 103.
67
ASSIS, Machado. Obras completas de Machado de Assis: Críticas literárias/ Críticas Teatrais. São Paulo:
Formar, 1989, p. 201.
45
seria necessário depender menos das traduções e favorecer o surgimento de dramaturgos e
textos brasileiros, para que o “sangue da civilização” pudesse ser inoculado nas veias do
povo pelo teatro.
O papel significativo do teatro para a sociedade do século XIX fez com que
Machado o comparasse à imprensa e à tribuna, os outros dois meios de proclamação da
vontade do povo e da educação pública. O tom enfático do artigo referido na citação
demonstra como Machado acreditava nas instituições e no poder transformador, ou mesmo
revolucionário da palavra, quando empregada convenientemente. O aspecto político de seus
argumentos aparece claramente em uma das suas proposições de nítido corte liberal:
No país em que o jornal, a tribuna e o teatro tiverem um desenvolvimento
conveniente as caligens
68
cairão aos olhos das massas; morrerá o
privilégio, obra da noite e da sombra; e as castas superiores da sociedade
ou rasgarão os seus pergaminhos ou cairão abraçadas com eles, como em
sudários.
69
A importância da palavra escrita e da palavra encenada no século XIX aparece
anunciada no pensamento de Machado de Assis quando afirma que a palavra escrita no
jornal, falada na tribuna e dramatizada no palco é sempre transformadora, com a diferença
de que no teatro é mais insinuante, porque a "a verdade aparece nua, sem demonstração,
sem análise".
70
A palavra torna-se viva, recebe “anima”.
Nesta perspectiva, Machado defendia para o Brasil um teatro realista, civilizador,
formado por peças que retratassem os costumes da nossa vida social com o objetivo de
melhorá-los por meio da crítica moralizadora. O teatro com a cor local, o teatro nacional.
68
Caligens significa nevoeiros espessos. Neste caso, se refere a obscurecimento da visão.
69
ASSIS, Machado. Obras completas, op. cit., p. 203.
70
Ibid., p. 204.
46
1.3 A personagem no teatro: um fio para as tramas
A história do teatro brasileiro, até a primeira década do século XIX, registra
diversificados tipos de textos, seja pela linguagem utilizada em sua escrita
71
como também
pela caracterização das personagens, e originalidade das temáticas.
Além do cruzamento entre ficção e realidade, as textualidades teatrais têm nas
personagens um dos elementos cruciais, na medida em que, nas peças, elas se apresentam
como condutoras das tramas. Aristóteles foi o primeiro que evidenciou esta questão no
capítulo III, da
Poética, ao evidenciar o poema épico. Conforme o Filósofo, “Daí vem que
alguns chama a essas obras (δράματα), porque fazem aparecer e agir as próprias
personagem (δρώυτς)”.
72
Os autores, ao cruzarem acontecimentos “reais” e fictícios nas trilhas das narrativas
conduzidas pelas personagens, concedem a essas textualidades o papel de importantes
instrumentos para se pensar sobre as
personas e os contextos, situados no enredo e no
tempo histórico.
Sobre as personagens teatrais, Décio de Almeida Prado afirma que:
A personagem teatral, para dirigir-se ao público, dispensa a mediação do
narrador. A história não nos é contada, mas mostrada como se fosse de
fato a própria realidade. Essa é, de resto, a vantagem específica do teatro,
71
Vale observar, conforme referido, que os textos produzidos para o teatro, ao longo da história do Brasil,
foram escritos em português, latim, espanhol e português. No século XIX, as obras são registradas somente
em português. O aparecimento de expressões em outras nguas mostra também que o estrangeirismo fazia
parte dos costumes das sociedades, principalmente na Corte, nessa época.
72
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. CARVALHO, Antônio Pinto. (Trad.) São Paulo: DIFEL,
1989, p. 243.
47
tornando-o particularmente persuasivo às pessoas sem imaginação
suficiente para transformar, idealmente, a narração em ação (...).
73
Conforme o referido autor, uma das especificidades desse tipo de forma é que, ao
dispensar o narrador, as peças teatrais tecem suas histórias a partir das falas e ações das
personagens, fazendo parecer verdadeiro o verossímil. Ainda para Décio de Almeida Prado,
o autor teatral, ao se exprimir através das personagens, também lhes atribui “um grau de
consciência crítica que em circunstâncias diversas elas não teriam ou não precisariam
ter”.
74
E é dentro dessa concepção que, nas leituras das obras, vê-se a personagem como um
elemento significativo para se examinar o seu tempo.
No que diz respeito à personagem, Beth Brait destaca que a personagem é um ente
composto pelo escritor a partir de uma seleção do que a realidade lhe oferece, cuja natureza
e unidade podem ser conseguidas com recursos utilizados para a sua criação.
75
A autora
lembra que Aristóteles aponta, entre outros, para dois aspectos essenciais no que tange ao
lugar da personagem no texto: a personagem como reflexo da pessoa humana, e a
personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o
texto.
76
Nesta perspectiva, a leitura das peças procura refletir os tipos de personagens e
enredos, observando que as imagens de nação e as
personas que as incorporam ou
expressam são anunciadas pelo autor teatral como reveladoras da identidade nacional
desejada, por determinados grupos sociais, no contexto do nascimento da nação brasileira.
73
PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: CANDIDO, Antonio. (Org.) A Personagem de
ficção
. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 85.
74
Ibid., p. 86.
75
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985, p. 31.
76
Ibid., p. 29-30.
48
Salienta-se, mais uma vez, que nas peças teatrais, pela ausência de um discurso
central e condutor, as falas promovem um deslocamento constante da ação dramática e suas
possibilidades de construção de sentidos. Destarte, a literatura é ainda uma forma de pensar
a realidade, representá-la e compreendê-la mesmo nas multiplicidades e nos
entrecruzamentos de enunciados que são promovidos pelas falas das personagens.
Interessa a este estudo também demarcar que os discursos
77
são as falas das
personagens que anunciam a imagem de nação e de personagens que os autores querem
trazer à cena. Em outras palavras, a nação é falada pelas vozes das personagens, que, por
sua vez, também constroem e são construídos por esses discursos. Isso caracteriza o texto
teatral, conforme Brait, como um “tipo especial de linguagem que permite ver as coisas que
estão obscurecidas em outros tipos de discursos”.
78
No teatro, as personagens é que dão
corpo a um verbo que aglutina pólos importantes de significação das peças: o ato de buscar
e deslocar o olhar dos leitores em direção a um foco em processo de deslizamento constante
que acontece pelos diálogos registrados nos textos teatrais.
Torna-se importante destacar, durante a análise das falas nas peças, que
nacionalidades e tipos sociais delas advêm. Observar o trânsito das nacionalidades, dos
tipos sociais e de suas falas que se diferenciam no
corpus da trama, no desenvolvimento do
enredo.
O exame das peças ocorre a partir da apreensão dos movimentos desses corpos
ficcionais, as personagens, como uma tentativa de se elaborar uma análise dos corpos
77
Logo, as falas promovem o deslocar do eixo do fio da “narrativa” do enredo promovendo possibilidades de
construção de diferentes sentidos. Segundo Eni Orlandi, se o discurso é efeito de sentidos entre locutores,
pode-se compreender a dimensão das subjetividades em seus processos de identificação. Neste caso,
diferentes olhares, diferentes sentidos podem ser anunciados. ORLANDI, Eni P.
A análise de discurso:
Princípios & procedimentos. Campinas, São Paulo: Pontes, 1999, p. 21.
78
BRAIT, Beth. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso, p.11-27. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de.,
FIORIN, José Luiz (Org.)
Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 22.
49
históricos, lembrando que, conforme afirma Walter Benjamin, “articular historicamente o
passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja num momento de perigo”.
79
Para Benjamin, o
passado só pode ser conhecido através de fragmentos e nunca em sua totalidade. Tal
concepção é assim assimilada na realização deste estudo, pois se procura analisá-los no
presente, a partir dos fragmentos emersos da memória escrita, pois “a história é objeto de
uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de
‘agoras’”.
80
Faz-se significativo entender os acontecimentos históricos que permeiam algumas
peças, bem como os expoentes da história brasileira focalizando-os num tempo social. Pois,
como elemento determinante na condução da trama, as personagens, no curso da história do
teatro, e aqui se enfoca a do Brasil, foram construídas para representar, muitas vezes, as
diferentes
personas como representações de diferentes tipos de brasileiros, que compõem as
teias das relações sociais.
A partir das relações entre personagens e contexto, sublinha-se que, como
brasileiros, constituem representações de indivíduos que nasceram no Brasil, e os como
estrangeiros as representações de indivíduos não nascidos no Brasil. No século XIX, com a
Proclamação da Independência e, em decorrência, o surgimento do Estado Nacional
brasileiro, a idéia de nação e a nacionalidade brasileira começam a ser desenhadas no
imaginário social e representadas na arte, embora com ruídos das vozes estrangeiras, na
produção artística.
79
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 224.
80
Ibid., p. 229.
50
Diante dessa distinção entre personagens brasileiras e estrangeiras, nas peças em
estudo, verificam-se diferentes tipos brasileiros. Dentre os representantes de segmentos
sociais da elite, os indivíduos nacionalistas como Rafael, em
Sangue limpo (1863), ou
Henrique, em
O tipo brasileiro (1872), entre outros –, e indivíduos extremamente
influenciados pelo estrangeiro ou até mesmo estrangeirados, como Azevedo em
O demônio
familiar
(1857). E, como estrangeiros, podem ser apontados como exemplos da categoria
de estrangeiro os personagens Mr. James, de
Caiu o Ministério! (1882), John Smith, de
Amélia Smith (1886), e Barão Sigismund de Kernoberg, de Lição de Botânica (1906). E,
ainda os estrangeiros, como imigrantes, vão estar em cena na peça
Como se fazia um
deputado
(1863), como um mascate italiano, e em Cocota (1885), como trabalhadores
rurais. A condição de ser imigrante passa pela atividade laboral que realiza. Cabe ressaltar
que a maioria dos imigrantes são personagens sem nome.
É, então, a partir do papel social, das interações e dos confrontos entre as
personagens brasileiras e estrangeiras, nos enredos produzidos pelos autores de teatro no
Brasil do século XIX e início do século XX, que são edificadas as leituras, que constituem
o fundamento deste estudo.
Em virtude da materialidade dos textos, viabilizada pelas falas de personagens,
tenta-se analisar os sentidos dessas narrativas, que se destacam por focalizar as formas de
engendramento e produção da verdade poética em suas linhas de interseção com a produção
da “verdade” histórica.
Como este estudo pretende observar a textualidade teatral e não a encenação desses
textos, isso pode sugerir que “os leitores” das referidas obras confrontam-se com o que se
mostra e esconde, a partir da compreensão dos processos de verossimilhança com a nação,
51
que é apresentada através da narrativa, conduzida pelas falas, pelos diálogos das
personagens, e suas diferentes caracterizações ou
personas.
Dentro dessa linha de pensamento, discutem-se as representações dos indivíduos
brasileiros. Verifica-se que tais representações vão, ao longo das tramas, se desdobrar em
perfis de brasileiros estereotipados, tanto no caráter e ações, bem como na concepção de
sua nacionalidade.
Assim, neste contexto, procura-se elaborar um exame das personagens brasileiras e
estrangeiras a partir da idéia aristotélica de
ethos e dianóia caráter e pensamento como
princípios básicos para sua definição.
1.4 Os autores e suas tramas em cena
As peças teatrais, como registro de um dos produtos vivos da expressão cultural do
homem em sociedade, empreendem elementos importantes não do tempo que
representam, mas principalmente da maneira como o autor compreende seu tempo
. Mesmo
que os textos sejam limitados, enquanto textos escritos, salienta-se que pelas possibilidades
associativas e interpretativas estão permanentemente abertos.
Com intuito de possibilitar ao leitor deste estudo um melhor conhecimento desses
textos escritos, mas precisamente de seu enredo, das temáticas colocados em cena, são
apresentadas as sínteses das histórias das peças selecionadas para a análise juntamente com
o elenco de personagens e algumas considerações sobre os dramaturgos, procurando seguir
uma possível ordem cronológica, conforme sua edição.
52
1.4.1 Martins Pena: O Judas em Sábado de Aleluia (1844), As casadas solteiras (1845),
Os dous ou o inglês maquinista (1845).
Luís Carlos Martins Pena, ou Martins Pena, como ficou conhecido, destacou-se por
suas comédias, tornando-se um dos principais fundadores do teatro nacional. Na época,
conforme o hábito, normalmente depois da apresentação de um drama os espectadores
assistiam a uma breve farsa, provinda da dramaturgia portuguesa, e cuja função era aliviar
as emoções excessivas causadas pela peça principal.
A opção pela comédia evidenciava que, nesse tempo, as elites imperiais, fossem as
urbanas ou as rurais, careciam de maior complexidade social e humana. Tal fato justificaria,
então, a escritura de textos psicológicos menos densos, pela limitação das referências para a
criação das personagens, e, também, pela dificuldade que poderia suscitar na recepção pelo
público.
Na representação das classes médias, observava-se que eram pobres em caracteres
culturais e dimensão histórica. Também as personagens dela oriundas deveriam ser
esquemáticas, previsíveis, sem densidades ou complexidade. De sobra, restavam apenas os
escravos. Este segmento justificaria um drama real e complexo, pela origem e lugar na vida
brasileira. Entretanto, quando representados nos palcos, apareciam unicamente como
moleques, amas-de-leite, ou seja, destituídos do drama, ou da própria condição humana,
pelo olhar do branco. Neste sentido, a comédia aparecia como melhor viés para a sua
representação.
53
Para o contexto de suas comédias, Martins Pena optou pela sátira aos costumes
rurais, revelando os hábitos curiosos, as expressões jocosas que estereotipam os habitantes
da roça como criaturas broncas e rústicas, principalmente quando são comparadas aos
homens da Corte, requintados e espertos. Porém os caipiras têm, com freqüência, melhor
índole que os tipos da Corte. as peças que focalizam a vida urbana mostram um olhar
irônico sobre os problemas da época.
Desta forma, são recorrentes, nas peças de Martins Pena, o trânsito de temáticas
como a corrupção das autoridades públicas, o contrabando de escravos, o casamento por
interesse, a exploração do sentimento religioso, a desonestidade dos comerciantes, a
exploração do país por estrangeiros e o autoritarismo patriarcal que se faz presente tanto na
escolha de maridos para as filhas como na profissão para os filhos. Destaca-se, ainda, que
as tramas cômicas são tecidas, na maioria das vezes, em torno de amores que não se
consumaram.
Conforme Sábato Magaldi, a comicidade expressa nos embrulhos matrimoniais
retratados por Martins Pena se origina do fato dos pais, na época, preferirem pretendentes
velhos e ricos para suas filhas. Estas, ao contrário, crêem no amor sincero e desinteressado.
Contudo, jamais um sopro trágico percorre tais paixões irrealizadas, porque todas elas são
resolvidas positivamente, no final das peças, remetendo ao burlesco. As situações são muito
parecidas (amor impossível pela má-fé de vilões desmascaramento cômico dos
empecilhos final feliz). Pode-se afirmar que “o casamento (ou pelo menos o namoro
sério) constitui o epílogo mais comum destas comédias”.
81
81
MAGALDI, Sábato, op. cit., p.44-58.
54
Conforme Lothar Hessel e Goerges Raeders, João Caetano, o mais famoso ator e
encenador do período, consentiu em montar a comédia
Juiz de Paz na Roça de Martins
Pena.
82
Com o êxito da apresentação, Martins Pena percebeu que podia dar ao gênero um
caráter brasileiro, introduzindo tipos, situações e costumes, facilmente identificáveis pelo
público do Rio de Janeiro.
Martins Pena intuía, assim, que a comédia de costumes era uma espécie teatral que
se adaptava às circunstâncias históricas do Brasil, na primeira metade do século XIX.
O Judas em Sábado de Aleluia
A comédia em um ato O Judas em Sábado de Aleluia passa-se no Rio de Janeiro, no
ano de 1844. Foi encenada, pela primeira vez, no mês de setembro deste mesmo ano, no
teatro São Pedro. Em seu elenco estão as personagens José Pimenta, cabo-de-esquadra da
Guarda Nacional; suas filhas Chiquinha e Maricota; Lulu (10 anos); Faustino, empregado
público; Ambrósio, capitão da Guarda Nacional; Antônio Domingos, velho, negociante;
e alguns meninos. A história, toda encenada na casa de José Pimenta, tem início com suas
filhas Maricota e Chiquinha conversando. Após aprontarem um boneco representando
“Judas”, os meninos festejam o feito com grande algazarra. Chiquinha os repreende pelo
barulho. Lulu argumenta, elogiando o boneco. Os meninos saem. Ao ficarem a sós,
Maricota fala a Chiquinha sobre os namorados que conquista pela janela. Chiquinha não
concorda com a exposição da irmã, que fica horas na janela à procura do pretendente ideal.
Essa chama a atenção de Maricota, mostrando que a condição financeira da família deve
restringir-lhe os sonhos. Chega José Pimenta e manda Chiquinha ver sua roupa. O pai
82
HESSEL, Lothar; RAEDERS, Georges, op. cit., p. 77.
55
comenta com Maricota que só melhorou um pouco seus ganhos porque deixou de ser
sapateiro para ser cabo-de-esquadra da Guarda Nacional. Maricota reflete sobre sua
realidade. Faustino entra, logo após a saída de José Pimenta, e declara seu amor por
Maricota. Esta fica lisonjeada com a declaração e ao saber escutar a voz do Capitão pede
que Faustino embora. O moço, não conseguindo sair em tempo, pega as roupas do
“Judas”, e toma seu lugar, encostado na parede. Na seqüência começam as entradas,
alternadas, dos pretendentes de Maricota que, sem saber de Faustino, os incentiva.
Faustino, disfarçado de “Judas” acaba descobrindo que sua amada é ardilosa e namoradeira,
e que Chiquinha é apaixonada por ele. Além disso, fica conhecendo também as falcatruas e
artimanhas das outras personagens, como no caso de Ambrósio e de Antônio Domingos.
No final, Faustino obriga Antônio Domingos a se casar com Maricota, penalizando ambos.
E, encantado por Chiquinha, pede a moça em casamento. Nesta peça, é o “Judas” quem
malha no Sábado de Aleluia.
As casadas solteiras
As casadas solteiras é uma comédia desenvolvida em três atos: o primeiro ato, em
Paquetá; o segundo, na Bahia, e o terceiro, no Rio de Janeiro. No enredo estão: Bolingbrok,
negociante inglês; John, seu sócio; Jeremias; Narciso, pai de Virgínia e Clarisse;
Henriqueta, mulher de Jeremias; Serapião; Pantaleão; um criado e diferentes pessoas de
ambos os sexos. Esta peça foi encenada em 1845, no Teatro São Pedro. As cenas registram
as artimanhas dos estrangeiros Borlingbrob e Jonh que mesmo nascido no Brasil, se
considera Inglês por ser filho de ingleses para casarem, mesmo contra a vontade do pai
Narciso, com as brasileiras Virgínia e Clarisse. Os ingleses, ao chegarem a Paquetá,
56
encontram Jeremias, que se torna cúmplice no seu empreendimento de convencer suas
amadas Virgínia e Clarice de partirem com eles para a Bahia. Jeremias, que estava a
passeio fugindo da esposa Henriqueta, se aproxima das moças e auxilia os ingleses. As
moças fogem do pai, Narciso, pois este não admite casar as filhas com estrangeiros. No
decorrer dos dias, com a convivência, Virgínia e Clarice ficam decepcionadas com as
atitudes dos companheiros. Com a ajuda de Henriqueta, as jovens retornam à casa do pai.
Narciso, por sua vez, resolve casá-las com dois velhos fazendeiros, Serapião e Pantaleão,
alegando que o casamento anterior não era válido, pois não fora realizado em Igreja
Católica. Os ingleses, arrependidos, retornam ao Rio de Janeiro em busca das esposas. Ao
chegarem em casa de Narciso, afugentam os pretendentes, e se redimem diante das moças.
Elas os perdoam, deixando o pai contrariado.
Os dous ou o inglês maquinista
A comédia, em um ato, Os dous ou o inglês maquinista é ambientada no Rio de
Janeiro, no ano de 1842. Neste mesmo ano, foi ao palco no Teatro São Pedro. Em seu
enredo aparecem as personagens Clemência; Mariquinhas, sua filha; Júlia, irmã de
Mariquinhas (10 anos); Felício, sobrinho de Clemência; Gainer, inglês; Negreiro,
negociante de negros novos; Eufrásia; Cecília, sua filha; Juca, irmão de Cecília; João do
Amaral, marido de Eufrásia; Alberto, marido de Clemência. A história tem início com
Clemência, supostamente viúva, mostrando a vontade de casar sua filha Mariquinhas com
Negreiro rico comerciante de escravos. Felício, primo mais pobre, é apaixonado por
Mariquinhas. Mr. Gainer – inglês – se apresenta como um inventor de uma máquina
especial. Gainer afirma a Felício que na sua máquina, em construção, se coloca um boi e sai
57
bife, rosbife, botas e outros derivados. Na seqüência, em conversa com Negreiros,
Clemência chicoteia e esbofeteia uma negra por ter quebrado algo (ouve-se o som). Felício
diz que Negreiro chama Gainer de velhaco e especulador. Clemência se vangloria da filha
Júlia falar francês. Negreiro um garoto negro de presente a Mariquinhas, que não o
quer. Sua mãe, entretanto, aceita o presente. Felício coloca Negreiro contra Gainer, dizendo
que o inglês ia denunciá-lo pelo tráfico de escravos. Clemência deseja se casar com o
inglês, pois acredita que o marido esteja morto. O marido retorna e escuta, escondido,
Clemência pedir Gainer em casamento. Ele aparece e ela desmaia. Gainer apanha de
Negreiro e Felício. Negreiro faz o inglês de cavalo. O inglês bate em Negreiros. Alberto
perdoa a mulher. A ordem é restabelecida. Felício fica com Mariquinhas. Negreiro fica sem
a mulher e o dote. O Inglês sai correndo.
1.4.2 José de Alencar: O demônio familiar (1857)
A entrada de José de Alencar na cena teatral aconteceu com êxito. Em pouco tempo
encenaram-se três obras suas:
Verso e Reverso, O Jesuíta e O demônio Familiar; e em 1860
foi ao palco o drama
Mãe.
José de Alencar comentou que:
No momento em que resolvi a escrever
O demônio Familiar, sendo
minha intenção fazer uma alta comédia, lancei naturalmente os
olhos para a literatura dramática do nosso país em procura de um
modelo. Não o achei; a verdadeira comédia, a reprodução exata e
natural dos costumes de uma época, a vida em ação não existe no
teatro brasileiro.
83
83
ALENCAR, José de. Apud, MAGALDI, Sábato, op. cit., p.90.
58
O demônio familiar, que passou a ser julgado como uma das melhores comédias
brasileiras de todos os tempos, suscita discussões quanto à sua exegese. Cabe aqui destacar
a distinção entre o cômico e o riso, pois ambos não são sinônimos, ou seja, nem todo riso é
cômico assim como nem todo cômico suscita o riso, haja vista existirem muitas comédias
que não incitam o riso. No entanto, esse aspecto “mais refinado” do gênero foi e ainda é
muito aceito principalmente pelas classes dominantes que preferem sorrir a rir, o que nos
faz lembrar a antológica frase de José de Alencar que almejara escrever comédias que
fariam "rir sem fazer corar”.
84
Porém, nessa peça, seria muito difícil distinguir a
condenação do cativeiro, e absolver José de Alencar da acusação de escravocrata.
Sobre o drama
Mãe, Machado de Assis afirmou:
Se ainda fosse preciso inspirar ao povo o horror pela instituição do
cativeiro, cremos que a representação do novo drama do Sr José de
Alencar faria mais do que todos os discursos que se pudessem proferir no
recinto do corpo legislativo, e isso sem que
Mãe seja um drama
demonstrativo e argumentador, mas pela simples impressão que produz
no espírito do espectador, como convém a uma obra de arte.
85
Uma outra peculiaridade de Alencar é a possibilidade de um segundo amor em seus
heróis. Observa-se que na dramaturgia que o precedeu esgotava-se a capacidade amorosa
num único objeto. Alencar, por sua vez, permite em seus enredos a hipótese de
transferência do sentimento ou a consideração de que ele fora um engano.
Conforme Sábato Magaldi, “Alencar em várias peças instala a inclinação dúbia ou
mudança de amor. O que abre maior número de veredas ao itinerário dos heróis”.
86
E ainda,
em uma época em que a língua francesa era sinônimo de cultura, a opção do autor pelo
registro coloquial também foi na contramão da retórica romântica
.
84
ALENCAR, José de. Apud, AGUIAR, Flávio. A comédia nacional no teatro de José de Alencar. São
Paulo, Ática, 1984, p. 95.
59
José de Alencar era modelo e preferência nacional com seus dramas de “sala de
estar”. Principalmente por evidenciar em cena o modelo de sociedade que remetia à
sociedade européia.
O demônio familiar
A comédia O demônio familiar (1857) é ambientada no Rio de Janeiro no ano de
sua edição. Seu elenco é composto pelas personagens Carlotinha, irmão de Eduardo;
Henriqueta; Eduardo; Pedro, o menino escravo de Eduardo; Jorge; Alfredo; Azevedo; D.
Maria; Vasconcelos. Esta peça foi encenada pela primeira vez no Teatro Ginásio Dramático
em 1857.
87
A história tem início com Henriqueta e Carlotinha no quarto de Eduardo,
conversando sobre ele. Henriqueta fala de sua paixão por Eduardo. Esta sai, e entra
Eduardo, comentando que necessita ir rapidamente ao Catete ver um doente. Pedro, menino
escravo/pajem, avisa a Carlotinha que tem um bilhete de um jovem para lhe entregar. Esta
reluta e o moleque começa a brincar com ela, dizendo que vai ser rica e ele será o seu
cocheiro. Jorge (outro irmão menor) chama Carlotinha e diz que a Henriqueta já vai
embora. Pedro comenta com Jorge que Eduardo vai casar com uma viúva rica. Jorge acha
que Henriqueta é mais bonita. Pedro afirma que a outra é mais rica e Henriqueta é pobre.
Na cena seguinte, Eduardo recebe Azevedo, que fala a Eduardo que o celibato é o
verdadeiro estado. Vasconcelos diz que irá casar, pois precisa de uma mulher bonita para
entrar na política ou na administração, e comenta que pretende desposar Henriqueta.
Eduardo informa que essa é pobre. Azevedo argumenta que é inteligente e bonita e será
85
ASSIS, Machado de. Obras completas, op. cit., p. 235.
86
MAGALDI, Sábato, op. cit., p. 104.
87
Ibid., p. 94.
60
uma boa mulher. Durante o jantar Carlotinha conta a Eduardo que Henriqueta noivou com
Geraldo, porque Eduardo não a quis e mandou-lhe uma carta, na qual ridicularizava-a.
Eduardo descobre que Pedro (pajem) trocou a carta de Henrique com a da viúva, porque a
viúva era rica e ele queria que Eduardo se casasse com ela para ser seu cocheiro. Carlotinha
comenta com Eduardo sobre seu admirador e lhe entrega a carta que recebera. Eduardo a lê
e diz que desfará o mal entendido. Todos se reúnem para um chá na casa de Carlotinha e
Eduardo. Vasconcelos, a filha Henriqueta, Azevedo (brasileiro estrangeirado) estão
presentes. Em seguida chega Alfredo (apaixonado de Carlotinha). Pedro trata de envenenar
Azevedo contra Henriqueta, dizendo que seu pai é caloteiro e ela não é bonita como parece.
Eduardo se declara a Henriqueta. Carlotinha confessa sua paixão por Alfredo. Uma grande
confusão acontece em função de uma carta. Azevedo cancela o pedido de casamento.
Eduardo paga a dívida de Vasconcelos. Henriqueta fica com Eduardo, Carlotinha com
Alfredo. Eduardo liberdade ao escravo Pedro e o chama de Demônio Familiar. Este vai
trabalhar na casa do major.
1.4.3 Joaquim Manoel de Macedo: Luxo e vaidade (1860), A torre em concurso (1863),
Amor e pátria (1863).
Joaquim Manoel de Macedo, em suas peças teatrais, ateve-se mais à pintura
idealizada do ambiente social do que ao mundo íntimo das personagens. Seus textos
dramáticos, elaborados em tom leve, vivo, e com uma linguagem coloquial, aparecem como
documentos que remetem ao estilo de vida da sociedade da época.
De acordo com Sábato Magaldi,
61
Embora pisando caminhos trilhados, o comediógrafo, com a sua
espontaneidade e o jeito de dirigir-se familiarmente ao público, deixou
algumas das nossas melhores peças do século XIX. Cimentou uma
tradição recente e permitiu a continuidade do teatro, dentro de
características apreciadas pelo público da época (...). Em uma análise
muito rigorosa, a dramaturgia da Joaquim Manoel de Macedo parecerá
frágil, prestes a quebrar-se. Não lhe reconhecer mérito significará, por
outro lado, banir de nossa sensibilidade a formação da juventude, cujo
romantismo mais fluido vem de sua literatura. Aceitar o encanto desse
teatro é manter vivo, dentro de si, o sortilégio adolescente.
88
Apontado como um dos fundadores do romance no Brasil e um dos criadores do
teatro brasileiro, Joaquim Manoel de Macedo descreveu com senso de observação a vida
familiar e os usos e costumes da sociedade carioca de seu tempo.
Em sua produção teatral localizam-se as cenas corriqueiras das ruas, as festas, os
saraus familiares, os preconceitos da sociedade, as intrigas, os ciúmes, os namoros que
sempre acabavam em casamento feliz. Macedo ateve-se mais à pintura realista do ambiente
social do que com o mundo íntimo das personagens. Seus textos dramáticos, elaborados em
estilo leve, vivo, e com uma linguagem corrente, aparecem como importantes documentos
da sociedade da época.
Macedo procurou solidificar uma tradição recente e permitiu a continuidade do
teatro, dentro de características apreciadas pelo público da época. Ao mesmo tempo em que
pontua em
Amor e Pátria o elogio da brasilidade, em Torre em concurso e Luxo e vaidade,
além de outros, evidencia um dos vícios do país: o complexo de inferioridade nacional, que
só reconhece valor no estrangeiro.
Luxo e Vaidade
Luxo e Vaidade, comédia em cinco atos, foi representada pela primeira vez em 23
de Setembro de 1860, no Teatro Ginásio Dramático, pela Companhia Dramática Nacional.
88
Ibid., p. 76-77.
62
A ação é passada na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1860. No enredo aparecem as
personagens Maurício, empregado público; Anastácio, um fazendeiro; Felisberto,
marceneiro; Henrique, pintor; Reinaldo, coronel; o Comendador Pereira; Frederico; Petit, o
criado francês; primeiro Máscara; segundo Máscara; Hortênsia, mulher de Maurício;
Leonina, filha de Hortênsia; Fabiana; Filipa, filha de Fabiana; Lúcia, filha de Reinaldo;
Fanny, inglesa mestra de Leonina; máscaras de ambos os sexos.
O ambiente cênico é uma sala ornada com luxo. O diálogo entre os estrangeiros
Fanny e Petit início à trama. Eles comentam sobre a ostentação dos patrões e reclamam
por não lhe pagarem os salários. Petit se declara, mas Fanny diz que só terão algo depois de
casados. Entra Anastácio, e Petit exige que limpe as botas. Em seguida, chega Leonina e os
dois discutem. Anastácio afirmara que ela é tão nobre quanto ele. Esta reclama e diz que
chamará seu pai. Entram os pais de Leonina, que descobrem ser Anastácio o seu padrinho.
Anastácio ao saber da situação do irmão critica sua vida de luxo, o criado francês e o seu
mau atendimento. Anastácio pergunta pelo outro irmão e descobre que Maurício não o
recebe por ele ser um marceneiro. Maurício se arrepende. Hortência fala que no baile de
aniversário de Leonina, Anastácio poderá mudar de idéia. Anastácio sai. Entram os nobres.
O Comendador Pereira critica a mistura dos nobres com as pessoas de outras classes. No
dia seguinte, passeando pelo Jardim Botânico, Henrique e Anastácio elaboram um plano
para conquistar Leonina. A sós com Leonina, o tio consegue arrancar-lhe a confissão de seu
amor pelo primo. Henrique escuta e se reconcilia com ela. Numa outra conversa, Fabiana
comenta com Pereira que Leonina tem muitos predicados e que adora o luxo e por isso se
casaria com ele. Trama com Frederico o seqüestro da filha. Anastácio intercepta o
seqüestro, a ordem é restituída. As dívidas são quase todas pagas e ele deserda os sobrinhos
63
e os irmãos. A professora inglesa desaparece por não ser paga. Petit também abandona os
patrões no último ato por falta de pagamento.
A torre em concurso
Na comédia burlesca em três atos A torre em concurso a ação acontece em um
curato da Província do Rio de Janeiro. Seu elenco é composto pelas personagens João
Fernandes, Juiz de Paz; Faustina, sua filha; Ana, irmã de João Fernandes; Felícia, sobrinha
de João Fernandes; Atanásio, subdelegado; Manuel Gonçalves, influência do lugar;
Bonifácio, escrivão; Batista; Diniz; Henrique; Germano; Pantaleão; Guilherme, oficial do
Corpo Policial; Crespim; Pascoal; um Votante; o Sineiro (não fala); Senhoras; povo e
Policiais. Esta peça foi encena pela primeira vez no Teatro Ginásio Dramático em 1863.
O enredo tem início com a leitura do edital para a construção da torre da Igreja.
Germano não aceita a resolução do edital e determina que seja um engenheiro inglês para a
construção. Manuel Gonçalves comenta que os engenheiros brasileiros juntos não valem
um inglês. Anastácio e João Fernandes relatam que foram enganados por um francês e um
mascate italiano, respectivamente. João Fernandes diz que querem um engenheiro inglês.
Henrique, engenheiro, manifesta a vontade de fazer a torre, afirmando ser daquele lugar e
não concordar com a anglomania. Crespim chega à cidade e se diz Lord Guimbo, e é bem
recebido pela Junta. Pascoal também se apresenta como um engenheiro inglês. Ana, tia de
Faustina, se declara a Henrique, que se assusta. Germano avisa a Henrique que dois
charlatões se apresentaram à Junta. Esta fica dividida. Ana determina que seu irmão, João
Fernandes, sua filha Ana em casamento e mais um dote ao engenheiro que construir a
torre. Faustina se sente humilhada. A cidade entra em conflito por causa da disputa dos
64
engenheiros. Guilherme prende Crespim e Pascoal, e esclarece a farsa. Henrique chega com
a sua nomeação de engenheiro da torre e com isso é o noivo oficial de Faustina. A moça
agradece a Felícia sua felicidade. Felícia recebe o convite de casamento de Germano.
Amor e Pátria
O drama Amor e Pátria, em um ato, desenvolve sua ação no Rio de Janeiro, no dia
15 de setembro de 1822. Na trama estão as personagens: Plácido; Prudêncio; Luciano;
Velasco; Afonsina; Leonídia; senhoras e cavalheiros; povo.
Amor e Pátria foi encenada em
1863 no Teatro Ginásio Dramático.
A história tem início com o diálogo entre Plácido, Leonídia e Prudêncio. Os
primeiros são os pais de Afonsina, a protagonista. O tio de Afonsina, Prudêncio, critica os
pais pela educação dada à moça, por ser voltada às artes e à política, e não aos afazeres
domésticos. Afonsina entra em cena e comenta que está curiosa com o conteúdo de uma
caixa de veludo azul na sala. O tio lhe critica a curiosidade. Ela começa a discutir política e
indaga do patriotismo do tio. Este, por sua vez, ironiza o patriotismo de seu noivo, Luciano,
comparando-o a Tiradentes. Afonsina comenta que Luciano estava presente no dia do Fico,
e questiona o tio sobre a sua ausência em vários momentos importantes da história.
Prudêncio arruma desculpas de doenças para sua ausência aos fatos. Luciano entra em cena
e também indaga da coragem de Prudêncio. Saem de cena, e os pais de Afonsina dizem que
o conteúdo da caixa é o vestido de noiva, a coroa de flores e o véu para seu casamento, que
acontecerá no dia do seu aniversário. Na seqüência, Leonídia recebe uma carta na qual
informação de que seu marido fora denunciado como traidor da pátria por alguém jovem
muito próximo a eles. A culpa recai sobre Luciano. Plácido comunica que Luciano é seu
65
sobrinho, que ele criou o menino com carinho, a pedido de seu irmão, que havia falecido.
Plácido diz que entregará o dinheiro da herança deixada por seu pai a Luciano, que se diz
inocente e sai de cena. Velascos, um amigo da família, confessa a tramóia, pois tinha
intenção de ficar com Afonsina e seu dote, que agora não mais pertencia aos pais da
moça. Luciano retorna e comunica que pagara a fiança de seu tio. Plácido pede-lhe perdão.
Apaixonado, Luciano fala a Afonsina que os hinos da liberdade se misturarão aos do seu
amor.
1.4.4 Paulo Eiró: Sangue limpo (1863)
O poeta Paulo Francisco Emílio de Sales Eiró,
89
Paulo Eiró (1836-1871), ficou
conhecido como um poeta admirável e algumas das suas poesias eram até faladas nas
arcadas acadêmicas do Largo de São Francisco. Embora fosse professor formado, não
exercia a profissão. Em função das alternâncias da sua demência mental, os familiares
tiveram que pedir seu afastamento do emprego. Paulo Eiró era poeta republicano e
abolicionista, considerado um dos precursores da pregação contra a escravidão.
Paulo Eiró escreveu para o teatro as peças
Sangue limpo (1863) e Vanina de Ornano
(dramas); Chegamos tarde!, O traficante de escravos, Terça-feira de entrudo, Pedra
Filosofal
(comédias); Noivo à pressa, Fel e vinagre (farsas); À porta do teatro (cena
cômica). Excetuando
Sangue limpo (1863), toda a produção teatral deste autor foi perdida.
89
Em maio de 1866, Paulo Eiró, aos 31 anos, foi internado no Hospício dos Alienados, em São Paulo, vindo a
falecer em 27 de junho de 1871, de meningite, aos 36 anos de idade, nesse mesmo hospício. Conforme
mencionado, José Gonsalves afirma que, das nove peças do teatro de Eiró, somente Sangue limpo foi salva.
GONSALVES, José A. Paulo Eiró: notícia bibliográfica. In EIRÓ, Paulo.
Sangue limpo. São Paulo:
Typographia Literária, 1949, p. 12.
66
Os registros dessa produção foram localizados em um catálogo de teatro que era mantido
em Santo Amaro, no estado de São Paulo, onde foram encenadas.
90
Com habilidade cênica, Paulo Eiró anuncia em seu drama Sangue Limpo a
escravidão como a grande mancha da Independência proclamada em 1822. Fazendo com
que a tinta social se caracterize como uma forte marca desta peça.
O dramaturgo, conforme afirma José Roberto Faria, não tratou de “enaltecer o ideal
patriótico da Independência, mas de utilizar o pano de fundo histórico para abordar algumas
questões sociais de grande importância: a escravidão e os preconceitos sociais que
decorrem dela”.
91
A Independência torna-se, assim, acontecimento histórico que serve de
moldura para as ações colocadas em cena, evidenciando a liberdade na nação.
Sangue Limpo
Sangue limpo, drama em três atos, possui suas cenas ambientadas na cidade de S.
Paulo, no ano de 1822, no período entre 25 de agosto e 7 de Setembro. No elenco estão as
personagens D. José de Saldanha; Aires de Saldanha; Rafael Proença; Luísa Proença;
Onistalda; Vitorino; Mendonça; Liberato; Brás; dois desconhecidos; um Militar; um Cabo;
um Soldado; Povo. Esta peça foi encenada em São Paulo no dia 2 de dezembro de 1861, no
Teatro Harmonia Paulistana, e publicada em 1863.
A história tem início com o diálogo entre um militar e D. José sobre a situação do
Brasil e de D.Pedro I. Na seqüência, Luísa, seu irmão Rafael e o amigo da família Vitorino
conversam na rua, onde há muita confusão. Luísa se perde deles e, ao saber por uma mulher
que seu irmão havia desafiado um soldado português, desfalece. Aires socorre a moça e a
90
Ibid., p. 17.
91
FARIA, João Roberto, op. cit., p. 66.
67
conduz para a casa. Ambos se apaixonam. Aires insiste em revê-la. Ela reluta, mas acaba
cedendo. Por ser ele um fidalgo português e Luísa, brasileira descendente de negros, não
recebem o consentimento de Rafael e de D. José. Rafael, pelo devotado amor que sente pela
irmã, vai aos poucos cedendo. D. José tenta convencer o filho do erro que estaria fazendo,
conversa com Rafael e confirma sua decisão de ser contra a união. Mudam as personagens.
Aparece Liberato, um escravo, contando a Mendonça uma história. Em sua narrativa, o
escravo comenta que fora comprado por uma viúva muito perversa e que era
constantemente surrado por seu capanga. Um dia, em meio a um açoite, D. José apareceu e
ofereceu um cavalo em troca de Liberato. O negro se ajoelhou agradecido e D. José deu-lhe
as costas. Liberato jurou que nunca mais se ajoelharia para alguém. D. José o leva para
vigiar seu filho, que estava trancafiado em um quarto. Liberato não obedece às ordens e
Aires foge. O dono do escravo fica revoltado e exige que se ajoelhe e lhe peça perdão.
Liberato cumpre o juramento, não se ajoelha e mata D. José. Na cena seguinte, Aires vai ao
encontro de Luíza, que estava acamada. Aires declara novamente seu amor e a pede em
casamento. Rafael reluta, mas acaba concedendo. Aires fica sabendo da morte de seu pai e
cai em remorso. Rafael o consola e o chama de irmão. Rafael comunica que o Brasil é
agora uma nação livre.
1.4.5 Visconde de Taunay: Amélia Smith (1886)
68
Alfred d’Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, criado em ambiente culto,
impregnado de arte e literatura, desenvolveu bem cedo a paixão literária e o gosto pela
música e o desenho.
Sendo seu pai o preceptor de D. Pedro II (1825-1891), e induzido pelos familiares a
abraçar a carreira das armas, Alfredo de Taunay (1843-1889) cursou engenharia na Escola
Militar e como segundo tenente participou da expedição que tentou repelir os paraguaios
que dominavam o sul da província de Mato Grosso, durante a Guerra do Paraguai (1864-
1870).
Ainda que de origem estrangeira, Visconde de Taunay procurou mostrar em sua
literatura o sentimento de nacionalidade brasileira. O seu europeísmo aparece nas idéias
liberais que a seu ver deviam atrair e facilitar a imigração européia, da qual foi ardoroso
propugnador.
No drama
Amélia Smith, o ambiente é a alta sociedade da Corte. Observa-se que os
costumes são descritos com senso da realidade e sobriedade. Os aspectos políticos, sociais e
morais são evidenciados nas ações das personagens ou dos usos. A presença do estrangeiro
aparece como elemento marcante nesta peça.
Amélia Smith
O drama de Visconde de Taunay, Amélia Smith, em quatro atos, ambientado no Rio
de Janeiro de 1886, possui como personagens John Smith, capitalista inglês, marido de
Amélia Smith; Ayres Peres, marido de Lucia Peres; Jorge de Castro; Amadeu, filho de John
69
e Amélia Smith; Silveira, primo de Ayres Peres; Jaborandy; D. Prudência; D. Francisca;
Julia Nunes, mulher do Conselheiro Simplício Nunes; Jacintho Pires; Siqueira de Moraes;
Dr. Moreira Alves; Arminda Soares, mulher de Mendes Soares; Dr. Ramos, médico; D.
Molina Regis, Diplomata Peruano; Mariúna, ama de Amélia; Martim Pedro, criado de John
Smith; um criado de Hotel.
O mau uso do dinheiro, a ostentação, e gastos excessivos colocam a família de Aires
Peres em sérias dificuldades financeiras. Neste contexto, chega da Bahia o amigo
estrangeiro John Smith para visitar Aires e rever sua família. John comenta que está muito
bem financeiramente e que pretende se casar. O inglês pede ao amigo que o ajude a
encontrar a moça certa para ser sua esposa. Aires sugere que John conheça sua prima, mas é
derrotado pela proposta de sua esposa, em casá-lo com sua filha Amélia, vendo, assim, no
estrangeiro a solução para os problemas financeiros da família. Amélia, moça ambiciosa, é
convencida pela família a casar com o capitalista inglês John Smith. Durante muitos anos,
Amélia vive um casamento tranqüilo e se torna uma referência de valores e inteligência na
sociedade. Todos admiram Amélia. Porém, ao conhecer Jorge de Castro, sua vida muda.
Amélia se apaixona e tem um caso com Jorge. Este parte para a França, onde está sua mãe
enferma. Amélia tem um filho de Jorge. Amadeu cresce cercado pelo amor de John, que
acredita ser seu pai. O menino fica doente e vem a falecer por um problema congênito
herdado do pai. A tragédia na vida de Amélia é instaurada.
1.4.6 França Júnior: Como se fazia um deputado (1863), Ingleses na costa (1864), O
defeito de família
(1870), O tipo brasileiro (1872), Dois proventos em um saco (1873) e
Caiu o Ministério! (1882)
70
Joaquim José da França Júnior, França Júnior, foi o comediógrafo que fez da
mediocridade e do interesse os principais argumentos de suas peças que tratam das relações
interpessoais na sociedade fluminense de sua época.
As peças de França Júnior apresentam-se realistas e formalmente bem elaboradas.
Considerado um dos fundadores da comédia brasileira, procurou preservar a pureza do
sentimento juvenil. O consolidador do teatro de costumes não poupa ninguém,
satisfazendo-se em cobrir de ridículo até os bem intencionados, utilizando-se de enredos
aparentemente anedóticos.
França Júnior fez de suas comédias pequenas caricaturas de aspectos variados do
cotidiano da família fluminense, como no caso de
O defeito de família e Dois proventos em
um saco.
Outro alvo de suas comédias é o “estrangeiro”, sobretudo o “inglês”, e os privilégios
que obtém do governo brasileiro, como em
O Tipo Brasileiro e Caiu o Ministério,
comédias representadas em 1882. E também como mote o estrangeiro, mesmo não
aparecendo em cena, desenvolve sua trama de
Ingleses na costa. Importante como painel
crítico da política brasileira a peça
Como se fazia um deputado traz à cena as artimanhas da
política dos “coronéis”.
De acordo com Sábato Magaldi,
França Júnior mostra um grande domínio da carpintaria teatral, e usa com
segurança diálogos simultâneos e elipses, ambicionando exprimir
complexas arquiteturas cênicas. Por isso, escreveu algumas das comédias
mais rasteiras entre as que figuram em nosso repertório, se distinguem
entre as melhores da dramaturgia brasileira.
92
92
MAGALDI, Sábato, op. cit., p. 132.
71
Como se fazia um deputado
A comédia em três atos Como se fazia um deputado foi representada pela primeira
vez no Rio de Janeiro, no Teatro Ginásio Dramático, em 14 de abril de 1882.
Esta peça possui em seu enredo as personagens Major Limoeiro; Tenente-Coronel
Chico Bento, do Pau Grande; Henrique, bacharel em Direito; Galvão Domingos, escravo de
Limoeiro, Gregório, professor público da freguesia do Barro Vermelho; Custódio Rodrigo,
juiz de paz da mesma freguesia; Flávio Marinho, inspetor de quarteirão; Pascoal Basilicata,
italiano; Rasteira-Certa, Arranca-Queixo e Pé-de-Ferro, capangas de eleição; Votante;
Votante; Dona Perpétua, mulher de Chico Bento; Rosinha, sua filha; escravos e escravas da
Fazenda do Riacho Fundo, votantes, capangas, povo, e outros.
A ação se passa no interior da Província do Rio de Janeiro, no ano de 1882, em um
período também pós Independência e apenas a sete anos da Proclamação da República.
Apresenta a história do jovem doutor Henrique, recém formado, que chega ao interior e é
induzido a casar com uma amiga de infância, Rosinha, e se tornar deputado. Henrique, ao
chegar com seu diploma, encontra Perpétua, Limoeiro, Chico Bento e Rosinha. Henrique é
apresentado a Rosinha, uma amiga de infância. Os homens falam de política e Limoeiro
comenta que esta é uma carreira boa e que Henrique deve segui-la. O tio de Henrique
sugere que ele deve casar com Rosinha. Os pais dela fazem o mesmo. Ambos relutam no
início, mas ficam a sós, conversam e acabam encontrando encantos um no outro. Ele a pede
72
em casamento. Os outros voltam à cena. Acontecem as eleições. Artimanhas são utilizadas
para dar a vitória a Henrique. Um imigrante italiano é induzido a votar com nome falso. O
negro também recebe autorização para votar. Henrique vence e é convencido por Rosinha,
influenciada por Limoeiro, a seguir a carreira política.
Ingleses na costa
A comédia em um ato Ingleses na costa tem o enredo desenvolvido na cidade de
São Paulo no ano de 1864. As personagens desta peça são: Luís de Castro, tio de
Félix, estudante do ano de Direito; Silveira, dito do ano; Feliciano, outro estudante;
Lulu; Ritinha e Teixeira.
A história tem início com dois jovens dormindo e alguém batendo à porta. Feliciano
reclama porque estão ainda dormindo e pergunta se pensaram que seria um credor, um
inglês. Feliciano afirma que, segundo Balzac, os ingleses são raças “desapiedadosas”, pois
perseguem os outros por toda a parte: os ingleses são inimigos. Ainda comenta que os
ingleses serão culpados da morte do Brasil, segundo Silveira. Os dois jovens são
estudantes, dependentes de favores de parentes, cuja “boa vida” os deixava endividados e,
portanto, vivem fugindo dos credores. Teixeira, um credor, entra nos aposentos e é
ridicularizado por seu olho de vidro e sua ignorância. Os estudantes citam personalidades
da música e literatura estrangeira. Teixeira sai indignado. Felix se prepara, com roupas
arranjadas, para ir almoçar na casa do Barão de Inhagoslaú. Feliciano e Silveira ouvem as
vozes Lulu e Ritinha. Lulu paga o almoço para os quatro (os dois rapazes estavam
famintos). Apesar da fome, Feliciano olha com desdém. Este associa os ingleses aos
credores. Na seqüência, Feliciano grita: “– Ingleses na Costa”, correm todos. Chega o tio de
73
Félix, Luís de Castro, que é seduzido e embriagado pelas moças. Entram Silveira, Feliciano
e, na seqüência, Félix. O tio o repreende o sobrinho. Este avisa que contará a sua tia o
estado de Luís de Castro. O tio paga as contas, e o sobrinho promete melhorar.
O tipo brasileiro
Comédia em um ato, O tipo brasileiro desenvolve seu enredo no Rio de Janeiro, no
ano de 1872. As personagens que compõem a trama são Teodoro Paixão, Mr. John Read,
Henriqueta Paixão, Henrique e um criado. A peça
O tipo brasileiro foi encenada no Teatro
Fênix Dramática em 1872.
A história começa com Henriqueta, cantando e bordando na sala quando entra
Henrique. Ela se assusta e o avisa que não deveria estar ali. Ambos se declaram
apaixonados, porém Henriqueta comenta que, segundo o pai, os compatriotas são
indolentes, fúteis, sem educação e estragam a fortuna do país. O pai chega e não gosta da
presença de Henrique, que tanta agradá-lo. Teodoro começa a elogiar John Read, “um
engenheiro distinto”. Henrique fala que existem muitos embusteiros (estrangeiros) no
Brasil, e que não se oportunidade aos brasileiros. Teodoro diz que a inteligência
estrangeira é superior a nossa. Henrique diz que Teodoro é o “tipo brasileiro”, ou seja,
despreza a si próprio, em todos os lugares, a cada momento, nas coisas mais insignificantes
da vida e nos maiores acontecimentos dela. Na escola se sabe mais do estrangeiro do que a
geografia e história nacional e assim por diante. O brasileiro tem vergonha de seus
produtos. Após a discussão, Teodoro e a filha conversam. Este afirma que a língua
portuguesa é burlesca e pouco significativa. Lamenta pelo colégio brasileiro em que a
moça estudou e ele também. Entra em cena o inglês, fala que sente saudade da moça, elogia
74
a terra e fala que o brasileiro não dá o verdadeiro valor e não utiliza suas riquezas. Henrique
se disfarça de francês e chega a casa de Teodoro. Esse é bem recebido pelo dono da casa.
Henrique fica sabendo que Mr. John quer encanar suco de caju, e apresenta uma outra idéia
mirabolante. Teodoro fica indeciso entre as duas. Henriqueta é chamada para fazer
companhia ao francês. Ele não o reconhece de imediato. O inglês sente ciúmes e retorna da
conversa com Teodoro. Eles brigam. Desafiam-se a um duelo. E Henrique o nome de
um francês que assusta o inglês. John chama Henrique no canto e avisa que só deseja o dote
da brasileira para pagar a conta, que devia ao suposto irmão de Henrique. Teodoro escuta a
conversa e expulsa o inglês. O francês pede a moça em casamento, mas o pai diz que ela i
se casar com um brasileiro: Henrique. Este tira o disfarce. Tudo acaba bem.
O defeito de família
Em ato único, a comédia O defeito de família foi representada pela primeira vez no
Teatro Fênix Dramática, em 25 de Setembro de 1870. Seu elenco conta com as
personagens: Matias Novais, capitão de cavalaria; a esposa, Gertrudes Novais; a filha,
Josefina Novais; Ruprecht, criado alemão; Artur de Miranda e André Barata, o sapateiro. A
ação passa-se no Rio de Janeiro, no mesmo ano.
A peça inicia com a cena em que Gertrudes elogia o capricho do criado estrangeiro.
Sua filha Josefina concorda. Matias, o pai, que possui uma linguagem caipira,
pronunciando palavras erradas, elogia o criado alemão, sua dedicação e lealdade. Josefina
elogia um romance de J. Manoel de Macedo. Ruprecht entra e comenta para si que a moça
não é boa coisa. Eles se retiram e chega a casa Artur, o noivo. Após algumas conversas,
Artur se mostra extremamente preocupado com as aparências físicas. Este fato assusta a
moça, pois a mesma esconde algo que tem medo que o noivo descubra. Ruprecht chama o
75
noivo à parte e fala que ela o trai, pois encontrara por diversas vezes um homem a seus
pés. André Barata entra em cena e comenta que se sente apavorado de ter que entrar às
escondidas na casa da moça. Ao encontrar com Josefina, que se espanta em vê-lo, André
diz que possui pontualidade inglesa. Pede para ver o pé da moça. Neste instante entra Artur
e na seqüência o criado Ruprecht. O criado avisa que vai embora da casa, pois não são
honestos. Artur briga com Josefina, acusando-a de traição. Depois de muita briga,
Gertrudes resolve esclarecer. Ela fala que a filha tem joanete e André é pedicuro. Artur e
Josefina se reconciliam. Artur fala a Ruprecht que as aparências muitas vezes enganam.
Dois proventos em um saco
A comédia Dois proventos em um saco passa-se em Petrópolis, no verão de 1873.
Esta peça foi representada no mesmo ano no Teatro Fênix Dramática. Compõem seu elenco
as personagens Amélia Teixeira; Luiz Teixeira, seu marido; Catarina, criada alemã;
Boaventura Fortuna da Anunciação.
A história começa com Aurélia e Catarina conversando. Aurélia conta que, em
função do fígado do marido, eles têm que morar em Petrópolis, que, para ela, é bom no
verão. A patroa avisa que fez um jogo com o marido e que se ganhar eles voltarão ao Rio
de Janeiro. Caso perca, ela bordará um par de chinelos para ele. Chega Boaventura.
Primeiramente, é recebido pela criada, que o manda sair. Aurélia entra em cena e, com
pouca vontade, escuta o homem. Boaventura informa que não achou vagas nos hotéis. Nem
no hotel dos estrangeiros. Ele diz que tem um livro que ensina os truques para uma mulher
enganar os homens. Aurélia se mostra interessada. Boaventura fala de sua vida e, de
repente, se declara a Aurélia. O marido retorna e essa manda Boaventura se esconder. Luís
76
vai até ela e lhe presentes. Ao falar sobre o Rio percebe que a esposa está aflita. Ele
desconfia e Aurélia dá a chave para ele, dizendo que tem um homem ali. Ele pega a chave e
fica furioso. Aurélia fala a senha para ganhar o jogo. Entram num acordo e Luís vai para
seu quarto. Aurélia chama Boaventura que está do outro lado e o manda embora, dizendo
que consegue enganar dois homens de uma vez e que ele deveria acrescentar isto no
livro.
Caiu o ministério!
A comédia de costumes, em três atos, representada pela primeira vez em 1882, no
Teatro Ginásio Dramático,
Caiu o ministério! é ambientada na cidade do Rio de Janeiro.
No elenco estão as personagens: Dr. Raul Monteiro; Ernesto; Goularte; Pereira;
Desembargador Anastácio Florindo Francisco Coelho; Bárbara Coelho, sua mulher;
Mariquinhas, sua filha Felicianinha; Filomena; Beatriz; Filipe Flecha; Mr. James;
Conselheiro Felício de Brito, Presidente do Conselho; Ministro da Guerra; Ministro do
Império; Ministro de Estrangeiros; Ministro da Justiça; Dr. Monteirinho, Ministro da
Marinha; Senador Felizardo; Pereira Inácio; Arruda; Ribeiro; Azambuja; um vendedor de
bilhetes de loteria; quatro vendedores de jornais.
Os avisos dos jornais sobre a mudança de Ministério dão início à trama. D. Bárbara
comenta com a filha, Mariquinhas, que o pai quer ser Ministro. Mariquinhas acha bom o
pai ser ministro. Beatriz fala para com sua mãe, Filomena, que desejaria muito que seu pai
fosse ministro. Raul, escondendo-se de Beatriz, diz a Goularte que ela, gostando de seus
elogios, disse a ele para pedir-lhe a mão ao pai. Todavia, ele não faria isso porque a moça
não é rica. Mr. James, considerado por Beatriz e a mãe o inglês mais rico do Brasil, conta a
Pereira que Beatriz disse a ele que deveria pedir sua mão ao pai, porém como ela não tem
77
dote ele não se interessa. Felipe comenta com Ernesto que é apaixonado por Beatriz. Numa
conversa, Mr. James fala a Raul que no Brasil sem os criados nem o Governo, no caso o
Ministério, está bem. Para o inglês, mesmo mudando os cargos, tudo fica parado. O pai de
Beatriz, Conselheiro Felício de Brito, é chamado para o Ministério. A história muda. Agora
Mr. James e Raul querem se aproximar de Beatriz. Acontece a reunião na casa de Brito. Os
ministros devem recomendar uma indicação para o ministério da Marinha. O Ministro do
Império recomenda seu sobrinho recém formado de vinte e dois anos. Dr Monteirinho é
nomeado Ministro. Mr. James vai conversar com ele e propõe uma invenção absurda: de
uma locomoção para o Corcovado, num só trilho, puxada por cachorros. Beatriz induz o pai
a recomendar a invenção. Felipe se declara a Beatriz. Ela se espanta, pois ele não lhe pediu
emprego nem privilégio. O Ministério leva a votação o projeto do inglês. Dr. Monteirinho é
vaiado no discurso. Cai o Ministério. Raul diz que não quer mais Beatriz. Felipe chega e
desmaia. Ao acordar, informa que ganhou uma fortuna e pede Beatriz em casamento. O
inglês diz que é um bom negócio.
1.4.7 Artur Azevedo: Cocota (1885)
O gênero ligeiro foi aos poucos obtendo preferência progressiva, nos fins do século
XIX. A ópera-bufa, opereta, o cancã componentes da vida noturna parisiense
nacionalizavam-se com muita rapidez na Corte, que procurava abandonar os costumes
provincianos. Neste contexto, Artur Azevedo se insere como um dos grandes dramaturgos
do teatro musicado, das peças “ligeiras”.
Artur Azevedo foi um dos grandes defensores da abolição da escravatura, em seus
ardorosos artigos de jornal, em cenas de revistas dramáticas e em peças dramáticas, como
78
no caso de Cocota, escrita em colaboração com Moreira Sampaio e musicada por Carlos
Cavalier. As experiências de teatro musicado, preponderantes na virada do século XIX, e
que iam do declamado ao cantado, da revista à opereta e à burleta, incluem no circuito de
“alta comédia”.
Artur Azevedo, com seu teatro, contribuiu para o lançamento de compositores e
músicos populares, numa época em que o principal mercado de trabalho dos artistas era o
teatro, os cabarés e os cafés dançantes.
Sobre o gênero teatral de Artur Azevedo, Sábato Magaldi comenta que este
“firmou-se como conseqüência de uma necessária opção de lazer para as camadas da
crescente classe média urbana do Rio de Janeiro”.
93
O teatro de revista tinha como
característica passar em revista os principais acontecimentos do ano, pondo em cena os
fatos, revividos com humor e o recurso da dança e da música.
Artur Azevedo foi um descobridor de assuntos do cotidiano da vida carioca, e
observador dos hábitos da capital. Os namoros, as infidelidades conjugais, as relações de
família ou de amizade, as cerimônias festivas ou fúnebres, tudo o que se passava nas ruas
ou nas casas lhe forneceu assunto para as histórias.
Seus textos procuraram fixar aspectos da vida e da sociedade carioca. Empreende-se
deles um importante registro das mudanças da Corte. Suas temáticas e argumentos
permanecem atuais, o que faz de Artur Azevedo uma das mais expressivas vozes do teatro
brasileiro de todos os tempos.
Cocota
93
MAGALDI, Sábato, op. cit., p. 144.
79
Representada pela primeira vez no Teatro Santana, em 6 de março 1885, em quatro
atos, a revista cômica
Cocota é ambientada em Tinguá e no Rio de Janeiro, no ano de 1884.
Em seu elenco estão as personagens Cocota; os fazendeiros Gregório e Serapião; o
espanhol Bergaño; Crispim; Venâncio; Romualdo; Júpiter; Netuno; um Pintor; um
Espírita; o Gás; um Feitor; Tomé; dois Jogadores de trancinha; um Tritão; Doutor
Alcatrão; dois Abolicionistas; um Jóquei; um Candidato; um Professor suspenso; um
Criado tísico; um Apostador de corridas; um Vendedor de peixes; um Proprietário de
Cavalos; um Janota; um Intérprete; Doutor Fenol; um Jangadeiro; um Guarda; Mercúrio; a
Arte Nacional; o País; a Atriz; Hermínia; Quitéria; o Anúncio; Mademoiselle Delsol; a
Publicação a pedido; imigrantes italianos; Doutor Amoníaco; Doutor Caparosa; Doutor
Bromureto; Membros de uma Comissão Vacínico-sanitária; Barcelos, auxiliar da mesma
comissão; Ganganelli; pessoas do povo; vendedores de jornais; cocheiros; carregadores;
urbanos; divindades marinhas; frades; soldados; espíritos; jóqueis; apostadores de corridas;
candidatos derrotados, e outros.
A história tem início com Gregório, com muita tosse, dizendo que foi por causa da
Missa do Galo que ficara doente. Estão jogando, quando Gregório percebe sangue na
escarradeira. Ele afirma querer fazer seu testamento. Serapião informa que chegou uma
erva virgiliana que melhora os tísicos. Cocota sugere que se mudem para a corte. Bergaño,
estrangeiro, e Serapião discutem sobre abolicionistas. Bergaño, abolicionista, se declara a
Cocota e pede a ela que se cuide com os janotas do Rio de Janeiro. Cocota avisa ao
padrinho que Bergaño irá com eles. Gregório comenta que o espanhol está apaixonado e
que é um bom rapaz, apesar de ser estrangeiro. Eles levam uma abóbora para expor no Rio.
No meio do caminho Bergaño se perde e não chega ao Rio com eles. Gregório se mete em
80
confusão logo à chegada e vai preso. Cocota, sozinha, fica apavorada e Venâncio lhe
oferece ajuda. Romualdo acha e fica com a abóbora. Nesse texto há muitos versos e
personagens mitológicos. Gregório chega a um hotel e ao conversar com o atendente
descobre que a erva virgiliana não faz efeito. Bergaño chega ao mesmo hotel. Gregório fica
feliz em revê-lo, porém lamenta ter perdido Cocota. Bergaño confessa que quer casar com a
moça. Na estação, Crispim descobre que Romualdo havia ficado com a abóbora e vai
contar a Bergaño e Gregório. A comissão sanitária recomendações de higiene ao hotel e
confisca a comida, que fora servida aos hóspedes. Romualdo sai à procura de Dona Maria.
Cocota diz a Venâncio que seu “dindinho” anda com uma abóbora enorme. Venâncio acha
que conhece a pessoa. Eles saem à procura deste homem. Na casa de Romualdo,
descobrem, através de Tomé, que ele foi a Campo Grande com a abóbora. Os abolicionistas
entram em cena e comentam que estão indo às casas para ver se escravos e ao verem
Tomé descobrem que é africano e escravo. Eles o libertam. Cocota acredita que seu tio
esteja na corrida de cavalos. Bergaño encontra Gregório e avisa que tinha sido enganado.
Outras entidades como a Imprensa, o Anúncio, a Publicação, o País são personificados
discutindo a realidade. Gregório fala a Bergaño que irá libertar seus escravos e pergunta se
os imigrantes não gostariam de trabalhar com eles. Os imigrantes italianos se apresentam na
língua materna. Um intérprete fala em italiano aos imigrantes. Os imigrantes aceitam a
oferta. Numa outra cena, Cocota confessa a Quitéria que tem saudades Bergaño. Gregório e
Bergaño encontram Romualdo. uma confusão, Romualdo pensa que Cocota é D. Maria
e diz que é seu noivo. A confusão é desfeita. Cocota encontra o padrinho e Bergaño.
81
1.4.8 Machado de Assis: Quase Ministro (1863), Lição de Botânica (1906)
Machado de Assis, em seu texto “Idéias sobre o teatro”, publicado na revista O
Espelho, de 25 de setembro de 1859, comenta que “A arte dramática não é ainda entre nós
um culto; as vocações definem-se e educam-se como resultado acidental. As perspectivas
do belo não são ainda o ímã da cena”.
94
Machado declara que a arte teatral não recebia o
valor que merecia, uma vez que não lhe eram concedidos incentivos, e isso era evidenciado
pelas limitações da produção teatral.
Machado de Assis ainda deixa clara a preocupação sobre a limitação e a redução da
arte teatral ao “foro de uma Secretaria de Estado”, ou seja, às limitações do Conservatório
Dramático,
95
que para ele atuava como o corpo de polícia, “censura e pena”.
96
De acordo com João Roberto Faria, Machado condena as peças românticas que se
afastam da realidade e defende um teatro “com alcance moralizador, voltado para a
reprodução da vida social em cena”.
97
A produção teatral de Machado de Assis marca por mostrar, além de outros, um
mapa da estrutura simbólica da política brasileira. Na peça
Quase Ministro, o sujeito
político, a política como fabulação de fatos, o analfabetismo político são pontos cruciais da
trama. O enredo anuncia o ceticismo diante da bajulação nacional aos políticos. Ao saber
que o apaziguado não figurava no novo ministério, o cortejo de aduladores, que se mobiliza
94
ASSIS, Machado. Idéias sobre Teatro. In: Obras completas de Machado de Assis, op. cit., p. 204.
95
Sobre o Conservatório Dramático, Machado afirma que ser uma forma de censura, um aparelho político de
intervenção na arte dramática. Tal categoria política existiu, e isto revela que para Machado a criação de um
campo estético - como produção de subjetivação nacional - precisava da atuação das forças intelectuais
moleculares em aliança com a força intelectual dos aparelhos políticos estatais. O Conservatório não poderia
existir como uma máquina patrimonialista ou como uma máquina moral de repressão da narrativa dramática;
ela teria que funcionar como uma força de agenciamento qualitativo do trabalho estético. No entanto, entre
1862 e 1864, o Conservatório Dramático, o órgão censor, vai receber a colaboração de Machado.
96
ASSIS, Machado. O Conservatório Dramático. In: Obras completas de Machado de Assis, op. cit.,p. 204.
82
à simples notícia de sua possível nomeação, desfaz-se em busca do verdadeiro escolhido.
Em
Lição de Botânica enfeixa o cunho didático a Botânica aplicada conduz o homem
ao amor. Um barão sueco entra em cena com o propósito de pedir que fechem a porta ao
seu sobrinho, em virtude de botânica e matrimônio serem inconciliáveis. A viúva,
entretanto, o enreda em malhas tão sutis que se desfaz sua dureza de cientista.
Quase Ministro
Publicada em 1863, esta comédia realista, em ato único, foi escrita especialmente
para ser representada em um sarau literário e artístico em 22 de novembro de 1862, na casa
de alguns amigos de Machado de Assis, que residiam na rua da Quitanda.
98
A ação se passa
no Rio de Janeiro e é ambientada na casa da personagem Luciano Martins.
As personagens que compõem a peça são: Luciano Martins, Deputado; Dr. Silveira;
José Pacheco; Carlos Bastos; Mateus; Luiz Pereira; Muller; Agapito.
O enredo é inaugurado com o diálogo entre Martins e Silveira, no qual comenta sua
atração por cavalos. Martins avisa ao amigo que está para ser indicado como Ministro. Na
seqüência, Pacheco entra no diálogo e, sabedor da possível indicação, solicita um cargo
na pasta de Martins. Outros vão chegando e fazendo o mesmo pedido. Bastos, citando
ícones da mitologia grega, apresenta seu projeto de peça de artilharia, afirmando que
ingleses, alemães e americanos lhe fizeram propostas, porém seu amor à pátria o impede
de vendê-lo a estrangeiros. Um outro personagem que também deseja tirar proveitos do
quase ministro é Muller, que afirma serem os estrangeiros os melhores artistas. Mateus
questiona esta admiração e fala dos valores nacionais. Martins, que havia se retirado, volta
97
FARIA, João Roberto, op. cit., p. 101.
83
à cena e comunica não ser mais ministro. Aos poucos, um por um vão saindo e Silveira
ironiza Martins, dizendo que prefere os cavalos, pois com eles não tem desilusão.
Lição de Botânica
A comédia realista Lição de Botânica (1906), em ato único, tem como cenário
Andaraí, Rio de Janeiro. As personagens do enredo são D. Helena; D. Leonor ; D. Cecília e
o Barão Sigismundo de Kernoberg.
O enredo se inicia com o estrangeiro, Barão Sigismundo de Kernoberg, um sueco-
botânico, que, contrário ao romance do sobrinho, Henrique, com Cecília, manda um bilhete
à mãe da moça. D. Helena recebe. Nesse o Barão solicita 10 minutos de seu tempo para
conversarem. Antes mesmo de receber a resposta, o Barão visita D. Leonor. Ele pede que
ela não receba em sua casa seu sobrinho, que está apaixonado por sua sobrinha Cecília.
Após o Barão sair, D. Leonor, indignada, comenta que não os quer (Henrique e o Barão)
em sua casa. O Barão retorna para pegar o seu livro que havia esquecido. Ele fica espantado
com a sabedoria de D. Helena, que está pondo em prática seu plano de neutralizar o Barão.
Encantado com a vontade de conhecimento e delicadeza de Helena, Sigismundo comenta
que poderia ensinar botânica à moça. Depois de idas e vindas, o Barão percebe que gosta de
Helena. No final ele pede a mão de Cecília ao sobrinho e a de Helena para ele. A mão de
Cecília é concedida imediatamente; a de Helena, D. Leonor comunica que será decidida em
90 dias, deixando assim o Barão aflito.
98
ASSIS, Machado de. Quase Ministro In: MARINHO, Teresinha et alii. (Org) Clássicos do teatro
brasileiro:
Machado de Assis. Vol: 6. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982, p. 130.
84
2. A NAÇÃO E AS NACIONALIDADES NO TEATRO BRASILEIRO
À arte cumpre assinalar como um relevo na história as aspirações éticas do povo
e aperfeiçoá-las e conduzi-las, para um resultado de grandiosos futuro.
O que é necessário para este fim?
Iniciativa e mais iniciativa.
85
Machado de Assis
(O espelho, 2/10/1859)
2.1 A nação e os brasileiros: os segmentos sociais
A partir do foco sobre o local e o tempo dos enredos, propõe-se
apresentar/desenvolver uma leitura que insira a discussão sobre a idéia de nação em um
país cuja identidade estava em formação, com ênfase nas diferentes representações de
brasileiros e estrangeiros.
Mesmo anunciando um contexto histórico, as peças teatrais não escondem seu
caráter ficcional. Entretanto, não uma verdade apresentada por um narrador, mas sim,
múltiplas verdades, ditas através dos diálogos. Segundo Bakhtin, toda enunciação é
marcada por componentes sociais e ideológicos, expressos nas formas de apresentação do
discurso.
99
Por isso, a leitura proposta para as peças em estudo se atém às formas de
apresentação dos fatos – pelos diálogos –, e às inter-relações discursivas que configuram as
99
BAKHTIN, Mikhail. Para uma história das formas de enunciação nas construções sintáticas. In: Marxismo
e filosofia da linguagem,
op. cit., p. 139-96.
86
tramas, além de observar que perspectiva de nação e que nacionalidades vão estar presentes
através das personagens.
Observa-se que, em suas tramas, os autores, através de personagens brasileiras,
trazem à cena diferentes segmentos da sociedade de seu tempo. De maneira muito peculiar,
cada dramaturgo brasileiro expõe ou pretere os representantes de sua época, dando-lhes
espaço, ou um lugar secundário, ou simplesmente os omitindo. Tal aspecto faz com que se
evidencie, neste estudo, um exame das diferentes personagens brasileiras e sua condição
social, através do seu lugar social nos enredos.
2.1.1 A representação dos escravos
A primeira peça estudada sob a perspectiva das personagens brasileiras que ganham
voz ou são silenciadas em virtude da sua condição social é o drama
Sangue limpo, de Paulo
Eiró, encenada em 1861 e publicada em 1863. O enredo é datado no período entre 25 de
agosto e 7 de setembro de 1822. O tom de desalento e pessimismo que se revela na
produção poética de Eiró está ausente nesta peça.
A peça de Eiró não tende a ocultar fraturas e divisões na construção da identidade
brasileira. Há, sim, uma preocupação com a alusão ao real, embora o autor utilize o recurso
da ironia, conforme se constata nos diálogos. No delinear da trama, observa-se, através das
cenas, nas falas de portugueses e brasileiros, a forma peculiar desse autor refletir sobre o
conceito de nação e sobre os posicionamentos dos nacionalistas, principalmente na
utilização da palavra “pátria”.
87
O enredo de Sangue limpo anuncia a história de um romance proibido entre Luísa
Proença, uma moça de sangue mestiço, e Aires de Saldanha, fidalgo português, tendo como
pano de fundo o processo histórico da Independência e a manutenção da escravidão.
Ressalta-se que a delimitação do tempo e o olhar para o passado caracterizam, nesta obra,
uma postura do escritor dramático do seu tempo.
A ação tem início com uma conversa entre um militar e D. José, o pai do jovem
Aires, sobre a situação do Brasil. Em sua fala, D. José comenta que a rebeldia de D. Pedro I
já era previsível:
– Culpa têm os que impeliram em tal caminho. Não lhe sabiam da
índole? D. Pedro de Alcântara não sabe receber ordens de quem quer que
seja.
100
Seu interlocutor, o militar português, afirma com veemência:
Como vos enganais! A desobediência do príncipe nunca teve por
motivo o pundonor ofendido. muito que êle vive sonhando com uma
coroa americana, de ouro, cravada de diamantes.
101
Nota-se que, para o militar, o caráter e a posição de D. Pedro I, no Brasil,
favoreceram-lhe a realização do desejo de infringir as ordens de Portugal, muito mais por
convicção pessoal que por ambição política.
A idéia de orgulho ou de ambição que se extrai deste diálogo leva-nos a constatar, já
no início da trama, que a ironia é perceptível nas falas dos portugueses sobre o processo da
Independência e o nascimento da nação brasileira.
Tal evidência se aproxima do constatado por Bakhtin, que a consciência do autor
guia e orienta as concepções e ações das personagens: “abrangida de todos os lados como
100
EIRÓ, Paulo, op. cit., p. 29.
101
Ibid., p. 29.
88
em um círculo, pela consciência concludente do autor a respeito dele e do seu mundo”.
102
Percebe-se, nos discursos das personagens, o entendimento de Eiró sobre como seria a
consciência de portugueses ante a rebeldia de D. Pedro I. Eiró discute, mais do que sobre
retratos retocados do Brasil, o processo de Independência do país, o que confere maior
verossimilhança a
Sangue limpo. Ao colocar em cena o nobre e o militar lusitanos, o autor
não atenua ou exalta tal acontecimento; procura, sim, representar diversas visões que
emergem do referido processo.
Ao fato da peça
Sangue limpo ser escrita em 1863, portanto a posteriori, do tempo
em que é ambientada a trama, 1822, é importante, inicialmente, observar que Machado de
Assis ressalta que a atualidade espaço-temporal de uma obra não está em falar de fatos da
realidade imediata, mas sim na identificação do escritor com seu momento histórico: o que
se deve exigir dele, antes de tudo, é certo sentimento que o torne homem do seu tempo e do
seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.
103
Mesmo que a trama seja ambientada quarenta anos antes, o tempo da
escritura/edição anuncia a consciência do autor sobre o seu tempo e seu contexto. Ressalta-
se que a atualização do espaço e do tempo acontece também pelo viés das denúncias que
emanam da trama de Eiró, demonstrando ser ele um homem de seu tempo, isto é, atento e
preocupado com as questões que lhes são pertinentes.
É a partir desse olhar sobre as diferenças que, na cena XII, o irmão de Luísa, Rafael,
de origem humilde e mulato, com certa ascensão social, em uma conversa com D. José,
descreve um outro contexto. No enredo, nesse momento, D. José procura Rafael para tentar
convencê-lo sobre a impossibilidade da união entre Luísa e Aires. Rafael, indignado, ilustra
102
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal, op. cit., p.11.
89
um outro panorama do Brasil. Ele aponta para a injustiça, a discriminação, a existência de
brasileiros vivendo abaixo da condição humana:
Por causa da minha cor? Tem razão. A sorte do homem pardo é tão
miserável! O pobre pode chegar a fortuna; o plebeu pode alcançar honras
e glória; mas o homem que traz em si o selo de duas raças diversas e
inimigas, o que poderá fazer a êle? (...) (...) Sou filho de um escravo, e
que tem isso?... onde está a mancha indelével?... O Brasil é uma terra de
cativeiro. Sim, todos aqui são escravos. O negro que trabalha seminu,
cantando aos raios do sol; o índio que por um miserável salário é
empregado na feitura das estradas e capelas; o selvagem, que, fugindo às
bandeiras, vaga de mata em mata; o pardo a que apenas reconhece o
direito de viver esquecido; o branco enfim, o branco orgulhoso, que sofre
de má cara a insolência das Côrtes e o desdém dos europeus. Oh! Quando
caírem todas estas cadeias, quando estes cativos todos se resgatarem,
de ser um belo e glorioso dia!
104
Nota-se, agora, nesta nação em formação, que o olhar de Rafael traz à cena o
brasileiro na condição do pardo, mulato e do negro escravo. Em sua fala, a personagem
desmascara a situação do negro, que, para a sociedade daquele tempo, não era considerado
cidadão, tampouco ser humano. Ao negro, ou aos seus descendentes, não possibilidade
de qualquer reconhecimento. Trocado, vendido, massacrado, o negro tem o estatuto de
mercadoria. Ao exemplificar que mesmo o pobre pode almejar uma mudança de vida,
Rafael deixa claro que, ao escravo, é vedada qualquer possibilidade de ascensão ou
legitimação de direitos. Mesmo às vésperas da Independência, a intervenção de Rafael
revela a existência de outros escravos – de acordo com suas palavras, “o Brasil é um país de
cativos”.
Sobre a independência restrita, mais especificamente, sobre o contexto da
escravidão que permeava essa época, no prefácio Eiró denuncia a presença da “nódoa
negra da escravidão” a manchar a Independência proclamada em 1822. Em suas palavras:
103
ASSIS, Machado. Instinto de nacionalidade e outros ensaios, op. cit., p.17-18.
104
EIRÓ, Paulo, op. cit., p. 78-79.
90
Penso eu (e êste pensamento parece-me digno de ser divisa de todos
aquêles que trabalham no magnífico edifício da arte nacional), penso eu
que o presente deve ser preparador do futuro; e que é dever de quantos
têm poder e inteligência, qualquer que seja a sua vocação e o seu pôsto,
do poeta tanto como estadista, apagar essas raias odiosas, e combater os
preconceitos iníquios que se opõem à emancipação completa de todos os
indivíduos nascidos nesta nobre terra. (...) Não será dramático desenrolar
a velha bandeira do Ipiranga, e nela apontar como antítese monstruosa a
nódoa negra da escravidão, verme nojoso que rói a flor de nossas
liberdades? Não será dramático mostrar o que fizeram nossos pais, e o
que nós temos a fazer para coroar sua obra?
105
a partir do prefácio, este drama romântico, de fundo histórico, põe em xeque uma
das grandes causas da edificação da nacionalidade, a Independência. Décio de Almeida
Prado, ao incluir
Sangue limpo no painel dos dramas históricos, exalta-lhe a perspectiva de
considerar o 7 de Setembro um ponto de partida, não de chegada. Conquistada a
Independência, a luta seria, agora, contra os preconceitos sociais.
106
O contexto histórico da época mostra que, mesmo independente de Portugal, o
Brasil ainda possuía população cativa, pois havia escravos, ou seja, mesmo com a
Independência foram mantidas as estruturas da época colonial (latifúndio, escravismo e
monocultura para exportação).
Emília Viotti da Costa comenta que após a Independência as idéias liberais foram
adaptadas aos interesses da classe dominante, ficando claro “para quem e por quem tinham
feito o país independente”.
107
O liberalismo brasileiro demarcava o fim dos laços coloniais
e não uma reformulação da estrutura de produção ou da sociedade. Neste sentido, além da
economia de exportação, permanecia ainda o sistema escravista. Ou seja, a existência de
negros cativos e a manutenção do tráfico negreiro.
105
Ibid., p. 25-26.
106
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro:, op. cit., p. 68.
107
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Editora UNESP,
1999, p.37.
91
José Bonifácio, um dos articuladores da emancipação política do Brasil,
demonstrava certa preocupação – para inglês ver – sobre a escravidão, cuja abolição
constituía uma exigência da Inglaterra para o reconhecimento da soberania do Estado
brasileiro. Todavia, a escravidão e a sua abolição não eram mais de competência da
Metrópole. Para o historiador José Murilo de Carvalho, em
Pontos e bordados: escritos da
História e da Política, o texto
Representação,
108
que José Bonifácio encaminhara à
Assembléia Geral Constituinte de 1823, sinaliza a necessidade de criar uma nação
homogênea, “sem o que nunca seremos felizes”.
109
É a partir desta perspectiva lançada pela personagem Rafael, que se traz à análise,
como representação do brasileiro, a personagem Liberato, um negro escravo. Na trama,
Eiró concede a Liberato a função de libertador de Luísa e Aires. É pelas mãos deste negro
que os apaixonados conseguem, no final da peça, poder viver o seu amor. Embora Liberato
tenha possibilitado esta união, a ele não é dada a oportunidade de ser cidadão ou sequer
108 José Bonifácio de Andrada e Silva, nascido em Santos (SP), em 1763, e falecido em Paquetá (RJ), em
1838, viveu 35 anos fora do Brasil. A maior parte de sua carreira profissional e política foi trilhada na Europa,
mas a sua influência intelectual foi tão significativa que passou aos livros didáticos como o “Patriarca da
Independência”, o homem que, ao lado da maçonaria, teria motivado o Grito da Independência dado por
D.Pedro I, a 7 de setembro de 1822. Morreu, depois de preso sob a acusação de conspiração e perturbação da
ordem pública. Em Representação, de 1823, encaminhado à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do
Império do Brasil, sobre a questão da Escravatura, José Bonifácio defendia a extinção do comércio de
escravos e a abolição gradual do regime escravo. Nas considerações iniciais de seu texto, apresenta severa
crítica à civilização portuguesa, que “andou sempre devastando não as terras da África e da Ásia, como
disse Camões, mas igualmente as do nosso país (...) O mal está feito, senhores, mas não o aumentemos cada
vez mais; ainda é tempo de emendar a mão. Acabado o infame comércio de escravatura, já que somos
forçados pela razão política a tolerar a existência dos atuais escravos, cumpre em primeiro lugar favorecer a
sua gradual emancipação, e antes que consigamos ver o nosso país livre de todo este cancro, o que levará
tempo, desde abrandemos o sofrimento dos escravos, favoreçamos, e aumentemos, todos os seus gozos
domésticos e civis;(...)” Defendia, ainda, que as relações senhor/escravo fossem mediadas pelo Estado, sendo
os senhores vigiados para que tratassem os escravos como homens e não como brutos animais. Seria o poder
público que julgaria e puniria os escravos infratores. FIGUEIREDO, Carlos. 100 Discursos Históricos. Belo
Horizonte: Leitura, 2002, p. 203.
109
José Murilo de Carvalho destaca como “malograda” a Assembléia Geral Constituinte, e que para o
Patriarca da Independência, a escravidão era o “cancro que rói as entranhas do Brasil”. CARVALHO, José
Murilo de.
Pontos e Bordados: escritos da História e da Política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999,
p. 48-49.
92
sobreviver. Liberato é trocado, açoitado e morto. Outra vez, o escravo aparece como
alguém que está a serviço da felicidade de outrem, mesmo que isto lhe custe a vida.
Na cena II do III ato, Liberato relata que:
(...) teve três cativeiros. Primeiro senhor dêle era um velho muito bom.
Dava esmola pra pobre: Liberato morria de fome. Senhor velho ouvia
missa todos os dias, não saía da igreja: Liberato trabalhava sem parar,
não tinha dinheiro, vendeu Liberato na fazenda. Foi uma mulher que
comprou êle. Marido já tinha morrido. Era bonita... bonita... cara de
anjo... fala dela era música. Negro apanhava todo dia, negro comia barro
pra não morrer de fome, negro não tinha licença de dormir (...) Um dia
mucama quebrou o espelho grande; sinhá arrancou os olhos de mucama.
Liberato não pode mais, fugiu. Foi gente atrás, e pegaram nele. Sinhá
disse: Surrem até morrer. Liberato apanhou três dias (...).
110
Na seqüência da narrativa, o escravo conta que fora comprado por D. José, que lhe
pedira para ficar de vigília no quarto onde trancara o filho. Aires foge durante a noite e, ao
perceber a fuga do filho, D. José obriga o escravo a se ajoelhar. Liberato, que havia jurado
para si mesmo não se ajoelhar nunca mais, mata D. José com uma faca, antes de ganhar a
primeira chicotada. O assassinato de D. José, a morte deste nobre português, pode estar
simbolizando a ruptura do domínio colonizador sobre o colonizado brasileiro.
Esta morte anunciaria o rompimento com o passado e um aceno para a mudança,
para um novo panorama, pois ainda permanece na nação o filho que, com outro olhar,
continuidade à descendência. Ao levar-se em conta o tempo de escritura da obra, 1863, ou
seja, escrita sobre um tempo passado, torna-se possível estabelecer uma analogia com dois
tempos anteriores. Primeiro, o momento da Independência, a época do enredo da peça.
Neste caso, a morte poderia estar sugerindo o rompimento com a Metrópole, evidenciando
que ainda permanece no poder um herdeiro da Casa de Bragança. Ou seja, rompe-se com
Portugal, mas o poder ainda fica nas mãos de um português, D. Pedro I.
93
O segundo momento refere-se ao Período Regencial (1831-1840), quando as elites
assumem o controle político do Estado, levando D. Pedro I a abdicar. Fica, no entanto, no
Brasil ainda um descendente da Casa de Bragança, o príncipe D. Pedro de Alcântara,
sucessor de D. Pedro I. E ainda, por este olhar, pode-se estabelecer uma analogia entre o
acontecimento histórico referido e a passagem do enredo de Eiró, referente à possibilidade
de união entre o português que aqui permanece e a brasileira mestiça, aproximando a ficção
na História.
Por outro lado, Eiró ainda deixa registrado que tanto a ruptura de domínio do pai
sobre o filho, como a viabilidade da união de Aires com Luísa, que decorrem da morte de
D. José, é concedida pelo escravo Liberato. Eiró, ironicamente, coloca nas mãos do escravo
a possibilidade de promover tal mudança na vida destas personagens. Neste caso, porém a
ficção se distanciaria da História.
Na cena VI, do III ato, Liberato, após confessar o crime, suicida-se com a mesma
faca que matara D. José. Ironicamente, aquele que acenou, que promoveu tal atitude,
encerra a vida de sofrimento e desespero descrita pelo cativo. O texto de Eiró denuncia,
portanto, este outro panorama: para Liberato só restaram a submissão, assassinato e morte.
Ainda, no foco da escravidão, um outro aspecto importante nesta obra é a presença
da personagem Onistalda uma mestiça, descendente de índio que destaca outra situação
reveladora da sociedade escravocrata da época, que encontra eco em Rafael. Na cena III,
aparecem Rafael, Luísa e Onistalda. Luísa vai para o quarto, e Onistalda comenta:
– Está pronto o almoço.
110
EIRÓ, Paulo, op. cit., p. 84.
94
RAFAEL: Não quero almoçar: leve alguma coisa ao quarto de Luísa.
Depois uma boa ração ao meu cavalo, ração de viagem. Espere, eu
mesmo vou fazer isso.(
sai)
ONISTALDA (
sentando-se): – Arre lá! Parece que nem para isso se fiam
de mim. De certo tem medo que eu lhe furte o milho. vem
Vitorino...cantando sempre...Psiu! este não se há de queixar de fastio.
111
Constata-se que, mesmo sendo descendente de escravo e sofrendo com o
preconceito de D. José contra sua irmã Luísa, Rafael mostra uma outra faceta pelo modo
como trata a criada mestiça. Este diálogo mostra que a discriminação também acontecia
nos espaços dos que pretendiam/almejavam uma nação igualitária, pois a fronteira que
separava a escravidão e o liberto era tênue, uma vez que existiam descendentes de ex-
escravos proprietários de negros, de mestiços.
A este respeito, José Murilo de Carvalho comenta que, “no Brasil certamente
ninguém gostava de ser escravo, mas, muita gente, inclusive escravos libertos, gostaria
de possuir um escravo”.
112
Constata-se, nesta peça, a alusão à hierarquia social que havia
na sociedade da época. E dentro dessa hierarquia a personagem Osnitalda se encontra
localizada nas últimas linhas da sociedade.
Vale salientar que, após a Independência, a Inglaterra pressionou o governo
brasileiro para que se comprometesse a acabar com o tráfico de escravos em três anos.
Em 1850, o país cedeu à pressão inglesa e proibiu o tráfico. Contudo, sua extinção,
apoiada pelos industriais ingleses, não representava qualquer atitude humanitária, mas
um meio de enfraquecer as regiões coloniais e anular as leis que davam a essas áreas o
111
Ibid., p. 63.
112
Essa hierarquia social do século XIX aparece definida por José Murilo de Carvalho da seguinte maneira:
“situação jurídica (escravo ou livre), a cor (preto/mulato/branco), o gênero (mulher/homem) e a classe
(pobre/rico).” Dentre dessa linha hierárquica a sociedade ficava assim estabelecida: (em ordem decrescente)
homem branco livre de classe alta; mulher branca livre de classe alta; homem branco livre de classe média;
mulher branca livre de classe média; homem mulato livre; mulher mulata livre; homem negro liberto; mulher
95
monopólio do comércio de gêneros agrícolas. O suposto fim da escravidão, em 13 de
maio de 1888, é analisado por Bosi como um momento de profunda ambigüidade:
O treze de maio não é uma data apenas entre outras, número neutro,
notação cronológica. É o momento crucial de um processo que avança
em duas direções. Para fora: o homem negro é expulso de um Brasil
moderno, cosmético, europeizado. Para dentro: o mesmo homem negro
tangido para os porões do capitalismo nacional, sórdido, brutesco. O
senhor liberta-se do escravo e traz ao seu domínio o assalariado,
migrante ou não.
113
Diante desse panorama da escravidão, e das dificuldades do processo de abolição,
somadas à construção ideológica de que o povo brasileiro resulta da miscigenação de três
raças – mito da democracia racial verifica-se, na peça de Paulo Eiró, no seu prefácio, que
tais reflexões aparecem como prenúncio das dificuldades para a formação da nação
brasileira.
Paulo Eiró alerta que:
todos sabem de que elementos heterogêneos se compõe a população
brasileira, e os riscos iminentes que pressagia essa falta de unidade. Não
somente a diferença do homem livre para o escravo; são as três raças
humanas que crescem no mesmo solo, simultaneamente e quase sem se
confundirem; são três colunas simbólicas que hão de reunir-se, formando
a pirâmide eterna, ou tombarão esmagando operários.
114
Na peça, o panorama da mestiçagem recebe concepções distintas. As falas de D.
José permitem as associações entre “sangue puro” e “sangue limpo”, de Aires, que se
contrapõem ao “sangue impuro”, “sangue sujo”, de Luísa.
No que diz respeito à miscigenação, Lilia Moritz Schwarcz afirma que, no Brasil,
duas décadas após a Independência, em 1844 praticamente vinte anos antes da edição da
negra liberta; homem negro escravo; mulher negra escrava. CARVALHO, José Murilo de Pontos e bordados:
escritos da História e da Política, op. cit., p. 48-49.
. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994,
96
peça de Eiró –, foi promovido um concurso pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
que premiaria o melhor projeto sobre “Como escrever a história do Brasil”. Karl Friedrich
Philipp von Martius, sócio correspondente do Instituto, saiu vitorioso.
Sua tese centrava-se na especificidade da trajetória deste país tropical que, segundo
o naturalista alemão:
Qualquer que se encarregue de escrever a História do Brasil, paiz que
tanto promete, jamais deverá perder de vista quais os elementos que ai
concorrerão para o desenvolvimento do homem. São esses, porém, de
natureza muito diversa, tendo convergido de um modo muito particular
as três raças... (...).
115
E esta seria a fórmula adotada pelos historiadores que se debruçaram sobre a
História do Brasil. Contudo, não foi Karl Friedrich Philipp von Martius que determinou tal
atitude. É correto afirmar que o que ele propunha era fruto do próprio dispositivo de
mestiçagem. Isto é, ele foi influenciado pela racionalidade estabelecida por esse dispositivo.
Segundo Schwarcz,
O projeto vencedor propunha, portanto, uma ‘fórmula’, uma maneira de
entender o Brasil. A idéia era correlacionar o desenvolvimento do país
com o aperfeiçoamento específico das três raças que o compunham.
Estas, por sua vez, segundo Von Martius, possuíam características
absolutamente variadas. Ao branco, cabia representar o papel de
elemento civilizador. Ao índio, era necessário restituir sua dignidade
original ajudando-o a galgar os degraus da civilização. Ao negro, por
fim, restava o espaço da detração, uma vez que era entendido como fator
de impedimento ao progresso da nação: ‘Não há duvida que o Brasil teria
tido’, diz Von Matius, ‘uma evolução muito diferente sem a introdução
dos míseros escravos negros’.
116
Percebe-se que, mesmo recebendo a mestiçagem um olhar cientificista, o racismo
ficou demarcado, na medida em que ao negro eram atribuídas as mazelas, “o impedimento
ao progresso da nação”. Sendo assim, o tal dispositivo de mestiçagem, ou ainda, mais
114
EIRÓ, Paulo, op. cit., p. 25.
97
especificamente, a presença do negro era vista como um grave problema por intelectuais
como Karl Friedrich Philipp von Martius. Em meados do século XIX, conforme Schwarcz,
tais idéias sobre a mestiçagem eram disseminadas entre o clero, nos órgãos do governo
metropolitano, como também apropriadas por alguns intelectuais ligados ao poder
instituído no Império.
117
Entretanto, ela receberia um olhar da ciência após alguns anos,
mais exatamente no final do século XIX, quando muitos cientistas defenderam a tese do
branqueamento como saída para o Brasil viabilizar-se como país progressista.
Ainda sobre o discurso racial brasileiro, vale destacar que este não foi apenas uma
mera cópia das teorias formuladas na Europa. Ele possui raízes nos problemas enfrentados
pelo Brasil no que diz respeito a um projeto de modernização e constituição de uma
identidade nacional.
118
No contexto, na cena XI, é Rafael que fala a D. José sobre Luísa, tentando
convencê-lo a aceitar o amor entre a irmã e Aires:
Além disso, senhor... veja a minha Luíza. Não é bonita? Que brilho de
saúde e de mocidade! Quando ela aparece em alguma Corte, no meio de
uma mocidade elegante, quem não diria que nasceu em berço de riqueza,
cercada de mimos e regalos? Quem não diria que nestas veias gira o
sangue europeu, que... bem o sabe o senhor... é o único sangue puro que
há?
119
Nesta passagem, ao reafirmar a idéia de supremacia do povo europeu, Rafael o faz
com ironia. Na seqüência, D.José, agora a sós com Rafael, comenta:
115
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930
. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 112.
116
Ibid., p.112.
117
Ibid., p.113.
118
Neste texto, Liliam Schwarcz reconstitui os discursos sobre os problemas raciais no Brasil. Vale destacar
que a autora argumenta que muitas interpretações desviaram o perfil de
A origem das espécies, de Darwin,
como no caso em que apontavam a “degeneração”, o que poderia advir do cruzamento de “espécies” diversas.
Ibid., p.56.
119
EIRÓ, Paulo, op. cit., p. 76.
98
Acompanhando-os nesses sentimentos de filantropia e bem que não
deseje ir de encontro às idéias recebidas, por absurdas e desumanas que
sejam, saltaria por cima dêsse inconveniente a fim de assegurar a
felicidade de Aires e a minha... pois são uma e a mesma coisa. O
obstáculo que existe é outro e maior, direi mesmo invencível. Que
importa uma ligeira modificação no sangue?... mas deixar pesar sôbre
minha família uma nódoa indelével... Sargento Proença, seu pai era
escravo?
120
Rafael responde sobre sua ascendência, confirmando as suspeitas de D. José:
—Sim, mais um escravo: e para que concederia a liberdade? Que direitos
lhe dava a êle esse pingo de sangue limpo que se lhe introduzira nas
veias?
121
No diálogo Eiró desvela, na expressão “sangue limpo”, o contexto da escravidão. A
pureza é a negação da miscigenação não das raças, mas também das pátrias. O sangue
europeu é o sangue limpo, na ironia de Rafael e no tom preconceituoso de D. José. Desta
forma, os brasileiros, especialmente os mestiços como Luísa, não são mais limpos, na
medida em que sua história é marcada pela colonização e pela miscigenação com o negro.
A fala do nobre português afirma a unicidade da raça e sua indesejável mistura com
o negro. Ao eleger como ideal de povo o europeu, a personagem portuguesa, pelo viés das
expressões “sangue limpo” e “sangue puro”, procura negar a eventual mistura das raças,
uma vez que ao negro, no contexto da época, era impossibilitada a cidadania, marcando as
diferenças étnicas e sociais como um dado absoluto. D. José no cruzamento entre uma
descendente de escravo e seu filho a diluição da identidade européia pura, colonizadora.
Tais aspectos tornam evidente a perspectiva de Eiró sobre a questão da escravidão
que ainda se sustentava décadas depois da Independência do Brasil. Percebe-se, então, que
em
Sangue limpo, ao denunciar o drama do negro escravo, a impossibilidade de sua
120
Ibid., p. 78-79.
99
cidadania, Eiró mostra sua posição contrária à política escravista que transitava no seu
tempo.
Entretanto, no contraponto ao pensamento de Eiró sobre tal panorama, constata-se
que José de Alencar procura evidenciar uma outra tese sobre a escravidão. A comédia
realista
O demônio familiar traz à cena a perspectiva de José de Alencar, permitindo que se
analise uma representação diferente da escravidão representada por Eiró, e, em
conseqüência, da própria nação.
Editada em 1857, esta peça teatral registra as artimanhas de Pedro, um menino
escravo que, na intenção de se tornar cocheiro, promove intrigas envolvendo o romance
entre as protagonistas, o médico Eduardo (seu dono) e Henriqueta. Esta peça destaca, ainda,
outras personagens que representam a sociedade de Corte da época, como Vasconcelos, que
se obrigado a casar a filha Henriqueta para pagar uma dívida; Azevedo, credor de
Vasconcelos, amigo de Eduardo, que tenciona entrar para a política; Alfredo, um
nacionalista, apaixonado por Carlotinha, irmã de Eduardo e amiga de Henriqueta.
O exame desta peça mostra o olhar de José de Alencar sobre a escravidão. Sobre
este aspecto, convém destacar que no século XVIII, José Joaquim da Cunha Azeredo
Coutinho, senhor de engenho, ordenado padre, logo após nomeado Bispo de Pernambuco e,
na seqüência, Inquisitor-Mor do Santo Ofício, entre seus vários textos, D. José, conforme
ficou conhecido, escreveu
Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da
Costa da África
,
122
que defendia a existência da escravidão como uma necessidade social.
Acrescentava, ainda, que as razões da sociedade devem se sobrepor às do indivíduo e, com
isso, contrapunha-se aos abolicionistas, sedimentando os ideais dos escravocratas da época.
121
Ibid., p. 79.
100
No percurso da história, com a abolição do tráfico de escravos, conforme
mencionado, e com a cobrança da junta francesa em 1867,
123
José de Alencar, por sua vez,
membro do Partido Conservador, tal qual seu antecessor, D. José (José Joaquim da Cunha
Azeredo Coutinho) se posiciona contra o que denominava de filantropia européia,
principalmente a francesa. Em sua resposta, segundo José Murilo de Carvalho,
Alencar
124
afirma que a escravidão fora um elemento importante na “construção da
civilização”, uma “condição indispensável à civilização no Brasil”. Ele ironizava, em seus
argumentos, que o filantropo europeu usava charuto cubano e café brasileiro, ambos
oriundos do trabalho escravo.
125
O fim da escravidão, em sua opinião, aconteceria
naturalmente, não através de leis.
Cabe ainda destacar que José de Alencar, ao combater a Lei do Ventre Livre,
argumentava que tornar os filhos livres e manter as mães e os pais escravos implicava uma
crueldade dentro da desumanidade maior representada pela escravidão. Na medida em que
o Estado assumia a escravatura como um mal, não deveria apenas terminar com ela de uma
vez, mas também possibilitar cidadania aos negros recém-libertos, sob pena de estender por
décadas, talvez por mais de século, a exclusão social e a discriminação racial. Ele via a
sociedade de seu tempo não apenas como escravocrata, mas economicamente sustentada
por este sistema, que era mau, porém necessário.
Sobre a escravidão, agora focalizada mais especificamente no enredo de
O demônio
familiar
(1857), a personagem Pedro, o menino escravo, mesmo aparecendo na terceira
122
Veja CARVALHO, José Murilo de, op. cit., p.44.
123
Conforme José Murilo de Carvalho, mesmo sendo encaminhada em 1866, este documento só chegou ao
conhecimento de todos em 1867. Ibid., p. 52.
124
José de Alencar publicou Novas cartas Políticas (1865) dirigidas ao Imperador sob o pseudônimo de
Erasmo. A temática da escravidão aparece discutida nas cartas de número 2, 3 e 4. Ibid., p. 52.
101
cena, fora introduzido, através das opiniões dos outras personagens, desde a primeira
cena. Conforme verificamos nestes diálogos:
Cena I, Carlotinha e Henriqueta conversando no quarto de Eduardo:
CARLOTINHA Anda lá!... Oh! meu Deus! Que desordem!Aquele
moleque não arranja o quarto do senhor; depois mano vem e fica maçado.
HENRIQUETA – Vamos nós arranjá-lo?
CARLOTINHA – Está dito; ele nunca teve criadas desta ordem.
126
Na cena II, Carlotinha conversa com o irmão:
CARLOTINHA Ora! quem possa com aquele seu moleque? É um
azougue; nem à mamãe tem respeito.
EDUARDO – Realmente é insuportável; já não o posso aturar.
127
Na seqüência, Pedro aparece e é criticado pelos donos:
CARLOTINHA – Foi vadiar; é só o que ele faz.
PEDRO – Não, nhanhã; fui comprar soldadinho de chumbo.
EDUARDO Ah! O senhor ainda brinca com soldados de chumbo...
Corra, vá chamar-me um tílburi na praça; já, de um pulo.
PEDRO – Sim, senhor.
128
Os donos não demonstram qualquer respeito ou admiração pelo menino,
evidenciando, na maioria das vezes, os defeitos deste. Pedro, aparentemente, mostra-se
amável, submisso, até mesmo ingênuo e obediente, tendo como objetivo algo que é comum
aos de sua idade: brincar.
No entanto, o percurso do enredo vai mostrando uma outra faceta da personalidade
deste menino escravo. As mentiras e tramóias acabam se tornando as marcas de Pedro, que
as utiliza para tentar conseguir realizar seu maior sonho: tornar-se cocheiro e usar um
uniforme. Não é gratuito que ele, no início da peça, deixa seus afazeres para adquirir um
125
Ibid., p. 54.
126
ALENCAR, José de. O demônio familiar. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p.43.
127
Ibid., p. 49.
128
Ibid., p. 49-50.
102
soldadinho de chumbo, em cuja imagem contempla o uso de uma farda, modelo inglês,
como era o traje dos cocheiros que trabalhavam para os ricos.
No diálogo entre Pedro e Carlotinha na Cena VI:
PEDRO Isto é um instante! Mas nhanhã precisa casar! Com um moço
rico como Sr. Alfredo, que ponha nhanhã mesmo no tom, fazendo
figuração. Nhanhã de ter uma casa grande, grande, com jardim na
frente, moleque de gesso no telhado; quatro carros na cocheira; duas
parelhas, e Pedro cocheiro de nhanhã.
CARLOTINHA – Mas tu não és meu, és de mano Eduardo.
PEDRO Não faz mal; nhanhã fica rica, compra Pedro; manda fazer
para ele sobrecasaca preta à inglesa: bota de canhão até aqui
(marca o
joelho);
chapéu de castor; tope de sinhá, tope azul no ombro. E Pedro só,
trás, zaz, zaz! E moleque da rua dizendo "Eh! cocheiro de sinhá D.
Carlotinha!"
129
Percebe-se tanto a consciência do menino de ser uma propriedade negociável, como
também o seu desejo de ser tornar cocheiro e usar uma farda. Tal propósito pode até
superar a condição de permanecer escravo. Mesmo porque a personagem de Alencar, talvez
por ser muito jovem, não apresenta qualquer relutância, desconforto ou revolta, durante
toda a história, pela condição de escravo, corroborando a convicção do autor. Pedro se
mostra apenas como alguém que almeja ser cocheiro, para usar a farda, não importando a
quem venha a pertencer. Esta aspiração denuncia que a única vontade do menino seria
realizada dentro de sua condição de escravo. Em outras palavras, a concretização do sonho
de tornar-se cocheiro poderia acontecer dentro de seu estatuto. Esta situação aqui
representada faz com que reflitamos sobre o ponto de vista de Alencar a respeito da
possível existência, sem problemas, de escravos, desde que assumidos pela sociedade.
Conforme mencionado no enredo, as ações do menino Pedro contribuem para
causar confusões e atrapalhar a vida de outras personagens. Nos instantes finais da trama, o
129
Ibid., p. 54.
103
protagonista Eduardo desvenda as mentiras e artimanhas utilizadas. Tal descoberta leva
Eduardo a considerá-lo, de acordo com suas próprias palavras, um demônio familiar,
expressão que dá título à peça.
Esta situação é representada na cena XVII, quando estão todos os personagens
reunidos. Ao tomar a palavra, Eduardo desabafa:
EDUARDO – Ah!... Escutem-me, senhores; depois me julgarão.. É a
nossa sociedade brasileira a causa única de tudo quanto se acaba de
passar.
EDUARDO Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por
um demônio familiar, do qual dependia o sossego e a tranqüilidade das
pessoas que nela viviam. Nós, os brasileiros, realizamos, infelizmente,
esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar... Mas
vem um dia, como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia
perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de
todos esses objetos santos, um jogo de criança. Este demônio familiar de
nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo.
130
Como se vê, Eduardo lamenta o traço afetivo da sociedade brasileira, cuja tolerância
paga o preço da traição. Eduardo associa o negro ao ‘demônio’ pelas ações que promove.
Cabe ressaltar que, no imaginário cristão, o demônio representa o pior dos seres, a negação
de tudo o que é bem, ou seja, o lado obscuro, o mal na humanidade. Observa-se, também,
nas palavras de Eduardo uma certa manipulação desse tipo de escravo as crianças que
habitam as casas, no qual Pedro é referência –, com relação aos demais. Tal situação nos
leva a constatar que Pedro torna-se um elemento representativo de uma categoria utilizada
por Alencar para demarcar a diferença na hierarquia social pela condição jurídica
(escravo/livre), cor (negro/branco) e condição social (pobre/rico).
De certa maneira, as palavras utilizadas por Eduardo para se referir a Pedro como “o
demônio familiar” poderiam também aludir ao ritual de Inquisição, de julgamento. Esta
“Inquisição”, principalmente pela denominação ‘demônio’, parece constituir o conceito
104
conclusivo atribuído ao moleque escravo. Na próxima fala, Eduardo apresenta sua decisão
final:
EDUARDO Por que, minha irmã? Todos devemos perdoarmos
mutuamente; todos somos culpados por havermos acreditado ou
consentido no fato primeiro, que é a causa de tudo isto. O único inocente
é aquele que não tem imputação, e que fez apenas uma travessura de
criança, levado pelo instinto da amizade. Eu o corrijo, fazendo do
autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de
minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa.
(A
PEDRO
) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje
em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a
moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a
necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que
hoje não compreendes. (
PEDRO beija-lhe a mão.).
131
Ao condenar o menino à liberdade, Alencar reitera suas concepções sobre a
escravidão e a visão da sociedade de seu tempo. Pedro recebe a punição maior que é ser
livre e, com isso, tornar-se responsável por suas ações. A liberdade é o castigo. Pode-se até
dizer, diante desse quadro, que tal punição se aproximaria daquela dada por Deus, segundo
o Antigo Testamento, a Adão e Eva. O trabalho livre aparece, em Alencar, como um
castigo para o escravo. Apreende-se, também, dessa fala, que não é Pedro que vai ter o
direito à liberdade, mas sim a família que fica livre dele e de suas ações.
Um outro aspecto a ser observado está no fato de que o menino entende o gesto
como uma recompensa. Como prova de agradecimento, ele beija a mão do seu dono. Tal
atitude sugere a submissão, ou seja, livre, mas dependente, pois, nesse caso, a liberdade não
significa emancipação, autonomia. O escravo está, por sua idade e condição social, em
situação de desigualdade para entender as armadilhas da sociedade de seu tempo. Alencar,
ainda que se trate de um menino, não concebe o escravo como um ser capaz de exercer a
sua liberdade.
130
Ibid., p. 223.
105
Tal como se observou no drama Sangue limpo, de Paulo Eiró, e a comédia realista O
demônio familiar
, de José de Alencar, o panorama da escravidão também é abordado em na
peça
Os dous ou o inglês maquinista, de Martins Pena, publicada em 1845. No entanto, o
panorama da escravidão que se constata nesta comédia parece estar mais próximo ao
evidenciado por Eiró do que o de Alencar.
O enredo desta peça mostra a capacidade desse comediógrafo de fixar os costumes,
características e também as mazelas da sociedade de seu tempo. Protagonizam o enredo de
Os dous ou o inglês maquinista, Clemência, o marido Alberto, e suas filhas, Mariquinhas e
Júlia; Felício, primo das moças, apaixonado por Mariquinhas; o inglês Gainer, e Negreiros,
um negociante de negros novos.
Merece atenção a maneira peculiar com que o comediógrafo traz à tona a questão da
escravidão. Na cena VI:
EUFRÁSIA, na porta do fundo – Dá licença, comadre?
CLEMÊNCIA Oh, comadre pode entrar! (
Clemência e Mariquinhas
encaminham-se para a porta, assim como Felício; Gainer fica no meio
da sala. Entram Eufrásia, Cecília, João do Amaral, um menino de dez
anos, uma negra com uma criança no colo e um moleque vestido de
calça e jaqueta e chapéu de oleado. Clemência, abraçando Eufrásia:
)
Como tem passado?
EUFRÁSIA – Assim, assim.
CLEMÊNCIA,
chegando-se para ver. Coitadinho, coitadinho!
(
Fazendo-lhe festas:) Psiu, psiu, negrinho! Como é galante!
CLEMÊNCIA Não vale a pena mandar fazer vestidos de chita pelas
francesas; pedem sempre tanto dinheiro! (
Esta cena deve ser toda muito
viva. Ouve-se dentro bulha como de louça que se quebra
) O que é isto
dentro? (
Voz, dentro: Não é nada, não senhora.) Nada? O que é que se
quebrou lá dentro? Negras! (
A voz, dentro: Foi o cachorro.) Estas minhas
negras!…Com licença. (
Clemência sai.)
JOÃO DO AMARAL É preciso ter paciência. (
Ouve-se dentro bulha
como de bofetadas e chicotadas.
) Aquela pagou caro …
EUFRÁSIA ,
gritando – Comadre, não se aflija.
JOÃO – Se assim não fizer, nada tem.
EUFRÁSIA Basta, comadre, perdoe por esta. (
Cessam as chicotadas.)
Estes nossos escravos fazem-nos criar cabelos brancos. (
Entra Clemência
arranjando o lenço do pescoço e muito esfogueada.
)
131
Ibid., p. 226.
106
CLEMÊNCIA Os senhores desculpem, mas não se pode (Senta-se e
toma respiração.
) Ora veja só! Foram aquelas desavergonhadas deixar
mesmo na beira da mesa a salva com os copos pra o cachorro dar com
tudo no chão! Mas pagou-me!
132
A imagem promovida nesta cena em que aparece uma escrava negra com uma
criança (de colo), nos maus-tratos efetuados por Clemência,
133
dando bofetadas e
chicotadas na escrava que quebrara um copo, na presença do traficante de negros, mostram
que o alvo de Martins Pena é atingir a sociedade e a política. A sociedade, pela forma como
caracteriza os representantes da sociedade carioca, a elite dominante, cujas palavras e ações
mostram as falcatruas, as artimanhas e os maus tratos aos negros. E a política, ao recriar um
contexto no qual o tráfico de escravos era proibido, por colocar em cena um negociante de
negros novos, um fora-da-lei, transitando, sem problemas, na Corte brasileira.
Cabe ressaltar que
Os dous ou o inglês maquinista, escrita em 1845, desenvolve seu
enredo no Rio de Janeiro, no ano de 1842, décadas antes da peça de Eiró e de Alencar. Sua
localização temporal representa, no contexto de seu tempo, a pressão inglesa, evidenciada a
partir da inserção da personagem Negreiros, um traficante de escravos.
Retorne-se à cena primeira, quando aparecem Clemência e Mariquinhas sentadas no
sofá; em uma cadeira, junto destas, Negreiros, e recostado sobre a mesa, Felício, que o
Jornal do Comércio, e levanta, às vezes, os olhos, como observando a Negreiro.
Em um dado momento Felício interpela Negreiros:
FELÍCIO Sr. Negreiro, a quem pertence o brigue Veloz Espadarte,
aprisionado ontem junto quase da Fortaleza de Santa Cruz pelo Cruzeiro
inglês, por ter a seu bordo trezentos africanos?
132
PENA, Martins. Os dous ou o inglês maquinista. In: PENA, Martins. As melhores comédias de Martins
Pena.
Série: Vamos Fazer Teatro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p.128.
133
Destaca-se que Clemência, do latim clementia, significa disposição para perdoar; bondade; indulgência.
Percebe-se que a denotação do nome está muito distanciada das ações e sentimentos desta personagem de
Martins Pena.
107
NEGREIRO A um pobre diabo que está quase maluco… Mas é bem
feito, para não ser tolo. Quem é que neste tempo manda entrar pela barra
um navio com semelhante carregação? um pedaço de asno. por
além uma costa tão longa e algumas autoridades tão condescendentes!
FELÍCIO – Condescendentes porque se esquecem de seu dever!
NEGREIRO – Engana-se; fica na conta de pobre, que é menos que pouca
coisa. E, no entanto, vão os negrinhos para um depósito, a fim de serem
ao depois distribuídos por aqueles de quem mais se depende, ou que têm
maiores empenhos. Calemo-nos, porém, que isto vai longe.
FELÍCIO – Tem razão! (
Passeia pela sala.).
134
Segundo Alfredo Bosi, no Brasil, entre 1830 e 1850, o tráfico de negros foi o mais
intenso de todos os tempos. Em suas palavras, “As autoridades, apesar de eventuais
declarações em contrário, faziam vista grossa à pirataria que facultava o transporte de carne
humana, formalmente ilegal desde o acordo com a Inglaterra em 1826 e a lei regencial de 7
de novembro de 1831”.
135
Na cena, tanto Negreiro como Felício, este de maneira mais
atenuada, anunciam não a existência do tráfico, uma vez que o próprio personagem
Negreiro dele participa, mas também as artimanhas dos traficantes e a corrupção das
autoridades, condescendentes com os que burlam o acordo entre as nações brasileira e
inglesa.
Ainda sobre os maus-tratos praticados pela personagem Clemência, uma suposta
viúva, em relação a seus escravos, Martins Pena denuncia não somente essa prática, mas a
conivência dos demais na medida em não por parte das outras personagens qualquer
manifestação contrária às atitudes de Clemência.
Na cena primeira, Clemência em animada conversa com Negreiro a respeito do
modo como conseguiu um novo escravo:
CLEMÊNCIA (...) A propósito, lhe mostrei o meu meia-cara, que
recebi ontem na Casa da Correção?
NEGREIRO – Pois recebeu um?
134
Ibid. p.122.
135
BOSI, Alfredo. A escravidão entre dois liberalismos. In: A dialética da colonização, op. cit., p.196.
108
CLEMÊNCIA Recebi, sim. Empenhei-me com minha comadre, minha
comadre empenhou-se com a mulher do desembargador, a mulher do
desembargador pediu ao marido, este pediu a um deputado, o deputado
ao ministro e fui servida.
NEGREIRO – Oh, oh, chama-se isto de transação! Oh, oh!
CLEMÊNCIA – Seja lá o que for; agora que tenho em casa, ninguém mo
arrancará. Morrendo-me algum outro escravo, digo que foi ele.
FELÍCIO – E minha tia precisava deste escravo, tendo já tantos?
CLEMÊNCIA Tantos? Quanto mais, melhor. Ainda eu tomei um só. E
os que tomam aos vinte e aos trinta? Deixa-te disso, rapaz. Venha vê-lo,
Sr. Negreiro. (
Saem.).
136
No transcorrer da conversa, entre Clemência e Negreiros, interferência de
Felício, que se anuncia contrário às atitudes da tia. Clemência, no entanto, não ouvidos
ao sobrinho.
Além de maltratar os escravos, a ambiciosa Clemência empreende tentativas de
casar a filha com Negreiro ou com o inglês Gainer. Segundo a personagem, o casamento da
filha com um dos dois seria um bom negócio para a família. Mariquinhas, que tem olhos
para o primo Felício, rejeita a corte de ambos. Na cena XIII, Negreiro chega a trazer um
menino escravo de presente a Mariquinhas, com o intuito de agradar a moça (ou a futura
sogra).
Entra Negreiro acompanhado de um preto de ganho com um cesto à
cabeça coberto com um cobertor de baeta
137
encarnada.
NEGREIRO – Boas noites.
CLEMÊNCIA – Oh, pois voltou? O que traz com este preto?
NEGREIRO – Um presente que lhe ofereço.
CLEMÊNCIA – Vejamos o que é.
NEGREIRO – Uma insignificância … Arreia, pai! (
Negreiro ajuda ao
preto a botar o cesto no chão. Clemência e Mariquinhas chegam-se para
junto do cesto, de modo porém que este fica a vista dos espectadores
.)
CLEMÊNCIA – Descubra. (
Negreiro descobre o cesto e dele levanta-se
um moleque de tanga e carapuça encarnada, o qual fica em pé dentro do
cesto
.) Ó gente!
FELÍCIO,
ao mesmo tempo – Um meia-cara!
NEGREIRO – Então, hem? (
Para o moleque) Quenda, quenda! (Puxa o
moleque para fora.)
CLEMÊNCIA – Como é bonitinho!
136
PENA, Martins. Os dous ou o inglês maquinista, op. cit.,p. 123.
137
Baeta significa tecido felpudo de lã.
109
CLEMÊNCIA – Pra que o trouxe no cesto?
NEGREIRO – Boa lembrança. (
Examinando o moleque) Está gordinho
… bons dentes …
CLEMÊNCIA – Ah! Fico-lhe muito obrigada.
NEGREIRO,
para Mariquinhas – Há ser seu pajem.
MARIQUINHAS – Não preciso de pajem.
138
Mariquinhas mostra seu total desinteresse sobre o presente e, por extensão, pelo
traficante de escravos. Clemência, no entanto, continua, durante o desenrolar do enredo, a
empreender tentativas de casar a filha, ou mesmo ela, com Negreiros. No final da trama,
Clemência seus planos serem diluídos, principalmente com o retorno do marido,
supostamente morto, que começa a pôr ordem na casa.
A escravidão representada em
Os dous ou o inglês maquinista (1845) promove
imagens que podem ser aproximadas às representadas em
Sangue limpo (1863), de Paulo
Eiró, e
O demônio familiar (1857), de José de Alencar. Muito mais próximas das
anunciadas por Eiró, Martins Pena, nesta comédia, deixa registrada a hierarquia social, e,
nelas, o trato que recebiam os situados na parte ainda mais inferior da base da pirâmide
social.
Tais aspectos que advêm das peças de Eiró, Alencar e Pena apresentam concepções
dos dramaturgos do século XIX quanto à presença da escravidão na sociedade brasileira de
seu tempo. As leituras das peças
Sangue limpo, O demônio familiar e Os dous ou o inglês
maquinista
mostram as diferentes abordagens sobre esse tema na visão dos dramaturgos. A
personagem do escravo negro é anunciada por olhares distintos nas peças escritas/editadas,
mesmo num tempo em que o Estado estava independente, legitimado e legalmente
constituído. Ficam registrados, nestas peças, os sentimentos e posturas dos autores frente o
panorama da escravidão no Brasil.
138
Ibid., p.137.
110
Primeiramente, em Sangue limpo, percebe-se que o conflito de idéias e a ironia no
trato do processo da Independência colocam a obra como importante narrativa na
construção da identidade da nação. Eiró procura exprimir os antagonismos que, por serem
tão evidentes, ao tornarem-se expostos à crua nudez da palavra que lhe dá emoção e
arrebatamento, remetem irremediavelmente o leitor/espectador ao contraditório retrato
neste amplo painel da sociedade de sua época, em uma espécie de jogo onde ficção e
realidade caminham lado a lado, equivalendo-se muitas vezes. Demarca-se, então, a
posição contrária deste dramaturgo em relação à política escravista que não se limita à
relação hierárquica do branco livre com o negro escravo, mas também evidencia a relação
do descendente de escravo livre com o negro escravo.
Alencar, por sua vez, em
O demônio familiar, promove em seu enredo o trânsito de
idéias que se mostram contrárias às defendidas por Eiró. Ainda que registre diferentes
camadas sociais, a presença do escravo e a distinção entre os tratamentos, ao longo da
trama Alencar defende a sua posição escravocrata.
Décio de Almeida Prado classifica o teatro de Alencar como realista, em especial,
O
demônio familiar
como comédia realista, na medida em que são colocadas em cena
concepções ideológicas que caracterizam uma mentalidade de uma determinada classe, cuja
hegemonia estava ameaçada pelas novas concepções identificadas com a modernidade.
Nesta perspectiva, enredo e personagens contribuem para justificar e solidificar o
pensamento não só de Alencar, mas também das pessoas que como ele aceitavam a política
escravista de seu tempo.
Finalmente, Martins Pena, em sua comédia
Os dous ou inglês maquinista, deixa
evidenciada também a posição contrária, tal qual Eiró, à política escravista. O
111
comediógrafo não só toca na ferida como também traz à cena as agressões físicas, os maus-
tratos que sofriam os escravos negros. Martins Pena, longe de atenuar a realidade, não
lança mão de imagens e falas em sua comédia que se aproximam das mazelas colocadas em
cena por Eiró em
Sangue limpo, como ainda mostra a presença do tráfico negreiro que
ainda acontecia, mesmo tendo sido legalmente proibido.
Tais aspectos reiteram o papel destas peças como reveladoras de determinada visão
do mundo. Logo,
Sangue limpo, O demônio familiar, e Os dous ou inglês maquinista
contribuem, além de outros, como registro de como os autores Eiró, Alencar e Pena
elaboraram a representação de seu tempo, e, nesse sentido, a representação da nação com
seus entraves ou soluções identificados no estatuto da escravidão.
2.1.2 A representação das camadas intermediárias
A Independência declarada em 1822 pouco contribui para que as funções
burocráticas e políticas no Brasil obtivessem um novo encaminhamento. Segundo Emília
Viotti da Costa,
Os setores urbanos não chegaram a assumir posição autônoma ou
fundamentalmente renovadora, a despeito de suas vagas e contraditórias
aspirações divergirem, às vezes, da visão do mundo característica das
oligarquias. Seus representantes continuavam a preencher quadros
burocráticos ou de clientela (...).
139
Tal constatação pode ser associada à observação de Schwarz quando argumenta que
“a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o
latifundiário, o escravo e o ‘homem livre’, na verdade dependente”. No terceiro caso, “seu
112
acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de
um grande”.
140
Neste contexto, Schwarz denuncia o favor como o “mecanismo através do
qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também a outra, a dos
que têm”.
141
A partir de tais considerações que delineiam características da sociedade brasileira
se estabelece a linha de leitura do panorama que advém das peças teatrais cujas
personagens trazem à cena a classe intermediária, como no caso das obras
Judas em
Sábado de Aleluia
(1844), de Martins Pena, e Ingleses na costa (1864), de França Júnior.
Na primeira peça, a comédia
O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena, pode-
se verificar como Martins Pena privilegiou o riso para representar a classe intermediária.
grande vivacidade nas situações e espontaneidade nos diálogos. O enredo mostra as
confusões na casa de José Pimenta, cabo-de-esquadra da Guarda Nacional. Após vários
qüiproquós, Faustino, pretendente de Maricota, disfarçado de Judas, acompanha os
acontecimentos da casa.
Em 1844, quando Martins Pena escreveu
O Judas em Sábado de Aleluia, o
panorama político brasileiro anunciava uma constante alternância entre Liberais e
Conservadores na direção do Gabinete Ministerial. D.Pedro II promovia, para manter o
apoio político dos dois partidos nas províncias, no contexto da Monarquia Parlamentarista,
a alternância no cargo de Chefe de Governo. De acordo com Sergio Buarque de Holanda,
“Durante o qüinqüênio de 44 a 48, o Imperador, recomendado pelo Paço, tentará escapar às
oscilações entre os partidos a que se permitira antes de 44. Nem se apressou naquele ano a
139
COSTA, Emília Viotti da, op. cit., p. 261.
140
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, op. cit, p. 16.
141
Ibid., p. 16.
113
passar o apoio político dos Conservadores para os Liberais, nem depois se apressará em
agir em sentido oposto”.
142
No contexto social foi se construindo uma classe média desprovida de recursos e
perspectivas de trabalho, trabalhadores rurais à mercê dos desmandos do latifúndio, bem
como um grupo político ávido pelo poder. A sociedade brasileira não possuía o espírito de
liberdade individual ou tampouco de igualitarismo. E a Monarquia deixou como legado à
Primeira República, conforme comenta José Murilo de Carvalho, uma sociedade “formada
de súditos e não de cidadãos: súditos hierarquizados pela escravidão, pela cor, pelo sexo,
pela ocupação, pela educação (...)”.
143
E elementos caracterizadores dessa situação podem ser flagrados na peça Judas em
Sábado de Aleluia
, principalmente na cena II, em que aparece José Pimenta, vestindo uma
farda de cabo-de-esquadra da Guarda Nacional, calças de pano azul, e barretão, “tudo muito
usado”. José Pimenta, ao chegar em casa, começa a conversar com as filhas:
PIMENTA, entrando – Chiquinha, vai ver minha roupa, já que estás
vadia. (
Chiquinha sai.) Está bem bom! Está bem bom! (Esfrega as mãos
de contente.
)
MARICOTA,
cosendo – Meu pai sai?
PIMENTA – Tenho que dar algumas voltas, a ver se cobro o dinheiro das
guardas de ontem. Abençoada a hora em que eu deixei o oficio de
sapateiro para ser cabo-de-esquadra da Guarda Nacional! O que ganhava
eu pelo ofício? Uma tuta-e-meia... Das guardas, das rondas e das ordens
de prisão faço a meu patrimônio. as arranjo de modo que rendem, e
não rendem pouco... Assim é que é o viver; e no mais, saúde, e viva a
Guarda Nacional e o dinheirinho das guardas que vou cobrar, e que muito
sinto ter de repartir com ganhadores. Se vier alguém procurar-me, dize
que espere, que eu já volto. (
Sai).
144
Em sua fala, José Pimenta explica por que mudou de profissão. O emprego público
aparece nas palavras desta personagem como uma das soluções para atenuar a precária
142
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Dispersão e Unidade - Reação Monárquica. In História Geral da
Civilização Brasileira
. São Paulo: Difusão Européia do Livro.Tomo 2, vol.2. 1976, p. 522.
114
situação econômica dos profissionais liberais. A garantia de receber pelo trabalho mostra o
interesse dos brasileiros pelos cargos públicos, enquanto comportamento identificador da
concepção nacional sobre o trabalho.
Na cena III, Maricota reflete sobre as palavras do pai:
MARICOTA, Tem razão; são milagres! Quando meu pai
trabalhava pelo oficio e tinha um jornal certo, não podia viver; agora
que não tem oficio nem jornal, vive sem necessidades. Bem diz o
Capitão Ambrósio que os ofícios sem nome são os mais lucrativos.
Basta de coser. (Levanta-se.) Não hei de namorar a agulheiro, nem
casar-me com a almofada. (Vai para a janela. Faustino aparece na porta
ao fundo, donde espreita para a sala.).
145
O sentimento de José Pimenta sobre sua mudança de profissão é absorvido
positivamente pelas reflexões da filha. Esta personagem também delineia a condição de
vida de sua família, diante das limitações financeiras, e da imposição das regras sociais que
cristalizam, pelas dificuldades de ascensão, a sua posição na hierarquia social.
É significativo destacar que Martins Pena abre a peça mostrando uma residência
com mobiliário simples. Fica evidenciado que, não nas profissões das personagens, mas
também nos costumes, sua caracterização e na ambientação, Martins Pena demonstra certa
preocupação em tornar evidente que se tratavam de pessoas da classe social intermediária.
Sala em casa de José Pimenta. Porta no fundo, à direita, e à esquerda
uma janela; além da porta da direita uma cômoda de jacarandá, sobre
a qual estará uma manga de vidro e dous castiçais de casquinha.
Cadeiras e mesa. Ao levantar do pano, a cena estará distribuída da
seguinte maneira: CHIQUINHA sentada junto à mesa, cosendo;
Maricota à janela; e no fundo da sala, à direita da porta, um grupo de
quatro meninos e dous moleques acabam de aprontar um Judas, o qual
estará apoiado à parede. Serão os seus trajes casaca de Corte, de
veludo, colete idem, botas de montar, chapéu armado com penacho
escarlate (tudo muito usado), longos bigodes, etc. Os meninos e
moleques saltam de contentes ao redor do Judas e fazem grande
algazarra
.
143
CARVALHO, José Murilo de, op. cit., p. 181.
144
PENA, Martins. Judas em Sábado de Aleluia. op. cit., p. 156
145
Ibid., p. 157.
115
Nesta peça, Martins Pena traz à cena uma das tradições da cultura popular, que
acontece na Semana Santa, que foi introduzida no Brasil pelos portugueses: o Judas do
Sábado de Aleluia, realizada na madrugada ou na manhã do Sábado de Aleluia. Uma das
primeiras descrições dessa tradição foi feita pelo artista Jean Baptiste Debret. De acordo
com Debret, o Judas era confeccionado com roupa e tecido de palha, com máscara e boné
de lã que lhe formava a cabeça.
146
Esses aspectos também podem ser observados nesta peça
de Martins Pena.
O cotidiano e a situação econômica da referida classe são manifestados na conversa
entre Chiquinha e Maricota:
CHIQUINHA – Bem o sei. Mas, olha, o meu vestido está quase pronto;
e o teu, não sei quando estará.
MARICOTA – Hei de aprontá-lo quando quiser e muito bem me
parecer. Basta de seca - cose, e deixa-me.
CHIQUINHA Fazes bem. (
Aqui Maricota faz uma mesura para a
rua, como a pessoa que a cumprimenta, e continua depois a fazer
acenos com o lenço.
) está ela no seu fadário! Que viva esta minha
irmã para namorar! É forte mania! A todos faz festa, a todos
namora... E o pior é que a todos engana... até o dia em que também seja
enganada.
MARICOTA – Sim! Agarra-te bem à costura; vive sempre como vives,
que hás-de morrer solteira.
CHIQUINHA – Paciência.
MARICOTA – Minha cara, nós não temos dote, e não é pregada à
cadeira que acharemos noivo.
CHIQUINHA – Tu já o achaste pregada à janela?
CHIQUINHA - Veremos. Dá graças a Deus se por fim encontrares um
velho para marido.
MARICOTA - Um velho! Antes quero morrer, ser freira... Não me
fales nisso, que me arrepiam os cabelos!
147
146
Conforme Debret, também eram colocadas bombas nas juntas para melhor dilaceração das partes na hora
da queima, que era precedida pelo enforcamento. Esse feito colocava em “polvorosa a população do Rio de
Janeiro entusiasmada por ver os pedaços inflamados desse apóstolo perverso espalhados pelo ar pela explosão
das bombas e logo consumidos entre os vivas da multidão!”. DEBRET, Jean Baptiste.
Viagem pitoresca e
história ao Brasil
. Tomo II. Vol. III. Sergio Milliet (Trad.). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1975, p. 190.
147
Ibid., p. 152.
116
Nestas falas, percebe-se um dos aspectos que constituem um grande problema para
à referida classe, ou seja, o fato das moças, Chiquinha, a mais centrada, e Maricota, mais
aventureira não possuírem dotes. Tal realidade dificultaria a chance de enlace
matrimonial para as personagens. Esta situação ajuda a compor um quadro fiel dos
costumes e hábitos da sociedade que Martins Pena traz à cena. Um outro dado curioso,
caracterizador da sua condição econômica precária, refere-se à confecção das roupas ser
efetuada pelas próprias moças, dado revelador da condição de inferioridade social.
A condição de inferioridade social e de dificuldade financeira também aparecem na
peça Ingleses na costa (1864), de França Júnior. Nesta comédia, outras representações da
classe intermediária são colocadas em cena. Neste caso, o enredo registra as manobras dos
estudantes Felix e Silveira, cheios de dívidas, tentando escapar dos credores. Nota-se a
preocupação de França Júnior em não evidenciar profissionais, mas estudantes que, de certa
forma, vivem de favores de familiares ou outrem. A condição de dependência de familiares
e/ou amigos é um dos pontos que ilustram, nesta peça, características da classe
intermediária. Além disto, fica demarcado que a renda que os mantém é limitada. Tal
aspecto pode ser percebido na caracterização do ambiente colocado em cena.
Tendo como cenário a cidade de São Paulo, e representando o ano de 1864, a mesma
data da edição, a ambientação da peça
Ingleses na costa é assim apresentada:
O teatro representa um quarto com uma porta ao fundo e portas
laterais. À direita e à esquerda camas; no fundo uma estante com
livros em desordem, um cabide com roupa; sapatos velhos espalhados,
duas canastras ao lado do cabide, uma mesa com papéis e livros, etc.
Na primeira cena, Felix e Silveira estão dormindo quando alguém bate à porta:
FÉLIX (Acordando sobressaltado.) – Hein?
SILVEIRA (
Pondo a cabeça fora do cobertor.) – Bata com a cabeça.
FÉLIX – Insensato, o que fazes? É um credor!
117
SILVEIRA – Um credor! Pois já amanheceu?! (Batem outra vez: baixo.)
– Bate, grandíssimo patife.
148
Na cena seguinte, os estudantes descobrem que o visitante é o amigo Feliciano, um
estudante que se mostra anglofóbico:
FÉLIX – Feliciano, há certas graças que não têm graça.
FELICIANO – Pelo quê? (
Rindo-se.) Ah! Já sei: tomaram-me sem
dúvida por algum credor, por um inglês?
SILVEIRA – Por um inglês?
FELICIANO vejo que ainda não leram Balzac. Pois saibam que o
espirituoso autor da Comédia Humana apelida de ingleses a essa raça
desapiedada que nos persegue por todo a parte. Depois da questão anglo-
brasileira, creio que não pode haver um epíteto mais apropriado para
designar um credor. Os ingleses são inimigos terríveis e um credor, a
meu ver, é o mais furibundo dos nossos inimigos. (
Rindo-se.) Tomaram-
me por um inglês!
SILVEIRA – Quando se tem o espírito sobressaltado...
FELICIANO – Sei o que é isso. Eu também venho tocado de casa.
Acredita-me, Silveira: eu sou um homem infeliz. Às vezes tenho ímpetos
de perguntar ao cano de uma pistola os segredos da eternidade. Esses
ingleses hão de ser a causa da minha morte!
SILVEIRA – E da morte do Brasil inteiro! As coisas não vão bem.
149
Na terceira cena, Teixeira, um dos credores dos jovens, vem até a casa cobrar-lhes o
aluguel. O deboche e a ironia tornam-se os tons do diálogo dos estudantes com seu credor.
TEIXEIRA – O senhor Doutor Silveira.
SILVEIRA (
Baixo a Feliciano.) – Estou perdido! O Teixeira caolho, e
estou do lado esquerdo! Que fatalidade!
150
No decorrer da trama, os jovens recebem a visita de Ritinha e Lulu. Félix se arruma
para um jantar na casa do Barão. Os três jovens vivem de mesadas, entretanto as amigas
Ritinha e Lulu deixam transparecer como conseguem dinheiro. Lulu manda encomendar
um jantar para todos.
148
FRANÇA Júnior. Ingleses na costa. In: CAFEZEIRO, Edwaldo et alii. (Org) Teatro de França Júnior. Rio
de Janeiro: FUNARTE, 1980, p. 77.
149
Ibid., p. 78.
150
Ibid., p. 80.
118
Na cena XII, chega ao local o tio de Félix, Luís de Castro.
LUÍS de CASTRO (Entra com botas de montar; traz um grande chapéu
de palha e uma mala de viagem na mão
.) – Dão licença. Ninguém?! Olá
de dentro!
FELICIANO – Um credor de botas!
SILVEIRA – É um cometa!
FELICIANO – Tu tens dívidas no Rio de Janeiro?
SILVEIRA – Não sei; parece-me que tenho verdugos até na China!
LUÍS de CASTRO (
Sentando-se aos poucos na canastra.) Ui, ui, ui.
Irra! Doze léguas! Parece-me um sonho estar aqui! Que viagem, que
precipícios e que burro! Corcoveou um quarto de hora comigo na serra;
afinal não pude: deixei-me escorregar pelo rabicho, e caí com a parte
onde a espinha dorsal muda de nome mesmo na ponta de uma pedra! Vi
estrelas! Ui, ui, ui. E tudo para quê? Para vir ver o patife de um sobrinho
que me anda esbanjando a fortuna! Ah! São Paulo, tu és um foco de
imoralidades! Mas onde estará esse bigorrilhas? Disseram-me que ele
morava aqui. (
Põe a mala no chão e tira as esporas.).
151
Na seqüência, muito espertas, as moças envolvem Luís de Castro, que acredita estar
na residência destas.
LULU – Fiquem vocês aqui: quando o homem estiver convertido, eu os
chamarei. (
Ritinha e Lulu entram em cena).
LUÍS de CASTRO Minhas senhoras...Perdão: creio que estou
enganado. (
Á parte) É uma casa de família. (Alto) Como cheguei agora
mesmo, julguei que fosse esta a casa de meu sobrinho Félix de Castro.
RITINHA – Pois tem ânimo de nos deixar tão cedo?!
LULU – Ora, fique.
LUÍS de CASTRO Eu porventura as conheço? Tenho negócios com as
senhoras? (
À parte.) Decididamente vou-me embora: dizem que o fogo
perto da pólvora...(
Alto.) Minhas senhoras. (Vai sair)
LULU (
Baixo) – Não vá: se for há de se arrepender.
152
Depois de ceder à chantagem de Silveira, que ameaça falar sobre seu
comportamento com as moças à sua esposa, na cena XV, Luís de Castro promete pagar as
dívidas dos estudantes e comenta que ficará mais dois meses com eles.
SILVEIRA (Suspirando) –Estou livre do Teixeira caolho!
LULU, RITINHA e FELICIANO – Viva o Senhor Luis de Castro.
LUÍS de CASTRO Hoje mesmo pagarei todas as tuas dívidas; mas hás
de me prestar dois juramentos: de não as contrair mais; (
Baixo) de
nada revelares a tua tia do que se passou aqui.
151
Ibid., p. 89.
152
Ibid., p.91.
119
SILVEIRA Eu também quero impor uma condição. O senhor de
ficar aqui pelo menos dois meses.
LUÍS de CASTRO – Fico.
SILVEIRA (
Para Feliciano) – Já não morreremos mais de fome.
LUÍS de CASTRO – Estou desmoralizado, perdido, esbandalhado, e tudo
por quê? Por causa de um sobrinho extravagante.
FELICIANO – Engana-se, Senhor Luís de Castro: tudo isso é devido aos
- Ingleses na Costa.
LUÍS de CASTRO – Que ingleses?
FÉLIX (
Segurando em Luís de Castro) – Venha para o quarto, meu tio. É
uma história muito complicada; logo lha contarei.
SILVEIRA Esperem. Eu tenho que falar com estes senhores por parte
do autor.
Se algum inglês se ofendeu,
Com o autor não encavaque
O autor só se refere
- aos Ingleses de Balzac.
153
Ainda que se mostrem lugares diferentes, tanto Judas em Sábado de Aleluia, de
Martins Pena, quanto
Ingleses na costa, de França Júnior, mostram ambientes que se
aproximam. Neles, ficam evidenciadas as condições de vida de seus personagens,
principalmente nos detalhes dos ambientes colocados em cena. As limitações financeiras, a
falta de densidade nas paixões, ou os grandes dramas existenciais aparecem muito distantes
dos enredos destas peças. O que prevalece são justamente as convenções e a luta pela
sobrevivência. A mediação, a troca de favores, as limitações financeiras se configuram
como delineadoras na caracterização desta classe. No caso da peça de Martins Pena, as
situações trazidas à cena tornam-se relevantes para a identificação da situação sócio-
econômica da referida classe social. Com relação à peça de França Júnior, é importante
destacar que além de evidenciar o estilo e a condição de vida dos estudantes, o autor
sublinha que as moças, não pertencendo à elite, também compõem o “mecanismo de
favores”, conforme destaca Schwarz.
154
Neste contexto, caberia à personagem Luís de
153
Ibid., p. 94.
154
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, op. cit, p. 16.
120
Castro possibilitar a manutenção de tal “mecanismo”, pois pertencendo à classe dominante
paga as dívidas dos moços “em troca de favores”.
Os enredos destas peças, cujos protagonistas pertencem à classe intermediária, se
afastam muito das que encenam situações vivenciadas por personagens escravas ou das que
representam segmentos da elite da Corte. Não há mazelas, não há luxo ou tampouco
serviçais, escravos ou criados estrangeiros. A sobrevivência das mulheres da classe
intermediária é também um “detalhe” que aparece sinalizado nas peças em estudo.
Em
O Judas em Sábado de Aleluia, Martins Pena destaca que, para Maricota e
Chiquinha, rejeitada a possibilidade do convento, a costura é quase condicionante para
conseguirem um casamento. Na peça
Ingleses na costa, França Júnior traz à cena o recurso
da prostituição, utilizado por Lulu e Ritinha, como possibilidade de sobrevivência. O que se
evidencia, nestes enredos, é a questão da sobrevivência que, parece, era a questão mais
imediata de todo esse segmento. Tanto, que a representação dessa camada social, a vêem
pelo lado do cômico, indicando a própria instabilidade.
2.1.3 A representação dos senhores no teatro do século XIX: a elite branca “nacional”
Nas peças elencadas para este estudo, observa-se que, em sua maioria, prevalece a
representação de segmentos da elite branca, seja ela da Corte ou do interior.
Na história brasileira, constata-se que, depois de proclamada a Independência, o
governo permanecera nas mãos da elite. Conforme Emília Viotti da Costa, integravam este
“grupo de elite: fazendeiros, comerciantes, pessoas que ocupavam altos postos na
121
administração e no governo”.
155
Esta minoria, uma elite de letrados, em uma terra onde o
analfabetismo predominava, atuou como porta-voz “de uma ideologia liberal que
mascarava as contradições do sistema”. Esta apresentava-se como europeizada, o que
“ocultava a miséria, a escravidão em que vivia a maioria dos habitantes do país”.
156
Nas peças em estudo, a elite aparece como a nobreza brasileira, ocupante de cargos
públicos. Seus representantes ostentam cargos de ministros, conselheiros, desembargadores,
ou desenvolvem atividades como comerciantes, fazendeiros, dentre outras. Um outro dado
que se depreende da representação desse segmento é a caracterização dos ambientes
luxuosos em que se desenvolvem as cenas.
A elite da Corte também é destacada na peça
Caiu o Ministério!(1882), de França
Júnior. Neste enredo o autor cria uma trama tecida com um número significativo de
personagens, destacando-se: Conselheiro Felício de Brito, Presidente do Conselho, sua
esposa Filomena e a filha Beatriz; Filipe Flecha, um vendedor; Mr. James, o estrangeiro;
Raul Monteiro; o Ministro da Guerra, o Ministro do Império, o Ministro dos Estrangeiros, o
Ministro da Justiça, Dr. Monteirinho, Ministro da Marinha, Senador Felizardo. O
dramaturgo, portanto, coloca em cena como protagonistas representantes da classe
dominante, vinculados ao poder político.
em peças como
Cocota (1885), de Artur Azevedo, através dos fazendeiros
Gregório e Serapião, de Tinguá, localidade próxima a Petrópolis, é a elite interiorana que se
faz representar.
155
COSTA, Emília Viotti da, op. cit. p. 55.
156
Ibid., p.60.
122
Com relação às personagens femininas e dos senhores (elite branca), muitas são as
peculiaridades que as assemelham entre si. Uma delas é o seu modo de pensar com relação
à nacionalidade brasileira e estrangeira.
Nas peças, os tipos anunciados como representantes da elite branca distinguem-se
não no caráter, mas também por se posicionar em lados distintos tanto no trato de seus
compatriotas como na recepção e aceite do estrangeiro que transita, que convive em seu
locus. Depreendem-se dos enredos tipos como o escravocrata, o nacionalista, às vezes até
xenófobo, mas também os estrangeiristas, que exaltam tudo o que vem do estrangeiro, das
nações imperialistas, e os já estrangeirados, que assimilaram o estrangeiro e expressam esta
adesão em idéias, hábitos, costumes e até na própria linguagem, segmentos de elite que
Emília Viotti da Costa demarca como europeizados.
Sobre os tipos escravocratas, traz-se, mais uma vez, a peça de Martins Pena,
Os
dous ou o inglês maquinista
(1845). Esta tem início com a caracterização do ambiente em
que a história é desenvolvida, conforme se pode verificar:
O teatro representa uma sala. No fundo, porta de entrada; à esquerda,
duas janelas de sacadas, e à direita, duas portas que dão para o interior.
Todas as portas e janelas terão cortinas de cassa branca. À direita, entre
as duas portas, um sofá, cadeiras, uma mesa redonda com um candeeiro
francês aceso, duas jarras com flores naturais, alguns bonecos de
porcelana; à esquerda, entre as janelas, mesas pequenas com castiçais
de mangas de vidro e jarras com flores. Cadeiras pelos vazios das
paredes. Todos estes móveis devem ser ricos.
Anteriormente, pode-se observar que a personagem Clemência, dona da casa,
caracteriza-se pela ambição e maus-tratos aos escravos. Sua maior intenção era a de casar
sua filha Mariquinhas com alguém de posses. De acordo com Clemência, o noivo poderia
ser o traficante Negreiro ou o maquinista inglês, Gainer,
personas que, em sua opinião,
eram ricas e, portanto, dignas de desposar sua filha.
123
No entanto, ambos, Negreiro e Gainer, estão longe de possuir a riqueza que
Clemência lhes credita. Isto é demonstrado, além de outros momentos, na cena XVII,
quando Negreiro comenta:
Seria bem bom que eu pudesse arranjar este casamento o mais breve
possível. com a moça, em suma, não me importa; o que eu quero é o
dote. Faz-me certo arranjo… Alguém vem! Se eu me escondesse, talvez
pudesse ouvir… Dizem que é feio… Que me importa? Primeiro o meu
dinheiro, em suma. (
Esconde-se por trás da cortina da primeira
janela.
)
157
Essa idéia de casamento bem sucedido em termos financeiros permeia não somente
o pensamento de Clemência, de Negreiro ou de Gainer, mas também de outras personagens
desta peça. Na cena IX, onde estão conversando Mariquinhas e Cecília:
MARIQUINHAS – Mas, Cecília, tu sabes que eu amo o meu primo.
CECÍLIA E o que tem isso? Estou eu que amo a mais de um, e não
perderia um tão bom casamento como o que agora tu tens. É tão belo ter
um marido que nos carruagens, chácaras, vestidos novos pra todos os
bailes Oh, que fortuna! ia sendo feliz uma ocasião. Um negociante,
destes pé-de-boi, quis casar comigo, a ponto de escrever-me uma carta,
fazendo a promessa; porém logo que soube que eu não tinha dote como
ele pensava, sumiu-se e nunca mais o vi.
158
O dote é uma condição para os enlaces matrimoniais entre as pessoas da classe que
ocupam lugar de destaque na hierarquia social. Os depoimentos que advêm das
personagens o elegem como uma das condições fundamentais para o matrimônio e o
sucesso nas relações sociais.
Ainda nesta peça, mais uma peculiaridade contribui para a caracterização da elite
representada por Martins Pena: a valorização do estrangeiro.
Na cena XI, Clemência tenta mostrar a erudição da filha Júlia, personagem que
tem dez anos:
157
PENA, Martins, op. cit., p. 140.
158
Ibid., p. 131.
124
CLEMÊNCIA As mestras da Júlia estão muito contentes com ela. Está
muito adiantada. Fala francês e daqui a dois dias não sabe mais falar
português.
JULIA – Bom jour, Monsieur, comment vous portez-vous? Je suis votre
serviteur.
JOÃO – Oui. Está muito adiantada.
EUFRÁSIA – É verdade.
CLEMÊNCIA,
para Júlia – Como é mesa em francês?
JÚLIA – Table.
CLEMÊNCIA – Braço?
JÚLIA – Bras.
CLEMÊNCIA – Pescoço?
JÚLIA – Cou.
CLEMÊNCIO – Menina!
JÚLIA – É cou mesmo, mamã; não é primo? Não é cou que significa?
CLEMÊNCIA – Está bom, basta.
EUFRÁSIA – Estes franceses são muito porcos. Ora veja, chamar o
pescoço, que está ao pé da cara, com este nome tão feio.
159
Dentre outros aspectos, aparece a maneira irônica e jocosa utilizadas por Martins
Pena ao se referir à elite carioca. O aprendizado de uma língua estrangeira, neste caso a
Língua Francesa, aparece como indicador de
status social.
Esta situação pode ser observada também, na peça
O tipo brasileiro (1872), de
França Júnior. Nesta obra, cujas cenas se desenvolvem no Rio de Janeiro, Henrique,
protagonista, se vê obrigado a passar por estrangeiro para driblar o pai de sua amada
Henriqueta e assim conseguir casar com a moça. Além de Henrique
160
e Henriqueta fazem
parte da trama as personagens Teodoro, pai de Henriqueta, Mr. John Red, e um criado que
possui somente uma fala na cena VI.
159
Ibid., p. 134.
160
Mesmo que um dos objetivos deste estudo não seja destacar questões relativas à onomástica nas peças,
cabe destacar que as leituras nos apontam para um número significativo de personagens Henrique e
Henriqueta protagonizando as tramas.
125
A posição social da família de Henriqueta é descrita na ambientação da cena I: “Sala
elegantemente mobiliada em casa de Teodoro Paixão”.
161
Nesta cena, Henrique conversa
com Henriqueta:
HENRIQUE Não se de cumprir. A mania de teu pai pelo
estrangeirismo não subirá ao ponto de comprometer a tua felicidade
futura.
HENRIQUETA O que queres? Para ele o estrangeiro é tudo; em sua
opinião um brasileiro não presta para nada. Diz-me constantemente que
nossos compatriotas são indolentes, fúteis, sem educação; esbanjam a
fortuna do país, e que quando se vêem surpreendidos pelo temporal da
miséria, agarram-se a um casamento rico como náufrago à tábua de
salvação.
162
O enredo apresenta Henrique como um brasileiro nacionalista, que se confronta com
brasileiros que valorizam somente o que é estrangeiro e também com o estrangeiro Mr.
John Read.
Mesmo que durante a trama, ao se fazer passar por francês para ser valorizado por
seu compatriota em sua própria nação, Henrique se diz avesso à influência estrangeira e à
recepção dada por brasileiros a estrangeiros em seu território. Ficam registrados, em seus
diálogos e ações, seu conflito diante da presença do estrangeiro e também sua repulsa pelos
autóctones que valorizam o estrangeiro. Mesmo Henrique, em momentos da trama, se
mostrando como um falso francês, ainda permanece leal aos sentimentos que o identificam
como nacional brasileiro.
Por outro lado, Henriqueta, filha de Teodoro, procura justificar o pensamento de seu
pai sobre o mau conceito que possui dos brasileiros. São apresentados, através de suas
palavras, alguns adjetivos e ações que concretizam uma moldurada negativa do brasileiro
da época. Henriqueta admite que seu pai é um brasileiro que valor somente no
161
FRANÇA Jr. O tipo brasileiro, op. cit., p. 138.
126
estrangeiro. Neste diálogo, presencia-se Henrique defender com veemência sua honra
diante da desconfiança de Teodoro em relação às suas intenções com Henriqueta,
principalmente por ser ele um brasileiro:
Isto é uma infâmia! Sou brasileiro, tenho vivido aqui sob o aguaceiro
da desgraça, mas minha alma, em suas santas expansões, jamais se
deixou fascinar pelo que possuis.
163
Henrique, conforme mencionado, representa o brasileiro nacionalista, ciente de
sua história de colonizado, mas também convicto de suas capacidades frente ao estrangeiro.
Entretanto, durante a trama, Henrique se faz passar por estrangeiro, como estratégia para
desmascarar o inglês. Percebe-se ainda que este protagonista não se deixa influenciar pelo
estrangeiro e resgata, no final da história, a credibilidade do brasileiro perante seus
descrentes compatriotas.
Teodoro, por sua vez, pertence a um quadro cujos matizes, linhas e texturas
denunciam imagens da sociedade em (de)formação. Ao expor Teodoro ao ridículo e
denunciar a xenofobia de Henrique, França Júnior, em
O tipo brasileiro, coloca em xeque a
escala de valores, as preferências de representantes da elite branca dominante, na medida
em que evidencia essas diferentes formas da receptividade do brasileiro com o próprio
brasileiro e com o estrangeiro, apontando a ingenuidade de uns em contraponto à
desconfiança de outros.
Outra representação da elite brasileira que anuncia seu perfil nacionalista é Luciano,
de
Amor e Pátria, de Joaquim Manoel de Macedo. Desenhado como bom caráter, essa
personagem procura se aproximar de recriações de tipos brasileiros modelares, ícones
162
Ibid., 138
163
Ibid., p.140.
127
exemplares, conscientes da importância de seu lugar, de suas ações e de seu papel diante do
quadro político gerado pelo processo da Independência do Brasil.
A peça
Amor e pátria, publicada também em 1863, desenvolve-se em um único ato,
dividido em quatorze cenas, e aborda temáticas como o amor, a fidelidade à pátria e a
inveja. Macedo traz à cena as personagens Luciano, Afonsina, Plácido e Leonídia
pais de
Afonsina o tio Prudêncio e Velasco, suposto amigo da família. Todas as personagens
pertencem à elite carioca, representando as nacionalidades brasileira e portuguesa, como no
caso de Plácido, que é um português que se estabelece no Brasil. O enredo de
Amor e
pátria
se desenvolve exatamente em uma semana depois da Proclamação da Independência,
no dia 15 de setembro, quando a notícia chega ao Rio de Janeiro.
A peça tem início com a primeira cena ambientada na casa de Plácido. Percebe-se,
mais uma vez, que é ressaltada a ornamentação como uma das características que deflagram
a posição social das personagens:
O teatro representa uma sala ornada com luxo e esmero em relação à
época. Duas portas ao fundo, uma dando saída para a rua, e outra
comunicando com uma sala; portas à direita; janelas à esquerda.
PLÁCIDO, PRUDÊNCIO, LEONÍDIA e AFONSINA, que observa
curiosa uma caixa que está sobre uma cadeira, e a porta da sala do fundo
que se acha fechada.
PRUDÊNCIO Vocês hão de acabar por perder completamente aquela
menina! O senhor meu cunhado com as idéias que trouxe da sua viagem
à França e a senhora minha irmã com a sua cegueira de mãe extremosa,
deram-lhe uma educação como se a quisessem para doutora de borla e
capelo: fizeram-na aprender tudo quanto ela podia ignorar, e a deixaram
em jejum a respeito do que devia saber. Assim, minha sobrinha dança
melhor do que as bailarinas do teatro de S. João; conversa com os
homens como se eles fossem mulheres; mais se lhe perguntarem como se
toma ponto a uma das meias, como se prepara um bom jantar, como se
governa uma casa, espicha-se completamente: eu até aposto que ela não
sabe rezar.
LEONÍDIA Afonsina é um tesouro de talentos e de virtudes, e você
não passa de uma má língua.
PRUDÊNCIO Oh! Pois não! Nem os sete sábios da Grécia lhe dão
volta! Ela faz versos como o defunto padre Caldas; fala em política e é
128
tão eloqüente como o Antônio Carlos; é tão revolucionária como o Barata
(...)
164
O enredo de Amor e pátria anuncia o romance de Afonsina e Luciano, que vêem sua
união ameaçada pela possibilidade de extradição do pai da moça, Plácido. Em função de
uma calúnia feita por Velasco, Plácido é tido como traidor da pátria. Velasco, suposto
amigo da família, também é português e deseja se casar com Afonsina, principalmente por
seu dote. Entretanto a trama é desfeita e a punição é suspensa por interferência de Luciano.
O protagonista descobre também que Plácido é seu tio.
Ainda interessa sobre
Amor e pátria salientar que, além de mostrar a personagem
protagonista como um brasileiro nacionalista e modelar, Macedo, ao privilegiar o foco
sobre a classe social dominante, e ao omitir, ou deixar de anunciar as complexidades e
diferenças que transitam em seu tempo e contexto, impede, de certa forma, a possibilidade
de sua obra adentrar na tradução de um momento histórico/cultural definidor da
organização política social e econômica do Brasil.
À exceção de Velasco, que pertence à classe intermediária, que vive de favores de
Plácido, que na trama age como antagonista, vê-se na peça o autor dando destaque, como
personagens marcantes, a esses tipos brasileiros, nacionalistas, pertencentes à elite branca,
com
bom caráter.
Nesta perspectiva sobre os tipos nacionais que representam a elite dominante, uma
outra peça de Joaquim Manoel de Macedo que pode ser acrescida à discussão é a comédia
burlesca
A torre em concurso (1863). A peça desenvolve seu enredo no interior, fora da
164
MACEDO, Joaquim Manoel de. Amor e Pátria. In: CUNHA, Antônio Geraldo. (Org) Clássicos do teatro
brasileiro:
Joaquim Manoel de Macedo. Vol: 3. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979, p. 151-152.
129
Corte, em um curato da Província do Rio de Janeiro, trazendo à cena representantes de
segmentos da elite rural.
Macedo apresenta imagens que se distanciam daquelas que advêm dos cenários com
enredos desenvolvidos na Corte, tal como
Amor e pátria (1863), deste mesmo autor.
Observa-se esse panorama a partir da na cena que introduz a história:
Praça de uma acanhada povoação do interior: casas térreas e de rótulas
aos lados: à direita um sobrado com janelas de peitoril, e em frente um
jardim com grades baixas de pau, estendendo-se até um terço da cena, e
parecendo prolongar-se para dentro: uma rua à esquerda: duas ao
fundo e no meio destas uma igreja de triste aparência, vista de lado: por
falta de torre está o sino preso em quatro estacas a um lado da igreja.
165
Macedo coloca em cena, além de outros, personagens da sociedade local, policiais, e
os protagonistas Henrique, Faustina, filha de João Fernandes, o juiz de paz, Felícia,
sobrinha do juiz, Ana, irmã rica do juiz, tia de Faustina e Felícia, a prima viúva, Germano,
e os trapaceiros Crespim e Pascoal.
A leitura do edital para a construção da torre da Igreja é que o início ao enredo.
Germano que não aceita os termos do edital determina que um engenheiro inglês construa a
torre. O romance de Henrique e Faustina fica ameaçado a partir do momento em que a mão
da moça é incluída como prêmio ao engenheiro que construir a referida torre.
A construção da torre da igreja traz, à cena, uma das peculiaridades do contexto da
época. Emília Viotti da Costa comenta que grande parte dos núcleos urbanos do interior
apresentava-se com um aspecto descuidado, extremamente limitado em relação aos
recursos urbanos. Segundo a autora, “nas cidades do interior os únicos edifícios de registro
eram as igrejas e os conventos, e mais raramente os edifícios da Câmara e da cadeia”.
166
165
MACEDO, Joaquim Manoel de. A torre em concurso , op. cit., p. 175.
166
COSTA, Emília Viotti da, op. cit., p. 242.
130
Depreende-se daí a importância dada à construção da torre no enredo da peça A torre em
concurso
. Em vários momentos do enredo, Macedo deixa evidenciadas as limitações do
interior, bem como a necessidade de aproximação com os parâmetros de urbanização.
No primeiro ato, na cena I, Germano e Manuel Gonçalves comentam:
GERMANO (rindo) São uns brejeiros, compadre: não se lembra da
guerra que nos fizeram na última eleição?...
MANUEL GONÇALVES – É boa!... porque todos eles juntos não valem
o dedo mindinho de um engenheiro inglês; porque...sim, porque também
um sino de Braga é por força melhor do que todas as campainhas
rachadas que possam fundir na Ponta de areia, na província do Rio de
Janeiro... e tenho dito...
167
Contrário ao sentimento de Germano e Manuel Gonçalves, Henrique manifesta a
vontade de fazer a torre, afirmando ser engenheiro brasileiro capaz de construí-la, e
contesta a anglomania de seus compatriotas.
Henrique e Faustina têm em Felícia uma grande aliada para seu romance. Os três
conversam:
FAUSTINA Eu nunca duvidei da sua habilidade, prima; mas olhe que
era preciso ser muito entendida nestas matérias para (…)
FELÍCIA – Pois então? é verdade que sou moça, mas também é
verdade que sou viúva, e, portanto, devo ter experiência nestes negócios.
E de mais, Faustina, não te lembras de que eu fui deputada, e passei
quase uma legislatura inteira no Rio de Janeiro? Ah! meu belo, meu
querido Rio de Janeiro! todas vocês me lastimaram quando, cinco
anos e aos quinze de idade me viram casada com um velho de cinqüenta;
em breve, porém, meu marido foi eleito deputado, e tive de acompanhá-
lo à Corte: que brilhante destino! Ah! tu não sabes que vida passa uma
augusta e digníssima! basta dizer-te que a mulher do deputado dança a
valsa com os ministros, e jogos de prendas com os conselheiros do
Estado: que vida! que vida passei! Mas ah, meu marido que era sempre
ministerial, morreu de indigestão no terceiro ano da legislatura, e por
conseqüência suspenderam-me o subsídio, e fui obrigada a voltar para a
província mas a que veio isto? Ah! sim: para provar a minha
experiência; pois bem: com ela adivinhei que vocês se amavam; que
minha tia quer antes o senhor Henrique para marido do que para
167
Ibid., p. 176.
131
sobrinho, e que, portanto, atrapalha consideravelmente; visto que meu tio
é escravo de sua irmã, porque espera ser seu herdeiro, e está de posse
da sua fortuna e do seu testamento.
HENRIQUE – Sim, adivinhou, sabe tudo; cumpre agora que nos proteja,
e que conseguindo desacreditar-me na opinião de sua tia …
FAUSTINA Olhe, prima qualquer outra lembrança que você tiver,
de ser por força melhor do que essa.
FELÍCIA Eu logo vi que você não havia de gostar. Inventarei outro
meio… confiem em mim: dou-lhes minha palavra que hei de hoje mesmo
desenganar minha tia… Oh! se hei de! tenho antipatia às velhas que
atrapalham as moças… contem comigo, e (…)
168
Mesmo cheia de boas intenções, querendo ajudar no relacionamento de Faustina e
Henrique, nota-se que a fala de Felícia aparece permeada pela hipocrisia da elite da Corte.
Entretanto, no enredo, tais características são vistas como modelares aos interlocutores do
interior, mesmo que a convenção e o oportunismo sejam os traços pertinentes nesta fala. A
malícia e a perspicácia, adquiridos no convívio com a elite da Corte, constituem-se em
elementos importantes no caráter de Felícia, que a tornam exemplar neste contexto. Felícia
mostra como a vida na Corte contribuiu para os conhecimentos das artimanhas, com as
quais, ironicamente, pretende ajudar Henrique e Faustina.
Nesta peça, as personagens Crispim e Pascoal, dois trambiqueiros que se fazem
passar por estrangeiros. Com o objetivo de enganar os cidadãos locais, eles se apresentam
como engenheiros ingleses. O humor atravessa esta peça, sobretudo pelos equívocos e mal-
entendidos que acompanham a trajetória dos patéticos Crispim e Pascoal. Mais uma vez
percebe-se que os habitantes do interior são representados como suscetíveis aos embustes,
às artimanhas de outrem.
168
Ibid., p. 183.
132
Como na peça de França Júnior O tipo brasileiro (1872), no enredo de A torre em
concurso
(1863) de Macedo o brasileiro desenhado pelas cores locais, o que se faz
passar por estrangeiro e o que vê no estrangeiro o valor positivo.
No primeiro ato, cena I, Henrique, após ter conhecimento do edital para a
construção da torre, apresenta-se como um candidato para a sua construção:
HENRIQUE Um momento: perderei palavras, mas cumprirei o meu
dever. Estais fazendo loucuras! Eu já vos disse que o presidente de
província vai contemplar-me no número dos engenheiros dela, e
encarregar-me da direção das obras da nossa igreja, e em tal caso...
ATANÁSIO – Olhem quem quer fazer a torre! Está doido!... fora!...
HENRIQUE – Quero, sim! Nasci neste lugar; deve, portanto, ser-me
grato prestar-lhe os meus serviços como engenheiro que sou.
169
Neste diálogo, Henrique aparece como um brasileiro capaz de elaborar o projeto e
construir a torre da igreja. Ao anunciar tal possibilidade, Henrique mostra que o brasileiro
também possui o conhecimento de engenharia. Além de anunciar o nacionalismo como
característica da personagem protagonista Henrique, no enredo de Macedo percebe-se que
personagens que representam segmentos da classe dominante, como no caso de Atanásio,
subdelegado, Germano, e João Fernandes, o juiz de paz, não creditam a mesma confiança
ao engenheiro brasileiro. Esta característica os aproxima da personagem Teodoro, de
O tipo
brasileiro
, de França Júnior. Tal posição os coloca como brasileiros que glorificam outras
culturas das nações estrangeiras imperialistas. No enredo, embora ambientado no interior,
muitas das concepções sobre o brasileiro e estrangeiro anunciam-se semelhantes aos que
representam a sociedade da Corte.
169
Ibid., p. 177.
133
No primeiro ato, na cena X, Crispim e Pascoal, ao se passarem por engenheiros
ingleses, tentando pegar o dinheiro para a construção da torre, são abordados por Henrique,
que denuncia a farsa:
HENRIQUE Senhores, estes homens não são ingleses: são dois
tratantes; eu falo o inglês e juro que eles o entendem tanto como o senhor
capitão João Fernandes!
MANUEL GONÇALVES O senhor é um homem suspeito, e está
furioso de inveja; estes dois sábios engenheiros falam perfeitamente o
inglês que nós ainda não lhe entendemos uma palavra!
CRISPIM – Oh! Iess; mim star inglis!
PASCOAL – Oh! Fiu plise, etc.
170
No ato terceiro, cena VII, Pascoal e Crispim conversam sobre o concurso para a
construção da torre. O engenheiro vencedor, além de construir, casará com Faustina e
receberá o dote. Perante a comunidade do local, eles utilizam um inglês estropiado,
conforme se verifica nas falas anteriormente citadas. Entretanto, quando estão sozinhos, os
dois falam a língua portuguesa.
PASCOAL Tu és um cínico: os homens de gravata lavada, como eu,
sabem esconder as idéias mais ignóbeis em bonitas palavras: no nosso
caso a obra da torre deve chamar-se um serviço relevante prestado à
pátria, e o casamento com vinte mil cruzados da pequena um enorme
sacrifício consumado em sinal de gratidão ao amor ao povo.
CRISPIM De comer o dinheiro do povo e devorar o dote da filha do
velho: conheço muito patriotismo dessa qualidade.
171
Ainda sobre a estratégia do disfarce, cabe desatacar que o objetivo de Crispim e
Pascoal se encontra distanciado do de Henrique, em
O tipo brasileiro que o utiliza para um
fim que poderia ser considerado até ‘justificável’, no contexto da trama. os disfarces de
Crispim e Pascoal não possuem a finalidade de desmascaramento, como no caso do
Henrique, mas tão somente para tirar proveito de uma situação.
170
Ibid., p. 191.
171
Ibid., p. 222.
134
A alusão ao dote que também é deflagrada em Os dous ou o inglês maquinista
(1845), O tipo brasileiro(1872) e Amor e pátria (1863) é uma das características que,
conforme mencionado, denunciam o distanciamentos entre a posição social e a situação
econômica da elite dominante em relação aos membros da classe intermediária.
Nas peças anteriores, no entanto, não problema algum com a questão do dote.
Tanto em
Os dous ou o inglês maquinista, em O tipo brasileiro como em Amor e pátria o
dote das protagonistas compõem sua linhagem. Em
A torre em concurso, João Fernandes
depende economicamente de sua irmã Ana, uma solteirona rica, assanhada e tirana, que
pretende se casar com Henrique. O dote de sua filha Faustina não lhe é próprio, pois está
diretamente condicionado à fortuna de sua tia. Ainda que socialmente integrem a elite do
lugar, Faustina e o pai, devido à situação econômica, estão mais próximos da classe
intermediária, na medida em que João Fernandes é um juiz de paz do interior, um
funcionário público, cabendo aqui também o que Schwarz afirma ser “o mecanismo do
favor”.
172
João e Faustina dependem economicamente dos favores de Ana. Desta forma,
percebe-se que também na elite do interior aparece representada tal situação.
Na cena VI, Ana conversa com o irmão a respeito do namoro escondido de Faustina
e Henrique. Revoltada, por se sentir contrariada, traída, com este envolvimento, ameaça
João Fernandes de retirá-los, o irmão e a filha, do testamento.
ANA Quero que Faustina case com um dos dois engenheiros ingleses
que estão aí.
JOÃO FERNANDES Com o engenheiro que fizer a torre? bravo! a
dúvida está em que ele aceite a noiva; porque um é lord inglês, e o outro
filósofo; mas veremos … veremos Oh! se eu fico com uma filha
godemi, e com um genro que saiba consertar alambiques de engenhoca,
dou pulos de contente! Sinhá Aninha, você tem dez vezes mais juízo do
que eu.
ANA – Ora que novidade! pois se você sempre foi um dois de paus!
172
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, op. cit, p. 16.
135
JOÃO FERNANDES – Então estamos decididos: a asneira de se ir
embora passou.
ANA Contanto que se arranje quanto antes o casamento. Ande, mano
Joãozinho, vá cumprir o seu dever.
173
Esta conversa vai adquirindo maior dimensão e culmina com a exigência de Ana na
elaboração de um edital, pelo irmão, no qual concede a mão da filha Faustina em
casamento e, por conseqüência, um dote ao engenheiro que ganhar o concurso para a
construção da torre. Fica clara, aqui, a ascendência de Ana, mais precisamente, de seu
dinheiro sobre a vontade e as atitudes do juiz de paz, João Fernandes.
No terceiro ato, cena V, estão Bonifácio, João Fernandes e o povo:
BONIFÁCIO – Convoquei, a toque de sino, o povo do curato, para
mostrar um edital que acabo de afixar (Mostra-o), e no qual o nosso juiz
de paz se obriga a dar sua filha em casamento com vinte mil cruzados de
dote ao engenheiro que fizer a nossa torre: ei-lo! leiam todos! (O povo
examina o edital) É um grande ato de heroicidade! parte) É uma
grande prova de falta de juízo.
VOZES – Viva o nosso juiz de paz! … viva!(…)
174
No decorrer da trama, Henrique vence o concurso, casa-se com Faustina, e ganha o
dote. França Júnior, com esta peça, evidencia também nas localidades interioranas a
hipocrisia e os interesses mesquinhos. E aponta, com ironia, a valorização do estrangeiro,
chegando aos extremos da anglomania, que ecoava, também, no interior do país.
As peças em estudo apontam para a inserção dos tipos brasileiros da elite
dominante, demarcados não só por valorizar as nações estrangeiras, mas também por
manifestarem mudanças de comportamento e incorporar em seus diálogos palavras ou
expressões estrangeiras, mostrando-se como brasileiros estrangeirados. Tais situações ainda
podem ser presenciadas nas tramas de
O defeito de família (1870), de França Júnior; Luxo e
173
MACEDO, Joaquim Manoel de. A torre em concurso, op. cit., p. 218.
174
Ibid., p. 219.
136
vaidade (1860), de Joaquim Manoel de Macedo, como também em O demônio familiar
(1857), de José de Alencar.
Um aspecto que cabe ressaltar é o fato de que em
O defeito de família e Luxo e
vaidade
os estrangeiros, exercem a função de criados, em residências de brasileiros. Para a
sociedade da época, tal situação possibilitaria aos brasileiros um
status maior ao meio
social em que transitam. um outro aspecto aparece em
O demônio familiar. No enredo
desta peça, é a vivência no estrangeiro, o convívio com o estrangeiro em seu
locus, que
exerce na personagem Velascos grande influência, fazendo com que essa modifique seus
modos e insira palavras da língua estrangeira em suas falas.
Inicialmente traz-se à cena a peça
O defeito de família (1870), de França Júnior,
ambientada no Rio de Janeiro. No enredo a situação delicada Josefina, perante o noivo,
Artur, se vê obrigada a esconder-lhe o joanete, pois ele considera muito importante a
aparência. França Júnior coloca em cena Matias Novais, capitão de cavalaria, sua filha
Josefina e sua esposa Gertrudes, Ruprecht, criado alemão, Artur de Miranda, o noivo de
Josefina, e o sapateiro André Barata.
Na primeira cena, Josefina e os pais elogiam o criado estrangeiro, o alemão
Ruprecht. Entretanto, no enredo, é justamente este criado quem promove a confusão na
família. Já na primeira cena, Gertrudes
(Examinando da sala.) comenta com sua filha
Josefina:
Como está esta sala! É um brinco! Não nada como o serviço de um
criado estrangeiro.
175
175
FRANÇA Júnior. O defeito de família, op. cit. p. 113.
137
Ao trazer à cena tal situação, França Júnior evidencia que, na sociedade brasileira da
época, a influência dos novos modos de vida, principalmente o europeu, correspondia,
também, à posição social. A muitos da sociedade da Corte, ter estrangeiros no
staff dos
serviçais atribuía-lhes um
status significativo.
nas primeiras falas, no diálogo entre Josefina e sua mãe, mostra-se claramente a
intenção de demarcar a nacionalidade estrangeira do criado, principalmente pelo fato de
isso atribuir-lhes maior posição social, conforme mencionado anteriormente.
Em outra cena percebe-se ser novamente tal sentimento. Matias conversa com a
esposa:
MATIAS (Gritando para dentro.) – Rupretes? Xubregas? Que diabo!
Como é que se pronuncia o nome daquele desarmado?
GERTRUDES (
Rindo-se) – Pois se tu não podes com a tua língua, como
queres pronunciar a dos outros? (
Josefina senta-se ao lado da mesa e lê o
Jornal das Famílias
.)
MATIAS – É pena que o ladrão tenha um nome tão arrevesado; tirantes
disso é um criado como não há igual. Sério, de uma moralidade
exemplar, cumpridor de seus deveres, e, sobretudo fiel como um
cachorro. Se eu pudesse enchia esta casa de alamões. Tive uma ótima
idéia de mandá-lo vir de Petrópolis. (
Canta)
De ter alamões em casa,
Ninguém deve se queixar;
Pois é gente papafina,
Para uma casa guardar.
Quem quiser ter o sossego
E a paz no coração,
Lá da terra das bengalas
Mande vir um alamão
Que ventura, que prazer!
Nada tenho a desejar;
Estou servido de criado,
E a filha vou casar.
176
Matias credita eficiência e honestidade ao criado alemão. Ele brinca com a
honestidade de Ruprecht, comparando-a à fidelidade de um cão. França Júnior, neste texto,
176
Ibid., p. 115.
138
utiliza ainda a linguagem como um artifício tanto de caracterização do estrangeiro como da
elite brasileira. Os tipos brasileiros que aparecem neste enredo mostram-se seduzidos pelo
estrangeiro. Tê-los em seu convívio diário atribuir-lhes-ia referência positiva na sociedade,
conferindo-lhes um certo ar de civilidade.
Nota-se também que em
Luxo e vaidade (1860), de Joaquim Manoel de Macedo,
retornam as situações dos brasileiros anunciadas em
O defeito de família. A ação é
ambientada no Rio de Janeiro e mostra a história da família de Leonina, os pais Maurício e
Hortência, que ostentam mais do que podem e discriminam o irmão e a família de
Felisberto, pelo fato de ser ele um simples marceneiro.
A ambientação de
Luxo e vaidade caracteriza, assim como em outras peças
analisadas neste capítulo, as personagens como pertencentes a segmentos da elite
dominante: “Sala, ornada com esmero e luxo; portas, ao fundo e aos lados, dando
comunicação para o exterior e para o interior da casa”.
O mote principal da peça é o romance entre Leonina e Henrique, que, no desenrolar
da trama, descobre-se primo da protagonista, filho do irmão rejeitado por Maurício. Nesta
peça, tal qual em
O defeito de família, percebe-se que os estrangeiros também não têm um
conceito positivo dos patrões brasileiros, pois, além de não lhes pagarem os salários,
ostentam um poder aquisitivo que não possuem. Suas falas mostram uma linguagem
estropiada, na qual há inserção de palavras da língua francesa e inglesa. Na cena II, o tio de
Leonina chega em casa e encontra os criados conversando:
ANASTÁCIO – Oh lá! ... que par de galhetas! Parece uma coruja que
ouve em confissão a um macaco d’Angola!...
FANNY – Ah! Ficar muito vergonhade ... este non se use n’Inglaterre.
PETIT (
Levantando-se) – Que diabo de mineiro! (Indo à porta) Non
entra na sala com esses botas que traz lama!...(...)
ANASTÁCIO (
Ameaçando-o) – Arreda-te malandro! Quando não...
PETIT (
firme) – La garde meurt, elle ne se rend pás!...
139
ANASTÁCIO (Dando-lhe um murro) – Insolente! ... (Entra)
177
A agressividade, nesta cena, retrata os modos grotescos de Anastácio em relação à
petulância do criado Petit. Tal situação, no enredo, deixa transparecer as limitações em
termos de refinamento e educação do interiorano Anastácio, mesmo possuindo dinheiro,
ainda está aquém da sociedade modelar que ostenta a Corte. A peça mostra também, assim
como em
O defeito de família (1870), que, para Leonina, Maurício e Hortência, ter
serviçais estrangeiros é ostentar
status na sociedade da Corte.
o brasileiro Anastácio, além das atitudes grosseiras, não nutre conceito positivo
sobre os estrangeiros e tampouco concorda com esse tipo de visão sobre o
status que advém
de possuir criados, serviçais estrangeiros. Tanto na peça
O defeito de família como em Luxo
e vaidade
excetuando o interiorano Anastácio parcela da sociedade reconhece que o
contato com o estrangeiro que ocorria diretamente, além de dar
status aos brasileiros, vai
influenciando seus modos e a sua maneira de pensar.
Na peça
O demônio familiar (1857), José de Alencar, em um ambiente que também
registra
personas da elite da Corte, além da família do jovem médico Eduardo, sua mãe e
do pai, insere, ainda, em seu enredo, Azevedo e Alfredo. Estas personagens trazem à cena
outra peculiaridade de brasileiro: aquele que está modificado em pensamento, modos e
linguagem pela influência estrangeira.
177
MACEDO, Joaquim Manoel de. Luxo e vaidade, op. cit., p. 30.
140
Azevedo, o brasileiro estrangeirado, é apresentado como um jovem que, mais que
valorizar o estrangeiro, aparece, por ter vivido fora do Brasil algum tempo, já contaminado,
modificado pela influência externa.
No primeiro ato, na cena XII, Eduardo e seu pajem Pedro recebem Azevedo:
EDUARDO (para a escada) Entra, Azevedo! Eis aqui o meu aposento
de rapaz solteiro; uma sala e uma alcova. É pequeno, porém basta-me!
AZEVEDO É um excelente
appartement! Magnífico para um garçon...
Este é o teu valet de chambre?
EDUARDO – É verdade; um vadio de conta!
PEDRO
(a AZEVEDO, em meia voz) Hô... Senhor está descompondo
Pedro na língua francesa.
178
Neste diálogo, constata-se Azevedo utilizando palavras da língua francesa para
nomear o lugar onde vive Eduardo e seu escravo. É Pedro que chama atenção para esse
fato. No entanto, a valorização do estrangeiro é ainda mais acentuada na cena seguinte. Esta
destaca Azevedo em confronto com Alfredo, um nacionalista, que se ironizado pelo
estrangeirado.
Cena XIII:
AZEVEDO – Uma caricatura, naturalmente... Não há arte em nosso país.
ALFREDO – A arte existe, Sr. Azevedo, o que não existe é o amor dela.
AZEVEDO – Sim, faltam os artistas.
ALFREDO – Faltam os homens que os compreendam; e sobram aqueles
que só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro.
AZEVEDO (
com desdém) –Já foi a Paris, Sr. Alfredo?
179
Fica evidente, nas falas de Azevedo, tal qual em vários momentos das peças de
França Júnior e de Macedo, o sentimento de inferioridade que o brasileiro desenvolve face
aos países imperialistas. Entretanto, nas falas de Alfredo, um outro sentimento, o da
valorização da nacionalidade brasileira. Alfredo representatividade aos sentimentos
178
ALENCAR, José de, op. cit., p. 75.
179
Ibid., p. 162.
141
nacionalistas. A valorização do local, da cultura, da nação recebe eco nas palavras de
Alfredo. Urge, para a personagem, a necessidade de se atribuir um verdadeiro valor ao que
aqui se produz. O Brasil é uma nação e como tal deve ocupar também um lugar no
panorama internacional. Mas para que isto aconteça a valorização deve acontecer
internamente: com os brasileiros. Alfredo necessita trazer à discussão o estrangeiro para
chamar a atenção sobre o brasileiro. Azevedo, através de sua concepção estrangerista de
mundo, coloca em evidência o brasileiro.
Desse contexto, com diferentes personagens e suas concepções, as leituras das peças
O demônio familiar, Luxo e vaidade, A torre em concurso e O defeito de família, ao
promover o trânsito de diferentes tipos nacionais contracenando com os estrangeiros, as
peças sublinham a possibilidade interação e o confronto das diferenças nas sociedades
anunciadas pelos autores brasileiros.
Destarte, ao se focalizar essas representações da elite dominante, percebe-se que os
autores brasileiros trazem à cena diferentes tipos brasileiros, em caráter e na maneira de
olhar tanto para o compatriota como para o estrangeiro. Luciano, de
Amor e pátria, e os
‘Henriques’, de
O tipo brasileiro e A torre em concurso, são anunciados como sujeitos
modelares, tipos nacionalistas; Clemência, Germano, Manoel Gonçalves e João
Fernandes se mostram como brasileiros que valorizam o que vem do exterior. Estas
personagens vêem como referência as nações imperialistas e, com isso, se mostram como
brasileiros que necessitam desta interação com outrem para a edificação da sociedade, da
nação de que fazem parte.
Ao apresentar as diferentes formas de pensamentos, ações, traços culturais
identificados nos tipos brasileiros e peculiaridades que representam a elite branca
142
dominante que transita pelas peças, além de outros aspectos, estas obras contribuem como
elementos anunciadores de uma realidade que se pretende identificadora da nação
anunciada. Por outro lado, advêm destes enredos possibilidades de uma conceitualização da
cultura brasileira, na qual se anunciaria a presença de atitudes comuns, e também de
diferentes formas de pensar e agir.
Estas construções culturais as peças de teatro que evidenciam o
modus vivendi
da elite branca dominante se tornam também instrumentos que nos mostram como nossos
intelectuais, nossos dramaturgos, ao anunciarem as relações com os estrangeiros e as idéias
estrangeiras que transitavam em seu tempo, anunciam as especificidades, peculiaridades
que representam os diferentes matizes e formas que virão colorir o que se pretendia com
uma nação genuinamente brasileira.
2.2 A nação e os estrangeiros
A leitura sobre a nacionalidade das personagens que aparecem nos textos teatrais
prossegue agora pelas diferentes representações dos estrangeiros. Procura-se refletir como
ocorre e por que os autores brasileiros promovem a inserção de tais personagens em
enredos que representam sua época.
Nessa representação do “Outro”, do que não é brasileiro, os autores teatrais estariam
desvelando a ocorrência da interação, apropriações e práticas socialmente instituídas, e
pensamentos construídos na trama das relações pessoais. Ilustrando a construção do
143
pensamento, resultante da “interação e da luta” com o pensamento do outro,
180
sinalizam
para a influência estrangeira na construção da identidade brasileira.
Constata-se que, assim como os brasileiros, os estrangeiros são inseridos nos
corpus
das peças em situações e condições aparentemente distintas. Os estrangeiros são
categorizados em imperialistas (principalmente os ingleses), serviçais (alemães e franceses)
e imigrantes, que vêm para realizar trabalho semelhante ao escravo.
2.2.1 O estatuto ambíguo do português
Com a proclamação da Independência (1822) torna-se oficial a nacionalidade
brasileira, e, por extensão, é deflagrada a condição de estrangeiro. Diante desse fato,
convém sublinhar que, décadas após a Independência, 1863, ainda se evidencia, nas peças
em estudo, o estatuto dos portugueses que transitavam na sociedade brasileira desse tempo.
De colonizadores, os portugueses passam a intrusos/estrangeiros, na medida em que a
colônia não mais lhes pertence. Sendo assim, são apresentados em uma situação de
nacionalidade ambígua, embora o trono ainda continuasse sendo ocupado por um Bragança.
Após a Independência, desenvolve-se, entre os brasileiros, um certo sentimento
xenófobo, denominado de lusofobia. De acordo com Emília Viotti da Costa, criava-se um
“antiportuguesismo generalizado”, mesmo que “elementos de origem portuguesa
participassem dos movimentos revolucionários, a maioria era brasileira”.
181
Esse panorama
é apreendido nas peças
Sangue limpo (1863), de Paulo Eiró, e Amor e pátria (1863), de
180
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal, op. cit., p. 317.
181
COSTA, Emília Viotti da, op. cit., p. 33.
144
Joaquim Manoel de Macedo. Ambas datadas de 1863, ambientadas em 1822, vão trazer à
cena portugueses, vivendo no Brasil, em conflito por sua nacionalidade.
No enredo de
Sangue limpo, a personagem Aires de Saldanha, um português
fidalgo, após ser declarada a Independência, passa a transitar por uma situação ambígua.
Conforme aparece nas cenas IX e X, do ato III.
Na cena IX Luísa e Rafael discutem:
LUÍSA – Perdão!
RAFAEL Não, não posso perdoar-te porque não te posso punir.
Pensar que é a êle que odeio e detesto? … não! é a ti, a ti somente. Que é
Aires de Saldanha a meus olhos? um estranho, um filho de outra pátria,
uma vida que de cessar quando eu quiser. Mas tu, Luísa! tu minha
irmã! …
LUÍSA – Perdão para êle!
RAFAEL – Desgraçado!
182
Na seqüência, na cena X:
AIRES, erguendo Luísa Ergue-te, Luísa; não fraqueies. Lembra-te que
me amas, e que te amarei com o dôbro dos afetos que podes perder. Teu
irmão te repele… eu também fui amaldiçoado por meu pai.
RAFAEL, gravemente –Escuta, Saldanha. Deus acaba de tirar-te os bens
mais estimáveis da vida. Da tua família resta uma sepultura
ensangüentada. Esta terra que pisas te não conhece; é uma terra livre,
que te rejeita com suas faixas de escravidão. Nem pátria, nem família …
AIRES – Acaba, tirando o que Deus me deixa.
RAFAEL Quando tinhas tudo isso, eras para mim um inimigo. Hoje,
que nada tens, estendo-te a mão, e digo-te: Queres aceitar a minha pátria,
e a minha família?
AIRES, maravilhado – Que vens a dizer?
RAFAEL – Dá-me a tua mão, Luísa. Hoje é dia do Ipiranga e da
felicidade. Aires de Saldanha, queres ainda ser meu irmão?
LUÍSA, com um grito de júbilo – Rafael! eu devo-lhe a vida.
AIRES – Irmão! Tu és grande como Deus. (
Abraçam-se estreitamente)
183
Com o assassinato de seu pai, D. José Saldanha, Aires desmanchar uma grande
barreira que impediria sua união com Luísa. No entanto, este fidalgo passa a ser intruso na
182
EIRÓ, Paulo, op. cit., p.95.
183
Ibid., p. 96.
145
colônia que outrora dominava. De europeu colonizador torna-se o estrangeiro, um possível
inimigo do povo brasileiro recém-liberto.
O amor entre Aires e Luísa aparece como ponto nodal para a permissão de seu
trânsito no país. Conforme é destacado nos diálogos acima, Aires é assim apresentado em
uma situação peculiar: primeiramente, por ser fidalgo português e se apaixonar por uma
brasileira descendente de escravos; depois, por permanecer em um estatuto ambíguo, na
medida em que o contexto da trama culmina na declaração da Independência do Brasil.
Amor e pátria, embora em um tom mais ameno que o de Paulo Eiró, sem mortes
ou grandes fatalidades, Joaquim Manoel de Macedo traz à cena a situação ambígua do
português, vivendo no Brasil recém independente. Diferentemente do destino da
personagem D. José, de
Sangue limpo, o drama de Macedo concede ao português Plácido
um novo momento, uma possibilidade de viver em um país independente.
Na cena III, Leonídia, mãe da protagonista Afonsina, recebe uma carta, na qual há a
informação de que seu marido fora denunciado como traidor da pátria por alguém jovem
muito próximo a eles. Na mesma cena, Luciano, leal a D. Pedro I, após saber da denúncia
de traição, cobra do pai de sua amada, Plácido, fidelidade ao Príncipe:
Meu pai, é por força que eu lhe dirija uma pergunta que, aliás,
considero desnecessária. Oh! por Deus o juro: não duvido, nem duvidei
jamais da única resposta de vossa mercê vai dar-me; mas... Julgou-se... é
essencial que eu ouça de sua boca. (...) Algum dia...vossa mercê se
pronunciou contra o Príncipe e contra a causa do Brasil?
184
Nota-se que a preocupação de Luciano em confirmar a lealdade do futuro sogro,
uma vez que Plácido é português. A cobrança de fidelidade ao Príncipe e à nação interfere
nos laços familiares e afetivos que envolvem a relação entre Luciano e Plácido.
184
MACEDO, Joaquim Manoel de. Amor e Pátria, op. cit., p. 158.
146
Em Amor e pátria, Plácido, português, pai de Afonsina, por estar inserido nesse
estatuto ambíguo, consegue ser admitido na nova nação por aceitar a Independência e o
amor dos protagonistas, a filha e o sobrinho, que, mesmo tendo sangue português, são
brasileiros por nascimento. A união proclamada inclui a mistura das nacionalidades
brasileira e portuguesa, uma vez que ambos, os protagonistas, são nascidos no Brasil, mas
filhos de pais portugueses, brancos, pertencentes a uma mesma classe social.
Ao lançar luzes sobre os portugueses em enredos cujo contexto revela um Brasil
recém-liberto, esses, todos representantes da elite branca portuguesa, em meio a um
momento histórico conflituoso e justamente por isso, vão aos poucos adquirindo o estatuto
de estrangeiros, ainda que tenham sido os provedores da língua falada pelos brasileiros. E,
neste contexto, o português é estrangeiro numa terra que, em um passado recente, lhe
pertencera.
2.2.2 Estrangeiros dos países imperialistas na cena brasileira
Nas peças selecionadas, as personagens estrangeiras, conforme suas intenções e
papéis nas tramas, demarcam-se também como tipos aproveitadores, que transitam na
nação brasileira; outros, por sua vez, aparecem como indivíduos corretos, de boa índole.
Primeiramente, destaca-se a categoria de estrangeiros aproveitadores e, para tanto,
chama-se à discussão a peça
Caiu o Ministério! (1882), de França Júnior.
Conforme foi apresentado anteriormente, França Júnior coloca em cena o
Conselheiro Felício de Brito, Presidente do Conselho, sua esposa Filomena e a filha
147
Beatriz; Filipe Flecha, um vendedor; Mr. James, o estrangeiro; Raul Monteiro; cinco
Ministros; o Senador Felizardo, além de outros.
Além destes representantes da elite da Corte, nesta peça, alguns segmentos da classe
intermediária aparecem em papéis secundários, ou como simples figurantes, no papel de
vendedor de bilhetes de loteria e jornaleiros. Entretanto, uma personagem que pertence a tal
classe, Filipe Flecha, vai crescendo no enredo, e tem seu ápice ao ser premiado com um
bilhete de loteria. Tal premiação, além de propiciar sua ascensão econômica, propicia-lhe a
ascensão social pelo casamento com Beatriz, filha do Conselheiro Felício de Brito.
O cenário inicial é a Rua do Ouvidor, onde correm boatos sobre a formação de um
novo gabinete de governo. O enredo de
Caiu o Ministério! começa com os avisos dos
jornaleiros sobre a mudança de ministério.
Nesta comédia de costumes, Mr. James aparece como uma das personagens
centrais. Fica evidente que, no contexto em que transita, Mr. James, por ser inglês,
representa o detentor de determinado conhecimento que é aceito, sem restrições, pela
sociedade brasileira da Corte, pelo fato de ser um estrangeiro.
Na cena XV, do terceiro ato, Mr. James, que vem para o Brasil tentar implantar um
projeto absurdo, conversa sobre o assunto com o Dr. Monteirinho. O inglês anuncia seu
projeto de construir
um sistema cinófero, uma linha de bondes puxada por cachorros, para
subir o Corcovado:
DR. MONTEIRINHO – Não era precisa a explicação. Nós todos
sabemos que cinófero vem do grego
cynos, que quer dizer cão, e feren,
que significa puxar, etc...
MR. JAMES Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra
fica dentro de roda. Ora, cachorra dentro de roda, no pode estar parada.
Roda ganha impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha!
DR. MONTEIRINHO E de quantos cachorros precisa o senhor para o
tráfego dos trens diários do Cosme Velho ao Corcovado?
148
MR. JAMES Mim precisa de força de cinqüenta cachorras por trem;
mas deve muda cachorra em todas as viagens.
MINISTRO DA JUSTIÇA – Santo Deus! É preciso uma cachorrada
enorme.
MR. JAMES Mas eu aproveita todas as cachorras daqui e faz vir ainda
muitas cachorras de Inglaterra.
185
No diálogo, Mr. James subestima a inteligência dos seus interlocutores, pois, além
de propor um projeto absurdo, “o sistema cinófero”, ainda procura explicar a significação
de sua nomenclatura. Fica evidenciado o lugar do brasileiro na visão do estrangeiro. No
entanto, o Dr. Monteirinho tenta demonstrar certa erudição, porém não anuncia qualquer
preocupação em denunciar o absurdo do projeto. Ao aludir ao seu domínio de uma língua
clássica, o grego, procura mostrar ao inglês que é merecedor de sua credibilidade.
França Júnior, de maneira irônica, desnuda o fascínio que o estrangeiro exerce sobre
o brasileiro, ao aparentar domínio de um conhecimento técnico
superior, mesmo se
constituindo numa estupidez. O projeto mirabolante, “o sistema cinófero”, juntamente com
a intenção de contrair núpcias, seduzem a esposa e a filha do Ministro, que lhe propõem o
encaminhamento do projeto à votação.
É interessante destacar que, até a nomeação do pai, Beatriz fora rejeitada pelos
interesseiros Raul e Mr. James. Entretanto, quando o Conselheiro assume o cargo ambos
mudam de atitude.
Na cena IV, do segundo ato, Mr. James comenta com Filomena sobre a beleza das
brasileiras:
FILOMENA - Pelo que vejo já está enfeitiçado pelos quindins de
alguma?
MR. JAMES - Não duvida, senhora, e crê que feitiça não estar muito
longe daqui. (Olha significativamente para Beatriz.)
BEATRIZ - (À parte.) - Isto já eu sabia.
185
FRANÇA Jr. Caiu o Ministério!, op.cit., p. 204-205.
149
FILOMENA (À parte.) - É a sorte grande!
186
Agora há uma mudança de atitude em relação a Beatriz. Mr. James e Raul iniciam a
corte à moça, que se sente lisonjeada.
No enredo, o projeto de Mr. James é levado à votação; rejeitado, cai todo o
Ministério. Cabe ressaltar que fora o inglês o estopim para a queda do Ministério.
Quase Ministro (1863), de Machado de Assis, é outra obra incorporada a esta
leitura. Em um ambiente burguês, na casa de Martins, dentro de uma trama linear,
Machado sustenta a ação pelo diálogo, apresentando as personagens Luciano Martins,
deputado; Dr. Silveira, primo de Martins; José Pacheco, um escritor de artigos; Carlos
Bastos, poeta; Mateus, um inventor; Luiz Pereira, alguém cujos filhos têm Ministros como
padrinhos; Müller, estrangeiro; Agapito, empresário das artes, amigo de Müller.
Ainda que a peça possua como fulcro Martins, que está cotado para se tornar
ministro, o foco maior é dirigido aos interesseiros um cronista político, um inventor, um
poeta, e um empresário de teatro, estrangeiro que o assediam, com a intenção de
conseguir cargos e favores.
Na seqüência, outras personagens vão sendo acrescidas à trama. Elas comungam do
mesmo objetivo de José Pacheco: obter algum proveito através da bajulação. Um exemplo é
Mateus, que se diz inventor, e oferece uma peça de artilharia ao quase ministro.
Na cena VII, Mateus apresenta seu invento:
– A minha idéia é simples como água. Inventei uma peça de artilharia... É
um invento que põe na mão do país que o possuir a soberania do mundo.
Eu pretendo denominá-la:
O raio de Júpiter, para honrar com um nome
majestoso a majestade do meu invento. Devo acrescentar que alguns
ingleses, alemães e americanos, que, não sei como, souberam deste
invento, me propuseram ou a venda dele, ou uma carta de
186
Ibid., p. 202.
150
naturalização nos respectivos países: mas eu amo a minha pátria e os
meus ministros.
187
Através da fala desta personagem, ao anunciar possuir o domínio da técnica para
construir uma máquina mirabolante, o
raio de Júpiter
188
, Machado evidencia o espírito
cientificista que transitava na sociedade da época, ou seja, o mito da técnica que se reitera a
partir da possibilidade do novo, do poder. O domínio da técnica e/ou a produção de tal
máquina aparece como fetiche (o que é feito, não natural, que exerce fascínio); a anunciada
perfeição do
raio de Júpiter se vincula ao desejo e à deificação da máquina. Machado, de
forma irônica, a partir do nome, coloca o
raio de Júpiter como um instrumento que ao
mesmo tempo em que pode assombrar, também pode promover o poder de quem o detém: o
poder dos deuses nas mãos dos homens.
A propósito, Frederic Jameson afirma que o fetiche contemplaria um ato simbólico
cujo horizonte é o destino da comunidade, trazendo sempre as marcas de sua função de
compromisso pela qual oferece uma resolução imaginária para contradições reais
recalcadas. O fetiche da máquina tende a incorporar, mais do que nunca, a dimensão
estranhada de sociabilidade. A máquina aparece como o ente da dominação, o
estranho
familiar
. Ela possuiria, em si, a promessa da mediação plena da sociabilidade humana.
189
Um outro aspecto significativo é apresentado por Helena Tornquist ao considerar
que, “A alusão à força a ao poder, contida na designação
Raio de Júpiter, provoca efeito
contrário, acentuando a desmedida da proposta: a ênfase tem como efeito imediato a
187
ASSIS, Machado de. Quase Ministro, op. cit. 145.
188
Machado recorre à mitologia em vários momentos da peça como também nas expressões na cena IV, na
qual Silveira comenta: “(baixo) - Não é possível, este conhece o Pégaso. Com licença”.Ibid., p. 138.
189
JAMESON, Frederic. Pós-Modernidade: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996,
p, 64.
151
diminuição.”
190
Daí a ironia desta “nova ciência” que diminui a própria nação e que pode
conceder poderes aos mortais.
O que importa, segundo a personagem Mateus, é sua legitimação pelas grandes
nações, através da suposta compra ou de naturalização de seu invento. As nações
estrangeiras, especialmente as imperialistas – a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos
são utilizadas como referência para dar credibilidade a sua invenção.
Na cena XI, a personagem Agapito solicita do “quase ministro” uma subvenção para
contratar o teatro lírico italiano, pois, segundo ele, a música seria uma das artes que
caracterizariam o refinamento de um povo, e a italiana seria a mais refinada, como se pode
observar no diálogo entre a referida personagem e o estrangeiro, Sr. Müller, intermediado
por Silveira:
AGAPITO – Apresento-te o Sr. Müller, cidadão hanoveriano.
SILVEIRA
(a Müller) Queira sentar-se.
AGAPITO O Sr. Müller chegou quatro meses da Europa e deseja
contratar o teatro lírico.
SILVEIRA – Ah!
MÜLLER Tenho debalde perseguido os ministros, nenhum me tem
atendido. Entretanto, o que eu proponho é um verdadeiro negócio da
China.
AGAPITO
(a Müller) – Olhe que não é ao ministro que está falando, é ao
primo dele.
MÜLLER Não faz mal. Veja se não é negócio da China. Proponho
fazer cantar os melhores artistas da época. Os senhores vão ouvir coisas
nunca ouvidas. Verão o que é um teatro lírico.
191
A personagem Mateus entra em cena como uma espécie de contraponto:
– Não é má; e os talentos do país? Os que tiveram à custa do seu trabalho
produzido inventos altamente maravilhosos? O que tiver posto na mão da
pátria a soberania do mundo?
192
190
TORNQUIST, Helena, op. cit. p. 224.
191
ASSIS, Machado de. Quase Ministro, op. cit., p. 144
192
Ibid., p. 148.
152
Agapito, defendendo o propósito de refinar a arte brasileira, interpola:
– (...) Se um país é feliz, é bom que ouça cantar, porque a música
confirma comoção da felicidade. Se o país é infeliz, é também bom que
ouça cantar, porque a música adoça as dores. Se é dócil, é bom que ouça
música, para nunca se lembrar de ser rebelde. Se um país é rebelde, é
bom que ouça música, porque a música adormece os furores, e produz a
brandura. Em todos os casos, a música é útil. Deve ser até um meio de
governo.
193
Muitos elementos significativos emergem destas falas. Primeiramente, o interesse
do brasileiro Agapito em promover o empresário alemão e a arte estrangeira. Na seqüência,
um confronto de idéias, que gera uma discussão sobre o elenco de valores da sociedade
da época. Também se observa que, especialmente nessa última fala, a música aparece como
fantasmagoria de acordo com a definição de Walter Benjamin para o produto cultural que
“hesita ainda um pouco antes de se tornar mercadoria pura e simples”.
194
Agapito, ao
mesmo tempo em que concede à música um poder mágico, anestésico, que transita à
sombra e é capaz de modificar ou instaurar diferentes situações, lhe confere o aspecto
utilitarista de mercadoria, ou seja, a utilização política para essa arte. Para a personagem,
portanto, o poder e a utilidade estão contidos na música italiana, na arte estrangeira que
precisa ser utilizada como meio civilizador.
Em
Quase Ministro, além da personagem Müller, as nações estrangeiras são trazidas
à cena em vários momentos. Machado ironiza a parcela da sociedade brasileira que exalta o
estrangeiro. Tal fato não ocorre apenas nas falas que glorificam a cultura do estrangeiro, a
193
Ibid., p. 148.
194
Segundo Walter Benjamim, “Cada inovação técnica que rivaliza com uma arte antiga assume algum tempo
a forma da fantasmagoria”. BENJAMIM, Walter.
Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo.
Obras Escolhidas III . São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 62-63.
153
sua arte, mas também pela credibilidade e superioridade atribuídas às nações imperialistas,
tidas como modelares pelos personagens brasileiros e pelo estrangeiro.
ainda a comédia
O tipo brasileiro (1872), de França Júnior, que também
apresenta, em seu enredo, um estrangeiro de nacionalidade inglesa, Mr. John Red, que
tenciona tirar proveito dos brasileiros. Alguns aspectos desta peça já foram trazidos à
leitura anteriormente neste estudo. Enfatiza-se agora, em especial, as falas e atitudes deste
inglês e a recepção do estrangeiro.
Destaca-se, primeiramente, que, ao se deparar com Mr. John Red, Teodoro se
apresenta muito solícito no convívio com o inglês, e aprova seu projeto absurdo sobre
encanar suco de caju para favorecer a sua distribuição ao mercado consumidor. Ao saber
da intenção do inglês, na cena II, Teodoro afirma: “Só o Brasil nada inventa, nada
descobre!”.
195
Na cena VII, Mr. John Red comenta com Henrique (que se faz passar por francês),
qual seu projeto no Brasil e afirma que:
Machinista muito fácil. Mim coloca aparelha no ponta do caju. As
cajus são colocadas em reservatória e daí conduz a fruta perfeitamente
madura por uma ponta dada! Neste ponta mim estar faze um sistema de
guilhotine, que logo que a caju presenta seu cabeça arranca o castanha
em três tempos. O castanha separada da caju cai em uma tubo que vai ter
uma outra reservatória. Caju passa então por grandes cilindras, é
espremida perfeitamente, retirada todo o calda, a bagaça fica para uma
lada, o líquida vai para uma caldeira, onde, por uma maquinisma
especial, entra o açúcar e a água necessária para o tempera. Depois de
fervida tudo isso, para não fica picada, passa para destilador, sai todos os
porcarias de caju, e sai por uma tubo para a caixa matriz. Daí distribuída
em encanamento de barro.
196
195
FRANÇA Júnior. O tipo brasileiro, op. cit., p. 146.
196
Ibid., p. 146-149.
154
O domínio sobre a técnica coloca o estrangeiro numa posição de supremacia ante o
brasileiro, cujas limitações aparecem denunciadas não pelo estrangeiro, mas também
pelos próprios brasileiros.
Uma outra peça que deve ser mencionada nesta leitura é
Os dous ou o inglês
maquinista
(1845), de Martins Pena. Destaca-se agora a personagem estrangeira, o inglês
Mr. Gainer, um
ganhador (alguém cuja profissão é ganhar dinheiro), que se diz inventor de
uma máquina especial.
Recepcionado na casa de Clemência, Mr. Gainer discute com Felício sobre sua
fantástica máquina. Segundo o inglês, sua máquina, em construção, é capaz de fazer
açúcar de osso e, ainda, ao se colocar nela um boi inteiro produzirá bife, rosbife, botas e
outros derivados.
Na cena III, o inglês conversa com Clemência, Felício e Negreiro sobre a fantástica
máquina. Cabe destacar o tom de descrença que aparece nas interferências de Negreiro em
relação ao invento do inglês, embora não desmascare, em nenhum momento, o impostor.
CLEMÊNCIA (entrando) Estou contente com ele. Oh, Sr. Gainer por
cá! (cumprimentam-se)
GAINER – Vem fazer meu visita.
CLEMÊNCIA – Muito obrigada. Há dias que o não vejo.
GAINER – Tenha estado muita ocupado.
NEGREIRO (
com ironia) – Sem dúvida com algum projeto?
GAINER –Sim, estou redigindo uma requerimento para as deputados.
FELÍCIO (
sem indiscrição) –Não poderemos saber..
GAINER Pois não! Eu peça a requerimento uma privilégio por trinta
anos para fazer açúcar de osso.
TODOS – Açúcar de osso!
CLEMÊNCIA – Mas como é isso?
FELÍCIO (
à parte) – Velhaco!
GAINER Eu explica e mostra... Até nesta tempo não se tem feito caso
das osso, destruindo-se grande quantidade delas, e eu agora faz desses
ossos açúcar superfina...
FELÍCIO – Desta vez desacreditam-se as canas.
155
NEGREIRO – Continue, continue.
GAINER – Nenhuma pessoa mais planta cana quando souberem de
minha método.
CLEMÊNCIA – Mas os ossos plantam-se?
197
A explicação da mirabolante máquina desloca-se para a cena VII:
GAINER (contente) – Admirável, sim. Muita interesse a fabricante.
Quando este máquina tiver acabada, não precisa mais de cozinheiro, de
sapateira e de outras muitas oficias. (...) Oh, sim! Eu bota a maquine aqui
no meio da sala, manda vir um boi, bota a boi na buraco da maquine e
depois de meia hora sai por outra banda da maquine tudo já feita.
198
Mr. Gainer apresenta-se, tal como Mr. James e Mr. John Red, com a mesma
nacionalidade, e como
inventor de uma máquina especial. Nota-se que o estrangeiro de
Martins Pena, assim como os França Júnior, aparece como projetista, que supostamente
domina o conhecimento tecnológico e sua visão do Brasil e dos brasileiros se assemelha à
dos demais retratados nessas outras peças, ou seja, os brasileiros como tolos, irracionais
em sua ambição, que podem ser enganados. Ao apresentar os brasileiros pelo olhar
estrangeiro, Martins Pena e França Júnior ironizam o conhecimento da elite da Corte que
aceita e legitima a esperteza –“inteligência”– que vem de fora. Somente as personagens
Felício e Negreiro, no caso da peça de Martins Pena, percebem o absurdo de tal projeto e
ironizam a proposta de Mr. Gainer.
Martins Pena, ao colocar na trama Mr. Gainer, mostra o embate entre os
conhecimentos e a diferença cultural, apresentando o inglês, assim como França Júnior,
como novo colonizador em sua relação com o brasileiro.
197
PENA, Martins. Os dous ou o inglês maquinista, op. cit., p.125.
198
Ibid., p.130.
156
As peças aqui analisadas permitem vislumbrar a ironia que transita pela recepção do
brasileiro ao estrangeiro e vice-versa. O absurdo e a comicidade tornam-se também
importantes indicativos nas relações dessas
personas. Ao serem evidenciados tais projetos
mirabolantes, autores brasileiros ironizam o fetiche da máquina. Conforme se pode
constatar pelos tipos de máquinas que são apresentadas pelos estrangeiros e também por um
brasileiro que demonstra interesse em mudar de nacionalidade, como no caso de Mateus
em
Quase Ministro: o trem movido a cachorros da peça Caiu o Ministério!, de França
Júnior; o
Raio de Júpiter de Quase ministro, de Machado de Assis, a máquina de suco de
caju
na peça O tipo brasileiro, de França Júnior e a máquina de tirar açúcar de osso e
outros derivados bovinos
de Os dous ou o inglês maquinista, de Martins Pena.
A recorrência da idéia dessas máquinas absurdas em que se insiste em como
operariam e com qual finalidade indica a incessante busca por alguns brasileiros de um
suposto progresso e, com isso, o ingresso do Brasil no mundo
civilizado. O absurdo na
concepção dessas máquinas gera, no entanto, a comicidade, que põe em evidência questões
culturais bastante relevantes. A impossibilidade real da existência de tais máquinas, seu
anúncio principalmente pelo estrangeiro e seu aceite por parte de alguns brasileiros não
somente põe em xeque a noção de progresso, mas satiriza a ingenuidade e a falta de caráter
de segmentos da elite brasileira, seduzidos pelos estrangeiros.
Dentro da discussão sobre as relações entre literatura e história, torna-se relevante
demonstrar que a apresentação das invenções
mirabolantes, enfatizando aqui as propostas
dos estrangeiros Mr. James, Mr. John Red e Gainer, denunciam não a falta de
conhecimento técnico-científico dos “brasileiros”, ou mesmo, a prepotência estrangeira,
157
como também a “ignorância” absolutamente esperta da elite local, que imagina também
lucrar com tais “inventos”.
Mesmo diante de tal situação, no final acontece o desmascaramento desse tipo de
estrangeiro, o aproveitador. Por outro lado, ficam evidenciados o fetiche do progresso e a
precariedade brasileira em termos de conhecimento científico e tecnológico. Os autores
brasileiros colocam na fala dos estrangeiros, apesar de os mostrar como tipos
aproveitadores, reflexões sobre o panorama nacional que deflagram a necessidade de
mudança. As comparações da postura dos estrangeiros e dos brasileiros, tecidas nas
opiniões de ingleses, aponta para a necessidade de se dar uma outra estrutura para a
sociedade brasileira.
Salienta-se também que aparece demarcada a percepção de Martins Pena e França
Júnior sobre o imperialismo inglês e as imposições no controle do tráfico de escravos. Não
é gratuito que os autores coloquem em cena os “ingleses embusteiros” e a forma satírica de
mostrar seus projetos absurdos. As outras nacionalidades são poupadas. Destaca-se, então,
que, tal posicionamento na colocação dos estrangeiros, principalmente os ingleses, pelos
autores nacionais, constitui-se em um lugar importante no
corpus da literatura teatral do
século XIX.
2.2.3 Os estrangeiros em casa
Em algumas das peças examinadas os estrangeiros aparecem exercendo o papel de
serviçal, mordomo ou preceptor, especialmente nas peças
O defeito de família (1870), Dois
158
proventos em um saco (1883), de França Júnior; e Luxo e vaidade (1860), de Joaquim
Manoel de Macedo.
Na comédia
O defeito de família, França Júnior coloca em cena o criado alemão
Ruprecht, referido em outro momento deste estudo. Ruprecht, mesmo em posição social
inferior, se sente melhor que os patrões, pois recrimina atitudes e posturas dos membros da
família que paga seus serviços.
Ruprecht, na cena IV, comenta consigo:
Ruprecht Hum! Este gaza nom está pom, non. Menina tem gabeça
virada e velho zoldado non zabe de batifaria que fai por aqui. Eu não
quer
canha dinheiro assim. (Canta).
Isto assim não está ponito.
Eu não bosso aqui fifer.
Vai embora b’ra Bedrobolis.
O zoldado não está mau,
Mas menina está
xirando
Com garinha de inocente,
Bobre noifo anda enganando.
199
Nas palavras de Ruprecht, a moça (Josefina) não é boa coisa. Segundo ele, engana
não o pai, mas principalmente o noivo. No entanto, Ruprecht interpreta de maneira
equivocada uma situação na qual Josefina está envolvida.
Os brasileiros, patrões de Ruprecht, principalmente a mãe e filha, são, para o criado
alemão, pessoas culturalmente inferiores e de índole duvidosa. O fato de ser oriundo de um
país imperialista não dilui a rigidez hierárquica da relação entre patrão e empregado
como também lhe confere uma condição de superioridade diante deles. A nacionalidade
alemã se sobrepõe à brasileira no olhar do criado, principalmente por ser o Brasil um país
199
FRANÇA Júnior. O defeito de família, op. cit., p.117.
159
ainda muito próximo de sua condição de colônia. Cabe ressaltar, como foi evidenciado,
que a presença do mordomo estrangeiro – alemão – conferia à família um certo
status.
Um outro aspecto sobre a relação de nacionalidade que emerge é o fato de Ruprecht
assinalar o lugar do estrangeiro, de se sentir estrangeiro e de os demais também assim o
sentirem. Ruprecht deixa claro, afinal, que o país onde trabalha não é o seu lugar. nas
falas iniciais, na conversa entre Josefina e sua mãe, percebe-se claramente a intenção de
demarcar a nacionalidade estrangeira do criado, principalmente pelo fato dessa condição
atribuir-lhes maior prestígio social.
França Júnior, na referida peça, utiliza ainda a linguagem como um artifício de
demarcação do estrangeiro. Na cena a seguir, Ruprecht e Matias tentam conversar e não se
entendem pela dificuldade de compreensão da língua sobre temas banais do cotidiano,
como, por exemplo, sobre ingredientes para a refeição.
RUPRECHT – Mein Herr? O zenhor jamou-me?
MATIAS Sim, chamei-te. Irra! Tens um nome que não me passa na
garganta.
Pornuncia lá isso, mas com toda a vagareza.
RUPRECHT –
Ya woh!.
MATIAS – O que compraste para o almoço amanhã?
RUPRECHT –
Rindfleich.
MATIAS – Para que fostes comprar rim?
RUPRECHT –
Non, nom é rim... é esta gouza, eu non zabe como se jama
auf portuguische.
MATIAS – Que diacho é isto, então?
RUPRECHT
Rindfleich ... esse picho que tem gapeça crande ... poi,
poi.
MATIAS – Ah! Vaca, vaca.
RUPRECHT –
Faca, nom, poi, poi.
MATIAS – O que mais?
RUPRECHT –
Gomprei mais uma bosta de beixe.
200
200
Ibid., p. 115.
160
O diálogo entre as personagens mostra como França Júnior faz uso deste tipo de
recurso não para criar comicidade na cena, mas também para definir, demarcar
nitidamente a diferença do brasileiro em relação ao estrangeiro. Entretanto, conforme se
verifica tanto na cena anterior, quanto nesta, o brasileiro, representado pela personagem
Matias, também não utiliza a norma padrão da língua culta. Aqui, França Júnior procura
representar a pessoa interiorana, que vem morar na Corte, mas ainda não possui um
refinamento ou instrução que sua posição social requer, indicando que a presença do criado
estrangeiro se justifica como artifício de refinamento.
A outra peça de França Júnior em estudo é
Dois proventos em um saco (1873), na
qual a personagem estrangeira é Catarina, uma alemã empregada da protagonista Amélia.
Conforme mencionado, para a protagonista, Petrópolis é boa durante o verão. Com a
intenção de modificar tal situação, Amélia comenta com Catarina que fez um jogo com o
marido: se ela ganhar, eles voltarão ao Rio de Janeiro. Caso perca, ela bordará um par de
chinelos para ele.
A personagem estrangeira é uma serviçal de nacionalidade alemã. Vê-se também
nesta peça se repetir a presença do estrangeiro como empregado de atividades domésticas,
porém é a esta que a patroa recorre para colher opinião sobre conduta refinada, como se
observa na seguinte conversa entre Amélia e Catarina:
AMÉLIA (Mirando-se num espelho) – Como achas este vestido?
CATARINA – Vai-lhe às mil maravilhas, minha ama.
AMÉLIA – Lisonjeira.
CATARINA – Somente tenho que fazer-lhe uma observação. Permite-
me?
AMÉLIA – Fala?
CATARINA – Parece-me que se a cauda fosse mais pequena...
AMÉLIA – Tola, tu não sabes o que é chique?
CATARINA –Pois olhe, não é isto o que diz o seu Antonico Mamede.
AMÉLIA – E quem é este Senhor Antonico?
161
CATARINA Seu Antonico Mamede é um moço louro que costuma ir
todos os sábados ao baile do alemão. Se minha ama visse a graça e
elegância de como ele dança a polca!...
AMÉLIA – Oh! Atrevida! Tu queres me fazer confidências amorosas?
201
Diferentemente do criado alemão de O defeito de família (1870), Catarina se mostra
integrada ao ambiente em que se acha inserida. No decorrer do enredo, Amélia, aos poucos,
faz de Catarina sua confidente. Através dos desabafos de Amélia, atribui-se, tal qual em
O
defeito de família
, confiabilidade à estrangeira, conforme já mencionado, pelo fato de
possuir nacionalidade alemã. Entretanto, em
Dois proventos em um saco, a estrangeira
Catarina não utiliza uma linguagem caricaturada, e sua nacionalidade não é comentada pela
patroa, com exceção da primeira e da segunda cenas, quando a criada comenta sobre o baile
do alemão.
França Júnior faz de Catarina uma pessoa adaptada ao contexto e à sociedade em
que vive. Na peça ficam registrados a confiabilidade e o respeito que Amélia deposita na
criada alemã e a reciprocidade da mesma.
na outra peça
Luxo e vaidade (1860), de Joaquim Manoel de Macedo, observa-se
retornarem as situações dos estrangeiros presentes em
O defeito de família (1870), de
França Júnior. A ação é ambientada no Rio de Janeiro trazendo à cena a história do amor de
Leonina e Henrique. Macedo coloca em cena os estrangeiros: um criado francês e uma
preceptora inglesa. Também, no enredo desta obra, o sentimento de superioridade dos
estrangeiros diante dos brasileiros. Nela é o diálogo entre os estrangeiros Fanny e Petit que
dá início à trama:
PETIT (Suspirando) – Miss Fanny!
FANNY (Estremecendo) Ah! ... monsieur Petit! Ficar muite
sustade...êste non se use n’Inglaterre.
201
FRANÇA Júnior. Dois provento em um saco, op. cit. p. 199.
162
PETIT Oh! Non tem que se assusta; eu venha aproveitar momento
deliciose de conversa sozinha com miss Fanny em um
tête-à-tête
impreciável.
FANNY – Mim ficar muite envergonhade com este conversacion.
PETIT Oh! Mis Fanny, non ter vergonha! Vergonha non presta por
nada: gente que tem vergonha, non sabe arranja sua vida. (Olhando para
dentro) Onde está as senhoras?(...)
FANNY Oh! Mas este non se use n’Inglaterre; done deste case ganhe
cinco e gaste cincoenta; este família ser gente imposture: contracta mim
para ensina mademoiselle, e non paga minhas ordenados cinco meses!
Mim há de faz queixa a ministro inglês.
202
Novamente a linguagem utilizada pelos estrangeiros é a caricaturada. Define-se
claramente um certo ufanismo da professora inglesa por sua terra. A Inglaterra, para ela, é a
referência do que é certo, e o Brasil é o contraponto. Como os patrões de Ruprecht, em
O
defeito de família
, os patrões de Petit e Fanny também alimentam a idéia de que ter
serviçais estrangeiros lhes dá prestígio social. Na trama, há nas personagens Petit e Fanny o
sentimento de se sentir estrangeiro e de ser sentido como estrangeiro.
As leituras de
Dois proventos em um saco (1873), O defeito de família (1870) e
Luxo e vaidade (1860) apontam estrangeiros com caráter diferente dos tipos aproveitadores
vistos nos enredos anteriormente estudados. Ainda fica evidenciado que, no caso de
O
defeito de família
e Luxo e vaidade, mesmo os estrangeiros em posição hierarquicamente
inferior aos brasileiros, sendo empregados, mostram certa supremacia em relação ao
brasileiro.
Nestas obras, com exceção de
Dois proventos em um saco, os relacionamentos entre
os estrangeiros e os brasileiros acontecem permeados de preconceitos, principalmente por
parte dos primeiros, o que denota o espírito de superioridade cultivado pelos nascidos em
países imperialistas, ou brasileiros que os concebiam como seres superiores.
202
MACEDO, Joaquim Manoel de. Luxo e vaidade, op. cit, p. 29.
163
2.2.4 Os estrangeiros e a sua inclusão na nação
Conforme foi dito, entre os tipos estrangeiros havia alguns com perfil de
aproveitadores. Na peça
Caiu o Ministério!(1882), de França Júnior, observa-se que na
cena X, no diálogo entre Mr. James e Pereira, o inglês, ao se referir a Beatriz, afirma que,
em princípio, não teria vindo ao Brasil para se casar:
– Semana passada, mim estar no balie de Cassino, diz àquele menina, que
ele estar bonita; menina estar estúpida, e diz a mim:(–
How? Por que
você não mi pede a papai?) Oh! No; mim nom estar vem no Brasil pra
casa. Mim vem aqui pra faz negocia. Menina não tem dinheiro,
casamento estar mau negocia. No, no, no quer. Eu vai embora.
203
Para Mr. James o casamento aconteceria se lhe rendesse lucros, se ganhasse
dinheiro. Entretanto, na contramão do pensamento do inglês, em outras peças foram
colocados em cena estrangeiros que têm intenção e até se casam com brasileiras. Ao tentar
casar o estrangeiro com uma brasileira, os autores estariam anunciando também sua
inclusão na nação brasileira, desde que o casamento não acontecesse com sujeitos de índole
duvidosa. Nesta perspectiva, analisa-se como se configuram as abordagens elaboradas pelos
autores brasileiros na relação entre o brasileiro e o estrangeiro nos enredos de peças como
no caso de:
As casadas solteiras (1845), de Martins Pena, Cocota (1885), de Arthur
Azevedo,
Amélia Smith (1886), de Visconde de Taunay, e Lição de Botânica (1906), de
Machado de Assis.
Convém destacar que, nestas peças, os estrangeiros, diferentemente de Mr. James,
Mr. Gainer ou Mr. John Red, não se mostram como aproveitadores, nem tampouco atuam
como serviçais em residências de brasileiros.
203
FRANÇA Júnior. Caiu o Ministério, op. cit p. 181.
164
A partir desse panorama de deslocamento que se anuncia com a presença do
estrangeiro e seu estabelecimento na nação brasileira, salienta-se que, nas referidas peças, é
sempre um personagem masculino que tenciona ou acaba se casando com uma brasileira.
Ao evidenciar tal situação, os autores brasileiros estariam não anunciando esse
deslocamento, mas também, a partir da possível inclusão desses estrangeiros, estariam
proporcionando a representação do trânsito de outras nacionalidades e a sua incorporação
na sociedade brasileira através de uma relação de domínio. E considerando os padrões da
época: é o homem
estrangeiro que adota uma mulher brasileira.
A primeira peça inserida nesta leitura é a comédia
As casadas solteiras (1845), de
Martins Pena. Em seu enredo, as personagens, mesmo não sendo exemplos de retidão, os
ingleses Bolingbrok, um negociante, e John, seu sócio, estão longe de serem considerados
aproveitadores, embusteiros. Protagonizam também personagens brasileiras, as irmãs
Virgínia e Clarisse, Narciso, o pai das moças, Henriqueta e Jeremias.
A trama focaliza as artimanhas utilizadas pelos estrangeiros para conseguirem se
casar com as brasileiras Virgínia e Clarisse, mesmo contra a vontade de Narciso. A peça,
em três atos, pressupõe três espaços cênicos, proporcionado pelas mudanças promovidas
pelas moças: no primeiro ato, elas estão em Paquetá; no segundo, na Bahia; e no terceiro,
no Rio de Janeiro.
O primeiro ato acontece no Campo de São Roque, em Paquetá. Quatro barracas,
iluminadas e decoradas, como nos dias de festa, ornam a cena de um e outro lado. Na cena
II, estão John e Bolingbrok que, ao descerem do barco a vapor, comentam:
BOLINGBROK – Oh, yes, enfim! É uma vergonhe estes barques de
vapor do Bresil. Tão porque, tão, tão ...
165
JOHN – Ronceira.
204
nas primeiras falas, os ingleses mostram menosprezo pelos brasileiros e coisas
brasileiras. Falam numa linguagem estropiada, que mescla inglês e português. Ao longo do
enredo aparece, também, nas falas destes ingleses, o preconceito contra o brasileiro e o
Brasil. Entretanto, é o interesse em casar com Virgínia e Clarisse que os faz deslocarem-se
atrás das moças e enfrentar o pai, que é contrário ao casamento das filhas com os ingleses.
No primeiro ato, na cena V, Virgínia e Clarisse conversam com John e Bolingbrok,
quando chega Narciso:
VIRGÍNIA Ainda. Ele diz que odeia os ingleses pelos males que nos
tem causado, e principalmente agora, que nos querem tratar como piratas.
BOLINGBROK – Piratas, yes. Piratas. As brasileiras é piratas ... Enforca
eles (...)
JOHN Senhor, isto não teria acontecido se nos tivésseis dado a mão de
vossas filhas.
NARCISO Ah, são os senhores? É o que me faltava: casá-las com
ingleses! Antes com o diabo!
205
Nesta cena, confirmando o que dissera Virgínia, Narciso não admite entregar as
filhas a ingleses. Tal fato se dá, principalmente, porque a presença dos ingleses, a
proximidade com eles, faz com que o fazendeiro se sinta ameaçado. Esta situação da peça
de Martins Pena, ao mostrar e rejeição de Narciso aos ingleses, anuncia a posição de muitos
brasileiros em relação ao domínio inglês, fato que se ancorava, já, na própria vigília da
costa brasileira e da proibição do tráfico de escravos da África para o Brasil, imposta pelos
ingleses.
206
204
PENA, Martins. As casadas solteiras, op. cit., p 30.
205
Ibid., p. 35.
206
A partir de 1815, após o início da revolução industrial, a Inglaterra, com a mais poderosa
marinha de guerra da época, por sentir-se prejudicada, passou a reprimir o tráfico de
escravos em todos os mares do mundo. Após a Inglaterra ter forçado o Brasil a assinar o
166
Na cena I, do segundo ato, de As casadas solteiras, Virgínia e Clarisse, após terem
fugido para a Bahia e se casado com os ingleses às escondidas, são tomadas pelo
arrependimento, depois um certo tempo de convívio com os estrangeiros. Esta situação é
registrada numa conversa entre as duas, quando a diferença de costumes contribui para
acentuar o arrependimento das jovens:
VIRGÍNIA, entrando pela direita – Isto é um horror!
CLARISSE, acompanhando-a – É uma infâmia!
VIRGÍNIA Tratar-nos assim, a nós suas legítimas mulheres? E então,
Clarisse?
CLARISSE – Pareciam tão submissos e respeitosos, lá no Rio de Janeiro!
Que mudança!
VIRGÍNIA – E casai-vos por inclinação...
CLARISSE Este é o nosso castigo, minha cara irmã. Fugimos de casa
de nosso pai... Por mais que me queira persuadir, foi um mau passo que
demos.
VIRGÍNIA – As contrariedades do estado nada seriam; com elas contava
eu, razoavelmente falando. Porém o que mais me desespera é ter de
aturar as manias inglesas de nossos caros maridos... Ontem, o meu quis
que eu comesse, por força, rosbife quase cru.
207
O convívio entre os estrangeiros e as brasileiras mostra o panorama de coexistência
entre diferentes culturas. Inicialmente ocorre um convívio conflituoso tanto para as
Tratado Internacional, colocado em vigor em 1830, constatou-se que a proibição do tráfico
aumentou o lucro dos traficantes. Assim, os Negreiro passaram a entupir seus navios com
uma quantidade brutal de negros. As descrições do interior dos barcos, apelidados de
“tumbeiros”, suplanta qualquer horror imaginável. Houve na época quem preferisse culpar
por esses abusos as instituições humanitárias e os “malditos ingleses”. Em 1834 acaba a
escravidão nas colônias britânicas com a libertação de todos os escravos. Eduardo Bueno
comenta que, em 1845, os ingleses aprovaram a “Lei Bill Aberdeen”, ato unilateral que lhes
permitia inspecionar qualquer navio no mundo e libertar os negros que estivessem sendo
transportados. Ainda assim, de 1845 a 1851, continuava a entrar no Brasil uma grande
quantidade de negros, diminuindo quando, em 1850, o então ministro da Justiça,
Euzébio de Queirós, assinou uma lei rígida (Lei Euzébio de Queirós), complementada pela
Lei Nabuco de Araújo, em 1854, que enfim foram cumpridas. BUENO, Eduardo. História
do Brasil. São Paulo: Publifolha, 1997, p.316.
167
brasileiras como para os estrangeiros. Nos momentos finais do enredo, embora não sejam
diluídas as diferenças, anuncia-se a sua atenuação pelo sentimento amoroso entre os pares e
a possibilidade de uma convivência mais harmoniosa, mesmo que persistam as diferenças
culturais.
Ainda, no segundo ato, na cena IV, os ingleses John e Bolingbrok conversam com
seu amigo, o brasileiro Jeremias:
JOHN –Vê lá, Bolingbrok, como são os brasileiros, quando tratam de
seus interesses pecuniários. Jeremias vendeu tudo quanto possuía: uma
fazenda de açucar que lhe deixou o pai...
JEREMIAS – Não rendia nada; tudo era pouco para os negros comerem,
e morreram muitos.
BOLINGBROK – Porque não sabe trabalha.
JOHN – Vendeu duas belas propriedades de casa...
JEREMIAS Das quais estava sempre mandando consertar os telhados,
por pedido dos inquilinos. Só nisso iam-se os aluguéis.
JOHN – E sabes tu, Bolingbrok, o que fez ele de todo esse capital?
BOLINGBROK – Dize.
JOHN – Gastou metade em bailes, passeios, carruagens, cavalos...
BOLINGBROK – Oh!
JOHN – E a outra metade emprestou a juros.
208
Neste diálogo, novamente, presenciam-se os estrangeiros colocarem em evidência a
incapacidade do brasileiro de gerenciar seus negócios. Na peça, estes ingleses aparecem
como negociantes bem sucedidos. Em suma, alude-se a diferença entre o brasileiro e o
estrangeiro quanto à condução dos negócios.
Na cena IX, os dois ingleses conversam sobre suas esposas:
BOLINGBROK Marido governa mulher, ou, goddam! mata ela. (
um soco na mesa
.)
JOHN, falando com dificuldade Obediência mata... salva tudo...
Bolingbrok, à saúde da obediência!
BOLINGBROK Yes! (
Falando com dificuldade) Eu quer obediência.
(
Bebem.)
JOHN – Virgínia é minha mulher... Há de fazer o que quero.
207
PENA, Martins. As casadas solteiras.op. cit., p. 43.
208
PENA, Martins. As casadas solteiras.op. cit., p. 45.
168
BOLINGBROK Brasil é bom para ganhar dinheiro e ter mulher... Os
lucros... cento por cento... É belo! John, eu quero dorme, mim tem a
cabeça pesada... (V
ai adormecendo.)
JOHN Eu tenho sede. (
Bebe.) Bolingbrok dorme. Ah, ah, ah! (Rindo-
se
.) Está bom, está bêbado! Ah, ah! Cabeça fraca... Não vai a teatro...
Virgínia... (
Adormece)
209
Nas falas, inicialmente, indícios de que os ingleses revelam ter intenções
próximas às dos estrangeiros aproveitadores que foram anteriormente apresentados.
Entretanto, algumas peculiaridades que os diferem daqueles. John e Bolingbrok gostam
das brasileiras e se casam com elas. No decorrer da trama, eles mudam de atitude em
relação a brasileiros, chegando a convidar Jeremias para trabalhar com eles. Esta última
atitude parece sinalizar credibilidade à competência do brasileiro nos negócios.
Na trama, com a ajuda de Jeremias e sua esposa, Henriqueta, as moças retornam à
casa do pai, no Rio de Janeiro. Narciso, inconformado, não legitima o casamento das filhas
com os ingleses, justificando o fato por não ter sido realizado na Igreja Católica.
Na cena I, do terceiro ato, Virgínia e Clarisse estão sentadas junto à mesa de jantar,
quando aparece Narciso com um papel na mão. A cena mostra o porquê do título paradoxal
desta peça de Martins Pena:
As casadas solteiras.
Narciso, ao entrar, entrega às filhas um papel e pede que assinem. Virgínia o indaga
sobre o documento. Narciso declara:
(apresentando-lhe o papel e uma pena) A procuração para anular
vossos casamentos.
VIRGÍNIA – Ah, dê-me! (
Toma o papel e assina.) Agora tu, Clarisse.
CLARISSE, toma o papel e assina – Está assinado.
NARCISO Muito bem, muito bem, minhas filhas! Tudo está em regra.
Não descansarei enquanto não vir anulados estes malditos casamentos.
Casamentos! Patifes, hei de ensiná-los. estive esta manhã com o meu
209
Ibid., p.56.
169
letrado, que me dá muito boas esperanças. Minhas filhas, espero em Deus
e na Justiça, que amanhã estejais livres.
CLARISSE – Livres?
210
No decorrer da história, após o arrependimento com relação ao tratamento de suas
esposas, os ingleses partem para o Rio de Janeiro, vislumbrando uma possível
reconciliação. Ao chegarem a seu destino, os estrangeiros se deparam com novos
pretendentes às moças, encaminhados por Narciso.
Na cena XI, o pai das moças apresenta-lhes os seus possíveis ‘novos’ maridos:
Serapião e Pantaleão. Os brasileiros Serapião e Pantaleão são dois velhos que, além de
ostentarem modos rudes, aparecem vestidos de forma extremamente grotesca.
Na referida cena, Narciso os acolhe, e Clarisse comenta;
CLARISSE, à parte – Oh, que figuras!
SERAPIÃO – Deus esteja nesta casa.
PANTALEÃO – Humilde criado...
NARCISO Entrem, entrem, meus caros amigos; aqui estão elas. Hem?
Que vos parecem?
SERAPIÃO – Encantados!
PANTALEÃO – Belas como os amores!
NARCISO Bravo, amigo Pantaleão, como estais expressivo! Meninas,
então? Cheguem-se para cá; é dos senhores que eu pouco vos falava.
(
Aqui Bolingbrok e John levantam as tampas das pipas e observam.)
VIRGÍNIA –Muita satisfação tenho em conhecer ao Sr....
HENRIQUETA – Jibóia!...
211
No desenvolvimento do enredo, com a ajuda de Jeremias, os ingleses afugentam os
novos pretendentes de Virgínia e Clarisse e se redimem com elas.
Na cena XII, acontece o encontro final:
JEREMIAS Meu caro senhor Narciso, a isto não se pode o senhor se
opor; elas querem... (
Bolingbrok e John abraçam Jeremias.)
CLARISSE e VIRGÍNIA – Meu pai, eu ainda o amo.
NARCISO Levantai-vos. (
As duas levantam-se.) Bem sei que sem o
vosso consentimento não poderei anular o casamento. Senhores, depois
que estiverdes legitimamente casados, poderei levar vossas mulheres.
210
Ibid., p. 57.
211
Ibid., p.70.
170
JOHN, abraçando Virgínia – Minha Virgínia!
BOLINGBROK,
abraçando Clarisse, ao mesmo tempo – My Clarisse!
NARCISO,
para Serapião e Pantaleão – Perdoai-me, meus amigos.
JOHN – Jeremias será nosso sociado.
BOLINGBROK –Yes, será nosso sociado!
JEREMIAS – Oh, eu vou fazer fortuna, minha Henriqueta! (
Abraça-a.)
212
Tais atitudes apontam que o conceito dos ingleses sobre o brasileiro parece se
modificar. Os estrangeiros se redimem da forma como trataram inicialmente suas esposas.
No entanto, Narciso mostra-se avesso à inclusão de ingleses na sua família e, por
conseqüência, sua permanência na nação. Tanto o é que fica registrado, através das suas
últimas palavras, que ele se sente “logrado” diante dos acontecimentos.
Ao apresentar no enredo protagonistas ingleses dividindo espaços com protagonistas
brasileiras, Martins Pena, nesta peça, promove um espaço para a encenação das relações
entre as nacionalidades distintas, com interesses aparentemente inconciliáveis, interações
entre as diferenças culturais, ressaltando o estrangeiro como elemento marcante.
Uma outra peça em que é anunciada a tentativa de inclusão do estrangeiro é a
revista cômica
Cocota (1885), de Artur de Azevedo. Nesta, o estrangeiro é representado
pelo espanhol Bergaño, que se apaixona por Cocota, afilhada do fazendeiro Gregório. O
enredo mostra as confusões de Gregório, um fazendeiro de Tinguá, localidade próxima a
Petrópolis, que resolve ir para a Corte para curar sua tosse, levando consigo a afilhada e
uma abóbora grande.
Artur Azevedo coloca em cena, além dessas três personagens, Serapião, também
fazendeiro e amigo de Gregório, e cerca de mais setenta personagens. Estas representam
212
Ibid., p.71.
171
pessoas das várias classes sociais, com diferentes funções e idades, tais como o Velho, o
Médico, os vendedores de jornais, o Intérprete, imigrantes italianos.
Em
Cocota (1885), Artur Azevedo insere, no enredo, imigrantes italianos. No
enredo, além do romance entre Bergãno e Cocota, das confusões em que se mete o
fazendeiro, transitam também temáticas sociais como a escravidão e a imigração italiana
para o Brasil.
Cocota tem início com Gregório tossindo fortemente e dizendo que foi por causa da
Missa do Galo que ficara doente. Ao perceber sangue na escarradeira, comenta que quer
fazer seu testamento. Neste enredo, a ciência recebe espaço, conforme se pode verificar na
cena II, quando Serapião a Cocota a
Gazeta de Notícias, para que ela leia sobre a
descoberta científica na Corte:
COCOTA – Eu leio (Lendo.) “a tísica pulmonar em seus diversos graus e
diferentes modificações e a erva virgiliana. Grande descoberta
científica e humanitária”.
GREGÓRIO – Mas que erva é essa?
SERAPIÃO Vou saber (...) É um médico septipata, que inventou uma
medicina nova – a septipatia.
BERGAÑO – Yo lo creo!
SERAPIÃO – Dizem, isto é diz ele que essa medicina é infalível contra
as feridas bravas.
213
Na seqüência, a afilhada sugere que se mudem para a Corte, e o fazendeiro
concorda. A personalidade do estrangeiro Bergaño começa a ser desenhada já nas primeiras
cenas.
Na cena II, Bergaño conversa com Cocota:
BERGAÑO Então, Cocota, você vai para a Corte? (Cocota abaixa a
cabeça.) – E eu?...
COCOTA – Você espere que a gente volte... Nós não vamos ficar lá!
213
AZEVEDO, Artur. Cocota. In ARAUJO, Antônio Martins de. O teatro de Artur Azevedo: Tomo II. Rio de
Janeiro: Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1985, p.292.
172
BERGAÑO Nada! Isto assim não me serve! Você pela Corte, com
seu padrinho...
COCOTA – Então seria melhor que eu fosse sozinha?
BERGAÑO – Não digo isso; mas...
COCOTA – Não tenho medo... lá não há lobisomens!
BERGAÑO – Mas há coisa pior, talvez!... Aquilo é um inferno!...
214
Ao perceber os perigos da Corte, Bergaño resolve acompanhar Gregório e Cocota
até o Rio de Janeiro. O estrangeiro Bergaño, que se mostra, a princípio, como um bom
caráter, demonstra preocupação com o destino do amigo fazendeiro, principalmente o da
moça, herdeira do tio Gregório, um rico fazendeiro. O espanhol, tencionando uma possível
união com a herdeira de Gregório, procura estar perto da família, tanto é que vai como eles
para o Rio de Janeiro.
No decorrer da história, sua grande preocupação é encontrar a moça que se perdeu
no percurso da viagem. Após reunir novamente os viajantes, ao se deparar com imigrantes
italianos à procura de serviço, Bergaño consegue convencer Gregório a contratá-los para
trabalharem no lugar dos escravos em sua fazenda. Tal atitude mostra que Bergaño
vislumbra, em se cansando com Cocota, no futuro apropriar-se das terras do fazendeiro.
Logo, há, nas atitudes de Bergaño, preocupação com a administração dessas terras.
Amélia Smith (1886), do Visconde de Taunay, também é uma peça que pode ser
inserida nesta discussão. Este drama de Taunay, composto em quatro atos, cuja ação se
desenvolve na Corte do Rio de Janeiro, traz à cena o drama da jovem Amélia Smith, que
nome à obra. Moça ambiciosa, Amélia, pertencente à elite da Corte, é convencida pela
família, que enfrenta dificuldades financeiras, a se casar com o bem-sucedido capitalista
inglês John Smith, amigo da família. Durante muitos anos, Amélia vive um casamento
tranqüilo. Entretanto, o contato com Jorge de Castro muda sua vida.
173
Na cena I, do primeiro ato, John Smith confidencia com o amigo Ayres Peres, pai
de Amélia, e lhe pede ajuda para concretizar seu desejo de se casar. Ele inicia a conversa:
“Sou homem pratico, como bom inglez que nasci...”, comentando que sua fortuna está em
torna “de dous mil contos de réis.” Ayres Peres comenta:
Caspite! (apertando as mãos de John Smith com effusão) Parabéns!
Muitos parabéns! Dous mil contos de réis (
emendando) Foi, mais ou
menos, quanto herdei. Que fim levaram? Não sei bem... Minha mulher,
minha filha, eu... parentes, gastamos tanto, tanto! (
com gesto de
resignação
) Pouco importa!...
JOHN SMITH (
depois de breve pausa) Pensei em casar-me ... e
lembrou-me deixar isso ao seu cuidado ... só e só ... ao seu cuidado.
215
No mesmo ato, cena V, estão Ayres Peres, sua esposa, Lúcia, e a filha Amélia,
conversando sobre John Smith:
AYRES PERES: É homem bastante rico... Fortuna liquida... tem mais
de dous mil contos de réis, o que representa no mínimo uma renda anual
superior a cem contos de réis. E, filha minha, se assim te falo, é por
conheceres um pouco a realidade da vida... Oh! Que prazer... ver a
nossa bahianinha brilhando na Corte... machucando as orgulhosas
cariocas...
LUCIA: E não é isto!... um cavalheiro perfeito... amigo de teu pai e
da casa, ha tantos anos... hás de ser felicíssima, eu te asseguro... E ando
bem precisada de motivos de alegria... Vivo bem apreensiva...
216
Na peça, Amélia, por influência da mãe, se casa com John. Depois da união com o
inglês, ela se sobrepõe ao estrangeiro no convívio do casal. Amélia é referência e
conselheira na sociedade que freqüentam. No entanto, ela se apaixona por Jorge de Castro e
trai o marido John Smith.
214
Ibid., p. 293.
215
TAUNAY, Visconde de. Amélia Smith. São Paulo: Melhoramentos, 1886, p. 14-15.
216
Ibid.,p. 48.
174
A traição de Amélia representa o que segundo Helena Tornquist: “no mundo
orgânico na bipolaridade Bem/Mal, a mulher vive sob a constante ameaça de precipitar-se
ao pecado; ela é o Outro a quem se deve proteger ou de quem se deve desconfiar”.
217
Ao
infringir as normas de conduta da sociedade, ela é ameaça e se coloca na posição dos
“desconfiáveis”. Para tanto a morte do filho Amadeu parece funcionar como pena por sua
traição.
Mesmo que a protagonista seja Amélia, que o foco das ações seja voltado para ela,
chama-se a atenção para a importância do estrangeiro, do inglês John Smith. Já no título da
peça, anuncia-se seu sobrenome.
Na cena IV, do último ato, ao ver o filho Amadeu, em seus últimos momentos, John
comenta com Amélia:
John Smith (para Amélia) – Ainda estavas chorando, hein? Não
motivos para te affligires assim Amadeu parece-me outro Estive
duas horas com elle Nunca o vi tão animado e interessante Falou-
me como se um homem feito. Contou-me mil histórias planos do
futuro (
Com fingida jovialidade). E ambicioso deveras Quer ser
general … dar muita gloria ao seu nome … De certo … a ouvi-lo
…ninguém pode suppor tão grave enfermidade. Confiemos na
Providencia, Amélia …Ella não nos ha de arrancar a alegria da existência
O que seria de nós neste mundo sem este menino? (
Enternecendo-se).
pouco dizia-me elle com voz harmoniosa como a de um pássaro,
«Quasi que gosto mais de papae do que de mamãe» ... elle está melhor …
não gosto daquelle tremor. ver o doutor, e confirme as nossas
esperanças …Devo escrever uma carta urgente e já volto. (
Sai)
218
Conforme se observa nesta fala, o enredo de Taunay apresenta o inglês John como
um pai afetuoso, pois acreditava ser Amadeu seu filho legítimo. Entretanto, a dor pela
trágica morte do menino fica como o último sentimento registrado dessa personagem, ao
correr para os braços da esposa dizendo: “
Amélia! Minha Amélia!”.
217
TORNQUIST, Helena, op. cit., p. 242.
218
TAUNAY, Visconde de, op. cit., p. 148.
175
Bem distante dos estrangeiros embusteriros, ou serviçais arrogantes, com um nome
que por si alude ao estereótipo nacional do colonizador inglês, Smith, na trama, é um
bom-caráter. Mesmo sendo um dos personagens mais citados no enredo, suas falas são
extremamente restritas.
John Smith aparece ainda com qualidades atribuídas, no imaginário social, ao
inglês. Em toda a história, John é apresentado como exemplo de profissional, uma
persona
metódica, com maneiras refinadas, que é referência para a sociedade na qual transita. Além
disso, também é caracterizado como um bom amigo, excelente marido e, conforme
mencionado, um pai afetuoso.
Nesta perspectiva, sobre a temática da inclusão do estrangeiro, a única peça que
ultrapassa o século XIX articulada neste estudo, é a
Lição de Botânica (1906), de Machado
de Assis.
O enredo desenrola-se em ato único, em Andaraí, Rio de Janeiro. O estrangeiro é o
Barão
219
Sigismundo de Kernoberg, um botânico sueco que, por não concordar com o
namoro do sobrinho Henrique com Cecília, resolve procurar a tia da moça D. Leonor. Em
sua visita, o Barão acaba conhecendo D. Helena, também sobrinha de D. Leonor, e fica
espantado com a sabedoria da moça. Esta põe em prática seu plano de neutralizar o Barão e
o deixa encantado com sua delicadeza e curiosidade pela ciência.
219
Vale destacar que, nas peças analisadas, os títulos nobres vão ser anunciados principalmente em
personagens estrangeiras, como o Barão Sigismundo de Kernoberg, nesta peça de Machado, e D. José
Saldanha, o nobre português, da peça
Sangue limpo (1863) de Eiró. Sobre a nobreza brasileira, Lilia Moriz
Schwarcz ressalta que no período em que o Brasil foi Colônia (1808-1820), “D. João VI teria tempo de
nomear 254 nobres: entre 11 duques, 38 marqueses, 64 condes, 91 viscondes e 31 barões, além de garantir a
nobreza dos portugueses imigrantes”. Durante o período do Reino Unido e dos dois Reinados foram
concedidos 1400 títulos de nobreza. De acordo com a autora, fora instituída e formalizada, no Primeiro
Reinado, a partir de um projeto da Constituição de 1824, sobre a competência do imperador de conceder
títulos, honras, ordens militares e outros”. Confira-se “Como ser Nobre no Brasil”. In SCHWARCZ, Lilia
Moriz.
As barbas do Imperador, op. cit., p 159-205.
176
O Barão começa a ser anunciado já na primeira cena. D. Leonor está lendo o bilhete
que foi enviado pelo sueco e comenta com as sobrinhas Helena e Cecília:
D. LEONOR – Recebi ao descer do carro este bilhete: “Minha senhora.
Permita que o mais respeitoso vizinho lhe peça dez minutos de atenção.
Vai nisto um grande interesse da ciência”. Que tenho eu com a ciência?
D. HELENA – Mas de quem é a carta?
D. LEONOR – Do Barão Sigismundo de Kernoberg.
D. CECÍLIA – Ah! o tio de Henrique!
220
Neste enredo, Machado representa a sociedade carioca da época. O Barão, ao
contrário dos outros projetistas ou cientistas apresentados nas obras de França Júnior e
Martins Pena, mostra-se legitimado em seu conhecimento, ou seja, não apresenta qualquer
proposta de projeto absurdo, o que o configuraria como indivíduo aproveitador. O Barão
Sigismundo de Kernoberg é anunciado como alguém que realmente se dedica à ciência e
que faz dela sua razão de vida. Tanto o é que ele é contrário ao romance de Henrique e
Cecília por acreditar que o sobrinho deva dedicar-se somente à ciência e a nada mais.
Na cena IX, ele comenta com Helena:
BARÃO (sentando-se): – É verdade. Um marido pode perder a mulher, e
se a amar deveras, nada lhe compensará neste mundo, ao passo que a
ciência não morre.... Morremos nós, ela sobrevive com todas as graças do
primeiro dia, ou ainda maiores, porque em cada descoberta um
encanto novo.
221
Um aspecto que chama a atenção sobre a personagem é que, mesmo tendo
conhecimento científico superior às brasileiras, durante a história isso não lhe garante uma
posição prevalente sobre Helena ou Cecília. Se, no início, é o Barão quem comanda as
220
ASSIS, Machado de. Lição de Botânica, op. cit., p. 343.
221
Ibid., p. 353.
177
ações e procura ter em suas mãos a vontade e o destino de Henrique, no decorrer da trama
ele passa a ser dominado e manipulado pela astúcia de Helena.
Quanto a Helena, a viuvez torna-se um traço determinante para sua caracterização.
De acordo com Helena Tornquist, “Por ser jovem e ter experiência da vida amorosa, uma
viúva pode circular com mais desenvoltura no espaço público, o que faz dela uma figura
mais interessante e cobiçada pelos homens”.222 Tais aspectos, conjugados a sua forte
personalidade e juventude, fazem de Helena, a prima de Cecília, personagem importante na
condução da trama. Com o intuito de ajudar a prima, Helena começa a arquitetar seu plano
para convencer o Barão a aceitar o namoro dos jovens, a partir do momento em que
encontra o livro de Botânica deixado por ele em casa de D. Leonor.
Na cena VIII, Helena conversa com Cecília:
D. HELENA –Lisonjeira! (Pega maquinalmente no livro deixado pelo
BARÃO sobre a cadeira) A boa vontade não pode tudo; é preciso....
(
Tem aberto o livro) Que livro é este?... Ah! talvez do barão.
Quem sabe se este livro pode salvar tudo? (
Depois de um instante de
reflexão
) Sim, é possível! Tratará de botânica?
D. CECÍLIA – Ouvi dizer ao barão, trata das... gramíneas.
D. HELENA – Só das gramíneas?
D. CECÍLIA – Não sei; foi premiado pela Academia de Estocolmo.
D. HELENA –De Estocolmo. Bem. (
Levanta-se).
223
Na cena IX, ao voltar para pegar seu livro, o Barão encontra Helena:
BARÃO – Tinha notícia do livro?
D. HELENA – Certamente. Ando ansiosa por lê-lo.
BARÃO – Perdão, minha senhora. Sabe botânica?
D. HELENA –Não ouso dizer que sim, estudo alguma cousa e leio
quando posso. É ciência profunda e encantadora.
BARÃO
(com calor) – É a primeira de todas.
D. HELENA – Não me atrevo a apoiá-lo, porque nada sei das outras, e
poucas luzes tenho de botânica, apenas as que pode dar um estudo
solitário e deficiente. Se a vontade suprisse o talento...
BARÃO – Por que não?
Le génie, c´est la patience, dizia Buffon.
224
222
TORNQUIST, Helena., op. cit.p. 245.
223
ASSIS, Machado de. Lição de Botânica, op. cit., p. 351.
224
Ibid., p. 351.
178
Nesta cena, Helena, ao se mostrar curiosa pela ciência que o Barão domina, ao se
colocar como alguém que quer apossar-se de tal conhecimento, consegue seduzir o
cientista, que esse estrangeiro está no Brasil justamente em virtude do seu interesse
científico pela paisagem natural dos trópicos. O sueco se deslumbra com a vontade da moça
de conhecer o conteúdo de sua obra. Helena, durante as conversas com o estrangeiro, vai
percebendo que sensibilidade por detrás da máscara de cientista, o que acaba sendo
usado na estratégia da jovem para alcançar seu objetivo.
Ao colocar como personagem um cientista estrangeiro, a obra de Machado traz à
cena uma especificidade do contexto brasileiro da época. No Brasil, até meados do século
XIX, a ciência era iniciativa de viajantes estrangeiros, que se deslocavam de suas nações
exclusivamente para coletar amostras para suas pesquisas. São as observações da natureza,
feitas inicialmente por jesuítas e, depois, por naturalistas, que constituem o núcleo das
atividades científicas que se desenvolveram no Brasil durante o século XIX. Foi após a
transferência da Corte Portuguesa para o Brasil que começaram a se estabelecer algumas
instituições de tipo técnico-científico e atividades mais sistemáticas de pesquisa.
Em
Lição de Botânica, deve-se ainda destacar mais dois aspectos que se desdobram
na relação entre o estrangeiro e o brasileiro. Primeiramente, Machado coloca o diálogo
entre o cientista e uma mulher muito mais jovem. Ela, além de ser letrada, se destaca por
sua personalidade marcante e por ser boa estrategista. Esses atributos concedem a Helena as
rédeas do enredo. Helena, com sua estratégia, não convence o Barão a consentir no
namoro da prima com Henrique, como também encanta o botânico. Essa personagem
179
brasileira, com sua astúcia, consegue atingir o ponto frágil do Barão, desarmando-o, ao se
mostrar curiosa por sua ciência.
Dentre as peças analisadas sob a ótica da tentativa de inclusão do estrangeiro,
destaca-se que três nacionalidades estrangeiras são colocadas em cena: a inglesa, a
espanhola e a sueca. Sobre as profissões dos estrangeiros, estas aparecem muito distantes
das anunciadas pelos tipos aproveitadores analisados anteriormente. Não no enredo das
peças em exame qualquer registro de que tenham se aproveitado dos nem mesmo enganado
os brasileiros.
Os ingleses de
As casadas solteiras (1845) são dominados e acabam se
transformando em bons maridos. Bergaño, que se mostra um tipo politicamente correto, vê
na união com Cocota a possibilidade de se estabelecer com sucesso nas terras brasileiras.
Em
Amélia Smith (1886), John Smith apresenta-se rico, honesto, bom-caráter e,
ainda, se mostra receptivo à adaptação à cultura local. O Barão Sigismundo de Kernoberg
traz à cena o cientista estrangeiro, queno Brasil a existência de uma natureza grandiosa.
Assim, a ciência lhe permite conceber o Brasil como um excelente lugar de trabalho, uma
fonte de pesquisa e produção de conhecimento e aprimoramento pessoal.
2.2.5 Os imigrantes em cena
Na seqüência destas reflexões entra em cena uma outra categoria, a do trabalhador
imigrante. Convém destacar que, das peças elencadas para este estudo, somente duas,
Cocota (1885), de Artur Azevedo, e Como se fazia um deputado (1863), de França Júnior,
possuem esse tipo de personagens.
180
As leituras destas peças apontam que, diferentemente dos estrangeiros apresentados
até o momento neste estudo, o imigrante aparece em situações extremamente distintas às
dos demais estrangeiros.
No contexto histórico brasileiro, até meados do século XIX, quando permanecia o
comércio internacional de escravos, a política de imigração ainda não era efetiva. Os
fazendeiros reforçavam o escravismo e comprometiam o país com sua política agrária. A
mudança de tal panorama começou a acontecer a partir de 1850, com a diminuição
significativa do contrabando negreiro, devido a pressões da Inglaterra. A partir daí, a
política de imigração governamental, que privilegiava o estabelecimento de colônias de
europeus em terras encravadas no Rio de Janeiro, São Paulo e nas províncias sulinas,
começa a ser incorporada pelos fazendeiros.
Com o final do tráfico de africanos, houve o interesse dos latifundiários em
promover a imigração. Para Alencastro e Renaux:
No fundo, antes de responder à pergunta: ‘Quem virá trabalhar em nosso
país?’, os responsáveis pela política governamental deveriam ter
resolvido uma questão prévia: ‘Para quem se virá trabalhar em nosso
país?’. Se o imigrante viesse trabalhar por conta de outra pessoa, para os
fazendeiros, poderia ser de qualquer raça. Em compensação, se viesse
cultivar terras por conta própria, deveria preencher as características
étnicas e culturais desejadas pelos funcionários do Império. Tais eram as
alternativas que se apresentavam.
225
O Império conseguiria um número considerável de trabalhadores imigrantes,
principalmente os mais pobres em seus países de origem, cujo trabalho era seu único
instrumento de negociação. Com isso, incorporavam-se, ao país, novas nacionalidades,
novas culturas, principalmente a italiana.
225
RENAUX, Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe
(Org.).
História da Vida privada no Brasil. Império: a Corte e a modernidade nacional. Vol. 2. São Paulo: Cia
das Letras, 1998, p.293.
181
A representação de tal panorama vem à tona na peça Cocota, somente no último ato,
na cena I, quando Gregório e Bergaño conversam:
GREGÓRIO – Pois o Gás ainda não está satisfeito com o que lá tem?
BERGAÑO – Major, vamos embora, e deixe lá os imigrantes.
GREGÓRIO Boas! é o que me faltava! Ter o pássaro na mão e
deixá-lo fugir!
CRISPIM – Se me engano, são eles que ali vêm!
GREGÓRIO São, são! não dúvida! Vocês vão ver como se
funda uma colônia agrícola!
226
Na cena II, do mesmo ato, estão Gregório, Crispim, Bergaño, um Intérprete e
Imigrantes de ambos os sexos. Neste momento do enredo, são iniciadas as tratativas na
contratação dos imigrantes para trabalharem nas terras de Gregório. O Intérprete, com um
sotaque italiano, informa que ele é a língua dos imigrantes. Gregório os convida para irem a
“Sacra Família do Tinguá, onde desejo fundar uma colônia sob as condições mais
favoráveis. Se aceitam a minha proposta, vão já daqui para o Hotel do Caboclo e, depois de
um belo almoço de um suculento jantar e de uma noite de rosas em colchão de penas
partirão amanhã, e no Rodeio esperá-los-á o compadre Serapião.” e pede que o Intérprete
traduza:
O INTÉRPRETE (Aos imigrantes) Egli mi disse che é proprietario
agricolo e che invita tutti voi per andare alla Sacra Famiglia di
Tinguá, dove desidera fondare uma colonia sotto le piu favorevoli
condizioni. Se accetare la sua proposta, egli vi condurra nel Hotel do
Caboclo, e, dopo una colazione squisita, un prazo surcolento ed una
domita a piume di rose, domani partirete, ed in Rodeio vi aspettera il
compare Serapiano. Questo vecchio é rimbambito, ed a me sembra
che dovreste accetare questo divertimento, e poi e poi cari
amici … filare!
227
226
AZEVEDO, Artur, op. cit., p. 320.
227
Trad. “Ele me disse que o fazendeiro convida todos os senhores a irem a Sacra Família de Tinguá, onde
deseja fundar uma colônia sob as condições mais favoráveis possíveis. Se for aceito o convite, ele os levará
para o Hotel do Caboclo e depois de um fino coquetel, um banquete suculento e um sono reparador, partirão
amanhã e, no Rodeio, os esperará o compadre Serapião. Esse velho é bonachão, e me parece que deveriam
topar essa brincadeira, e depois … e depois … caros amigos … pernas para que te quero!” Ibid., p. 321.
182
OS IMIGRANTES – Bene! bene! bene! … accetiamo!
GREGÓRIO – Aceitam?
O INTÉRPRETE – Aceitam contentíssimos!
GREGÓRIO Então, toca para o Caboclo! Seu Crispim, venha
conosco, para irmos depois ao Romualdo. (
Aos imigrantes) Venite!
Venite
!
228
É interessante observar que em Cocota (1885), Artur Azevedo põe os imigrantes
italianos a falar em sua língua materna. No entanto, os imigrantes são inseridos apenas em
uma cena, através de duas falas e, por ainda não dominarem a língua portuguesa, ficam
condicionados à presença do Intérprete para poderem interagir com os brasileiros.
Evidencia-se a situação um tanto frágil dos imigrantes, uma vez que necessitam sempre de
um interlocutor para que ocorra a comunicação com os brasileiros. Porém, no caso
específico da peça, o fazendeiro aparece como refém do intérprete.
Em sua conversa com os imigrantes, o intérprete comenta que: “Esse velho é
bonachão, e me parece que deveriam topar essa brincadeira, e depois... e depois... caros
amigos...”. Percebe-se que, em tal comentário, subentende-se que imigrantes deveriam
aceitar a proposta, mas também a idéia de que eles deveriam usufruir sua estada nas terras
do “velho bonachão”. E ainda, na seqüência da conversa, o intérprete, em tom evasivo,
dispara: “pernas pra que te quero”, podendo ser interpretada como rompimento do acordo
com o fazendeiro. Artur Azevedo coloca em cena o Brasil dos fazendeiros escravistas como
portadores de uma mentalidade arcaica, que precisa ser superada, e a mentalidade
capitalista de que a terra é uma mercadoria e o trabalho deve ser livre ou assalariado.
Azevedo propõe, na referida cena, uma situação peculiar, na medida em que três
diferentes nacionalidades interagem. No diálogo entre os estrangeiros, o espanhol Bergaño
e os imigrantes italianos, ocorre a intermediação de um intérprete e o fazendeiro brasileiro.
228
Ibid, p. 321.
183
No entanto, fica, neste caso, demarcado que, além de não ocupar o mesmo espaço que é
dado ao estrangeiro nas peças teatrais, e tendo fala apenas em Cocota, sua participação é
reduzida, pois fica à mercê da tradução de outrem.
Contudo, ao inseri-los no enredo, este autor torna evidente o imigrante, mostrando
também o objetivo de seu ocultamento: veio trabalhar nas terras brasileiras, não deve
ocupar lugar de destaque na estrutura social, pois sua função estava próxima à dos escravos.
Além disso, Azevedo coloca nas mãos de outro estrangeiro, Bergaño, a tarefa de
encaminhá-los para o trabalho
degradante. É Bergaño, portanto, quem convence o
fazendeiro Gregório a contratar os italianos e, com isso, conceder a liberdade aos negros
cativos que trabalham em suas terras. Fica destacado, nesta peça de Artur Azevedo, que a
mudança do panorama de escravidão e a sua substituição pelo trabalho dos imigrantes
italianos nas lavouras de Gregório acontece somente devido à interferência do estrangeiro
Bergaño, da mesma forma que a Abolição decorre de pressões econômicas desencadeadas
pela conjuntura internacional.
Ainda no âmbito dessa discussão, insere-se neste estudo a peça Como se fazia um
deputado (1882), de França Júnior. Nela o autor também traz à cena o imigrante italiano.
Entretanto, diferentemente do enredo de Cocota (1885), em Como se fazia um deputado
(1863) o imigrante italiano exerce a profissão de mascate e reside no Brasil algum
tempo.
Esta peça é uma comédia em três atos, e toda a ação de seu enredo acontece no
interior da Província do Rio de Janeiro. França Júnior apresenta diferentes tipos de
personagens, dentre essas estão: o Major Limoeiro, um tenente-coronel; Chico Bento, um
fazendeiro, sua mulher Perpétua e a filha, Rosinha; Henrique, bacharel em Direito;
184
Domingos, escravo de Limoeiro; Pascoal Basilicata, mascate italiano; Rasteira-Certa,
Arranca-Queixo e Pé-de-Ferro, capangas de eleições.
O enredo anuncia as tramóias dos fazendeiros Limoeiro e Chico Bento para
conseguirem eleger o recém-formado Henrique, sobrinho de Limoeiro, e casá-lo com
Rosinha, filha de Chico Bento. No desenrolar da trama, Henrique, Rosinha e o imigrante
italiano Pascoal Basilicata têm suas ações dirigidas pelos fazendeiros. Isso se pode verificar
no primeiro ato, na cena V, quando Limoeiro e Chico Bento vaticinam sobre o destino
político e amoroso de Henrique:
LIMOEIRO Tenente-coronel, cartas na mesa e jogo franco. É preciso
arrumar o rapaz; e não negócio, neste país, como a política. Pela
política cheguei a major e comendador, e o meu amigo a tenente-coronel
e a inspetor da instrução pública cá da freguesia.
CHICO BENTO (Com alegria concentrada.) Confesso ao major que
nunca pensei em tal; uma vez, porém, que este negócio lhe apraz...
LIMOEIRO É um negócio, diz muito bem; porque, no fim de contas,
estes casamentos por amor dão sempre em água de barrela. O tenente-
coronel compreende... Eu sou liberal... o meu amigo conservador...
229
Os jovens Henrique e Rosinha relutam inicialmente, mas, após uma conversa
arranjada pela família, acabam encontrando encantos um no outro, e ele a pede em
casamento.
Dando prosseguimento à trama para tornar Henrique sobrinho de Limoeiro e
futuro genro de Chico Bento um deputado, na cena XIII, Chico Bento e Limoeiro, ao se
depararem com o imigrante italiano Pascoal Basilicata, tentam convencê-lo a se passar por
brasileiro e votar em Henrique:
LIMOEIRO –Tenente-coronel, este italiano é um diamante que
nos caiu do céu.
LIMOEIRO – Como se chama você
229
FRANÇA Júnior. Como se fazia um deputado, op. cit. p.100.
185
PASCOAL – Pascoale Bazilicata, humilíssimo servitore di lei.
LIMOEIRO – Pois, senhor monsiú Basilicata, você está disposto
a mudar de nome por cinco minutos?
PASCOAL – Cambiare mio nome?
LIMOEIRO – (A Chico Bento.) Cambiar, não sei o que é. (A
Pascoal.) Não se trata de câmbio, de trocar dinheiro...
PASCOAL – Ma, perchê trocare il mio nome?
LIMOEIRO – Usted não quer guadanhar la plata?
PASCOAL – Si,si,já. Ma chi me dona danaro?
CHICO BENTO – Aqui este monsiú.
PASCOAL –Está bene; cosa devo fare?
LIMOEIRO – Usted larga el taboleiro aqui com tutas las
bugigangas, está entendendo? Toma isto (Mostra a lista.) e,
quando o chamarem ali, da aporta da igreja, entra e mete este
papel nel buraco del caixone, que está em cima della mesa.
Ponha sentido no seu nome.
230
No decorrer da conversa, Limoeiro e Chico Bento propõem a Pascoal que mude seu
nome para “Albino Catalão Carapuça dos Enjeitados”, durante a votação.
E continuam a negociata:
LIMOEIRO – Guadanha vinte mil réis.
PASCOAL – O sinhore poteva dare um pouco piu.
LIMOEIRO – Não tem que piar; com vinte mil réis está muito bem pago.
PASCOAL – Vá bene, sinhore.
231
Entretanto, mais adiante, na cena XVII, quando vai votar, o povo reconhece o
imigrante e revela a farsa:
POVO Fora! Fora! Fora!
1º VOTANTE – É estrangeiro!
ARRANCA -QUEIXO – É cidadão brasileiro tão bão como tão bão.
PASCOAL – Si sinhori, sono brasilêro.
POVO – Morra o engraxate! Morra!
1º VOTANTE – Não pode votar! É estrangeiro!
232
No meio da confusão, o italiano é agredido por um capanga de eleição. No final da
peça, o objetivo dos fazendeiros é alcançado. Henrique se torna deputado e noivo de
Rosinha.
230
Ibid., p. 101.
231
Ibid., p. 102.
232
Ibid., p.120.
186
Como se fazia um deputado mostra que o imigrante italiano, em troca de algum
dinheiro, é convencido a mascarar sua identidade estrangeira, se fazendo passar por
brasileiro para poder votar no sobrinho do fazendeiro. Nesse caso, o imigrante aparece
como instrumento de manipulação de interesses, capaz de vender-se por algum dinheiro.
Comparando a situação dos imigrantes e de Bergaño, em Cocota, de Artur Azevedo,
com a dos fazendeiros e do imigrante italiano, em Como se fazia um deputado, de França
Júnior, percebe-se que um certo distanciamento no modo de apresentação desses nos
enredos. Conforme mencionado, através de Bergaño, Artur Azevedo demonstra que,
mesmo sendo contratados para trabalharem na terra, os imigrantes poderiam manter a sua
nacionalidade italiana. no caso do mascate italiano em Como se fazia um deputado, este
não está sendo pago pela venda de suas mercadorias, mas por um embuste, tendo que forjar
uma nacionalidade que não é a sua. Nos dois casos, fica clara a dificuldade de aceitação,
pelos fazendeiros, do trabalhador imigrante, assalariado, que iria substituir o trabalho
compulsório do negro escravo. Nessas falas, portanto, aparece a recusa da modernidade
pelo Brasil arcaico.
Nessas peças pode-se constatar que os enredos não colocam o imigrante em
tentativa de inclusão na nação, ou como os tipos aproveitadores, ou ainda como criados de
famílias brasileiras, conforme visto nas leituras anteriormente realizadas. O imigrante é
registrado apenas como personagens secundárias, sem muita participação nas tramas.
Mesmo assim, a leitura de Cocota e de Como se fazia um deputado mostra que,
ainda que ocupe um papel e um espaço restritos e com pouca interferência na condução das
tramas, Artur Azevedo e França Júnior, ao colocarem em cena o imigrante, trazem à
187
reflexão seu aparecimento e a maneira como foi recepcionado pelo setor tradicional da
economia brasileira, mais precisamente, os fazendeiros da região do Rio de Janeiro.
3. A NAÇÃO EM CENA
188
O teatro em cada país não deve ser um divertimento
público, mas uma instituição nacional
.
( Artur Azevedo. Palestra, Rio de Janeiro, 20 de março de 1901)
3.1 Colocando a questão
Até a conquista dos portugueses, o índio aparece como o primeiro habitante no
Brasil e, assim sendo, o primeiro brasileiro. O índio era o autóctone das terras conquistadas
pelos portugueses, no século XVI, na América do Sul. Estabelecida a colônia, veio a
Companhia de Jesus, para catequizar os índios. Os jesuítas trouxeram consigo, além da
religiosidade cristã, as influências culturais, como a literatura e o teatro. Estes elementos
tornar-se-iam instrumentos de
civilização.
Com o passar dos tempos, vão acontecendo mudanças no panorama da Colônia e da
arte teatral nela produzida. Desde a ocupação do Brasil no século XVI, os portugueses
continuaram a chegar de forma ininterrupta até o século XIX. Em sua maioria, eles
imigravam com recursos próprios e estavam envolvidos em redes familiares ou
189
comunitárias que os auxiliavam, tanto na partida de Portugal, quanto em sua chegada nas
terras brasileiras. Esses imigrantes encaminhavam-se preferencialmente para as póvoas e/ou
vilas e, ao longo dos anos, parcela deles empreendeu inúmeras viagens de ida e volta, entre
os dois países, distanciando-se de um modelo rígido de fixação.
233
Juntamente com a imigração portuguesa, porém em número muito menor até o
século XIX, vieram imigrantes de outras nacionalidades, além dos negros africanos
submetidos ao cativeiro. O aparecimento dos portugueses, dos outros imigrantes europeus e
dos negros, e, por conseguinte, sua permanência nas terras do Brasil possibilitou um novo
panorama social nessas bandas do além mar. A partir daí, outras personagens, além dos
índios, começaram a constituir a população brasileira.
no século XVIII, os sentimentos que advêm da Inconfidência Mineira adquirem
também grande amplitude no XIX, com a Independência, a Abolição da Escravatura e a
Proclamação da República. O século XIX, para o Brasil ocupado pelos portugueses no
século XVI, tornado sua principal colônia no século XVII, constitui um marco na
construção da identidade nacional. Mais que qualquer outra época, conforme foi
mencionado, o século XIX, sobretudo a partir do Período da Regência, apresenta-se como o
século da descoberta do Brasil pelos brasileiros.
Conforme Eric Hobsbawm, os Estados, por toda parte, surgiram primeiro que a
nação. Segundo o autor, “Nações não fazem estados e nacionalismos, mas o contrário”.
Pode, sim, existir uma “minoria agitadora”, antes da criação de um Estado, porém o
recrutamento da “massa de apoio” para o sentimento de nacionalidade exige a existência de
um Estado. Portanto, para se chegar a esse objetivo, “o Estado foi uma máquina que teve de
233
KLEIN, Herbert S. Migração internacional na história das Américas. In: FAUSTO, Boris (Org.). Fazer a
190
ser acionada”.234 Este princípio consiste em tomar o Estado, não como um agente, mas
sim como uma relação social entre agentes. Neste sentido, o Estado apareceu como um
conjunto de práticas sociais, instituições e poderes que, a partir das dinâmicas intra e inter-
Estados, articulam indivíduos e grupos, que se encontram conectados e territorializados
durante os tempos.
Tal entendimento sobre o nascimento do Estado como determinante da nação,
conforme Hobsbawm, torna-se importante à apreensão da representação da nacionalidade,
ou melhor, da representação do brasileiro, na medida em que entendemos que a
Independência, com a criação do Estado Nacional brasileiro, é o indicativo para demarcar a
formação da nação brasileira.
Ao focalizar a "invenção" do Brasil, na literatura, vê-se que, em muitas obras, por
exemplo, nos romances de Alencar, ou nos poemas de Gonçalves Dias, dentre outros, os
mitos aparecem imbricados na elaboração de símbolos, na criação de instituições e na
afirmação de um ideário nacional. Neste sentido, pode-se afirmar que a literatura brasileira
foi peça fundamental para instituir a idéia de nação.
Cabe aqui evidenciar que Antonio Candido, em A Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos, destaca a importância da literatura brasileira, que se mostra como um
sistema articulado: um circuito definido entre autor, obra e público, elementos que se
acham reunidos em uma interação dinâmica que possui continuidade no tempo.
Nesta perspectiva, para Candido, o processo de formação da literatura brasileira é uma
síntese entre tendências universalistas e particularistas, sublinhando que o Arcadismo
América. São Paulo: EDUSP, 2000, p.14-17.
234
HOBSBAWM, Eric, op. cit., p.56.
191
deflagrara a “história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”.235 A tal ponto
que Candido caracterizaria a literatura brasileira como uma literatura “empenhada”a
fazer/construir a Nação.
Entretanto, a necessidade de autodefinição, muitas vezes, conforme Antonio
Candido, prendeu a imaginação: “(...) a coragem e a espontaneidade do gratuito é prova de
amadurecimento, no indivíduo e na civilização; aos povos jovens e aos moços, parece
traição e fraqueza”.
236
Essa “imaturidade” deu à Literatura produzida no Brasil um sentido
histórico e um poder comunicativo, tornando-se, também, espelho de uma sociedade em
busca do autoconhecimento.
Sobre esta perspectiva, em “Os sete fôlegos de um livro”, Roberto Schwarz comenta
que para Antonio Candido, em
Formação da literatura brasileira, os escritores aparecem
como agentes do processo formativo da literatura brasileira. A formação da literatura no
país, segundo Schwarz, é uma estrutura histórica com um sentido próprio, com uma lógica
de funcionamento que é preciso entender. Uma de suas leis de funcionamento seria a
necessidade do nacional; outra, a combinação de aspectos universalistas e particularistas.
Destacando Candido, ao sublinhar a importância da literatura brasileira, Schwarz afirma:
“Antonio Candido é seguramente, e de longe, o mais estrutural entre os críticos brasileiros,
se entendermos o termo em suas acepções exigentes, para além dos cacoetes
terminológicos”.
237
235
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira, op. cit., pg. 25.
236
Ibid., p. 27.
237
SCHWARZ, Roberto. Os sete fôlegos de um livro. In: SCHWARZ, Roberto. Seqüências brasileiras. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 50.
192
Neste sentido, percebe-se que, não por acaso, Antonio Candido, na referida obra,
aponta para o caráter empenhado da literatura brasileira: os autores locais, ao fazerem
literatura, pretendiam, também, estar fazendo um pouco de Brasil.
Nessa perspectiva, infere-se como o teatro do século XIX vê, imagina, constrói a(s)
imagem(ns) da Nação (ou nações), através das personagens brasileiras e estrangeiras. Em
decorrência, fez-se menção as duas concepções de nação, de Benedict Anderson e Eric
Hobsbawm.
Saliento que, como o termo “nação” está inserido dentro de uma grande produção
intelectual, por onde transitam concepções de matiz variado, neste estudo limitei-me,
portanto, ao pensamento de Benedict Anderson e de Eric Hobsbawm. Para Benedict
Anderson, a nação se configura como “uma comunidade política imaginada e imaginada
como sendo inerentemente limitada e soberana”.
238
Eric Hobsbawm, além de destacar o
surgimento do Estado como determinante para a nação, conforme mencionado, afirma
que nação é “qualquer corpo de pessoas suficientemente grande cujos membros
consideram-se como membros de uma nação”.
239
Hobsbawm recorre aos pensamentos de
Benedict Anderson, concebendo a nação moderna como sendo produto de um discurso,
embora as ressalvas que opõe à concepção do próprio Anderson: “(...) A nação moderna é
uma ‘comunidade imaginada’, frase de Benedict Anderson, e, não dúvida de que pode
preencher o vazio emocional causado pelo declínio ou desintegração, ou a inexistência de
redes de relações ou comunidades humanas reais; mas o problema permanece na questão de
por que as pessoas, tendo perdido suas comunidades reais, desejam imaginar esse tipo
238
ANDERSON, Benedict., op. cit., p. 17.
239
HOBSBAWM, Eric, op. cit., p. 18.
193
particular de substituição”.
240
Por isso mesmo, Hobsbawm
241
insistirá também na
historicidade da construção dos imaginários de nação.
Sobre as nacionalidades, é importante considerar, ao se pensar em literatura e
história brasileiras, que, segundo Antonio Candido, inicialmente predominou uma literatura
que aliava a noção de natureza à de pátria, por se acreditar que a variedade e o exotismo de
uma estavam ligados à grandeza da outra. Como a terra, o homem brasileiro simbolizado
pelo índio é forte, poderoso, não se deixa abater por adversidades.
242
Ainda é importante
acrescentar que a primeira formação identitária foi modelada por um olhar estrangeiro, um
olhar de fora, ou seja, pelos relatos dos viajantes estrangeiros.
243
Foram os europeus que
primeiro disseram quem eram e o que era valor no continente americano. E muitas das
peças teatrais expressam esse olhar estrangeiro. As representações dessas imagens, no
século XIX, estão relacionadas, principalmente, a um tipo de concepção edênica que se
240
Ibid., p.63.
241
Hobsbawm, para dar conta do desenvolvimento do liberalismo no ocidente, localiza em 1830 o surgimento
do conceito de nação com o sentido que lhe é hoje atribuído, qual seja, o sentido político de Estado-nação.
Anteriormente, os termos empregados em política para designar conceitos próximos eram "povo" e "pátria".
Para Eric Hobsbawm, o conceito é desenvolvido de acordo com três etapas sucessivas: a primeira, de 1830 a
1880, em que predomina o "princípio de nacionalidade:", o qual vincula a existência da nação à unidade
política e a uma extensão territorial "viável"; o segundo período, de 1880 a 1918, aparece dominado pela
"idéia nacional", que vincula à nação a unidade lingüística, cultural e de raça; e por fim, a terceira fase, de
1918 aos anos 1950-60, é a fase da "questão nacional", que enfatiza a consciência nacional, definida por um
conjunto de lealdades políticas. Neste sentido, segundo Marilena Chauí, "o processo histórico de invenção da
nação nos auxilia a compreender um fenômeno significativo no Brasil, qual seja, a passagem da idéia de
'caráter nacional' [que Hobsbawm identifica com o segundo momento do processo de desenvolvimento do
conceito de nação] para a de 'identidade nacional' [relativa ao terceiro momento]. CHAUÍ, Marilena.
Brasil -
mito fundador e sociedade autoritária
. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000, p.16.
242
CANDIDO, Antonio. “Literatura e Subdesenvolvimento”. In: MORENO, César Fernandes, coord.
América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 343.
243
Ferdinad Denis foi um dos viajantes europeus que procurou registrar o panorama do Brasil e dos
brasileiros de seu tempo. Sobre a sociedade brasileira, em especial a da Corte do Rio de Janeiro, Denis
comenta que “Na alta sociedade, os hábitos são absolutamente os mesmos que os da mesma classe nos
estados civilizados da Europa: um salão no Rio (ou na Bahia) oferece, com pouca diferença, a aparência de
um salão de Paris ou de Londres. Em geral ali se fala francês e os usos se ressentem da influência inglesa”.
DENIS, Ferdinand.
Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da USP, 1980, p. 134.
194
tinha da América: o Brasil é a sua natureza. A literatura teatral não foge desse olhar de fora
sobre o Brasil.
Pretendo, de outra parte, matizar a questão da nação, entrelaçando essas concepções:
se a nação é “imaginada”, é um constructo, ela o é historicamente, o que significa que
carrega, em si, a possibilidade da diferença, o que abre a questão do brasileiro e do
estrangeiro: o brasileiro é perpassado por questões de classe, como se tentou acompanhar, e
o estrangeiro se estratifica em diferentes hierarquias de estrangeiros, vistos, aqui, como
estrangeiros e trabalhadores imigrantes.
3.2 Sentimentos díspares na nação recém liberta
Dentre as peças em estudo, Sangue limpo, de Paulo Eiró, e Amor e pátria, de
Joaquim Manoel de Macedo, conforme mencionado, ambas publicadas em 1863,
ambientam seus enredos nos momentos decisivos da Independência do Brasil em 1822. No
enredo da peça de Eiró o Brasil vai transitar de colônia a nação independente; na peça de
Macedo, a discussão sobre a Independência aparece após a mesma ter sido declarada.
É a partir desse tempo de ambientação de
Sangue limpo e Amor e pátria que se
inicia o pensar sobre os sentimentos de nação que perpassam as peças em estudo.
Faz-se significativo destacar, também, que nestas peças D. Pedro I aparece como
emblema histórico. Se no drama
Sangue limpo, D. Pedro I cumpre a função de poderoso
catalisador do sentimento nacional de um povo, na obra de Macedo a figura de D. Pedro é
colocada, também, como elemento que evidencia a lealdade de Luciano à sua família e ao
seu destino com Afonsina.
195
Nestas peças o processo de construção histórica do Brasil aparece enquanto
recriação e mesmo fetichização da Independência, sua efetivação enquanto lugar da
memória. O que está em jogo não é a proclamação em si, mas sua construção mediada,
politicamente, enquanto memória. Os modelos político-filosóficos (ou as utopias das
nações independentes) digladiam-se em todos os momentos da construção do imaginário (e
dos símbolos) da nação brasileira. Assim, o passado histórico se institui nas suas
representações.
Segundo Walter Benjamim “na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente,
com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho que sustentam de cem maneiras o
fluxo do que é dito”.
244
As narrativas advindas das peças teatrais, nas quais se articulam
diálogos e ações, podem representar importantes desafios para o leitor brasileiro entender
esse tempo enquanto memória, ou construção de uma memória sobre a nação.
No panorama da época em que se desenvolvem os dramas, o Brasil se tornara
Estado politicamente legitimado e legalizado, mas, mesmo com a Independência, ainda
permanecia no poder um nobre português, D. Pedro I, que, no decorrer da trama e da
História do Brasil, foi instituído como soberano deste povo. Ao longo das peças, constata-
se que as situações representadas por Eiró e Macedo apontam mais uma vez a importância
do discurso literário na construção do que se considera a identidade nacional. E, se na
História, o Brasil, ao obter sua Independência, mesmo se imaginando soberano conceito
vinculado ao poder do Estado como expressão da vontade do povo, que surgiu com o
Iluminismo e a Revolução Francesa, em 1789 – ficava ainda submetido ao poder pessoal do
monarca lusitano, na prática social toda uma movimentação dialética em torno da
construção da nação como meio de afirmação da autonomia.
196
Os conceitos de nação passam pelos filtros estabelecidos pela hierarquia da
sociedade representada nas peças. Evidencia-se que esta sociedade que representa uma
nação, como no caso de
Sangue limpo, possui graves falhas em sua estrutura interna. Se por
um lado, o adjetivo
brasileiro demarca um Brasil legalmente legitimado, por outro, o
Estado, não consegue, ainda, dar conta de seus problemas, mesmo já estando a três décadas
da Independência.
Na peça de Eiró, o olhar sobre o “momento histórico” e a atualização deste podem
ser delineados na primeira cena. Nela, a protagonista, Luísa, seu irmão Rafael e o agregado
da família, Vitorino, conversam na rua, onde muita gente e música. Observa-se que
um panorama de nação começa a ser descrito por Luísa:
– Apreciem a variedade de gente que há. Aqui vê-se de tudo; a beata roça
nas sedas, a farda das milícias encontra-se com o poncho dos caipiras;
olhem lá, às direitas! Um negro esbarrando-se na batina de um padre.
Nunca vi semelhante mistura de pobres e ricos, de velhos e crianças. A
cidade toda está aqui. (...)
– Que linda noite! Até o céu pôs luminárias.
245
Esta fala da personagem Luísa desenha ou acena para uma essência de nação que, a
seus olhos, despontava. A mistura, o livre trânsito, em um mesmo espaço, as diferentes
personagens que aparecem representadas vão delineando um conceito de nação no qual vê-
se permeada a possibilidade da coexistência de vários segmentos sociais, de diferentes
etnias, culturas, faixas etárias, e outras diferenças. Essa fala expressa a idéia de
caldeamento e, também, reforça a visão edênica.
A paisagem humana descrita por Luísa muda completamente nas falas das cenas
seguintes pelo olhar de Rafael.
244
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política, op. cit., 112.
245
EIRÓ, Paulo, op. cit., p 32- 33.
197
Na cena XII, Rafael desabafa com D. José:
(...) O Brasil é uma terra de cativeiro. Sim, todos aqui são escravos. O
negro que trabalha seminu, cantando aos raios do sol; índio que por um
miserável salário é empregado na feitura das estradas e capelas; o
selvagem, que, fugindo às bandeiras, vaga de mata em mata; o pardo a
que apenas reconhece o direito de viver esquecido; o branco enfim, o
branco orgulhoso, que sofre de má cara a insolência das Côrtes e o
desdém dos europeus. Oh! Quando caírem todas estas cadeias, quando
estes cativos todos se resgatarem, há de ser um belo e glorioso dia!
246
Nota-se, agora, que o sentimento de nação aparece muito distanciado daquele
apresentado na paisagem retratada por Luísa. E mais adiante, na cena VIII do III ato, Rafael
comenta:
– O Príncipe vai passar... (atira ao balcão um punhado de moedas)
Tomem isto... e não se esqueçam de gritar: Independência ou morte!
247
Neste momento, Rafael projeta sua esperança na Independência. Agora, tanto sua
fala como seu gesto de comprar com moedas os “admiradores” para o Príncipe demonstram
que esta personagem tem consciência do espetáculo do qual participa, na medida em que
está pagando para a glória de D. Pedro I.
Eiró, através de Rafael, descreve outra concepção da nação brasileira, muito distante
da ilustrada por Luísa. representação, embuste, lugares diferenciados para os que nela
habitam. As palavras de Rafael denunciam, dão forma a um panorama de diversidade
social, ou cultural, pela distinção de tratamento entre os indivíduos. A descrição idílica de
Luísa é substituída pela visão pessimista e irônica de Rafael.
Conforme se nos diálogos, a peça de Eiró anuncia, nas personagens, os
sentimentos e olhares distintos que constituem a nação. Mesmo estando o Brasil liberto
246
Ibid., p. 78-79. Cabe aqui destacar que esta fala é apresentada, no segundo capítulo, quando se discute
sobre o panorama da escravidão anunciado nesta cena da peça de Paulo Eiró.
247
Ibid., p. 94.
198
apresentando-se como Estado legalmente constituído e reconhecido pelas nações
estrangeiras, anunciando-se como implicitamente soberana, com suas fronteiras demarcadas
– a independência não era para todos. Principalmente para os escravos.
Imagens diferenciadas de nação também são apresentadas em Amor e pátria, de
Joaquim Manoel de Macedo. Nesta peça, as falas também anunciam concepções que
transitam desde a idéia de passividade, apresentada pela personagem de Prudêncio, aos
sentimentos ufanistas de Afonsina, do português Plácido e do patriota Luciano, que apóiam
a causa da Independência. Nas cenas finais, o romance de Afonsina e Luciano desloca-se
para um plano secundário e cede lugar para a Independência recém-conquistada.
Entretanto, se na peça de Eiró a personagem Rafael paga pelos aplausos a D. Pedro,
na de Macedo, nas cenas XIII e XIV, as falas adquirem um tom de exaltação e amor à
pátria. Para tanto, enquanto a protagonista muda a direção do seu olhar, e focaliza a
bandeira nacional, Luciano saúda a bandeira:
– Salve! Salve! O Príncipe imortal, o paladino da liberdade chegou a São
Paulo, onde em 7 de setembro gritou “Independência ou Morte!”, grito
heróico, que será doravante a divisa de todos os Brasileiros... ouvi! ouvi!
Eis o estandarte nacional; Viva a nação brasileira!..
248
As palavras eloqüentes de Luciano promovem em Prudêncio uma reação com a
mesma intensidade. Todavia, deve-se evidenciar que a Independência tinha sido
proclamada, e ele estava, agora, diante de pessoas que se mostram comprometidas com o
processo. Nota-se, nesse tom
ufanista, mais um mascaramento ou até mesmo disfarce de
não se rebelar contra algo já consumado:
Por minha vida! Este grito tem assim alguma coisa que parece fogo...
faz ferver o sangue nas veias, e é capaz de fazer um medroso de herói...
248
MACEDO, Joaquim Manoel de. Amor e pátria, op. cit. p. 171.
199
O diabo leve o medo!... quando se escuta um desses gritos elétricos, não
há, não pode haver Brasileiro, cujo coração e de cujos lábios não rompa o
mote sagrado... ‘Independência ou Morte!
249
Afonsina e o pai reforçam o tom de exaltação. Agora a nação torna-se a grande
protagonista do drama. Nas palavras de Afonsina:
Dá-me essa nobre e generosa bandeira. (Toma-a) Meu pai: eis o
estandarte da pátria de teus filhos! Abraça-te com ele, e adota por tua
pátria a nação brasileira, que vai engrandecer-se aos olhos do mundo!...
PLÁCIDO – Terra de amor, terra de liberdade, terra de futuro e de glória!
Brasil, querido! Aceita em mim um filho dedicado!...
250
Se em alguns momentos os textos das duas peças convergem, como, por exemplo,
ao associarem nação e família, em muitos outros há um distanciamento entre eles, na
medida em que divergem quanto aos elementos formadores de nação. Na peça de Eiró, os
diálogos se instituem com uma densidade muito maior que na peça de Macedo. As
diferentes concepções sobre temas recorrentes, como a escravidão, o poder do Estado, a
abordagem sobre a Independência do Brasil e o tom ufanista constituem contrapontos que
separam e aproximam os textos de Eiró e Macedo.
Para além do contraponto entre a perspectiva mais crítica que se percebe em Eiró e
o ufanismo nacionalista de Macedo, há, no entanto, alguma confluência: a esperança, de
certa forma utópica, num futuro radiante, a unificar, por sobre possíveis diferenças, o
discurso sobre a nacionalidade.
3.3 A nação e a fratura: a escravidão e o futuro do país
249
Ibid., p. 171.
250
Ibid., p. 172.
200
Faz-se necessário, dentro destas reflexões, trazer à discussão sobre nação a situação
do negro cativo, na medida que sua presença anuncia um paradoxo da sociedade brasileira
no processo de independência política: libertou-se o país, mas manteve-se um grande
contingente de pessoas escravizadas.
Arrancados do seu continente de origem e escravizados, os negros foram trazidos
com a finalidade de atender ao projeto da colonização do novo mundo. No entanto, a
história da escravidão negra no Brasil não se configurou sem conflitos, soluções de
compromisso e recuos. Não deve ser entendida linearmente, em sua complexidade, pois em
vários momentos a própria noção de “liberdade” era recorrente, em constante movimento.
Como resultado de um desenraizamento forçado pela escravidão, a diáspora negra
para esse novo território resultou em tentativa de desenraizamento, cuja resistência heróica
contribuiu para o caldeamento da identidade nacional brasileira. Mediante esse quadro, se
pode entender como os escravos vão definir suas estratégias culturais e identitárias diante
da escravidão. E ainda, como vão contribuir também para o entendimento de nação.
Nesta perspectiva, elaborou-se um exame da peça Sangue limpo (1863), de Paulo
Eiró. No enredo Eiró apresenta personagem do negro cativo. Não em sua fala
recorrência à nação, ou tampouco sentimentos sobre o processo de Independência que é
perpassado no texto. O enredo da peça, conforme destacado, é desenvolvido no ano de
1822, mais precisamente, da semana que antecede ao dia da Proclamação da
Independência.
Retomando-se mais uma vez a cena II, do terceiro ato, intitulado de
Independência ou morte”, presencia-se, nesta, que o escravo Liberato conversa em
um boteco com Mendonça e Brás:
201
MENDONÇA – Donde vem você, tio?
LIBERATO De baixo, meu senhor. Sim… todo branco é senhor.
Senhor, bota mais cachaça aqui. (...) Hoje é o dia de minha liberdade.
Liberato teve três cativeiros. Primeiro senhor dêle era um velho muito
bom. Dava esmola pra pobre: Liberato morria de fome. (...) Liberato
trabalhava sem parar, não tinha dia-santo seu. Um dia, branco quis
fazer uma capela; não tinha dinheiro, vendeu Liberato na fazenda. Foi
mulher que comprou êle. Marido já tinha morrido. Era bonita
bonita cara de anjo fala dela era música. Negro apanhava todo
dia, negro comia barro pra não morrer de fome, negro não tinha
licença de dormir. (...) Um dia mucama quebrou o espelho grande:
sinhá arrancou os olhos de mucama.
BRÁS –Que santinha!
251
Na seqüência, não agüentando mais o sofrimento, Liberato conta que fugiu. Mas,
em seguida, é capturado e trocado por um cavalo. O novo dono exigiu que vigiasse seu
filho, que acabou escapando durante a noite. O homem pergunta a Liberato sobre o filho
e descobre que o mesmo havia fugido. O dono ordena “Ajoelha cão.”
Liberato cometa:
Liberato não quis ajoelhar. Homem pegou num chicote, e tornou a
dizer: Ajoelha. Liberato puxou a faca e abaixou-se. Quando branco
deu a primeira chicotada, Liberato estendeu o braço: senhor D. José
caiu morto. Aí está como foi. Encha o copo, meu amo.
252
Na seqüência, o escravo se entrega à milícia e, em seguida, se mata.
Depreendem-se desta cena algumas reflexões.
Primeiramente, o título deste ato, anunciando as palavras ditas por D. Pedro I ao
proclamar a Independência, pode ser apreendido pelo desdobramento da cena como única
condição que restara ao negro cativo: a morte. Mesmo que em sua fala ele se considere
livre, pois tinha dinheiro e matara seu dono, o português D. José, ele sabe que este
sentimento de liberdade é extremante efêmero e mostra isso no desenrolar da trama.
251
EIRÓ, Paulo, op. cit., p. 84.
252
Ibid., p. 85.
202
Liberato não tem consciência do desenrolar dos acontecimentos que demarcavam a
história de seu país. Mesmo proclamada a Independência do Brasil, não havia perspectiva
da mudança para sua condição de vida. Seu sentimento de viver a liberdade fica
circunscrito a alguns instantes quando está no boteco bebendo o que ele mesmo pode pagar.
Neste curto espaço de tempo, Liberato vive a liberdade. Não vive em uma nação, pois não
há possibilidade de imaginá-la como tal.
253
Mesmo que proclamada a Independência, ele, o
Brasil, continuava sendo um lugar de cativeiro.
Vê-se, assim, retornarem as imagens de tortura e as injustiças pelas quais
passou. São essas que constituem a “imagem de nação”, e os matizes que colorem o
panorama de sua realidade, do lugar de onde fala. Eiró deixa claro com essa cena que
não há, para o negro, um espaço para esperança. Mesmo com a Independência, o
cativeiro continua sendo o destino de Liberato. O escravo apega-se à segunda opção da
frase de D. Pedro: a morte, principalmente por ter matado um nobre português.
Ainda sobre a nação, no contexto do escravismo, recorre-se ao prefácio da obra em
questão. Interessa refletir sobre o ano de sua publicação: 1863, ou seja, quase quatro
décadas após a Independência. É justamente nesse tempo a posteriori que o autor, em seu
prefácio, deixa demarcado seu olhar sobre a nação brasileira.
Eiró declara:
Todos sabem de que elementos heterogêneos se compõem a
população brasileira, e os riscos iminentes que pressagia essa falta de
unidade. Não é somente a diferença do homem livre para o escravo;
são as três raças humanas que crescem no mesmo solo,
simultaneamente e quase sem se confundirem; são três colunas
simbólicas que, ou hão de reunir-se, formando uma pirâmide eterna,
ou tombarão esmagando os operários! Penso eu (e êste pensamento
parece-me digno de ser a divisa de todos aquêles que trabalham no
magnífico edifício da arte nacional), penso eu que o presente deve ser
253
ANDERSON, Benedic, op. cit., p. 14.
203
preparador do futuro; e que é dever de quantos têm poder e
inteligência, qualquer que seja a sua vocação e o seu pôsto, do poeta
tanto como do estadista, apagar essas raias odiosas, e combater os
preconceitos iníquos que se opõem à emancipação completa de todos
os indivíduos nascidos nesta nobre terra.
No processo de colonização, se por um lado o desenraizamento proporcionado
pela escravidão, por outro os escravos contribuem para a definição das estratégias culturais
e identitárias. Tais aspectos aparecem evidenciados neste prefácio. Neste, o olhar do autor
sobre a nação decorre da constatação da heterogeneidade da população e, por
conseqüência, da coexistência de diferentes culturas. A nação é demarcada, também, e
principalmente, pelos tratamentos distintos que são dados aos brasileiros. Ao trazer à cena
o momento em que o Brasil se libertava oficialmente do domínio de Portugal, ou seja,
legalizado como Estado nacional, tornando-se reconhecido pela comunidade internacional,
Eiró coloca em xeque a legitimidade desse processo, e com isso a impossibilidade da nação
ser imaginada
254
pelos negros cativos. O autor, ao demarcar a permanência da dicotomia
entre Estado livre e brasileiros cativos, coloca em questão o sentido da “independência”
para a história do povo brasileiro. Com veemência declara:
Não será dramático desenrolar a velha bandeira do Ipiranga, e nela
apontar como antítese monstruosa a nódoa negra da escravidão, verme
nojoso que rói a flor de nossas liberdades? Não será dramático mostrar o
que fizeram nossos pais, e o que nós temos a fazer para coroar sua obra?
Foi possuído desta idéia que eu utilizei os belos dias de Janeiro do ano
passado, escrevendo o drama –
Sangue limpo.
Ao denunciar que a escravidão fez parte da história de colonização do Brasil, Eiró
alude que não mais espaço para ela, uma vez que se vivia um novo tempo. Indaga a
posição do seu tempo frente às mudanças que lhe pareciam inexoráveis:
254
Ibid., op. cit., p. 14.
204
Encetando uma emprêsa que me parece de alta moralidade, e que outros
completarão mais eficazmente, agredi as preocupações que existem
contra os homens de côr. Bem sei que a execução não está a par da idéia;
balbuciei uma língua nova para mim, e o meu entusiasmo juvenil
extravasou por vêzes dos moldes frios e inflexíveis do drama moderno.
Julgo porém haver atingido o meu fim. o gênio é dado começar pelo
irrepreensível.
Poetas, artistas, cultivadores do belo, semeadores incógnitos do
futuro, não esmoreçamos. Esta época vai rica de materialismo, de
descrença e de ignomínias políticas... mas um dia erguer-se-á o
sudário gelado desta nova Pompéia, e do cadáver só subsistirá o
crânio, sede da inteligência!
É possível dizer, ainda, que neste prefácio o autor salienta a importância da
literatura. Tal aspecto pode ser visto diante do que Antonio Candido define como uma
literatura brasileira “empenhada”.255 Candido evidencia a consciência, por parte dos
autores, da necessidade do nacional como uma marca de nascença nas obras produzidas
aqui. Eiró não focaliza a nação dentro da história do Brasil, no processo de
independência, mas principalmente questiona nesta nação a história dos negros cativos,
cuja trajetória fora marcada pelo desenraizamento imposto e, mesmo com a Independência,
não poderem entender o Brasil como sua nação
.
Ainda, como brasileiros, os negros anunciam o paradoxo de viverem cativos numa
nação livre. Somente na fala de Liberato se pode apreender algum sentimento sobre o lugar
onde vive. Não é um sentimento que entenda esse lugar como sua nação, mas um
locus
marcado
por injustiças, onde se evidencia a produção de diferentes contradições. Para o
negro não independência; morte de perspectivas, de cidadania, de vida. Eiró, no
prefácio e no enredo, anuncia sua posição contrária ao regime escravista, colocando em
evidência o sentido de nação.
Diferentemente de Eiró, José de Alencar, em O demônio familiar, procura sustentar
a importância da manutenção do regime escravista para a nação brasileira. Não é gratuito,
205
como se discutiu anteriormente, o fato de ele associar a figura do “demônio” ao menino
escravo Pedro. A colocação da palavra “familiar” anuncia, também, a possibilidade do
demônio ser familiar ou de o familiar transformar-se em diabólico. Ainda sobre a mesma
palavra, observando-a em um sentido mais abrangente, é possível conotar o significado de
pátria, ou, ainda, de nação. Daí depreende-se, na possível junção “demônio familiar”, a
idéia do demônio na nação.
Alencar, ao contrário de Eiró, silencia, de certa forma, o negro, ao colocar em cena
uma criança representando essa categoria social. Em suas falas, além das tramóias, o
menino, a todo tempo, alude à idéia de se tornar um cocheiro. Talvez, na perspectiva da
Alencar, a única maneira possível de inserção do negro na sociedade brasileira era como
serviçal.
Na cena VI, do primeiro ato, o menino comenta com Carlotinha:
PEDRO Isto é um instante! Mas nhanhã precisa casar! Com um moço
rico como Sr. Alfredo, que ponha nhanhã mesmo no tom, fazendo
figuração. Nhanhã há de ter uma casa grande, com jardim na frente,
moleque de gesso no telhado; quatro carros na cocheira; duas parelhas, e
Pedro cocheiro de nhanhã.
256
E, na última cena, Pedro reitera sua vontade: “– Pedro vai ser cocheiro em casa de
Major!”. O menino não deseja ser alforriado, apenas cocheiro. Percebe-se que o horizonte
de expectativa fica circunscrito aos limites impostos pelo sistema escravista. Não há,
portanto, a possibilidade de Pedro se
imaginar em uma nação. Não lhe é dada a chance de
inclusão no projeto nacional brasileiro.
255
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira, op. cit., p. 27.
256
ALENCAR, José de. op. cit., p. 58.
206
Eduardo, na cena XVI do quarto ato, denuncia Pedro como “demônio familiar”. As
palavras “demônio” e “família”, colocadas na fala de Eduardo, evidenciam o olhar de
Alencar para a questão do sistema escravista. Segundo Sidney Chalhoub, Alencar considera
que “a escravidão mantinha os pretos sob o manto da proteção e caridade dos senhores;
libertar através de intervenção do poder público, sem renovar, laços de dependência, era
atirar ‘hordas selvagens’ no ‘seio de um povo culto’”.
257
Tanto o é que o menino foi punido
com a liberdade. A nação imaginada por Alencar deflagra o perigo na liberdade dos
escravos.
De acordo com Chalhoub, na visão de Alencar, os negros libertos ficariam à mercê
de capangas e malfeitores, tornando-se massa de manobra. A alforria certamente iria
contribuir para “engrossar o caldo da incultura política reinante”.
258
O Brasil liberto deveria manter o sistema escravista para o bem não dos
brasileiros brancos, mas principalmente para o do negro cativo, que seria preservado das
mazelas que poderiam advir com a sua liberdade. Portanto, a nação imaginada não
contemplaria em seu
corpus o cidadão negro.
Nesta perspectiva vê-se, pelas personagens dos negros cativos trazidos à cena nas
peças
Sangue limpo, de Eiró, e O demônio familiar, de Alencar, um distanciamento na
imagem de nação que os autores elegeram para trazer à cena. Se para Eiró, a escravidão era
a grande nódoa da nação, para Alencar, conforme bem afirma Chalhoub, o cativeiro era “a
produção de subordinação através da proteção dos senhores e da gratidão dos dependentes,
257
CHALHOUB, Sidney, op. cit., p.197.
258
Ibid., p. 198
207
isto é, a escravidão garantia a ordem social”,
259
o que referenda a idéia da importância,
para Alencar, da permanência do cativeiro para o bem da sociedade na nação liberta.
Nestas representações, como brasileiro, o negro é silenciado. É-lhe impossível
aludir ou vislumbrar uma nação na medida em que este está abaixo da linha da condição
humana. Não é possível, ao negro, espaço ou voz para expressar-se sobre algo em que ele
esteja incluído. Não cabe, nesse contexto, o negro cativo no
corpus de cidadãos da nação
brasileira.
260
3.4 Livres, pobres, nacionais
Durante o século XIX, houve um aumento da população de homens livres pobres,
que teve na Proclamação da Independência o marco que distanciava a situação de habitante
de uma colônia de um cidadão de um país liberto. Neste contexto, muitos dos cidadãos
livres migraram em direção ao interior do país. Movimentos que se intensificaram, à
medida que as bases econômicas no século XIX se diversificaram com a produção do café,
cacau, algodão e borracha, propiciando a constituição de novas fronteiras agrícolas, fontes
de novas riquezas.261
Se, por um lado, alguns migravam para o interior, muitos permaneciam nos centros
urbanos. É tal panorama que interessa observar neste momento. Nos centros urbanos, esses
homens livres pobres formavam uma espécie de classe social tanto recoberta por um
259
Ibid., p.200.
260
Como tampouco caberia o indígena, expurgado da própria cena teatral, na altura dos anos sessenta do
século XIX, quando entra em questão, na cena política e, como é observado, também na cena teatral, o
abolicionismo.
261
CARVALHO, José Murilo de, op. cit., p. 168.
208
imaginário de liberdade, como pelos limites do poder aquisitivo. Esta situação, conforme já
destacado, está nas obras Judas em sábado de Aleluia, de Martins Pena, e Ingleses na costa,
de França Júnior.
Maria Sylvia da Carvalho Franco262 comenta que a imagem de carência dos
espaços internos das moradas, das condições materiais de vida, demarca as desigualdades
de fortunas e de categoria social do segmento intermediário em relação ao segmento da
elite dominante. Para a referida autora, a nação brasileira, após a Independência, instituía a
classe intermediária de homens livres e pobres dentro de uma sociedade regida por:
dois princípios divergentes de ordenação das relações sociais,
associações morais e ligações de interesses que se articulam e tiveram
efeitos deletérios recíprocos. A presença expressa da aquisição
econômica como objetivo fundamental, a ausência de privilégios
juridicamente estabelecidos, a falta de uma tradição a tornar
firmemente esteriotipadas as relações sociais satisfaziam os requisitos
básicos para a constituição de uma sociedade em que a situação
econômica se ligava imediatamente à posição social, em que as vias
para o enriquecimento não estavam estritamente monopolizadas. Estas
condições colocaram frente ao homem pobre a possibilidade de
integrar-se aos grupos econômicos.
263
Isto está posto, por exemplo, na descrição da situação econômica precária da classe
intermediária, conforme pode ser presenciado na ambientação das peças, como indicado
a respeito de
O Judas em Sábado de Aleluia. A casa de José Pimenta apresenta móveis
simples, baratos. As filhas cosendo, crianças brincando. Todo o ambiente cênico é modesto,
precário.
Também em Ingleses na costa são evidenciadas as limitações e a precariedade do
ambiente: “(..) no fundo uma estante com livros em desordem, um cabide com roupa;
262
A autora apresenta considerações baseadas nos relatos dos viajantes da época, focalizando principalmente
regiões do interior do país. Entretanto, tais especificidades também são evidenciadas nesse segmento social
que vivia nos centros urbanos. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho, op. cit., p. 103-104.
263
Ibid., p. 103.
209
sapatos velhos espalhados, duas canastras ao lado do cabide, uma mesa com papéis e livros,
etc...”.
Quanto à possibilidade de ascensão deste segmento social, merece destaque ainda a
personagem Filipe Flecha, da peça Caiu o Ministério!, de França Júnior. Na cena XI do
primeiro ato, Filipe declara ao amigo Ernesto:
FILIPE sei o que vai dizer-me. Que sou um simples caixeiro de
armarinho e que não posso aspirar à mão daquele anjo. Mas dentro do
peito deste caixeiro pulsa um coração de poeta.
264
E a situação financeira da personagem toma um outro encaminhamento na última
cena.
FILIPE (Não podendo falar.) – Comprei este bilhete. (Mostra-o, tirando-
o do
bolso.)
Vou ver a lista...
MR. JAMES
- Branca.
FILIPE – E tirei duzentos contos!
FILOMENA – Duzentos contos!
FILIPE
(Ajoelhando-se aos pés de Beatriz.) – Minha senhora, eu adoro-a,
idolatro-a. Quando a vi pela primeira vez foi no
Castelões, a senhora
comia uma empada. Quer aceitar a minha mão?
BEATRIZ
De tout mon coeur.
MR. JAMES – All right! Boa negócia.
265
Nesse contexto, anunciava-se a possibilidade de ascensão da classe intermediária
através do enriquecimento, no entanto, por meios não convencionais. Na peça de França
Júnior, a situação aparece de maneira irônica, utópica, distanciada do que se apresentava na
realidade da época. Se havia algum caminho para a ascensão social, diz França Júnior, na
contramão, inclusive, de Maria Sylvia, era pelo “milagre” do “enriquecimento fácil”, o que,
de outra parte, denota a rigidez da sociedade brasileira da época.
264
FRANÇA Júnior. Caiu o Ministério!, op. cit. p. 182.
265
Ibid., p. 221.
210
Nestas peças, em momento algum das falas dos representantes da classe
intermediária o anúncio de sentimentos ou olhares para a nação brasileira. As questões
históricas e sociais, como, por exemplo, a Independência ou a escravidão, não são referidas
nos diálogos. Pois, mesmo em número significativo na sociedade de seu tempo, as
personagens deste segmento social não trazem, em suas falas, idéias que demarquem
engajamento nessas questões, ou interesse pelos seus desdobramentos. Nesse sentido,
também eles não falam a Nação, senão como falta, exclusão, embora a busca de ascensão
social, normalmente fadada ao fracasso, a não ser que haja a intervenção compensatória de
“um milagre”, ou da concessão de um favor por parte dos abastados ou do Estado.
3.5 Outros olhares sobre a nação: o Estado Nacional como o lugar dos interesses dos
grupos dominantes
As leituras de peças, anteriormente citadas, mostram que a nação (mesmo que
demarcada por injustiças sociais) é concebida por algumas personagens como um
locus
onde devem prevalecer as cores nacionais, vislumbrando-se o futuro com sentimento de
esperança.
Entretanto, no exame das demais peças, observa-se que para algumas personagens,
na nação imaginada, há a presença de um Estado Nacional como uma instituição de
negociações. Dentro desta ótica, trazemos à cena as peças
Quase Ministro (1863) de
Machado de Assis,
Caiu o Ministério! (1882) e Como se fazia um deputado (1882), ambas
de França Júnior. Conforme anunciado, as duas primeiras possuem seus enredos
211
desenvolvidos na Corte do Rio de Janeiro, e Como se fazia um deputado desloca seu
cenário para o interior da Província do Rio de Janeiro.
Estas peças foram editadas e estão ambientadas em um tempo posterior à
Independência, e anunciam ao leitor/público alguns aspectos que compunham parte do
quadro da realidade política dessa época, ilustrando momentos que colocam em evidência
acontecimentos políticos que marcaram o conturbado surgimento do Estado brasileiro.
Em suas tramas, os autores não registram o espírito de união entre personagens
necessário para a consolidação da nação, conforme observamos nos enredos de
Sangue
limpo
, de Eiró e Amor e pátria, de Macedo. O que aparece em personagens de Quase
Ministro
, Caiu o Ministério!, e Como se fazia um deputado, é o desejo de alguns de tirar
proveito de cargos públicos e de situações políticas. A maioria deles comunga do
individualismo, e o modelo europeu, para muitos, continua sendo uma referência para a
nação brasileira.
Em
Quase Ministro o mote do enredo apresenta as aspirações das personagens que
tencionam obter favores políticos do Estado através de um jogo manipulado pelos
interesses pessoais e de grupos.
Machado procura problematizar, em seus diálogos, a idéia da cultura política que se
está construindo. Fica demarcado o comportamento político, em que as negociatas tornam-
se atitudes comuns. Observam-se, em quase todas as cenas, movimentos de interesseiros
que pretendem obter alguma vantagem do quase ministro Martins.
Sobre o momento histórico do Brasil, quando da edição da peça de Machado, 1863,
cabe salientar que, após movimentos revolucionários, alguns de caráter separatistas,
ocorridos em algumas regiões do Brasil, como a Cabanagem (no Pará), a Balaiada (no
212
Maranhão), a Farroupilha (no Rio Grande do Sul), a Sabinada (na Bahia), a dos Liberais
(em São Paulo e Minas Gerais), e a Praieira (em Pernambuco),
266
começara, em 1850, a se
consolidar o equilíbrio político do Império, sob a égide do Parlamentarismo, cujo
ministério era ocupado por um acordo de conciliação de interesses entre as elites que se
faziam representar no Partido conservador e no Partido Liberal que, via de regra, possuíam
os mesmos interesses.
No entanto, conforme comenta José Murilo de Carvalho, “A partir da década de 60,
liberais e conservadores envolveram-se em grandes discussões sobre o governo
representativo. O ataque Liberal dirigia-se, sobretudo, ao Poder Moderador que, segundo
eles, falseava o governo parlamentar”. Tal discordância centrava-se no fato de que o
Imperador, outorgado pela Constituição, tinha o poder de indicar os ministros, sem
necessitar obedecer à maioria da Câmara. Desse poder, os liberais reclamavam e
denominavam de poder pessoal. Os conservadores justificavam essa condição, pois a lei
contemplava essa ação do Imperador.
267
Na trama Quase Ministro, de Machado de Assis,
percebe-se a alusão a este tipo de nomeação, quando, na primeira cena, a personagem
Martins comenta com Silveira que caíra o Ministério e ele poderia ser indicado para um dos
cargos de Ministro. Machado mostra as ações rotineiras dos políticos, como se operam
estratégias para se obter o poder, desnudando a vaidade, a futilidade, a hipocrisia e a
ambição. Desmascara o jogo das relações sociais, enfatizando o contraste entre essência e
aparência. O sucesso financeiro e social é, quase sempre, o objetivo último dessas
personagens.
266
Ibid., p. 23.
267
CARVALHO, José Murilo de, op. cit. p.64.
213
Na cena II, por exemplo, Machado anuncia como a cultura brasileira vai
concedendo lugar aos políticos. Ao chegar à casa de Martins, José Pacheco
268
, cronista
político que diz assinar seus artigos com o pseudônimo de Armand Carrel, procura mostrar
os princípios de sua profissão, comentando com o anfitrião:
Vossa excelência dá-me licença?... Em política ser lógico é ser profeta.
Apliquem-se certos princípios a certos fatos, a conseqüência é sempre a
mesma. Mas é mister que haja os fatos e os princípios... É o que lhe digo.
Depois dos meus artigos, principalmente o V, não é lícito a ninguém
recusar uma pasta, só se absolutamente não quiser servir o país. Mas, nos
meus artigos está tudo, é uma espécie de compêndio. Demais porque a
situação é nossa; nossa, repito, porque sou do partido de vossa
excelência. (...) O que eu pergunto é se pretende governar com energia ou
com moderação. Tudo depende do modo. A situação exige um, mas o
outro também pode servir...Sim, a energia é isso, a moderação,
entretanto... (
mudando de tom)... O que nunca me aconteceu foi atacar
ninguém; não vejo as pessoas, vejo as idéias. Sou capaz de impugnar
hoje um ato de um ministro e ir amanhã almoçar com ele.
269
Seu discurso constitui, idealmente, um território de interlocução, onde se
confrontam diferentes fontes de informação. Explicitamente, Machado coloca em evidência
os textos publicados em jornais. Ao inserir José Pacheco, o cronista de textos prontos com
discursos moldáveis, Machado ironiza, também, a consistência do discurso de órgãos da
grande imprensa, enquanto interlocutores nas relações da nação. Na fala aparece, não o
interesse, mas também a vontade de negociação. Neste sentido, na perspectiva de Machado,
tudo, na esfera política, pode ser adequado, manipulado.
268
Remeto ao estudo realizado por Helena Tornquist, que afirma que o elogio aos próprios discursos e a
utilização do pseudônimo Armand Carrel podem ser vistos como uma ironia do escritor “ao afrancesamento
da sociedade brasileira de sua época”, e também por ser Armand Carrel um importante e sério jornalista, mas
este nome, no texto, é usado para “nomear um indivíduo de características opostas”. TORNQUIST, Helena,
op. cit., p.225.
269
ASSIS, Machado de. Quase Ministro, op. cit., p. 138.
214
No decorrer da referida cena, Silveira alerta seu primo Martins para os problemas
que terá com bajuladores, mesmo sendo ainda um “quase ministro”. Martins comenta que
tal preço não valeria o trono”.
270
A fala de Martins revela, portanto, que a personagem
demarca um limite para a aceitação do cargo. Ele demonstra não estar corrompido pela aura
do poder que o cargo ostenta. Há, na fala desta personagem, a anunciação de ideais que
norteariam sua tolerância à aceitação do cargo. Presencia-se, neste fato, a sugestão de
Machado que nem tudo, ou melhor, nem todos são
corrompíveis, pois ainda restam alguns
com bons princípios na sociedade.
Em
Quase Ministro, a nação e a nacionalidade se aproximam de um conceito de
nação como constitutivo sociológico-político, na medida em que as personagens
representam somente segmentos da elite social. Percebe-se, também, que após décadas da
Independência, o enredo coloca, em cena, os brasileiros no comando político. No entanto,
eles se mostram dissimulados no trato das questões que envolvem o poder no/e do Estado:
são indivíduos que agem em busca de seus próprios interesses, não importando quão
absurdo possa ser o viés proposto para obtê-los, buscando somente obter proveito do
Estado, embora o discurso seja o do interesse público e o do bem comum. Excetuando
Martins, o Estado é visto pelos demais, em
Quase Ministro, como algo de onde se pode
tirar proveito. Tal fato, que emerge do enredo, traz à tona a dissimulação da elite que
comanda a nação brasileira. Portanto, Machado, nesta peça, denuncia as fraturas no alicerce
da nação em processo de construção da sua identidade.
Neste aspecto, verifica-se que um confronto entre alguns que valorizam o
brasileiro, outros, o estrangeiro. Excetuando as personagens Martins e Silveira, as outras
são mostradas como
personas de índole duvidosa. Conforme afirma Schwarz, Machado
270
Ibid., p. 140.
215
procura ressaltar, em Quase Ministro, personagens que pretendem obter favores, colocando
em cena a ação de diferentes tipos de parasitas na sociedade.
271
Na penúltima cena, quando estão todos reunidos, Martins anuncia que não será mais
ministro. Os especuladores vão embora, restando apenas Martins e Silveira. Na cena final,
Martins e Silveira, sozinhos, comentam:
MARTINS – Que me dizes a isto?
SILVEIRA Que hei de dizer! Estavas a surgir... dobraram o joelho:
repararam que era uma aurora boreal, voltaram as costas e se vão em
busca do sol... São especuladores!
MARTINS – Deus te livre destes e de outros...
SILVEIRA – Ah! livra... livra. Afora os incidentes como o de Botafogo...
ainda não me arrependi das minhas loucuras, como tu lhes chamas. Um
alazão não leva ao poder, mas também não leva à desilusão.
272
Martins parece conformado com o desenrolar dos fatos. A desilusão com as
atitudes de seus convivas mostrou-lhe o cerco de interesseiros que envolvem os políticos.
Silveira, por sua vez, reafirma sua descrença na política, preferindo o convívio com os
cavalos. Ao apresentar tal associação, Machado, através dessas imagens, não denuncia
os problemas nas relações políticas de seu tempo, mas os valores vigentes na sociedade da
sua época.
Em
Caiu o Ministério!, França Júnior destaca também alguns momentos
significativos à discussão. O enredo focaliza a ascensão do Conselheiro Brito ao cargo de
Ministro e a queda do Ministério de que participa.
Na cena XIV, estão Brito, o Ministro da Guerra, o Ministro da Justiça, o Ministro do
Império, o Ministro de Estrangeiros, o Conselheiro Felizardo e o Doutor Monteirinho:
271
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 16.
272
ASSIS, Machado de. Quase Ministro, op. cit., p. 150.
216
MINISTRO DO IMPÉRIO – Basta ser de sua confiança...
BRITO – Para ser recebido de braços abertos.
FELIZARDO
(Apresentando o Doutor Monteirinho.) –Aqui está o
homem, o Doutor Monteiro, meu sobrinho, filho de minha irmã Maria
José; e que acaba de chegar da Europa, razão pela qual ainda não tomou
assento na Câmara.
BRITO
(Admirado.) Senhor Doutor, folgo muito de conhecê-lo. (Baixo
a Felizardo.)
Acho-o, porém, tão mocinho.
FELIZARDO Formou-se o ano passado em São Paulo.
(Baixo.) Que
inteligência, meu amigo!
DR. MONTEIRINHO Saí apenas dos bancos da academia, é verdade,
meus senhores; mas tenho procurado estudar com afinco todas as grandes
questões sociais que se agitam atualmente. A minha pena é conhecida
no jornalismo diário e nas revistas científicas. Na polêmica, nas questões
literárias, nos debates políticos, nas diversas manifestações, enfim, da
atividade intelectual, tenho feito o possível por criar um nome.
273
A presença de interesseiros, evidenciada nos bastidores do processo de nomeação de
Ministros, no Brasil, na Monarquia ou na República, aproxima a peça
Caiu o Ministério!,
de França Júnior, com o panorama deflagrado em
Quase Ministro, de Machado.
No ato segundo, cena I, quando estão conversando Ernesto e Filipe:
FILIPE – Fiz-me repórter, nas horas vagas escrevo versos, e daqui para
jornalista é um pulo.
ERNESTO – És mais feliz do que eu.
FILIPE – Por quê?
ERNESTO Porque não pretendes sentar-te a uma grande mesa que
neste país, chamada do orçamento, e onde, com bem raras exceções,
todos têm o seu talher. Nesta mesa uns banqueteiam-se, outros comem,
outros apenas lambiscam. E é para lambiscar um bocadinho, que venho
procurar o ministro.
274
Neste diálogo, França Júnior, assim como Machado, em Quase Ministro, coloca em
evidência, através da fala da personagem Ernesto, o jogo de interesses que reflete, no
contexto brasileiro, o uso privado do bem público.
273
FRANÇA Júnior. Caiu o Ministério!, op. cit. p. 203.
274
Ibid., p. 191.
217
Na trama de Caiu o Ministério!, Filipe é um caixeiro de armarinho, um vendedor,
que, por estar desempregado, se torna repórter. Ernesto aparece como alguém que quer tirar
proveito de um momento político, utiliza a metáfora da “grande mesa” para mostrar que o
Estado é um lugar onde fica localizada essa mesa, na qual alguns podem banquetear-se,
enquanto outros devem se contentar com migalhas.
Na cena seguinte, estão as mesmas personagens Filipe e Ernesto com o Conselheiro
Felício De Brito:
ERNESTO (Cumprimentando.) – Às ordens de Sua Excelência.
FILIPE
(Cumprimentando.) – Excelentíssimo.
BRITO – O que desejam?
ERNESTO – Vinha trazer esta carta para Sua Excelência e implorar-lhe a
sua valiosa proteção.
BRITO
(Depois de ler a carta.) – Sim, senhor. Diga ao Senhor Senador
que hei de fazer todo o possível por servi-lo. Vá descansado.
ERNESTO – Eu tenho a observar a Sua Excelência...
BRITO – Já sei, já sei.
ERNESTO – Que fui classificado em primeiro lugar.
FILIPE – Humilíssimo servo de Sua Excelência. Desejava saber se já há
alguma coisa de definitivo.
BRITO – Pode dizer na sua folha que hoje mesmo deve ficar preenchida
a pasta da Marinha; que o governo tem lutado com dificuldades... Não,
não diga isto.
275
Nesta cena é representada a prática recorrente do apadrinhamento em nomeações e
indicações a cargos públicos. Embora Ernesto ressalte que foi classificado “em primeiro
lugar”, em concurso público, o mérito torna-se secundário frente à interferência/influência
do Conselheiro que se propõe atender o pleito do
Senhor Senador. Neste caso, portanto, o
mérito é substituído pela concessão de favor. O descaso com a nomeação do Ministro da
Marinha, que, conforme a cena, é tratada de maneira irônica, confirma as concepções do
estrangeiro. O Conselheiro Brito conduz a informação, modela o que deve sair no jornal.
275
ASSIS, Machado. Quase Ministro, op. cit., p.192.
218
Como na peça de Machado, França Júnior, em Caiu o Ministério! mostra a cultura
política da época, contaminada por interesses pessoais que se sobrepõem aos da nação. Na
peça de França Júnior, tal qual na de Machado de Assis, verifica-se que, ao se dirigirem ao
Ministro, as personagens estabelecem um processo de negociação que, por sua vez, anuncia
o que tem sido a prática política, ou seja, os embates ideológicos e os interesses coletivos
acabam sucumbindo frente aos interesses particulares.
A peça Como se fazia um deputado, ao deslocar o foco da ação do contexto da
Corte, representação a segmentos da sociedade interiorana. A peça traz à cena o terreiro
da Fazenda do Riacho Fundo, mostrando a casa grande, árvores e, ao fundo, morros com
plantações de café. As personagens destacadas nesta leitura são o Major Limoeiro, o
Tenente-Coronel Chico Bento e Henrique, bacharel em Direito.
Nesta peça, mesmo representando o interior do Brasil, França Júnior mostra uma
realidade que se assemelha muito à das peças que representam segmentos da sociedade da
Corte. Cabe destacar que ainda permanecem o jogo de interesses e o poder restrito a um
grupo que comanda não as ações do Estado, mas ainda interfere sobre o futuro político
de seu povo. Um dos pontos que se demarca como diferenciador nesta peça de França
Júnior, em relação às outras duas, está no fato do poder político se deslocar para as mãos
dos latifundiários, dos fazendeiros. E, sobre as questões políticas, estes até utilizam certa
ironia ao se referirem à criação e à oposição entre os partidos políticos.
Na cena II, Limoeiro divaga:
LIMOEIRO – Até que enfim! vem o rapaz formado, com uma
brilhante carreira na frente, e pronto para dar sota e basto (se não for
tolo) nesta freguesia, onde a maior capacidade, depois do tenente-
coronel Chico Bento com seus latinórios, é este seu criado, que mal
219
sabe ler e escrever, mas que tem ronha como trinta. O rapaz, se quiser
ser alguma coisa, há de aprender na minha escola.
276
A partir desta concepção do Coronel Limoeiro, percebe-se que França Jr. denuncia o
coronelismo, que já pontuava a cena política do seu tempo. O referido sistema se sustentava
pelo compromisso entre o poder privado e o poder público, que derivava de um longo
processo histórico a se enraizar na estrutura social.
277
Numa próxima cena, estão Limoeiro e Chico Bento, discutindo sobre o futuro de
Eduardo, advogado recém formado, que retorna da Capital para morar com o tio:
CHICO BENTO – Estou às ordens. (Entra um negro e põe as duas
cadeiras em cena
.)
LIMOEIRO – Tenente-coronel, cartas na mesa e jogo franco. É preciso
arrumar o rapaz; e não há negócio, neste país, como a política. Pela
política cheguei a major e comendador, e o meu amigo a tenente-coronel
e a inspetor da instrução pública cá da freguesia.
CHICO BENTO – Pela política, não, porque estava o partido contrário
no poder; foi pelos meus merecimentos.
278
A conversa entre os fazendeiros vai retratando não o panorama político em que
estão inseridos, como também o interesse em sua continuidade, através do encaminhamento
de Henrique na política e de seu casamento com Rosinha.
LIMOEIRO – É um negócio, diz muito bem; porque, no fim de contas,
estes casamentos por amor dão sempre em água de barrela. O tenente-
coronel compreende... Eu sou liberal... o meu amigo conservador...
CHICO BENTO – Já atinei! Já atinei! Quando o Partido Conservador
estiver no poder...
LIMOEIRO – Temos o governo em casa. E quando o Partido Liberal
subir...
CHICO BENTO – Não nos saiu o governo de casa. Vivório! E se formar
um terceiro partido?
LIMOEIRO – Ora, ora... Então o rapaz é algum bobo?! Encaixa-se no
terceiro partido, e ainda continuaremos com o governo em casa.
276
FRANÇA Júnior. Como se fazia um deputado, op. cit., p. 129.
277
COSTA, Emília Viotti da, op. cit., p. 132-133.
278
FRANÇA Júnior. Como se fazia um deputado, op. cit., p. 131
220
CHICO BENTO – Vejo que o major é homem de vistas largas.
LIMOEIRO – E eu vejo que o tenente-coronel não me fica atrás.
279
Este diálogo mostra-se muito longe dos ideais patrióticos, mas muito próximo das
tratativas de negociação dos interesseiros de
Quase Ministro e Caiu o Ministério!. O
panorama representado agora anuncia um espaço do Brasil, circunscrito aos desmandos e
artimanhas dos fazendeiros: os coronéis. Tal sistema agregava um vasto séqüito que incluía
a família, a parentela, os escravos, os agregados, os capangas. Todos dependiam dele, de
seu poder, de seu dinheiro, de sua proteção. Percebe-se esta alusão, no início da peça, ao
serem nomeadas as personagens: “Escravos e escravas da Fazenda do Riacho Fundo,
votantes, capangas, povo”.
Nota-se, nesta peça, portanto, a prática recorrente do apadrinhamento, aqui
diretamente explicitada nas eleições aos cargos públicos: evidencia que o coronelismo
controlava, não somente a terra, o trabalho, a polícia e a justiça, mas principalmente o
destino das pessoas e do lugar.
Quase Ministro, Caiu o Ministério! e Como se fazia um deputado evidenciam, de
certa maneira, o retrato de uma nação brasileira contaminada pelos aproveitadores, onde o
Estado é um grande silo capaz de abastecer seus interesses e vaidades.
279
Ibid., p. 131.
221
3. 6 O estrangeiro e a nação brasileira
3.6.1 O olhar do imperialista
Assim como se observa nos enredos das peças estudadas a presença de brasileiros
que possuem sentimentos diferenciados sobre a nação brasileira, verifica-se, em outros
enredos, o olhar do estrangeiro sobre a nação que se delineia.
Uma das peças que se refere ao olhar estrangeiro com interesse imperialista é
Cocota. Artur Azevedo põe em cena o espanhol Bergaño, demarcando seu lugar de
estrangeiro, deixando claro que a nação brasileira não é sua pátria, mesmo morando no
Brasil, e se considera autorizado a apresentar sua preocupação e descontentamento com a
mentalidade escravocrata e o uso do trabalho escravo no Brasil. Nesse caso, aparece, no
olhar estrangeiro, um certo estranhamento, sendo a diferença tratada como deslocamento, e,
até mesmo, como atraso ou inferioridade.
Bergaño, na cena III, evidencia sua concepção eurocêntrica “moderna” em relação
ao fazendeiro “arcaico”, anunciada por seu interlocutor, o fazendeiro Serapião:
SERAPIÃO Pois é! Como são notáveis antes de ser estadistas, quando
são estadistas, são estadistas notáveis. Mas não me interrompa! Pena
tenho eu que não esteja nas minha mãos restituir aos senhores dos
ingênuos a propriedade de que foram esbulhados pela lei de 28 de
setembro; (
Inflamando-se) essa lei bárbara que obriga um homem a
educar pequenos que não são seus filhos, e quê, se são seus filhos. Não
são seus escravos! ... ouvir um discurso do nosso presidente, e se
depois não mudar de opinião...
BERGAÑO O presidente é estrangeiro como eu... nada tem que ver
com isso. Ele que vá vendendo o seu café: já não faz pouco!
SERAPIÃO Meia dúzia de homens como aquele, e eu lhe diria com
quantos paus os abolicionistas haviam de fazer uma canoa!
BERGAÑO – Diga antes – uma jangada!
280
280
AZEVEDO, Artur, op. cit. p. 304.
222
Em suas falas e ações, Bergaño se afirma como um estrangeiro que apresenta o
caráter e sensatez que seu interlocutor, o brasileiro Serapião, não tem. Ele demonstra
preocupação com as questões sócio-políticas brasileiras, a partir do ponto de vista do
estrangeiro, isto é, do “civilizado”.
Na cena III, estão conversando Bergaño e Serapião:
BERGAÑO Bravo! (Deixando de passear.) E sobre abolicionismo...
que há?
SERAPIÃO Vejo que se projetam grandes festejos para o dia 25 de
março, em que, no território do Ceará, ficará livre o último escravo... por
pataca e meia! Parece que um jangadeiro virá à Corte receber as ovações
dos vadios...
BERGAÑO – Perdão! Dos abolicionistas!
SERAPIÃO É a mesma coisa! Dizem até que vai haver quermesses...
Falar a verdade, eu ignoro o que isso é; mas com certeza deve ser grossa
patifaria.
BERGAÑO – Ah! Ah! Ah!
SERAPIÃO Ri-se?... Pois ria-se.. na certeza de quê, quando ao tal
abolicionismo, não tomo nada!
BERGAÑO – Prefere a erva virgiliana!... Sua alma, sua palma!
SERAPIÃO Sim, senhor!... porque eu estou convencido, como disse
um estadista notável, eu, para o negro, a verdadeira liberdade é a própria
escravidão! Pena tenho eu que não esteja nas minhas mãos, como disse
um outro estadista...
281
Nesta conversa, o estrangeiro Bergaño se revela irônico em relação às considerações
do seu interlocutor. Bergaño parece estar preocupado com os interesses europeus no Brasil.
Sua fala sugere superioridade civilizadora do europeu frente ao atraso do brasileiro. Artur
Azedo coloca em cena este tipo estrangeiro, cujo caráter e ações exercem influência capaz
de convencer o fazendeiro, conforme observamos anteriormente, a contratar imigrantes
italianos para trabalharem em suas terras e, assim, libertar os escravos, interferindo
281
Ibid., p. 297.
223
diretamente na mudança no contexto onde habita, em um rearranjo que favorece, embora
libertária, em tese, os interesses externos.
Ainda outros sentimentos sobre a nação brasileira vão sendo, nas peças em estudo,
colocados pelos estrangeiros. Inicialmente, traz-se à cena mais uma vez a peça
Sangue
limpo
, de Paulo Eiró. O contexto do processo de declaração da Independência do Brasil,
diferentemente do anunciado por Rafael, nesta peça, recebe do nobre português D. José de
Saldanha um outro olhar.
Na cena II, D. José responde ao militar português que comentara sobre a vontade de
D. Pedro I de tornar o Brasil independente e de ser o seu rei:
O que prova isso? Que ele sabe diferenciar o falso e verdadeiro, e
considera o futuro com olhos perscrutadores. E, entretanto, parecia que a
Providência se propunha a renovar os destinos da velha Lusitânia!
Amigo, a mudança da Corte para o Novo Mundo era talvez a realização
do único meio de salvar Portugal. Quando a bandeira de Ourique
esvoaçasse neste imenso país, por onde se derramaria a superabundância
de nossa população, cujos produtos encheriam nossos cofres, cujas
florestas forneceriam o material para nossos estaleiros; quando
chamássemos a este grande mercado as nações industriosas do mundo,
estaria sacudido para sempre o jugo pesado, que nos impõe a Inglaterra, o
cadáver da monarquia erguer-se-ia do túmulo em que dorme há três
séculos, seríamos de novo senhores do Atlântico... Aqui estava uma
epopéia, não as das lutas estéreis do Oriente, mas as das lides pacíficas e
dos frutos sazonados das civilizações. Os portugueses rejeitaram esse
brilhante destino. Fazia-lhes falta o dossel da realeza, o grupo matizado
dos Cortesãos! Estavam tão ermos os paços de Belém! Clamaram em
altas vozes pelo seu monarca êsses vassalos zelosos: D. João obedeceu e
abandonou o Brasil. Desde esse dia está consumada irremissivelmente a
separação. De hoje avante o oceano rolará entre os dois povos.
282
282
EIRÓ, Paulo, op. cit. p 30.
224
A longa fala do nobre português procura definir não o contexto em que se insere
a Independência, mas principalmente o sentimento da fidalguia portuguesa, que via o Brasil
como um grande celeiro para abastecer a elite do Império colonizador. Claro que, em
função de sua posição e de seu caráter, o Brasil, para D. José, é somente um espaço
territorial, colonial, não constitui uma nação. D. José é uma personagem profundamente
marcada pelo pressuposto da superioridade cultural e civilizacional do colonizador. Suas
palavras expressam também um tipo de mensagem que vangloria a ação de um povo que se
julga superior a outro. O preconceito cultural se institui como uma das suas imagens que
alude à superioridade sobre o brasileiro. A fala de D. José, portanto, passa a idéia de uma
unidade ideal, fundamentada na raça pura, na qual a tradição e os direitos podem ser
desfrutados apenas por aqueles que têm linhagem, no caso, portuguesa.
Na peça
O tipo brasileiro, Mr. John Red anuncia um outro sentimento sobre a nação
brasileira. Como foi mencionado, o inglês é um tipo aproveitador, que tenta apresentar
seu projeto absurdo para
encanar suco de caju.
Na cena VI, observamos como o inglês vê o Brasil:
John Natureze aqui fica muite grandiose. Brasileira não sabe aproveita
riqueza de Brasil; estar muito preguiça. Não estar precisa planta nesta
terra: fuma e milha nasce nas telhas; quem quer sustenta sua cavala de
graça, manda bota no campo de santa Ana. (...) Laundu de Bahia faz bole
com perna, vira a cabeça, beiça trema e fica caída, arredia cabela daqui.
(
mostra sua nuca) Mim estar muite incomodada com esta cousa.
283
França Júnior concede ao inglês a oportunidade de estabelecer um julgamento sobre
o Brasil. Em suas palavras, nota-se que a natureza brasileira recebe um olhar destacado do
283
FRANÇA Júnior. O tipo brasileiro, op. cit., p.149.
225
inglês. O Brasil é um lugar que precisa ser mais explorado. Fica clara a posição de
superioridade de alguém oriundo de nação imperialista sobre os colonizados, na medida em
que, ao destacar a fertilidade da terra e estranhar a cultura, parece estar apresentando-a
como primitiva, além de se colocar num lugar que lhe permite analisar a nação que não é a
sua.
na peça
Caiu o Ministério! França Júnior coloca em cena o inglês Mr. James,
tecendo, juntamente com Raul, opiniões acerca da situação política da nação brasileira.
Na cena XIV, do primeiro ato, Mr. James conversa com Raul:
MR. JAMES – Pois então mim estar inglês, mim estar na direita de faz
crítica do Brasil.
RAUL – A maldita política é que tem sido sempre a nossa desgraça.
RAUL Mas no número destes que calam a boca com empregos não se
compreendem os republicanos evolucionistas; aqueles que, como eu,
querem o ideal dos governos sem sangue derramado, sem comoções
sociais...
MR. JAMES Oh! Republicana evolucionista estar a primeira de todos
republicanas. Espera de braço cruzado que república aparece; e enquanto
república não aparece, republicana estar ministra, deputada, senador,
conselheira, tuda. Republicana evolucionista estar partida que tem por
partida tira partida de todas as partidas.
RAUL – Não é nos partidos que está o nosso mal.
MR. JAMES Sua mal de voucês está no língua. Brasileira fala muito,
faz discursa
very beautiful, mas país não anda pra adiante com discursa.
RAUL – Tem razão.
MR. JAMES - País precisa de braças, de comércia, de indústria, de
estradas de ferro...
284
Neste diálogo, o inglês Mr. James acredita que um outro problema residiria na
excessiva preocupação com a retórica nos discursos e na falta de praticidade para a
resolução dos problemas. A pouca eficiência dos políticos e a inexistência de infra-estrutura
se configuram como graves problemas no contexto brasileiro, anunciado por Mr. James. Ao
284
FRANÇA Jr. Caiu o Ministério!. op. cit., 184-185.
226
apresentar tais personas, em seus enredos, França Júnior coloca os estrangeiros num lugar
que lhes permite opinar e agir sobre o contexto da nação brasileira de seu tempo.
As situações apresentadas em cena por Artur Azevedo, Paulo Eiró e França Júnior
denunciam novas formas de colonialismo, no sentido dos laços históricos da
Independência, ou seja, o que se percebe é o deslocamento do poder exercido por Portugal,
conforme presenciamos na fala de D. José, para outras nações imperialistas, a Inglaterra,
em especial.
Nesta perspectiva, vêem-se os autores brasileiros projetarem no olhar do espanhol e
dos ingleses, provenientes de nações colonizadoras, imperialistas, mesmo que transitem por
segmentos da elite da sociedade da província ou da Corte do Rio de Janeiro do século XIX,
um sentimento de superioridade em relação aos brasileiros.
3.6.2 O estrangeiro como imigrante
Sobre o contexto do século XIX, convém inicialmente registrar que a vinda da Corte
Portuguesa, em 1808, abriu um espaço para a atuação de estrangeiros no Brasil. Com
relação a essa imigração, Giralda Seyferth afirma que, “os primeiros alemães classificáveis
como imigrantes se estabeleceram no Rio de Janeiro, a partir de 1808, com atuação no
comércio de exportação e importação”. Os assentamentos tiveram seu reinício em 1845,
com a fundação de Petrópolis, na província do Rio de Janeiro, “por imigrantes agenciados
227
pelo major J. F. Koeller”.
285
Com o trabalho efetivo dos agenciadores e a propaganda de
empresas brasileiras, muitos camponeses, e também trabalhadores urbanos, que
objetivavam se tornar proprietários de terras, vieram para o Brasil durante o Império.
Seyferth afirma que
Os idealizadores da política imigratória queriam camponeses e artesãos,
mas as informações disponíveis mostram uma certa heterogeneidade:
existe uma predominância de indivíduos qualificados como “lavradores”
(oriundos de diversos estados alemães, principalmente da Pomerânia),
além de artífices, operários e outros trabalhadores urbanos, professores,
refugiados políticos e até indivíduos com recursos financeiros que
puderam dedicar-se às atividades comerciais e industriais.
286
Mediante os problemas que a inserção dos trabalhadores “livres” brasileiros traziam
para o mercado de trabalho, em especial a produtividade dessa mão-de-obra, os grandes
fazendeiros optaram pela imigração em massa de um contingente livre e liberto de
estrangeiros com o objetivo, neste caso, de trabalharem na agricultura.
Esses imigrantes, oriundos das regiões mais diversas da Europa, assolados pela
pobreza, pela desapropriação material e cultural, vêm para o Brasil não na aventura de
“fazer” a América, como largamente se propaga. O movimento imigratório, de modo mais
amplo, pode ser entendido como umas das principais saídas para substituir o trabalho
escravo nas fazendas.
228
Cabe destacar que os imigrantes não foram submissos às condições de trabalho
impostas no Brasil, nem se colocaram no mercado de forma passiva. Os imigrantes
europeus travaram um esforço “titânico” para a preservação dos seus hábitos como recurso
de sobrevivência pessoal, social e cultural. Em decorrência, a condição de desenraizamento,
implícita aos movimentos migratórios, não afetou por completo os imigrantes europeus,
podendo ser considerada como um dos fatos que também contribuiu com um dos
descompassos na formação da nação brasileira.
Faz-se significativo ressaltar que das obras de França Júnior, Dois proventos em um
saco, através da empregada Catarina, e Defeito em família, com o mordomo Ruprecht, se
inserem como representações de imigrantes alemães, conforme anuncia Giralda Seyferth,
em função do lugar, da postura e do olhar do brasileiro sobre eles. Optou-se, no entanto, por
classificá-los como estrangeiros, por não se inserirem na órbita do trabalho produtivo, na
lavoura cafeeira ou no comércio, demarcando como imigrantes os italianos das peças Como
se fazia um deputado, de França Júnior, e Cocota, de Artur Azevedo.
Na primeira peça, tem-se na personagem Pascoal Basilicata, um italiano, a
representação do imigrante. Nas falas de Pascoal, o autor utiliza a língua materna. Não há,
entretanto, a presença de intérprete que intermedia a conversa com os fazendeiros Limoeiro
e Chico Bento. Pascoal se apresenta:
PASCOAL – (Entrando com uma tábua ao ombro, na qual se vêem
bonecos, cachorros, vasos, papagaios e santos de gesso.)
Io sono mascati
Comprate senhori
Uceli, macachi
E meie vasi de fiori
Com quello que ganho
No ganho niente,
286
Ibid., p. 280.
229
Perche non guadagno,
Ne centro per cento.
I sono mascati, etc., etc.
Nom volete comprare qualche cosa?
Abbiamo cavalii, cani, gati, ogni santi del Paradizo, vasi di Fiori,
Vê-lo dono per pouco danaro...
287
No enredo, conforme comentado, o imigrante italiano é inserido no momento em que se
a votação para deputado. Sobre tal situação, cabe destacar, conforme lembra Emília Viotti
da Costa, que uma das características do sistema de votação da época era impedir que “os
religiosos regulares, os estrangeiros não naturalizados e os criminosos” votassem. 288
Na peça, convencido a mudar de nome, o italiano entra na farsa armada pelos coronéis, e se
apresenta para votar como “Albino Catalão Carapuça dos Enjeitados”, que ele pronuncia “–
Alano, Catabine, Caranjolle do Singipuça”. A farsa é descoberta, mesmo com a insistência
do mascate em afirmar: “Si sinhori, sono brasilero”.
289
A insistência de Pascoal em afirmar que é brasileiro está muito longe de ser
associado a qualquer sentimento de nacionalidade. O que fica claro com essas palavras é
sua adesão à proposta dos representantes da elite dominante na farsa da eleição. O interesse
em obter algum lucro com tal processo indica, ao ver dos autores, especificidades do caráter
do italiano. Primeiro, ele nega sua origem, sua nacionalidade nesse instante em que
tenciona votar; segundo, ele se diz brasileiro, que referenda o embuste da eleição. Não
importa ao mascate pertencer à nação italiana ou brasileira, pois tal característica não
caberia dentro da expectativa de ganhos que advêm da proposta dos fazendeiros. Como
imigrante, pobre, livre, a sobrevivência impera sobre a questão da nacionalidade.
287
AZEVEDO, Artur, op. cit., p. 321.
288
COSTA, Emília Viotti da, op. cit., p. 52.
289
AZEVEDO, Artur, op. cit., p. 321.
230
A outra peça de Artur Azevedo, Cocota, também mostra os imigrantes italianos
conduzidos pelo sentimento de melhoria de vida, sendo contratados para substituir o
trabalho escravo nas fazendas.
Diferentemente do italiano Pascoal, em
Como se fazia um deputado, de França
Júnior, os imigrantes necessitam de intérprete na interação com os que aqui habitavam. Se,
anteriormente, foi destacado que os fazendeiros ficam à mercê de tal interlocutor, também
os imigrantes permanecem na mesma situação. O que diferencia também o panorama de
imigração das referidas peças é o tipo de trabalho. No caso de
Cocota os imigrantes
contribuem para aceitarem a indução do intérprete:
Se for aceito o convite, ele os levará para o Hotel do Caboclo e depois de
um fino coquetel, um banquete suculento e um sono reparador, partirão
amanhã (...). Esse velho é bonachão, e me parece que deveriam topar essa
brincadeira, e depois e depois caros amigos pernas para que te
quero!
290
Os imigrantes acabam sendo contratados para trabalharem nas terras do fazendeiro
Gregório. No enredo, constata-se que não perpassa nas falas dos imigrantes qualquer alusão
à nação brasileira. Fica claro que o Brasil, ou melhor, a “nação” brasileira, é um lugar que
proporcionará sobrevivência, nada mais.
Nesta perspectiva, mesmo que, se por um lado, as peças demarquem a presença dos
imigrantes como uma das constituintes da nação, não se pode deixar de evidenciar que seria
necessário se sentir em uma nação, se “imaginar” como tal para nela se reconhecer.
291
Logo, nessa confluência da situação do imigrante nas peças Como se fazia um
deputado
e Cocota, o pensar sobre a nação, a partir do olhar dessa personagem, encontra-se
290
Ibid., p. 321.
291
HOBSBAWM, Eric, op. cit.,18. .
231
um tanto distanciado do que se refletiu neste estudo. Não cabe, nessas representações, ao
imigrante, um olhar, um sentimento sobre a nação brasileira.
232
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As peças teatrais se instituem como uma espécie de ponte entre a realidade comum
que nos rodeia e o mundo do indecidível, que escapa à percepção, um universo mensurável
ou incomensurável, e, muitas vezes, incompreensível. Dentre outras, tais especificidades
ajudaram-me a ancorar a eleição da textualidade teatral para a construção desta pesquisa. E
na medida que fui efetuando o exame das peças, percebi uma aproximação com o que
Roland Barthes afirma:
o texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre
tomado por um produto, por um véu acabado, por trás do qual se
mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos
agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha
através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido nessa
textura o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolve ela
mesma nas secreções construtivas de sua teia.
292
Não foi por acaso que, no percurso realizado para a elaboração deste estudo, na
concretização da pesquisa e análise, deparei-me, muitas vezes, com o entrelaçamento da
233
teia do texto que se construía. Percebi, então, que na proposição de seguir em frente, na
perspectiva de elaborar uma obra aberta, precisava cuidar do pensamento orientador na
construção das linhas –“fios”– que foram utilizados para tecerem esta tese.
Inicialmente, apresentei o percurso da história do Teatro brasileiro, em que se
podem observar textos catequéticos, dramas, melodramas, comédias, farsas, operetas e
outros. Salientei que as textualidades selecionadas neste estudo, do século XIX e início do
século XX, ficaram circunscritas ao gênero relacionado à comédia de costumes, à revista e
ao drama.
Após a definição das as peças teatrais como o objeto de pesquisa, pela incidência
significativa no âmbito das peças lidas, defini como recorte para a análise a presença de
personagens estrangeiras ou a de alusão a elas. Adentrei, então, no exame de quais
segmentos sociais são trazidos à cena nas peças teatrais dessa época, quando se buscava
construir e consolidar a identidade nacional brasileira, em decorrência da emancipação
política em relação a Portugal.
Nesta perspectiva, procurei analisar como os autores interpretaram ou
compreenderam a sociedade brasileira vendo-a, não somente em relação aos segmentos
sociais retratados, mas também como ela se constitui tendo em vista o “Outro”, o
estrangeiro. A partir daí, transitei por concepções de nação que podem ser apreendidas a
partir das personagens brasileiras e estrangeiras nas peças em estudo.
Sobre o tempo demarcado, é importante destacar que abrange peças escritas ou
situadas num período decisivo para a história brasileira: a Declaração da Independência, em
1822, a Abolição da Escravatura, em 1888, e a Proclamação da República, em 1889.
Somadas à influência de imigrantes europeus que vieram trabalhar em terras brasileiras, tais
292
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 71.
234
especificidades inscrevem nos textos escolhidos marcas importantes da história brasileira,
pois contribuíram para as mudanças do panorama social e político do país.
Assim, a delimitação de tempo – final da primeira metade do século XIX e primeira
década do século XX para escolha das peças teatrais estudadas não foi aleatória. Nos
textos destas peças, no referido período, estão representadas as repercussões que os
referidos acontecimentos tiveram na vida das
personas que protagonizaram o anunciar da
identidade nacional.
Busquei refletir, durante as análises, sobre o que Walter Benjamin refere em relação
ao estudo do passado. Para Benjamim, estudar o passado não significa conhecê-lo “como
ele de fato foi”, mas sim se apropriar de uma reminiscência, pois a história está em
construção e seu lugar não é o tempo onipresente e vazio, mas um tempo saturado de
“agoras”.
293
O passado pode ser apreendido pelos fragmentos que dele emanam. Neste
sentido, as peças teatrais, muito mais que representações de momentos do passado
brasileiro, testemunham os sentimentos, as projeções, as apreensões, dentre outros, de seus
autores, aqui analisados, sobre determinados fatos, lugares e ambientes.
Ao observar os lugares da ação dos enredos, constatei que, na maioria dos enredos
dos textos teatrais estudados, foi privilegiado o ambiente da Corte para o seu
desenvolvimento. O interior encenado é o de províncias do Rio de Janeiro. São Paulo e a
Bahia também são lugares eleitos nos enredos. Esse deslocamento da Corte é assim
presenciado em
Sangue Limpo, Ingleses na costa, As casadas solteiras, Como se fazia um
deputado
, A torre em concurso e Cocota. As peças Sangue limpo e Ingleses na costa
desenvolvem sua ação toda em São Paulo. Aliás, Sangue limpo é a única das dezoito peças
que foi apresentada pela primeira vez na cidade de São Paulo.
Ingleses na costa, mesmo
235
tendo a ação representada em São Paulo, coloca em cena um carioca, um “nobre” visitante
que coloca “ordem” na vida dos protagonistas. Em
As casadas solteiras a ação é
desenvolvida em três cenários. No primeiro ato, em Paquetá, no segundo ato, na Bahia e no
terceiro ato volta-se à cena da Corte. Nas peças
Como se fazia um deputado, A torre em
concurso
e Cocota o enredo traz à cena características da sociedade interiorana, na medida
em que são ambientas nas províncias do Rio de Janeiro. Entretanto, em
Cocota, tal qual As
casadas solteiras
, também acontece o deslocamento da ação para a Corte. Tais aspectos
corroboram a idéia de que o Rio de Janeiro recebeu, nos enredos das peças eleitas para este
estudo, um olhar privilegiado por parte dos autores. Esse privilégio pode ser explicado pela
pretensão ao cosmopolitismo da cidade, que era a Capital Federal, em uma época em que se
desejava transformá-la em uma espécie de “Paris dos trópicos”.
294
Constatei ainda que, se na arte teatral o enredo é o ponto nodal para a edificação de
uma peça, a personagem é o principal alicerce desta estrutura. Conforme afirma Décio de
Almeida Prado, fundamental ao texto “a personagem institui-se no enredo como condutor
da narrativa”, dispensando a mediação de um narrador. Ela é o centro, o eixo no qual a
trama adquire dinamicidade.
Nas peças teatrais estudadas, os autores colocam nas personagens a função de
condutores das histórias. Uma das peculiaridades dos enredos é a questão da nacionalidade.
Classificadas como brasileiras, com diferenças de classe, e estrangeiras, as personagens, ao
longo das tramas, são carregadas de características peculiares, ou seja, assumem
identidades, muitas vezes estereotipadas, que retratam o olhar estrangeiro e a visão que os
brasileiros passam a ter de si mesmos. A inserção de diferentes nacionalidades também
293
BENJAMIN, WALTER. Magia e técnica, arte e política, op. cit. p. 224- 229
294
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador, op. cit., p. 106-107.
236
permitiu observar como os autores procuraram representar o trânsito e a interação entre
brasileiros e estrangeiros no momento inaugural da nação brasileira.
Salientei que a presença dos estrangeiros, nessas peças, além de enfatizar os
deslocamentos geográficos, o trânsito dessas categorias, impostos ou não, também aludiu à
possibilidade da coexistência das diferenças culturais no caldeamento brasileiro. Como
representação desses deslocamentos, os autores trazem à cena, nas dezoito peças,
personagens oriundas de Portugal, Inglaterra, Itália, Suécia, Alemanha, França e Espanha.
Neste sentido, a análise dessas peças apontou, ainda, para o pensar sobre a
ambivalência dos brasileiros frente aos estrangeiros, principalmente os
estrangeiros/estranhos. Para isso, recorreu-se às percepções de Zygmunt Bauman, na obra
Modernidade e ambivalência, quando afirma que a ambivalência se caracteriza pela
possibilidade das alternativas. A capacidade dos seres humanos em “aprender/memorizar”
insere neles o interesse em manter a ordem no mundo. Logo, através da função
classificadora/nomeadora da linguagem, tentam colocar ordem, ou seja, produzir uma
espécie de arquivo que conteria todos os itens do mundo. Porém a inviabilidade desse
arquivo faz a ambivalência “inevitável”.
295
Neste contexto, Bauman chama a atenção para aquilo que não é da ordem do
maniqueísmo, da dualidade, que foge ao jogo da dicotomia. Ele diz que, se existem amigos
e inimigos, existem também estranhos. Amigos e inimigos colocam-se em oposição uns aos
outros. São diferentes, mas se localizam uns nos outros, complementando-se, formando um
295
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 10-11.
237
todo único. O estranho, o lugar que muitas vezes é ocupado por estrangeiros, não é o do
amigo nem do inimigo, mas ele pode ser ambos – é um indefinível.
296
Entretanto, mesmo que Bauman aponte que o indefinível pode ser o estrangeiro,
neste estudo destacou-se, em especial, que, durante as reflexões sobre as obras teatrais
estudadas, o estrangeiro não aparece nesse lugar como indefinível.
297
Verifiquei que, em
alguns enredos, muitos brasileiros não vêem no estrangeiro um indefinível pois, além de
outros aspectos, ele foi colocado nas tramas em situações que também o definem como
amigo ou inimigo. Paradoxalmente, na perspectiva da ambigüidade, o estranho, conforme
Bauman, poderia ser o próprio brasileiro, diante de seu contexto, e pela sua posição nos
enredos.
Sobre as nacionalidades, neste caso a brasileira, um aspecto observado foi o fato de
que a maioria dos enredos é protagonizada por personagens que representam segmentos da
elite social da Corte ou interiorana. Nas peças, cujos enredos desenvolvem-se na Corte do
Rio de Janeiro, as personagens masculinas representam importantes segmentos da
sociedade: militares da milícia de D. Pedro I, políticos, ocupantes de cargos públicos, e
burgueses prósperos ou em dificuldades, ou que aspiram à inserção no mundo da Corte. A
corrupção e a troca de favores foram características da paisagem desse mundo da elite.
Um outro aspecto aparece deflagrado nas personagens femininas. As mulheres, em
alguns enredos, também representantes da sociedade da Corte, assumem papel de destaque,
296
Ao se referir ao estrangeiro como estranho Bauman coloca em evidência a dicotomia amigo e inimigo. O
estranho, então, entra na esfera do que Bauman categoriza como indefiníveis, ou seja, ambivalentes,
justamente por não serem uma coisa nem outra, mas podendo ser tudo. Ibid., p. 65.
297
Ainda para Bauman, a separação territorial e funcional aparece como método de segregação, através dos
quais é reforçado o mundo familiar, persistindo a área habitada por estranhos. O fenômeno da estranheza é
entendido pelo autor como aquele que solapa o ordenamento da temporalidade do mundo e que coloca em
evidência a mera historicidade da existência, na medida em que o estranho entra no mundo, na vida, sem, na
verdade, ter a ela pertencido originalmente. Conforme citado, segundo Bauman, o mundo ordenado não
238
não por protagonizarem os “casos amorosos” das peças, mas por se mostrarem capazes de
conduzir as tramas, influenciando os desdobramentos dos episódios retratados nas histórias.
É o caso de Helena, em
Lição de botânica, de Machado do Assis, e Amélia, em Amélia
Smith
, do Visconde de Taunay.
As elites brasileiras interioranas, representadas em
Como se fazia um deputado, de
França Júnior,
A torre em concurso, de Joaquim Manoel de Macedo, e até mesmo alguns
personagens de
Cocota, de Artur Azevedo, corporificam a ideologia liberal, cujo discurso
de defesa da liberdade política constituía estratégia das oligarquias rurais para prolongar
sua influência no poder do Estado, mesmo com a emancipação política (1822) ou a
Proclamação da República (1889). Como ilustração, destacou-se o processo eleitoral em
Como se fazia um deputado ou ainda, em Cocota, a persuasão do estrangeiro Bergaño em
convencer os fazendeiro Gregório a contratar imigrantes italianos e alforriar seus escravos.
Um pequeno número de personagens, na condição de protagonistas, e também em
poucos papéis secundários, representam segmentos da classe intermediária, como em
Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena, e Ingleses na costa, de França Júnior. As
dificuldades financeiras e as convenções sociais aparecem nos enredos como elementos que
engessavam qualquer possibilidade de ascensão da classe intermediária brasileira, e o dote
é um dos fatores que contribuem para isso. Outro aspecto que delineia o perfil de algumas
personagens pertencentes à classe intermediária são as artimanhas de que se utilizam para
garantir a sobrevivência e ou tentar freqüentar ambientes luxuosos.
Mesmo em número reduzido, mas com papéis muitas vezes decisivos no enredo, as
personagens que representam os escravos também aparecem nas tramas das peças deste
sabe como prosseguir ao deparar-se com o estranho, pois não é o que sequer será definido ou passível de
definição: é o indefinível, o ambíguo, a ambivalência. Ibid., p. 65.
239
estudo. Em Sangue limpo (1863), de Paulo Eiró, por exemplo, é o negro Liberato que, além
de denunciar as mazelas da vida dos escravos, possibilita um final feliz aos protagonistas
Luisa e Aires. Em O
demônio familiar, o próprio nome da peça se refere à personagem do
menino escravo. Pedro, o menino escravo, depois de inúmeras artimanhas e mentiras,
recebe de seu patrão a alforria como castigo. Já em
Como se fazia um deputado, Domingos,
escravo do Major Limoeiro, negocia sua liberdade com o fazendeiro, trocando-a pelo voto.
Os autores estudados abarcam, nesse sentido, ampla gama de personagens
identificadas com alguns segmentos sociais, anunciando-os como identitários culturais do
nacional brasileiro. Tal perspectiva atribui a essas personagens verossimilhança; no entanto,
pela generalização, reforça estereótipos que ajudam a construir a identidade dos brasileiros
como caricaturas, ou seja, realidades são distorcidas.
Entretanto, vale destacar que, mesmo que em número restrito, no que diz respeito à
representação do escravo e do imigrante, prevalece a visão de cultura, enquanto estratégia
de sobrevivência, e sua tradução como processo incessante de construção de significação
no âmbito da circulação de experiências, linguagens, dentre outros, sugerindo o “horizonte
social”, conforme define Mikhail Bakhtin.
A presença de diferentes tipos de brasileiros é um dos aspectos marcantes nos
enredos das peças. Eles são diferentes tanto no caráter quanto, e principalmente, no
convívio com o estrangeiro. As peças
Amor e pátria, Luxo e vaidade, A torre em concurso,
de Joaquim Manoel de Macedo, ou
Sangue limpo, de Paulo Eiró, mostram tipos brasileiros
que se anunciam como indivíduos centrados, de bom caráter. Em
O tipo brasileiro e Caiu o
Ministério!
, de França Júnior, encontram-se personagens que se definem na interação
240
cultural, marcadas pela influência dos estrangeiros vindos de nações imperialistas, e os que
se travestem de estrangeiros como estratégia de aceitação social.
Há, também, os tipos que creditam valor somente ao que vem do exterior, das
nações imperialistas. Há, ainda, os tipos xenófobos, que não aceitam o trânsito de
estrangeiros nem tampouco sua influência sobre os brasileiros, como no caso da peça
Luxo
e vaidade
ou A torre em concurso, de Joaquim Manoel de Macedo. No entanto, em O
demônio familiar
, o brasileiro Azevedo, totalmente contaminado pela influência
estrangeira, aparenta possuir uma nacionalidade destituída das cores locais.
Nestas leituras pretendi evidenciar, também, como os diferentes tipos brasileiros
aparecem demarcados na sua interação com os estrangeiros. Sendo assim, reitera-se a idéia
de que a representação do estrangeiro contribuiu para imprimir nos brasileiros uma
identidade construída de fora.
No que se refere às nacionalidades que emergem das peças, a análise das
personagens de nacionalidade estrangeira evidencia a representação destes indivíduos como
detentores de conhecimentos das ciências, artes e engenharia, superiores aos brasileiros que
lhes devem submissão pelo atraso cultural e incivilidade.
Quanto aos traços de caráter, esses indivíduos, os estrangeiros de nação
imperialistas, são diferenciados pela índole duvidosa, como a representação de tipos
aproveitadores, nos enredos de
Os dous ou o inglês maquinista, de Martins Pena, Caiu o
Ministério!,
de França Júnior, ou Quase Ministro, de Machado de Assis; outros, apesar de
detentores de bons conhecimentos e situação financeira privilegiada, mostram-se com bom-
caráter e, em alguns enredos, acabam sendo manipulados ou traídos por brasileiros.
241
Procurei mostrar que Martins Pena e França Júnior, ao colocar em cena “ingleses
embusteiros”, demarcam seu posicionamento contraditório frente ao imperialismo inglês,
sua intervenção em questões nacionais, como no caso das restrições sobre o tráfico de
escravos. A representação dos ingleses e não os de outras nacionalidades –, ao serem
apresentados como enganadores, como aproveitadores, pode estar sugerindo o
descontentamento dos autores diante da influência da Inglaterra sobre o Brasil.
Um dado peculiar na caracterização dos estrangeiros é que os indivíduos de caráter
e intenção duvidosos comunicam-se, na maioria das vezes, com uma linguagem estropiada,
enquanto as personagens de bom caráter falam português, às vezes com algumas inserções
de expressões de sua língua materna. Este caso pode ser observado nas falas do Barão, em
Lição de Botânica, de Machado de Assis, Bergaño, em Cocota, de Artur Azevedo, e de
John Smith, em
Amélia Smith, do Visconde de Taunay. Diferentemente de Martins Pena e
França Júnior, Taunay traz à cena o inglês de bom caráter.
Outro aspecto curioso que ficou registrado nas análises é o fato de que nessas peças
a representação dos estrangeiros acontece através de personagens masculinas. Alguns
estrangeiros, do tipo bom caráter, tencionam se casar (ou mesmo se casam) com brasileiras.
Nessas tramas, eles são seduzidos e conduzidos pelas brasileiras. Assim, pode-se
dizer que, nas dezoito peças escolhidas para este estudo, se por um lado a mulher
estrangeira recebe pouca representação, por outro a personagem feminina brasileira se
impõe, em muitas situações, sobre o estrangeiro, como ocorre nas peças
Lição de botânica,
de Machado de Assis, em que Helena, ao tomar as rédeas da trama, deixa o Barão a seus
pés; em
Amélia Smith, de Visconde de Taunay, Amélia é quem domina o marido John
242
Smith, e ainda o trai com um brasileiro. Em As casadas solteiras, de Martins Pena, Virgínia
e Clarisse ‘domam’os ingleses que outrora se mostravam autoritários.
Os estrangeiros, como trabalhadores imigrantes, aparecem em apenas duas peças.
Em
Cocota, de Artur Azevedo, onde os italianos têm sua participação mediada por um
intérprete, e em
Como se fazia um deputado, de França Júnior, quando, diante do contexto
do processo eleitoral, o mascate italiano nega sua identidade estrangeira para poder votar e
também ganhar algum dinheiro com seu voto. Nas duas peças, não papéis de destaque
para os imigrantes, ou seja, aparecem apenas como coadjuvantes e alguns são meros
figurantes.
Nos enredos estudados, percebi que a presença do estrangeiro, como contraponto,
foi um elemento importante para definir o brasileiro. Nesta perspectiva, procurei,
inicialmente, refletir sobre as considerações de Benedict Anderson, ressaltando, conforme
Eric Hobsbawm, a importância da historicidade na construção da nação. O que emerge
tanto dos enredos como das falas das personagens são elementos representativos na
construção da nação.
Nessa história, em que contracenam personagens brasileiras e estrangeiras,
anunciam-se apreensões diferenciadas da nação brasileira. Verifiquei que, para alguns
brasileiros, dominados pelo discurso ufanista, a nação brasileira imaginada aponta para um
tempo de justiça, de progresso. Outros a vêem como um lugar ainda em construção, que
necessita dar maior crédito e espaço aos brasileiros. Já as personagens contaminadas,
influenciadas pelos valores imperialistas, desmerecem a cor local e, por extensão, a nação
brasileira. Os representes de segmentos da classe intermediária demonstram pouca
identificação com as concepções da nação que os segmentos das classes dominantes
243
expressam: a sobrevivência é o que norteia seu dia-a-dia. Os negros cativos aparecem
apáticos, em especial em
Sangue limpo, em virtude de seu sofrimento e de sua descrença,
não havendo sequer a ilusão de ver no Brasil uma nação promissora capaz de integrar o
negro no corpo social. Não é por acaso que na cena intitulada “Independência ou morte”, a
personagem do negro Liberato se suicida.
Nas peças que trazem à cena os estrangeiros (cientistas, capitalistas), destaquei que
a nação brasileira aparece como um território ideal, cuja natureza grandiosa se apresenta
como elemento decisivo para seus interesses.
Para os trabalhadores imigrantes, a nação brasileira aparece como possibilidade de
trabalho, alternativa de sobrevivência, uma nova perspectiva de vida. A agricultura surge,
então, como a grande panacéia para a situação que representam e o Brasil como celeiro do
mundo. No exame da peça
Como se fazia um deputado evidenciei que o imigrante, por
imposição das contingências, tem sua nacionalidade e a língua materna abafadas.
Considero importante destacar que os diferentes
loci, que o autor brasileiro
representa, parecem anunciar como a interação pode ocorrer através do intercâmbio
dinâmico entre diferentes valores. Os enredos das peças, mesmo que privilegiem
representações de alguns segmentos sociais, anunciam que as personagens estão inexorável
e mutuamente contaminadas, e a troca de olhares torna-se importante para lhes dar sentido
nas tramas. Em outras palavras, faz-se tão importante para o brasileiro o contato com o
estrangeiro, quanto o é para o estrangeiro.
Diante de tais contextos, ocorre também uma constante de negociação inconclusiva,
sem trégua. Ao introduzirem nas peças representações de diferentes tipos brasileiros e tipos
244
estrangeiros, os autores trazem à cena o contexto polifônico que se desenhava em seu
tempo.
Dentre os brasileiros, entretanto, creio que mereça ser enfatizado que, diferente dos
romances, dos poemas dessa época, nas dezoito peças estudadas, somente em
Sangue
limpo
, de Paulo Eiró, alusão ao índio, enquanto um tipo brasileiro. Primeiro ao colocar,
em cena, Osnitalda, uma mestiça descente de índio. Segundo, através da fala da
personagem Rafael. Em suas palavras: “– O Brasil é uma terra de cativeiro. Sim, todos aqui
são escravos(...) índio que por um miserável salário é empregado na feitura da estradas e
capelas; o selvagem, que, fugindo às bandeiras, vaga de mata em mata...”
298
.
Mesmo que nesse tempo, segundo Antonio Candido, predominasse uma literatura
que aliava a noção de natureza à de pátria, apresentando o índio como sujeito forte,
poderoso, que não se deixa abater por adversidades,
299
ressalto que, estranhamente, a
presença deste não é inserida nos enredos das peças teatrais. Talvez pelo fato de o Rio de
Janeiro, de costas para o Brasil, identificar-se com o cosmopolitismo parisiense e ignorar os
que, na prática, foram excluídos no projeto de colonização e exploração.
Fica, então, o registro de que não nas dezoito peças selecionadas, mas na maioria
das setenta e quatro peças lidas, num tempo em que a história registrou importantes fatos
para a legitimação da nação, os dramaturgos brasileiros não concederam ao índio muito
espaço em seus enredos. Acredito que tal constatação mereceria um estudo mais
aprofundado.
De acordo com Anatol Rosenfeld:
a ficção é um lugar ontológico, privilegiado: um lugar em que o
homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas, a
298
EIRÓ, Paulo, op. cit p. 78-79.
299
CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. op. cit., p. 343
245
plenitude da sua condição, e em que se transforma transparente a si
mesmo; lugar em que transformando-se imaginariamente no outro,
vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e
vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de
desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria
condição.
300
Neste sentido, no exame do teatro brasileiro, procurei evidenciar a importância deste
também para a reflexão do contexto histórico do nascimento da nação brasileira, legitimada
e legalizada pela independência política. A escritura teatral é linguagem, e como tal, deve
ser vista como fenômeno expressivo, específico: um fenômeno que busca expressar uma
vivência ou uma experiência em termos de harmonia ou de impacto, de movimento, que
sugere visualidade, sons, que se cria e se recria da sua própria matéria-prima: a vida.
Nesta leitura das peças teatrais, demarquei que analisar a criação artística é sempre
algo complexo e que, muitas vezes, é necessário também extrapolar o âmbito do que é
apresentado nas obras. A presença dos vários tipos de estrangeiros contracenando com
variados tipos de brasileiros possibilitou-me refletir sobre a alteridade, sobre a interação
como um processo mutuamente constitutivo/construtivo da identidade de um povo e sobre
o árduo percurso para se constituir uma nação.
Por isso mesmo, a análise da representação dos personagens estrangeiros na
formação e constituição do teatro brasileiro, empenhado na construção de uma identidade
nacional, foi essencial ao percurso de minha tese: sua presença poderia constituir-se, e
assim o pretendi mostrar, em uma chave para a compreensão do imaginário sobre a nação.
“A Nação em cena”: se a encena diante do e com o “Outro”.
300
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